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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – FGV

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA


CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS


CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MEMÓRIAS DA REPRESSÃO POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA: RELATOS


JORNALÍSTICOS, MEMORIALÍSTICOS E LITERÁRIOS DA REPRESSÃO
FLORIANISTA DURANTE A REVOLTA DA ARMADA (1893-1894)

CHRISTIANNE THEODORO DE JESUS

ORIENTADOR: BERNARDO BORGES BUARQUE DE HOLLANDA

MARÇO/2018
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Jesus, Christianne Theodoro de


Memórias da repressão política na Primeira República: relatos jornalísticos,
memorialísticos e literários da repressão florianista durante a Revolta da Armada
(1893-1894) / Christianne Theodoro de Jesus. – 2018.
121 f.

Dissertação (mestrado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio


Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.

Orientador: Bernardo Borges Buarque de Hollanda.


Inclui bibliografia.

1. Peixoto, Floriano, 1839-1895. 2. Brasil - História - Revolta da


Armada, 1893-1895. 3. Perseguição política. I. Hollanda, Bernardo Borges Buarque
de, 1974-. II. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de
Pós- Graduação em História, Política e Bens Culturais. III.Título.

CDD – 981.0523

2
3
Sumário

Agradecimentos ................................................................................... 5

Resumo ........................................................................................................ 6

Introdução .......................................................................................................... 7

Capítulo 1. A memória da repressão política na prisão: o jornal manuscrito A Justiça ... 17

Capítulo 2. As memórias da repressão política após o fim do governo Floriano Peixoto (1894-
1895) .............................................................................................................. 37

2.1. As memórias dos ex-prisioneiros políticos .......................................................... 37

2.2. O papel da imprensa na divulgação das memórias da repressão florianista ......... 46

2.2.1. Os fuzilados em Sepetiba no Jornal do Brasil .............................................. 46

2.2.2. Os mysterios da Correção no jornal O Commercio de São Paulo ................... 52

Capítulo 3. As memórias da repressão florianista em Coelho Netto e Lima Barreto .... 61

3.1. Coelho Netto e a repressão florianista .......................................................... 61

3.2. Lima Barreto e a repressão florianista ............................................................. 76

3.2.1. Policarpo Quaresma e seus antecessores: ficção e verossimilhança nas memórias do


major ................................................................................................................... 94

3.2.1.1. Literatura e memórias acerca da repressão política durante a Revolta da Armada


.....................................................................................................................................95

3.2.1.2. Lima Barreto e o uso de indivíduos reais na construção de seus romances .......... 97

3.2.1.3. As possíveis conexões entre personagens de Triste fim de Policarpo Quaresma e


antigos prisioneiros políticos do governo Floriano Peixoto .................................................. 99

Considerações finais ....................................................................................................... 115

Fontes e Bibliografia .................................................................................................... 117

4
AGRADECIMENTOS

Esta dissertação é resultado de uma trajetória que se origina do trabalho desenvolvido


por mim como pesquisadora da Fundação Biblioteca Nacional, na qual ingressei em 2006.
Um projeto que recebeu muito apoio e contribuições em diferentes momentos.

Gostaria de agradecer primeiramente ao meu orientador, Bernardo Buarque de


Hollanda, por ter confiado e acreditado no meu projeto e pela dedicação e carinho com que
conduziu a orientação.

Agradeço aos colegas da Coordenadoria de Pesquisa da Fundação Biblioteca


Nacional, Lia Jordão, Iuri Lapa, Irineu Corrêa, Pedro Lapera e Rafaella Bettamio, por todas as
sugestões, leituras críticas, debates, mas também pelo acompanhamento constante, a torcida
animada e incondicional, me ajudando a seguir em frente, desde o processo seletivo até a
redação final da dissertação.

Aos colegas da Coordenadoria de Editoração, Raquel Fabio, Simone Muniz, Valéria


Pinto, Francisco Madureira e Janilda Souza, meu agradecimento por estarem dispostos a me
ajudar sempre que precisei.

Aos colegas dos setores de acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Eliane Perez e
André Lippman (Manuscritos), Rutonio Santanna e Anna Maria Naldi (Obras Gerais), Mônica
Carneiro e Luciana Muniz (Iconografia) e Bruno Brasil (Periódicos) que atenderam sempre
com generosidade às minhas solicitações.

Meus agradecimentos vão também para os servidores das instituições em que


pesquisei, com destaque para Leonardo Pereira da Cunha, da Fundação Casa de Rui Barbosa e
Frederico Antônio, da Biblioteca Histórica do Itamaraty.

Recebi valiosas contribuições dos professores Américo Freire, João Marcelo Ehlert
Maia, Leonardo Pereira, Mariana Chaguri, Antônio Brasil, Lúcia Lippi e Alexandre Morelli,
aos quais também deixo meu agradecimento.

Dedico este trabalho à memória do meu avô José.

5
Resumo

A proposta desta dissertação é analisar um conjunto de escritos de cunho memorialístico e


testemunhal que vieram à tona na esteira da repressão que o governo Floriano Peixoto
empreendeu durante o período da Revolta da Armada de 1893. Produzidas em diferentes
contextos e com diferentes finalidades, estas fontes permitem acessar de que forma a
repressão florianista foi documentada por presos políticos, pelos jornais e por literatos,
notadamente Coelho Netto e Lima Barreto que, também testemunhas dos atos praticados pelo
governo do marechal, incorporaram estas memórias à sua produção cronística e ficcional.
Tentaremos mostrar, portanto, de que forma o conjunto destas memórias se inter-relacionam,
tanto pela sua temática quanto pelas relações de sociabilidade mantidas entre seus autores.

Abstract

This dissertation aims to analyze a group of memoirs and testimonial written works that
surfaced following the repression undertaken by the Floriano Peixoto government in response
to the Armada Revolt of 1893. Produced under distinct contexts and with varied purposes,
these works allow one to access in which ways the Floriano repression was documented by its
political prisoners, by the press and by literary writers, most notably Coelho Netto and Lima
Barreto. As eye witnesses of such acts of repression, both of these renowned writers
incorporated their recollections to fictional and chronicle writings. We shall, therefore, try to
demonstrate the way in which these varied groups of memories are interrelated, both
thematically-wise and through the sociability links held by the wide array of authors.

6
Introdução

Meu primeiro contato com as memórias da repressão florianista aconteceu por volta
dos 14 anos: Triste Fim de Policarpo Quaresma ia cair na prova de literatura. Minha principal
frustração ao ler o romance pela primeira vez era não saber o fim do personagem, afinal de
contas, a palavra fim estava no título do livro, deveríamos saber se o que aconteceu com ele
no final do livro. Acredito que com muitas pessoas tenha-se dado o mesmo: a primeira
referência da repressão no início da República brasileira era o personagem literário Policarpo
Quaresma. As edições de Triste Fim são incontáveis, incluídas neste número as traduções do
romance para outros idiomas. Na Biblioteca Nacional, por exemplo, estão contabilizadas 98
exemplares do romance, em diversos formatos (quadrinhos, audiobooks, edições de bolso,
etc). O tradutor José Leonardo Buzelli, em dissertação defendida em 2009 1, listou sete
traduções do romance. A mais recente de que tive notícia foi uma edição em russo publicada
em 2016, em São Petersburgo.2

Na historiografia da repressão florianista acontece algo semelhante. Os trabalhos


encontrados sobre esse tema específico geralmente o abordam pela ótica do romance de Lima
Barreto. O historiador Edgar de Decca (1997) utiliza o exemplo de Policarpo Quaresma para
discutir a violência da ordem republicana: o major seria um dos primeiros de uma longa série
de indivíduos que são vítimas da repressão estatal por tentar afirmar sua cidadania na
República brasileira. O historiador Valdeci Rezende Borges (2010) também analisa Triste
Fim de Policarpo Quaresma como uma das formas de acesso às representações de momentos
ditatoriais do Brasil. Dada a multiplicidade de temas abordados no romance de Lima Barreto,
a historiografia utilizou-se das memórias do major para discutir o nacionalismo ufanista,
como a socióloga Lucia Lippi (1990) e o crítico e tradutor Bethold Zilly (2013).

Evidentemente, o relato sobre Policarpo Quaresma não é a única memória da


repressão florianista, embora seja possivelmente a mais famosa. Outros indivíduos que
passaram pela experiência da repressão ou a testemunharam também deixaram suas
lembranças registradas. Tendo em vista que, de acordo com Beatriz Sarlo, “o núcleo do
testemunho é a memória” (SARLO: 2007, p. 58), o objetivo desta dissertação é descobrir de
que forma essas memórias sobre a repressão florianista circularam desde entre fins do século
XIX e as primeiras décadas do século XX. Essas memórias e testemunhos se materializam em

1
BUZELLI, José Leonardo Sousa. Episódios da vida do major Quaresma. Dissertação de Mestrado, Instituto de
Estudos da Linguagem, UNICAMP, São Paulo, 2009.
2
Agradeço a informação a Bruno Gomide, professor de Literatura e Cultura Russa na USP.
7
escritos – crônicas, romances, literatura carcerária, séries jornalísticas – que serão as nossas
fontes para acesso a esta memória coletiva da repressão empreendida por Floriano Peixoto.

Primeiramente, devemos entender o contexto no qual essa repressão se desenvolve.


Floriano chega à presidência da República como efeito da renúncia de Deodoro, pressionado
pela marinha revoltada em 1891, sob a liderança de Custódio de Mello. Deodoro havia dado
um golpe de estado em 3 de novembro de 1891, ocasião na qual cercou o Congresso Nacional
de tropas e suspendeu-lhe os trabalhos. Deodoro considerava que os atos de seu governo
estavam sendo boicotados pelo Congresso Nacional, especialmente em virtude da aprovação
da Lei das Responsabilidades. Segundo o historiador naval Hélio Leôncio Martins,

“A lei de responsabilidades era um verdadeiro código penal, listando crimes


que poderiam ser cometidos pelo presidente, como traição, mudança na
Constituição por meios violentos, impedimento do livre exercício legal dos
direitos políticos e individuais, ações que afetassem a honorabilidade e gastos
indevidos dos dinheiros públicos” (MARTINS: 1997, p. 57-58)

O projeto havia sido vetado por Deodoro, mas depois derrubado pelo Congresso.

Dado o golpe de Estado levado a cabo por Deodoro, Custódio José de Mello reuniu
parte da Marinha entre 22 e 23 novembro de 1891, tendo Saldanha da Gama como opositor,
pois este havia sido empossado como oficial da Armada e foi um dos elementos da reação
governista. Deodoro, fisicamente debilitado, não teve forças para comandar a defesa de seu
governo e renunciou. (MARTINS: 1997, p. 63-66). Floriano assume a presidência e tem a seu
cargo a tarefa de reorganizar o país, que ainda sofria com os efeitos negativos das políticas
econômicas assumidas no governo Deodoro, sobretudo o Encilhamento, e lidar com as
lideranças estaduais, muitas das quais haviam prestado suporte a Deodoro quando do golpe de
Estado. Os que haviam se mantido leais a Deodoro foram afastados, sendo substituídos por
indivíduos leais a Floriano. A interferência na política interna dos Estados, com a deposição
de governadores com o auxílio das forças armadas da União, representava uma quebra no
pacto federativo e da autonomia dos Estados (MARTINS: 1997, p. 72). Esta interferência
adquiriria contornos dramáticos no Rio Grande do Sul, e daria origem, em fevereiro de 1893,
à Revolução Federalista. (PESAVENTO: 1983).

No Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1892, é publicado o Manifesto dos 13 generais, no


qual os oficiais signatários pedem a convocação de novas eleições. A imprensa carioca ecoa o
pedido contido no manifesto e, em 10 de abril, é organizada uma marcha até a casa do
marechal Deodoro. Na marcha estavam jornalistas, políticos e essa manifestação foi
8
considerada como um moimento conspiratório, o que ocasionou a prisão e o desterro de Olavo
Bilac, José do Patrocínio, Clímaco Barbosa, Jacques Ourique, J.J.Seabra e outros cidadãos
apontados como suspeitos da conspiração para derrubar Floriano. No mesmo ano, todos
seriam beneficiados por uma lei de anistia.

Em 1893, a situação só piorava: a situação no sul se agravava, bem como a ação de


seus opositores no Rio de Janeiro. No Congresso Nacional, a oposição a Floriano vinha de
políticos como J.J. Seabra e Jacques Ourique, que impetraram no Congresso Nacional, em
maio de 1893, uma denúncia contra o presidente . Segundo Felisbelo Freire 3, o processo por
crimes de responsabilidade iniciado pelos dois congressistas era baseado em alguns pontos:
ilegalidade dos decretos de reforma de oficiais do Exército e da Marinha entre 7 e 12 de abril,
os gastos desenfreados da União, o fato de o presidente estar legislando em matérias
privativas do Congresso, como a emissão de papel moeda e a criação de instituições
financeiras, a intervenção de Floriano na política interna do Rio Grande do Sul e o
recrutamento forçado. O processo de denúncia foi arquivado pelo Congresso Nacional.
(FREIRE: 1982, p. 41- 51).

Em 30 de abril de 1893, Custódio de Mello e Serzedello Correia se demitiam do


ministério de Floriano. Em sua carta de demissão, Serzedello fazia uma defesa incisiva do
trabalho do Tribunal de Contas – instituição que ele havia criado – e de seu papel como fiscal
das despesas do país. Lembrava a Floriano de que várias vezes o havia advertido sobre ações
para o controle das despesas do governo e discorda sobre o uso que se faz dos créditos
orçamentários. Custódio, por sua vez, citava em sua carta a necessidade de encontrar uma
solução para a pacificação da situação no Sul do país, dado que esta pacificação era
imprescindível para a estabilidade do regime republicano. Terminava sua carta da seguinte
forma: “Dou assim minha demissão, mas fora do governo servirei à República, defendendo e
sustentando as suas instituições e as autoridades legalmente constituídas, com a mesma
dedicação e com o mesmo valor que a servi como ministro”.4 Meses depois, liderava a
Revolta da Armada de 1893, pedindo que Floriano renunciasse à presidência. A deflagração
da revolta teria tido como motivo determinante o veto de Floriano à Lei das Inelegibilidades,
o que o tornaria apto a disputar uma nova eleição quando terminasse seu mandato (JANOTTI,
1986, p. 68).

3
História da Revolta de 6 de setembro. Brasília: Editora da UNB, 1982. O livro de Freire foi originalmente
publicado em 1896.
4
Gazeta de Notícias, 30 de abril de 1893, capa.
9
Assim, para entendermos a repressão empreendida por Floriano Peixoto devemos
enumerar quais eram as forças que estavam atuando a seu favor no momento da Revolta da
Armada. Primeiramente, falemos dos jacobinos. Este grupo foi estudado pela historiadora
Suely Robles de Queiroz (1986) e, segundo a autora, formavam um conjunto heterogêneo,
que se constituía de membros das camadas médias da sociedade, especialmente no
funcionalismo público, jornalistas e membros das forças armadas, principalmente do Exército.
As bases de sua atuação estão centradas em três características principais: o nacionalismo
extremado, a defesa do militarismo e a defesa da República como forma ideal de governo, daí
seu antimonarquismo. Os jacobinos viram na figura de Floriano durante a Revolta da Armada
o líder capaz de realizar suas aspirações mais caras: um governo forte, nacionalista,
centralizador e militarizado. A atuação deste grupo era, muitas vezes, marcada pela violência:
depredavam lojas comerciais pertencentes a estrangeiros – sobretudo portugueses - e também
redações de jornais. Na imprensa carioca, os dois principais promotores do jacobinismo eram
Raul Pompéia e Diocleciano Martyr. O jacobinismo de Raul Pompéia o levou ao rompimento
com seus amigos de imprensa, notadamente Olavo Bilac e Luiz Murat.5

O segundo grupo era o dos florianistas, estudado pelo historiador Lincoln de Abreu
Penna (1996). Segundo este autor, o Florianismo está diretamente ligado à Revolta da Armada
e é “um fenômeno que se expressou de duas maneiras, um vinculado ao aparelho de Estado e
ambientado no próprio governo, e outro que se formou ao largo das conveniências do poder”
(PENNA: 1996, p. 29). A eclosão da Revolta da Armada teria norteado as decisões de
Floriano em torno de duas vertentes:

“Na grande política, trabalha no sentido de reconstituir as bases de apoio,


arregimentando regionalmente as lideranças em torno de seu governo,
autoproclamado de salvação nacional; e na pequena política busca aproximar-
se de contingentes sociais excluídos da cidadania convencional, através de
iniciativas populares tais como o combate sistemático aos especuladores, e de
assistência alimentar e habitacional às famílias retirantes dos bairros mais
pobres do centro urbano” (PENNA: 1996, p. 32)

Estes dois grupos, segundo Penna, forneceriam os recursos materiais e humanos para a
formação dos Batalhões Patrióticos que auxiliaram o marechal durante a revolta. A relação
entre jacobinos e florianistas foi mais bem descrita por Suely Robles de Queiroz: “nem todo
admirador de Floriano era jacobino, mas todo jacobino era florianista”. (QUEIROZ: 1986, p.
128).

5
Ver, a esse respeito, MISKOLCI, Richard e BALIEIRO, Fernando Figueiredo de. O Drama Público de Raul
Pompéia. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, nº 75, fev. 2011, p. 73-88.
10
Floriano contava com o apoio do Exército e da Guarda Nacional, embora alguns
indivíduos destas instituições tenham sido presos pelo regime florianista, como se pode ver na
lista de prisioneiros políticos da Casa de Correção. Aumentavam as fileiras da repressão
florianista indivíduos que eram recrutados à força pela Guarda Nacional e colocados na linha
de combate contra os marinheiros revoltados. Apesar da proibição do recrutamento forçado, a
Guarda Nacional continuava com a prática arbitrária, como testemunham os funcionários da
Alfândega em carta enviada ao seu inspetor e publicada no jornal O Paiz:

“Os abaixo assinados trabalhadores da repartição de que V. Ex. é mui digno


chefe, vem ante V. Ex. se queixar e ao mesmo tempo com todo o acatamento
pedir-lhe interceda dos poderes competentes as necessárias providências afim
de terminarem as extorsões, os abusos inqualificáveis de que ora estão sendo
vítimas pelo recrutamento a que está procedendo a guarda nacional.

Debalde alguns colegas exibem documentos comprobatórios de sua profissão


artística e operária, e os agentes recrutadores rasgam-nos e trancafiam seus
portadores.

Acrescem duas circunstâncias ponderosíssimas: a primeira é que o sr.


comandante superior daquela briosa e assaz patriótica milícia por mais de uma
vez terminantemente proibiu o recrutamento. A segunda é que empregados e
operários de outras repartições exibem e são aceitos documentos passados
pelos respectivos chefes.”6

Na imprensa do Rio de Janeiro, Floriano contava principalmente com o apoio dos


jornais O Paiz, tendo à frente Quintino Bocayuva, O Tempo, de Frederico Borges e O Diário
de Notícias, de Antonio Azeredo, todos ativos na propaganda governista contra a Revolta da
Armada. Foram os principais veículos por meio dos quais eram divulgados os propósitos
supostamente monarquistas da Revolta da Armada: as matérias de capa sobre o conflito em O
Paiz, por exemplo, eram intituladas A Revolta Restauradora.

Na oposição a Floriano, por outro lado, estava primeiramente o movimento


monarquista, muito atuante na imprensa desde a proclamação da República mas que, segundo
a historiadora Maria de Lourdes Janotti (1986), não conseguia articular ações mais concretas
em torno da restauração, embora alguns monarquistas tivessem ocupado posições políticas no
governo republicano como por exemplo o Barão de Ladário, que conseguiu eleger-se senador.
Houve algumas tentativas de conseguir apoio financeiro da Família Real no exílio para
financiar ações de monarquistas no Brasil - aproveitando a situação ainda frágil da república

6
O Paiz, 20 de janeiro de 1894, capa.
11
após a renúncia de Deodoro e os primeiros meses da presidência de Floriano - mas estas, no
entanto, foram repelidas. Uma delas pela própria Princesa Isabel:

“Meu pai com seu prestígio teria provavelmente recusado a guerra civil como
meio de tornar a voltar à pátria. Não me julgo eu autorizada a melhor ver o
que convém a nosso país do que os senhores que lá se acham, mas, declaro,
lamento tudo quanto possa armar irmãos contra irmãos. Repugna-me sempre a
ideia de guerra civil... de qualquer maneira, porém que os senhores encarem as
circunstâncias, por minha dignidade e mesmo para mais tarde melhor poder
ser útil ao país e ao conservar-me imparcial, julgo de meu dever não tomar
responsabilidade alguma do que se está dando... Meus princípios e meu amor à
pátria, para lá nos farão voltar logo que esta por convicção geral tiver se
declarado pela monarquia.”7

As acusações de que forças restauradoras estavam atuando eram comuns, sendo os


federalistas desde fevereiro de 1893 os principais acusados. O monarquismo restaurador era
tratado pela imprensa republicana fiel a Floriano pelo termo pejorativo “Sebastianismo”, que
seria também o termo pelos quais seriam tratados os rebeldes de Antônio Conselheiro, no
arraial de Canudos, em 1897. A propaganda contra os supostos restauradores monárquicos foi
tão poderosa que teria criado na historiografia da Revolta da Armada o mito da Marinha
monarquista (ARIAS NETO, 2006). De qualquer forma, a acusação se tornou mais crível a
partir da adesão de Saldanha da Gama à Revolta da Armada. Alguns trechos de seu manifesto,
a exemplo do que será transcrito a seguir, davam margens a interpretações de que o almirante
era partidário da causa monárquica:

“Brasileiro, é meu interesse concorrer com meus esforços para pôr termo a
este terrível período em que lançaram a pátria na anarquia, no descrédito, na
asfixia de todas as suas liberdades.

“A lógica assim como a justiça dos fatos autorizaria que se procurasse à força
das armas repor o governo do Brasil onde estava em 15 de novembro de 1889,
quando em momento de surpresa e estupefação nacional ele foi conquistado
por uma sedição militar, de que o atual governo não é senão uma continuação.

O respeito, porém, que se deve à vontade nacional livremente manifestada


aconselha que ela mesma escolha solenemente e sob a sua responsabilidade a
forma de instituições sob que deseja envolver os seus gloriosos destinos”
(BONAVIDES: 2002, p.353)

Na imprensa republicana, como já tivemos oportunidade de mencionar, a oposição a


Floriano Peixoto vinha sobretudo dos jornais O Combate e Cidade do Rio, nos quais
jornalistas de peso como José do Patrocínio, Olavo Bilac, Luiz Murat, políticos opositores de
Floriano como Jacques Ourique e J.J.Seabra e militares como Honorato Caldas, que assinava

7
Carta da Princesa Isabel a Ouro Preto, 4 de dezembro de 1892. Transcrita em Os subversivos da República, p.
63.
12
uma coluna no jornal O Combate, militavam contra sua administração. A atuação do jornal O
Combate neste contexto foi objeto de análise de Ana Carolina Feracin da Silva (2001).

O aparato de repressão de que se serviu Floriano Peixoto já estava consubstanciado na


legislação do regime republicano desde seus primórdios. A Constituição de 1891, em seu
artigo 80, permitia que se declarasse estado de sítio naquelas localidades do país onde se
verificassem “comoções intestinas” ou que se achassem ameaçadas por forças estrangeiras.
Durante o período de sítio, que não poderia ser indeterminado, estariam suspensas as garantias
constitucionais. Floriano, na época da Revolta da Armada, baixou diversos decretos
aumentando seu poder repressivo. Um exemplo é o decreto 1565, publicado em 13 de outubro
de 1893, que regulava a liberdade de imprensa enquanto durasse o período de estado de sítio.
A regulação da imprensa, segundo o decreto, era indispensável pois “uma parte da imprensa
tem contribuído para animar a revolta com publicações inconvenientes umas, falsas outras, e
todas constituindo elemento de perturbação e alarme, em prejuízo da ação de governo e da
tranquilidade pública”.

O decreto era draconiano e por vezes até vago. No artigo 2º são explicitadas as
proibições que recaíam na atividade da imprensa:

“Art. 2. Fica proibido:

a) Fazer publicações que incitem a agressão externa ou possam aumentar a


comoção interna e excitar a desordem;
b) defender qualquer ato contrário à independência, integridade e dignidade
da Pátria, à Constituição da República e a forma de seu governo, ao livre
exercício dos poderes políticos, à segurança interna da República, à
tranquilidade pública.
c) publicar notícias a respeito da revolta que não tenham sido comunicadas
pelo governo constitucional ou que não tenham essa origem;
d) comunicar ou publicar documentos, planos, desenhos e quaisquer
informações com relação ao material ou pessoal de guerra, às fortificações
e às operações e movimentos militares da União ou dos Estados;
e) Apregoar notícias, fatos ou assuntos, verdadeiros ou falsos, contidos nas
publicações que se ofereçam à venda ou se distribuam gratuitamente ou de
qualquer outro modo.”8

O decreto deixava ao arbítrio do poder público, na figura do Coronel Valadão, a


prerrogativa do fechamento dos jornais que se considerassem nocivos ao esforço do governo.
E, de fato, apenas os jornais reconhecidamente oposicionistas sofriam as punições, uma vez
que os jornais pró-governo incorriam em várias proibições previstas no decreto e continuavam
funcionando.
8
Coleção de leis da República Brasileira, 1893, p. 716.
13
A repressão florianista pode ser então sumarizada nos seguintes pontos: vigilância
constante da cidade por forças policiais regulares e pelos “agentes secretos”; perseguições
políticas e prisões efetuadas contra indivíduos considerados suspeitos; participação da
Administração Pública no aparato repressivo, envolvendo, além das autoridades policiais e
carcerárias, funcionários em outras instâncias do serviço público 9; a atuação das forças de
Floriano Peixoto contra civis considerados suspeitos; fechamento de jornais críticos ao
governo como, por exemplo, The Rio News, Gazeta da Tarde, de Moura Brito – encarcerado
na Casa de Correção – e Cidade do Rio, de José do Patrocínio, que ficou escondido durante a
Revolta da Armada.

A historiografia do período da presidência Floriano Peixoto se concentra, em geral,


nos aspectos políticos, a exemplo dos já citados estudos de Maria de Lourdes Janotti e Suely
Robles de Queiroz – que tratam dos grupos antagônicos que coexistiram durante o governo
Floriano Peixoto: monarquistas e radicais jacobinos. Na história diplomática, tem destaque o
trabalho do embaixador Sérgio Corrêa da Costa, A diplomacia do Marechal, publicado pela
primeira vez em 1945, que dá destaque à atuação das marinhas estrangeiras durante o conflito
na Baía de Guanabara. Um terceiro traço de destaque é o estudo desenvolvido por Lincoln de
Abreu Penna sobre a constituição do florianismo, de que já falamos anteriormente.

A abordagem de nosso trabalho se centra na memória dos aspectos da repressão


florianista, que é transmitida em um primeiro momento através de uma literatura carcerária
fabricada dentro da prisão da Casa de Correção e de crônicas publicadas na imprensa que
descrevem o clima geral no Rio de Janeiro – as prisões, a atuação de agentes secretos, a
propaganda do governo. Em que pesem serem materiais de uso e objetivos distintos, eles
atuam nas duas noções testemunhos estudadas por Seligmann-Silva (2003): o testemunho
como testis, aquele que testemunhou o fato objeto de sua narrativa, e o supertestis, indicando
um indivíduo que passou por uma provação. Assim,

“Se a noção de testemunho como terceiro já anuncia o tema da verificação da


verificação da verdade, ou seja, traz à luz o fato de que o testemunho por
definição só existe na área enfeitiçada pela dúvida e pela possibilidade de
mentira, a acepção de testemunho como sobrevivente e mártir indica a
categoria excepcional do real, que o testemunho tentar dar conta a posteriori”
(SELIGMAN-SILVA: 2003, P. 378).

9
Tome-se como exemplo duas cartas de Felisbelo Freire sob guarda da Biblioteca Nacional. Nelas, o então
ministro da Fazenda de Floriano Peixoto no período da Revolta da Armada deseja ser informado acerca da
existência de funcionários públicos a serviço da Caixa de Amortização que sejam críticos ao governo.
14
Nesse sentido, trabalharemos também com o amplo conceito de testemunho definido
por Beatriz Sarlo. Segundo a autora, são componentes do testemunho

“[d]aquilo que um sujeito se permite ou pode lembrar, daquilo que ele


esquece, cala intencionalmente, modifica, inventa, transfere de um tom ou
gênero a outro, daquilo que seus instrumentos culturais lhe permitem captar do
passado, que suas ideias atuais lhe indicam que deve ser enfatizado em função
de uma ação política ou moral no presente, daquilo que ele utiliza como
dispositivo retórico para argumentar, atacar ou defender-se, daquilo que
conhece por experiência e pelos meios de comunicação, e que se confunde,
depois de um tempo, com sua experiência, etc” (SARLO: 2007, p. 59)

Após o fim do governo Floriano Peixoto, em novembro de 1894, começam a surgir na


imprensa e no meio editorial uma série de textos de cunho memorialístico e testemunhal que
podem ser analisados pela ótica da formação de uma literatura subterrânea no sentido
propugnado por Pollak: em momentos de maior liberdade política – o fim de um regime
autoritário, por exemplo – há uma tendência à

“irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória de


dominação e de sofrimentos que jamais puderam se exprimir publicamente.
Essa memória ‘proibida’ e, portanto, ‘clandestina’ ocupa toda a cena cultural,
o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura [...]”
(POLLAK: 1989, p.5).

A documentação de que tratamos neste trabalho é plural: jornais manuscritos,


periódicos de grande circulação, correspondências privadas, obras memorialísticas. Tratados
em conjunto, esse grupo documental nos permite descobrir relações entre seus autores e
temáticas.

Nesse sentido, esta dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro tratará do
jornal A Justiça, periódico manuscrito fabricado na Casa de Correção que, à época da Revolta
da Armada, serviu de cárcere para os prisioneiros políticos do governo Floriano Peixoto. É
um testemunho da repressão florianista escrito diretamente da prisão, podendo ser qualificado
como “literatura carcerária”. É também um documento raríssimo: fabricado no cárcere como
um meio de comunicação entre os presos, ganha o status de fonte histórica ao ser incorporado
ao acervo da Biblioteca Nacional, guardiã da memória bibliográfica do Brasil.

O segundo capítulo, dividido em duas partes, dá conta de como a memória e os


testemunhos da repressão Florianista foram divulgados entre 1894 e 1895: na primeira parte,
trataremos das memórias dos ex-prisioneiros políticos, que foram publicadas no meio editorial

15
em 1895. A segunda parte tratará de como as memórias e os testemunhos da repressão
florianista foram divulgados em periódicos entre 1894 e 1895. A metodologia de prospecção
do material deste capítulo teve como base a lista de prisioneiros políticos da Casa de Correção
publicada no último número do jornal A Justiça. Os nomes constantes da lista foram
encontrados primeiramente nos acervos de Manuscritos, Obras Raras e Obras Gerais da
Biblioteca Nacional e, numa segunda etapa, nos periódicos digitalizados na Hemeroteca
Digital Brasileira. Nosso objetivo nesta parte não é dar conta de todo o material encontrado,
mas apenas dar algumas amostras de como essas memórias circularam na imprensa e no meio
editorial brasileiro no final do século XIX.

O último capítulo trata das memórias da repressão florianista nos escritos de Coelho
Netto e Lima Barreto. Na época da Revolta da Armada, ambos os literatos foram testemunhas
da repressão empreendida pelo governo do marechal Floriano e seus testemunhos e memórias
aparecem em suas produções, seja em crônicas ou em contos/romances. Tentaremos mostrar
como esta produção de Coelho Netto e Lima Barreto se relaciona com as memórias e os
testemunhos tratados nos dois primeiros capítulos de nossa dissertação.

16
Capítulo 1

A memória da repressão política na prisão: o jornal manuscrito A Justiça (1894)

Imagem 1. Capa da coleção do jornal “A Justiça”, redigido pelos prisioneiros políticos do regime florianista em
1894. (Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital, Divisão de Manuscritos)

Em 1911, a Fundação Biblioteca Nacional adquiriu um documento incomum: uma


coleção de jornais manuscritos redigidos em 1894 por prisioneiros políticos do governo
Floriano Peixoto. A coleção não está completa, compondo-se dos números II, IV, VI, VIII, XI
e XIII. O vendedor do documento foi o professor Lafayette Cortes, conhecido no Rio de
Janeiro por suas atividades como educador. Infelizmente, não foram encontradas outras
informações sobre a negociação que envolveu a aquisição do material mas resta o fato de que
17
o vendedor reconheceu na Biblioteca Nacional um local onde este item seria preservado no
longo prazo.

O jornal foi editado pelos ocupantes das celas 103 e 106 da 5º galeria da Casa de
Correção, o engenheiro Lício Clímaco Barbosa e o comerciário Afonso Otero,
respectivamente.10 Ricamente ilustrado, A Justiça traz alguns detalhes da vida na prisão,
denúncias sobre o tratamento dispensado aos prisioneiros e, em seu último número, a lista de
prisioneiros políticos que foram mantidos na penitenciária entre 1893 e 1894.

