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Campo Grande
2019
DANIEL ATTIANESI DE LIMA
‘Só quem sentiu o frio das grades, sabe o calor da liberdade’: discursos de
masculinidades e violência no Instituto Penal de Campo Grande (IPCG)
Campo Grande
2019
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Daniel Attianesi de Lima
‘SÓ QUEM SENTIU O FRIO DAS GRADES, SABE O CALOR DA LIBERDADE’: DISCURSOS DE
MASCULINIDADES E VIOLÊNCIA NO INSTITUTO PENAL DE CAMPO GRANDE (IPCG)
Banca examinadora
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Para toda a minha Família
(Isabel, Paulo, Thiago e Isabelle)
E também a meu falecido Pai, Rogerio Jorge Torres (1959-2007)
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AGRADECIMENTOS
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Também agradeço aos professores da breve graduação e do mestrado que tive na
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Esmael Oliveira, Álvaro Banducci,
Antônio Hilário, Cleverson Rodrigues, Daniel Estevão, Erickson dos Santos, Lucas
Cordova e especialmente ao professor Tiago Duque, que me fez ter esperanças
novamente no poder docência.
Brevemente gostaria de agradecer também a Alexandra Elbakyan, cazaque
criadora do site Sci-Hub em 2011. Essa plataforma já possui milhares de artigos e livros
científicos disponíveis gratuitamente para pesquisadores do mundo todo, contra o
movimento americano de restrição do conhecimento acadêmico utilizando da
mercantilização dos mesmo. Ela foi fundamental em boa parte da bibliografia
estrangeira que utilizo na dissertação.
Preciso agradecer aos professores que compuseram a banca de qualificação, que
com seus apontamentos e sugestões, agregaram qualidade e deram uma nova vida a
dissertação como um todo. Sou muito grato a professora Maria Filomeno Gregori, pelas
mudanças sugeridas na estrutura e até mesmo na concepção dos capítulos da
dissertação, e ao professor Tiago Duque que trouxe um novo olhar de questões do
campo.
Há todos professores e alunos que “aguentaram” a minha presença durante as
aulas nas discussões calorosas, que no geral eram minha culpa, mas que muito me
ensinaram. Aos colegas e amigos da primeira turma do PPGAS da UFMS,
principalmente Paulo Lucca, Andrey Monteiro e Carla Souza, que acompanharam e
viveram as frustações, cansaços, peso assim como os bons momentos, os eventos, as
aprendizagens e as oportunidades que o mestrado traz para nós (faço aqui uma menção
honrosa de outro programa de mestrado, a linda da Naty Po). Aos amigos que fiz nos
diversos cursos de graduação, sejam os meninos da psicologia (Fialho, Hígor, Christian,
João, Pietra), o povo da filosofia (particularmente o Allison Vicente, o filósofo mais
divertido da uf) ou à turma da letras por me deixarem “invadir” suas disciplinas com
minhas dúvidas e anseios. Especialmente gostaria de agradecer ao Júnior Flores,
Alberto Warmling, à Karol Hanario e ao Salim Santos, obrigado pelas discussões,
debates, eventos, brincadeiras, cervejas, beijos, rolês, saídas, textos e autores, que muito
compartilhamos durante esse tempo desde minha chegada em Campo Grande.
Não poderia esquecer os meus amigos que fiz nos treze anos que morei em
Fortaleza, que não tive a oportunidade de agradecer em meu TCC. Cidade essa que me
formou muito mais que a suposta naturalidade do meu carioquês, e me deu a
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oportunidade de absorver um pouco do espírito e do bom humor cearense. Guardo com
carinho o tempo passado. Esses amigos e colegas que apesar da distância de mais de
3000 km e 3 anos se manterão próximos das mais diversas formas. Agradeço pelo
contato e carinho, principalmente, ao Lucas Bmr, à Victoria Leite, à Ellen Feitosa, à
Ainne Barboza, à Camila Medeiros, e à turma do DAV (Caioq, Lila, Gilberto, Ricaz,
Bozo, Cássio, Léo e Walmz), aos meninos do ITA (Lucas Garcia, Gustavo Aracena e
Leonardo Linhares vulgo Nirvs), e ao trio de amigas mais incríveis que conheci
(Stephanie Torres de Melo, Laís Brasileiro e Carol Vasconcelos, vocês são umas lindas
<3). Espero ainda ter muitas oportunidades de ir à Fortaleza, ou pelo mundo afora,
encontrar vocês para compartilharmos mais um pouco de nossas vidas.
E por último, mas não menos importante, gostaria de agradecer aos
interlocutores. Primeiramente aos funcionários da AGEPEN sede que me receberam,
ofereceram auxilio e permitiram minha pesquisa em um dos presídios que administram.
Aos agentes penitenciários que me receberam em seus locais de trabalho, especialmente
Maria. Eles enriqueceram minha dissertação com um outro olhar sobre as prisões
brasileiras a partir de suas visões cotidianas da prisão. E principalmente aos presos pelas
entrevistas e conversas que tivemos durante a pesquisa. Alguns desses homens que
apesar de estarem em um dos momentos mais difíceis de suas vidas, ainda assim
abriram elas, junto de suas histórias e percursos com o pesquisador que vos fala.
Encerro agradecendo a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,
Ciência e Tecnologia (FUNDECT) do Mato Grosso do Sul, pela assistência por meio
das bolsas que tornam a realização e a dedicação exclusiva a essa pesquisa. Em tempos
como os atuais, fundações de amparo se tornam fundamentais para a produção
universitária de qualidade de nosso país.
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— Pai, eu acho que não sou homem...
Decepcionado, o pai chorou.
Aliviado, o filho sorriu, vendo que o pai
também não era.
(“Homens não choraram” de Gabriel
Aguiar, IV Prêmio de Microcontos, 2016).
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RESUMO
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ABSTRACT
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Lista de Quadros
Lista de Figuras
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Lista de Abreviaturas e Siglas
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SUMÁRIO
Considerações Iniciais................................................................................................................14
Organização da Dissertação.........................................................................................................42
1.2 “PARE DE CORRER! Quem é você?! Para onde está indo?!”: acesso, corpo e risco no
IPCG.............................................................................................................................................52
Capítulo III – ‘Eu estou preso, mas sou homem, você me respeita’: masculinidades, crimes
e violência .................................................................................................................................111
Considerações Finais................................................................................................................137
Referências Bibliográficas.......................................................................................................141
Anexos........................................................................................................................................152
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época. O Zeitgeist significa, em suma, o
conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de
um determinado período de tempo.
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Com três volumes específicos para a questão da mulher em um dos maiores
conjuntos de estudos e pesquisas de violência do país, o Mapa da Violência2 foi
organizado por Júlio Jacobo Waiselfisz. Todo esse conjunto de dados me despertou a
seguinte dúvida: há uma percepção de vulnerabilidade da mulher3 oposta a uma negação
da vulnerabilidade dos homens? A quase compulsória vulnerabilidade da mulher é
sempre vista como sujeita a sofrer algo? Isso leva a uma conclusão quase imediata de
que os homens são percebidos não como categoria específica, mas sempre como o
“natural” para tais acontecimentos. Masculinidade e feminilidade, força e fragilidade,
ativo e passiva, os binômios em oposição.
Dessa forma, quando busquei os dados sobre violência no campo das
masculinidades, encontrei índices alarmantes. Tais números dizem respeito a diversas
esferas de violência, em um universo em que os homens representam 49,35%4 da
população brasileira (50,11% no estado do Mato Grosso do Sul), eles apresentam 94,4%
da média nacional de homicídios por arma de fogo (Mapa da Violência Homicídio por
armas de fogo no Brasil, 2016), 93% dos homicídios nos adolescentes de 16 e 17 anos
(Mapa da Violência Adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil, 2015), e 82,3% dos óbitos
no trânsito (Mapa da Violência Acidentes de Trânsito e Motocicletas no Brasil, 2013).
Em todos os estados da federação e em diversos tipos de violência (arma de fogo,
trânsito e na juventude), a predominância do gênero masculino é exacerbada, sobretudo
ao aproximar este dado do percentual da população masculina do país.
O que chama atenção, ao observar os estudos sobre a violência no país, é o fato
de que entre os diferentes marcadores socais da diferença (idade, raça/cor, gênero,
classe e escolarização) a questão dos gênero masculino das vítimas é sempre abordada
como um fato dado, mas pouco se vê algum tipo de problematização, apenas no caso da
violência contra a mulher5, como já mostrado. A primeira impressão é a de uma
2
Conjunto de pesquisas realizadas desde o ano de 1998 até os dias de hoje que buscam estudar a
violência pelo país, contando atualmente com 27 Volumes produzidos.
3
As categorias de “mulher” e “homem” nesse trabalho partem da concepção performática de Judith
Butler (2018). Os “homens” e “mulheres” são reiterados à partir de atos performativos constantes que
buscam dar um consistência de naturalidade e identidade a generificação entre masculinos e femininos
dos corpos.
4
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) 2017, População do Brasil e das Unidades da
Federação.
5
Nos estudos dessa temática já se tem uma crítica ao movimento que aos pesquisadores fazem ao
constituir a mulher enquanto vitima perpétua. Maria Filomeno Gregori (1993), demonstra isso ao afirmar
que “[...]paradoxalmente, é ela que vai se aprisionando ao criar sua própria vitimização. [...]. Isto é, ela
ajuda a criar aquele lugar no qual o prazer, a proteção ou o amparo se realizam desde que se ponha como
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normalização da violência contra homens em suas diversas esferas. Não me parece que
o fato de os homens serem as vítimas majoritárias dessas violências, apresentadas pelos
dados acima, gerasse qualquer inquietação ou estranhamento em pesquisadores do
gênero.
Em vista disso, procuro me afastar um pouco da ideia do homem como vítima.
Quero me aproximar do homem enquanto “criminoso” e causador da violência. A partir
das estatísticas do sistema penal brasileiro (a última disponível em junho de 2016),
podemos observar que o Brasil possui 726.712 detentos 91,5% desse são do “sexo
masculino” e os 8,5% restantes do “sexo feminino”. Com relação aos dados de Mato
Grosso do Sul, a mesma pesquisa mostra que o número de detentos é de 18.688. Desses,
91,9% são do “sexo masculino” e 8,1% do “sexo feminino”. Ao observar esses dados,
comecei a perceber a possível existência de algumas relações entre o homem como
vítima e o homem como “criminoso”. Com base na inferência estatística, percebe-se que
a maior parte dos crimes ocorre entre sujeitos pertencentes ao mesmo gênero. Pretendo
utilizar essas inferências para pensar, de forma mais ampla, a relação entre violência e
gênero.
Gostaria de apontar que as minhas inquietações sobre a questão da violência
associada às masculinidades não buscam apagar – ou deixar em segundo plano – a
importância das questões de violência entre os gêneros (especialmente a violência
doméstica), como, por exemplo, aquele tipo de violência que se materializa no
feminicídio (Bonatti, 2008), tão em voga atualmente. Com isso esclarecido, enfatizo que
o recorte desse trabalho pretende se afastar da vasta gama de estudos que destacam o
caráter exógeno da violência de gênero. Em outra direção, minha pesquisa busca lançar
luz sobre a perspectiva homossocial6 da violência de gênero, sobretudo a partir dos
discursos sobre masculinidades no do Instituto Penal de Campo Grande.
A escolha por trabalhar com detentos de um estabelecimento penal encontra uma
série de dificuldades no campo de questões éticas, de segurança e a própria viabilidade
para a realização da pesquisa. Devido ao caráter sensível de se trabalhar com violência e
gênero na prisão, busquei um campo onde fosse possível ter acesso ao tipo de sujeito
causador de violência, mas que ao mesmo tempo possibilitasse a realização da pesquisa
vítima. Esse é o "buraco negro" da violência contra a mulher: são situações em que a mulher se produz -
não é apenas produzida – como não-sujeito.” (1993, p.184)
6
Termo utilizado pela antropóloga Eve Sedgwick (1985) para nomear e articular as práticas sociais
intragênero que ocorrem em espaços eminentemente masculinos, como os da amizade, por um lado, e da
rivalidade, pelo o outro.
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no sentido prático e não me colocasse em perigo. Para tanto, foram realizados diversos
contatos com diferentes instâncias da burocracia pertencentes à Agência Estadual de
Administração do Sistema Penitenciário do Estado (AGEPEN) que, por meio dos
primeiros encontros, indicou o IPCG como um possível local para a realização da
pesquisa, bem como indicou uma espécie de protocolo que deveria ser seguido,
inclusive, tendo em vista o resguardo da minha segurança.
Logo, essas escolhas se mostraram definidoras do tipo de campo e sujeitos que
eu estaria interagindo nas idas ao IPCG. É importante ressaltar que, apesar dessa
escolha ter tornado a pesquisa possível, ela não vem sem diversas outras questões que
surgem ao se escolher trabalhar dentro de uma instituição estatal total como um presídio
de regime fechado. Entre essas questões, pode-se suscitar as questões do aparato estatal
de segurança pública e seus interesses específicos, a imensa desigualdade de diversos
grupos sociais em nossa sociedade, as questões sobre a realidade diária dos detentos no
presídio em relação aos homens violentos, a eleição do que pode ser considerado como
“violento” para a seleção de detentos, a distância temporal dos atos cometidos, a
possibilidade de injustiças dentro do sistema penal, as expectativas que os detentos
possuem de sua saída do cárcere, entre diversas outras que buscarei demonstrar,
justificar, e tentar solucionar no decorrer desta dissertação.
Uma etapa importante da construção do campo foi o estabelecimento de um
quantitativo de internos possíveis para a colaboração com a pesquisa, bem como dentre
aqueles que seriam possíveis de aproximação e houvesse interesse por parte deles com a
minha pesquisa. A quantidade de internos a serem entrevistados foi definida a partir de
inúmeras conversas em campo, seja em reuniões com a administração, ou com a equipe
de agentes penitenciários e concluída nas reuniões de orientação. Após a etapa de
conversação, que envolveu uma série de ponderações, especialmente no que tange à
segurança do pesquisador, bem como o atendimento de uma diversidade de internos no
que diz respeito a alguns marcadores sociais da diferença, foi estabelecido o número de
9 (nove) detentos do IPCG.
A partir desses oitos internos, foi realizada uma regra de três7 com as
porcentagens presentes no levantamento nacional de informações penitenciárias do
7
Partindo dos perfis presentes no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2016,
se buscou utilizar as porcentagens para se fazer uma proporção dos oito internos escolhidos. Por exemplo,
no critério de faixa etária 55% dos brasileiros privados de liberdade estão entre 18 e 29 anos, com isso se
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Infopen8 2016. Os perfis da população prisional brasileira, a partir do que fora
apresentado no Infopen, observados foram geração, raça/cor, escolarização, estado civil
e paternidade. O critério do crime pelo qual o interno foi condenado (aqui entendido
como o artigo pelo qual o interno está no IPCG) foi destacado como o mais importante,
devido ao que já foi dito na explicação acima: pensar violência e masculinidade a partir
de homens que cometeram crimes violentos contra outros homens.
No entanto, como dito por alguns interlocutores “quem vê artigo não vê
coração”. Isso fez com que durante as entrevistas a violência fosse pensada e
conversada de maneira mais geral e não apenas restrita a uma formulação identificada
ao artigo da condenação. O artigo foi a ponto de partida, o elemento disparador, não o
fim do diálogo.
É oportuno ressaltar que dois dos marcadores sociais da diferença,
preliminarmente, selecionados como importantes, foram descartados do quadro I. O
primeiro foi classe social que foi retirado por não haver a possibilidade de acessar essa
informação no banco de dados a que foi permitido o acesso. No entanto, como no caso
do artigo, a classe social foi uma questão considerada durante as entrevistas com os
internos, a partir de suas narrativas. A outra característica pensada foi a questão do
trabalho/estudo por parte dos internos. Esse ponto foi descartado depois das conversas e
entrevistas realizadas com os funcionários do estabelecimento penal que explicaram
como funcionava o processo de seleção9 para se ter uma vaga para trabalho ou estudo,
bem como em razão de que os horários e os locais onde os internos
trabalhavam/estudavam entrariam em choque com os horários permitidos para
realização do campo pela direção da unidade. No quadro10 abaixo, há uma
sistematização dos internos que foram sujeitos da pesquisa:
Quadro I – Detentos e os critérios de escolha
buscou que dentre os oito internos, metade deles deveriam estar nessa mesma faixa etária para que se
tenha uma compreensão de uma realidade mais macro do perfil dos presos brasileiros.
8
Criado em 2004, o Infopen busca compilar as informações estatísticas do sistema penitenciário
brasileiro, por meio de um “formulário de coleta estruturado preenchido pelos gestores de todos os
estabelecimentos prisionais do país”, ele é feito em busca de se valorizar a cultura de análise de dados
como uma das ferramentas estratégicas da gestão prisional no país.
9
Processo esse que é composto de critérios como “bom comportamento” algo que não achamos
interessante ser utilizado na pesquisa. Logo, nenhum dos internos entrevistados trabalhava ou estudava
durante a pesquisa, mesmo que no passado já tenha estado em alguma dessas posições.
10
Os nomes presentes no quadro são fictícios.
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Ensino
Artigos.
Fundamental
João Branco 18-24 121,129,137,147,158
Incompleto
Ensino
Artigos.
Negro ou Médio
Gabriel 18-24 121,129,137,147,158
Pardo Completo
Ensino
Artigos.
Fundamental
Lucas Branco 25-29 121,129,137,147,158
Incompleto
Ensino Artigos.
Negro ou
Pedro Médio 25-29 121,129,137,147,158
Pardo
Completo
Ensino Artigos.
Negro ou
Mateus Fundamental 30-34 121,129,137,147,158
Pardo
Incompleto
Ensino Artigos.
Marcelo Branco Médio 30-34 121,129,137,147,158
Incompleto
Ensino Artigos.
Vitor Branco Médio 30-34 121,129,137,147,158
Incompleto
Ensino Artigos.
Negro ou
Gustavo Médio 35-45 121,129,137,147,158
Pardo
Incompleto
Ensino Artigos.
Negro ou
Guilherme Fundamental 46-60 121,129,137,147,158
Pardo
Incompleto
Fonte: elaboração própria.
11
Nas informações disponíveis no mapa carcerário utilizado, onde havia 1.367 internos, constavam:
Nome do Interno, Natural, Estado Civil, Dia do Nascimento, Dia da Entrada na prisão, Benefício, Prazo
para Saída, Término Pena, Artigo, Pena, Observações, Filiação, Idade, Cor, Grau de Instrução, Número
do Processo e Número de Registro Interno.
12
Ao todo 5 internos se negaram a participar dos 24 perguntados, 2 não puderam participar por estar em
cela de segurança. E no caso do Interno 6, dois acabaram sendo entrevistados, ao invés de apenas 1.
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Logo, na prática, não foi possível realizar a pesquisa com todos os perfis, tal
como eu tinha pensado. Pode-se observar no Quadro I, acima, que aqueles marcados em
vermelho e preto são os que não foram atingidos e os em verde são os que foram
atingidos em relação ao que o pesquisador procurava. As prioridades de marcadores
foram selecionadas a partir de crime, raça, geração e escolaridade. Essas prioridades
foram traçadas a partir de como a violência será abordada no trabalho, bem como das
maiores recorrências de sujeitos presentes como internos no sistema penal brasileiro,
segundo os dados do Infopen.
A questão dos nomes, tanto dos internos quanto dos funcionários da Agepen
entrevistados, foi pensada de forma que se afaste qualquer possibilidade de identificação
dos sujeitos de pesquisa. Todos os outros agentes interlocutores que não foram
entrevistados, serão chamados por suas funções. Com isso, optei por selecionar nomes a
partir da plataforma13 “Nomes no Brasil” do Instituto de Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Tendo isso em vista, todos os nomes foram trocados na dissertação,
até mesmo os apresentados durante as conversações, de maneira a garantir o sigilo dos
interlocutores.
13
Essa plataforma utiliza os dados do censo de 2010 do IBGE como forma de se registrar os números de
pessoas com determinados nomes (“Masculino” ou “Feminino”) que nasceram no Brasil a partir da
década de 30 ou um pouco anterior, https://censo2010.ibge.gov.br/nomes/#/search Acessado em: 06 de
junho de 2018.
14
Estou pensando discurso a partir de uma perspectiva foucaultiana. Isso ficará mais claro quando
apresentar as questões metodológicas do trabalho.
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construção social performática. Essa forma de pensar vem dos trabalhos de antropólogas
que, a partir dos estudos do gênero, começaram a questionar uma naturalização tanto da
sexualidade quanto do gênero. Interessa-me aqui, especialmente, os trabalhos de Carol
Vance (1995) e Gayle Rubin (1993; 2003).
O cerne da análise é orientado por três eixos conceituais principais que
perpassam toda a dissertação: masculinidades, prisão e violência. Desenvolvo-os à
medida que me ajudam a problematizar sobre os dados produzidos, bem como a tecer
algumas interpretações acerca da constituição da relação entre masculinidade e
violência e das especificidades do campo prisional que os participantes da pesquisa se
encontram imersos em suas relações cotidianas.
Esses três eixos principais se mostraram significativos depois de conhecer a
análise realizada por Marcelo Campos e Marcos Alvarez (2017) dos “estudos no âmbito
da punição e as prisões”. Busco dialogar com autores cujas obras já se tornaram leituras
clássicas para aqueles que pretendem se debruçar sobre a temática das prisões. Um deles
é Michel Foucault, em Vigiar e Punir (2012 [1975]). Outro, é Erving Goffman, em
Manicômios, Prisões e Conventos (2015 [1961]). Mas aqui, elas serão vistas com um
olhar crítico, que busca os limites dos contextos em que foram produzidas com o
contexto de meu campo. A referência a essa literatura ajudará na compreensão da
instituição penitenciária como um todo, bem como nas suas estratégias de disciplina e
“controle” dos sujeitos.
No entanto, tendo em vista as especificidades histórico-culturais das obras
desses dois autores, pensamos na utilização de suas obras com viés crítico de forma a
não buscar no campo uma cópia fiel do que a teoria desses clássicos nos apresenta.
