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A identidade indígena e o mito da pureza étnica

Por Cristina Roseno

A maior parte dos indígenas em contexto urbano sofre um


estigma. Este estigma é chamado de mestiçagem. Mestiços são
pessoas descendentes de duas ou mais etnias/ raças humanas
diferentes, e que possuem as características das mesmas, esta é uma
definição muito utilizada dentro de movimentos étnicos raciais para
diferenciar pessoas na sociedade.

Digo que é um estigma porque dentro de certos movimentos


indígenas existe uma ideia de que o mestiço não é indígena de
verdade porque não conhece as tradições, a língua, não tem o
fenótipo e muitas vezes nem sabe o nome de sua etnia. Porém, esta
pessoa “mestiça” tem uma consciência, de que sua ancestralidade é
indígena.

Bom, parece que temos um problema não é verdade? Esta


pessoa cresceu com uma narrativa familiar de ancestrais indígenas
na família sem muito detalhes e não muito mais que isso foi o acesso
à sua ancestralidade. Pode ser que esta pessoa também tenha em sua
arvore genealógica um europeu ou africano. Como esta pessoa
poderia se definir apenas indígena neste caso?

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Gostaria de propor uma reflexão sobre a ideia de Raça. Do
ponto de vista da genética ou genoma, não existe raças humanas.
Existe sim o racismo que tem origem na teoria do Evolucionismo
Social – que defendia uma crença sem base científica e com
interesses econômicos coloniais – que a civilização europeia era
mais evoluída e superior, e que os povos nativos colonizados eram
inferiores dentro de uma ideia de raça. Dizer que existiam raças
inferiores, com menos capacidade cerebral causa da falta de
progresso (no caso o Estado, a tecnologia e a economia colonial),
era a base desta ideologia eurocentrista, que utilizava uma ideia de
raça e pureza racial, misturada com eugenia, para dominação e
escravização de seres desumanizados chamados de raças inferiores
que não tinham sequer alma. Estas ideias deixaram marcas sociais
tão profunda que até hoje, mesmo sabendo que é provado
cientificamente que não existe raças, temos que lidar com o racismo
com várias ramificações, e o racismo como uma construção social
que causa desigualdades, estigmatização, e finalmente o ponto que
quero chegar, o erro de supor que aja uma pureza racial. É um tiro
no pé.

Do conceito de mestiçagem já podemos identificar então o


problema da ideia de mistura de raças. As ciências sociais,
contrapondo a teoria de civilização, evolucionismo ou darwinismo
social, eugenia e outras teorias racistas, criou novos conceitos muito
mais interessantes para os movimentos sociais que lutam por

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igualdade de direitos entre todos os povos. Ao invés de falar em
civilização falamos sobre culturas, ao invés de falar em raças,
falamos de etnias e relativizamos o conceito de progresso de acordo
com outras racionalidades que não eurocêntricas. Este pensamento
linear, que traça uma linha reta entre passado presente e futuro,
primitivo e moderno não cabe definitivamente ao pensamento
indígena de Aby Yala, vide intelectuais indígenas que falam sobre
as cosmovisões indígenas, cíclicas, tempo em movimento.

Falando em etnia, origem étnica-cultural, devemos analisar


o quanto é incompatível o pensamento ideológico eurocêntrico e o
pensamento não-branco. Se não existe raças, nossa diversidade é
étnica ou cultural, a partir do momento em que você se define não
branco, já fica implícito que a branquitude não faz sentido para você,
juntamente com a ideia de civilização. Qual é a vantagem de acordo
com o ponto de vista branco de ser indígena? A branquitude
reivindica as vantagens da economia colonial, ama a civilização, não
a nega. Como falar de pureza cultural se cultura não é estática? A
cultura da mesma forma não pode ser observada totalmente por ser
também composta de simbolismos e subjetividade. Como poderia o
outro compreender e observar toda a subjetividade das culturas após
séculos de colonização e etnocídio? A história na visão não branca
é cíclica, estamos constantemente dialogando com o passado, o
presente e o futuro, retomando raízes, crescendo, morrendo e
renascendo. E é desta forma que o pensamento não-ocidental define

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o passado, presente e futuro como um tempo só. A divisão não
existe.

Outro aspecto que enfraquece a ideia de pureza étnica como


parâmetro para a auto identificação indígena é os esforços do Estado
Brasileiro proibir práticas tradicionais dos povos originários aqui em
Pindorama, impedindo mulheres indígenas de casar com homens
indígenas, proibindo a língua materna, proibindo as práticas
religiosas, expulsando povos dos seus territórios e escravizando
indígenas com trabalho forçado até metade do século 20. Como é
possível acreditar que todas as etnias ou a maioria delas
sobreviveram intactas aos esforços etnocidas de todos os
governantes que o Brasil já teve? É razoável questionar a
autodeclaração indígena de uma pessoa neste território por não ter
tido contato com as tradições de sua origem étnica ou mesmo saber
o nome da etnia se em boa parte da história do Brasil era proibido
“ser índio”?

Muitas e muitos de nós da periferia e centros urbanos temos


nos deparado com uma realidade de negação da autodeclaração
étnica ainda pouco entendida e tida como importante pelos diversos
movimentos sociais, políticos, classistas e indenitários em que tenho
contato. Muitos de nós indígenas sem terras, das favelas e centros
urbanos nos deparamos com mais uma herança do etnocídio
indígena no Estado Brasileiro, no campo, na floresta, na periferia e

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centros urbano, e ficamos entre apenas duas opções de identidade
étnica: branco e afrodescendente – lembrando que pardo é a cor de
pele de muitos indígenas, mas não de todos e não é identidade
étnica.