Dezessete anos separam a redação de A Justiça e a venda de seus exemplares à


Fundação Biblioteca Nacional. Como o jornal, que a princípio pertenceria a Lício Clímaco
Barbosa e Afonso Otero, poderia ter passado a pertencer a Lafayette Cortes? Na falta de uma
resposta precisa a esta pergunta, sobram apenas algumas pistas. Uma delas é o elo entre Lício
Clímaco Barbosa e Lafayette Cortes: o senador Rui Barbosa, tio e padrinho de Lício 11. Rui
Barbosa e Lafayette Cortes eram sócios do Club Civil Brasileiro, o qual foi ativo durante a
campanha de Rui à presidência da República em 1913. 12 Essa proximidade talvez possa
explicar como o jornal passou a ser propriedade de Lafayette.13

A Casa de Correção14, onde os autores do jornal ficaram encarcerados entre 1893 e


1894, foi o projeto modelo do Império para inserir o Brasil na modernidade carcerária:
construída no Rio de Janeiro, no bairro do Catumbi, teve como base o modelo panóptico
preconizado por Bentham, já aplicado na Europa e nos Estados Unidos, sendo inaugurada
oficialmente em 1850, apesar de já estar em funcionamento antes de sua construção estar
finalizada. A prisão previa o isolamento celular dos prisioneiros durante a noite e o trabalho
em oficinas durante o dia para que o preso, ao terminar o cumprimento de sua pena, pudesse
se reinserir na sociedade. Na década de 1870, iniciou-se o projeto de identificação dos
prisioneiros por fotografia, o que deu origem ao álbum “Galeria dos Condenados”, atualmente
sob guarda do setor de Iconografia da Biblioteca Nacional.

A adoção da pena de restrição da liberdade num país onde grande parte da população
já não era livre por definição – afinal de contas, o número de escravos na sociedade brasileira

10
Jornal O Apóstolo, 20 de fevereiro de 1895, p. 3.
11
Conforme as cartas que compõem o Dossiê Lício Barbosa, sob guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa.
12
Indicação, em 1º de março de 1913. Fundação Casa de Rui Barbosa, Dossiê Lafayette Cortes.
13
Na lista de prisioneiros políticos do jornal A Justiça não há nenhum prisioneiro de nome ou sobrenome
Lafayette.
14
A Casa de Correção foi renomeada, no século XX, de Presídio Frei Caneca. Todo o complexo foi demolido em
2010, exceto o pórtico e parte da muralha de proteção.
18
era considerável – constituía-se um paradoxo não percebido pelos idealizadores da Casa de
Correção (KOERNER: 2001). A realidade brasileira, no entanto, bateu às portas da
penitenciária: não entendendo a proposta da penitenciária, senhores levavam seus escravos
rebeldes para serem punidos com chicotadas num ambiente prisional que tinha por base a
abolição das penas cruéis. Em muitos casos, escravos idosos que não mais podiam servir aos
seus senhores eram abandonados na penitenciária. Não apenas isso: a própria polícia levava
para a Casa de Correção escravos fugidos ou que tivessem cometidos crimes, o que fez com
que o moderno espaço prisional da Casa de Correção tivesse que criar um calabouço – outro
ícone do atraso em matéria prisional – para alocar estes indivíduos. Um problema adicional
foi criado pela existência de “africanos livres” – uma categoria constituída por indivíduos que
eram apreendidos nos navios negreiros apreendidos após a abolição do tráfico e que ficavam
sob a tutela do Estado brasileiro. Sem um local adequado para abrigá-los, eles eram também
enviados à Casa de Correção, onde desempenhavam diversos serviços, podendo também ser
requeridos para trabalhar em obras ou repartições públicas. 15

A transformação da Casa de Correção em prisão política ocorre em 15 de dezembro de


1893: como a Fortaleza da Conceição – a primeira instituição a receber prisioneiros políticos
durante a repressão florianista – já não era suficiente para alocar o alto número de prisioneiros
políticos apreendidos pelas forças do marechal Floriano, foi publicada naquela data uma
portaria do Ministério da Justiça, assinada por Cassiano do Nascimento, determinando que

“enquanto permanecerem as condições anormais produzidas pela revolta de


uma parte da armada nacional, tem resolvido o governo que continuem
reservados para a detenção de réus de crimes políticos os pavimentos 3º, 4º e
5º deste estabelecimento, não devendo, pois, ser recolhido a qualquer um dos
ditos pavimentos nenhum réu de crime comum” (CALDAS: 1895, p. 186)

A partir da data de vigência da portaria, os presos da fortaleza passam a ser


transferidos para a Casa de Correção.

15
Sobre a Casa de Correção, ver os trabalhos de SANTANNA, Marilene Antunes. De um lado, punir, de outro,
reformar: projetos e impasses em torno da implantação da Casa de Correção e do Hospício Pedro II no Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2002. KOERNER, Andrei. O impossível panóptico tropical escravista:
práticas prisionais, política e sociedade no Brasil do século XIX. IN: Revista brasileira de Ciências criminais.
vol. 35, jul de 2001, p.211-224. Sobre os africanos livres na Casa de Correção, ver MAMIGONIAN, Beatriz. To
be a liberated african in Brazil: labour and citizenship in the nineteenth century. Tese de doutorado, Canadá,
2002. Na Biblioteca Nacional, consultar o álbum Galeria dos Condenados, pertencente à coleção Thereza
Cristina, que contém fotografias de prisioneiros da Casa de Correção no século XIX.
19
A falta do volume I do jornal impede que saibamos com certeza qual era a intenção de
Lício Barbosa e Afonso Otero ao redigir o jornal. No entanto, a despeito de seu caráter lúdico,
não se pode negar a natureza testemunhal do periódico: ele dá indícios de que aqueles
indivíduos estavam encarcerados e vivos naquele período e que haviam caído nas malhas da
repressão de Floriano Peixoto.

Os materiais para a redação do periódico – papel quadriculado e tinta nanquim, ambos


de excelente qualidade – possivelmente chegaram até a prisão por meio de contrabando dos
parentes que visitavam os prisioneiros. Esse contrabando era uma via de mão dupla: no
volume XI, os redatores escrevem a nota “Passamos a perna nos cérberos deste bazar” no qual
declaram que “Fizemos sair às escondidas a coleção d’A Justiça. A propósito, saibam os
nossos leitores encarcerados que o nosso circulante e anti-jacobino jornal tem obtido da parte
dos leitores ainda livres um sucesso estupendo!” (A Justiça, vol XI). Talvez este fato explique
o motivo de a coleção vendida para a Biblioteca Nacional estar incompleta: nem todos os
volumes podem ter sido devolvidos aos redatores.

Tempo não era problema para Lício e os demais redatores do jornal: presos em suas
celas na maior parte do tempo, podiam ser bem cuidadosos e detalhistas na confecção do
jornal. Além disso, os recursos para que as ideias surgissem não faltavam: sabemos pelo
jornal da entrada de outros itens na penitenciária como periódicos, sobretudo O Paiz,
alimentos, correspondências.

O Paiz foi um dos jornais que continuou circulando no Rio de Janeiro apesar
das restrições impostas pelo decreto 1565 de 13 de outubro de 1893. O decreto começa com
uma interessante definição de “liberdade de imprensa”, que consistiria no “direito de
colaborar com o poder social nos fins a que se propõe a ordem moral e política em suas
múltiplas exigências e modalidades”. Esse parágrafo dá mostras que, naquele momento, o
direito à liberdade de imprensa seria garantido apenas aos veículos que fossem
ideologicamente alinhados aos atos do governo. Daí a proibição de circulação de jornais como
O Combate – para o qual contribuía Honorato Caldas, um dos prisioneiros da Correção – e
Cidade do Rio, de José do Patrocínio. Esse aspecto da repressão florianista não escapava aos
presos da Correção, que passaram a ter somente o jornal O Paiz como fonte de suas
informações. Como os exemplares não entravam em grande número na penitenciária – na
verdade às vezes eram fruto de contrabando trazido por seus familiares – O Paiz passava de
mão em mão pelos prisioneiros políticos. A sátira do jornal A Justiça não deixa de observar
20
que o jornal O Paiz era supervisionado de perto pelos florianistas, a despeito de sua óbvia
tendência governista.

Imagem 2. Preso político atuando como guarda do único exemplar de O Paiz disponível para os presos
políticos.

O motivo do encarceramento dos presos políticos, no entanto, não é em nenhum


momento declarado em A Justiça. Os jornais que ainda tinham permissão de circular na
capital, como O Tempo e O Paiz fizeram a cobertura de certos fatos que se deram na cidade e
que permitem que saibamos, em um primeiro momento, a causa dos encarceramentos. Lício,
por exemplo, era suspeito de participar de uma conspiração para detonar explosivos nos túneis
da Estrada de Ferro Central do Brasil. Também são apontados como suspeitos Nilo Deodati,
engenheiro e um dos desenhistas do jornal A Justiça, o engenheiro Adolfo Leyret, amigo de
Lício e Emilio Rouède, amigo dos escritores Coelho Netto e Olavo Bilac e ex-diretor do
jornal Cidade do Rio.16 Ao saber da prisão de Rouède, Coelho Netto sai em defesa do amigo
na coluna Correio Fluminense, que o escritor publicava no jornal O Commercio de São
Paulo:

A tentativa em questão revela a mais requintada perversidade da parte de seus


autores. Por isso justamente é que não hesito em jurar sobre a inocência do
meu amigo Rouède.

Rouède é um admirável coração, meigo e afetuoso. É capaz, como homem de


brio, de um movimento inopinado e brusco, mas não tem alma para tentativas

16
Ver O Paiz, 25 de setembro de 1893 e O Tempo, 17 de fevereiro de 1894.
21
covardes como essa que preocupa atualmente a justiça da capital. Duvido
muito que nele encontrem o procurado criminoso. Vive com a família no
Rodeio, onde tem um sítio que é o seu paraíso e que móvel levaria o amável
companheiro a tão bárbara tentativa? Não, a polícia enganou-se desta vez –
Rouède pode ser um demolidor de fúteis, mas de túneis... nunca!17

De fato, Rouède foi liberado das acusações, enquanto Lício Clímaco, Adolfo Leyret e
Nilo Deodati foram mandados para a Correção.

O periódico era alvo de constante vigilância por parte dos carcereiros. Lício Clímaco
denuncia, no volume VIII, os maus tratos a que foi submetido pelo guarda Madeira:

O guarda mandante, que anda fulo de raiva por casa da “A Justiça”, chamou
aos bolos o redator 103 [Lício Barbosa]. Coitado! Não pode habituar-se à ideia
de ser enforcado como um Judas, ele, de cuja vida nada há que dizer!...
(menos 25 anos de cadeia, consta-nos com que foi presentado no Paraná!
Havemos de verificar isso).

O Madeira, que tanto tem auxiliado o Governo nessa difícil emergência, daria
de boa vontade a província da Santa Catarina para reduzir a pó, cinza e nada
os redatores da “A Justiça” de cambulhada; e para que lhe nascesse outra
orelha, poria fogo a um cartório do Paraná, onde deve estar arquivado certo
documento!... (A Justiça, vol. VIII)

O texto de Lício é acompanhado da charge abaixo:

Imagem 3. Lício Barbosa sendo punido com a palmatória por ter redigido no jornal A Justiça sobre as denúncias
existentes contra um dos carcereiros. (Fundação Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos).

17
COELHO NETTO, Correio Fluminense. IN: O Commercio de São Paulo, 27 de setembro de 1893.
22
O uso da palmatória seria denunciado também na imprensa carioca em abril de 1894,
após findada a Revolta da Armada. O Coronel Vespasiano, chefe da Estrada de Ferro Central
do Brasil, aplicava a palmatória contra indivíduos que reclamassem do governo Floriano
Peixoto. Usava, para isso, o carro-vagão 136V, apelidado de Carro fatídico, pois dentro dele
eram aprisionados indivíduos que não haviam cometido crimes, mas que haviam feito queixas
contra a administração pública. A atuação do Coronel Vespasiano contava com a ajuda de um
destacamento de polícia que ficava estacionado na Praça da República. Testemunhas
escreviam para os jornais denunciando a existência do vagão 136v e das punições que
ocorriam dentro dele. Ângelo Agostini, “a pedido de muitas vítimas”, publicou em seu jornal
Don Quixote uma ilustração do vagão:

Imagem 4. Ilustração do carro 136v no jornal Don Quixote.

Outros abusos eram cometidos contra os prisioneiros da Casa de Correção. Um deles


se deu na madrugada de 25 de março de 1894, quando foram privados de sono por ordem do
diretor da penitenciária:

23
As matracas

Na noite de 5ª para 6ª feira santas fomos despertados por um barulho infernal.

Sobressaltados, com o espírito agonizado, perguntáramos se seria o Bouças,


cantando modinhas baianas; ou o Alvim, trauteando salvas de Waldtenffel, ou
a trombeta de Jericó! Ou o Couto, tangendo as campainhas de galo; ou o
Barboza brigando com todo o mundo; ou o General Honorato Caldas
chamando à ordem o pobre Madeira; ou o Huet Bacellar discutindo com um
ex-ministro; enfim, lembramo-nos de que era a Semana Santa, e que os sinos
tinham ido para Roma.

Eram as matracas!...

O caritativo e católico Coronel das Chaves veio recomendar aos guardas que
tocassem bastante forte, para serem ouvidos no Itamaraty. (A Justiça, vol.
VIII)

Imagem 5. Os guardas da Correção acordam os prisioneiros na madrugada. (A Justiça, vol)

Em uma terceira ocasião, também com o intuito de privar os prisioneiros de sono, o


diretor da penitenciária ordenou que se soltassem rojões no pátio da Casa de Correção:

24
Imagem 6. O diretor Farias solta rojões para acordar os presos políticos do regime florianista (A
Justiça)

Havia carcereiros na Casa de Correção que não eram tiranos como o guarda Madeira e
o diretor Farias. Pelo menos um deles mereceu ser homenageado no jornal de Lício: o guarda
Diogo, que muitas vezes facilitava o acesso dos prisioneiros políticos aos livros da biblioteca
da Casa de Correção, a qual inicialmente não podiam frequentar por não poderem sair de suas
galerias.

Imagem 7. O guarda Diogo – que se tornou amigo dos presos da quinta galeria – é representado no jornal A
Justiça

25
Quando Diogo fica doente e não pode mais trabalhar os presos da Correção declaram
que vão fazer uma subscrição ao carcereiro:

“Já uma vez na Justiça teve a honra de ser o órgão das manifestações de
gratidão da 5ª galeria para com o Diogo; hoje, tem ela o profundo pesar, tanto
mais sincero quanto o pobre homem decerto nunca lerá estas linhas, de fazer-
se eco da simpatia de todos os presos políticos da Casa de Correção para essa
grande alma, perdida neste Cafarnaum, por ocasião do lastimável acidente de
que foi vítima o nosso bom guarda e amigo. Achando-se o infeliz na Stª. Casa
de Misericórdia, a 5ª galeria em peso enviou-lhe uma prova de pesar de que se
acha possuída, e todos os presos políticos concorreram para uma subscrição,
cujo produto que montou a... é destinada a suavizar-lhe os sofrimentos.

Fazemos sinceros votos para que seja de pronto entre nós, restabelecida sua
saúde”. (A Justiça,vol. XI)

Não deixa de ser curioso que os presos desejem o retorno de seu carcereiro ao serviço:
é prova de que o guarda Diogo de fato se preocupava com os prisioneiros e tentava minorar as
dificuldades da prisão. O jornal foi escrito sem o valor da subscrição, pode ter sido um
esquecimento do redator. As subscrições eram listas nas quais os assinantes destinavam certa
quantia a determinada causa. Foram muito comuns durante a Revolta da Armada: havia
subscrições pelos órfãos, por feridos nas ruas pelos estilhaços do conflito, para ajudar
Floriano em seu esforço de guerra.

Enquanto o carcereiro era alvo de afeto dos prisioneiros, o mesmo não se podia dizer
do diretor, o Coronel Aureliano Pedro de Farias. Uma das reclamações dos prisioneiros era o
tratamento diferenciado que o diretor dava aos prisioneiros de maior prestígio social e
econômico:

“Privilégios?

Cabe hoje o lugar de honra de nossas colunas ao nosso bom e amável Coronel
das Chaves.

Temos que fazer a esse senhor algumas perguntas, às quais ele responderá
quando a altiva, independente e austera A Justiça lhe chegar às mãos, de que
Deus nos livre.

Há já muito tempo que a 5ª galeria, cujo jornal de maior circulação é A


Justiça18, observa que é sempre a última no conceito da reta administração
deste Capharnaum. A 6ª e a 8ª galerias, sobretudo, têm banhos, barbeiro, as
mais amiudadas vezes que a nossa bem amada 5ª. As portas lá estão
constantemente abertas, ao passo que nós vivemos sub regimini gradi.

18
Os redatores de A Justiça mencionariam que mais dois jornais estariam sendo fabricados na prisão: o Busca Pé
e A Lei.
26
Será porque o Coronel das Chaves teme a língua do General HC na 6º e a
blague do Dr. T...inha na 8ª?

Ou será porque lembrando-se do hodie mihi cras tibi, trata de angariar a


gratidão daqueles que mais perto estariam do leme deste grande barco?...” 19

Uma outra reclamação recorrente dos presos eram as condições precárias em que eram
mantidos. A comida era de má qualidade, o ambiente da prisão favorecia a proliferação de
doenças – alguns presos morreram de beribéri. Não havia atendimento médico regular, o que
piorava a situação daqueles que se achavam enfermos. Tal situação não passou despercebida
de Joaquim Nabuco, cujos amigos presos na Casa de Correção – como os irmãos Barros,
Alfredo e Adolfo – são fonte de sua preocupação, especialmente com respeito à epidemia de
febre amarela que acometia frequentemente o Rio de Janeiro Em carta20 a seu cunhado Hilário
de Gouveia - que também havia sido prisioneiro da Casa de Correção mas que, na época em
que o jornal foi escrito, já havia fugido – datada de 14 de fevereiro de 1894, confessa:

“O que me faz medo a respeito de nossos presos, entre os quais temos tantos
amigos, é a epidemia da época. Dizem-me, porém, que o Silva Costa e o Maia
Monteiro estão na Polícia, o que é sempre melhor do que a Bastilha do
Catumbi. O pobre do Siqueira continua preso, e o Adolfo dizem que bem
doente, tendo-se-lhe negado remoção. Enfim é um horror e eu penso no futuro
com muito desânimo: o que vai ser da recordação destes tempos, o
crescimento destes ódios, a divisão intestina das famílias e as represálias
recíprocas quando acabar o estado de sítio é um véu negro que eu pelo menos
não quisera levantar [...] (NABUCO: 1949 p. 225)

Outro fato que impressiona Nabuco é que o florianismo não é arrefecido mesmo após
uma temporada na prisão. Em outra carta o Hilário de Gouveia, enviada em 10 de maio de
1894, Nabuco se mostra incrédulo:

“O A. de Siqueira21, este foi solto, e segundo me dizem, não está nada


queixoso do Floriano, que ele reputa o homem talhado para a situação do país.
É já filosofia. Eu a princípio tomei por pura ironia este modo de falar do nosso
amigo, mas me asseguraram que realmente ele não tem queixa da prisão
atribuindo-a ao estado atrasado de nossa sociedade e não à perversidade do
Floriano. Essas prisões são simplesmente miseráveis, são requintes de
crueldade fria, são atos de barbarização, que o caráter deste povo (menos do
que o de qualquer outro), não justifica de forma alguma. Dar a um antigo
conselheiro de Estado um cubículo, com um estrado e um vaso por mobília, como dão
ao Silva Costa, sem falar dos generais, etc, é o que só se terá visto na história das

19
A Justiça, vol. VIII.
20
A coleção de cartas de Joaquim Nabuco foi publicada em 1949 por iniciativa de sua filha Carolina. É possível,
no entanto, que algumas cartas estejam faltando.
21
Antônio de Siqueira, também preso na Casa de Correção.
27
prisões de Nápoles, no tempo dos Bourbons e quem sabe ainda?” (NABUCO: 1949 p.
234)

A Revolta da Armada terminou em 13 de março de 1894. No entanto, Lício e seus


companheiros permaneceram prisioneiros, alguns até junho daquele ano. Na esteira da vitória
do Marechal sobre os revoltosos, seus apoiadores corriam para organizar festividades no
intuito de comemorar o triunfo de Floriano. O serviço público mandava cartas para o
Itamaraty, assinadas por seus funcionários, para parabenizá-lo; eram organizados meetings na
cidade para celebrar a vitória das forças governistas. Uma dessas demonstrações mereceu
figurar no jornal A Justiça. O jornal O Paiz, em 25 de março de 1894, anuncia em matéria de
capa o desfile do Batalhão das Senhoras pela cidade:

Ao governo do marechal Floriano, como à imprensa fluminense, foram objeto


de extremo penhor as demonstrações de apreço e as felicitações que lhes
trouxeram ontem as senhoras brasileiras, formando um batalhão garrido pelo
aspecto, sorridente pelas expansões joviais que espalhavam em sua passagem,
entusiástico e vibrante porque vinha dos corações das nossas compatriotas,
encarnação perfeita dos sentimentos nobres, símbolo da própria tenacidade
que delas receberam os nossos soldados e que por elas bateram-se defendendo
heroicamente a República.

Toda a cidade viu o desfilar desse préstito gentilíssimo, coberto de flores e


saudado com tantas palmas triunfantes e estrepitosas, desde a partida de São
Cristóvão até o palácio Itamaraty, desde aí até a rua do Ouvidor e ponto do seu
debandar.22

A formação de Batalhões Patrióticos foi um importante componente da repressão


florianista. Não é de espantar que um batalhão de mulheres causasse comoção na cidade.
Como diz a reportagem, o destino da comitiva de senhoras é o Palácio do Itamaraty, onde
esperam ser recebidas pelo marechal:

No palácio Itamaraty, onde, por ligeiro impedimento, o marechal não pode


receber o estado-maior do batalhão das senhoras, acolheu-o com as maiores
demonstrações de apreço o sr. capitão Siqueira, seu secretário;

E a S.S. coube ouvir da secretaria desse corpo garrido os cumprimentos de


parabéns que as senhoras brasileiras iam apresentar ao chefe do Estado, a
quem se destinavam também as seguintes palavras escritas:

“Marechal. Nós somos as filhas do povo, que durante seis meses sofríamos o
desgosto e o pranto pelo desaparecimento dos nossos queridos pais, filhos,
irmãos, maridos e noivos. A ambição armou o braço de alguns
desnaturalizados brasileiros para ensanguentar a nossa cara Pátria. A vós
devemos a tranquilidade e a paz no lar. Viemos, gratas e orgulhosas, vos dizer
que ainda uma vez cumpristes o dever de soldado e de brasileiro.

22
O Paiz, 25 de março de 1894, capa.
28
Nós, as filhas de sinceros republicanos e futuras mães de família, guardaremos
este nome para a história – Floriano Peixoto – a quem saudamos de coração.
Viva o marechal Floriano Peixoto. Viva o Exército. Viva a Armada Legal.
Viva a guarda nacional. Vivam os patriotas. Vivam os antigos voluntários da
pátria. Carolina Bruce – 24 de maio de 1894.

Retribuindo tão elevado e cativante procedimento, o digno sr. capitão Siqueira


agradeceu com viva alegria, em nome do marechal, a presença ali do batalhão
das senhoras, significou a satisfação de que por isso estava possuído o vice-
presidente da República e levantou vivas às senhoras brasileiras, à República
Federativa, aos Estados Unidos da América do Norte, à armada legal, ao
exército e à guarda nacional, aos corpos patrióticos e ao povo fluminense. 23

Lício e seus companheiros fazem referência às senhoras do batalhão n’A Justiça:

“Batalhão das Amazônicas Filhas do Povo. Soubemos com pasmo, misturado


de ardente entusiasmo, da formação do batalhão com o título acima. [...]
Lembramos às elegantes patriotas que devem imitar as fabulosas Amazonas,
extirpando o seio direito, tanto mais quanto as armas modernas de repetição
são muito coiceiras. Então, declaram também guerra ao casamento? Pois é
pena!... De que projetis se servirão elas? De beijos d’estalo ou de olhares
fulminantes? Se assim é, vamos colocar-nos na trajetória. C.L.B.” (A Justiça,
vol. VIII)

Imagem 8. Lício Clímaco parodia no jornal o batalhão patriótico de mulheres que foram felicitar o marechal
Floriano em 1894.

O último número do jornal A Justiça termina de modo melancólico. Lançado no dia 13


de julho de 1894, data em que o Conselho de Guerra formado para julgar Lício, Nilo Deodati
e outros prisioneiros havia dado a sentença final do processo a que respondiam: haviam sido
condenados à morte pelo crime de traição. O processo por que passaram Lício e os outros
prisioneiros havia sido um tanto estranho: o Conselho de Guerra não funcionava num tribunal

23
idem.
29
regular, mas foi montado no interior da própria Casa de Correção, numa das salas do pavilhão
destinado às mulheres. Lício, então, escreveu seu desabafo no jornal:

Nos cabe hoje uma rude e dura tarefa; como redator-chefe desta folha única e
original, e como tal único responsável por tudo quanto nela se tem rabiscado,
como redator-chefe, dizemos, explicaremos em poucas palavras o motivo
deste suplemento extraordinário; como condenado à morte, vamos tomar uma
barrigada de riso sobre tal condenação. .Já estava em circulação o nosso
último e mortal número 13 quando nos chegou a notícia de que dos 13 (!) que
haviam passado juntos diante d’um Conselho de Guerra presidido por um
distinto Coronel, 11 haviam sido condenados à morte de uma só penada. Eis
porque decidimos este suplemento, em que alguns dos fuzilados em
perspectiva fazem questão, mas mesmo questão séria, de agradecer ao sublime
conselho a sua magnanimidade. [...] (A Justiça, suplemento)

O tenente da Armada Arthur Alvim, preso do cubículo 108, condenado à morte pelo
mesmo conselho, também deixou seu “testamento”. Estranhando a situação em que se
encontrava, sendo julgado sem nenhum tipo de formalidade na prisão das mulheres:

[...] uma vez aí [na sala do Conselho], vi acumulados ao redor de uma pequena
mesa sete sujeitos, presididos pela figura elegante, judaica do Coronel B.
Gonçalves.

Abraçado, beijado, não, beijado não, que eu não deixaria, enfim muito bem
tratado, as[i de lá contentíssimo. E dizia comigo: decididamente o hábito não
faz o monge... Farsantes!

Sabem o que eu trazia? Um abraço e um passaporte para o outro mundo!

E o Bentinho fazia as coisas com tal jeito, com tal fingimento, que um meu
risinho, que já foi reconhecido urbe et orbi como habilíssimo atalaia, caiu no
laço e trouxe também o seu passaportezinho! [...] (A Justiça, suplemento)

Mas, apesar da preocupação de Lício, Alvim e Deodati, a sentença de fuzilamento não


foi cumprida: todos os prisioneiros foram soltos em setembro de 1894, beneficiados por um
habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Teriam, então, possibilidade de
contar suas histórias em outra publicação, como será visto no próximo capítulo.

A o medo do fuzilamento pode ter estimulado a formulação da lista de prisioneiros que


acompanha o último número do jornal, possivelmente pelo receio de que alguns daqueles
prisioneiros pudessem simplesmente “desaparecer” sem deixar qualquer rastro. A lista é
composta pelas mais diversas classes sociais da República: ex-ministros, como Serzedello
Correia; militares, como Atanagildo Barata Ribeiro, Honorato Caldas e Armínio Guaraná;
jornalistas, como Tobias Monteiro e Alfredo de Paiva. Ao lado dos mais famosos estavam

30
presos também funcionários públicos, estudantes, padres, pequenos negociantes, grandes
fazendeiros... a repressão florianista não excluía classes sociais.

No próximo capítulo, mostraremos como as memórias dos ex-prisioneiros políticos da


Casa de Correção vieram à tona em 1895, quando Floriano Peixoto já havia deixado de ser
presidente. Além disso, mostraremos como a imprensa, além de publicar as experiências de
repressão na Casa de Correção, também deu lugar a narrativas sobre a repressão florianista
contra a população em outras localidades do Rio de Janeiro.

Imagem 9. Sala dos Conselhos de Guerra, parodiada pelo desenhista d’A Justiça

31
Imagem 10. Primeira página da lista de prisioneiros políticos publicada pelo jornal A Justiça.

32
Anexo ao capítulo 1 – Lista de prisioneiros da Casa de Correção publicada no jornal A
Justiça em 1894

Nome Profissão Galeria


Abrahão Ben-Chimol Negociante 8
Acacio de Aguiar Advogado 8
Adolpho de Barros Conselheiro 6
Adolpho Leyret Engenheiro 5
Affonso Moreira Médico 5–7
Affonso Otero Empregado de Comércio 8 – 5 – PS
Alberto Bouças Guarda-livros 5–7
Alberto Lapeyre Aluno da Escola Militar 5–7
Albino Meira de Vasconcellos Advogado e Senador 7
Alexandre Galdino da Veiga Capm. Tenente 6
Alexandre de Oliveira Monteiro Negociantte 5–8
Alfredo Augusto de Lima Barros Capm. Tenente 6
Alfredo de Barros Major honorário 6
Alfredo José de Mello Empregado do Comércio 8
Alfredo Ortiz Engenheiro 5
Alfredo de Paiva Jornalista 7
Alfredo Pinto Negociante 7
Alvaro Antunes Baptista Capm. da Guarda Nacional 5
Adriano Augusto do Valle Industrial 7–5
Alvaro Medeiros Chaves 1º tenente da Armada 5–8
Andre Cueto Foguista 5 – PS
Andronico Tupinamba Advogado 7–5–8
Angelo Caziraghi Negociante 7
Angelo Rezard Guarda-livros 7
Antonio Alves de Melo Cardozo Empregado Público 6–7
Antonio Alves dos Reis Embarcadiço 7 – 5 – PS
Antonio Baptista Embarcadiço 7 – 5 – PS
Antonio Barrozo Fernandes Fazendeiro 8
Antonio de Castro Operário 7
Antonio Giovanni Negociante 7
Antonio Jacobina Fazendeiro 8
Antonio Lins Cavalcante de Oliveira Capm. de Fragata 6
Antonio Joaquim de Rezende Negociante 5
Antonio de Oliveira Marques Negociante 7
Antonio de Siqueira Corretor – advogado 8
Aristides Arminio Guaraná Coronel Honorário Engenheiro 6
Arlindo Pinto Duarte Aspirante de Marinha 8
Arlindo de Souza Gomes Corretor 8
Arthur Alvim 1º tenente da Armada 8–5
Arthur Niemeyer Empregado do Comércio 7
Arthur Rinaldo Guimaraes Jornalista 5–7
Arthur Rockert Representante de comércio 5–7
Athanagildo Barata Ribeiro Engenheiro construtor naval 6–7

33
Augusto de Oliveira Xavier Empregado público 6 -7
Azevedo Alves (Alfredo) 1º tenente da Armada 6
Baldomero Fuentes de Carqueja Jornalista 6
Cacio Farinha Jornalista 6–7
Calixto Gaudencio da Silva 2º tenente Commº 5–8
Camillo Henrique Darchanchy Empregado Público 7
Carl Axel Wilhelm Krum von Linden Engenheiro 5
Carlos da Silveira Martins Advogado 8
Carlos Vianna Bandeira Negociante 5–8
Carneiro Leão (Barão de Paraná) Fazendeiro 7
Coriolano de Alencastro Major honorário 6
Celso Bayma Estudante 8
Couto Magalhaes General 6
Dimitri Kuka Operário 5
Dioclecio Pinto de Oliveira Estudante 5
Domingos Jesuino de Albuquerque Tenente e ex-deputado 7–6
Domingos José da Silva Guimaraes Negociante 5
Duarte Huet Bacellar Pinto Guedes Capº Tenente engenheiro naval 6
Eduardo da Silva Tavares Negociante 8
Elyseu Guilherme (ex- governador de Coronel (farmacêutico) 7–8
Santa Catharina)
Eneas de Farias Ramos Capm. tenente 6
Ephraim Nogueira de Macedo Negociante 7 -8
Ernesto Climaco Barboza Estudante 7–5
Eugenio de Menezes 7 – 5 – PS
Euzebio de Paiva Legey Contra-almirante 6
Firmino Martins de Sá Negociante
Francisco Alves dos Santos Operário 5 – PS
Francisco Augusto de Paiva Bueno Capitao de fragata Engenheiro 6
Brandão mecânico
Francisco Braz Cerqueira e Souza 2º tenente maquinista 6–8
Francisco do Couto Soares Negociante 5
Francisco Gavião Pereira Pinto Capm. de fragata 6
Francisco José Fereira Negociante 5
Francisco Marques do Couto Empregado público 5–7
Francisco Rodrigues dos Reis Embarcadiço 7 -5
Francisco da Silveira Negociante 5
Frederico Edel von Hoonholtz 1º tenente da Armada 5–8
Genesco Bandeira de Mello Advogado 7–5–8
Gregorio Thaumaturgo de Azevedo Tenente Coronel de 6
Engenheiros Advogado
Henry Bernard Tenente da Guarda Nacional 6
Honorato Candido Ferreira Caldas General 6
Innocencio Serzedello Correia Engenheiro (ex-ministro) 6
Jayme Estany Corretor 5
Jesuino Pereira de Lima Campos Contra-almirante 6
João Ferreira de Castro Embarcadiço 7–5
João Ferreira Goulart Cônego Senador 8
34
João José de S. Paulo de Aguiar Capitão da Guarda Nacional 6
João Maciel da Costa General 6
João Maximiliano Algemon Sidney 1º tenente da Armada 6
Schieffer
João Pereira Teixeira Advogado 8
João Pinto do Couto 1º tenente medico da armada 6
João Pinto de Vasconcellos Barreto Advogado 5
João Piragiba Advogado 5–7
Joaquim Barcelos Goveia Aspirante de Marinha 5–8
Joaquim da Costa Frederico Negociante 5
Joaquim José de Souza Negociante 7
Joaquim de Pinho Bastos Negociante 8–5
Joaquim Teixeira de Vasconcellos Negociante 7–5
Jonathas Ascagne Arquiteto 7–5
José de Almeida Marques Negociante 5
José Basson de Miranda Ozorio Advogado ex-ministro 6
José da Cruz Saldanha Padre 8
José Ferreira dos Santos Foguista 5
José Garcia Operário 5
José Gonzales Representante de Comércio 5
José Martins de Sá Negociante 5–7
José Nogueira Jaguaribe Farmacêutico 7
José Pedro de Oliveira Galvão Coronel Senador Federal 6
José Ricardo Pereira Pitta Farmaceutico 5
José da Silva Costa Advogado (conselheiro) 8
José Victor Delamare Capitao de mar e guerra 6
Julio do Nascimento Engenheiro mecânico 8
Julio Ribas Advogado 5–8
Laureano Alves Portella Negociante 7
Leite Ribeiro 2º tenente exército 7
Leonardo Fortunato Padre 8
Leopoldo de Freitas Advogado 6–7
Licio Climaco Barbosa Engenheiro 7–5
Luiz Alves da Silva Penna Operário 5 – PS
Luiz Augusto de Carvalho Junior Estudante 7
Luiz Bartholomeu da Silva Alferes 6
Luiz Carlos Barboza de Oliveira Engenheiro 8
Luiz José do Rozário Empregado do Comércio 8
Luiz Moreau Agrimensor 7–5
Luiz de Moura Brito Jornalista 5–7
Luiz Pinto Pereira Negociante 5 – PS
Maia Monteiro (barão de) Capitalista 8
Manoel de Borges Lima Tenente coronel 6
Manuel Carneiro da Silva Tenente honorário 6
Manoel Gouveia Jardim Sacristão 7
Manuel Leopoldino de Vasconcellos Farmacêutico 5
Manoel José Fernandes Capitão honorário 6
Manoel Maria de Oliveira Empregado público 7–5
35
Manoel Martins Torres Empregado público 5–7
Manoel Pinto Ribeiro Manso Negociante 7
Mario Espinola Estudante 7
Mario José de Mello Empregado do comércio 8
Maximiliano Veras Negociante deputado estadual 7
Manelio Pinto Advogado 5–7
Menna da Costa Major da Guarda Nacional 7
Michele Miscione Negociante 7–5
Michele Oro Negociante 5
Modestino Roquete Capitão 6
Nilo Deodati Engenheiro 7–5
Norberto Martins Vianna Empregado público 5–7
Numa do Rego Macedo Negociante 8
Octavio Melchiades de Souza Telegrafista 7–5
Paula Ramos Advogado 8
Paulino de Jesus Capitão da marinha mercante 5
Pedro Baptista Correa da Camara Major da Guarda Nacional 7–6
Pedro da Costa Frederico Negociante 5
Pedro José Barenco Negociante 5 – PS
Pedro de Magalhães - 8
Pennaforte Mendes de Almeida Advogado 5
Philippe Cuñado Foguista 8 – 5 – PS
Pinto Netto Médico 7
Procopio Lorena da Silva Empregado público 7 – PS
Raymundo Nonato 1º tenente patrão mor 5–8
Ricardo de Biscuccia - 7–5
Sá Brito Médico 7
Salomão Ben-Chimol Negociante 8
Serapião Alcides de Albuquerque Alferes da Guarda Nacional 6
Figueiredo
Severino Maia 2º tenente da Armada 6
Themistocles Leão Filho Empregado Público 5
Themistocles Nogueira Savio 1º tenente da Armada 6
Tobias Monteiro Jornalista Advogado 6–7
Trajano Augusto de Carvalho Capm. Tenente engenheiro 6
naval
Victor Berna Estudante 7
Villela de Gusmão Advogado 8

36
Capítulo 2. As memórias da repressão política após o fim do governo Floriano Peixoto
(1894-1895)

Após o encerramento do governo Floriano Peixoto, começam a circular no meio


editorial e na imprensa uma série de obras que tentaram dar conta da experiência da repressão
durante a Revolta da Armada de 1893-1894. Essas obras levaram em conta tanto a experiência
dos ex-prisioneiros políticos do regime florianista quanto à repressão empreendida pelas
forças governamentais em outras partes do Rio de Janeiro, notadamente em Sepetiba.

