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ACASO E REPETICÃO ,
-
EM PSICANALISE
uma introdução
à teoria das pulsões
segunda edição
1 986
D ireitos para esta edição contratados com
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobre loja
20 0 3 1 R io de Janeiro, RJ
Prólogo 9
capitulo 10 Além 90
Além do princípio de prazer. Apara to a n ím ico e aparato
psíqui co. O antinatu ralismo f reudi ano. F u n ção restitu
tiva e fun ção repetitiva. A compu lsão à repeti ção. De
leu ze: pu lsão de morte e in sti n to de mo rte . Sade e a n e
gação. A nega ção em Spin oza. A negação em Hegel. O
princípio de p ra zer e a l igação. P u lsão e di sjun ção. Real,
S i m bólico e Imagin ário.
9
10 acaso e repetição em psicanálise
L.A.G-R.
1
SO B R E O CONCE I TO D E P U LSAO
11
12 acaso e repetição em psicanálise
"ponto de vista bio lógico", aqu i , sign ifica mu ito mais "ponto de
vista do corpo" - como i nd ica o final do parágrafo - do que
"ponto de vista da b io logia". Se a pu lsão é u m conceito s ituado
n a fronte i ra entre o menta l e o somático, se e la tem sua fonte
no corpo e seu o bjeto no registro p s íquico, podemos falar dela
"do p onto de v ista do corpo" como podemos fazê-lo "do ponto
4
Freud, S. , E.S.B., Vol. VH, p. 1 65.
5
Freud, S., E.S.B., Vol. XIV, p. 92.
sobre o conceito de pu/são 15
e externas (isto se dá, pelo menos, nos Três ensaios). I:: somente
a partir do seu a rt igo de 1 9 1 5 (A pu/são e suas vicissitudes ) q u e
e l e vai afirmar que as pu lsões têm sua origem numa fonte pu ra
mente somática, entendendo-se por "fonte somática" o órgão
de onde provém a excitação, ass i m como o próp rio processo de
excitação. I:: a fonte (Ouelle ), ju ntamente com o objetivo
(Ziel) , que confere à pu lsão parc i a l sua especi fic idade. E m se
tratando da pu lsão sexual, F reud denom i na essa fonte de zona
erógena. E esta é mais u ma das armad i lhas desse d i f íc i l texto. A
ênfase concedida à boca e ao ânu s como z onas erógenas nos
conduz novamente à h ipótese de u ma determi nação biológi
co-anatômica para as pu l sões. N o entanto, em nota de rodapé
acrescentada em 1 9 1 5, F reu d nos d iz que após ref let i r ma is foi
levado a atribu ir a qua l idade de erogeneidade a todas as partes
do corpo e a todos os órgãos internos, b o que significa que ne
nhum órgão em particu l a r, a ssim como nenhu ma parte espec ífi
ca da superf ície corpora l , detém a exclusividade do que é
sexua l . Se qua lquer parte do corpo pode ser u m a z ona erógena,
é sinal de que nenhuma parte é considerada corno essencialmen
te sexua l .
Perma nece, porém, o fato de que e l e não somente concede
um valor ma ior a certas z onas do corpo (às regiões mucosas, so
bretu do ), como faz da experiência de satisfação do lactente o
protótipo da experiência de satisfação sexua l . N o famoso cap í
tu lo V I l de A in terpretação de sonh os, F reud nos mostra u m
comportamento i nstintivo serv i n do de fonte para a pu lsão : o
instinto de a l i mentação fornecendo a base da experiência de
prazer-desprazer no lactente. Por esse texto, já fica claro qu e a
fonte da pu lsão é corporal . E ssa mesma experiência de satisfa
ção (Befriedigungserlebnis ) é u t i l izada p or F reud mais tarde, 7
ao fa lar do auto-erotismo, p ara ind icar a origem somática e mes
mo inst intiva da p u l são. No enta nto, essa art i cu lação da p u l são
ao instinto, tal como ele nos apresenta, assi nala mu ito mais u ma
distância e u ma diferença do que u ma ident i dade.
