Вы находитесь на странице: 1из 336

Edição Especial

MAIO DE 2019

70 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos
O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA DEFESA
DOS DIREITOS HUMANOS
EXPEDIENTE –
Diretoria Executiva Suplência da Diretoria Esportes
Executiva Alen de Souza Pessoa
Camila Mendes Santana Ivan Viegas Renaux de Andrade
Presidente
Coutinho
Marcos Antônio Matos de
Daniel de Ataíde Martins Jurídico
Carvalho Fernando Della Latta Camargo Isabela Rodrigues Bandeira
Hodir Flávio Guerra Leitão de Carneiro Leão
1º Vice-Presidente Melo João Paulo Pedrosa Barbosa
Maria Ivana Botelho Vieira da Janaína do Sacramento Bezerra
Silva Maria Izamar Ciriaco Pontes Patrimonial
Emmanuel Cavalcanti Pacheco
2º Vice-Presidente Conselho Fiscal e Sônia Cardoso da Silva Santos
Clóvis Ramos Sodré da Motta
Consultivo Social
Fabiano Morais de Holanda
1º Secretária Allana Uchoa de Carvalho
Beltrão
Deluse Amaral Rolim Florentino Helena Martins Gomes e Silva
Francisca Carmina Soares
Salomão Ismail Filho
2º Secretário Apoio Institucional
Sérgio Roberto da Silva Pereira
Oscar Ricardo de Andrade Bianca Stella Barroso
Sílvia Amélia de Melo Oliveira
Hilário Marinho Patriota
Nóbrega
Departamentos Integração Regional
1º Tesoureiro Aposentados Almir Oliveira de A. Júnior
Sueldo de Vasconcelos Maria Bernadete Aragão Domingos Sávio Pereira Agra
Cavalcanti Melo Júlio César Soares Lira
Beneficência Sophia Wolfowitch Spinola
2º Tesoureira Israel Cabral Cavalcanti
Allana Uchoa de Carvalho Letícia Guedes Coelho
Comissão Editorial
Comunicação Geraldo Margela Correia
Assessoria Especial da e Salomão Ismail Filho
Geraldo Margela Correia
Presidência (Presidente e Vice-Presidente,
Janaína do Sacramento Bezerra
Arabela Maria Matos Porto respectivamente); Selma Magda
Gilson Roberto de Melo Barbosa Cultural Pereira Barbosa Barreto, Deluse
José Tavares Marcelo Greenhalgh Penalva Amaral Rolim Florentino
Maria Bernadete Martins de Santos e Eduardo Borba Lessa
Azevedo Figueiroa Frederico José Santos de Oliveira (Conselheiros).

Departamento de
Comunicação
Jornalistas: Marina Moura
Maciel e Thaís Lima
Revisão e Produção
Marina Moura Maciel
REVISTA JURÍDICA DA AMPPE Ilustração de capa
Rua Benfica, 810, Madalena - Recife/PE Ana Rita Moraes
CEP: 50720-001 - Brasil Diagramação e impressão
(81) 3228-7491 Ed Batalha / Premius Editora

amppe@amppe.com.br | www.amppe.com.br Tiragem: 600 exemplares


Facebook: @associacaomppe | Instagram: @a.mppe ISSN 2447-9624
SUMÁRIO –

Apresentação 05
————————————————————————————
Presunção de inocência 07
GUILHERME GRACILIANO ARAÚJO LIMA
————————————————————————————
Efetivação de direitos da 29
população LGBT
GUSTAVO HENRIQUE HOLANDA DIAS KERSHAW
————————————————————————————
A saída do louco infrator do 47
HCTP
IRENE CARDOSO SOUSA

————————————————————————————
O direito humano ao meio 79
ambiente urbano
JULIENNE DINIZ ANTÃO
SALOMÃO ISMAIL FILHO
————————————————————————————
A saúde da pessoa privada de 109
liberdade no sistema prisional
IRENE CARDOSO SOUSA
JÚLIO CÉSAR SOARES LIRA
————————————————————————————
A criação dos Conselhos da
Comunidade
129
JÚLIO CÉSAR SOARES LIRA
O Ministério Público e os direitos
humanos
159
LUÍS SÁVIO LOUREIRO DA SILVEIRA
MARIANA FARIAS SILVA
RICHARDSON SILVA
———————————————————————————
Os direitos fundamentais do
consumidor no plano subnacional
193
RENATA GONÇALVES PERMAN
MARIA IVANÚCIA MARIZ ERMINIO
———————————————————————————
Os direitos humanos ao juiz
imparcial, ao devido processo
221
legal e ao contraditório
SALOMÃO ISMAIL FILHO

———————————————————————————
O Sistema de Precedentes do CPC
de 2015
253
SELMA MAGDA PEREIRA BARBOSA BARRETO

———————————————————————————
A importância do Provita
FABIANO MORAIS DE HOLANDA BELTRÃO
271
LUÍS OTÁVIO DE LIMA
———————————————————————————
O direito humano ao meio
ambiente equilibrado e protegido
301
GERALDO MARGELA CORREIA

———————————————————————————
O Ministério Público e sua
inserção na defesa dos direitos
321
humanos
OSWALDO GOUVEIA FILHO
Especial - maio de 2019 | 5

APRESENTAÇÃO –

Prezado leitor,

Proclamada em 10 de dezembro de 1948, ape-


nas três anos após o final da 2ª Guerra Mundial -
conflito que ficou marcado pela violência devasta-
dora, exponencialmente aumentada pela utilização
de novas tecnologia militares e pelo genocídio pra-
ticado em nome de uma delirante supremacia ra-
cial -, a Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos (DUDH) é um marco no processo civilizatório
ao estabelecer, pela primeira vez, a proteção uni-
versal dos direitos humanos. Traduzida em mais de
500 idiomas, passou a inspirar as constituições de
diversos Estados e democracias modernas.
Desde então, somaram-se à DUDH diversos
tratados internacionais de direitos humanos, den-
tre eles a Convenção Internacional sobre a Eli-
minação de Todas as Formas de Discriminação
Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos
da Criança (1989) e a Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (2006). Todos com-
partilham um objetivo comum: atualizar e alcan-
çar uma abrangência realmente global dos direitos
humanos.
Nestas sete décadas, nenhum outro conflito
atingiu proporção mundial semelhante à 2ª Guer-
ra, porém vários governos ainda adotam padrões
ditatoriais, e conflitos armados continuam disse-
minado o terror e a violência desmedida em vá-
rias nações, ocasionando um dos maiores fluxos
migratórios de todos os tempos. Este contexto re-
acende, de forma extremamente preocupante, dis-
cursos de ódio, xenófobos e supremacistas, apa-
rentemente superados pela marcha civilizatória.
A edição extraordinária da Revista Jurídica,
que homenageia os 70 anos da Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, promove discussão de
caráter científico, uma das finalidades estatutárias
da AMPPE. Neste volume, destacamos a impor-
tância da DUDH como marco inaugural e como
ideal ainda a ser atingido por todos os povos e to-
das as nações, sendo certo que a defesa e a garan-
tia de tais direitos são desafiadores compromissos
que diuturnamente se renovam pelos membros do
Ministério Público brasileiro.

Boa leitura!

Marcos Carvalho
Presidente da AMPPE
Especial - maio de 2019 | 7

ANÁLISE JURÍDICA DA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA À
LUZ DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DE DIREITOS HUMANOS E O
PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
COMO DEFENSOR DO DIREITO
FUNDAMENTAL ÀS LIBERDADES

GUILHERME GRACILIANO
ARAÚJO LIMA

Doutorando em Direitos
Humanos no Programa de Pós-
Graduação em Direito (PPGD)
da UFPE. Mestre em Direito pela
mesma instituição. Promotor
de Justiça em Pernambuco,
atualmente em exercício pleno
na 2ª Promotoria de Justiça
da Carpina, aprovado em 1º
lugar-geral no XXIV concurso
público de provas e títulos para
o cargo de promotor de Justiça
e promotor de Justiça substituto
do MPPE. Foi procurador do
Estado de São Paulo e professor
em cursos de graduação e pós-
graduação em Direito. E-mail:
guilhermegraciliano@gmail.com
8 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

Na jurisprudência moderna do Supremo Tribunal Federal (STF), é possível


encontrar uma verdadeira oscilação decisória quanto à aplicação do princí-
pio constitucional da presunção de inocência, também conhecido como pre-
sunção de não culpabilidade. Tal oscilação deixa de considerar a Declaração
Universal de Direitos Humanos (DUDH) como instrumento jurídico inter-
nacional que favorece a primazia do referido princípio, mormente no caso
brasileiro, que tem na Constituição Federal garantia inafastável da exigência
do trânsito em julgado da sentença criminal para se dar início à execução
penal. Nesse quadro, cabe ao Ministério Público o dever institucional de,
atuando na defesa dos direitos humanos e nos interesses sociais e individuais
indisponíveis, assegurar o respeito ao estado de inocência, atuando assim na
preservação da DUDH em um contexto social e democrático.
Especial - maio de 2019 | 9

1 Notas introdutórias
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem se destacado pelo impacto social,
político e econômico contido nas decisões judiciais emanadas pela corte nos
últimos anos, bem como pelas declarações além dos autos proferidas por
seus ministros junto à imprensa e às redes sociais. Holofotes iluminam os
ministros da corte em suas mais importantes passagens, e nas menos impor-
tantes igualmente, em ambientes jurídicos ou sociais, mas, ultimamente, as
luzes têm sido ofuscadas por doses gritantes de insegurança jurídica.
É possível verificar um verdadeiro combate entre as decisões dos minis-
tros do STF e incessantes e indignas lutas sobre que decisão judicial deve
prevalecer eficazmente em detrimento de outra decisão judicial, seja do ór-
gão colegiado, seja decisão monocrática.
Sobre esse tema encontra-se a discussão, aparentemente interminável,
sobre o princípio processual penal da presunção da inocência, também co-
nhecido como princípio da não culpabilidade, e a execução provisória da
pena aplicada por órgão jurisdicional competente em sede de segunda ins-
tância, em meio a direções e caminhos de idas e vindas, voltas e retornos,
de vai e vem, no qual a principal prejudicada é sempre a sociedade como
um todo dependente de afirmações e definições sólidas e coerentes quando
provindas dos órgãos do sistema de Justiça do País, especial daquela que é
considerada a Corte Suprema.
Partindo das interlocuções geradas a partir da discussão acima coloca-
da, o presente trabalho vai sondar os temas da presunção de inocência à
luz da Declaração Universal de Direitos Humanos, ressaltando que, quando
das considerações acerca dessa última, irar-se-á tentar colocar a posição do
Ministério Público como defensor do Estado Democrático de Direito e dos
direitos fundamentais do cidadão, vinculando-o à problemática da execução
provisória de condenação penal sem trânsito em julgado.
10 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

2 Apontamentos acerca da
presunção de inocência e da
execução provisória da pena na
jurisprudência do STF
O princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio
da não culpabilidade, tem no ordenamento brasileiro guarida constitucional
no artigo 5º, inciso LVII, da Carta Cidadã quando afirma: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condena-
tória”.
No Código de Processo Penal também é possível encontrar insculpido o
aludido princípio, exatamente no art. 283, ao aduzir que ninguém pode ser
preso a não ser por flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judi-
cial, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, ou em
virtude de prisão temporária ou prisão preventiva, no curso da investigação
ou do processo criminal.
Logo, no ordenamento jurídico brasileiro, em diplomas distintos, quais
sejam, a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Penal, há de
maneira categórica e expressa uma ressalva necessária ao trânsito em julga-
do da decisão criminal como requisito inarredável para se declarar alguém
como culpado e fazer cumprir pena pela prática de determinado crime.
Não obstante o tema ser demasiadamente claro nos dispositivos citados,
na jurisprudência do STF a matéria causa pânico nos incautos e maus agou-
ros nos arautos da segurança jurídica.
Até fevereiro de 2009, era possível identificar facilmente no âmbito da ju-
risprudência do STF a tendência de permitir a execução de condenação pe-
nal antes mesmo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Ainda na
Especial - maio de 2019 | 11

década de 1990, é possível encontrar julgados da Suprema Corte afirmando


que a ordem de prisão decorrente de sentença condenatória confirmada pela
segunda instância não colide com a garantia constitucional da presunção de
inocência, como foi o caso do julgamento do HC 68.726.
Contudo, em fevereiro de 2009, como dito, a jurisprudência do STF, cuja
composição tinha se alterado significativamente desde o começo da década
anterior, sofreu uma guinada forte para, no julgamento do HC 84.078, for-
mar-se no sentido de impedir a execução de sentença condenatória criminal
antes do seu respectivo trânsito em julgado, em obediência ao art. 5º, LVII,
da Constituição Federal de 1988, no qual ficaram vencidos os votos pro-
feridos pelos ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa
e Ellen Gracie, sendo que o ministro Gilmar Mendes, então presidente do
tribunal, votou de acordo com a maioria, isto é, contra a execução provisória
da pena antes que se tenham esgotadas todas as possibilidades recursais.01
Sete anos depois, porém, o STF, com composição relativamente alterada,
pois seis dos onze ministros que participaram do julgamento do HC 84.078
(Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e
Menezes Direito foram substituídos por Rosa Weber, Teori Zavascki, Ro-
berto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Dias Toffoli, respectivamente) não
mais integravam o STF, quando do julgamento do HC 126.292, que mudou
novamente o entendimento sobre a matéria, retornando ao posicionamento
de antes de 2009.
Assim, em fevereiro de 2016, durante o julgamento do HC 126.292, o
STF praticou um segundo overruling, ou seja, uma espécie de overruling do

01 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. A oscilação decisória no STF acerca da garantia da presunção
de inocência: entre a autovinculação e a revogação de precedentes. Revista de Informação Legislativa:
RIL, v. 55, n. 217, p. 135-156, jan./mar. 2018, p. 144. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/55/217/ril_v55_n217_p135>. Acesso em: 21 dez. 2018.
12 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

overruling.02 Restaram vencidos nesse novo julgamento os ministros Rosa


Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, então presi-
dente da Corte à época.
Desse modo, a partir de fevereiro de 2016, o STF voltava sete anos no
tempo para reafirmar uma tese que a própria corte já havia abandonado an-
teriormente, para dizer novamente que a execução provisória de acórdão pe-
nal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso
especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da
presunção de inocência.
Destaca-se que, mudando o entendimento que tinha na época do jul-
gamento do HC 84.078, o ministro Gilmar Mendes continuou a formar a
maioria vencedora do julgamento do HC 126.292, mas contrariando a posi-
ção que ele mesmo, ministro Gilmar, havia tomado anteriormente, em 2009,
de forma que passou a entender em 2016 que o cumprimento provisório de
sentença condenatória criminal não tinha aptidão a violar o princípio cons-
titucional da presunção de inocência.
Ainda de volta ao mesmo tema, em outubro de 2016, o plenário do STF
julgou os pedidos de medida cautelar nos autos da ação declaratória de cons-
titucionalidade (ADC) de nº 43 e 44, indeferindo os mesmos, para reafirmar
a tese esposada no HC 126.292, asseverando que o art. 283 do Código de
Processo Penal (CPP) não é incompatível com o cumprimento antecipado
da pena, vencidos os ministros Marco Aurélio (Relator), Rosa Weber, Ricar-
do Lewandowski, Celso de Mello, e, em parte, o ministro Dias Toffoli.
A nota relevante aqui é que esse julgamento foi proferido em sede de
controle concentrado de constitucionalidade, processo objetivo e analisado
em tese, isto é, não a partir de determinado caso concreto, e tem efeitos vin-
culantes para a Administração Pública e para os órgãos do Poder Judiciário,

02 Idem, p. 145.
Especial - maio de 2019 | 13

cabendo contra as decisões ou atos administrativos que desrespeitem os seus


ditames o ajuizamento de reclamação constitucional perante o STF.
Ainda em 2016, desta feita no mês de novembro, o STF apreciou nova-
mente o tema, agora em sede de julgamento de agravo em recurso extraor-
dinário (ARE) nº 964.246 através do seu plenário virtual, com repercussão
geral reconhecida, reafirmando que não viola a presunção de não culpabili-
dade o cumprimento provisório de pena após o julgamento do tribunal de
apelação.
Observação relevante é feita por Guilherme Assis ao analisar o referido
julgamento, quando afirma o autor que o ministro Dias Toffoli mudou par-
cialmente seu entendimento para restringir a execução provisória da pena,
exigindo o julgamento de eventual recurso especial pelo Superior Tribunal
de Justiça (STJ) antes de se admitir o cumprimento da reprimenda penal.
Por sua vez, continua Assis, a ministra Rosa Weber – que havia votado pela
manutenção do entendimento anterior assentado no HC 84.078 – não se
manifestou no prazo adequado, razão pela qual o resultado do julgamento
foi de 6 votos a 4, e não de 7 votos a 4, como ocorreu no HC 126.292, julgado
pelo plenário meses antes.03
Em síntese, em 2016 o STF mudou de posição quanto à possibilidade de
início de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença
criminal condenatória, e o fez ao menos em três oportunidades relevantes:
no HC 126.292, julgado em fevereiro daquele ano; no indeferimento das
medidas cautelares nas ADC 43 e 44, em outubro de 2016; e no julgamento
do ARE 964.246, com repercussão geral reconhecida e julgado pelo plenário
virtual da corte.
Quando a questão parecia se resolver, eis que os ministros Marco Aurélio
Mello e Ricardo Lewandowski passaram a proferir diversas decisões mono-

03 Idem, p. 145.
14 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

cráticas contrárias ao posicionamento mais recente da maioria dos minis-


tros que compõem o STF fixado no HC 126.292 quanto ao epigrafado tema,
podendo serem citados os casos do HC 138.337, HC 137.063, HC 145.856,
HC 140.217, HC 144.908 entre outros, nos quais os ministros referidos in-
sistem em afastar o cumprimento provisório da pena antes do trânsito em
julgado da condenação.
Essa constante revisão de julgados sobre a mesma matéria não parece
posição mais consentânea ao postulado da segurança que se espera de uma
corte constitucional. Embora seja salutar a idiossincrasia entre os juízes e
seja factível não se desejar o engessamento das teses jurídicas fixadas nos tri-
bunais, sobretudo em tempos de modernidade líquida e fluída, a revisitação
de temas apenas pelo fato de ter havido mudança significativa na composi-
ção dos órgãos decisórios ou apenas em razão da mudança de entendimento
pessoal de determinado ministro, parece atentar contra os primados da for-
mação sólida do Direito.

3 A presunção de inocência à luz da


Declaração Universal de Direitos
Humanos
O princípio da presunção de inocência, albergado pela Constituição Federal
de 1988, também recebe amparo na Declaração Universal de Direitos Hu-
manos (DUDH). Antes de adentrar na análise do aludido princípio, porém,
mister tecer breves comentários sobre a contextualização da DUDH e os
pontos básicos para entender o quadro de seu surgimento.
Sobre o tema convém inicialmente destacar os ensinamentos de Antônio
Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia),
ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e professor
emérito de Direito Internacional da Universidade de Brasília.
Especial - maio de 2019 | 15

Segundo Cançado, atualmente não se pode negar que, embora a ocorrên-


cia de avanços no domínio de proteção dos direitos humanos ao longo das
sete últimas décadas, surgem com frequência novos obstáculos, traduzidos
sobretudo pela “marginalização e exclusão sociais de segmentos crescentes
da população, na diversificação de fontes de violações de direitos humanos e
na impunidade de seus perpetradores.”04
Segundo o professor, devido à evolução da doutrina contemporânea,
hoje se reconhece que as derrogações e limitações permissíveis ao exercí-
cio dos direitos humanos previstos nos tratados internacionais de direitos
humanos devem ser restritivamente interpretadas, impondo-se a intangibi-
lidade das garantias judiciais em matéria de direitos humanos, que devem
ser exercitadas consoante os princípios do devido processo legal, mesmo em
estados de emergência.05
É inegável que não se pode deixar de atribuir à Declaração Universal
o marco primordial de generalização da efetivação, universalização do es-
tabelecimento de direitos individuais e proteção dos direitos humanos no
mundo, mormente se considerarmos o momento em que se deu o seu surgi-
mento, logo após o fim da segunda grande guerra mundial.
Nesse sentido também é o pensamento de Sérgio Resende de Barros,
afirmando que os direitos humanos tendem a ser direitos universais, vincu-
lados aos direitos sociais, nestes se realizando, resultando com esse espírito
de síntese do individual na confirmação de direitos sociais, permitindo-se,
assim, se chegar à Declaração das Organizações das Nações Unidas (ONU)
de 1948, que internacionalizou e universalizou os direitos humanos, univer-

04 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. As sete décadas de projeção da declaração universal dos
direitos humanos (1948-2018) e a necessária preservação do seu legado. Revista da Faculdade de Direito
UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 97-140, jul./dez. 2018, p. 100.
05 Idem, p. 136.
16 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

salização essa que, ainda segundo o autor, teria seus primórdios nas declara-
ções norte-americanas sobre direitos do homem e do cidadão.06
Segundo apregoa Fernando Almeida sobre o tema, a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos forneceu um avanço para conferir maior liber-
dade ao homem, enquanto, simultaneamente, despertou uma consciência
mais clara desses direitos e propiciou uma maior quantidade de instrumen-
tos para sua defesa, sendo que, à medida que passou a ser incorporada às
legislações internas das nações, a violação de tais direitos passou a ser tida
como ato criminoso.07
A construção da DUDH teve importância sobremaneira a partir dos
trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Direitos Humanos das Nações
Unidas, entre maio de 1947 e junho de 1948, e o seu respectivo Grupo de
Trabalho, cujas conclusões foram levadas à análise da comissão estabelecida
pela Assembleia Geral da ONU para tratar da elaboração e formatação da
declaração universal.
Assim, em 10 de dezembro de 1948, dos 58 Estados membros da ONU,
48 votaram a favor do texto final e 8 Estados se abstiveram de votar, não
havendo nenhum voto contrário, razão pela qual a Assembleia Geral procla-
mou a Declaração Universal de Direitos Humanos.
Vale destacar à oportunidade que há, na doutrina humanista, quem veja
na Carta das Nações Unidas, que pode ser vista como uma espécie sui ge-
neris de tratado internacional que deu origem formal às Organizações das
Nações Unidas em 1945 logo após a ratificação do seu teor pelos países inte-
grantes do Conselho de Segurança e da maioria dos demais Estados signatá-

06 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 372.
07 ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1996, p. 111.
Especial - maio de 2019 | 17

rios, a gênese da Declaração Universal de Direitos Humanos e a consequente


internacionalização dessa espécie de direitos.08
Junto à declaração se somaram, 22 anos após, dois pactos jurídicos re-
levantes: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, formalmente
adotados pela Assembleia Geral da ONU em 1966. Assim, com os citados
pactos e a DUDH, se forma a Carta Internacional dos Direitos Humanos.
Sobre a importância atual da Declaração e dos seus pactos, vale destacar
a posição de Gilberto Saboia:

Passados 60 anos e a despeito das conquistas alcançadas atra-


vés da confirmação nos Pactos Internacionais sobre Direitos
Humanos e na numerosa teia de instrumentos jurídicos de
alcance universal, regional ou que estabelecem sistemas de
proteção específica contra certas formas de violação ou para
determinadas categorias de pessoas vulneráveis, a Declara-
ção Universal permanece atual e relevante como impulso
que inspirou este processo, apesar das contingências fre-
quentemente desfavoráveis dos jogos de poder internacio-
nal, e como interpretação autêntica das obrigações contidas
na Carta da ONU.09

08 PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua importância
na gênese, desenvolvimento e consolidação do direito internacional dos diretos humanos. In: SGARBOSSA,
Luís Fernando; IENSUE, Geziela. Direitos Humanos & Fundamentais: Reflexões aos 30 Anos da Constituição
e 70 da Declaração Universal. Campo Grande: Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica, 2018, p. 49.
09 SABOIA, Gilberto Vergne. Significado Histórico e Relevância Contemporânea da Declaração Universal
dos Direitos Humanos para o Brasil. In: GIOVANNETTI, Andrea (org). 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos: conquistas do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 57.
18 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Por esse pensamento fica evidente que a DUDH e os dois pactos que
lhe seguiram em 1966 serviram como instrumentos jurídicos de garantia e
eficácia da implementação de direitos humanos, sendo que, ainda hoje, após
70 anos da promulgação da Declaração, seu debate continua atual e presente.
No tocante à presunção de inocência, o Pacto Internacional sobre Direi-
tos Civis e Políticos o tratou de maneira específica, rezando, em seu artigo
14, parágrafo 2º, que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se
presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.
De seu turno, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tam-
bém chamado de Pacto de São José da Costa Rica, recebida no ordenamento
jurídico brasileiro através do decreto presidencial nº 678/92, e recepciona-
da com status de supralegalidade, conforme entendimento do STF, reafirma
em seu artigo 8º, parágrafo 2º, a presunção de não culpabilidade, ao aduzir:
“toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma a sua ino-
cência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Vale destacar que as análises sobre o supramencionado princípio tam-
bém o fazem sob a luz do processo penal, de um ponto de vista mais in-
trínseco à natureza instrumental do processo, de modo que o princípio ora
configura regra de tratamento, através da qual se presume o acusado ino-
cente até o trânsito em julgado da decisão condenatória, ora se apresenta
como regra de julgamento, segundo a qual no momento do proferimento da
sentença em caso de dúvida razoável deve-se absolver o réu.
Antes de adentrar mais a fundo na discussão acerca do princípio da pre-
sunção de não culpa, é primordial esclarecer que existe, na doutrina interna-
cionalista, discussão sobre o caráter vinculativo da DUDH, isso porque, para
alguns, a referida declaração teria caráter meramente recomendatório, tais
como as resoluções da ONU, configurando o soft law. Contudo, prevalece o
entendimento de que, assim como os tratados de direito internacional, que
são vinculativos em sua essência, hard law, a DUDH tem caráter vinculante,
ressaltando ser ela um instrumento normativo que cria obrigações jurídicas
Especial - maio de 2019 | 19

para os Estados-Membros da ONU, ressaltando apenas atualmente a discus-


são acerca do seu caráter normativo, não se referindo mais à existência ou
não de sua força vinculante, mas se reduzindo a celeuma em saber se todos
os direitos proclamados pela DUDH têm força obrigatória ou não, e em que
circunstâncias exatamente ela ocorre.10
Voltando ao tema da presunção da inocência, em específico, vale tecer
algumas considerações a partir de então.
A principal referência ao primado da não culpabilidade na DUDH é en-
contrada no art. 11 da declaração, ao aduzir no seu artigo 11, parágrafo 1º:

Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito


de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha
sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no
qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessá-
rias à sua defesa.

Também é possível falar na manutenção da presunção de inocência a


partir de uma leitura sistemática do art. 8º da Declaração Universal, ao apre-
goar que “todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais
competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamen-
tais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
Nesse sentido, pode-se perceber que foi a própria Constituição Federal
de 1988 que assegurou os remédios efetivos contra possíveis decisões ju-
diciais criminais condenatórias injustas, no caso, os recursos excepcionais,
como o extraordinário e o especial, cuja interposição tem a capacidade de
impedir o trânsito em julgado e evitar violações a direitos fundamentais do
cidadão, como o direito à liberdade.

10 PEREIRA, Luciano Meneguetti. Ob. cit., p. 63.


20 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Logo, por esse ângulo de vista, também é possível afirmar que a defesa da
presunção de inocência requer o trânsito em julgado da sentença condena-
tória, posto que é direito assegurado pela DUDH que os tribunais garantam
mecanismos efetivos contra violações a direitos fundamentais do cidadão,
esclarecendo que essa violação pode surgir de uma decisão criminal que ve-
nha a ser cassada ou reformada em sede de julgamento de recursos perante
os tribunais superiores.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), assinada em
novembro de 1969, em São José, na Costa Rica, também asseverou a pre-
sunção de inocência no seu art. 8.2, conforme o qual “toda pessoa acusada
de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não se
comprove legalmente sua culpa”. O Brasil apenas em 1992 veio a adotar a
CADH em seu ordenamento jurídico, mas, segundo o STF, quando houve
essa incorporação, o texto internacional passou a deter natureza supralegal
e infraconstitucional.
Com efeito, o grau de importância dado por tantos instrumentos inter-
nacionais em matéria de direitos humanos ao estado de inocência do ci-
dadão não deixa dúvidas de que o entendimento mais consentâneo com a
Declaração Universal de Direitos Humanos, aprofundado e delineado pela
Constituição Federal de 1988, é aquele que exige o trânsito em julgado para
se dar início ao cumprimento de uma sentença penal condenatória, permi-
tindo-se, todavia, antes desse marco, a prisão apenas de natureza cautelar ou
temporária.
É que a discussão sobre a culpabilidade do acusado, segundo as garantias
impostas pela DUDH, somente pode ser superada após o final do julgamen-
to criminal, realizado “na forma da lei”, como visto. No caso do direito bra-
sileiro, a lei é o Código de Processo Penal, em seu art. 283, e, considerando o
termo em seu sentido amplíssimo, para ser entendido como norma jurídica
de direito positivo, também se fala da Constituição Federal de 1988, onde se
Especial - maio de 2019 | 21

pode encontrar a afirmação da garantia dos efeitos do princípio da presun-


ção de inocência, exigindo para a sua superação o esgotamento de todas as
vias recursais disponíveis.
Além disso, quando se percebe que a DUDH exige que sejam assegura-
das “todas as garantias necessárias” à defesa do acusado, nessa percepção se
faz compreensível entender que a própria exigência do trânsito em julgado é
uma garantia do acusado e que ignorar tal mecanismo configura violação ao
texto expresso da Declaração.
Desse modo, seguindo uma interpretação principiológica e sistemática,
é possível afirmar que, pelo princípio da não culpabilidade, ninguém pode
ser perseguido ou condenado antes dos trâmites processuais legais, pois sua
culpa somente se forma no modelo jurídico previsto na lei.
Por esse mesmo princípio diz-se que ninguém poderá ser julgado sem
que tenha sido devidamente chamado ao processo, deduzindo-se que, en-
quanto o acusado não seja declarado culpado por uma decisão com força de
caso julgado, será considerado inocente. Finalmente, por esse mesmo prin-
cípio, é possível definir que o processado tem o direito de apresentar a sua
defesa de maneira ampla e livre, discutindo os elementos de prova contra si
reunidos, cabendo à acusação a prova do crime, posto que, em último caso,
a dúvida beneficia o réu do processo penal.11
Diante do exposto, percebe-se que, espancando qualquer dúvida, a exi-
gência do trânsito em julgado para dar início ao cumprimento da pena con-
figura regra jurídica objetiva e marco temporal preciso, estabelecido pela
Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal, configurando-se,

11 BRASIL, Deilton Ribeiro. A garantia do princípio constitucional da presunção de inocência (ou de


não culpabilidade): um diálogo com os direitos e garantias fundamentais. Revista de Direito Brasileira,
São Paulo, v. 15, n. 6, p. 376/398, set./dez., 2016, p. 379. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.
php/rdb/article/view/3038/2785>. Acesso em: 27 dez. 2018.
22 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

desse modo, instrumento de garantia dos direitos humanos do acusado, com


cuja defesa o Estado Brasileiro se comprometeu ao incorporar à sua ordem
jurídica a Declaração Universal de Direitos Humanos.

4 A atuação do Ministério Público


à luz da DUDH em matéria de
presunção de inocência
Nesse último ponto do trabalho, a discussão é voltada para a tentativa de di-
recionamento e compreensão da atuação ministerial frente à garantia cons-
titucional da presunção de inocência.
Quando da defesa do primado constitucional, o Ministério Público tam-
bém tem o papel relevante de prezar pelos direitos humanos e fundamentais
do cidadão, inclusive o direito à liberdade, não somente de pensamento, mas
também à liberdade de locomoção.
Na defesa desse direito, portanto, cabe ao órgão ministerial se utilizar
dos instrumentos legais e constitucionais cabíveis na defesa da ordem cons-
titucional e do Estado Democrático de Direito, bem como dos mecanismos
cabíveis e providências adequadas, para garantir não somente o bem da so-
ciedade e condução adequada do processo penal, mas também os direitos
mais básicos do indivíduo, considerando-o na sua individualidade.
Ademais, cabe ainda ao parquet a defesa e a promoção dos direitos hu-
manos delineados na Declaração Universal de 1948, na medida em que fo-
ram proclamados no texto internacional do século passado, nos pactos, tra-
tados e convenções internacionais que lhe sucederam, mas que ainda assim
confirmaram o dever de obediência e respeito aos direitos mais básicos e
elementares do homem.
Especial - maio de 2019 | 23

Também vale destacar que essa defesa não é limitada tão apenas aos ter-
mos literais da DUDH, até mesmo porque com o passar do tempo e o desen-
volvimento das comunidades globais e regionais, com o surgimento de novos
desafios, cuja amplitude dimensional parece sempre estar em processo de
expansão, mormente em tempos de mídias sociais iterativas e globais e na era
da informação rápida e difusa, o sentido e o alcance interpretativo das nor-
mas da DUDH podem sofrer variações em suas interpretações e aplicações.
A defesa dos interesses individuais indisponíveis e dos direitos humanos
pelo Ministério Público deve alcançar igualmente os limites e compreensões
dadas posteriormente à DUDH, mas que surgem a complementando, que
foi exatamente o caso da Constituição Federal de 1988 quando exigiu o trân-
sito em julgado como marco temporal, processual e objetivo para afastar a
presunção de inocência que recai sobre o cidadão acusado do cometimento
de determinados crimes.
Logo, a estabilidade do pensamento ministerial concatenado à defesa
dos direitos humanos é tarefa árdua que não merece vacilo por parte dos
procuradores e promotores de Justiça quando se diz respeito a esse tipo de
direito.
É necessário prezar pelo estabelecimento de uma segurança jurídica
mínima, que, no caso do princípio da presunção de inocência, sendo con-
sentâneo com o Texto Constitucional de 1988, com a Declaração Universal
de Direitos Humanos, com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Po-
líticos e com a Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outros
instrumentos jurídicos de direito internacional, deve ser garantida no senti-
do de exigir o trânsito em julgado da sentença penal condenatória antes do
cumprimento efetivo da pena.
O STF, na forma como atuou sobre o tema, parece vacilar na manutenção
da ordem e da segurança constitucional, contudo já aparecem indícios de
que talvez a corte venha, mais uma vez, revisitar o tema.
24 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Conforme pontua Assis, caso venha, de fato, a ocorrer uma posição de


revisão do entendimento do ministro Gilmar Mendes, como visto um dos
principais responsáveis pela mudança de entendimento, é possível se chegar
a mais um overruling acerca do mesmo tema:

A revisão da posição do ministro Gilmar Mendes, caso ve-


nha a se concretizar quando do julgamento final das ações
declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, provavelmen-
te conduzirá a mais uma guinada na jurisprudência do STF
(o terceiro overruling), visto que se formará nova maioria
de votos para restabelecer a tese da proibição da execução
imediata da pena após a condenação em segunda instância.12

Diante do exposto, é papel inarredável do Ministério Público brasileiro


defender os direitos humanos e fundamentais, especialmente quando detêm
guarida constitucional e são observados nos mais diversos instrumentos
jurídicos da ordem internacional, sendo necessária, desse modo, a atuação
do membro do parquet para promover as medidas judiciais e extrajudiciais
necessárias para que a execução da pena somente tenha início após o devido
trânsito em julgado da sentença criminal, estando assim em plena conso-
nância com a garantia estabelecida no art. 5º, LVII, da Constituição Federal
de 1988, bem como no art. 11, parágrafo 1º, da Declaração Universal de
Direitos Humanos.

12 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Ob. cit., p. 147.


Especial - maio de 2019 | 25

5 Conclusões
As discussões que permearam o presente ensaio voltaram-se sobre o prin-
cípio da presunção de inocência na jurisprudência do STF e sua aplicação
nos moldes daquilo que pode se extrair da Declaração Universal de Direitos
Humanos, para, ao final, tecer comentários sobre qual seria o papel de atua-
ção do Ministério Público no contexto democrático de aplicação do referido
princípio.
Depreendeu-se que o STF não tem se preocupado tão eficazmente com o
primado da segurança jurídica, posto que em menos de uma década alterou
o seu entendimento sobre o princípio constitucional da não culpabilidade e
a necessidade de se exigir o trânsito em julgado de sentença criminal conde-
natória para dar início à fase da execução penal.
Nesse cenário, focou-se, outrossim, o trabalho em analisar o contexto da
gênese da DUDH e os demais e principais instrumentos internacionais de
garantia e proteção de direitos humanos, para que a eles se pudesse atrelar
o princípio da não culpabilidade, principalmente na esfera criminal, para
adotar como tese primordial do ensaio a necessidade de se exigir o trânsito
em julgado da sentença condenatória antes de se iniciar o cumprimento da
reprimenda penal, haja vista que esse é o melhor entendimento que pode ser
extraído da DUDH, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
e da Convenção Americana de Direitos Humanos, quando todos exigem a
tramitação dos meandros legais antes de se formar a convicção jurídica de
culpa contra o cidadão.
Finalmente, tratando o Ministério Público de órgão independente, de
cunho constitucional e no exercício de função essencial à Justiça, acredita-se
que o parquet, que tem como dever legal e constitucional a proteção de in-
teresses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127, caput, da
Constituição Federal, pode e deve atuar para fazer prevalecer o primado da
26 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

presunção de inocência, posto que se trata de garantia derivada, ao menos


indiretamente, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de vários
outros instrumentos internacionais de afirmação de direitos do cidadão, que
merecem o respaldo devido e o respeito esperado na ordem jurídica atual
do País.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996.

ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. A oscilação decisória no STF acerca da


garantia da presunção de inocência: entre a autovinculação e a revogação de
precedentes. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 55, n. 217, p. 135-156,
jan./mar. 2018. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/55/217/
ril_v55_n217_p135>. Acesso em: 21 dez. 2018.

BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo


Horizonte: Del Rey, 2003.

BRASIL, Deilton Ribeiro. A garantia do princípio constitucional da presunção


de inocência (ou de não culpabilidade): um diálogo com os direitos e garantias
fundamentais. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v. 15, n. 6, p. 376/398,
set./dez., 2016. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/
view/3038/2785>. Acesso em: 27 dez. 2018.

PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e


sua importância na gênese, desenvolvimento e consolidação do direito internacional
Especial - maio de 2019 | 27

dos diretos humanos. In: SGARBOSSA, Luís Fernando; IENSUE, Geziela. Direitos
Humanos & Fundamentais: Reflexões aos 30 Anos da Constituição e 70 da Decla-
ração Universal. Campo Grande: Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica, 2018.

SABOIA, Gilberto Vergne. Significado Histórico e Relevância Contemporânea da


Declaração Universal dos Direitos Humanos para o Brasil. In: GIOVANNETTI,
Andrea (org). 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: conquis-
tas do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. As sete décadas de projeção da declara-


ção universal dos direitos humanos (1948-2018) e a necessária preservação do seu
legado. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 97-140,
jul./dez. 2018.
Especial - maio de 2019 | 29

O MINISTÉRIO PÚBLICO
BRASILEIRO NA EFETIVAÇÃO
DE DIREITOS DA POPULAÇÃO
LGBTI: BREVE ANÁLISE DE CASOS
CONCRETOS NO STJ E STF

GUSTAVO HENRIQUE
HOLANDA DIAS KERSHAW

Promotor de Justiça do
Ministério Público de
Pernambuco
30 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O presente artigo faz uma análise de decisões dos Tribunais Superiores bra-
sileiros, ou seja, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), na efetivação de direitos da população LGBTI, na perspectiva
dos posicionamentos do Ministério Público, seja como autor das ações ou
como fiscal da ordem jurídica. Constata-se que ora o Ministério Público
defende a garantia de direitos de igualdade ora vai de encontro a esses an-
seios igualitários. Foram abordadas as decisões referentes a direitos previ-
denciários, união homoafetiva como entidade familiar, adoção por casais
homoafetivos e, brevemente, análise do caso sob apreciação do STF quanto
à criminalização da homofobia.
Especial - maio de 2019 | 31

1 Introdução
No Brasil, decisões judiciais têm promovido o reconhecimento de direitos
da população LGBTI, enquanto a legislação tem falhado no reconhecimento
das demandas por igualdade. Assim, a via judicial tem se tornado uma vál-
vula de escape na proteção dos direitos de diversos grupos vulneráveis na
sociedade, dentre os quais a comunidade LGBTI – gays, lésbicas, travestis,
transexuais, etc.
Com efeito, é evidente a dificuldade de acesso de demandas desta popu-
lação por meio dos Poderes Executivo e Legislativo, levando diversas pes-
soas no País a procurarem os mecanismos judiciais para a concretização de
suas necessidades.
Muitas dessas dificuldades se relacionam com a questão majoritária.
Após a Constituição da República, de 1988, sobretudo nos últimos anos,
percebe-se significativo avanço da jurisdição constitucional, assumindo o
Poder Judiciário papel político de destaque em defesa das minorias. Nas pa-
lavras de Luís Roberto Barroso, “consistente em dar uma resposta às deman-
das sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas tradicionais”.01
Enquanto se redige este pequeno artigo, sem pretensões de cientificidade,
o Supremo Tribunal Federal aprecia a Ação Direta de Inconstitucionalidade
por Omissão (ADO) nº 26, a respeito da omissão legislativa do Congresso
Nacional em criminalizar condutas discriminatório-homofóbicas no país.

01 BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a


construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 25.
32 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

2 Análise de casos concretos


Um dos princípios que rege a jurisdição, seja ela constitucional ou ordinária,
é o da demanda, ou seja, a movimentação inicial da jurisdição é condiciona-
da à provocação do interessado. Como leciona Daniel Assumpção, “significa
dizer que o juiz – representante jurisdicional – não poderá iniciar um pro-
cesso de ofício, sendo tal tarefa exclusiva do interessado”02.
O Ministério Público brasileiro, nesse contexto, representa (ou deveria
representar) papel importante na luta pela concretização, garantia e respeito
de direitos da população LGBTI.
Analisando as decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal sob a perspectiva do papel institucional do Ministério Pú-
blico nas ações judiciais, constata-se que ora a instituição defende os direitos
da população LGBTI, ora parte dela está indo de encontro aos anseios de
igualdade de direitos. Para ser justo, os posicionamentos do Ministério Pú-
blico Federal, em especial, perante as Cortes Superiores, representam forte
propulsor de avanços.

2.1 Benefícios previdenciários


Inicialmente, o primeiro avanço na garantia de direitos LGBTI foi no Direi-
to Previdenciário, reconhecendo-se benefícios previdenciários aos compa-
nheiros nas uniões homoafetivas, até então carentes do necessário reconhe-
cimento estatal.

02 NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Editora
Juspodivm, 2018. p. 81.
Especial - maio de 2019 | 33

Em meados de 2005, o Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Recur-


so Especial (REsp) nº 395.904, decidiu pela possibilidade da concessão do
benefício previdenciário de pensão por morte ao companheiro do de cujus.
Inicialmente, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) havia negado o
requerimento administrativo, razão pela qual apelou, assim como também
apelou o Ministério Público Federal, ao entendimento de que a norma do
§3º do art. 226 da Constituição da República não exclui a união estável entre
pessoas do mesmo sexo, devendo ser observado, ao propósito, o princípio
constitucional da igualdade.
Atuando como fiscal da ordem jurídica, o Ministério Público Federal,
em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República, Carlos Eduardo
de Oliveira Vasconcelos, manifestou-se nos seguintes termos:

PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E PREVIDEN-


CIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRO HO-
MOSSEXUAL. Recurso do INSS, objetivando afastar o direi-
to de companheiro a receber pensão por morte, em razão de
união homossexual.

Não se verifica interesse recursal do INSS, ao sustentar a ile-


gitimidade da atuação do MPF, se o autor também apelou,
devolvendo ao Tribunal a quo toda a discussão do tema. O
fundamento utilizado pela autarquia recorrente, de violação
ao art. 535 do CPC, com o intuito de ver os embargos e de-
claração novamente apreciados, por si só, não seria apto a
modificar o acórdão recorrido.

Deve ser reconhecido o direito à pensão por morte do com-


panheiro homossexual, em atenção aos princípios constitu-
cionais do respeito à dignidade da pessoa humana, da iso-
nomia e da proibição da discriminação por motivos sexuais.
34 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Reconhecimento, pelo INSS, por meio da Instrução Nor-


mativa nº 25/2000, da possibilidade de concessão de benefí-
cios previdenciários a companheiros homossexuais. Norma
editada por força de liminar em ação civil pública, proposta
pelo MPF gaúcho, com eficácia erga omnes.

Parecer pelo não conhecimento do apelo especial, diante


da ausência de interesse recursal. Caso conhecida a irre-
signação, opina-se pelo seu total desprovimento, de sorte
a se manter na íntegra o acórdão recorrido.

2.2 União homoafetiva como entidade


familiar
Uma das mais importantes decisões, senão a mais relevante, do Supremo
Tribunal Federal em relação a direitos da população LGBT foi o julgamen-
to da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
13203, que reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar.
A ação foi ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. O
pronunciamento04 da Procuradoria-Geral da República, firmado pela então
Procuradora-Geral, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, ressaltou a
discriminação legislativa em desfavor das uniões homoafetivas e de seu va-
lor como família, de cujo conteúdo se destaca:

03 ADI 4.277 e ADPF 132, rel. min. Ayres Britto, j. 5-5-2011, Pub. DJe de 14/10/2011.
04 Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/copy_of_pdfs/ADPF%20132%20parecer%20uniao%20
homossexuais.pdf/view>.
Especial - maio de 2019 | 35

a igualdade impede que se negue aos integrantes de um gru-


po a possibilidade de desfrutarem de algum direito, apenas
em razão de preconceito em relação ao seu modo de vida
Mas é exatamente isso que ocorre com a legislação infra-
constitucional brasileira, que não reconhece as uniões entre
pessoas do mesmo sexo, tratando de forma desigualitária
os homossexuais e os heterossexuais […] Na verdade, sob a
aparente neutralidade da legislação infraconstitucional bra-
sileira, que apenas protegeu juridicamente as relações está-
veis heterossexuais, esconde-se o mais insidioso preconceito
contra os homossexuais. […] o reconhecimento jurídico da
união entre pessoas do mesmo sexo não enfraquece a famí-
lia, mas antes a fortalece, ao proporcionar às relações estáveis
afetivas mantidas por homossexuais – que são autênticas fa-
mílias, do ponto de vista ontológico – a tutela legal de que
são merecedoras.

O extenso acórdão da referida ADPF constitui verdadeira aula de demo-


cracia e direitos humanos. Dele, destaco os seguintes excertos:

Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta


emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: di-
reito à autoestima no mais elevado ponto da consciência do in-
divíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proi-
bição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade
sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia
da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade
nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmen-
te tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
36 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos


que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no
igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada
família. Família como figura central ou continente, de que
tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação
não-reducionista do conceito de família como instituição
que também se forma por vias distintas do casamento civil.
Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos cos-
tumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria
sócio-político-cultural.

Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconcei-


tuoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não
resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da
técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para
excluir do dispositivo em causa qualquer significado que im-
peça o reconhecimento da união contínua, pública e dura-
doura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhe-
cimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com
as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

2.3 Adoção
Representando outro grande passo contra o preconceito e a discriminação,
desta feita realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi o julgamento do
REsp nº 1.281.09305, assentando a possibilidade de que casais homoafetivos
possam adotar. Neste recurso especial, contudo, a ideia encampada pelo Mi-
nistério Público de São Paulo foi a de ser “juridicamente impossível a adoção

05 REsp 1.281.093, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18-12-2012, Pub. DJe de 04/02/2013.
Especial - maio de 2019 | 37

de criança ou adolescente por duas pessoas do mesmo sexo”, afirmando-se,


ainda, que “o instituto da adoção guarda perfeita simetria com a filiação na-
tural, pressupondo que o adotando, tanto quanto o filho biológico, seja fruto
da união de um homem e uma mulher”06.
O parecer do Ministério Público Federal, de lavra do Subprocurador-
-Geral da República, Henrique Fagundes Filho, foi pelo não conhecimento
do recurso especial interposto pelo parquet estadual.
Pela sua relevância, destaca-se o seguinte excerto do Acórdão:

A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas às


uniões estáveis heteroafetivas, afirmada pelo STF (ADI
4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto), trouxe como corolário a
extensão automática àquelas das prerrogativas já outorgadas
aos companheiros dentro de uma união estável tradicional,
o que torna o pedido de adoção por casal homoafetivo legal-
mente viável. Se determinada situação é possível ao extrato
heterossexual da população brasileira, também o é à fração
homossexual, assexual ou transexual, e todos os demais gru-
pos representativos de minorias de qualquer natureza que
são abraçados, em igualdade de condições, pelos mesmos
direitos e se submetem, de igual forma, às restrições ou exi-
gências da mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio
da igualdade, resguardar-se de quaisquer conteúdos discri-
minatórios.

Ainda nesta temática da adoção por casais homoafetivos, o Superior Tri-


bunal de Justiça, seguindo essa linha protetiva, rejeitou tese do Ministério

06 Trechos expressamente citados no inteiro teor do Acórdão.


38 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Público do Paraná de que “o interessado homoafetivo somente pode se ins-


crever para adoção de menor que tenha no mínimo 12 (doze) anos de idade,
para que possa se manifestar a respeito da pretensa adoção”.
Neste caso, o parecer do Ministério Público Federal foi pelo não provi-
mento do recurso, assim resumido:

Direito Civil. Família. Adoção de criança por homossexual.


Alegação de que esse tipo de adoção fique condicionada à
manifestação de vontade do adotando. Ausência de ilegali-
dade. Parecer pelo desprovimento do recurso.

A referida controvérsia também foi levada ao Supremo Tribunal Federal,


pela via do Recurso Extraordinário07, tendo a relatora, Min. Carmen Lúcia,
na mesma linha garantista do STJ, negado o seguimento ao recurso.

2.4 O conteúdo discriminatório e pejorativo


do art. 235 do CPM
A Procuradoria-Geral da República ajuizou a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) nº 291, de relatoria do Min. Roberto Bar-
roso, em face do art. 235 do Código Penal Militar por tipificar a conduta de
nomen iuris “pederastia ou outro ato de libidinagem”.
O Código Penal Militar fora criado no contexto totalizante e discrimi-
natório da ditadura militar. Dentre os diversos fundamentos invocados
pelo Ministério Público Federal, pode-se destacar que o preceito do Código
Penal Militar inseria-se num contexto internacional de leis antissodomia,

07 RE 846.102, rel. Min. Carmen Lúcia, decisão monocrática, DJe de 15/03/2015.


Especial - maio de 2019 | 39

utilizando-se de uma nomenclatura pejorativa (“pederastia”) e de uma ex-


pressão discriminatória (“homossexual ou não”), a partir das quais seria
possível identificar claramente quem a norma pretende atingir, ou seja, os
homossexuais militares.
A ADPF foi julgada parcialmente procedente. Destaco do acórdão o se-
guinte trecho:

não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 as ex-


pressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, con-
tidas, respectivamente, no nomen iuris e no caput do art. 235
do Código Penal Militar, mantido o restante do dispositivo.
Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejo-
rativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito
à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial
do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que
atinge grupos tradicionalmente marginalizados.

2.5 Direito ao nome e à identidade de gênero


Questões importantes sobre o direito ao nome e à identidade de gênero fo-
ram enfrentadas tanto pelo Superior Tribunal de Justiça quanto pelo Supre-
mo Tribunal Federal. Também aqui se podem observar teses ministeriais
contrárias à proteção aos transexuais.
No ano de 2009, em decisão ainda tímida, mas progressista, o Superior
Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp nº 737.99308, decidiu pela possibilidade
de que transexual submetido a cirurgia de transgenitalização pudesse alte-
rar seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório. O relator

08 REsp 737.993, rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 18/12/2009.


40 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

da ação, Min. João Otávio de Noronha, assentou que não entender por esta
possibilidade seria “postergar o exercício do direito à identidade pessoal e
subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua
nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade”.
A controvérsia decidida posteriormente pelo Superior Tribunal de Jus-
tiça se deu da seguinte forma: O juiz singular autorizou as modificações
pleiteadas, asseverando que “não é crível que a questão envolvendo o tran-
sexualismo seja solucionada apenas na área medicinal e que o Direito cerre
os olhos ao tema, numa atitude cômoda e ortodoxa, totalmente alheios à
realidade das coisas”. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, reformando a
sentença, deu provimento à apelação do Ministério Público estadual (MG),
entendendo que inexistiria previsão legal para a obtenção da alteração ono-
mástica requerida; asseverou também que “o sexo integra os direitos da per-
sonalidade e não existe previsão de sua alteração”.
Importante destacar a aprovação, pelo Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP), da Nota Técnica nº 809 de 15/03/2016, sobre a atuação do
Ministério Público na proteção do direito fundamental à não discriminação
e não submissão a tratamentos desumanos e degradantes de pessoas tra-
vestis e transexuais, especialmente quanto ao direito ao uso do nome social
no âmbito da Administração Direta e Indireta da União, dos Estados e dos
Municípios.
Em conclusão, afirma a referida Nota Técnica caber ao Ministério Públi-
co atuar para assegurar o direito fundamental de reconhecimento e à ado-
ção de nome social (ou apelido público notório) em benefício da população
LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais),
mediante solicitação do interessado.

09 Publicado no Diário Eletrônico do CNMP, Caderno Processual, págs.1/9, edição de 14/04/2016.


Especial - maio de 2019 | 41

Noutro momento, já no ano de 2017, o Tribunal da Cidadania (STJ),


volta à apreciação da temática, enfrentando àquela altura a necessidade ou
não de cirurgia de transgenitalização para que se processem alterações no
registro civil. No julgamento do REsp nº 1.626.73910, de relatoria do Min.
Luis Felipe Salomão, decidiu-se que o direito dos transexuais à retificação do
prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência
de realização da cirurgia de transgenitalização.
Neste caso, ressalte-se o brilhante posicionamento do Ministério Público
do Rio Grande do Sul, que figurava como recorrente no REsp. É que o julga-
mento nas instâncias ordinárias havia decidido pela alteração do prenome
mas manutenção do sexo biológico. Assim, o parquet gaúcho levou o caso
ao Superior Tribunal de Justiça, sustentando que a requerente continuaria a
padecer dos constrangimentos porquanto designada em seus documentos
como do sexo masculino.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Incons-
titucionalidade (ADI) nº 4275, ajuizada pela Procuradoria-Geral da Repú-
blica11, assim decidiu:

O Tribunal, por maioria, vencidos, em parte, os Ministros


Marco Aurélio e, em menor extensão, os Ministros Alexan-
dre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes,
julgou procedente a ação para dar interpretação conforme
a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art.
58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros
que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de
transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormo-

10 REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 09/5/2017.


11 Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/copy_of_pdfs/ADI%204275.pdf/view>.
42 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

nais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e


sexo diretamente no registro civil. Impedido o Ministro Dias
Toffoli. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin.

É importante destacar que esta ADI, também de autoria da Procuradora-


-Geral Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, foi ajuizada ainda no ano
de 2009, antes mesmo das decisões do STJ acima mencionadas.

2.6 Criminalização da homofobia,


transfobia, etc.
Um dos compromissos fundamentais do Estado, em qualquer democracia,
é proteger e defender as minorias. A própria democracia trabalha com base
no princípio de que o poder supremo pertence ao povo e que o poder é exer-
cido em nome dos “povos” por autoridades eleitas.
O princípio mais comumente entendido da democracia é que quando
uma questão, legislação ou eleição é realizada, o lado com o maior número
de votos ganha: “regra da maioria”.
Dito isto, para que uma democracia seja bem-sucedida, é importante
compreender bem essa “regra”. Para que princípio majoritário não ultrapas-
se a linha tênue da tirania e da ditadura, é imperativo que as minorias sejam
protegidas. Esse papel é do Estado.
Cada setor da sociedade deve ter direitos iguais para que a democracia
seja eficaz, um grupo minoritário deve ter oportunidades e direitos iguais
para ter uma oportunidade igual.
Para garantir que todos os setores da sociedade gozem de direitos e
oportunidades iguais, a linguagem desempenha um papel fundamental; as
palavras que dizemos e, talvez mais ainda, as palavras que não dizemos, po-
dem ter um enorme impacto sobre como a sociedade evolui.
Especial - maio de 2019 | 43

É por essa razão que certas leis existem e devem existir. Voltemos 30 anos
e foi legalmente proibido usar linguagem racista ao falar sobre certos grupos
étnicos minoritários. A Lei Federal nº 7.716/1989 foi aprovada para crimi-
nalizar a linguagem racista e a sociedade avançou para melhor.
Leis criminalizando uma ação impedem que aqueles que são racistas/
sexistas/homofóbicos sejam livres para agir e falar com preconceito (hate
speech) e quanto menos preconceito vemos todos os dias, mais nossos pró-
prios comportamentos mudam de acordo. É como a sociedade evolui. Não
há diferença entre racismo e homofobia. Assim como um indivíduo não es-
colhe a cor de sua pele, não escolhe sua sexualidade.
É com espanto que se observa o Congresso Nacional brasileiro omitir-se
em sua responsabilidade, passando a responsabilidade de criminalizar a lin-
guagem homofóbica à Suprema Corte.
A Procuradora-Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, ofe-
receu denúncia em face de Deputado Federal como incurso nas penas do
crime previsto no art. 20, caput, da lei 7.716/1989 por discurso preconcei-
tuoso, inclusive contra homossexuais. A denúncia deu origem ao Inquérito
nº 4.694, de relatoria do Min. Marco Aurélio, sendo rejeitada em julgamento
recente (11/09/2018) nos seguintes termos:

A Turma, por maioria, rejeitou a denúncia, nos termos do


voto do Relator, vencidos o Ministro Luís Roberto Barroso,
que a recebia, parcialmente, em relação às ofensas aos qui-
lombolas e aos homossexuais; e a Ministra Rosa Weber que,
retificando seu voto, recebia a denúncia somente em relação
aos quilombolas.

Encontra-se pendente de julgamento a ADO nº 26, ajuizada pelo Partido


Popular Socialista (PPS) para que se declare a mora do Congresso Nacional
em criminalizar a homofobia e, até que cumprido este dever, seja utilizada a
Lei Federal nº 7.716/1989 para repressão e punição das condutas.
44 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

A manifestação do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot Mon-


teiro de Barros, de cuja ementa destaco:

Deve conferir-se interpretação conforme a Constituição ao


conceito de raça previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de
1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados
nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituo-
sos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, tra-
vestis, transexuais e transgêneros). Não se trata de analogia
in malam partem.

O mandado de criminalização contido no art. 5º, XLII, da


Constituição da República, abrange a criminalização de con-
dutas homofóbicas e transfóbicas.

A ausência de tutela judicial concernente à criminalização da


homofobia e da transfobia mantém o estado atual de prote-
ção insuficiente ao bem jurídico tutelado e de desrespeito ao
sistema constitucional.

3 Conclusões
A defesa da minoria LGBTI, sobretudo na atualidade brasileira de recrudes-
cimento de discursos segregadores, precisa ser desempenhada pelo Ministé-
rio Público enquanto instituição constitucionalmente incumbida da promo-
ção dos direitos fundamentais.
A análise de decisões dos Tribunais Superiores leva-nos a concluir que
nem sempre este “lado” é assumido pelo Ministério Público, uma vez que
muitas das teses contra a minoria LGBTI tem sido agitadas pela instituição
como, por exemplo, no caso judicial da adoção por casais homoafetivos, le-
Especial - maio de 2019 | 45

vado ao Superior Tribunal de Justiça pelo Ministério Público, que se mani-


festava contrariamente à possibilidade.
De igual forma, consta-se que os posicionamentos do Ministério Público
perante as referidas cortes de sobreposição, representado pela Procurado-
ria-Geral da República, tem sido progressistas e em conformidade com os
anseios igualitários.
Dentre as minorias discriminadas existentes (negros, mulheres, indíge-
nas, pessoas com deficiência), sem dúvida, os LGBTI carecem de proteção,
uma vez que os discursos discriminatórios não são combatidos pela legisla-
ção, o que os impulsiona, ainda mais, à margem de uma sociedade arcaica.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições
para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo
Horizonte: Fórum, 2012.

BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cida-


dão. O Ministério Público e a Igualdade de Direitos para LGBTI: Conceitos e
Legislação/ Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Ministério Público do
Estado do Ceará. 2. ed., rev. e atual. Brasília: MPF, 2017.

NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Manual de Direito Processual Civil. Salva-


dor: Editora Juspodivm, 2018.

SARMENTO. Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de traba-


lho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
Especial - maio de 2019 | 47

MINISTÉRIO PÚBLICO ATUANDO


EM CONJUNTO COM A RAPS NA
SAÍDA DO LOUCO INFRATOR DO
HCTP

IRENE CARDOSO SOUSA

Titular da 48ª Promotoria de


Justiça Criminal da Capital,
membro do GT Racismo do
MPPE e do Grupo de Atuação
em Execução Penal (GAEP),
também do MPPE. Especialista
em Direito Constitucional e
especialista em Saúde Pública.
48 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O objetivo deste artigo científico é verificar os mecanismos de atuação do


Ministério Público na perspectiva do HCTP, seja no momento da interna-
ção, seja no da saída, considerando os ideais universais de direito à saúde
mental. Essa atuação será analisada a partir da articulação com a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) para adequar o tratamento do louco infrator
aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cidadania garantidos
pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal, explicitando também a orien-
tação institucional interna entre as áreas criminais e de cidadania diante da
situação de instauração de incidente de insanidade mental à luz da Lei Fe-
deral n°10.216/01 para garantia de proteção no território do louco infrator
encarcerado.
Especial - maio de 2019 | 49

“A hora do encontro é também


despedida.”
Milton Nascimento e Fernando Brant

Geralmente, o interno de uma instituição total (GOFFMAN, 2015, p. 11)01


não tem conhecimento das decisões quanto ao seu destino, mormente quan-
do se trata de hospitais psiquiátricos. Nos casos dos manicômios judiciários,
essa confusão não pertence apenas ao internado. Nesse espaço enleam-se um
aparato de encarceramento e um serviço de saúde entontecidos da dimensão
de seus papéis no cumprimento da medida de segurança, ora negando, ora
transferindo poderes para não os assumir. Para a Justiça, o distanciamento
do exercício da punição remonta à época em que o abominável teatro da
execução-espetáculo deixava de ser exposto em praça pública e passava a
ser confiado a uma burocracia: é pouco glorioso punir, como afirma Fou-
cault (FOUCAULT, 1987, p. 13). Por outro lado, é significativo o aparato de
médicos, psiquiatras ou psicólogos que “por sua simples presença ao lado
do condenado, (...) cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe ga-
rantem que o corpo e a dor não são objetos últimos de suas ações punitivas”
(FOUCAULT, 1987, p. 14).
Adotamos, para denominar manicômio judiciário, o termo Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico, usualmente chamado de HCTP, como
no Estado de Pernambuco, inobstante a denominação ineficaz em legislação
local02 de 2016 como Centro de Saúde Penitenciário.