2.1. As memórias dos ex-priosineiros políticos (1895)

O primeiro ex-prisioneiro político da Casa de Correção a ter suas memórias publicadas


em 1895 foi Alfredo de Barros, major honorário do Exército e corretor no Rio de Janeiro.
Durante a campanha abolicionista, atuou ao lado de seu amigo Joaquim Nabuco na Sociedade
Brasileira contra a Escravidão. (NABUCO: 1959, p.85). Notas e apontamentos sobre minha
prisão na fortaleza da Conceição, Casa de Correção e em minha residência desde 4 de
novembro de 1893 a 14 de agosto de 1894 foi publicado pelas oficinas do Jornal do Brasil. É
um livro raríssimo, que só teve uma edição: a Biblioteca Nacional não possui nenhum
exemplar e os únicos encontrados estão no acervo da Biblioteca Histórica do Itamaraty, no
Rio de Janeiro, como parte da coleção particular de Joaquim Nabuco – um presente
autografado do próprio Alfredo de Barros –, e dois exemplares pertencentes ao sistema de
Bibliotecas da USP.

Alfredo de Barros ficou preso no cubículo 143, tendo como companheiro de cárcere
Luiz Bartholomeu, ex-secretário de Serzedello Correa. Ao seu lado, no cubículo 142, ficou
aprisionado seu irmão, Adolfo de Barros. Como alguns amigos informaram, não era ele o alvo
da repressão Florianista, mas sim seus irmãos, Adolfo e Pedro. Pedro, com medo de ser
perseguido, havia fugido do Rio de Janeiro. Adolfo decidiu ficar pois acreditava que o
governo não tinha nenhuma acusação contra ele. Mesmo assim, foi preso 3 vezes pelos
agentes secretos de Floriano (BARROS: 1895, p. 14).

Aparentemente, a casa da família também estava sendo vigiada e o clima de terror por
conta do medo das delações dos agentes secretos de Floriano Peixoto é retratado por Alfredo
de Barros:

“Achava-se esta infeliz população literalmente sitiada por secretas; e a maneia


singular e misteriosa por que estes operavam as prisões de que eram ou não

37
encarregados, imprimia-lhes um cunho tão particular de tenebrosa ameaça,
que mais parecia acharmo-nos em pleno domínio da Convenção Francesa de
89 do que no antigo Império do Brasil e no ano da graça de 1892 24. Os
secretas pululavam por toda a parte: nas ruas, nas praças, colados às portas e
vitrines das lojas, nos restaurantes, nos cafés, onde quer que se reunissem mais
de duas pessoas, especialmente quando lhes pareciam suspeitas. Secretas
havia-os entre os titulares de ambos os sexos. Antigos magistrados,
representantes da nação, que iam terminando seus mandatos, oficiais
reformados da Armada (general eu conheço um) e do Exército, aposentados
civis e até ex-praças do corpo policial e ex-ordenanças de ministros que foram
da monarquia. Havia secretas de todas as categorias: do Itamaraty, da polícia e da
prefeitura; de cartão branco e de outros matizes, segundo à graduação ligada à função
e ao soldo de cada um. Era quase impossível evitar-lhes a aproximação, tal o seu
número e audacioso cinismo” (BARROS, 1895, p.15-16)

Quando foi à polícia perguntar o que aconteceria com seu irmão Adolfo, que havia
sido detido, foi preso por um certo “Sr. Campello”. Ao perguntar o motivo recebeu como
resposta “não sei, meu caro senhor, o que sei é que o senhor também fica preso”.

Da estação de polícia, Alfredo foi conduzido para a fortaleza da Conceição, 25 na qual


encontrou Serzedello Correa e Honorato Caldas e de onde podiam todos ver os combates que
aconteciam na Baía de Guanabara entre os navios revoltosos e a esquadra governista. Quando
a fortaleza da Conceição não conseguia mais suportar o excessivo número de prisioneiros do
regime florianista, Adolfo de Barros, seu irmão e demais companheiros foram transferidos
para a Casa de Correção.

Alfredo de Barros testemunha dos sacos de cal que ficaram guardadas nos corredores
da Correção:

“ninguém houve que não os visse e os próprios guardas, acostumados a tratar


conosco, a conhecer mais ou menos a nossa índole pacífica e sofredora, certos,
como estavam, de que todos éramos incapazes da mais mínima reação,
testemunhas da nossa passividade diante da série infinita de violências de que
éramos objeto, mostravam-se contrariados com semelhante providência ou
ameaça que nada explicava e menos justificava. Fosse isso devido ao irrisório
plano do Dr. Atanagildo ou a qualquer outra causa, a verdade é que tais sacos
de cal lá se achavam. E pra quê? Para nos aterrar, para impressionar-nos? Para
sufocar-nos em um momento dado? Alguns prisioneiros chegaram a receá-lo.
(BARROS: 1895, p. 84)

24
Se não houve erro de grafia aqui, a memória traiu Alfredo de Barros: ele está se referindo na verdade ao ano
de 1893, no qual foi preso. Mas é compreensível seu engano, afinal de contas este tipo de atuação de agentes
secretos existia desde os primórdios da República, passando por Deodoro até chegar a Floriano.
25
A fortaleza da Conceição fica no Rio de Janeiro, no alto do morro de mesmo nome, de onde se pode ver a Baía
da Guanabara, desde o cais do Porto até Niterói.
38
A menção ao plano de Atanagildo diz respeito a uma suposta tentativa deste, segundo
Barros, de tentar convencer Armínio Guaraná a envolver-se em um plano para a libertação
dos presos da Correção.

Tomou conhecimento, pelos jornais, do manifesto de Saldanha da Gama, que foi lido
em voz alta para os prisioneiros, e Alfredo de Barros se lembra da atitude de Serzedello
Correia que, considerando que o documento apresentava um teor monarquista, declarou “não
duvidava empunhar um carabina e bater-se pela causa da legalidade pois via comprometida a
causa da República”. (BARROS: 1895, p. 33-34).

Quando foi colocado em prisão domiciliar, Alfredo de Barros recebeu a confirmação


das suspeitas que tinha na Casa de Correção:

“Entre as pessoas que tem me feito a fineza de procurar em minha residência


recebi a de um velho amigo, hoje oficial general do exército.

Referiu-me que os temores por que muito tempo o assaltaram à sua digna
esposa, sobre a sorte reservada aos detidos na Casa de Correção e em outras
prisões de Estado. A princípio não compreend a que temores aludia omeu
amigo, pois acreditava que eram conhecidas as condições em que se me
achava eu e os demais presos políticos.

Foi então que ele revelou-me, em fé de juramento que lhe fiz de não revelar
seu nome, saber de ciência certa que, no momento mesmo em que o primeiro
soldado da revolta penetrasse no recinto da capital federal, seríamos nós,
ospresos políticos imediatamente trucidados. A revolta poderia acaso triunfar,
mas os suspeitos de participação com ela estavam previamente condenados a
pagar com a vida aquele triunfo para o qual, aliás, não haviam de modo algum
concorrido” (BARROS: 1895, p. 110)

Para Alfredo de Barros, isso era o mínimo que se poderia esperar do Marechal
Floriano, a quem considerava um traidor por não ter defendido o Imperador Pedro II da
Proclamação da República em 1889. (BARROS: 1895, p. 111-112).

Joaquim Nabuco, amigo dos irmãos Barros, se compadece de sua situação. Em carta
escrita a Hilário de Gouveia em 10 de maio de 1894, comenta Nabuco:

“E o Adolfo e o Alfredo de Barros estão presos em casa. São os únicos que eu


saiba sujeitos a este gênero de prisão, mas que horrível constrangimento não é
não poder sair à rua – qualquer que seja a urgência. O Alfredo mora perto
daqui e à tarde irei vê-lo de vez em quando para distraí-lo. É outro que sofreu
ainda mais pelo estado melindroso da mulher do que pela prisão mesmo”
(NABUCO: 1949, p. 233)

39
No entanto, de acordo com Alfredo de Barros, ele só foi mandado para a prisão
domiciliar em junho de 1894. Talvez ele tenha se enganado com as datas ou talvez Nabuco
desconhecesse que somente Adolfo já estava de volta ao lar, mas devidamente vigiado.

Aprisionado sem saber o motivo, vendo seus companheiros de prisão também serem
acusados injustamente, uma das mais melancólicas memórias escritas em seu livro é a
imagem da República manchada pela tirania florianista:

“Todos nós e com certeza aqueles mesmos que haviam contribuído para o
estabelecimento do atual regime, tivemos perto ao espírito nesses momentos a
imagem da liberdade, que tanto devêramos ter acariciado e zelado outrora, e
que desgraçadamente vemos banida hoje (e quem sabe se para sempre?) do
seio da pátria, mercê da cegueira de alguns de seus filhos e da negra ingratidão
de outros!...

Nesses angustiosos momentos, com certeza, as lágrimas que a dor e a saudade


faziam vir aos olhos misturavam-se com as que o arrependimento e o remorso
igualmente faziam brotar a mais de um”. (BARROS: 1895, p. 45).

O segundo livro foi escrito por Atanagildo Barata Ribeiro, militar reformado e
engenheiro naval. Foi publicado em 1895, após o mês de julho – esta é a data do documento
mais atual citado em seu livro, um poema épico que narra as agruras da Revolução de 1893. A
parte onde ele mais especificamente narra suas memórias ocupa uma fração ínfima do livro,
apenas 26 páginas de um volume de mais de 300. A obra é dedicada a todos os opositores do
Marechal Floriano: Gumercindo Saraiva, “à memória daqueles que sucumbiram na luta contra
o governo do ditador Floriano Peixoto”, aos “federalistas Rio-grandenses e revolucionários de
6 de setembro de 1893”, aos marinheiros da Fortaleza de Villegaignon e “a seus
companheiros de prisão, um brado de animação, constância e esperança no futuro”.

Barata Ribeiro ficou na Casa de Correção, isolado num cubículo, de 1º de fevereiro de


1894 até 17 de setembro de 1894: foi preso pelos agentes secretos de Floriano em 30 de
janeiro, em companhia de seu filho de 12 anos, que também foi detido e obrigado a delatar o
pai. Para passar o tempo, escreveu o livro que ora se descreve. Infelizmente, como ocorre com
a quase totalidade dos presos da Correção, os documentos encontrados sobre Atanagildo são
escassos. Os dados encontrados sobre sua vida dão conta de que ele era proprietário de um
jornal chamado O Federalista, que circulava no Rio de Janeiro. Em agosto de 1893, o chefe
de polícia Bernardino Silva apreendeu os exemplares do jornal por considerá-los “ofensivo à

40
moral pública”.26 Mesmo sem ter lido nenhum exemplar do jornal, que também não foi
encontrado, podemos entender a razão: segundo Atanagildo, a República Brasileira tinha sido
governada até aquele momento por uma “quadrilha desvairada de alagoanos que há dois
tristes anos devasta, com desonra para o nosso exército e marinha, este inditoso país,
pregando o estupro, a gazua e o veneno” (RIBEIRO, 1895, p. XXXIII ). Já se vê por essa breve
descrição que Barata Ribeiro não era partidário nem de Deodoro, nem de Floriano. Aliás, é
bem original a descrição que faz de Floriano Peixoto:

“Seu porte é regular, seu corpo é reforçado

Que o crânio alagoano é, vê-se num momento:

Seu passo tardo e curto é de homem pachorrento,

E o traje assaz correto, até mesmo adamado

Na languidez do olhar, que lembra um emborrachado,

Bem faz para velar seu negro pensamento;

Mas seu sorriso alvar, mentido, amarelento,

Um ser logo revela ao sangue afeiçoado.

Vendeu seu velho rei; mas só após certeza

De ter desse ato infame o soldo garantido,

Depois de mais almejado, então essa inteireza

De um companheiro seu traiu como um bandido

Sem alma ou consciência.!

É filho da baixeza

Co’o Mal, e só dos vis amigo estremecido” (RIBEIRO, 1895, Perfil


Governamental)

A denúncia que o tinha levado à prisão era bem séria: Atanagildo estaria aliciando
cúmplices para libertar os prisioneiros que estavam nas prisões do Rio de Janeiro, e juntando-

26
Gazeta de Notícias, 17 de agosto de 1893.
41
se às forças da revolta, explodiria os paióis de munição do governo. (RIBEIRO, 1895, p.
XXXII) Um de seus cumplices seria Aristides Armínio Guaraná, que também foi preso na
Correção. Armínio Guaraná – que era apontado como o chefe da conspiração 27 - para se livrar
da prisão, confirmou as denúncias contra Atanagildo e foi posto em liberdade. Evidentemente,
Atanagildo nunca desculparia esta traição: “Pústula! sentina da traição e da calúnia! Covarde
em cujo colo me assentaram quando criança e por isso me habituei a respeitar, eu não te
escarro nas faces para não envenenar minha saliva” (RIBEIRO, 1895, p. XXXIV )

Para Atanagildo, os defeitos da República tinham causas mais remotas: a formação do


povo brasileiro, miscigenado com elementos indígenas e africanos,

“Se este povo, portanto, manteve-se com uma certa decência, afetando virtudes que
não possuía ou compreendia, foi devido à superioridade de espírito do Monarca que,
pelo fato casual mas para ele desastrado de ter nascido neste deserto da América do
Sul, teve a loucura de dedicar-lhe uma existência inteira de afetos, trabalhando para o
seu progresso e felicidade, e ensinando-lhe o caminho da honra pelo exemplo da mais
ilibada probidade e pelo exercício das mais acrisoladas virtudes” (RIBEIRO, 1895,
p. XLVI)

Não seria exagero qualificar Barata Ribeiro como um “anti-Policarpo Quaresma: onde
Quaresma via a exuberância, Barata Ribeiro via o deserto; Quaresma um republicano, Barata
Ribeiro, se não declaradamente monarquista, bem simpático à Família Real. Barata Ribeiro
tinha inclusive se colocada em oposição à Lei Áurea, pois acreditava que a propriedade
privada não precisava ser sido desrespeitada para que se eliminasse o elemento escravo da
sociedade brasileira. Assim, ao desrespeitar a propriedade privada, a Família Real tinha aberto
caminho para sua própria deposição:

“E assim, no meio da mais abjeta indiferença, foi este malfadado país


conquistado por cerca de dois mil soldados boçais, amotinados nos quartéis
desta capital!!

Estava triunfante a almejada República dos representantes da raça africana,


dos megalomaníacos, dipsomaníacos e cropofagíacos, dos novos guardas do
tesouro, dos restauradores enfim da fortuna pública.” (RIBEIRO, 1895, p. LI )

Assim, Atanagildo considerava que o governo ditatorial de Floriano Peixoto e sua


decorrente repressão eram apenas uma consequência de crimes que já vinham se avolumando:
primeiro, a libertação dos escravos em desrespeito ao direito de propriedade; em segundo
lugar, a deposição da Família Real. O governo de Floriano era, então, uma justa punição por

27
A história da prisão de Armínio Guaraná e contada na série Os mysterios da Correcção durante a Revolta de 6
de setembro, na página 36. De acordo com essa versão, Floriano ordenou sua soltura. Segundo Atanagildo
Barata Ribeiro, Guaraná enviava sua mulher e filhas para pedir a mulher e filhas de Floriano para interceder por
ele.
42
ter o povo permitido tão passivamente a proclamação da República. Mais do que isso,
decorria diretamente de um povo com defeitos de formação e a República que ora se
apresentava, com seu descontrole orçamentário, desrespeito aos direitos e liberdades, a
violência estatal, a delação como forma de ascensão eram o justo pagamento pela traição à
Monarquia.

“O país, porém, já está completamente saqueado; suas terras públicas já estão


vendidas; seu crédito já foi atirado às sentinas do despotismo e as duas forças
materiais depauperadas pelo roubo e pelo assassinato inquisitorial!... Parece,
pois, que o elemento mestiço já tem bastantemente governado e com eles os
notáveis republicanos de chapéu de feltro mole!...

Que mais pretendem de nós?

Quererão acaso transformar este pedaço da América do Sul em mais uma


República nos moldes da de S. Salvador, Libéria ou Haiti?!”(RIBEIRO, 1895,
p. LIV )

A terceira obra publicada por um preso político foi A desonra da República, do


General Honorato Caldas, já conhecido no Rio de Janeiro por fazer parte da equipe de
redatores do jornal O Combate usando o pseudônimo Kleber, onde assinava a coluna Seção
Militar, na qual publicava suas críticas ao governo Floriano Peixoto. Sua matéria de
despedida do jornal foi escrita em 15 de junho de 1892. Nessas colunas Caldas mostra
conhecer bastante os decretos legais que regem a relação entre o Presidente da República e os
oficiais de alta patente do Exército e da Armada, o que faz dele um crítico ferrenho dos
decretos que reformaram os 13 generais que haviam pedido a renúncia de Floriano em 1892.
Para Caldas, tais decretos seriam ilegais e, portanto, inválidos. O Congresso Nacional, por sua
vez, os ratificou como legais e confirmou a reforma dos oficiais.

Como Sonho no Cárcere, A desonra da República é um livro volumoso, mas as


páginas que tratam das memórias de Honorato Caldas na Casa de Correção ocupam uma
pequena parte dele. O restante do volume é preenchido com transcrições de documentos
oficiais, matérias de periódicos, decretos, cartas publicadas em jornais e várias listas de
prisioneiros políticos e indivíduos mortos pelo regime Floriano Peixoto. Teve duas edições
em 1895, mas somente a segunda foi localizada em nossa pesquisa.

Nas páginas de suas memórias, a primeira coisa que o impressiona são as péssimas
condições da penitenciária onde ficou e o desrespeito do governo em colocar numa prisão
comum indivíduos de altas patentes militares “cidadãos da mais alta representação social, por

43
homens pacíficos e honestos, cujo único delito é não renderam adoração a César
caricato”.(CALDAS: 1895, p. 35)

A prisão de Caldas foi envolta de intrigas: o jornal governista O Tempo, em setembro


de 1893, comemora o fato de Caldas haver se aliado ao governo Floriano após a eclosão da
Revolta da Armada:

“Também ofereceu seus bons serviços o sr. General de divisão reformado


Honorato Cândido Ferreira Caldas, o ilustre Kleber, que metralhou, não era
muito, o governo do marechal Floriano, só lhe poupando o epíteto de santo.

O ato que S. Ex. acaba de praticar pode chamar-se ato de contrição. O passo
grave em que S. Ex. marchou até o Itamaraty, redime-o de todo o seu passado
cheio de erros, próprio da humanidade. A espada do sr. General Caldas foi-lhe
agora raspadeira, extinguindo da sua fé de ofício o borrão que S. Ex. nela
deixou cair, num momento de alucinação.” 28

No dia seguinte, Caldas desmente a matéria publicada em O Tempo e, em 23 de


setembro, é detido, primeiramente na Fortaleza da Conceição, de onde depois seria transferido
para a Correção. Na prisão da Correção, o tratamento dispensado aos prisioneiros é o pior
possível: suas cartas são violadas, a comida que sua família envia é remexida, suas celas são
imundas, seus bens são apreendidos. Ao reclamar com o diretor da prisão acerca das
condições em que está vivendo junto com seus companheiros, recebe como resposta do
coronel Aureliano Pedro de Farias “tenho ordem até de mandar meter bala na cabeça de quem
não se submeter a este regime” (CALDAS: 1895, p. 43).

Segundo Caldas, parte da culpa da situação em que vivem os presos políticos do


regime florianista é do Exército nacional, que dá apoio à tirania Florianista, com a ajuda dos
Batalhões Patrióticos:

“É aquele mesmo que, em 1899, [...] pegou em armas, depôs o regime que
havia jurado sustentar, instalou-se no governo ditatorial. Em nome da Nação
que não lhe tinha dado procuração, expulsou do solo da pátria estremecida, já
com o pé na tumba, alquebrado de minaz enfermidade, o príncipe ilustre, o
brasileiro nato, que desde 15 anos de idade, uma criança ainda, dirigira com
honra os destinos da Nação por quase meio século [...] (CALDAS: 1895, p.
47).

Também são culpados o próprio Floriano, traidor, que se negou a convocar as eleições
em 1892 e o próprio Congresso Nacional, cúmplice de Floriano, declarando legais todos os
atos do presidente que violavam a Constituição, como a reforma dos 13 Generais em 1892,

28
O Tempo, 13 de setembro de 1893.
44
por exemplo. Logo, os esforços do governo de culpar os monarquistas eram apenas invenção
para enganar os partidários do marechal:

“E ainda ladram à lua os corifeus desta infernal situação contra o


sebastianismo que lhes povoa a mercenária cachola, e ao qual atribuem o
descrédito e o descalabro da atual forma de governo, quando é a própria
República, por seus fautores, que se faz antipática e detestável. que de
desmoraliza, se degrada, que se esfacela.” (CALDAS, 1895, p. 36)

Alfredo de Barros testemunhou os sacos de cal colocados na Casa de Correção, e


Caldas repete esse acontecimento em suas memórias, atribuindo a culpa ao diretor
penitenciária, Aureliano de Farias:

“Põe à retaguarda de cada cubículo um saco de cal, de 80 litros, para, no


momento dado, ser despejado sobre nós, aos punhados, através do ventilador
de grades, e operar assim, pela sufocação, sem perigo de si próprio, aquilo que
o senador cearense sugerira pela dinamite: a nossa liquidação” (CALDAS:
1895, p. 112)

O “senador cearense” é João Cordeiro que, segundo Caldas, teria sugerido dinamitar
os presos políticos. (CALDAS: 1895, p. 85).

Assim como os redatores do jornal A Justiça, Caldas também observa que o diretor
Aureliano trata os prisioneiros de forma diferenciada, de acordo com sua posição social:

“Venal, sim, porque exerce o máximo rigor, uma implacabilidade jesuítica


para com os presos políticos que não possuem fortuna, nem gozam de
influência partidária, que são reconhecidamente pobres, aos quais reluta em
conceder a mais simples equidade, a pretexto de não contrariar as ordens do
alto, entretanto que nenhum caso faz delas, para com os argentários, os
capitalistas, que dispõem de elementos e recursos, aos quais exponte sua
facilita desde logo a visita da mulher e filhos, chegando alguns destes a terem
o estabelecimento por menagem, durante o dia!” (CALDAS: 1895, p. 113)

Além de Caldas, Barros e Barata Ribeiro, Luiz Bartolomeu também escreveu uma
obra quando saiu da prisão: era uma sátira à República Brasileira, desde os tempos da
Proclamação até os tempos de Floriano. A única edição da obra, lançada em 1895, não foi
localizada em nenhum dos acervos brasileiros que foram pesquisados. Há pelo menos um
exemplar na Biblioteca Nacional de Portugal, todavia.

O livro circulou no Brasil e Sacramento Blake, que também foi prisioneiro na Casa de
Correção, menciona sua existência em seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro. É curiosa, no
entanto, a apresentação que faz do autor: “Luiz Bartholomeo – não sei se é pseudônimo ou se

45
é o nome verdadeiro do autor do trabalho seguinte, que sei ser de autor brasileiro”
(SACRAMENTO BLAKE: 1899, vol. 5, p. 370). Curioso pois ambos foram encarcerados na
mesma prisão e pelo fato de Luiz Bartolomeu ser muito conhecido por ter sido secretário de
Serzedello Correa.

Imagem 11. Propaganda do livro Tibério, de Luiz Bartolomeu, publicado em 1895.

2.2. O papel da imprensa na divulgação das memórias da repressão florianista

2.2.1. Os fuzilados em Sepetiba no Jornal do Brasil

Em dezembro de 1894, um fato muito curioso ocorreu no Rio de Janeiro: um morto


voltou à vida e foi visto andando na cidade. Era José do Patrocínio, a quem muitas pessoas
haviam testemunhado ter morrido em Sepetiba, fuzilado pelas forças do governo Floriano
Peixoto.

Os boatos de seu fuzilamento eram publicados nos jornais e, quando ele finalmente
apareceu, não tardaram a aparecer também os esclarecimentos e as piadas em torno de seu
caso. O Jornal do Brasil em 22 de dezembro, publica uma notícia corrigindo a informação da
morte de Patrocínio - Mistério Desvendado – a qual informa que quem fora fuzilado em
Sepetiba não havia sido José do Patrocínio, mas sim Manuel Fernandes da Luz, que participou
da Revolta da Armada e foi preso pelas forças do governo. Era muito parecido com
Patrocínio, o que gerou a confusão. O jornal publicou até cópia de um retrato de Manuel da
Luz:
46
Imagem 12. “Manuel da Luz”, fuzilado em Sepetiba, confundido com José do Patrocínio (Jornal do Brasil, 22 de
dezembro de 1894, capa)

Aproveitando a matéria do Jornal do Brasil, mais um “esclarecimento” foi publicado


em 25 de dezembro de 1894 no jornal Diário de Notícias: teriam recebido uma carta em sua
redação que daria conta da confusão envolvendo Patrocínio:

Imagem 13. Chamada de capa do jornal Diário de Notícias, publicado em 25 de dezembro de 1894, onde se
noticiava o “fuzilamento de José do Patrocínio” (Hemeroteca Digital Brasileira)

A “carta” publicada no jornal é a que se segue:

‘Senhor redator do Diário de Notícias. As informações fornecidas a um dos


jornais da capital pelo ex-revoltoso e ex-alferes sr. João Teixeira Ribeiro
Júnior, obriga-me a pedir-vos espaço para algumas linhas e sair da
obscuridade em que me tenho conservado desde que tive a infelicidade de
baixar a este vale de lágrimas. Como foi o Diário o primeiro a referir-se ao
suposto fuzilamento do sr. José do Patrocínio e como [ilegível] entendi dever
enviar a minha carta a esta redação de preferência a qualquer outra.

47
Trata-se de um revoltoso chamado Manuel Fernandes da Luz executado pelas
forças legais de Sepetiba como sendo o conhecido redator-chefe da Cidade do
Rio.

Pois bem: creio que posso trazer alguma luz ao caso do mesmo. Pelo que vou
dizer verá o senhor redator que a imprensa [ilegível] comparável ao atribuído
às tropas de Sepetiba: o de fazer defunto um honrado cidadão que se acha no
gozo da mais perfeita saúde.

Estou certo de que o suposto Patrocínio e o suposto fuzilado não é nenhum


Manuel Fernandes da Luz, mas sim José Manuel Fernandes da Luz – que sou
eu.

O meu nome, sr. redator, é José Manuel Fernandes da Luz; residi sempre em
Niterói; a minha cor infelizmente é parda [ilegível] explico a confusão que
agora se faz.

Pesa-me sobre as costas uma alcunha tremenda: Zé do Pato.

Quando eu era [ilegível], já lá vai muito tempo, o meu apetite desenfreado, as


proporções do meu estômago e a fenomenal excelência das minhas funções
digestivas causavam a maior admiração em todos que me conheciam de
[ilegível]. Uma ocasião, depois de um jantar copioso, houve um amigo que
apostou em como eu não era capaz de comer um magnífico pato assado que se
conservava incólume na mesa. Acatei a aposta e ganhei-a: comi o bichote
inteirinho, deixando-lhe o esqueleto gulosamente chupado. Tal extravagância
espalhada rapidamente valeu-me desde logo a alcunha de Zé do Pato.

Durante a Revolta da Armada, Zé do Pato estava em Sepetiba com a família. Uma


tarde decidiu ir caçar e, não tendo conseguido nada, desistiu. Foi quando deu de cara com um
destacamento de soldados, que apontaram suas armas em sua direção:

- Está preso!

- Como?

- Já disse! E siga, se não quiser apanhar uma ameixa nos miolos.

- Mas... arrisquei eu.

O homem empertigou-se e tossiu um pigarro.

- Já disse! É seguir! O senhor é um revoltoso, um dos náufragos do Uranus29,


e é encontrado de armas na mão. Podia ser fuzilado agora mesmo.

- Perdão, continuei a arriscar; não sou encontrado de armas na mão, apenas de


arma ao ombro – esta modesta Lafoucheux de um cano só, que trouxe de casa
para matar passarinhos. Não sou revoltoso nem nada, sou um caçador como os
outros.

-Basta! Exclamou o tirano, interrompendo-me. Siga.

Segui entre soldados, de cabeça baixa, como se fosse o João Brandão, o mata
crianças.

29
O Uranus foi um dos navios usados pelos marinheiros da Revolta da Armada.
48
Quis a fatalidade que ao entrar na vila encontrasse o meu prezado amigo
comendador Joaquim Theodoro de Menezes Borba. O comendador, paralisado
ante a minha desgraça, não pode conter o grito?

- Ó Zé do Pato!

Foi um horror. O oficial puxou da espada e de um revolver. Os soldados


levaram o dedo aos gatilhos das carabinas:

-Miserável! És tu! José do Patrocínio! Ao menor gesto morres! Segue,


bandido!