A relação da pu lsão (Trieb ) com o i nstinto ( lnstinkt)
')I
22 acaso e repetiçaõ em psicanálise
I
Freud, S . , E.S.B., Vol. X II , p. 1 96.
2
Freud, .
S . E.S.B., Vol. VI l , p. 1 1 6.
3 Freud,
4 S., E.S,B., Vol. X I I , p. 1 97 .
F reud, S . , E.S.B., Vol. XV I II , p . 300.
5
Lacan, J., O Seminário, Livro 1 1 , pp. 36 e 1 36-7.
pu/são e repetição 23
A R E P ETIÇÃO E M H EG EL,
KI E RK EGAA R D E NI E TZSCH E
27
28 acaso e repetição em psicanálise
herói, a conduta exemp lar era a quel a que repetia i ndef i n idamen
te a criação orig i n a l . Temos, assim, acontecimentos sagrados e
aconteci mentos p rofanos, os primeiros repeti n do u m modelo
origi nal, e os segu ndos sendo estranhos a esse mode l o. Os atos
exemp l a res são, p ortanto, a-h i stóricos, cabendo a h i storicidade
apenas aos atos p rofanos. O mu n do, no que p ossu i de verdadei
ro (ou de sagrado ) , é u ma repe tição. O que não é repetição per
ma nece i merso no caos, carecendo de sentido e de rea l idade.
Assim, desde a ma is remota antig ü i dade, a repetição é
uma qu estão centra l para o homem. Desde o mito, passando pe
l o "eterno retorno" de H erácl ito até N i etzsche, o tema da repe
tição atravessa a história do pensamento ocidental . Quando ele
ressurge na obra d e F reud - n o início, tim idamente, até trans
formar-se em tema central de Além do princípio de prazer o -
!).!).1}
1
Publicada sob o titu l o "'Phénoménologie de Hegel et psychanalyse" em: F1gures
de la pensée philosophique - t=crits de Jean Hyppolite.
repetição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 29
Comtdmmu Constd n t i u s e Joha n nes de Silentio f ora m dois dos vários pseudôni
mos U>cidus por K ierkegaard_
reperição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 31
6 Op. cit. , p. 1 5.
7 Rosset, C., Logique du pire.
34 acaso e repetição em psicanálise
1 2 Op. cit., p. 7 1 .
1 3 Watso n , J . 8 . , Psychology fr om the standp oint o f a behaviorist.
14 James, W., Principies o f psychology, p. 2 1 7 .
36 acaso e repetiçaõ em psicaniÍlise
IS
Borges, J. L. , FiCÇÕ<Js.
16
P a ra o que se segu e : Borges, op. cit.
repetição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 31
39
40 acaso e repe tiçaõ em psicanálise
1
� ?::/'r.. pp.
Deleuze, G., Différence et réptltition.
7-8.
44
repetição e as máscaras 45
4 Op. cit.
5 Rosset, C., Logique du pire.
46 acaso e repetição em psicaruílise
9 !: preciso levar também em cons ideração o fato de que F reud não concebe a energia
l ivre apenas em termos de descarga maciça de excitação, mas também como livre c i r
cul ação ao longo de cadeias de representações impl icando laços associativos (ligações)
(ver : Laplanche e Po ntalis, Vocabulário da psicanálise, p. 350 ) .
!� La planche e Ponta l i s, Vocabulário da psicanálise , p . 350.
F reud, S ., E.S. B. , Vol. XVII I , p. 52.
repetição e as máscaras 49
2
1 F reud, S., E.S.B., Vol. XII, p . 90.
13 Desde o Projeto de 1 895, F reud nos fala de u m ego concebido como u ma orga n i
zação i n terna a o s neurônios 'l', isto é, como u ma organização de representantes psf-
50 acaso e repetiçaõ em psicalUÍlise
16
F reu d , S . , E. S. B. , Vol. X I V, p . 93.
: 7 E mbora F reud admita q u e posteriormente isto ocorra .
8 Deleuze, G . , Différence et répétition, p. 1 40 .
52 acaso e repetição e m psicaruí/ise
53
54 acaso e repetição em psicanálise
fora das máscaras e dos d isfarces, isto é, fora do simból ico. Am
bas as h ipóteses parecem contrariar a teoria psica na l ítica.