01 Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande
número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável
período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.
02 Lei nº 15.755, de 04 de abril de 2016, que institui o Código Penitenciário do Estado de Pernambuco.
50 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Os profissionais da rede de saúde que estão nesse espaço do HCTP têm


uma sensação de desorientação em relação à natureza dessa instituição, ao
papel do judiciário, aos limites dos agentes penitenciários, à interferência
da Secretaria de Ressocialização no que se refere às normas sanitárias como
também em relação à Secretaria de Saúde no que se refere aos laudos que
servirão a um processo penal. Para esse sistema judiciário e órgãos peni-
tenciários, é estranho olhar o interno do HCTP – que tem um número de
processo de execução e que muitas vezes se identifica com o número de seu
prontuário de preso – como um paciente psiquiátrico, absolvido de uma
pena, dentro de uma perspectiva de saúde e de políticas públicas em conso-
nância com os princípios e diretrizes de uma reforma psiquiátrica que lhe
soam bem distante do seu mister. Esse estranhamento recíproco – jurídico e
saúde – resulta numa falta de consciência do que seja de fato o cumprimen-
to de uma medida de segurança em um Hospital de Custódia, o que torna
essencial pensar como seria o fim desse modelo HCTP. O norte há de ser
sempre o fim do modelo manicomial mas, o existindo, como em Pernam-
buco, urge a necessidade atual de focar na saída do que hoje está privado de
liberdade nessa instituição. Promotores de Justiça, juízes, defensores públi-
cos, advogados, secretário de Justiça, secretário de ressocialização, agentes
penitenciários, médicos clínicos, médicos psiquiatras, dentistas, enfermei-
ros, técnicos de enfermagem, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, as-
sistentes sociais, terapeutas ocupacionais, professores, pedagogos, direto-
res, trabalhadores de coleta de lixo do município, fornecedores de insumos
alimentícios da CEASA e, finalmente, carteiro, todos circulam no HCTP,
que tem aspectos clínicos, sociais, pedagógicos, administrativos, de serviços
públicos, cartoriais, repressivos e jurídicos. Para esse encontro, é imprescin-
dível articulação. Homi Bhabha representa essa consciência das posições do
sujeito em busca de articulação como entre-lugares:
Especial - maio de 2019 | 51

Esses entre lugares fornecem o terreno para a elaboração de


estratégias de subjetividades - singular ou coletivo - que dão
início a novos signos de identidade e postos inovadores de
colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia
de sociedade. (BHABHA, 1998, p. 20)

O livro 1984, de George Orwell, foi escrito em 1948 e na máxima ironia


que o enredo trava começa com um trocadilho no título, que leva a uma
aleatória data (1948-1984), da absurda distopia futurista em que o mais im-
portante sempre será o passado: o que estava acontecendo em 1948. A hu-
manidade queria respostas às atrocidades pelas quais tinha sido responsável,
no dizer de Arendt, chamado de mal “absoluto”, porque já não podia ser
atribuído a motivos humanamente compreensíveis. Nesse afã de como evi-
tar a força destrutiva do próprio homem e a banalidade do mal era preciso
novas garantias, mesmo que os Estados não expressassem diretamente sua
adesão ao pacto. A preocupação pujante com novas práticas de genocídio
levou o homem a querer compreender, ser crítico, exigir garantias ao pró-
prio homem.

Há muito do não dito no dito da Declaração Universal dos


Direitos do Homem, um dizer sempre “a venir” e que é pre-
ciso um esforço de abertura ao totalmente outro para enten-
dermos e compreender o texto normativo em um contexto
eminentemente crítico. (VIEIRA, 2018, p. 385)

Entender a perspectiva da Declaração Universal dos Direitos da Huma-


nidade significa dar um norte para superar a expectativa das leis infracons-
titucionais que ainda possuem um caráter simbólico demasiado enfatizado
frente a políticas públicas guiadas por princípios em que a saúde é um direito
humano fundamental conforme declarado em 1948. A eficácia dessas nor-
52 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

mas é um desafio, mas a relutância em aceitar a sua sincronização é o maior


entrave a essas questões, principalmente quando se tem um peso de uma
Lei de Execução Penal ou Código de Processo Penal como fontes primeiras.
O eixo principal desse artigo são os entre-lugares de articulação nessas
atuações de um Ministério Público que defende ideais universais de direito à
saúde, no caso da saúde mental, que são forçosamente realizadas em conjun-
to com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para adequar o tratamento
do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cida-
dania garantidos pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal.
Para tanto, imprescindível a atuação articulada do Ministério Público –
através das áreas criminais e de cidadania – com a Rede de Atenção Psicos-
social diante da situação de instauração de incidente de insanidade mental
à luz da Lei Federal 10.216/01, que dá direito ao louco infrator de ter o mes-
mo tratamento e acesso a serviços da rede (preferencialmente municipal) de
saúde mental oferecido ao portador de sofrimento mental não encarcerado.
No caso de Pernambuco, sendo apenas um manicômio judiciário, localizado
simbolicamente numa ilha, Itamaracá, ao receber pessoas da distante divisa
com a Bahia, como Petrolina, ou da divisa com o Piauí, Araripina, distante
a setecentos quilômetros, representa o oposto do que é a espinha dorsal do
tratamento em saúde mental, que é o tratamento no território para a reinser-
ção social almejada. Uma ilha também pode ser um mundo.
A reforma psiquiátrica remonta aos anos 1950. Destacamos 1961, na Itá-
lia, quando o médico Franco Basaglia chega a Gorizia para dirigir o Hospital
Psiquiátrico, e em 1970 a Trieste, cujo hospital foi, em 1973, considerado
pela OMS como referência mundial em saúde mental. Pouco tempo depois,
em 1978, todos os manicômios na Itália são fechados em decorrência da
Lei 18003, ou Legge Basaglia. Menos os Hospitais Psiquiátricos Judiciários.

03 Lei 180/1978, da Itália.


Especial - maio de 2019 | 53

Em 2014, mais de 35 anos depois da última instituição manicomial ter sido


fechada na Itália e diante da resistência do judiciário, é promulgada a Lei
18104 com medidas urgentes para fechar os Hospitais Psiquiátricos Judiciá-
rios que ainda resistiam no país à reforma psiquiátrica que serviu de modelo
para muitos países e de campo de pesquisa para muitos estudiosos. Um dos
aspectos importantes dessa lei foi a atribuição ao juiz de execução penal de
adotar medidas que levassem em consideração a inserção do egresso do HPJ
no território e algo que ainda não acontece no Brasil: o princípio de que o
dinheiro segue o paciente. Explico, quando um leito de hospital psiquiátrico
no Brasil é fechado, há uma destinação dessa verba que acompanha o pa-
ciente para os serviços de substituição do internamento, como residência
terapêutica ou programas como o de Volta para Casa. No caso do interno
que sai de um manicômio judiciário brasileiro, mesmo que permaneça lon-
go período, não há inserção em programas dessa jaez, por que o HCTP não
é considerado hospital e um leito não é fechado. A diferença permanece do
lado de fora, pois o egresso do HCTP não tem o mesmo tratamento do que
sai de um manicômio, a reforma psiquiátrica no Brasil também não olhou
para o sistema prisional, tornado-o, mais uma vez, invisível mesmo às causas
mais nobres.
Nessa Lei italiana nº 181/2014 fica estabelecido que a duração máxima
da medida de segurança não pode ser maior do que a pena para o crime
(máximo padrão). Portanto, há um limite para extensões e uma suspensão
das chamadas “penas de prisão perpétua brancas”. Esse traço inicial nos aler-
ta para o quão é difícil falar em fim de espaços de custódia para tratamento
psiquiátrico, em qualquer lugar do mundo.
A reforma que iniciou processos de desinstitucionalização e desospitali-
zação inicia no Brasil na década de 1980 na área da saúde, chegando ao judi-

04 Lei 181/2014, da Itália.


54 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

ciário de forma contundente apenas recentemente, em 2016, quando o STF


adotou o entendimento de limite máximo do tempo de cumprimento de
medida de segurança no Brasil em 30 anos. Aspecto interessante dessa deci-
são é que a medida é tratada como pena, pois nesse caso, como em outros,
o condenado que cumpre uma pena tem mais direitos que o absolvido por
medida de segurança. Explico: ainda existia nos HCTPs casos de internos há
mais de 30 anos, tempo de prisão máxima no País qualquer que seja o tempo
de condenação – mesmo que ultrapasse 100 ou 200 anos de pena estabele-
cida em sentenças. Essa decisão do STF pôs em discussão o tão velado fim
da medida de segurança condicionado à cessação de periculosidade. Para
beneficiar uma pessoa em cumprimento de medida de segurança houve a
necessidade de tratar essa medida como pena para lhe dar limite. Enquanto
absolvição é mais dura que uma condenação. Urge desinstitucionalizar. Urge
transpor o abismo da periculosidade.
Para demonstrar essa atuação do Ministério Público, trazemos o recor-
te do momento do ingresso de um munícipio (sim, todo cidadão tem um
território) no HCTP. Essa atenção está em conformidade com a posição da
instituição – MPPE – de que o controle desse momento de ingresso ou ins-
titucionalização constrói dignamente a saída no território de origem sem a
perda dos vínculos em que se estruturam os círculos sociais dos envolvidos
na loucura e consequentemente reduzindo o tempo de institucionalização,
muito maior quando não existe esse acompanhamento. Essas atuações são
forçosamente realizadas em conjunto com a RAPS para adequar o tratamen-
to do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de
cidadania garantidos pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal. A impo-
sição constitucional, tanto do fim dos manicômios judiciários, como a ga-
rantia de tratamento ambulatorial não podem mais ser negadas, ficando esse
trabalho ora circunscrito ao tratamento, por nesse momento entendermos
de ordem emergencial esse tema.
Especial - maio de 2019 | 55

No belo trabalho de defesa de políticas públicas em prol da inclusão la-


boral de pacientes psiquiátricos após a privação da liberdade, Correa e Oli-
veira esclarecem:

Nesse sentido, a reforma psiquiátrica veio contribuir para o


resgate da cidadania dos pacientes psiquiátricos, sendo an-
corada em alguns princípios constitucionais, sobretudo a
construção da autonomia, a emancipação e a inclusão social
desses sujeitos. (...) Decorrente da reforma psiquiátrica e da
proposta de desinstitucionalização, obteve-se uma flexibili-
zação da lei com relação à medida de segurança, sendo pos-
sível pensar na substituição da internação pelo tratamento
ambulatorial.

No contexto da Reforma Psiquiátrica, o Ministério Público passa à con-


dição de atuante deste processo, saindo da inerte posição de apenas ser o ór-
gão procurado pelas famílias para promover uma internação em momento
de crise ou de atuar em denúncias, incidentes ou processos de execução. Em
todos esses casos pode orientar o acesso aos serviços de saúde e cidadania. O
Ministério Público torna-se, na atualidade, parceiro na busca de uma efetiva
rede de atenção à saúde mental, capaz de dar uma resposta às demandas do
usuário e da família, e, para tanto, necessita estar articulado com a Rede de
Atenção Psicossocial do território do usuário ou interno ou egresso ou sim-
plesmente do mais que estigmatizado louco infrator.
Por sua vez, um fluxo institucional efetivo entre RAPS e Ministério Pú-
blico pode garantir o incremento das ações territoriais e comunitárias de
saúde mental, seja na capacitação dessa rede no que se refere a noções jurí-
dicas de medida de segurança, incidente de insanidade mental, processo de
execução e papel do HCTP no contexto do sistema prisional. Alertando que,
na saída do interno do HCTP, essa rede há de articular o usuário para os
56 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos, Pro-


grama de Volta para Casa, ambulatórios, atenção básica e outros serviços de
saúde mental do município. Apesar de o interno estar momentaneamente
sob medida de segurança no HCTP, ele não deixa de ser paciente e vai voltar
ao município de origem quando for extinta a medida.
Analisa-se a atuação em conjunto do Ministério Público – áreas cri-
minais e de cidadania – com a Rede de Atenção Psicossocial para adequar
o tratamento do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à
saúde e de cidadania, cuidando, assim, da porta de entrada do HCTP até a
decretação e extinção da medida de segurança, ou seja, a saída da instituição
total e o retorno do munícipe ao serviço de saúde mental do território deter-
minado pela Vara de Execuções Penais. Ao final, verifica-se que a falta desse
serviço coloca em risco a permanência do louco infrator na instituição, lon-
ge do território, sem prazo determinado, mais do que uma prisão perpétua.
Temos como intuito verificar se é possível aproximar institucionalmente
esses órgãos de atuação a partir da definição do papel de cada um na política
pública de saúde mental para que os encaminhamentos a serem feitos sejam
voltados para uma ação integral de proteção ao usuário da saúde mental,
de forma a aperfeiçoar o atendimento de cada um, diminuindo os casos de
intervenções errôneas e encaminhamentos desnecessários ao HCTP a partir
do conhecimento do sistema judiciário e da rede territorial de saúde mental,
mormente nas audiências de apresentação de custódia recém-implantadas.
Para entender melhor esse engessamento, cumpre entender o que seja
medida de segurança e quais mecanismos jurídicos a mantém e por que ka-
fkaniamente parece não ter fim. Na Itália foi amplamente divulgado que no
dia 31 de março de 2015 todos os hospitais psiquiátricos judiciários foram
fechados05. A Lei 181/2014 previa o dia 31 de maio de 2015. Ocorre que a im-

05 Conforme matéria do jornal italiano La Reppublica, publicada em 17 de maio de 2016. Acesse:


<http://www.repubblica.it/solidarieta/diritti-umani/2016/05/07/news/manicomi_criminali_a_che_punto_
siamo_-139295925/>.
Especial - maio de 2019 | 57

prensa recentemente denunciou que ainda restam 4 Ospedali psichiatrici giu-


diziari, detti pure manicomi criminali (Opg), quais sejam Piemonte, Veneto,
Toscana e Abruzzo, para não falar na Lombardia, que transformou o mani-
cômio judiciário em Residência Terapêutica para 200 ex-internos, correndo
o risco de os submeterem a uma nova lógica manicomial sem grades. Uma
residência terapêutica com 200 pessoas não é um lar, é uma instituição total.
A configuração do HCTP não foge à tão denunciada situação do en-
carceramento em massa de presos provisórios. São 374 homens, sendo 164
em cumprimento de medidas de segurança e 209 que estão presos proviso-
riamente, sem sentença. É uma instituição mista, com 28 mulheres, sendo
10 provisórias. Em 2015, quando assumi a promotoria de execução penal,
da lista dos que não tinham medida de segurança constava, entre mais de
uma centena, JAS, que chegou ao HCTP no ano de 2009, e que aguardava
decisão judicial de uma cidade distante apenas 150 km de Itamaracá. Mas
contundente, era um interno desde 2001, LSA, também sem medida de se-
gurança, que obteve Habeas Corpus em 2015. Todos os outros 122 estavam
há mais de um ano sem medida de segurança, internos no HCTP sem poder
fazer evolução no laudo. Em 15 de abril de 2015, faleceu o paciente José Fer-
nandes Alexandre da Silva, um dos que estavam sem medida de segurança
desde 2012 no HCTP, oriundo da Comarca de Pombos. Segundo relatório
da defensora pública, Carolina Khouri, apresentado na audiência pública de
maio de 2016: Um dos casos emblemáticos foi o vivenciado pelo Sr. Petrônio
Juarez Lima de Araújo Filho, que cumpriu integralmente, dentro do HCTP,
a pena que lhe foi aplicada em abril de 2006. A declaração de extinção da
pena e consequente ordem de libertação somente veio a ser efetuada pelo
Juízo competente em novembro de 2012. Nem mesmo assim o sr. Petrônio
foi libertado e, em dezembro de 2015, veio a óbito dentro da unidade.
Em inspeção no dia 13 de abril de 2015 constatamos in loco a presença
de apenas três agentes penitenciários na unidade, dois na segurança e um no
58 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

administrativo, pois a SERES tinha deslocado dois agentes para fazer cus-
tódia hospitalar da unidade prisional de Barreto de Campelo. A ausência
constante de numerário suficiente implicava diretamente no tratamento dos
pacientes, pois ficou constatado que, na ausência de agente para acompa-
nhar os enfermeiros, havia medicamentos que eram aplicados com o pacien-
te dentro da grade, com as calças abaixadas e a injeção dada pelo lado de fora
das grades. Além do mais, com a falta de agentes havia todo um pavilhão
com 17 internos sem banho de sol há três meses. A direção da unidade, atra-
vés da recém-chegada dra. Reviane Bernardo, providenciou o banho de sol
duas vezes por semana no Pavilhão São Francisco, e a ordem que os agentes
pudessem acompanhar os técnicos de enfermagem na aplicação de medica-
ção. A diretora fez uma belíssima atuação.
O pavilhão São Francisco, local de triagem do HCTP, estava lotado por-
que nessa época havia laudos atrasados de até dois anos, sendo iniciado com
a SERES a discussão sobre contratação de laudistas para colocá-los em dia,
e de fato esse ser um local de triagem e trânsito. Foi realizada audiência com
os médicos laudistas. A cobrança para serem realizadas em 45 dias resultou
na contratação de cinco laudistas em julho de 2015, que zeraram laudos e
relaudos dos internos. Hoje já estão fazendo réus soltos, cumprindo os 45
dias determinados por lei, muito longe do caos anterior.
Outro problema gravíssimo, ainda constatado em inspeções, era a quan-
tidade de refeições servidas no HCTP. Apenas três. Sendo que a última, o
jantar, é em torno de 17 horas e a próxima, o café, só às 6 horas da manhã.
Para uma população que toma remédios controlados e fortes, esse problema
há de ser dimensionado até para entender a fome e a relação de surtos no-
turnos. Em razão da falta de agentes penitenciários não foi possível manter
a implementação de uma ceia como quarta refeição, que foi servida por um
tempo e hoje está suspensa.
Então o que o profissional da rede psicossocial há de saber sobre medida
de segurança?
Especial - maio de 2019 | 59

A primeira estranheza é quanto aos diversos termos dos processos:


doente mental, portador de transtorno mental, usuário, paciente, cliente,
interno, internado, custodiado, pessoa em cumprimento de medida de se-
gurança, pessoa com transtorno mental, pessoa com transtorno mental em
conflito com a lei, pessoa portadora de sofrimento mental que viola a lei ou
simplesmente, como tem sido adotado no âmbito do Ministério Público, o
termo louco infrator.
Segundo o artigo 26, caput do Código Penal “é isento de pena o agente
que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retarda-
do, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o
caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
A distinção reside, portanto, unicamente, nas consequências: os impu-
táveis estão sujeitos à pena, os inimputáveis, à medida de segurança. En-
tendendo o caráter ilícito do fato, a pessoa que pratica algo ilícito pode ser
condenada. As pessoas portadoras de algum tipo de sofrimento mental são
submetidas a laudos para saber a possibilidade ou não desse entendimento,
e, caso tenham algo impeditivo desse entendimento, não serão responsabi-
lizadas, ocorrendo o que se chama de absolvição imprópria porque a elas
são impostas medida de segurança ou tratamento ambulatorial, baseando-se
na escolha a periculosidade do agente. É o que preconiza o art. 97, §1º do
Código Penal:

Art.97, §1º.  A internação, ou tratamento ambulatorial, será


por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for
averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculo-
sidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. 

Em livros de psicologia jurídica, como o de Fiorelli e Mangini, a temática


já é abordada à luz de princípios constitucionais de defesa à saúde:
60 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

O tempo terapêutico não possui duração determinada, como


nos casos das penas de reclusão, porém, ressalte-se que a
atenção à saúde do portador de sofrimento mental, quer seja
daquele que viola as disposições legais, quer seja da pessoa
que não as viola, requer que a intervenção se dê no âmbito
da rede pública de saúde.

Assim, com o advento da lei nº 10.216/01, que trata da refor-


ma psiquiátrica e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental, estariam também as instituições penais destinadas a
realizar tal intervenção, os denominados manicômios judi-
ciários, obrigadas a desinternar seus pacientes, encaminhan-
do-os para os serviços públicos, constituídos na rede extra-
-hospitalar preferencialmente, como os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS).

Foi realizada, no dia 08 de agosto de 2017, a oficina Noções básicas de


medidas de segurança no processo de desinstitucionalização do HCTP,
transmitida por videoconferência a partir da sede da Procuradoria-Geral de
Justiça, na Capital, para os 12 polos da Rede de Videocolaboração do Núcleo
de Telessaúde da Secretaria Estadual de Saúde. A participação da RAPS foi
pontuada em todos os polos, principalmente na capital.
A oficina foi coordenada pela 21ª promotora de Justiça de Execuções
Penais abordando noções básicas sobre as medidas de segurança no proces-
so de desinstitucionalização do interno para promover um relacionamento
mais efetivo entre Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Sistema Judici-
ário, visando ao incremento das ações territoriais e comunitárias de saúde
mental. A defensora pública Ana Carolina Khouri trouxe na sua explana-
ção a Recomendação nº 35/2011, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
que dispõe sobre as diretrizes a serem adotadas em atenção aos pacientes
Especial - maio de 2019 | 61

judiciários e a execução da medida de segurança, já bem alinhada à Lei nº


10.216/2011. Também falou sobre a necessidade de o município assumir a
responsabilidade por esse cidadão, que “está momentaneamente no HCTP
mas vai voltar para o município, e muitas vezes é internado lá por ausência
de uma rede de saúde mental estruturada”. Ao final, foi aberto um espaço
de perguntas para que os participantes dos 12 polos da Videoconferência
compartilhassem as dúvidas ou ideias com a mesa, bem como soluções para
os desafios da volta de um ex-interno do HCTP para a Rede da Saúde Mental
do município de origem.
O que o promotor de Justiça há de saber sobre rede territorial de atendi-
mento psicossocial?
Os autores Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite, ao comen-
tarem o Estatuto da Pessoa com Deficiência ressaltam a mudança de pen-
sar a deficiência centrando apenas no indivíduo, desobrigando o Estado e a
sociedade de assumirem qualquer dever a esse respeito: “Como reflexo, as
respostas do Poder Público vinham na forma de medidas puramente assis-
tencialistas e caritativas, longe de reconhecer a pessoa com deficiência como
sujeito de direitos”.
O primeiro norte do promotor de Justiça deve ser no sentido de enten-
der que a ordem do cuidado do portador de transtorno mental não coloca
mais a família como a primeira responsável. Quem tem família estruturada
geralmente não recorre à malha judiciária para resolver seus problemas. O
problema é a falta de condições de apoio da família que move as questões
de intervenção necessárias do órgão ministerial. O Estatuto da Pessoa com
Deficiência assim define:

Art. 8o  É dever do Estado, da sociedade e da família asse-


gurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à pater-
62 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

nidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educa-


ção, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à
habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade,
à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à
comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dig-
nidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e co-
munitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal,
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que
garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

A ordem é Estado, sociedade e, só depois, a família. Farol de Alexandria


iluminando os caminhos e decisões a serem tomadas. Quem substitui nosso
velho conceito de individualidade? A rede territorial de saúde mental ou
RAPS.
Nessa rede, o espaço dos hospitais psiquiátricos e, por conseguinte, dos
HCTPs é residual e deve ser buscado em último caso, conforme art. 4º da
Lei nº 10.216/2001.
Segundo o professor Breno Fontes e a professora Eliane Fonte, ambos da
UFPE, a rede é necessária porque o acesso a recursos de apoio social influi
diretamente na capacidade de enfrentamento do sofrimento psíquico:

A compreensão de como operam as sociabilidades das pes-


soas com transtorno mental deve ser processada a partir de
uma primeira constatação: que o sofrimento psíquico provo-
ca efeitos devastadores sobre as sociabilidades, seja por causa
de questões ligadas diretamente à doença(estados de desâni-
mo ou melancolia, surtos psicóticos, perdas cognitivas), seja
por conta do estigma inscrito na condição de louco, aquele
Especial - maio de 2019 | 63

que é perigoso, inconveniente, que não consegue estabelecer


padrões adequados de convivência porque o seu estado o
impede de estabelecer padrões de conduta aceitáveis e nor-
mais. Destarte, talvez o efeito mais perverso do sofrimento
psíquico seja o que Goffman (1996) chamou de “morte so-
cial”: o isolamento, a exclusão e o estigma agindo de modelo
perverso, retroalimentado constantemente um sistema de-
vastador que implica em um cotidiano pobre e cada vez mais
desprovido de possibilidades de mudança.

A geografia social faz tecer laços dos mais diversos. No território. Pas-
sando por esses entre-lugares, e diante de uma emergência – todo emergir
é um estado de vir à tona –, em 2015 o MPPE formulou uma estratégia
simples de realinhar internamente a atuação do promotor de Justiça dentro
do desafio normativo de superar o Código Penal e tratar o louco infrator
à luz dos princípios de saúde mental, principalmente os de tratamento no
território e de reconhecimento da loucura como questão de saúde pública e
de assistência social. Uma recomendação.
À época, à frente da 21ª PJ Criminal, estava o então coordenador do
CAOP Cidadania, Marco Aurélio Farias da Silva, que traçou as linhas de
uma recomendação a ser expedida pela instituição. A intenção talvez fosse a
de refletir a situação que nos idos de 2013 ainda se repete, para daí produzir
formas de intervenção na atuação do promotor de Justiça norteado, sem-
pre, pelos princípios constitucionais. Foi expedida a Recomendação PGJ nº
03/2013 com o propósito organizacional de ir além da lei, para depois a ela
retornar dentro dos princípios temporais da reforma psiquiátrica, e, fora do
lugar do crime, encontrar com a RAPS. Ainda, segundo Bhabha, “o espaço
intermédio do além torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora”.
Os diplomas legais, ainda atuais, embora não plenamente atingidos, são
64 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

de ordem jurídica e de saúde, desde a Constituição Federal, na garantia da


saúde, em seus artigos 6º e 196, como a Lei de Execução Penal até a Lei Fede-
ral nº 10.216/2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental,
priorizando o modelo de tratamento comunitário, como a Lei Estadual nº
11.064/94, que estabelece a substituição progressiva dos hospitais psiquiá-
tricos de Pernambuco pela rede de atenção integral à saúde mental. Não
discutiremos a natureza do HCTP, se hospital ou prisão, posto que reconhe-
cidamente a segunda opção se sobrepõe na prática, e é o que vem à tona. En-
tre vários considerandos, o último norteia o recomendado aos membros do
Ministério Público de Pernambuco, no exercício das atribuições na Promo-
toria de Justiça Criminal quando da manifestação de pedido de instauração
de incidente de insanidade mental ou de transferência de pessoa presa para
o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico:

CONSIDERANDO que atualmente várias pessoas não con-


seguem sair do Hospital de Custódia e Tratamento Psiqui-
átrico por não terem vínculos familiares e necessitarem do
apoio da rede de saúde mental, porém os seus municípios de
origem não contam, ainda, com a política de saúde mental
em pleno funcionamento, especialmente pela ausência de
centro de apoio psicossocial e residências terapêuticas;

A esses promotores criminais fica a incumbência de comunicar às Pro-


motorias de Justiça de Cidadania todas as vezes que se manifestarem sobre
instauração de incidente de insanidade mental ou transferência de pessoa
presa para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou todas as
vezes que tomarem ciência em guia de internação, o nome e a qualificação
completa da pessoa acusada em processo criminal ou internada, anexando
cópia dos documentos que fundamentaram o pedido e cópia da mencionada
Especial - maio de 2019 | 65

guia de internação. Também ao promotor criminal é incumbido o mister


de, na atuação do processo de conhecimento e de execução, implementar,
dentro de suas atribuições legais, as políticas antimanicomiais, conforme
sistemática da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001.
Aos membros do Ministério Público de Pernambuco, no exercício das
atribuições na Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania é recomendado
que: oficiem ao Serviço Único de Saúde (SUS), especialmente o distrito sani-
tário do domicílio da pessoa acusada, para que remeta ao Hospital de Cus-
tódia e Tratamento Psiquiátrico todas as informações pertinentes à pessoa
acusada, para fins de continuação de tratamento da saúde mental, bem como
visando fornecer melhores elementos para a elaboração da perícia de exis-
tência, ou não, de periculosidade; oficiem ao Serviço Único de Assistência
Social (SUAS), especialmente o Centro de Referência de Assistência Social
(CRAS), para que elabore pareceres psicológico e social da pessoa acusada,
remetendo o mencionado parecer ao serviço social do Hospital de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico, promovendo o levantamento dos principais laços
familiares da pessoa acusada, visando a subsistência desses, como forma de
garantir a reintegração social, de tudo dando ciência à Promotoria de Jus-
tiça oficiante; diligenciem, no âmbito do município onde exerçam as suas
atribuições, para identificar o pleno funcionamento dos serviços de saúde
mental, conforme a sistemática da Lei nº  10.216, de 06 de abril de 2001,
além das Leis Estaduais nº 11.064, de 16 de maio de 1994, que dispõe sobre
a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por rede de atenção
integral à saúde mental, regulamenta a internação psiquiátrica involuntária,
e Lei Estadual nº 14.561, de 26 de dezembro de 2011, que institui, no âmbito
do Poder Executivo, a Política Estadual sobre Drogas, especialmente para
verificar a existência e funcionamento adequado dos Centros de Assistên-
cia Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades, bem como sobre os
mecanismos de assistência hospitalar (municipal ou regional) à disposição
66 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

da população, nas modalidades adequadas ao município, inclusive para pro-


moção da assistência à saúde das pessoas usuárias de álcool e outras drogas,
hospitais de referência, dentre outros; solicitem, junto à Promotoria de Jus-
tiça Criminal, cópias das guias de internação expedidas, para a preparação e
acompanhamento do retorno das pessoas internadas no Hospital de Custó-
dia e Tratamento Psiquiátrico ao município de origem.
Ambos crime e cidadania hão de andar lado a lado quando a temática
for saúde mental a fim de superar essa divisão tradicional e até polarizada
na prática ministerial.
Como referencial prático e ilustrador de excelência na aplicação dessa
Recomendação, podemos citar a 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Ci-
dadania de Jaboatão dos Guararapes, cuja titular, Isabela Rodrigues Ban-
deira Carneiro Leão, montou um fluxo de atuação quando acionada pelo
promotor de Justiça Criminal (seja da Central de Inquéritos ou da Vara Cri-
minal), após a instauração do incidente de sanidade mental e ingresso no
HCTP do munícipe jaboatonense. De início são feitas comunicações à rede
SUAS (CRAS e CREAS), além de ofícios à rede de saúde mental. Em caso de
necessidade de mais informações também é oficiado o promotor de Justiça
Criminal do processo solicitando cópias da guia de internação. Todo o fluxo
visa acompanhar o retorno das pessoas internadas ao município de origem.
Muito embora o fluxograma possa parecer ter um caráter individual, o fim
precípuo é investigar o pleno funcionamento da rede de saúde mental, bus-
cando a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos, especialmente
para verificar o adequado funcionamento dos CAPS.
A rede SUAS fica responsabilizada de formular pareceres psicológi-
co e social da pessoa internada com fins de localização de laços familiares
como forma de garantir a reinserção social. Depois é enviado um relatório
ao HCTP para auxiliar o tratamento e elaboração da perícia. Um dos casos
acompanhados tinha como internado um rapaz surdo que agrediu a mãe
Especial - maio de 2019 | 67

e, em decorrência da Lei Maria da Penha, foi aplicada a medida protetiva.


Ocorre que a mãe, além de fragilizada, foi impedida de ver o filho no HCTP,
até que a medida fosse contestada pela Defensoria Pública, pois a lógica de
proteção estava invertida. Com a intervenção da promotora de Justiça de
Jaboatão, e, após acionamento do CREAS, CRAS e CAPS, foram tomadas
medidas para dar suporte psicológico à mãe, escolhido um novo parente, no
caso o pai, que teria melhores condições de recebê-lo, também foi orientado
de como poderia solicitar benefícios. Assim, dez meses depois de internado,
após laudo de inimputabilidade, o usuário tinha a família à sua espera na
saída do HCTP, caso raro em casos de violência doméstica, mesmo com
portadores de transtornos mentais. Essa é uma história. De Jaboatão dos
Guararapes, poderia ser de qualquer lugar.
No agreste, mais precisamente na cidade de Arcoverde tivemos outro
caso. A 2ª Promotoria de Justiça de Arcoverde, através de sua atuante titu-
lar Ericka Garmes Pires Veras recebeu ofício oriundo da 21ª Promotoria de
Justiça Criminal da Capital para acompanhar o retorno de egresso do HCTP
à Cidade de Arcoverde, em razão do que foi instaurado o procedimento nº
2705423/2017, para a adoção das providências necessárias. Em paralelo a
isso, a irmã apresentou notícia de fato, dando conta de que o paciente, um
jovem senhor nascido em 1982, portador de doença mental, egresso do
HCTP, foi encaminhado à noticiante, pelo CAPS II Arcoverde. Aduziu que,
além de não ter condições de assumir a responsabilidade do interditando,
por ter uma filha de apenas dois anos e cuidar da genitora idosa e doente,
foi vítima de abusos sexuais praticados pelo irmão, não tendo qualquer vín-
culo afetivo com ele. Asseverou também que registrou ocorrência na Dele-
gacia de Polícia, para prevenir eventual responsabilidade. Ainda, disse que
o irmão foi criado por uma tia já falecida e que não havia outros parentes
que quisessem ou poderiam cuidar dele. Em seguida, o CREAS Arcoverde
encaminhou relatório circunstanciado, informando que o usuário foi visto
68 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

pelas ruas, bastante desorientado, sem qualquer documento, em estado de


abandono, em razão do que a promotora de Justiça indicou a possibilida-
de de sua inserção em residência terapêutica, na Cidade de Ibimirim/PE,
medida não providenciada pelo serviço à vista da notícia de falta de vagas.
Não satisfeita com as respostas e para chegar a uma resolução a promotora
realizou reunião com a rede de proteção do Município de Arcoverde, repre-
sentada pela Secretaria Municipal de Assistência Social e CREAS Arcoverde
quando foram solicitadas informações complementares, além da indicação
de medidas que se afigurassem adequadas ao caso, para a adoção de provi-
dências a cargo do Ministério Público. Relatório complementar do CREAS
Arcoverde informou que o egresso do HCTP, com histórico de várias inter-
nações psiquiátricas, foi trazido para a Cidade de Arcoverde, após desinter-
nação, porque a irmã comprometeu-se a acolhê-lo sob sua responsabilidade.
Porém, ao chegar na casa da irmã, ela recusou-se a recebê-lo. Desde então
ele estava pelas ruas, sem qualquer documento, em estado de abandono, su-
jeito a uma série de violações de direitos. Encaminhado ao CAPS, foi sub-
metido a exame por médico psiquiatra, que atestou que ele era portador de
esquizofrenia paranoide, era inteiramente incapaz para os atos da vida civil,
devendo, pois, ser encaminhado para residência terapêutica na Cidade de
Ibimirim/PE. Consta dos autos que o encaminhamento não foi realizado à
vista de anterior notícia de ausência de vagas. O único documento localiza-
do foi a certidão de nascimento do interditando. Não havia notícia de bens,
rendimentos ou direitos do requerido. Diante da necessidade de regulariza-
ção da situação jurídica, a promotora de Justiça ingressou com ação para a
decretação de interdição e nomeação de curador, além de atuar na abertura
de vaga numa residência terapêutica. Dos autos consta um ofício oriundo da
Secretaria de Assistência Social de Arcoverde informando que estava atuan-
do em conjunto com a Secretaria de Saúde, o que demonstra o compromisso
da rede no território mais abrangente.
Especial - maio de 2019 | 69

De Jaboatão, do Cabo, de Arcoverde, para além dos lugares passamos


por relações e pessoas comprometidas.
Milton Santos afirmava que cada lugar é, à sua maneira, o mundo. É
necessário considerar as relações desse mundo ou desse lugar “através de
um processo de incessante interação”. Um lugar carrega em si o mundo, ou,
como se diz em relação aos manicômios (ou uma prisão ou qualquer insti-
tuição total), basta conhecer um que se conhece a todos. John Foot, docente
de história contemporânea italiana, biografa Franco Basaglia e relata a psi-
quiatria radicada na Itália entre 1961 e 1978, descrevendo Gorizia, primeiro
manicômio administrado por Basaglia, como um campo de concentração:

Gorizia era, come tutti i manicomi italiani, un autentico la-


ger. Il maicomio di Gorizia era un’istituzione buia e sinistra,
una discarica per i poveri e i “devianti”, un luogo di esclusione.
Come nella maggioranza dei manicomi italiani dell’epoca, col
tempo si era sviluppata un’architettura della contenzione e dell
controllo, com gabbie per i paziente più agitati e letti bucati per
consentire a chi vi stava legato a defecare.

Nessa rotina faremos uma breve exposição do que o MPPE tinha de visão
compartimentada do HCTP. Longe do espaço, em suas salas de reunião, ao
MP não cabe o benefício da afetividade, mas pode ao receber uma gama de
atores sociais tecer relações densas e infinitas de informações. Mais uma vez
se quer o encontro. Para tanto, em 2015, foi instaurado do Inquérito Civil nº
001/05-2015, que tinha como objetivo investigar as condições de saúde dos
internos do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá, o
único no Estado de Pernambuco, instaurado pela 21ª Promotoria de Justiça
Criminal de Recife, com atuação perante as unidades prisionais da 1ª Vara
Regional de Execução Penal. A portaria foi instaurada de ofício, em razão da
70 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

recente assunção ao cargo (janeiro de 2015) e início de investigações quanto


ao tratamento de saúde do HCTP.
Após várias inspeções realizadas no HCTP e reuniões com os agentes
públicos de saúde ligados à gestão pública sobre questões atinentes à aplica-
ção da Lei 10.216 e suas implicações no tratamento terapêutico, verificou-se
que não estava formatada uma agenda pública institucional sobre três pro-
blemas de ordem gravíssima: um que é a desinstitucionalização de pacientes
que já estavam desinternados, mas permaneciam na unidade; o segundo que
era a falta de equipe para implementação de terapias individuais/singulares;
e o terceiro, a medicação, sua forma de uso e o tipo.
Ao final do procedimento, quando do seu arquivamento, surgiu a neces-
sidade de fazer a discussão dos motivos pelos quais a SERES ainda detém
toda a estrutura de saúde do sistema prisional, avaliar as responsabilidades
e autonomia da secretária de saúde estadual, assim como os processos de
municipalização. Também foi verificada a possibilidade de abrir procedi-
mento específico para acompanhar o retorno das unidades prisionais para
o SUS, para isso foi encaminhado ofício às promotorias de saúde da capital
indagando se essa competência é da promotoria de saúde, para não haver
conflito de atribuição. Foi oficiado o CAOP Saúde solicitando que o HCTP e
demais unidades do sistema prisional fossem incluídos no projeto ministe-
rial de atenção básica à saúde.
No que se refere à previsão orçamentária de uma equipe denominada
EAP, nos mesmos moldes das equipes de apoio ao PSF, com verba de 66 mil
reais ao mês, o que facilitaria a articulação da rede de saúde mental, e suas
implicações ao serviço de saúde do HCTP no que se refere a pacientes que
estão distantes do território, mas têm que vir ao HCTP, por exemplo Petro-
lina, inclusive serviria para fazer os laudos nesses lugares, evitando desloca-
mentos desnecessários e caros para o Estado. A criação dessas equipes não
foi implementada, para tanto também urgia encaminhamento à promotoria
Especial - maio de 2019 | 71

de saúde da capital, pois trata-se de política de saúde pública a nível esta-


dual. Também era preciso dimensionar a necessidade de uma alimentação
diferenciada aos internos do HCTP a ser considerada em pareceres técni-
cos, como salientado, e abertura de um procedimento para acompanhar as
necessidades nutricionais do interno. Foi solicitado, ainda, um pedido de
sensibilização aos CAOP Cidadania e Saúde, para efetivação da Recomenda-
ção do PGJ n.º 005/2013, de atuação em conjunto das promotorias de saúde
e cidadania quando o promotor de Justiça criminal instaurar incidente de
insanidade mental, para que se controle a porta de entrada do HCTP, suge-
rindo que sejam observados os exemplos das promotorias do Cabo de San-
to Agostinho, de Arcoverde e de Jaboatão dos Guararapes. Também foram
oficiados os demais promotores de Justiça de Execução Penais, alertando
quanto à necessidade de presença de psiquiatras nas unidades em consonân-
cia com a implantação da equipe mínima conforme preconizado na Portaria
482 de 1º de abril de 2014, que institui normas para a operacionalização da
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liber-
dade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS), pois essa garantia diminuiria o encaminhamento de pessoas privadas
de liberdade que sem tratamento psíquico muitas vezes eram encaminhadas
ao HCTP fora do padrão do laudo de insanidade mental.
Ainda segundo Milton Santos “No lugar cooperação e conflito são a base
da vida em comum”. Prédio da Suassuna. Lugar de cooperação e conflito.
Sempre. Assim foram realizadas várias audiências para num espaço enten-
der outro espaço e, quem sabe, olhar para o futuro dentro de uma visão
transdisciplinar seguindo os ensinamentos de Alvino Augusto de Sá, que
defende práticas institucionais para além da comunidade científica, para
aproveitar a “rica experiência oriunda das práticas penitenciárias dos de-
mais profissionais”:
72 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

A interdisciplinaridade, enquanto constitutiva da crimino-


logia clínica, é condição essencial de sua existência e de seu
desenvolvimento. A interdisciplinaridade é condição essen-
cial da interlocução significativa dos técnicos entre si, no dia
a dia de sua prática profissional. Já a transdisciplinaridade,
além de ser condição obrigatória de interlocução significati-
va dos técnicos entre si, é condição essencial da interlocução
significativa entre os técnicos e os demais profissionais do
presídio e a população carcerária e, por fim, da interlocução
significativa entre o cárcere e a sociedade.

Não existe mais lá dentro quando se fala em presídios.


A inquietude que levou a este artigo pode ser refletida nesse pensamento
de Bhaba (1998, p. 48), que defende a troca discursiva dialógica e a impor-
tância do espaço da escrita: “A pergunta ‘O que deve ser feito?’ tem de re-
conhecer a força da escrita, sua metaforidade e seu discurso retórico, como
matriz produtiva que define o ‘social’ e o torna disponível como objetivo da
e para a ação”.
Falamos do cuidado na porta de entrada, para garantir a saída. Cumpre
agora falar da porta de saída depois de anos de institucionalização, no exem-
plo que ora tocamos, uma pessoa que passou 33 anos no HCTP.
Em 2017, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, estavam,
no processo de desinstitucionalização, 57 usuários, sendo que 37 têm indi-
cação de residência terapêutica e 20 de retorno à família. São pessoas que
não estão mais em cumprimento de medida de segurança. Transitam entre
a responsabilidade da Justiça e da Saúde. Hoje, mais da Saúde do Estado do
que da Justiça.
A titular da 3ª Promotoria de Justiça de Cidadania do Cabo de Santo
Agostinho, Janaína Bezerra Sacramento, ao tomar conhecimento, pela pro-
Especial - maio de 2019 | 73

motoria de execução penal, que o munícipe internado há mais de 30 anos no


HCTP precisava da RAPS para ser desinstitucionalizado, abriu procedimen-
to para verificar e acompanhar a atuação da rede, quando então foi garantida
uma vaga na residência terapêutica que estava por abrir no município. O
Cabo de Santo Agostinho assumiu sua responsabilidade, pois a família já ti-
nha perdido o laço de sociabilidade afetiva com o egresso. Dois anos depois
de aberto o procedimento, o usuário retornou para o seu município em um
novo lar. 33 anos no HCTP.
Em todos esses relatos, há o encontro do promotor criminal com o
promotor da cidadania, além da solidariedade institucional, o verdadeiro
encontro que se queria promover era o do entendimento de crime com a
loucura, no sentido psicopatológico, enquanto necessidade de tratamento
e de inserção na rede saúde mental do território do louco infrator, não era
só caso de polícia a findar numa denúncia. Haveria de sair da casualidade
do destino, que é decidido na rotina de quem possui transtorno mental e,
em situações de crise e urgência, é encaminhado para o Hospital ou para o
HCTP por quem chega primeiro, o SAMU ou o camburão. A diferença não
é simplesmente casual, ela é o símbolo de como a questão dos motivos do
sofrimento presente e do risco que traz é desviado da saúde e encaminhado
ao judiciário, travestido de ocorrência policial.
Por fim, urge sonhar com o fim do manicômio judiciário. Antes da
conclusão deste artigo havia uma torcida para que o queniano Ngũgĩ Wa
Thiong’o, autor de Grão de Trigo e Sonhos em Tempo de Guerra, primeiro
volume de suas memórias, ganhasse o Nobel de Literatura. Como apresen-
tado pela editora: “Sonhos em tempo de guerra é, sobretudo, uma defesa do
direito humano de sonhar mesmo no pior dos tempos”. Desse livro, fica o
registro de histórias contadas a um menino, nos idos de 1954, que de ouvinte
maravilhado passou a narrador ainda na adolescência, e como essa desco-
berta modificou sua vida na distante Limuru, em África:
74 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Divergências entre os narradores dividiram a multidão em


grupos menores de três, quatro ou cinco pessoas ao redor
de um narrador com sua própria perspectiva acerca do que
ocorrera naquela tarde. Vi-me deslocado de um a outro gru-
po, catando fragmentos aqui e ali. Gradualmente ajuntei os
fios da história, e uma narrativa do que prendia a multidão
surgiu, uma cativante história sobre um homem anônimo
que fora detido próximo às lojas indianas.

(...)

Eu ouvira histórias similares sobre os guerrilheiros de Mau


Mau, em particular de Dedan Kîmathi; mas no caso, até
aquele momento, a mágica ocorrera muito longe, em Nyan-
darwa e nas montanhas do Monte Quênia, e os relatos nun-
ca foram contados por alguém que fora testemunha ocular.
Mesmo meu amigo Ngandi, o mais informado contador de
histórias, nunca disse que havia de fato visto quaisquer das
ações que descrevera tão graficamente. Adoro ouvir, mais do
que contar, antes ou depois da refeição. Da próxima vez que
encontrasse Ngandi, eu talvez pudesse apresentar uma his-
tória própria.

Quiçá ao celebrar 70 anos da Declaração dos Direitos dos Homens seja


preciso ir além do próprio homem como enfatiza Ribas:
Parece um caminho sem volta que deve influenciar também o Direito
Internacional. Anuncia-se o fim do próprio do Homem e reconhece-se uma
estreita ligação entre o Homem e o absolutamente outro, como todos os de-
mais viventes. Essa influência marcará uma nova civilização em cujos laços
de fraternidade e de alteridade serão ainda mais fortes, rompendo também
Especial - maio de 2019 | 75

a lógica neoliberal de apropriação e acumulo excessivo de bens materiais.


Quiçá em tempos menos sombrios. Quiçá celebrando essas alianças ou
amizades políticas como denomina Foucault.

REFERÊNCIAS
AITH, Fernando. VIVAS, Marcelo Dayrell. Direito à saúde e à proteção a pessoas
com transtorno mental: como os sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos tutelam a saúde mental a partir da declaração universal dos direitos
humanos. In: Direitos humanos e vulnerabilidade e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2018.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,


2012.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BRETAS, Marcos Luiz. COSTA, Marcos. SÁ, Flávio Neto. MAIA, Clarissa Nunes.
História das Prisões no Brasil. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.

COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas. A saúde mental de infratores presos


numa unidade prisional da cidade de Salvador. In: COELHO, Maria Thereza
Ávila Dantas. CARVALHO, Milton Júlio Filho. Prisões numa abordagem interdisci-
plinar. Salvador: EDUFBA, 2012.

FIORELLI, José Osmir. MANGINI, Rosana Ragazzoni. Psicologia Jurídica. 8. ed.


rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
76 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

FONTES, Breno Augusto Souto Maior. FONTE, Eliane Maria Monteiro da. Desins-
titucionalização, redes sociais e saúde mental: análise de experiências da reforma
psiquiátrica em Angola, Brasil e Portugal. Recife: Editora UFPE, 2010.

FOOT, Jonh. La “Repubblica dei Matti”: Franco Basaglia e la psichiatria radicale


in Italia, 1961-1978. Feltrinelli Editore: Milano, 2017.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 26ª Ed. Editora Vozes: Petrópolis, 2002.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1972.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva,


2015.

LEITE, Flávia Piva Almeida. RIBEIRO, Lauto Luíz Gomes. COSTA FILHO, Waldir
Macieira da. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo:
Saraiva, 2016.

LIMA, I. M. CORREIA, L. (2013). Sofrimento mental e os desafios do direito à


saúde. Revista de Direito Sanitário, 12(3), 139-160

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

SÁ. Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um


modelo de terceira geração. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

THIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância. São


Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
Especial - maio de 2019 | 77

VIEIRA, José Ribas. SILVA, Diogo Bacha e. Direitos do Homem: A Declaração


Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os Confins do Homem. In: 70º
aniversario de la Declaración Universal de Derechos Humanos: La Protección
Internacional de los Derechos Humanos en cuestión. Valencia: La editorial tirant lo
blanch, 2018.
Especial - maio de 2019 | 79

O MINISTÉRIO PÚBLICO NA
PROMOÇÃO DO DIREITO
HUMANO AO MEIO AMBIENTE
URBANO: A BATALHA DO CAIS
ESTELITA

JULIENNE DINIZ ANTÃO SALOMÃO ISMAIL FILHO

Estudante de graduação em O orientador deste artigo


Direito pela UFPE; ex-estagiária é promotor de Justiça do
do MPPE; ex-monitora de Ministério Público de
Direito Constitucional; concluiu Pernambuco. MBA em Gestão
PIBIC em 2017 pela FACEPE, do Ministério Público (UPE).
com a temática do Cais Estelita. Especialista e Mestre em Direito
Atualmente, estagiária do MPF. (UFPE). Doutorando em Direito
(UNICAP).
80 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

Seguindo o contexto mundial de reconhecimento contínuo de gerações de


direitos humanos, considerados fundamentais ao desenvolvimento do ser
humano em sua dignidade intrínseca, também o Brasil comemora os 70
anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) em dezembro
de 2018. Precursora de diversos outros tratados e convenções internacionais
ampliadoras de bens jurídicos universais, a DUDH representa um marco
civilizatório sem precedentes para a humanidade. O Ministério Público, cuja
atribuição dada pela Constituição Federal de 1988 é de tutela de tais direitos
humanos fundamentais, exerce essencial papel quando do polêmico e bem
repercutido caso pernambucano do Cais José Estelita.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos Fundamentais; Gestão Democrá-


tica do Meio Ambiente Urbano; Ministério Público; Cais José Estelita.
Especial - maio de 2019 | 81

1 Introdução
Quando, em maio de 2014, cerca de 11 mil pessoas puseram-se em frente
aos armazéns localizados no Cais da Avenida Engenheiro José Estelita, a fim
de impedir sua demolição, ordenada pelo então contestado proprietário do
terreno, o Consórcio Novo Recife,01 a cidade maurícia revivera os ânimos
de uma sociedade que protagonizou nove revoluções libertárias no decorrer
desses pouco mais de 518 anos de historiografia luso-brasileira.
Cenário de maior importância durante o Ciclo Açucareiro, Pernambuco
fora a capitania colonial que mais se desenvolvera economicamente, poli-
ticamente e urbanisticamente até meados do século XVIII. A paisagem da
cidade recifense, cosmopolita e comercial no pós-governo holandês, com
suas pontes, canais, e portos modernizados constituiu fator contribuinte à
propagação de pessoas e ideias, formando um contexto favorável à eclosão
de diversas revoltas contra o establishment, primeiro colonial, depois mo-
nárquico, e, por fim, reacionário da inclusão democrática do espaço urbano.
O antagonismo entre forças e interesses na Veneza Brasileira sempre foi
uma constante. O caso do Cais José Estelita, área valorizada e estratégica
da cidade do Recife, não foge de todo à regra: é objeto de disputa judicial
entre setores sociais difusos (representados pelos Ministérios Públicos do
Estado de Pernambuco (MPPE) e Federal (MPF) e pela Defensoria Pública
do Estado de Pernambuco, além do conjunto organizado da sociedade civil,
o Grupo Direitos Urbanos) e o grupo econômico corporificado pelo Con-
sórcio Novo Recife (formado por cinco grandes sociedades empresárias).

01 AMORIM, Fabiano. Entenda o problema do Cais José Estelita. Diário do Centro do Mundo.
Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/entenda-o-problema-do-cais-jose-estelita/>.
Acesso em: 29 jan 2019.
82 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Se em um polo encontramos a defesa da propriedade privada do solo


urbano, da ampliação do mercado imobiliário, do crescimento econômico
quantitativo do Estado; noutra senda, vislumbram-se interesses relaciona-
dos à ideia de acesso à cidade, uso público do espaço urbano e da proteção
do patrimônio histórico-geográfico nacional.
Sob a perspectiva do Consórcio das construtoras Moura Dubeux, Quei-
roz Galvão, Ara e GL Empreendimentos, a legalidade, no sentido de obe-
diência ao devido processo legal administrativo, não teria sido manchada.
Tampouco teria ocorrido qualquer vício procedimental capaz de justificar a
perda ou mesmo a mitigação dos poderes inerentes à propriedade do terre-
no adquirido por meio de licitação pública.02
Entretanto, sob a ótica dos interesses sociais, ainda que se houvesse se-
guido o rito legal das previsões do Direito Administrativo, restaria inobser-
vado o princípio constitucional da função social da propriedade privada (art.
5º, inciso XXIII, CR/88), o qual reflete, de modo multifacetário, diversos
direitos humanos fundamentais subjacentes à expressão escolhida pelo le-
gislador constituinte.
Explícita no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) encontra-se, e.g, a previsão do direito humano ao acesso à cultura,
bem como, no mesmo dispositivo, prevê-se o direito humano universal de
garantia aos direitos sociais e econômicos (artigo 22 da DUDH). Além disso,
há que se mencionar que a Declaração Internacional de Direitos Humanos
é formada, além da DUDH, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos (PIDCP) e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, So-
ciais e Culturais (PIDESC), todos assinados e ratificados pelo Estado bra-

02 Contestação do Consórcio Novo Recife, apresentado à fl. 387 do Processo nº 0195410-


28.2012.8.17.0001, que tramita na 7ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Consulta in loco dos autos judiciais, por ocasião da pesquisa PIBIC em 2017.
Especial - maio de 2019 | 83

sileiro. Ambos com a função precípua de esmiuçar os direitos enunciados


na DUDH, é no PIDESC que encontramos o direito humano universal à
moradia e ao lazer, em seu artigo 7º, alínea “d”, e, artigo 11.
Assim, a cada Estado-Membro da ONU, signatário da DUDH, cabe o
elenco dos direitos sociais a serem garantidos por texto constitucional, ca-
bendo a ressalva da proteção internacional. A exemplo disto, a Constituição
da República de 1988, traz em seu art. 6º, caput, o direito social ao lazer,
como fundamental aos indivíduos, pois que integrante da esfera dignificante
do gênero humano.
É inegável, portanto, que o meio ambiente equilibrado, o lazer, e a cultura
são condições sine qua non para o desenvolvimento integral do ser humano,
razão pela qual, em consonância com o princípio da prevalência dos direi-
tos humanos, o Estado brasileiro optou por reservar um capítulo específico
para o meio ambiente dentro da Constituição de 1988. Então, este Direito
Ambiental, por seu turno, engloba não somente o meio ambiente natural,
mas o construído, isto é, o meio ambiente urbano, o meio ambiente histórico
de um povo, que precisa ser conservado, sob pena de mácula ao seu direito
humano à memória coletiva.
Objetivando prevenir e reprimir ações potencialmente degradantes ao
Patrimônio Histórico-Cultural, a Constituição atribuiu ao Ministério Pú-
blico a tutela do meio ambiente, de forma a defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações (art. 129, III, c/c art. 225, caput, CR/88).
Por meio de instrumentos jurídicos próprios, como o inquérito civil e a
ação civil pública, o MPPE pode exercer suas funções de forma a concretizar o
princípio do desenvolvimento nacional sustentável e da função social da pro-
priedade privada, promovendo a compatibilização das demandas mercantis
com as necessidades de democratização e inclusão social, sempre que possível.
Adiante, procuraremos demonstrar como a atuação do Ministério Pú-
blico pautou-se judicial e extrajudicialmente, no sentido de construir um
84 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

legado imagético da instituição que se tornou, por impositivo constitucional


(art. 129, incisos II e III, CR/88), Ombudsman do povo, essencial à promoção
do direito humano ao meio ambiente urbano.

2 Meio ambiente urbano como


direito humano fundamental
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia
Geral da ONU em Paris, no ano de 1948, não faz referência direta ao di-
reito universal ao meio ambiente equilibrado, bem como não menciona a
plurissignificação do termo “meio ambiente”. Isso porque, no contexto de
destruição humana dos pós-guerras, somado a um certo distanciamento das
questões ambientais típico dos anos 1940, a preocupação com o Patrimônio
Histórico-Cultural da Humanidade parecia estar em terceiro plano.
Naquele momento, as nações uniam-se em prol de objetivos não menos
sublimes: a pacificação mundial e a valorização do ser humano em sua dig-
nidade intrínseca.03 O desmoronamento da ideia kantiana de que o homem
é um fim em si mesmo,04 causado pela ascensão dos fascismos italiano e
alemão, resultou num mundo ocidental plasmado pelo poder corrosivo da
retórica política. E é somente nos idos dos anos de 1960 que a problemática
do meio ambiente ganha espaço no cenário mundial,05 sobretudo pela atu-
ação da Organização não Governamental Greenpeace e seus ativismos em
defesa do meio ambiente natural.

03 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14ª edição. São Paulo:
Editora Saraiva, 2012. p. 117-118.
04 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 10ª ed. São
Paulo: Atlas Editora, 2012. p. 331.
05 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2014. p. 97-101.
Especial - maio de 2019 | 85

Ora, o fato de a Declaração Universal dos Direitos Humanos não explici-


tar tal direito não significa que o direito ao meio ambiente histórico-cultural
não se configure como um direito humano universal. Muito pelo contrário,
a DUDH traz uma série de direitos, ao longo de seus 30 artigos, cuja efetiva-
ção só é possibilitada na fluência de um meio ambiente equilibrado, sob os
auspícios de uma gestão democrática do espaço coletivo.
Ademais, o já citado Pacto Internacional de Direitos Econômicos, So-
ciais e Culturais (PIDESC), um dos três documentos componentes da De-
claração Internacional de Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992,
em seu artigo 12 traz claramente o direito ao meio ambiente como direito
universal fundamental ao desenvolvimento humano:

ARTIGO 12

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito


de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de
saúde física e mental.

2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto de-


verão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse
direito incluirão as medidas que se façam necessárias para
assegurar:

b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e


do meio ambiente;

Não bastassem as disposições de Direitos Humanos e Constitucional,


nos anos 2000, o então secretário-executivo das Nações Unidas, Kofi Annan
deu início ao chamado Pacto Global.06 Trata-se de uma iniciativa da ONU

06 KARBASSI, Lila. Social Sustainability. UN Global Compact. Disponível em: <https://www.


unglobalcompact.org/what-is-gc/our-work/social>. Acesso em: 29 jan. 2019.
86 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

voltada para empresas que voluntariamente comprometem-se a alinhar suas


atividades com os princípios de direitos humanos, trabalho decente, meio
ambiente e combate à corrupção. Existem mais de dez mil empresas adeptas
em todo o globo e mais de 500 delas estão no Brasil.
A ideia de conferir “uma face humanizada ao mercado global”07 vem da
necessidade de conscientizar os líderes dos setores privados sobre os im-
pactos generalizados de suas ações e decisões. Toda a coletividade pode se
beneficiar ou não das ações de natureza privada, e essa consciência revela-se
premente face à primazia das sociedades empresárias no uso e exploração
dos terrenos urbanos.
De volta ao plano deontológico internacional sobre direitos humanos, à
semelhança da tipologia constitucional, que subdivide os direitos e garantias
fundamentais em direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), direitos
sociais (art. 6º), direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13) e direitos políticos
(arts. 14 a 17), a doutrina internacionalista também agrupa os direitos hu-
manos em: direitos civis e políticos e direitos sociais, econômicos e culturais,
e, os chamados direito de solidariedade, ou fraternidade, dentre os quais
encontra-se o direito ao meio ambiente.08
Essa terceira geração de direitos humanos recebem no ordenamento ju-
rídico interno a nomenclatura de direitos difusos e coletivos, podendo estar
topologicamente dispersos no texto constitucional. Essa família de direitos
humanos encontra seu fundamento e razão de ser nas próprias relações hu-
manas e seus desdobramentos.

07 ANNAN, KOFI. Kofi Annan announces the launch of oh the Global Compact. Livre
tradução. Global Compact Twitter. Vídeo disponível em: <https://twitter.com/globalcompact/
status/1030857319389831170>. Acesso em: 29 jan. 2019.
08 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 16ª edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 203-205.
Especial - maio de 2019 | 87

Além disso, como é cediço, o rol de direitos enunciados pela Carta Maior
não exaure os textos de convenções e tratados internacionais sobre direitos
humanos (art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF), de modo que estes serão sempre mais
abrangentes que os direitos constitucionalmente positivados. Nesse sentido,
lecionam Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari:

...diferenciam direitos humanos e garantias constitucionais


fundamentais (…) Os direitos humanos têm processo histó-
rico longo a ser observado na evolução da humanidade e em
seus conflitos, enquanto os direitos fundamentais são inspi-
rados nos direitos humanos internacionalizados...09

De fato, as Constituições dos Estados Democráticos de Direito, embora


tenham como centrais os fatores socio-históricos internos, levam em alta
conta o contexto mundial, os documentos assinados internacionalmente,
na elaboração de seus textos constituintes. Dessa forma, os textos internos,
malgrado não exauram o catálogo de direitos humanos – mesmo porque
tendem à expansão com o tempo – refletem muito dos consensos deliberati-
vos dos órgãos internacionais.
Anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho que os direitos de solidarieda-
de têm sua origem por ocasião da Revolução Industrial, e, por essa razão
mesma, merece destaque a mudança de enfoque temático de direitos: do
individual para o coletivo10. Os chamados direitos individuais encontram
seu fundamento de validade, portanto, nos valores de solidariedade da vida
em coletivo.