O comendador afastou-se, prudentemente. E eu continuei a seguir.

Encarcerado em Sepetiba, sem conseguir provar que não era José do Patrocínio, o
desventurado Zé do Pato espera pelo pior: acredita que será fuzilado.

Como provar que eu não era o José do Patrocínio? Como provar que eu não
era nada mais do que uma fraca luz, - perdão! Do que um Luz fraco? Como
provar que fora o Baeta quem havia morto o cão?

Chorei, sr. redator, não sobre o Tejo, mas sobre as lajes frias da escura prisão
em que me trancaram.

Uma bela manhã, sonhava eu com a eleição do dr. Portela no Estado do Rio
quando fui despertado pelo carcereiro. Atrás dele vinha impassível e ereto o
oficial da guarda.

-O fuzilamento! Imaginei a tremer.

Mas não. Tive a doce surpresa de receber a noticia de que estava desfeito o
engano havido a meu respeito e de que ia ser afinal restituído à liberdade.

Eia a história, senhor redator. Creio que nas linhas acima se resume tudo
quanto se tem dito em relação ao fuzilamento de Sepetiba.

Sem mais. – Amigo obrig. – José Manuel Fernandes da Luz – Niterói, 23 de


dezembro de 1894 – Praia do Gragoatá, nº6.”30

A pilhéria contrastava com a chamada de capa. Quem quer que olhasse somente a
imagem e não soubesse do retorno de Patrocínio à cidade tomaria um choque. Nesse contexto,
o Jornal do Brasil, que recebia muitas cartas de leitores, publica uma denúncia com a
chamada “Fuzilados em Sepetiba”.

“Por ocasião do Uranus forçar a barra durante a Revolta foram prisioneiros


pelas forças da linha de vigilância de Sepetiba 22 indivíduos ainda bem
moços, que regulavam entre 18 e 20 anos.

30
Gazeta de Notícias, 25 de dezembro de 1894.
49
Pouco tempo depois, um capitão que comandava a força militar que guarnecia
o cruzador Centauro, ao serviço do governo, e que estava fundeado em uma
enseada perto daquele local requisitou-os ao comandante da referida linha de
vigilância.

Os menores foram entregues amarrados a um tenente e depois enviados para


bordo do navio.

Ali chegados, a despeito de terem declarado terem sido prisioneiros dos


revoltosos, em Santa Catarina e, portanto, não serem criminosos, foram
removidos e levados para a ilha da pescaria e ali bárbara e sumariamente
fuzilados, com exceção porém de um, que, procurando fugir, atirou-se ao mar
morrendo afogado”31

Surpreso com a volta de Patrocínio, o jornalista duvidava da narrativa que tinha


recebido em sua redação: “Quem sabe se esses fuzilamentos não são iguais em veracidade ao
que atribuem ter sofrido o sr. José do Patrocínio, que ontem foi visto vivo e são nesta
capital?32 Resolve então o Jornal do Brasil enviar um repórter a Sepetiba para entrevistar os
cidadãos locais e averiguar a verdade dos fatos.

Chegando à cidade e conversando com os moradores, descobre que duas embarcações


estiveram na cidade na época da revolta, a Lamego e a Salgo. O comandante da Lamego era
“Marcos Turio, ou Tulio” 33 Uma das testemunhas é inquirida sobre os fuzilamentos:

“É um fato de fuzilamentos que houve aqui, não é verdade?

-É, mas não vi.

-Não foi até ali na Ilha da Pescaria, onde se acham todos sepultados?

- Isto é um caso sabido; foi d dia, por volta das 4 horas da tarde; olhe, era um
dia como o de hoje, estava chovendo, eram vinte tantos moços que se foi
buscar em Guaratiba, diziam que eram desse vapor que o senhor falou, mas
não sei.”34

Para alguém que não viu, a testemunha do jornalista sabe demais:

“ – Quem tinha ido buscar os moços a Guaratiba?

-Uma força do 13º da Guarda Nacional, comandada pelo tenente Custódio


José de Campos.

- E foram fuzilados logo que chegaram aqui, e por ordem de quem?

31
Jornal do Brasil, 19 de dezembro de 1894, capa.
32
Idem.
33
Jornal do Brasil, 23 de dezembro de 1894, p. 2.
34
Idem.
50
- Não sei, nessa ocasião, já lhe disse, cá não estava; sei porém que foram todos
recolhidos ao quartel do 5º regimento em Santa Cruz; olhe que não é a
fortaleza, é aqui, a fazenda”35

A próxima testemunha entrevistada foi Floriano de Souza, que também não viu a
execução, apesar de ter sido convidado: “não fui porque não gosto dessas coisas”. 36 Apesar
disso, sabia que o mandante dos fuzilamentos havia sido o Tenente Marcos Túlio, que os
rapazes fuzilados haviam vindo de Guaratiba e da Ilha Grande, aprisionados no vapor Uranus.
A terceira testemunha que entrevistou, o português Aníbal, que alegou ter assistido ao
fuzilamento de “30 e tantos homens do Uranus que vieram prisioneiros” 37. Entrevistado uma
segunda vez, Aníbal – com medo – “apesar de confirmar todo o exposto, acrescentou que tudo
sabia por ouvir dizer”.38 Mas indica quem sabe do caso: Custódio Campos, a quem o
jornalista é conduzido. Segundo Custódio, nem todos os aprisionados foram fuzilados, ele até
conhece alguns que moram no Rio de Janeiro, um deles havia sido prisioneiro do vapor
Uranus: Joaquim Cruz, a quem o jornalista só encontra no final da série, finalizada em 17 de
janeiro de 1895.

Antes do encontro com a testemunha ocular de fato o jornal publica a confissão de um


deputado federal, identificado pelas iniciais S.D., segundo o qual os fatos narrados pelo Jornal
do Brasil são verdadeiros, exceto quando se fala de fuzilamentos. Segundo o deputado, todos
os prisioneiros foram mortos a golpes de baionetas e as descargas de tiros foram dadas para
fingir tratar-se de um fuzilamento.39

Nas últimas partes da série, o jornalista consegue entrevistar Joaquim Cruz, o


integrante do navio Uranus que foi preso pelas forças de Floriano Peixoto. Segundo ele,
quando estava preso, 20 de seus companheiros de cárcere foram levados a Sepetiba e
fuzilados. Joaquim Cruz só conseguiu escapar pois sua esposa conseguiu uma audiência com
o comandante da operação e provou que Joaquim Cruz não era envolvido com a revolta.
Segundo Cruz, um dos prisioneiros da Uranus foi confundido com Patrocínio, sendo por este
motivo fuzilado: “a este até praticaram barbaridades parecidas com as dos tempos da barbaria:

35
Jornal do Brasil, 23 de dezembro de 1894, p. 2.
36
Jornal do Brasil, 24 de dezembro de 1894, capa.
37
Idem
38
Idem
39
Jornal do Brasil, 28 de dezembro de 1894.
51
tais como apertar-lhe as carnes em diferentes partes do corpo com tenazes! Depois, mataram-
no à bala, sendo seu corpo sepultado à beira da praia”. 40

2.2.2. Os mysterios da Correção no jornal O Commercio de São Paulo

No dia 20 de novembro de 1894, cinco dias após Floriano Peixoto deixar a presidência
da República para a posse de Prudente de Morais, o jornal O Commercio de São Paulo,
fundado em 1893 e dirigido por Cesar Ribeiro, começa a publicar diariamente a série de
reportagens Os mysterios da Correcção, uma coleção dos relatos tomados de diversas fontes,
referentes aos prisioneiros políticos de que tratamos no capítulo 1. A publicação da série já
havia sido anunciada na edição de 11 de novembro, e é possível que o intervalo entre o
anúncio e a efetiva publicação tenha sido uma precaução, tendo em vista os boatos de que
Floriano Peixoto poderia não sair do poder em 15 de novembro de 1894. De acordo com
Suely Queiroz (1986, p. 28-30), havia indícios de que Floriano tencionava não abandonar a
presidência. No entanto, a transição presidencial foi realizada sem maiores problemas e
Prudente de Morais foi empossado. Esse clima de incerteza sobre a saída de Floriano da
presidência fazia com que alguns setores da sociedade a agissem com cautela.
Embora não conste na série o nome do compilador dos relatos a serem publicados,
Sacramento Blake atribui sua autoria aos jornalistas Joaquim de Oliveira Castro e Roso Lagoa
(BLAKE: 1899, vol. 5, p.425).

O primeiro capítulo da série – As ilegalidades do governo legal – é uma declaração


das intenções da obra: apresentando-se como um relato independente, seu objetivo é narrar os
fatos que ocorreram durante a “guerra civil”´, muito especificamente os atos ilegais do
governo em sua luta contra a revolta. Esclarecem ainda os autores:

“Não é um romance que vamos narrar, embora com ele se pareçam os


episódios que vimos trazer a público; não é tão pouco uma obra de oposição
ao governo do marechal Floriano, pois não pertencemos a facções políticas: é
apenas a exposição dos fatos baseados em documentos autênticos e cuja
veracidade não pode ser contestada” (COMMERCIO DE SÃO PAULO, 1895,
p. 3)

É importante notar o alerta que os autores da série de que os fatos narrados não
constituem um “romance”: a publicação da série em modelo “folhetim” – forma pela qual
alguns romances eram veiculados pela imprensa no século XIX 41 – poderia confundir os

40
Jornal do Brasil, 17 de janeiro de 1895, p. 2.
41
A este respeito ver MEYER, Marlyse . Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 2ª
edição.
52
leitores do jornal e levá-los a pensar que os relatos dos prisioneiros políticos eram puramente
invenções.

Prosseguindo a apresentação, os autores declaram de quais ilegalidades a série vai


tratar:

“Entre as ilegalidades cometidas pelo governo durante a revolta, destaca-se


como a mais vexatória a maneira por que foram tratados os presos políticos.

Em todo o mundo civilizado, a legislação marca um abismo entre um


criminoso comum, que mata para roubar, e o homem que se bate por um ideal
político, seja ele qual for. Pegar em armas para implantar um regime de
governo, ou atacar em uma estrada o transeunte para apoderar-se do dinheiro
que leva, são coisas completamente opostas e cuja punição é também
radicalmente diferente. [...]

Submetendo, pois, os criminosos políticos ao mesmo tratamento dos galés, o


marechal Floriano (porque, como Luiz XIV, o governo era ele) cometeu mais
do que uma arbitrariedade: cometeu um verdadeiro crime constitucional.” (O
COMMERCIO DE SÃO PAULO, 1895, p. 4)

As descrições do regime da Casa de Correção e das condições de vida dos presos


deixa evidente que alguns dos ex-prisioneiros políticos foram colaboradores da série e, nesse
sentido, Os mysterios da Correção serve como um complemento à leitura do jornal A Justiça,
pois acaba revelando o sentido de algumas das imagens publicadas no jornal dos prisioneiros
políticos. Tomemos como exemplo a descrição do meio de comunicação que os prisioneiros
criaram para trocar informações:

“As celas são separadas entre si por uma distância de pouco mais de um
metro, de modo que as mãos poderiam rocar-se, se não fosse a estreiteza das
grades do cubículo. Desde, porém, que isto era impraticável, recorreram a
outro meio de comunicação e assim foi inventado o telefono. Por meio de um
cordel em cuja extremidade estava atado um pequeno peso, um toco de cela ou
o tarugo que servia de tampa ao cantil, o preso deixava passar a mão estre as
grades, e fazendo voltar em círculo o cordel, um preso comunicava com outro
que estivesse colocado a grande distância” O COMMERCIO DE SÃO
PAULO, 1895, p. 10)

O “dispositivo” foi retratado no jornal A Justiça:

53
Imagem 14. A via telefônica dos prisioneiros da Casa de Correção

Um dos grandes méritos da publicação de O Commercio de São Paulo é o de


esclarecer como foi realizada da prisão dos antigos prisioneiros políticos. Assim, sabemos que
Luiz Bartholomeu, antigo secretário do ex-ministro Serzedello Correa, foi abordado na rua do
Ouvidor por um “secreta” e levado à repartição de polícia. “Não tive a curiosidade de indagar
por que me prendiam; ali mesmo talvez ninguém soubesse responder”, lamenta Bartholomeu.

Na prisão, Luiz Bartholomeu encontrou o cunhado de Rui Barbosa – Carlos Bandeira


– que havia sido preso ao desembarcar no Rio de Janeiro, vindo da Bahia. (O COMMERCIO
DE SÃO PAULO, 1895, p. 13). Como vimos no primeiro capítulo, Lício Barbosa e Ernesto
Barbosa – sobrinhos de Rui – também estavam presos na Correção. Os membros da família
do senador eram especialmente visados pela repressão florianista, tendo em vista o irmão de
Rui, Clímaco Barbosa, era um dos líderes da Revolta da Armada e de que o próprio senador
era suspeito de compactuar com os revoltosos. Seus movimentos durante a Revolta da
Armada contribuíam para aumentar tais suspeitas.

Em 1895, entre 16 de janeiro e 16 de março, também fazendo parte de uma literatura


de testemunho42 dos acontecimentos da Revolta da Armada, é publicada no Commercio de
São Paulo a série Notas de um revoltoso, supostamente escrita por um indivíduo que teve

42
“Literatura de Testemunho” é um conceito multidisciplinar que tenta dar conta das narrativas de cunho
memorialístico – ficcionais e não ficcionais – sobre experiências de repressão, em suas mais distintas formas e
contextos. O recurso ao testemunho torna-se mais dramático a partir dos acontecimentos do século XX,
notadamente o Holocausto, dado o número expressivo de vítimas e a extrema violência que o caracterizou.
Wilberth Salgueiro (2012) identifica 12 características que definiriam a “Literatura de Testemunho” dentre as
quais o desejo de se alcançar a justiça, a descrição de uma experiência coletiva de repressão/opressão e o fato de
estar profundamente vinculada à História.
54
participação ativa na revolta.43 Em um capítulo dedicado a Rui Barbosa, o autor da série
confirma que havia um plano para que o senador embarcasse no Aquidabã na noite do dia 5
de setembro de 1893, véspera da revolta. “Mas, por motivos que não posso explicar, não lhe
mandaram nenhuma condução, e ele viu-se obrigado a refugiar-se na legação chilena”. 44
Protegido pelos diplomatas chilenos, Rui foi escoltado até uma hospedaria, onde conseguiu
manter-se escondido das tropas de Floriano. No dia 14 de setembro, consegui refúgio com a
marinha inglesa, embarcando no navio Magdalena em direção ao Rio da Prata.45

Ao receber a notícia de que Rui estava no Magdalena, Clímaco Barbosa, seu irmão,
pede para que o Aquidabã libere um paquete que o leve até Rui. Chegando à embarcação
inglesa, Clímaco tenta convencer Rui a se transferir ao Aquidabã. O pedido é recusado a
princípio – “não sou revolucionário”, disse o senador. No entanto, em vista das preocupações
se seu irmão, Rui acaba concordando com a transferência. 46

O autor de Notas de um revoltoso descreve a estadia de Rui no Aquidabã:

“O sr, Rui foi recebido pelo sr. Custódio a bordo do navio chefe e ali
permaneceu três ou quatro dias. Mas – convém salientar este ponto importante
– durante todo o tempo que foi nosso hóspede, não interveio absolutamente no
plano de operações da esquadra e raras vezes conversou com o nosso
almirante e isto mesmo sore assuntos gerais, que nenhuma relação tinha com
o movimento revolucionário”47

O fato de Rui ter embarcado no Aquidabã era o suficiente para transformá-lo em


suspeito. Hélio Leôncio Martins, baseando-se no trabalho de Murilo Ribeiro Mendes sobre as
relações entre Rui Barbosa e a Marinha, assevera que a participação de Rui na revolta sempre
foi indireta, ainda que tentasse intermediar o levantamento de fundos para o esforço de guerra
dos revoltosos. Também trocava cartas frequentemente com suas lideranças, como Frederico
Lorena, Saldanha da Gama e Custódio de Melo. (MARTINS: 1997, p. 373-375). Infelizmente,
faltam documentos para esclarecer os motivos pelos quais seu irmão Clímaco Ananias
Barbosa foi participante ativo da Revolta de 1893 e da “conspiração” de 10 de abril 1892
contra Floriano, ocasião na qual foi desterrado com José do Patrocínio, Jacques Ourique, J.J.
Seabra e outros. No Rio de Janeiro, suas residências e seus parentes estavam sendo
constantemente vigiados. E é essa vigilância que leva seus sobrinhos à prisão. Ernesto

43
A base de dados da biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro atribui a autoria de Notas de um
revoltoso ao almirante Custódio José de Mello, apesar de, no volume, não constar dados de autoria.
44
Notas de um revoltoso, 1895, p. 87.
45
idem, p. 87-88.
46
idem, p. 89-90
47
idem, p. 90.
55
Clímaco Barbosa, que certamente estava sendo seguido pelos agentes secretos de Floriano, foi
preso no Largo da Carioca em 19 de setembro e libertado no mesmo dia, sem conhecer os
motivos de sua prisão. Foi novamente preso no dia 27 de setembro, acusado de “imprimir
boletins contra o governo”48 Essa acusação não era exatamente uma surpresa pois, como
vimos no capítulo 1, sua casa havia alvo de uma revista policial e, nesta ocasião, materiais
tipográficos foram apreendidos e dois ajudantes de seu pai foram presos. Em todo caso, foi
considerado inocente mas, mesmo assim, foi encarcerado, primeiro na Casa de Detenção e,
finalmente, na Casa de Correção.49

Seu irmão Lício Barbosa, como vimos no capítulo 1, havia sido acusado de tentar
explodir túneis da Estrada de Ferro. Foi preso no dia 24 de setembro, quando

“também foi denunciado de ter ido a bordo do Aquidabã falar a seu pai acerca
de providências a dar a família. O delegado Cesário de Melo, que o
interrogou, citando-lhe a fábula de La Fontaine – O Lobo e o Cordeiro –
declarou que ia pagar pelos parentes”50

Sabendo deste fato pelo livro Os mysterios da Correção, fica agora claro a que estava
se referindo Lício quando desenhou esta charge no jornal A Justiça:

Imagem 15. A referência à fábula de La Fontaine no jornal A Justiça é uma provocação de Lício Barbosa ao
delegado Cesário de Mello, que o interrogou citando a fábula O lobo e o cordeiro.

É Lício quem escreve o depoimento publicado na série publicada pelo Commercio de


São Paulo e, segundo sua narrativa, antes de ir preso na Casa de Correção, passou pela Casa
de Detenção, onde foi acusado por outros prisioneiros de estar tramando, junto com Nilo

48
Os mysterios da Correcção, p. 47-48.
49
idem, p. 49.
50
Os mysterios da Correcção, p. 50.
56
Deodati, uma fuga da prisão. Seus acusadores, após delatarem o suposto plano, foram
colocados em liberdade.

Alguns dos prisioneiros foram alvos da repressão florianista por terem efetivamente
participado da revolta. Tome-se como exemplo o caso de Ricardo de Biscuccia, que pertencia
ao exército austríaco. Biscuccia estava de férias no Brasil e decidiu participar da Revolta da
Armada, talvez por puro espírito de aventura. Biscuccia recebia ordens diretamente de
Custódio de Mello e acabou sendo preso no Rio de Janeiro, quando voltava de uma missão a
serviço da revolta em Pernambuco. Preso na Casa de Correção, “passou os dias a gritar, cantar
e imitar o miar do gato”51

Eduardo Tavares, acusado de ser partidário da revolta, conseguiu, com a ajuda da


esposa, uma audiência com o Floriano: a esposa ficava à frente do Itamaraty e às vezes ia ao
sítio particular do marechal para tentar conseguir a liberdade do marido. A persistência da
mulher teve resultado: Eduardo Tavares foi levado até o Itamaraty, onde explicou seu caso ao
marechal e declarou-se inocente das acusações que lhe imputavam. “Respondeu-lhe o
marechal dizendo que tinha ignorado a sua prisão, assim como não sabia da de muitas pessoas
que lhe eram totalmente desconhecidas”. 52 Dias depois de seu encontro com Floriano, foi
colocado em liberdade.

Serzedello Correia, ex-ministro de Floriano Peixoto, mereceu capítulo próprio. Como


vimos na introdução, Serzedello Correia e Custódio de Mello demitiram-se juntos do governo
Floriano Peixoto por discordarem da condução do processo de pacificação da Revolução
Federalista e por suas críticas no que diz respeito á política orçamentária adotada por Floriano
Peixoto. O depoimento publicado pelo Commercio de São Paulo é a reprodução de uma carta
que Serzedello enviou, de sua cela na Fortaleza da Conceição, ao jornal Gazeta de Notícias.
Nesta correspondência, Serzedello diz que se demitiu também de seu posto de tenente coronel
tendo em vista a situação atribulada do país, às voltas com a Revolta da Armada, da qual ele
não era adepto. Por esse ato, teve sua prisão determinada.

Após a série ser finalizada foi publicada em uma única edição conhecida,
comercializada a partir de 1895. Em nossa pesquisa encontramos 4 exemplares: um na
Biblioteca Nacional, um na Biblioteca da Marinha e dois na rede de bibliotecas da USP.

51
Os mysterios da Correcção, p. 31.
52
Os mysterios da Correcção, p. 62.
57
Imagem 16. Anúncio de venda do volume Os mysterios da Correcção (O Commercio de São Paulo, 21 de
fevereiro de 1895, capa)

A publicação das memórias da repressão florianista nos jornais é comemorada por


Joaquim Nabuco, que credita a melhora das condições na situação na cidade à posse de
Prudente de Morais como presidente da República. Em mais uma carta a Hilário de Gouveia,
datada de 23 de dezembro de 1894, Nabuco comenta:

“Com a presidência do Prudente de Morais melhorou muito a atmosfera aqui.


Já não é a dos cubículos da Correção, e os jornais, o do Brasil sobretudo, os da
tarde (Gazeta e Correio) e o Apóstolo já trazem as narrativas que podem achar
dos assassínios do Paraná, de Santa Catarina e das ilhas desta baía. Mas
estamos longe de ter saído de uma vez do Terror, existe ainda um sub-Terror,
um pressentimento triste de que os dias da ditadura hão de voltar, talvez
agravados pelo ressentimento deste interregno civil” (NABUCO: 1949, p.
253)

E, aproveitando-se do interesse dos jornais pelas memórias dos perseguidos políticos,


Hilário de Gouveia resolve contar sua história enviando uma carta ao jornal do Brasil, que a
publicou em duas partes53. Na carta, Hilário de Gouveia narra que havia participado, em maio
de 1893, da organização de uma comissão de ajuda aos feridos da guerra no sul do país,
enviando carta ao governo brasileiro pedindo um salvo-conduto para que pudesse enviar o
material médico para as zonas do conflito onde fossem necessários auxílios médicos e, além
disso, que o encaixotamento dos itens fosse presidido por um representante do governo. A
resposta do governo concedia o salvo conduto mas negava a nomeação do representante, “por
estar certo [que a comissão] não aproveitará desse ensejo para a remessa de materiais
bélicos”. Sentindo-se aviltados pela insinuação de que poderiam fornecer armas para os

53
A carta foi publicada no Jornal do Brasil em 18 e 21 de junho de 1895.
58
revoltosos, a comissão decide levar os materiais através do Uruguai, contando com a ajuda da
Cruz Vermelha. Por sua atuação na comissão, Hilário de Gouveia passa a ser alvo de boatos
de que dentro dos caixotes estavam sendo traficadas armas para a zona de conflito. 54 Um
inquérito foi realizado e as acusações provaram-se falsas. No entanto, antes da publicação do
inquérito, estourou a Revolta da Armada no Rio de Janeiro e Hilário de Gouveia estava
listado entre os suspeitos de colaboração com os revoltosos.

Na segunda parte da carta, publicada em 21 de junho de 1895, Hilário conta como foi
levado da Casa de Correção até a repartição de polícia, onde foi interrogado e depois enviado
a outra estação policial, onde ficaria detido. Ouviu falar que era acusado de passar armas e
munições aos rebeldes. Em sua cela, começa a preparar sua fuga, que ocorreria no dia 18 de
outubro de 1893. Conseguiu com um amigo francês a ajuda para conseguir asilo em Paris,
para ele mesmo e sua família.

O caso da fuga de Gouveia, na época em que foi noticiada pelas testemunhas do Rio
de Janeiro era mais emocionante. Tomemos como exemplo Coelho Netto, em crônica escrita
para o jornal Commercio de São Paulo em 22 de outubro de 1893:

“Dois homens que se deitaram a nado, como simples banhistas – um gordo,


outro magro, ambos de salva-vidas. O povo, na praia, começou a notar que os
nadadores eram da força de Byron que repetiu a proeza de Leandro [...]
Pasmo, estupefação, mudez... os homens tomavam pé de Villegaignon... não
eram enfermos, eram conspiradores. Senhoras persignaram. Essa travessia
arrojada coincide com a evasão do dr. Hilário de Gouveia, que se achava
detido no posto policial do Catete. O notável clínico deixou, na sala que
ocupava, a peruca e as barbas raspadas – pôs a calva à mostra e, abarbado com
a polícia, raspou-se. Dizem que era ele... o gordo.

Não garanto a veracidade do diz-se, mas garanto que ele se evadiu.

O delegado dr. Pinto Netto, a quem fora confiado o preso, foi demitido e preso
para averiguações.”55

Antes de enviar sua carta ao Jornal do Brasil em 1895, divertia-se com Joaquim
Nabuco acerca de sua fuga. Em carta enviada a Hilário em 6 de novembro de 1894, diz
Nabuco:

“Você com efeito é um Hércules. Fizeram-lhe uma lenda que não morrerá
mais, - a Cruz Vermelha, sua prisão, sua fuga, seus disfarces, a natação para
Villegaignon, a partida para a Europa, as façanhas do Juca, a formatura em
Paris, a conversão, os trabalhos aí, tudo isso junto, com o falso e o verdadeiro
misturado, deu para a nova lenda do Hilário, que ficará célebre. O que eu noto
54
Em outubro de 1893, uma acusação semelhante seria feita pelo jornal O Jacobino (JANOTTI: 1986, p. 72)
55
O Commercio de São Paulo, 25 de outubro de 1893, capa.
59
é que até antigos adversários seus ou pessoas pouco afeiçoadas falam agora
bem do ausente” (NABUCO, 1959, p. 247)

No próximo capítulo, veremos como as memórias tratadas até este ponto se articulam
com a produção literária de Coelho Netto e Lima Barreto.

60
Capítulo 3. As memórias da repressão florianista em Coelho Netto e Lima Barreto

A repressão florianista não passou despercebida dos literatos, que foram também
testemunhas dos eventos que se desenrolaram entre 1893 e 1895. Coelho Netto, escritor já
bem conhecido no final do século XIX, retratou a repressão florianista em seus romances –
notadamente em O morto – e em suas crônicas. Lima Barreto, que se estabelecerá como
escritor no decorrer das primeiras décadas do século XX, também utiliza suas memórias da
repressão florianista como matéria-prima de sua produção literária. Na produção dos dois
autores, podemos ver o entrecruzamento entre a História e a Literatura: algumas de suas
crônicas são registros dos acontecimentos ocorridos durante a Revolta da Armada de 1893;
suas ficções, por sua vez, mostram como a literatura pode se apropriar dos acontecimentos
históricos para o desenvolvimento de suas narrativas, e, neste sentido, “a irrealidade da ficção
pode ser questionada, porque ela é reveladora e questionadora das práticas cotidianas” (REIS:
2010, p. 78)

3.1. Coelho Netto e a repressão florianista

Os dissabores de Coelho Netto com a administração Floriano Peixoto começaram logo no


início do governo do marechal: pressionado pelo novo regime, Francisco Portela – governador
do Rio de Janeiro – renuncia ao cargo em dezembro de 1891, inevitavelmente ocasionando a
dispensa dos funcionários ligados à sua gestão, entre eles Olavo Bilac, Aluízio Azevedo,
Pardal Mallet e o próprio Coelho Netto (PEREIRA: 2016, p. 154-155). Não conseguindo
viver somente das letras, era comum que os escritores tivessem em um cargo no serviço
público uma fonte relativamente segura de subsistência, enquanto durasse o mandato de quem
os protegia.
Afastado de seu cargo, resta a Coelho Netto continuar a contribuir com os jornais em
1892, mas a uma distância segura do Rio de Janeiro, onde se temiam as perseguições
empreendidas pelos partidários do marechal: de Vassouras, escreve crônicas para O Paiz, só
voltando à capital após abril de 1892 (PEREIRA: 2016, p. 156-157). De fato, a situação de
Coelho Netto podia ser considerada perigosa por estar diretamente associado a jornalistas que
faziam férrea oposição a Floriano Peixoto, como Olavo Bilac, José do Patrocínio e Pardal
Mallet. Por sua conduta ante o governo, os três jornalistas foram punidos com o desterro.

61
No dia 29 de janeiro de 1895, o jornal Gazeta de Notícias anunciou – em artigo não
assinado – o lançamento de seu novo folhetim, O Morto, que circularia no jornal a partir do
dia 1 de fevereiro 56:
O MORTO

Não é um simples romance de invenção para sensibilizar o leitor a obra que,


com este título fúnebre vamos dar nas colunas desta folha, a partir de 1º do
mês próximo – é um perfeito jornal de aventuras, verídico e sincero, escrito
atropeladamente ora em cavernas negras, ora em ranchos, à claridade de
fogueiras, entre sertanejos, na precipitação assustada diante da fuga dos sabres
e das balas elegantes das Mannlicher que no dizer dos práticos, extraem a vida
limpamente e sem dor.
Firmino Caroba é quem escreve estas páginas e, como de letras apenas
conhece o cursivo das cópias porque nunca fez parte dos grêmios literários
nem lidou jamais com esta arte dificílima de traduzir ideias, tão fatigante, tão
desesperadora que até já tem levado à loucura grandes e perfeitos espíritos,
pede-nos que reclamemos para a sua prosa a benevolência dos mestres,
mesmo a dos discípulos que fazem dos botequins anfiteatros onde dissecam,
com gana, as letras pátrias.
Cheio de sustos e de cenas trágicas, de longe em longe perfumado por uma
gota sutil de sentimentalismo, este livro tem um grande merecimento que
ninguém contestará, por certo: aproveita aos sonhadores e aos crédulos – aos
sonhadores para que se não deixem levar pelos primeiros impulsos dos nervos
vibráteis e da imaginação desvairada; aos crédulos para que não vistam
pesados lutos nem mandem rezar missas pelo descanso da alma de um parente
sem ver o corpo desse parente já frio e repousado na paz confortável de um
túmulo.
Simão Caroba vive, e todavia, já o Senhor tem um adiantamento de 36 missas,
uma das quais com cerimonial ostentoso para garantia de um lugar no Paraíso
à pobre alma desventurada, e toda a família, pesarosa e pungida, com estes
tremendos dias de sol, arrasta crepes, recebendo abraços comovidos de
quantos se interessavam pelo futuro desse mancebo, tão cedo roubado ao
carinho dos pais e dos amigos.
Fuzilaram-no, escorcharam-no, duas vezes foi arrojado do cimo de penhascos
a profundos abismos; só a metralha repastou-se três vezes no seu corpo, e em
Curitiba, um degolador feroz, de um golpe cérceo arrancou-lhe a cabeça dos
ombros, depois de o haver forçado a cavar, descalço e algemado, a própria
sepultura, num pinheiral sinistro, onde corvos brigavam por sobre ossadas
humanas.
Entanto Caroba vive, mais forte e mais rosado. No retiro de seu exílio
pacientemente, com uma calma de mártir, colecionou todas as notícias dos
jornais relativas às suas várias mortes horrorosas, e são essas notícias que
fazem o grosso material do livro que vai comover e deliciar os leitores.
O Morto pode não ser uma obra magnificente de estilo como as que andam
por aí enaltecendo a literatura indígena mas, modesta e singela, há de viver,
pelo menos até o último dia de publicação, como um ligeiro estudo desse

56
O folhetim foi publicado na Gazeta de Notícias entre os dias 1 de fevereiro de 1895 e 28 de março de 1895. O
texto utilizado nesta dissertação é a edição publicada pela Biblioteca Nacional em 1994, baseada na primeira
edição em livro de 1898. Há pequenas discrepâncias entre esta versão e aquela de 1895, como troca de palavras e
mudanças de datas. Além das edições de 1898 e 1994, houve uma edição de O Morto publicada em Portugal em
1912.
62
produto da alucinação coletiva, tão comum nas massas, que se chama o
boato.57

A apresentação da série é exagerada, uma vez que alguns fatos narrados não vão se
materializar nos capítulos seguintes. Apresentar a série como um relato “verídico e sincero”
pode ser uma estratégia para captar a atenção do leitor (SELIGMANN-SILVA: 2003, p. 380).
E também já há a declaração de qual tema será objeto do romance: o boato. Dá, enfim, uma
boa impressão do absurdo envolvendo a narrativa de Firmino Caroba. Mas não é Caroba que
inicia o romance:

“Meu nome verdadeiro é Josefino Soares. A razão do incógnito que eu trouxe,


durante meses, juntamente com uma vistosa barba ruiva, que repontou em meu
rosto com a exuberância de sarçal bravio em terras esquecidas, o leitor achará
nestas páginas simples, que, vagarosamente, escrevi à sombra de árvores, em
remoto desterro, enquanto e metralha arrasava a terra hospitaleira onde, numa
tarde tépida de junho de 1863, meu pai celebrou, contente, o natal do seu
primeiro filho, que sou eu.” (COELHO NETTO: 1894, p. 3)

Após essa apresentação e de lembranças de sua infância, saberemos os dissabores que


vitimaram Josefino, e daqui em diante quem assina o folhetim é A.R. (Anselmo Ribas, um dos
pseudônimos de Coelho Netto). De casamento marcado, o protagonista recebe de sua família
e de seu cozinheiro as primeiras notícias da Revolta da Armada, mas não dá muita atenção a
elas uma vez que os jornais que recebera ainda não traziam informes sobre o evento. No
entanto, ao ir ao armazém fazer um telefonema, para obter mais informações, ele se assusta
com o congestionamento das linhas, pois conseguia ouvir a confusão de vozes tentando se
comunicar: “Voltei para casa comovido, prevendo desgraças, morticínios: sangue a correr
pelas sarjetas, a cidade em ruínas, corpos mutilados sob escombros e pelo ar, cruzando-se,
com uivos sinistros, granadas estrepitantes”. (COELHO NETTO: 1994, p. 23)

Josefino vai ao centro do Rio de Janeiro e testemunha o burburinho na cidade: pessoas


assustadas, notícias desencontradas, boatos sobre granadas, ataques dos marinheiros
sublevados da Armada, uma possível restauração da Monarquia. Seu guarda-livros, Forjaz, é
uma de suas fontes de notícias:

“[...] era o Forjaz. Veio a mim, esgueirando-se com esforço, e suado e


purpúreo, e, muito em segredo, soprou-me:

-Que havia muita gente suspeitada, homens de dinheiro; que até bancos
estavam comprometidos. Já a polícia andava em campo, farejando casas,
57
Gazeta de Notícias, 29 de janeiro de 1895, capa.
63
espionando. Que eu não falasse, que não aventurasse opinião, porque a cidade
estava cheia de secretas, até mulheres. E anunciava: que ia ser declarado o
estado de sítio, que o governo estava disposto a resistir, contava com o
exército e a guarda nacional.” (COELHO NETTO: 1994, p. 31)

Devidamente alertado por seu funcionário, Josefino se dirige ao Café Londres, na rua
do Ouvidor e, vendo o estabelecimento lotado, pede para sentar-se à mesa de alguns estudante
que conversavam sobre a revolta e declaravam que estavam prontos para pegar em armas pelo
marechal Floriano. Quando os rapazes vão embora, Josefino tem a impressão de que está
sendo observado:

“Foi então que vi, na mesa fronteira, dois homens que me espreitavam: um
magro, encaveirado, lívido, cofiava lentamente a barba rala, balançando a
perna esguia, de olhos no teto; o outro, um colosso vermelho, de pince-nez,
ventrudo, grandes bigodes já grisalhos, caídos em duas pontas até a papada
rubra e úmida. olhava-me com insistência, carrancudo, e notei que, de quando
em quando, segredava alguma coisa ao tísico. Vieram-me à memória as
palavras de Forjaz: ‘Há muita gente suspeitada, a cidade estava cheia de
secretas’. Tremi.” (COELHO NETTO: 1994, p. 33)

Refletindo que nada tinha a temer, Josefino percebe que os homens continuavam
olhando para ele e decide sair às pressas do café. Dias depois do ocorrido, depois de haver
visto a foto de um de um dos homens do café em um jornal, Josefino narra o episódio a seus
conhecidos. Um deles, Luis Farinha, tenta tranquilizá-lo.