Desde de crianças muites de nós ouvimos que tivemos


nossas ancestrais pegas a laço (sequestro seguido de cárcere privado,
escravização e estupro romantizado) ou que temos índios na família,
mas mesmo assim nossa identidade indígena é constantemente
negada inclusive pela esquerda por não estarmos vivendo de forma
tradicional e dentro de territórios indígena, e que desta forma não
sofremos opressão que uma pessoa indígena aldeada sofre. Mas é
necessário dizer que a opressão da falta de acesso à memória e
histórias de nossas etnias e a estigmatização da mestiçagem é
também opressão e está dentro do projeto capitalista, e se muitos de
nós não sabemos a nossa etnia isto é prova de que este projeto
capitalista de hegemonia cultural tem sido efetivo. Gostaria de
levantar alguns fatos históricos citados anteriormente que
questionam o por quê da resistência de alguns setores à
autodeclaração indígena ( e não heterodeclaração por parte do
Estado) e mostram como esta postura favorece o projeto político
colonial de dominação e hegemonia cultural socio-cultural. Estes
fatos explicam um pouco como o fato de nós indígenas em contexto
urbano não aldeados temos passado por um processo histórico de

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apagamento e racismo estrutural a ponto de muitas de nós temos
imensa dificuldade de resgatar até mesmo o nome da nossa etnia.

Gostaria de começar com um resgate histórico de como o


Estado fez um grande esforço para que os povos indígenas não
estivessem em seus territórios tradicionais e para que hoje, não estar
em terras tradicionais, fosse para este mesmo Estado um critério
para dizer que os povos são “falsos índios”.

Genocídio, miscigenação, etnocídio e


escravização dos povos indígenas.

1500- No documento “ A carta de Pero Vaz de Caminha”


em muita passagem este analisa os órgãos genitais de homens e
mulheres para ser relatado aos Rei, e descreve que muitos deles
estavam com moças e mulheres dos povos originários. Estes relatos
merecem ser encarados como estupros e abusos sexuais de crianças,
adolescentes e mulheres que marcaram já os primeiros contatos
entre invasores e povos originários. Desta forma, fica sendo um
problema ter como critério a não miscigenação das etnias para a
autodeclaração. Pode-se comparar com culpar a vítima por estupro

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que esta sofreu. Este foi o início do processo de constituição
miscigenada do povo brasileiro.

1562 – Padre José de Anchieta descreve como a troca de


objetos infectaram com doenças os povos tradicionais (doenças que
ele afirma ser os justos juízos de Deus) e houve 30.000 mortes.

A divisão do território em capitanias hereditárias e início da


exploração econômica do território, juntamente com a escravização
dos povos originários. Devemos entender que eram neste período
aproximadamente mais de mil etnias, a resistência destas etnias à
catequização e escravização era diferente de acordo com a cultura.
Esta ideia de haver o comportamento do índio brasileiro em geral, é
etnocída, é matar a diversidade cultural.

A escravidão em que foram submetidos os povos originários


do Brasil (cujo nome originário era Pindorama) e os povos
africanos, que era a estrutura econômica do Brasil, os impondo outro
modo de vida e outra relação com o trabalho, teve um papel
importante no etnocídio destas culturas, porém houve resistência
cultural em quilombos por parte de indígenas e africanos como uma
alianças entre os povos, resistência esta, também, anticapitalista.

A “(...) expropriação das terras tradicionais indígenas que


veio a se consolidar em meados da década de 1940 com a
colonização do oeste do país e veio se consumar com a ditadura
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civil-militar, que se incumbiu de desenvolver como política de
estado a grilagem de terras, a tortura e o assassinato dos povos
indígenas.” A “Marcha para o Oeste” foi responsável por diversos
contatos com populações indígenas e favoreceu a invasão, e
titulação de terras griladas , uma política já bastante adotada em
governos estaduais. No Mato Grosso do Sul por exemplo, neste
período foi feito uma espécie de reforma agrária com as terras de
diversas etnias do povo Guarani.

1960 – 1960 – governo do Paraná titula terras indígenas para


empresas do oeste. Interesses econômicos pressionavam a o avanço
das fronteiras agrícolas sobre terras indígenas. SPI (Serviço de
Proteção ao Índio) legaliza invasões por meio de contratos de
arrendamentos .

1963 – Genocídio contra os Cinta Larga, conhecido como


Massacre do Paralelo 11. Desde de 1950 o povo Cinta Larga já
tinha sofrido diversos ataques de empresas mineradoras e coloniais
da região e seringueiros. Também há relatos de envenamentos de
alimentos e brinquedos com vírus de gripe, sarampo e varíola, além
de assassinatos. Há relatos até hoje destas práticas.

O período da Ditadura Civil-Militar

Sendo o modo de vida dos povos originários um modo de


vida que não se integra ao desenvolvimento econômico capitalista e
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de mercado, fica claro que o mesmo Estado que perseguiu e torturou
movimentos anticapitalistas e de direitos humanos por atrapalhar os
seus planos de desenvolvimento econômico nacional, iria agir com
tamanha crueldade contra povos indígenas que para eles também
atrapalhavam os planos desenvolvimento econômico capitalista do
seu governo. Desta forma, os crimes da ditadura contra os povos
indígenas também eram crimes políticos. O povo indígena resiste
politicamente desde a Revolução dos Tamoios, no séc.
XVI. Segundo o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade,
em 1968, ano do AI-5, a perseguição a lideranças indígenas foi mais
agressiva, e foram criadas cadeias indígenas com relatos de trabalho
escravo. Terras indígenas eram consideradas regiões com vazio
populacional e econômico, ignorando a humanidade dos povos
indígenas. A Transamazônica cortava terras de 29 etnias indígenas.
A Funai, fez a política de contato para “atração e remoção de índios
de seus territórios em benefícios de estradas e da colonização
pretendida.” Até os dias de hoje há relatos de cadeias irregulares de
indígenas.

Não é razoável acreditar que depois de 5016 anos de


resistência haja a mesma disposição das etnias indígenas em se
autodeclarar destemidamente sua etnia ou viver em território
tradicional. Mesmo assim, há povos que têm feito as retomadas dos
territórios e também retomadas culturais como a língua, medicina,
arte e tradições em geral. O racismo contra os povos indígenas não

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tem relação com aparência física, mas sim com cosmovisão de
mundo que tudo que nesta sociedade tende a oprimir.