09 OLIVEIRA, Bruna Pinotti Garcia; LAZARI, Rafael de. Manual de Direitos Humanos. 3ªed. São
Paulo: Juspodivm Editora, 2017. p. 149-150.
10 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14ª edição. São Paulo:
Editora Saraiva, 2012. p. 89-112.
88 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

São direitos de terceira dimensão também o direito à paz, ao desenvol-


vimento, ao patrimônio comum da humanidade, além dos meios ambientes
cultural e natural. Para o pensador italiano Norberto Bobbio, no entanto, é o
direito ao meio ambiente o que contém maior elaboração subjetiva,11 porque
é subjetivamente indeterminado a todo o gênero humano.
Ligados ao valor da pessoa, sua dignidade e liberdade, os direitos hu-
manos garantem a vida em sociedade harmônica, prevenindo os abusos de
poder e evitando humilhações às pessoas. Com o direito ao meio ambiente
construído, ao patrimônio histórico-cultural não é diferente, porque tam-
bém a História e a Cultura de uma sociedade compõem sua identidade, sen-
do imprescindível a proteção da memória social de forma positivada nos
ordenamentos jurídicos dos Estados.
Na ausência de identidade histórica, nenhuma pessoa seria capaz de de-
senvolver-se humanamente e participar conscientemente da vida coletiva.
Somente um meio ambiente sadio e digno é capaz de favorecer a efetivação
das outras famílias de direitos humanos, sendo por isso que o direito ao pa-
trimônio histórico-cultural tem sido reconhecido pelos tribunais, a exemplo
do julgado do Superior Tribunal de Justiça a seguir:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FUNÇÃO MEMORATIVA DO


DIREITO DE PROPRIEDADE. TOMBAMENTO GLO-
BAL. RESTAURAÇÃO DE IMÓVEIS PERTENCENTES AO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA HUMANIDADE. OMIS-
SÃO NA PROTEÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA
DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. NÃO
DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. ARTS. 17 E 19
DO DECRETO-LEI 25/1937. 1. Trata-se, originariamente,
de Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público, que

11 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2004. p. 55-61.
Especial - maio de 2019 | 89

resultou na condenação dos réus a procederem ao início da


restauração completa de três imóveis tombados, integrantes
do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural de São Luís
(MA), que lentamente se deterioraram e desabaram. 2. É
inadmissível Recurso Especial quanto à questão (arts. 475-J e
461, § 4º, do Código de Processo Civil) que não foi apreciada
pelo Tribunal de origem. Incidência das Súmulas 282 e 356/
STF. 3. Emanação da função memorativa do direito de pro-
priedade, o tombamento, voluntário ou compulsório, produz
três órbitas principais de efeitos. Primeiro, acarreta afetação
ao patrimônio histórico, artístico e natural do bem em tela,
com a consequente declaração sobre ele de conjunto de ônus
de interesse público, sem que, como regra, implique desapro-
priação, de maneira a assegurar sua conservação para a pos-
teridade. Segundo, institui obrigações concretas – de fazer,
de não fazer e de suportar – incidentes sobre o proprietário,
mas também sobre o próprio Estado. Terceiro, abre para a
Administração Pública e para a coletividade, depositárias e
guardiãs em nome das gerações futuras, a possibilidade de
exigirem, em juízo, cumprimento desses deveres negativos e
positivos, inclusive a restauração do bem ao status quo ante,
sob regime de responsabilidade civil objetiva e solidária, sem
prejuízo de indenização por danos causados, até mesmo mo-
rais coletivos. 4. Recurso Especial parcialmente conhecido e,
nesta parte, não provido. 12 (Grifos nossos)

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial nº 1.359.534/MA


(2016/0208175-5). Apelante: CONAN – Companhia de Navegação do Norte. Apelado: Ministério Público.
Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 18 de outubro de 2016. Diário de Justiça, Brasília, DF, 24 out.
2016. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 29
jan. 2019.
90 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

O direito ao meio ambiente, porque direito humano positivado em nossa


Constituição, não sofre das características de imprescritibilidade ou revoga-
bilidade, constituindo-se tema de cláusula pétrea do sistema constitucional
brasileiro. Dessa forma, não só é perfeitamente reconhecido pelos tribunais,
como qualquer alteração normativa tendente à sua abolição ou arrefecimen-
to deverá ser prontamente expugnada do ordenamento jurídico, por força
do que prevê o art. 60, §4º, inciso IV, CR/88.
Além disso, por imposição dos §§2º e 3º, art. 5º da Lex Mater, os pactos,
tratados e convenções relativas a meio ambiente, uma vez assinados pelo
Brasil, desde que mais favoráveis, passam a integrar o bloco constitucional
dos direitos humanos fundamentais. Tal abertura de cláusulas explica-se
pelo princípio da prevalência da norma mais protetiva ao meio ambiente na
aplicação e interpretação da legislação nacional e internacional.
Consequentemente, o ato normativo preferencial será sempre aquele ca-
paz de propiciar mais ampla proteção a esse bem jurídico de interesse de to-
dos, constitucionalmente garantido, que é o meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
O status de direito humano fundamental de que goza o direito ao meio
ambiente confere-lhe uma proteção mais efetiva, tanto internamente quanto
no plano internacional, promovendo a eventual responsabilização do País
perante os organismos internacionais de defesa dos direitos humanos.

3 O Caso Estelita
O Cais José Estelita, localizado na avenida Engenheiro José Estelita, é uma
região da cidade do Recife (PE), banhada pela Bacia do Pina que também
liga os bairros do Cabanga e São José, ambos centrais e estratégicos para
os setores comercial e serviços, a nível local, regional e também nacional,
Especial - maio de 2019 | 91

devido à proximidade com o porto da cidade.13 A área de mais de 100 mil


m² correspondente ao Cais abriga galpões da desativada Rede Ferroviária
Federal Sociedade Anônima (RFFSA), empresa pública até 2007 – quando
foi extinta.
Situado, portanto, numa zona de alto valor imobiliário, o terreno da anti-
ga RFFSA foi, em 2008, vendido pela Prefeitura do Recife, através de leilão, a
um complexo de empresas privadas do ramo da construção civil, o Consór-
cio Novo Recife, formado pela Ara Empreendimentos, GL Empreendimen-
tos, Moura Dubeux Engenharia e Queiroz Galvão.14
No projeto inicial do Consórcio Novo Recife, constava a elevação de um
complexo empresarial, residencial, comercial e hoteleiro abarcando os mais
de 100 mil m² de área com mais de dez altas torres erguidas.15 Esse primeiro
projeto também previa a demolição do viaduto do Forte das Cinco Pontas,
que, além de permitir a vista do monumento para o público do Cais, daria
melhor visibilidade à esplanada do Cais José Estelita.
Em 2012, no entanto, por ocasião da primeira audiência pública sobre o
que ficou conhecido como Projeto Novo Recife, parcela da população indi-
cou deficiências no planejamento que poderiam resultar em danos ambien-
tais para o Cais. Entre outros pontos, foram apontados o impacto ambiental

13 Folha de Pernambuco. Movimentação de carga cresce 72% este ano no Porto do Recife. Folha
PE. Disponívelem:<http://www3.folhape.com.br/economia/economia/economia/2017/05/11>./
NWS,27109,10,550,ECONOMIA,2373-MOVIMENTACAO-CARGA-CRESCE-ESTE-ANO-PORTO-
RECIFE.aspx>. Acesso em: 29 jan. 2019.
14 Redação Globo Nordeste. PF investiga compra de terreno do Cais José Estelita no Recife. G1 PE.
Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/09/pf-investiga-compra-de-terreno-do-
cais-jose-estelita-no-recife.html.> Acesso em: 29 jan. 2019.
15 AMORIM, Fabiano. Entenda o Problema do Cais José Estelita. Diário do Centro do Mundo.
Disponível em: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/entenda-o-problema-do-cais-jose-estelita/>.
Acesso em 29 jan. 2019.
92 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

da altura dos prédios, que poderiam chegar a até 40 andares, dificultando a


circulação de ar nos bairros circunvizinhos, além de gerar um fluxo de au-
tomóveis ainda maior para o centro do Recife, sem apresentar uma solução
mitigatória para a mobilidade urbana; e, a desconfiguração visual do Recife
histórico, marcado por sua imagem conservadamente colonial nos bairros
próximos ao Porto.
No último dia de mandato na Prefeitura, final de 2012, o Conselho de
Desenvolvimento Urbano (CDU) do Recife aprovou o projeto. Dentre os
integrantes de tal Conselho, no entanto, dois, especialistas em Arquitetura
e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), continua-
ram a questionar o modelo de intervenção urbana do Consórcio, apontando
defeitos reminiscentes na primeira remodelação do projeto.16
As empresas deram início a demolições dos armazéns do terreno em
2014, e foi então que se iniciou o movimento popular #ocupeestelita. Inspira-
do no movimento norteamericano #occupywallstreet, em que estaduniden-
ses protestaram contra a ganância irrefreada do setor financeiro,17 a parte
inconformada da população recifense colocou-se à frente dos tratores no
Cais Estelita, impedindo a demolição dos armazéns e ocupando a área por
dias a fio para que nenhuma ação demolitória pudesse ser cumprida.
Artistas, juristas, políticos, estudantes, entre outros, uniram-se à causa
Estelita e o movimento ganhou repercussão, inclusive internacional.18 A Pre-
feitura decidiu renegociar com os integrantes organizados do movimento,
envolvendo igualmente outras entidades especializadas, como o Instituo de

16 CISNEIROS, Leonardo. Carta dos Direitos Urbanos à Câmara Municipal sobre o Plano Urbanístico
para o Estelita. Direitos Urbanos. Disponível em: <https://direitosurbanos.wordpress.com/2015/04/11/
carta-do-direitos-urbanos-a-camara-municipal-sobre-o-ple-no-082015/>. Acesso em: 29 jan. 2019.
17 Redação Abril. A Batalha do Cais José Estelita. Revista Superinteressante. Disponível em: <https://
super.abril.com.br/comportamento/a-batalha-do-estelita/>. Acesso em: 29 jan. 2019.
18 PERLATTO, Fernando. Autoimperialismo Nacional e as Cidades Brasileiras. Revista Escuta.
Disponível em: <https://revistaescuta.wordpress.com/2016/07/19/escuta-resenha-autoimperialismo-
nacional-e-as-cidades-brasileiras/>.Acesso em: 29 jan. 2019.
Especial - maio de 2019 | 93

Arquitetos do Brasil, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo e os reitores


das Universidades Federal e Católica de Pernambuco. E, malgrado tenha
havido redesenho do projeto, ainda não se chegou a um consenso, trami-
tando, no Poder Judiciário, três ações populares, uma Ação Civil Pública do
Ministério Público Federal e a Ação Civil Pública do Ministério Público de
Pernambuco.
O Grupo Direitos Urbanos, os Ministérios Públicos e os populares das
ações judicializadas, enfim, convergem para um modelo de intervenção ur-
banística mais democrático, inclusivo, em que outras camadas sociais pos-
sam ser beneficiadas, com lazer, calçadas, píeres públicos, praças, etc., con-
servando o visual histórico colonial do Recife e realizando um satisfatório
Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).
Longe de ser uma novidade em todo o mundo, a luta pela não privatiza-
ção do espaço público denota o quanto ainda é preciso ser feito no sentido
de garantir a eficácia dos princípios ambientais constitucionais, bem como as
exigências legais acerca da temática. Sobre isso, em entrevista ao Jornal GGN,
o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, pesquisador do Instituto Polis, afirma:

Um grande projeto urbano em cidades como Londres, Paris,


Nova York ou Barcelona é diferente de um empreendimen-
to similar numa cidade brasileira. Nossa realidade é outra,
a nossa agenda urbana também. Temos muita desigualda-
de social e territorial, aqui as oportunidades de emprego e a
qualidade urbana estão concentradas num pequeno espaço.
Precisamos, então, pensar nossos projetos segundo outra ló-
gica. Não podemos priorizar unicamente a dinamização da
economia, deixando em segundo plano a geração de novas
urbanidades e de novas sociabilidades (...).19

19 COSTA, Marcos. A Privatização do Espaço Público. Jornal GGN. Disponível em: <https://jornalggn.
com.br/blog/luisnassif/a-privatizacao-do-espaco-publico>. Acesso em: 29 jan. 2019.
94 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Seguindo uma tendência mundial de preocupação com a questão do


meio ambiente e dos seus reflexos no âmbito urbano, a Lei Maior brasileira
inovou ao trazer um capítulo específico sobre o Meio Ambiente, abordan-
do não somente o meio ambiente natural, mas também suas outras faces:
o meio ambiente artificial, o cultural e do trabalho. Prevê o artigo 225 da
Constituição brasileira:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-


mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.

Quando a Constituição fala em meio ambiente, portanto, não o faz de


forma descritiva, mas, prescritiva. Em outras palavras, o meio ambiente a
que todos têm direito não é, necessariamente, o que nos cerca, mas aquele
detentor da característica de ser ecologicamente equilibrado, em todas as
facetas que a expressão meio ambiente encerra.20
Ademais, a locução ecologicamente equilibrado faz remeter ao princípio
da defesa ambiental, regente da atividade econômica, por força do art. 170,
inciso VI, CR/88, devendo, assim, serem interpretados ambos os dispositi-
vos de modo integrado, para o alcance da finalidade normativa.
No que tange mais precisamente ao regimento jurídico da política de
ocupação do solo urbano, para além dos dispositivos constitucionais de po-
lítica de desenvolvimento urbano (arts. 182 e 183), e, de parcial delegação
aos municípios da competência para regular tal política (art. 30, IX), en-

20 FARIAS, Talden; COUTINHO, Francisco Seráphico da Nóbrega; MELO, Geórgia Karênia R. M. M.


Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2014. p. 30-36.
Especial - maio de 2019 | 95

contramos, no ordenamento jurídico, o Estatuto das Cidades, que pretende


ordenar de forma mais participativa a gestão das cidades brasileiras, e a Lei
Federal nº 6.766/1976, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano.
Previsto constitucionalmente e regido pelo Lei nº 6.766/1976, o insti-
tuto de Direito Urbanístico conhecido como parcelamento do solo urbano
coloca-se como cerne da problemática do Cais Estelita, cidade do Recife.
Em torno desse mesmo instituto, para além da Carta Magna e do diploma
legal federal, no âmbito da cidade do Recife, o parcelamento do solo urbano
também é alvo de legislação específica, a Lei Municipal nº 16. 286/97, além
de encontrar diretrizes do próprio Plano Diretor da cidade.
Ora, o parcelamento do solo urbano é o instituto jurídico que, nas pa-
lavras do urbanista e constitucionalista José Afonso da Silva, “objetiva a
urbanização de uma gleba, mediante sua divisão ou redivisão em parcelas
destinadas ao exercício das funções elementares urbanísticas”.21
Dito de outra forma, o parcelamento do solo urbano é o procedimento
seguido para que uma determinada área, terreno ou gleba seja transformada
em trecho da cidade. É através desse parcelamento que se vai definir todo o
desenho urbano, ou seja, quais serão os coeficientes de área destinados a cada
uso específico (vias de circulação, logradouros, áreas verdes, equipamentos
comunitários e urbanos, dimensão e proporção dos lotes e quadras, etc.).
Por ser relativamente recente no ordenamento jurídico brasileiro (a lei
de parcelamento do solo urbano datando de 1979), acompanhante da ex-
pansão demográfica urbana nas metrópoles mundiais, com reflexos inter-
nos, ainda carece de maior observância a figura do parcelamento do solo
urbano por parte da maioria dos gestores públicos. Em outras cidades brasi-
leiras, por exemplo, encontramos o mesmo embaraço no tocante à temática
da urbanização: São Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Distrito Federal (DF) e

21 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p.
132-134.
96 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Fortaleza(CE).22 As adversidades levadas à tutela jurisdicional vão desde o


déficit democrático nas decisões sobre intervenções urbanas, até aprovações
de construções infringidoras de normas do Estatuto das Cidades e dos Pla-
nos Diretores das cidades envolvidas.
Recife, portanto, não enfrenta sozinho o problema da decisão acerca da
mais correta destinação a ser dada ao terreno de 101.700 m² correspondente
ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas (localizado no Cais da Avenida Enge-
nheiro José Estelita).

22 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 00017508120098260338.


Apelante: Carolos Luiz de Franca. Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator:
desembargador Encinas Menfré. Sao Paulo, 15 de dezembro de 2014. Publicado no Diário de Justiça
do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, 17 dez. 2014. Disponível em: <https://tj-sp.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/6770539/apelacao-criminal-apr-993080499136-sp/inteiro-teor-102137206?ref=serp>.
Acesso em: 29 jan. 2019. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso
Cível nº 71004382792/RS. Apelante: Carlos Alberto Álvaro Oliveira. Apelado: Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Relator: desembargador Carlos Eduardo Richinitti. Porto Alegre, RS, 26
de setembro de 2013. Publicado no Diário de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio
Grande do Sul, 27 set. 2013. Disponível em: <https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21345325/
recurso-civel-71003041936-rs-tjrs/inteiro-teor-21345326?ref=juris-tabs>. Acesso em: 29 jan. 2019.
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação Cível nº 20110111194435.
Apelante: Companhia Imobiliária de Brasília. Apelado: Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios. Relator: desembargador Sebastião Coelho. Brasília, DF, 11 de junho de 2015. Publicado no
Diário de Justiça do Distrito Federal, DF, 11 jun. 2015. Disponível em: <https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/
IndexadorAcordaos-web/sistj?argumentoDePesquisa=compania+imobiliaria+de+brasilia&visaoId=tjdf.
sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao. aAcordao&nomeDaPagina=buscaLivre&comando=
pesquisar&internet=1&camposSelecionados=ESPELHO&COMMAND=ok&quantidadeDeRegistros=
20&tokenDePaginacao=1>. Acesso em: 29 jan. 2019. CEARA. Tribunal de Justiça do Ceará. Apelação
Cível nº 0010166572011860101. Apelante: Banco ABN AMRO Real S.A. Apelado: Cláudia Regina Pereira
da Silva. Relatora: desembargadora Mareia Vilauba Fausto Lopes. Fortaleza, CE, 15 de setembro de 2011.
Publicado no Diário de Justiça do Estado do Ceara, 16 set. 2011. Disponível em: <http://www4.tjce.jus.
br/sproc2/paginas/ResContextoAcordao.asp?TXT_NUMERO=10166572-21.2011.8.06.0001&TXT_
RECURSO=1&Palavra=>>. Acesso em: 29 jan. 2019.
Especial - maio de 2019 | 97

4 O Ministério Público de
Pernambuco na batalha recifense
Nos idos de 1960 e 1970, um novo sistema de proteção aos direitos individu-
ais entrou em voga no cenário mundial: o Ombudsman. Originário dos pa-
íses nórdicos, trata-se de um órgão de fiscalização e recomendação da atua-
ção do Poder Público. Não tendo se soerguido do texto final da Constituição
da República de 1988 como um cargo próprio, tal como propunha a redação
do Anteprojeto Afonso Arinos,23 é certo que a Constituição Cidadã atribuiu
a função de fiscalização das atividades estatais ao Ministério Público, como
se pode confirmar em seu art. 129, incisos II e III:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos


serviços de relevância pública aos direitos assegurados nes-
ta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua
garantia;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a


proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos e coletivos;

Dessa forma, cabe ao Ministério Público brasileiro além da defesa do


regime democrático e da ordem jurídica, e da tutela os direitos humanos
fundamentais, a inequívoca fiscalização da atuação do poder estatal em suas
atividades.

23 MAZZILLI, Hugo. Regime Jurídico do Ministério Público. 7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
p. 85-87.
98 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Nas Promotorias de Cidadania dos Estados-Membros, volta-se a atenção


à garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos aos direitos fundamen-
tais expressos nas Constituições Federal e Estadual, fiscalizam-se os serviços
de relevância pública, e, ademais, zela-se pela probidade e legalidade admi-
nistrativas, bem como tutela-se o patrimônio público e social.24 O Ministério
Público, portanto, é detentor de legitimidade para tais atuações, por decor-
rência da letra constitucional, mas, também, amparado pelas Lei Federal nº
8.429/1992 (art. 17), Lei Federal nº 8.625/1993 (art. 25, IV, b) e Lei Comple-
mentar Federal nº 75/1993 (arts. 5º, III, a, b, c, d, e, 6º, VII, b).
Concernente à atuação do parquet pela tutela ambiental, por sua vez, é
cabível às Promotorias de Justiça a defesa dos interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos relacionados não somente com o meio ambiente
natural, como já outrora levantado, mas, de outros valores, artísticos, histó-
ricos, estéticos, turísticos e paisagísticos.25
Para a promoção dos valores humanos fundamentais detraídos do elen-
co desses direitos, o Ministério Público dispõe de meios próprios nessa atu-
ação cível: pode utilizar-se do inquérito civil; da ação civil pública; e do ter-
mo de ajustamento de conduta, cada qual apto a uma finalidade específica e
motivado por razões a serem desveladas no caso concreto.
Regulado pela Lei nº 7.347/1985, o Inquérito Civil é um procedimen-
to investigativo instaurado quando um membro do órgão ministerial tem
convincentes indícios de violação ou risco a um direito coletivo, social ou
individual indisponível, e no qual pode-se solicitar perícias, inspeções, oiti-
va de testemunhas, requisição de documentos, etc., no intuito de formar o

24 Conheça o MPPE. MPPE. Disponível em: <http://mppe.mp.br/mppe/cidadao/conheca-o-mppe e Lei


nº 8.625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público>. Acesso em: 29 jan. 2019.
25 GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 5ª ed. São
Paulo: Saraiva Jur, 2015.
Especial - maio de 2019 | 99

convencimento do parquet.26 Já o chamado Termo de Ajustamento de Con-


duta (TAC), refere-se a um compromisso firmado, através do MP, com o
violador de um determinado direito coletivo, a fim de impedir a continui-
dade da situação de ilegalidade, reparando o dano e evitando uma morosa
ação judicial. Além disso, o MP pode ajuizar Ação Civil Pública em caso de
descumprimento dos termos do TAC.27
A Ação civil Pública (ACP), considerada Ação Constitucional em senti-
do material,28 é regulada pela Lei nº 7.347/1985 e, integrativamente, tratada
também no Código de Defesa do Consumidor entre os artigos. 81 e 104.
Em princípio, a ACP se destina à tutela dos direitos coletivos, difusos e os
individuais homogêneos, comportando uma variedade de matérias de que
pode tratar. Sobre isso, explicam Daniel Mitidiero, Sérgio Cruz Arenhart e
Luiz Guilherme Marinoni:

Em verdade, não se trata de uma única ação, mas sim de um


conjunto aberto de ações, de que se pode lançar mão sempre
que se apresentem adequadas para a tutela desses direitos.
(…). A ação civil pública, pois, pode veicular quaisquer es-
pécies de pretensões imagináveis, sejam elas inibitória-exe-

26 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público Resolução do CNMP nº 23/2007. Conselho


Nacional do Ministério Público. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/forum-
nacional-de-gestao/atos-e-normas/resolucoes>. Acesso em: 29 jan. 2019.
27 BRASIL. Lei nº 7.347/1985, de 24 de julho de 1985, art. 5º, § 6º. Presidência da República, Brasília,
27 de julho de 1985. Publicado no DOU de 25 jul. 1985.BRASIL. Conselho Nacional do Ministério
Público. Recomendação do CNMP nº 16/2010, art. 14. Ambos disponíveis em: <http://www.cnmp.mp.br/
portal/institucional/forum-nacional-de-gestao/atos-e-normas/resolucoes>. Acesso em: 28 jan. 2019.
28 SARLET, Ingo W.; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
6ªed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017. p. 491-492.
100 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

cutiva, reintegratória, do adimplemento na forma específica,


ou ressarcitória...29

É a partir dessa versatilidade da Ação Civil Pública que podemos inferir


ser o meio judicial adequado para o fiscal da ordem jurídica na tutela
ambiental do patrimônio histórico-cultural, bem como para a proteção da
legalidade e probidade em atos administrativos.
Foi imbuído de todas essas atribuições constitucionais e infraconstitu-
cionais que, em 2012, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) ingres-
sou com uma Ação Civil Pública (ACP), com pedido de liminar em defesa
da ordem urbanística, contra o Município do Recife e o Novo Recife Em-
preendimentos Ltda., para que o Município do Recife se omitisse em prati-
car atos administrativos tendo como tema a área contemplada pelo Projeto
Novo Recife, no Cais José Estelita. Além disso, a Ação pedia a anulação das
reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) que aprovaram
o projeto, por deficiência na participação popular exigida pela Constituição
e pela legislação infraconstitucional.30
O MPPE requereu, assim, que fosse determinado ao município o efe-
tivo cumprimento do Regimento Interno do CDU e da legislação sobre o
tema, adotando as medidas necessárias a assegurar a participação popular
em todas as reuniões realizadas pelo Conselho, em especial, naquelas que
tenham por objeto a discussão e aprovação de projeto a ser implantado no
Cais Estelita.

29 ARENHART, Sérgio C.; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz G. Novo Curso de Processo Civil
– Vol.3 – Tutela dos Direitos Mediante Procedimentos Diferenciados. 3ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2017. p. 491-492.
30 Ação Civil Pública do MPPE no Processo nº 0195410-28.2012.8.17.0001, que tramitou na 7ª Vara da
Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Consulta in loco dos autos judiciais, por ocasião da
pesquisa PIBIC em 2017.
Especial - maio de 2019 | 101

É válido lembrar que o escopo da ACP não abarca o mérito do projeto,


questão técnica, que cabe aos órgãos especializados previstos em lei, mas,
destinar corretamente aquela parcela do solo urbano e garantir uma gestão
participativa do cidadão nas decisões municipais.
Através das atuações ministeriais federal e estadual, em conjunto com as
ações populares impetradas pela sociedade civil, o Cais José Estelita resiste
ao tempo das ações judiciais, ambas em trâmite, tanto no plano estadual
quanto no federal.
Quanto à ação civil pública do MPF, houve anulação do leilão que alie-
nou o terreno na sentença de primeiro grau (12ª Vara Cível da Seção Judici-
ária de Pernambuco). Após recurso do consórcio Novo Recife, no entanto, a
Quarta Turma do Tribunal Regional Federal – 5ª Região reformou o decisum
e resolveu pela legalidade da venda do terreno. O MPF, por seu turno, após
embargos de declaratórios à Quarta Turma do TRF – 5ª Região, recorreu
ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), porque, no seu entender, resta ino-
bservada a obrigatoriedade de licença do Instituto do Patrimônio Histó-
rico e Artístico Nacional (IPHAN) antes de qualquer alienação dos bens
públicos da extinta RFFSA. O Processo de numeração única nº 0001291-
34.2013.4.05.8300 aguarda julgamento pelo STJ.
No que concerne ao Processo nº 0195410-28.2012.8.17.0001, correspon-
dente à ACP do MPPE, os autos, físicos, aguardam decisão em primeira ins-
tância. Após a concessão da primeira antecipação de tutela, em 2013, a qual
sobrestou as reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano da Cidade
do Recife – que não atendiam às exigências de gestão democrática – repre-
sentou uma grande vitória ao defensor do povo.
102 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

5 Conclusões
Com sua última movimentação em maio de 2016, o processo do Cais Es-
telita, em trâmite na 7ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, ao mesmo tempo que denota a coerente atuação ministerial na
tutela do direito humano fundamental ao patrimônio histórico-cultural da
cidade do Recife, representa uma verdadeira resistência e organização popu-
lares em torno da destinação dada pelo Poder Público ao uso do solo urbano.
O contínuo reconhecimento de direitos humanos no plano internacional,
em suas gerações de direitos (civis e políticos; direitos sociais; e direitos de
solidariedade), embora necessite ainda de maior reflexão por parte dos di-
rigentes políticos, encontra dentro da estrutura estatal brasileira um órgão
especializado (o Ministério Público) em sua defesa e promoção, funcionando
como fiscal da atuação governamental, ou seja, o dito Ombudsman do povo.
É através da efetivação dos direitos humanos fundamentais que é possí-
vel o despertar para a consciência ambiental, para a justiça social e a conser-
vação da memória histórica, posto serem, em última análise, requisitos para
o exercício pleno da cidadania.
O notório interesse demonstrado pela sociedade civil nessas intervenções
urbanísticas foi mais um fator que legitimou a atuação ministerial na batalha
da população recifense contra a privatização irrefreada do espaço público.
A proteção dos direitos humanos, por fim, é fundamental, porque, do
contrário, estaremos fadados à obscuridade dos piores instintos, com rom-
pantes de egoísmo e desrespeito aos mais vulneráveis.
A recorrência ao Judiciário por meio de um órgão atuante como o MP,
fortalecido pela própria Constituição Federal, representa verdadeira concre-
tização do direito humano de acesso ao valor justiça e um avanço civilizató-
rio indescritível nesses pouco mais de 70 anos de Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Especial - maio de 2019 | 103

REFERÊNCIAS
AMORIM, Fabiano. Entenda o Problema do Cais José Estelita. Diário do Centro
do Mundo. Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/entenda-
-o-problema-do-cais-jose-estelita/>. Acesso em: 29 jan 2019.

ANNAN, KOFI. Kofi Annan announces the launch of the UN Global Compact.
Livre tradução. Global Compact Twitter. Vídeo disponível em: https://twitter.com/
globalcompact/status/1030857319389831170. Acesso em: 29 jan. 2019.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16ª edição. São Paulo: Editora
Atlas, 2014.

ARENHART, Sérgio C.; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz G. Novo Curso de


Processo Civil – Vol.3 – Tutela dos Direitos Mediante Procedimentos Diferen-
ciados. 3ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2017.

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do


Direito. 10ª ed. São Paulo: Atlas Editora, 2012

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson


Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2004.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial nº 1.359.534/


MA (2016/0208175-5). Apelante: CONAN – Companhia de Navegação do Norte.
Apelado: Ministério Público. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 18 de outu-
bro de 2016. Diário de Justiça, Brasília, DF, 24 out. 2016. Disponível em: <https://
ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 29 jan. 2019.
104 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

________. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução do CNMP nº


23/2007. Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em: <http://www.
cnmp.mp.br/portal/institucional/forum-nacional-de-gestao/atos-e-normas/resolu-
coes>. Acesso em: 29 jan. 2019.

________. Lei nº 7.347/1985, de 24 de julho de 1985, art. 5º, § 6º. Presidência da


República, Brasília, 27 de julho de 1985. Publicado no DOU de 25.7.1985. Dispo-
nível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/forum-nacional-de-gestao/
atos-e-normas/resolucoes>. Acesso em: 29 jan. 2019.

CEARA. Tribunal de Justiça do Ceará. Apelação Cível nº 0010166572011860101.


Apelante: Banco ABN AMRO Real S.A.. Apelado: Cláudia Regina Pereira da Silva.
Relatora: desembargadora Mareia Vilauba Fausto Lopes. Fortaleza, CE, 15 de se-
tembro de 2011. Publicado no Diário de Justiça do Estado do Ceará, 16 set. 2011.
Disponível em: <http://www4.tjce.jus.br/sproc2/paginas/ResContextoAcordao.as-
pXT_NUMERO=10166572-21.2011.8.06.0001&TXT_RECURSO=1&Palavra=>>.
Acesso em: 29 jan. 2019.

CISNEIROS, Leonardo. Carta dos Direitos Urbanos à Câmara Municipal sobre o


Plano Urbanístico para o Estelita. Direitos Urbanos. Disponível em: <https://direi-
tosurbanos.wordpress.com/2015/04/11/carta-do-direitos-urbanos-a-camara-muni-
cipal-sobre-o-ple-no-082015/>. Acesso em: 29 jan. 2019.

MPPE. Conheça o MPPE. Disponível em: <http://mppe.mp.br/mppe/cidadao/co-


nheca-o-mppe e Lei nº 8.625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Públi-
co>. Acesso em: 29 jan. 2019.

COSTA, Marcos. A Privatização do Espaço Público. Jornal GGN. Disponível em:


<https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-privatizacao-do-espaco-publico>.
Acesso em: 29 jan. 2019.
Especial - maio de 2019 | 105

DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação Cível nº


20110111194435. Apelante: Companhia Imobiliária de Brasília. Apelado: Minis-
tério Público do Distrito Federal e Territórios. Relator: desembargador Sebastião
Coelho. Brasília, DF, 11 de junho de 2015. Publicado no Diário de Justiça do
Distrito Federal, DF, 11 jun. 2015. Disponível em: <https://pesquisajuris.tjdft.jus.
br/IndexadorAcordaos-web/sistj?argumentoDePesquisa=compania+imobiliaria+-
de+brasilia&visaoId=tjdf.sistj.acagina=buscaLivre&comando=pesquisar&inter-
net=1&camposSelecionados=ESPELHO&COMMAND=ok&quantidadeDeRegis-
tros=20&tokenDePaginacao=1>. Acesso em: 29 jan. 2019.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14ª edi-


ção. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

FARIAS, Talden; COUTINHO, Francisco Seráphico da Nóbrega; MELO, Geórgia


Karênia R. M. M. Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2014.

Redação Folha de Pernambuco. Movimentação de Carga Cresce 72% este ano no


Porto do Recife. FolhaPE. Disponível em: <http://www3.folhape.com.br/economia/
economia/economia/2017/05/11>./NWS,27109,10,550,ECONOMIA,2373-MOVI-
MENTACAO-CARGA-CRESCE-ESTE-ANO-PORTO-RECIFE.aspx>. Acesso em:
29 jan. 2019.

GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídi-


co. 5ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2015.

Globo Nordeste. PF Investiga Compra de Terreno no Cais José Estelita no Recife.


G1 PE. Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/09/pf-in-
vestiga-compra-de-terreno-do-cais-jose-estelita-no-recife.html.> Acesso em: 29
jan. 2019.
106 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

KARBASSI, Lila. Social Sustainability. UN Global Compact. Disponível em: <ht-


tps://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/our-work/social>. Acesso em: 29 jan.
2019.

MAZZILLI, Hugo. Regime Jurídico do Ministério Público. 7ª ed. São Paulo:


Editora Saraiva, 2012.

MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade – Anotações à Lei n. 10.257/2001. 3ª ed.


São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

OLIVEIRA, Bruna Pinotti Garcia; LAZARI, Rafael de. Manual de Direitos Huma-
nos. 3ªed. São Paulo: Juspodivm Editora, 2017.

PERLATTO, Fernando. Autoimperialismo Nacional e as Cidades Brasileiras.


Revista Escuta. Disponível em: <https://revistaescuta.wordpress.com/2016/07/19/
escuta-resenha-autoimperialismo-nacional-e-as-cidades-brasileiras/>. Acesso em:
29 jan. 2019.

PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Pro-


priedade. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional.


16ªedição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso Cível
nº 71004382792/RS. Apelante: Carlos Alberto Álvaro Oliveira. Apelado: Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: desembargador Carlos Eduar-
do Richinitti. Porto Alegre, RS, 26 de setembro de 2013. Publicado no Diário de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 27 set.
Especial - maio de 2019 | 107

2013. Disponível em: <https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21345325/re-


curso-civel-71003041936-rs-tjrs/inteiro-teor-21345326?ref=juris-tabs>. Acesso em:
29 jan. 2019.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº


00017508120098260338. Apelante: Carolos Luiz de Franca. Apelado: Ministério
Público do Estado de São Paulo. Relator: desembargador Encinas Menfré. São
Paulo, 15 de dezembro de 2014. Publicado no Diário de Justiça do Estado de
Sao Paulo, São Paulo, SP, 17 dez. 2014. Disponível em: <https://tj-sp.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/6770539/apelacao-criminal-apr-993080499136-sp/intei-
ro-teor-102137206?ref=serp>. Acesso em: 29 jan. 2019.

SARLET, Ingo W.; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ªed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2012.
Especial - maio de 2019 | 109

O MINISTÉRIO PÚBLICO E O
DIREITO HUMANO À SAÚDE DA
PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE
NO SISTEMA PRISIONAL

IRENE CARDOSO SOUSA JÚLIO CÉSAR SOARES LIRA

48ª Promotora de Justiça 5º Promotor de Justiça Criminal


Criminal da Capital, especialista de Petrolina/PE. Especialista
em Direito Constitucional pela em Direito Público pela
Universidade Federal do Piauí. Universidade do Estado da
E-mail: irenes@mppe.mp.br. Bahia (UNEB) – Campus
Juazeiro/BA, Professor de
Direito Penal e Criminologia
da mesma instituição. E-mail:
juliol@mppe.mp.br.
110 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O artigo aborda a necessidade de interação entre os membros do Ministério


Público pernambucano para uma atuação mais eficiente relativa à conse-
cução do Direito Humano à Saúde das pessoas privadas de liberdade que
estão inseridas no sistema prisional estatal. Visa também analisar os mar-
cos constitucionais e infraconstitucionais que determinam o regramento da
assistência à saúde dos reeducandos, enfatizando a imprescindibilidade de
cumprimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, propondo, ao final, uma forma
de atuação norteada na eficiência e eficácia.

PALAVRAS-CHAVE: Ministério Público; Atuação do Ministério Público


na Defesa dos Direitos Humanos; Direito à Saúde; Execução Penal.
Especial - maio de 2019 | 111

1 Introdução
Trazemos neste artigo o espírito do compromisso firmado há 70 anos na
Assembleia Geral das Nações Unidas, que, reunida em Paris, em 10 de de-
zembro de 1948, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos:

como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as


nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos
da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esfor-
cem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respei-
to desses direitos e liberdades e por promover, por medidas
progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reco-
nhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre
as populações dos próprios Estados membros como entre as
dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

Inobstante o texto traga apenas referências a direitos humanos e funda-


mentais, elencar o direito à saúde como égide de um tratado internacional é
trazer à tona uma garantia que até então não tinha esse enfoque, além do que
a conceituação de saúde fez refletir que a abordagem ultrapassa a falta de do-
ença e passa pela garantia de direitos a serem exercidos com garantias globais.
Assim, quando surgem diplomas legais como a Lei de Execuções Penais
(LEP), é princípio norteador a garantia desses direitos básicos. Nesse dia-
pasão o art. 14 da LEP é preciso quando assegura que o preso e o internado
terão assistência à saúde, seja no próprio estabelecimento penal, quando es-
tiver aparelhado para prover tal assistência, seja em outro estabelecimento,
quando, por evidente, não existirem condições na unidade prisional. A LEP
garante o acompanhamento médico à mulher, inclusive, no pré-natal e no
pós-parto, como também ao recém-nascido.
112 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Porém, não obstante o mandamento legal, não é desconhecido de nin-


guém, mesmo para aqueles membros do MPPE que não trabalham direta-
mente com a execução da pena, notadamente a privativa de liberdade, que
nossas cadeias públicas, presídios, penitenciárias não possuem espaços físi-
cos condizentes com a dignidade da pessoa humana, nem recursos materiais
e humanos suficientes para assistência à saúde, à educação, religiosa e so-
cial01, como também não possibilita a garantia de todos os direitos elencados
no art. 41 da LEP.
No dizer de Zaffaroni02:

A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como


uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia
cuja principal característica é a regressão, o que não é difícil
de explicar. O preso ou o prisioneiro é levado a condições de
vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privada de
tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente e com limi-
tações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão,
comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondên-
cia, manter relações sexuais etc.). É também ferido em sua
autoestima de todas as formas imagináveis, pela perda da
privacidade, de seu próprio espaço e submissões a revistas
degradantes. A isso, juntam-se as condições deficientes de
quase todas as prisões: superlotação, alimentação paupérri-
ma, falta de higiene e assistência sanitária etc., sem contar as
discriminações em relação à capacidade de pagar por aloja-
mentos e comodidades. O efeito da prisão, que se denomina

01 Art. 11, da Lei 7.210/84.


02 Zaffaroni, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Ed. Revan. 5ª Edição. p. 135/136.
Especial - maio de 2019 | 113

prisionização, sem dúvida é deteriorante e submerge a pes-


soa numa “cultura de cadeia”, distinta da vida do adulto em
liberdade.

Pois bem, diante dessa constatação, urge também que o Ministério Pú-
blico pernambucano cumpra o seu mister, buscando promover a garantia
aos direitos fundamentais do preso, que, por certo, não são alcançados pe-
los efeitos da sentença penal condenatória, notadamente quanto ao direito à
saúde, conscientizando, primeiro, os próprios membros do parquet pernam-
bucano da necessidade de se importar com a dignidade do recluso ou inter-
nado; e, logo em seguida, se dispondo a buscar a concretização da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no
Sistema Prisional (PNAISP).
O que se propõe, portanto, é apresentar um modelo que possibilite aos
membros do Ministério Público que tenham ou não (cabe também aos pro-
motores de Justiça Criminais em face dos presos provisórios) atribuições na
execução penal de garantir, de forma efetiva e eficiente, o direito à saúde ao
preso e ao internado que estejam sob a égide do sistema prisional, buscando,
assim, cumprir a legislação pertinente.
Demonstrar, ainda, que a amplitude legal do papel do Ministério Público
no âmbito da execução da pena o permite tomar para si o protagonismo de
garantir a assistência à saúde do recluso.
Buscar-se-á, destarte, apresentar uma proposta para que os promotores
de Justiça possam dar efetividade a um direito tão primário para a dignida-
de do preso, procurando acabar com o hiato existente entre a legislação e a
realidade nua e crua observada em quase todos os Estados do nosso País,
onde o próprio Estado, as instituições e a própria sociedade negligenciam,
não se importam, com o que ocorre intramuros das masmorras, apelidadas
de presídios ou penitenciárias.
114 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Almeja-se aqui que as propostas lançadas, adaptadas à realidade do nos-


so Estado de Pernambuco, possam servir para que a Procuradoria-Geral de
Justiça, a Corregedoria-Geral do Ministério Público, com o apoio do Centro
de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça Criminais (CAOPCrim)
e do Grupo de Atuação Especial da Execução Penal (GAEP), promovam
e fomentem o cumprimento da legislação pertinente, proporcionando aos
promotores de Justiça que assumam o protagonismo da garantia da assistên-
cia à saúde do preso e do internado, o que, certamente, contribuirá para hu-
manizar o cumprimento da pena privativa de liberdade e, em última análise,
de maneira decisiva, na reintegração social do reeducando.

2 Do papel do Ministério Público na


Execução Penal
O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdi-
cional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis03.
Para tal mister importa ressaltar que o Ministério Público possui uma
atividade fiscalizadora em toda a sua atividade funcional, quer na esfera ci-
vil, quer na esfera penal. Sempre que estiver envolvido numa relação jurídi-
ca litigiosa, em um conflito de interesses, uma norma de ordem pública ou
um direito indisponível, irrenunciável, impõe-se a função fiscalizadora do
parquet. Porém, para fiscalizar, o Ministério Público poder requerer e então
passa a ser, diretamente, parte processual, ou pode intervir. Renan Severo
Teixeira da Cunha, apud Julio Fabbrini Mirabete04, afirma que “pouco im-

03 Art. 127, caput, da CF/88.


04 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. Editora Atlas. 11ª Edição. p. 227.
Especial - maio de 2019 | 115

porta que para essa fiscalização vista as roupagens de parte requerente ou de


órgão interveniente; sempre será órgão fiscalizador, com todas as consequ-
ências dessa atividade”.
Com relação à função fiscalizadora do Órgão Ministerial na Execução
Penal, consoante a disposição do art. 67 da LEP, “o Ministério Público fis-
calizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no pro-
cesso executivo e nos incidentes de execução”. Cabe inferir, então, que se
lhe incumbe atuar em todo o processo executivo, isto é, desde o início do
cumprimento da pena – art. 195 da LEP05 – até seu final, com a consequente
extinção da punibilidade do sentenciado.
Na lição de Mirabete06:

...Confere-se ao parquet a função de promover a observância


do direito objetivo, atuando imparcialmente na verificação
dos requisitos legais para o estrito cumprimento do título
executivo penal. Como na execução penal entra em jogo
um interesse público primário, que envolve um direito ir-
renunciável do condenado (status libertatis), é possível que
se estabeleça uma situação em que se pretenda, como inte-
resse público secundário, alterar ou mesmo extinguir os li-
mites traçados no título executório. Nem sempre o interesse
da Administração com os interesses genéricos e maiores de
toda a coletividade, devendo o Ministério Público defender
estes, orientando sua fiscalização para que se perfaça a exata
aplicação da lei penal, processual e de execução penal.

05 Art. 195. O procedimento judicial iniciar-se-á de ofício, a requerimento do Ministério Público, do


interessado, de quem o represente, de seu cônjuge, parente ou descendente, mediante proposta do Conselho
Penitenciário, ou, ainda, da autoridade administrativa.
06 MIRABETE. Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 227/228.
116 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

E arremata o festejado autor:

A função fiscalizadora do Ministério Público não poderia ser


executada se não se lhe dessem os meios para essa atividade
fundamental. Assim, como corolário do disposto no art. 67,
deve o órgão ser intimado de todas as decisões exaradas no
curso do processo executivo, quer sejam jurisdicionais, quer
sejam administrativas. Na primeira hipótese, cabe-lhe ainda
opinar previamente, requerer e recorrer das decisões do juiz.
Na segunda, pode valer-se dos meios processuais previstos
na lei de execução, principalmente o procedimento judicial
para apurar excesso ou desvio, representar às autoridades
administrativas superiores contra ato abusivo de qualquer
funcionário e requisitar providências da Administração Pú-
blica quando necessário.

Podemos, assim, divisar duas possibilidades de intervenção ministerial


na execução da pena, sendo a primeira relativa à possibilidade de requerer
deliberações judiciais relacionadas à concessão ou revogação de benefícios,
instauração de incidentes, conversões e quaisquer outras providências que
digam respeito ao desenvolvimento do processo executivo; e a segunda no
sentido de intervir, mediante manifestações, em relação a situações que se
materializam no processo de execução criminal que decorrem de pretensões
do próprio apenado ou do seu defensor, como também, a partir de interven-
ções do conselho da comunidade, do pronunciamento do Conselho Peni-
tenciário, de provocações ex officio do juiz da execução, entre outras.
Além da disposição genérica trazida no art. 67 da LEP em vários outros
dispositivos da Lei de Execução Penal se reclama expressamente a necessida-
de de intervenção do Órgão do Ministério Público, previamente ao pronun-
Especial - maio de 2019 | 117

ciamento judicial. São casos de expressa determinação da LEP, por exemplo,


a progressão de regime prisional (art. 112, § 1º, da LEP), da saída temporária
(art. 123 da LEP), da remição (art. 126, § 8º, da LEP) e extinção da medida
de segurança em face da cessação da periculosidade (art. 175, III, da LEP).
A ausência de manifestação do Ministério Público em todas as fases re-
lativas à execução da pena, conforme consolidada jurisprudência, é causa de
nulidade absoluta.
Temos ainda as disposições do art. 68 da LEP, que trazem uma série de
atribuições do Ministério Público, em um rol que é meramente exemplifi-
cativo, abrangendo situações que, inclusive, já estariam previstas no próprio
art. 67, em razão da sua amplitude genérica, considerando-se até desneces-
sário descrever as hipóteses daquele artigo da Lei de Execução Penal.
É possível concluir-se, então, que as funções do membro do Ministério
Público no campo das Execuções Penais são mais amplas que aquelas que os
próprios dispositivos legais da LEP enumeram, posto que está autorizado,
inclusive pela natureza intrínseca do seu mister de defensor dos interesses
primários da sociedade, a atuar nas questões não judicializadas da execução
da pena, como é o caso de induzir as políticas públicas de assistência à saúde
das pessoas privadas de liberdade inseridas no sistema prisional.

3 Do papel do Ministério Público


na assistência à saúde das pessoas
privadas de liberdade no Sistema
Prisional
A fiscalização do Ministério Público nas execuções penais dá-se, portanto,
de duas formas distintas: uma é o velamento da execução da pena em si e
118 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

das medidas de segurança (oficiando no processo executivo e nos incidentes


de execução); o outro é o acompanhamento nas condições de cumprimento
dessa pena, principalmente de aspectos verificados na visita mensal obriga-
tória. O enfoque nesse último caso é a tutela coletiva de saúde, na confor-
midade da Resolução RES-CPJ 001/2002, publicada no Diário Oficial do
Estado de Pernambuco do dia 22 de fevereiro de 2002.
Constituem direitos do preso: a alimentação suficiente, o vestuário, a as-
sistência material à saúde, conforme art. 41, I e VII, da Lei n. 7.210/84, Lei
de Execução Penal. A garantia ao direito à assistência material e à saúde
das pessoas em privação de liberdade (PPL) consiste no fornecimento pelo
Estado de alimentação, da manutenção das instalações higiênicas, além do
atendimento médico, farmacêutico e odontológico preventivo e curativo,
disposição dos artigos 12 a 14 da Lei n. 7.210/84.
O artigo 196 da Constituição Federal assevera que: “A saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário as ações e serviços para sua promoção, proteção e recu-
peração”. Tal preceito é complementado pela Lei n. 8.080/90, que estabelece
princípios e diretrizes para a saúde em nosso País, em seu artigo 2º: “A saúde
é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condi-
ções indispensáveis ao seu pleno exercício”.
Mediante a criação do SUS pela supracitada lei, estabeleceu-se uma di-
visão de tarefas no que tange ao fornecimento de ações de saúde, assistên-
cia e vigilância, de maneira que o sistema básico de saúde fica a cargo dos
municípios (ações, vigilância e medicamentos básicos), o fornecimento de
ações de média e alta complexidade e a garantia de qualidade compete aos
Estados federados e ao Distrito Federal, e a regulamentação especial com-
pete à União. A lei indica, indubitavelmente, a composição de um sistema
único, que segue uma diretriz clara de descentralização, com direção única
para cada esfera de governo.
Especial - maio de 2019 | 119

Nesse âmbito, foram definidos os papéis das esferas governamentais na


busca da saúde, considerando-se o município como o responsável imediato
pelo atendimento das necessidades básicas de assistência, vigilância e mo-
nitoramento, o Estado como responsável pela atenção às necessidades espe-
ciais, as de caráter hospitalar e o controle da qualidade destas ações.
Com o intuito de garantir o direito constitucional à saúde e o acesso com
equidade, integralidade e universalidade e organizar as ações e serviços de
saúde dentro dos estabelecimentos penais, o Estado de Pernambuco aderiu
à nova Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas
de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS) mediante Portaria nº 2.274, de 17 de outubro de 2014. O
SUS estadual deve colaborar com a Vigilância Sanitária local em todos os
aspectos que seja requerido e é o titular de responsabilidades pela reforma e
adequação das áreas de interesse para a saúde nas unidades prisionais per-
nambucanas.

4 Da assistência à saúde. Da atenção


básica à saúde. Da Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde das
Pessoas Privadas de Liberdade no
Sistema Prisional
Em 2003 foi criado o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário
(PNSSP), pelo qual as ações e serviços de saúde ficaram sob a responsabi-
lidade do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça. À época, o siste-
ma prisional adotava uma postura que caminhava em direção contrária aos
princípios de saúde, que constam na inserção do paciente no SUS para trata-
120 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

mento de saúde no território. Essa saída do SUS transferiu para as secretarias


de ressocialização dos Estados a responsabilidade de contratar profissionais
e até de fazer exames. Tal prática inviabiliza o verdadeiro sentido da saúde,
que não é só tratar doença, mas inclusive preveni-las; ações fortemente re-
alizadas no SUS, que possui por princípio esta forma de trabalho. Quando
a saúde de uma prisão fica a cargo de uma secretaria de ressocialização, que
não tem prática na área de saúde, as ações, geralmente, são apenas na cura
da doença, que não é mais sinônimo de saúde. Hoje as práticas preventivas
são realizadas apenas em campanhas nacionais, como a vacinação contra a
gripe, ficando o presídio fora das ações preventivas do município no qual
está localizado.
As políticas públicas do Ministério da Saúde voltadas para a população
privada de liberdade têm passado por inovações. Em 2014, foi publicada a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liber-
dade no Sistema Prisional (PNAISP), com o objetivo de garantir o acesso das
pessoas privadas de liberdade no sistema prisional ao cuidado integral do
Sistema Único de Saúde, ou seja, no território da atenção básica.
Hoje, a principal missão do Ministério Público de Execução Penal é fazer
a discussão do retorno do preso ao SUS. Em Pernambuco, há de se avaliar
os motivos pelos quais a SERES ainda detém toda a estrutura de saúde do
sistema prisional, avaliar as responsabilidades e autonomia da secretária de
saúde estadual, assim como os processos de municipalização, e, em conjun-
to, abrir procedimento específico para acompanhar o retorno das unidades
prisionais para o SUS. O Ministério da Saúde deposita a verba na conta da
Secretaria Estadual de Saúde, que a transfere para a SERES e esta executa a
saúde no sistema prisional, num jogo de transferência de responsabilidade
em que o principal perdedor é o preso que é atendido na rede SUS como
alguém fora do sistema.
Especial - maio de 2019 | 121

5 Da proposta para a atuação eficaz


e eficiente do Ministério Público na
garantia do direito à assistência à
saúde
Para entender melhor a complexidade da necessidade de atuação do Minis-
tério Público na área de saúde numa unidade prisional, elencaremos algu-
mas situações demandadas na promotoria de execução penal. A primeira
refere-se à garantia do objetivo-geral da PNAISP, que é o acesso das pessoas
privadas de liberdade no sistema prisional ao cuidado integral no SUS. O
promotor de Execução Penal também pode atuar em questões específicas,
como a fiscalização constante da equipe mínima, conforme preconizado na
Portaria n. 482 de 1º de abril de 2014, que institui normas para a operacio-
nalização da PNAISP, no âmbito do SUS.
Quanto aos profissionais que atuam na área da saúde, dentro desse pro-
grama, não poderemos remeter para o patrimônio público exigindo concur-
so porque é peculiar e transitório a saúde como responsabilidade da SERES.
Segue mais uma explicação indispensável. Conforme salientado acima, em
2004, foi transferida a responsabilidade da saúde no sistema prisional do
Ministério da Saúde, através do SUS, para o Ministério da Justiça, no âmbito
estadual para a SERES. Em 2014, depois de constatada a falta de estrutura de
uma Secretaria de Justiça para atender a demandas de médico, enfermeiro,
remédios, rotinas das mais diversas, houve a tentativa de retorno para o âm-
bito do SUS, o que já não era tão simples. Para que um município receba um
novo encargo há de aceitar pactuar, e hoje é extremamente difícil um gestor
aceitar administrar a saúde de uma unidade prisional, sequer aceita a prisão
no seu território quanto mais prover a saúde. Então, apenas um município
no Estado de Pernambuco pactuou, Canhotinho.
122 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

E hoje a saúde está num limbo entre Estado e município, pois o Estado
faz repasse fundo a fundo para a SERES. Os problemas maiores são de pa-
gamento de pessoal, pois a SERES não tem competência para pagar a mais
como compensação por algumas funções como, por exemplo, farmacêutico.
Outra forma de remuneração teria como ser feita por uma Secretaria Esta-
dual de Saúde, e isso trava o trabalho por conta da rotatividade de pessoal
que hoje acontece nos presídios. Não se pode exigir concurso para a área
de saúde porque não é vocação da SERES contratar médicos ou outros pro-
fissionais, além do que o plano é de retorno para o município da gestão da
saúde, estando provisoriamente na SERES. A Secretaria Estadual de Saúde
de Pernambuco em 2018 assumiu a compra e distribuição de remédios, eis
que já possuía rede e formas de compras apropriadas e inseriu as unidades
prisionais, depois de uma crise terrível de abastecimento de medicamentos
nos presídios e cadeias, causando diversos prejuízos em PPL que faziam uso
continuado de medicações controladas, mister os com transtornos mentais.
A SSE mantém também alguns profissionais, que estão em cada enfermaria,
para manter o diálogo entre âmbito estadual e municipal, além de interferir
com algumas especialidades, como foi em 2017 a contratação, a pedido do
MP, de um médico infectologista que assumiu várias unidades como forma
de controle de doenças infectocontagiosas que estavam se alastrando. São
algumas soluções pontuais que foram surgindo. Sobre esse fato foi encami-
nhado à promotoria de saúde da capital o pedido de intervenção junto à
Secretaria de Saúde para que fizesse uma sensibilização aos municípios no
sentido de pactuar a gestão da saúde nas unidades prisionais. Alguns aju-
dam informalmente, como é o caso de Abreu e Lima, município onde está
localizado o COTEL, que contribui com alguns insumos e medicamentos.
Hoje a equipe, na maioria das unidades, está completa, urge explicar que
esse acompanhamento é constante porque por vezes um profissional desli-
gado demora a ser reposto. Até porque os baixos salários não são atrativos
para um profissional atuar em uma unidade de difícil acesso.
Especial - maio de 2019 | 123

Mais um exemplo é o acompanhamento da divisão das origens de con-


tratação dos profissionais do setor psicossocial. Não é fácil visualizar numa
unidade prisional qual assistente social é contratado com verba da saúde
para trabalhar na saúde e qual é contratado para trabalhar na unidade fa-
zendo serviço social exigido pela Lei de Execução Penal. Não havia diferen-
ça, causando uma preocupação principalmente para não haver desvio de
função. Há que se entender essas equipes, suas necessidades, seu trabalho
e sua missão dentro de uma unidade prisional, há necessidade de perquirir
sobre um concurso público para área do psicossocial que não tenha deman-
da específica na saúde. Conforme preconiza a Lei de Execução Penal e o art.
45 do código Penitenciário do Estado de Pernambuco, que exige a equipe
multiprofissional para fins de ressocialização e classificação do reeducando.
Também há uma enorme a luta para assistente social e psicólogo não ficar
fazendo carteirinha de visitação de preso, pois essa função é administrativa e
caracterizaria desvio de função. Toda a fiscalização quanto a esse tema é foco
do Ministério Público, que acredita na força desse profissional para ajudar
na ressocialização e aproximação do PPL da família e da sociedade.
Por trás de uma notícia de fato em que a companheira de um PPL in-
formava que tinha supostamente sofrido maus tratos pelos agentes peni-
tenciários no hospital quando em visita ao seu companheiro que estava em
custódia hospitalar há vários desdobramentos. Como funcionava a custódia
hospitalar? Quem as fazia? Essa custódia por agentes plantonistas era em
prejuízo dos poucos destinados ao plantão do dia na unidade prisional? A
regulação dessa custódia hospitalar estava a cargo de que setor na SERES?
Quem da família teria acesso ao PPL dentro do hospital enquanto estivesse
custodiado? Após a internação para cirurgia esse PPL voltava várias vezes
para ser internado, porque essa pessoa era mais tendente a estar sempre in-
ternado, como prevenir esses eternos retornos? Tudo desdobrado através de
uma notícia de fato que, se tratada individualmente, não teria utilidade para
124 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

a execução penal. Essa perspectiva demonstra a importância do enfoque


desse trabalho no âmbito do Ministério Público de Pernambuco.
Outro problema bastante comum na rotina carcerária é a dificuldade no
comparecimento a consultas por falta de escolta, em razão do reduzido nú-
mero de agentes penitenciários. Entender a questão da custódia hospitalar
revela um esforço hercúleo para atender o acesso à saúde de 32 mil presos
no Estado, pois para cada PPL internado são destinados 4 agentes penitenci-
ários por dia, além do motorista que faz o transporte dos agentes na troca de
plantões, e todos eram, até 2016, destacados do plantão da unidade, restan-
do hiperdefasada a segurança da unidade com menos agentes disponíveis.
O MP cobrou a implementação de central de custódia hospitalar, em que o
agente penitenciário não seria deslocado do plantão de nenhuma unidade
quando houvesse necessidade de custódia.
Foi verificada também a necessidade de padronização dos laudos mé-
dicos, que eram feitos à mão pelos médicos, muitas vezes ilegíveis, o que
dificultava a análise de pedido de prisão domiciliar, além do que não eram
diretos quanto à análise da gravidade da doença, único aspecto legal que
era analisado pelo Ministério Público para dar parecer sobre o pedido da
defesa. Além disso, os pedidos vinham sem o parecer do diretor da unidade,
o que fazia demorar a análise do pedido acarretando mais escoltas e mais
custódia hospitalar quando fosse o caso de uma prisão domiciliar. Além da
necessidade de urgência na análise da demanda pelo judiciário nos casos
que envolvessem problemas de saúde.
Outra grande questão é o tratamento de tuberculose no sistema prisio-
nal, pois ocasionalmente ocorrem surto nas unidades. Para um promotor
de Justiça Criminal entender o que é um GENEXPERT, o que é uma busca
ativa, porquê a necessidade de tomada de medicamento assistido e do isola-
mento e porquê um local que tem mais de 3000 pessoas pode ser um enor-
me risco caso haja um surto de tuberculose, porquê essas pessoas recebem
Especial - maio de 2019 | 125

visitas que voltam para sociedade e participam do nosso cotidiano demons-


trando que em tema de sistema carcerário não existe mais lá dentro, todos
se comunicam. Ademais alguns PPL são presos provisórios e circulam nos
fóruns nos dias de audiência, e por fim, são cidadãos com direito à saúde.
A superlotação nos presídios, penitenciárias e cadeias prejudica o trata-
mento de doenças de pele, infectocontagiosas e marcação de consultas.
Em relação aos presos provisórios que necessitem de Prisão Domiciliar,
faz-se necessário um diálogo permanente com os diversos promotores de
centrais de inquérito e criminais, para que nesse contato direto sejam perce-
bidas as práticas e rotinas de saúde das unidades prisionais e principalmente
suas deficiências, pois, por exemplo, um preso que necessite de três hemo-
diálises de quatro horas por semana, demandaria para o sistema pelo me-
nos dois agentes penitenciários e um motorista para essa custódia hospitalar
rotineira. Promover um diálogo efetivo em todo o Ministério Público faria
o promotor de Justiça criminal ter no promotor de execução um referencial
para a decisão dessa prisão domiciliar, pois na maioria dos casos os presídios
localizam-se em área muito distante dos fóruns.
Também é necessária a comunicação para entre os promotores criminais
e a promotoria de saúde da comarca para fomentar a discussão do acompa-
nhamento das unidades prisionais pelo SUS.

6 Conclusão
O fim precípuo desse artigo, destarte, foi o de demonstrar que há neces-
sidade de que o Ministério Público de Pernambuco concretize o direito à
saúde da pessoa privada de liberdade no sistema prisional, fazendo cumprir
a legislação pertinente.
Demonstrou-se que a maneira de se lograr êxito no desiderato proposto
é a interação de ações entre a Procuradoria-Geral de Justiça, a Corregedo-
126 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

ria Geral do Ministério Público, a Escola Superior do Ministério Público


(ESMP), o CAOPCrim, o CAOP Saúde, o GAEP, e, ainda, contando com
o apoio e colaboração das Promotorias de Justiça Criminais, das Promoto-
rias de Justiça de Execução Penal e das Promotorias de Justiça de Cidadania
(Curadoria dos Direitos Humanos e Curadoria da Saúde). Cada órgão, evi-
dentemente, dentro das suas respectivas esferas de atribuição, a quem cabe
encetar ingentes esforços no sentido de assumir o protagonismo da garantia
ao direito fundamental à saúde das pessoas privadas de liberdade no âmbito
do sistema prisional.
O Ministério Público pernambucano, com o propósito de priorizar essas
ações, deverá inserir a efetivação do direito à saúde das pessoas privadas de
liberdade no sistema prisional no seu planejamento estratégico, estabelecen-
do plano de ação e metas para a consecução do objetivo estratégico de fazer
cumprir a legislação pertinente.
O Ministério Público pernambucano implementará ações coordenadas
e sistematizadas tendentes a garantir o direito à saúde da pessoa privada de
liberdade no sistema prisional, por meio de realização de seminários, pa-
lestras, audiências públicas, etc., para sensibilizar os seus membros sobre a
importância de garantir desse direito fundamental, visando o cumprimento
das diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Siste-
ma Único de Saúde (SUS).
Especial - maio de 2019 | 127

REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto. Execução Penal. Editora Método.