Nesse sentido, procuro utilizar também obras que já ganharam bastante visibilidade no
contexto brasileiro sobre o tema, é o caso do trabalho de Sérgio Adorno (1991), assim
como as questões em voga sobre o aumento das taxas de encarceramento no Brasil a
partir dos anos 2000, me aproximarei da obra de Laurindo Minhoto et al (2002). Dessa
forma, será possível observar o campo desde uma teoria sobre prisões, tanto no sentido
mais macro de formulações teóricas, quanto no sentido mais micro de estudos de caso
da realidade das prisões brasileiras.
No segundo eixo, será relevante para a pesquisa o debate realizado por Isadora
Lins França e Regina Facchini (2017) sobre o movimento atual no âmbito dos estudos
de gênero no Brasil. Elas destacam o aprofundamento das pesquisas sobre gênero a
partir da intersecção com diversos marcadores sociais da diferença como uma questão
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em ascensão dentro da área de estudo como um todo. A partir dessa perspectiva
interseccional, consigo pensar na articulação entre os marcadores sociais da diferença
(raça, classe, geração e educação) e a categoria de gênero (entre os espectros masculinos
e femininos) no meu campo, o IPCG.
Para fins desta dissertação, trabalharei o conceito de gênero como ferramenta
para a análise das práticas sociais relacionadas ao cotidiano no estabelecimento penal
masculino e significados que possuem para os interlocutores da pesquisa. Aqui se pensa
nesse conceito a partir de elaborações críticas realizadas no âmbito da antropologia na
década de noventa. Estes trabalhos privilegiavam a problematização da oposição entre
masculino e feminino. Uma problematização não prevê apenas a consideração desta
oposição como discurso construído culturalmente, mas também uma discussão sobre a
forma como ela é constituída em homologia à outra, por oposições binárias tais como
público/privado e natureza/cultura.
Tendo isso em mente, utilizarei como base algumas formulações presentes na
obra Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade (2018 [1990]), de
Judith Butler. Butler busca “observar o modo como as fábulas de gênero estabelecem e
fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais”, algo que buscamos pensar
nas masculinidades e discursos sobre a mesma em campo. Butler já se tornou clássica
nos estudos de gênero a partir da perspectiva demonstrada acima e com o pouco tempo
de sua obra que se encontra como uma percepção bastante comum para a terceira onda15
do movimento feminista de sua época.
Farei uso da obra Masculinities (2005 [1995]), de Raewyn Connel para
fundamentar a compreensão das masculinidades e as relações entre as mesmas. Connel
já é um autor fundamental para os estudos de masculinidades tanto no Brasil, quanto no
exterior. Utilizarei sua obra e suas críticas como fundamentação dos conceitos utilizados
para pensar os múltiplos masculinos constituídos historicamente.
No terceiro eixo das violências, temos as áreas de sociologia da violência e
antropologia da violência, que estudam esses fenômenos das mais diversas formas a
partir das ciências sociais. Entendemos aqui que essa temática pode ser abordada em
diversos níveis e em diferentes perspectivas, desde o espectro da violência explícita,
como em um assassinato ou agressão, até as formas mais discretas e silenciosas, mas
15
As ondas feministas são entendidas como as gerações dos projetos feministas, muitas vezes
controversas nos níveis teórico e prático. Parar aprofundar o debate sobre o desenvolvimento das ondas e
suas categorias, ver Adriana Piscitelli (2002).
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que ainda assim não são menos presentes e destrutivas, tais como a violência sistêmica e
simbólica. Uma segunda questão diz respeito aos métodos que busco utilizar nessa
dissertação e a capacidade de os mesmos serem ferramentas suficientes para a
observação e análise dos processos e situações ditas “violentas”.
Dessa forma, a violência se torna uma temática, ou objeto de estudo de difícil
acesso para o pesquisador. A violência parece se transmutar no campo, aparecendo de
uma forma que não seria a “violência em si”, mas a violência enquanto um discurso
particular sobre ela mesma, que está presente tanto nas entrevistas quanto nas conversas
informais.
Nesse sentido, e nos contextos em que trabalhei, é estranho pensar a violência
enquanto um cenário específico, como se fosse possível capturá-la em um lugar
determinado. Ela me pareceu, nesse campo, tanto em seu sentido abstrato quanto
concreto, como o próprio contexto em que o IPCG está inserido. Tendo isso em mente,
busca-se tratar da violência enquanto forma de um discurso, no sentido foucaultiano,
que reitera as práticas tidas como violentas por determinados grupos, seja ele o dos
funcionários ou dos internos. O foco se dá então na violência física e ameaça da mesma
que discursivamente se associam a ideias de virilidade e masculinidades na formação de
uma identidade generificada do homem.
Como apoio para pensar a violência da maneira retratada acima, utilizarei os
trabalhos de Alba Zaluar, A máquina e a revolta (1994), com sua busca por separar o
crime da violência, em que ela apresenta uma análise dos dois fenômenos que podem ou
não se relacionar. Também será fundamental, a obra Violência e estilos de
masculinidade (2004), de Fátima Cecchetto, em que ela mostra o processo pelo qual a
violência surge em três grupos de homens diferentes na cidade do Rio de Janeiro.
Também estarei pensando a respeito do processo pela qual nossa sociedade passou com
as mudanças na agressividade e o surgimento do controle social por parte da
“civilização” com os dois volumes de O Processo Civilizador (1990,1994), de Norbert
Elias e A busca da excitação (1992) de Norbert Elias e Eric Dunning.
Durante a revisão da literatura sobre o tema, constatou-se, especialmente em
língua inglesa, uma série de trabalhos (Newton, 1994; Steele and Wilcox, 2003;
Connell, 2016; Gooch 2017) que guardam proximidade com o que estou investigando.
Minha pesquisa se aproxima dessa vasta gama, sobretudo aquela que se desenvolve a
partir dos anos 2000, em termos de temática, de dilemas, de perspectivas e de interesses.
Um rápido exemplo é a obra New Perspectives on Prison Masculinities (2018), de
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Mathew Maycock e Kate Hunt. Esse compilado analisa de forma completa e global
questões sobre masculinidades em um contexto carcerário. Ele trata de temas como
trabalho e intimidade, passando por corporalidade, negritude e esporte, até paternidade
nesses contextos.16
Os dados dessa pesquisa foram produzidos por meio de observação participante,
conversas informais e entrevistas despadronizadas17, que ocorreram entre o segundo
semestre de 2017 e o primeiro semestre de 2018 em visitas programadas18 semanais no
IPCG. A observação participante foi realizada no início do trabalho de campo como
forma de conhecer a rotina dos funcionários e o ambiente da instituição. Em um
segundo momento, foram realizadas conversas informais com alguns interlocutores da
administração do IPCG. Quase no final da pesquisa, foram realizadas as entrevistas,
primeiramente, em vias de se conhecer melhor o próprio instituto penal e a realidade
diária da instituição, com os cinco agentes penitenciários (sendo quatro que se
identificam como mulheres e um como homem). Depois, foram realizadas as entrevistas
com oito detentos selecionados19 para a pesquisa. Todas as entrevistas ocorreram nos
turnos diurno, matutino e vespertino. No caso dos agentes, elas ocorreram nos seus
horários de trabalho, dentro de suas salas, onde cumpriam suas funções. No caso dos
internos, as entrevistas foram realizadas numa sala separada20. Todas as entrevistas
foram feitas de forma individual21, com gravação consentida por todos os participantes.
Além das técnicas clássicas do fazer antropológico, acima mencionadas, a
importância da metodologia reside em se desenvolver uma sistematicidade com os
16
Aqui é importante pontuar o caráter específico na questão da determinação do campo em si para
produção de dados. Com isso não se tem a intenção, nessa dissertação, de fazer mais do mesmo sobre as
questões de masculinidade e prisão, mas buscar uma produção genuína da realidade sul-mato-grossense, e
por que não, brasileira. Torna-se interessante questionar um sistema penal particular, masculinidades
específicas e contradições que se dão na construção geopolítica e histórica de um país ex-colônia como o
Brasil.
17
As entrevistas despadronizadas de acordo com Lakatos e Marconi (2003), consistem em “uma forma de
poder explorar mais amplamente uma questão. Em geral as perguntas são abertas e podem ser
respondidas dentro de uma conversação informal” (2003, p.197). Aqui a modalidade que escolhi foi a de
uma entrevista focalizada em que “há um roteiro de tópicos relativos ao problema que se vai estudar e o
entrevistador tem liberdade de fazer as perguntas que quiser: sonda razões e motivos, dá esclarecimentos,
não obedecendo, a rigor, a uma estrutura formal. ” (Lakatos e Marconi, 2003, p.197 apud Ander-egg, 178,
p.110).
18
As visitas foram programadas a partir da reunião com o diretor, que será descrita no primeiro capítulo
dessa dissertação, e também com o apoio de uma interlocutora, que será identificada no segundo capítulo.
19
Foram selecionados 8 detentos do IPCG. Como visto no Quadro I, em que expliquei os procedimentos
realizados para a escolha de cada sujeito e os motivos da quantidade, que foram discutidos na reunião
com o diretor também.
20
Sala de um funcionário que estava em férias e foi cedida por um dos interlocutores.
21
Apenas nas entrevistas com os funcionários ocorreram momentos de interrupção, porque foram
realizadas durante o expediente, conforme acordado com a direção do IPCG.
Página 24 de 159
conceitos utilizados para que possamos compreender que tipo de objeto a dissertação
tem em mente, quando for utilizada, por exemplo, a palavra discurso. Aqui, então, é
relevante pensar a partir da obra A arqueologia do Saber (2017 [1969]), de Michel
Foucault. Ao utilizar a palavra discursos no título da dissertação, busca-se enfatizar a
importância que ele terá na construção de um saber acerca tanto da masculinidade
quanto da violência. Entendemos discurso, nesta dissertação, nos termos de Foucault,
no sentido em que todo ele
22
Foucault, na História da Sexualidade, em nenhum momento utiliza a categoria de gênero ou entra na
discussão a respeito da construção a partir das “diferenças sexuais” presentes nos corpos. Para uma
discussão crítica a respeito da categoria sexo utilizada por Foucault, ver Martha Narvaz e Henrique Nardi
(2007) e também a discussão de Butler na parte Foucault, Herculine e a política da descontinuidade
sexual, em Problemas de Gênero (2018).
Página 25 de 159
A prisão sendo pensada: sistema penitenciário, Agepen e teorias do campo
prisional
23
Segundo os dados do Infopen, a taxação de ocupação das penitenciárias no Brasil é de 197,4%.
24
Em primeiro e segundo lugares, teríamos respectivamente, Estados Unidos e China.
<Https://istoe.com.br/populacao-carceraria-no-brasil-ja-e-terceira-maior-do-mundo/>. Acessado em
03/06/2018
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das medidas de segurança” e o de “contribuir na elaboração de planos nacionais de
desenvolvimento, sugerindo as metas e prioridades da política criminal e penitenciária”,
tudo isso de acordo com Lei de Execução Penal nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
De quatro em quatro anos, o CNPCP elabora o Plano Nacional de Política
Criminal, como colocado na segunda de suas atribuições acima. O atual está em vigor
desde 2015. Nesse documento, estão diversas medidas que deverão influenciar as
políticas dos estados da federação a respeito da situação do sistema penitenciário. Entre
as diversas medidas progressivas que podemos citar, está a busca por medidas a
alternativas penais, uma prisão provisória sem abusos, implementação dos direitos das
pessoas com transtornos mentais em situação prisional, a redução do encarceramento
feminino e o reconhecimento do racismo como elemento estrutural do sistema punitivo.
Abaixo do CNPCP, há três instâncias25: o Juízo da Execução, responsável pela
execução da pena ao infrator e sua cabível punição; o Ministério Público (Estadual e
Federal), que tem o dever de fiscalizar a pena e a medida de segurança, assim como é
responsável por cuidar das condições dos internos no estabelecimento penal26, por
último há o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o órgão executivo do
CNPCP, responsável pelo acompanhamento da aplicação das normas de execução penal
em todo o território nacional, assim como administrar os presídios federais pelo país.
Do ponto de vista de uma sequência hierárquica, é preciso destacar as instâncias
estaduais. Um órgão importante é o Conselho Penitenciário Estadual, responsável pela
emissão de indultos e comutação de penas e a inspeção dos estabelecimentos e serviços
penais. É preciso ressaltar que existem especificidades de cada estado. Em Mato Grosso
do Sul, há a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (AGEPEN),
responsável pela administração e organização de todos os presídios do estado. Através
da agência é que foi requerido e realizado o processo burocrático para o
desenvolvimento da pesquisa. Por fim, nessa estrutura toda, temos a direção do Instituto
Penal de Campo Grande, que, como veremos a seguir, possui suas formas específicas de
25
Para mais informações sobre as atribuições de cada um desses órgãos, ver na Lei de Execução Penal em
Título III Dos Órgãos da Execução Penal. Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l7210.htm
Acessado em 20/06/2018
26
Uma das interlocutoras explica assim o papel do MP: Promotor vem. Esse mês por exemplo, ela veio
mais de uma vez, ela vem normalmente uma vez por mês [...]. Aí ela vai passa o dedo e escolhe um nome,
na maioria das vezes é aleatório, mas as vezes ela já vem com uma denunciazinha, para chamar o
interno que fez (Pesquisador: Mas o próprio interno faz? Ou é a Agepen). Às vezes simm, outras é a
família. Não é a Agepen, tanto que o diretor fica puto. Ai tá chama, aí faz as perguntas para ele.
Página 27 de 159
atuação e cumprimento das regras dos demais órgãos. A seguir, segue a tabela II que
mostra como a legislação vigente hierarquiza cada órgão até a chegada ao IPCG.
Juízo da
Execução
Ministério da Ministério Conselho IPCG
Justiça CNPCP Penitenciário
AGEPEN
Público
DEPEN
27
Apesar de ser o décimo estado com maior quantidade de população prisional, Mato Grosso do Sul é o
estado que possui a maior taxa de aprisionamento por unidade da federação (presos por população) de
todo o país, com o número de 696,7 para cada 100 mil habitantes (Infopen, 2016).
28
Esse índice de Mato Grosso do Sul é menor em relação à disparidade de gênero nacional, em que para
cada uma mulher são quinze homens presos (Infopen, 2016).
29
Conhecida como a “Nova lei antidrogas”, apesar de a nova lei criar a distinção entre usuário e
traficante, o que é visto como um marco no combate ao encarceramento em massa por causa das questões
das drogas. Pesquisadores apontam para o fato de ocorrer um “deslocamento da administração
Página 28 de 159
Para pensar a relação com os internos que foram entrevistados, considerados violentos a
partir do Artigo 12130 do Código Penal, eles representariam apenas 10% da população
carcerária do IPCG.
Atualmente o estado do Mato Grosso do Sul conta com 47 unidades penais, que
se encontram em 19 cidades, sendo a cidade de Campo Grande a que mais possui
unidades, totalizando 10. Entre elas, estão os estabelecimentos de regime fechado
femininos e masculinos, assim como os de regimes mais brandos como o Centro Penal
Agroindustrial da Gameleira. Sendo todas essas unidades penais de responsabilidade da
Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário, a Agepen.
A Agepen é uma autarquia que se vincula à Secretaria de Estado de Justiça e
Segurança Pública. Sua fundação ocorreu no dia 1 de janeiro de 1979, dia em que o
estado foi oficialmente criado na federação, sob a primeira denominação de
Departamento do Sistema Penitenciário de Mato Grosso Sul (DSPMS). Em outubro de
2000 adotaria a atual designação.
Em uma tentativa de aproximar algumas observações de campo, busco refletir a
partir da contribuição de alguns autores. Faço isso a partir do que fora problematizado
por Erving Goffman e Michel Foucault. Entendo que os dois me ajudam nas leituras
possíveis sobre o campo prisional, apesar de datações e limitações, próprias do contexto
em que foram produzidos,31 que serão apresentadas dos trabalhos de ambos, algo
bastante plausível em se tratando de ciências humanas.
Dentro dos cinco agrupamentos definidos pelo ao autor para separar as
instituições totais, o IPCG se encontraria no terceiro tipo, classificado como
“organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das
pessoas assim não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias” (GOFFMAN,
2015, p. 17). Nesses locais, todos os aspectos da vida seriam realizados em um só lugar
e sob uma única autoridade, representada pelos funcionários da Agepen.
institucional do uso de drogas da esfera oficial judicial para a esfera extraoficial policial” que possibilita
novas formas de ilegalismos, de acordo com Frederico Filho (2008).
30
Decreto de Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940, em que fica estabelecido o Art. 121. Matar alguém
com pena de reclusão de seis a vinte anos.
31
Agradeço a leitura e as contribuições preciosas dos professores Tiago Duque e Maria Filomena
Gregori, que no exame de qualificação me fizeram perceber como as limitações desses autores, já
clássicos, seriam uma peça fundamental para minha dissertação e compreensão de meu campo no
Instituto Penal.
Página 29 de 159
Para Goffman, a base de todas as instituições totais seria o caráter de controle de
muitas necessidades humanas por meio de uma organização burocrática dos internos e
que disso recorreram várias consequências. Teríamos a questão da vigilância, algo que
também aparece no trabalho de Foucault, mais à frente, que busca fazer com que todos
os internos “façam o que foi claramente indicado como exigido, sob condições que a
infração de uma pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível e
constantemente examinada dos outros” (GOFFMAN, 2015, p. 18). Aqui, temos um
pequeno32 contingente de funcionários da Agepen que estaria controlando um número
muito maior, a chamada massa carcerária. A segunda questão seria a divisão básica,
quase que antagônica, entre a posição dos agentes e dos internos. Goffman diz que até
mesmo a edificação e seu nome seriam, devido essa divisão, entendidos como algo que
pertence à equipe dirigente (2015, p.20).
Torna-se importante demarcar as limitações do conceito de instituição total de
Goffman que vem sendo demonstradas em pesquisas no ambiente prisional brasileiro e
português (Cunha, 2003; Biondi, 2009; Godoi, 2010; Lago, 2014;). A questão principal
que essas pesquisas novas trazem para o debate centra-se no quanto uma instituição
total seria fechada ou isolada do resto da sociedade, por exemplo, Cunha (2003) a partir
da prisão de Tires, em Portugal, demonstra dois pontos bem relevantes para se pensar a
prisão contemporânea.
O primeiro diz respeito às relações familiares que os internos possuem com
outros internos e como isso tem ficado cada vez mais comum nas prisões, Cunha nos
fala que “as parentelas que aqui se desenham, por exemplo, podem envolver mais de
uma dezena de pessoas e podem envolver quatro gerações” (2003, p.3). O mesmo foi
percebido na minha pesquisa de campo no IPCG. Entre os internos entrevistados, mais
da metade deles possuía familiares presos em outros presídios, ou no próprio IPCG,
além de um que possuía o pai em sua mesma cela. As relações familiares claramente
ultrapassavam as ideias de uma instituição total fechada e isolada, onde o indivíduo
passava por um corte de suas relações familiares.
32
De acordo com o Infopen, há uma defasagem de agentes penitenciários (apenas considerando os de
Segurança e Custódia, segundo a separação da Agepen) no estado de Mato Grosso do Sul, apresentando
uma proporção de 1 agente para 18,6 internos. Número alarmante, segundo resolução de 2009 do CNPCP,
que indica que a proporção deveria ser de “1 para cada 5 pessoas presas como padrão razoável para a
garantia da segurança física e patrimonial nas unidades prisionais, a partir de parâmetro oferecido pela
Estatística Penal Anual do Conselho da Europa, data-base 2006” (Infopen, 2016).
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Um segundo ponto destacado por Cunha diz respeito não às famílias em si, mas
aos bairros de onde os internos são provenientes, algo que se repetiu também no IPCG.
33
O PCC seria uma “organização criminosa” que apesar de não ser “[...] possível afirmar com precisão a
data e as circunstâncias do surgimento do PCC. No decorrer da minha pesquisa, coletei diferentes versões
sobre sua fundação: que teria sido em 1989, na Casa de Detenção do Carandiru; em 1991, em Araraquara;
que se originou de outros grupos prisionais chamados Serpente Negra ou Guerreiros de David; ou que sua
origem se deu em uma partida de futebol” (BIONDI, 2010, p.47), ele atualmente é visto pelos presos
como uma coletivo que busca trazer “ordem e ética” para dentro dos presídios brasileiros, com isso “A
proposta do PCC, que envolvia uma mudança na ética dentro das prisões, era sedutora, motivo pelo qual
rapidamente conquistou adesões dentro e fora das prisões.” (BIONDI, 2010, p.50).
34
São os nomes dados pelos internos dos membros que fazem parte do PCC.
35
É o Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho ao lado do IPCG, para uma breve descrição, é a
localização da prisão.Ver o ponto 1.1 no primeiro capítulo da dissertação.
Página 31 de 159
capacidade de acesso aos mesmos pelos internos nos presídios. A questão36 dos
celulares dentro dos presídios é um problema que se mostra presente pelo mundo37 e na
realidade brasileira38 não seria diferente. No próprio IPCG, o fato de que existem
celulares, televisões e rádios dentro das salas é um fato para todos os agentes
penitenciários que trabalham por lá. Até mesmo durante as entrevistas com os internos
fui informado por um dos entrevistados a respeito dos celulares nas celas. Uma questão
como essa necessita de maior aprofundamento por parte de pesquisas que busquem
entender como os internos utilizam essas ferramentas para se comunicar, manter
contatos por meio das redes sociais e até mesmo para cometer novos delitos39 com seu
uso. Apesar de reconhecer essas limitações na obra de Goffman, acredito que ainda
assim sua análise das instituições totais possui pontos que ajudaram na compreensão de
meu campo. Esses pontos serão utilizados aqui para uma maior compreensão da prisão
e, no decorrer dos próximos capítulos, da análise dos dados.