Em uma nova cena, já de volta a seu escritório, Celestino, seu protegido, pede para se
alistar em um batalhão patriótico florianista. Inicialmente, tenta convencer o menino de 16
anos a não se envolver no conflito. Por fim, diante da insistência do menino, acaba cedendo.

Neste ponto da história, há um paralelo com aquilo que Coelho Netto testemunhava na
realidade da Revolta da Armada: o alistamento de meninos nos batalhões patrióticos. Por
iniciativa própria ou de seus pais, vários garotos ingressaram nas fileiras do florianismo.

E é curioso que o Celestino do romance tenha tomado sua decisão precisamente a


partir da leitura dos jornais, que quase diariamente divulgavam listas de voluntários nos
corpos patrióticos, o que sugere a existência de uma poderosa propaganda pró-governista
cujos frutos eram novas adesões ao esforço de guerra florianista. É difícil quantificar quantos
outros – crianças e adultos – tomaram a mesma decisão de Celestino. Mas, de fato,
acompanhando as edições de O Tempo e de O Paiz, nota-se que quase diariamente eram
noticiadas listas de civis que se juntavam às forças do marechal.
64
A carta de um pai a seu filho, publicada na capa de O Tempo em 13 de fevereiro de
1894, é ilustrativa do apoio à participação nas forças leais a Floriano Peixoto:

“Meu prezado filho. – A tua carta de 9, dia nefasto e ao mesmo tempo glorioso para todos em
cujo peito bate um coração sinceramente patriótico e republicano, foi um bálsamo que veio
suavizar as dores que há três dias me acabrunhavam e torturavam a existência. Não foste
ferido, porém o meu amor de pai não me leva a encher-me de júbilo, quando tantos de teus
companheiros foram sacrificados [...] Primeiro a pátria, depois a família. Republicano dos
antigos tempos, não me opus a que, conquanto menor, te alistasses entre os defensores da
58
legalidade.”

O destinatário da carta era Oscar da Silva Ramos, estudante, e o “dia nefasto” a que
seu pai se refere, 9 de fevereiro de 1894, foi o dia do Combate da Armação, em Niterói, um
dos mais violentos da Revolta da Armada.

O jornal O Paiz, por sua vez, também tem sua narrativa de uma criança-soldado: o
menor Turíbio. A matéria publicada em 12 de fevereiro de 1894 – 3 dias após o Combate da
Armação - mantém os leitores informados dos acontecimentos em Niterói. Na coluna Revolta
Restauradora: informações e pormenores foi transcrita uma carta datada de 10 de fevereiro,
dia seguinte ao combate da Armação, mencionando mais crianças atuando no conflito:

“Felizmente, as crianças que se meteram nos combates nada sofreram. Esses


tenros heróis, vivos e ligeiros, avisavam os soldados quando descobriam
marinheiros emboscados. Vivia com os Acadêmicos na bateria da Mangueira,
no morro da Armação, um menino de 12 anos, chamado Turíbio, segundo
tomo do célebre Trinta-réis59. Era copeiro e detonava os canhões quando os
rapazes cediam aos seus rogos. Quando a força dessa bateria, cedendo ao
número invasor, teve que retirar-se, o pequeno acompanhou-a, mas não se
esqueceu de carregar consigo o detonador e a caixa das espoletas. A essa
criança deve-se pois o fato dos marinheiros terem dado apenas quatro tiros
para a cidade.”60

A atuação de Turíbio rendeu ao menino status de celebridade:

“Começam a chegar as homenagens públicas em favor do menino Turíbio, o


pequeno herói que acompanhou as forças legais em ataque à Armação,
conduzindo um detonador de artilharia e a caixa de espoletas necessárias à
continuação do fogo, que devia concluir pela vitória republicana”61

Na mesma edição, é publicada a “patriótica carta” que acompanhou uma das primeiras
doações para Turíbio:
58
O Tempo, 13 de fevereiro de 1894.
59
Teremos oportunidade de falar de Trinta-réis quando tratarmos da obra de Lima Barreto.
60
O Paiz, 14 de fevereiro de 1894, capa.
61
Idem.
65
“Incluo a insignificante quantia de 50$ destinada ao herói niteroiense, que tão
sublimes exemplos tem dado, ajudando eficazmente a defesa da República nos
lugares mais arriscados. Ainda agora, se não fosse esse menino-herói, cuja
calma extraordinária tanto contribuiu para a vitória dos bravos soldados da
República, conduzindo o detonador e as espoletas. [...] Que antítese! Uma
criança desprotegida torna-se herói defendendo a legalidade [...]”62

Voltando ao romance, dias após o alistamento de Celestino, outro fato pega Josefino
de surpresa: recebe uma carta de Forjaz, seu funcionário, que acreditando estar sendo
perseguido escondeu-se com a amante Mary. De fato, Forjaz havia sido denunciado à polícia
e estava sendo procurado pela cidade, sendo preso dias depois.

Encontrando-se com Josefino, após a prisão de Forjaz, Mary explica o motivo da


prisão do amante:

“Forjaz era indiscreto, disse, falava demais, às vezes até mentia. Tinha sempre
uma notícia a dar: anunciava o movimento da esquadra, conhecia todos os
planos dos revoltosos e, em toda a parte, dizia que o governo estava perdido,
que não podia resistir muito tempo, que o povo, com o bloqueio, privado de
gêneros, tomaria o partido dos revoltosos, que os estrangeiros protegiam
francamente a esquadra.

Nos teatros, nos botequins, em toda parte falava sem reserva, mostrando
cartas, citando nome. Dizia-se indiferente; lá fora, apesar das recomendações
que sempre lhe fazia, tinha orgulho de apresentar-se como federalista. Á tarde,
no cais, quando começava o canhoneio, não se fartava de elogiar o Aquidabã,
entusiasmava-se, anunciando sempre os destroços dos couraçados nos fortes.
[...]

O certo, porém, é que escrevia cartas. Não sabia se as mandava, mas, uma
noite, arrancara-lhe uma das mãos, muito longa, dirigida a um revoltoso, Pina,
na qual dizia que o melhor ponto para desembarque era a praia do Russell.
Queimara-a. Escrevia muito, mas não mandava as cartas a destino algum, ela
tinha certeza porque, em uma das gavetas do étagère da sala de jantar, uma
manhã, encontrara mais de seis, umas dirigidas a oficiais da marinha, outras a
um jornal do Porto. Pura mania. Nem ele conhecia oficiais de marinha.
Escrevia à toa.” (COELHO NETTO: 1994, p. 76-77)

Forjaz era, então, só um homem sem relações com a revolta que tinha mania de
escrever cartas aos revoltosos, mas que nunca eram enviadas a ninguém, ficavam guardadas
em sua casa. No entanto, algumas dessas cartas enlouquecidas caíram em poder da polícia, e
uma delas implicava Josefino Soares. Ele é informado do fato por Julião, um conhecido seu
que trabalhava na polícia. Julião relata a Josefino:

“Entre as cartas do Forjaz, descobertas pelo Vargas, há uma que é um terrível


libelo contra ti e contra um Sousa, de uma loja de couros. Diz ele que todo o
comércio está ao lado dos revoltosos, não só estrangeiros, muitos nacionais. E

62
Idem
66
cita-te como dos mais fervorosos partidários de Custódio. Diz que tens grande
entusiasmo pelo Gumercindo, que não o tratas senão por ‘Napoleão dos
Pampas’. Transcreve palavras tuas; que se fosse necessário qualquer auxílio
não hesitaríeis um instante, tu e o Sousa. Que quiseste mandar para bordo dois
empregados teus; que expulsaste um porque pediu para alistar-se em um
batalhão patriótico. Essa carta era dirigida a um Valério, de S. Paulo. Tive-a
na mão, li-a toda, no gabinete do chefe, onde trabalho agora. Já foi expedida
ordem de prisão contra o Sousa e contra ti também, com certeza. Não tens
tempo a perder. – E, em tom de censura: - que diabo! Pois tu, Josefino, um
rapaz colocado, com um futuro brilhante... metido em porcarias! – rematou
Julião.” (COELHO NETTO: 1994, p. 84)

Embora Josefino explique a Julião que o conteúdo da carta de Forjaz é fantasioso, é


aconselhado pelo policial a esconder-se em Minas Gerais. Para isso, Julião lhe concede um
passaporte – com o nome falso Firmino Caroba – que permitirá que Josefino viaje em
segurança para Minas, onde tem conhecidos que poderão dar-lhe abrigo.

O próprio Coelho Netto, em uma das crônicas que escreveu ao jornal O Commercio de
São Paulo, escreveu sobre a necessidade de viajar para longe do Rio para evitar a sensação de
vigilância constante. Mas, segundo Coelho Netto, era impossível viajar sem ter que antes
tomar algumas providências:

“Há na polícia algum meio de transporte? Perguntarão: o passaporte, meus


senhores. Sem o visto do chefe, ninguém vai hoje ao campo, e, sem insulto,
pode-se dizer de todos que andam correr prados – que deixaram o retrato na
polícia, não a fotografia nem o retrato, à maneira de Plutarco – a silhueta
apenas, uma silhueta pochade, estilo Gavarni. Imaginem... Vi ontem o
passaporte de um migo que vai atirar as rolas nos campos de Minas. Ele é um
famoso exemplar de homem, de fortes músculos, bastos cabelos, barba
fenomenal, bigodes assombrosos e o mais em proporção... pois no passaporte
havia: ‘Fulano, tantos anos, brasileiro natural de..., viúvo, olhos negros (são
castanhos), barba abundante, bigode pintado, moreno, estatura regular, etc.
etc,’”63

A partir da crônica de Coelho Netto, podemos ver o quão importante para seu
protagonista ter um amigo trabalhando na polícia: a facilidade de conseguir um passaporte
falso que permitisse uma viagem segura para Minas Gerais. E aqui cabe um adendo: o estado
de Minas Gerais não estava abrangido pelo decreto do estado de sítio. Logo, era um lugar
relativamente seguro para manter-se incógnito durante a revolta. E foi lá que se refugiou, em
1893, Olavo Bilac.

63
COLEHO NETTO, Correio Fluminense. IN: O Commercio de São Paulo, 7 de dezembro de 1893.
67
Bilac, tal como Josefino Soares, aproveita seu “exílio” para escrever uma obra: o livro
Chronicas e Novellas, publicado em 1894 no Rio de Janeiro. No prefácio do livro, Bilac narra
sua provação:

“Durante um estado de sítio, - devia ser o título deste volume de crônicas


ligeiras e novelas fúteis. De fato, durante um estado de sítio foi ele escrito, dia
a dia quase, de cidade em cidade de Minas, ao sabor das impressões de
momento, - enquanto, no Rio, a Casa de Correção se enchia, e a polícia secreta
reinava, senhora absoluta.

Em outubro de 1893, a esquadra revoltada sitiava o porto do Rio de Janeiro.

Comandava-a em chefe o almirante Custódio de Mello.

Haveria razão para que o autor deste livro fosse suspeitado de convivência
com o almirante rebelde?

A 10 de abril de 1892, às 11 da noite, como uma revolta, um motim, ou


qualquer cousa semelhante houvesse rebentado no Rio, vi-me preso,
interrogado por quatro horas a fio na secretaria de polícia, remetido primeiro
para o quartel dos Barbonos, depois para o Arsenal de Guerra, depois para
bordo do Aquidaban e, finalmente, para a fortaleza da Lage, de entre cujas
muralhas fiquei a ver navios durante quatro meses.

Ao cabo desses quatro meses penitenciários, soltaram-me. Porque me


soltaram? Porque me prenderam? Essas duas interrogações ainda hoje se me
recurvam sobre a alma, sem resposta.

Sem resposta satisfatória, entenda-se. Porque, enfim, nunca eu me metera em


conluios de conspiradores, nem em qualquer maquinação politica. Mas havia
para o caso uma explicação: é que, achando graça no almirante Custódio –
então em pleno fastígio, em plena apoteose, adorado como um fetiche fardado
– me permitira eu a liberdade de parodiar, em louvou seu, a cançoneta En
revenat de la révue, com que se celebrizara em França o nome de Boulanger.
Paguei esse crime com uma vilegiatura forçada de quatro meses, em alto mar.

Os tempos correram.

Deixando o poder, pusera-se o almirante em campo contra o governo. Aqueles


que, meses antes, o adoravam incondicionalmente, agora incondicionalmente
o insultavam.

E eis-me de repente apontado de novo como conspirador. E os cachorros


policiais, de novo, desataram a latir em torno de mim. “Cria a fama e deita-te a
dormir”, diz um prolóquio. Criei fama de conspirador, mas não me deitei a
dormir: comecei a ser indigitado como um carbonário, um ente perigoso e
fatal.

Que fazer? Havia estado de sítio.

Inimigos velhos, cujo ódio incubado anseia por uma válvula, aproveitam a
suspensão de garantias para dar pasto abundante e fácil à sua vingança. E daí
as denúncias, as intrigas, as calúnias. E daí a prisão, o vexame, a tortura.”
(BILAC: 1894, p. 9-11).

68
Bilac relembra em seu prefácio todas as perseguições de que foi vítima desde o início
do governo Floriano Peixoto: sua implicação na “conspiração” de 1892 e sua consequente
prisão, a acusação de que era um simpatizante de Custódio de Mello durante a revolta de
1893, a vigilância policial de que foi alvo. É impossível ler o desabafo de Olavo Bilac no
prólogo de sua obra e não ver ressonâncias de sua narrativa na ficção de Coelho Netto, que foi
publicada no ano seguinte ao de Bilac. Ambos – Bilac e Soares – são acusados de fazerem
parte da revolta de 1893 e se escondem em Minas Gerais onde escrevem seus livros.

Mas a estadia de Bilac em Minas Gerais não foi tão tranquila quanto ele faz parecer
em seu prefácio. O jornal O Paiz, em 28 de fevereiro de 1894, transcreve uma notícia
veiculada em Gazeta de Notícias sobre o Bilac, que nem parece estar fugindo do governo
florianista:

“Da redação da Gazeta de Notícias: ‘Recebemos ontem o seguinte telegrama:


Ouro Preto, 23 – O povo de Ouro Preto intimou Olavo Bilac a retirar-se da
capital no prazo de 12 horas em frente ao grande hotel onde está hospedado,
com a presença do chefe do governo interino, autoridades civis e policiais.

Motivou esta atitude do enérgico povo o procedimento violento de Olavo


Bilac, esbofeteando e cuspindo na face de um velho e respeitável agricultor
mineiro, na noite do segundo dia de Carnaval, no hotel Martinelli, sob o fútil
pretexto de desafronta de calúnia contra a sua dignidade pessoal.

O povo em massa, perto de 3000 pessoas, entre vivas à sociedade ouro-pretana


e ao povo mineiro, exigiu do proprietário do hotel Martinelli satisfação em
afronta aos brios de Minas. O proprietário deu explicação ao povo. Em atitude
digna dispersou-se e espera o resultado da intimação”.64

Os prisioneiros da Casa de Correção – que liam O Paiz, um dos jornais que não
haviam sofrido censura do governo Floriano Peixoto entre 1893 e 1894 – fizeram menção ao
incidente envolvendo Bilac em uma charge publicada no volume II do jornal A Justiça:

64
O Paiz, 28 de fevereiro de 1894, p. 4.
69
Imagem 17. Olavo Bilac fugindo do linchamento em Ouro Preto. Jornal A Justiça, 1894

Ao contrário de Bilac, que oscila entre a tranquilidade e fortes emoções em Minas


Gerais, o protagonista de O morto está entediado. Para animá-lo, Amaro, um de seus
anfitriões, organiza uma roda de caxambu no terreiro da fazenda onde Josefino está
escondido:

“Tudo, porém, concorria para aumentar o meu tédio. E nessa noite rumorosa e
alegre, mergulhando morosamente nos lençóis perfumados, saiu-me, por entre
bocejos, esta exclamação do meu nojo: ‘Antes o cárcere! Isto é deveras
patriarcalmente besta. (COELHO NETTO: 1994, p.121).

Para aliviar o tédio, Josefino recorre à leitura dos jornais que chegam do Rio de
Janeiro e que eram compartilhados pelos outros habitantes da fazenda. É Amaro que chama a
atenção de Josefino para uma das notícias:

“Entre outros revoltosos civis que se refugiaram nos navios da esquadra,


consta que se acha Josefino Soares, comissário de café, estabelecido na Rua
dos Pescadores. Amigo dedicado de Custódio de Mello, trabalhava com
entusiasmo no comércio, procurando levantar capitais para auxiliar os
rebeldes, quando a polícia teve denúncia de seus manejos. Avisado em tempo,
conseguiu iludir a vigilância, fugindo. A princípio dizia-se que seguira para a
Europa, a bordo do Nile, mais tarde constou que se achava em Minas. Hoje,
porém, podemos garantir que esse heroico brasileiro, que assim fomentou o
crime, assalariando os assassinos de seus irmãos, acha-se a bordo do Uranus
com outros próceres do sebastianismo” (COELHO NETTO: 1994, p. 124).

70
Atordoado pelas meias-verdades contidas no artigo do jornal, Josefino pensa em ir ao
Rio de Janeiro, mas é impedido por Amaro. No entanto, mais tarde, refletindo sobre a notícia,
Josefino ficou envaidecido com sua fama na capital:

“Transportado, enlevado, fiquei gozando esse heroísmo imaginário que me


atribuía a folha, em primeira notícia entrelinhada e extensa. E a minha
imaginação povoou-se de sonhos como no delírio do cavaleiro triste do
poema. [...] Ficou-me na alma, como lenitivo consolador, a doce vaidade.
Amigos e conhecidos deviam ter tido surpresa calcada de inveja lendo essa
ruidosa notícia. Entre a gente pacata do comércio meu nome devia andar de
boca em boca, pronunciado com respeito quase religioso” (COELHO NETTO:
1994, p. 125-126).

Os dias de tédio foram mais uma vez interrompidos por uma notícia chocante:
Josefino havia sido fuzilado em Sepetiba, com seus companheiros de revolta. Lavínia,
também sua anfitriã, traz a notícia:

“Dizem que o senhor estava a bordo do Uranus, um nome assim, papai


sabe.[...] Esse navio, tentando forçar a barra, foi pressentido pelas fortalezas
que o crivavam de balas, estragando as máquinas de modo que não puderam
funcionar e foi com recurso de uma pequena vela que ele conseguiu fazer-se
ao largo, ficando fora do alcance dos fogos das baterias. Mas no momento do
combate, muitos dos que iam a bordo precipitaram-se n’água; uns ganharam
as praias a nado, outros em escaleres e entre eles o senhor. Mas as forças de
terra, que guardavam o litoral, não deixavam as embarcações atracar e os
poucos que conseguiram chegar às praias foram fuzilados. O senhor e mais
cinco marinheiros... morreram em Sepetiba.” (COELHO NETTO: 1994, p.
159)

Segundo Lavínia, apesar de esta notícia não ter sido publicada nos jornais, todos no
Rio de Janeiro a estavam espalhando. “Afirmam até que o seu cadáver foi reconhecido por um
oficial seu amigo, um Brito” (COELHO NETTO: 1994, p.159). Amaro, que também ficara
sabendo do boato, acrescentou os detalhes:

“Já estavas mais morto do que vivo, porque os soldados divertiam-se


espetando-te com as baionetas quando, uma manhã, foram buscar-te à prisão
entregando-te uma enxada. A coisa devia ser feita num campo deserto e lá
seguiste com a soldadesca. Chegando ao tal lugar, mandaram que te despisses
e que, de joelhos, cavasses a tua sepultura. Pediste, imploraste, ofereceste
fortunas, mas a gentinha era terrível e não tiveste remédio senão fazer o
buraco. Quando ficou bem fundo, um soldado empurrou-te e todos
descarregaram as armas sobre o teu corpo. Já se vê que, despois disso, não
podias sair da cova... E lá estás, com um pouco de terra em cima, tu e os
marinheiros.” (COELHO NETTO: 1994, p.161)

Alguns dias após descobrir que estava “morto”, Josefino Soares recebe um pacote de
cartas do Rio de Janeiro. A primeira que ele lê é a de sua mãe, que não havia acreditado nos
boatos de sua morte. A carta continua narrando que Forjaz está preso e que Celestino, seu
71
afilhado, morreu no combate da Armação, conflito que praticamente deu fim à Revolta da
Armada no Rio de Janeiro. A carta de Anália, sua noiva, dá detalhes da morte do menino:

“O outro, o tal pequeno, lá se ficou picado pelas machadinhas dos


marinheiros. Eu, se lá estivesse, tinha-lhe esfregado as orelhas e, a esta hora,
não andaria a pobre mãe por aqui, como uma louca, a pedir que, ao menos, lhe
digam onde está enterrado o filho. Vá lá saber.” (COELHO NETTO: 1994,
p.179)

Como a revolta tivesse terminado, Josefino volta ao Rio de Janeiro e é reconhecido na


Rua do Ouvidor, onde as pessoas que o conhecem ficam espantadas por vê-lo vivo “e um
jornal anunciou, com pilhéria, que se achava na terra um dos fuzilados de Sepetiba”
(COELHO NETTO: 1994, p.193)

O que aconteceu com Josefino Soares é o mesmo que se deu com José do Patrocínio,
como vimos no capítulo 2 desta dissertação: testemunhas haviam declarado que Patrocínio
tinha sido fuzilado em Sepetiba. Seus amigos no Rio de Janeiro ficaram espantados quando
ele foi visto andando pelas ruas da cidade. De fato, a felicidade foi tanta que mandaram rezar
uma missa de ação de graças pelo seu reaparecimento:

Imagem 18. Anúncio da missa de ação de graças pelo reaparecimento de José do Patrocínio – Gazeta de
Notícias, 21 de dezembro de 1894, p. 5)

Com relação ao romance O morto, podemos ver que os episódios envolvendo dois
amigos de Coelho Netto – Olavo Bilac e José do Patrocínio – estão representados no
romance: Josefino Soares aparecia, então, uma mescla dois amigos de Coelho Netto. Hoje, é
fácil identificar Bilac e Patrocínio em no romance: as biografias dos dois literatos e do próprio
Coelho Netto contam suas desventuras durante a repressão florianista à revolta da Armada. Os
trabalhos que se debruçaram sobre esses autores pontificam as identidades entre o
personagem fictício de Coelho Netto e seus amigos. Três trabalhos, em especial, enfocam essa

72
identidade: a dissertação de Ana Carolina Feracin da Silva 65, de 2001; o artigo de Luciana
Murari66, de 2011; e, mais recentemente, de 2016, a tese de Márcia Gonçalves67. No entanto, é
comum que os autores que trabalhem com O morto desconheçam o fato de que sua edição
princeps é aquela publicada em 1895 no jornal Gazeta de Notícias. Deslocar a publicação
para 1898 é desconsiderar o real contexto em que o romance de Coelho Netto apareceu pela
primeira vez: certamente o romancista estava a par da série Fuzilados em Sepetiba, publicada
no Jornal do Brasil entre o fim de 1894 e o início de 1895. Vimos que a publicação da série
foi, por sua vez, influenciada pelo súbito reaparecimento de Patrocínio, o que levou o jornal a
enviar um repórter a Sepetiba para averiguar os fatos que realmente ocorreram naquela
localidade. Os leitores contemporâneos de O Morto possuíam essas referências e podiam
reconhecer de imediato a paródia à situação de Patrocínio. Sobre Olavo Bilac, quem quer que
lesse a apresentação de seu Chronicas e Novellas também poderia reconhecê-lo em O Morto.

Josefino Soares sintetiza sua obra da seguinte forma: “Na guerra, o pior inimigo é o
boato. Fugi dele mais depressa do que duma hoste aguerrida e má.” (COELHO NETTO: 1994
p. 195).

Além dos fatos que prejudicaram seus amigos, Coelho Netto tem mais um motivo para
se preocupar com boatos: ele mesmo quase foi vítima de um mal entendido. Durante a
repressão florianista no Rio de Janeiro, o escritor estava colaborando com dois jornais: O
Paiz, do Rio de Janeiro, declaradamente florianista, e o Commercio de São Paulo.

As crônicas publicadas em O Paiz vinham assinadas por N, o narrador por trás do qual
se escondia Coelho Netto. Essas crônicas – Bilhetes Postais – foram publicadas em livro pela
pesquisadora Ana Carolina Feracin da Silva. 68 A escolha por ocultar sua real identidade
decorria de suas notórias relações de amizade com inimigos do regime florianista (PEREIRA:
2016, p. 161). Segundo Ana Carolina Feracin (2001), as crônicas assinadas por N no período
da Revolta da Armada eram caracterizadas pela neutralidade de Coelho Netto, que evitava,
por prudência, expor suas opiniões.

65
SILVA, Ana Carolina Feracin. Literatos e jacobinos nos primeiros anos da República (1889-1895).
Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 2001.
66
MURARI, Luciana. “Sob o tênue véu da ficção”: três eventos da história brasileira nos romances de Coelho
Netto. IN: Navegações. v. 4, nº 1, jan./jun. 2011, p. 26-39.
67
GONÇALVES, Márcia Rodrigues. O Rio de Janeiro de Coelho Netto: do império à República. Tese de
doutorado, UFRGS, 2016.
68
Agradeço ao professor Leonardo Affonso de Miranda Pereira pela indicação deste material.
73
No Commercio de São Paulo, por outro lado, sua coluna Correio Fluminense é
assinada em seu próprio nome. Nelas, o escritor dava notícias bastante detalhadas do que
estava acontecendo na cidade durante a revolta de 1893, atuando como uma espécie de
“correspondente de guerra”. Um de seus temas preferidos nessas crônicas são os boatos que
correm o Rio de Janeiro. No entanto, alguns leitores tomam por fatos reais os boatos relatados
por Coelho Netto, o que motiva o escritor a pedir uma retratação ao jornal Cidade do Rio:

Ocorrências

Escreve-nos o nosso ilustre amigo Coelho Netto:

“Ilmo. Sr. redator. Li, com surpresa, a transcrição acéfala que ontem foi feita
na folha que dirigis de um trecho da minha última correspondência para o
Commercio de São Paulo. Acéfala, disse e vou explicar-me: as notícias
contidas no trecho transcrito iam subordinadas ao título BOATOS porquanto
foram colhidas através da palestra das ruas, de grupo em grupo, e escritas à
pressa com a ressalva do título. Retificando o lapso involuntário, alijo dos
meus ombros qualquer suspeita de partidarismo que se me queira emprestar.
Sou de V.S. Coelho Netto”69

Vendo o risco que corria, e o rumo que a repressão florianista estava tomando no Rio
de Janeiro, Coelho Netto certamente deve ter se arrependido de ter escrito em sua primeira
crônica que “fundo-me grandemente em boatos mas, como não tenho tempo de joeirar, deles
me sirvo porque aceito o que por aqui se diz: ‘no fundo de todo boato há uma centelha de
verdade’”. 70

As feições de que se revestiam a repressão florianista, como o recrutamento forçado,


também eram testemunhadas e relatadas por Coelho Netto em sua crônica:

“O recrutamento, apesar do aviso do ministro da Justiça, continua a ser


praticado pela guarda nacional. Ontem, um pobre negrinho berrava entre dois
soldados, na rua do Catete, que ‘tinha que fazer compras para a patroa’.
Tomaram-lhe o samburá e deram-lhe uma carabina”.71

Também chama a atenção de Coelho Netto a insistência em apontar Sebastianistas em


todos os lugares:

69
Cidade do Rio, 21 de setembro de 1893
70
Correio Fluminense, IN: O Commércio de São Paulo, 10 de setembro de 1893. A crônica foi escrita no dia 6
de setembro, data de início da revolta.
71
Correio Fluminense, IN: O Commércio de São Paulo, 27 de setembro de 1893. A crônica foi escrita em 24 de
setembro.
74
“Em Tarascon72 diz toda a gente à boca cheia que viu o fóssil terrível
chamado pelos sábios jacobinos sebastianista. [...] eu só não tive ainda o
prazer de olhar o bicho. Sou míope mas, como a revolução pôs em campo mil
aparelhos óticos dos quais alguns tão poderosos que fazem a gente ver estrelas
ao meio-dia, eu já podia ter obtido alguma coisa dos meus olhos, pois, apesar
das objetivas, ainda não tive a fortuna de ver o objeto dos meus sonhos. Por
isso estou convencido de que o tal animal não passa de uma alucinação das
vistas jacobinas. [...] Decididamente tenho a vista muito curta ou Tartarin vê
demais. A verdade é que não consigo pôr os olhos em cima de um
sebastianista daí, quem sabe? pode ser que se esteja dando comigo o que se
deu com o homem da fábula que não viu a serpente a seus pés. Já ouvi
afirmarem que são constantes as reuniões de restauradores... [...]O brasileiro é
mau conspirador porque é gárrulo. Sai do conciliábulo com um plano
tenebroso e... conta à mulher; a mulher, no dia seguinte, previne metade da
vizinhança e o marido, em segredo, previne a outra metade”73

Na crônica escrita em 4 de dezembro, Coelho Netto já é mais explícito sobre o seu


descontentamento com as ações do governo de Floriano Peixoto, notadamente o prolongado
estado de sítio que vigora no Rio de Janeiro:

“Os governos, nas grandes convulsões políticas, costumam lançar mão de um


revulsivo enérgico: o estado de sítio. Aplicam e o mal dece prontamente mas...
conosco por exemplo – vai já para três meses que estamos com essa medicina:
esgota-se a dosagem, a febre continua, nova fórmula, com mais algumas
gramas de pressão, de vigilância; ajunta-se um pouco mais de agentes, mexe-
se bem e dá-se a beber... e o país bebe. Imaginem um desgraçado que,
sofrendo de um embaraço gástrico, fosse obrigado a tomar purgantes durante
uma semana, a fio – se não morresse do embaraço, da medicina não escapava,
certamente. É o nosso caso. Quando pensamos que, no dia seguinte, teremos
liberdade para conversar, para caminhar, para sorrir, para... nova receita: tome
isso e dieta, a mesma. Dieta: boca fechada, olho vivo, nada de comentários,
nem queixas, nem gemidos, nada. É horrível!” 74

O escritor voltaria ao tema do sebastianismo em crônica publicada após a adesão de


Saldanha da Gama:

“Tive sempre como uma blague inofensiva a ideia de restauração;


sebastianismo para mim era uma palavra vã; hoje porém estou convencido do
contrário, o sebastianismo é um fato. o Almirante Custódio de Melo,
acrescentando as ideias do pacto de Saldanha, perdeu muito no conceito do
público. Como revolucionário republicano aceitavam-no, havia mesmo
fanáticos que não trepidavam em dizer francamente que eram custodistas;
hoje, porém, estes que ainda aplaudiam com entusiasmo as manobras da

72
Nesta crônica, Coelho Netto faz referência ao romance de Alfonse Daudet, Tartarin de Tarascon, publicado
em 1872. Tarascon era a cidade onde vivia o protagonista Tartatin que, na crônica de Coelho Netto, pode ser
uma referência a Floriano Peixoto.
73
Correio Fluminense, IN: O Commércio de São Paulo, 22 de novembro de 1893. A crônica foi escrita em 17
de setembro
74
Correio Fluminense, IN: O Commércio de São Paulo, 7 de dezembro de 1893.
75
esquadra correm a alistar-se para combatê-la. O concurso do Sr. Saldanha
decidiu o curso da revolta”75

Para um republicano como Coelho Neto, a luta contra o governo Floriano era legítima;
o que ele percebia como o sebastianismo de Saldanha, no entanto, enfraquecia a causa da
Revolta da Armada a seus olhos.