Etnocído em meio urbano

Sabemos que a formação das favelas no Rio e São Paulo,


foram impulsionadas em sua segunda onda – 1940 - 1970, pela
migração da população que vivia em outras regiões agrícolas do
Brasil, e sua maioria trabalhava na roça. Baseado neste
levantamento histórico, relatos e árvores genealógicas de moradores
das periferias, podemos provar que o que é chamado de pardo hoje
é em grande parte descendente destes povos indígenas que fugiram
de toda esta opressão do Estado e tiveram que viver empobrecidos
nas periferias das cidades. Se fizermos um resgate nos costumes
destas famílias vamos encontrar medicina indígena com ervas,
tabaco, samba de coco, curandeiras e curandeiros, parteiras e etc.
Traços culturais que em contexto urbano, são tidos como simpatias
e feitiçarias abomináveis para Deus segundo os evangélicos (os
novos catequizadores), e que infelizmente proíbem em nome de
Deus inclusive os chás de ervas. Neste contexto, eu que sou
indígena, nascida em uma favela, e o ancestral mais antigo citado
pela minha família do lado materno, meu tataravô, vivia na mata em
Pernambuco e dançava samba de coco, só tenho acesso a fragmentos
desta cultura indígena que foi demonizada. Minha bisavó, que
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poderia me contar mais da minha ancestralidade indígena é
evangélica desde os 14 anos. Mesmo assim, identifico traços da
cultura indígena em minha família, e gostaria de me autodeclarar
indígena, também pela história de resistência que foi negada a mim,
mas não será para os meus filhos. Saber o nome da etnia é um
desafio que com pesquisa e disposição é possível ainda.

Afinal, para quê a autodeclaração indígena nos


centros urbanos?

Porque quero ter acesso à ciência, conhecimento, e modo de


vida da minha etnia. Se eu como descendente quero me autodeclarar,
existem diversos motivos: o acesso a políticas pública de educação
tanto para ter acesso à língua, e conhecimento tradicional, ou porque
o sujeito foi empobrecido pela expulsão, estigmatização e
escravidão dos ancestrais e quer ter acesso a cotas, quanto porque
quero e desejo me aproximar da cultura porque me identifico e quero
escolher este modo de vida porque julgo melhor em comparação ao
modelo eurocêntrico e capitalista.

Porque sem a autodeclaração não terei acesso à aplicação da


lei 11.645/2008. A diretoria de ensino, só dá formação para
professores da rede estadual de ensino caso haja indígenas ou
quilombolas autodeclarados naquela unidade escolar, e mesmo
assim a autodeclaração pode ser questionada caso o território em que

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a unidade escolar esteja não for próxima ou dentro de terra indígena
demarcada, o que não é algo fácil de se concretizar nem onde vivem
povos de forma tradicional, quanto menos em contexto urbano. Isto
causa agravamento dos preconceitos que a escola ainda perpetua
sobre os indígenas. As culturas dos povos indígenas são centenas e
como ciências tão importantes quanto a europeia para a humanidade,
quanto mais para os seus descendentes, o que poderia gerar uma
retomada cultural importante para uma parcela da população que
vive a margem da sociedade nas periferias e não tem acesso ao
conhecimento sobre sua ancestralidade. Acreditamos que estes
conhecimentos poderiam trazer novas perspectivas de resistência
cultural e política em relação a dominação ideológica capitalista.

As ciências indígenas têm sido estudadas pela Nasa e


indústria farmacêutica e não pelos descendentes dos povos. Ao
invés disso, o que nós descendente de indígenas não declarados
temos acesso apenas ao etnocídio que o avanço de igrejas
pentecostais causam, chamando toda a medicina dos povos
indígenas de simpatias, que são pecado e portanto proibidas. Estas
igrejas estão em cada esquina das periferias, doutrinando a
população a deixar estes costumes para trás e evangelizar as
benzedeiras e benzedeiros, proibindo seus fiéis inclusive de tomar
chás. Tudo isso é incluído na categoria “macumba” que é
demonizado, promovendo o etnocídio. Penso que pode ser
provavelmente uma das causas de, no caso da minha família, até

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minha bisavó ninguém se declarava indígena, pois ela era evangélica
desde os 14 anos. Porém sei que sou descendente de indígena porque
meu tataravô era o outro, o que era o indígena, e é com essa memória
que vou ir atrás da minha ancestralidade, porque me identifico mais
com este outro, do que com os que foram coptados pela cultura
eurocêntrica.

Quando o Estado quer determinar os povos indígenas como


apenas aqueles que vivem em território demarcado, todo o processo
de expulsão dos povos, etnocídio, escravização e genocídio num
processo de mais de 500 anos - e sem pausa - é
ignorado. Precisamos levar em consideração a migração de povos
de todo o Brasil para as periferias dos centros urbanos,
principalmente Rio e São Paulo, por conta de, entre outros fatores,
a exploração que sofreram em suas regiões, causadas por históricas
expansões das fronteiras agrícolas e grilagem de terras indígenas e
quilombolas.

Cristina Roseno é indígena em contexto


urbano, Bacharel em Sociologia e Política
pela FESPSP, Professora da Rede Pública
Estadual e Coordenadora do Projeto “Há
Indígenas em SP”

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Diferentes formas de ser mulher: Diante a
construção de um novo feminismo indígena?