Alguns pontos importantes para a dissertação estão na análise do “mundo dos
internados”, em que Goffman apresenta uma série de classificações para sujeitos que
passam a integrar a prisão. Para pensar o IPCG, e aqueles que ali estão, a partir de uma
internação compulsória, àqueles que já estavam em outro estabelecimento penal há
algum tempo e foram transferidos ao IPCG, ou àqueles que tinham um histórico de
infrações que resultou em privação de liberdade desde a menoridade, interessa-me o que
o autor chama de processo40. No processo, os agentes obtêm:
36
A advogada Maria da Conceição Damasceno Cinti traz para debate na plataforma do Jusbrasil (Site aberto para
população geral, mas focado em questões jurídicas brasileiras) a utilização da lei 11.466/07 de execução penal que
trata “prever como falta disciplinar grave do preso e crime do agente público a utilização de telefone celular”
como uma forma de se impor a todos os presos o regime da incomunicabilidade. Para ler o artigo completo:
https://conceicaocinti.jusbrasil.com.br/artigos/130918470/celular-versus-presos-presidiarios-tem-direito-
a-usar-celular-na-cadeia. Acessado em: 10/10/2018.
37
Notícias internacionais a respeito: https://www.bbc.com/news/uk-england-43869560,
https://www.bbc.com/news/uk-england-tyne-35411297, http://www.correctionsforum.net/article/the-war-on-cell-
phones-42459, https://www.nbcnews.com/news/corrections/southern-prisons-have-smuggled-cellphone-problem-
n790251 . Acessados em: 10/10/2018
38
Notícias nacionais a respeito: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/251664452/o-velho-
novo-problema-dos-telefones-celulares-na-prisao e http://www.justificando.com/2018/09/10/uso-dos-
celulares-na-prisao-da-serie-como-fomentar-aquilo-que-se-quer-coibir/. Acessados em 10/10/2018.
39
Segundo a tribuna do Ceará, os golpes mais comuns são: ligação premiada, sequestro virtual, “Bença, Tia”,
Envelope vazio e o Anúncio de Veículo Roubado. Todos se incluem no crime de Estelionato, artigo 171, do
código penal brasileiro. Para mais informações: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/segurancapublica/5-
golpes-de-telefone-mais-comuns-aplicados-por-criminosos-de-dentro-dos-presidios/. Acessado em: 10/10/2018.
40
Processo esse realizado pelas psicólogas no momento de entrada. Aqui, vale novamente pontuar, o que
Foucault considera como o exame, que seria uma das tecnologias trazidas pelas ciências humanas ao
aparato disciplinador do estado.
Página 32 de 159
a história de vida, tiram fotografia, pesar, tirar impressões digitais,
atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam
guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir
roupas da instituição, dar instruções quanto as regras, designar um
local para o internado41 (GOFFMAN, 2015, p. 25-26).
41
No IPCG, os atos de “tirar fotografia, pesar, impressões digitais” são realizadas nas delegacias pela
Polícia Civil, enquanto os de “despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos” não são realizados e por
último o ato de “distribuir roupas da instituição” só ocorre depois que o interno irá trabalhar, apenas eles
usam um uniforme laranja, dado pela instituição.
42
No caso de Foucault, sua pesquisa foi publicada em formato de livro na França em 1975. Baseado nos
estudos e debates produzidos pelo Groupe d’information sur les prisons (GIP) criado em 8 de fevereiro de
1971. De acordo com seu manifesto “Little information is published on prisons. It is one of the hidden regions
of our social system, one of the dark zones of our life. We have the right to know; we want to know. This is
why, with magistrates, lawyers, journalists, doctors, psychologists, we have formed a Groupe d’Information sur
les Prisons.” Retirado de: https://www.viewpointmag.com/2016/02/16/manifesto-of-the-groupe-dinformation-
sur-les-prisons-1971/. Acessado em: 11/10/2018.
Página 33 de 159
meio de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão” (FOUCAULT,
2012, p. 217). Ainda assim, o autor reconhece que a prisão no conjunto de punições
possíveis, marcaria um momento central na história da justiça penal no ocidente como
um todo. O que marcaria a prisão nesse sentido seria seu duplo fundamento que consiste
do aparato “jurídico-econômico”, por um lado, e “técnico-disciplinar”, por outro. Para o
autor, esse primeiro aparato seria jurídico e constituído por meio do processo legal de
punição. Ele buscaria punir os indivíduos. A prisão, em si, seria o aparato técnico-
disciplinar dos corpos dos internos.
Para Foucault, a prisão é um “aparelho disciplinar exaustivo”. Ela deve “tomar a
seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o
trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições” (2012,
p.222). O autor percebe o exercício do poder disciplinar43, especialmente a partir da
ação dos dirigentes no que diz respeito à repressão e ao castigo dos internos. De acordo
com Foucault, a prisão busca o “isolamento do condenado em relação ao mundo
exterior, a tudo o que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram” (2012, p.
222). Quando o autor fala que a pena deveria ser individualizante, logo lembro do
trabalho de campo, pois isso é parte do processo de admissão do interno ao IPCG e
também parte do trabalho dos profissionais de psicologia do Instituto Penal.
Assim como os limites que apontei na obra de Goffman, a partir do meu trabalho
de campo, acredito ser importante apontar os limites também presentes na obra Vigiar e
Punir, que apesar de se mostrar como um clássico nos estudos de prisão, também possui
suas limitações.
Luciano Oliveira (2011) faz uma leitura crítica da obra Vigiar e Punir de
Foucault, que busca demonstrar suas “dúvidas acerca da aplicabilidade dos esquemas
analíticos de Vigiar e punir a nossa realidade” (OLIVEIRA, 2011, p.322). Apesar de
existir críticas mais extensas44 a essa obra e à metodologia adota por Foucault, o foco
aqui é pensar a partir das diferenças a respeito da realidade histórica e atual das prisões
brasileiras com o fenômeno europeu estudado pelo o autor, penso aqui então a partir da
43
Apesar de ser um poder total sempre existe resistência por partes dos internos, tanto que Foucault
afirma que “onde há poder há resistência, e, no entanto, essa nunca se encontra em posição de
exterioridade em relação ao poder” (2017, p.10). Goffman, a seu turno, diz que “as instituições totais não
deixarão de enfrentar resistências” (2015, p. 22).
44
Para essas críticas ver Didier Eribon (1989), José Merquior (1985) e Raymond Boudon (1989).
Página 34 de 159
[...] tese de que a substituição das penas corporais por meios menos
sanguinários não constitui senão um subproduto da emergência de
um novo tipo de sociedade, por ele chamada de “disciplinar”, que
seria correlata ao modo de produção capitalista [...] a verdadeira
finalidade da reforma era dotar a lei penal de uma racionalidade
que ela não tinha, visando torná-la mais eficaz (OLIVEIRA, 2011,
p.311).
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entulhar os exíguos espaços com o maior número possível de
presos (OLIVEIRA, 2011, p.323).
Vale ressaltar que além de uma tradição política e da própria (falta de) estrutura
física das prisões brasileiras, temos também não apenas uma falta da tese do
vigilantismo45, como quase sua inversão no sistema penitenciário brasileiro. Assim,
soma-se a isso a questão do crime organizado e sua prevalência nas prisões nacionais,
como o caso do PCC mencionado acima, e a falta de agentes penitenciários em relação
ao quantitativo de presos46.
Ao pensarmos esses dois fatores em conjunto com os dados produzidos em
campo, que serão aprofundados no capítulo II sobre os agentes, compreendemos que os
profissionais que ali trabalham se sentem “vigiados” durante o seu trabalho e com medo
de retaliação, tanto dentro quanto fora da prisão, em vista de suas ações com a massa
carcerária. Citando o trabalho de César Caldeira (2003), Luciano Oliveira reconhece a
situação enquanto “cúmulo de tudo: os agentes penitenciários exercem seu ofício com
medo de serem alvos de atentados [...]” (2011, p.325). O resultado disso se vê como
uma subversão quase completa do princípio que fundamenta as ideias do panóptico
foucaultiano, onde vemos uma “relação de poder [que] parece invertida: quem vigia os
agentes de autoridade são os custodiados do estado” (OLIVEIRA, 2011, p.325).
Apesar dos limites da obra de Foucault quando se trata da realidade prisional
brasileira, acredito que ela é importante como guia para formação dos discursos e do
modelo ideal47 tanto dos agentes penitenciários que formam a equipe dirigente do
Instituto Penal, principalmente do setor técnico, das psicólogas e assistentes sociais,
como das leis penais que regem a legislação brasileira.
45
Essa tese está presente no Vigiar e Punir, no capítulo 2 da obra, no subcapítulo intitulado “A Vigilância
hierárquica”, a questão da constante vigilância seria uma das características da “sociedade disciplinar”.
46
Na realidade prisional brasileira apenas os estados do Amapá, Minas Gerais, Roraima e Tocantins
conseguem cumprir o quantitativo de 1 agente penitenciário por 5 internos.
47
Modelo ideal de acordo com códigos legais do estado brasileiro, esse modelo será pensando no capitulo
II da dissertação enquanto um de disputa entre os agentes penitenciários e função da prisão no país.
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pesquisa como a realizada nesta dissertação. Proponho um diálogo com o debate
internacional que vem sendo realizado sobre o tema48. Trata-se de uma reflexão,
relativamente recente. Refiro-me às contribuições de Lorna A. Rhodes (2001), Toward
an Anthropology of Prisons; Loic Wacquant (2002), The curious eclipse of prison
ethnography in the age of mass incarceration; e, por fim, Manuela Cunha (2014), The
Ethnography of prisons and penal confinement.
Rhodes problematiza os últimos 20 anos de expansão do sistema penitenciário
americano. A partir de uma análise dessa produção, ela dividiu os estudos produzidos
sobre prisão em quatro categorias. Na primeira categoria, os estudos contemporâneos
que criticam os efeitos entorpecentes da situação prisional atual. Em segundo, os
esforços que buscam seguir o trabalho de Foucault, de maneira a revisitá-lo e revisar as
compreensões da história das prisões. Em terceiro, os trabalhos de sociologia e
antropologia que buscam entrar em um envolvimento direto na vida no interior das
prisões. E a última categoria seriam os trabalhos que abordam as mulheres enquanto
prisioneiras e problematiza a predominância de perspectivas masculinas na e sobre a
prisão (2001, p. 66).
A autora faz uma revisão histórica da produção sociológica a respeito das
prisões. Iniciando nos anos 1930 e 1940 do século passado, quando a prisão era
entendida como uma “pequena sociedade” ou como uma “sociedade de cativos” sendo
melhor entendida em termos como papéis e hierarquias (2001, p. 71)49. A partir da
década de 1970, começa um movimento, nos estudos sociológicos de prisão, que busca
demonstrar como elas estão em um “estado de fluxo, e mais às ‘margens’ do que as
primeiras análises sugestionariam” (2001, p. 71, tradução pessoal). Rhodes explica que
boa parte dessas mudanças ocorreu depois das diversas reformas empreendidas nos
Estados Unidos, que se ligam por fora, particularmente por meio dos movimentos
sociais (RHODES 2001, p. 71-72 apud CUMMINS, 1994). Outro ponto interessante diz
respeito à produção sociológica dos anos 1980, que estudou a socialização e o papel de
48
Debate esse que ocorreu majoritariamente nos EUA, país conhecido, no seu hino, como “The land of
the free”, mas que já era o país com a maior quantidade de pessoas encarceradas no mundo. O debate
surge devido ao aumento de pesquisadores interessados sobre as questões prisionais e do encarceramento
em massa norte-americano, na segunda metade do século XX, e que é reintroduzido por Manuela Cunha
em 2014.
49
Nessa parte, a autora aponta duas obras norte-americanas pioneiras sobre as prisões. De acordo com
Donald Clemmer (1958), a prisão poderia ser entendida como uma “pequena sociedade” a parte da
sociedade maior como um todo, e a obra “A sociedade de Cativos”, de Gresha M. Sykes (2007 [1958])
que entendia a prisão também como um grupo isolado e relativamente homogêneo, visões essas que
foram deixadas para trás de acordo com a autora.
Página 37 de 159
adaptação que os “correctional officers” passam dentro da prisão, lembrando que a
prisão não seria composta apenas por internos.
Rhodes também foca na produção antropológica sobre e nas prisões, o que, na
opinião da autora, teria um caráter mais “autoconsciente do que as perspectivas
sociológicas [...] e revelaria contradições talvez menos óbvias em contextos
etnográficos mais acessíveis” (2001, p. 72, tradução pessoal). A primeira questão
apontada pela autora é a dificuldade de fazer uma observação nos moldes etnográficos
tradicionais do campo da antropologia em um ambiente como o prisional, demonstrando
que dentro de uma “cultura de vigilância, a observação participante é... uma forma de
cumplicidade com os que estão de fora vigiando” (RHODES, 2001, p. 73 apud
FELDMAN, 1991, p.12, tradução pessoal), algo observado também em meu campo que
discutirei no terceiro capítulo.
Observando duas etnografias dos anos 1980, Rhodes demonstra como o
ambiente prisional teria um efeito sugestivo nos antropólogos, os trazendo para sua
própria dinâmica. Na primeira, de Fleischer, a autora mostra como esse autor, após
contato e suporte do sistema prisional, conseguiu acesso para se tornar um agente
penitenciário dentro da prisão Lompoc na Califórnia. Ela mostra que ele “começa a
pensar em mim como um guarda... eu estava me perdendo... o que os hacks [gíria para
guardas] fizeram estava certo, o que os presos faziam estava errado” (2001, p. 73 apud
FLEISHER, 1989, p.112, tradução pessoal). Na segunda etnografia, há um caso do
pesquisador, que em sua observação participante, começa a se aproximar dos internos e
acaba por chegar muito perto de uma identificação com os mesmos, sendo ele puxado
para direção oposta do primeiro, dizendo que “em dez anos de pesquisa, muitos
informantes se tornaram amigos íntimos... havia o perigo de eu começar a romantizar
[suas narrativas]” (RHODES, 2001, p. 73 apud THOMAS, 1993, p.46, tradução
pessoal). Como a autora mostra, os dois etnógrafos estavam bastante atentos a como os
seus interlocutores estavam posicionados e como a formação do eu e dos outros se dava
de muitas formas em uma estrutura hierárquica como a prisão (2001, p. 73).
É interessante como Rhodes apresenta um olhar crítico à produção sobre prisão
nas diversas áreas. Ela destaca como as questões de gênero são ignoradas nesse campo.
Além disso, diz que as escritoras feministas apontam para uma dupla invisibilidade. A
primeira seria a da invisibilidade da prisão feminina e das mulheres no ambiente
prisional, algo que no Brasil, atualmente, já começa a sedimentar uma produção
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acadêmica a respeito (Braunstein, 2007; Padovani, 2010; Angotti, 2011). Já a segunda
invisibilidade:
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“etnografia da prisão, portanto, entrou em eclipse no exato momento em que era mais
urgente, tanto em termos científicos quanto políticos” (WACQUANT, 2002, p. 385,
tradução pessoal) tal conjuntura irá demonstrar a particularidade norte-americana, pois
não parece recorrente na Europa onde a sociologia da prisão expressa um crescimento
no mesmo período. Wacquant diz que ele busca
Wacquant traz uma das questões que está sempre sendo pensada ao se realizar a
pesquisa na prisão, o acesso. Ele mostra que essa é uma das grandes dificuldades que
podem ter reverberado no declínio das etnografias dentro das prisões. Nos Estados
Unidos, assim como no Brasil, isso resulta da falta de abertura das prisões que não se
deixam ser questionadas ou buscam limitar sua cooperação (2002, p. 387).
Algo que Wacquant irá demonstrar é que essas dificuldades não viriam apenas
das instituições penais, mas das próprias universidades onde são desenvolvidas essas
pesquisas. Ele diz que “geralmente negligenciado, o fator limitante é a organização
social e profissional da própria vida acadêmica” (2002, p. 387, grifo do autor,
tradução pessoal) sendo a resposta dos comitês de trabalhos com humanos nas
universidades sempre na escolha da não permissão desses trabalhos. O autor enfatiza
como a prisão é uma instituição que
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Destaco ainda o artigo de Manuela Cunha (2014), no qual ela propõe um
panorama mais comparativo das produções sobre prisão que vão além da instituição
física em si, mas se debruça sobre suas articulações com o “mundo externo”. Tendo isso
em mente, as relações do mundo de “fora” e de “dentro” da prisão geram diversas novas
questões metodológicas a respeito dos limites que a prisão teria como um campo de
pesquisa (2014, p. 225). Apesar dessas mudanças, Cunha mostra que as questões acerca
da acessibilidade se mostram presentes ainda nesses tipos de pesquisas. Dessa forma,
realizar uma pesquisa que tenha como método uma “pesquisa etnográfica de longo
prazo, que, por definição, inclui não apenas entrevistas e narrativas ‘diretivas’, mas
também dados aleatórios, não-elicitados, fornecidos por observação não estruturada
frente a frente e em conversas informais.” (2014, p. 225, tradução pessoal).
O trabalho de Cunha questiona a possibilidade de fazer uma etnografia em um
campo como esse. Em vista disso, ela utiliza a expressão que compreende o trabalho
desenvolvido nesses lugares como “quasi-ethnography”50, devido às demandas do
próprio campo. Cunha ainda traz outras questões metodológicas sobre como pensar o
presídio:
50
Apesar de entender a argumentação da autora e ter passado, no campo, por dificuldades que impediram
uma etnografia mais prolongada, discordo da autora e acredito que nesta dissertação já ficou,
demasiadamente, claro que é possível a realização de etnografias totais no campo prisional, bastando as
condições do campo serem favoráveis a isso.
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Essa citação mostra quão diversas são as formas e dificuldades que os
pesquisadores passam na realização da pesquisa tendo a prisão como um de seus
campos. Cunha ressalta outra questão bastante importante para a minha dissertação, que
diz respeito aos contextos culturais outros que a produção anglo-americana costuma ter,
local onde existe uma tradição dos estudos prisionais desde os anos 40, que nos
apresentam como as diferentes culturas e locais configuram formas variadas de
encarceramento (2014, p. 226). Aqui, problematizamos as formas como a categoria
gênero é pensada em uma prisão, o que pode abarcar diferenças com relação a outros
contextos, assim como “categorias de raça/etnia, para citar um exemplo, são construções
culturais altamente variáveis que não podem ser importadas sem precaução de, digamos,
contextos norte-americanos para os latino-americanos ibéricos ou pós-coloniais”
(CUNHA, 2014, p. 226, tradução pessoal).
Organização da Dissertação
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agentes. Inicio esse capítulo com uma breve apresentação dos interlocutores, assim
como os setores divididos pela Agepen. Já no segundo momento do capítulo, volto
minha atenção para as entrevistas realizadas com os cinco agentes penitenciários
(Maria, Juliana, Patrícia, José e Adriana), no qual busco apresentar para o leitor as
diferenças entre o IPCG e o presídio vizinho, a Máxima, assim como demonstro
questões mais profundas dos estudos de prisão a partir da divisão burocrática entre áreas
criadas pela Agepen. Penso as produções de feminilidades e masculinidades no Penal
partindo das percepções dos agentes, principalmente das mulheres agentes que ali estão
diariamente.
Por fim, no terceiro capítulo da dissertação, me dedicarei à exposição das
narrativas dos presos (João, Gabriel, Lucas, Pedro, Mateus, Marcelo, Gustavo e
Guilherme) e seus crimes. Início pensando a respeito dos estudos de masculinidades
internacionais e as contribuições que irei utilizar no capítulo. Logo após, faço uma
breve apresentação dos presos com os quais fiz campo. Procuro colocá-los em relação
aos dados do IPCG como um todo, buscando as relações que instituem determinadas
masculinidades a partir da intersecção de alguns marcadores sociais da diferença. No
segundo momento, me dedicarei a esmiuçar os crimes dos presos e suas motivações, no
sentido de traçar relações possíveis entre eles e as formas de produção das
masculinidades como um todo. Por fim, apresento as masculinidades criminosa e
trabalhadora, e como as mesmas junto da masculinidade religiosa, disputam o espaço
do Penal na tentativa de adquirir hegemonia sobre os homens que lá estão.
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CAPÍTULO I
O ANTROPÓLOGO VAI À PRISÃO
51
Ideia percebida durante o trabalho de campo tanto com os funcionários da AGEPEN sede, assim como
entre os funcionários da AGEPEN no IPCG e, curiosamente, por parte dos detentos do estabelecimento
penal.
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identidade de gênero dos homens que ali estão, bem como seus agenciamentos em torno
das diversas formas de construções das masculinidades.
52
O Centro de Triagem é a menor das quatro unidades prisionais do complexo. Ele é um estabelecimento
penal de segurança média. De acordo com os interlocutores, ele seria o presídio “militar” separando os
internos que seriam ex-policiais, ex-funcionários da Agepen e ex-militares. Também há a presença de
políticos famosos do estado que vão para lá quando presos. Anteriormente o CT fazia parte da máxima,
mas devido aos problemas gerados em manter presos comuns, faccionados do Primeiro Comando da
Capital (PCC) e os ex-militares, optou-se por separar e torná-lo outra unidade.
53
A Máxima é um estabelecimento penal de segurança máxima, que foi inaugurado em 3 de dezembro de
2001, ao lado do IPCG. Esse presídio é conhecido pela hegemonia e “controle” da facção criminosa, o
PCC, além disso possui uma grande quantidade de delitos considerados “pesados” com penas maiores,
possuindo também muitos casos de reincidência, traficantes de alto escalão, assim como assaltantes de
grande porte ligados a quadrilhas. A Máxima, durante a pesquisa realizada, sempre se mostrou como o
contraponto ao IPCG, tanto por parte dos funcionários quanto pelos internos entrevistados, de forma que
ela é vista como um presídio que seria “pior”, tanto pela qualidade de vida dos agentes, como por
determinados internos, ou possibilidades de trabalho e estudo.
54
O Presídio de Trânsito (Inaugurado dia 4 de março de 2004) seria o terceiro maior dos quatro presentes
no complexo. É um estabelecimento penal de segurança média destinado aos presos provisórios que ainda
não foram condenados, ou em trânsito para as demais unidades penais do estado ou de fora do estado.
Muitos dos detentos entrevistados passaram por lá ao entrarem no sistema penitenciário sul-mato-
grossense. Eles comentaram sobre as más condições do presídio. Apesar de ser um presídio “provisório”,
se tem ciência de que também está lotado e possui internos que estão há anos no estabelecimento.