“As queixas não devem ser feitas contra a República mas contra os que a tem
dirigido – o mal não derivava da forma política, mas dos homens viciados pelo
atrito do império; são eles que nos têm arrastado às calamidades que
gememos, são eles que nos vão levando de roldão em roldão ao desespero e ao
desânimo. Vivemos numa apertada opressão, sob a dura vigilância da polícia,
dando pasto às bestas de aço das baterias ou descendo aos cárceres das
fortalezas; a fortuna pública escoa-se alimentando uma tristíssima tragédia; a
família emigra acossada pelo terror, a confiança desaparece: basta uma palavra
para que um homem se torne suspeito, as mesmas senhoras vêm-se ameaçadas
pelos esbirros, de quem a culpa? da República ou dos que a não sabem dirigir?
[...] Abandonar a República pela monarquia seria não somente uma falta de
patriotismo, mas uma rematada pouca vergonha”76

3.2. Lima Barreto e a repressão florianista

Para analisar a representação da repressão florianista nas obras de Lima Barreto, deve-
se levar em consideração o papel do autor tanto como testemunha ocular dos acontecimentos
da presidência de Floriano Peixoto quanto como “consumidor” de notícias veiculadas na
imprensa sobre a repressão florianista, sobretudo no que diz respeito ao período da Revolta da
Armada de 1893-1894.

As fontes mais imediatas sobre este período da vida de Lima Barreto são as cartas que
enviava a seu pai e sua coleção de recortes de jornal referentes ao período 1894-1919.77
Durante o desenrolar da revolta na Baía de Guanabara, naturalmente as áreas que mais foram
afetadas foram aquelas que se encontravam à beira da Baía, como os bairros da Saúde,
Gamboa, Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, e Niterói, onde, à época, Lima Barreto, então
com 12 anos de idade, tinha aulas no Liceu Popular Niteroiense. (BARBOSA: 2012, p. 67-
68).

75
Correio Fluminense, IN: O Commércio de São Paulo, 17 de dezembro de 1893.
76
idem.
77
Álbum de recortes de jornais e revistas, 1894-1909. Coleção Lima Barreto, Setor de Manuscritos, Fundação
Biblioteca Nacional. Há, na Fundação Biblioteca Nacional, pelo menos quatro códices contendo recortes de
jornal colecionados por Lima Barreto. Nicolau Sevcenko, em seu artigo Lima Barreto, a consciência sob
assédio, menciona um códice chamado Caderno de Recortes e Colagens, também pertencente a Lima Barreto,
que estaria sob guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa.
76
Os combates entre as forças de Floriano Peixoto e aquelas então lideradas por
Custódio José de Mello eram intensos e, muitas vezes, havia o desembarque das forças navais
em terra, para abastecimento de alimentos, sobretudo. Esses desembarques geralmente eram
acompanhados de trocas de tiros entre os batalhões patrióticos florianistas e os revoltosos.
Além disso, não era incomum uso de artilharia pesada, por florianistas e revoltosos,
disparadas pelos canhões dos navios e das fortalezas. Não raro, as balas dos canhões atingiam
edifícios residenciais ocupados por civis das partes mais pobres do Rio de Janeiro e Niterói.
Daí o êxodo das populações da área portuária do Rio de Janeiro para as áreas mais interiores
da cidade, como a Tijuca e a Cidade Nova. Em Niterói, este êxodo também acontecia e foi
testemunhado por Lima Barreto. As comunicações e os transportes por mar muitas vezes eram
interrompidos em razão dos conflitos, o que causava períodos de desabastecimento de
alimentos para as populações do Rio de Janeiro e Niterói.

Em carta a seu pai, em 21 de setembro de 1893, escreve Lima Barreto:

“Não sei em que dará isso, o fim há de ser feio. [...] O senhor deve saber que o
República saiu para Santos com dois navios frigoríficos e duas torpedeiras.
Anteontem houve um combate, no qual morreu um soldado e feriram-se
muitos outros. Esta revolta tem estado com um caráter desagradável. Não
deixam entrar navios, nem sair, o que será de nós? Morreremos de fome. Os
revoltosos já são senhores da Armação. As balas continuam a chover por cá
(Niterói). Aqui, as famílias que moram no litoral abandonam as casas.”78

Em nova carta, datada de 23 de setembro de 1893, Lima Barreto dá nome a uma de


suas fontes de suas informações sobre a revolta: o periódico O Fluminense que, como seus
concorrentes, todos os dias abasteciam os leitores com descrições detalhadas dos combates,
movimentações de tropas pela cidade e sobre o ânimo dos cidadãos afetados pelo conflito, que
muitas vezes enviavam cartas aos jornais informando sobre a situação na cidade ou
expressando seu apoio ao Marechal Floriano.

O desenrolar do conflito e a cobertura diária da imprensa fez com que revolta se


tornasse um divertimento para a população: não era incomum que as pessoas se reunissem na
Baía de Guanabara para ver a movimentação dos navios e os disparos dos canhões das
fortalezas. Lima Barreto foi uma dessas testemunhas:

“Diga a dona Presciliana que desejaria vê-la aqui, para ver as balas passar e
arrebentar, como eu as tenho visto aqui do colégio. Nesta brincadeira tem

78
Carta de Lima Barreto a seu pai, 21 de setembro de 1893. Setor de Manuscritos, Fundação Biblioteca
Nacional.
77
morrido muita gente. As granadas rebentam por todos os lados de Niterói, até
chegou arrebentar uma no morro que fica nos fundos do colégio” 79

Essas memórias de sua mocidade se traduzem em referências constantes ao período


florianista nas crônicas e romances de Lima Barreto, sendo Triste Fim de Policarpo
Quaresma obra mais editada do escritor a abordar este tema.

Como testemunha ocular dos acontecimentos da Revolta da Armada de 1893, é natural


que este evento e suas repercussões apareçam em sua obra com frequência: afinal, a Revolta
se transformou em um evento que despertou muito o interesse da população do Rio de Janeiro
e Niterói, sobretudo em virtude da cobertura dos jornais.

No Almanaque da Noite, em 1916, Lima Barreto publica a crônica O Estrela na qual


relembra a Revolta da Armada:

“Dentre os episódios da revolta de 93, assistidos por mim, aquele que mais me
impressionou foi sem dúvida o desembarque dos revoltosos no Galeão, ilha do
Governador, onde minha família morava, em virtude do cargo que meu pai
exercia por aquele tempo. Era ele então almoxarife das Colônias de Alienados
que, como se sabe, estavam e ainda estão naquela ilha. Eu tinha doze anos e
acabava de chegar do colégio onde era interno, depois de uma longa viagem
de trem, pois começava naquele ano os meus preparatórios no Liceu Popular,
em Niterói. É da memória dos contemporâneos que as comunicações por mar
entre o Rio e aquela cidade ficaram logo interrompidas no começo do levante
[...]” (LIMA BARRETO, 2004, vol. I, p. 269)

A crônica termina com a lembrança que Lima Barreto tinha do Estrela, um boi que foi
morto para servir de alimento para as tropas que invadiram a ilha. O menino não quis assistir
ao sacrifício do animal e saiu correndo para casa.

Em 1920, novamente suas lembranças da repressão florianista voltam à ocupar sua


crônica:

[...] um soldado ou cabo chamou meu pai de parte e pôs-se a conversar com
ele. [...] Acabada a conversa, veio meu pai para mim. Nada me disse logo;
mais tarde, porém, confidenciou-me:

- Você sabe o que aquele soldado queria?

- Não, papai.

-Queria que eu lhe dissesse por que esses dois homens estão brigando.

Esses dois homens eram Floriano e Custódio.

79
Carta de Lima Barreto a seu pai, 28 de setembro de 1893, Setor de Manuscritos, Fundação Biblioteca
Nacional.
78
Esse pequeno fato, que podia passar completamente despercebido, feriu-me
imensamente naquela fraca idade que eu tinha então. Nunca podia imaginar
que um homem arriscasse sua vida sem saber por quê, nem para quê. Pareceu-
me isto estúpido e indigno mesmo da condição de homem. Um ato desses, de
jogar a própria existência, devia ser perfeitamente refletido e consciente.”
(LIMA BARRETO: 2004, vol. 2, p. 248-249)

Em 24 de janeiro de 1920, na crônica “Tribunal histórico republicano”, Lima Barreto


comenta a notícia, veiculada nos jornais, acerca da formação de uma sociedade com este
nome. Sob a presidência de Lopes Trovão, eram convidados a participar da sociedade os
“republicanos históricos e defensores do regime”. O objetivo da sociedade era “o estudo
histórico da abolição e da propaganda republicana e dos governos republicanos” 80.

A formação de tal sociedade foi alvo da crítica de Lima Barreto pois, em sua opinião,

“é um erro quererem eles julgar os republicanos que têm governado. O que


eles deviam fazer era julgar a república [...] Toda a nossa administração
republicana tem tido um constante objetivo de enriquecer a antiga nobreza
agrícola e conservadora, por meio de tarifas, auxílios à lavoura, imigração
paga, etc.”(LIMA BARRETO, 2004, p. 108).

Ainda que a crítica de Lima Barreto seja ao regime republicano em geral, não pôde ele
deixar de dar sua sugestão acerca de quais temas deveriam ser tratados no Tribunal recém-
criado:

“Estou doido para ver funcionar este tribunal e ver os seus julgadores. Quero
ver como ele vai tratar Floriano – Boqueirão – Moreira César – Pico do Diabo
– Santa Catarina; quero ver como ele tratará Prudente – Canudos – Hermes –
Satélite – Ilha das Cobras. etc, etc, etc.”. (LIMA BARRETO, 2004, p. 109).

Neste trecho, Lima Barreto cita os episódios de repressão mais dramáticos da


República brasileira até aquele momento: os fuzilamentos perpetrados no Boqueirão por
ocasião da Revolta da Armada de 1893, os assassinatos no sul do país de que era suspeito o
general Moreira César e a chacina ocorrida no Pico do Diabo, onde foi fuzilado o Barão de
Serro Azul, todos ocorridos no governo Floriano Peixoto; a chacina no Arraial de Canudos,
onde foram mortos Antônio Conselheiro e seus seguidores, durante a presidência de Prudente
de Morais; o episódio do navio Satélite e a chacina na prisão Ilha das Cobras, durante a
presidência de Hermes da Fonseca.

Se nas crônicas é o próprio autor que se manifesta sobre suas memórias e opiniões
sobre a repressão florianista, nos romances Triste Fim de Policarpo Quaresma e Numa e a

80
O Jornal, 3 de janeiro de 1920, capa.
79
Ninfa, há um personagem florianista em oposição a um narrador, senão declaradamente anti-
florianista, bastante crítico ao marechal.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, o patriota major Quaresma de início é um


apoiador fiel de Floriano Peixoto na repressão à Revolta da Armada: vai ao Rio de Janeiro
apresentar-se ao marechal, consegue tornar-se parte de seu círculo, alista-se em um batalhão
patriótico e vai lutar na revolta. O romance foi escrito na esteira da Revolta da Chibata,
durante o governo Hermes da Fonseca: os marinheiros revoltados ameaçam bombardear a
cidade se os castigos físicos não fossem abolidos na Marinha. Hermes da Fonseca ordena um
estado de sítio no Rio de Janeiro. A revolta é vencida e os marinheiros, liderados por João
Cândido, sofrem severas punições: alguns são desterrados para a Amazônia, mas morrem no
navio Satélite durante o curso da viagem; outros são envenenados com pó de cal na Ilha das
Cobras.81 Os acontecimentos testemunhados por Lima Barreto durante a Revolta da Chibata
podem ter ativado suas memórias sobre o estado de sítio declarado durante a repressão
florianista à Revolta da Armada de 1893.

Fica a cargo do narrador a descrição do “clima” da cidade e da repressão empreendida


durante o período do conflito de 1893:

“A cidade andava içada de secretas, familiares do Santo Ofício Republicano, e


as delações eram moedas com que se obtinham postos e recompensas.

Bastava a mínima crítica para se perder o emprego, a liberdade, - quem sabe?


– a vida também. Ainda estávamos no começo da Revolta, mas o regímen já
publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O chefe de polícia
organizara a lista dos suspeitos. Não havia distinção de posição e talentos.
Mereciam as mesmas perseguições do governo um pobre contínuo e um
influente senador; um lente e um simples empregado de escritório. Demais
surgiam as vinganças mesquinhas, a revide de pequenas implicâncias... Todos
mandavam, a autoridade estava em todas as mãos.

Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem


função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava
esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana. Os
funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo... Era um terror, um
terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa,
sem razão e sem responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca
um Fouquier-Tinville” (LIMA BARRETO, 1997, p. 165-166).

O narrador de Triste Fim, então, faz uma descrição violenta da figura de Floriano Peixoto, no
extenso relato a seguir:

81
Ver MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
80
“Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do
Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu
temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós
todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação
nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo.
Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às
obrigações dos seus cargos.

Quando diretor do Arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar o


expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da guerra,
passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que ‘legou’
ao seu substituto um trabalho avultadíssimo.

Quem conhece a atividade pepeleira de um Colbert, de um Napoleão, de um


Filipe II, de um Guilherme I, da Alemanha, em geral de todos os homens de
Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens,
explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas. Certamente
necessárias deveriam ser tais transmissões para que o seu senso superior se
fizesse sentir e influísse na marcha das cousas governamentais e
administrativas.

Dessa sua preguiça de pensar e agir vinha o seu mutismo, os seus misteriosos
monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas ‘encruzilhadas
dos talvezes’, que tanto reagiram sobre a inteligência e a imaginação
nacionais, mendiga de heróis e de grandes homens.

Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de


calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro
extraordinário.

Toda gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de governo.
A braços com o levante de presos, praças de inferiores na fortaleza de Santa
Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o com medo que as pessoas
indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição, e, não contente com
isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.

Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, uma Napoleão,


que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes, e tenha com eles
as condescendências que ele tinha, consentindo que seu nome servisse de
lábaro para uma vasta série de crimes de toda a espécie. [...]

De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro mostra bem a


incerteza, a vacilação de vontade de um homem que dispunha daqueles
extraordinários recursos que estavam às suas ordens.

Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus


movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado,
alguma coisa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da
civilização. [...]

Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava, repousava nas
economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo
com pau de dois bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares
que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à Presidência da República. [...]

A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo lar deram
em resultado esse ‘homem-talvez’ que, refractado nas necessidades mentais e
81
sociais do homem do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e
pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas,
dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo. [...]

A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a


aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se.
Levada a cousa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões
contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e
morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em
circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é
pouca: põe-se mais água.

Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa
concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua
perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza
com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.”
(LIMA BARRETO, 1997, p. 183-186).

Floriano Peixoto faleceu em junho de 1895. No entanto, fazer uma representação tão
desabonadora da figura do marechal podia ser arriscado, mesmo em 1916. As críticas a seu
livro não deixaram de notar a acidez da descrição que fez o narrador de Policarpo Quaresma.
Jackson de Figueiredo82 observa que:

“A obra, porque é de caráter mais combativo, é menos irônica e mais


francamente panfletária. Algumas vezes até, o romancista se deixa esquecer e
o historiador é quem se mostra, armado de indignação – testemunhando o que
eu digo as páginas contra o Positivismo e ainda mais as em que procura
apequenar a personalidade do Marechal Floriano” (LIMA BARRETO, 1997,
p. 421).

O diplomata e escritor Oliveira Lima, por sua vez, em sua crítica ao romance
publicada no Estado de São Paulo em 1916, tem uma visão menos negativa da representação
de Floriano feita pelo narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma:

“No romance do senhor Lima Barreto há figuras inolvidáveis, a do


protagonista, por exemplo, ou a do trovador Ricardo Coração dos Outros, um
visionário também, poeta do violão. Com nenhum gasta o autor muitas
pinceladas: a pintura ressalta da própria ação. Ele reserva o mais de suas tintas
para o perfil que se tem querido fazer enigmático de Floriano (enigmático para
os que não querem traçá-lo à luz da verdade) e de que ele conseguiu um
desenho impressivo” (LIMA BARRETO, 1997, p. 423)

Um certo Firmino Santos, “capitão honorário do exército” considera o romance de


Lima Barreto extremamente perigoso:

“É hábito nosso desdenhar o romance; mero passatempo, dizem, que só


impressiona as mulheres. Há nisso um engano. Todos os autores se

82
Crítica publicada em A Lusitana, 10 de junho de 1916.
82
comprazem em insinuar manhosamente, por meio do romance, as suas
opiniões, e elas se arraigam nos espíritos mais fortemente por meio deles.

A Revolução Francesa deve muito aos romances de Rousseau e aos contos de


Voltaire. É preciso não esquecê-lo e também da “Cabana do Pai Tomaz” que
tanto concorreu para a emancipação dos negros no mundo inteiro.

A sedução, a ductilidade do romance, escrito com elegância , cheio de éstos


líricos, de remoques, de descrições carinhosas, tudo nesse gênero literário leva
a constituir-se um meio terrível de fazer convicções” 83

A crítica mais áspera à descrição do marechal Floriano veio de Medeiros e


Albuquerque, publicada no jornal A Noite:

“Parece que, falando de um romance, do ponto de vista literário, nada haveria


a dizer sobre a justiça ou injustiça das opiniões de um autor acerca desta ou
daquela figura histórica. O autor podia, por exemplo, ter posto em cena um
Floriano, como ele o imagina, com todos os defeitos que lhe quisesse atribuir.
Literariamente, haveria apenas que perguntar se a essa figura, embora falsa,
dera toda a vida. Mas o senhor Lima Barreto se esquece às vezes que está
fazendo um romance e abre parênteses para discutir. É como se um
dramaturgo surgisse, de repente, no palco, atrapalhando a representação, para
nos dizer porque dera tais ou quais qualidades aos seus personagens.[...]

Do mesmo modo, não satisfeito em por em cena o Marechal Floriano de um


modo notoriamente injusto, o autor interrompe a ação do livro para discutir-
lhe a personalidade. [...]

O autor escreve sobre o Marechal Floriano achando-o um tipo acabado de


indolência e preguiça. É um cúmulo! [...]

Floriano, preguiçoso! Preguiçoso, o homem que durante mais de oito meses


concentrou em suas mãos toda a administração nacional – e concentrou, vendo
e examinando tudo, minuciosamente, papel por papel. Ora, é exatamente da
época em que ele fazia isso que fala o autor.”84

A opinião de Medeiros e Albuquerque sobre o romance de Lima Barreto foi publicada


num texto em seis colunas. As três primeiras são dedicadas a discutir a qualidade literária de
Triste Fim de Policarpo Quaresma. As três últimas colunas são quase inteiramente dedicadas
a defender a personalidade e a honra do Marechal Floriano.

Examinando as memórias de Medeiros e Albuquerque é possível entender a enfática


defesa que faz do falecido presidente. Em seu livro Minha Vida: da infância à mocidade
(1867-1893), no capítulo Tempos de Floriano, Medeiros e Albuquerque narra de que forma
ele se colocou a serviço do então presidente em diversas ocasiões. Ele relata, por exemplo,

83
Foi Pena!, ABC, 24 de março de 1917, p. 18.
84
Crônica Literária. IN: A Noite, 1 de outubro de 1916, p. 2.
83
que “serviu” nas forças florianistas durante a Revolta da Armada, deixando subentendido que
o cargo era mais uma honraria do que um efetivo serviço:

“Aliás, nesse tempo [durante a Revolta da Armada], com a abundância de


batalhões patrióticos que se tinham formado, quase todos eram oficiais ou
soldados. Eu mesmo fui então feito tenente coronel da Guarda Nacional, que
só me foi deliciosamente útil, muitos anos depois, em Paris” (MEDEIROS E
ALBUQUERQUE: 1933, p.202)

Sua verdadeira contribuição a Floriano era na imprensa. Medeiros e Albuquerque era


um dos cronistas que se dedicavam a defender o Marechal nas suas publicações, notadamente
no jornal O Fígaro. Mas não só isso: mesmo quando não defendia Floriano diretamente,
veiculava notícias que, mesmo falsas poderiam servir politicamente ao marechal. Um
exemplo dessas notícias “plantadas” é descrita por Medeiros e Albuquerque da seguinte
forma:

“Um belo dia, em 1892, eu me lembrei de fazer um gracejo. Falava-se então


muito na possibilidade de uma restauração monárquica. O Fígaro, no dia 7 de
setembro, publicou um número anunciando que a restauração estava feita.
Dizia ao princípio que o movimento tinha sido fulminante. Anunciava que o
novo governo impedira todos os jornais de dar a notícia do fato e que mesmo a
nossa redação estava militarmente ocupada, mas que nós tínhamos conseguido
iludir a vigilância da força e, assim, afrontávamos todos os perigos que daí
decorressem. A seguir, vinha o nome dos que compunham a regência
provisória, o novo ministério, os presidentes nomeados para as províncias,
telegramas da Imperatriz Isabel... Nada, na leitura do jornal, traía a
circunstancia de se tratar de uma pilhéria.

O resultado dela foi, entretanto, muito curioso. Houve centenas de demissões


de funcionários públicos. Assim, por exemplo, todos os médicos e quase todos
os empregados da Hospedaria de Imigrantes, que ficava na Espação Pinheiros,
no Estado do Rio de Janeiro, foram postos na rua. De fato, desde que eles
leram O Fígaro, só tiveram uma preocupação: passar um telegrama à nova e
inexistente regência aderindo à Monarquia. E houve como esse centenas de
telegramas. Floriano teve conhecimento deles e respondeu aos signatários com
a respectiva demissão.” (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1933, p. 196-197)

Com o movimento monarquista ainda tentando se articular contra a República, o artigo


de Medeiros e Albuquerque deu a oportunidade a Floriano Peixoto de averiguar a lealdade
dos funcionários públicos à República e demitir aqueles que se colocaram à disposição da
monarquia falsamente restaurada.

Evidentemente, esses serviços prestados a Floriano não eram exclusivamente por pura
dedicação patriótica: o apoio ao Marechal tinha como contrapartida o recebimento de cargos
públicos e influência política. E, nestes casos, as tratativas quase sempre se davam com

84
Arthur Vieira Peixoto, cunhado do marechal. Em carta em que demonstra certa intimidade,
Medeiros e Albuquerque interfere por um de seus amigos:

“Meu caro Arthur Peixoto.

V. desdenhou um pouco o meu pedido sobre o alferes Manuel Saavedra


Durão, que desejava obter na polícia um lugar de agente de 1ª classe.
Ofereceu-lhe de 3ª, mas mesmo isto ele não obteve. Convém saber uma coisa:
ele já foi empregado de 3ª classe durante mais de um ano. Não era justo que
subisse agora um pouco de categoria? De mais a mais, trata-se de m rapaz
honesto e direitinho, como certamente não há muitos lá pela Polícia. Porque
não te empenhas seriamente, obsequiando-me assim? Uma cautela é
necessária: que o Bernardino85 não suspeite que o empenho parte de mim. É
sabido que ele não morre de amores pela minha pessoa. [...]”86

O teor da carta permite entrever de que forma o arranjo patrimonialista que grassava a
República. Mais do que isso, uma crítica ácida como a que Medeiros e Albuquerque faz à
polícia republicana sob o governo de Floriano – sem que nenhuma consequência negativa
tenha sobrevindo ao jornalista – mostra que seu apoio na imprensa deveria ser muito valioso
para o a administração do marechal.

E o apoio à repressão florianista apareceria mais vezes em Triste Fim de Policarpo


Quaresma, certamente lembranças que Lima Barreto possuía do período do ditador. O
primeiro foi a atuação de Trinta-réis:

“Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o
fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar, muito pesada,
gritavam: - queimou!

Houve um em Niterói que teve seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-


no ‘Trinta Réis’; os jornais do tempo ocuparam-se com ele, fizeram-se
subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido [...]”
(LIMA BARRETO, p. 207, 1997)

Quem lê o romance de Lima Barreto hoje perde a referência de Trinta-réis posto que
mais explicações sobre ele não são dadas na obra. Aqueles, porém, que a leram quando ela
apareceu pela primeira vez provavelmente ainda tinham o menino na lembrança. Trinta-réis
se tornou famoso no Rio de Janeiro em virtude das notícias sobre ele que eram veiculadas em
O Tempo:
85
Bernardino Silva, então chefe de polícia no Rio de Janeiro.
86
Carta de Medeiros e Albuquerque a Arthur Vieira Peixoto, 1 de agosto de 1893. Coleção Silvio Vieira Peixoto,
Setor de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
85
“Este sim é o já lendário Trinta-réis, o Arthur José dos Santos, carioca da Rua
dos Arcos, e não esse que por aí anda nos papelões das folhinhas do ano e nas
capas das músicas. Que diferença entre o marmanjo idealizado pela
curiosidade pública e o miúdo garoto cujo retrato aí está? [...] Nasceu na rua
dos Arcos e foi ainda no cueiro para Niterói, nunca mais de lá saindo, senão
para a Ilha do Viana, onde era aprendiz de caldeireiro. [...] Esperto como um
azougue, com ares de sonso, Trinta-réis passaria ignorado de toda gente, se
não fosse a revolta. Quando ela surgiu, isto é, quando apareceu a primeira
boca de fogo em Niterói, apareceu também a figura miudinha desse futuro
homem de armas ao lado do canhão, admirado e curioso. Viu atirar, puxar o
detonador da peça, e ficou no mesmo lugar. Sua figura microscópica ao pé do
monstro de ferro determinou que fosse chamado Trinta-réis. No outro dia, sem
ninguém esperar, lá estava ele de detonador na mão, à espera da voz de fogo.
[...] Tem um ciúme terrível de seu canhão, sob o qual vive deitado como um
cachorro guardando a porta. Tem uma vista de lince e, por mais longe que
abra a fumaça de um tiro, ele grita logo: Queimou!”87

Imagem 19, Desenho de Trinta-réis que ilustrava a matéria do jornal O Tempo

Com tamanha publicidade a respeito de Trinta-réis, é compreensível a fama que o


menino alcançou no Rio de Janeiro e em Niterói. Era em Niterói, a propósito, como já vimos,
que Lima Barreto estudava na época dos acontecimentos da Revolta da Armada e do
aparecimento de Trinta-réis. A fotografia mencionada constantemente nos jornais está
guardada no setor de Iconografia da Biblioteca Nacional. Ela foi incorporada ao acervo da
FBN a partir da compra de um conjunto de fotografias em 1912.

87
O Tempo, 6 de fevereiro de 1894, capa.
86
Imagem 20. Fotografia rara de Trinta-réis. Esta era uma das fotos
vendidas com a finalidade de arrecadar fundos para a educação do
menino, que lutava a favor do governo Floriano Peixoto durante a
Revolta da Armada de 1893-1894. (Fundação Biblioteca Nacional, setor
de Iconografia).

Além da fotografia, também existe na FBN uma figurinha – um brinde que


acompanhava os maços de cigarros vendidos no Rio de Janeiro. A figurinha faz parte de um
lote que foi doado à Biblioteca Nacional em 1911. 88

Imagem 21 Figurinha de Trinta-réis que circulou nos maços de cigarro vendidos no Rio de
Janeiro entre 1893 e 1894. Segundo o livro de tombo do setor de Iconografia da Biblioteca
Nacional, esta imagem faz parte de uma série chamada “Revolta da Armada”, que trazia fotos
de personalidades do conflito, como o Marechal Floriano Peixoto, o Almirante Saldanha da
Gama e Trinta-réis, transformado em herói das forças governistas. (Fundação Biblioteca
Nacional, setor de Iconografia)

88
As duas imagens de Trinta-réis eram consideradas “imagens avulsas”, não fazendo parte de nenhuma coleção.
A partir da pesquisa que deu origem a esta dissertação, elas agora fazem parte da coleção iconográfica “Revolta
da Armada” da Biblioteca Nacional, a qual também inclui as fotografias da Revolta tomadas por Marc Ferrez e
Juan Gutierrez.
87
Além destes dois registros iconográficos, na Biblioteca Nacional há um códice
composto por recortes de jornal que Lima Barreto colecionava. 89 Neste códice está arquivada
a matéria de capa do jornal O Tempo com a biografia de Trinta-réis, com uma inscrição
manuscrita onde se lê “um herói da revolta da armada”. O trabalho com os recortes de jornal
colecionados por Lima Barreto, no entanto, coloca alguns problemas para o pesquisador. Por
exemplo, saber a data exata em que o jornal foi recortado. No caso da matéria sobre Trinta-
réis cabe a pergunta: a matéria foi recortada e guardada em 1894 - quando Lima Barreto ainda
era menino - ou o escritor recortou o jornal já adulto, como material de pesquisa para Triste
fim de Policarpo Quaresma? Tendo em vista o tempo transcorrido entre a publicação da
biografia de Trinta-réis no jornal O Tempo (1894) e a redação do romance (1910), a primeira
hipótese talvez seja mais plausível.

Outro episódio bem singular do período florianista relembrado por Lima Barreto é a
visita do Batalhão das Senhoras ao Itamaraty, que também é retratado em Triste Fim de
Policarpo Quaresma:

“Falou em primeiro lugar uma comissão de senhoras que vinham oferecer seu
braço e o seu sangue em defesa das instituições e da pátria. A oradora era uma
mulher baixa, de busto curto, gorda, com grandes seios altos e falava agitando
o leque fechado na mão direita. Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua
raça, ao menos: andavam tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda
ela a uma classificação honesta.

Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes olhos que


despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele chamejar; era
como se temesse derreter-se ao calor daquele olha que queimava mais sedução
que patriotismo. Fugia encará-la, abaixava o rosto como um adolescente, batia
com os dedos na mesa.

Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem
encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro, declinou da
oferta, visto a República ainda dispor de bastante força para vencer.

A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente”. (LIMA
BARRETO, 1997, p.180-181)

A descrição do episódio do Batalhão das Senhoras em Triste fim de Policarpo


Quaresma é certamente fruto das reminiscências do próprio Lima Barreto. Como vimos no
capítulo 1, os prisioneiros da Casa de Correção também ficaram impressionados com a
89
Álbum de recortes de jornais e revistas, 1894-1909. Coleção Lima Barreto, Setor de Manuscritos, Fundação
Biblioteca Nacional.
88
iniciativa das mulheres. Como foi noticiado em O Paiz em 1894, o marechal nem mesmo se
dignou a recebê-las – mandou um assessor em seu lugar – numa atitude que poderia ser
interpretada como desdém. Em Triste fim, por outro lado, Lima Barreto reproduz esse desdém
de outra forma: a ironia com que o marechal dispensa os serviços das senhoras do batalhão
depois de aceitar recebê-las, visivelmente incomodado com sua presença em seu gabinete.

O episódio que finalmente leva Policarpo Quaresma a se questionar a respeito de suas


ideias de nação e da própria República que servia é o transporte dos presos da Ilha das
Enxadas, onde servia como carcereiro, para a Ilha do Boqueirão. Quaresma testemunha “a
vasta sala cheia de corpos, deitados, seminus, e havia todo o íris das cores humanas; uns
roncavam, outros dormiam somente”90 ser invadida pelo oficial do Itamaraty que acordava
aqueles homens e ordenava que fossem levados.

O episódio do Boqueirão foi tratado pelos jornais em 1895, com destaque para a
matéria do jornal Gazeta da Tarde, que estampou na capa as imagens de três dos fuzilados:

Imagem 21. Retratos dos fuzilados no Boqueirão publicados no jornal Gazeta da Tarde em 9 de junho de 1895.

Segundo a matéria, após a vitória governista em 13 de março de 1894, os presos da


Ilha das Enxadas eram tratados “com insultos, maus tratos e surras de espada, não lhes sendo
permitido possuir dinheiro nem objeto de valor, passando tudo para as mãos dos

90
Triste fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 250.
89
vencedores”91. No dia 28 de março, seguiram transferidos para o Boqueirão onde foram
executados.