Por: Aída Hernández Castillo Salgado


(Tradução: Jaqueline Roseno)

Há dez anos seria impensável falar da existência de um


feminismo indígena no México, no entanto, a partir do levantamento
zapatista iniciado em 1 º de janeiro de 1994, podemos ver surgir no
âmbito nacional um movimento de mulheres indígenas que está
lutando em diversas frentes. Por um lado, as mulheres indígenas
organizadas uniram suas vozes ao movimento indígena nacional
para denunciar a opressão econômica e o racismo que marca
a inserção dos povos indígenas no projeto nacional. Ao mesmo
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tempo estas mulheres lutam no interior de suas organizações e
comunidades para mudar aqueles elementos da tradição que as
excluem e as oprimem. As demandas destas mulheres e de suas
estratégias de luta nos levam a considerar esta luta como o
surgimento de um novo tipo de feminismo indígena, que
mesmo coincidindo em alguns pontos com as demandas de setores
do feminismo nacional, têm ao mesmo tempo diferenças
substanciais.
O contexto econômico e cultural em que as mulheres
indígenas foram construindo as suas identidades de gênero marca as
formas especificas que tomam suas lutas, suas concepções sobre
dignidade da mulher e suas formas de fazer alianças políticas. As
estratégias de lutas destas mulheres estão determinadas pela sua
identidade de etnia, de classe e de gênero. Elas preferiram
incorporar-se à luta do seu povo, criando ao mesmo tempo espaços
específicos de reflexão sobre as suas experiências de exclusão como
mulheres e como indígenas.

Antecedentes das lutas atuais


É possível entender a força atual dos movimentos de
mulheres indígenas somente se considerarmos as suas experiências
nas lutas indígenas e de camponeses nas últimas duas décadas.
Neste sentido, podemos dizer que o movimento zapatista teve um
importante papel na criação de espaços de reflexão e organização
para as mulheres indígenas porque deixou ao descoberto as suas
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demandas. A partir dos anos setenta, vimos surgir no México um
movimento indígena importante que questiona o discurso
oficial sobre a existência de uma Nação homogênea e mestiça.
Juntamente com as demandas de terra, aparecem demandas culturais
e políticas que perfilam o que posteriormente será a luta pela
autonomia dos povos indígenas.
Nessa mesma época há mudanças importantes na economia
doméstica e surgem novos espaços de reflexão coletiva onde as
mulheres indígenas têm possibilidade de participar. Em Chiapas, o
assim chamado Congresso Indígena de 1974 é considerado como
uma divisória de águas na história dos povos indígenas. A partir de
este encontro onde participaram indígenas tzotziles, tzeltales, choles
e tojolabales, as demandas culturais são acrescentadas às demandas
campesinas de uma distribuição agrária mais justa. Embora
aparticipação de mulheres não seja mencionada nos trabalhos sobre
o movimento indígena dessa época, sabemos, por testemunhas de
participantes, que as mulheres foram as encarregadas da “logística”
de muitas das marchas, plantões e encontros que documentam esses
trabalhos. Este papel de “acompanhantes” as seguia excluindo da
tomada de decisões e da participação ativa em suas organizações.
No entanto, essa mesma função de acompanhantes lhes permitia
reunir-se e partilhar experiências com mulheres indígenas de
diferentes regiões do estado.
Juntamente com a participação ativa das mulheres nas
mobilizações campesinas, começavam a se ver algumas mudanças
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na economia doméstica que fizeram com que um maior número de
mulheres fosse incorporado ao comércio informal de produtos
agrícolas ou de artesanato em mercados locais. Não é possível
entender os movimentos políticos mais amplos se
não considerarmos as dinâmicas locais que as famílias indígenas
estavam passando. O “boom petroleiro” da década de setenta, unido
à escassez das terras cultiváveis, fez com que muitos homens
indígenas de Chiapas migrassem às regiões petrolíferas deixando às
mulheres à frente da economia familiar. Estes processos de
monetização da economia indígena foram analisados como fatores
que tiraram o poder das mulheres dentro da sua família, ao influir
que o seu trabalho doméstico fosse cada vez menos indispensável
para a reprodução da força de trabalho. Contudo, para muitas
mulheres significou um processo contraditório, pois ao mesmo
tempo a sua posição no interior da célula familiar foi reestruturada,
pois com o comércio informal entraram em contato com outras
mulheres indígenas e mestiças e iniciaram processos organizativos
através de cooperativas, que com o tempo foram convertendo-se em
espaços de reflexão coletiva.
A migração, a experiência organizativa, os grupos religiosos,
as Organizações não Governamentais e inclusive os programas de
desenvolvimento oficiais, influíram na forma em que os homens e
as mulheres indígenas reestruturaram as suas relações no interior da
célula doméstica e repensaram as suas estratégias de luta. A Igreja
Católica, através da Diocese de São Cristovão, desempenhou um
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papel muito importante na promoção de espaços de reflexão.
Embora a Teologia da Libertação, que guia o trabalho pastoral desta
Diocese, não promovesse uma reflexão de gênero, ao analisar
as desigualdades sociais e o racismo da sociedade mestiça em seus
cursos e oficinas, as mulheres indígenas começaram a questionar
também as desigualdades de gênero vividas no interior das suas
próprias comunidades.
No final da década dos oitenta, um grupo de religiosas
começou a apoiar esta linha de reflexão e viu a necessidade de abrir
a Área de Mulheres dentro da Diocese de São Cristovão. Em outros
escritos, analisei com detalhe este encontro entre religiosas e
indígenas, que originou a Coordenadora Diocesana de Mulheres
(CODIMUJ), um dos principais espaços organizativos das mulheres
indígenas chiapanecas. Estas mulheres, com a sua
experiência organizativa e a sua reflexão de gênero,
desempenharam um papel importante no movimento mais amplo de
mulheres. Mas, foi a partir da aparição pública do
Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), em 1994, que as
mulheres indígenas começaram a levantar as vozes nos espaços
públicos não para apoiar as demandas dos seus companheiros,
somente, ou para representar os interesses de suas comunidades,
mas para exigir o respeito aos seus direitos específicos como
mulheres .

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Do “feminismo” aos feminismos:
Embora a construção de relações mais equitativas entre
homens e mulheres tornou-se em um ponto medular na luta das
mulheres indígenas organizadas, o conceito de feminismo não foi
reivindicado dentro de seus discursos políticos. Este conceito
continua sendo identificado como o feminismo liberal urbano,
que para muitas delas tem conotações separatistas que as afastam de
sua necessidade de uma luta conjunta com os seus companheiros
indígenas. Aqueles que chegaram ao feminismo depois de uma
experiência de militância em organizações de esquerda sabem que a
força ideológica que tiveram os discursos que representam ao
feminismo como uma “ideologia burguesa, separatista e
individualista” que separa às mulheres das lutas por seus povos. As
experiências do feminismo liberal anglo, que de fato, partiram de
uma visão muito individualista dos “direitos dos cidadãos”, foram
utilizadas para criar uma representação homogeneizadora do
“feminismo”.