BUCH, João Marcos. Execução Penal e Dignidade da Pessoa Humana. Estádio


Editora.

Código Penal. Revista dos Tribunais. Edição 2015

CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal. Ed. Jus Podivm, 4ª edição.

FARIA, Marcelo Uzeda de. Execução Penal. Ed. Jus Podivm, 4ª edição.

FELBERG, Rodrigo. A Reintegração Social dos Cidadãos-Egressos. Ed. Atlas.

ISHIDA, Válter Kenji. Prática Jurídica de Execução Penal. Editora Atlas.

KUEHNE. Maurício. Lei de Execução Penal Anotada. Editora Juruá. 7ª edição.

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução Criminal. Teoria e Prática. Ed.
Atlas, 7ª edição.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. Editora Atlas Jurídico. 11ª edição.

PRADO, Luiz Regis. HAMMERSCHMIDT, Denise. MARANHÃO, Douglas Bo-


naldi. COIMBRA, Mário. Direito de Execução Penal. Ed. Revista dos Tribunais. 3ª
edição.
128 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Execução Penal. Ed. Saraiva, 2ª
edição.

SILVA, Ricardo Augusto Dias da. Direito Fundamental à Saúde – O dilema entre o
mínimo existencial e a reserva do possível. Belo Horizonte. Fórum.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Editora Revan, 5ª


edição.
Especial - maio de 2019 | 129

O PROTAGONISMO DA
ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NA CRIAÇÃO DOS
CONSELHOS DA COMUNIDADE:
POR UMA EXECUÇÃO PENAL
PARTICIPATIVA

JÚLIO CÉSAR SOARES LIRA

5º Promotor de Justiça
Criminal em Petrolina/PE,
especialista em Direito Público
pela Universidade do Estado
da Bahia (UNEB) – Campus
Juazeiro/BA, Professor de
Direito Penal e Criminologia
da mesma instituição. E-mail:
juliol@mppe.mp.br
130 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O presente artigo visa demonstrar que, embora a Lei de Execução Penal tra-
ga como obrigação a criação do Conselho da Comunidade em cada comarca
onde houver pessoas em situação de aprisionamento, tal não ocorre, não
obstante a grande importância desse conselho nas diversas fases da execução
da pena privativa de liberdade. Objetiva também conclamar os promotores
de Justiça a deixarem a posição de meros coadjuvantes no processo de cria-
ção do Conselho da Comunidade para alcançarem o patamar de protago-
nistas desse processo, propondo-se, ao final, um modelo ideal para que essa
mudança de paradigma possa ocorrer.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Público; Lei de Execução Penal; Conselho da


Comunidade; Ministério Público.
Especial - maio de 2019 | 131

1 Introdução
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou em agosto de 2018, com
base no Banco Nacional de Monitoramento de Presos (BNMP) 2.0, que a
população carcerária do Brasil alcança a marca de 602.217 presos (eram
622.202 detentos em dezembro de 2014 e 726.712 em junho 2016). Em Per-
nambuco, o BNMP 2.0 aponta o total de 27.819 reclusos para 9.955 vagas
nos estabelecimentos prisionais, o que proporcionava um déficit de 19.937
vagas. Ainda consoante os dados atualizados do CNJ, em nosso Estado, che-
gamos a uma taxa de 288,03 presos para cada 100.000 habitantes.01
Não é desconhecido de ninguém, mesmo para aqueles membros do
MPPE que não trabalham diretamente com a execução da pena, notada-
mente a privativa de liberdade, que nossas cadeias públicas, presídios, peni-
tenciárias não possuem espaços físicos condizentes com a dignidade da pes-
soa humana, nem recursos materiais e humanos suficientes para assistência
à saúde, à educação, religiosa e social02, como também não possibilitam a
garantia de todos os direitos elencados no art. 41 da LEP.
No dizer de Zaffaroni03:

A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como


uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia
cuja principal característica é a regressão, o que não é difícil
de explicar. O preso ou o prisioneiro é levado a condições de
vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privada de

01 http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf.
Acesso em: 16 fevereiro 2019.
02 Art. 11, da Lei 7.210/84.
03 Zaffaroni, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Ed. Revan. 5ª Edição. 2001. p. 135/136.
132 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente e com limi-


tações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão,
comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondên-
cia, manter relações sexuais etc.). É também ferido em sua
autoestima de todas as formas imagináveis, pela perda da pri-
vacidade, de seu próprio espaço e submissões a revistas de-
gradantes. A isso, juntam-se as condições deficientes de quase
todas as prisões: superlotação, alimentação paupérrima, falta
de higiene e assistência sanitária etc., sem contar s discrimi-
nações em relação à capacidade de pagar por alojamentos e
comodidades. O efeito da prisão, que se denomina prisioni-
zação, sem dúvida é deteriorante e submerge a pessoa numa
“cultura de cadeia”, distinta da vida do adulto em liberdade.

A participação da sociedade no cumprimento da pena é fundamental


para a mudança desse quadro, para que a pena de privativa de liberdade seja
cumprida com o mínimo de danos possível. Para isso, a Lei de Execução Pe-
nal previu a existência de um órgão a ser constituído em cada comarca onde
houver pessoas em situação de aprisionamento, que represente a comuni-
dade nesse processo que vai desde o início do cumprimento da pena até o
reingresso ao convívio social. Esse órgão é o Conselho da Comunidade.04
Realmente, dentre os denominados Órgãos da Execução Penal, trazidos
no 61 da LEP05, destaca-se o Conselho da Comunidade, a quem incumbe,

04 Cartilha Conselhos da Comunidade/Comissão para Implementação e Acompanhamento dos


Conselhos da Comunidade. Brasília/DF: Ministério da Justiça, 2008, 2ª edição.
05 Art. 61, da Lei 7.210/84: Art. 61. São órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária; II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho Penitenciário;
V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da Comunidade. VIII - a
Defensoria Pública.
Especial - maio de 2019 | 133

através de representação de setores da sociedade, realizar mensalmente visi-


tas aos estabelecimentos prisionais existentes na comarca, realizando entre-
vistas e relatórios para serem levados ao conhecimento dos demais Órgãos
da Execução Penal, buscando, ainda, viabilizar recursos materiais e huma-
nos para melhorar a assistência ao preso ou internado06.
O art. 4º da LEP é preciso quando afirma que o Estado deverá recorrer à
cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida
de segurança.
Destarte, faz-se urgente chamar a sociedade a participar mais efetiva-
mente nas questões relacionadas ao cárcere, posto que sob os influxos da
mídia se busca cada vez mais aprisionar e manter o preso o maior tempo
possível na masmorra, todavia, esquecem-se da condição humana daqueles
que, por motivos que não cabem aqui discutir, descumpriram norma de con-
duta estabelecidas no nosso Código Repressivo Penal, esquecem-se, princi-
palmente, que a regra é de que esses reclusos um dia voltarão à sociedade,
que os quer ver longe, e voltarão em que condições???... certamente, bruta-
lizados, “perdendo a própria noção de si mesmos (ser), a própria identidade
de criatura humana... e assim projetando no outro a sua face mais cruel”07.
Pois bem, diante dessa constatação, urge também que o Ministério Pú-
blico cumpra o seu mister, buscando promover o fomento, a criação e, se
for o caso, a restruturação dos Conselhos da Comunidade em cada comarca
onde houver estabelecimentos prisionais, conscientizando, primeiro, os pró-

06 Art. 81, da Lei 7.210/84: Art. 81. Incumbe ao Conselho da Comunidade: I - visitar, pelo menos
mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca; II - entrevistar presos; III - apresentar
relatórios mensais ao Juiz da execução e ao Conselho Penitenciário; IV - diligenciar a obtenção de recursos
materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do
estabelecimento.
07 Do Projeto à Realidade: Humanizar e Estruturar a Cadeia Pública de Itambé. Rosemary Souto
Maior de Almeida. Ed. Novo Horizonte. Recife 2012, p. 11.
134 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

prios membros do parquet da necessidade de se importar com a dignidade


do recluso ou internado, como também do egresso; e, depois, logo em segui-
da, se dispondo a conscientizar também a sociedade para que lance um novo
olhar à população encarcerada, o que poderá proporcionar, nessa união de
esforços, que quando egressos, estejam esses “homens delinquentes”08 em
melhores condições de reintegração social.
Conforme Alvino Augusto de Sá:

Quando se fala aqui em delinquente, não se quer dizer uma


pessoa com a qualidade intrínseca de delinquente, mas sim
uma pessoa que foi envolvida e selecionada pela justiça e
condenada. Para qualquer viés teórico da criminologia clí-
nica, o delinquente é uma pessoa que foi envolvida e selecio-
nada pela justiça. No entanto, para o viés mais estritamente
médico-psicológico, ela foi envolvida e selecionada por con-
ta de seus traços de personalidade e demais fatores indivi-
duais que a tornaram criminosa. Já para o viés crítico, ela
foi envolvida e selecionada por conta de suas condições his-
tóricas, sociais econômicas, que a teriam tornado candidata
ideal e frágil perante o sistema seletivo punitivo.

O que se propõe, portanto, é que se cumpra a legislação acerca da criação,


em cada comarca onde exista uma unidade prisional ativa, um Conselho da
Comunidade, e que o Ministério Público possa tomar para si a responsabili-
dade de invocar a sua condição de agente transformador da realidade social
e, buscando o apoio e a coparticipação da sociedade local, possa, realmente,

08 SÁ, Augusto Alvino de. Criminologia Clínica e Execução Penal. Proposta de um Modelo de
Terceira Geração. Ed. Saraiva. 2ª edição. 2015. pág. 65.
Especial - maio de 2019 | 135

promover o fomento, a criação e/ou reorganização desses Conselhos comu-


nitários, como Órgão da Execução Penal com papel fundamental e prepon-
derante para a melhoria das condições assistenciais do preso e do internado,
com reflexos também importantes na condição do egresso, que se mostra
como certa no sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de
liberdade, principalmente.
Demonstrar a vocação do Ministério Público para modificar a sua con-
dição de mero expectador para a condição de protagonista no processo de
criação e/ou fomento dos Conselhos da Comunidade, quebrando o para-
digma de que caberá, única e exclusivamente, ao Juiz da Execução Penal
tal papel e que ao parquet só caberia fiscalizar a atuação dos conselhos, é o
objetivo principal desse ensaio.
Mostrar-se-á que a amplitude legal do papel do Ministério Público no
âmbito da execução da pena o permite tomar para si esse protagonismo su-
gerido, com instrumentos legais para conclamar e conscientizar a sociedade
para o seu papel de também fiscalizar o cumprimento da medida aflitiva
materializada na pena.
Buscar-se-á tomar como modelo o Ministério Público do Paraná, que
logrou estruturar, em conjunto com o Poder Judiciário paranaense, todos
os passos para que promotores de Justiça e Juízes pudessem criar e fomentar
os Conselhos da Comunidade nas comarcas daquele Estado da Federação,
procurando acabar com o hiato existente entre a legislação e a realidade nua
e crua observada em quase todos os demais Estados do nosso País, onde o
próprio Estado, as instituições e a sociedade negligenciam, não se impor-
tam, com o que ocorre intramuros das masmorras, apelidadas de presídios
ou penitenciárias.
Almeja-se aqui que as propostas lançadas possam servir para que o
Ministério Público promova o cumprimento da legislação pertinente, atri-
buindo, inclusive, como meta do planejamento estratégico, a criação dos
136 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Conselhos da Comunidade em todas as comarcas onde existam unidades


prisionais ou de aplicação de medida de segurança, chamando os promoto-
res de Justiça a assumirem o protagonismo da conscientização e incentivo
da sociedade para participar de maneira decisiva na reintegração social do
reeducando.

2 O Conselho da Comunidade como


órgão da execução penal
Já de início, a LEP define a missão dessa tarefa conferida ao Estado, preven-
do expressamente que “a execução penal tem por objetivo efetivar as dis-
posições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado e do internado”.09
O art. 61 da LEP traz disciplinamento quanto aos órgãos encarregados
da execução penal, elencando-os, sem qualquer hierarquia, em oito incisos,
com delimitação expressa da área de competência de cada um deles nos ar-
tigos que se seguem. Assim, atribui-se competência ao Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (art. 64), ao Juízo da Execução (art. 66),
ao Ministério Público (art. 67 e 68), ao Conselho Penitenciário (art. 70), ao
Patronato (art. 79), ao Conselho da Comunidade (art. 81) e à Defensoria
Pública (art. 81-B).
A exposição de motivos da Lei de Execução Penal afirma que “as atri-
buições pertinentes a cada um de tais órgãos foram estabelecidas de forma a
evitar conflitos, realçando-se, ao contrário, a possibilidade de atuação con-
junta, destinada a superar os inconvenientes graves resultantes do antigo e

09 Art. 1º da Lei 7.210/1984.


Especial - maio de 2019 | 137

generalizado conceito de que a execução das penas e medidas de segurança


é assunto de natureza meramente administrativa”.10
Para corrigir distorção da não inclusão da Defesa como órgão da exe-
cução penal, pois se imaginava que, como parte no processo executivo, não
poderia figurar no rol do art. 61 da LEP, ao menos no que diz respeito à
Defensoria Pública, a Lei 12.313/2010 tratou de incluí-la, atribuindo-lhe a
incumbência de atuar em prol dos necessitados em todas as fases do proces-
so executório, consagrando a garantia de pleno acesso à Justiça aos presos,
egressos e seus familiares.
Por certo, como dispõem os dispositivos da LEP que tratam do Juízo da
Execução (art. 66, inciso IX), caberá a este a competência para compor e
instalar o Conselho da Comunidade, mas, em nenhum momento se exclui
a possibilidade da participação efetiva dos demais órgãos, notadamente, do
Ministério Público na condução de tal desiderato.
O Conselho da Comunidade, como já se viu alhures, através de repre-
sentação de setores da sociedade, está incumbido de realizar mensalmen-
te visitas aos estabelecimentos prisionais existentes na comarca, realizando
entrevistas e relatórios para serem levados ao conhecimento dos demais
Órgãos da Execução Penal, buscando, ainda, viabilizar recursos materiais e
humanos para melhorar a assistência ao preso ou internado.
A composição do Conselho da Comunidade está descrita no art. 80 da
LEP, ou seja, será composto, no mínimo, por um representante de associação
comercial ou industrial, um advogado indicado pela Seção da Ordem dos
Advogados do Brasil, um defensor público indicado pelo Defensor Público-
-Geral e um assistente social escolhido pela Delegacia Seccional do Conse-
lho Nacional de Assistentes Sociais.11

10 Item 88 da Exposição de motivos da Lei de Execução Penal.


11 Redação dada pela Lei nº 12.313, de 2010.
138 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Não obstante o comando legal determinar que em cada comarca deverá


haver um Conselho da Comunidade com tais incumbências, em face do nos-
so País possuir cerca de 2.643 comarcas, deveríamos ter pelo menos 2.643
Conselhos da Comunidade, contudo a realidade é extremamente diversa.
Foi nesse contexto que, no ano de 2004, o Ministério da Justiça deu um
importante passo para a efetivação da democracia e da participação social nas
questões relacionadas à execução penal, com a criação da Comissão Nacional
para Implantação e Acompanhamento dos Conselhos da Comunidade.
Foi realizado, em 2008, um levantamento pelo Ministério da Justiça so-
bre existência dos Conselhos da Comunidade nos Estados, perfazendo um
total de 639 conselhos, sendo que destes, 252 estavam localizados na Região
Sul (40%). Na Região Nordeste, somente 31 Conselhos da Comunidade en-
viaram respostas aos questionários enviados pela Comissão Nacional para
Implantação e Acompanhamento dos Conselhos da Comunidade.
O Departamento Penitenciário Nacional tem se esforçado para imple-
mentar os Conselhos da Comunidade, tarefa que, embora afete o Poder
Judiciário, o Ministério Público, principalmente, não pode assistir passiva-
mente a falta de iniciativa por quem de direito. É urgente a necessidade de
que saíamos da zona de conforto, de que tomemos para nós do aguerrido
Ministério Público brasileiro a responsabilidade de assumir o protagonismo
da criação e/ou fomento dos Conselhos da Comunidade em nosso Estado,
sensibilizando toda a sociedade da importância de sua participação no pro-
cesso de reintegração social do reeducando.
Os Conselhos da Comunidade são parte da execução penal, se consti-
tuem na instituição que tem a possibilidade de aproximar a sociedade da
prisão e a prisão da sociedade, promovendo uma reparação do fenômeno
da invisibilidade do cumprimento da pena, possibilitando o controle social
dessa política pública e viabilizando a reflexão sobre os efeitos do cárcere na
sociedade e sobre as relações que produzem a criminalidade. Considerando
Especial - maio de 2019 | 139

a relevância de sua função é evidente a necessidade de investir no processo


de criação e/ou fomento e/ou reorganização dos Conselhos da Comunida-
de, visando um ganho expressivo nas questões relativas às políticas penais e
penitenciárias.
O envolvimento da sociedade nas atividades de execução da pena é
providência que se justifica no principal objetivo do processo executivo: a
harmônica inclusão social do condenado. Cabe então recorrer à comuni-
dade para a cooperação nas atividades de execução penal. A participação
da comunidade nessa matéria constitui exercício da cidadania, devendo ser
estimulada de modo a amenizar o preconceito em relação ao preso, e no
sentido de que seja viabilizada, ao final da execução, a pretendida inclusão
do condenado na comunidade.12
Desde a Constituição de 1988, verificam-se avanços na participação ci-
dadã nas políticas sociais, na forma de conselhos gestores ou conselhos de
direitos em áreas como saúde; assistência social; criança e adolescente; ou no
trabalho com temáticas específicas, como mulheres, negros, drogas. O mes-
mo avanço, no entanto, não é observado nas políticas ligadas à segurança
pública, especialmente ao sistema prisional.13
A participação social nas questões ligadas à prisão está prevista na legis-
lação nacional e em diferentes tratados internacionais de defesa dos direitos
dos presos. Na legislação nacional, o conselho de comunidade é disposto na
LEP como um órgão da execução penal e representa a instância de participa-
ção da comunidade local junto aos presídios. Mesmo que sua formatação le-

12 SILVA, Haroldo Caetano da. A participação comunitária nas prisões. Fundamentos e Análises
sobre os Conselhos da Comunidade. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. 2011.
13 WOLF. Maria Palma. Participação social e sistema penitenciário: uma parceria viável?
Fundamentos e Análises sobre os Conselhos da Comunidade. DEPEN – Departamento Penitenciário
Nacional. 2011.
140 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

gal e seu grau de institucionalização não estejam suficientemente definidos,


conselhos têm sido implantados no Brasil. No entanto, a prática que é ob-
servada nos diferentes estados brasileiros remete, em muitos casos, a ações
pontuais destinadas apenas a suprir necessidades materiais dos presídios ou
àquelas de cunho meramente assistencialista. Deixa-se, assim, de imprimir
um caráter mais estrito de representação da sociedade local na problemática
que envolve os presos e os egressos do sistema penitenciário.14
De se ressaltar, ainda, que esta forma de participação social na execução
penal veio a ser reforçada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU),
em 14 de dezembro de 1990, quando enunciou os Princípios Básicos Rela-
tivos ao Tratamento de Reclusos, visando à humanização da Justiça penal e
à proteção dos direitos do homem. No Princípio 10 está dito, textualmente,
que “Com a participação e ajuda da comunidade e das instituições sociais, e
com o devido respeito pelos interesses das vítimas, devem ser criadas con-
dições favoráveis à reinserção do antigo recluso na sociedade, nas melhores
condições possíveis”.15

3 A natureza jurídica do Conselho


da Comunidade
Cumpre, por importante, para a viabilidade do que ora se propõe, indicar
qual a natureza jurídica dos Conselhos da Comunidade, advertindo, desde
logo, ao leitor de que, como ditos órgãos da execução penal, não obstante
vetustos, ainda são incipientes no nosso País, não se tem pacificado o tema,
encontrando-se conselhos constituídos por diversas formas jurídico-legais.

14 Idem.
15 http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/pbasic.htm
Especial - maio de 2019 | 141

Como se sabe, a Lei de Execução Penal não definiu a natureza jurídica


do Conselho da Comunidade. Determina ser um órgão da execução penal,
mas seria uma pessoa jurídica de direito público? E em sendo assim, o re-
cebimento de recursos estaria sujeito também ao controle do Tribunal de
Contas do Estado? Ou, ao contrário, pode-se constituir, após ato inicial do
juiz, um Conselho sob a forma de pessoa jurídica de direito privado (de fins
não econômicos)? Nessa última hipótese, tem-se como compatível com uma
pessoa jurídica de direito privado o fato de a composição e instalação se dar
por meio de ato constitutivo judicial, ou seja, de um terceiro estranho aos
quadros associativos? Ou seria o Conselho da Comunidade um simples ór-
gão auxiliar do juízo? Neste caso, na hipótese de omissão do juiz em compor
e instalar o Conselho, qual o procedimento a ser adotado pela comunidade
que deseja ter o seu conselho?
No intuito de responder a tais indagações, o Eminente Luciano Lo-
sekann, à época Membro da Comissão Nacional de Implementação e Acom-
panhamento dos Conselhos da Comunidade16, faz uma reflexão bastante
pertinente sobre a questão:

Hoje em todo o Brasil, vê-se que há Conselhos que possuem


a feição de “pessoas jurídicas de direito público”, sem esta-
tutos ou mecanismos internos de regramento e que atuam,
simplesmente, após constituição pela autoridade judiciária,
como se fossem auxiliares do juízo, prestando-lhe contas.
Outros há que, mesmo como “pessoas jurídicas de direito
público” adquirem e buscam maior autonomia em relação
à figura do juiz, seja para que o trabalho a ser desenvolvido

16 LOSEKANN, Luciano. O juiz, o poder judiciário e os conselhos de comunidade: algumas reflexões


sobre a participação social na execução penal.
142 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

não seja pessoalizado, centrado na figura do juiz “x” ou “y” (o


que, geralmente, resulta no desaparecimento das atividades
do Conselho quando este magistrado é promovido/removi-
do da comarca e a assunção de um novo juiz que não tenha
nenhuma vocação ou pendor para a área da execução penal
acaba desestimulando a participação comunitária). Há, ain-
da, outros membros de Conselhos que, após serem convo-
cados pelo magistrado a assumirem seus cargos, tratam de
organizar e constituir uma pessoa jurídica de direito privado,
com personalidade jurídica e estatutos próprios, com dire-
toria periodicamente eleita, não só para ter independência
em relação ao juízo, como, também, para mais facilmente
conseguir obter recursos públicos e privados, apresentando
projetos a entidades públicas e privadas dispostas a financiar
iniciativas na seara penal.

Segundo a Comissão Nacional de Apoio e Incentivo aos Conselhos da


Comunidade as especificidades locais é que devem orientar a ação dos con-
selheiros, pois as diversidades são tão grandes que orientação única poderia
vir a frustrar o objetivo maior da própria Comissão, que é o de disseminar a
existência do maior número de Conselhos possível, por todo o País.
Conforme Losekann17, “constatou-se que tanto Conselhos que se orga-
nizam sob a forma ‘pública’(...), como aqueles que se organizam sob a for-
ma ‘privada’(...), têm conseguido atingir seus objetivos fundamentais. Nada
obstante, a própria Comissão Nacional de Apoio e Incentivo aos Conselhos
da Comunidade, ante a pouca clareza da LEP, tem deixado claro em suas
manifestações públicas que o órgão mais parece se aproximar da figura de

17 Idem.
Especial - maio de 2019 | 143

uma pessoa jurídica de direito público, estando, nesse caso, inclusive sujeita
à fiscalização do Tribunal de Contas do Estado quanto a eventuais verbas de
natureza pública que receba”.
No exemplo do Estado do Paraná, o Ministério Público, por intermédio
do Procurador-Geral de Justiça e do Corregedor-Geral do Ministério Públi-
co, e sua excelência o Corregedor-Geral da Justiça, editaram, em conjunto,
a Instrução Normativa nº 01/2014– CGJ/PR e MP/PR – CGJ/PR e MP/PR,
com a finalidade de instituir normas para constituição, regularização e fun-
cionamento dos Conselhos da Comunidade no Estado do Paraná, onde se
determinou que os conselhos fossem criados com natureza de pessoa jurídi-
ca de direito privado, na modalidade Associação Civil.18 Editaram, também,
a Instrução Normativa nº 02/2014 – CGJ/PR e MP/PR19, dessa vez com o
fim de determinar normas para o recolhimento, a destinação, a liberação, a
aplicação e a prestação de contas de recursos oriundos de prestações pecu-
niárias, na esteira da Resolução nº 154/2012, do CNJ.20
Já o Conselho da Comunidade da capital paulista foi constituído por
meio da Portaria nº 04, de 09 de março de 2005, da lavra do então Juiz Cor-
regedor dos Presídios e da Vara das Execuções Criminais, dr. Miguel Mar-
ques e Silva, tendo aprovado seu Regimento Interno em outubro do ano de
2006, constituindo-se, pois, como pessoa jurídica de direito público.
A seu turno, a Cartilha Conselho da Comunidade, da Comissão para Im-
plementação e Acompanhamento dos Conselhos da Comunidade, orienta

18 Art. 6º O Conselho da Comunidade constituir-se-á como pessoa jurídica de direito privado, sob a
forma de Associação Civil, mediante cumprimento das seguintes etapas sequenciais:
19 Instrução Normativa nº 02/2014 – CGJ/PR e MP/PR, institui normas para o recolhimento, a
destinação, a liberação, a aplicação e a prestação de contas de recursos oriundos de prestações pecuniárias
no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Paraná.
20 Resolução nº 154/2012 do Conselho Nacional de Justiça, que define a política institucional do Poder
Judiciário na utilização dos recursos oriundos da aplicação da pena de prestação pecuniária.
144 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

que, para facilitar a obtenção e a aplicação de recursos, muitos conselhos


têm se constituído como pessoa jurídica, em geral como uma associação.
Dessa forma possuem o aparato necessário para criar uma conta bancária,
estabelecer convênios, executar despesas, etc. As formas mais comuns de
captação de recursos pelos conselhos, segundo a cartilha, são por meio de:
a) Penas pecuniárias; b) Projetos financiados por órgãos governamentais;
c) Projetos financiados por organizações não governamentais; d) Convênio
ou subvenção com o município onde o conselho está localizado ou com os
municípios vizinhos que não possuem estabelecimento penal; e) Convênio
ou subvenção com o Estado; f) Doações.
Vale ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento
nº 21, de 30 de agosto de 2002, onde, ao que parece, cria uma natureza jurí-
dica sui generis para os Conselhos da Comunidade, posto que determina que
as prestações pecuniárias e as prestações sociais alternativas, objeto de tran-
sação penal e de sentença condenatória que não forem revertidas às vítimas
ou aos seus sucessores deverão ser destinadas pelo juiz às entidades públicas,
privadas com destinação social e aos conselhos da comunidade.21 O referido
Provimento nº 21, em seu § 1º define que “consideram-se entidades públicas
as definidas nos termos art. 1º, § 2º, II, da Lei nº 9.784/1999, entidades pri-
vadas com destinação social as que atendam aos requisitos do art. 2º da Lei
nº 9.637/1998, e conselhos da comunidade aqueles definidos nos termos da
Lei de Execução Penal”.22
O que se propõe, com o objetivo de facilitar a criação dos Conselhos da
Comunidade, é, inicialmente, dar aos mesmos uma roupagem eminente-
mente pública, com ato constitutivo emanado de Portaria do Juiz da Exe-

21 Provimento nº 21/2002 do Conselho Nacional de Justiça, que define regras para a destinação e
fiscalização de medidas e penas alternativas.
22 Idem.
Especial - maio de 2019 | 145

cução Penal da respectiva Vara Regional, após atuação do Ministério Pú-


blico para conscientização e mobilização da sociedade onde exista unidade
prisional, propondo-se para a organização do órgão um regimento interno,
onde se tenha, minimamente, a linha de atuação, os objetivos e metas desses
conselhos.
A partir do desenvolvimento natural dos Conselhos da Comunidade
e com o engajamento dos diversos setores da sociedade organizada e com
a necessidade de expansão dos seus objetivos, poder-se-á transformar ou
constituir, os conselhos, em sociedades civis, creditando-os, assim, a recebe-
rem subvenções públicas que facilitem o alcance de suas metas.
Tudo isso, evidentemente, até que reforma legislativa possa desvendar,
de uma vez por todas, qual deverá ser a natureza jurídica dos Conselhos da
Comunidade.

4 Do papel do Ministério Público na


execução penal na perspectiva da
defesa dos direitos humanos
O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdi-
cional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis23.
Para tal mister importa ressaltar que o Ministério Público possui uma
atividade fiscalizadora em toda a sua atividade funcional, quer na esfera ci-
vil, quer na esfera penal. Sempre que estiver envolvido numa relação jurídi-
ca litigiosa, em um conflito de interesses, uma norma de ordem pública ou

23 Art. 127, caput, da CF/88.


146 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

um direito indisponível, irrenunciável, impõe-se a função fiscalizadora do


parquet. Porém, para fiscalizar, o Ministério Público pode requerer e então
passa a ser, diretamente, parte processual, ou pode intervir. Renan Severo
Teixeira da Cunha, apud Julio Fabbrini Mirabete24, afirma que “pouco im-
porta que para essa fiscalização vista as roupagens de parte requerente ou de
órgão interveniente; sempre será órgão fiscalizador, com todas as consequ-
ências dessa atividade”.
Com relação à função fiscalizadora do Órgão Ministerial na Execução
Penal, consoante a disposição do art. 67 da LEP, “o Ministério Público fis-
calizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no pro-
cesso executivo e nos incidentes de execução”. Cabe inferir, então, que se
lhe incumbe atuar em todo o processo executivo, isto é, desde o início do
cumprimento da pena – art. 195 da LEP25 – até seu final, com a consequente
extinção da punibilidade do sentenciado.
Na lição de Mirabete26:

... Confere-se ao parquet a função de promover a observân-


cia do direito objetivo, atuando imparcialmente na verifi-
cação dos requisitos legais para o estrito cumprimento do
título executivo penal. Como na execução penal entra em
jogo um interesse público primário, que envolve um direito
irrenunciável do condenado (status libertatis), é possível que
se estabeleça uma situação em que se pretenda, como inte-

24 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. Editora Atlas. 11ª Edição. p. 227.
25 Art. 195. O procedimento judicial iniciar-se-á de ofício, a requerimento do Ministério Público, do
interessado, de quem o represente, de seu cônjuge, parente ou descendente, mediante proposta do Conselho
Penitenciário, ou, ainda, da autoridade administrativa.
26 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 227/228.
Especial - maio de 2019 | 147

resse público secundário, alterar ou mesmo extinguir os li-


mites traçados no título executório. Nem sempre o interesse
da Administração com os interesses genéricos e maiores de
toda a coletividade, devendo o Ministério Público defender
estes, orientando sua fiscalização para que se perfaça a exata
aplicação da lei penal, processual e de execução penal.

E arremata o festejado autor:

A função fiscalizadora do Ministério Público não poderia ser


executada se não se lhe dessem os meios para essa atividade
fundamental. Assim, como corolário do disposto no art. 67,
deve o órgão ser intimado de todas as decisões exaradas no
curso o processo executivo, quer sejam jurisdicionais, quer
sejam administrativas. Na primeira hipótese, cabe-lhe ainda
opinar previamente, requerer e recorrer das decisões do juiz.
Na segunda, pode valer-se dos meios processuais previstos
na lei de execução, principalmente o procedimento judicial
para apurar excesso ou desvio, representar às autoridades
administrativas superiores contra ato abusivo de qualquer
funcionário e requisitar providências da Administração Pú-
blica quando necessário.

Podemos, assim, divisar duas possibilidades de intervenção ministerial


na execução da pena, sendo a primeira relativa à possibilidade de requerer
deliberações judiciais relacionadas à concessão ou revogação de benefícios,
instauração de incidentes, conversões e quaisquer outras providências que
digam respeito ao desenvolvimento do processo executivo; e a segunda no
sentido de intervir, mediante manifestações, em relação a situações que se
148 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

materializam no processo de execução criminal que decorrem de pretensões


do próprio apenado ou do seu defensor, como também, a partir de interven-
ções do conselho da comunidade, do pronunciamento do Conselho Peni-
tenciário, de provocações ex officio do juiz da execução, entre outras.
Além da disposição genérica trazida no art. 67 da LEP, em vários ou-
tros dispositivos da Lei de Execução Penal se reclama expressamente a ne-
cessidade de intervenção do Órgão do Ministério Público, previamente ao
pronunciamento judicial. São casos de expressa determinação da LEP, por
exemplo, a progressão de regime prisional (art. 112, § 1º, da LEP), a saída
temporária (art. 123 da LEP), a remição (art. 126, § 8º, da LEP) e a extinção
da medida de segurança em face da cessação da periculosidade (art. 175, III,
da LEP).
A ausência de manifestação do Ministério Público em todas as fases re-
lativas à execução da pena, conforme consolidada jurisprudência, é causa de
nulidade absoluta.
Temos ainda as disposições do art. 68 da LEP, que trazem uma série de
atribuições do Ministério Público, em um rol que é meramente exemplifi-
cativo, abrangendo situações que, inclusive, já estariam previstas no próprio
art. 67, em razão da sua amplitude genérica, considerando-se até desneces-
sário descrever as hipóteses daquele artigo da Lei de Execução Penal.
É possível concluir-se, então, que as funções do membro do Ministério
Público no campo das Execuções Penais são mais amplas que aquelas que os
próprios dispositivos legais da LEP enumeram, posto que está autorizado,
inclusive pela natureza intrínseca do seu mister de defensor dos interesses
primários da sociedade e de defensor dos Direitos Humanos, a atuar nas
questões não judicializadas da execução da pena, isto é, nas questões mera-
mente administrativas, como é o caso de assumir o protagonismo da criação
dos Conselhos da Comunidade, notadamente, quando restar inerte o Poder
Judiciário.
Especial - maio de 2019 | 149

5 O papel do Ministério Público


na regulamentação, instalação
e organização do Conselho da
Comunidade. A mudança de
paradigma: de coadjuvante à
protagonista.
É necessário compreender que a prisão e as pessoas lá detidas integram a
mesma sociedade em que vivemos, e não um mundo à parte sobre o qual
nada temos a ver. Os Conselhos da Comunidade operam como um meca-
nismo para esse reconhecimento e para que a sociedade civil possa efetiva-
mente atuar nas questões do cárcere, quer para humanizá-lo, quer para que
as pessoas que lá estão possam retornar ao convívio social a partir de uma
perspectiva mais reintegradora.27
É preciso lançar os olhos críticos ao dispositivo da LEP que atribui ao
Juízo da Execução compor e instalar o Conselho da Comunidade, posto que
quis o legislador adotar tão-somente critério de competência para o ato legal
de criação e nomeação dos componentes do Conselho.
Não afasta a lei, em momento algum, a possibilidade de que o Ministério
Público, como Órgão da Execução Penal, como fiscalizador da execução da
pena e da medida de segurança, oficiante necessário no processo executivo,
em todas as suas fases, e nos incidentes de execução; possa assumir para si
o protagonismo de trazer a sociedade a participar da execução da pena, se
fazendo representar (a sociedade) no Conselho da Comunidade.

27 Cartilha Conselhos da Comunidade/Comissão para Implementação e Acompanhamento dos


Conselhos da Comunidade. Brasília/DF: Ministério da Justiça, 2008, 2ª edição.
150 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Não se pode prescindir da atuação dos membros do Ministério Público


para arregaçar as mangas, sair da zona de conforto, assumir a responsabili-
dade de fazer valer a vontade do legislador em criar um órgão que busca a
participação da sociedade organizada nas políticas públicas de reintegração
social do recluso e do egresso.
Como a LEP atribui ao Juízo da Execução Penal a composição e cria-
ção dos Conselhos da Comunidade, as Procuradorias-Gerais de Justiça
poderão, junto com as Doutas Corregedorias-Gerais do Ministério Públi-
co, entabular conversações junto às Corregedorias-Gerais da Justiça, órgão
competente do Poder Judiciário, a fim de que, tal qual houve no Estado do
Paraná, em ato conjunto, possam instar os juízes e os promotores de Justiça
a, juntos, envidarem ingentes esforços no sentido de criarem os Conselhos
da Comunidade nas suas respectivas comarcas de atuação, onde hajam uni-
dades prisionais.
Malgrado essa tratativa, e também na perspectiva de que a atuação do
parquet nessa seara não está, absolutamente, atrelada ao Poder Judiciário,
consoante a Lei Orgânica do Ministério Público, as Procuradorias-Gerais
de Justiça poderão expedir recomendações aos Órgãos do Ministério Pú-
blico, notadamente aos promotores de Justiça, para que fomentem a cria-
ção e/ou a organização dos Conselhos da Comunidade enquanto órgão de
Execução Penal.
Assim, mesmo sem caráter normativo, após articulação com as Correge-
dorias-Gerais do Ministério Público, poderão, as Procuradorias-Gerais de
Justiça, expedir recomendação aos promotores de Justiça Criminais (com
atuação na execução da pena); ou ainda aos promotores de Justiça de Cida-
dania, com atuação na Curadoria dos Direitos Humanos, conforme seja a
especificidade, com tal finalidade, isto é, recomendar que os membros com
atribuição legal possam informar à sociedade sobre a importância da criação
do Conselho da Comunidade, sobre as funções do mesmo, sobre a necessi-
Especial - maio de 2019 | 151

dade de participação social para o fim de fiscalização da pena e da medida


de segurança, inclusive, com o viés de que o cuidado com o recluso e com o
egresso são fatores decisivos para abrandar os índices de reincidência etc.,
incentivando que eles (os promotores de Justiça) se envolvam na causa, se
engajem do espírito de transformadores da ordem social, cooptando pessoas
igualmente comprometidas e que queiram dar uma parcela de contribuição
em uma área ao mesmo tempo tão importante e tão esquecida para a pacifi-
cação social e para a obtenção do bem comum.
A seu turno, as Corregedorias-Gerais do Ministério Público, do mes-
mo modo, terão atribuições por demais importante nesse processo criativo/
organizador, já que os promotores de Justiça já estarão devidamente imbu-
ídos da missão de fomentar a criação e/ou organização dos Conselhos da
Comunidade, na condição de órgão orientador e fiscalizador das atividades
funcionais dos membros do parquet envolvidos, lhes caberá também realizar
sugestões e recomendações no sentido de orientar na realização da função e
na cobrança dos resultados.
Os Centros de Apoio Operacionais específicos (Criminais ou de Exe-
cução Penal, onde houver), como órgão auxiliar da atividade funcional dos
promotores de Justiça, poderão estimular a integração entre os membros
ministeriais e destes com o Poder Judiciário, subsidiando a todos com infor-
mações técnico-jurídicas acerca dos Conselhos da Comunidade, atuando,
ainda, como interlocutores entre os órgãos de execução e as CGMPs e as
PGJs, visitando, in loco, as Promotorias de Justiça e os Conselhos da Co-
munidade, participando das audiências públicas para criação dos conselhos,
enfim, dando todo o suporte para que se materialize o comando normativo.
O Ministério Público poderá ainda criar um Grupo de Atuação Especial
com atribuições específicas na área da Execução Penal, a quem incumbirá
elaborar cartilhas e kits autoexplicativos (contendo modelos de Portarias,
Recomendações, Regimento Interno do Conselho da Comunidade, Ofícios
152 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

etc.) para distribuição aos promotores de Justiça envolvidos; além de encetar


esforços no sentido de providenciar junto ao Centro de Estudos e Aperfeiço-
amento Funcional (CEAF), da Escola Superior do Ministério Público, cur-
sos de atualização e capacitação relativos à atividade de execução da pena e à
formação e instauração dos Conselhos da Comunidade; incentivar a instala-
ção desses Conselhos da Comunidade e acompanhar o seu funcionamento,
orientando, no que couber e no que lhe for possível, na correção de rumos
porventura inadequados; acompanhar os membros do Ministério Público
na organização e realização das audiências públicas para informação, orien-
tação, sensibilização e convencimento da sociedade sobre a necessidade de
sua participação nas importantes questões relativas à execução da pena, ao
preso e ao egresso, sempre demonstrando que a segurança pública, em um
sentido macro, também é responsabilidade dessa mesma sociedade; atuará
ainda no sentido de buscar, junto ao Ministério da Justiça, no Departamen-
to Penitenciário Nacional (DEPEN) e na Comissão para Implementação
e Acompanhamento dos Conselhos da Comunidade cursos de formação,
capacitação e aprimoramento para os membros dos Conselhos da Comu-
nidade, capacitando-os a gerir e conduzir bem as atividades dos conselhos.
Por fim, como elemento primordial dessa engrenagem, atuará o promo-
tor de Justiça, que, com o apoio dos demais órgãos do Ministério Público,
poderá, como condição que lhe é peculiar e natural, aproximar-se da socie-
dade, chamando-a a participar, conscientizando e sensibilizando as diversas
parcelas do corpo social de que garantindo a dignidade da pessoa humana
na execução da pena estarão contribuindo para a diminuição dos índices de
reincidência e, por conseguinte, para o resguardo do direito fundamental à
segurança pública.
O promotor de Justiça, como já se disse, deverá encetar conversações e
diálogos com a sociedade. Buscará, em primeiro lugar, convencer o Poder
Judiciário local da importância da criação do Conselho da Comunidade e
Especial - maio de 2019 | 153

conscientizar o magistrado de que é dele a competência para criação do ór-


gão. Estabelecerá, ainda, contato com as prefeituras e suas secretarias perti-
nentes; com as câmaras de vereadores, notadamente, com a Comissão de Di-
reitos Humanos; com a OAB; com os núcleos locais da Defensoria Pública;
com as escolas (da rede pública ou privada); com as instituições de ensino
superior (públicas ou privadas); com as associações comerciais e industriais;
com os clubes de serviço; com as associações, sindicatos, com os órgãos da
mídia local, que terão papel importante da divulgação das ações do Minis-
tério Público nessa seara..., enfim, com todas as instituições que possam, ou
através da indicação de nomes para compor os Conselhos da Comunidade,
ou através do apoio direto ou indireto, auxiliar na criação de tais Órgãos da
Execução Penal.
Feitos os contatos, estabelecidos os canais de diálogo, mas ainda não ob-
tidos os nomes para compor o Conselho da Comunidade, poderá o promo-
tor de Justiça partir para a realização de audiências públicas para informar,
sensibilizar e convencer acerca da grande importância da criação de mais
esse órgão de apoio e controle da execução da pena, convocando autori-
dades locais e todos os possíveis atores na composição e, acima de tudo, a
população em geral, para proporcionar, assim, que o reclamo para a criação
do conselho passe a ser uma demanda vinda da própria sociedade, nascendo
daí o espírito de solidariedade e do cumprimento de dever de cidadão, no
exercício mais elevado da cidadania.
Pode-se, inclusive, em último caso, expedir ofícios às instituições refe-
ridas na LEP28, para que as mesmas indiquem nomes para a composição
do Conselho da Comunidade. Contudo, a adesão espontânea proporcionará
espírito de pertencimento e, via de consequência, melhores condições de
desenvolvimento de suas atividades.

28 Art. 80 da Lei 7.210/1984.


154 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Composto o Conselho da Comunidade, caberá ao promotor de Justiça


requerer ao juiz competente que realize a formação e criação do mesmo,
passando-se a ser regido pela normatização da Lei de Execução Penal e pelo
seu Regimento Interno, sob a orientação, coordenação e fiscalização do
Poder Judiciário e do Ministério Público, com a possibilidade de, com sua
evolução, vir a se capacitar a receber subvenções públicas que auxiliarão na
expansão dos seus objetivos e metas.
Acredita-se ser inconveniente a participação tanto do Ministério Pú-
blico, quanto do Poder Judiciário, como membros efetivos dos Conselhos
da Comunidade, posto que deverão atuar de forma a colaborar, coordenar,
orientar e fiscalizar os conselhos, não sendo prudente estarem inseridos em
suas composições, não se podendo olvidar, no entanto, que eles (os conse-
lhos) não deverão manter uma relação de subserviência aos promotores de
Justiça ou aos magistrados, devendo agir autonomamente, com indepen-
dência e altivez, na consecução dos seus objetivos.
Destarte, sem a vã expectativa de esgotar a questão, propugna-se que
o Ministério Público assuma o protagonismo do fomento e da criação dos
Conselhos da Comunidade, posto que não mais podemos somente observar
a inatividade do Poder Judiciário para se desincumbir de seu mister.
Faz-se mister lembrar que a Defensoria Pública, desde a Lei 12.313/2010,
já é Órgão da Execução Penal e órgão integrante do Conselho da Comu-
nidade e, com isso, nada impede que nós do Ministério Público possamos
perder, também pela nossa inércia, a oportunidade de exercitarmos a nossa
vocação de defensores dos interesses mais lídimos (mesmo que as vezes não
percebidos e não sentidos) da sociedade.
Especial - maio de 2019 | 155

6 Conclusão
O desiderato do presente artigo foi o de demonstrar que há fundamento
jurídico-legal para que o Ministério Público saia de uma situação de mero
observador para se tornar protagonista na criação dos Conselhos da Comu-
nidade, Órgão da Execução Penal estabelecido no art. 80 da LEP.
O Conselho da Comunidade se mostra imprescindível para a realiza-
ção das próprias funções do Ministério Público no tocante à execução da
pena e a proteção dos Direitos Humanos relativos à pessoa privada de sua
liberdade, posto que cabe àquele órgão atuar em atividades consultiva, para
os demais órgãos da Execução Penal; assistencial, aos presos e egressos; e
fiscalizadora, com relação às unidades prisionais.
Não obstante a Lei de Execução Penal atribuir a competência ao Poder
Judiciário para compor e instalar o Conselho da Comunidade29, as funções
atribuídas ao Ministério Público pela própria LEP, notadamente, de forma
ampla e genérica no art. 67, não excluem a possibilidade de que o parquet
possa tomar para si a responsabilidade de fomentar a criação e a organização
dos Conselhos da Comunidade, notadamente, diante da inércia do Poder
Judiciário, saindo, assim, de uma posição de mero coadjuvante para a de
protagonista desse processo constitutivo-organizacional.
Ao Ministério Público, por meio dos órgãos da administração superior,
dos órgãos de execução e dos seus órgãos auxiliares, principalmente, por inter-
médio das Promotorias de Justiça Criminais (com atuação na Execução Penal)
e/ou de Cidadania (Curadoria dos Direitos Humanos), cada órgão, evidente-
mente, dentro das suas respectivas esferas de atribuição, caberá encetar ingen-
tes esforços no sentido de assumir o protagonismo da criação e organização
dos Conselhos da Comunidade onde quer que exista unidade prisional ativa.

29 Art. 66, IX, da Lei 7.210/1984.


156 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Para alcançar tal finalidade, realizará ações coordenadas e sistematizadas


tendentes a:
a. buscar parceria com o Poder Judiciário para cumprimento da LEP;
b. a informar e conscientizar a sociedade sobre a importância da cria-
ção dos Conselhos da Comunidade;
c. realizar cursos de capacitação acerca da teoria e prática da Execução
Penal, para membros, servidores e estagiários;
d. realizar convênio com o DEPEN para realização de cursos de for-
mação e capacitação de Conselheiros componentes do Conselho da
Comunidade;
e. estabelecer contato com as instituições elencadas no art. 80 da LEP
para obtenção de integrantes para o Conselho da Comunidade, pre-
ferencialmente, com perfil para a atividade a ser desempenhada;
f. promover, junto ao Poder Judiciário, requerimento para a nome-
ação dos integrantes indicados e para a criação dos Conselhos da
Comunidade, pugnando para que os componentes se comprome-
tam perante o Regimento Interno através da assinatura de termo
próprio;
g. promover o acompanhamento e a fiscalização dos Conselhos da Co-
munidade, visando o seu bom desenvolvimento e o alcance de suas
metas.
Destarte, já é tardia a necessidade de o Ministério Público sair do estado
contemplativo que lhe foi imposto pela inércia do Poder Judiciário, no que
concerne à criação e implantação dos Conselhos da Comunidade.
Cabe somente a nós, membros do parquet nacional, sair do berço esplên-
dido para assumirmos o protagonismo de mais essa função engrandecedora
e fortalecedora da sociedade, em busca da paz, da Justiça e do Ministério
Público social.
Especial - maio de 2019 | 157

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Rosemary Souto Maior de. Do Projeto à Realidade. Humanizar e
Estruturar a Cadeia Pública de Itambé. Editora Novo Horizonte. Recife, 2012.

AVENA, Norberto. Execução Penal. Editora Método. 2014.

Código Penal. Revista dos Tribunais. Edição 2015

CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal. Ed. Jus Podivm, 4ª edição, 2015.

BERCLAZ, Márcio Soares. A dimensão político-jurídica dos Conselhos Sociais


no Brasil. Editora Lumen Juris. 2013.

FARIA, Marcelo Uzeda de. Execução Penal. Ed. Jus Podivm, 4ª edição, 2015.

FELBERG, Rodrigo. A Reintegração Social dos Cidadãos-Egressos. Ed. Atlas,


2015.

ISHIDA, Válter Kenji. Prática Jurídica de Execução Penal. Editora Atlas, 2013.

KUEHNE, Maurício. Lei de Execução Penal Anotada. Editora Juruá. 7ª edição,


2009.

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução Criminal. Teoria e Prática. Ed.
Atlas, 7ª edição, 2014.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. Editora Atlas Jurídico. 11ª edição,
2004.
158 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

PRADO, Luiz Regis. HAMMERSCHMIDT, Denise. MARANHÃO, Douglas Bo-


naldi. COIMBRA, Mário. Direito de Execução Penal. Ed. Revista dos Tribunais. 3ª
edição. 2013.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Execução Penal. Ed. Saraiva, 2ª
edição, 2015.

SIEBRA, Maria Aparecida de Alcântara. Efetividade da Lei de Execução Penal


Face ao Cumprimento de Pena Privativa de Liberdade em Cadeias Públicas.
Editora Bagaço, 2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Ed. Revan. 5ª Edição.
2001.
Especial - maio de 2019 | 159

O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS
DIREITOS HUMANOS: UM AGENTE
NA BUSCA DA TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL

LUÍS SÁVIO LOUREIRO DA MARIANA FARIAS SILVA RICHARDSON SILVA


SILVEIRA
Acadêmica em Direito pela Delegado Especial de Polícia
Promotor de Justiça em UFPE, ex-estagiária do MPPE, em Pernambuco, professor e
Pernambuco e Coordenador do estagiária do TCE-PE. pesquisador.
CAOP Criminal
160 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO
O presente artigo discorre sobre a relevância da atuação específica e signifi-
cativa do Ministério Público na prevenção, proteção e efetivação dos Direi-
tos Humanos, destacando o seu caráter de agente de transformação social
sobrelevado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no
cumprimento de sua missão institucional, incumbido que está, dentre inú-
meras outras funções, da defesa da ordem jurídica, do regime democrático,
dos interesses sociais, individuais indisponíveis, difusos, coletivos, respeito
dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública.

PALAVRAS-CHAVE: Ministério Público; Direitos Humanos; Atuação;


Transformação social.
Especial - maio de 2019 | 161

1 Introdução
O Ministério Público tem na Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 um marco na sua história, passando a ter autonomia e indepen-
dência para agir da forma mais eficiente e dinâmica possível na garantia
dos direitos fundamentais e, mais especificamente, na prevenção, proteção
e efetivação dos direitos inerentes aos seres humanos, dentre eles o direito
à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade, à pro-
priedade, à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança,
à convivência familiar e comunitária, à previdência social e à proteção aos
desamparados. Coincide com a consolidação do regime democrático.
Este marco histórico promovido pela Constituição possui um valor no-
tável e crucial na medida em que o Ministério Público detém, dentre várias
funções, a de prevenção, proteção e efetivação dos direitos humanos. É de
boa lógica afirmar que, para a construção de um Estado Democrático de
Direito, esta atribuição é considerada essencial, indispensável, elementar.
Consolidado o regime democrático, a luta pelos direitos humanos passou a
ser uma batalha pela efetiva implementação dos direitos adquiridos através
da nova Carta. A partir dessas considerações, surge um novo perfil do Mi-
nistério Público.
Hoje, o Ministério Público atua na defesa e efetivação dos Direitos Hu-
manos tanto através das Promotorias de Justiça comuns como através das
chamadas Promotorias de Justiça Extrajudiciais Especializadas, que traba-
lham com procedimentos preliminares, inquéritos civis e procedimentos de
investigação criminal, visando a resolução do conflito sem a instauração de
um processo judicial. Esse formato mais voltado à conciliação e à modifica-
ção de valores sem a imposição de uma sanção por um juiz representa um
evidente processo de transformação social que o Ministério Público se pro-
põe a realizar. Essa transformação é desenvolvida pelo órgão em conjunto
162 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

com a sociedade civil, por meio da elaboração de mecanismos e estratégias


para a efetivação das promessas de cidadania da Constituição de 1988.
Neste artigo, por meio de uma análise histórica do Ministério Público e
dos Direitos Humanos, com dados obtidos através de pesquisa bibliográfica
e documental, buscamos entender qual a contribuição efetiva deste órgão
para a transformação social, levando em consideração suas atribuições e sua
forma de atuação.

2 Primórdios do Ministério Público


Existe certo mistério quanto à verdadeira origem do Ministério Público, o
que causa grande controvérsia entre os pesquisadores. Um olhar na História
não possibilita determinar com precisão onde, quando e como se deu o seu
surgimento.
Pesquisadores asseveram que a origem da expressão “Ministério Pú-
blico” foi encontrada em textos romanos clássicos, com certa constância.
Ensina Moreira (2009, p. 9-10) que “O termo ‘ministério’ deriva do latim
ministerium, minister, que revela o significado de oficio do servo, função de
servir, mister ou trabalho. Já o adjetivo ‘público’ indica a ideia de instituição
estatal (aspecto subjetivo) ou de interesse geral ou social (aspecto objetivo)”.
Há pesquisadores que datam sua origem há mais de quatro mil anos,
no Egito, onde havia um funcionário real, considerado a língua e os olhos
do rei. Dentre outras funções, competia-lhe castigar os rebeldes, reprimir
os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, acolher os pedidos do homem
justo e verdadeiro, perseguindo o malvado e o mentiroso. Fazia ouvir as
palavras da acusação, indicando as disposições legais que se aplicavam ao
caso, além de lhe competir tomar parte das instruções para descobrimento
da verdade.
Especial - maio de 2019 | 163

Outros buscam as raízes do Ministério Público na Antiguidade Clássica,


na Idade Média e até no vindex religionis do direito canônico. Na doutrina
italiana, vê-se que os pesquisadores tentam demonstrar que a origem seria
peninsular.
Após muitos estudos e discussões, muitos historiadores tentam fixar a
origem do Ministério Público no reinado de Felipe IV – rei da França – espe-
cificamente na Ordenança de 25 de março de 1302, na qual foram regulamen-
tadas as principais funções e determinado que os procuradores fizessem o
mesmo juramento dos magistrados, não podendo exercer outras funções que
não determinadas expressamente pelo rei. Há divergência quanto à data, pois
alguns mencionam 23 de março de 1303. A função já existia, só não estava de-
vidamente regulamentada. Registra Machado (apud Marum, 2005, p. 39) que:

a diferença é que, antes desse edito, os procuradores exer-


ciam a defesa dos interesses privados do soberano e, depois
dele, passaram a tutelar os interesses do Estado, separados da
pessoa e dos bens do rei, sempre, entretanto, em nome dele e
como uma projeção exclusiva de sua autoridade.

Com a Revolução Francesa, baseada no lema égalité, liberté, fraternité,


houve uma estruturação mais eficaz do Ministério Público, conferindo ga-
rantia aos seus integrantes. A França deu grande contribuição para a história
do Ministério Público. Inclusive a expressão parquet (assoalho) é constante-
mente usada no Brasil para referir-se à instituição. Leciona Mazzilli (1995,
p. 5) que:

a Revolução Francesa estruturou mais adequadamente o Mi-


nistério Público, enquanto instituição, ao conferir garantia a
seus integrantes. Foram, porém, os textos napoleônicos que
164 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

instituíram o Ministério Público que a França veio a conhe-


cer na atualidade, daí vindo a ser difundida a instituição para
diversos Estados.

E continua o eminente professor:

A menção a parquet (assoalho), muito usada com referência


ao Ministério Público, provém dessa tradição francesa, as-
sim como as expressões magistrature débout (magistratura
de pé) e les gens du roi (as pessoas do rei). Os procuradores
do rei (daí les gens du roi), antes de adquirirem a condição de
magistrados e de terem assento ao lado dos juízes, tiveram
inicialmente assento sobre o assoalho (parquet) da sala das
audiências, em vez de terem assento sobre o estrado, lado a
lado à magistrature assise (magistratura sentada). Conserva-
ram, entretanto, a denominação de parquet ou de magistra-
ture débout.

Para Tornaghi (1987, p.480) “a França foi o primeiro país a registrar o


surgimento de um órgão com características semelhantes às do atual Mi-
nistério Público, bem como, que, após a Revolução Francesa, tal modelo foi
adotado por toda a Europa e pelas Américas, tornando-se, em seguida, uma
instituição mundial”.
Esclarece Rassat (apud Marum, 2005, p. 43) que:

a conformação definitiva da instituição na França somente


se deu com o movimento de codificação ocorrido no perío-
do napoleônico, especialmente com a edição do Código de
Instrução Criminal, de 1810, que subordinou definitivamen-
Especial - maio de 2019 | 165

te o Ministério Público ao Poder Executivo, como seu repre-


sentante junto à autoridade judiciária.

No que concerne a instituição Ministério Público a partir do ano de


1700, Hugo Mazzilli (1995, p. 8), a partir de interessante pesquisa feita por
Mario Vellani, destaca que “a expressão ‘ministère public’ foi usada com mui-
ta frequência nos provimentos legislativos do século XVIII, ora designando
as funções próprias daquele ofício público, ora referindo-se a um magis-
trado específico, incumbindo-o do poder-dever de exercitá-lo, ora, enfim,
dizendo respeito ao ofício”.
Rassat, Mazzilli, Marum e outros chegaram à conclusão de que a expres-
são “Ministério Público” teria nascido “na prática, quase inadvertidamente”,
quando os procuradores do rei falavam de seu próprio mister ou ministério,
e a este vocábulo se uniu, “quase por força natural”, o adjetivo “público”, para
designar os interesses públicos que os procuradores e advogados do rei de-
veriam defender.
Finalizando este tópico, para logo em seguida discorrer sobre a origem
do órgão no Brasil, destacamos uma fala do jurista Bonavides (2008. p. 384),
que também fortalece a nossa tese de que o Ministério Público é agente de
transformação social, in verbis: “o Ministério Público nem é governo, nem
oposição. O Ministério Público é constitucional; é a Constituição em ação,
em nome da Sociedade, do interesse público, da defesa do regime, da eficácia
e salvaguarda das instituições”.

2.1 Origens do Ministério Público no Brasil


Sua origem está diretamente ligada ao direito lusitano, fruto da relação que
se deu pela legislação de Portugal e o Brasil. Otacílio Silva (1991, p. 6) a par-
tir de um importante estudo histórico entre os dois países, assim registrou:
166 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

No Brasil, o primeiro texto levantado por Addon de Mello e ratificado


por José Henrique Pierangelli, no qual se identifica o uso da expressão “Mi-
nistério Público”, baseia-se no art. 18 do Regimento das Relações do Impé-
rio, baixado em 02 de maio de 1847.
O desenvolvimento do Ministério Público no Brasil esteve sempre ligado
ao direito português. Seus primeiros traços descendem do direito lusitano,
vigente no País no período colonial.
As Ordenações Manuelinas, de 1521, já mencionavam o promotor de
Justiça e suas obrigações perante as Casas de Suplicação e nos juízos das
terras. “O promotor de Justiça atuava basicamente como um fiscal da lei e de
sua execução. Nas Ordenações Filipinas, de 1603, são definidas as atribui-
ções do promotor de Justiça junto às Casas de Suplicação, que fica incumbi-
do, além das atribuições de fiscal da lei, do direito de promover a acusação
criminal”. (DIAS; AZEVEDO. 2008, p. 223).
Discorrendo sobre o assunto, Octacílio Silva (1991, p. 6), ao fazer uma
ligeira síntese sobre a ligação histórica dos dois países, assim declara:

O Brasil foi descoberto por Portugal sob o império legal das


Ordenações Afonsinas, que vigoravam desde 1446. Estas fo-
ram substituídas pelas Ordenações Manuelinas, a partir de
1521, as quais vigoraram em Portugal e nas suas colônias até
1868, quando entraram em vigor as Ordenações Filipinas.
Assim, grande parte do Brasil - colônia e parte do Império
foram regidas pelas Ordenações Manuelinas, em cujos Tí-
tulos XI e XII do Livro I se compeliram as obrigações do
procurador dos feitos, do promotor de justiça da Casa da Su-
plicação e dos promotores de justiça da Casa Civil.

Em um excelente levantamento histórico acerca do Ministério Público,


os pesquisadores Dias e Azevedo (2018. p. 223), registraram que:
Especial - maio de 2019 | 167

na época colonial até 1609 apenas funcionava no Brasil a


justiça de primeira instância, e nela ainda não existia órgão
especializado do Ministério Público. Os processos criminais
eram iniciados pela parte ofendida ou pelo próprio juiz, e o
recurso era interposto para a Relação de Lisboa. A figura do
Promotor de Justiça só surgiu em 1609, quando foi regula-
mentado o Tribunal de Relação da Bahia sob as Ordenações
Filipinas.

Ressaltam ainda que:

em 1751 foi criada a Relação da cidade do Rio de Janeiro, que


viria a se transformar em Casa de Suplicação do Brasil em
1808, cabendo-lhe julgar os recursos da Relação da Bahia.
Neste novo tribunal, os cargos de Promotor de Justiça e de
procurador dos feitos da coroa e da fazenda separaram-se e
passaram a ser ocupados por dois titulares, dando o primei-
ro passo para a separação total das funções da Advocacia-
-Geral da União (que irá defender o Estado e o fisco) e do
Ministério Público.