Segundo noticiavam os jornais desde janeiro de 1895, o governo de Prudente de


Morais estava liberando créditos orçamentários vultosos para obras na Ilha do Boqueirão. A
reportagem do jornal O Apóstolo lançava as suspeitas:

“Querem saber agora o que nos informaram? [...]

Naquela ilha abriam-se longas valas depois de sufocada a revolta e triunfante a


legalidade.

As centenas de infelizes que ali foram fuzilados com as mãos atadas às costas
eram executados no beiço das valas, e ali mesmo rolavam para dentro delas,
muitos ainda vivos.

Agora trata-se de fazer obras por cima dessas valas para ocultar perpetuamente
aos olhos curiosos os últimos vestígios daquela malvadeza nunca vista em país
algum do mundo.

Nós não vimos: ainda hoje há medo de ser, pelo menos, apunhalado na
esquina de uma rua, por isso não queremos dar o nome de quem no-los
informou.”92

Vê-se que, mesmo após o marechal Floriano ter saído do poder, o assunto ainda era
tratado pelas testemunhas com medo, possivelmente dos jacobinos, que continuavam
apoiadores intransigentes do ex-presidente.

A primeira edição de Triste fim de Policarpo Quaresma em livro veio acompanhada


de alguns contos. Um deles era Miss Edith e seu tio, sobre dois ingleses que se hospedam em
uma pensão no Flamengo. A chegada dos dois estrangeiros se torna assunto dos outros
hóspedes e as opiniões acerca da dupla variam do repúdio à admiração. Um dos admiradores é
Benevente, admirador das virtudes do povo inglês e considerado pelo narrador do conto como
um adepto de um “darwinismo de segunda mão” por considerar que os ingleses eram
superiores aos brasileiros, “sentimentais piegas que nós somos, choramingas e incapazes”.
(LIMA BARRETO: 2010, p. 115).

O contraponto de Benevente na narrativa de Lima Barreto é o personagem Melo, um


ferrenho nacionalista:

“Melo era um empregado público, promovido, guindado pela República, que


impressionava à primeira vista pelo seu aspecto de candidato à apoplexia.

91
Gazeta da Tarde, 9 de junho de 1895, capa.
92
O Apóstolo, 6 de janeiro de 1895, capa.
90
Quem lhe visse o rosto sanguíneo, o pescoço taurino, não lhe podia vaticinar
outro fim. Morava com a mulher na pensão, desde que casara as filhas; e,
tendo sido auxiliar, ou coisa que o valha do Marechal Floriano, guardava no
espírito aquele jacobinismo do 93, jacobinismo de exclamações de
objurgatórias, que era o seu modo habitual de falar” (LIMA BARRETO: 2010,
p. 115)

“Guardava no espírito aquele jacobinismo de 93” era a senha de Lima Barreto para
caracterizar Melo como um homem que não apreciava muito os estrangeiros. Para o
personagem, o problema do Brasil era a falta de homens fortes para conduzir os destinos da
nação:

“Nós precisávamos de Floriano... aquele sim...

O nome de Floriano era para Melo uma espécie de amuleto patriótico, de


égide da nacionalidade. O seu gênio político seria capaz de fazer todos os
milagres, de realizar todos os progressos e modificações na índole do país”
(LIMA BARRETO: 2010, p. 116).

As críticas à administração florianista reapareceriam no romance Numa e a Ninfa,


publicado em livro em 191793. A trama do romance se dá em torno do personagem Numa
Pompílio de Castro, político carreirista que está constantemente à espera do desenrolar dos
acontecimentos para saber a que lado apoiará. Logicamente, busca sempre apoiar o candidato
da situação. O romance se ambienta no Rio de Janeiro, às voltas com mais uma eleição
presidencial. O candidato mais cotado para vencer o pleito é Bentes, general do Exército. A
República brasileira, até o momento em que Numa e a Ninfa foi escrito, já havia tido três
presidentes militares: Deodoro, Floriano e Hermes da Fonseca. Logo, não é estranho que o
tema da eleição de um militar para o mais alto cargo político venha a figurar na nova obra de
Lima Barreto, na qual a repressão florianista é mais uma vez retratada.

O narrador do romance, como veremos, é um crítico do Marechal Floriano, que entra


na trama por meio das lembranças do personagem Inácio Costa:

“Esse Costa era funcionário público e fora da Escola Militar, donde trouxera
umas fórmulas positivistas e uma forte crença nos efeitos milagrosos da
palavra República. Havia no seu feitio mental uma grande incapacidade para a
crítica, para a comparação e fazia depender toda a felicidade da população
numa simples modificação na forma de transmissão da chefia do Estado.
Passara pelos jacobinos, florianistas e tinha a intolerância que os caracteriza, e
a ferocidade política que os caracterizou.

93
Uma breve análise do romance foi feita por BOTELHO, Denilson. Numa e a Ninfa: o Brasil republicano no
romance de Lima Barreto. In: Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2015.
91
Feroz e intolerante, com o apoio do positivismo autoritário, a sua concepção
de governo se consubstanciava na ditadura e daí resvalava para o despotismo
militar. Não se dirá que não fosse sincero; ele o era, embora houvesse nos seus
intuitos alguma mescla de interesse de melhoria na sua situação burocrática”
(LIMA BARRETO: 2017, p.46)

A caracterização de Costa como um saudosista do governo Floriano é importante pois,


como se verá nas próximas páginas, ele era um forte apoiador da campanha do General
Bentes. E quem nota isso é Benevenuto, personagem que está sempre informado sobre os
últimos acontecimentos na cidade. Observando a animação de Inácio Costa com a candidatura
de Bentes, Benevenuto se mostra um pouco cético.

“A satisfação que ele encontrou em Inácio Costa não era o sentimento que ele
via na massa da população. [...] A cidade estava apreensiva e angustiada. É
que ela conhecia essa espécie de governos fortes, conhecia bem essas
aproximações de ditadura republicana. O florianismo dera-lhe a visão perfeita
do que era. Um esfacelamento da autoridade, um pululamento de tiranos; e no
fim, um tirano em chefe que não podia nada. A liberdade conciliada com a
ditadura! Quem regulava essa conciliação, quem determinava os limites de
uma e de outra? Ninguém, ou antes: a vontade do tirano, se fosse um, ou de
dois mil tiranos, como era de esperar. Os moços, os que tinham visto os
acontecimentos de 93, quando meninos, no instante da vida em que se gravam
bem as dolorosas impressões, anteviam as execuções, os fuzilamentos, os
encarceramentos, os homicídios legais e se horrorizavam.

Benevenuto era desses, desses que aos doze anos, viram as maravilhas do
Marechal de Ferro, o regímen da irresponsabilidade; e não podia esquecer
pequenos episódios característicos do espírito de sua governança, todos eles
brutais, todos eles intolerantes, além do acompanhamento de gritaria dos
energúmenos dos cafés”. (LIMA BARRETO, 2017, 90-91).

Aqui, há uma similaridade biográfica entre o personagem e o autor: tanto Benevenuto


quanto Lima Barreto tinham doze anos no período em que se desenrolaram os fatos da
Revolta da Armada. Difícil não pensar que se trata de uma reflexão do próprio Lima Barreto
com relação aos acontecimentos testemunhados pelo personagem Benevenuto.

Mais adiante, uma crítica do narrador não só ao regime florianista, mas aos militares
da Primeira República, que viam no florianismo um modelo de governo:

“o que eles são é crentes nas virtudes excepcionais da farda para o governo e
para a administração. A farda, a longa e pesada tradição que representa e
evoca, promete muito a todos que a vestem; e os militares não pesam os meios
de que dispõem para realizar esse muito que lhes é prometido. Para eles, o
uniforme dá qualidades especiais; todos são honestos, todos são enérgicos. A
tradição de Floriano, sempre mal analisada e sempre falseada em grandeza e

92
poder, concorre muito para isso e faz repercutir no povo a concepção
quarteleira” (LIMA BARRETO, 2017, p. 168-169).

Em conversa com o russo Bogoloff, Inácio Costa, prossegue seus elogios a Floriano e
seu governo:

“- Que fez Floriano?

-Não sabes? Foi o maior estadista que tivemos.

-Quais são suas obras?

-Manteve a forma republicana federativa com uma energia verdadeiramente


republicana. Era um estadista moderno... Quer saber um ato dele?

-Quero.

- Você vai ouvir. Como o marechal precisasse de dinheiro para fazer face às
urgentes despesas que a revolta acarretava, mandou que o Tribunal de Contas
registrasse um crédito de que ele tinha necessidade. O presidente do tribunal
negou-se formalmente a dar a sua assinatura ao tal pedido, por não estar de
acordo com as leis. O ministro da Fazenda, ao saber desta resolução, foi
comunicá-la imediatamente ao marechal. Floriano não gostou; mas, sorridente,
pediu ao ministro que conseguisse do presidente do tribunal ir ter com ele uma
conferência. Na manhã seguinte, muito cedo, estava no Itamaraty o presidente
do Tribunal de Contas. Floriano recebeu-o muito amável e mostrou a situação
do governo e a urgente necessidade que havia de tal crédito. O presidente,
inabalável, disse que não assinava o pedido, pois era ilegal, inconstitucional,
que era isto, que era aquilo. Floriano ouviu tudo muito calmo e, em meio ao
discurso do presidente, bateu na testa e perguntou: O senhor é o doutor
Fulano? Sim senhor, respondeu o presidente. – Ora, doutor, queira me
desculpar. Esta minha cabeça anda tão cheia de atrapalhações... Não era com o
senhor que eu queria falar, era com seu sucessor. –Como? – perguntou
surpreso o ministro do tribunal. –É verdade, doutor; o senhor está aposentado
desde ontem. – E assim foi. Nessa mesma tarde, com data do dia anterior, era
publicado um decreto que declarava aposentado o presidente recalcitrante. Era
assim Floriano! Isso que é um estadista, Bogóloff. (LIMA BARRETO, 2017.
p. 193-194).

O narrador, então, passa a criticar a visão positiva que Inácio Costa mantinha sobre o
marechal:

“Essa sua mórbida admiração por Floriano era tanto ingênua quanto sem
razão. Como esse homem era estadista eminente e não tinha deixado nenhuma
obra de estadista, obra que redundasse em benefício geral, que tendesse para a
felicidade dos povos, na expressão de Bossuet? Como ele tinha mantido a
ordem republicana, se atentara contra os tribunais, os parlamentos, as leis, e
queria tudo isso curvado à sua vontade? (LIMA BARRETO: 2017, p. 195).

93
Podemos constatar que parte da produção de Lima Barreto foi permeada por suas
memórias da repressão empreendida por Floriano Peixoto entre 1893-1894 e que esta
produção assume uma perspectiva claramente antiflorianista.

3.2.1. Policarpo Quaresma e seus antecessores: ficção e verossimilhança nas memórias


do major

Policarpo Quaresma é o mais famoso prisioneiro político do regime florianista: suas


memórias foram publicadas dezenas de vezes, traduzidas para outros idiomas e transformadas
em filme.94 O sucesso das memórias do personagem de Lima Barreto conseguiu ofuscar as
obras de seus antecessores, isto é, indivíduos que de fato passaram pela experiência da
repressão no governo Floriano Peixoto e cujas memórias foram transformadas em livros.

Na Fundação Biblioteca Nacional, há um conjunto de fontes sobre a repressão


florianista e o combate entre o governo brasileiro e os partidários da Revolta da Armada de
1893-1894, bem como sobre o impacto do conflito sobre a população civil. Lima Barreto, por
exemplo, estudava em Niterói e enviou cartas a seu pai, explicando que não poderia retornar
para casa em virtude do ataque dos revoltosos à cidade. 95 Na crônica Homem ou boi de
canga?, publicada em 1923, o escritor narra que foi testemunha de um tiroteio entre as forças
do governo e os revoltosos (LIMA BARRETO: 2004, p. 248)

As experiências de Lima Barreto à época da Revolta da Armada e as fontes coletadas


motivaram a leitura de Triste fim de Policarpo Quaresma a partir de outra perspectiva: de
onde Lima Barreto teria tirado a inspiração para a construção do romance? Teria a obra sido
inspirada em episódios históricos e em indivíduos reais? Existiriam pistas de suas identidades
e marcas no texto de Lima Barreto?

O crítico Francisco de Assis Barbosa (1952) e a antropóloga Lília Moritz Schwarcz


(2017), biógrafos de Lima Barreto, esclarecem que as experiências pessoais do criador de
Policarpo Quaresma, sobretudo as relacionadas à vida de seu pai, foram inspiração para a
construção de alguns aspectos da vida do personagem. Sérgio Buarque de Holanda, em seu
prefácio à edição de 1956 ao romance Clara dos Anjos, observa que um dos traços da obra de

94
Policarpo Quaresma, o herói do Brasil, lançado em 1998 e dirigido pelo cineasta Paulo Thiago.
95
Lima Barreto. Carta a João Henriques de Lima Barreto, pai do escritor, declarando que não pudera sair
do internato em virtude do bombardeio de Niterói pelos revoltosos da esquadra, 14/09/1893. Coleção Lima
Barreto, Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
94
Lima Barreto é a dificuldade do romancista em afastar tais experiências do processo de
criação de seus personagens.

No entanto, ainda restam algumas lacunas na vida do Major Quaresma. Acreditamos


que elas podem ser respondidas com base na documentação levantada na Biblioteca Nacional,
sobretudo com relação a determinados aspectos semelhantes à experiência de certos
indivíduos cuja trajetória estava intimamente ligada aos acontecimentos da Revolta da
Armada.

Este subitem tem o objetivo de propor, a partir das relações pessoais e profissionais de
Lima Barreto e das memórias de determinados ex-presos políticos do regime florianista, uma
interpretação acerca das condições de surgimento de Policarpo Quaresma e de como o
romance de Lima Barreto dialoga com narrativas memorialísticas que o antecedem.

A análise se concentra principalmente na literatura sobre a Revolta da Armada que


circulou durante a juventude de Lima Barreto. Partimos da hipótese de que essa literatura
pode ter fornecido subsídios para que o escritor construísse alguns aspectos do enredo de seu
romance.

Tentaremos também, a partir da correspondência de Lima Barreto depositada na


Biblioteca Nacional, estabelecer em que medida o círculo íntimo de relações do escritor bem
como seus interesses profissionais podem ter influenciado a criação de Triste Fim de
Policarpo Quaresma.

3.2.1.1. Literatura e memórias acerca da repressão política durante a Revolta da


Armada

Uma das primeiras memórias sobre a repressão empreendida pelo governo Floriano
Peixoto durante a Revolta da Armada foi composta pelos presos políticos da Casa de
Correção. Como vimos no capítulo 1, redigido em 1894, o jornal manuscrito A Justiça 96 fazia
denúncias sobre o tratamento dispensado aos prisioneiros políticos do regime florianista e
relatos sobre o cotidiano dos presos na Casa de Correção.

Também vimos que um dos editores do periódico era o engenheiro Lício Clímaco
Barbosa, funcionário público da companhia dos Telégrafos, sobrinho e afilhado de Rui

96
A Justiça: jornal dos presos políticos da Casa de Correção. Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca
Nacional.
95
Barbosa.97 Seu pai, Clímaco Ananias Barbosa, estava a bordo do encouraçado Aquidabã
durante a Revolta da Armada: em 10 de outubro de 1893, ele enviou uma carta a Rui Barbosa,
seu irmão, alertando sobre um ataque dos navios da esquadra revoltosa e comentando sobre
uma possível adesão do almirante Saldanha da Gama. 98 Lício, por sua vez, foi preso durante a
revolta por suspeita de cumplicidade em uma tentativa de sabotagem aos túneis da Estrada de
Ferro Central do Brasil. 99 Nos anos seguintes à Revolta da Armada, Lício Clímaco Barbosa
dedicou-se ao jornalismo, trabalhando em O Paiz.

Com a saída de Floriano da presidência da República, surgem algumas obras que


tratam da experiência da repressão política durante o governo Floriano Peixoto, as quais
podem ser consideradas precursoras de Policarpo Quaresma: A deshonra da República:
apreciações gerais sobre a revolta da marinha de guerra nacional e o governo do vice-
presidente marechal Floriano Peixoto, de Honorato Caldas; Notas e apontamentos sobre
minha prisão na Fortaleza da Conceição, na Casa de Correcção e na minha residência, de
Alfredo de Barros; Sonho no Cárcere: dramas da revolução de 1893 no Brasil, de Atanagildo
Barata Ribeiro; Os mysterios da Correcção durante a revolta de 6 de setembro de 1893
publicados pelo Commercio de São Paulo; Fuzilados em Sepetiba, publicado pelo Jornal do
Brasil entre o fim de 1894 e início de 1895; e O morto (memórias de um fuzilado), de Coelho
Netto, publicado em capítulos no jornal Gazeta de Notícias em 1895.

As obras acima tratam da arbitrariedade do governo Floriano Peixoto, bem como da


pena de prisão a que foram submetidos alguns de seus autores. Ao fazer a propaganda de
alguns dos livros, o Jornal do Brasil, em 1895,100 referiu-se a eles como Literatura de
revanche, provavelmente fazendo referência ao fato de que a censura a opiniões, frequente
durante o governo Floriano, já não mais vigorava e que, naquele momento, os ex-presos
políticos poderiam expressar suas críticas ao antigo governante e narrar as violações de que
foram vítimas (Floriano deixara de ser presidente em novembro de 1894).

97
Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. São Paulo, 16 de novembro de 1884, Fundação Casa de
Rui Barbosa. Sobre as relações de parentesco entre Rui Barbosa, Clímaco Ananias Barbosa e Lício Clímaco
Barbosa ver: MAGALHÃES, Rejane Mendes Moreira de Almeida. Rui Barbosa na Vila Maria Augusta. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2013.
98
Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. Bordo do Aquidabã, 10 de outubro de 1893, Fundação
Casa de Rui Barbosa.
99
Revolta: informações e pormenores. O Paiz, 13 de outubro de 1893. A matéria afirma – baseando-se em
relatório do delegado Cesário de Mello – que Lício Clímaco era filho de “Telêmaco Barbosa”, informação que
não está em conformidade com as fontes disponíveis na Fundação Casa de Rui Barbosa.
100
Bibliographia. IN: Jornal do Brasil, 10 de fevereiro de 1895.
96
Lício Barbosa, Honorato Caldas, Alfredo de Barros, Atanagildo Barata Ribeiro e
Inocêncio Serzedello Corrêa foram companheiros de cárcere na Casa de Correção e há
indícios de que mantiveram relações sociais no período pós-cárcere. Lício Barbosa e
Serzedello Corrêa frequentaram os mesmos eventos em algumas ocasiões como, por exemplo,
o jantar oferecido ao aviador Santos Dumont em 1901. No baquete estavam presentes mais
dois perseguidos políticos do governo Floriano Peixoto – José do Patrocínio e Luiz
Bartolomeu –, acompanhados por Alcindo Guanabara, Arthur Guaraná, Jovino Ayres,
Henrique Chaves, Henrique Cancio, Leopoldo de Freitas, Salvador Santos, J. Barreto, Álvaro
Paes, Nilo Peçanha e Ernesto Senna, importantes expoentes da imprensa e da política
101
brasileira no início do século XX. Lício Clímaco Barbosa foi, ainda, testemunha de
Honorato Caldas na queixa que este impetrou contra Aureliano Pedro de Farias, diretor da
Casa de Correção no período em que estiveram detidos. 102 Athanagildo Barata Ribeiro e
Inocêncio Serzedello Corrêa correspondiam-se, por meio da imprensa, com seus antigos
companheiros de cárcere.103

As obras acima citadas não estão relacionadas no inventário da biblioteca de Lima


Barreto,104 mas não podemos excluir a possibilidade de que o escritor tenha tomado
conhecimento delas, conforme tentaremos mostrar mais adiante. Por outro lado, em uma das
pastas de recortes de jornais que Lima Barreto colecionava, sob guarda da Fundação
Biblioteca Nacional, existe a primeira parte do relato de Hilário de Gouveia sobre sua
detenção durante o regime Floriano Peixoto, o que mostra que narrativas memorialísticas de
ex-presos políticos da Revolta da Armada não eram inteiramente desconhecidas de Lima
Barreto.105

3.2.1.2. Lima Barreto e o uso de indivíduos reais na construção de seus romances

Lima Barreto havia utilizado indivíduos reais como inspiração para construir seus
personagens em 1909, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro romance. O

101
Santos Dumont. Gazeta de Notícias, 16 de julho de 1901, capa.
102
Ver o artigo Queixa. Cidade do Rio, capa e p. 2, 24 de maio de 1895.
103
Ver, por exemplo, o artigo Uma carta interessante. Gazeta da Tarde, capa, 16 de novembro de 1895.
104
Limana: caderno de inventário dos livros da biblioteca do autor. Rio de Janeiro, 1917. Coleção Lima
Barreto, Divisão de Manuscritos, Biblioteca Nacional.
105
Álbum de recortes de jornais e revistas. Coleção Lima Barreto, Divisão de Manuscritos, Fundação
Biblioteca Nacional. O recorte de jornal que se encontra na coleção de Lima Barreto é a primeira parte da carta
de Hilário de Gouveia, publicada no Jornal do Brasil entre 18 e 21 de junho de 1895. Nela, o médico relata a
perseguição que sofreu durante o regime Floriano Peixoto, sua detenção e posterior fuga.
97
recurso a esta estratégia rendeu-lhe críticas negativas de Medeiros e Albuquerque, que,
escrevendo no jornal A Notícia, referia-se à obra nos seguintes termos:

O seu livro é uma revelação e uma decepção [...] uma decepção porquanto ele é feito
de alusões pessoais, de descrição de pessoas conhecidas, pintadas de um modo
deprimente.[...] E o resultado é que assim fica sendo mau romance e mau panfleto. [...]
Mau panfleto porque não tem a coragem do ataque direto, com os nomes claramente
postos e vai até a insinuações a pessoas, que mesmo os panfletários mais virulentos
deveriam respeitar.106

A biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa reproduziu a carta enviada por
Lima Barreto a Medeiros e Albuquerque, na qual o escritor se justifica para seu crítico: “Na
questão dos personagens há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro
consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa
conhecida como sendo tal ou qual personagem”. (LIMA BARRETO, apud BARBOSA: 2012,
p. 197)

O mesmo procedimento – usar indivíduos reais como personagens de seus romances – foi
utilizado por Lima Barreto em Numa e a Ninfa, de 1915.

Nossa suposição é que, tal como em Recordações do escrivão Isaías Caminha e Numa e a
Ninfa, Lima Barreto teria se baseado em indivíduos reais para a construção dos personagens
de Triste fim de Policarpo Quaresma. Desta vez, ele teria usado alguns nomes verdadeiros
mas construído uma mistura de similaridades / dissimilaridades entre os indivíduos reais e os
personagens do romance. Esta hipótese é reforçada pela leitura da crítica de Medeiros e
Albuquerque ao romance de Lima Barreto, publicada em 1916:

“Mas há no sr. Lima Barreto um tal instinto de agressividade e de caricatura que,


tendo reconhecido alguns dos seus personagens, fica-se com a desconfiança de que
também os outros devem ser copiados – e deformados – da realidade.

É, por exemplo, o que sucede com um tipo de funcionário bajulador, que ele põe em
cena. Esse funcionário começa adulando os chefes, com os quais procura encontrar-se.
Depois, quando os ministros fazem anos, ele lhes recita um soneto, sempre o mesmo,
que termina por esta invariável frase: ‘Salve, três vezes salve!’

106
Crônica Literária. A Notícia, capa, 15 de dezembro de 1909. Francisco de Assis Barbosa faz referência ao
episódio da crítica de Medeiros e Albuquerque em sua biografia sobre Lima Barreto, entre as páginas 196-197.
98
(A este respeito pode-se dizer que o funcionário sempre tinha algum merecimento,
porque, como os santos não dispensam rimas e a palavra ‘Salve’ é das que não tem
constante em português, a tarefa não deixava de ser difícil).

Mais tarde o mesmo homenzinho escrevia um trabalho sobre os princípios científicos


da contabilidade pública e, para obter sua promoção a diretor, andava, por fim,
empenhado em um livro sobre o Tribunal de Contas nos Países Asiáticos!

Sente-se tanto que há nisso a caricatura de alguém que se lê perguntando: “quem


será?’

Em todo caso, ou o autor copie os tipos do seu livro de figuras reais ou, como é o
melhor, os forme com observações diversas, colhidas em uns e outros, o incontestável
é que seus personagens têm vida, impõem-se à atenção”107

Medeiros e Albuquerque nota, portanto, que alguns tipos descritos em Triste fim de
Policarpo Quaresma são familiares, mas não chega a dizer se os identificou. É certo que
identificar a quem Lima Barreto estava se referindo em seu romance estragaria o prazer dos
leitores que tivessem a curiosidade de lê-lo. A menos que se descubra alguma outra fonte,
restará a dúvida se Medeiros e Albuquerque de fato reconheceu os indivíduos presentes no
romance de Lima Barreto. Mas, a parte em que o crítico elogia o bajulador que faz versos não
deixa de ser significativa: teria Medeiros e Albuquerque reconhecido a si próprio na
representação que faz Lima Barreto deste “funcionário bajulador” ao dizer que este
personagem tinha méritos por saber manipular a língua portuguesa? Lembrando Medeiros e
Albuquerque, na época da Revolta da Armada, fazia parte do aparato repressivo de Floriano
Peixoto e, como tal, era frequentador assíduo do Palácio do Itamaraty, como ele mesmo faz
questão de deixar claro em sua biografia.

Nos itens seguintes, tentaremos enumerar as fontes que acreditamos poder ajudar a
desvendar a chave dos personagens de Triste Fim de Policarpo Quaresma.

3.2.1.3. As possíveis conexões entre personagens de Triste fim de Policarpo Quaresma e


antigos prisioneiros políticos do governo Floriano Peixoto

a. O Coronel Inocêncio Serzedello Corrêa e Policarpo Quaresma

107
Crônica Literária. A Noite, 1 de outubro de 1916, p. 2
99
Durante a presidência de Floriano Peixoto, Inocêncio Serzedello Corrêa foi ministro da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas (1892) e da Fazenda (1892-1893). Foi o responsável
pela instauração efetiva do Tribunal de Contas da União, o qual mantém um instituto batizado
em sua homenagem. Em 1893, durante a Revolta da Armada, teve sua prisão decretada pelo
próprio Floriano Peixoto.

Político de tendência nacionalista e um dos articuladores da proclamação da República


(CORRÊA, 1919, 21-22), Inocêncio Serzedello Corrêa é autor das obras O Rio Acre, de 1899,
e O problema econômico do Brasil, publicada em 1903. É considerado por alguns
economistas como um dos iniciadores do pensamento nacional-desenvolvimentista
brasileiro.108

Entre 1909 e 1910, foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro e durante seu mandato
empreendeu visitas a morros e bairros dos subúrbios da cidade, nos quais prometeu a
realização de obras de melhoramentos. Um dos primeiros bairros visitados, em fevereiro de
1910, foi o Engenho de Dentro.109

No romance de Lima Barreto, o personagem “major honorário Inocêncio Bustamante”


faz parte do círculo social frequentado por Policarpo Quaresma. Durante a Revolta da
Armada, Inocêncio Bustamante forma um batalhão patriótico para ajudar Floriano Peixoto no
combate aos revoltosos. Policarpo Quaresma é destacado pelo próprio marechal para fazer
parte do batalhão de Bustamante.

No romance, em diálogo durante o casamento da personagem Quinota, tratando da


aprovação do personagem Genelício como funcionário público do Tribunal de Contas,
Inocêncio Bustamante se manifesta:

Ouvindo tudo o que tinham dito o almirante, o general e os convidados novos, o major
[Inocêncio Bustamante] não pôde deixar de observar:

- Depois da militar, a melhor carreira é a de Fazenda, não acham? (LIMA


BARRETO, 1997, p. 117, grifos nossos)

108
Ver, a este respeito: FONSECA, Pedro Cézar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil.
IN: Pesquisa e Debate. São Paulo: SP, v. 15, nº 2, 2004, p. 225-256.
109
Ver, por exemplo, Prefeitura. Gazeta de Notícias, p.4, 3 de fevereiro de 1910.
100
O fato de que o Inocêncio fictício considere o ministério comandado pelo Inocêncio
real como uma das melhores carreiras do serviço público é uma pista que Lima Barreto pode
ter dado para o esclarecimento da fonte de sua inspiração para Policarpo Quaresma.

Em 1895, o livro Os Mysterios da Correcção durante a revolta de 6 de setembro de


1893 dedicou um capítulo especial a Inocêncio Serzedello Corrêa, reproduzindo um
testemunho dado pelo já ex-ministro ao jornal Gazeta de Notícias, no qual ele descreveu as
condições de sua prisão.

Mais tarde, em 1919, ao recontar os acontecimentos da revolta em seu livro Páginas


do Passado, Serzedello repete, com mais detalhes, a narrativa publicada em 1895 e mostra
como um requerimento foi a causa de sua prisão: durante a Revolta da Armada, quando foi
declarado o estado de sítio na cidade,

Estando eu a dar aula na Escola [Militar], não julguei necessário apresentar-me,


quando, à noite, recebi ordem do comandante da Escola para apresentar-me a esta.
Julgando que queriam dar-me alguma comissão militar e não querendo prestar
serviços a Floriano, que desconfiava de que eu quisesse ficar no poder, e não podendo
ir para a revolta, para a qual não havia sido convidado, julguei de bom alvitre pedir
minha demissão do Exército e de Lente.

Enviei, então, o meu requerimento, que Floriano me devolveu, e como eu insistisse,


mandou prender-me e, no dia seguinte, deu-me a demissão pedida. (CORRÊA, 1919,
p. 62)

Se fizermos uma comparação entre as vidas e os acontecimentos em que estavam


envolvidos Policarpo Quaresma e Serzedello Corrêa durante a Revolta da Armada, veremos
que ambos se encontravam em situações muito semelhantes. Serzedello Corrêa e Policarpo
Quaresma eram nacionalistas e empenhados no estudo do desenvolvimento econômico do
Brasil; ambos eram próximos ao marechal Floriano Peixoto; tanto Serzedello quanto
Quaresma foram presos após escrever uma carta cujo conteúdo desagradou o marechal:
Quaresma – que tinha sido alçado ao posto de carcereiro – escreveu a Floriano Peixoto
queixando-se do tratamento desumano dispensado aos presos da Ilha das Enxadas; Serzedello,
por sua vez, escreveu um requerimento recusando-se a comparecer à Escola Militar e pedindo
demissão do posto de tenente-coronel de engenheiros (cf. COMMERCIO DE SÃO PAULO,
1895, p. 65-66).

Aprisionados – Quaresma na Ilha das Cobras e Serzedello no 7º Batalhão de Infantaria


–, ambos têm suas histórias contadas: o primeiro por meio de seu narrador e Serzedello por
meio de uma carta.
101
Na carta, datada de 13 de outubro de 1893 e publicada no livro Os mysterios da
Correcção durante a Revolta de 6 de setembro, em 1895, Serzedello descreve sua situação:

“[...] estou conservado em prisão, sem culpa formada [...] eu, que durante mais de
doze meses prestei, como ministro, serviço ao governo, que sacrifiquei, em esforço e
lealdade no serviço público, noites inteiras de trabalho, que tive sempre em mãos os
mais delicados assumptos referentes ao governo de s. exc. [o marechal Floriano
Peixoto], que lhe falei sempre a linguagem do bem público e da independência
republicana [...]. Para o santuário de minha família [...] tão rico outr’ora de ilusões e
de crenças, esclarecido pela luz da esperança nos grandes destinos de minha pátria,
aquecido pelo calor da confiança na lealdade e na virtude dos homens, eu recolho-me
hoje, em espírito, com a desilusão de que nada merece quem traz para a vida pública a
alma de patriota, deixando entrever na armadura de combate, amor ao trabalho, à
justiça e à pátria” (COMMERCIO DE SÃO PAULO, 1895, p. 68-69)

O narrador de Triste fim, por sua vez, expressa a situação de Policarpo Quaresma da
seguinte forma:

“Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito
calabouço. Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos
pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? [...] E que tinha feito ele
de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por
amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e
prosperidade [...]. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma
criado por ele no silêncio do seu gabinete [...]. E, bem pensando, mesmo na
sua pureza, o que vinha a ser a pátria? Não teria levado toda a sua vida
norteado por uma ilusão, por uma ideia a menos, sem base, sem apoio, por um
Deus ou uma Deusa cujo império se esvaia?”(LIMA BARRETO, 1997, p.
252-255)

As semelhanças de vocabulário e de ideias-chave entre as duas passagens (alimentar


ilusões sobre a pátria em um ambiente privado; guiar-se pelo patriotismo e mesmo assim ser
punido; e estudar e trabalhar pelo engrandecimento da pátria) podem sugerir que Lima
Barreto tomou conhecimento da carta de Serzedello e pode ter tirado dela a base real
inspiração para construir as reflexões fictícias do narrador de Policarpo Quaresma.

Existem fontes que ligam Lima Barreto a Inocencio Serzedello Correa e que podem
ajudar a sustentar o pressuposto de que o escritor teria se baseado no ex-ministro para
construir o personagem principal de seu romance.