A luta dos múltiplos feminismos mexicanos que se foram gestando


nas últimas décadas em parte consistiu em apropriar-se desse
conceito e fazer com que adquira um novo sentido. A reivindicação
de um “feminismo indígena” somente será possível na medida em
que as mulheres indígenas lhe dêem um sentido próprio ao conceito
de feminismo e o encontre útil para criar alianças com outras
mulheres organizadas. Por agora, muitas das suas demandas, tanto
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as dirigidas ao Estado quanto as suas organizações e comunidades,
visam a reivindicar “a dignidade da mulher” e a construção de uma
vida mais justa para todos e todas. A Lei Revolucionária de
Mulheres, promovida pelas militantes zapatistas, é um dos múltiplos
documentos que expressam estas novas demandas de gênero.
Dita lei consta de dez pontos entre os que se encontram o
direito das mulheres indígenas à participação política e aos postos
de direção, o direito a uma vida livre de violência sexual e
doméstica, o direito de decidir quantos filhos ter e cuidar, o direito
a um salário justo, o direito a escolher com quem casar-se, a bons
serviços e a educação, entre outros direitos. Embora nem todas
as mulheres indígenas conheçam esta Lei em detalhe, o fato de saber
que existe tornou-se um símbolo de possibilidades de uma vida
melhor para as mulheres. Estas novas demandas de gênero foram
expressas de diferentes formas em Foros, Congressos e Oficinas,
organizadas a partir de 1994, e questionam tanto as perspectivas
essencialistas do movimento indígena, que apresentava às culturas
mesoamericanas como harmônicas e homogêneas, como
os discursos generalizantes do feminismo que põem ênfase no
direito à igualdade desconsiderando a forma com que a classe e a
etnia marcam a identidade das mulheres indígenas.
Diante do movimento indígena, estas novas vozes
questionaram as perspectivas idílicas das culturas de origem pré-
hispânica, discutindo as desigualdades que caracterizam as relações
entre os gêneros. Também pôs em discussão a dicotomia entre
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tradição e modernidade que o indigenismo oficial vem reproduzindo
e que o movimento indígena independente concorda em parte.
Segundo esta dicotomia há duas opções: permanecer mediante a
tradição ou mudar através da modernidade. As mulheres indígenas
reivindicam o seu direito à diferença cultural, e também, demandam
o direito de mudar aquelas tradições que as oprimem ou excluem:
“Também devemos pensar o novo a ser feito em nossos costumes, a
lei somente deveria proteger e promover os usos e costumes que as
mulheres, comunidades e organizações analisem se são bons. Os
nossos costumes não devem prejudicar a ninguém”.
Paralelamente, as mulheres indígenas estão questionando as
generalizações sobre “A Mulher” que foram feitas no discurso
feminista urbano. Ao querer imaginar um frente unificado de
mulheres contra o “patriarcado”, muitosestudos feministas negaram
as especificidades históricas das relações de gênero nas culturas não
ocidentais. Neste sentido, é importante retomar a crítica que
algumas feministas negras fizeram ao feminismo radical e
liberal dos Estados Unidos por apresentar uma visão
homogenizadora da mulher, sem reconhecer que o gênero vai se
construindo de diversas formas em diferentes contextos históricos.
A brecha cultural entre mestiças e indígenas:
Considero que às feministas urbanas nos tenha faltado
sensibilidade cultural em muitas ocasiões das mulheres indígenas,
assumindo que nos une a elas uma experiência comum frente ao
patriarcado. Esta falta de reconhecimento das diferencias culturais
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vem dificultando a formação de um movimento amplo de mulheres
indígenas e mestiças. Uma das tentativas frustradas de
formação deste movimento foi a Convenção Estadual de Mulheres
Chiapanecas formada em setembro de 1994.Antes da realização da
Convenção Nacional Democrática, convocada pelo EZLN,
mulheres de ONGs, de cooperativas produtivas e de
organizações campesinas, reuniram-se para elaborar conjuntamente
um documento que foi apresentado na reunião de Aguascalientes,
onde estão expostas as demandas específicas das mulheres
chiapanecas. Este foi o gérmen da Convenção Estadual de Mulheres
Chiapanecas, um espaço heterogêneo no aspecto cultural, político e
ideológico.
Mulheres mestiças urbanas de ONGs, feministas e não
feministas e de Comunidades Eclesiais de Base, nos reunimos com
mulheres monolíngües dos Altos, sobre tudo tzeltales e tzotziles;
com tojolabales, choles e tzeltales, da selva, e com indígenas mames
da Serra. Esta organização teve uma vida curta, somente
conseguimos realizar três reuniões ordinárias e uma especial, antes
da dissolução da Convenção.
Fica de pé a tarefa de realizar uma reconstrução histórica
deste movimento, que estude criticamente as estratégias do
feminismo urbano para criar pontes de comunicação com as
mulheres mestiças. É notável que tenham sido
as mulheres mestiças, mesmo sendo minoria, as que assumiram
postos de liderança em uma hierarquia interna não reconhecida.
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Muitas das mulheres integrantes da Convenção foram convidadas
pelo EZLN como assessoras ou como participantes na mesa sobre
“Cultura e Direitos Indígenas”, que se realizou em 1995 em San
Cristóbal de las Casas, onde se integrou uma mesa especial sobre a
“Situação, direito e cultura da Mulher Indígena”. Nesta mesa, as
assessoras mestiças encarregadas dos relatórios deixaram de colocar
as detalhadas descrições das mulheres indígenas sobre os
problemas corriqueiros, incluindo somente as demandas gerais de
desmilitarização e as críticas ao neoliberalismo. É a partir destas
experiências corriqueiras, que foram apagadas dos relatórios e
memórias de encontros, que as mulheres
indígenas construíram as suas identidades de gênero de uma forma
diferente à das feministas urbanas.
Só aproximando-nos de estas experiências poderemos
entender a especificidade de suas demandas e de suas lutas. Depois
destas experiências, não surpreende que, em outubro de
1997, quando se realizou o Primeiro Congresso Nacional de
Mulheres Indígenas, as participantes decidiram que as mestiças
somente poderiam participar como observadoras. Esta decisão
foi chamada de “separatista” e incluso de “racista” por parte de
algumas feministas, que por primeira vez foram silenciadas pelas
mulheres indígenas. Argumentos similares aos que são usados
contra as mulheres quando demandamos um espaço próprio ao
interior das organizações políticas. É importante reconhecer que as
desigualdades étnicas e de classe influenciam, mesmo sem más
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intenções, quando as mulheres mestiças, com um domínio maior do
idioma oficial e da leitura e da escrita, tentam a hegemonizar a
discussão quando nos referimos a espaços conjuntos. Por isso, é
fundamental respeitar a criação de espaços próprios e esperar o
momento propício para a formação de alianças. As mulheres
purépechas, totonacas, tzotziles, tzeltales, tojolabales, mazatecas,
cucatecas, otomíes, triquis, nahuas, zapotecas, zoques, choles,
tlapanecas, mames, chatinas, popolucas, amuzgas e mazahuas,
reunidas em Oaxaca neste primeiro encontro nacional de mulheres
indígenas, vivem os seus próprios processos, que nem sempre
coincidem com os tempos e agendas do feminismo urbano.
Um exemplo desta brecha cultural existente entre mestiças
urbanas e indígenas foram as fortes críticas que algumas feministas
fizeram à Segunda Lei Revolucionária de Mulheres, propostas pelas
indígenas zapatistas, por ter incluído um artigo que proíbe a
infidelidade. Esta modificação da Primeira Lei Revolucionária de
Mulheres foi considerada uma medida conservadora produto da
influência da Igreja nas comunidades indígenas. Estas precipitadas
críticas devem contextualizar esta demanda das mulheres indígenas
dentro de uma realidade na qual a infidelidade masculina e a
bigamia são justificadas culturalmente em nome da “tradição”, e se
encontram estreitamente vinculadas com as práticas de violência
doméstica. Uma proibição que para as mulheres urbanas pode
resultar moralista e retrograda, talvez para algumas
mulheres indígenas seja uma forma de rejeitar uma “tradição” que
25
as deixa vulneráveis no interior da unidade doméstica e da
comunidade.
Acontece o mesmo no referente à legislação em torno à
violência doméstica. As feministas urbanas de Chiapas lutaram
durante vários anos para conseguir que a penalização para os
esposos violentos fosse maior, conseguindo finalmente que em 1988
o artigo 122 do Código Penal fosse modificado, aumentando a
penalização em casos de violência doméstica. Agora as mulheres
indígenas que carecem de independência econômica
são diretamente afetadas pelo castigo que a lei impõe aos seus
maridos, ao ficarem sem o apoio econômico durante o tempo que
ele esteja na cadeia. Algo semelhante acontece com o referente ao
direito ao patrimônio e à pensão alimentícia para as mulheres
indígenas. A luta legislativa serve de pouco ou quase nada quando
os esposos não possuem terra e trabalho fixo.
Vale a pena retomar a proposta de Chandra Monhanty nesta
luta em contra a violência doméstica em contextos multiculturais.
Ela diz que “A violência masculina deve ser teorizada e interpretada
dentro de sociedades específicas, para assim podermos entendê-la
melhor e assim nos organizarmos de forma mais efetiva na luta
contra ela” (Monhanty 1991:67).
Se o reconhecimento das semelhanças entre as mulheres nos
permite criar alianças políticas, o reconhecimento das diferenças é
requisito indispensável para a construção de um dialogo respeitoso
e para buscar estratégias de luta que estejam em sintonia com as
26
diferentes realidades culturais. Talvez a construção deste diálogo
intercultural, respeitoso e tolerante, contribua à formação de um
novo feminismo indígena baseado no respeito às diferenças
e deixando as desigualdades.Artículo tomado de CEMHAL Centro
de Estudos da Mulher na História de América Latina.