U ma metáfora da pu l são e sua diferenciação em pul são
sexu a l e p u l são de morte pode ser constitu ída da segu inte ma
nei-ra : i maginemos um espaço cósmico mergu l hado na mais
absoluta escuridão, onde nem mesmo a luz de algum astro dis
tante se fizesse p resente no campo v isua l. I maginemo-nos soltos
neste espaço portando uma possante la nterna unidirecional, com
a qual esquadrinhamos o cosmo, com a cond ição de não voltar
mos o foco contra nós mesmos. N u ma situação dessas, apesar
de estarmos com os o lhos abertos e com a la nterna acesa, não
ver íamos absolutamente nada, nem mesmo o facho de luz emiti
do pela la nterna, já que não h averia part ícu las em su spensão ou
atmosfera. Apesar de estarmos com os olhos a be rtos e com a
la nterna acesa, nada ver íamos, estaríamos na mesma situação
que um cego. Su ponhamos agora que um objeto qua lquer, por
"acaso", atravessasse nosso campo visual e fosse i l u m i nado pela
lanterna. E le, ao mesmo tempo que se tornas� v i s ível, denu n
cia ria a ex istência do foco de luz e da nossa própria v isão. O ra,
se su bstitu irmos o objeto pelo seio materno e o foco de luz pela
pu lsão, podería mos dizer que o objeto, ao se constitu i r como fi
gu ra, constitu iu simu ltaneamente a pu lsão como p u l são sexu a l .
O sexual é o que s e con- figura pela articulação entre a pu lsão e
u m objeto capaz de fu ncionar em termos .de diferencial prazer
desprazer. A p u l são de morte, na nossa metáfora, seria o próprio
foco enquanto não re lacionado a u m objeto e, portanto, aqu ilo
qu e perma neceria invi s ível e s i lencioso. Assim sendo, o que d is
tingu iria a p u l são sexual da pu lsão de morte seria o investimen
to. É enquanto i nvestida num o bjeto que a pulsão se constitu i
como p u l são sexu al, constitu indo p or contraposição a p u l são de
morte como energ ia dispersa. I sso porém contraria o que foi di
to acima, isto é, que a concepção de u ma p u l são sexual é aber
rante, já que i m p l ica a ex istência do sexual fora do simbólico, o
que, no m ín imo, acarreta u ma natu ra l ização do sexua l . A solu
ção para o impasse · poderia ser a de aceitarmos que os termos
" morte" e "sexual", enquanto qual ificando diferencial mente a
pu lsão, correspondem.a modos de ser da pu lsão e não a u ma dis
tinção ontológica . Neste caso, o "sexual" corresponderia à ins
crição da pu lsão nu m outro registro - o da realidade ps íqu i-
pu/são de morte e pu/são sexual 51
ciente repete nos seus sonhos situações trau máticas? F reud su ge
re que estes sonhos teriam a fu nção de dominar retrospectiva
mente o est ímulo.4 Laca n considera que a resposta é apressada
ou, pelo menos, que lemos a pressadamente a resposta sugerida
por F reud: " Do m i nar o acontecimento doloroso, l hes di
rão - mas quem dom ina, onde está aqu i o senhor, para domi·
nar? Por que fa lar tão depressa quando, preci samente, não sabe
mos situar a instância que se entregaria a essa operação de dom í
n io?"5
Essa domi nação não seria fe ita por um dos sistemas psíqui
cos, nem pelo psiqu ismo entend ido como u ma tota l idade. Na
verdade, ela nos remete a u ma fase anterior à vigência do p rincí
pio de prazer, anterior ao momento em que os sonhos passaram
a ser rea l ização de desej os,6 anterior ao psiqu ismo entend ido co
mo u m conju nto de sistemas d iferenciados.