Em1909, um grupo de funcionários públicos enviou a alguns jornais do Rio de Janeiro


uma carta em apoio aos seguintes candidatos a deputado:

O funcionalismo público desta Capital, tendo no mais elevado apreço os


eminentes Republicanos Drs. Innocencio Serzedello Corrêa e Alexandre José
Barbosa Lima, não só pelos bons serviços que incontestavelmente hão
prestado à República, como também pela desinteressada dedicação que
102
sempre revelaram pelo funcionalismo, que os considera verdadeiros amigos; e
não podendo igualmente deixar de ser muito reconhecido aos distintos
republicanos Drs. Thomaz Cavalcanti de Albuquerque e Alcindo Guanabara,
pela vigorosa companha que sustentaram em prol dos interesses justos da
classe, acordou em apresentá-los para deputados no pleito eleitoral de 30 do
corrente110.

Um dos signatários da carta de apoio é Affonso H. de Lima Barreto.

Na coleção Lima Barreto, depositada na Biblioteca Nacional, há pelo menos duas


cartas que retratam uma ligação, ainda que indireta, entre Lima Barreto e Serzedello Corrêa.

Uma delas, não datada, é de Délio Guaraná, jornalista do Jornal do Commercio:

Amigo Barreto.

Vale!

Falta ainda no trabalho sobre o nosso amigo Dr. Serzedello a parte que lhe diz
respeito à vida acadêmica. Não sei o que há a este respeito, apenas tenho
conhecimento de que foi brilhantíssima. Peço-te que digas alguma coisa de
[ilegível] sobre este ponto, bem como não esqueças a sua áurea passagem pela
política do Pará. Isto é para emoldurar o retrato. Espero-te ao meio-dia com
estes trabalhos, para almoçarmos juntos no mesmo ponto de ontem.

Teu amigo, Délio Guaraná.111

A segunda tem como remetente Adriano de Abreu, com data de 21 de junho de 1910.
No post scriptum da carta, Adriano de Abreu escreve:

Como vai o Délio? Já saiu publicado o artigo que ele escreveu sobre a
patriótica administração do Coronel Serzedelo Correa? Como eu
anseio por lê-lo, para encontrar-me depois com o Délio!112

A “patriótica administração” de que fala Adriano de Abreu provavelmente se refere ao


mandato de Serzedello Corrêa como prefeito do Rio de Janeiro, entre 1909 e 1910.

As duas cartas parecem indicar que, em algum momento de 1910, Lima Barreto
colaborou na redação de um ensaio biográfico sobre Serzedello Corrêa. No ano seguinte,
1911, o escritor redigiu Triste fim de Policarpo Quaresma e publicou o romance, em
capítulos, no Jornal do Commercio (BUZELLI, 2009, p. 9-14).

110
A Imprensa, 15 de janeiro de 1909 e O Paiz, 19 de janeiro de 1909.
111
GUARANÁ, Délio. Carta a Lima Barreto. Sem data. Coleção Lima Barreto, Divisão de Manuscritos,
Fundação Biblioteca Nacional.
112
ABREU, Adriano de. Carta a Lima Barreto. Rio de Janeiro, 21 de junho de 1910. Coleção Lima Barreto,
Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
103
Devemos ressaltar que Berthold Zilly (2003) – crítico literário e tradutor de Triste fim
de Policarpo Quaresma para o alemão – já havia apontado certa semelhança entre Policarpo
Quaresma e Inocêncio Serzedello Corrêa. Zilly, no entanto, delimitou a similaridade entre
Quaresma e Serzedello ao campo do pensamento econômico.

b. O General Honorato Cândido Ferreira Caldas e o personagem Contra-Almirante


Caldas

113
O personagem “Contra-almirante Caldas” também faz parte do círculo social de
Quaresma. Veterano da Guerra do Paraguai, passava seus dias redigindo requerimentos e se
envolveu na procura pela embarcação Lima Barros, cujo comando lhe havia sido confiado.
Como não encontrou a embarcação em lugar algum, decidiu procurá-la no Amazonas. De
passagem pelo Rio de Janeiro, foi preso e submetido a conselho de investigação. (LIMA
BARRETO, 1997, p. 49-50)

Aqui cabe uma explicação: na Guerra do Paraguai, o encouraçado Lima Barros


envolveu-se em uma batalha naval em 2 de março de 1868: a embarcação foi atacada por
forças paraguaias durante a madrugada desse dia, sendo socorrida pelas forças brasileiras a
bordo dos encouraçados Brasil e Mariz e Barros (DONATO, 1996, p. 307).

O general Honorato Caldas, autor de A deshonra da República e ex-prisioneiro


político do período florianista, também era veterano da Guerra do Paraguai e também já havia
sido preso e submetido a conselho de investigação, durante o período imperial, por ter
ordenado, sem permissão, que um capitão exercesse funções de fiscal. 114

Além das similaridades biográficas, há outro indício que nos leva a supor que o
almirante Caldas fictício pode ter sido inspirado no general Caldas real: no romance de Lima
Barreto, durante o desenrolar da Revolta, há um diálogo entre os personagens Genelício,
Almirante Caldas e General Albernaz:

Na rua, Genelício escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e dizia ao sogro e


ao almirante [Caldas]:

- A cousa está para acabar!... Breve...

- E se resistirem? – perguntou o general.

113
A patente do personagem Caldas muda durante passagens do romance: ora Lima Barreto refere-se a ele como
contra-almirante, ora como almirante.
114
O Cearense, 6 de setembro de 1876, p. 2 e Diário do Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1876, p. 2.
104
- Qual! Não resistem. Corre que já propuseram rendição... É preciso arranjar uma
manifestação ao marechal...

- Não acredito – fez o almirante. – Conheço muito o Saldanha, é orgulhoso e não se


entrega assim... (LIMA BARRETO, 1997, p. 246, grifos nossos)

Assim como o Caldas fictício, o general Honorato Caldas real também “conhecia
muito o Saldanha”: escreveu e fez publicar, em 1896, a obra Apotheose do Almirante
Saldanha da Gama: documentos e traços históricos da sua carreira militar e vida pública,
epopeas de dor e homenagens cívicas nacionaes e estrangeiras tributadas à sua memória,
uma das primeiras biografias sobre Saldanha da Gama.

Devemos atentar para o fato de que a embarcação que o personagem de Lima Barreto
procura seja justamente o Lima Barros: a participação no resgate do encouraçado durante a
Guerra do Paraguai rendeu a Saldanha da Gama uma das primeiras condecorações de sua
carreira na Marinha e o general Honorato Caldas trata dessa homenagem em seu livro
Apotheose do Almirante Saldanha da Gama. (CALDAS, 1896, p.3)

c. A amizade entre Lício Clímaco Barbosa, ex-prisioneiro político da Casa de


Correção, e Lima Barreto

Lício Clímaco Barbosa, como narrado na segunda parte deste subcapítulo, foi um dos
redatores do jornal A Justiça, editado para servir como memória dos presos políticos da Casa
de Correção, em 1894. Quando de sua entrada na penitenciária, Lício ocupou a 7ª galeria até
ser finalmente alocado na 5ª galeria, onde editou o jornal. 115 Seu companheiro de cárcere, o
italiano Nilo Deodati, era um dos desenhistas do periódico.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, a 7ª galeria da Casa de Correção é citada


quando o italiano Coleoni, amigo de Policarpo Quaresma, teme ser enviado para a prisão:

De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade, quando o governo


provisório expediu o famoso decreto de naturalização, era bem possível que uma ou
outra parte se ativessem a isso, para desinteressar-se dele ou mantê-lo na famosa
galeria nº 7, da Casa de Correição, transformada, por uma penada mágica, em prisão
de Estado. (LIMA BARRETO, 1997, p.221)

A amizade entre Lima Barreto e Lício Barbosa é declarada na errata da segunda edição
de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicada em 1917:

115
Jornal A Justiça, Lista de presos políticos que passaram pela Casa de Correcção de novembro de 1893 a
junho de 1894. Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
105
Seria superior às forças humanas e à nossa própria capacidade de perfeição que este
livro saísse sem incorreções, apesar de ser a segunda edição.

Foi composto e impresso com todo o vagar e carinho, revisto pelo autor e seu amigo
Lício Barbosa, a quem, aproveitando a oportunidade, ele agradece do fundo do
coração o serviço desinteressado que lhe prestou. (LIMA BARRETO, 1917, Errata).

Em 1919, Lima Barreto e Lício Barbosa participaram da fundação da Liga Brasileira


Anti-Futebol (BARBOSA, 2012, p. 305). Na Biblioteca Nacional há um cartão na
correspondência de Lima Barreto, assinado apenas por “Lício”, marcando um encontro para
conversar sobre negócios.116 Há indícios de que Lima Barreto tenha comparecido aos serviços
funerários em memória do pai de Lício, Clímaco Ananias Barbosa, em 1912. 117

O nome do personagem Genelício, de Triste Fim de Policarpo Quaresma, pode ser


uma menção oculta ao amigo de Lima Barreto.

d. Policarpo Quaresma e outros carcereiros humanitários

Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando contra
a cena que presenciara na véspera.

Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a
esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera
diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e
a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão,
indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente. (LIMA
BARRETO, 1997, p. 253)

No episódio da carta que Policarpo Quaresma, já no posto de carcereiro, escreve ao


marechal denunciando os maus tratos impingidos aos prisioneiros da Ilha das Enxadas,
transferidos para serem executados no Boqueirão, há outra possível similaridade com outros
indivíduos reais, cujas histórias foram contadas nas obras que precederam o romance de Lima
Barreto e que também tentaram, cada um à sua maneira, intervir em favor dos prisioneiros
políticos do regime florianista.

O primeiro deles, apoiador de Floriano Peixoto, como o fora Policarpo Quaresma: o


tenente Edgard Gordilho, integrante do Batalhão Acadêmico, um dos batalhões patrióticos
criados para auxiliar o marechal durante a Revolta da Armada.118

116
Lício. Bilhete postal a Lima Barreto, marcando um encontro para tratar de negócios. Rio de Janeiro, 13 de
julho de 1914. Coleção Lima Barreto, Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional. A borda inferior
esquerda do bilhete está queimada.
117
Clímaco Barbosa. Cartão a Lima Barreto, agradecendo manifestação de pêsames. 29 de agosto de 1912.
Coleção Lima Barreto, Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
118
Códice Batalhões Patrióticos, Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
106
Edgard Gordilho, segundo narrou Athanagildo Barata Ribeiro em 1895, era
comandante do Forte do Gragoatá e “foi demitido do comando por ter declarado que não se
prestava a maltratar os prisioneiros sob sua guarda” (RIBEIRO, 1895, Appensos, p. XVII-
XVIII).

Alguns jornais, em contraposição à narrativa de Athanagildo Barata Ribeiro,


noticiaram que a atuação de Gordilho rendeu-lhe condecorações “pelos relevantes serviços
prestados à República durante a revolta”. 119 De fato, no códice Batalhões Patrióticos consta
que Edgard Gordilho “por decreto de 9.2.1894 obteve as honras de capitão honorário por
actos de bravura praticados no combate do dito mez na cidade de Nictheroy, onde foi
ferido”.120

A data e o ato de demissão de Edgard Gordilho não foram localizados em nossa


pesquisa e nem encontramos mais referências à sua destituição do posto de comando do Forte
de Gragoatá nas demais fontes consultadas até o momento.

O segundo é o guarda Manoel Joaquim de Oliveira, que mereceu menção em A


deshonra da República, livro do já citado general Honorato Caldas. Segundo Caldas, havia a
intenção, por parte dos administradores da penitenciária, de sufocar os presos políticos da
Casa de Correção com pó de cal, em 1894. Lembre-se a propósito que, quase vinte anos
depois, durante a Revolta da Chibata, alguns companheiros de prisão do marinheiro João
Cândido morreram da mesma forma: asfixiados com cal. No entanto, em fins do século XIX,
contra os prisioneiros da Casa de Correção, o plano não foi concluído graças à intervenção do
guarda Manoel:

“Por felicidade inaudita, tocou-nos por guarda da galeria um homem de boa índole,
respeitador e cordato, prestativo e humanitário, talvez o único nestas condições, [...] de
nome Joaquim Manoel de Oliveira, também português, o qual nos preveniu logo da
monstruosa medida e prestou-nos ainda outros serviços inestimáveis, sem faltar,
porém, às suas obrigações e muito menos trair a confiança inerente a seu emprego”
(CALDAS, 1895, p. 112)

Em 1895, o guarda Manoel Joaquim de Oliveira foi uma das testemunhas de Honorato
Caldas no processo que este moveu contra o governo brasileiro. (CALDAS, 1895, 329-330).

119
Ver Honras de posto, publicada no Diário de Notícias, capa, 8 de outubro de 1894 e Granadinhas, publicada
no jornal O Fluminense, p. 2, 19 de outubro de 1894, no qual o capitão Edgar Gordilho é saudado como “o herói
do Gragoatá”.
120
Códice Batalhões Patrióticos, op. cit.
107
Devemos relembrar que o jornal A Justiça, em 1894, já havia feito referências ao
“guarda Diogo”, carcereiro que se tornou amigo dos prisioneiros políticos e cujo falecimento
foi lamentado no periódico:

Vítima do acidente de que demos notícia, faleceu o nosso bom, o nosso único amigo
nesta malfadada prisão, o infeliz Diogo, ex-guarda da 5ª galeria.

Sentindo não podermos dar uma pública manifestação de nosso sincero pesar, de
dentro de nossas prisões atiramos um punhado de saudades sobre a tumba deste
homem, que modesto e ignorado, soube inspirar afeição a todos os presos políticos da
Casa de Correção. 121

e. O papel das mulheres na libertação dos presos políticos

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, sua afilhada Olga, ao saber de sua prisão,
tenta intervir para libertar o padrinho. Não podendo contar com a ajuda de seu marido, um
jacobino, decide acatar a sugestão de Ricardo Coração dos Outros e ir até o Itamaraty pedir
pela vida de Quaresma. Ao chegar ao palácio, testemunha várias pessoas tentando exibir-se
para o marechal, na esperança de conseguir algum favor político. Olga tenta, então, conseguir
uma audiência com o marechal, pedido que lhe é negado ao conversar com um ajudante de
ordens. Diante da negativa, Olga desiste, pensando ser melhor honrar a memória de Policarpo
sem ter que recorrer aos favores daqueles que o tinham aprisionado.

Em suas memórias, Caldas ressalta, tal como Lima Barreto em Triste Fim, o papel das
mulheres na tentativa de falar a Floriano Peixoto para conseguir seus parentes:

“O homem que, finalmente, sentado na cadeira da suprema magistratura do


seu país, autoriza ou consente ou abre margem à mais hedionda das torpitudes
a que pode descer um governo dissoluto: a especulação com que certos
familiares e validos do Itamaraty estão se constituindo em protetores das
vítimas encarceradas, para arrajar-lhes a liberdade, uns a troco de dinheiro,
qual sórdido agiota, outros com o fim de cearem seus instintos sexuais, qual
D. Juan lascivo, sem alma nem coração para respeitar as lágrimas santas das
mulheres e filhas desses mártires, as quais, coitadas, não medem sacrifícios no
piedoso afã de salvar seus maridos e seus pais, sobressaindo neste ignóbil
apostolado da concupiscência o próprio diretor da Casa de Correção.”
(CALDAS: 1895, p. 87)

Carlo Ginzburg, em Sinais, raízes de um paradigma indiciário, descreve que o método


morelliano de análise pictórica baseia-se na observação microscópica de “pormenores

121
Jornal A Justiça, nº XIII, Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
108
negligenciáveis” para diferenciar uma pintura autêntica de uma falsificação (GINZBURG,
1989, 144). No mesmo artigo, tratando da arte da caça, o historiador italiano assevera que “o
que caracteriza este saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis,
remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”. (GINZBURG, 1989,
152).

Tentamos mostrar neste subcapítulo que há certos “detalhes negligenciáveis” no


romance de Lima Barreto que só se tornam relevantes quando lemos Triste fim de Policarpo
Quaresma juntamente com as obras que o antecederam e que retratavam a repressão
florianista no período da Revolta da Armada de 1893. Assim, há elementos que mostram que
Lima Barreto pode ter se inspirado nas memórias de ex-prisioneiros políticos da Revolta da
Armada para construir certos aspectos de seu romance.

Uma pista adicional de que Lima Barreto pode ter adotado tal estratégia é uma carta,
publicada no jornal ABC, para o qual o escritor colaborava. Em 1916, ano de lançamento de
Policarpo Quaresma, um oficial do exército, Firmino Santos, envia uma carta ao jornal A
Capital criticando a obra. Lima Barreto pede, em 1917, que o jornal ABC republique a carta
de Firmino Santos. No dia 24 de março de 1917, o jornal atende ao pedido de Lima Barreto.

O Capitão Firmino Santos se refere da seguinte forma ao romance:

“Este seu último livro constitui um verdadeiro panfleto contra as instituições


republicanas, panfleto risonho, faceto, sedutor até, mas amargo e venenoso como não
conhecemos outro.

O Marechal Floriano, esta figura imorredoura na história republicana, é aí pintado


como um preguiçoso que vence, não em virtude de sua ação e de sua energia, mas em
virtude da própria preguiça. O Sr. L.B., moço como é, naturalmente remexeu
panfletos da época” (grifos nossos). 122

Os “panfletos da época” a que Firmino Santos alude foram tratados no capítulo 2 desta
dissertação. A princípio, parece que um dos leitores de Triste fim de Policarpo Quaresma
percebeu as ligações entre o romance e os relatos autobiográficos e testemunhais publicados
no final do século XIX.

No entanto, Francisco de Assis Barbosa, na já citada biografia de Lima Barreto, dá


nova interpretação à carta de Firmino Santos baseando-se em Antônio Noronha Santos, amigo

122
Foi Pena!, In: ABC, 24 de março de 1917, p. 18.
109
do romancista, o qual deu um depoimento a Francisco de Assis Barbosa quando este estava
redigindo a biografia do escritor. Segundo Noronha Santos, “Firmino Santos” poderia ser o
próprio Lima Barreto, que escreveu a carta e enviou aos jornais como forma de fazer
propaganda de Triste Fim de Policarpo Quaresma (BARBOSA, 2012, p. 265, nota 20). Caso
a suposição de Noronha Santos esteja correta, Lima Barreto estaria confirmando, por meio de
seu pseudônimo “Firmino Santos”, que de fato havia consultado as obras publicadas em 1895.

Devemos ressaltar que alguns aspectos da obra de Lima Barreto foram descobertos a partir não
de seu acervo, mas de depoimentos e acervos de terceiros. Em 2016, por exemplo, o professor Felipe
Botelho Corrêa publicou um volume com crônicas inéditas de Lima Barreto, publicadas sob diversos
pseudônimos. O trabalho de Corrêa baseou-se em pesquisas feitas por Francisco de Assis Barbosa e
Carlos Drummond de Andrade, que conseguiram coligir os pseudônimos que Lima Barreto ao assinar
suas crônicas. A partir das listas de Drummond e Barbosa, e usando a tecnologia de reconhecimento
de caracteres em acervos digitais – OCR – o professor Corrêa localizou 164 crônicas do autor que
eram desconhecidas do público.

Tendo em vista as pistas deixadas por Lima Barreto, a estratégia adotada pelo escritor
parece ter sido a seguinte: ele teria ocultado os indivíduos reais que teriam inspirado a
construção de Triste fim de Policarpo Quaresma nos personagens secundários almirante
Caldas, major honorário Inocêncio Bustamante, Genelício e no próprio Policarpo Quaresma.
Como artifício, ele teria mantido nomes reais mas mudado as patentes, no caso dos
personagens militares (o coronel Inocêncio Serzedello Corrêa, que teria sido a inspiração para
o personagem Policarpo Quaresma, estaria oculto no personagem “major Inocêncio
Bustamante”; o general Honorato Caldas, por sua vez, estaria oculto no personagem “contra-
almirante Caldas”). Outras pistas para o esclarecimento da identidade dos indivíduos reais
estariam escondidas em detalhes de diálogos e em certas similaridades entre os indivíduos
reais e fictícios.

As evidências que ajudam a amparar nossa hipótese são a relação de amizade que
Lima Barreto mantinha com Lício Clímaco Barbosa – ex-preso político e redator do jornal A
Justiça - e o fato de ter auxiliado a redação, em 1910, de um ensaio biográfico sobre
Inocêncio Serzedello Corrêa, também ex-preso político do regime Floriano Peixoto.

Existem lacunas na documentação sobre as relações pessoais de Lima Barreto: de


Lício Clímaco Barbosa foram localizadas apenas algumas cartas - sob guarda da Biblioteca
Nacional e depositadas no acervo de seu padrinho, o senador Rui Barbosa -, além do jornal A

110
Justiça. De Délio Guaraná, os únicos vestígios encontrados até o momento foram alguns
artigos de jornal e as duas correspondências existentes no acervo Lima Barreto. O próprio
acervo de Lima Barreto pode não conter todas as correspondências que o escritor
enviou/recebeu ao longo de sua vida.

A documentação coletada até o momento não nos informa sobre qualquer vínculo
direto entre Lima Barreto e o general Honorato Caldas. No entanto, as semelhanças entre os
dados do general Caldas real e do contra-almirante Caldas fictício sugerem que Lima Barreto
pode ter tomado conhecimento da biografia de Honorato Caldas e utilizado alguns de seus
elementos na construção do personagem secundário de Triste fim de Policarpo Quaresma.

A princípio, considerávamos que as memórias da repressão florianista publicadas em


1895 teriam sido ofuscadas pelo sucesso do romance Triste fim de Policarpo Quaresma. No
entanto, uma leitura mais detalhada dos documentos coletados e do romance de Lima Barreto
mostra indícios de que as memórias de alguns ex-prisioneiros políticos do regime florianista
resistem até hoje nas memórias do fictício Major Policarpo Quaresma e que alguns elementos
do romance já estavam presentes nas narrativas que o antecederam.

111
Anexos ao capítulo 3

1. Serzedello Corrêa, carta de 13 de outubro de 1893, publicada no livro Os


mistérios da Correção durante a revolta de 6 de setembro, p. 68-69.

Informaram-me mais tarde de que os dois colegas que me inquiriram lavraram um


parecer, concluindo por declarar que não havia provas de criminalidade contra mim. Apesar
disso, tendo cessado no dia 10 o estado de sítio, e não sendo eu mais militar, estou conservado
em prisão, sem culpa formada, e isso quando o chefe do Estado, em manifesto a que falta a
gramática, concitou os cidadãos ao exercício do direito do voto, afirmou que as liberdades
constitucionais estão garantidas e que da livre manifestação das urnas depende a consolidação
da República. E, no entanto eu, que durante mais de doze meses prestei, como ministro,
serviço ao governo, que sacrifiquei, em esforço e lealdade no serviço público, noites inteiras
de trabalho, que tive sempre em mãos os mais delicados assuntos referentes ao governo de s.
exc., que lhe falei sempre a linguagem do bem público e da independência republicana, que vi
consagrado pelo Parlamento, como moralizador e garantido, o ato que motivou minha retirada
do ministério, sou conservado preso, ao mesmo tempo que se procura convencer o partido
republicano de meu Estado de que o meu nome não deve ser sufragado.

Como tudo isto é sincero, puro, honesto, moralizador e constitucional!

Devo aqui, desde já, agradecer ao ilustre republicano comandante do 7º e aos seus
dignos oficiais o modo cavalheiroso por que fui acolhido e o conforto que me foi dispensado.
Este procedimento, que bem mostra a elevação moral dos sentimentos de tão dignos militares,
é também para mim a prova evidente de que ss. Ss. Sentem que não têm em seu seio um réu
de polícia ou um criminoso suspeito aos santos ideais da fé republicana, e sim um ex-
companheiro que, se não honrou a farda, também, em 19 anos de serviço, não maculou com a
apostasia dos covardes, com a covardia dos fracos ou com as traições dos homens sem fé e
sem crenças.

Para o santuário da minha família, abençoado hoje mais do que nunca pelas lágrimas
de minha velha mãe, tão rico outrora de ilusões e de crenças, esclarecido pela luz da
esperança nos grandes destinos de minha pátria, aquecido pelo calor da confiança na lealdade
e na virtude dos homens, eu recolho-me hoje, em espírito, com a desilusão de que nada
merece quem traz para a vida pública a alma de patriota, deixando entrever, na armadura de
combate, amor ao trabalho, à justiça e à pátria.
112
2. Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1997, p. 252-255

Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele calabouço estreito.
Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia
aquele triste fim? De que maneira sorrateira o destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse
pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto de sua
vida? Teria sido ele com seus atos passados, com suas ações encadeadas no tempo, que fizera
com que aquele velho deus docilmente o trouxesse até a execução de tal desígnio? Ou teriam
sido atos externos, que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da
onipotente divindade? Ele não sabia e, quando teimava em pensar, as duas coisas se
baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.

Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e,
pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia
consulta-lo à luz fraca da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.

Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira, nada lhe quisera
dizer; e, desde que saíra da Ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com
ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com
um olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele atribuía a prisão à
carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara na véspera.

Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a
esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante
dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua
solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada
omitiu de seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.

Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado,
isolado dos seus semelhantes, como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva,
sofrendo umidade, misturado com seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como
acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela angústia
provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular e
incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.

113
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar
mais a vitória, e senti-la bem na consciência cousa sua, própria, e altamente honrosa.

Iria morrer, quem sabe naquela noite mesmo? E que tinha feito ele de sua vida? Nada.
Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito
de contribuir para sua felicidade de prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o
premiava, como ela o condecorava? Matando-o. e o que não deixara de vez, de gozar, de fruir
na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara – todo esse lado da existência que
parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não
experimentara.

Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de
estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que
lhe contribuíra para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é
que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, do folclore, das suas
tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhum! Nenhuma!

O tupi encontrou incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura.


Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como
diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como
feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma
decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.

A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio de seu
gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir,
havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do
Itamarati.

E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não teria levado
toda sua vida norteado por uma ilusão, por uma ideia a menos, sem base, sem apoio, por um
Deus ou uma Deusa cujo império se esvaía?

114
Considerações finais

Os indivíduos de cujas memórias tratamos nesta dissertação tinham diferentes relações


com a República brasileira. Serzedello Correa tinha sido um dos que ajudaram a proclamá-la;
Honorato Caldas era um republicano, Atanagildo Barata Ribeiro a considerava uma perversão
política decorrente do caráter degenerado do povo brasileiro. A opinião de Alfredo de Barros,
ligado ao monarquista Joaquim Nabuco, também não era das melhores:

“Que se poderá esperar ainda de um regime saído da traição concertada nos quartéis,
plantada por meia dúzia de aventureiros, servidos por soldados imbecis, comandados
por um chefe inconsciente do que estava fazendo – dócil, irresponsável nas garras
endemoninhadas de abutres famintos do pasto que há tanto tempo buscavam
devorar?” (BARROS: 1895, p. 111-112).

Coelho Netto havia sido um republicano militante cuja arma era a pena. Lima Barreto,
ainda criança, testemunhou a face mais dura da República e, quando adulto, descreveu em sua
produção todas as mazelas de que se revestiu o regime republicano no Brasil: sua violência, as
trocas de favores, o culto da aparência, a política de conveniências, a degradação dos hábitos.
Sua acidez explica-se pelo impacto que a proclamação do regime republicano teve em sua
família, principalmente sobre seu pai, que perde o emprego assim que o novo regime é
instalado, o que coloca a família em dificuldades (SEVCENKO: 1983, p. 192-193).

Em comum, todos estes indivíduos tinham a memória e os testemunhos que


guardavam do período Florianista, especificamente a repressão empreendida pelo governo
sobre aqueles que eram considerados suspeitos. Caldas, Barros, Atanagildo e Serzedello
foram presos; Coelho Netto viu seus amigos serem presos e perseguidos, tendo sido forçados
a se esconder para garantir sua sobrevivência. Lima Barreto, 17 anos depois dos
acontecimentos da Revolta da Armada, ainda lembrava-se do que havia testemunhado
naqueles dias difíceis no Rio de Janeiro. Essas memórias foram depois consubstanciadas em
escritos dos quais Triste fim de Policarpo Quaresma é o mais longevo.

O primeiro capítulo buscou mostrar que, mesmo na prisão, os perseguidos políticos do


regime florianista tentavam documentar seu cotidiano, na forma de um jornal manuscrito,
dando testemunho de sua experiência. No segundo capítulo, mostramos como, após o fim da

115
presidência Floriano Peixoto, passaram a surgir no meio editorial e na imprensa do século
XIX, as narrativas memorialísticas dos ex-prisioneiros políticos bem como a documentação
de outras experiências repressivas que se deram no Rio de Janeiro durante o período
florianista. No último capítulo, mostramos que as memórias e testemunhos da repressão
política florianista constituem parte da produção literária de Coelho Netto e Lima Barreto.

Tentamos mostrar nesta dissertação, portanto, as relações que podem ser estabelecidas
entre estes escritos, como eles se inter-relacionam pelas memórias comuns que eles relatam e
pelas relações de sociabilidade que possibilitam que eles passem adiante, como no caso de
Policarpo Quaresma, que guarda em si as memórias de outros perseguidos políticos que
ficaram adstritas ao fim do século XIX, não tendo logrado ser publicadas em períodos
posteriores.

Algumas razões para a proeminência da narrativa de Policarpo Quaresma podem ser


aventadas: a recuperação do legado de Lima Barreto por Francisco de Assis Barbosa, que deu
fôlego à republicação de suas obras pode ser uma delas. Evidentemente, as hipóteses
levantadas na parte final de nossa dissertação são limitadas pela ausência de documentação
referente aos outros perseguidos políticos do regime Florianista: o que resta deles são
fragmentos que ficaram conservados justamente no acervo de Lima Barreto sob guarda da
Biblioteca Nacional. No entanto, acreditamos poder ter contribuído para a recuperação das
memórias da repressão Florianista à época da Revolta da Armada ao prospectar nos acervos
pesquisados as fontes que possibilitam o acesso a estas memórias.

116
Fontes e Bibliografia

1. Fontes Impressas

BARRETO, Affonso Henrique de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma: edição crítica.
Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José da Costa Rica, Santiago
de Chile: ALLCA XX, 1997. (Primeiras edições: 1911/1916)

BARROS, Alfredo de. Notas e apontamentos sobre minha prisão na Fortaleza da Conceição,
na Casa de Correção e na minha residência. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1895.

CALDAS, Honorato. Apotheose do Almirante Saldanha da Gama: documentos e traços


históricos da sua carreira militar e vida pública, epopeas de dor e homenagens cívicas
nacionaes e estrangeiras tributadas à sua memória. Rio de Janeiro: Typographia e Papelaria de
Alex. Villela, 1896.

__________.A deshonra da República: apreciações gerais sobre a revolta da marinha de


guerra nacional e o governo do vice-presidente marechal Floriano Peixoto. Rio de Janeiro:
Imprensa Montenegro, 1895.

COELHO NETTO. O morto (memórias de um fuzilado). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,


1994. (Primeiras edições: 1895/1898)

COMMERCIO DE SÃO PAULO. Os mysterios da Correcção durante a revolta de 6 de


setembro de 1893 publicados pelo Commercio de São Paulo. São Paulo: Typographia da
Industrial de S. Paulo, 1895.

CORRÊA, Inocêncio Serzedello. Uma figura da República: páginas do passado. Livraria


Freitas Bastos, 1959, 2ª edição. (1ª edição: 1919)

___________. O problema econômico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903.

RIBEIRO, Athanagildo Barata. Sonho no cárcere: dramas da revolução de 1893 no Brasil.


Rio de Janeiro: Casa Montalverne, 1895.

2. Fontes Manuscritas

2.1.Fundação Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos

2.1.1 Coleção Lima Barreto


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ABREU, Adriano de. Carta a Lima Barreto. Rio de Janeiro, 21 de junho de 1910. Coleção
Lima Barreto.

Álbum de recortes de jornais e revistas, 1894-1909. Coleção Lima Barreto.

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Cartas de Lima Barreto a seu pai, 1893.

CLÍMACO BARBOSA. Cartão a Lima Barreto, agradecendo manifestação de pêsames.


29 de agosto de 1912. Coleção Lima Barreto.

GUARANÁ, Délio. Carta a Lima Barreto. Sem data. Coleção Lima Barreto.

LÍCIO. Bilhete postal a Lima Barreto, marcando um encontro para tratar de negócios.
Rio de Janeiro, 13 de julho de 1914. Coleção Lima Barreto.

Limana: caderno de inventário dos livros da biblioteca de Lima Barreto. Rio de Janeiro,
1917. Coleção Lima Barreto.

2.1.2. Coleção La-Fayette Cortes

A Justiça: jornal dos presos políticos da Casa de Correção, 1894.

2.1.3. Coleção Sylvio Vieira Peixoto

Carta de Medeiros e Albuquerque a Arthur Vieira Peixoto, 1 de agosto de 1893.

2.1.4. Material sem coleção definida

Códice Batalhões Patrióticos.

2.2.Fundação Casa de Rui Barbosa

Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. São Paulo, 16 de novembro de 1884.

Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. Bordo do Aquidabã, 10 de outubro de


1893.

3. Periódicos

O Combate

O Tempo

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O Paiz

Jornal do Commercio

O Commercio de São Paulo

Jornal do Brasil

4. Fontes Iconográficas (excetuadas aquelas provenientes de periódicos ilustrados)

4.1.Biblioteca Nacional – Setor de Iconografia

Fotografias de Trinta-réis. 1893/1894.

Bibliografia citada e consultada

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JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. (Org.) A história na política, a política na história. São
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