Não havia nenhuma referência constitucional no Período Imperial, a


instituição era apenas tratada no Código de Processo Criminal. Apenas na
Constituição de 1824 foram criados o Supremo Tribunal de Justiça e os Tri-
bunais de Relação, tendo sido nomeados os respectivos Desembargadores,
Procuradores da Coroa, reconhecidos como chefes do parquet. Registra Vas-
concelos (2009, p. 1) que:
168 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Com o advento da Constituição do Império, de 1824, em-


bora ainda não institucionalizado o Ministério Público,
mencionava-se o procurador da coroa, a quem pertencia a
incumbência de acusação no juízo dos crimes. Em 1932, o
Código de Processo Criminal do Império referiu-se ao “pro-
motor da ação penal”.

A Primeira Constituição da República (1891) fez referência expressa ao


Ministério Público no Texto Fundamental, apenas no que diz respeito à es-
colha do Procurador-Geral e à sua iniciativa na revisão criminal pro reo.
Assevera Vasconcelos (2009, p. 2) que a referida Constituição “limitou-se a
dispor que a escolha do Procurador-Geral da República, pelo Presidente da
República, deveria recair dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal”.
Não reconheceu sua condição de órgão autônomo. O Ministério Públi-
co só surgiria como instituição com a Proclamação da República. Segundo
Camargo (1970, p. 6), a nível de legislação o Ministério Público foi previsto:

[...] primeiro pelo Decreto nº 848/1890 que reformou a jus-


tiça no Brasil; depois pelo Decreto nº. 1.030/1980, de 14
de novembro, que organizou a Justiça do Distrito Federal.
No primeiro dos dois diplomas legais, na sua Exposição de
Motivos, afirma-se que “o Ministério Público é instituição
necessária, à qual compete: velar pela execução das leis, de-
cretos e regulamentos que devam ser aplicados pela Justiça
Federal e promover a ação pública onde ela convier”.

O Código Civil de 1916 concedeu ao Ministério Público várias atribui-


ções, dentre estas, a curadoria de fundações, a legitimidade para propor ação
de nulidade de casamento, a defesa de crianças e adolescentes, de interdição.
Especial - maio de 2019 | 169

Em seguida, veio a Constituição de 1934, que delineou, de forma genéri-


ca, suas competências funcionais e trouxe várias conquistas: proporcionou
estabilidade aos seus membros; regulou o ingresso na carreira através de
concurso; o Procurador-Geral da República passou a ser de livre nomeação
e demissão pelo Presidente da República, mediante aprovação pelo Senado
Federal, e garantia de vencimentos iguais aos dos ministros da Corte Supre-
ma; tratou da organização do Ministério Público nas justiças militar e eleito-
ral e determinou a competência privativa dos Estados para legislar sobre as
garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais.
A Carta outorgada na ditadura de Vargas (1937), deu início ao período
conhecido como Estado Novo e foi um retrocesso para a instituição minis-
terial. Praticamente extirpou o parquet do ordenamento constitucional e do
próprio cenário político. A Constituição de 1946 tratou da independência
do Ministério Público como instituição, destacando-lhe título próprio. Vá-
rias conquistas, tais como: sistematização em dois ramos: federal e estadual;
estabilidade na função, só podendo haver demissão ante sentença judicial ou
processo administrativo: concurso de provas e títulos, assegurando garan-
tias de estabilidade e inamovibilidade; promoção na carreira de entrância a
entrância; remoção só por meio de representação motivada pelo Procura-
dor-Geral; assegurada a participação do Ministério Público na composição
dos tribunais. Segundo Almir Pereira (2009. p. 208) “nasceu deste modo o
que se pode chamar de Independência da Instituição, que foi mantida até
esta data, pelas Constituições seguintes, patenteando um Ministério Público
soberano no cumprimento legal para a sociedade e a justiça”.
Em 1966, o governo militar decidiu elaborar uma nova Constituição, in-
corporando as emendas e os atos institucionais antes editados. O Congresso
Nacional foi transformado por ato institucional em Assembleia Constituinte
limitada. Em 24 de janeiro de 1967, foi promulgada a nova Constituição. O
Ministério Público passou a integrar o Poder Judiciário. Segundo Marum
170 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

(2005, p. 51), “Foi como era de se esperar, econômica, dedicando à Insti-


tuição apenas três artigos, determinando a sua organização em carreira na
União, no Distrito Federal, nos Territórios e nos Estados. Posteriormente,
após a ocorrência de novo golpe, uma junta militar, sob a forma de Emenda
Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, decretou a Carta de 1969,
passando o Ministério Público a integrar o Poder Executivo”.
O Código de Processo Civil de 1973 deu tratamento sistemático ao Mi-
nistério Público, conferindo-lhe papel de órgão interveniente (custus legis)
nas causas de interesse público ou que envolvessem interesses de incapazes.
A Carta de 1969 foi emendada em 1977 passando o seu art. 96 a ter nova
redação e passou-se a admitir a edição de Lei Complementar, de iniciativa
do Presidente da República, para estabelecer normas gerais a serem adota-
das na organização do Ministério Público dos Estados. Consequentemente,
foi editada a Lei Complementar nº 40, de 1981, primeira Lei Orgânica do
Ministério Público, que definiu seu estatuto jurídico, com suas principais
atribuições, garantias e vedações. Segundo Dias e Azevedo (2008, p. 228):

Esta lei já definia o Ministério Público como uma institui-


ção permanente e essencial à função jurisdicional do Esta-
do e responsável, perante o Poder Judiciário, pela defesa da
ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade,
pela fiel observância da Constituição e das leis, definição que
viria a ser praticamente repetida pela Constituição de 1988.

Finalmente é publicada a Constituição de 1988, a qual reconheceu de


forma ampla e democrática a real importância da instituição, tendo, a partir
de então o Ministério Público passado a ocupar posição autônoma frente aos
três Poderes Estatais e, no exercício pleno de suas atribuições, pôde passar a
exercer com independência funcional e administrativa todas as atribuições
Especial - maio de 2019 | 171

que lhe são afetas, destinadas, no contexto nacional, a defesa sem reservas
dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a tutela dos interesses di-
fusos. Tornou-se uma instituição permanente, competindo-lhe a defesa do
regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Com efeito, afirma Uadi Lâmmego Bulos (2003, p. 1084):

A Carta de 1988 pode ser apelidada de a Constituição do


Ministério Público. Do ângulo constitucional positivo, nun-
ca se viu tanta atenção ao parquet como agora. Pela primeira
vez um texto constitucional brasileiro disciplinou, enfatica-
mente, a estrutura orgânica-funcional da instituição, as prin-
cipais regras relativas ao seu funcionamento e atribuições.
Acresça-se a isso o alargamento de seu campo funcional, que
ocupou lugar destacado no Estado brasileiro.

Como forma de especificar a atuação, o Ministério Público foi dividido


em: 1) Ministério Público Federal, que se subdivide em Ministério Público
Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e Mi-
nistério Público do Distrito Federal e Territórios; e 2) Ministério Público
Estadual. Após a edição da Lei Orgânica do Ministério Público, a instituição
foi alçada à condição de ator proativo e comprometido com a proteção dos
direitos mais importantes para a conservação do bem-estar da sociedade,
dentro de várias perspectivas, principalmente os direitos humanos.
Nestes termos, demonstra-se a importância do Ministério Público como
regulador do bem-estar social, ao garantir a sua atuação junto ao judiciário,
ora como fiscal de lei, ora como parte do processo, atribuindo-se-lhe, em
especial, a defesa dos interesses coletivos e individuais que proporcionam
à sociedade a garantia de um mínimo existencial. A doutrina diferencia o
Ministério Público como órgão agente, ao promover diretamente ação na
172 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

tutela de direitos coletivos, ou como, órgão fiscalizador, ou seja, custos legis


(artigo 83, inciso II, da Lei Complementar 75/93). Todavia, essa nomencla-
tura tem maior caráter pedagógico, visto que, mesmo quando o Ministério
Público atua como fiscal da lei, possui poderes próprios da parte legitimada
no processo, e mesmo atuando como órgão agente, tem o dever de zelar a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis.
Como vimos, assiste razão a Hélio Tornaghi (1987, p. 480) quando de-
clarou, verbis: “O Ministério Público não surgiu de repente, num só lugar,
por força de algum ato legislativo. Formou-se lenta e progressivamente, em
resposta às exigências históricas”.

3 Antecedentes históricos dos


direitos humanos
A filosofia grega e as mais diversas religiões do mundo são as origens mais
próximas dos chamados direitos humanos. No século XVIII, quando da efer-
vescência do Iluminismo, a expressão direitos humanos passa à condição de
uma categoria explícita. O Iluminismo foi decisivo no desenvolvimento dos
conceitos de direitos humanos. As ideias de Hugo Grotius (1583-1645), um
dos pais do direito internacional moderno, de Samuel von Pufendorf (1632-
1694), e de John Locke (1632-1704) atraíram muito interesse pela Europa
no século XVIII. Locke, por exemplo, desenvolveu um conceito abrangente
de direitos naturais; sua lista de direitos que consiste em vida, liberdade e
propriedade. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) elaborou o conceito sob o
qual o soberano derivava seus poderes e os cidadãos de seus direitos de um
contrato social.
O ser humano em determinado momento, passa a ser visto como um in-
divíduo autônomo, provido pela natureza de determinados direitos funda-
Especial - maio de 2019 | 173

mentais inalienáveis, que podem ser invocados contra todos, particulares ou


Estado, e que deveriam ser protegidos e garantidos por ele. Nesse passo, os
direitos humanos passam a ser pré-condições essenciais para uma existência
digna, passando-se a falar em dignidade da pessoa humana. Na definição de
Castilho (2011, p. 137), a dignidade humana:

Está fundada no conjunto de direitos inerentes à personali-


dade da pessoa (liberdade e igualdade) e também no conjun-
to de direitos estabelecidos para a coletividade (sociais, eco-
nômicos e culturais). Por isso mesmo, a dignidade da pessoa
não admite discriminação, seja de nascimento, sexo, idade,
opiniões ou crenças, classe social e outras.

A história dos direitos humanos está repleta de cartas de direitos e liber-


dades elaboradas em vários períodos, constituindo passos importantíssimos
para se atingir uma certa maturidade. Entretanto, a primeira geração de do-
cumentos restringia o conceito de liberdade apenas conferidos a indivíduos
ou grupos tendo em vista suas posições ou status. São exemplos importantes
deste período: a) Ciro, o Grande (576 ou 590 a.C - 530 a.C) lançou o Cilin-
dro de Ciro, que declarou que os cidadãos do império poderiam praticar
suas crenças religiosas livremente e também abolir a escravidão; b) a Magna
Charta Libertatum de 1215; c) a Bula de Ouro da Hungria (1222), do dina-
marquês Erik Klipping Håndfaestning de 1282; d) o Joyeuse Entrée de 1356
em Brabant (Bruxelas); e) a União de Utrecht de 1579 (Países Baixos) e f) a
Carta de Direitos inglesa de 1689.
Após a Idade Média, o conceito de liberdade tornou-se gradualmente
separado do status e passou a ser visto não como um privilégio, mas como
um direito de todos os seres humanos. Os estudiosos em Teologia e vários
juristas espanhóis tiveram um papel sobreeminente nesse contexto. Desta-
174 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

caram-se os trabalhos de Francisco de Vitoria (1486-1546) e Bartolomé de


las Casas (1474-1566). Seus estudos estabeleceram o fundamento (doutri-
nário) para o reconhecimento da liberdade e da dignidade de todos os seres
humanos, defendendo os direitos pessoais dos povos indígenas que habita-
vam os territórios colonizados pela Coroa Espanhola.
A história moderna é marcada por eventos conturbados de mudanças
sociais e políticas. A Declaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de
1789, assim como a Constituição francesa de 1793, refletiam a emergente te-
oria internacional dos direitos universais. O termo “direitos humanos” apa-
receu pela primeira vez na França, em sua Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão (1789). A Declaração de Independência Americana de
4 de julho de 1776 foi baseada na suposição de que todos os seres humanos
são iguais. Referia-se também a certos direitos inalienáveis, como o direito
à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Tanto as declarações americanas
quanto as francesas foram planejadas como enumerações sistemáticas des-
ses direitos.
Com base no princípio da igualdade contido na Declaração Francesa de
1789, várias constituições elaboradas na Europa por volta de 1800 conti-
nham direitos clássicos, como também traziam artigos que atribuíam res-
ponsabilidades ao governo nas áreas da relação de trabalho e emprego, assis-
tência social, saúde pública e educação. Após isso, os direitos sociais foram
expressamente incluídos na Constituição mexicana de 1917, na Constitui-
ção da União Soviética de 1918 e na Constituição alemã de 1919.
De acordo com Leandro Karnal (2007, p. 94), este momento representa
uma séria guinada na política ao redor do mundo ocidental:

Com todas as suas limitações, o movimento de indepen-


dência significava um fato histórico novo e fundamental: a
promulgação da soberania “popular” como elemento sufi-
cientemente forte para mudar e derrubar formas de governo
Especial - maio de 2019 | 175

estabelecidas de governo, e de cada capacidade, tão inspirada


em Locke, de romper o elo entre os governantes e governa-
dos quando os primeiros não garantissem aos cidadãos seus
direitos fundamentais. Existia uma firme defesa da liberda-
de, a princípio limitada, mas que se foi estendendo em di-
versas áreas.

Os direitos clássicos dos séculos XVIII e XIX estavam diretamente rela-


cionados à liberdade do indivíduo. Juristas, teólogos, filósofos e outros desta
época, defendiam que os cidadãos tinham o direito de exigir que o governo
se esforçasse para melhorar suas condições de vida.  Já no século XIX, hou-
ve frequentes disputas interestatais relacionadas à proteção dos direitos das
minorias na Europa. A partir dessas proteções levaram a várias intervenções
humanitárias e exigiram acordos de proteção internacional. Um dos primei-
ros, o Tratado de Berlim de 1878, que concedeu status legal especial a alguns
grupos religiosos; depois estabeleceu-se o Sistema de Minorias dentro da
Liga das Nações.
A necessidade de padrões internacionais de direitos humanos foi sentida
pela primeira vez no final do século XIX, quando os países industrializa-
dos começaram a introduzir a legislação trabalhista. A primeira convenção
multilateral destinada a salvaguardar os direitos sociais foi a Convenção de
Berna de 1906, que proíbe o trabalho noturno por mulheres. Posteriormente
a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada em 1919, elaborou
muitas outras convenções trabalhistas.
Segundo Hayek (1985, p. 124-127), “Entre revoluções políticas, mu-
danças econômicas, fins de poderosos impérios, dissolução e surgimento
de novas nações, além de enormes conflitos armados entre os séculos XIX
e XX, o mundo passou por sérias transformações políticas, econômicas e
sociais”.
176 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

No magistério de Magnoli (2006, p. 319-390), “os dois principais eventos


marcantes do início do século XX foram as duas grandes guerras mundiais,
que juntas provocaram a morte de milhões de pessoas e mudaram intensa-
mente a geografia política da Europa e do restante do planeta”. Lafer (1988,
p. 178-180) destaca que “uma das grandes questões levantadas pela última
grande guerra foi o genocídio praticado contra determinados povos, promo-
vidos diretamente pelos Estados totalitários, entre eles a Alemanha nazista”.
Quanto ao nascimento de uma das mais importantes organizações, Oliveira
(2012, p. 64-65) registra que:

Foi nesse contexto histórico que foi fundada, em 1945, a Or-


ganização das Nações Unidas (ONU), órgão internacional
criado pelos países vencedores da 2ª Guerra Mundial, cujas
finalidades principais eram de intermediar as relações entre
nações antes e durante conflitos, fosse estes armados ou não,
e buscar garantir os direitos dos indivíduos independentes
de sua nacionalidade, classe social, cor ou gênero.

Uma maneira encontrada pelos membros da ONU para manifestar pu-


blicamente todo o repúdio aos crimes contra a humanidade cometidos pelas
nações derrotadas durante a guerra, foi a aprovação em 1948 do documento
intitulado Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual contempla
e promove um amplo espectro de direitos considerados fundamentais, in-
cluindo aqueles presentes em famosas declarações históricas de direito ante-
riores. Preleciona, nesse sentido, Oliveira (2012, p. 64-65):

No texto da Declaração relacionam-se os direitos civis e


políticos (conhecidos por direitos de primeira geração: li-
berdade) e os direitos sociais, econômicos e culturais (cha-
Especial - maio de 2019 | 177

mados direitos de segunda geração: trabalho), e há, ainda, a


fraternidade como valor universal (denominados direitos de
terceira geração: espírito de fraternidade, paz, justiça, entre
outros – nos considerandos e arts. I, VIII, entre outros).

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, resta superada a visão tradi-


cional de que os Estados têm plena liberdade para decidir o tratamento de
seus próprios cidadãos, apesar de haver ainda hoje resquícios dessa visão. A
assinatura da Carta das Nações Unidas (ONU) eleva os direitos humanos à
esfera do direito internacional. Digno de aplausos é o fato de que todos os
membros da ONU concordaram em tomar medidas para proteger os direi-
tos humanos.
Em 1946, foi estabelecida a Comissão de Direitos Humanos da ONU, a
qual apresentou um projeto de Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) à Assembleia-Geral da ONU (AGNU). Este projeto foi adotado em
Paris em 10 de dezembro de 1948. Esse dia foi mais tarde designado Dia dos
Direitos Humanos.
Vários países subscreveram os princípios e ideais estabelecidos na Decla-
ração Universal dos Diretos Humanos. Na primeira Conferência Mundial
sobre Direitos Humanos, todos os compromissos foram ratificados na Pro-
clamação de Teerã (1968), e repetidos na Declaração e Programa de Ação
de Viena, adotada durante a segunda Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos (1993).
A Carta Internacional dos Direitos Humanos é formada pelo Pacto In-
ternacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. A partir de então foram criados inúmeros
mecanismos de supervisão, incluindo responsáveis pelo monitoramento da
conformidade com os documentos oficiais.
178 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

4 Direitos humanos versus direitos


fundamentais
Hodiernamente, não há consenso quanto à diferença entre direitos humanos
e direitos fundamentais. Entretanto, sabe-se que a positivação desses direitos
ocorre em planos distintos. Os direitos humanos, no plano internacional,
estão consagrados em tratados e convenções internacionais, enquanto os
direitos fundamentais são os direitos humanos positivados na Constituição
de cada país, internamente, com o objetivo de proteção, segurança e digni-
dade aos seus membros. Mas, enumerar esses direitos é tarefa bastante difí-
cil, pois, além dos direitos explicitamente reconhecidos pela Carta Magna,
existem outros que decorrem do regime e dos princípios por ela adotados.
Por outro lado, há doutrinadores, a exemplo de Fábio Konder Compa-
rato, que defendem que as expressões “direitos humanos” e “direitos funda-
mentais são sinônimas”. A denominação “direitos humanos” surgiu da dou-
trina norte-americana, como ficou conhecida na Declaração Universal de
Direitos Humanos da ONU, de 1948. A expressão “direitos fundamentais” é
mais ligada à doutrina alemã, que significa os direitos das pessoas frente ao
Estado que são objeto da Constituição.
Leciona Pérez Luño (apud NOVELINO, 2011, p. 383) que “A expressão
‘direitos fundamentais’ surgiu na França, em 1770, no movimento político e
cultural que deu origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789”.
Cria-se, a partir do Princípio do Devido Processo Legal, um espaço dis-
cursivo, com amplo espectro de intervenção do Ministério Público, que,
a partir da Constituição Federal de 1988, ganha status de garantia funda-
mental, visando a manutenção do Estado Democrático de Direito. Tavares
(2012) salienta que:
Especial - maio de 2019 | 179

Os direitos fundamentais, inclusive, da forma como criados


pelo devido processo, entendido este como o espaço discur-
sivo instituído pelos princípios do contraditório, da ampla
defesa e da isonomia, já são dotados de liquidez (auto-execu-
toriedade) e certeza (infungibilidade), e uma vez constantes
da Constituição, compõem esta que é um título executivo
cartularizado constitucionalmente e oponível face a gestão
governativa como forma de implemento dos direitos à vida,
liberdade e dignidade.

O Ministério Público tem importante papel na defesa contra o arbítrio


do poder estatal desse conjunto institucionalizado de direitos e garantias do
ser humano (direitos fundamentais), o respeito à dignidade, o estabeleci-
mento de condições mínimas de vida e o desenvolvimento da personalidade
humana.
Para tentar entender a função dos direitos fundamentais, colacionamos
os ensinamentos do professor Dimitri (2008, p. 64):

Para compreender a função dos direitos fundamentais, de-


ve-se imaginar a relação entre o Estado e cada indivíduo
como relação entre duas esferas de intervenção. Os direitos
fundamentais garantem a autonomia da esfera individual e,
ao mesmo tempo, descrevem situações nas quais um deter-
minado tipo de contrato é obrigatório.

Os direitos humanos compreendem os direitos fundamentais de todos os


seres humanos. Não importa seu sexo, sua orientação sexual, sua cor, se indí-
gena, deficiente físico, idoso, criança ou adolescente, seu local de nascimen-
to, se portador de alguma doença etc. Todos devem ser protegidos e respei-
180 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

tados, pelo fato de serem humanos. Devem ser preservados os princípios da


dignidade, da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da responsabilidade,
da autoridade e da universalidade. Defende Fernandes (2004, p. 111) que:

Para que os direitos e as liberdades fundamentais do homem


possam ser consagrados, protegidos e respeitados é preciso
que os regimes políticos em vigor respeitem tais princípios.
Caso contrário, os direitos humanos serão desrespeitados,
cerceados ou negados. Segundo ele, o que aconteceu ao lon-
go da história da humanidade mostra-nos claramente que
a vigência de regimes aristocráticos, ditatoriais e totalitários
não foi favorável à consagração e salvaguarda dos direitos
humanos, e que estes apenas foram proclamados e salva-
guardados em países onde vigoraram regimes democráticos.

A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 consagrou


uma série de direitos fundamentais, dentre eles, destacamos: o direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Dedicou um capí-
tulo para definir os direitos sociais, que se encontram catalogados no art.
6º, como: os direitos a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança,
proteção à maternidade e à infância.
O princípio da dignidade da pessoa humana constitui, segundo o art. 1º
da Constituição Federal Brasileira de 1988, um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito; é essencial a uma sociedade livre, justa e igualitária.
Cabe ao Ministério Público velar para que o texto da Constituição e a reali-
dade se encontrem, simbolizando maximamente o dever-ser normativo e o
ser da realidade social.
Segundo Soares (2010, p. 20), “a dignidade da pessoa humana, antes
mesmo de seu reconhecimento jurídico nas Declarações Internacionais de
Especial - maio de 2019 | 181

Direito e nas Constituições de diversos países, figura como um valor, que


brota da própria experiência axiológica de cada cultura humana, submetida
aos influxos do tempo e do espaço”.
Estudando o fundamento dos Direito Fundamentais, afirmou Bobbio:

o problema do fundamento dos direitos fundamentais teve


sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do
Homem aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Uni-
das, em 10 de dezembro de 1948; que representa a manifes-
tação da única prova através da qual um sistema de valores
pode ser considerado humanamente fundado e, portanto,
reconhecidos; e essa prova é o consenso geral acerca da sua
validade. Pela importância e necessidade no Estado demo-
crático de direito, sem dúvida, os direitos humanos funda-
mentais são essenciais ao ordenamento jurídico de qualquer
país, uma vez que, tem como finalidades precípuas assegurar
a promoção de condições dignas de vida humana e de seu
desenvolvimento, bem como garantir a defesa dos seres hu-
manos contra abusos de poder econômico praticados pelos
órgãos do Estado.

Importante observação faz Comparato (2001, p. 227), ao dizer “que a vi-


gência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições,
leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências
de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabe-
lecidos, oficiais ou não”.
Resumindo os ensinos de Penteado Filho (2006, p. 15), diversas teorias
procuraram justificar e delimitar o fundamento dos direitos humanos, me-
recendo destaque a jusnaturalista e a positivista. A primeira teoria, jusna-
182 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

turalista, inscreve os direitos humanos em uma ordem suprema, universal,


imutável, não se tratando de criação humana; e a segunda, denominada te-
oria positivista, assevera que os direitos humanos são criação normativa, na
medida em que são legítima manifestação da soberania do povo. Assim, só
seriam direitos humanos aqueles reconhecidos pela legislação positiva.
Para o jurista espanhol Antônio Perez Luño (apud SANTOS, 2003), para
quem a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade são funda-
mentos dos direitos fundamentais, os direitos humanos seriam:

um conjunto de faculdades e instituições que, em cada mo-


mento histórico concretizam as exigências da dignidade, da
liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser re-
conhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em
nível nacional e internacional.

Modernamente, o que se tem visto é uma preocupação de buscar uma


sólida teoria acerca dos direitos humanos, redefinindo situações para ade-
quá-las aos anseios dos indivíduos, em confronto com as suas necessidades
mais urgentes, buscando, também, torná-lo compreensíveis pelas várias ca-
madas sociais. O Ministério Público entende que a dignidade da pessoa hu-
mana figura um valor, que surge intrinsecamente nas experiências culturais
da humanidade, sujeitas às inconstâncias do tempo e do espaço.
Ciente de que a sociedade é dinâmica e se encontra em constante mu-
tação, numa relação contínua com o progresso técnico-científico, a infor-
matização, a globalização e outros fenômenos mundiais, é que o Ministério
Público, no seu mister, tem se preparado a fim de enfrentar um direito vivo,
que precisa se transformar em realidade e não permanecer como um sim-
ples programa, se adequando à evolução, e aos novos desafios postos através
do tempo. Já afirmava Norberto Bobbio que os direitos humanos são um
Especial - maio de 2019 | 183

construído jurídico historicamente voltado para o aprimoramento político


da convivência coletiva.
É possível perceber com certa facilidade que a evolução de tais direitos
se ampliou e se amplia constantemente. Na atualidade, por exemplo, a dou-
trina dominante fala em direito à autodeterminação, direito ao patrimônio
comum da humanidade, direito a um meio ambiente saudável e sustentável,
direito à democracia, direito à informação, direito ao pluralismo, direito à
paz e ao desenvolvimento.
Os direitos humanos e fundamentais têm sido temas bastante discutidos
e sem sombra de dúvida, de suma relevância no presente espaço e tempo.
Nesta linha de pensamento, Bonavides (2008, p. 61) é enfático, ao asseverar:

Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ig-


norância, analfabetismo e exclusão. A democracia só é um
processo ou procedimento justo de participação política se
existir uma justiça distributiva no plano dos bens sociais.
A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõem,
assim, uma base jusfundamental incontornável, que come-
ça nos direitos fundamentais da pessoa e acaba nos direitos
sociais.

Rotineiramente, o Ministério Público tem ingressado com ações na Jus-


tiça e realizado termos de compromissos extrajudiciais, de forma individu-
al ou coletiva, cobrando do Estado a implementação dos direitos sociais e
econômicos, o cumprimento, a efetivação, o reconhecimento dos direitos
sociais, alguns deles relacionados à saúde, à educação, à moradia, dentre ou-
tros. Grande parte da população não tem plano de saúde, não tem condições
de custear suas educações em escolas e universidades particulares, direitos
esses, contemplados nas convenções, constituições e demais leis que regem
as matérias nas nações. Há ainda os que não sabem nem mesmo como re-
querer, como lutar pela conquista de tais direitos.
184 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

5 O Ministério Público como agente


de transformação social
A atual Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de
outubro de 1988 e denominada Constituição Cidadã pelo deputado Ulysses
Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, traz em seu
texto que o Ministério Público é um órgão de soberania popular e um ins-
trumento da sociedade para a realização dos fins a que ela se propõe.
A Constituição Cidadã manteve e ampliou as hipóteses de atuação do
Ministério Público na defesa dos interesses sociais e individuais indisponí-
veis, ao mesmo tempo em que o desvinculou e lhe conferiu independência
quase total dos órgãos do governo. Essa independência só não pode ser con-
siderada total porque se manteve a nomeação dos Procuradores-Gerais pe-
los chefes do Executivo. Essa Constituição conferiu à instituição um sentido
finalístico, ou seja, um critério constitucional capaz de definir os fins para
os quais a instituição se volta, deixando claro ser o Ministério Público um
órgão da soberania popular, um instrumento da sociedade para a realização
dos fins a que ela se propõe.
Os membros do Ministério Público, como agentes políticos, devem atuar
com ampla liberdade funcional, ficando condicionados apenas aos parâme-
tros das legislações pertinentes aos casos submetidos às suas apreciações.
Segundo Menna (2012, p. 33):

Ao exercer o direito, submete-se aos mesmos princípios, de-


veres e obrigações concernentes às partes; no entanto, não
está sujeito às custas, despesas processuais e sucumbência,
sendo que, por força do art. 188 do Código de Processo Cí-
vel, terá prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para
contestar.
Especial - maio de 2019 | 185

Uma das maiores novidades introduzidas por esta Constituição foi a va-
lorização do Ministério Público como órgão de defesa da sociedade e patro-
cinador dos interesses coletivos contra os detentores do poder político e eco-
nômico e inclusive contra o próprio Estado e seus agentes. Como acentua,
oportunamente, Rodrigo César Rebello Pinho (2002, p. 131-132):

para a consolidação do Estado Democrático de Direito pre-


visto na Constituição brasileira não basta à imparcialidade
do Poder Judiciário; é indispensável à existência de um ór-
gão independente que o movimente na defesa dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, sendo essa a razão pela
qual o Ministério Público é considerado essencial à função
jurisdicional do Estado.

A essência do Ministério Público está na busca diuturna da Justiça, con-


substanciada, também, na defesa dos direitos sociais, estejam eles explícitos
ou implícitos, porquanto é nesta instituição que a sociedade brasileira espera
se revelarem os princípios constitucionais. (D´ANGELO. 2010, p. 391)
Quanto aos Direitos Humanos em específico, o Ministério Público se
propõe a atuar promovendo a igualdade étnico-racial, defendendo os di-
reitos da comunidade LGBTT, reconhecendo a existência de comunidades
tradicionais e oferecendo atendimento às pessoas em situação de rua. Busca
ainda intervir na resolução de conflitos agrários e promover a igualdade de
gênero, dentre outros temas relacionados à defesa dos direitos fundamentais
das parcelas mais vulneráveis da população01.
Essa atuação do órgão se dá através de suas Promotorias de Justiça, que
são, segundo o artigo 6º, inciso II da Lei Orgânica Nacional do Ministério

01 Disponível em: <http://www.direito.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=208>.


186 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Público (Lei Federal 8625/93), órgãos de Administração do Ministério Pú-


blico. Elas são compostas por pelo menos um cargo de promotor de Justiça
e seus serviços auxiliares.
Conforme disposto no site institucional do Ministério Público de Per-
nambuco02:

As promotorias de Justiça podem ser judiciais (quando os


promotores atuam em processos judiciais) ou extrajudiciais
(quando os promotores são responsáveis pela instauração
de procedimentos extrajudiciais, como por exemplo, pro-
cedimentos preliminares, inquéritos civis, procedimentos
de investigação criminal). Elas ainda podem ser especiali-
zadas (quando atuam numa determinada matéria, como
por exemplo, Direito da Criança e do Adolescente, Defesa
do Patrimônio Público) ou gerais (quando atua em diversas
matérias).

Através das Promotorias de Justiça comum o Ministério Público participa


das ações já propostas no judiciário defendendo os direitos humanos e fun-
damentais. Essa é a forma de atuação mais conhecida do órgão. Porém, ele
também faz um trabalho extrajudicial, através de Audiências Públicas, Reuni-
ões, Procedimentos Administrativos Preliminares, Inquéritos Civis, Procedi-
mentos Investigatórios Criminais, Recomendações e Termos de Ajustamento
de Conduta (art. 25 e 26 da Lei 8.625/93). Com esse trabalho, o Ministério
Público visa a conciliação e a mudança de valores da sociedade, trazendo um
resultado de maneira mais rápida e efetiva. Isso é uma demonstração evidente
de como esse órgão pode ser um agente de transformação social.

02 Disponível em: <https://www.mppe.mp.br/mppe/institucional/promotorias-justica>.


Especial - maio de 2019 | 187

Não há como pensar em transformação social e mudança de valores sem


a participação efetiva das pessoas por meio dos movimentos sociais. Por
isso, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio da Co-
missão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF), organizou até 2017
o Encontro Nacional do Ministério Público e Movimentos Sociais. Como
podemos entender a partir do site do CNMP03, “o objetivo é fomentar o
debate aberto, transparente e colaborativo sobre a missão constitucional do
Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais”.
Após a quarta edição do evento, em 2017, foi aprovada, pelo Plenário
do CNMP, Recomendação para que as unidades e os ramos do Ministério
Público realizem encontros com movimentos sociais a fim de atender as es-
pecificidades de cada estado ou localidade  de forma aprofundada, garan-
tindo com isso o acesso da população ao conhecimento de seus direitos e
possibilitando o processo de transformação social.

6 Conclusão
O Ministério Público é uma instituição de suma importância em uma so-
ciedade, haja vista as atribuições que lhe são conferidas por lei. É responsá-
vel pela preservação, manutenção e defesa dos direitos fundamentais. Tem
como meta a edificação de um Estado social de direito, capaz de garantir
vida digna, justa e humana para todos, preservando os princípios e valores
constitucionais, primando pela efetivação das leis, zelando pela condução da
coisa pública e cada vez mais, procurando se firmar como um instrumento
de transformação social.

03 Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/10697-relatorio-iv-encontro-nacional-


do-ministerio-publico-e-movimentos-sociais>.
188 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Este Órgão deve agir com autonomia em nome da sociedade, da lei e da


Justiça, ser atuante, primar pela efetivação das leis, zelar pela condução da
coisa pública e, cada vez mais, procurar se firmar como um instrumento de
transformação social.
Modernamente, é considerado o defensor dos valores fundamentais da
sociedade e ouvidor do povo. Tem como meta a edificação de um Estado
social e democrático de direito, capaz de garantir vida digna, justa e humana
para todos, preservando os princípios e valores constitucionais.
É um órgão de transformação social, que luta pela efetivação e consagra-
ção dos direitos dos cidadãos, sendo de extrema importância para o engran-
decimento de uma nação.
No exercício de suas atribuições, o MP dispõe dos meios para promover
alterações substanciais na realidade, como foi demonstrado ao longo do tex-
to. Diante da urgência e da necessidade de se efetivar os direitos fundamen-
tais e os direitos humanos, o Ministério Público deve continuar trabalhando
na ampliação de sua atuação extrajudicial e no incentivo à participação po-
pular, se colocando, dessa maneira, como um verdadeiro agente de transfor-
mação social.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apre-
sentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Por um


Direito Constitucional de luta e resistência. Por uma Nova Hermenêutica. Por
uma Repolitização da legitimidade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
Especial - maio de 2019 | 189

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília: Câmara dos Deputados, 2006.

BRASIL. LEI Nº 8.625, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1993. Lei Orgânica do Mi-


nistério Público, Brasília,DF, 1993. BULOS, Uadi Lâmmego. Constituição Federal
Anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

CAMARGO, Ruy Junqueira de Freitas. Tese aprovada pelo III Congresso do MP


Fluminense. 1970.

CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.

D’ANGELO, Suzi e Élcio. Direito de Família. 1ªed. Leme/SP: Anhanguera, 2010, p.


391.

DIAS, João Paulo e AZEVEDO, Rodrigo, et al. O Papel do Ministério Público:


estudos comparados dos países latino-americanos. Coimbra: Almedina, 2008.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed.,


rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001.

FERNANDES, António José. Direitos Humanos e Cidadania Europeia. (Funda-


mentos e Dimensões). Coimbra: Almedina, 2004.

HAYEK, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade, Vol. II. São Paulo:


Visão, 1985.

KARNAL, Leandro. Estados Unidos: A Formação da Nação. 4º ed., São Paulo:


Contexto, 2007.
190 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia


das Letras, 1988.

MACHADO apud MARUM, Jorge de Oliveira. Ministério Público e Direitos


Humanos. Campinas: Bookseller, 2005.

MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. 3º ed., São Paulo: Contexto,


2006.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público apud Goyet,


Francisque. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

MENNA, Fábio de Vasconcelos et al. Direito Processual Civil. Niterói, RJ: Impe-
tus, 2012.

MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do ministério público no processo civil à


luz da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

OLIVEIRA, Erival da Silva. Direitos Humanos. 3º ed. São Paulo: Revista dos


Tribunais, 2012.

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual de Direitos Humanos. São Paulo:


Editora: Método, 2006.

PEREIRA, Almir.O Ministério Público e a Legislação Pátria. In: Justitia, órgão do


Ministério Público de São Paulo.2009. p. 208; v. 87.

PÉREZ LUÑO, Antônio Enrique, apud NOVELINO, Marcelo. Direito constitucio-


nal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.
Especial - maio de 2019 | 191

PINHO, Rodrigo César Rebello. Da Organização dos poderes e histórico das


Constituições. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002 (Coleção Sinopses Jurídicas) p. 131-
132. v. 18.

RASSAT apud MARUMA, Jorge de Oliveira. Ministério Público e Direitos Huma-


nos. Campinas: Bookseller, 2005.

SANTOS, Enoque Ribeiro dos. O papel dos direitos humanos na valorização do


direito coletivo do trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 157, 10 dez. 2003.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4609>. Acesso em: 13 abr. 2012.

SILVA, Octacílio Paulo. Ministério Público. São Paulo: Sugestões Literárias S/A,
1991.

SOARES, Ricardo Mauricio Freire. O princípio constitucional da dignidade da


pessoa humana: em busca do direito justo. São Paulo: Saraiva, 2010.

TAVARES, Fernando Horta, et al. Urgência de Tutelas: por uma teoria de efe-
tividade do processo adequada ao Estado de Direito Democrático. Disponível
em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Fernando%20Horta%20Tavares,%20
Bruno%20de%20Mattos,%20%C3 %89rico%20Casagrande,%20Zamira%20de%20
Assis%20-formatado.pdf>. Acesso em: 20/04/2012.

TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. Edit. Saraiva –São Paulo, 4ª Ed, Vol
1, 1987.

VASCONCELOS, Clever Rodolfo de Carvalho. Ministério Público na Constitui-


ção Federal: doutrina esquematizada e jurisprudência: comentários aos artigos
127 a 130 da Constituição Federal. São Paulo: Atlas, 2009.
Especial - maio de 2019 | 193

O MINISTÉRIO PÚBLICO
NA DEFESA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO
CONSUMIDOR NO PLANO
SUBNACIONAL

RENATA GONÇALVES MARIA IVANÚCIA MARIZ


PERMAN ERMINIO

Graduada em Direito, pela Mestra e Doutoranda em Direito


Universidade Católica de pela Universidade Católica de
Pernambuco. Mestranda em Pernambuco. Especialista em
Direito, pela mesma instituição. Ciências Políticas pela mesma
Advogada. E-mail: renata. instituição. Professora de Direito
perman@hotmail.com Constitucional e Administrativo
na UNINABUCO/Recife.
E-mail: ivamariz@hotmail.com
194 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO
O presente artigo busca discutir a possibilidade de os Estados do Mato Gros-
so do Sul e do Distrito Federal protegerem os direitos e garantias funda-
mentais do consumidor por leis infraconstitucionais (ordinárias e comple-
mentares) e Constituições estaduais. O problema apresentado é como está
distribuída a proteção dos direitos e garantias fundamentais do consumidor
nas legislações subnacionais desses respectivos Estados. A finalidade é es-
tabelecer uma grande planilha na qual se possa verificar quantitativamente
e qualitativamente toda a produção subnacional em matéria de direito do
consumidor nesses Estados membros.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos e garantias Fundamentais do Consumidor;


Repartição de competências legislativas; Constituição estadual; Lei Orgâni-
ca do Distrito Federal.
Especial - maio de 2019 | 195

1 Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º XXXII,
tutela o direito do consumidor como garantia fundamental. O artigo 24, V e
VIII da CRFB afirma que cabe à União, aos Estados e ao Distrito Federal le-
gislar concorrentemente sobre produção e consumo, assim como responsa-
bilidade por dano ao consumidor. Dessa forma, é adequado pesquisar como
se efetiva o desdobramento dessa proteção consumerista no plano subnacio-
nal, através da Constituição estadual do Mato Grosso do Sul e da Lei Orgâni-
ca do Distrito Federal, assim como, de todas as leis ordinárias e complemen-
tares que de alguma forma tratam do direito do consumidor do período de
2008 até 2018, esta última, foi realizada nas Assembleias legislativas.
O objetivo geral é o estudo de direitos e garantias fundamentais no plano
estadual, com especial atenção ao direito do consumidor, para que se possa
verificar sua pertinência no âmbito subnacional. Dessa maneira, pretende-
-se pesquisar a repartição de competências legislativas concorrentes entre
União e Estados membros, já que o direito consumerista tem fundamento
no artigo 24 da CRFB (que trata da competência concorrente).
Por conseguinte, objetiva-se mapear o direito do consumidor e a sua
previsão na Constituição estadual do Mato Grosso do Sul e na Lei Orgânica
do Distrito Federal, para identificar se o legislador estadual se ateve a sua
competência de legislar sobre produção e consumo. Depois, será realizada
uma pesquisa nas Assembleias legislativas contendo todas as leis ordinárias
e complementares que tratam de alguma forma o direito fundamental do
consumidor dos anos de 2008 até 2018.
Dentro desta perspectiva, este estudo se propõe também a observar o
papel do Ministério Público na garantia deste direito, tendo em vista sua
atuação nos centros de Apoio Operacional de Defesa do Consumidor, “que
tem atribuições voltadas à divulgação de matérias de interesse das Procu-
196 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

radorias e Promotorias de Justiça do Estado”, que atua, dentre outras atri-


buições “fomentando a realização de operações conjuntas e integradas, bem
como disponibilizando informações necessárias para facilitar a atuação na
defesa coletiva dos consumidores”. Também será feito um cruzamento dos
dados levantados para que se verifique quais dos Estados membros citados
observam uma tutela mais efetiva sobre o aspecto de suas legislações. Como
resultado esperado, pretende-se, por exemplo, diagnosticar, se os cidadãos
do Mato Grosso do Sul possuem uma maior proteção de direitos fundamen-
tais do consumidor do que quem mora no Distrito Federal.

2 A Federação Brasileira e
repartição de competências
legislativas concorrentes
A União e os Estados membros devem desempenhar suas competências
legislativas de maneira coerente e harmônica, sem que um ente federativo
invada a esfera de competência privativa do outro sob pena, da norma ser
considerada inconstitucional. As competências concorrentes são uma ma-
neira de alcançar um federalismo equilibrado, no qual a União e os Estados
exerçam suas competências legislativas previstas na Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil de 1988.
As competências legislativas concorrentes têm amparo legal no artigo 24
da CRFB, e Horta (2003) usa a expressão “condomínio legislativo”, para de-
monstrar o local de encontro que existe quando União e Estados membros
exercem competências legislativas concorrentes. As competências concor-
rentes procuram um federalismo de equilíbrio entre União e Estados.
No direito constitucional, federalismo é a forma de Estado dada pela
Constituição. Na visão de Labanca (2011, p.19), hoje em dia a ideia mais
Especial - maio de 2019 | 197

importante do federalismo é uma forma de manter a diversidade entre os


membros do pacto federativo. O federalismo pode ser uma maneira de pos-
sibilitar a repartição de poderes e não necessariamente é um modo de man-
ter as distinções entre as comunidades políticas. A análise do federalismo
pressupõe que, na medida em que o poder local (estadual) for sendo for-
talecido, isso consequentemente representará um abrandamento do poder
central (federal).
Os Estados membros têm direito de atuar na produção de leis consti-
tucionais e infraconstitucionais, pois um dos atributos da federação é jus-
tamente a atuação da vontade dos Estados no que a União quer, devendo
existir uma interação entre as unidades federadas, pois ambos têm interesses
em comum, e, assim, com essa interação de interesses, o federalismo é for-
talecido. Labanca (2011, p. 39) afirma que “o conjunto de interesses comuns
entre a União e as entidades estaduais forma o objetivo comum, ou seja, o
objetivo do Estado Federal como um todo”.
No federalismo, os Estados membros têm autonomia. Isso quer dizer que
eles têm a faculdade de criar as suas próprias normas. A repartição de com-
petências é vital para o federalismo, de maneira que ele só existe se houver
uma repartição de competências entre União e Estados.
A relevância da repartição de competências legislativas está no fato de
que ela é o postulado basilar de toda a edificação Constitucional do Estado
federal, ou seja, ela é o ponto central do federalismo, sendo, assim, uma das
maneiras deste sistema de balancear as competências das entidades parciais
e a central da União. Assim, a organização Federal emana da repartição de
competências, pois ela vai suscitar as regras de configuração da União e dos
Estados, determinando a atividade constitucional de cada um (HORTA,
2003, p. 310).
A competência concorrente estabelece os limites que cada núcleo de po-
der político desempenha em sua competência de maneira única sem classes
198 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

não sendo cumulativa. “Na competência concorrente, a legislação estadu-


al é específica, move-se em um campo próprio, não preenchendo lacunas”
(LOBO, 1989, p. 97).
Quando se utiliza a expressão “centralização e descentralização na re-
partição de competências”, é porque “centralização” é quando há uma con-
centração de competências privativas na União ou na esfera federal. Já a
descentralização, ocorre quando as competências privativas da União são
diminuídas e as competências estaduais são ampliadas. O ideal é que a
Constituição reparta as competências entre União e Estados de forma igua-
litária (LABANCA, 2011, p. 52). “Quando se fala em centro, quer-se referir à
atuação da esfera federal, que pode ser chamada de União, governo federal,
entidade central.”
O federalismo dual foi assim chamado, porque em uma federação há
duas esferas de governo: o Federal e o Estadual, e cada um tem seu campo
de ação. Nele, houve um favorecimento dos Estados membros, isso porque
as competências estaduais eram reservadas e as da União listadas em um
número mais restrito. O outro fator foi a tensão e o rigor na divisão da repar-
tição de competências entre esses entes. Esses fatores são responsáveis para
que os interesses dos Estados fossem maiores que os da União. Nessa fase,
havia uma interpretação do federalismo que dava prioridade e privilégio à
autonomia do Estado membro (LABANCA, 2011, p. 55).
Com o fim do federalismo dual, houve uma tendência a centralizar a
repartição de competências legislativas na esfera federal, ampliando o rol
de atuação da União em face dos Estados membros (BARACHO, 1995). A
repartição de competências, entre União e Estados, aparece com o objetivo
de oportunizar os Estados membros a dividir a legislação relativa a assuntos
de princípios ou normas gerais da União gerando um lugar mais favorável
a cooperação.
Especial - maio de 2019 | 199

2.1 Direitos e garantias fundamentais do


consumidor no plano estadual
Os direitos e garantias fundamentais são muito discutidos na esfera federal
com previsão na Constituição República Federativa do Brasil em artigo 5º,
na qual a garantia do consumidor tem arrimo no inciso XXXII, que podem
legislar concorrentemente a União, os Estados e o Distrito Federal sobre
produção e consumo, e também esses entes se responsabilizam por dano
causado ao consumidor.
A proteção do consumidor precisa ser desdobrada e discutida também
no plano estadual, pois o Brasil é um país federalista, e isso pressupõe a atu-
ação do legislador na produção de direito. Logo, a proteção dessas normas
tem previsão em Constituições estaduais e leis infraconstitucionais, não sen-
do um tema exclusivo a ser tratado pelo Congresso Nacional.
É oportuno diferenciar direitos e garantias, os primeiros são os benefí-
cios, proveitos e ganhos descritos na norma da Constituição, mas as garan-
tias são os recursos e os instrumentos pelos quais se garantem os direitos
positivados e protegidos na Carta Magna, servindo como meios para repa-
rar direitos que foram violados. Paulo Gustavo Branco afirma que os direitos
estudam e têm como objetivo um bem específico da pessoa humana, como
por exemplo, o direito à vida e à integridade física. Enquanto isso, as ga-
rantias fundamentai são leis que tutelam direitos, limitando, por exemplo a
forma como o poder é exercido (BRANCO, 2014, p. 165).
As garantias fundamentais dão às pessoas a faculdade de cobrar dos Po-
deres Públicos a obediência ao direito que instrumentalizam. Entretanto, de
acordo com o referido autor, a Constituição garante tratamento igualitário
aos direitos e garantias fundamentais, “não apresentando maior importância
prática a distinção entre ambos conceitos” (BRANCO, 2014, p. 169).
200 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Paulo Bonavides discorda de Paulo Gustavo Branco. Em seu livro, Bo-


navides afirma que garantia é sempre em razão de um interesse que busca
tutelar para protegê-lo de uma situação de risco. A garantia é uma forma
ou maneira de defesa, e Bonavides diz que “é um erro confundir direitos de
garantias, de fazer um sinônimo da outra, já que isso tem sido reprovado
pela boa doutrina, que separa com nitidez os dois institutos” (BONAVIDES,
2000, p. 526). Já para Carlos Sánchez Viamonte, garantia é a “proteção prá-
tica da liberdade levada ao máximo de sua eficácia, é a instituição criada em
favor de um indivíduo, para que, armado com ela, possa ter ao seu alcance
imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais” (VIA-
MONTE, 1958, p. 123).
Dessa forma, garantias são leis que estão positivadas na Carta Magna
que asseguram a efetividade de um direito. Rui Barbosa diz que “Direito é a
faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar ou não praticar certos
atos. Garantia ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o
defende contra a ameaça de certas classes” (BARBOSA, 1987, p. 193).
O catálogo de direitos fundamentais positivados nas Constituições, prin-
cipalmente aqueles que estão no artigo 5, título II da CRFB, não devem ser
taxativos, pois não deve existir um esvaziamento desses direitos. É necessá-
rio, inserir uma “cláusula de abertura”, que é justamente dar atenção e reco-
nhecer direitos fundamentais que não estão expressos na Carta Maior, mas
que merecem ser considerados e protegidos (SANTOS, 2017).
Embora a proteção do consumidor tenha fundamento no artigo 5, in-
ciso XXXII da CRFB, aduzindo que “o Estado promoverá, na forma da lei,
a defesa do consumidor”, é insuficiente e superficial a proteção dada pela
Carta Maior a esse direito fundamental. Dessa forma, é importante que essa
proteção também seja complementada pelo plano subnacional, através de
Constituições estaduais e leis infraconstitucionais. O Brasil deveria se espe-
lhar no sistema de proteção multinível da União Europeia, uma vez que, nes-
te último, é possível falar em proteção multinível de direitos fundamentais.
Especial - maio de 2019 | 201

A tutela multinível possibilita uma maior e mais completa proteção de


direitos humanos, pois se as garantias nacionais falharem, com base no prin-
cípio da subsidiariedade, o sistema internacional pode suprir tal falha. Além
disso, na União Europeia, a proteção é complementada pela ordem jurídica
comunitária que influencia os sistemas jurídicos dos Estados membros.
O governo ou proteção multinível é assim chamado porque os direitos
fundamentais são regulamentados em diferentes níveis: âmbito subnacional,
nacional e supranacional. Na América Latina existe proteção nacional atra-
vés das Constituições estaduais, existe também proteção internacional pelo
Pacto de San José e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, mas
não existe proteção no âmbito supranacional na América Latina (GALIN-
DO, 2014).
Na América Latina, a proteção multinível sempre será uma cooperação
entre Estados, sendo incapaz de ter uma proteção multinível supra-estatal,
pois o Brasil não chegou no nível de proteção de direitos fundamentais da
União Europeia, uma vez que o Brasil tem problemas sociais muito particu-
larizados. No ordenamento jurídico brasileiro, prepondera a tese de que a
proteção multinível de direitos fundamentais é um constitucionalismo inte-
ramericano, pois prevalece o direito interno e depois vem o externo.
O foco desse artigo é a proteção subnacional de direitos fundamentais,
ou seja, quando os Estados protegem direitos humanos e eles têm uma rela-
ção e interação com a ordem constitucional nacional, de forma que as Cons-
tituições de cada Estado membro incluem em seus artigos os direitos que o
Estado quer reconhecer aos seus cidadãos.
Dworkin, afirma que entregar a decisão final ao judiciário é uma tarefa
que coloca em risco a democracia, pois existe um núcleo duro de direitos
que nem o judiciário é capaz de perpassar. A teoria de Dworkin pode ser
aplicada no Brasil, porque mesmo cooperando entre Estados existem núcle-
os de direitos fundamentais que estão consagrados nas Constituições, como
por exemplo, direitos e garantias fundamentais (DWORKIN, 2006).
202 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

DWORKIN (2006, p. 117) afirma:

O sistema de direitos individuais estadunidense é um siste-


ma de princípios abrangente, cujas bases estão na igualdade,
na liberdade e na garantia do due process of law, de modo que
é estranho que uma pessoa que acredita que cidadãos livres
e iguais deveriam ter a garantia de um determinado direito
individual não pense também que a própria Constituição já
contém esse direito, a menos que a história constitucional já
tenha rejeitado de forma decisiva.

Na parte da Constituição Federal relativa aos direitos individuais e co-


letivos é presumível ter normas impositivas, que são aquelas que impõem
uma tarefa e um programa, como por exemplo as normas relativas à tutela
do consumidor, que está presente no artigo 5, XXXII da CRFB (SARLET,
2015, p. 166).
Nesse sentido, aduz Sarlet (2015, p. 265):

O complexo das normas constitucionais definidoras de direi-


tos fundamentais, podemos observar, se tomarmos o exem-
plo do artigo 5 inc. XXXII da CF, que apesar de tratar-se
de norma insculpida no título “dos direitos fundamentais”
(sendo uma norma definidora de direito), cuida-se mais
propriamente, de norma a ser implementada pelo Estado
(a proteção do consumidor), podendo falar-se também de
norma-objetivo.

A inserção da proteção do consumidor no campo de direitos fundamen-


tais previstos no artigo 5º da CRFB, torna-o um direito fundamental referen-
Especial - maio de 2019 | 203

te ao direito da personalidade. Dessa forma, o enquadramento da proteção


do consumidor nos princípios da ordem econômica quer dizer um dever
de certificar assistência às necessidades vitais do consumidor, referente, por
exemplo, a sua segurança e saúde. As Constituições estaduais e leis infra-
constitucionais (ordinárias e complementares) desempenham uma função
didática na proteção desses direitos, devendo produzir efeitos práticos ple-
nos. (SARLET, 2015)

2.2 Direitos fundamentais do consumidor


na Constituição do Estado do Mato Grosso
do Sul e na Lei Orgânica do Distrito Federal
e a atuação do MP em seus centros de apoio
A Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul protege os direitos funda-
mentais do consumidor em vários artigos, dentre eles: O artigo 133 afirma
que incluem-se nas funções do Ministério Público do Estado deliberar sobre
a participação em organismos estatais de defesa do consumidor. Já o artigo
142-B aduz que é função da Defensoria Pública patrocinar os direitos e in-
teresses do consumidor lesado.
No mesmo diploma normativo, em seu artigo 167 VIII, afirma que o Es-
tado estabelecerá e executará plano estadual de desenvolvimento integrado
que terá como objetivos a defesa do consumidor.
O Capítulo XI da Carta do Estado do Mato Grosso do Sul em seus artigos
246 e 247 tutelam e protegem o direito consumerista:

O Estado promoverá ação sistemática de proteção ao consu-


midor de modo a garantir-lhe a segurança, a saúde e a defesa
de seus interesses. A política econômica do consumo será
planejada e executada pelo Poder Público, com participação
204 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

de empresários e de trabalhadores de setores da produção, da


industrialização e da comercialização, do armazenamento e
do transporte e também dos consumidores para, especial-
mente: incluir o sistema estadual de defesa do consumidor,
visando à fiscalização, ao controle e à aplicação de sanções,
quanto à qualidade dos produtos e serviços, à manipulação
dos preços no mercado, e o impacto de mercadorias supér-
fluas ou nocivas e à normalização do abastecimento.

Estimular as cooperativas e outras formas de associativismo


de consumo. Elaborar estudos econômicos e sociais de mer-
cados consumidores, a fim de estabelecer sistemas de plane-
jamento, de acompanhamento e de orientação ao consumo
capazes de corrigir distorções e promover seu crescimento.
Propiciar meios que possibilitem o consumidor o exercício
do direito à informação, a escolha e à defesa de seus interes-
ses econômicos, bem como a sua segurança e saúde.

Estimular a formação de uma consciência política voltada


para a defesa dos interesses do consumidor, assim como,
prestar atendimento e orientação ao consumidor, através do
programa de Defesa do Consumidor, cujas atribuições e fun-
cionamento são definidos por lei.

O artigo 56, II da Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul, afir-


ma que ficam estabelecidos em cada exercício, para as despesas primárias,
limites individualizados para o Poder Executivo Estadual, Assembleia Le-
gislativa, Tribunal de Contas, Poder Judiciário Estadual, Ministério Público
Estadual, e para a Defensoria Pública do Estado: para os exercícios posterio-
res, ao valor do limite referente ao exercício financeiro imediatamente ante-
rior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Especial - maio de 2019 | 205

Amplo (IPCA), publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE), ou por outro que vier a substituí-lo, acumulando no período de
doze meses encerrado em abril do exercício anterior ao que se refere a lei
orçamentária.
O artigo 1, II do ADCT da Constituição do Estado do Mato Grosso do
Sul, afirma que para os exercícios posteriores, o valor do limite referente ao
exercício imediatamente posterior, corrigido pela variação do Índice Nacio-
nal de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado pelo Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística, ou outro que vier a substituí-lo, acumulado
no período de doze meses encerrado em abril do exercício anterior ao que
se refere a Lei Orçamentária.
O artigo 17 VIII da Lei Orgânica do Distrito Federal afirma que compete
ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre responsabilidades por
danos ao consumidor. O artigo 135 III afirma que o Distrito Federal fixará
as alíquotas do imposto que trata para as operações internas observando as
operações e prestações que destinem bens e serviços ao consumidor final
localizado em outro Estado.
No artigo 141 do mesmo diploma normativo, o Distrito Federal orienta-
rá os contribuintes com vistas ao cumprimento da legislação tributária, que
conterá, entre outros princípios, o da justiça fiscal, bem como determinará
mediante lei medidas para esclarecer os consumidores acerca de impostos
que incidam sobre mercadorias e serviços, fazendo ainda publicar, anual-
mente legislação tributária consolidada.
A ordem econômica do Distrito Federal tem por fim assegurar a todos
existência digna, promover o desenvolvimento econômico com justiça so-
cial e melhoria da qualidade de vida, observando o princípio da defesa do
consumidor. O artigo 189 afirma que o poder público criará estímulos a
agricultura, abastecimento alimentar e defesa dos consumidores, por meio
de fomento e política de crédito favorecida a micro e médios produtores.
206 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

O artigo 191 VIII afirma que é atribuição do poder público promover


a defesa e a proteção do consumidor e fiscalizar os produtos em sua fase
de comercialização auxiliando os consumidores organizados e orientando a
população quanto a preços, qualidade dos alimentos e ações específicas de
educação alimentar.
O capítulo VI da Lei Orgânica do Distrito Federal em seu artigo 263 afir-
ma que cabe ao poder público, com a participação da comunidade e na for-
ma da lei, promover a defesa do consumidor, mediante: pesquisa, informa-
ção e divulgação de dados de consumo, junto a fabricantes, fornecedores e
consumidores. Atendimento, orientação, conciliação e encaminhamento do
consumidor por meio de órgãos competentes, incluída a assistência jurídi-
ca, técnica e administrativa. Conscientização do consumidor, habilitando-o
para o exercício de suas funções no processo econômico. Esclarecimento ao
consumidor acerca do preço máximo de venda de bens e serviços, quando
tabelados ou sujeitos a controle.
O artigo 264 e 265 da Lei Orgânica do Distrito Federal aduz que o poder
público adotará medidas necessárias à defesa, promoção e divulgação dos
direitos do consumidor, em ação coordenada com órgãos e entidades que
tenham estas atribuições, na forma da lei. Assim como, o poder público,
na forma da lei, adotará medidas para: esclarecer o consumidor acerca dos
impostos que incidam sobre bens e serviços, como também, assegurar que
estabelecimentos comerciais apresentem seus produtos e serviços com pre-
ços e dados indispensáveis à decisão consciente do consumidor.
O Poder Público deve garantir os direitos assegurados nos contratos que
regulam as relações de consumo, vedado qualquer tipo de constrangimento
ou ameaça ao consumidor. Deve também garantir o acesso do consumidor
a informações sobre ele existentes em bancos de dados, cadastros, fichas,
registros de dados pessoais e de consumo, vedada a utilização de quaisquer
informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito, quan-
do consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos.
Especial - maio de 2019 | 207

No artigo 266 da Lei Orgânica do Distrito Federal, diz que o sistema


de defesa do consumidor, integrado por órgãos públicos, áreas de saúde,
alimentação, abastecimento, assistência judiciária, crédito, habitação, se-
gurança, educação e por entidades privadas de defesa do consumidor, terá
atribuições e composição definidas em lei. O poder público adotará medidas
de descentralização dos órgãos que tenham atribuições de defesa do consu-
midor.
O artigo 20 da Lei Orgânica do Distrito Federal afirma também que a lei
disporá sobre a criação e regulamentação do Conselho de Defesa do consu-
midor no Distrito Federal.

2.3 Leis ordinárias e complementares do


consumidor previstas no Mato Grosso do
Sul e no Distrito Federal
Esta parte da pesquisa foi realizada nas Assembleias Legislativas dos Es-
tados do Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Foi enviado e-mail para
elas, solicitando todas as normas relativas ao Direito do consumidor que há
no plano infraconstitucional estadual do período de 2008 até 2018 (todas as
leis ordinárias e complementares que de alguma forma tratam da defesa do
consumidor no período de tempo acima transcrito).
Dessa maneira, foi feito um cruzamento dos dados levantados através da
análise das Constituições estaduais e de leis infraconstitucionais (ordinárias
e complementares) relativas ao direito do consumidor, para que se verifique
quais dos Estados membros (Mato Grosso do Sul ou Distrito Federal) ob-
servam uma tutela mais efetiva sobre o aspecto de suas legislações. Como
resultado esperado, pretende-se, por exemplo, diagnosticar se os cidadãos
do Mato Grosso do Sul possuem uma maior proteção de direitos fundamen-
tais do consumidor do que quem mora do Distrito Federal. A finalidade é
208 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

estabelecer uma grande planilha na qual se possa verificar quantitativamen-


te e qualitativamente toda a produção subnacional em matéria de direito do
consumidor nesses respectivos Estados membros.