55
A direção do IPCG pontuou que devido a questões de segurança não deveriam ser tiradas fotos. Assim
como não permitiu que fossem feitos desenhos de mapas ou explicações detalhadas do Instituto Penal
internamente.
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O Instituto Penal de Campo Grande (IPCG) foi o campo desta pesquisa realizada
entre novembro de 2017 e abril de 2018. Ele é o terceiro maior56 presídio do estado do
Mato Grosso do Sul, sendo reconhecido como de “excelência” por funcionários e até
mesmo, curiosamente, pelos internos. No último57 mapa carcerário a que eu tive acesso,
o IPCG possuía 1.367 internos, sendo 874 condenados, 318 condenados e processados e
171 apenas processados.
Ao retomar as minhas notas de campo, recordo a primeira vez que fui até o
IPCG. O trajeto para o instituto penal segue a rota que leva de Campo Grande a Três
Lagoas pela BR 262. O IPCG fica localizado na região do Jardim Noroeste, bairro este
localizado nos limites periféricos da cidade, carente e com os piores58 índices de
desenvolvimento humano (IDH) do município. Logo, percebe-se o porquê da região ser
escolhida para a construção de um complexo prisional. Percorrendo esse caminho,
semanalmente, durante alguns meses, fui percebendo como a cidade, pelo menos sua
parte densa, vai sumindo à medida que o caminho avança. A separação dos presos do
IPCG para além de ser uma separação geográfica, é sobretudo simbólica. Há vidas
demasiadamente apartadas, vidas precárias em seu sentido butleriano que são, assim,
invizibilizadas e não dignas de luto muitas vezes.
Os prédios e construções logo dão lugar a casas carentes, algumas apenas com
barro ou tijolo. O caminho de asfalto se torna quebrado e cheio de remendos. Quando o
que os olhos mais avistam são campos despovoados, eis a sinalização de que o IPCG
está próximo. Na primeira vez, com as regras já postas59, ao chegar ao campo, fiquei
surpreso com a quantidade de carros de alto valor estacionados nas proximidades.
Aquilo me pareceu bastante contraditório em relação às cercas de madeira, aos terrenos
baldios e às moradias muito simples e outras que se mostram em uma pequena ascensão
habitacional. Já no IPCG, havia muros muito altos, tão altos quanto os postes de
energia.
56
O maior presídio do estado é a Penitenciária Estadual de Dourados (PED) com aproximadamente 2.400
presos, depois temos a Máxima com uns 2.200 presos.
57
Conseguido em janeiro de 2018. Pedi o mapa para Juliana, que estava me auxiliando devido a férias de
Maria. Ele me foi entregue por uma estagiaria que ficava na parte administrativa, ao entregar se foi
pedido o sigilo da identificação de detentos particulares. No mapa consta os dados de todos os presos,
processados ou não, que estão no IPCG e a partir dele que se foi selecionado os detentos que iria
entrevistar conforme a tabela da introdução nas páginas 16 e 17 dessa dissertação.
58
De acordo com o Índice de qualidade de vida urbana de Campo Grande-MS (2008).
59
Essa vez foi após a reunião com o diretor do IPCG, reunião esta que será pontuada mais à frente neste
capítulo, onde conheci e me aproximei de interlocutoras-chave e dos funcionários que me ajudariam no
desenvolvimento da pesquisa como um todo.
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Em frente ao presídio, na rua Indianápolis, encontra-se apenas uma conveniência
que abre durante a tarde, mostrando o pouco movimento da rua. Sem contar alguns
poucos moradores que passam de bicicleta ou a pé por aquela região, o presídio parece
ser o único equipamento a trazer “vida” ao ambiente. Se eu ficasse um dia inteiro em
frente a ele, eu veria dezenas de carros indo e vindo, advogados, policiais, funcionários,
visitas a procura de pessoas e, uma vez ou outra, até mesmo representantes do
Ministério Público indo averiguar o estabelecimento penal. O movimento desses civis
não costuma chamar a atenção dos transeuntes da região, apesar das roupas formais:
ternos, gravatas, salto alto e “terninhos”.
O que desperta o interesse e a curiosidade está nos movimentos dos policiais
uniformizados com seus carros de transporte de presos, que param em frente ao presídio
deixando novos presos ou buscando internos para levá-los aos tribunais. Esses
momentos, apesar de serem cotidianos, possuem um ar de perigo. Às vezes, são dois ou
três desses carros que chegam juntos. Eles trazem policias com armas pesadas que vão
para as esquinas, para que a escolta seja realizada com cautela. Para os “civis”, fica a
curiosidade: quem será que está vindo? O que terá cometido para estar aqui? Será que
tem cara de bandido mesmo?
Ao me aproximar do portão para mais um dia de campo, logo aperto o interfone,
e espero ser chamado numa pequena janelinha incrustrada no concreto dos muros.
Nesse momento, fico apreensivo, embora essas sejam as partes de uma mesma rotina:
um funcionário da portaria abre a pequena portinha de metal, pergunta-me quem sou e
de onde venho e com quem gostaria de falar. Ele escuta e em seguida fecha de novo a
pequena portinha de metal. Com uma variação de 5 até 10 minutos, ele confere as
informações, meu documento de identificação e minha autorização por meio de
checagem dos papéis e ligações para setores responsáveis. A permissão é concedia todas
as vezes, mas o processo, em razão da segurança60, sempre se repete. Passo pela
primeira das quatro passagens que terei de ultrapassar até estar, de fato, no IPCG.
Nesse primeiro ambiente que adentro, vejo-me de frente para as grades. Ali
apenas umas poucas almofadas em cima de bancos de concreto, dois ventiladores (um
60
A questão da segurança, como é percebida por Goffman, também aparece no meu campo. “O fantasma
da ‘segurança’ nas prisões e as ações dos dirigentes, justificadas em seu nome” (2015, p. 77), esse
fantasma da “segurança” seria uma forma pela qual a direção do presídio usa de justificativa, em forma de
um discurso “intelectual”, de maneira a conseguir realizar os seus “objetivos” satisfatoriamente. Para
Goffman, esses objetivos, nas instituições totais são “incapacitação, retribuição, intimidação e reforma”
(2015, p. 77).
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que mal funciona e outro parado), uma janela de vidro me separa da área da portaria em
que logo me pedem os documentos. Sento e aguardo atendimento. Naquele dia, havia
apenas um homem muito suado, por conta do calor, trajando terno e gravata, à minha
frente. Ele parecia ser um dos muitos advogados que aguardava a autorização para falar
com seu cliente.
Essa pequena “sala de espera” é onde eu fazia muitas das anotações do campo,
onde se podia observar o movimento de entrada e saída no presídio. Depois de receber a
segunda autorização, chega a hora de deixar minha mochila, celular e chaves. Tudo isso
fica na portaria, onde também há um cofre para as armas dos funcionários. Apenas me é
permitido, conforme o acordado previamente, levar um gravador digital, duas canetas e
meu caderno de anotações. Com isso em mãos, a grade é aberta pelo botão da portaria,
assim como a porta de entrada. Passo para a segunda parte da entrada, onde está o
acesso à portaria, uma sala de funcionários e a sala onde ocorrem os encontros com
advogados, que é dívida por uma grade e constituída por vários cubículos. Nesse
segundo lugar, eu me demoro menos. Eu só preciso aguardar que a portaria me deixe
entrar na gaiola, abrir uma grade. Quando eu entro, ela fecha. Só agora abre a segunda
grade e eu estou, efetivamente, na prisão.
Depois desses “procedimentos de rotina”, estou no Instituto Penal de Campo
Grande ou Penal, como dizem os agentes. Do ponto em que estou, consigo ver uma
segunda gaiola, que costuma estar com as duas grades abertas. Ela é uma espécie de
entrada onde fica a administração do Penal, a segunda gaiola encaminha os internos
para os seus respectivos solários61. O movimento nesse local de passagem já se torna
mais intenso: alguns funcionários da Agepen (sempre trajando preto, alguns de
uniformes, outros não), muitos internos com suas roupas de cor laranja, que os
identificam como trabalhadores dos mais diversos setores e, às vezes, alguns
enfermeiros ou professores cedidos pela secretaria de educação, sendo os dois
identificados pelos seus jalecos brancos e verdes respectivamente.
Repeti, todos os dias do trabalho de campo, a mesma rotina. Depois de feito tudo
isso, me dirijo para a sala da Maria62. Uma assistente social que nos termos do campo
61
Local no qual os internos tomam banho de sol, rodeado com as celas dos mesmos. Eles geralmente
podem ficar por lá das 7h ou 8h até às 16h.
62
Uma descrição mais densa das questões da equipe dirigente e assim como das entrevistas realizadas
com a mesma se encontra no capítulo II dessa dissertação.
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de Foote Whyte (2005 [1943]), acabou por se tornar o meu Doc63, possibilitando assim
a minha entrada no campo e sendo vista como um informante-chave no IPCG. Maria,
como de costume, está atendendo uma ligação, provavelmente, de algum parente dos
internos que está precisando de assistência, algo comum em sua função. Ela me dá o
sinal para entrar e sentar na cadeira à sua frente. Confirmo com a cabeça, entro e sento.
A sala de Maria é um exemplo clássico do que costumamos pensar, no senso comum, de
uma burocracia ou instituição estatal brasileira. Uma sala meio fria, poucos e velhos
móveis, com um leve cheiro de mofo, algumas mensagens cristãs presas nas paredes
(algo que a própria Maria deve ter colocado), um ventilador barulhento e paredes meio
que descascando. Há um tom decadente na sala. Quase todas as salas a que tive acesso
no penal se parecem com essa. É assim que se acomoda a equipe dirigente, nos termos
de Goffman (2015).
É importante ressaltar que estou entrando no Penal sendo visto pelos internos
como um “deles”, isto é, uma pessoa da equipe dirigente. Diferentemente do novato
interno, que acaba de chegar à instituição, eu não preciso passar por “rebaixamentos,
degradações, humilhações e profanações do eu” não tenho que “mutilar meu eu” que
busca marcar a separação entre os internos e o mundo mais amplo lá fora (GOFFMAN,
2012, p.24). Meu corpo não precisará ser domesticado e tornado um corpo dócil pelo
poder disciplinar e pelas normas que formam o exame do qual Foucault (2012, p.177)
fala. Mas apesar disso, não quero dizer com isso que meu corpo tenha uma total
liberdade no penal. A questão disciplinar vai para além dos internos que ali estão, tem-
se controle também dos corpos e comportamentos dos funcionários e visitantes no local,
no meu caso não seria diferente. As regulações sobre mim vieram logo no início, com a
primeira reunião com o diretor.
É importante fazer esse apontamento na medida em que eu tive contato com os
internos desse local, a partir de um lugar diferente do deles. Apesar de buscar garantir a
minha não vinculação com a Agepen ou com o aparato de segurança pública, acredito
que isso sempre se torna presente. Eu estava em um lugar de “superioridade” diante
deles, ainda que eu me esforçasse para não passar essa impressão.
E mesmo para os funcionários, apesar de também ser visto como um de “fora”,
que está em um lugar que não pertence ao cotidiano deles, ainda assim fui visto como
63
Doc é um dos interlocutores de Whyte (2005) que surge como uma solução para o “problema de achar
uma forma de entrar no distrito” (2005, p.291). O autor nos diz que “meu estudo começou na noite de 4
de fevereiro de 1937, quando a assistente social me chamou para conhecer Doc” (2005, p. 293).
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um aliado da equipe, como alguém que está lá para escutá-los e entender seus dilemas e
conflitos diários. Dessa forma, em certo sentido, houve uma estabilização das relações
que permitiram meu fazer antropológico com menos dificuldades no campo. Ainda
assim, em alguns momentos, precisei demarcar o espaço que ocupava ali para eles, “não
estou aqui pela Agepen, não busco avaliar vocês e seus trabalhos ou trazer melhoras
estruturais ao IPCG”, disse mais de uma vez.
Ao terminar a ligação, Maria disse-me que teria que ir à escola, que fica atrás dos
pavilhões onde se encontram os detentos, e disse para eu acompanhá-la até lá. A escola
era uma função extra, em relação ao cargo que ocupa no setor de assistência e perícia na
Agepen. Sendo assim, os alunos e as questões da escola ficam sob responsabilidade de
Maria:
[...] meio dia e meio os agentes já começam a chamar. E os agentes
não tem paciência, começam a chamar, se ele não aparece, tá
atrasado? Não vai. Aí eu que vou lá, os agentes ficam p da vida,
dizendo 'ele não veio no horário por quê?'. Os que são alunos aqui,
tem uma lista de liberação para escola. Todo dia eu tenho que
imprimir pavilhão 1 matutino, tem 56 alunos que descem do pavilhão
1, aí os agentes vão lá no solário 1A e começam a ir chamando. Aí
vão abrindo de todos. Pavilhão 1 tem 6 solários. Pavilhão 2,
matutino, tem 37 alunos. Se o aluno estiver na sala forte, ele perde a
aula, não pode estudar tem que ficar lá.
A ida à escola seria um dos poucos motivos que Maria teria para passar ao lado
dos solários onde se localiza a grande população carcerária do IPCG. Dessa forma,
Maria, assim como as outras funcionárias da assistência e perícia, possui pouco tempo
para interagir com uma grande quantidade de detentos. Nesse setor, o contato com os
internos se dá por meio dos que estão trabalhando, que lhes auxiliam como secretários.
Nesse sentido, as psicólogas e assistentes sociais (todas mulheres)64, interagem, no
sentido profissional, apenas por via institucional com os presos, na medida em que
costumam receber de um em um, para poderem realizar seu acompanhamento65 com
segurança.
64
Devido ao caráter do cuidado que essas duas profissões acabam assumindo, há, segundo as próprias
interlocutoras, um número bem maior de mulheres do que homens. Eles contaram, no entanto, já ter tido
um psicólogo homem no penal. Apesar de não ser o foco da pesquisa, acredito que podemos pensar uma
construção da feminilidade ligada à relação de cuidado maternal que estaria presente nessas profissões e
suas funções. Busco pensar a questão das feminilidades das agentes penitenciárias num artigo intitulado A
construção das feminilidades nos discursos das Agentes penitenciarias do Instituto Penal de Campo
Grande (2018).
65
O acompanhamento varia para cada interno e seu caso, sendo o foco da assistente social o contato com
a família e as questões de educação. As psicólogas se atêm, tanto ao acompanhamento pessoal tradicional
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Outra especificidade de Maria, que a difere de suas outras colegas do setor, está
em como ela se sente ao passar nos corredores em que há celas dos dois lados e acaba
“cercada” pelos detentos em seus respectivos solários. Todas as entrevistadas, menos
Maria, se mostraram temerosas ou desconfortáveis em ter que passar naqueles
corredores. Como conta Juliana66, uma das psicólogas:
Na segunda vez que passei, junto de Maria, a caminho da escola, senti algo que a
agente Juliana comentou, a respeito do olhar de agressividade que os homens teriam
naquele espaço, apesar de entender a diferença de sua posição enquanto mulher e o seu
efeito sob aqueles olhares. O que me fez recordar a primeira ida ao IPCG, com meu
orientador, para conversar com o diretor. Depois de estabelecermos as regras para o
trabalho de campo, ele quis nos mostrar como era o IPCG por dentro. Ao passar pelos
pavilhões, ficamos rodeados pelos internos, que estavam em seus solários. Sentia-se um
cheiro forte de suor, era um mundaréu de homens dos dois lados. Diferente de Juliana,
não senti o “olhar de desejo”, mas sim os outros olhares que a mesma destaca. Senti um
receio. Senti-me vulnerável. Um medo passa por nossas espinhas. Foi um sentimento
tão forte que até mesmo me fez questionar tudo que havia aprendido no curso de
Ciências Sociais sobre criminalidade e violência. Naquele momento, pensei na
existência de uma “maldade” ou “violência” quase que essencial dos sujeitos. Eu me
sentia observado por olhares “perigosos”.
Nas duas vezes que passei pelos solários, parece que os internos faziam as
mesmas coisas e tudo parecia da mesma forma. Uma quantidade impressionante de
homens, sem camisa, malhando, mostrando os músculos com o suor do corpo.
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Sobressaia uma impressão marcante de certa expressão de masculinidade. Isso ficava
cada vez mais claro, quando me lembrava das palavras de Dominique Kalifa:
1.2 “PARE DE CORRER! Quem é você?! Para onde está indo?!”: acesso, corpo e
risco no IPCG
67
Os anexos de I a IV da dissertação apresentam os documentos que autorizaram a realização da pesquisa
por parte da Agepen.
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muitas vezes, são incompatíveis com o tempo existente para a realização de uma
pesquisa de mestrado” (2014, p.22), ou de Natalia Padovani (2010), que teve, durante o
processo de autorização, até que pedir a permissão de uma juíza corregedora, trâmite
que levou cinco meses para ser concluído68.
No fazer antropológico há uma série de negociações em campo, bem como
alterações e, até mesmo, improvisações na tentativa de controlar as mais diversas
situações, que somos acometidos durante a realização da pesquisa. No presídio isso não
se mostra diferente, mas tive uma dificuldade com a particularidade da autonomia que
os diretores dos presídios possuem em suas funções, tendo eles um grande controle
sobre o que acontece em “suas” prisões. Logo, após o momento de permissão
burocrática com a Agepen, deu-se o processo de negociação com o diretor do IPCG, que
detinha a autoridade e autonomia para decidir os rumos da pesquisa em “seu”
estabelecimento penal. Esse momento se mostrou bastante difícil e determinante para a
constituição do trabalho de campo.
Essa negociação se deu na primeira ida ao campo do IPCG, dia 08 de agosto de
2017, acompanhado de meu orientador. Chegamos cedo à prisão, passamos por todo o
processo de garantia de segurança na portaria e logo subimos para o segundo andar onde
conheceria Patrícia, uma das futuras interlocutoras da pesquisa. Lá, aguardamos numa
pequena sala, já observando da janela a grande quantidade de presos nos pavilhões
abaixo.
Rapidamente fomos chamados para adentrar a sala do diretor para nossa reunião.
O diretor69 então nos pede para sentar em frente à sua mesa e começamos a conversar.
Primeiramente, tentamos explicar o que pretendíamos, dando ênfase do que seria o
trabalho de um antropólogo e do que constituiria um trabalho etnográfico no campo.
Nesse início, já notamos certo impasse da parte do diretor, na medida em que o mesmo
não demonstrou estar muito interessado no que eu iria fazer lá. Sua única preocupação
parecia centrar-se na questão da segurança70, a qual foi pensada de forma bastante
abstrata. Ele parecia estar apenas interessando em quanto tempo eu iria permanecer
68
No caso de Padovani, a mesma não foi afetada pela demora, pois “um contato estabelecido com a
diretora de reabilitação, Marcela Luciana Paoloni, permitia que visitas dirigidas à unidade fossem feitas”
(2014, p.42).
69
O primeiro encontro foi um dos poucos que tive com o diretor diretamente, sendo os outros rápidos
momentos em que ele esbarrava comigo durante o campo e apenas me cumprimentava e me questionava
sobre o tempo que eu já estava no IPCG.
70
Cf. 39. Acrescenta aqui que esse discurso também é usado como forma de afastar o olhar de “curiosos”,
nesse caso, pesquisadores de adentrar a instituição prisional.
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dentro do IPCG para realizar o que ele chamou de “entrevistas” com os presos,
indicando que parecia pensar em minha pesquisa como uma reportagem jornalística,
bem como queria saber com quantas pessoas eu iria falar, apesar de parecer não se
interessar com quais pessoas eu iria falar. Ele avisava: aqui não é lugar de estudante
ficar andando sem fazer nada. Ao perceber esse movimento, eu me retraí um pouco,
pois, provavelmente, não seria escutado, por ser um “jovem inexperiente” naquele
lugar.
Nesse momento, iniciava a negociação entre as possibilidades de pesquisa e as
permissões que seriam dadas pelo “responsável” do IPCG. A ideia que tínhamos era de
passar o máximo de tempo no estabelecimento penal, mas isso logo se viu como
problemático por parte do diretor. Quando questionado sobre o tempo de permanência
na unidade, precisei operar mudanças rápidas. De uma ideia de passar, pelo menos, seis
horas, no horário que iria do turno matutino até o vespertino, todos os dias, precisei
reformular para ir apenas uma vez por semana, com dia marcado previamente,
permanecendo no período máximo de três horas. Isso redimensionou a minha ideia de
uma produção etnográfica em que pudesse “viver” no campo, no sentido em que
Malinowski encarava como necessário na medida em que dizia que se deveria ter
“contato o mais íntimo possível com os nativos, isso realmente só se pode conseguir
acampando dentro das próprias aldeias” (1984 [1922], p.21-22, grifo meu) e
experienciá-lo de maneira mais intensa.
O segundo ponto tratado com o diretor foi o quantitativo de funcionários e
detentos que seriam contatados durante a pesquisa. Sobre esse tema, houve um
consenso entre mim, o diretor e meu orientador, que me aconselhou conversar com duas
pessoas por dia. Sendo um funcionário de cada uma das três71 áreas da Agepen e mais
duas psicólogas responsáveis pelo atendimento e recebimento dos internos. Sobre os
internos, seriam oito ao todo, podendo aumentar em mais um ou dois, caso não
encontrasse pessoas interessadas em colaborar segundo as categorias selecionadas,
presentes no Quadro I da introdução (raça, escolaridade, idade, crime, estado civil e
quantidade de filhos).
Após essa negociação, na semana seguinte, eu poderia realizar meu primeiro dia
de campo, com as regras acordadas com o diretor. Aproximadamente 10 horas da
71
As três áreas e suas funções foram explicadas na introdução da dissertação e também serão pensadas no
segundo capítulo.
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manhã, depois de uma troca de e-mails com Maria, combinei que iria entrevistá-la nesse
dia. Depois da entrevista realizada, com uma duração de aproximadamente 40 minutos,
Maria então me convida para almoçar72 com ela e os demais agentes penitenciários.