Vi mos, em cap ítu lo anterior, que o aparelho ps íqu ico co
meça a se constitu i r como u m aparelho, isto é, como u m con
ju nto de sistemas, a part i r do momento em que a energ ia l ivre,
proven iente de fonte pu lsional, começa a ser ligada. E essa sujei
ção da energ ia l ivre, transformando-a em energia l igada, que vai
passa r a ser, da í p or diante, a tarefa principal daqu i lo que F reud
chama "os estratos mais elevados do aparelho mental" . Uma vez
feita a diferenciação do psiqu ismo em sistemas, caberá ao siste
ma Pcs/Cs suje itar a excitação do l cs, o qua l funciona como lo
ca l de i mpacto da fonte pu l siona l . Essa energia l ivre tende à des
carga, e poderá provocar u ma desestrutu ração do psiqu ismo se
não for dominada e conduz ida à descarga de forma adequada.
Portanto, antes mesmo da domi nância do princípio de p razer, o
aparelho ps íqu ico fu nciona no sentido de ligar a energ ia l ivre;
ou, mais p recisamente, o aparelho ps íqu ico, enquanto "apare
l ho", é o efeito dessa l igação, posto que anteriormente a ela não
podemos falar em nada que se assemelhe a u m aparelho, uma or-
'
7 Detienne, M. , Les maí'tres de vérité dans la Grece archai que.
60 acaso e repetição em psicanálise
11
F reu d , S. , E. S. B. , Vol. IV, p p . 1 5 1 e 1 58-9.
7
O R EA L E A PU LSÃO D E M O R T E
63
64 acaso e repetição em psicanálise
não é const itu ído por l i nhas que formam figu ras a m b íguas, e
q u e a reversi b i l i dade que aqu i verificamos é excepciona l . M as é
exata mente nesta excepcional idade que reside a excelê ncia do
exem plo. Se m esmo nu ma situ ação na qua l f igu ra e fundo p os
suem a mesma i n te n sidade verificamos a i nvisi b i l idade de u ma
delas quando se tra n sforma e m fu ndo, com mu i to ma is razão
isto acontece nos casos em que a figu ra é p regnante e não rever
síve l . No entanto, os casos em que essa reversib i l idade pode
ocorrer fac i l m ente são mu ito mais corriq u e i ros do qu e imag i na
mos. Se esta m os n u ma esqu ina mov i mentada conversando com
um am igo, o baru l h o do trân sito, apesar de ru idoso, transforma
se n u m fu ndo si lencioso e indiferenciado, o m esmo acontecendo
com as pessoas que passam e as outras vozes que compõem o
bu rbu rinho da mu ltidão. Mas se a contece de ouvirmos u ma frea
da bru sca e o baru l h o de u m a batida, a voz do nosso a m igo
transforma-se em fu ndo e o aci dente transforma-se em figu ra.
Não seremos capazes de reproduz i r, posteriormente, o que o
no sso interlocu to r continuou a falar quando se deu a batida, da
mesma maneira que não consegu i r íamos reprodu z i r o que estava
acontecendo ao nosso redor quando estávamos conversando
co m e le .
O i m portante a destacar é que figu ra e fu ndo n ão corres
pondem a duas rea l i dades que possu am existê ncia i ndependente,
mas a u ma IT'esma rea lidade que se apresenta sob dois m odos.
A l ém do ma is, meu p ropósito não é o de anal isar a questão da
orga n ização do ca mpo perceptivo, nem o de fazer u m a aborda
gem psicológ ica às q uestões psicana l íticas, mas s i m o de pensar
ordem e acaso de forma a ná loga à que fizemos com figu ra e fun
do, e de p rocu rar compreen der, a part i r deste d iferencia l , a opo
sição p u l são de v ida-pu lsão de morte que F reud estabelece em
Além do principio de prazer.
Se a pu lsão sexua l é, como nos diz F reu d, ru i dosa, se ela é
pród iga em nos oferecer seu s rep resentantes ps íqu icos, e se por
ou tro lado a pu lsão de morte é s i lenciosa e teima e m se ocu l tar,
e se além disso a pu lsão de vida age no sentido de constitu i r to
ta l idades organ izadas, enquanto a p u l são de morte age no senti
do da desd iferenciação, não poder íamos d izer que a p u l são de
vida representa a ordem enqua nto que a pu l são de m orte rep re
senta o caos-acaso? E mais a i nda: não poder ía mos também d izer
70 acaso e repetição em psicanálise
72
morte e pulsaõ de morte 73
81
82 acaso e repetição em psicanálise
b C o r n ford, F . M. ,
op. cit. , pp. 1 99-200.