27
O PROCESSO DE PROTAGONISMO INDÍGENA NO
BRASIL.

A história é testemunha dos inúmeros crimes contra as


populações originarias ocasionados pelos colonizadores, dentre
eles: escravidão, guerras, doenças, massacres, genocídios,
etnocidios. Em que, o principal responsável é o projeto ambicioso
de dominação cultural, econômica, política e militar do mundo,
imposto pelos europeus, reduzindo sobremaneira os povos
indígenas existentes no Brasil, desde 1.500.

Nesse contexto, a diferença não é só de número


populacional, mas principalmente de cultura, de espiritualidade e de
visão do mundo sobre o passado, o presente e o futuro. Pois, os
povos indígenas não conheciam e não podiam imaginar a lógica das
disputas territoriais como parte de um projeto político de caráter
mundial e centralizador, ao passo que só conheciam as experiências
dos conflitos territoriais intertribais e interlocais.

A partir do contato do invasor europeu, as culturas dos povos


originários sofreram profundas modificações, nesse sentido, dentro
das etnias se operaram importantes processos de mudança
sociocultural, enfraquecendo sobremaneira as matrizes

28
cosmológicas e míticas em torno das quais girava toda a dinâmica
da vida tradicional.

Foram cerca de cinco séculos de dominação. Todavia, em


que pesem as profecias de extinção definitiva dos povos indígenas
no território brasileiro, previstas ainda no milênio passado. Os povos
indígenas estão mais do que nunca, vivos: para lembrar e viver a
memória histórica e, mais do que isso, para resgatar e dar
continuidade aos projetos coletivos de vida, orientados pelos
conhecimentos e pelos valores herdados dos ancestrais, expressos e
vividos por meio de rituais e crenças.