Planilha 1 – Leis Ordinárias e Complementares do Mato Grosso do Sul


LEI FUNDAMENTO DATA ESTADO
Dispõe sobre o prazo mínimo para o
armazenamento de arquivos por empresas Mato
4.977 que atuam no segmento de eventos do tipo 06/01/2017 Grosso do
formatura, no âmbito do Estado do Mato Sul
Grosso do Sul.
Dispõe sobre a obrigatoriedade
de o consumidor ser informado
antecipadamente pelos fornecedores de Mato
4.825 serviços, situados no âmbito do Estado de 10/03/2016 Grosso do
Mato Grosso do Sul, sobre a interrupção, Sul
cancelamento ou qualquer alteração relativa
à cobrança de débito programado em conta.
Obriga as empresas prestadoras de serviço
de internet móvel e de banda larga,
na modalidade pós-paga, a apresentar Mato
4.824 ao consumidor, na fatura mensal, gráficos 10/03/2016 Grosso do
que informem a velocidade diária média de Sul
envio de recebimento de dados entregues
no mês.
Obriga as concessionárias de serviço público
de energia elétrica a disponibilizar em seus
sites o valor mensal repassado às Prefeituras Mato
4.823 10/03/2016 Groso do
Municipais a título de iluminação pública Sul
(CIP), no âmbito do Estado de Mato Grosso
do Sul
Especial - maio de 2019 | 209

Dispõe sobre as normas que regulam


a obrigatoriedade de prévia inspeção e
fiscalização dos produtos de origem animal, Mato
4.820 10/03/2016 Grosso do
produzidos no Estado de Mato Grosso Sul
do Sul, destinados ao consumo, e sobre
matérias correlatas.
A lei estadual que fixa prazos máximos
segundo a faixa etária dos usuários para
a autorização de exames pelas operadoras
de planos de saúde. Por mais ampla que
seja a competência legislativa concorrente
em matéria de defesa do consumidor (art. Mato
4.701 13/08/2014 Grosso do
24, V e VIII da CF/88) não autoriza os Sul
Estados Membros a editarem normas acerca
de relações contratuais, uma vez que essa
atribuição está inserida na competência da
União para legislar sobre o direito civil (art.
21, I, CF/88).
Dispõe sobre a obrigatoriedade de as
instituições financeiras informarem Mato
4.817 ao consumidor as fraudes mais frequentes 08/03/2016 Grosso do
relacionadas aos seus serviços, na forma que Sul
menciona.
Dispõe sobre a obrigatoriedade de o
fornecedor disponibilizar ao consumidor o Mato
4.814 25/02/2016 Grosso do
acesso a informações sobre Sul
empreendimentos imobiliários.
Dispõe sobre a normatização de programas
de concessão de pontos e benefícios em Mato
4.779 07/12/2015 Grosso do
cartão fidelidade ou cadastros de clientes, no Sul
âmbito do Estado do Mato Grosso do Sul.
210 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Acrescenta dispositivos ao art. 3º da Lei


Estadual nº 1.352, de 22 de dezembro de Mato
4.769 1992, que assegura a estudantes o direito ao 20/04/2016 Grosso do
pagamento de meia entrada em espetáculos Sul
culturais, esportivos e de lazer.
Dispõe sobre a obrigatoriedade dos
postos de combustíveis de informar Mato
4.750 04/11/2015 Grosso do
ao consumidor se a gasolina comercializada Sul
é formulada ou refinada.
Dispõe sobre a obrigatoriedade de
implantação pelas empresas de aquirencia
de máquinas de cartão de crédito e débito, Mato
4.754 adaptadas para pessoas com deficiência 05/11/2015 Grosso do
visual, no Estado de Mato Grosso do Sul. Sul

Dispõe sobre a proibição da comercialização


do cachimbo de água egípcio, conhecido Mato
4.724 23/09/2015 Grosso do
como narguilé, aos menores de dezoito anos Sul
de idade
Dispõe sobre a comercialização de protetor Mato
4.718 17/09/2015 Grosso do
solar no Estado de Mato Grosso do Sul. Sul
Dispõe sobre a afixação de cartaz em
revendedoras e concessionárias de veículos Mato
4.712 informando sobre isenções tributárias 02/09/2015 Grosso do
específicas, concedidas às pessoas com Sul
deficiência.
Dispõe sobre a informação ao consumidor,
referente à utilização de água potável Mato
4.687 proveniente da captação de poços artesianos 24/06/2015 Grosso do
ou semiartesianos nos estabelecimentos Sul
comerciais de Mato Grosso do Sul.
Especial - maio de 2019 | 211

Dispõe sobre a obrigatoriedade de os


restaurantes, lanchonetes e similares, no Mato
4.683 âmbito do Estado de Mato Grosso do 15/07/2015 Grosso do
Sul, disponibilizarem cadeira infantil nas Sul
especificações da ABNT.
Proíbe a comercialização, confecção e
distribuição de produtos que colaborem
para acarretar riscos à saúde ou à segurança Mato
4.320 26/02/2013 Grosso do
alimentar, dos consumidores, em cantinas Sul
e similares instalados em escolas públicas
situadas no Estado de Mato Grosso do Sul.
Fonte: Adaptado do site <www.ms.gov.br\legislação>.

Planilha 2 – Leis Ordinárias e Complementares do Distrito Federal


LEI FUNDAMENTO DATA ESTADO
Dispõe sobre a qualificação de entidades
4.081 como organizações sociais no âmbito do 04/01/2008 DF
Distrito Federal.
Dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação
de equipamento para a identificação dos
4.140 05/05/2018 DF
frequentadores de casas noturnas no
Distrito Federal.
Dispõe sobre o descarte e a destinação
final de lâmpadas fluorescentes, baterias
e telefones celular, pilhas que contenham
4.154 11/06/2008 DF
mercúrio e metálicos e demais artefatos
que contenham metais pesados no Distrito
Federal
212 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Dispõe sobre a obrigatoriedade de


fornecimento de extrato consolidado anual
4.312 relativo aos pagamentos efetuados pelos 02/03/2009 DF
usuários de empresas e serviços públicos
atuantes no Distrito Federal.
Dispõe sobre a obrigatoriedade de
fornecimento de informações atualizadas
4.369 dos serviços prestados pelas empresas que 22/07/2009 DF
atuam no setor de turismo e similares no
Distrito Federal.
Torna obrigatória a transcrição de
informações, nas faturas mensais de energia
elétrica, sobre prazos, procedimentos e
documentações necessárias a solicitação de
4.390 indenização por parte dos consumidores 20/03/2009 DF
em caso de prejuízos ocasionados por falha
na prestação dos serviços de distribuição
de energia elétrica no âmbito do Distrito
Federal.
Obriga as entidades financeiras e os
estabelecimentos comerciais a fornecerem,
quando solicitados, e por escrito,
4.512 18/10/2010 DF
informações cadastrais que porventura
cadastrarem a negativa de crédito por parte
destes estabelecimentos.
Altera o artigo 1º da lei nº 3437 de 9
de setembro de 2004 que dispõe sobre
o cadastro dos usuários das empresas
ou instituições que locam ou cedem
4.554 16/03/2011 DF
gratuitamente computadores e máquinas
para acesso à internet no âmbito do Distrito
Federal, conhecidas também como cyber
café.
Especial - maio de 2019 | 213

Dispõe sobre a organização, a composição


e as atribuições do Conselho de Saúde do
Distrito Federal em conformidade com o
artigo 198, III da CRFB, e do artigo 7º VIII
da Lei 8080 de 19 de setembro de 1990,
4.604 15/07/2011 DF
da Lei Federal nº 8142 de 28 de dezembro
de 1990, do artigo 215 da Lei Orgânica do
Distrito Federal, e as diretrizes da Resolução
nº 333 do Conselho Federal da Saúde de 4
de novembro de 2003.
Dispõe sobre a obrigatoriedade da
divulgação da data de validade dos produtos
4.621 23/11/2011 DF
destinados a consumo humano e animal
colocados em promoção.
Dispõe sobre a divulgação da advertência “se
beber não dirija” em cardápios e panfletos
4.633 de programas de bares, restaurantes, boates, 23/08/2011 DF
lanchonetes, e similares no âmbito do
Distrito Federal.
Obriga os fornecedores situados no Distrito
Federal que ofertam e comercializam
produtos ou serviços pela internet a
4.660 informar o seu endereço para fins de citação, 18/10/2011 DF
bem como o número de telefone, e correio
eletrônico destinados ao atendimento de
reclamações dos consumidores.
Proíbe o consumo de cigarros, charutos e
demais produtos fumígenos, derivados ou
4.729 28/12/2011 DF
não do tabaco, nos locais, nas condições e
nas formas específicas.
214 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Dispõe sobre a obrigatoriedade de


estabelecimentos que comercializam pilhas,
baterias e lâmpadas fluorescentes colocarem
4.774 24/02/2012 DF
à disposição dos consumidores recipientes
para a coleta do referido material quando
descartados ou inutilizados.
Estabelece regras para as relações de
consumo nos serviços de colocação
profissional no mercado de trabalho,
4.844 como assessoria e consultoria em recursos 25/05/2012 DF
humanos e similares para coibir oferta
enganosa e prática abusiva no âmbito do
Distrito Federal.
Obriga salões de beleza e congêneres
estabelecidos no Distrito Federal a afixarem
5.031 placa de advertência sobre a utilização 25/02/2013 DF
de produtos químicos em procedimentos
capilares.
Dispõe sobre a obrigatoriedade de reserva
de vagas para idosos, gestantes, e portadores
de deficiências nas praças de alimentação
5.066 08/03/2013 DF
de shoppings, restaurantes, galerias,
lanchonetes e outros estabelecimentos do
setor gastronômico.
Altera a Lei nº 5.128, de 4 de julho
de 2013, que dispõe sobre o índice de
desenvolvimento da educação básica-IDEB,
nos estabelecimentos para estabelecimentos
6.103 02/02/2012 DF
públicos e particulares de ensino no Distrito
Federal, estabelecendo que sejam divulgados
os resultados obtidos e as metas projetadas
desse índice.
Fonte: Adaptado do site <www.df.gov.br\legislação>.
Especial - maio de 2019 | 215

Como observa-se no gráfico abaixo, no Distrito Federal, foram encon-


tradas 161 leis infraconstitucionais (ordinárias e complementares) e 22 ar-
tigos na Constituição estadual. Já no Estado do Mato Grosso do Sul foram
descobertas 65 leis infraconstitucionais (ordinárias e complementares) e 13
artigos na Constituição estadual. Esses dados foram colhidos de um período
de tempo de 10 anos, especificamente dos anos 2008 até 2018.

Dentro desta discussão, há de se destacar o papel do Centro de Apoio aos


Consumidores, no Estado:

O Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de


Defesa do Consumidor (CAOPJCon) é o órgão auxiliar do
Ministério Público de Mato Grosso do Sul, responsável por
estimular a integração das Promotorias de Justiça, mobilizar
atuações institucionais convergentes e subsidiar a atuação
dos membros. Também compete ao Centro de Apoio, manter
o intercâmbio com a sociedade com o escopo de promover a
educação para o consumo e a mobilização social em prol da
defesa dos consumidores.

Esse referido Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça


de Defesa do Consumidor é um importante órgão responsável pela defesa
e proteção ao consumidor, tendo o Ministério Público do Estado do Mato
Grosso do Sul auxiliando as Promotorias de Justiça, com o objetivo de es-
timular a celeridade, razoabilidade e segurança nas funções concernentes à
postulação judicial e extrajudicial na defesa difusa e coletiva dos interesses
dos consumidores. Entender o federalismo e a repartição de competências
legislativas medindo o grau de proteção ao consumidor desses respectivos
Estados da Federação brasileira é salutar para comparar o grau de proteção
a esses direitos nesses Estados membros.
216 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

3 Considerações finais
Foi realizado um mapeamento nas Constituições estaduais e leis infracons-
titucionais ordinárias e complementares, nas Assembleias Legislativas, do
Estado do Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal, relativo aos direitos e
garantias fundamentais do consumidor, com a finalidade de responder ao
problema de pesquisa: como está distribuída a proteção de direitos e garan-
tias fundamentais do consumidor no plano subnacional nesses respectivos
Estados membros.
Foram construídas duas planilhas no item 2.3, na qual foram dados al-
guns exemplos de leis infraconstitucionais ordinárias e complementares re-
lativas a proteção do consumidor no Brasil.
Na Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul foram encontrados
treze artigos que protegem o direito do consumidor (que foi elencado no tó-
pico 2.2). Relativo às leis infraconstitucionais ordinárias e complementares
relacionadas ao direito consumerista no mesmo Estado, no período de 2008
até 2018, dispõe de 65 leis. De um universo de 65 leis infraconstitucionais
encontradas no Estado do Mato Grosso do Sul, somente foi possível expli-
citar 18 delas na planilha 1 do item 2.3 deste artigo, pois para elencar todas
essas leis, seriam necessárias mais páginas.
Neste sentido é possível também destacar o Centro de apoio operacional
das promotorias de Justiça de defesa do consumidor no Mato Grosso do Sul,
que se trata de um importante órgão responsável pela defesa e proteção ao
consumidor, tendo o Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul
auxiliado as Promotorias de Justiça, com o objetivo de estimular a celerida-
de, razoabilidade e segurança nas funções concernentes à postulação judicial
e extrajudicial na defesa difusa e coletiva dos interesses dos consumidores.
Na Lei Orgânica do Distrito Federal foram descobertos 22 artigos que
tutelam o direito consumerista (que foram elencados no tópico 2.2). No pla-
Especial - maio de 2019 | 217

no infraconstitucional desse mesmo Estado, foram achadas 171 ocorrências


de leis ordinárias e complementares relativas ao direito do consumidor no
período de 2008-2018. De um universo de 171 leis infraconstitucionais rela-
tivas à proteção do consumidor, só foi possível explicitar 18 delas no tópico
2.3, planilha 2 desse artigo, pois seria preciso mais páginas para que fosse
possível abordar toda a produção subnacional em matéria de direito do con-
sumidor nesses Estados durante o período de tempo acima transcrito.
Comparando o grau de proteção de direitos e garantias fundamentais
do consumidor no Estado do Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal
por meio de leis Constitucionais e infraconstitucionais (ordinárias e com-
plementares), durante o período de 2008-2018. Levando em conta alguns
critérios que foram observados com a catalogação dessas legislações, como,
por exemplo, quantidade de leis constitucionais e infraconstitucionais pro-
duzidas, pode-se chegar à conclusão de que o Distrito Federal, nesse período
de tempo, desempenhou uma proteção maior e mais efetiva ao direito do
consumidor, se comparado com o Estado do Mato Grosso do Sul.
218 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa. Teoria da Repartição de competências Legis-
lativas Concorrentes. Recife: Fasa, 2011.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A Federação e a revisão constitucional: as


novas técnicas dos equilíbrios constitucionais, as relações financeiras, a cláusula
federativa e a proteção da forma de Estado na Constituição de 1988. In: Revista
de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, out\dez 1995.

BARBOSA, Rui. A Constituição e os atos Inconstitucionais. 2ºed. Rio de Janeiro,


Flores, 1987.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10º ed. São Paulo: Malheiros 2000.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito


Constitucional. 9º ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

VIAMONTE, Carlos Sánchez. Manual de Derecho Constitucional. 4ºed. São


Paulo, Saraiva, 1958.

DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo:
Atlas, 2012.

DISTRITO FEDERAL. Lei Orgânica do Distrito Federal. 1993. Disponível em:


<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70442/LO_DistritoFederal.
pdf?sequence=1>. Acesso em: 19 Julho. 2018.

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição


norte americana. São Paulo: Martins fontes, 2006.
Especial - maio de 2019 | 219

GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Uruenã, René. Proteção multinível dos


Direitos humanos na América Latina: oportunidades, desafios e riscos. Manual
de Direitos humanos e educação superior, 2014.

HORTA, Raul Machado. Repartição de Competências na Constituição Federal de


1988. São Paulo: Malheiros, 2003.

LOBO, Paulo Luiz Neto. Competência legislativa concorrente dos Estados mem-
bros na Constituição de 1988,. In Revista de informação Legislativa. Brasília, ano
26, nº101, jan.\mar. 1989.

MATO GROSSO DO SUL. Constituição (1989). Constituição do Mato Grosso do


Sul. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70445/
CE_MatoGrossodoSul.pdf?sequence=1>. Acesso em: 19 julho. 2018.

RENOUX, Thierry. O federalismo e a União Européia. A natureza da comuni-


dade: uma evolução na direção de um Estado federal. In: Direito Constitucional:
Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Sérgio Resende de
Barros e Fernando Aurélio Zilveti (coord.). São Paulo: Dialética, 1999.

ROMBOLI, Roberto. ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Justiça Constitu-


cional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais. 1ºed. Belo Horizonte,
Arraes Editores Ltda, 2015.

SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Direitos Fundamentais Atípicos: análise da


cláusula de abertura art.5 S 2º da CRFB\88. 1º ed. Juspodivm, 2017.

SARLET, Ingo. Direitos, Deveres e Garantias Fundamentais. Bahia: Ed Juspodi-


vm, 2011.
Especial - maio de 2019 | 221

OS DIREITOS HUMANOS AO
JUIZ IMPARCIAL, AO DEVIDO
PROCESSO LEGAL E AO
CONTRADITÓRIO DIANTE
DA PRÁXIS DAS AUDIÊNCIAS
CRIMINAIS SEM O MINISTÉRIO
PÚBLICO: UM CHAMADO À
REFLEXÃO

SALOMÃO ISMAIL FILHO

Promotor de Justiça do
Ministério Público de
Pernambuco. MBA em Gestão
do Ministério Público (UPE).
Especialista e Mestre em Direito
(UFPE). Doutorando em Direito
(UNICAP).
222 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

A DUDH consagrou os direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido pro-


cesso legal e a contraditório, os quais foram referendados pela Carta Magna
de 1988. Isso implica na adoção de um processo penal democrático e regido
pelo sistema acusatório, com nítida distinção entre as funções de acusar,
defender e julgar. A realização de audiência judicial de instrução criminal
sem a presença do MP viola tais direitos humanos, constituindo-se em uma
nulidade absoluta e não apenas relativa, cujo prejuízo é manifesto e presumi-
do. A jurisprudência brasileira, com algumas exceções, tem se posicionado
pela demonstração do prejuízo (nulidade relativa), estimulando a figura do
juiz parcial e inquisidor. Os membros do MP não podem ficar indiferentes a
tal práxis, arguindo a absoluta nulidade em qualquer foro e instância e ado-
tando outras medidas processuais e administrativas cabíveis.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; Juiz imparcial; Devido processo


legal; Contraditório; Processo penal; Audiências criminais; Ausência do Mi-
nistério Público; Nulidade absoluta.
Especial - maio de 2019 | 223

1 Introdução
Em alguns Estados da Federação brasileira, máxime em Pernambuco, tem
se instituído, quase como um costume ou prática rotineira, a realização de
audiências de instrução, em processos penais, sem a presença do membro
ou representante do Ministério Público. Além disso, em algumas situações,
a autoridade judiciária, além de realizar a audiência sem o promotor de Jus-
tiça, ocupa o seu espaço, perguntando primeiramente e, depois, passando a
palavra à Defesa Técnica.
Como doravante será relatado, no âmbito da Justiça Estadual de Pernam-
buco, por exemplo, existe uma recomendação do Conselho da Magistratura,
para que os juízes de Direito realizem audiências criminais sem o promotor
de Justiça, desde que o MP tenha sido previamente intimado. A jurispru-
dência do STJ, por outro lado, embora com algumas oscilações, nos últimos
tempos, tem se inclinado que, nesses casos, haveria apenas uma “nulidade
relativa”, que dependeria da demonstração de prejuízo.
O que a realização de audiências criminais sem a presença do MP tem a
ver com os direitos humanos? Seria papel da autoridade judiciária falar em
nome da sociedade, em uma audiência judicial? Estaria respeitada a trilogia
processual (juiz-parte acusatória-parte requerida) em um ato judicial sem o
MP estar presente?
Este artigo jurídico pretende responder a tais questionamentos, demons-
trando os riscos, para os direitos humanos, de tal práxis, em razão da mani-
festa violação aos princípios constitucionais do devido processo legal e do
contraditório, manifestados direitos da sociedade e daquele que vem a ser
acusado, pelo Estado, através de um processo penal.
224 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

2 Sobre os direitos humanos a um


julgamento por um juiz imparcial,
ao devido processo legal e ao
contraditório
Segundo o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH),
de 10/12/1948, todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma jus-
ta e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial,
para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele.
Já o art. 11 da histórica Declaração consagra os princípios do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, ao preceituar que o acu-
sado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que
a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento
público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias
à sua defesa.01
Deveras, a partir desses dois artigos jurídicos consagrados na DUDH, é
forçoso concluir que, no processo penal, aplicado nos países integrantes das
Nações Unidas, como o Brasil, existe, deveras, um direito humano a um jul-
gamento por juiz imparcial e não comprometido previamente com a prova
ou com a acusação que pesa em desfavor da parte acusada.

01 Relevante destacar, a cláusula do Due Process of Law foi consagrada no Direito anglo-saxônico a
partir da Magna Carta inglesa de 1215. No Direito norte-americano, o Princípio do Devido Processo Legal
apresenta duas fases, a primeira limitando-se ao caráter processual (Procedural Due Process) e a segunda
fase, voltando-se também para o direito substantivo (Substantive Due Process). A partir do Substantive Due
Process, passou-se a admitir um controle, pelo judiciário, dos atos do Poder Público, examinando-se sua
razoabilidade (reasonableness) e sua racionalidade (rationality), tendo em vista a proteção dos direitos e
liberdades individuais (TÁCIO, 1996, p. 01-03).
Especial - maio de 2019 | 225

De outro lado, a parte acusada tem o direito a um julgamento “de acordo


com a lei” (ou seja, o devido processo legal) e, por corolário, utilizar todos
os meios inerentes (desde que conforme a legalidade, evidentemente) para a
sua defesa (ampla defesa). E dentro da lógica da ampla defesa, há que se falar
no direito de contraditar a prova a ser produzida em juízo (contraditório).
Destarte, os direitos humanos a um julgamento por juiz imparcial, ao
devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório também foram re-
ferendados na Magna Carta brasileira de 1988, por meio do seu art. 5º, inci-
sos LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente”); LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal”) e LV (“aos litigantes, em processo judicial ou admi-
nistrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).
É forçoso concluir, o inciso LIII do art. 5º precisa ser interpretado em
conjunto com o art. 10 da DUDH, pois a norma constitucional brasileira fala
apenas em “autoridade competente”.02
Ora, por competente, há de se entender não somente aquele que detém a
atribuição/competência processual para processar determinada pessoa, mas
também uma autoridade que deve atuar de forma justa e imparcial, como
exige a Declaração de Direitos Humanos da ONU.

02 Afinal, os direitos humanos, enquanto fenômeno histórico-social-jurídico-econômico não se


realizam e concretizam de forma imediata; transformam-se continuamente com o tempo e dependem
– e muito – de decisões políticas e da postura proativa dos operadores jurídicos, máxime aqueles
compromissados com a transformação social e a defesa da Constituição. Sobre o tema, relevantes as
reflexões de Morais (2011, p. 84-89).
226 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

3 O processo penal acusatório


brasileiro e a consagração do
juiz imparcial e do equilíbrio
democrático da trilogia processual
O processo penal brasileiro, na linha daquilo fora consagrado pela ONU,
através da Declaração de 1948, e pela Carta Cidadã de 1988, tem sido ins-
culpido, ao longo dos últimos anos, em uma feição democrática e acusatória.
Mas o que isso significa? Significa, exatamente, o equilíbrio entre as fun-
ções de julgar, acusar e defender, dentro de um processo penal acusatório,
onde cada operador jurídico, para a completa formação da relação tríade
processual, deve atuar dentro da sua esfera de atribuições.
De fato, como lembra Avena (2017, p. 09), o sistema processual-penal
acusatório é caracterizado pela absoluta distinção entre as funções de acusar,
defender e julgar, as quais deverão ficar a cargo de operadores jurídicos/ins-
tituições distintas. A instrução probatória, em regra, há de ser de iniciativa
das partes e não da autoridade judicial.
Assim, como corolário de um sistema processual penal acusatório (e não
inquisitório),03 cabe ao Ministério Público a titularidade privativa da ação
penal pública (art. 129, inciso I, da CF/1988); durante a instrução judicial,
não pode o juiz ter a iniciativa probatória de ofício, atuando apenas para
suplementar a prova colhida pelas partes (por isso, nos termo do atual art.
212 do CPP, o juiz deve perguntar após as partes, suplementando pontos

03 Nesse aspecto, concorda-se com Oliveira (2006, p. 11), quando afirma que o sistema brasileiro
processual penal brasileiro é marcantemente acusatório e não misto, pois o inquérito policial (presidido
inquisitorialmente pela autoridade policial) não é processo judicial, sendo fase prévia e não imprescindível
para o oferecimento da exordial penal.
Especial - maio de 2019 | 227

não esclarecidos) e, ainda, há que se respeitar o contraditório, realizando-se


a instrução judicial com a presença de todos os polos da relação processual:
Juiz; Ministério Público (que representa a sociedade/Povo, através da titula-
ridade da ação penal pública) e Defesa (cujo Advogado ou Defensor Público
exercerá a ampla defesa).
Em um processo penal democrático e que segue o sistema acusatório, ao
juiz cabe garantir o contraditório entre as partes do processo penal e não se
colocar como contraditor, inquisidor, substituindo a iniciativa das partes na
produção da prova (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 244-245). O protagonismo
neste processo penal não é do juiz, mas das partes, ou seja, da acusação (MP,
em regra) e da Defesa.
É relevante destacar, o Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-lei
3.689, de 03/10/1941) é uma norma jurídica, originalmente, de caráter fas-
cista e inquisitório, onde o juiz assumia o protagonismo da prova, prevale-
cendo o princípio da culpabilidade do réu e não da sua inocência. Ou seja,
uma norma anterior ao término da 2ª Guerra Mundial e à própria DUDH,
forjada em um período de cerceamento democrático no Brasil, onde o par-
lamento, praticamente, era uma figura decorativa.04
Gradativamente, tal estatuto legal foi se adaptando ao sistema de direitos
humanos pós-2ª Guerra, máxime a partir dos anos 70 do século XX. Como
consequência disso, lembra Oliveira (2006, p. 05-10) a abolição da decreta-
ção da prisão preventiva automática da parte acusada, quando do recebi-
mento da denúncia, a depender do crime imputado (antiga redação do art.

04 Era o chamado Estado Novo, instalado a partir de setembro de 1937, o qual consagrava um regime
autoritário, capitaneado pelo presidente Getúlio Vargas. Além de uma Constituição outorgada, ou seja,
imposta sem a participação popular, os partidos políticos foram extintos; interventores foram nomeados
como governadores dos Estados; passou a haver censura prévia ao jornais; o presidente poderia dissolver
o Congresso e expedir diretamente decretos-lei, como foi o caso do Código de Processo Penal (conforme,
ARRUDA e PILETTI, 2010, p. 500-504 e LIRA NETO, 2013, p. 306-311).
228 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

312) e a própria regra inquisitorial do interrogatório do réu: primeiro ato do


processo (antes da produção da prova) e sem a intervenção das partes.
Marco de referência jurídico, em tal contexto, foi a Constituição Federal
de 1988, a qual, peremptoriamente, insculpiu as bases de um sistema proces-
sual penal acusatório, à luz daquilo que já havia sido delineado pela DUDH,
de 1948.
Sobre o contraditório, relevante destacar, o art. 5º-LV da CF/1988 prevê
uma bilateralidade (via de mão dupla) de tal princípio, pois a norma consti-
tucional assegura o contraditório e a ampla defesa a todos os litigantes, em
processo judicial e administrativo, e não apenas aos acusados em geral
Tão importante o contraditório, no direito processual, que Câma-
ra (2003, p. 49-50) chega a afirmar que tal princípio é a mais importante
vertente do devido processo legal. Ainda mais: pode-se, à luz da moderna
doutrina processualista, dizer que, sem contraditório, não há processo justo.
Sem contraditório, a própria legitimidade do Poder Judiciário, de presidir,
através do juiz, a relação processual, fica comprometida, dada a ausência de
equilíbrio e de igualdade entre as partes, transformando a autoridade judi-
cial em uma autoridade inquisitória e autoritária.
Assim, o mesmo direito humano ao contraditório que veda, por exem-
plo, a produção de uma prova judicial sem a presença da Defesa da parte
acusada também deve ser invocado quando a outra parte litigante do pro-
cesso penal (a sociedade, na ação penal pública representada pelo MP) não
estiver presente.
Nesse sentido, parecem caminhar Grinover, Fernandes e Gomes Filho
(2006, p. 139-140), quando expressamente afirmam que é inválida a prova
produzida, no processo penal, sem a presença das partes. Há de se vedar,
assim, a prova produzida de ofício pela autoridade judicial, evitando a sua
prematura vinculação a um determinado polo ou vertente da relação jurí-
dico-processual.
Especial - maio de 2019 | 229

4 A questão da nulidade e da
demonstração do prejuízo. Porque,
na realização de audiência judicial
sem o MP, o prejuízo é presumido
No processo penal brasileiro, vigora a regra de que não será declarada a nu-
lidade se dela não resultar prejuízo para nenhuma das partes (acusação e
defesa). É o que dispõe o art. 563 do CPP, o qual consagrou um cânone uni-
versal do direito processual, o tradicional brocardo pas de nullité sans grief.
Em verdade, trata-se da observância do sistema de nulidade da instru-
mentalidade das formas, onde o ato processual praticado será considerado
válido, ainda que contrarie determinadas formalidades legais, mas desde
que tenha atingido os seus objetivos (MIRABETE, 2003, p. 1379-1380). De
fato, processo é, antes de tudo, instrumento, caminho a ser trilhado para
determinado objetivo; não é o fim em si mesmo; o fim é o direito material
que se busca aplicar, através do processo.
Por isso, há que se falar em nulidades relativas (quando, diante de vícios
não essenciais, não obstante a ilegalidade, possa o ato processual ser conva-
lidado ou aproveitado) e nulidade absolutas (quando a ilegalidade praticada
acarreta um prejuízo tão grave e manifesto que será impossível convalidar
ou aproveitar o ato processual praticado). Exemplos clássicos de nulidade
absolutas, no processo penal, são aquelas que violam princípios constitucio-
nais ou direitos fundamentais das partes.
Porém, a teoria das nulidades, relativa e absoluta, extraída da teoria geral
do processo, precisa ser aplicada com muita cautela, no processo penal, cuja
natureza é eminentemente garantista e cuja lide trata do indisponível direito
à liberdade (nesse sentido, LOPES JÚNIOR, p. 84-85).
230 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Dentro de tal contexto, o que se pode dizer a respeito da audiência reali-


zada sem a presença do Ministério Público? Seria ela uma nulidade absoluta
ou relativa?
Normalmente, duas situações podem acontecer: 1) o MP sequer é inti-
mado da audiência; 2) o MP é intimado, mas não comparece.
Em ambos os casos, há prejuízo manifesto para o direito humano ao juiz
imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório, ensejando nulidade
absoluta e não relativa.
Porque, como já se explicou, desde a DUDH de 1948, há um compro-
misso internacional em afastar o juiz da produção de ofício da prova, a fim
de evitar a sua parcialidade. Demais, sem a presença de uma das partes na
ação penal pública (sociedade/povo, representada pelo MP), o princípio do
contraditório resta manifestamente maculado, pois nem o juiz e nem o ad-
vogado/defensor público podem assumir o lugar do Ministério Público fa-
zendo perguntas que seriam do seu interesse ou da sua estratégia processual.
Imagine-se a situação diametralmente oposta: o advogado de Defesa fal-
ta à audiência de instrução, mas, ainda assim, o juiz decide realizar o ato,
estando presente somente o promotor de Justiça. No caso concreto, tanto o
juiz, quanto o promotor se esforçam para imaginar e fazer todas as pergun-
tas às testemunhas que poderiam beneficiar o réu. Seria possível aproveitar
tal ato? Caberia falar em uma nulidade somente “relativa”?
É evidente que não! Primeiro, por um simples motivo: as regras processu-
ais não podem depender de subjetividades (boa vontade do juiz ou do MP) e,
justamente por isso, o devido processo legal exige que cada operador jurídico
ocupe o seu espaço na relação processual e não invada o espaço do outro.
Ainda mais. No processo penal, máxime durante a instrução probatória,
o contraditório há de ser real e não fictício. Ou seja, as partes da relação
processual precisam, necessariamente, exercê-lo. O papel de cada uma não
pode ser ocupado pela outra e vice-versa.
Especial - maio de 2019 | 231

Esse o verdadeiro sentido do princípio do contraditório, dentro de um


processo penal democrático, que não se satisfaz com a mera oportunidade
dada à parte de exercer o contraditório: é preciso que ela, efetivamente, faça-
-o. Por isso, não pode haver audiência de instrução criminal sem a presença
da Defesa Técnica; mas a conclusão vale para o MP, porque o princípio do
contraditório é sinalagmático, bilateral e não se aplica somente a uma das
partes da relação processual.
Aliás, como lembra Dinamarco (2003, p. 135-136), o exercício da ação
e da defesa, ao longo do procedimento, ao lado dos atos da jurisdição, é
condição essencial para o correto exercício desta; significa isso participação
no processo decisório e não pode ser negada às partes da relação processual.
Portanto, o argumento de que basta oportunizar a participação do Mi-
nistério Público na audiência judicial criminal (através da sua intimação)
não é suficiente para afastar a absoluta nulidade da audiência realizada sem
a presença de uma das partes.
Esse argumento pode até ser aplicado em determinados processos de
natureza civil, mas nunca em um processo penal, o qual, por se tratar da
discussão de direitos indisponíveis, como a liberdade de outrem ou a im-
posição de pena em razão de dívida contraída com a sociedade, em razão
da prática de crimes, exige um contraditório efetivo e não apenas fictício.
O contraditório real é necessário, inclusive, para justificar a legitimidade da
atuação do Estado, através da jurisdição, que, em essência, é democrática e
não inquisitória (CÂMARA, 2003, p. 52-54).
Nessa linha de pensamento, a lição de Fernandes (2000, p. 53-56), lem-
brando que a Constituição Federal assegura o contraditório não apenas aos
acusados, mas também ao Ministério Público. Avança, ainda, o mencionado
autor, forte no ensinamento de processualistas como Calmon de Passos e
Arruda Alvim, para lembrar a diferença entre o princípio da bilateralidade
da audiência (onde é suficiente oportunizar o direito de participar) e o prin-
232 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

cípio do contraditório (o qual exige uma efetiva participação, discussão e


igualdade de oportunidade para todas as partes da relação processual).
No mesmo sentido, Barros (2014) vem a defender que a realização de
audiência criminais sem a presença do MP viola não apenas o princípio do
contraditório, mas também o princípio acusatório do processo penal.
Dentro de tal contexto, Nery Junior (1999, p. 130-132) chega a afirmar
que, no processo civil, em razão de não ser necessário o contraditório efetivo
e substancial do processo penal, seria mais apropriado falar-se no princípio
da bilateralidade da audiência.
Por isso, em ambos os casos, seja pela não intimação, seja pela intimação,
mas realizado o ato sem o MP, a audiência é nula, por manifesta violação aos
princípios do contraditório e do devido processo legal e, ainda, ao sistema
acusatório como um todo, em razão do comprometimento causado ao direi-
to humano ao juiz imparcial.
Afinal, juiz de Direito, por mais que mereça consideração pela relevância
do cargo, conhecimento jurídico e conduta ilibada, não pode fazer as vezes
de promotor de Justiça, sob pena de também violar ao princípio constitucio-
nal do Promotor Natural (art. 5º-LIII da CF/1988).
Ora, dispõe, a propósito, o art. 564-III, d, do CPP,05 que haverá nulidade
por falta da intervenção do MP em todos os termos da ação penal por ele in-
tentada ou mesmo quando atuar na qualidade de fiscal da ordem jurídica.06

05 Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:


(...) III-por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
(...) d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos dá intentada
pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública;
06 Nomenclatura mais atualizada, nos termos do art. 127, caput, da CF/1988 (defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis), adotada pelo CPC de 2015
(arts. 82, § 1º, e 178, v. g.).
Especial - maio de 2019 | 233

Resta evidente, pois, que a não intervenção do Ministério Público, em


qualquer ato do processo penal, é causa de nulidade. E à luz da teleologia do
art. 129, inciso I, da Magna Carta de 1988, o MP é o titular exclusivo da ação
penal pública, sendo causa de nulidade absoluta (e não somente relativa) a
instrução realizada sem o promotor de Justiça.
Por isso, o art. 572 do CPP,07 Decreto-lei 3.689, de 03/10/1941, norma
vetusta e anterior à própria DUDH, no que se refere à presença do MP nas
audiências criminais, não foi recepcionado pela Constituição de 1988, não
podendo ser aceita, ex vi dos princípios do juiz imparcial; do devido proces-
so legal e do contraditório (art. 5º, incisos LIII, LIV e LV), prova colhida em
audiência sem a presença do titular da ação penal pública.
Reitera-se, ainda que o parquet tenha sido previamente intimado de uma
audiência judicial, a sua presença física é obrigatória, constituindo-se em
uma garantia não apenas do processo, mas da vítima e do réu, pois o re-
presentante ministerial também é o fiscal da ordem jurídica e defensor da
sociedade (art. 127, caput, da CF/88, c/c art. 257-II do CPP).
Nesse sentido, doutrina Tourinho Filho (2004, p. 258) que a presença do
órgão acusador e da parte defensora, no processo penal, é indispensável, por
exigência do princípio do contraditório. Realizado o ato sem a presença de
um ou de outro, a causa é de nulidade insanável. No caso de ausência do MP,
recomenda o referido doutrinador que o juiz adie o ato e oficie ao Procura-
dor-Geral da instituição, buscando um substituto.

07 Art. 572. As nulidades previstas no art. 564, Ill, d e e, segunda parte, g e h, e IV, considerar-se-ão
sanadas:
I-se não forem argüidas, em tempo oportuno, de acordo com o disposto no artigo anterior;
II-se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim;
III-se a parte, ainda que tacitamente, tiver aceito os seus efeitos.
234 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Outrossim, destacando que, em tal situação, a ausência do MP ofende os


postulados da Justiça pública e o princípio do contraditório, pronunciam-se
Demercian e Maluly (2009, p. 684). Afinal, é causa de nulidade absoluta, no
processo penal, quando se impede ou não se permite a participação de uma
das partes na instrução probatória (OLIVEIRA, 2006, p. 660-661).
Há, porém, vozes dissonantes na doutrina processualista penal brasilei-
ra, defendendo que a ausência do MP na audiência de instrução seria nuli-
dade relativa, pois dependeria da demonstração de prejuízo (AVENA, 2017,
p. 1083). Chega-se a argumentar que até mesmo a ausência de intimação
do Ministério Público para o ato não ensejaria a sua nulificação imediata,
dependendo também da demonstração posterior de prejuízo (PACELLI;
FISCHER, 2016, p. 1140).
Tratam-se, porém, de análises não aprofundadas do tema, que não fazem
sequer menção à DUDH e, também, deixam de apresentar a devida distin-
ção entre os princípios da bilateralidade da audiência e do contraditório;
também não consideraram os riscos de violação do direito humano ao juiz
imparcial.
Perceba-se, aliás, que o argumento da “demonstração do prejuízo”, ao fi-
nal, será apreciado pela própria instituição que presidiu o ato sem o Minis-
tério Público, ou seja, o próprio Poder Judiciário. Ou seja, o titular da ação
penal pública e responsável pelo exercício da função acusatória é ignorado na
instrução probatória e a palavra final sobre a existência de prejuízo é do Poder
que promoveu a sua exclusão (Judiciário) e não dele (Ministério Público).
Reforce-se, ainda, a expressa adoção, no processo penal brasileiro, atra-
vés da Lei 11.690, de 09/06/2008 (alterou o art. 212 do CPP) do sistema
norte-americano do cross-examination, onde, a fim de que se garanta a
imparcialidade do julgador, as partes devem perguntar diretamente às tes-
temunhas, atuando o juiz de forma fiscalizatória e suplementar. Destarte,
na situação de ausência do MP no ato instrutório, não poderá a autoridade
Especial - maio de 2019 | 235

judicial, em hipótese alguma, assumir o seu lugar e fazer as perguntas que


competiriam ao parquet, sob pena de absoluta nulidade.
Como lembra Carvalho (2018, p. 343-344), a participação do MP na pro-
dução da prova testemunhal é ato essencial, ensejando nulidade absoluta a
sua ausência, pois a tal prova deve ocorrer com a presença das partes, pro-
movendo-se o contraditório.
Trata-se, em verdade, de mais um corolário de um processo penal acu-
satório e democrático, onde não cabe ao juiz a iniciativa probatória, mas
sim às partes da relação processual. Forte em tais conclusões, Lopes Júnior
(2014, p. 100-102) chega a afirmar que a divisão de funções estatais, no pro-
cesso penal, de acusar (MP) e julgar (Poder Judiciário) vincularia, inclusive,
a autoridade judicial ao pedido de absolvição formulado pelo Ministério
Público, pois o poder punitivo estatal estaria vinculado ao exercício da pre-
tensão acusatória; em caso do seu não exercício ou da conclusão de que ela é
inviável pelo órgão acusador (pedido de absolvição), deveria o juiz acatar as
conclusões do titular da ação penal pública.

5 O poder judiciário brasileiro


diante da práxis da audiência
judicial sem a presença do
Ministério Público
Na mesma linha dos entendimentos doutrinários que primam pela nulidade
parcial, tem sido a posição, em regra, da jurisprudência brasileira, vindo a
exigir a demonstração de prejuízo, para declarar a nulidade de uma audiên-
cia de instrução criminal realizada sem a presença do Ministério Público.
236 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Como se disse alhures, na lógica adotada por tal entendimento, será o


Judiciário (e não o MP) quem decidirá sobre a existência ou não de prejuízo.
Somente o fato de dispor sobre a existência ou não de prejuízo configura,
per si, uma violação ao direito humano ao juiz imparcial, pois a autorida-
de judicial, assim o fazendo, adentra na competência acusatória do Estado,
ocupando uma esfera de atribuições próprias do Ministério Público.

5.1 No Supremo Tribunal Federal


No âmbito do Supremo Tribunal Federal, historicamente, tem sido essa sua
posição, embora, após a Constituição de 1988 e, ao menos considerando a
sua atual composição, não existe uma posição expressa do Plenário da Corte
a respeito.
A 1ª Turma do STF, nos autos do HC 120.528/RS, em decisão de
14/03/2017, deixou de anular audiência de interrogatório do réu onde o MP
estava ausente. Segundo o relator, Ministro Marco Aurélio, a ausência do
Estado-acusador sinaliza não um prejuízo para a Defesa, mas uma vantagem
para esta.
Importante destacar, a forma superficial com que o tema foi tratado;
primeiro, sem qualquer menção aos princípios do devido processo legal e
do contraditório, os quais, como demonstrado, exigem a presença de outra
parte, quando da produção da prova judicial. Depois, porque o MP é tratado
somente como “Estado-acusador”, olvidando-se completamente da sua fun-
ção de fiscal da ordem jurídica, que também deve velar pela legalidade da
audiência judicial, inclusive a favor do réu, quando for o caso.
Já a 2ª Turma da Suprema Corte, em julgado de 30/04/1996, nos autos do
HC 73650-5/RS, não veio a anular audiência judicial onde houve a inquiri-
ção de testemunhas de acusação sem a presença do MP, arguindo a inexis-
Especial - maio de 2019 | 237

tência de prejuízo e, ainda, que tal nulidade não fora arguida no momento
oportuno.
Outrossim, no referido julgado, à luz do voto do relator, Min. Néri da Sil-
veira, não se encontra uma única linha argumentativa a respeito do exercício
do princípio do contraditório, no processo penal, e da necessidade da sua
realização de forma concreta e não fictícia. O julgado não faz, ainda, menção
ao direito humano ao juiz imparcial e aos riscos de o juiz produzir, ele mes-
mo, uma prova e depois utilizá-la para justificar uma condenação penal.08
Há, porém, esperanças de que a Suprema Corte brasileira venha a con-
sagrar a defesa do sistema acusatório e dos princípios do contraditório e do
juiz imparcial no processo penal. Em julgado de 14/11/2017, a 1ª Turma do
STF, nos autos do HC 111.815, anulou audiência de instrução criminal por
descumprimento à ordem prevista no art. 212 do CPP, o qual consagra a
atuação supletiva do Judiciário na colheita de provas, ou seja, a autoridade
judicial suplementa as perguntas das partes e não o contrário.
Tal julgado tem bastante relevância para a tese defendida neste artigo
jurídico porque, em muitas audiências judiciais realizadas sem a presença
do membro do MP, a autoridade judicial, literalmente, ocupa o espaço do
Ministério Público, fazendo as perguntas em seu lugar e, posteriormente,
passando para a palavra para a Defesa se pronunciar. Ou seja, nos termos do
art. 212 do CPP, o juiz não pode substituir o Ministério Público na instrução
criminal, pode suplementar, complementar os seus questionamentos; jamais
ocupar o espaço ou produzir uma prova que caberia à acusação fazer (PA-
CELLI; FISCHER, 2016, p. 479).

08 Foi justamente o que ocorrera no mencionado caso concreto, pois um dos argumentos do decisum foi
a “ausência de prejuízo”, já que a prova colhida sem o MP “confirmou” a autoria delitiva.
238 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

5.2 No Superior Tribunal de Justiça


A jurisprudência do STJ, através da suas 5ª e 6ª turmas, que lidam com a ma-
téria penal, também tem se inclinado em favor da demonstração do efetivo
prejuízo, sobretudo nos julgados recentes (anos de 2017 e 2018).
A 5ª Turma do STJ, em julgado de 05/05/2018, nos autos do AGRG no
Recurso Especial nº 1.712.039/RO, considerou que a simples ausência do
órgão acusatório na audiência de oitiva de testemunhas não ensejaria a nu-
lidade do ato, quando não restar devidamente demonstrada a ocorrência de
prejuízos. Para causar ainda mais perplexidade: conforme leitura do voto do
relator, Min. Jorge Mussi, verifica-se que, previamente, a Corregedoria-Ge-
ral de Justiça solicitara a redesignação do ato, em razão de realização do III
Seminário Estadual de Execução Penal e Encontro dos Promotores de Justi-
ça. Não obstante, o Juízo a quo realizou o ato por sua conta e risco, tendo sua
decisão obtido referendo do Tribunal Estadual e do STJ.
De forma igualmente grave, em 27/02/2018, a 6ª Turma do STJ não anu-
lou audiência judicial para oitiva de testemunhas, realizada sem o MP, onde
o juiz formulou perguntas no lugar do MP. Segundo o voto do relator, Min.
Rogério Schietti Cruz, sequer o MP teria sido intimado pessoalmente da
audiência judicial, com vistas dos autos. Porém, entendendo que nulidade
que beneficia o Ministério Público somente por ele poderia ser arguida (mas
não pela Defesa da parte acusada), como também aduzindo que não houve
prejuízo no caso concreto, o recurso defensivo foi julgado improvido e a
nulidade não reconhecida.
Em ambos os julgados, verifica-se que, em momento algum, os direitos
humanos ao juiz imparcial e ao contraditório foram sequer mencionados.
Ignora-se por completo o art. 5º-LV da CF/1988, que assegura o contraditó-
rio não somente à Defesa, mas a todas as partes da relação processual penal,
onde, obviamente, está incluído o MP.
Especial - maio de 2019 | 239

A fundamentação resumida e meramente instrumental de ambos os


acórdãos fere de morte o próprio sistema acusatório do processo penal bra-
sileiro, aproximando-se de uma feição inquisitória, que abona a figura de
juízes-inquisidores que agem de ofício e produzem diretamente a prova, ora
ignorando ofícios da sua própria Corregedoria, ora passando por cima da
necessidade de prévia intimação pessoal do MP para participar da audiên-
cia, conforme o art. 370, § 4º, do CPP, c/c o art. 41 da Lei 8.625/1993.
Interessante destacar que, entre 2012 e 2016, existiram precedentes, na
5ª e 6ª turmas, reconhecendo a nulidade absoluta da audiência judicial rea-
lizada sem a presença do MP.
Por exemplo, a 6ª Turma do STJ, em julgado de 17/05/2012, no HC
21.078/MG, decidiu pela nulidade de determinada audiência penal, em razão
da ausência das representantes do parquet, as quais, dias antes, haviam re-
querido o adiamento do ato, alegando impossibilidade de comparecimento.
De outra banda, a 5ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, jul-
gando o HC 316719/RJ, em 06/10/2015, não verificou qualquer ilegalidade e
decidiu não anular acórdão de Tribunal Estadual que, em razão da ausência
do Ministério Público em audiência de instrução, reconhecera a existência
de nulidade insanável por violação ao sistema acusatório, determinando a
renovação da instrução processual. Nas informações adicionais do acórdão
supramencionado, extraídas do voto do relator, Min. Félix Fischer, consta a
relevante conclusão:

Ocorre nulidade insanável do processo penal na hipótese em


que o Ministério Público não participou da audiência de ins-
trução e o magistrado incorporou as funções do órgão acu-
sador, formulando, ele próprio, as perguntas às testemunhas
da acusação. Isso porque houve violação ao sistema acusató-
rio e prejuízo para o contraditório e justiça da decisão. Além
240 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

disso, o vício atinge o interesse público e a correta aplicação


do direito (BRASIL, 2015).

Mencione-se, por fim, precedente, de 20/10/2016, prolatado pela 6ª Tur-


ma do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, pug-
nando que a falta de intervenção do Ministério Público constitui causa de
nulidade absoluta, sendo dispensável qualquer demonstração de prejuízo, o
qual seria presumido, nos termos do artigo 564, inciso III, “d”, do CPP. No
caso concreto, o agente ministerial não compareceu à audiência onde foi
colhida toda a instrução judicial penal.
Como se disse alhures, chama a atenção o refluxo do entendimento da 5ª
e da 6ª Turmas do STJ, as quais chegaram a defender, expressamente a nuli-
dade presumida, inclusive fazendo menção à violação ao sistema acusatório,
mas, agora, parecem defender uma nulidade apenas relativa com relação à
ausência do membro do MP nas audiências, embora, frise-se, sem fazer o
devido contraponto com os direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido
processo legal e ao contraditório bem como sem considerar a manifesta vio-
lação ao sistema acusatório penal.

5.3 O Tribunal de Justiça de Pernambuco, a


Recomendação 01/2014 e o CNJ
No Estado de Pernambuco, o Tribunal de Justiça, através do seu Conselho
da Magistratura, referendou e oficializou a prática das audiências criminais
sem a presença do promotor de Justiça, representante do MP, através da Re-
comendação nº 01, de 13/11/2014, do Conselho da Magistratura do TJPE,
a qual exorta os juízes com competência criminal que realizem audiência
criminal sem a participação do representante do Ministério Público, desde
que tenha havido a sua prévia intimação para participar do referido ato pro-
Especial - maio de 2019 | 241

cessual, independentemente de qualquer justificativa apresentada para não


comparecer ao ato.
A referida recomendação, até hoje, serve de suposto lastro institucional
e legal para que juízes de 1º grau realizem audiência criminais sem a presen-
ça do MP. Salvo algumas exceções, isso tem-se repetido em todo o Estado,
mesmo diante de inúmeros requerimentos dos promotores de Justiça, justi-
ficando a ausência em razão de, no dia da audiência, estarem acumulando
outras Promotorias ou até mesmo diante de atestados de saúde, que impos-
sibilitariam o comparecimento.
Sim, porque a recomendação, ignorando por completo a necessidade do
contraditório no processo penal, sequer admite o adiamento do ato em ra-
zão de qualquer justificativa apresentada, inclusive quando se tratar de mo-
tivo de saúde, bastando a prévia intimação do membro do MP para o ato.
Na jurisprudência do TJPE, portanto, predomina o entendimento de que
basta a prévia intimação do membro do MP para participar da audiência
de instrução, podendo o juiz realizar o ato em caso de ausência física do
promotor de Justiça.
Mas as violações ao sistema acusatório penal não terminam por aí.
Há precedente da 3ª Câmara do Pretório Estadual, nos autos da Apelação
0497419-2, rel. para o acórdão Des. Alexandre Assumpção, em 27/07/2018,
onde se deixou de anular audiência de instrução na qual o juiz de 1º grau
não apenas realizou o ato sem o MP como também proferiu, ao final do ato,
sentença condenatória, em desfavor da parte acusada. Por maioria, enten-
deu a Câmara que o juiz poderia sentenciar, mesmo sem um pronuncia-
mento final do MP, em homenagem ao princípio da duração razoável do
processo. Afinal, a pretensão inicial do parquet, indicada na exordial penal,
teria sido atendida com a condenação da parte acusada.
Relevante que se destaque a gravidade do precedente. Não apenas o Mi-
nistério Público foi completamente ignorado, durante a instrução criminal,
242 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

como também foi reduzido a uma instituição sem autonomia funcional, que
prima somente pela condenação da parte acusada, nos termos daquilo que
fora deduzido na denúncia. Sob o pálio de uma genérica arguição do prin-
cípio da duração razoável do processo, estaria autorizado o juiz de Direito a
passar por cima do sistema acusatório e a dispensar, inclusive, as alegações
finais do parquet. Desconsiderou-se, outrossim, que o MP, enquanto fiscal
da ordem jurídica, também pode pleitear a absolvição da parte acusada e
não somente se limitar a repetir a pretensão acusatória da exordial penal.09
Nesse passo, à luz do lamentável precedente judicial, importante men-
cionar a advertência de Lima e Carneiro (2017), relatando que, no Estado de
Pernambuco, já são muitos os precedentes de processos penais com sentença
condenatória ao final, onde a participação do MP se restringiu à elaboração
da exordial penal, sem qualquer outra atuação relevante na ação penal. Ou
seja, verdadeira consagração de um sistema inquisitório, onde a função do
acusador confunde-se com a do julgador.
Há, porém, precedente em favor da nulidade absoluta, da 1ª Câmara
Regional do TJPE, em Caruaru. Em um deles (2ª Turma, apelação criminal
486624-6, decisão de 10/05/2018), anulou-se a instrução criminal onde o
juiz realizou a audiência sem o MP, mesmo estando o membro de férias;
dispensou testemunha de acusação, sem ouvir o MP e sentenciou o feito,
sem alegações finais. Perceba-se, foi preciso que o magistrado de 1º grau
dispensasse de ofício para uma testemunha indicada pelo MP, sem ouvir o
órgão e com base no seu entendimento, sentenciasse, inquisitorialmente, o
feito, para que fosse, enfim, reconhecida a nulidade absoluta.

09 Como bem adverte Dworkin (1986, p. 379-381), interpretar a Constituição não é algo fácil, exigindo
uma interpretação mais complexa do que aquela utilizada para a legislação ordinária; ou seja, menos
mecânica e menos superficial.
Especial - maio de 2019 | 243

Em 04/10/2016, o Conselho Nacional de Justiça julgou improceden-


te o procedimento de controle administrativo movido pela Associação
do Ministério Público de Pernambuco (AMPPE) contra a Recomendação
01/2014, não obstante a manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade do ato
administrativo questionado.10
Porém, tratou-se de uma decisão por maioria. Não houve unanimidade.
Pelo contrário, votaram contra a recomendação cinco conselheiros do CNJ:
Norberto Campelo (Relator), Luiz Cláudio Allemand, Lelio Bentes, Rogério
Nascimento e Arnaldo Hossepian.
A propósito, mencione-se o entendimento do relator do PCA 0000071-
07.2015.2.00.0000, Conselheiro Norberto Campelo, em 23/02/2016, quan-
do concedeu medida liminar, suspendendo os efeitos da Recomendação
01/2014 do TJPE:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO.


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAM-
BUCO. DECISÃO FINAL PELO NÃO CONHECIMEN-
TO DA MATÉRIA, POR CONSIDERAR DE NATUREZA
JURISDICIONAL. ART. 25, X, RICNJ. NECESSIDADE DE
REVISÃO DA MONOCRÁTICA. RECOMENDAÇÃO N.º
01/2014 – CONSELHO DE MAGISTRATURA. REALI-
ZAÇÃO DE AUDIÊNCIA CRIMINAL INDEPENDENTE
DA PARTICIPAÇÃO DE REPRESENTANTE DO MINIS-
TÉRIO PÚBLICO. ATO COM APTIDÃO PARA GERAR

10 Meses depois, apoiando a iniciativa da AMPPE, a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério


Público de Pernambuco solicitou à Procuradoria-Geral da República que ingressasse com uma arguição de
descumprimento de preceito fundamental contra a Recomendação 01/2014 (MPPE EM FOCO, 2018, p.
34). Até o momento da elaboração deste artigo jurídico, a PGR ainda não havia se pronunciado a respeito.
244 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

NULIDADE PROCESSUAL. ART. 129, I, CF/88, ART. 564,


III, “d”, CPP. CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR PARA
SUSPENDER OS EFEITOS DO ATO ADMINISTRATIVO. 

1. Os precedentes são no sentido de que se for a matéria ju-


risdicional, impossível seria a atuação deste CNJ. Porém, o
ato impugnado não é de natureza jurisdicional e sim admi-
nistrativa, tendo em conta que pretendia tornar sem efeito
ato administrativo de Órgão do Poder Judiciário (TJ/PE).

2. O Conselho da Magistratura do Estado de Pernambuco


equivocara-se na elaboração da Recomendação nº 01/2014,
confrontando o princípio da legalidade, ao desconsiderar os
termos do art. 129, inc. I, da CF/88, além do art. 564, inc.
III, “d”, do CPP, tornando regra algo que deveria ser exceção,
ao recomendar “aos magistrados com jurisdição criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco que realizem
as audiências de instrução, sem a participação do represen-
tante do Ministério Público, desde que tenha havido sua
prévia intimação pessoal para comparecer aos referidos atos
processuais”, não fazendo alusão, sequer, à possibilidade de
justificativa. 

3. Requisitos para concessão de medida acautelatória preen-


chidos nos termos do art. 25, XI, do Regimento Interno do
CNJ (BRASIL, 2016).
Especial - maio de 2019 | 245

6 O múnus de evitar e combater a


realização de audiências criminais
sem a presença do Ministério
Público
Os membros não podem e não devem ficar indiferentes à contínua realiza-
ção de audiências de instrução e julgamento sem a presença do Ministério
Público.
Não se desconsidera aqui a difícil realidade orçamentária e a atual quan-
tidade de cargos vagos da instituição. Trata-se de argumentos não jurídicos,
porém muitas vezes invocados pelo Poder Judiciário para realizar a audiên-
cia sem o MP.
Não obstante, a instituição do Ministério Público e os seus membros pre-
cisam assumir como tarefa primordial o protagonismo no processo penal.
Não se trata de opção ou escolha, mas de um dever constitucional, imposto
pelo art. 129, inciso I, da Magna Carta de 1988, que forjou o MP como titular
exclusivo da ação penal pública. Em verdade, há, na norma constitucional
um verdadeiro múnus público, onde o Ministério Público deve capitanear
o sistema acusatório, zelando por um processo penal justo e democrático.
Nesse sentido, diante da temerária tese da “nulidade relativa” e das rei-
teradas audiências penais realizadas sem a presença do MP, os membros
devem defender o protagonismo da instituição diante de cada caso concre-
to. Em banda paralela, a chefia do MP, através do seu Procurador-Geral de
Justiça, deve adequar, gradativa e permanentemente, o orçamento do órgão
para tal realidade, evitando a vacância de cargos com atuação em Varas de
natureza penal, principalmente.
Assim, se houver impossibilidade de acompanhar determinada audiên-
cia de instrução, deve o membro do MP, de imediato, oficiar ao juiz criminal
246 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

e requerer o adiamento do ato, comunicando o motivo da ausência, como,


aliás, já recomendou o Conselho Superior do MPPE, no ano de 2014.
Também é relevante que o membro, ao assumir determinada Promotoria
de Justiça, em regime de acumulação, oficie ao Poder Judiciário, comuni-
cando os dias em que poderá comparecer e pugnando que somente sejam
realizadas audiências criminais com a presença do Ministério Público.
Igualmente importante é que a Procuradoria-Geral de Justiça, em comu-
nhão com a Presidência do Tribunal de Justiça, recomende a promotores e
juízes, com atribuição criminal, a prévia discussão da pauta de audiências e
sessões do Tribunal do Júri, prevendo-se os períodos de férias de cada ope-
rador jurídico e onde exista um espaço anual, sem a marcação de audiências,
para a participação em congressos e cursos de aperfeiçoamento de ambas as
carreiras.
Por fim, não se pode olvidar que os membros do MP, ao receberem pro-
cessos penais onde a instrução foi realizada sem a presença do Ministério
Público, devem arguir, desde logo, a nulidade absoluta no feito, pugnando
pela realização de nova instrução, seja nos próprios autos, mediante ma-
nifestação; seja através de recurso (correição parcial ou apelação criminal,
conforme o caso); mediante contrarrazões recursais ou ação de impugnação
própria (mandado de segurança).
Até porque trata-se de matéria de ordem pública, porque consiste na ar-
guição de uma nulidade absoluta resultante da não observância de princí-
pios constitucionais, cujo argumento não se submete à preclusão e pode ser
reconhecida, inclusive de ofício, em qualquer foro ou instância (BONFIM,
2015, p. 827).
Outrossim, relevante lembrar que os promotores de Justiça devem zelar
pelo respeito ao devido procedimento legal da intimação pessoal do Repre-
sentante do MP, nos termos do art. 370, § 4º do CPP, c/c o art. 41-IV da Lei
8.625/1993.
Especial - maio de 2019 | 247

Tais normas determinam que a intimação pessoal do MP será feita com


a remessa dos autos do processo penal com vista, ou seja, a intimação pes-
soal é realizada em cada processo e não em uma folha, a chamada “pauta de
audiências”, impressa pelas Secretarias das Varas Judiciais e onde, de forma
genérica, pede-se para o membro dar ciência.
Tal forma de intimação é nula e não pode ser aceita pelos membros do
MP, os quais devem receber os autos processuais com vista para tomar ciên-
cia em cada audiência de instrução designada; analisarem o processo penal;
e, se for o caso, requererem as providências necessárias para a realização do
ato com a presença do membro do parquet.
Os procuradores de Justiça têm, outrossim, um papel relevante em tal
contexto, devendo arguir a nulidade absoluta perante o Tribunal de Justiça,
prequestionando a matéria e levando, em caso de não acolhimento da tese,
o tema para discussão no âmbito dos Tribunais Superiores. Não é suficiente
somente a interposição de recurso especial, para o STJ. A discussão jurídica
é, essencialmente, constitucional. Por isso, há que se interpor também recur-
so extraordinário, para o STF, arguindo-se violação ao art. 5º, incisos LIII
(juiz natural e imparcial), LIV (devido processo legal) e contraditório (LV),
além do próprio sistema acusatório penal, por negativa de vigência ao art.
129, inciso I, da Magna Carta.