7 Freud, S., E.S.Il., Vol. V I , p. 309.
g lbid.
mitos cosmogônicos e dualismo pulsional 85
10
Esta foi a dúvida levantada por Jean Hyppolite no Seminário 2 de Lacan.
11
H y pp o l i te, J., "Phénoménologie de Hegel et psychanalyse" e m : Figures de la pens�Je
·
ALE M
90
além 91
4 N a verdade, a concepção ene rgét ica nu nca esteve ausente dos textos freudianos; o
que ocorreu na p rimeira tópica f o i u ma necessidade de explicitação da concepção tó·
pica, o que foi feito e m detrimento da ên fase sobre os fatores energéticos.
5 O texto u t i l i zado como referência foi a tradução feita por W. L. Chebabi do o r iginal
alema'o Jenseits des Lustprinzips. A refe1 ida tradução não está p u b l i cada, a que d i s
ponho é u m a cópia datilografada gen t i lmente ced ida pelo Dr. Chebabi.
94 acaso e repetição em psicanálise
u m res íduo, e é esse res ídu o que ele vai rel acionar ao "i nstinto
de m orte" . N o m esmo texto, Deleuze afirma que a disti nção
entre pu lsão de vida e p u l são de morte só poderá ser plenamente
com pree nd ida se l eva rmos em conta u ma outra distinção rnais
profunda : aquela que h averia entre a própria pulsão de morte
e o instinto de morte. 1 1 Ev identemente não se trata aqu i da
velh a e já desgastada confusão decorrente da tradução do Trieb
freudiano para " insti nto", mas de algo que diz respeito aos
fundamentos do conceito de pulsão de morte e que nos remete,
segundo ele, ao estatuto da negação na obra de F reud.
O ponto de partida da análise de Deleuze é a obra de
Leopo ld von Sacher-Masoch . M as não é apenas de M asoch que
Deleuze nos fala, fala-nos também do Marquês de Sade. Ambos
os nomes serv i ram para designar perversões que retomadas por
F reud passaram a fo rma r o par sadismo-masoq u i smo, funda
mental para a teo ria d a sexu a l i d ade.
Deleu ze nos diz que o que está em jogo na o bra de Sade
é a negação, e que esta su rge em toda a sua extensão e em toda
a sua prof u nd id ade, ma s que se apresenta sob duas fo rmas dis
t i ntas : como deso rdem, destru ição, degradação (o que não
deixa de ser u ma forma de o rdem ou de estar referida à o rdem ) ;
e como negação pura, caos primord i a l, puro estado de d ispersão.
A essas duas fo rmas de negação co rrespondem duas naturezas :
a natureza segunda, que não é a bso lutamente negativa porque
está referida à ordem e que se constitu i como processo parcial
de morte e destru ição ; e a natureza primeira, que se situ a pa ra
a lém da o rdem e da l e i , que não tem nen h u m compromisso com
a conservação, seja i nd ividual ou da espécie. Portanto, natureza
segunda apresenta ndo-se como processo parcial do negativo, e
natureza primeira que corresponderia à negação pura. No entan
to, essa natureza pri m e i ra ou o riginal jama is se apresenta como
um dado , "só a n atu reza segu nda forma o mu ndo da experiên
c i a, e a negação só é d ada nos processos parciais do negativo", 1 2
sendo a natu reza o rig ina l o bj eto apenas de uma idéia . .
1: a partir dessa d i sti nção entre as duas formas de negação
11
Op. cit., pp. 32-33.
12
Deleuze, G., op. cit., p. 30.
além 97
Jan icaud, 1 5 num artigo sobre H egel e Spinoza, perg unta se não
podemos entender esse h orror de Spinoza ao negativo como
sendo, de fato, u ma negação da negação; se esse abso l utamente
positivo da substância sp inozista não é no fundo a negação
absoluta .