Informo a ela sobre os combinados com o diretor e sobre o limite do horário que eu
poderia permanecer no IPCG. Além disso, conto da advertência do diretor que eu não
ficasse “perambulando pelo presídio”. Ela, logo, com uma atitude meio “desencanada”,
diz que não dará problema, porque estará comigo, então pode vir almoçar, que você
deve estar com fome e, depois do almoço, continuamos nossa entrevista.
Aceito o convite de Maria para o almoço, vendo como uma boa oportunidade
para adentrar o campo em um sentido etnográfico mais stricto, convivendo no dia a dia
do IPCG. Então passo a acompanhá-la em direção ao refeitório dos funcionários. Para
chegar até lá, passamos por mais uma das três gaiolas que ligam aos pavilhões. Essas se
encontram sempre abertas devido ao grande movimento dos agentes, internos
trabalhando e alguns detentos passando. Como soube depois, eles seriam a principal
“barreira” entre os pavilhões das celas e a área administrativa do presídio. Essa terceira
gaiola seria a principal separação, sendo a primeira a ser fechada caso haja algum sinal
de tumulto ou rebelião, caso não sejam fechadas as duas anteriores (que só abrem com
um botão eletrônico na portaria) vão permanecer fechadas para impedir a fuga dos
detentos. Caso isso ocorra, deixará, assim, os agentes que estão na parte da
administração, como possíveis vítimas dos detentos em caso de rebelião73.
Ao chegarmos ao refeitório, separados por mesas, cada uma com
aproximadamente oito cadeiras ao redor, e o local de pegar os pratos, suco, sobremesa e
comida que se assemelham muito a um restaurante self-service. Logo ao adentrar, noto,
que existe uma separação entre os gêneros. Observa-se essa separação por meio das
mesas em que mulheres e homens sentariam. Depois de conversas e entrevistas, entendi
que a separação, na verdade, não é diretamente associada ao gênero, mas sim à
separação administrativa das três áreas (Segurança e Custódia, Administração e
72
A maioria, os de segurança e custódia, que estão de plantão (24 horas de trabalho por 72 horas
descanso), possuem horários diferentes dos agentes penitenciários que trabalham das 8 horas até as 14
horas, com uma hora de almoço, que ocorre no próprio IPCG. A comida é feita pelos internos que
trabalham na cozinha. Existe uma comida diferenciada para os funcionários e outra que é servida para os
detentos do presídio.
73
A última rebelião no IPCG ocorreu em 2008 no dia do natal. Presos de grupos rivais começaram um confronto
entre eles. De acordo com o diretor da época, havia um refém com os presos. No final, apenas três detentos
saíram feridos e não houve mortes. Fonte: <https://www.campograndenews.com.br/cidades/presos-saem-
gravemente-feridos-do-instituto-penal-12-24-2008 > Acessado: 20/12/2018.
Página 55 de 159
Finança, e Assistência e Perícia) que a Agepen organiza. Separação essa que parece
criar toda uma distinção entre os agentes e uma disputa no interior do ambiente
profissional da Agepen.
Após essa entrada, acompanho Maria pegando o prato e indo me servir, como os
outros funcionários. Decido por sentar junto com ela e com as outras psicólogas e
assistentes sociais do presídio. Sou apresentado, por Maria, enquanto um estudante da
UFMS que está realizando uma pesquisa na prisão. Após me sentar e cumprimentar as
demais funcionárias, algumas que conversaria em outros momentos da pesquisa,
percebo que esqueci meu caderno de campo com as anotações, tanto da negociação com
o diretor, quanto da entrevista com a Maria, em cima da mesa da mesma. Percebendo
esse equívoco74, aviso Maria e peço licença para ir lá pegar o caderno. Ela fala que não
tem problemas, pode ir lá na sala.
Dessa forma, vou com os passos apressados e com as mãos para trás, uma
técnica de corpo que acreditava ser respeitosa em um presídio, mas que, logo no
caminho, se mostrou equivocada. Em um instante, escuto um grito, atrás de mim, de um
agente penitenciário: PARE DE CORRER! Quem é você?! E para onde está indo?
Assusto-me com a forma agressiva com que ele gritou comigo e, prontamente, paro e
me viro tentando explicar a situação. Digo que sou estudante e apenas estava indo pegar
um caderno na sala de Maria. Ele pergunta: mas onde está o seu crachá75? Por que está
com as mãos para trás? Eu explico que não foi me dado o crachá, dessa vez, e que
andava assim por costume. Ele parece aceitar minha explicação e me dá uma
advertência: apenas os detentos andam com as mãos para atrás aqui, só eles devem
andar assim.
Entendo, prontamente, o que ele diz. Era algo que eu já tinha observado, mas
depois dessa advertência percebia a importância dessa técnica do corpo para a
demarcação e controle dos detentos. As mãos para atrás se assemelham com a forma
que as algemas são postas pelos policiais militares para impedir o movimento do preso e
garantir a segurança dos mesmos.
74
Como muitos antropólogos já sabem, mas é importante pontuar para os demais leitores, o caderno de
campo ser lido pelos informantes e interlocutores pode ser bem danoso e até impedidor da realização de
uma pesquisa, devido ao seu caráter de anotações a respeito do campo e de todos os interlocutores que ali
estão. É uma informação que considero sensível e pessoal a respeito da minha compreensão dos
fenômenos observados.
75
Na recepção do IPCG existe um crachá de “Visitante” para as pessoas que adentram o presídio e não
são funcionários da Agepen. O crachá só me foi dado na visita para a reunião com o Diretor.
Página 56 de 159
Essa ênfase nas técnicas do corpo, conforme Marcel Mauss (2015 [1934]),
mostra que até mesmo o movimento “dos braços e das mãos enquanto se anda é uma
idiossincrasia social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e
mecanismos puramente individuais” (2015, p.404). Nesse sentido, meu corpo precisa
ser treinado para aprender essas novas técnicas, de forma a conseguir me enquadrar no
novo espaço social que estava ocupando no decorrer da pesquisa. Esse tipo de
movimento com as mãos para trás “variam, sobretudo com as sociedades, as educações,
as conveniências e as modas, os prestígios” (MAUSS, 2015, p.404, grifo meu). Apesar
desse movimento com as mãos ter tido sua possível origem com o comportamento dos
PMs em delegacias e no movimento de chegada de presos, no IPCG os detentos não
utilizam algemas76 dentro do presídio ao irem de um setor para outro, aqui esse
comportamento com as mãos, apesar de provavelmente passar segurança, parece mais
com o sentido que Goffman (2015) entende, isto é, como uma “indignidade física”, da
qual se busca inferiorizar os detentos que se diferindo da “sociedade civil, [onde alguns]
movimentos, alguma posturas e poses traduzem imagens inferiores do indivíduo e são
evitadas como aviltantes” (2015, p.30).
Após o ocorrido, vou à sala de Maria, pego meu caderno de campo e já retorno
ao refeitório. Logo, ao adentrar o refeitório, imediatamente, encontro com o diretor. Ele
olha para mim com uma cara de surpresa e desconforto, mas, mesmo assim, me
cumprimenta meio sem jeito. Respondo o cumprimento e vou me sentar com as agentes
da assistência e perícia. Trago esse momento de encontro com o diretor, como um
divisor de águas em minha pesquisa, pois apesar de o dia ter continuando normal após o
almoço, uma vez que continuei a entrevista com a Maria, na semana seguinte fui
chamado na sala da diretoria, na qual Patrícia gostaria de falar comigo a respeito da
realização de minha pesquisa no IPCG. Conforme o acordado na reunião depreende-se
que o diretor teria ficado incomodado de me ver no refeitório almoçando, e
perambulando dentro do presídio, pois em sua visão eu deveria apenas ir ao IPCG com
as entrevistas marcadas, realizá-las em uma sala específica ou na sala do próprio agente,
e me retirar do presídio para voltar apenas na semana seguinte, para a próxima
entrevista. Sendo assim, a partir desse momento de intervenção do diretor, a
76
Apenas em casos especiais, como os que essa avaliação e recomendação por mandato judicial e quando
chegam ao presídio juntos com os policiais militares (PMs).
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possibilidade de uma etnografia “tradicional” em que adentraria à prisão e estaria
vivenciando aquele ambiente próximo de meus sujeitos, foi vista como problemática.
Além das dificuldades de acesso e da realização da pesquisa no IPCG, é preciso
destacar também a questão dos riscos. Os riscos na pesquisa antropológica no geral são
pensados mais na relação desigual entre o pesquisador e os pesquisados. Sobretudo, se
se pensa em quais seriam as consequências para eles em relação à pesquisa feita. Aqui,
busco inverter um pouco essa ideia e pensar sobre a relação dos riscos na pesquisa para
o próprio pesquisador no campo.
No campo da produção antropológica, existem diversos riscos para o
pesquisador ao se realizar a pesquisa, neles se incluem os éticos, profissionais e da
própria pesquisa em si. Como exemplos, temos entre os riscos éticos os conflitos com
os agentes pesquisados e a relação que o pesquisador estabelece com os mesmos. Entre
os riscos profissionais, podemos destacar a escolha dos temas de pesquisa e das áreas
pesquisadas77 que podem afetar as relações profissionais do pesquisador e sua carreira
como um todo. Sobre os riscos da pesquisa em si, temos os riscos variados de se perder
a confiança, a permissão, a abertura dos interlocutores, assim como os entraves
burocráticos que podem pôr em risco toda a realização da investigação.
Apesar de minha pesquisa também ter tido a possibilidade de apresentar os
perigos acima mencionados, estarei focando a partir da realidade de meu campo nos
riscos físicos e emocionais de se pesquisar no IPCG. Acredito ser importante pensar em
riscos e perigos no campo prisional nesta dissertação, pois, enquanto pesquisador,
negociar meu próprio risco e posição no campo, acaba por impactar os dados
produzidos e no desenvolvimento da pesquisa.
Antes de entrar nisso propriamente, é preciso que eu, enquanto pesquisador, me
“coloque no campo”. Enquanto um sujeito que também é socialmente construído, assim
como os interlocutores, procuro partir da metodologia feminista78 de forma a pensar que
na pesquisa social, principalmente na antropológica que “em vez de assumir que a
pesquisa é objetiva, [é preciso] reconhecer as diferenças de posicionalidades,
preconceitos e privilégios, e como isso afeta o processo de pesquisa.” (ROGERS-
77
Risco esse que se mostra mais presente na atual realidade política brasileira, basta observar as pesquisas
com ênfase em gênero e sexualidade no geral, na medida em que um governo conservador se elege e
ideias como “Escola sem partido” e “Ideologia de Gênero” ganham apoio, não só legislativo, como do
próprio executivo. Para o debate mais amplo sobre essas questões ver Souza, Manhas et al (2016) e
Guilherme e Picoli (2018).
78
Sobre a metodologia feminista, ver Martha Narvaz e Sílvia Koller (2006).
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BROWN, 2015, p.117, tradução pessoal). Assim, tanto Foucault quanto Judith Butler já
mostraram que nenhum corpo é neutro, nem mesmo o corpo do pesquisador seria
enquanto se realiza a pesquisa.
Dessa maneira, eu enquanto homem, branco, jovem, de classe média e
escolarizado, precisei atentar como essas articulações de minhas identidades
repercutiram em minha pesquisa e na reflexão que surgiria dela. Em alguns momentos,
como os das entrevistas, foram bem marcantes essas posições no sentido de eu ser
considerado alguém que não compreenderia a violência, que não estava exposto a uma
violência diária, que não tinha origem em estratos mais baixos nem do ponto de vista
socioeconômico, nem de escolarização. Todas essas questões marcaram meus contatos
enquanto um sujeito semelhante, diferente ou, até mesmo, não pensado em relação a
meus interlocutores79.
Tendo isso em mente, voltemos então às ideias a respeito do risco e perigo no
campo do IPCG. Partindo da leitura de More than a war story: a feminist analysis of
doing dangerous fieldwork (2015), de Jennifer Rogers-Brown, derivando de seu
trabalho etnográfico no México, cujo foco está na resposta da sociedade civil sobre os
impactos de políticas neoliberais em pequenos fazendeiros e mulheres, a autora parte de
dois eixos de mediação de risco generificadas, sendo eles: o impacto do seu campo na
variação dos riscos e mediação dos mesmos e o controle da impressão que o
pesquisador passa como uma ferramenta de mediação do perigo.
Pelas informações apresentadas na introdução dessa dissertação sobre a
realidade do sistema prisional brasileiro, o caráter de local de risco do IPCG já deveria
se mostrar como evidente no sentido dele enquanto um campo. Apesar disso, em meu
campo, os agentes penitenciários pareciam deixar claro que o Penal era um dos
presídios mais seguros em que tinham trabalhado, em comparação com a Máxima, ao
lado. No entanto eles não deixam de negar o perigo do trabalho, na fala de Maria, ela
comentou a respeito da desconfiança que se deve ter.
79
Na questão dos interlocutores, buscarei trazer a concepção de James Clifford presente em seu texto
Sobre a autoridade etnográfica. Nesse sentido, procuramos “lutar conscientemente para evitar representar
‘outros’ abstratos e a-históricos, é crucial formar imagens complexas e concretas uns dos outros” (1998,
p. 19).
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confiar). Aqui você não pode confiar. Você não sabe o limite da
pessoa, o que que ela tem.
80
Eles voltarão a aparecer no capítulo III desta dissertação.
81
Esse conceito vem dos trabalhos Raewyn Connell (1987), utilizado também por Michael Kimmel
(1998), e depois reformulado por Raewyn Connell e James Messerschmidt (2013). Em busca de dar conta
das múltiplas formas de “ser homem”, os autores buscaram demonstrar como essa disputa tende a criar
uma masculinidade hegemônica e outras masculinidades subalternas em relação a ela. Temos então que
Página 60 de 159
ganhar a confiança dos presos que possuíam uma masculinidade hegemônica que busca
a emasculação de masculinidades subalternas como forma de garantir sua hegemonia
sobre os demais.
O manejo de minha imagem não se deu apenas com os internos. Após o ocorrido
com o agente que chamou minha atenção, fiz questão de alterar a forma como eu andava
e me portava no ambiente do Penal. Temos “em nosso kit de ferramentas
metodológicas, a honestidade (ou engano) é uma maneira óbvia de gerenciar o perigo e
como as pessoas nos identificam, como pesquisadores ou como repórteres, [até mesmo
detentos], espiões e turistas.” (ROGERS-BROWN, 2015, p.121, tradução pessoal).
Além do risco, outra questão que influenciou na pesquisa, e que advém dela, diz
respeito ao medo. Esse sentimento, curiosamente, não surgiu na elaboração da pesquisa
em si, não de mim ou do orientador pelo menos, já da parte da minha família houve
resistência e medo sobre minha segurança pessoal. Vieram questionar-me acerca do
“por que pesquisar em tal lugar?” “Por que um presídio, Daniel? Por que não uma
escola, uma igreja?”, perguntavam-me. Respondia-os que era um interesse pessoal
estudar violência masculina e essa foi a forma mais prática que encontrei, mesmo que
não os satisfizessem.
A questão era que durante minhas primeiras idas, apesar do receio de passar
pelos corredores, como mencionado anteriormente, e certa ansiedade gerada pela
expectativa de como seria o próximo dia de pesquisa, o medo não apareceu durante as
entrevistas com os agentes penitenciários em suas salas. Mas algo estava para mudar,
tinha acabado de entrevistar todos os agentes que foram combinados com a direção e
iria começar com os detentos. Lembro que naquele dia em que faria esse primeiro
contato, acordei bem mais cedo que nos outros dias de pesquisa, dormi mal, estava
ansioso. Várias perguntas vinham à minha mente: como seria entrevistar os detentos?
como seria estar numa sala apenas eu e um sujeito tido como homicida? Será que
conseguiria realizar as entrevistas como com os agentes? Deixei de me questionar, logo
tomei meu café e me aprontei para ir ao Penal. Era uma quarta-feira, já no início de
2018, havia marcado com Maria para realizar uma entrevista com um dos detentos na
semana anterior.
uma “empreitada subjaz um processo de luta contínuo que envolve mobilização, marginalização,
contestação, resistência e subordinação das modalidades de ser masculino não sancionadas pela matriz
hegemônica” (OLIVEIRA, 1998, p.14). A questão das múltiplas masculinidades será trabalha no capítulo
III da dissertação.
Página 61 de 159
Ao chegar, após o procedimento de entrada, e já com meu crachá de visitante,
fui para a sala de Maria; a atmosfera parecia diferente, o presídio estava mais
barulhento. Maria estava atarefada, como sempre, mas nada de diferente, quando me
viu, logo falou para eu entrar em sua sala e fechar a porta. Maria estava “animada”,
como se tivesse algo para contar que eu acharia interessante, e logo foi contando a
“fofoca” para mim, hoje tenho uns pepinos para resolver: um interno foi encontrado
morto às 5 da manhã, tenho que ligar para família e avisar do ocorrido. Logo me
espantei, mas pelo tom que Maria falava não parecia algo muito importante no dia a dia
do Penal. Vendo meu espanto, ela comenta: ah não se preocupe, Daniel, isso acontece
aqui, não muitas vezes, mas acontece. Não sabemos se ele morreu de morte morrida ou
morte matada (risos) mas logo o MP82 vem aqui e vai falar com uns detentos.
Tento demonstrar uma compreensão e comento que a morte assim tão perto não
é algo comum para um estudante, mas deve ser algo mais rotineiro na segurança
pública. Maria então comenta brevemente: aqui é até de boa, ruim mesmo era na
Máxima. Antes de eu comentar, logo complementa: mas vamos logo colocar você na
sala lá e pedir para o interno chamar o primeiro detento, você vai fazer a entrevista na
sala da Juliana83, ok? Vou lá contigo abrir.
Maria então me leva para a sala que é logo ao lado da sua, abre a porta, acende a
luz, liga o ventilador de teto e fala oh pode sentar aí na cadeira dela, vou pedir para o
interno ir lá chamar o detento, se precisar de qualquer coisa, ou quando acabar a
entrevista, só ir na sala ao lado ou pedir para um dos meninos84 aqui fora, e logo se
retira. Apesar da informação anterior sobre a morte de um detento, tento não pensar
nisso, logo me sento na cadeira de Juliana e já arrumo o gravador e o caderno de campo
em preparação para entrevista.
Nesse tempo de espera, meio que “caiu a minha ficha”, eu estava no meio de um
presídio cercado de detentos, numa sala pequena, um ventilador com barulho irritante e
com certas imagens de santas católicas típicas das antigas repartições públicas
brasileiras. Fui ficando mais inseguro no ambiente, e comecei a prestar atenção nos
82
O MP é a sigla e a forma que os agentes falam do Ministério Público. O MP, como comentando na
introdução, é responsável pelas condições dos detentos no presídio.
83
No começo de 2018, a psicóloga Juliana uma das agentes entrevistas estava de férias então Maria
arrumou a chave para que eu realizasse as entrevistas com os detentos na sala dela por não ter outra
disponível.
84
Meninos é a forma que Maria se referia aos internos que trabalhavam auxiliando as psicólogas e
assistentes sociais, sempre ficam nos corredores ou em frente às salas para qualquer coisa que precisarem.
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barulhos do Penal, eis uma mistura de pessoas falando alto, com barulhos de grades e
portões abrindo e fechando. Comecei a ficar com um pouco de medo e como “em todos
os medos há uma sensação de espreita, do que pode acontecer” (WALTON, 2004, p.27),
não estava pensando no homicida que logo iria entrar pela porta para a entrevista, mas
sim no pior. E se começasse uma rebelião? O que eu iria fazer? E se eles vissem minhas
anotações e áudios? Será que ficariam com raiva? Não tinha como ter muitas dessas
respostas.
Sentindo e pensando, logo me lembro de um texto lido durante o primeiro ano
do mestrado, a tese de Taniele Rui, Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e
comércio de crack (2012). Nela, a autora conta a forma como se sentiu em uma das
visitas ao local de consumo da droga,
Página 63 de 159
1.3 Punindo desde sempre: percursos antropológicos
85
Antropologia com o objetivo, aqui entendido, no sentido que dá Geertz (2008), de uma busca pelo
“alargamento do universo do discurso humano” (2008, p.10) em que investigando as demais sociedades e
culturas temos uma expansão das possibilidades de existência humana que ultrapassariam a compreensão
de nossa própria cultura.
86
Diferente da antropologia clássica, que buscava estudar os povos “selvagens”, nesta dissertação busco
uma análise de discursos que estariam presentes numa sociedade complexa, nos termos de Goldman
(1999).
87
É importante ressaltar por questões éticas que o financiamento e interesse de uma pesquisa dessas por
parte de um instituto acadêmico britânico em um período em que a região da Melanésia ainda estava sob
posse colonialista e imperialista dos Britânicos. Isso ajuda a demonstrar a forma como a antropologia e
sua instrumentalização poderiam ser percebidas como braços da expansão e controle da empreitada
Página 64 de 159
Investigando os trobiandeses, Malinowski busca desmitificar preconceitos que
alguns estudiosos tinham sobre as leis “primitivas” a respeito de serem apenas guiadas
por “caprichos, por emoções incontroláveis e pelo acaso” (2003, p.60). A partir de seus
estudos, ele conclui que elas poderiam ser formadas pela tradição e ordem, estabelecidas
durante séculos, a partir da cultura do grupo, com regras e complexidades que poderiam
ser vistas como tão próximas aos sistemas jurídicos e penais das sociedades ocidentais.
Para o autor, as leis dos nativos constituiriam um agrupamento “muitíssimo refinado e
[que] rege todos os aspectos da organização social” (MALINOWSKI, 2003, p.60).
Na segunda obra fundante do campo, temos o Estrutura e função na sociedade
Primitiva, do ano de 1952, de Radcliffe-Brown. Esse livro é formado por diversos
artigos produzidos pelo autor durante sua carreira acadêmica, compilados nessa obra.