Viver a memória dos ancestrais significa projetar o futuro a


partir das riquezas, dos valores, dos conhecimentos e das
experiências do passado e do presente, para garantir uma vida
melhor e mais abundante para todos os povos. Entretanto, essa
abundância de vida buscada por todos os povos do mundo, passa
necessariamente pela manutenção dos modos próprios de viver, o
que significa formas de organizar trabalhos, de dividir bens, de
educar filhos, de contar histórias de vida, de praticar rituais e de
tomar decisões sobre a vida coletiva.

Assim sendo, os povos indígenas não são seres ou sociedades


do passado. Mas, povos de hoje, que representam uma parcela
significativa da população brasileira e que por sua diversidade
29
cultural, territórios, conhecimentos e valores ajudaram a construir
esse país. É certo que no Brasil de hoje, ainda há muitos brasileiros
que veem indígenas como pessoas preguiçosas, improdutivas,
empecilhos para o tal desenvolvimento. Outros veem como valiosos
protetores das florestas, dos rios, como também, possíveis
salvadores do planeta doente em função da ambição de homens que
estão devastando tudo o que encontram, construído há milhares de
anos pela mãe natureza.

Nesse sentido, o ano de 1986, guarda importante memória


sobre o início da mobilização indígena no processo de discussões na
Constituinte, a qual trazia como viés positivo, a garantia dos direitos
indígenas. Antecedido por um período de repressão militar contra os
povos originários, principalmente contra os que habitavam as faixas
de fronteiras.

Todavia, após longo processo de luta, mobilização e pressão


dos povos indígenas e de aliados, pode ser concretizada a conquista
histórica dos direitos assegurados na Constituição promulgada em
1988, a qual mudou substancialmente o destino dos povos indígenas
do Brasil. Pois, de transitórios e incapazes, passamos a ser
protagonistas, sujeitos coletivos e sujeitos de direitos e de cidadania
brasileira e planetária.

30
Surgindo a partir de então, a consolidação do movimento
indígena organizado, nas décadas de 1970 e 1980. Período histórico
da luta de resistência indígena no Brasil, por um lado, caracterizado
pelo surgimento e pela atuação de lideranças indígenas carismáticas
que, com coragem e determinação, enfrentaram as forças
colonialistas e integracionistas (Estado e Igreja) que subjugavam os
povos indígenas; por outro lado, os povos indígenas, apoiados por
alguns importantes aliados (missionários, indigenistas e
intelectuais), iniciavam uma longa caminhada de reorganização,
mobilização e articulação política indígena de resistência e de defesa
de direitos e interesses coletivos – época heroica que marcou a
principal mudança no curso da história brasileira.

Até então, acreditava-se que a existência dos povos


indígenas era uma questão de contingente social transitório. Dessa
forma, nos fins da década de 1970, o próprio Estado tentou
consumar esse ideal político com um projeto de emancipação dos
indígenas, por meio de uma lei que deveria transformar os
sobreviventes em cidadãos comuns. Assim estaria decretada a
extinção final dos povos indígenas do Brasil.

Em grande medida, a emergência do movimento indígena na


luta articulada por direitos e interesses foi uma reação e uma
resposta aos propósitos do Estado de emancipação dos povos
existentes. Quando então, iniciou-se um longo processo de
31
superação do fantasma do desaparecimento dos povos indígenas, de
reafirmação das identidades étnicas e da reconstrução dos projetos
socioculturais dos povos sobreviventes. Processo ainda em curso
com horizontes ainda incertos, mas bem mais esperançoso por causa
do protagonismo cada vez mais forte dos povos indígenas.

Os resultados dessa mudança de perspectiva histórica na luta


de resistência indígena são expressos por alguns dados, como o
crescimento demográfico, o que possibilitou um aumento na
população de indígenas a partir do início da década de 1970.
Entretanto, apesar dos avanços conquistados, existem novos e
velhos desafios enfrentados pelos povos indígenas no Brasil. Como
o de pensar políticas para os indígenas urbanos, cuja demanda está
em franco crescimento. Outro é a questão da posse da terra, que cada
dia mais fica restrita aos mecanismos do Estado, e insuficiente para
assegurar a sobrevivência adequada e digna dos povos indígenas,
sem levar em consideração as mais inúmeras terras que ainda
precisam ser garantidas e regularizadas.

De todo modo, as perspectivas indígenas de agora são outras


em relação às de vinte anos atrás. Pois, é possível identificar a
autoestima, e junto com ela foi sendo recobrada a identidade étnica,
como uma realização individual e coletiva. Assim como, cidadania
reconhecida pela sociedade e pelo Estado.

32
Na atualidade, os povos indígenas estão cada vez mais
presentes em todos os aspectos da vida nacional – cultura, agenda
de governo, mídia nos seus diversos segmentos, pesquisa, vida
universitária, esportes, política parlamentar e partidária –
demonstrando que a questão indígena pode ter não somente maior
visibilidade e relevância na vida nacional, mas, sobretudo, um
espaço próprio de autonomia e de liberdade para que se decida como
viver nesse mundo atual com todas as suas vantagens e desvantagens
ainda existentes.

Destarte ao contexto atual, estudos indenitários


desenvolvidos pela antropologia nos campos do direito, tem grande
influência na compreensão sobre identidade indígena no direito
brasileiro. Dada à necessidade sempre renovada de que este se abra
ao diálogo com outras áreas do conhecimento. Nessa direção, tem-
se em consideração que não é possível estabelecer um entendimento
único acerca da identidade indígena, já que vários e distintos são os
indígenas, seja no que se refere às diferentes etnias que congregam,
seja no que se refere aos modos de vida, igualmente múltiplos e
diferentes. Sendo importante relembrar o cuidado de não se referir
ao índio genérico e abstrato, pois, esse não existe, salvo no
imaginário da sociedade nacional que desconhece a realidade dos
povos indígenas no Brasil.