Numa primeira apro x imação, parece que essa h ipótese não
é su stentável . Apesar de Sp inoza jogar sempre com a negação, e
apesar do a bsp lutamente posi tivo da substância encerrar em sua
defi nição a negação da negação, esta continua sendo pensada
como p rivação. A negação em Spinoza não faz parte da essência
da su bstância . "A exc l u são da negatividade do se io do su bsta n
cial - acrescenta Janicaud - v o l ta a encontrar-se ao n lvel da
individual idade, que nada ma i s faz do que perseverar no seu
ser, pois - l e m os no l ivro 1 1 1 da Etíca (proposição 5 ) : 'coisas
de uma natu reza contrária não podem esta r no mesmo suj eito,
na medida em que U ma pode destru i r a outra' . Para Spinoza, a
contrad ição interna equ ivale à autodestru ição , o que é absu r
d o . " 1 6 A substância, e nquanto infi nita, não comporta a nega
ção, esta só ocorre ao n ível dos modos f i n i tos enquanto deter
minação. No entanto , a negação i m p l ícita nos modos não afeta
a su bstância enquanto ta l ; a fin itu de dos seres não afeta a infi
nitude d o Ser. O Abso luto não pode conter a falta so b pena de
deixar de ser Abso l u to .
M as se os modos são finitos, o s atributos são infin itos e m
seu gênero. Como exp l icar então a determ i n ação pela negação ?
Deleuze nos responde que a el imi nação rad ical da negação em
Sp inoza apóia-se na diferença entre distinção e determinação.
E nq u a nto esta ú l tima é sempre negativa e diz respeito a os
m odos da su bstância, a d istinção é sempre positiva e refere-se
aos atributos. Cada atributo é marcado pe la sua d i stinção, de
ta l m odo q u e cada um p ode ser concebido sem que se refira
em nada a o outro atri buto . Cada q u a l é infin ito em seu gêne-
JS jan i caud, 0 . , " D ialética e substan cial idade - sobre a refutação h e ge l iana do sp ino
z ismo" e m : Hegel e o pensamento moderno.
ro ou em sua natu reza. "Toda natu reza é positiva ."17 "À po
sitividade como essência i nf i n ita corresponde a afirmação como
ex istência necessária. " 1 H
M a s à posi tividade d o s atri butos não corresponde uma
pu ra negativ idade dos modos. E m bo ra caracterizados pelas duas
figu ras da negati vidade - a l i m itação e a determ i nação - os
m odos são negativos apenas logicamente, enq ua nto q u e sua
ex i stência é semp re uma fo rma de afi rmação, i m p l ica sempre
u m a força. A negação não tem, para Sp i noza, estatuto onto ló
g ico, ela é um ente de razão, ou , como prefere Deleuze, uma
forma de co mparação que em nada afeta a natu reza daqui l o
que é comparado. Assim sendo, se d etermi nação é negação,
isto não sign ifica que em relação aos modos Spinoza tenha
fe ito uma onto log ia do negativo ; para e le, a negação não é nada,
é pu ra ficçao abstrata.
Por esse esboço, fica claro que para Spi noza a i nd iferen
ciação d a su bstância nada tem a ver com a negação, mas si m
com a afirmação plena, e que mesmo em relação às coi sas singu
lares é em termos da positividade q u e elas são ap resentadas ;
o negati vo não faz parte de su a essência. "Tod a a coisa se esfor
ça, enqu anto está em si , por perseverar no seu ser" e ''o esforço
pelo qual toda co isa tende a persevera r no seu ser não é senão
a essência atu al dessa coisa" : estas são as proposições V I e V l i
da Parte 1 1 1 da Etica e exp ri mem o que Sp inoza designa por
conatus, a potência do modo, sua perseveração na existência,
sua tendênc ia interna a d u rar indefin idamente.