Há dois artigos em especial que interessam a esta dissertação: Sanções Sociais e Lei
Primitiva. No primeiro artigo, o autor faz um panorama geral das sanções sociais nas
sociedades iletradas, focando principalmente nas sanções negativas, demonstrando
como elas costumam se formar. Interesso-me, para fins desta dissertação, a respeito das
sanções negativas organizadas que são as utilizadas como “sanções penais do direito
penal, [...] reconhecem procedimentos que são diretamente contra pessoas cujo
comportamento está sujeito à desaprovação social” (RADCLIFFE-BROWN, 1952,
p.208, tradução pessoal), nessa questão que as prisões se encontram em nossa sociedade
como um meio punitivo. Assim como a ideia que o autor traz a respeito das funções das
sanções sociais:
colonial. Para uma breve análise da história da disciplina, assim como as críticas éticas a respeito da
antropologia clássica, ver Sanjurjo, Camargo e Kebbe (2016).
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demonstra o caráter das penas como: restitutivas, que procuram dar algo de retorno à
vítima do ato reprovado; ou repressivos, onde se buscam penalizar os indivíduos pelos
atos cometidos.
Nesta dissertação trabalhamos com o art. 121, ou seja, o ato de “matar alguém”
dos internos. Esse ato, na sociedade ocidental contemporânea, é apenas sancionado
negativamente por meio de uma pena repressiva, com o cerceamento da liberdade do
interno por uma determinada quantidade de tempo; preventivo em que esse cerceamento
ocorre em um espaço determinado, “longe” da sociedade como um todo, no sentido de
“proteger” a mesma; e, simultaneamente, há um processo ressocializador88 em que se
busca a “reabilitação” do interno para o convívio em sociedade.
As obras de Malinowski e de Radcliffe-Brown ajudam a descortinar como o
campo da Antropologia do crime e da punição se mostra presente, indiretamente, desde
a formação da antropologia como área e da etnografia como método para estudar as
diversas culturas humanas. Apesar de apresentarem pontos interessantes, que podem ser
percebidos ainda hoje no sistema prisional, em grande medida, elas estão datadas. Como
veremos a seguir, esses mais de 70 anos que nos separam dessas análises mudaram
imensamente a compreensão do fenômeno e o estudo do mesmo.
Tal assertiva ficará mais clara quando lançarmos um olhar sobre as obras
contemporâneas, das ciências sociais, sobre prisão e punição no Brasil. Partindo da
análise de Marcelo Campos e Marcos Alvarez a respeito da produção científica nas
temáticas de políticas públicas de segurança, violência e punição no Brasil, de 2000 até
2016, já podemos perceber uma distribuição que está “amplamente no campo das
ciências socais, beneficiando-se, assim da porosidade entre as fronteiras disciplinares
dessa área do conhecimento” (ALVAREZ, CAMPOS, 2017, p. 143).
Aqui, busco pensar, a partir dessa grande área, duas temáticas que são intituladas
pelos autores como: “violência e sociabilidades”, abarcando pesquisas que tratam das
performances e representações sociais de práticas da violência; e a outra que é
classificada como “sociologia [e antropologia] da punição e das prisões”. Como visto
88
Perspectiva essa que está presente em todos os códigos legais, tanto federais quanto estaduais, na
elaboração do objetivo da penitenciária no país. Apesar disso, é desacreditada pelos próprios agentes
penitenciários entrevistados e de acordo com Godoi (2010) atualmente se tem “o declínio do ideal de
reabilitação, as sanções punitivas readquirem o caráter expressivo, retribuído e vingativo que
predominava nos tempos dos suplícios” (GODOI, 2010, p.38 apud GARLAND, 2005).
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nas pesquisas dos autores, a grande maioria dos estudos dessas duas temáticas se
encontra na região sudeste (ALVAREZ, CAMPOS, 2017, p. 159), principalmente no
estado de São Paulo (BARROS, 2017).
Para os autores, essas pesquisas “também pautaram o debate sobre as políticas
públicas de segurança” (ALVAREZ, CAMPOS, 2017, p. 174). A grande questão, a
partir de uma perspectiva generificada, em voga nesse período, é a do processo de
judicialização da violência contra as mulheres89, que se daria também com os estudos
sobre as delegacias da mulher e a emergência da Lei Maria da Penha. Apesar de
interessante, o crescimento da área e os debates gerados por ela, não se pode deixar de
pontuar a forma como gênero aparece no texto, apenas como uma construção identitária
da formação de “mulheres”. Os textos, assim como, as pesquisas referenciadas por eles,
deixam de lado o “gênero dos homens” e as questões da construção da masculinidade
enquanto um fator relevante na formação de sociabilidades violentas.
Analisando algumas pesquisas etnográficas prisionais brasileiras, nota-se uma
crescente valorização das técnicas relacionadas à etnografia prisional (BARROS, 2017,
p. 113). Nesse sentido, acho interessante pensarmos o Penal a partir dessas outras
produções, buscando as semelhanças e as diferenças encontradas dentro do sistema
penitenciário brasileiro.
Na questão das técnicas de utilização para entrada no campo do Penal, como já
mencionado, adentrei o campo com autorização formal da Agepen e apenas enquanto
pesquisador da UFMS. Outra forma interessante de técnica para entrada foi utilizada
por Fábio Mallart (2015) em sua dissertação, Cadeias Dominadas. O autor realizou uma
pesquisa entre setembro de 2004 e novembro de 2009, circulando pela Fundação Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), onde os menores de
18 anos, chamados comumente de “menores infratores”, são isolados do convívio com a
sociedade. A inserção do autor em seu campo foi facilitada por meio de atividades
culturais de fotografia com os adolescentes nesses espaços. O próprio autor reconhece
como sua situação foi “privilegiada” 90, nesse campo de pesquisa, ao mostrar que
89
Os autores demarcam como fundamental o trabalho de Gregori (1993). Ver: Maria Filomena Gregori,
Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, São Paulo, Paz e
Terra, 1993.
90
O próprio autor reconhece seu privilégio citando o desconforto experienciado pela pesquisadora Paula
Miraglia (que pesquisou sobre Unidades de Internação da FEBEM/SP), na medida em que a mesma diz
“minha presença nas aulas de música se mostrou acima de tudo inadequada: eu não era funcionária da
instituição, não era professora de música, e principalmente era mulher, jovem, num ambiente
essencialmente masculino” (MALLART, 2014, p.17 apud MIRAGLIA, 2001, p.12). Aqui, pontuo que
Página 67 de 159
[...] as oficinais constituíram uma maneira privilegiada de inserção em
campo, na medida em que garantiram a minha permanência no espaço
institucional semanalmente, por um lado facilitando o estabelecimento
de vínculos com os atores sociais que vivenciam o cotidiano dos
espaços de internação e, por outro, propiciando a aproximação
necessária de um universo de práticas sociais e simbólicas que, até
então, eu só conhecia por meio das páginas dos jornais (MALLART,
2014, p. 17).
minha entrada no Penal se mostrou mais próxima da de Miraglia do que a de Mallart, que, apesar de não
ter o seu desconforto de gênero, passei pela sensação de não pertencimento àquele universo institucional.
91
Autora esta que apresenta uma produção de relevância nacional, e até chegou a ser premiada
internacionalmente com o prêmio APLA (Association for Political and Legal Anthropology) em 2017,
para mais informações ver: <https://www.escavador.com/sobre/7560719/karina-biondi> Acessado em:
23/07/2018.
92
Segundo Mallart os “adolescentes se dividem em postos de liderança: piloto, encarregado, faxina e
setor, sendo os principais responsáveis pela gestão de tais cadeias [das cadeias dominadas], bem como
pela transmissão de orientações aos adolescentes que não atuam como líderes, conhecidos como
população” (2014, p.45).
93
Como a Máxima se encontra ao lado do IPCG, isso cria uma relação comparativa por parte de todos os
interlocutores pesquisados, detentos ou agentes, essas diferenças são presentes nos capítulos II e III da
dissertação.
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o solário dos evangélicos, segundo um agente penitenciário, o pessoal de lá é pessoal
um pouco mais tranquilo. Porque segundo eles, descobriram Deus e aí eles oram,
passam o dia todo orando lá. Apesar da nomenclatura do solário, ele apresenta detentos
das mais diversas denominações cristãs, desde os católicos até as inúmeras correntes
protestantes, todos são aceitos se seguirem as regras. As regras do solário foram
estabelecidas por eles mesmos, alguns seguem as regras do presídio como, por exemplo,
a não utilização de celulares ou drogas; outros ultrapassam as da própria instituição,
sendo proibido andar sem camisa pelo solário ou fumar cigarros e consumir bebidas
alcoólicas.
Para uma melhor compreensão da organização do solário dos evangélicos no
IPCG, que diferentemente das regras estabelecidas por algumas facções, que na maioria
das vezes são cumpridas pela base do medo e da força física, nesse solário em
específico, o controle é organizado pelo poder do diálogo praticado pelos pastores,94
junto com os demais ocupantes do solário que podem optar por expulsar ou não alguém.
A obra que me ajuda, nesse sentido, é Os eleitos do cárcere (2009), de Alessandro
Boarccaech, uma obra interessante para as reflexões que faço sobre os diferentes tipos
de organizações da massa.
Em Os eleitos do cárcere, o autor pesquisa a respeito do fenômeno religioso nos
presídios gaúchos, pesquisa esta iniciada em 2003, a partir de sua vinculação ao
Departamento de Tratamento Penal (DTP) do Rio Grande do Sul. Sua análise parte do
grupo “Estrela do Cárcere”, que surgiu como muitos outros grupos evangélicos
pentecostais, da igreja Assembleia de Deus. Esse grupo, à época da pesquisa, era o
maior grupo religioso organizado dentro dos presídios, contando com 145 membros.
Esses internos se encontravam, semelhante ao Penal, “separados dos demais
detentos [...] funciona como uma mircrossociedade que concentra o universo de relações
dos ‘irmãos’” (BOARCCAECH, 2009, p. 9). Apesar dessa separação, os detentos do
solário, ainda assim, precisam seguir certos códigos e valores do universo penitenciário.
Nesse sentido, a questão da honra95 se vê como uma preocupação também dos
94
Opto por utilizar a expressão em itálico por ser como os detentos chamam essas figuras, que acabam
por assumir essa posição não por anteriormente serem pastores de igrejas ou algo do tipo, mas apenas
pelo critério de ter o “dom da pregação” e ser letrado.
95
A categoria “honra” está presente não apenas na formação das masculinidades prisionais mas também
nos discursos que regem os aspectos legais e jurisprudenciais de terminados crimes violentos, como o
homicídio. No trabalho de Silvia Pimental, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque (2006) observam
como a “legítima defesa da honra ou da violenta emoção para justificar o crime, culpabilizar a vítima e
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evangélicos. Boarccaech nos mostra o significado da honra dentro do presídio e como
ela influencia as relações entre os detentos nesse campo. Esse ponto se mostrou
relevante para pensar a construção da masculinidade em campo. A honra se mostra
como o atributo mais ligado aos homens. A construção da masculinidade passa também
pela honra e pela necessidade de “ter palavra de honra”. Honra seria uma categoria
central para a construção de uma masculinidade hegemônica, tanto no presídio quanto
no mundo do crime96.
Além do solário dos evangélicos, há também no Penal mais dois solários
“especiais”, sendo o primeiro também no pavilhão 1, dos crimes sexuais, e o outro no
pavilhão 2, que é solário dos homossexuais97. Uma etnografia prisional, que
problematiza as questões de gênero e sexualidade, é o trabalho de Natália Padovani
(2010), em que são problematizados os comportamentos sexuais considerados
ilegítimos pelo sistema jurídico e a criminalidade, a partir de discursos subversivos,
além do modo que eles foram punidos ou absorvidos pela instituição. Padovani trabalha
por meio de entrevistas com internas, funcionários e faz análise de prontuários e
documentos produzidos pela prisão, a Penitenciária Feminina da Capital (PFC) em São
Paulo.
Nesse trabalho, durante a sua concepção, havia o interesse da pesquisadora em
investigar o trabalho prisional em prisões masculinas, mas foi restringida por meio de
uma fundação vinculada à secretaria de administração penal com a justificativa de que
os “homens seriam perigosos e violentos” (PADOVANI, 2010, p.18). Essa frase é um
dos focos de inspiração para esta dissertação. Acreditou-se, naquele momento, que, em
vista da pesquisadora ser mulher, provavelmente, foi proibida sua entrada. A autora
ainda nos diz que, segundo o órgão “[...] o campo de estudo no cárcere masculino era
pequeno de modo que eu estaria sendo submetida a um perigo desnecessário ao entrar
em penitenciárias masculinas” (PADOVANI, 2010, p.19). Na questão da
homossexualidade dentro dos presídios, Padovani trabalhou com o PFC e constatou que
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não exista uma cela especial separada para sexualidades divergentes e, ainda segundo a
autora,
Seja de modo oficial e regulamentado, seja por meio dos comentários
e das fofocas cotidianas, a homossexualidade sempre foi proibida por
todos os agentes de poder na Penitenciária Feminina da Capital –
inclusive, desde 2004, pela facção do crime organizado [o PCC98]
como será explicitado a seguir. (PADOVANI, 2000, p. 92).
98
A PFC, onde Padovani realizou seu campo está entre as cadeias dominadas pelo PCC em São Paulo.
Biondi comenta um pouco sobre a aceitação dos homossexuais, monas para o PCC, e diz “Além dessas,
destaco as reflexões que resultaram, em meados de 2006, na aceitação de monas (homossexuais) no
convívio. [...]. Por fim, a cela das monas foi mantida e, embora aceitos no convívio, os homossexuais não
participavam da tomada de decisões ou da vida coletiva nas prisões...” (2009, p.111).
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dos internos diz respeito à família enquanto uma das bases de algumas masculinidades
no Penal. Pensando nisso, temos a última obra que veremos, a dissertação de Natália do
Lago (2014). Ela também pesquisou em uma unidade prisional feminina em São Paulo e
buscou compreender, a partir das narrativas das detentas, os discursos que são
produzidos sobre família e sobre os relacionamentos amorosos, tendo o marcador
central de gênero como fundamentação das posições dessas mulheres. A autora
demonstra como famílias inteiras acabam na prisão e a influência99que os companheiros
dessas mulheres têm sobre a entrada no mundo do crime.
O trabalho de Natália do Lago trata da relação entre a prisão e a rua, mostra
como “a prisão seria um intervalo e uma parte da existência das pessoas presas, mas não
as retiraria completamente de suas vidas” (2014, p.27), ela pensa na relação com a vida
fora dos muros, que continuaria presente dentro da prisão.
Ao analisar esse panorama teórico, é preciso pontuar a diversidade do sistema
penal brasileiro que possui uma série de particularidades no que diz respeito aos
diferentes estados da federação. Apesar da Lei nº 7.310, a Lei de execução penal, ser
instituída pelo presidente da república e congresso nacional, que estabelece os
parâmetros básicos para a legislação penal brasileira, a mesma baseia-se no princípio
federativo da seção III do capítulo IV, que institui certa liberdade para os departamentos
penitenciários estaduais, ou seja, no meu caso a Agepen.
A partir disso, apenas o cargo de diretor, de acordo com o artigo 75, estabelece o
requisito de portador de diploma de nível superior. Tratando-se de outros funcionários
da penitenciária, o artigo 77 estabelece apenas que “a escolha do pessoal administrativo,
especializado, de instrução técnica e de vigilância atenderá a vocação, preparação
profissional e antecedentes pessoais do candidato”. Essa questão legal, que a princípio
não pareceu de importância, mostrou-se fundamental na medida em que me inseri nos
estudos e produção bibliográfica brasileira dentro das prisões.
No caso de Mato Grosso do Sul, desde 2002, com a Lei nº 2.518, ficou regulado
que o cargo de agente penitenciário (de qualquer uma das três áreas) deveria ser
preenchido com o requisito de ensino superior. O impacto que isso terá nos agentes
penitenciários, no funcionamento da cadeia e na relação com os internos, é bem
99
Aqui, gostaria de demarcar que isso não retira a agência desses sujeitos. Essa influência é apenas uma
forma de se pensar como as relações de parentescos muitas vezes se aproximam da realidade prisional de
diversas formas, principalmente pelas leis 6.368/76 e 11.343/06 que versam sobre o tráfico de drogas.
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grande100. Estou falando de um país em que 83%101 da população não possui ensino
superior. No Penal, a situação parece mais grave, apenas 12 detentos dos 1.367
possuem ensino superior completo. Em todos os trabalhos vistos acima (Boarccaech,
2009; Biondi, 2010; Padovani, 2010; Do Lago, 2014; Mallart, 2014), temos apenas o
critério de ensino médio para os agentes que trabalharam diretamente com os detentos.
As pesquisas referenciadas são representativas de um panorama maior de
pesquisas sobre e em prisões em alguns estados brasileiros, bem como a relação entre as
prisões brasileiras. Elas mostram ainda que vem crescendo, no Brasil como um todo, a
partir da década de 1990 (SALLA, 2003), o interesse pela área. Uma recorrência: a
dificuldade em produzir conhecimento sobre o tema, a partir da dinâmica prisional.
100
Esse impacto será comentado no capítulo II desta dissertação a respeito dos agentes penitenciários.
101
Segundo os dados mais recentes do terceiro trimestre de 2018, de acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).
102
Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel que, segundo a autora, tem o intuito de
“‘contribuir para a recuperação social do preso e para a melhoria de sua condição de vida, através da
elevação do nível de sanidade física e moral, do adestramento profissional e do oferecimento de
oportunidade de trabalho remunerado’. Atualmente a fundação coordena todos os programas educativos,
culturais e de geração de renda das penitenciárias paulistas” (2010, p.18).
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isso, mostramos que cada pesquisa em prisão se mostra como única no sentido de como
se dará esse campo.
Desde minha entrada no presídio até as semelhanças e diferenças do IPCG com
outras prisões brasileiras; das questões mais observadas nas primeiras idas, passando
pelas questões antropológicas sobre os campos da punição; desde as dificuldades de se
pesquisar nesse campo ao mais intrínseco dos sentimentos de risco e medo, de se ver
rodeado de presos por todos os lados, esse primeiro capítulo procurou situar os leitores
um pouco sobre o Penal e de que forma foi construída a minha pesquisa nesse local.
Nos capítulos seguintes aprofundaremos a pesquisa através de um diálogo mais
substancial com os interlocutores, sobre a rotina diária do presídio assim como as
percepções dos agentes e detentos que ali estão.
Página 74 de 159
CAPÍTULO II
OS/AS AGENTES: CONSTITUINDO-SE NO PENAL
103
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é a segunda profissão mais perigosa e
estressante do mundo (Souza, Cisse, Castro, Andrade, Fritsche e Silva, 2015)
104
O cargo de Agente Penitenciário é constantemente confundido no popular com o de carcereiro, essa
palavra é vista pelos agentes penitenciários com um tom depreciativo e ultrapassado, preferindo os
mesmos serem chamados de agentes. O carcereiro seria a figura contratada, geralmente pela prefeitura,
para cuidar do cárcere nas delegacias.
105
Dessas custódias, 64.456 seriam homens e os outros 13.707 seriam mulheres, em sua maioria
ocupando os trabalhos nos presídios femininos.
Página 75 de 159
acordo com a Lei nº 11.473, em seu artigo 3º. Essa separação estadual das secretarias
que os administram possibilita a diversidade e variação de como se dá a profissão de
agente em cada estado brasileiro. Devido a esse fator, aqui estarei focando apenas, como
já mencionado na introdução, na autarquia da Agência Estadual de Administração do
Sistema Penitenciário (Agepen).
Os cinco funcionários entrevistados, respectivamente, foram Maria, Juliana,
Patrícia, José e Adriana. Seguindo as ideias de Flavia dos Santos (2017), acredito ser
importante a demarcação desses interlocutores principais, a partir de quatro categorias
de diferenciação: gênero (todos identificados como cisgênero), cor ou etnia, cargo
ocupado e faixa etária106.
Conheci Maria por meio de Patrícia, secretária do diretor do IPCG. Patrícia, logo
após a reunião com o diretor, me deixou aos “cuidados” de Maria, que ficaria então
responsável por me ajudar na pesquisa no presídio, assim como com a seleção dos
internos que eu estaria entrevistando. Maria está desde 2005 na Agepen, apesar de seu
concurso ter sido realizado em 2002. Ela é uma mulher que está na casa dos 30 anos,
gosta de ser vista como uma “mulher forte” que não tolera muitas brincadeiras com seu
gênero. Possui pele parda e um corpo malhado, gosta muito de praticar corridas de
longa distância e acredita que uma mulher pode ser tão forte quanto um homem.
Atualmente é assistente social do IPCG e cuida da parte da educação dos internos.
Solteira, se considera responsável por toda a família (filho, irmão e mãe). Em todos os
momentos que encontrei com Maria, mesmo indo realizar entrevistas com outros
agentes ou os internos, ela sempre foi muito simpática e calorosa comigo. Parecia estar,
a todo o momento, ocupada com seus afazeres e tarefas que iam até mesmo além de
suas obrigações formais, de acordo com a mesma.
Durante a pesquisa no Penal, o trabalho que Maria realizava consistia em
atendimento aos familiares dos internos por meio de ligações, e-mails ou, até mesmo,
presencial. Sendo ela responsável pelos atestados de permanência carcerária, documento
este necessário para que os familiares tenham acesso ao auxílio reclusão107. A questão
106
Essa demarcação das caraterísticas de cada um dos funcionários se torna importante para que suas
falas e as minhas colocações sejam pensadas enquanto relacionadas a esses sujeitos específicos que têm
suas vidas e suas experiências demarcadas pelo trabalho que realizam no Penal.
107
O auxílio reclusão é dado aos dependentes do segurado do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social),
ou seja, dos dependentes do interno fora da cadeia, ele consiste de um salário mínimo. Como é apenas um
salário por interno, cria-se conflito, às vezes, quando há, por exemplo, filhos com mais de uma mulher,
Maria comentou tem um que tem cinco mulheres, aí falei 'vai dividir esse novecentos e pouco para cinco,
vai dar o que?'. Tem umas aqui que fico morrendo de medo, porque as mulheres não se conhecem, sendo
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da visitação dos familiares é uma tarefa que está sendo realizada pela outra assistente
social do presídio. Sua segunda atribuição diz respeito à escola108, que funciona no
IPCG. Ela é responsável pelos alunos, pela lista que sai diariamente para os agentes da
segurança que vão chamá-los para as aulas, pelos professores estaduais que dão aula,
bem como dão suporte para os alunos que precisam.