7 Conclusões
1. O processo penal brasileiro, em razão da DUDH e da CF/1988, deve
primar por um sistema acusatório e democrático, onde as funções
de acusar, defender e julgar são exercidas por atores processuais e
instituições diversas.
2. Nos termos dos arts. 10 e 11 da DUDH, ocorre nulidade absoluta da
248 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

prova colhida em audiência de instrução judicial, no processo penal,


sem a presença física do membro do MP, conforme o art. 546-III,
d, do CPP, c/c os arts. 5º-LIII, LIV e LV e 129-I da Magna Carta de
1988, por manifesto dano aos direitos humanos ao juiz imparcial, ao
devido processo legal e ao contraditório.
3. A recomendação nº 01/2014, do Conselho da Magistratura de Per-
nambuco, é um ato jurídico manifestamente inconstitucional e ver-
dadeiro estímulo à figura do juiz parcial e inquisidor.
4. É dever de todos os membros do Ministério Público lutar pelo pro-
tagonismo da instituição no processo penal, arguindo a nulidade
absoluta da audiência sem promotor em qualquer foro ou instância
judicial como também adotando, com o necessário apoio da Procu-
radoria-Geral de Justiça, todas as medidas administrativas cabíveis
para evitar a nefasta práxis, inclusive com prévia discussão da pauta
anual das audiências de instrução e julgamento com a Chefia do
Poder Judiciário.

REFERÊNCIAS
ARTIGOS JURÍDICOS
BARROS, Francisco Dirceu. A indispensabilidade da presença do representante do
Ministério Público na audiência criminal porque no sistema acusatório o juiz não
pode fazer tudo. Jusbrasil. Disponível em: <https://franciscodirceubarros.jusbrasil.
com.br/artigos/200601615/a-indispensabilidade-da-presenca-do-representante-do-
-ministerio-publico-na-audiencia-criminal-porque-no-sistema-acusatorio-o-juiz-
-nao-pode-fazer-tudo>. Acesso em: 31.12.2018.
Especial - maio de 2019 | 249

CARVALHO, Francisco Ortêncio de. A nulidade absoluta pela não intervenção do


representante do Ministério Público em atos essenciais da ação penal pública. Re-
vista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 337-368,
jan./abr. 2018. Disponível: <https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.107>. Acesso em:
28.12.2018.

LIMA, Charles Hamilton Santos; CARNEIRO, André Silvani da Silva. A função do


Ministério Público é essencial, não apenas eventual. CONJUR: Consultor Jurídico.
Coluna MP no debate. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-17/
mp-debate-funcao-ministerio-publico-essencial-nao-apenas-eventual>. Acesso em:
31.12.2018.

TÁCITO, Caio. A Razoabilidade das Leis. Revista de Direito Administrativo, nº


204, Rio de Janeiro, Renovar, abril/junho, p. 01-03, 1996.

JURISPRUDÊNCIA
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Acórdão nos autos do PCA 0000071-
07.2015.2.00.0000, rel. Cons. Norberto Campelo, rel. voto divergente Carlos
Levenhagen. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/De-
talheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=a43245ffe67f1ddbf40dbe9204b3f-
d8639b484d172d84d8e>. Acesso em: 03.01.2018.

_______. Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, rel. Min. Sebastião Reis Júnior.
Acórdão nos autos do HC 210878/MG. Brasília, 17.05.2012. DJe de 04.06.2012.

_______. Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, rel. Min. Rogério Shciett Cruz.
Acórdão nos autos do AgRg nos EDcl no AREsp 528020/RS. Brasília, 15.09.2015.
Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPes-
quisaNumeroRegistro&termo=201401378024&totalRegistrosPorPagina=40&apli-
cacao=processos.ea>. Acesso em: 06.05.2017.
250 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

_______. Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, rel. Min. Félix Fischer. Acór-
dão nos autos do HC 316719/RS. Brasília, 06.10.2015. Disponível em: <http://
www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=&livre=AUSEN-
CIA+A+AUDIENCIA+E+MINISTERIO+PUBLICO+E+NULIDADE&b=A-
COR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=31>. Acesso em: 04.05.2017.

_______. Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, rel. Min. Rogério Shciett Cruz.
Acórdão nos autos do REsp Nº 1.542.326/RS. Brasília, 20.10.2016. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=-
MON&sequencial=65927837&num_registro=201501646600&data=20161024&for-
mato=PDF>. Acesso em: 28.12.2018.

_______. Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma, rel. Min. Néri da Silveira. Acórdão
no HC 73.650-5/RS. Brasília, 30.04.1996. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=74652>. Acesso em: 26.12.2018.

_______. Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio. Acórdão
no HC 120.528/RS. Brasília, 14.11.2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/por-
tal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AUSENCIA+DO+ESTADO+A-
CUSADOR%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/kfjttb4>. Acesso em:
07.05.2017.

_______. Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio. Acórdão
no HC 111.815/SP. Brasília, 14.11.2017. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/pagi-
nadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14326360>. Acesso em: 26.12.2018.
PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça. 1ª Câmara Regional do TJPE, 2ª Turma, rel.
Demócrito Reinaldo Filho. Acórdão na apelação criminal nº 486624-6. Caruaru,
10.05.2018.
Especial - maio de 2019 | 251

_______. Tribunal de Justiça. 3ª Câmara Criminal, rel. para o acórdão Des. Alexan-
dre Assumpção. Acórdão na apelação criminal nº 0497419-2. Recife, 27.07.2018.
Disponível em: <http://www.tjpe.jus.br/consultajurisprudenciaweb/downloadIntei-
roTeor?codProc=647078&tipoJuris=1141&orig=FISICO>. Acesso em: 28.12.2018.

LIVROS JURÍDICOS
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2017.

BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal, 10ª ed. São Paulo: Saraiva,
2015.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. I. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2003.

DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal,


6a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, 11ª ed. São


Paulo: Malheiros, 2003.

DWORKIN, Ronald. Law´s empire. Harvard University Press: Cambridge, Massa-


chusetts, 1986.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional, 2ª ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2000.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO,


Antonio Magalhães. As nulidade no processo penal, 9ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006.
252 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
_______. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica, 3ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado, 10ª ed. São
Paulo: Atlas, 2003.

MORAIS, Jose Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a trans-


formação espaço-temporal dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 5ª


ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 6a ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentário ao Código de Processo Penal


e sua jurisprudência, 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2016.

TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado, 8a


ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

LIVROS NÃO JURÍDICOS


ARRUDA, José Jobson de A; PILETTI, Nelson. Toda história: história geral e histó-
ria do Brasil. São Paulo: Ática, 2010.

LIRA NETO. Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-


1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

REVISTAS
MPPE EM FOCO. Recife: Ministério Público de Pernambuco, ano VIII, nº 37, 59 p.
Especial - maio de 2019 | 253

O SISTEMA DE PRECEDENTES
DO CPC DE 2015 E O MINISTÉRIO
PÚBLICO – NOVOS PARADIGMAS
RECURSAIS

SELMA MAGDA PEREIRA


BARBOSA BARRETO

Promotora de Justiça no Estado


de Pernambuco. Coordenadora
da Central de Recursos Cíveis.
254 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O Código de Processo Civil de 2015, seguindo o viés do neoconstitucio-


nalismo, realinhou culturalmente o processo, transformando-o em instru-
mento de realização dos princípios constitucionais. Nessa ordem de ideias,
conferiu-se ao Juiz a função de criador do Direito na medida em que, no
caso concreto, cria normas que, dentro do Sistema de Precedentes, adqui-
rem força vinculante e obrigatória para os casos idênticos. Assim, os novos
paradigmas reclamam a mudança na atuação dos atores processuais, em
especial quanto à matéria recursal e, no caso do Ministério Público, estabe-
lecem o confronto entre os princípios da independência funcional com os
da unidade e indivisibilidade da instituição e reclamam a sua adaptação às
novas formas de atuação eficaz.

PALAVRAS-CHAVE: Novo Código de Processo Civil; Ministério Público;


segunda instância; atuação recursal; Recomendação CNMP/CN nº 57/2017;
novos paradigmas; independência funcional; unidade do Ministério Públi-
co; reformulação.
Especial - maio de 2019 | 255

1 O Ministério Público e o Novo CPC


– Valores e normas
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova era nas relações políti-
cas, institucionais, econômicas e sociais.
Produto do processo de redemocratização do Brasil a partir do final da
década de 1970, a Constituição Cidadã consolidou o Regime Democrático
e o Estado de Direito como pilares da Nação brasileira. Garantias consti-
tucionais, fundamentos democráticos e objetivos voltados para o cidadão,
dentro de uma ordem social justa e solidária, em que a dignidade humana se
torna o centro de todo o ordenamento jurídico, político e social, tornam-se
paradigmas de validade de atos administrativos, normas jurídicas e decisões
judiciais.
Nesse cenário, em 2015, entrou em vigor a Lei nº 13.105, de 16/03/2015
(Novo Código de Processo Civil), que, nas suas primeiras linhas, estabeleceu
como alicerce para sua ordenação, disciplina e interpretação, os valores e as
normas fundamentais da Constituição de 1988, realinhando culturalmente
o processo para transformá-lo em instrumento de realização de valores e
propósitos constitucionais. O neoprocessualismo ou processualismo valora-
tivo, que tem como ideia a instrumentalidade constitucional, trouxe inúme-
ras mudanças para o processo civil brasileiro, incluindo três espécies proces-
suais que têm como alvo a fixação de precedentes, trazendo o Judiciário para
o centro da criação normativa, ao lado do Legislativo e, em casos específicos,
do Executivo: Incidente de Assunção de Competência; Incidente de Demandas
Repetitivas e a Reclamação.
Não é objeto do presente estudo as três espécies de criação/formação de
precedentes, mas as consequências por elas geradas no mundo jurídico, em
especial para o Ministério Público. Isso, porque, no mundo globalizado, os
256 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

atos judiciais modelam e inspiram outras decisões, beneficiando ou compro-


metendo a atuação ministerial em favor da sociedade.
Desse modo, os princípios da independência funcional, unidade e indi-
visibilidade do Ministério Público necessitam de uma reavaliação urgente,
sob pena de se impulsionar a instituição a abismos irremediáveis.
Fredie Didier Junior, sobre o novo perfil do CPC, afirma que:

... Após a Constituição de 1988, a doutrina passou a defender


a tese de que a Constituição, como fonte de normas jurídicas,
deveria ser aplicada pelo órgão jurisdicional... 01

Continua:

Passa-se, então, de um modelo de Estado fundado na lei


(Estado Legislativo) para um modelo de Estado fundado na
Constituição (Estado Constitucional).

... o princípio deixa de ser técnica de integração do Direito


e passa a ser encarada como uma espécie de norma jurídica.

... a função jurisdicional passa a ser encarada como uma


função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela
estipulação da norma jurídica do caso concreto, seja pela
interpretação dos textos normativos, definindo-se a norma
geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada a
casos semelhantes.

Consagram-se as máximas (postulados, princípios ou regras,


conforme a teoria que se adote) da proporcionalidade e da
razoabilidade na aplicação das normas.

01 JUNIOR, Fredie Didier. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil,
parte geral e processo de conhecimento. Salvador:Ed. Jus Podivm, 17ª edição, p. 40.
Especial - maio de 2019 | 257

Identifica-se o método da concretização dos textos normati-


vos, que passa a conviver com o método da subsunção. Ex-
pande-se, ainda, a técnica legislativa das cláusulas gerais, que
exigem do órgão jurisdicional um papel ainda mais ativo na
criação do Direito.02

Portanto, o Judiciário passa a ser “criador do Direito”, através da valora-


ção dos fatos e das normas jurídicas, tendo como pilares os direitos funda-
mentais: os direitos sociais; a cidadania; e a dignidade da pessoa humana; e,
como princípios, além daqueles constitucionalmente consagrados, normas
hermenêuticas, como a proporcionalidade e razoabilidade, gerando, dessa
forma, jurisprudência normativa concorrente com a norma geral legislativa.
O ponto nodal da nova estrutura processual civil é a criação de nor-
mas através das técnicas interpretativas do Judiciário, dentro da formata-
ção constitucional, atingindo diretamente as demandas que podem nelas se
conformar, nos chamados precedentes, os quais detêm força vinculante e
obrigatória aos casos idênticos aos paradigmáticos que ensejaram a decisão
judicial dos tribunais.
Edilson Vitorelli, procurador da República, defende a reformulação das
ações dos agentes ministeriais na busca da efetividade do múnus constitu-
cionalmente atribuído, na nova perspectiva jurídica do que denomina de
“Globalização do Direito”03 (reflexo do processo de globalização que teve seu
ápice na metade do século XX, conceituado como neoconstitucionalismo,
positivismo jurídico reconstruído, neopositivismo ou neoprocessualismo,
como descrito por Fredie Didier Junior, citando Eduardo Cambi)04.

02 Idem, pp. 41-42.


03 VITORELLI, Edilson. Palestra ministrada no dia 19/11/2018, no Ministério Público de Rondônia,
durante o Seminário Atuação Extrajudicial e Vanguardista da Instituição.
04 Op. Cit., p 42.
258 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Segundo Vitorelli05, o Ministério Público enfrenta grandes desafios que


demandam medidas urgentes, dentre eles “a falta de banco de dados repli-
cáveis; a independência funcional; o baixo nível de controle e de doutrina; o
baixo grau de motivação para agir (como, por exemplo, os agentes da Receita
Federal, que recebem bônus na medida em que aumenta a arrecadação); falta
estímulo à ação coordenada por várias comarcas, que aumentaria o grau de
controle, e a dificuldade para aproveitar os melhores quadros da instituição
quando das promoções e remoções, ante o critério hoje estabelecido quase
que totalmente por antiguidade e não por mérito e especialização na área”.
Na área recursal, aponta como pontos sensíveis “a ausência de um siste-
ma recursal adequado para controle das decisões; o baixo grau de motivação
para atuação e a dificuldade para atuação concentrada e aproveitamento dos
profissionais mais qualificados”.
Essas são questões que exigem a urgente reforma na operacionaliza-
ção do desempenho das atividades ministeriais em todas as suas unidades,
visando à efetividade do seu mister como agente promotor dos direitos e
garantias constitucionalmente consagrados e que representam corolários
do Estado Democrático de Direito. Tudo isso, diante da nova formatação
processual civil, que tem como uma de suas inovações o Sistema de Pre-
cedentes Obrigatórios, assim como o nivelamento das partes no processo
que passam a atuar como cooperadores processuais juntamente com o juiz
da causa, para a promoção da Justiça e concretização do Direito, dentro da
modelagem constitucional.

05 Samuel Alvarenga, Promotor de Justiça do Estado de Rondônia e Coordenador da Coordenadoria


de Inovação, Evolução Humana e Estágio Probatório do CNMP, em Palestra ministrada no dia
19/11/2018 no Ministério Público de Rondônia, durante o Seminário Atuação Extrajudicial e Vanguardista
da Instituição, antecedendo Edilson Vitorelli, trouxe dados estatísticos que corroboram as conclusões
apresentadas por este último no referido evento.
Especial - maio de 2019 | 259

Nas palavras de Vitorelli, precedentes são “caso decidido que embasa a


determinação de casos posteriores envolvendo fatos ou questões similares,
obrigatório ou persuasivo”. Nesse sistema, as decisões estão encadeadas e
têm como premissa maior o caso paradigmático, que cria a norma jurídica
aplicável (jurisprudência), posteriormente ao surgimento do fato/ato jurídi-
co posto para análise jurisdicional. Os casos similares amoldam-se ao pre-
cedente, dando luz à “autoridade dos precedentes”, que impõe às instâncias
inferiores a obediência às decisões das cortes superiores.
Cabe aqui ressaltar que os precedentes podem conter maior ou menor
força, a depender da ratio decidendi: Se amplas, geram maior previsibilidade
futura. Se restritas, permitem maior elasticidade à análise pelos juízes de
casos futuros.
O Código de Processo Civil disciplina o regime de precedentes nos arts.
926 (uniformização horizontal) e 927 (uniformização vertical)06.
É dentro do sistema de precedentes do CPC em vigor que se concentra
a maior dificuldade de atuação recursal do parquet, tendo em vista a re-
sistência oferecida para modificação do precedente firmado pelos tribunais
pátrios, em especial os Tribunais Superiores.
Desse modo, a modernização da atividade ministerial, desde a propo-
situra da ação até a fase recursal, é indispensável para o fortalecimento das
ações institucionais, pois dependendo da forma e da matéria, pode-se criar
precedentes que venham engessar o desempenho da função ministerial, em
evidente prejuízo para toda a sociedade.
Ressalte-se que a formulação de teses pelo Ministério Público, nesse con-
texto, deve ser realizada de forma criteriosa e com a interação/integração

06 Controle concentrado de constitucionalidade; súmulas vinculantes; incidentes de assunção de


competência ou de resolução de demandas repetitivas em julgamento de REsp e RExt; enunciado de
súmulas em matéria constitucional do STF e infraconstitucional do STJ; orientações do plenário ou do
órgão especial a que os juízes estejam vinculados.
260 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

dos órgãos ministeriais, criando-se, ainda, uma base de dados e de controle


eficiente, destinada a impedir a repetição de demandas ou, em sendo neces-
sária, visando a consolidação das jurisprudências favoráveis ao Ministério
Público já firmadas em precedentes.
Nesse cenário, a fundamentação das decisões judiciais, hoje obrigatória
como forma de controle da atividade jurisdicional e consolidação das ga-
rantias constitucionais do processo democrático, devem ser provocadas de
forma plena, cristalina e de acordo com a formatação conferida pela Consti-
tuição Federal, sejam elas positivas sejam principiológicas.
Dentro dessa conjuntura, não mais se admite a utilização indiscrimina-
da de recursos, sendo necessária, como afirmado por Ludmila Reis e Maria
Clara Mendonça07 e de acordo com as linhas traçadas pela Carta de Brasília,
a racionalização da atividade recursal, avaliando-se o binômio custo-benefí-
cio da interposição de recursos, principalmente quando se percebe que está
a se criar precedentes que refletirão em todas as unidades e esferas do Mi-
nistério Público brasileiro.
Frise-se, ainda, que a criação do julgamento em bloco pelos tribunais é
reflexo da hiperjudicialização ou judicialização desconcertante, como suge-
rido por Edilson Vitorelli, e reclama urgente reanálise do ativismo proces-
sual, em especial pelo Ministério Público, adaptando-se às novas formas de
solução consensual dos conflitos (art. 3º, §§ 2º e 3º do CPC).
A quantidade de feitos a serem analisados pelas Cortes pátrias repercurte
na atuação jurisdicional, e o sistema de precedentes cria uma barreira de
contenção de demandas desnecessárias por serem repetitivas, ou por utiliza-
ção indevida do exercício do direito de ação e de recorrer, nascendo, então,
a possibilidade de aumento da aplicação de sanções processuais, inclusive
contra o Ministério Público.

07 Op.cit.
Especial - maio de 2019 | 261

Daí a necessidade da atuação integrada, racional, econômica, efetiva e


eficiente do Ministério Público perante o Judiciário, em especial na segunda
instância, como exposto na Recomendação CNMP-CN nº 57/2017.

2 A atuação recursal de segunda


instância no Ministério Público do
Estado De Pernambuco
No Estado de Pernambuco, a atribuição recursal de segunda instância é con-
ferida às Centrais de Recurso, disciplinadas no art. 17-A, da LC nº 12/94.
A Central de Recursos Cíveis do Estado de Pernambuco é composta por
um coordenador, sendo auxiliado por um analista e três técnicos judiciários,
dois estagiários de nível médio e um de Direito. Entre janeiro e outubro de
2018, movimentou 7110 processos, entre ciências, recursos de Agravo Inter-
no, Agravos em RExt e REsp, Embargos de Declaração, REsp e RExt, além
de pareceres e Sessões da Turma de Uniformização de Jurisprudência (TUJ),
diligências, alimentação de dados e acompanhamento processual e suporte
técnico aos órgãos de primeira instância, demonstrando a necessidade de se
repensar o modelo recursal cível do MPPE.
A atuação ministerial nos tribunais tem sido objeto de estudos, antes
mesmo da entrada em vigor do CPC de 2015, ensejando debates e sugestões
sobre a temática na busca da revalorização do trabalho dos agentes ministe-
riais da mais alta instância.
Nas palavras de Gregório Assagra:

...pode-se dizer que existe um certo consenso quanto à ne-


cessidade de se modernizar o exercício das funções institu-
cionais dos ocupantes dos mais altos graus da carreira, para
262 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

um modelo mais adequado ao novo papel constitucional do


Ministério Público, valorizando-se o conhecimento e a expe-
riência adquirida por anos de exercício funcional, para além
do desempenho de atividades como meros pareceristas.08

3 A Recomendação nº 57, do CNMP


Em 28/04/2010, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP),
editou a Recomendação nº 16, dispondo sobre a atuação ministerial no
Processo Civil, tendo como premissas a efetividade das funções atribuídas
pelos arts. 127 e 129 da CF. Elencou como prioridades o planejamento das
questões institucionais, a valorização dos cargos exercidos e a relevância das
funções perante os tribunais, apontando medidas necessárias para o alcance
dos objetivos traçados.
Em 18/05/2011, a Recomendação nº 19 debruçou-se sobre a atuação da
segunda instância do órgão ministerial, sob os mesmos fundamentos da Re-
comendação nº 16/2010, alterando-a para facultar “a atuação de mais de um
órgão do Ministério Público em ações individuais ou coletivas, propostas ou
não por membro da instituição, podendo oferecer parecer, sem prejuízo do
acompanhamento, sustentação oral e interposição de medidas cabíveis em
fase recursal pelo órgão de segundo grau” (art. 3º), assim como em ação civil
pública proposta pelo próprio órgão ministerial (art. 5º - XX).
Em 05/04/2016, a Recomendação nº 34 revogou expressamente a Reco-
mendação nº 16/2010, adequando a atuação ministerial ao novo Código de

08 CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Gregório Assagra de; MOREIRA, Jairo Cruz. Orgs. 30 anos da
constituição e o Ministério Público: avanços, retrocessos e os novos desafios. Belo Horizonte:Editora
D’Plácido, 2018, p. 73.
Especial - maio de 2019 | 263

Processo Civil (Lei 13.105/2015), à Jurisprudência dos Tribunais e às súmu-


las do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, dispondo
não mais sobre as matérias em que a intervenção se torna desnecessária,
mas sobre aquelas em que a atuação é fundamental para a consolidação do
múnus que lhe foi atribuído pela Constituição Federal. Para tanto, elencou
como percursos indispensáveis o planejamento institucional; a avaliação da
relevância social dos temas e processos em que atue; a busca da efetivida-
de em suas ações e manifestações, e a limitação da atuação ministerial em
socialmente relevantes, para direcioná-las na defesa dos interesses da socie-
dade (incs. I a IV, do art. 1º), estabelecendo, dessa forma, o planejamento
estratégico como peça fundamental para a execução da tarefa constitucional
do Ministério Público brasileiro.
Surgem, assim, no âmbito das recomendações, dois elementos impres-
cindíveis para as ações da instituição ministerial: gestão estratégica e releitura
da atuação de seus membros, visando à efetividade constitucional no exercício
das funções do Ministério Público no cenário sócio-político brasileiro09. Tor-
na-se visível, por outro lado, a preocupação com o ajuste do exercício da
função ministerial à jurisprudência firmada nos tribunais, em especial do
STJ e STF, apontando para a atual realidade cada vez mais efetiva dos pre-
cedentes judiciais.

09 A Carta de Brasília, aprovada pelos Corregedores Nacionais e Corregedoria do CNMP, no 7º


Congresso de Gestão em setembro de 2016, traçou o Planejamento Estratégico como uma das ferramentas
imprescindíveis para a reestruturação do desenvolvimento das atividades ministeriais, visando à efetividade
da atuação institucional em consonância com as funções constitucionalmente que lhe foram delegadas.
Para aprofundamento sobre a matéria, leitura importante é o artigo Ludmila Reis Dias Lopes e Maria Clara
Mendonça Perim: http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/Cursos_Realizados/2017/MP_Resolutivo/
Artigo_Ludmila_Reis_Carta_de_Brasilia_Novos_horizontes_para_atuacao_resolutiva_para_MP.pdf
264 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Em 05/07/2017, a Recomendação nº 5710 revogou as disposições da Reco-


mendação nº 19/2011, dispondo sobre a atuação do Ministério Público nos
tribunais. Representa um grande avanço nos debates institucionais acerca da
efetividade da atuação dos promotores e procuradores de Justiça segundo o
perfil de guardião da ordem jurídica, dos direitos sociais e individuais in-
disponíveis, conferido pela Constituição Federal: “agente de transformação
social e de artífice dos objetivos da ordem democrática instaurada em 1988,
para a formação/consolidação de uma sociedade justa, livre e solidária, livre
da pobreza e marginalização, das desigualdades sociais e regionais indiscri-
minadamente, a fim de garantir a dignidade e a cidadania, fundamentos da
ordem constitucional posta”.
A referida recomendação repousa sobre quatro pilares: a) Valorização,
estruturação e fortalecimento da atuação do Ministério Público nos tribu-

10 A Recomendação nº 57/2017 (PEP nº 2/2017 - Realizar pesquisas, estudos, análises e a apresentação


de propostas e orientações sobre a atuação do Ministério Público em 2º Grau de Jurisdição. Procedimento
Administrativo nº 0.00.002.000248/2017-15. Edital nº 1 de 19 de abril de 2017. Proposição nº 1.00495-
2017-96. Recomendação nº 57 de 05 de julho de 2017) foi elaborada a partir da Proposta de Estudos
e Pesquisas nº 02/2017 do CNMP, constituindo-se comissão composta pelo procurador de Justiça do
MPMG Afonso Henrique de Miranda Teixeira - Presidente da Comissão -, e pelos seguintes membros:
procurador de Justiça do MPDFT José Eduardo Sabo Paes; procurador Regional da República Elton
Venturini; promotora de Justiça do MPDFT Lenna Luciana Nunes Daher; e promotor de Justiça do MPMG
Gregório Assagra de Almeida. A metodologia utilizada consistiu em estudos sobre a Legislação Orgânica
do Ministério Público, do Código de Processo Civil, da Jurisprudência do STJ e STF e da doutrina, com a
realização de Consulta Pública ao Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais, ao Conselho Nacional de
Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, à juristas, às associações do Ministério
Público e a interessados, através de divulgação na página eletrônica do CNMP e abertura de prazo para
sugestões eletronicamente. Em 24/05/2017 foi realizada audiência pública no CNMP, pela Corregedoria
Nacional, encerrando os trabalhos de pesquisa, culminando na proposta de Recomendação elaborada pela
comissão, acatada e expedida na forma de Recomendação pelo Corregedor Nacional, Claudio Henrique
Portela do Rego, em 05/07/2017. (PEP é Ferramenta de gestão normatizada pela Portaria CNMP-CN
nº 87/2016, que tem como finalidade o aprofundamento da análise sobre o tema proposto, a fim de criar
norma - no caso, orientadora -, visando à efetividade da atuação institucional.)
Especial - maio de 2019 | 265

nais (arts. 1º ao 9º); b) interação e integração entre os membros com atuação


em instâncias jurisdicionais diversas ou em distintas unidades do Ministério
Público (arts. 10 a 16); c) atuação do Ministério Público como parte e como
custos legis nos tribunais (arts. 17 e 18) e, finalmente, d) manifestações e
comparecimento às sessões nos tribunais (arts. 19 a 22), concluindo com as
disposições finais e transitórias em 04 (quatro arts.).
Quanto à atuação em segunda instância, a Central de Recursos Cíveis do
Estado de Pernambuco foi criada através da Lei Complementar nº 128/2008,
que alterou a LC nº 12/94, disciplinando a matéria. Desde então, não houve
reformulação ou adequação da referida Central às novas demandas surgi-
das, o que se faz premente após a entrada em vigor do CPC de 2015, dadas
as peculiaridades anteriormente apontadas.
Há de se destacar que, no Ministério Público do Estado de Pernambuco,
a Coordenação da Central de Recursos Cíveis pode ser exercida por pro-
motor ou procurador de Justiça, podendo os procuradores indicar membro
para o exercício do cargo ao Procurador-Geral, sem caráter vinculativo. Não
há uma uniformidade nas diversas unidades ministeriais quanto à coorde-
nação ou chefia dos núcleos recursais, havendo Estados em que a função é
própria de procuradores; outros em que recaem sobre promotores de Justi-
ça; e, ainda, a chefia é atribuída a procuradores, com assessoria de promoto-
res de Justiça, ressaltando, apenas, que estes sempre são da última entrância.
O repensar da atuação ministerial é indispensável nos tempos atuais,
desde a propositura da ação pelos órgãos de execução até a interposição de
recursos pela Central de Recursos Cíveis (no caso do Estado de Pernam-
buco), adaptando-a à realidade processual e demandista dos tribunais que,
além da nova Legislação Processual, vivem a nova realidade virtual como
ferramenta para o exercício da função jurisdicional, modificando desde o
protocolo das ações e a sua tramitação (processo eletrônico) até o julgamen-
to das demandas (informatização de audiências, sessões de julgamento e
266 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

realização de audiências públicas, seja através da teleconferência, dos julga-


mentos virtuais, da utilização da inteligência artificial e teletrabalho).
Assim, é de fundamental importância e urgência a divulgação, adoção
e efetivação da Recomendação CNMP-CN nº 57/2017, acompanhada de
ações como elaboração de estatística dos processos em tramitação em todos
os tribunais, mapeando cada um dos recursos em trâmite para acompanha-
mento em tempo real, através da utilização de ferramentas tecnológicas para
acompanhamento dos recursos diretamente nos tribunais; armazenamento
das informações, com elaboração de filtros de pesquisa e de registro dos
recursos por tema e partes; e utilização da inteligência artificial, a fim de
uniformizar os recursos, evitando teses contrapostas.
Por outro lado, deve-se, ainda, fomentar a realização de cursos e reuni-
ões com os membros, a fim de incentivar a atuação conjunta entre promoto-
res e procuradores, e o compartilhamento de ações e dados, buscando a efe-
tivação dos princípios da unidade e indivisibilidade ministerial, tendo como
objetivo o equilíbrio entre estes e o princípio da independência funcional.
A instauração de fórum permanente de debates na Procuradoria Cível e
nas Promotorias de Justiça, sempre que possível em conjunto com os Cen-
tros de Apoio Operacional (CAOPs), é mecanismo importantíssimo para se
firmar teses e mecanismos de unificação da atuação institucional, respeitada
a independência funcional, fortalecendo-se as ações propostas pelo Minis-
tério Público e a efetividade de sua atuação.

4 Conclusão
Os avanços tecnológicos e a estrutura sócio-política democrática repre-
sentam o futuro (ou, como afirma a futurista dinamarquesa Anne-Marie
Dahl ao falar sobre o assunto, “o próximo nível”, que gera o que se chama
Especial - maio de 2019 | 267

“disrupção”, que significa “tudo vai mudar”). Assim, a sobrevivência das ins-
tituições e do próprio indivíduo dependem da sua capacidade de readapta-
ção aos novos modelos que se apresentam nessa realidade neoconstitucio-
nalista.
A aplicação das medidas contidas na Recomendação CNMP-CN nº
57/2017 é necessária para o fortalecimento e engrandecimento da atuação
ministerial, como, por exemplo, a participação efetiva da Corregedoria
como órgão de orientação na reconstrução da atuação ministerial e o de-
sempenho das ações de forma conjunta por promotores e procuradores, seja
em primeira seja em segunda instância.
Por outro lado, o fortalecimento do perfil constitucional de defensor da
ordem jurídica e guardião dos direitos sociais e das liberdades constitucio-
nais do Ministério Público depende de sua capacidade de modernização e
adaptação aos novos paradigmas impostos pela ordem democrática, sobre a
qual repousa o ordenamento jurídico brasileiro. Não se pode negar que os
tempos atuais exigem uma pronta ação/atuação e abertura para mudanças e
transformações no agir e no pensar humano.
Hoje, o grande desafio da instituição ministerial é redefinir seus cami-
nhos e passar para “a próxima fase”, em que a tecnologia concorre com a
capacidade humana de pensar e criar uma sociedade efetivamente huma-
nizada.
Portanto, o tempo é de profundas mudanças e a capacidade de aceitá-las
e utilizá-las como ferramentas de apoio e fortalecimento da atuação ministe-
rial definirá a importância do Ministério Público para a sociedade brasileira.
268 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Samuel. VITORELLI, Edilson. Seminário Atuação Extrajudicial e
Vanguardista da Instituição. Rondônia, 19/11/2018.

CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Gregório Assagra de; MOREIRA, Jairo Cruz. Orgs.
30 anos da constituição e o Ministério Público: avanços, retrocessos e os novos
desafios. Belo Horizonte:Editora D’Plácido, 2018.

JUNIOR, Fredie Didier. Curso de direito processual civil: introdução ao direito


processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador:Ed. Jus Podi-
vm, 17ª edição.

_________. A Carta de Brasília: novos horizontes para a atuação resolutiva do​​


Ministério​ ​Público. Ludmila​ ​Reis​ ​Brito​ ​Lopes​ ​e​ ​Maria​ ​Clara​ ​Mendonça​ ​Perim. Dis-
ponível em: <http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/Cursos_Realizados/2017/
MP_Resolutivo/Artigo_Ludmila_Reis_Carta_de_Brasilia_Novos_horizontes_para_
atuacao_resolutiva_para_MP.pdf>.

BRASIL. Portaria CNMP-CN nº 87/2016. Conselho Nacional do Ministério


Público-CNMP . Atos e Normas. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/
atos-e-normas-resultados>. Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. PEP nº 2/2017. Conselho Superior do Ministério Público. Disponível em


<ww.cnmp.mp.br/portal/images/Corregedoria/Procedimentos_de_estudos_e_pes-
quisas/Despacho_PEP_2.pdf>. Acesso em 14/02/2019.
Especial - maio de 2019 | 269

BRASIL. Recomendação CNMP nº 16/2010. Conselho Nacional do Ministério


Público. Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/
Recomenda%C3%A7%C3%A3o-0162.pdf>. Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. Recomendação CNMP nº 19/2011. Conselho Nacional do Ministério


Público. Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/
Recomenda%C3%A7%C3%A3o-019.pdf>. Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. Recomendação CNMP nº 34/2016. Conselho Nacional do Ministério


Público. Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/rec_34.pdf. Acesso
em 14/02/2019>.

BRASIL. Recomendação CNMP nº 57/2017. Conselho Nacional do Ministério


Público. Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/
Recomenda%C3%A7%C3%A3o-057.pdf>. Acesso em 14/02/2019.

LC nº12/94 – Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Pernambuco.


Disponível em <http://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?id=4390&tipo=TEXTOATU-
ALIZADO>. Acesso em 14/02/2019.

Lei nº 13.105/2015. Código de Processo Civil. Disponível em <http://www.planal-


to.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. Carta de Brasília. Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível


em <http://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/corregedoria/carta-de-brasilia>.
Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. Ato Normativo PGJ/MPSP nº 412-CPJ, de 24 de novembro de 2005.


Disponível em <http://biblioteca.mpsp.mp.br/PHL_img/ATOS/412compilado.pdf>.
Acesso em 14/02/2019.
270 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

BRASIL. Resolução CPJ/RO nº 007, de 1º de julho de 2015. Disponível em <ht-


tps://www.jusbrasil.com.br/diarios/95083899/djro-03-07-2015-pg-134>. Acesso em
14/02/2019.

BRASIL. Republicação do Provimento nº 001/2012-PGJ-AM. Disponível <http://


www.mpap.mp.br/intranet/uploads/banco_publicacoes/2017_12/280703f2a7dd3c-
0c851513611290d7947a55144b.pdf>. Acesso em 14/02/2019.

BRASIL. Resolução nº 006/2011-CPJ/SE. Disponível em <https://sistemas.mpse.


mp.br/2.0/PublicDoc//PublicacaoDocumento/AbrirDocumento.aspx?cd_docu-
mento=9517>. Acesso em 14/02/2019.
Especial - maio de 2019 | 271

DA IMPORTÂNCIA DO SISTEMA
DE PROTEÇÃO À TESTEMUNHA,
À VÍTIMA E AO RÉU
COLABORADOR AMEAÇADOS DE
MORTE (PROVITA)

FABIANO MORAIS DE LUÍS OTÁVIO DE LIMA


HOLANDA BELTRÃO
Bacharelando em Direito pela
Promotor de Justiça do Estado FACAL e servidor à disposição
de Pernambuco do Ministério Público de
Pernambuco
272 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O presente artigo é o resultado de uma análise do Programa de Proteção a


Vítimas e Testemunhas (Provita), com ênfase no Estado de Pernambuco,
ressaltando a importância da utilização dos depoimentos dos protegidos
para a elucidação dos fatos criminosos. O Programa se transformou em uma
referência quando o assunto é a proteção às vítimas e testemunhas atendi-
das. O tema é de relevante importância, uma vez que, habitualmente, a mí-
dia divulga situações em que a solução de determinado fato delituoso deu-se
em razão das provas testemunhais, demonstrando assim a importância que
os depoimentos exercem nos autos. Aborda-se o Provita como um todo, os
aspectos históricos, os conceitos, as suas características e a sua natureza. A
importância de se contemplar os colaboradores premiados com a proteção
do programa estatal, dando-os sustentação e segurança necessária para es-
clarecer todos os detalhes do iter criminis. Neste cenário, cumpre analisar a
importância do Ministério Público como garantidor à vítima, à testemunha
e ao colaborador premiado dos meios necessários de proteção a sua vida,
utilizando-se do Provita para estimular a colheita de provas que serão utili-
zadas na persecução penal.

PALAVRAS-CHAVE: Auxílio; Proteção; Provita; Testemunha; Vítima; Pa-


pel do Ministério Público.
Especial - maio de 2019 | 273

1 Introdução
Com a evolução da sociedade, as maneiras pelas quais os delitos são prati-
cados também evoluem e se chegar as suas autorias se torna uma atividade
cada vez mais complexa, sendo imperiosa uma busca por mecanismos que
tragam uma forma de estímulo ao esclarecimento e à punição de crimes.
Neste sentido, o depoimento de pessoas envolvidas nos delitos, seja como
testemunhas, vítimas, ou mesmo réus que decidem colaborar com os es-
clarecimentos dos fatos, são imprescindíveis para fornecer às autoridades
responsáveis pela persecução penal um maior conhecimento do fato apre-
sentado como criminoso.
Qualquer pessoa se sentirá muito mais estimulada a reportar atos deli-
tuosos se souber que tem o apoio do Estado, na garantia da sua segurança,
assegurando-se assim sua proteção pessoal e de sua família para declinar o
máximo de informações que tiver para os órgãos investigadores (Polícia Ju-
diciária e Ministério Público), bem como confirmar as informações na fase
judicial, levando ao esclarecimento dos crimes e, por consequência, resul-
tando numa punição justa e na repressão mais eficaz das ações criminosas.
Dentro dessa importância na proteção à pessoa que auxilia o Estado na
persecução penal, o presente artigo trata da proteção à vítima, à testemunha
e ao réu colaborador sob seus mais diversificados aspectos, como uma efe-
tiva e segura alternativa no amparo às vítimas e às testemunhas que sofrem
por terem presenciados crimes das mais variadas condutas.
Neste sentido, as testemunhas são os olhos e os ouvidos da Justiça. Um
dos maiores auxiliadores nesse tema, o Programa de Proteção a Vítimas e Tes-
temunhas (Provita) atua como uma ação de Estado para a garantia da neces-
sária segurança dos que se fizerem necessitados, posto que ameaçados, dada
a condição especial de colaboradores com a elucidação dos fatos criminosos,
até como forma de assegurar-lhes o mais básico dos direitos humanos, à vida.
274 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Assim sendo, o objetivo deste artigo é expor e enaltecer a importância


do sistema de proteção às vítimas, testemunhas e réus colaboradores amea-
çados, analisando os aspectos legais, apresentando os subsídios que poderão
garantir sua efetividade, sob a ótica de uma política pública de proteção à
vida e de combate ao crime organizado. Também será constatado o neces-
sário papel do Ministério Público para a aplicação, ampliação e manutenção
do programa no Brasil.

2 Objetivo
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise dos aspectos his-
tóricos, evolutivos e da efetividade dos sistemas de proteção à testemunha,
vítima e réu colaborador ameaçados de morte no Brasil, com ênfase no Es-
tado de Pernambuco, enaltecendo a importância da garantia de proteção
do Estado aos que colaboram na elucidação dos crimes, em todas as suas
complexidades.

3 Justificativa
Considerando que em nosso País existem muitos casos em que pessoas que
colaboram com alguma investigação criminal são mortas ou têm parentes
próximos assassinados por vingança, até por medo de represálias, as pessoas
não falam o que sabem, prevalecendo a “lei do silêncio”.
Essa ausência de provas nos leva a um quadro de fortalecimento do cri-
me, uma vez que o temor traz o silêncio como um meio de sobrevivência,
em virtude da inexistência de uma segurança legítima ou de um sistema de
proteção do Estado àqueles que em depoimento possam esclarecer o iter
criminis.
Especial - maio de 2019 | 275

A proteção dos direitos fundamentais das vítimas, testemunhas, colabo-


radores premiados e seus familiares são fatores essenciais para a construção
de uma sociedade mais justa e democrática, pois à vida e à liberdade das
vítimas, testemunhas e réus colaboradores são direitos primeiros do ser hu-
mano e, em assim sendo, devem ser amplamente garantidos pelo Estado, ao
passo que se deve despender todos os meios que estejam ao alcance para a
proteção dessas pessoas colaboradoras dos órgãos de persecução penal e da
Justiça, uma vez que essa proteção é consequência do respeito ao seu direito
mais fundamental, à vida.

4 Os programas pioneiros de
proteção à testemunha, à vítima e
ao réu colaborador ameaçados de
morte
4.1 A proteção à testemunha nos Estados
Unidos da América
O serviço federal de proteção à testemunha dos Estados Unidos da América
é o primeiro programa de proteção às testemunhas implementado no mun-
do. Desde a sua criação, em 1971, mais de 7.500 testemunhas e mais de 9.500
familiares de testemunhas foram protegidos. Este mecanismo de proteção é
reconhecido como uma forte ferramenta de repressão ao crime organizado
nos Estados Unidos.
A legislação dos Estados Unidos prevê detalhadamente as formas e as
etapas de proteção à testemunha, assim como as sanções em casos de liti-
gância de má-fé durante o período ou na condição de testemunha protegida.
A primeira iniciativa, após a aprovação para a inclusão e a garantia da
segurança da testemunha, é providenciar a mudança de identidade. O ser-
276 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

viço impõe determinadas restrições à liberdade do protegido, mas garante


a sua segurança durante 24 horas e em situações de alto risco, incluindo as
escoltas para audiências.
Quanto às regras de disciplina do programa, o programa americano de
segurança à testemunha não deixa dúvidas. Primeiro compromisso que a
testemunha precisa assumir é de não cometer crimes. Não retornar à cidade
onde vivia anteriormente, sem o acompanhamento de agentes do programa,
é outra proibição radical e inflexível imposta ao protegido.
De um modo geral, podemos compreender o programa estaduniden-
se como pioneiro na proteção às testemunhas no mundo e, também, como
exemplo a ser seguido em diversos fatores por outros países, incluindo o
Brasil. O mais relevante a ser apontado nesse sistema, no entanto, é a ampla
divulgação do programa na sociedade e a considerável destinação de verbas
públicas para a sua manutenção.

4.2 A proteção à testemunha na Itália


Não podemos falar em proteção às testemunhas sem mencionar a Itália, um
país onde o programa de proteção às testemunhas está bem estabelecido e
serve, principalmente, como ferramenta no combate à máfia Cosa Nostra.
Segundo o portal do Ministério da Justiça da Itália, a proteção à testemu-
nha é de responsabilidade da Procuradoria Nacional Antimáfia (Direzione
Nazionale Antimafia), subordinada ao Ministério da Justiça (Ministero della
Giustizia), o qual é responsável pela repressão à máfia existente no país.
Os primeiros colaboradores da Justiça italiana no combate à Cosa Nostra
(considerada o maior grupo criminoso da Itália) foram Tomaso Buscetta e
Contorno Salvatore. O primeiro teve passagem pelo Brasil, onde se refugiou
e depois foi reconduzido à Itália, dando início a uma série de delações que,
em muito, ajudaram o Poder Judiciário na apuração de responsabilidade.
Especial - maio de 2019 | 277

O programa especial de proteção italiano, assim como o estaduniden-


se, possui um aspecto multidisciplinar, no sentido de não apenas fornecer
a proteção à testemunha, mas, igualmente, assegurar que ela se reintegre
paulatinamente à sociedade e que não se envolva com a prática de crimes.
O programa italiano consiste em um elenco de medidas tutelares de as-
sistência e de recuperação social do protegido. A meta principal do progra-
ma é dar condições ao colaborador de reconstruir um novo “projeto de vida”,
longe do crime e sintonizado com a dignidade e a decência.

4.3 Programa de proteção à vítima, a


testemunha e ao réu colaborador no Brasil
Vivemos em um país em que há um alto índice de violência e, em virtude
disso, existem muitas pessoas vítimas de crimes. Acontece que muitas dessas
vítimas não denunciam essas ações por terem medo de represálias. O mes-
mo ocorre com pessoas que possuem informações privilegiadas a respeito
de determinados atos delinquentes ou de organizações criminosas.
É perceptível que muitos delitos não são devidamente averiguados, em
virtude desse medo sofrido pelas testemunhas, ou pelas próprias vítimas so-
breviventes. E, em função disso, se recusam a falar sobre as circunstâncias da
ocorrência. Esse temor ocorre pela falta de segurança e pelo medo nutrido
pela testemunha, vítima, ou colaborador de ser a próxima vítima da crimi-
nalidade, a pagar com a própria vida o auxílio que prestará no esclarecimen-
to dos fatos.
Portanto, o maior responsável por essa ausência de depoimentos é o re-
ceio das intimidações e atentados praticados pelos interessados na impuni-
dade, de forma que, infelizmente, o poder público ainda é precário na res-
ponsabilidade de proteger as pessoas que se disponham em contribuírem
com a Justiça.
278 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Essas vítimas, as testemunhas e os colabores premiados possuem conhe-


cimentos expressivos a respeito de determinadas pessoas que infringem a lei
penal e a sua cooperação é fundamental para a solução de crimes e, conse-
quentemente, a prisão daqueles que agem de forma ilegal. É fato irrefutável
que a apontada “lei do silêncio” é motivo de intimidação e é fator de impu-
nidade, em particular no chamado crime organizado.
Por isso mesmo é indispensável que haja um amparo a essas pessoas,
que, muitas vezes, sofrem ameaças a sua vida e a de seus familiares, por te-
rem fornecido dados importantes em investigação policial.
Com o passar do tempo, o legislador percebeu que a mera possibilida-
de de decretação da prisão preventiva, estabelecida na conveniência da ins-
trução criminal, ou ainda a prisão temporária, não são instrumentos legais
suficientes para garantir a aplicação da lei penal, sendo assim indispensável
um apoio a vítimas, testemunhas e eventuais colaboradores dos órgãos in-
vestigativos, fazendo com que essas pessoas tenham coragem de denunciar
ou dar seus depoimentos, tudo com o objetivo de que processos e inquéritos
deixem de ser arquivados por falta de provas.
Na Constituição de Federal de 1988, foi previsto no artigo 245 que o
Estado Brasileiro deveria dedicar uma atenção especial às vítimas de crimes
e a seus sucessores. A partir desse mandamento constitucional se criou a
necessidade de implementação de programas estatais que preservassem a
integridade física e promovessem a segurança das vítimas, das testemunhas
e dos eventuais colabores premiados, entendidos esses últimos como réus,
envolvidos na realidade criminosa, os quais revelam o que sabem para a
elucidação do fenômeno delituoso, tudo em razão de seus depoimentos, fato
que os expõem a situação de risco constante, inclusive no que pertine as suas
próprias vidas.
Diversos projetos de lei foram elaborados com o objetivo de proteger tes-
temunhas e vítimas. No ano de 1994, no governo Itamar Franco, foi elabo-
Especial - maio de 2019 | 279

rado um projeto de lei que impunha ao Governo Federal a centralização dos


programas de proteção, excluindo os Estados. Tal projeto não prosperou,
devido ao alto custo financeiro e material gerado aos cofres públicos fede-
rais. Outro projeto foi apresentado de forma sucinta em 1995, este objetivava
a proteção apenas de testemunhas.
Em setembro de 1997, o Ministro da Justiça, Iris Resende à época, elabo-
rou projeto que foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo então Presi-
dente da República, Fernando Henrique Cardoso. Importante salientar que
esse projeto estabelecia programas especiais de proteção às vítimas e teste-
munhas ameaçadas e instituía o Programa Federal de Assistência às Vítimas
e às Testemunhas Ameaçadas.
Entretanto, tal projeto restringia seu âmbito de aplicação aos seguintes
crimes: 1. Homicídio doloso, latrocínio, sequestro, tortura, estupro, extor-
são, roubo, terrorismo, extorsão mediante sequestro, especialmente quando
houver suspeita de participação de grupos de extermínio, agentes públicos,
inclusive policiais; 2. Quadrilha ou bando; 3. Tráfico de entorpecentes ou de
armas; e 4. Sonegação fiscal ou corrupção passiva e ativa. Tal projeto tam-
bém previa a possibilidade de concessão de medidas cautelares direta ou in-
diretamente relacionadas com a eficácia da proteção, tais como: segredo de
Justiça, produção antecipada de provas, oitiva do protegido sem a presença
do acusado ou indiciado, preservação em autos apartados e sigilo dos dados
relativos à qualificação do protegido, restrição à publicidade de audiência,
sessão ou auto processual envolvendo a testemunha ou a vítima protegida,
prisão temporária do agente.
Outra característica do projeto supramencionado era sua comissão vo-
luntária com relação às medidas relacionadas ao réu colaborador. Isto por-
que, no processo penal, réus, testemunhas e vítimas ocupam posições dife-
rentes: o primeiro pratica a ação criminosa, violando um preceito legal; a
vítima sofre a ação criminosa; e a testemunha presencia os fatos. Assim, não
280 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

se pretendia tratar, em um mesmo diploma legal, de situações tão distintas


ou se estabelecer o mesmo enfoque jurídico a essas três figuras. Prevaleceu a
intenção do legislador de garantir a produção da prova testemunhal, a mais
importante das provas admitidas no direito processual brasileiro, e também
permitir que as vítimas possam denunciar e fornecer as informações possí-
veis à apuração das ações criminosas que sofreram, combatendo a crimina-
lidade e a impunidade. A proposição foi apreciada e aprovada pela Câmara
dos Deputados. No Senado Federal foi aprovada por unanimidade.
Exigida há muito tempo pela sociedade brasileira, em 13 de julho de 1999
foi promulgada a Lei nº 9.807/99, que estabelece normas para a organização
e manutenção de programas especiais de proteção às vítimas e testemunhas
ameaçadas, considerada marco oficial da institucionalização do processo.

4.4 Quem pode ser protegido pelo Provita


Aquele que se encontra coagido, sendo a coação o emprego de força física
ou de grave ameaça contra alguém, no sentido de que faça alguma coisa
ou não. A coação pode ser física (via absoluta) ou moral (via compulsiva).
Portanto, no sentido do texto legal, a expressão abrange a coação física e
também moral.
A existência de um programa federal de assistência às vítimas e às tes-
temunhas e os Provitas estaduais impulsionaram a necessidade de criação
do Sistema Nacional de Assistência às Vítimas e Testemunhas, vinculado
à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, visando estabelecer a liga-
ção entre as equipes responsáveis por essas estruturas. Pode-se, a partir daí,
estabelecer novas regras de cooperação entre os integrantes do sistema, as-
segurando a troca de experiências e permitindo inclusive a proteção de be-
neficiários de um Estado em outro, restringindo substancialmente os riscos
para a pessoa protegida.
Especial - maio de 2019 | 281

O Provita, quando da sua criação, além de ser um programa de proteção,


buscava garantir possibilidades de reinserção social de vítimas e testemu-
nhas em novas comunidades, de forma sigilosa e contando com a participa-
ção de diversas entidades da sociedade civil (instituições religiosas, organi-
zações não governamentais, associações comunitárias) na formação de uma
rede solidária de proteção. Em virtude desse cuidado dado às vítimas e tes-
temunhas foi que o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Popu-
lares (GAJOP), organização não governamental, pensando numa proteção a
essas pessoas que se sentem intimidadas e com o intuito de suprir essa falta
segurança, constituíram o Programa de Apoio e Proteção a Testemunhas,
Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita). Esse programa foi
criado em conjunto com o Governo do Estado de Pernambuco e hoje não
está mais sob a gestão do GAJOP, encontrando-se sob a responsabilidade de
um conselho, Condel Provita/TJPE, integrado por representantes do Tribu-
nal de Justiça de Pernambuco, Ministério Público de Pernambuco, Justiça
Federal, Defensoria Pública do Estado, Defensoria Pública da União, Polícia
Federal, Secretaria de Defesa Social, Conselho de Psicologia, Conselho de
Serviço Social e Governo do Estado de Pernambuco.
A iniciativa pernambucana foi inédita no Brasil, criada em 1998, com o
intuito de colaborar com a reinserção social de pessoas em estado de risco
em lugares comunitários, de forma confidencial e contando com a partici-
pação da sociedade civil na construção de uma rede solidária de proteção.
Depois de Pernambuco, outros estados passaram a apoiar a iniciativa.
Em 1999, o Ministério da Justiça resolveu promover nos Estados a criação
de núcleos de assistência e apoio às vítimas de crimes. Em decorrência disso,
diversos estados da nossa federação passaram a aderi-lo. O Ceará passou a
integrar esse programa em 2002.
O Provita, como a própria denominação indica, ampara e protege tes-
temunhas, vítimas e seus familiares de ocorrências de homicídio, tentados
282 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

ou consumados, decorrentes da agressão institucional, da ação de grupos de


extermínio ou do crime organizado.
O Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Estado dos Direi-
tos Humanos, criou, em 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH). Esse programa iniciou suas atividades voltadas para os direitos
civis, assim sendo, os que ferem a integridade física e a cidadania de cada
um. Atualmente, depois de modernizado o Programa Nacional de Direitos
Humanos, passou-se a ter o compromisso de que houvesse a implantação
e o funcionamento de centros de apoios às vítimas de crime nas áreas com
maiores índices de violência, disponibilizando assistência psicológica, social
e jurídica para as vítimas de violência e para seus familiares.
Como apoio ao Programa Nacional de Direitos Humanos, foi elaborada
a Lei nº 9.807, em julho de 1999, que instituiu um Sistema de Proteção a
Vítimas e Testemunhas. Esse sistema foi decretado em 20 de junho de 2000.
O programa tem uma estrutura esboçada para tal fim, em que compõe um
conselho deliberativo, um órgão executor, uma equipe técnica e uma rede
solidária de proteção.
O legislador procurou dar assistência às pessoas que prestam informa-
ções dos fatos investigados, de modo que façam de forma segura, sem es-
tarem tão suscetíveis a possíveis intimidações que venham a sofrer. A pre-
visão legal tem como objetivo que as pessoas chamadas a se apresentarem
ao processo, ou mesmo aquelas que o façam livremente, possam divulgar
a informação, sobretudo no que diz respeito à autoria e à materialidade do
delito investigado.
A Lei nº 9.807 tem como meta resguardar a integridade, promovendo
a segurança das vítimas, testemunhas, réus colaboradores e a satisfação do
“princípio da verdade real”, orientador do processo penal. É um programa
integrado com o Governo Federal, pelo qual o governo se responsabiliza
pelos recursos, sendo gerenciado por institutos da sociedade civil em cada
Estado em que atua.
Especial - maio de 2019 | 283

Conforme essa lei, os favorecidos pelo programa de proteção às teste-


munhas têm direito à mudança de residência, subsídio financeiro de um
salário mínimo mensal por pessoa, manutenção de alimentação e vestuário,
segurança nos deslocamentos, colocação no mercado de trabalho, amparo
psicológico, social e médico, preservação de sigilo de identidade e de dados
pessoais e, em casos excepcionais, mudança de identidade.
É importante enfatizar que nenhuma das pessoas que participaram des-
te programa foi assassinada, havendo apenas dois casos de mortes de pro-
tegidos, as quais não se relacionam a eventuais homicídios dessas pessoas,
fato que, por si, demonstra a eficiência da iniciativa na proteção à vida das
vítimas, testemunhas e réus colaboradores que se encontram sob o manto
protetivo do Provita.
A Lei nº 9.807/99 estabelece regras a serem tratadas pelo poder executivo
para organizar o programa de proteção, destinando verbas que sustentem a ini-
ciativa protetiva do Estado, a fim de reduzir o índice de crimes em nosso País.
A inclusão e a isenção dos programas de proteção aqui no Brasil devem
ser antecedidas de consulta do representante do Ministério Público, consis-
tindo em programas administrados por um conselho deliberativo, integrado
por membros do parquet, Poder Judiciário e por representantes de outros
órgãos vinculados à segurança pública e à defesa dos direitos humanos.

4.5 O Provita na ótica do Ministério dos


Direitos Humanos
O Programa Federal de Assistência e Proteção a Vítimas e Testemunhas foi
instituído no Brasil por meio da Lei nº 9.807/99, diploma regulamentador
da forma de acesso à proteção do Estado pelas pessoas ameaçadas e da com-
petência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal na implemen-
tação de programas de proteção.
284 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Importante frisar que, conforme os ditames legais, o Provita é um pro-


grama específico para “testemunhas”. Ou seja, seu público-alvo refere-se es-
pecificamente às pessoas encaminhadas para a proteção por meio das “por-
tas de entrada” previstas por lei.
Ainda, segundo o Ministério dos Direitos Humanos, promotores e pro-
curadores de Justiça, delegados e juízes identificam e qualificam pessoas na
condição de testemunhas e formalmente as encaminham para que seja feita
uma triagem da situação de risco e principalmente, da condição psicosso-
cial. Todos os elementos colhidos nas triagens são considerados na elabo-
ração de um parecer que será indicativo de proteção ou não ao interessado,
para que, logo após, seja apreciado por um conselho deliberativo composto
de representantes de órgãos públicos relacionados à proteção.
Nessa toada, cabe pontuar que a anuência da pessoa encaminhada à tria-
gem é condição sine qua non para seu ingresso, tendo em vista que não será
possível a proteção de quem frontalmente se colocar de forma contrária à
medida. Grosso modo, as razões pelas quais as pessoas declinam seu ingres-
so no Provita estão relacionadas principalmente com a diminuição do risco
ou incompatibilidade com as normas dos programas, as quais são rígidas,
até em função de sua natureza e seus objetivos.
Em situação de acolhimento imediato, para aquelas situações em que a
pessoa ameaçada não poderá retornar para sua casa, são acionadas as insti-
tuições de segurança pública, responsáveis constitucionais para a proteção
da sociedade como um todo, visto que o Provita tem seu foco na testemu-
nha, após o caso ter sido aprovado pelo Conselho Deliberativo. O Provita
não tem o condão de substituir as forças policiais em nenhuma situação de
ameaça.
Por se tratar de um programa que não faz busca ativa para levantar a
demanda sobre quem precisa de proteção, o Provita atua de forma pontu-
al, com casos endereçados a si e corroborados por pareceres ministeriais,
Especial - maio de 2019 | 285

nos quais se “atesta” um importante depoimento a ser oferecido pela pessoa


ameaçada. Assim, demais casos de ameaças e violência deverão ser tratados
junto às outras políticas públicas, visto que o Provita não é o único a tratar
da mitigação de ameaças.
O ingresso é voluntário e a permanência também. A pessoa protegida
não está obrigada a permanecer após ser acolhida na rede Provita. Mesmo
que vinculadas aos processos criminais, as pessoas protegidas são informa-
das da anuência para se manterem no programa. Caso peçam seu desliga-
mento da política de proteção, serão apoiadas, inclusive com recursos hu-
manos, para pensarem na sua saída e para deslocamento ao local desejado.

4.6 Provita no Estado de Pernambuco


Segundo o dr. Bartolomeu Bueno de Freitas Morais, conselheiro estadual
do Provita/TJPE, desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco e
presidente da Associação Nacional de Desembargadores:

Há exatos 10 anos, o nosso Estado vivia um momento ím-


par, com crescimento econômico acima da média nacional,
melhoria expressiva dos índices de desenvolvimento social,
otimismo e realizações que se refletiam em todas as esferas,
públicas e privadas. Foi nesse contexto de desenvolvimen-
to que foi consolidada a legislação estadual do programa de
proteção à testemunha PROVITA. Criado no ano de 1996
pelo GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organiza-
ções Populares), e posteriormente exportado para o Brasil
e para a América Latina, o programa tinha como escopo,
além da questão propriamente humanitária, garantir a efe-
tividade da Justiça e do Processo Judicial, possibilitando que
286 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

a TESTEMUNHA JUDICIAL e o RÉU COLABORADOR


pudessem depor livremente de forma segura, sem sofrer
intimidação, perseguição ou atentados contra sua vida. Por
efeito, a sensação de que os crimes ligados ao tráfico de dro-
gas, à pistolagem e à corrupção ficariam impunes diminuiu
significativamente. O medo de depor não mais prevaleceu
sobre a busca por Justiça, permitindo que relevantes opera-
ções estaduais e federais de combate à criminalidade fossem
realizadas com êxito. Com o advento da Lei 13.371/07, foi
implementada em Pernambuco a Política Estadual de Assis-
tência e Proteção a Vítimas e Colaboradores da Justiça, tendo
como princípios norteadores a prevalência da ordem jurí-
dica (a), a aplicação da justiça (b) e a proteção aos direitos
humanos (c). Destarte, foi formalizado e institucionalizado
o Sistema Estadual de Assistência 13 e Proteção a Vítimas e
Colaboradores da Justiça, que consiste na ação coordenada
dos diversos programas de proteção executados no território
do Estado, por intermédio dos vários órgãos e instituições
públicas, no âmbito das respectivas competências. Para que
tudo funcione a contento, é imprescindível a CELERIDADE
DOS PROCESSOS JUDICIAIS e o sigilo dos procedimen-
tos administrativos e técnicos que tenham pessoas incluídas
em programas de proteção. O art. 11 da Lei Federal 9.807/99
estabelece que a proteção oferecida pelo programa tem a du-
ração máxima de 02 (dois) anos. Logo, esse seria o tempo
médio que o Judiciário teria para, sem colocar em risco a
testemunha e o réu colaborador, colher o depoimento e, ha-
vendo provas suficientes, apartar da sociedade seus algozes,
quer se trate de traficantes, grupos de extermínio ou autori-
Especial - maio de 2019 | 287

dades públicas envolvidas em corrupção. Em caráter excep-


cional, perdurando os motivos que autorizaram a admissão,
a permanência da testemunha poderá ser prorrogada, mas
isso implicará em um recurso financeiro que o programa não
dispõe. Assim sendo, podemos concluir que a existência do
programa está associada a atuação efetiva dos Magistrados
e a forma como lidam com o processo e com o encaminha-
mento das testemunhas, evitando a permanência extempo-
rânea e a quebra do sigilo (Cartilha do TJPE, 2017).