Ao contrário de F reud, para quem o ser vivo tende a mor
rer por causas inte rn as, para Spi noza " nenhuma coi sa pode ser
destru fda a não ser por uma cau sa exterior" . 1 9 A idéia de uma
p u l são de morte inere nte à substância é i nconceb fvel para
Spinoza, assim como a idéia de um "instinto de morte" en
tendido como "caos primord i a l " . A i nd i fere nc iação da subs
tância nada tem a ver com o caos, acaso ou d ispersão, como
tam bém não é signo da negação, mas, ao contrário, fndice de
21 D ' Hondt, J., "Teologia e práxis na l óg i ca d e Hege l " em: Hegel e o pensamento mo
derno.
22 D ' Hondt, J., op. cit., p. 30.
102 acaso e repetição e m psicanálise
39 lbid.
40 F reud, S., op. cit. , p. 483.
41 F reud, S., op. cit., p. 484.
além 111
princ íp io de prazer.
sujeitado por u ma ordem abso luta que é sentida por ele como
exterior e inexoráve l .
Apesar dessas duas ordens não serem vividas separadamen
te pelo sujeito, elas não se confu ndem. O i magi nário e o simbó
l ico são dois dom ín ios d i sti ntos. Desde os seus pri mei ros semi
nários, o esforço de Lacan se . dirigiu no sentido de d istingu ir o
que pertence ao dom ín io do imaginário e o que pertence ao do
m ín i o do simbólico. Essa distinção ou disju nção é correlat iva da
que ele esta belece entre o eu em sua d imensão imaginária e o
sujeito enquanto pertencente ao simbó l ico.
V i mos acima que é o poder de nomear os objetos o que
perm ite ao sujeito superar a eva nescência do i maginário. Essa
nomeação diz respeito a u m dos reg istros do simból ico: o regis
tro da palavra. E a palavra que instau ra a permanência temporal
do mundo - entendido este como um sistema de objetos - e
também a continuidade do sujeito. E a i nda a palav ra, na sua
fu nção mediadora, que possi b i l ita o reconhecimento do outro e
que perm ite a su peração do desejo de morte que caracteriza a
relação d u a l . Mas, além da vertente da pa lavra, temos que d ist in
gu i r no simból ico u ma ou tra vertente : a da linguagem. 52 O sim
ból ico como l i nguagem é o que Cdracter iza propria mente aqu i lo
que Lacan chama de Ordem simbólica enquanto conju nto estru
tural independente do sujeito q u e fala. Esse é o l ugar do Outro
(o grande Outro ) , sistema de elementos sig n ificantes ao qual o
sujeito é su bmetido desde o começo.
Assim, em termos do desenvolvi mento da criança, o que
ocorre é u m aprend izado da fala, da palavra, mas não um apren
dizado da l i ngu agem. E sta encontra-se presente desde o in ício, e
é ela que vai poss i b i l itar a fala. Não há, portanto, aqu isição pro
gressiva da l ingu agem pela criança. E n qu anto Ordem si mból ica,
ela está p resente desde sempre e, em termos da criança, antes
mesmo do· seu nascime nto. E somente do lugar desse Outro que
a i ntersubjetividade pode se dar. O d i scu rso do Ou tro é u m sis
tema de e lementos significantes ao qual o :.uje ito é su bmetido
desde o in ício e que l h e permite falar ao outro ( com m i núscu la) .
a noção de rea l idade exterior está l igada mu ito mais à d ist inção
entre o interno e o externo para o sujeito, do qu e a uma exigên
cia de rigor filosófico. Se a ênfase, em a lgu ns de seus textos, é
dada a esse "exterior" ao suje ito, Freud nem por isso se deixa
apa nhar pela simpl if icação positivista. Sabia ele, e Lacan nos
mostra isto magistra l mente, 6 1 que o mu ndo externo, ta l como
o percebemos ingenuamente, só é possível na med ida em que
intervém a palavra. Sem a intervenção da fu nção si mból ica, o
mu ndo seria reduzido a u m fluxo en louqu ecido, caos de ima
gens sem ordem e sem permanência no tempo. E a palavra que
cria o passado e o futu ro, assim como é a pa lavra qu e permite
a do is suje itos o reconhecimento, não apenas u m do outro,
mas tam bém de a m bos em relação ao mesmo objeto. Sem o re
conheci mento pela palavra, ficar íamos prisioneiros de nossa
própria su bjetividade.