33
A formulação de tal questionamento se justifica, por muitas
decisões judiciais ainda utilizarem como critério para comprovação
da identidade indígena a existência de documentos que atestem essa
possibilidade. Onde, através da Constituição Federal de 1988, artigo
231, há previsão de reconhecimento dos indígenas, através da
organização social, dos costumes, idiomas, crenças e tradições.
Nesse sentido, estaria superada a necessidade de documentos
oficiais para atestar a identidade indígena e as discussões acerca dos
níveis de integração do indígena na sociedade.

O entendimento de que toda opção metodológica supõe uma


concepção provisória da realidade a ser conhecida, é abrangida na
vertente jurídico-sociológica, na medida em que se propõe a discutir
a realização concreta de dispositivos da CF/88, especialmente o
artigo 231 e sua relação com outras normas contidas no Estatuto do
Índio (EI), Lei n. 6.001/1973, e na Convenção 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), Decreto n. 5.051/2004. Em que, é utilizado o raciocínio
indutivo, partindo de dados particulares e localizados quanto à
técnica de análise de conteúdo, e pesquisa teórica, que analisa
conteúdos de textos legislativos, jurisprudenciais e doutrinários
sobre o tema.

Desse forma, o que se observa é uma incongruência da


legislação pátria quanto à identidade étnica, e de forma mais
34
gravosa, uma apropriação equivocada da legislação no julgamento
de casos concretos pelo Poder Judiciário, que privilegia normas cujo
conteúdo está em desacordo com o respeito à diferença e à
identidade étnica dos indígenas, previstos tanto na CF/88 quanto na
Convenção 169 da OIT. Situação em que, a identidade étnica é
afirmada a partir de sua auto declaração como integrante de um
grupo ou comunidade indígena, independentemente de graus de
integração ou dos documentos que eventualmente portem.

De outro modo, querer atribuir ou excluir direitos


relacionados à identidade indígena com base na ausência ou
presença de documentos é um equívoco. Em primeiro lugar, porque
a identidade não é uma característica que assim se possa atribuir e,
em segundo, porque ao fazê-lo se caminha no sentido contrário
daquele que a Convenção 169 da OIT em seu art. 1º, item 2,
estabeleceu, que é o da auto identificação.

Diante do impasse, o reconhecimento constitucional é


imprescindível, até mesmo porque abre a possibilidade de luta por
direitos perante o Judiciário. Todavia, é insuficiente quando se
observa que o próprio Judiciário, mesmo que em parte, não
reconhece a amplitude dos direitos dos indígenas em todas as suas
consecutivas demandas, então, necessário se faz mudança de
atitudes deste em relação aos indivíduos auto reconhecidos
indígenas.
35
Uma vez superada a fase trágica da possibilidade de extinção
de todos os povos indígenas, fica a impressão de que ser indígena
hoje no pais é mais do que pertencer a um conjunto de povos nativos,
originários ou ancestrais do povo brasileiro, como algo do passado
distante, é acima de tudo pertencer a uma identidade continental e
nacional autóctone, presente, viva e atuante nos cenários locais,
regionais e nacionais.

Assim, o direito de sujeito e de cidadão nacional e global,


associado ao direito e ao desejo de continuidade histórica das
identidades étnicas e culturais, os povos indígenas não estão
dispostos a abrir mão, ainda que isto signifique uma longa e árdua
jornada rumo ao que os sábios acreditam, um mundo onde todos os
povos têm o seu espaço e o direito de viver com dignidade e
liberdade, ideal de vida que alimenta as lutas, necessário a
consolidação e a ampliação dos direitos no âmbito do Estado
brasileiro para que sejam implementadas políticas públicas de
qualidade.

Desse modo, a criação de um projeto etnopolítico está


diretamente ligado à luta coletiva dos povos indígenas pelos seus
direitos, e pode articular todos no entorno de interesses e estratégias
comuns capazes de ampliarem as sinergias e as forças políticas
diante das co-relações de forças tão desiguais que envolvem o
36
campo de luta e de defesa dos direitos indígenas no Brasil. Buscando
facilitar a articulação indígena nacional, de forma a garantir a
participação efetiva de todos os povos indígenas do Brasil e servir
como referência da luta nacional, com diretrizes, metas, prioridades
e estratégias comuns e diferenciadas que fazem parte de um
planejamento eficaz e que dizem respeito a todos.

Como se pode perceber, os povos indígenas do Brasil têm


pela frente enormes desafios, mas estes em nada se assemelham aos
que foram enfrentados ao longo dos últimos trinta anos. A nova
geração de jovens estudantes e as lideranças indígenas têm motivos
suficientes para serem otimistas. Esta perspectiva otimista é o
resultado de muita luta e de muitas perdas, as quais as novas
gerações talvez não conheçam, mas que não podemos esquecer.
Período em que, muitas das lideranças indígenas – nossos
verdadeiros heróis – tombaram no calor da luta, e tantos outros ainda
continuam nas fileiras da passagem para o mundo espiritual,
simplesmente porque são forjados corajosamente em defender o
direito sagrado dos ancestrais, a mãe terra.

Conclui-se o presente artigo, na tentativa de compartilhar


pontos de vista, inquietações, preocupações e esperanças, buscando
servir para provocar reflexões, atitudes críticas e diálogos
produtivos a respeito de pontos de debate do interesse dos povos
indígenas e as estratégias de trabalho e luta do cotidiano.
37
Belém – PA, 23 de março de 2019

Aiyra Amana Tupinambá


Bacharel Ciências Contábeis – UNAMA/PA
MBA Contabilidade p/ Gestão Empresarial – FACI/PA
Acadêmica em Direito – Estácio de Sá/PA

Quando te encantares com a magnitude da floresta, com a


imensidão do mar e com o infinito do universo, encontrarás o valor
da vida.

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Referências:

Grupo de Estudos do Projeto Há Indígenas em SP

http://justificando.com/2016/05/12/a-denuncia-de-um-advogado-
sobre-a-situacao-dramatica-dos-indigenas-frente-a-repressao-de-
fazendeiros/

Fonte: http://mujeresylasextaorg.wordpress.com/2007/08/08/mujer
esindigenas-y-feminismo

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