Outra interlocutora importante no IPCG foi a psicóloga Juliana. Ela é a mais
velha das psicólogas entrevistadas, tendo cerca de 40 anos. Possui a pele parda, um
corpo magro. Pareceu-me ser uma pessoa “meio fechada” e de “poucas palavras”, algo
que pouco se alterou durante as entrevistas. Juliana se considera uma mulher masculina
que não gosta muito de usar joias ou coisas femininas. Ela é a que está há mais tempo,
tendo entrado na Agepen em 1996, no sistema penitenciário. Passou por todas as áreas
do sistema sul-mato-grossense, desde o trabalho com os menores infratores, passando
por prisões femininas, até os semiabertos. Atualmente alocada no Penal, Juliana foi
importante para uma compreensão mais ampla da Agepen, assim como as diferenças
entre prisões femininas e masculinas.
As tarefas de Juliana, durante a pesquisa no IPCG, consistiam em atender os
internos que reprovaram no exame criminológico para a progressão de regime. Isso
significa que na medida em que os internos vão terminando sua sentença eles podem
requerer a progressão de seu regime para um mais brando, como o semiaberto, onde o
mesmo pode sair para trabalhar de dia e apenas voltar à noite para dormir no presídio.
Nesse requerimento, o juiz pode pedir para um psicólogo de fora da Agepen realizar um
exame criminológico que atestaria se o interno tem condições ou não de ir para outro
regime. Além disso, Juliana atendia aos internos que eram encaminhados pelo setor de
saúde por questões como depressão ou alguma outra doença causada pelo
encarceramento.
Depois dos primeiros contatos com Juliana, busquei me aproximar de um
funcionário da área de Administração e Finança. Acabei por voltar a encontrar com
Patrícia, que já trabalhava nesse setor há um tempo, que se mostrou disponível para a
pesquisa. Patrícia é a mais jovem das interlocutoras que eu tive contato. Ela está na
um direito dos dependentes, caso o interno tenha um amante com filho a situação se complica e o preso
nem fica sabendo, tem mulher aqui que pede e ele nem vai saber, pois não precisa da assinatura dele.
108
De acordo com a LEP, seção 5 que dispõe sobre “Assistência Educacional”, todo o preso tem direito a
uma educação enquanto cumpre sua sentença. Essa educação fica de acordo com a capacidade e
disponibilidade da instituição penal. No IPCG, logo que entram no sistema, pergunta-se para o interno se
ele tem interesse em estudar.
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casa dos 30 anos, apesar disso entrou no mesmo ano de Maria, em 2005. Possui pele
parda e uma baixa estatura, sua primeira lotação pela Agepen foi na escola de formação
dos agentes penitenciários. Após o período na escola, a mesma ficou enjoada de ficar
apenas na formação e teve curiosidade de ver como funcionava o regime fechado, com
isso Patrícia pediu transferência para a Máxima. Devido à falta de vagas em sua área de
Administração e Finança, ela foi encaminhada para o Penal. Após um período na
administração, ela foi chamada para trabalhar com o diretor, na condição de sua
assistente, função que desempenhava até o final da pesquisa de campo.
Antes de ser alocada como secretária do diretor, Patrícia havia trabalhado na
escola de educação penal onde se treinam os futuros agentes penitenciários da Agepen.
Vindo a ser a administradora do Penal, ela era responsável pela água, luz, os alimentos
dos presos, combustível das viaturas, papéis para os funcionários, tudo, a unidade tem
que tá funcionando. Se queimar uma lâmpada tem que ter lâmpada. Administrar
patrimônio, bens de consumo, bens de expediente, que não podem faltar. Até quando foi
trabalhar com o diretor, função esta que a tornou responsável por sua agenda, além de
auxiliá-lo em outras funções.
Durante a conversa que tive com Juliana, fui informado de um grupo de detentos
homossexuais. Ali, discutiam-se questões de gênero, a partir da organização da
psicóloga Adriana. Isso me interessou bastante e decidi procurar por Adriana. Em
função da incompatibilidade de horários, isso não foi possível. Quando estava tudo
certo para nossa conversa mais reservada, surgiu a oportunidade de um encontro com
um agente da área de Segurança e Custódia. Essa pessoa era José. Eu precisava
aproveitar este momento, pois era sempre complicado conseguir espaço para conversar
com eles.
José é o único homem e funcionário do setor de Segurança e Custódia a que tive
acesso. Ele é o mais novo dentre todos os agentes, e tinha entrado na Agepen em 2015.
José é branco, de estatura média, está numa faixa etária de menos de 20 anos. Diferente
das outras agentes, ele é o que possuía menos experiência no trabalho em presídio,
apenas tendo estagiado na Máxima durante um período de sua formação, na sequência
foi agente de Segurança e Custódia do Penal. José se considera bem profissional e está
muito preocupado com as questões legais dos detentos e de suas funções, parte disso
vem de sua formação em direito. Sendo o único homem agente penitenciário a ser
entrevistado, sua perspectiva se mostra interessante para o foco da dissertação em se
pensar questões de masculinidades por parte também da equipe dirigente.
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Ao conhecer José, ele estava trabalhando no setor de trabalho do Penal. Setor
esse responsável pela a organização de todas as 400 vagas disponíveis para o trabalho
dos internos dentro da instituição, sua parte específica era sobre a remissão da pena que
os internos conseguem a partir do trabalho. Essa posição que ocupava seria do setor de
Administração e Finanças, mas o mesmo havia sido cedido para essa função devido à
falta de agentes penitenciários. Esse novo cargo que José ocupava era bem recente em
sua rotina, estando nele há apenas um mês, quando nos falamos. Anteriormente, ele
ocupava o cargo objeto de seu concurso, desempenhando a função de plantonista109.
José conta que não gostou muito da sua mudança, segundo ele: não escolhi vir para cá,
fui remanejado por meio de uma determinação e a gente como diz, acata né.
Meu último contato mais reservado com a equipe de agentes foi com a psicóloga
Adriana. Adriana é jovem, aproxima-se da idade de Maria para menos. Ela é loira, de
estatura média e muito simpática. Ao me receber, já foi me oferecendo um copo de água
ou café, que tinha em sua sala. Diferente das salas dos outros funcionários, a sala de
Adriana é a que possuía mais “vida”, parecendo mais aconchegante que as demais,
devido a seus jarros de plantas bem cuidados, decoração com crochês, além de sua mesa
estar muito bem organizada, comparada com as outras que pude observar. Durante
nossa conversa, Adriana se mostrou como a “mais feminina” de todas as funcionárias
que entrevistei, fazendo questão de acentuar que trabalhar em presídio em nada
mudava a sua feminilidade.
Adriana possui o mesmo cargo que Juliana, sendo as duas psicólogas do Penal.
Apesar de fazerem o trabalho de acompanhamento em comum, caso os profissionais da
saúde encaminhem, ela difere da função de sua colega na medida em que está
encarregada do processo de inclusão dos internos que estão chegando no presídio. Além
disso, ela possui dois grupos de “apoio”, um que já tinha 6 meses, que era o grupo de
dependentes químicos, no qual se encontravam uma vez por semana. O segundo grupo,
com os detentos homossexuais, era mais recente, tendo apenas dois meses de encontros,
sendo ele uma vez por mês.
A partir desses interlocutores, acredito que seja possível aproximar os meus
interesses acadêmicos das experiências vividas por esses sujeitos no Penal. Assim, tal
aproximação compõe uma das muitas perspectivas de como funciona, além de
possibilitar o entendimento do ambiente prisional de Mato Grosso do Sul. Optei por
109
Os plantonistas possuem horários de 24 por 72, 24 horas de trabalho e 3 dias de folgas.
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dividir em duas partes (O Penal em si e como o Gênero se manifesta no presídio). Aqui,
acho importante apontar que essa é apenas uma divisão didática para o leitor, pois
durante as falas e as vivências desses sujeitos não existe essa separação, mas sim uma
inter-relação dos diversos temas.
2.1 O Penal em si
110
Ver em Anexo V a logomarca da Agepen.
111
No Anexo VI temos todos os uniformes, que devem ser da cor preta, mas estão brancos por conta das
medidas.
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diferença das mulheres está em sua camisa, que busca demarcar seu corpo por meio da
camisa baby look (Fig.25) ao invés da camisa polo que os homens utilizam (Fig.23). Os
demais setores de Administração e Assistência ao interno possuem o mesmo uniforme,
apenas com sapato social (Fig. 51, 52, 54 e 55) ao invés do coturno, e as mulheres
utilizam a camisete sem manga (Fig.07) ou camisete ¾ (Fig.12) e os homens camisa de
manga curta ou longa (Fig. 09 e 10). Outra variação para as mulheres se dá por um
uniforme particular para as gestantes (Fig. 16).
Além dessa diferença que os uniformes trazem de acordo com o gênero e os
setores, a cor é algo que se destaca bastante, sobretudo pela facilidade de perceber a
diferenciação e identificação dos agentes nos presídios. A escolha do preto enquanto cor
principal do uniforme tem suas questões, como mostra John Harvey, que fez um estudo
histórico-cultural a partir da utilização da cor preta nas roupas.
Página 81 de 159
Isto posto, entendo como importante destacar as cores, os símbolos e até mesmo
as roupas112 dos agentes da Agepen que estaremos conversando mais à frente. Pois,
apesar dessas coisas poderem ser vistas, às vezes, como supérfluas, por certos
sociólogos, antropólogos (Miller, 2013, p.79) ou demais pesquisadores sociais, acredito
que devemos entender essas materialidades que nos rodeiam como parte constitutiva das
experiências dos sujeitos de ser e estar dentro e fora do Penal. Sujeitos esses que não
são apenas produzidos pelos artefatos que usam e os usam, mas sim também pelo
espaço que ocupam.
112
Que podemos até mesmo chegar a entender enquanto próteses de gênero, no sentido que o Preciado
(2000) dá para os banheiros.
Página 82 de 159
na prática do presídio. Marcos Santos chama atenção para essa questão que existe, pois
no Brasil se tem uma “fé legislativa”, que para ele significa “crença ingênua em que
para se ter garantidos direitos [...] basta sancionar uma lei [...] para figurar no aparato
utilizado pelo Estado” (FERREIRA-SANTOS, 2005, p.200). Essas duas ideias, do
marco inicial e da diferença entra a prática e a teoria, é muito bem expressa por Adriana
comentando sobre sua entrada:
113
No capítulo III trabalharemos com esses dados e com os internos mais pormenorizadamente.
114
A figura 1 na página 43 da dissertação dá uma dimensão do tamanho da Máxima em relação ao IPCG.
Página 83 de 159
internos, apesar de terem certa voz enquanto massa, quase sempre precisavam respeitar
e obedecer às regras do presídio. Todas essas questões não pareciam presentes nos
outros presídios estudados, mas claramente apareciam no Penal em oposição à Máxima.
Ela surge no contexto das falas enquanto um contraponto e quase como demarcação de
um presídio ruim brasileiro, mas que ainda assim seria muito comum, diferente do
IPCG que se mostraria como um presídio de excelência e de poucos exemplos na
literatura acadêmica.
Nesse sentido, os agentes que lá chegaram para trabalhar ou estagiar (José,
Maria, Juliana e Patrícia), antes de serem transferidos para o IPCG, sempre quando
buscavam responder uma perguntar ou pensar sobre o Penal, usavam a Máxima como
uma referência de como as coisas seriam diferentes e piores se fossem por lá. Como
José fez questão de pontuar, o Penal é uma cadeia um pouco mais tranquila, devido a
ser uma cadeia para presos de segurança média, diferente da Máxima, que o próprio
apelido traz: seria um lugar para os presos de segurança máxima. Pelas oportunidades
de trabalho e estudos, muitos internos que querem apenas pagar a pena deles
tranquilamente têm o interesse de ficar aqui na unidade penal, ele acha interessante.
Logo, no momento em que o interno apresenta problemas de comportamento,
persistindo mesmo depois de ser transferido para cela forte, o remanejamento para a
Máxima surge como possível punição maior, a partir da ameaça dos agentes para que
ele altere esse comportamento, ou ocorrerá a transferência, e o preso não quer isso.
José reconhece que lá [a Máxima] é uma cadeia bem mais violenta, é uma
cadeia com tratamento diferente [...] O ambiente é mais pesado. Muito mais pesado e
muito mais agressivo. No sentido do conceito de cadeias dominadas trazido por Fábio
Mallart (2015) ou das prisões de Karina Biondi (2010) e Natalia Padovani (2010), a
Máxima está bem mais próxima dessa realidade que o Penal. Nesse sentido, o agente
reconhece que a Máxima é uma cadeia tomada pelo comando, tomada totalmente, o
respeito não tem, não é algo que os internos deveriam esconder, é uma forma de
demonstrar seu poder, então eles são mais diretos, demonstram mais. Lá na máxima
eles fazem questão de demonstrar, que são faccionados. No PTram115 também. Para os
agentes de segurança, o fato de a facção ter esse controle na instituição penal altera o
comportamento dos membros da massa que são faccionados, eles possuem um
comportamento mais agressivo, mais insubordinado. Eu acredito que é por eles
115
Presídio de trânsito também mencionado no primeiro capítulo.
Página 84 de 159
acharem que têm a proteção da facção. Essa comparação entre Máxima e Penal foi
percebida por Mallart (2015) também em seu campo nas casas onde os menores ficavam
em São Paulo. Essa comparação para o autor é explicada da seguinte forma:
116
Essa expressão é utilizada pelos menores infratores em São Paulo, algo êmico desse campo, no Penal
o conceito que se aproxima é o que alguns presos chamam de os policia para tratar dos agentes que
administram e cuidam do presídio.
117
De acordo com os agentes, o IPCG seria o único presídio do estado do Mato Grosso do Sul a receber
esses delitos.
118
É uma espécie de compartimento ou jaula, costumeiro de fazendas, onde o gado é examinado, marcado
ou recebe algum tratamento veterinário.
Página 85 de 159
Maria demonstra como o Penal se apresentaria como um local mais plausível
para realização dessa tarefa. Ela diz: acredito que aqui, você ainda consegue mudar
pelo menos uma pessoa, você consegue. Fazer seu trabalho. Na Máxima, os agentes de
Assistência e Perícia ficavam próximos à cela dos doentes. Maria diz que cansou de ver
enforcados, chegava lá e o preso tava lá enforcado. A agente comenta sobre como
dependendo da causa morte dá problema, se ele não tinha problema de saúde, se ele
não tinha nada como é que morreu? Que é o caso dessas gatorades119. Devido às
características da Máxima, eles chegaram a adotar o sistema de Regime Disciplina
Diferenciado (RDD)120 em seu último andar, lugar esse em que ficam os internos que
têm problemas com os outros presos e vai ser morto se tiver junto, os menos perigosos
seriam transferidos para o Penal, para resguardar sua segurança.
A agente Patrícia concorda com Maria a respeito da realidade do Penal dizendo
que o Penal tem essa caraterística: um número maior de presos soltos, né. Então é
muito preso trabalhando e muito preso estudando, então você consegue ver esse
trabalho sendo desenvolvido que é o que alegra. Até mesmo a questão da vida dos
internos parece, de certa forma, ser vista diferente entre os presídios, onde na Máxima é
visto como algo mais recorrente e esperado devido à forma de organização da massa
carcerária e às próprias características da mesma de ter internos de maior
periculosidade. Juliana traz uma questão interessante através do relato:
119
Gatorades é um termo êmico para outra forma de matar entre eles, é como uma forma de execução
mais “discreta” de outros internos, segundo a própria Maria. Até a forma de matar deles, agora, é
diferente e diz antes era mais arma branca, agora eles dão o tal Gatorade, a pessoa passa mal, tipo uma
overdose, um monte de droga junto, faz ele tomar na marra, e aí ele passa mal. Acelera o batimento
cardíaco.
120
RDD é a sigla de Regime Disciplina Diferenciado, motivado pela organização das facções criminosas
que atuavam nos presídios em São Paulo (PCC) e no Rio de Janeiro (CV) foi elaborada a Lei nº 10.792
que buscou alterar a LEP em vias de fazer um regime diferente para determinados internos, onde ele fica
em uma cela individual, com direito a banho de sol por apenas 2 horas diárias, são direcionadas aos
internos que apresentam alto risco para ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
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estava na arquitetura inicial do presídio, ela não existia. Muitas
coisas aqui não existiam, até o nosso refeitório, hoje ele está bonito,
tá decente. Mas teve época já que era um horror, era feio, manchado,
sujo, então assim você quando melhorar uma estrutura você está
dando uma valorização, dá um outro olhar, modifica
comportamentos. Não só dos internos como dos funcionários. Os
funcionários se sentem valorizados, acolhidos (Grifos meus).
121
Apesar da mistura de modelos, a parte dos internos estaria mais próxima do estilo pavilhonar. Nesse
estilo os pavilhões se fecham em quadrados com uma abertura no meio para sol, os solários, que são
rodeados de celas para múltiplos internos.
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5) da assistência e perícia duas psicólogas e uma assistente social. Cada área possuiria
sua função, como brevemente demonstrado acima, dentro do sistema penitenciário sul-
mato-grossense como um todo.
O primeiro setor é o de Administração e Finanças, setor esse de Patrícia. É uma
atividade de nível superior das áreas de direito, administração, economia, ciências
contábeis, análise de sistemas ou estatísticas. Responsável pelos serviços de
administração dos recursos humanos, materiais e patrimoniais, orçamentários e
financeiros, inspeção, supervisão, fiscalização de serviços terceirizados contratos,
controle e acompanhamento de contratos e convênios, elaboração de parecer, análises,
estudos, coletas de informações, orientação, divulgação dentro de sua área de atuação.
Esse setor no IPCG é o que está mais distante dos detentos e da prisão em si, sendo suas
responsabilidades mais relacionadas com questões administrativas e burocráticas do
funcionamento do presídio, tendo contato apenas com os internos de maneira indireta e,
às vezes, nas questões jurídicas dos respectivos casos de cada interno.
O segundo setor é o de Assistência e Perícia, setor esse de Maria, Juliana e
Adriana. Ele é composto de profissionais de ensino superior das áreas de psicologia,
serviço social, pedagogia, direito ou ciências sociais. São responsáveis pelos serviços de
realização de exames gerais, pelo criminológico, por perícias, formulação e
acompanhamento de programas de tratamento, elaboração de prognósticos, emissão de
pareceres, sempre tendo em vista os limites legais e regimentais da organização
penitenciária. Dentro da unidade penal, essa seria o setor que tem o contato mais
“íntimo” com os internos, aquele que mais escuta suas demandas e que trabalha
diretamente com eles, individualmente ou em grupos pequenos. Para Foucault (2012),
nesse setor estaria a legitimidade científica do aparelho penal no sentido de uma
“recuperação” ou “ressocialização” do interno para a volta do convívio em sociedade, o
que seria uma das tarefas fundadoras da instituição prisional.
O terceiro e último setor é a área de Segurança e Custódia, setor em que está o
José. Os requisitos ainda são de ensino superior do funcionário, mas sem nenhuma
especificação de algum curso superior em especial. Eles são responsáveis pela
vigilância, segurança e disciplina penitenciárias, devendo atender, orientar e
acompanhar os presos nos diversos regimes de execução penal, tudo de acordo com a
legislação, regimentos, ordens e programas de tratamento em vigor. No IPCG, essa área
é a que comporta a maior concentração de profissionais do sexo masculino e onde há
um investimento mais ostensivo na manifestação de uma masculinidade hegemônica.
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Eles são os “protetores da cadeia”, os pais da instituição. Muitos dos profissionais desse
segmento se consideram como os mais importantes, o que gera conflito com as outras
duas áreas mencionadas acima. Numa aproximação com meu tema, é interessante frisar
que o único homem funcionário entrevistado é desse setor.
Há outra particularidade do meu campo que gostaria de destacar. Essa diz
respeito à conceituação de agente penitenciário, devido à compreensão que a Agepen
elaborou da carreira do agente e à mencionada divisão de setores, entre os três acima,
temos a diferenciação da profissão de agente penitenciário. Em outras pesquisas
(Barbosa, 2005; Coelho, 2005; Moraes, 2005; Castro e Silva, 200; Correia, 2006;
Lourenço, 2012; Siqueira, 2016) realizadas sobre agentes penitenciários, os mesmos só
são entendidos como o que seria o terceiro setor Segurança e Custódia. Nessas outras
prisões, as funções de Administração e Finanças e Assistência e Perícia não são
entendidas enquanto agentes penitenciários propriamente. Às vezes, eles nem têm
vínculo empregatício com a autarquia responsável pelo sistema penal, assim como os
médicos e professores que são cedidos122 pelo Estado para trabalharem lá.
Esse processo que consolidou a carreira de agente penitenciário na Agepen veio
a partir de diversos decretos e leis123 que buscam regularizar e unificar a profissão. A
agente penitenciária Patrícia, do setor de Administração e Finanças, que passou por
esses momentos comenta que minha turma a Administração e Finanças teve a mesmice
formação de uma custódia. A formação dos agentes na escola de formação em
determinado momento era junta para todos os agentes, mas isso foi mudando de acordo
com os anos, buscando a especialização dos setores, ainda que todos eles continuem na
mesma carreira de agente penitenciário, ela comenta que isso foi a minha turma de
2005, hoje o concurso focado na área.
Por meio dessa especialização, cada vez mais, os setores foram se distanciando
por meio de saberes124 diferentes. E essa divisão burocrática e institucional que buscou
122
Cedidos respectivamente pela secretaria de saúde e educação do estado.
123
Na pesquisa documental, constatei que essa mudança se inicia pelo decreto nº 10.237 de 2001, que
transformou todos os funcionários em agentes de segurança, após isso temos a lei nº 2.518 de 2002 em
que se instituiu a carreira de segurança penitenciária, e pôr fim a lei nº 4.490 de 2014 que se traz o cargo
de agente penitenciário estadual, divido nos três setores comentados, tendo eles a proporção de 70% de
segurança e custódia, 10% de assistência e perícia e 20% de administração e finanças, lei essa vigente no
decorrer da pesquisa de campo.