Já nas palavras de dr. Luís Sávio Loureiro da Silveira, promotor de Justiça,


coordenador do CAOP Criminal e conselheiro estadual do Provita/MPPE:

De 2001 a 2017, o programa já contemplou cerca de 353 ví-


timas/testemunhas ameaçadas de morte, de diversas regiões
do Estado (e até de outras unidades da federação), enfren-
tando sérias situações de fato que permaneceriam - mui-
to provavelmente - sem o adequado combate, em face dos
comprovados riscos que comprometeriam a eficaz prestação
jurisdicional, acaso não existisse um complexo suporte logís-
tico de proteção (Cartilha do TJPE, 2017).

Em Pernambuco, para que seja pleiteado o ingresso, alguns pré-requisi-


tos devem ser atendidos:
1. Tratar-se de vítimas/testemunhas colaboradoras da Justiça, e de seus
familiares, que sofram ações violentas ou grave ameaça - art. 1º da
Lei 13.371/2007;
2. Existência de investigação, inquérito ou ação penal, para apurar a
autoria delitiva de um ou mais fatos criminosos;
288 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

3. Estar coagido ou exposto a grave ameaça ou coação à integridade


física ou psicológica para impedir ou dificultar o seu testemunho, ou
ainda com o objetivo de falsear a verdade acerca de fato criminoso
de que tenha conhecimento, em razão de sua colaboração com a
investigação ou processo judicial;
4. Colaborar para a elucidação de crime em procedimento investigati-
vo ou em processo judicial;
5. Insuficiência dos meios para resguardar sua integridade física e psi-
cológica e de prevenir ou reprimir os riscos pelos mecanismos con-
vencionais de segurança pública;
6. Encontrar-se em gozo de sua liberdade;
7. Ser capaz de exprimir sua vontade de ingressar no programa, de
forma livre e autônoma nos termos do Código Civil, ou por seu re-
presentante legal;
8. Anuir e aderir expressamente às normas de segurança do Programa
de Proteção a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas;
9. A emissão de parecer favorável por parte do Ministério Público, ex-
plicitando a gravidade da coação ou da ameaça à integridade física
ou psicológica, em decorrência de seu testemunho, a dificuldade de
preveni-las ou reprimi-las pelos meios convencionais e a importân-
cia do usuário para a produção da prova; e
10. Estar o pedido devidamente instrumentalizado com documentos ou
informações comprobatórias da identidade e da situação penal do
interessado, cópia das declarações prestadas pelo interessado sobre
os fatos, em procedimento investigatório ou processual instaurado
pelo Ministério Público ou cópia da portaria inaugural de inquérito
policial, auto de prisão em flagrante e/ou cópia da denúncia.
Especial - maio de 2019 | 289

Deve-se observar a importância do testemunho/depoimento para pro-


dução da prova e a ausência de restrição legal à liberdade ambulatória do
solicitante (o que exclui pessoas contra as quais pesem quaisquer espécies de
prisões processuais). Estão excluídos da proteção os indivíduos cuja perso-
nalidade ou conduta seja incompatível com as restrições de comportamento
exigidas pelo programa, os condenados que estejam cumprindo pena e os
indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas modalida-
des - art. 2º da Lei Federal 9.807/1999.
A proteção poderá ser dirigida ou estendida ao cônjuge ou companheiro,
ascendentes, descendentes e dependentes que tenham convivência habitu-
al com a vítima ou testemunha, conforme o especificamente necessário em
cada caso - art. 2º da Lei Federal 9.807/1999.
Para os fins previstos na Lei 13.371/2007, entende-se por vítima a pes-
soa física que suporta diretamente os efeitos de ação violenta consumada
ou tentada, vindo a sofrer danos físicos, psicológicos ou morais, bem como
o familiar, dependente e convivente que tenha sofrido dano decorrente da
ação contra a vítima direta - art. 4º da Lei 13.371/2007.
Entende-se por colaborador da Justiça a pessoa física que contribua efetiva-
mente para a investigação policial ou processo criminal, bem como para a defe-
sa dos direitos humanos, que esteja coagida ou exposta a grave ameaça em fun-
ção dessa contribuição, inserida em programa integrante do Sistema Estadual.
A testemunha, a vítima ou o réu colaborador poderá ingressar no pro-
grama mediante solicitação encaminhada à equipe técnica, que, munida dos
documentos necessários, elaborará parecer opinativo para então submeter o
caso ao Conselho Deliberativo (Condel Provita/PE).
O art. 8º da Lei 13.371/2007 dispõe que a solicitação, objetivando o in-
gresso no Programa, poderá ser encaminhada ao órgão executor:
I. Pelo interessado;
II. Por representantes do Ministério Público;
III. Pelo juiz competente para a instrução do processo criminal;
290 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

IV. Pela autoridade policial que conduz a investigação criminal;


V. Por órgãos públicos e entidades não governamentais relacionados
com a defesa dos direitos humanos;
VI. Pela Comissão de Defesa da Cidadania e Direitos Humanos da As-
sembleia Legislativa de Pernambuco; e
VII. Por um dos membros do Conselho Deliberativo. A solicitação será
instruída com a qualificação da pessoa a ser protegida e com informações so-
bre a sua vida pregressa, o fato delituoso e a coação ou ameaça que a motiva.

4.7 Outros encaminhamentos


Caso não seja deliberado o ingresso no Provita, aos solicitantes são ofereci-
das outras soluções, ou formas de proteção, sendo elas o encaminhamento
à Rede Estadual de Apoio à Proteção de Pessoas (Reap), serviço da Secreta-
ria Executiva de Direitos Humanos do Estado de Pernambuco, estruturado
para atendimentos dos casos considerados “não perfis” para os programas
de proteção, a exemplo do Provita.
Ainda, havendo urgência na necessidade de acolhimento institucional,
os usuários podem ser encaminhados para o Núcleo de Acolhimento Pro-
visório (NAP), o qual tem o papel de garantir a proteção provisória pelo
período de 15 dias, podendo ser prorrogado por mais cinco dias, até que se
decida acerca da inclusão do pretenso protegido no Provita.

5 A atuação do Ministério Público de


acordo com a Lei nº 9.807/99
A Lei nº 9.807/99 traz quatro formas de atuação do Ministério Público. A
primeira atuação é a da instituição: sendo uma atividade político-institucio-
Especial - maio de 2019 | 291

nal, atua como membro do Conselho Deliberativo do programa de prote-


ção às testemunhas, conforme disposto no artigo 4º, caput, segundo o qual
o órgão terá, obrigatoriamente, em sua composição, as representações do
Ministério Público, do Poder Judiciário e de órgãos públicos/privados com
atuação na área de segurança pública e defesa dos direitos humanos.
Ao Ministério Público cabe ainda a função de órgão executor do progra-
ma, pois esta atividade pode ser exercida por qualquer dos órgãos represen-
tados no conselho deliberativo, desde que os seus agentes sejam formados e
capacitados para tanto (artigo 4º, § 1).
Processualmente, o Ministério Público atua alternadamente, como parte
e como fiscal da lei. A atuação como parte se refere à atuação em matéria
processual-penal. Mazzilli o vê como parte formal, porém “parte imparcial”,
compreendida sua imparcialidade no sentido moral, não excluindo o seu
papel de fiscal da lei.
Atua como fiscal da lei, sendo que a função de custos legis está relacio-
nada à atuação do promotor na área civil, especificamente na alteração do
nome completo da pessoa protegida, outra importante inovação introduzida
pela Lei nº 9.807/99, em seu artigo 9º.

6 Aplicação do Provita aos casos de


contribuição premiada
A Lei nº 9.807/99 contribuiu para o avanço da delação/contribuição pre-
miada, mas deixou lacunas a serem preenchidas, às quais surgiram opiniões
divergentes e não houve consenso jurídico para a resolução dos problemas
advindos com a assinatura da delação/colaboração.
Não há dúvida de que a prova testemunhal é de vital importância para o
processo penal, e provar significa alcançar a verdade que se busca, vislum-
brando certeza e convencimento do magistrado.
292 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Assim sendo, faz-se necessária a colaboração através da vítima, da teste-


munha ou do delator, em face da difícil elucidação dos fatos criminosos, por
falta de provas, em especial da prova testemunhal, por consequente medo
das pessoas que presenciaram ou participaram dos fatos em testemunhar
ou colaborar.
Tendo em vista a caracterização da delação premiada, a inclusão do co-
laborador no programa depende do preenchimento de requisitos específicos
para o acolhimento do beneficiado, ficando esse sujeito à apreciação das cir-
cunstancias do caso pelo Conselho Deliberativo.
Contudo, a utilização do conhecimento do colaborador como alguém
que participava da vida criminosa tem se mostrado imprescindível no com-
bate à impunidade na punição criminal, sendo esse um dos maiores fatores
de banalização da violência, representando a não punição dos crimes verda-
deira a negação da Justiça e do direito frente ao conhecimento da verdade.
Apesar dos diversos empecilhos que impedem qualquer um de colaborar
com a Justiça, em particular com a Justiça Penal, por medo, pavor, constran-
gimento, falta de segurança, entre outros, o programa de proteção à vítima
e testemunhas tem sido um eficaz instrumento na consecução da Justiça,
na busca da legalidade e agilidade dos processos, num esforço em contri-
buir para a punição dos criminosos, por meio de um depoimento seguro e
consciente da vítima, da testemunha e do colaborador, respeitando sempre
os direitos humanos.

6.1 Utilização da proteção ao colaborador


em um caso prático
Na atuação como representantes do Ministério Público, tivemos a oportuni-
dade de perceber, na prática, a importância de se oferecer a um colaborador
a possibilidade de sua inserção no Provita. Ao informá-lo que, diante da
Especial - maio de 2019 | 293

sua concordância em revelar o que sabia acerca dos detalhes na conduta de


uma organização criminosa que se voltava ao tráfico de entorpecentes, po-
deríamos inseri-lo no programa de proteção, garantindo tanto a ele, como
a seus familiares mais próximos, meios eficazes de se assegurar a sua vida e
liberdade.
O caso teve particular importância, uma vez que se trata de colaboradora
mulher, a qual estava, inclusive, sentimentalmente envolvida com os demais
componentes da teia delituosa. Ocorre que após ser presa por eficiente in-
vestigação policial e revelar um pouco do que sabia, até em razão do fato
de ter sido flagrada com expressiva quantidade de drogas, foi ela ameaçada
pelos demais integrantes da associação para o tráfico.
Premida pela ameaça à sua vida, que se estendia à vida de sua mãe e
filhas menores, percebendo que o crime não mais a perdoaria por ter escla-
recido, quando do seu interrogatório policial, um pouco do que sabia, sen-
timos que aquela pessoa não tinha saída, não porque se encontrava presa (o
fato de estar encarcerada inclusive lhe resguardava a vida), mas sim pelo fato
de que o tráfico já a enxergava como um arquivo que precisava ser queima-
do. Neste momento e procurado inclusive pela mãe da colaboradora, a qual
nos relatava ser ela e suas netas menores ameaçadas de morte, pelo que havia
sido revelado à polícia, expusemos a colaboradora que a sua única saída era
se tornar uma delatora premiada, esclarecer aos órgãos de persecução tudo o
que sabia sobre o complexo organizacional criminoso e, desta forma, salvar
sua vida e de seus parentes mais próximos.
Ocorre que vários dilemas surgem neste momento, sendo o primeiro
a pergunta que nos fez a colaboradora: como o senhor pode garantir que,
dizendo o que sei, não serei eu, minha mãe e minhas filhas mortas pelo
tráfico? A resposta só pode ser eficazmente dada a ela, convencendo-a a se
tornar uma colaboradora quando expusemos que seria possível sua inserção
no Provita e, por consequência, a possibilidade que se abria de alteração de
294 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

toda sua nefasta realidade de negação da vida, não só dela, mais de sua mãe
e das filhas menores.
Ciente das consequências de adesão ao programa de proteção, resolveu a
colaboradora revelar tudo o que sabia, até por participar intestinalmente do
tráfico, sendo suas informações decisivas para que os órgãos de persecução
(Polícia Civil e Ministério Público) desbaratassem a organização crimino-
sa voltada ao tráfico e denunciasse todos os seus integrantes, possuindo o
depoimento da colaboradora não só uma essencial natureza de fonte reve-
ladora do complexo criminal, como uma indispensável fonte de prova do
cometimento do crime e suas autorias.
Convencê-la apenas sob o argumento de que confessando teria uma di-
minuição de sua pena soava ridículo. Seu destino, assim como os de sua mãe
e filhas, era a morte, portanto, de nada adiantava confessar para ter diminu-
ída a pena, se na prisão saberia que seus parentes mais próximos teriam a
vida ceifada e, ao sair da cadeia, esse seria seu fim.
Simplesmente requerer ao Judiciário que substituísse sua prisão preven-
tiva (seu flagrante foi convertido em constrição cautelar na audiência de
custódia) sob os auspícios da Lei nº 13.257, de março de 2016, que alterou
artigos do Código de Processo Penal, garantindo às gestantes ou mulheres
com filhos de até 12 anos de idade (suas filhas eram todas menores de 11
anos de idade) e que ainda não foram condenadas pela Justiça (ela não tinha
passado de anteriores condenações criminais) seria igualmente sentenciá-la
a morte, vez que retornando àquele ambiente em que vivia, inserida no tráfi-
co e refém de suas ordens, seria morta, junto a sua mãe e filhas.
Neste sentido, a inclusão da colaboradora no Provita significou para ela,
mãe e filhas menores a salvaguarda de suas vidas e, muito mais do que a
proteção do Estado, a garantia, durante um certo tempo, de que lhe seriam
oferecidas condições mínimas de vida, liberdade e dignidade para recome-
çar a vida, junto com seus familiares, em um ambiente social fora do mundo
Especial - maio de 2019 | 295

do crime. Possibilitando-a, dessa forma, trabalho lícito e digno e inclusão


escolar às filhas menores, sendo o programa de proteção um verdadeiro
“abrir de portas” para uma realidade que ela não conseguia acessar em sua
localidade natal, desprovida de assistência mínima das garantias para uma
vida digna e, talvez por esse motivo, ensejadora de sua inserção na organi-
zação criminosa.

6.2 A necessidade de se conhecer o Provita


e de sua utilização pelos membros do
Ministério Público
Surpreende-me a ausência de conhecimento e da pouca utilização desse im-
portante instrumento de proteção às vítimas, testemunhas e colaboradores
premiados por parte dos membros do Ministério Público em Pernambuco.
Não por culpa dos promotores de Justiça, ou falta de casos em que se pode
manejar o Provita, mas simplesmente pelo desconhecimento do programa,
percebo que os colegas têm se utilizado pouco da proteção estatal àqueles
que necessitam (o programa hoje ocupa metade das vagas possíveis de se-
rem preenchidas com protegidos). Com isso se perde excelente oportuni-
dade de oferecer a vítima, testemunha, ou colaborador premiado um im-
portante estímulo para que fale tudo aquilo que sabe acerca do crime e seus
detalhes aos órgãos de persecução penal.
O Tribunal de Justiça vem divulgando o “par e passo” da necessária bu-
rocracia para ingresso no Provita, tanto por meio da divulgação de cartilha,
como pela realização de cursos, contudo a iniciativa ainda fica limitada a
poucos interessados dentro do Ministério Público e da magistratura.
A ideia de divulgação do presente tema na revista da AMPPE que come-
mora os 70 anos de Declaração dos Direitos Humanos, inclusive, tem esse
objetivo, de suscitar o debate dentro do parquet pernambucano. Não adianta
296 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

discussões teóricas acaloradas e teses, sempre muito bem escritas pelos co-
legas, acerca da importância dos direitos humanos, se não pudermos, na ro-
tina de nossa atividade como titular e dominus litis da ação penal, garantir à
vítima, à testemunha e ao colaborador premiado, antes de mais nada, meios
necessários de proteção a sua vida.
Assim sendo, parece-me inócuo sermos o curador da ordem democráti-
ca e garantidor do sistema de Justiça, acaso não tenhamos ciência e não sou-
bermos utilizar essa essencial ferramenta de combate ao crime que se consti-
tui o Provita, mormente o crime organizado, cujos tentáculos se estendem a
tantos e tão variados crimes em nosso Estado, seja na região metropolitana,
ou no interior de Pernambuco, cujos índices de criminalidade continuam
crescentes e assustadores, com complexa teia de envolvidos e inserção cres-
cente nos meios sociais.

7 Considerações finais
Podemos, portanto, compreender o programa especial de proteção a teste-
munhas como uma ferramenta de suma importância à repressão ao crime,
principalmente a criminalidade organizada, demonstrando na prática uma
eficácia considerável ao assegurar a proteção das testemunhas e reinseri-las
na sociedade.
O programa italiano tem muito a ser seguido pelos demais mecanismos
do mundo, especialmente pela integração com o Poder Judiciário e pela alta
verba que lhe é destinada pelo Poder Público.
Analisando os programas pinçados neste artigo, podemos perceber que
o Brasil ainda tem muito a evoluir na proteção à testemunha, sendo uma
ferramenta essencial ao Judiciário e aos órgãos que integram o sistema de
segurança pública, dentre eles o Ministério Público, como forma de comba-
Especial - maio de 2019 | 297

ter e punir de forma eficaz os crimes, incluindo nestes os mais complexos e


organizados, havendo comprovada eficácia da atuação do Estado na punição
inclusive da criminalidade organizada de “colarinho branco”.
Alguns importantes passos já foram dados, como a criação do Programa
Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, do Programa
de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita) e do Programa
Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas (Pro-
tege), mas o fundamental é que o Estado invista cada vez mais nos órgãos de
segurança pública e nas políticas de proteção, para que sejam devidamente
aparelhadas, com profissionais qualificados e dignamente remunerados.
A exemplo do baixo investimento em tão importante programa, no Es-
tado de Pernambuco, no ano de 2017, o orçamento destinado ao Provita é
suficiente para apenas 65 protegidos, sendo que até setembro de 2018, já
haviam 35 pessoas incorporadas no programa.
Assim, é necessário que a sociedade organizada cobre dos governantes
medidas concretas para fortalecimento do Provita e consequente credibili-
dade da população no Poder Judiciário, resultando num maior número de
crimes elucidados, vez que, confiando no sistema de Justiça, estimular-se-á
a contribuição com informações valiosas para se chegar à autoria delitiva em
crimes como tráfico e associação ao tráfico de drogas, lavagem de dinheiro,
crimes dolosos contra a vida, entre outros de igual complexidade de eluci-
dação da autoria.
298 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

REFERÊNCIAS
U.S. Marshals Service. Witness security program. 2013. Disponível em: <http://
www.usmarshals.gov/witsec/>.  Acesso em: 21 set. 2018. [traduzido com Google
Tradutor].

SILVEIRA, José Braz da. A proteção à testemunha e o crime organizado no Bra-


sil. Curitiba: Juruá, 2005. p.24.

LAMB, Moisés. A prova testemunhal e o programa de proteção à testemunha


no ordenamento brasileiro sob a lei 9.807/99. 2012. 99 f. Trabalho de Conclusão
de Curso – Feevale, Faculdade de Direito, Novo Hamburgo, 2012. Disponível em:
<http://ged.feevale.br/bibvirtual/monografia/MonografiaMoisesLamb.pdf> Acesso
em: 22 out. 2018. p.45.

MINISTERO dela Giustizia. Direzione nazionale antimafia. 2018. Disponível em:


<http://www. giustizia.it/giustizia/it/mg_2_10_1.wp>. Acesso em: 21 set. 2018.

JUNIOR, Ivan P. Oliveira. A proteção à testemunha nos Estados Unidos da Amé-


rica e na Itália: Programas pioneiros de proteção à testemunha. 2015. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/36995/a-protecao-a-testemunha-nos-estados-uni-
dos-da-america-e-na-italia-programas-pioneiros-de-protecao-a-testemunha>.

MINISTÉRIO dos Direitos Humanos. Programas de Proteção. Provita. 2018. Dis-


ponível em: <http://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/programas-de-protecao/
provita-1/provita>.
Especial - maio de 2019 | 299

NOGUEIRA, M. Carvalho. Proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas.


2014.  Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/33366/protecao-as-vitimas-e-tes-
temunhas-ameacadas>.

TRIBUNAL de Justiça de Pernambuco. Cartilha Provita. 2017. Disponível em


<http://www.tjpe.jus.br/documents/1252286/1546347/CARTILHA_PROVITA.pdf/
b6edd7be-864d-92f3-4394-3cef05fd5c60>.

ANJOS FILHO, Rogério Nunes dos. Direito Constitucional. 2 ed. Salvador: Edito-
ra JusPODIVM, 2003.

BARROS, Antônio Milton de. A Lei de Proteção à Vítima e Testemunhas: e outros


temas de direitos humanos. Franca: Ribeira Gráfica e Editora, 2003.

BRIMELOW, Sarah. Apoio à Vítima (Victim Support). GAJOP: Recife-PE, 1998.


BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direitos Humanos, cidadania, traba-
lho. Belém, 2004.

ALMEIDA, Eliane Moraes de. Direitos Humanos Fundamentais e o Direito Inter-


nacional. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/16/31/1631>.
Acessado em: 10 de abril de 2013.

CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2000.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3 ed. São Paulo: Renovar, 1991.

FERREIRA DE MELO, Osvaldo. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis:


OAB/SC, 2000.
300 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos: uma ideia, muitas vozes. Apare-
cida: Santuário, 1998.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

JESUS, Damásio E. de. Perdão Judicial Colaboração Premiada. Análise do Art. 13


da Lei nº 9.807/99: Primeiras Ideias, IBCCrim, a. 7, n. 82, set. 1999.
Especial - maio de 2019 | 301

A ONU E O DIREITO HUMANO AO


MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E
PROTEGIDO

GERALDO MARGELA
CORREIA

Procurador de Justiça
aposentado
302 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

O tema que escolhi trata da presença ou ausência na Declaração de Direitos


Humanos do assunto relacionado ao Meio Ambiente desenvolvido confor-
me o texto apresentado, nada obstante a ausência geral de autores que tratem
dessa matéria em suas obras, não havendo, portanto, extensa bibliografia a
ser consultada, que não sejam a própria Declaração e a legislação brasileira
encontrada, publicação de cunho legislativo. Assim, mãos à obra!
O artigo deseja mostrar a preocupação da Organização das Nações Unidas
(ONU) com a questão ambiental, independentemente de não constar no tex-
to aprovado em 10 de dezembro de 1948, tal preocupação veio a ter efeitos
em 1972 com a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano. Isto nos conduzirá à reflexão sobre os efeitos de tal De-
claração na legislação dos Estados integrantes da ONU, em especial o Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Organização das Nações Unidas; Meio Ambiente;


Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Hu-
mano; Qualidade Ambiental; Aquecimento Global; Poluição (terrestre, ma-
rítima, do ar); Legislação Ambiental; Responsabilidade Ambiental (Prática
ambiental do Estado e dos órgãos responsáveis); Povo e Meio Ambiente;
Ministério Público e Direitos Humanos.
Especial - maio de 2019 | 303

1 Introdução
Completaram-se 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU) neste ano de 2018, em data de 10 de
dezembro, publicado que foi o documento em 10 dezembro de 1948.
Observa-se que em tal documento não se menciona entre os direitos hu-
manos o direito humano ao meio ambiente sadio, equilibrado e protegido.
Tal proteção ocorre em 1972, quando da Convenção de Estocolmo, onde
ocorreu a emissão de uma Declaração da Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente Humano com a afirmativa no Princípio 1º com re-
dação que segue: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igual-
dade e ao desfrute de condições de vida adequadas a um meio cuja quali-
dade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene
obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e
futuras”.01
Em nossa Legislação, a preocupação com as questões ambientais ante-
cede aos documentos internacionais quanto à referida matéria, pois já em
1934, em 10 de julho, fora aprovado o Decreto nº 24.643, denominado Có-
digo de Águas.02
É certo que tal Código trata da água como simples matéria de Direito
Civil, circunscrevendo direitos e deveres dos proprietários das águas e dos
territórios de suas propriedades (da União, dos Estados e dos Municípios,
como ainda dos particulares), constituindo-se, nada obstante, em marco le-

01 MARCHESAN, Ana Maria; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito


Ambiental. 7ª Edição, 2013.
02 Ver: Legislação do Ministério Público. IV Direito Ambiental – Ministério Público de Pernambuco,
Procuradoria-Geral de Justiça, Escola Superior do Ministério Público, Recife 1998, p. 21 a 53.
304 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

gal necessário para a proteção deste elemento essencial à vida humana e para
uma convivência harmoniosa para a sociedade.
Outra legislação produzida anteriormente ao marco da Conferência das
Nações Unidas de 1972 foram a Lei nº 4.771 de 15 de setembro de 1965
(Novo Código Florestal) e a Lei nº 5.197 de 03 de janeiro de 1967 (Proteção
à Fauna e outras providências), dentre outros Decretos e Códigos03.
Importa, pois, afirmar o pioneirismo da legislação ambiental brasileira
em relação à preocupação posterior da ONU quanto aos temas relacionados.
Tal fato se deve, a meu sentir, à ausência de planos e programas de âmbito
internacional quanto aos problemas que já se apresentavam como graves ao
conhecimento de cientistas e ambientalistas.
Quando da aprovação da Carta da ONU, em 1948 a maior preocupação
era com os problemas trazidos com as guerras, a última encerrada em 1945,
o que chamava à construção de documento internacional para fazer frente
às problemáticas daquele momento.
A Carta se constitui de 30 artigos e um preâmbulo que copiamos por se
constituir em uma espécie de resumo da mesma:

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMA-


NOS, Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da
Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948.

PREÂMBULO

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente


a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo,

03 Idem quanto à nota anterior, com paginação diversa.


Especial - maio de 2019 | 305

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direi-


tos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da Humanidade e que o advento de um mundo
em que todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam


protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não
seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a ti-
rania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de


relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirma-


ram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos funda-
mentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igual-
dade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram
promover o progresso social e melhores condições de vida
em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram


a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respei-
to universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais
e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos


e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumpri-
mento desse compromisso.04

04 Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, cópia extraída da Internet em 23/11/2018.
306 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Os artigos, em número de 30, mencionam quais são os direitos humanos


e tratam de cada um com foco no âmbito universal, valendo para todo e
qualquer ser humano em qualquer país, cada um desses devendo encontrar
e aplicar meios de sua aplicação na sociedade.
A Declaração é documento riquíssimo de avaliação da sociedade huma-
na e de imputação de direitos e deveres fundamentais para evitar as guerras
e conflitos de natureza violenta que têm sido utilizados constantemente em
momentos que somente criam tensões no mundo e não resolvem, ao contrá-
rio, agravam os problemas advindos de tal comportamento agressivo.
Tais direitos e deveres têm a finalidade expressa da conquista dos direitos
e liberdades fundamentais e comportamentais desde que seja assegurada a
igualdade para todos, independentemente de sexo, raça, religião e preferên-
cias pessoais.
Recomenda-se que tal documento seja devidamente estudado e analisa-
do para que sejam cobrados, pelas instituições internacionais e estatais, seu
conhecimento e devida aplicação dos mandamentos elencados em seus arti-
gos. Também para que os cidadãos possam verificar sua real aplicação pelo
Estado e pelos organismos internacionais para o bem dos povos e nações.

2 Ausência da questão ambiental na


Declaração Universal de Direitos
Humanos
Nos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se celebra
no dia 10 de dezembro de 2018, observa-se a ausência do tema ambiental
na referida Declaração, tanta era a preocupação com a violência das guerras
e revoluções que aconteciam até aquela época (a última Guerra Mundial
concluiu-se em 1945) e todas as demandas diziam respeito às violências e
desrespeito aos direitos humanos fundamentais, nela declarados.
Especial - maio de 2019 | 307

O Documento é primoroso no que diz respeito aos direitos humanos


fundamentais, inspirado nos mais relevantes princípios de humanismo e
amor ao próximo.
A título de exemplo citaremos aqui alguns dos princípios elencados na
referida Declaração:

Artigo 1.

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade


e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir
em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2.

1.Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e


as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Artigo 2.

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na


condição política, jurídica ou internacional do país ou ter-
ritório a que pertença uma pessoa, quer se trate de um ter-
ritório independente, sob tutela, sem governo próprio, quer
sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 17.

Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em socie-


dade com outros,

Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”05.

05 Idem ao referido na nota 4.


308 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

A Declaração inteira mereceria ser posta aqui à leitura de todos, mas,


como se trata de documento perfeitamente acessível, solicito que procurem
acessá-lo para uma leitura a fim de que descubram, os que já não o fizeram,
a beleza que é este documento.
Poderão notar por si mesmos a ausência, como afirmamos, de referência
à questão ambiental.

3 As discussões e leis antecedentes no


Brasil
Como também já adiantamos, as questões ambientais e decretos protetivos
de ecossistemas foram discutidos, tendo sido criados no Brasil antes que o
assunto fosse posto em discussão na ONU. Decreto sobre ecossistema ainda
não se refere a ele como assunto de natureza ambiental, mas apenas do pon-
to de vista patrimonial, com defesa apropriada para este ponto de vista. É o
caso do Código de Águas (Decreto nº 24.643 de 10/07/1934), composto por
205 artigos prevendo os mais diversos temas relacionados com a proteção, a
propriedade e os usos relativos ao sistema hídrico nacional06.
Após este Decreto, nova legislação veio a lume em 1937, o Decreto Lei
n° 25, de 30 de novembro de 1937 que “organiza a proteção do patrimônio
histórico e artístico” com 30 artigos, divididos em 5 capítulos07.
O Decreto-lei trata de questões como Tombamento, Efeitos do Tomba-
mento, Direito de Preferência e Disposições Gerais08.

06 Decreto nº 24.643 de 10.07.1934, Código de Águas, in Legislação do Ministério Público IV -


DIREITO AMBIENTAL , págs. 21 a 53.
07 Decreto Lei nº 25 de 30.11.1937, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, in Direito Ambiental
Brasileiro, Machado, Paulo Afonso Leme, Editora RT, 3ª Edição, 1991.
08 Idem ao referido na nota 7 anterior.
Especial - maio de 2019 | 309

4 Documentos internacionais e
legislação ambiental brasileira
referentes ao meio ambiente
propriamente considerado
Inicio este tema com a citação de mensagem atribuída a Maria, Mãe de Je-
sus, em um livro de Anne Kirkwood intitulado Mensagens de Maria para o
Mundo, que, ao que consta, teriam sido recebidas e transcritas pela autora
(9ª Edição da Record, publicada no Rio de Janeiro em 1991). As mensagens
se referem às transformações que ocorrerão no final de milênio, então veja-
mos: “O seu lar é o planeta Terra. Por que vocês o bombardeiam e destroem
seus oceanos lançando dejetos nele? Por que vocês destroem suas florestas
e suas praias? Esta é a sua casa. Cuide dela. É a única morada que vocês têm
para legar a seus filhos”. 09
Podemos perceber a transformação do planeta em face dos ataques que
nós seres humanos desferimos contra nosso ambiente, por toda a parte, sem
respeito a qualquer dos ecossistemas, seja nos rios, nos mares, nas ruas de
nossas cidades, nas praias, lançamos plásticos, pneus, vidros, papeis e toda
sorte de ataques ao ambiente, até mesmo lançamento de esgoto sem qual-
quer tratamento seja privado e muito menos público. A degradação é cons-
tante, em verdade, permanente.
A partir de 1972 a ONU tem realizado conferências de cunho ambiental
e publicado suas conclusões para que sejam aprendidas e aplicadas em todas
as nações, a fim de que possamos todos viver em harmonia com a natureza
sem degradá-la e favorecendo nossa vida sem causar problemas à nossa saú-
de e à dos nossos descendentes. O futuro da Terra depende do que fazemos
hoje com os seus ambientes.

09 Obra citada no texto, página 134.


310 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Assim é que em 1992 realizou-se no Rio de Janeiro a Conferência inti-


tulada de Rio +20, com a produção de documento com as conclusões que
discutiremos brevemente.
São 27 princípios proclamados sob o reconhecimento declarado da “na-
tureza interdependente e integral da Terra, nosso lar”10.
Todos os princípios referenciam ações a serem realizadas por todas as
nações para proteção dos ambientes terrestres, os países mais desenvolvidos
auxiliando nessas tarefas os menos desenvolvidos, dentro dos princípios da
solidariedade, sem qualquer conotação de domínio de uns sobre outros.
Resulta que o Direito Humano ao Meio Ambiente é um direito funda-
mental, pois, sem o ambiente protegido, a vida humana perde em todos os
sentidos, eis que sem ambiente não se pode pretender o desenvolvimento
que vem do cultivo de alimentos e outros produtos que sirvam para a conti-
nuidade da vida em todas as suas formas.
Há mais documentos produzidos em outras Conferências da ONU, aos
quais faremos referências em complemento pois, em vários casos, temos re-
petições dos princípios elencados na Conferência Rio +20.
Após a Conferência de Estocolmo de 1972, estabeleceram-se as Rodadas
de Negociação, sendo a primeira delas realizada em 1979 (a Rodada de Tó-
quio), tudo para estabelecer a reafirmação, ou melhor, o esclarecimento de
princípios estabelecidos, bem como os meios de conseguir as aplicações pe-
los diversos países na realidade dos ecossistemas ambientais, inclusive para
satisfazer aos desideratos de instituições de atuação financeira preexistentes
aos assuntos de natureza ambiental, como por exemplo o Acordo Geral so-
bre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), em 194711.

10 Declaração do Rio de Janeiro sobre desenvolvimento sustentável e meio ambiente. Encontrada na


internet em 10/01/2019.
11 A Frágil Gênese da Tutela Jurídica do Meio Ambiente, texto de autores como Arno Dal Ri Jr.
Encontrado na internet em 15/01/2019.
Especial - maio de 2019 | 311

Até o funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC) em


1995, houve discussões quanto ao que fora estabelecido nas Rodadas ocor-
ridas, sendo a partir de então integradas em documento único, denominado
Package (“pacote”, em inglês).12
Os documentos produzidos nas rodadas e nas conferências tencionam a
defesa do meio ambiente por todos os países, inclusive com o princípio da
ajuda das nações desenvolvidas àquelas subdesenvolvidas, visando estabele-
cer a igual proteção aos habitantes menos favorecidos para que desapareçam
as injustiças.
Percebe-se que o problema se apresenta na prática de tais princípios,
como, aliás, o mesmo se dá quanto às demais questões que envolvem os
temas ambientais.
É que os Estados e outras entidades responsáveis pela gestão dos princí-
pios aprovados muitas vezes alegam falta de recursos, ocorrendo também o
despreparo dos gestores responsáveis pelas ações sempre com prazos dilata-
dos ou, até mesmo, simplesmente deixados de lado.
Nossa Constituição aprovada em 1988 inicia o tratamento do assunto
ambiental no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu
Capítulo I, intitulado como Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos,
traz normativa sobre a possibilidade de defesa desses direitos com isenção
de custas e do ônus da sucumbência, no Título VIII – Da Ordem Social, em
seu Capítulo VI - Do Meio Ambiente, no Art. 225, em seus seis parágrafos e
incisos os temas ambientais relevantes para nosso meio ambiente13.
A nossa legislação ambiental contempla os diversos ecossistemas, sendo
que boa parte das leis antecede a Constituição de 1988 (promulgada em 05
de outubro de 1988) e o restante vem aprovada após a mesma.

12 Idem ao referido na nota 11.


13 Ver: Legislação do Ministério Público, IV Direito Ambiental – Ministério Público de Pernambuco,
Procuradoria-Geral de Justiça, Escola Superior do Ministério Público, Recife 1998, págs. 11 a 16.
312 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Vejamos: 1. Antes da Constituição – Leis Federais: Lei nº 4.771 de 15


de setembro de 1975, denominada Código Florestal; Lei nº 5.197 de 03 de
janeiro de 1967 de Proteção à Fauna; Lei nº 6.766 de 19 de dezembro de 1979
sobre Parcelamento do Solo Urbano; Lei nº 6.803 de 02 de julho de 1980
sobre Zoneamento Industrial nas áreas Críticas de Poluição; Lei nº 6.938 de
31 de agosto de 1981 da Política Nacional do Meio Ambiente; Lei nº 7.347 de
24 de julho de 1985, intitulada Lei da Ação Civil Pública. 2. Após a Consti-
tuição – Leis Federais: Lei nº 6.679 de 23 de novembro de 1988 de Proibição
de Pesca em Períodos de Reprodução; Lei nº 7.802 de 11 de julho de 1989,
regulando o uso de Agrotóxicos; Lei nº 8.171 de 17 de janeiro de 1991, sobre
Política Agrícola; Lei nº 8.429 de 02 de junho de 1992 sobre Improbida-
de Administrativa; Lei nº 8.974 de 05 de janeiro de 1995 sobre Engenharia
Genética e Biossegurança; Lei nº 9.393 de 19 de dezembro de 1996 sobre
Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR); Lei nº 9.433 de 08 de
janeiro de 1997, da Política Nacional de Recursos Hídricos; Lei nº 9.605 de
12 de fevereiro de 1998 sobre Crimes e Infrações Administrativas Contra o
Meio Ambiente.
Cada Estado da Federação tem também a prerrogativa de instituir le-
gislação relativa ao meio ambiente, desde que não contradiga o que está
estabelecido na Constituição ou na Legislação Federal, nem trate de maté-
ria de exclusividade da União, como a matéria criminal, por exemplo. Já os
municípios não têm a prerrogativa de legislar em matéria ambiental, uma
vez que não se trata de “matéria local”, aduzida na Constituição que elenca
diversas competências municipais previstas em seu art. 3014.
O Estado de Pernambuco, em sua Constituição promulgada em 05 de ou-
tubro de 1989, trata do meio ambiente em seu Capítulo IV – Do Meio Am-

14 LÚCIO, Vicente Carlos. Constituição Federal Comentada. 1ª Edição. Editora Jalovi Ltda. São
Paulo/SP, 2010.
Especial - maio de 2019 | 313

biente nas Seções de I a IV: I – Da Proteção do Meio Ambiente; II – Da Pro-


teção do Solo; III – Dos Recursos Minerais; IV – Dos Recursos Hídricos15.
Como se pode claramente perceber, o nosso País, ao menos do ponto
de vista constitucional e legal, tem tratado o meio ambiente como algo de
importância fundamental, buscando uma defesa das mais adequadas dos
vários ecossistemas e que poderiam vir a ser efetivamente protegidos desde
que houvesse expertise e vontade política de realizar na prática os manda-
mentos constitucionais e legais, seja do ponto de vista federal, seja do ponto
de vista dos estados.
Infelizmente não é o que ocorre com efetividade.
Aproveitemos, como exemplo da negligência geral, o caso ainda em an-
damento, do rompimento de três barragens sequenciais da empresa Vale,
uma mineradora em Brumadinho/MG, com grande saldo negativo de mor-
tes de grande parte dos funcionários, além de pessoas moradoras da locali-
dade. Terríveis efeitos também nas áreas de ecossistemas locais, e em outras
regiões, eis que tais descartes chegarão ao leito do rio Paraopeba, afluente do
rio São Francisco, com probabilidade alta de ser também afetado.
O caso ocorre apenas três anos após o rompimento de barragem em Ma-
riana/MG, ocorrido em 2015, de responsabilidade da empresa Samarco, que
foi uma ação danosa também aos moradores da área de influência do Rio
Doce, que chegou a levar efluentes descartados da mineração à região do Rio
Doce em Minas e no Espírito Santo, contaminando até o oceano Atlântico,
onde chegaram descartes causadores de danos ambientais, comprovados na
região, além, claro, das margens do rio Doce, seja em Minas Gerais, seja no
Espírito Santo.
Em ambos os casos podem ser apontadas questões decisivamente negli-
genciadas, seja pelas empresas responsáveis pelas obras, seja do Poder Pú-

15 Constituição do Estado de Pernambuco, 7ª Edição – Editora Litoral, atualizada até 22 de janeiro de


2003.
314 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

blico, com funções de licenciamento e fiscalização. Veja-se, por exemplo, no


Caso da Vale haver sido realizada uma investigação anterior que atestou a
regularidade da barragem.
Como entender também que equipamentos importantes da empresa es-
tivessem situados em local abaixo das barragens, como seu escritório, um
restaurante para trabalhadores, além de vilas com moradias diversas de po-
pulação, abaixo e nas margens do leito do córrego efluente das mesmas? Isto
configura um exemplo de negligência geral. E o rompimento das barragens
após vistoria de técnicos que asseveraram que nada havia de irregular que
pusesse a barragem em perigo de rompimento, sem que tenha havido fiscali-
zação dos órgãos públicos competentes sobre o laudo emitido, configura, em
verdade, a prática de crime que deve ser tratado com o rigor legal.
Após o grave acontecimento, descobre-se uma imensidão de barragens,
não apenas em Minas Gerais, mas em todo o Brasil, a necessitar de vistorias
e emissão de laudos verdadeiros que conduzam a ações de regularização das
mesmas.
Em nosso Estado, Pernambuco, descobre-se com preocupação que uma
barragem, a de Jucazinho, no município de Surubim se encontra com ra-
chaduras e que, havendo chuvas como previstas para este inverno há gran-
de risco de rompimento com grande invasão de águas na cidade do Recife,
causando problemas graves na cidade inteira. Esperamos que providências
urgentes sejam realizadas para solucionar, ou ao menos, minorar a ação da-
nosa que se prevê.
Dessas situações, percebemos que há necessidade de muito trabalho
consciente de empresários e de integrantes dos órgãos de controle, que de-
vem ter vagas de trabalho preenchidas e até mesmo aumentadas, para dar
conta da realização dos trabalhos necessários ao funcionamento adequado e
suficiente para impedir que tais desastres sejam previstos com antecedência
e corrigidas as situações de suas ocorrências.
Especial - maio de 2019 | 315

5 Questões globais controversas na


área ambiental
Que nós habitantes da Terra produzimos, infelizmente, diversos tipos de
poluição ambiental, ninguém põe em dúvida a veracidade desta assertiva.
Como ainda, que causamos poluição em quase todos os ecossistemas terres-
tres e das mais diversas formas, seja descartando lixo, queimando plásticos
e pneus, cortando árvores em florestas para uso da madeira resultante, lan-
çando material de esgoto sem tratamento algum nas ruas e efluentes (cór-
regos, riachos e rios). Todos sabem que poluímos os oceanos e que disso
resultam consequências desastrosas para nossas vidas.
Há questões, porém, sobre as quais pairam dúvidas, seja por desconheci-
mento de seu significado, seja por controvérsias entre os próprios cientistas
sobre tais assuntos.
Sobre o assim chamado buraco da camada de ozônio, já se discorre sobre
o assunto afirmando sua inexistência, entretanto, sabendo-se que existe a
camada de ozônio (O3 - três átomos de oxigênio), formada por moléculas
de ozônio, que pode ser afetada pelo CFC, que é a molécula de cloro-flúor-
-carbono, capaz de captar um átomo do ozônio e, desta forma, diminuir a
referida camada, sem entretanto, criar o tal “buraco”.
É necessário, de qualquer forma, não propiciar a produção do CFC, gás
que tem maior produção pelas emissões causadas pelas erupções vulcânicas,
sobre as quais não há possiblidade de controle. A National Aeronautics and
Space Administration (NASA), ou Administração Nacional da Aeronáutica
e Espaço, é uma agência do Governo Federal dos Estados Unidos respon-
sável pela alarmante informação do crescimento do buraco da camada de
ozônio e, após pesquisas mais atualizadas, informou sua inexistência, mas
316 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

que o CFC pode diminuir a referida camada, sem, entretanto, estabelecer


um buraco16.
Outra questão controversa é o chamado aquecimento global. Parte dos
que pensam sobre o assunto, sendo tema recorrente na mídia, avaliam que
o mundo, consoante esta visão, está na iminência de uma catástrofe global,
sendo este o fim da humanidade. Até misturam a visão do final do mundo
que se encontra nas mensagens evangélicas em que Jesus Cristo fala sobre o
fim da existência terrestre (fim do mundo).
Outros, entretanto, afirmam que aquecimento global não existe e que o
orbe terrestre apresenta, periodicamente, baixas importantes de temperatu-
ra e, um período após de vários anos, demorada elevação de temperatura.
Pesquisas atuais indicam que a temperatura da Terra vem diminuindo nos
últimos anos, encerrando o período do aumento da mesma. Estas mudanças
seriam, em verdade, periódicas17.
Isto não significa, entretanto, que não devamos ter cuidado com nossos
ecossistemas, cuidando deles a fim de que permaneçam sendo utilizados
saudavelmente e não deixem de ser úteis para nossa sobrevida na Terra, pro-
duzindo nossos alimentos e limpando nossa atmosfera para uma vida cada
vez melhor.
A ONU tem significativamente realizado conferências em que as nações
discutem as questões de natureza ambiental, seja melhorando os princípios
aprovados em conferências anteriores, seja advertindo-se mutuamente as
nações da necessidade de por tais princípios e conclusões em prática, impe-
dindo a destruição das florestas, impondo legislação mais protetora e apli-
cando-as sistematicamente em defesa de seus ecossistemas, que devem per-

16 A verdade sobre a Camada de Ozônio. Artigo de Rex Trulove, pesquisa na internet no dia
30/01/2019.
17 Ler, por exemplo, Aquecimento Global, Verdade ou Mentira, artigo de Pedro Coelho, pesquisa na
internet em 05/01/2019.
Especial - maio de 2019 | 317

manecer saudáveis para cumprir suas funções, inclusive protetoras da vida


(lembro a necessidade de proteger as margens dos rios, por exemplo, tendo
em vista que a falta de vegetação nas chamadas áreas de proteção perma-
nente e o estabelecimento de moradias em tais locais, resulta em tragédias,
inclusive com a perda de vidas humanas).

6 O Ministério Público e o tema


ambiental
É necessário que os discursos que indicam desculpas esfarrapadas para a
não atuação em benefício do meio ambiente sejam combatidos pelos ór-
gãos fiscalizadores e pelo Ministério Público, o fiscal da lei, que devem agir
em conformidade com a lei e com presteza suficiente para inibir qualquer
conduta que venha a prejudicar a natureza, ainda mais grave sendo a con-
duta acolhida por meio de propinas sobre as quais a mídia noticia com certa
frequência.
Há que tratar, ao menos ligeiramente, do Ministério Público como
fiscal da Lei e, assim também, da legislação ambiental. É necessário que
promotores de Justiça com atribuições nesta área procurem agir como li-
deranças no cumprimento de suas funções, advertindo, abrindo procedi-
mentos administrativos e determinando a abertura de inquéritos policiais
quanto à prática de crimes ambientais e liderando os funcionários estatais e
municipais encarregados da matéria a diligenciar no sentido de aplicar inte-
ligência e recursos em políticas ambientais capazes de proteger efetivamente
a população com antecipação aos fatos que possam trazer invasão de áreas
ribeirinhas por águas contaminadas ou, simplesmente, por águas em exces-
so que invadam residências, ruas e cidades causando tragédias e prejuízos
incalculáveis.
318 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

Enfim, não devemos contribuir com a chegada do fim do mundo, que


ocorrerá, conforme a profecia de Jesus, mas a ninguém é dado saber o dia
nem a hora e será precedida de sinais impossíveis de ignorar. Esse fim do
mundo será em verdade uma mudança de forma de vida em outra dimensão
e ninguém que não tenha obedecido aos critérios divinos estabelecidos nas
escrituras terá alcançado a vida eterna.

REFERÊNCIAS
MARCHESAN, Ana Maria; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia.
Direito Ambiental. 7ª Edição, 2013.

Ministério Público de Pernambuco, Procuradoria-Geral de Justiça, Escola Superior


do Ministério Público. Legislação do Ministério Público. IV Direito Ambiental,
Recife 1998, págs. 21 a 53.

Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos da


ONU, cópia extraída da Internet em 23/11/2018.

MACHADO, Paulo Afonso Leme. Decreto Lei nº 25 de 30.11.1937: Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional. In: Direito Ambiental Brasileiro, Editora RT, 3ª
Edição, 1991.

Organização das Nações Unidas. Declaração do Rio de Janeiro sobre desenvolvi-


mento sustentável e meio ambiente. Acesso em: 10/01/2019.
Especial - maio de 2019 | 319

DAL RI, Arno Jr. et al. A Frágil Gênese da Tutela Jurídica do Meio Ambiente.
Acesso em: 15/01/2019.

LÚCIO, Vicente Carlos. Constituição Federal Comentada. Editora Jalovi Ltda. São
Paulo/SP. 1ª Edição, 1.990.

TRULOVE, Rex. A verdade sobre a Camada de Ozônio. Acesso em: 30/01/2019.

COELHO, Pedro. Aquecimento Global, Verdade ou Mentira. Acesso em:


05/01/2019
Especial - maio de 2019 | 321

O MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA


INSERÇÃO NA DEFESA DOS
DIREITOS HUMANOS

OSWALDO GOUVEIA FILHO

Procurador de Justiça do
Ministério Público de
Pernambuco
322 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

RESUMO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é a proclamação dos valores


intrínsecos à condição humana, que fundamentam a compulsoriedade im-
posta ao Ministério Público de fomentar, de exercitar a defesa e a aplicação
de suas normas diretivas. A sua abrangência inclui a comunhão com todos os
valores sociais que informam a condição de dignidade humana que não pode
ser postergada, por ser a própria destinação de uma efetiva Justiça Social.

PALAVRAS-CHAVE: Integração; Ministério Público; Defesa dos valores


democráticos; Pluralidade; Universalidade.
Especial - maio de 2019 | 323

1 Introdução
São decorridos Setenta Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A efeméride é significativa e remete à obrigatoriedade compulsiva im-
posta ao Ministério Público para, em decorrência de pressupostos legais ín-
sitos no artigo 129 da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, agir de
forma plena e célere no asseguramento dos Direitos Humanos e, principal-
mente, para conter a degradação absoluta que eventualmente possa se abater
sobre estamentos sociais menos protegidos.
Se é certo que o Ministério Público ganhou protagonismo antes não vi-
venciado em razão da conspurcação plena dos valores éticos e morais, que
tem repercussão transcendente pela intensidade que atinge as políticas pú-
blicas e sociais que beneficiam, de modo geral, toda a sociedade, por outro
lado urge que o Estado, na sequência dos atos saneadores, estabeleça de for-
ma dialética, diga o que pretende, para humanizar e emancipar o País e, por
consequência, o povo.
Os que têm uma concepção emancipatória pretendem resposta cabal.
Quais as providências que serão adotadas para que o Estado, como Na-
ção politicamente organizada, dotado de conceito político-administrativo,
consciente da sua soberania e independência venha ser respeitada no con-
certo internacional das Nações? A resposta abrange um espectro amplo.
Sabe-se que o conceito de Estado trás, em si mesmo, a ideia imanente
de que não deve a sua validade a nenhuma ordem superior e, portanto, as
suas políticas públicas devem ser estritamente voltadas para referências que
informam e justificam a nacionalidade. A nacionalidade nos termos que não
se confundem com a xenofobia, isto é, aversão a tudo que é estrangeiro, mas
que se confunde com os valores autóctones do País.
A interação, a conjugação de valores ditados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, se ajustam expressamente com o Ministério Público,
324 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

que vem atendendo aos reclamos sociais, com o denodo que se lhe exige,
com o aprimoramento que lhe é necessário na busca incessante de ser pro-
vedor do coletivo social em toda abrangência.
O Ministério Público evidentemente, como instituição permanente e
imprescindível do organismo social democrático, tem conceituações que
lhes são próprias tais como: responsabilidade na defesa das garantias legais,
do Estado de Direito, e de todos os interesses, inclusive os indisponíveis.
Diga-se ainda, que a sociedade organizada, de uma forma geral, é eventual-
mente parceira do Ministério Público no atendimento social quando age em
defesa de terceiros, na preservação de garantias constitucionais.
Em tempos ásperos, ressalte-se a insurgência da Igreja Católica na Defe-
sa dos Direitos Humanos com destaque para o Cardeal Dom Paulo Evaristo
Arns e Dom Helder Câmara, cumprindo missão histórica contra a Ditadura
Militar, em condições de risco à integridade física. Ambos emergiram dos es-
combros maiores do que eram, exuberantes de sensibilidade e espiritualidade.
Quando se constata o compartilhamento com as angústias dos oprimi-
dos e desassistidos, a fé em todos os valores se recompõe e a esperança se re-
nova. Vê-se ainda que a carta da Organização das Nações Unidas, aprovada
em 26 de junho de 1945 em São Francisco já era o prenúncio da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
O Ministério Público teve seus percalços, suas idas e vindas. A Consti-
tuição de 1946 desvinculou a instituição dos poderes do Estado. A Consti-
tuição de 1967, outorgada pelo poder discricionário da ditadura, manteve a
situação anterior que viria a ser alterada pela emenda de 1969, que remeteu
o Ministério Público ao Poder Executivo. No regime de exceção, o Minis-
tério Público ficou destituído de garantias institucionais. Poucos foram os
membros que resistiram. Para os acólitos do arbítrio, todas as benesses.
Ao se abordar os Direitos Humanos a alguns ocorre de imediato tratar-se
de garantias pessoais pontuais, descontextualizadas da amplitude dos seus
Especial - maio de 2019 | 325

significados. O conceito de Direitos Humanos é universal, não está adstrito


a qualquer direito posto que é correspondente com a dignidade da pessoa
humana frente ao Estado, que o provê, que o garante, não é concessão, pou-
co importando se o Estado os reconhece ou não. São direitos transacionais,
irreversíveis e que se sobrepõem até às soberanias dos Estados.
Aceite-se ou não, o Ministério Público tem cada vez mais potencializa-
da as dificuldades do pleno exercício de suas atribuições. Vivemos em uma
sociedade extremante desigual e que traz em seu âmago, herdado do Brasil
Colônia, um contexto conservador arraigado, impregnado de racismo e mi-
soginia. No caso específico de defesa dos Direitos Humanos a todo o mo-
mento surgem tentativas no sentido de descaracterização e não preservação
do pleno exercício das culturas indígenas e afro-brasileiras sob os esdrúxu-
los pretextos de aculturação. Na realidade, as tentativas obedecem a critérios
socioeconômicos sem qualquer preocupação com as tradições culturais.
Nesse aspecto cabe ao Ministério Público a preservação desses valores an-
cestrais inclusive dando a proteção legal, difusão e incrementação a todas
manifestações de raízes.

2 Legislação Pertinente como fonte


de Direito
Aliás já dispomos de ampla legislação que estabelece diretrizes e bases da
educação nacional para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira: Lei nº10.639
de 09 de janeiro de 2003, alterada pela Lei 11.645 de 10 de março de 2008,
para incluir a população indígena. Além da Lei 12.288 de 20 de julho de
2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial.
326 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

A defesa dos Direitos Humanos e a exercitação de suas prerrogativas tem


sido alvo nos últimos tempos de insidiosa campanha que desinforma no
que concerne aos seus fins. Embora se configure para alguns como proteção
inadequada a pessoas que cometeram crimes graves, tal assertiva não pro-
cede, pois seria negar ao Estado os deveres que remetem a entendimento já
esposado no Código de Hamurabi, escrito pelo Rei Hamurabi, que adotava
leis “para que o forte não prejudique o mais fraco, afim de proteger as viúvas
e os órfãos”.
E esse entendimento vem desde 1772 a.C., portanto multimilenário.

3 Efetividade e protagonismo do
Ministério Público
Por isso entendemos que a luta pelos Direitos Humanos é meio de emanci-
pação e integração social.
Quando se cogita de controle externo da atividade policial pelo Minis-
tério Público, alguns procuram não entender. Porém é necessário para que
as repressões não sejam desproporcionais, não infrinjam os direitos funda-
mentais expressos na Declaração Universal tais como: “dignidade, igualdade
de direitos entre homens e mulheres, sem qualquer distinção de raça, cor, de
língua, religião ou opinião política”. E se incluam aí outras liberdades. Por-
tanto deve ser exercitado com denodo o controle externo até como garantia
da ordem pública e segurança do Estado de Direito e até para que não se con-
funda o que seja reinvindicação com perturbação do ordenamento estatal.
Exemplo histórico da defesa dos Direitos Humanos foi dado pelo Gene-
ral Della Chiesa quando um membro do serviço de segurança lhe propôs
torturar um preso que se presumia ter muitas informações a respeito do se-
questro do Primeiro Ministro italiano Aldo Moro, ao qual respondeu: “A Itá-
lia pode permitir-se perder Aldo Moro, não em troca de implantar a tortura”.
Especial - maio de 2019 | 327

Os que militam no Ministério Público na sua generalidade têm dado


demonstrações de pendor cívico engrandecedor. Vive-se uma fase histórica
difícil, a exigir de seus membros firmeza e equilíbrio na persecução de uma
idealidade que se pretende inspiradora do sentimento maior de nacionalida-
de e engrandecimento institucional.
A Constituição de 1988 colocou o Ministério Público no seu devido lugar,
conferindo-lhe a independência que se impunha, destacou a essencialidade
de sua destinação. Em seguida a legislação infraconstitucional norteou os
princípios, entre outros, de autonomia financeira, administrativa e funcional.
Não podia ser diferente. A consequência foi a valorização da instituição
e de seus profissionais que precisam casa vez mais se conscientizarem das
obrigações que se lhes impõem na defesa intransigente da democracia inclu-
siva e não meramente formal. É com essa compreensão que o sociólogo por-
tuguês Boaventura de Souza Santos se direciona quando diz que para ele “a
democracia representativa está refém das forças do mercado”. E aduz que “o
resgate da democracia sequestrada pelas forças do mercado, será feita com a
retomada das ruas pela sociedade, único espaço ainda não colonizado”. Pelo
que constatamos nos dias de hoje, o entendimento é procedente. Veja-se os
movimentos pelas ruas de Paris dos coletes amarelos contra a política social
de Emmanuel Macron.
Não há divergência quanto à ação fiscalizadora do Ministério Público.
No seu desiderato, a instituição incomoda na medida em que interfere no
cumprimento das obrigações dos direitos sociais previstos nos artigos 6° e
7° da Constituição Federal, que albergam a proteção à saúde, à educação, à
maternidade, à infância e aos desamparados e protege o emprego. E muitas
vezes confronta-se com o Estado quando este negligencia e se omite. Porém,
é bom que se diga “que o próprio Ministério Público está começando a usar
tais normas mais recentemente”, como entende Wagner Gonçalves, Procura-
dor Federal dos Direitos dos Cidadãos.
328 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

A Lei Orgânica do Ministério Público tem seus objetivos voltados para


defesa dos Direitos Humanos. Por sua vez, a Lei Complementar nº 12, de
27 de dezembro de 1994, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o
Estatuto do Ministério Público de Pernambuco no seu art. 1° incumbe, entre
outros deveres da instituição, a defesa dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.

4 A liberdade como corolário


Como ensina Roberto Saturnino Braga em sua obra Itinerância, “ser obriga-
ção do Estado de Direito corrigir essas diferenças estruturais...”, “...corrigi-las
através de políticas públicas em atendimento à vontade das maiorias; mate-
rializando direitos universais e fundamentais a uma vida digna; e é possível,
sim, fazê-lo sem restringir as liberdades próprias da democracia”.
Para isso, é importante a presença de um Ministério Público atuante e fiel
aos princípios defendidos pelo grande mestre e símbolo Roberto Lira, ligado
ao humanismo, à filosofia, e à sociologia jurídica de forte conteúdo social.
Com o fim da Ditadura Militar, muitos acreditaram que havia se fecha-
do o ciclo da tortura. Puro engano, ela extrapolou o ciclo e se estabeleceu
nos descaminhos do Estado. Por isso que é importante termos Roberto Lira
ressurreto, ganhando vida para espelhar a moldura social e, sobretudo, nos
inspirar, voltados para o compromisso institucional de libertação, integra-
ção e engajamento na busca da conscientização generalizada que conduzirá
à Justiça Social. Não basta o protecionismo que venha conduzir à inércia, à
desesperança e ao arrefecimento para a luta. É missão do Ministério Público
cobrar do Estado suas obrigações constitucionais de educar, zelar pela saúde
pública, garantir condições dignas de habitação.
É sua destinação a promoção da Justiça Social, fazer valer o que é racio-
nalmente necessário para a efetivação dos deveres sociais. Este é o Brasil que
Especial - maio de 2019 | 329

queremos, com a democracia, com a abolição da pobreza, com a garantia


preservada da liberdade com um Ministério Público forte e presente.

5 Conclusão
O tema transcende o provincianismo e só pode ser concebido e entendido
no contexto do seu dimensionamento universal. A sua universalidade é que
determina a sua importância, pois está voltada para o homem e, por conse-
quência, objetiva a preservação material e espiritual do seu próprio objeto.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos contém 30 artigos. O 1°
diz: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espi-
rito de fraternidade”. O artigo 30 dispõe: “Nenhuma disposição da presente
declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Es-
tado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade
ou de praticar algum ato destinado a destruir as liberdades aqui enunciadas”.
Como se constata, são impostergáveis os pressupostos explícitos na De-
claração Universal, e tem valores dogmáticos de forma a exigir do Ministé-
rio Público o protagonismo que o faz responsável maior pela eficiente apli-
cação das garantias.
330 | REVISTA JURÍDICA DA AMPPE

REFERÊNCIAS
SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos
humanos. Revista Crítica de Estudos Sociais, nº48.

BRAGA, Roberto Saturnino. Ética e política. In: Desafios éticos. 1993. p. 59-72.
Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988.

BRASIL, Lei 12.288/10. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília, DF: Presidência da


República, 2010.

GONÇALVES, Wagner. Natureza Jurídica das comunidades indígenas: Direito


público e Direito Privado. Novo Estatuto do Índio. Implicações. Os direitos indíge-
nas e a Constituição, p. 241-250, 1993.

MÁS, Nunca. Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Perso-


nas. Eudeba, 1986.
PREMIUS

www.premiuseditora.com.br

Impressão maio de 2019


Papel do miolo Pólen 80g/m2
Papel da capa Supremo 250g/m2
Tipografia Minion Pro

Вам также может понравиться