Sobre isso H egel já nos fa lou o su ficiente na Fenomenolo
gia do Esp írito . Restaria pa ra expl icar como se dão as gestalten
no mundo a n i m a l , já que estes não t:stão de posse de palav ra. A
psico logia e a eto logia já nos mostra ram de forma clara e conv i n
cente que os a n im a is respondem a gestalten, a formas, que apre
sentam inclusive a l gu ma poss i b i l idade de reestrutu ração. E os
animais não possuem a palavra. Por que, então, o m u ndo não é
para eles u m fluxo enl ouq uecido de imagens? A resposta estaria
em que o mundo a n i m a l , natu ra l , não é caótico, mas possu i u ma
o rdem própria, distinta da o rdem hum ana. 6 2 Tanto no mu ndo
animal como no mu ndo f ísico encontramos formas, estrutu ras,
gestalten. A diferença qu e estas formas apresentar iam em re la
ção ao m u nd o hu mano resid iria no fato de que elas se reduzem
ao imaginário a n i ma l, a ordem que elas apresentam resu lta dos
princ íp ios de pro x i m idade, semelhança e fechamento, e não da
i nterven iência do simbó l ico. Quando mu ito, encontraríamos no
mu ndo a n i m a l um esboço de simbólico, mas que seria a bu sivo
identificarmos com a fu nção simbólica no homem, e nisto não
va i nen h u m narcisismo da espécie h u ma na. De fato, o animal é
que pode enga nar, é que há também a lg u ma co isa que não en
gana" :6 5 esse algo que não engana é o real. E também não é
para esse a lgo qu e não engana que o conceito de pu l são apon
ta?
O rea l é u ma palavra, ass i m como a pu l são é u ma pa lavra.
N ós os nomeamos mas, em segu ida, silenciamos. Este silêncio
não é, porém, um si lêncio abso luto. Trata-se sobretudo do si
lêncio conceitu a l E esta é ta lvez a questão maior que a psica
ná l ise nos co loca. E m sua p rática e em sua teoria ela nos apon
ta pa ra o rea l, mas ao mesmo tempo ela teme o ab ismo que se
segue à borda do u n iverso simból ico. Ao lançar seu o l h a r por
sobre este abismo, o máximo que ela consegue é ampl iar os l i
mites do próprio u n iverso conceitual a part i r do qual ela fa la.
A psica nál ise, assim como qualquer d iscu rso conceitu a l , encon
tra-se na situ ação de u m navegante que quer atingir o horizon·
te e qu e nada m a is consegu e do que amp l ia r os l i m ites do seu
próprio espaço. Persegu indo o rea l , a psicanál ise vê esse hori
z onte se afastar j u ntamente com a sua ca m inhada.
Mas não é assim desde Platão ?
N ão creio que a situação seja a mesma. O viajante platôn i
co so nhava em c hega r a um outro m u ndo, transcendente ao m u n
do sen s ível , habitado por formas pu ras e dotado de u ma ordem
absoluta . O real que a psicaná l ise persegue não é transcendente ao
humano, ele está a í p resente fazendo sentir toda a sua força, po
rém, invis ível e si lencioso. E le não é estra ngeiro, não habita o
Topos U ranos, ele é fam i l iar, Un-heimlich. Se a palavra não con
segue captu rá- t o, é pela palavra que ele se insinua.
Essa palav ra, ta l como a palavra do aedo na G récia arca i ca,
é portadora dos d isfarces, das distorções, do engano, mas é tam
bém portadora da A le theia, da verdade. E pela palavra que o
rea l faz su a irru pção na O rdem simból ica, denunciando que essa
ordem possu i um u mbigo, qu e ele nos remete ao i n sondável e
ao s i l êncio, para algo qu e ficou exc l u ído do simból ico. É essa
irru pção que marca o lugar do trágico em psica n á l i se. A radica-
bS
Lacan. J . . O Seminário, Livro 3, p. 78.
além 125
l ização da função si mból ica fazendo com que "todo o rea l seja
rac ional" é a tentat iva de "recu perar" esse trág ico tornando-o
ordem.
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