124
Aqui, entendemos saber pela conceituação dada por Foucault que diz: “um saber é aquilo de que
podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: (...) um saber é, também, o
espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; (...)
um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos
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especializar os trabalhos dos agentes não ocorreu sem disputas internas de poder, pois
como sabemos “não é possível que um poder se exerça sem saber, não é possível que o
saber não engendre poder” (FOUCAULT, 2017, p.231). Para observamos essa relação
de poder125 entre os agentes, primeiro é preciso pontuar em que sentido Foucault utiliza
esse conceito. Para o autor, o poder não possui “um centro de onde emana”, sua análise
está empenhada em mostrar a capilarização do poder no todo social. Ele “está em toda
parte, não porque engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares [...] se exerce a
partir de inúmeros pontos” (2017, p.101-102). Assim, no dia a dia dos agentes em loco,
esse poder capilarizado cria relações que aproximam e afastam os sujeitos. Por meio do
confronto, a partir do ideal de prisão, as três áreas concorrem por espaço nas decisões
que movem o presídio e a Agepen como um todo. Tal confronto se apresenta nos
discursos dos funcionários de forma indireta ou direta, algumas tratando das questões
dentro do próprio Penal e outras do sindicato que representa a categoria dos agentes.
Essa relação de poder se mostra mais acirrada entre os setores da Segurança e
Custódia com o setor de Assistência e Perícia. De acordo com a psicóloga Juliana, a ala
psicossocial se torna alvo de discriminações por parte do setor da segurança, havia
muito atrito entre essas áreas segurança, administrativo e assistência e perícia. A
imagem que os psicólogos, segundo ela, passam para os agentes de segurança é como
aqueles que passavam a mão na cabeça do preso [...] visto como se nosso trabalho
fosse inútil. Dessa forma, as agentes penitenciárias que eram psicólogas e assistentes
sociais escutavam “Por que que tem que ter psicólogo e assistente social dentro da
cadeia?”, [...]. Não há um entendimento do nosso trabalho.
Nesse sentido, a disputa entre essas duas áreas parece compreender a finalidade
institucional da prisão. De modo discreto, é a discussão clássica e o debate político e
teórico que Foucault trata em Vigiar e Punir nas partes dois e três. Onde temos de um
lado a questão da disciplina representada pelo setor de assistência e perícia, lado este
responsável pela instituição ressocializadora dos internos do lugar, no qual eles
deveriam ir para se readequar à vida em sociedade, voltando como um respeitador das
aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; (...)” (2017, p.219-220). Nesse sentido, o que busco
trazer aqui é que determinados setores possuem saberes distintos criando uma relação conflituosa sobre o
conceito e a funcionalidade da instituição prisional.
125
Como mencionei anteriormente, notei a separação entre os setores primeiramente no horário do
almoço, supondo ser uma questão de gênero. Apesar desse equívoco, a separação de setores acaba por
formular e produzir também questões de gênero dentro do Penal, pois como Foucault comenta “as
relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações”
(2017, p.102).
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leis, isto é, como um cidadão, de corpo dócil, e um trabalhador. Do outro lado, temos a
punição incorporada pelos agentes de Segurança e Custódia em que se observa o lado
punitivo da prisão e uma percepção de que o detento deve pagar pelo seu delito
cometido, ele deve ser punido pelo mal que causou à sociedade. Vejamos a fala da
agente Patrícia, de Administração e Finanças, sobre os custódias:
Como comentei acima, essa relação de poder é instituída pela Agepen, então não
aparece apenas no IPCG. Mas em todo o estado de Mato Grosso do Sul se encontra essa
relação nos setores. Adriana, que foi psicóloga na penitenciária estadual de Dourados
(PED), no interior do estado, antes de vir para o IPCG, comenta sobre isso ao ser
perguntada se existia essa questão onde trabalhava e respondeu que tem também. Isso
existe, a separação de áreas é bem forte. E algo que nos prejudica, até mesmo as lutas
da categoria são afetadas por essa questão, quando algumas lutas da classe, o pessoal
da segurança é mais forte. E eles acabam prevalecendo o que eles querem. Fiquei
curioso se essa relação de força seria em razão do quantitativo maior de agentes de
Segurança e Custódia em relação às outras áreas. Nesse sentido, pergunto à agente a
respeito e ela responde: Nãoo, é porque a segurança é vista como mais importante. A
segurança ela tem mais prioridade. Isso se aplica, inclusive, em relação ao setor da
Administração e Finanças que não lida com os internos diretamente, como ela afirma,
os agentes da segurança têm peso maior.
Esses saberes, que filiam os agentes de segurança ao ideal de punição, acabam
também por formar a sua atuação profissional e a identidade desses sujeitos. Nesse
sentido, Juliana mostra como se dá essa incorporação por parte dos sujeitos.
[...] A gente até sente com relação à segurança, muitos deles são
secos, são distantes, pouco acessíveis. Eles incorporam essa questão
da segurança, e agem assim com um distanciamento. [...]. Alguns nos
discriminam, por essa questão de achar que nosso trabalho é
desnecessário. Ou por achar que a gente só vê o lado do interno. Eles
acham que é preso aí não tem direito, preso é preso.
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Essa relação de poder e embate entre os setores se mostra como uma disputa
discursiva em que cada setor busca legitimar seu saber como hegemônico no presídio
em vias de determinar sua função e a sua própria razão de existir. O que Juliana nos traz
está no cerne dessa disputa entre os saberes que buscam punir os sujeitos e os que
buscam disciplinar. Pensando a partir da linha punitivista, o trabalho ressocializador das
psicólogas e assistentes sociais não seria desnecessário?
Foucault, em sua história da prisão, traça um processo que se inicia próximo do
século XVIII em que ocorre a mudança dos suplícios dos corpos dos condenados para a
formação da punição generalizada pela internação dos mesmos na instituição prisional.
Após isso, temos o momento em que essa instituição começa a formar seu caráter
disciplinar na busca para tornar os corpos dóceis126. Assim, “a passagem da punição à
vigilância [...], momento em que se percebeu ser, segundo a economia do poder, mais
eficaz e mais rentável vigiar que punir” (FOUCAULT, 2017 p.215). Nessa última etapa,
que os saberes médicos se juntariam a formas de se criar uma técnica-política para
docilização dos corpos, os saberes das humanidades se colocam a serviço da política e
da técnica. Consequentemente, percebe-se a “importância” das assistentes sociais e
psicólogas no Penal, por exemplo.
Esse momento acima, presente no primeiro volume de História da sexualidade
de Foucault, será tratado como um dos polos que constituíram o desenvolvimento e a
organização do poder sobre a vida (2017, p.150). A prisão se mostra como uma das
instituições desse novo momento da sociedade moderna, “a era de um ‘biopoder’”, que
se mostra a partir da biopolítica dos corpos dos internos. Para o autor, essa fase da
biopolítica:
126
O autor entende a disciplina dos corpos nesse período em que o corpo “pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (2012, p.132) os corpos dóceis pela disciplina
seriam corpos em que se “aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminuem
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (2012, p.133).
Página 92 de 159
Aqui se entende o que Foucault busca trazer para seus leitores, mas como
apresentei no início da dissertação, aqui pretendo não apenas utilizar as teorias clássicas
para observar a realidade prisional vista no Penal de modo a reafirmar as mesmas, mas
busco demonstrar os limites desses autores para a realidade brasileira. Por exemplo, o
historiador italiano Domenico Losurdo (2011), que se aproxima das críticas de Luciano
Oliveira (2011), argumenta que a análise foucaultiana permanece presa ao continente
europeu, não tratando do resto mundo e muito menos das ex-colônias e do regime
colonial (LOSURDO, 2011, p.228). Seguindo as ideias dos críticos apresentados,
Foucault é desvendado como um pensador eurocêntrico, e apesar de suas análises
trazerem questões interessantes e que se aplicam em certo sentido à realidade
brasileira127, em outros ele se apresenta de pouca serventia para a compreensão da
realidade para países como o Brasil.
A realidade brasileira se mostra diferente do momento de uma sociedade
disciplinar nos moldes foucaultianos. Voltemos à última fala da agente Juliana. No final
de seu comentário, a agente nos diz que eles acham que quem é preso aí não tem
direito, preso é preso. O eles, aqui, se trata dos agentes de Segurança e Custódia, que
possuem uma visão punitivista. Na obra de Foucault, a visão punitivista ou até mesmo a
visão do suplício, teria sido “superada” para dar lugar à sociedade da disciplina, que
busca não mais destruir os corpos pelo suplício, nem punir demasiadamente, ao invés de
tornar os corpos dóceis. Essa realidade pode se aplicar aos países europeus, mas a
mesma não está presente no Penal e nem mesmo em outras regiões do Brasil, segundo
as pesquisas acessadas.
A ideia, acima demonstrada pelos agentes de segurança, que acham que preso aí
não tem direito, preso é preso, é uma visão presente na sociedade brasileira. Essa visão
está dentro do debate a respeito dos direitos humanos para os presos. O simples fato de
existir esse debate já começa a nos afastar da análise foucaultiana. Teresa Caldeira nos
diz que os direitos humanos, ou qualquer ideia de um direito básico para os internos,
foram transformados, nas discussões sobre criminalidade, em ‘privilégios de bandidos’
que devem ser combatidos por homens de bem (1991, p.162). Uma completa oposição
à lógica que buscava ideias de “ressocialização”, ou disciplina dos corpos, presentes no
127
A obra de Foucault é importante para compreender os princípios legais presentes na LEP e em outras
normas, apesar de termos visto quanto eles se distanciam da realidade, ainda assim servem como guia
para a ação dos sujeitos. A obra dele é fundamental também para entender os discursos do setor de
Assistência e Perícia, que muito se aproximam das ideias de uma sociedade disciplinada, exposta pelo
autor.
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discurso das agentes de Assistência e Perícia. Tentar, de alguma forma, argumentar pela
melhoria de qualidade do tratamento dos internos que deverão voltar para sociedade tem
se mostrado uma ação exígua. Para Caldeira, esses discursos contra os direitos humanos
buscam
128
Frase essa que 57% da população concordava numa pesquisa realizada, a pedido do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP), em 2016 para 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
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eles têm a visão de polícia mesmo entendeu? E ele esquece, não é que
ele esquece, é que a gente tem essa coisa que ele tem que ir embora
uma hora. O custódio também sabe disso, mas como custódio fica na
ponta da lança tinha que ser ele para cada 5 presos e tá ele para cada
500, ele naturalmente é endurecido. Porque ele tem que cuidar da
disciplina, tem que cuidar para o cara não fugir, pro cara não passar
nada.
Patrícia parece reconhecer que a função de controle que, por meio da disciplina,
é algo necessário para o agente da segurança. A ideia presente na expressão visão de
polícia tem a ver com os discursos criados para a relação que os policiais deveriam ter
com os “bandidos” ou “criminosos”. Nesse sentido, a polícia brasileira trabalha de
forma a vê-los como inimigos do Estado, como se houvesse um descontrole da
violência policial, como argumenta Antônio Pinheiro, quando diz que o uso da violência
acaba por fugir dos códigos formalizados para a conduta policial, se orientando mais
para o imaginário popular sobre a figura do “criminoso”, que não garantem o controle e
autocontrole no uso da violência (2013, p.327). Tal imaginário popular influencia até
mesmo os agentes que não são da segurança, como Patrícia que, apesar de ser da
Administração e Finanças, a área que menos se aproximaria do ideal da segurança,
incorpora uma forma organizacional mais militaresca, ao dizer que a gente aprendeu a
obedecer a quem tá falando [...] você precisa acatar, não precisa retrucar.
Assim, vimos como as relações de poder se dão no Penal a partir de sua
estrutura organizacional. Essas relações não aparecem só pelo ambiente prisional, mas
sim por discursos e saberes que estão muito longe da realidade do dia a dia na prisão.
Algo diferente acontece com os gêneros, que apesar de serem influenciados, também
por uma realidade exterior à prisão, parecem encontrar nela mesmo um terreno fértil
para se constituírem.
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gêneros. No primeiro modelo, teríamos a sexualidade como algo natural e um “material
básico” no qual “a cultura trabalha, uma categoria naturalizada que permanece fechada
à investigação e à análise” (VANCE, 1995, p.18). Nesse modelo, a sexualidade e o
gênero muitas vezes se “misturam” e até mesmo se fundem, esse modelo é um que
persistiu em boa parte da antropologia clássica (VANCE, 1995, p.20) e ainda disputa a
posição de saber hegemônico na área.
No segundo modelo, o conceito de gênero está presente na ideia da construção
social (VANCE, 1995, p.16). Nesse quadro, temos uma separação do sexo e do gênero,
no qual o primeiro trataria da diferença sexual biológica dos corpos (Macho e Fêmea) e
o segundo os “papéis” 129 sociais de gênero (Homem e Mulher), dessa forma temos um
que seria o “natural” e fixo e outro como histórico-cultural e mutável. Movimento
parecido foi feito também por Gayle Rubin (1992), para a autora apesar do dimorfismo
sexual e do gênero “serem relacionados, não são a mesma coisa, e eles formam a base
de duas arenas distintas da prática social.” (1992, p.42). A autora modificou a própria
posição que tinha em seu trabalho anterior sobre “O tráfico de mulheres”, ela argumenta
que seria “essencial separar analiticamente o gênero da sexualidade” (1992, p.42).
Uma outra autora fundamental para compreensão da forma que utilizo o conceito
de gênero, é Joan Scott, no texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”.
Apesar de o texto ser uma discussão da utilização da categoria gênero para
historiografia de 1986, esse texto se apresenta como uma marco dos estudos de gênero
pelas posições tomadas pela a autora. Depois de uma breve análise histórica de como o
conceito vinha sendo utilizado pelas feministas, tanto as marxistas, teóricas do
patriarcado, quanto na teoria psicanalítica de cunho lacaniano, a parte que mais interessa
a essa dissertação é a que informa que “precisamos rejeitar o caráter fixo e permanente
da oposição binária, precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autêntica
dos termos da diferença sexual.” (1986, p.1065). Nesse sentido, trabalho com as
masculinidades e feminilidades não como uma simples oposição binária fixa e
constante, mas sim como múltiplas posições ocupadas e performada pelos sujeitos nas
diversas relações que perpassaram o gênero no Penal.
Depois de olhar as contribuições de Vance, Rubin e Scott, temos as ideias da
filosofa Judith Butler que, como mencionado, é um dos referenciais teóricos que me
129
Para uma crítica à noção de papéis como forma de entender a diferença dos corpos generificados, ver
Guacira Louro (2007).
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guia. Butler (2018), provavelmente, seria enquadrada no modelo de construtivismo
social radical de Vance, ela questiona a separação entre sexo e gênero dos modelos de
construção social, a partir da desconfiança que o sexo traria para a natureza e assim
como o gênero para a cultura. Para Butler, o sexo não seria anterior ao gênero, pois
tanto o corpo/sexo é instituído a partir dos discursos e das práticas reguladoras e não
apenas determinados pela natureza pré-discursiva às culturas específicas. Em suas
palavras, ela nos diz:
130
Em Microfísica do Poder, Foucault descreve dispositivo como “um conjunto decididamente
heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas [Por exemplo, os decretos dos uniformes femininos e masculinos]
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”
(FOUCAULT, 2017, p.364).
131
Butler descreve como “Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos,
no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações
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masculinos e os femininos hegemônicos. Ela é um corte de costura no uniforme das
agentes para realçar as curvaturas do corpo feminino, está nas agentes de segurança ao
serem obrigadas a ficar na portaria porque não é lugar de mulher os pavilhões, é um
coturno e uma cor dos agentes de segurança que pretendem realçar atributos de uma
suposta virilidade, observar-se isso, por exemplo, quando o pesquisador pergunta a
respeito da arquitetura masculinizada e ser respondido com o mesmo significado sobre
uma arquitetura do poder. Seria o poder, então, algo masculino?
Entramos nas falas das agentes para ver de que forma se dá a produção desses
corpos generificados no espaço do Penal. Pensaremos primeiro nos locais que as
mulheres devem ficar e na preservação do binarismo que decorre disso, depois iremos
observar como se agenciam as múltiplas feminilidades e masculinidades das agentes
nesse ambiente, após iremos observar como se dá uma espécie de resistência
generificada num espaço masculino132 e quais são as imagens da mulher no presídio.
manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de que o corpo
gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários
atos que constituem sua realidade” (BUTLER, 2016, p.235, grifo meu).
132
Além de ser um presídio feito para “homens”, a profissão de agente penitenciário é considerada
masculinizada, pois possui apenas 17,5% mulheres no país segundo o Infopen 2016.
133
Apropriando-se do conceito foucaultiano de técnica, Paul Preciado a utiliza como “um conjunto de
dispositivos complexos de poder e de saber que integra os instrumentos e os textos, os discursos e os
regimes do corpo, as leis e as regras para [...] a regulação dos enunciados de verdade” (2014, p.154).
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“verdades” sobre os corpos, mas que produzem o gênero dos corpos que nomeiam,
construindo “barreiras biológicas” binárias que não podem ser transpostas em primeira
instância (PRECIADO, 2014). Nas buscas por enunciados da “verdade” do sexo/gênero
que existe nessa separação, trago o caso de Alexa (uma interna trans do Penal) como
fato emblemático dessa questão134.
134
Aqui trago esse pequeno relato de meu campo, para pensar a questão trans e como ela apresenta a
narrativa do gênero e suas limitações de forma latente para o ambiente prisional. Para uma discussão
aprofundada da questão ver Marcio Zamboni (2017) e Guilherme Boldrin (2017).
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cargos, mas os que mais se mostraram presentes são os do setor de Segurança e
Custódia, na direção e nas chefias de segurança/disciplina. Na direção, os presídios
masculinos teriam diretores homens e os femininos diretoras mulheres. Juliana comenta
que, apesar de não ser uma regra e não está legalmente escrito, é uma questão cultural
onde se busca manter a separação binária.
Isso é algo que aparece também nas divisões de setores, todos os agentes da
assistência e perícia são mulheres, assim como a grande maioria do setor de
administração e finanças. Por exemplo, Patrícia comenta sobre como era a sala do curso
de formação: Era a maioria homem. Independente da área, geralmente na
administração e finanças tem mais mulher, na custodia tem mais homens. Devido à
porcentagem de 70% do pessoal da segurança, acontece de eles serem sempre a maioria
nos cursos de formação, no caso da mulher do setor da segurança, quando ela passa no
concurso, ela vai primeiro pro presidio feminino para ela passar por tudo para ser
treinada, primeiro é preciso que seja introduzida no universo penal feminino, para
depois ser alocada em algum presídio masculino.
Mas na medida em que a mesma chega, ela vem para o masculino ela não ocupa
todos os postos. Mesmo que a mulher passe pelo mesmo curso de formação que os
homens, ainda assim, nos presídios masculinos elas não poderão ocupar todas as
posições de sua formação. Essa separação é algo observado também por Stella Resende
(2017), ao trabalhar com a inserção de mulheres nas forças armadas, ambiente parecido
na perspectiva de uma cultura de segurança pública, ela nos diz que
Por mais que homens e mulheres estejam expostos ao sol, aos perigos,
aos gases dos combustíveis, a categoria exposição, com esse sentido
de violação, só é acionada quando envolve mulheres. Talvez por uma
suposta fragilidade, talvez por ser possuidora de um corpo que é
preciso esconder ou preservar (2018, p.85).
[...] Uma mulher não pode ter autoridade sobre homens, e tem,
portanto, todas as possibilidades de, sendo todas as coisas iguais em
tudo, ver-se preterida por um homem para uma posição de autoridade
ou de ser relegada a funções subordinadas de assistente (2014, p. 131).
135
Utilizo a expressão, mesmo sabendo que ela é utilizada mais para a discussão no campo da deficiência,
mas acredito que em um sentido generificado parece que a mesma relação é estabelecida com relação às
capacidades das mulheres no trabalho prisional. Para uma discussão dos termos capacitismo a partir da
teoria queer, de Butler, e da perspectiva antropológica, ver Anahi Mello (2016).
Patrícia: Já. Foi uma coisa meio que velada. [...]. eles [internos]
tavam ali, eu passei [...]. Aí fica o preso, quando vai sair pro
advogado, ou fora antes de ir, fica numa celinha ali. E aí eu fui
para lá, e eles estavam um monte, uns 12 lá, de certo iam para
gameleira136. Quando eu vou eu já sei, quando tá muito cheio,
quanto tá um não faz graça, mas se tiver mais. Aí eu voltei, ele
pegou e fez assim (Imitou o barulho), eu voltei na hora. E
perguntei para eles 'Eu escutei alguma coisa daqui?' 'Não
senhora', 'Ah eu pensei que tivesse ouvido' 'Não senhora'. Então
assim, eles negaram na hora. Então eu já senti, você não pode dar
moral. [Em outro caso] Aí as vezes, eu trabalhava na
administração né, ficava uma fila de preso aqui para ir para o
setor jurídico a ser atendido. E tem hora que é estranho, você sai
de sala e dá de cara com 15 homens, que eles não vão falar nada,
mas eles te olham. Tem preso que olha e já baixa a cabeça, que ele
fica sem graça, mas quando eles estão em mais, acho que um que
mostrar para o outro alguma coisa. Daí depende da postura
mulher, você tem que ser firme. Daí eu passei, eles ficaram os 15
me olhando, aí eu parei na frente deles e falei 'Todos com a cara
na parede', eles pegaram e viraram na hora. Aí eu passei. Quando
eu voltei, eles tavam de frente de novo, quando voltei, não precisei
falar nada viraram sozinhos. Então é uma questão, você tem que
ter comando com o preso, entendeu?
136
Em se tratando do Centro Penal Agroindustrial da Gameleira que já faz parte do regime semiaberto, no
qual os internos fazem pós-progressão de regime.
137
Outros espaços em que isso é comum são os estádios, academias e os famosos canteiros de obras. Para uma
perspectiva da construção das feminilidades e a reação a esse fenômeno, temos a campanha “Chega De Fiu Fiu” e
um texto sobre os canteiros de obras. Acessar respectivamente: < https://thinkolga.com/2013/09/09/chega-de-fiu-
fiu-resultado-da-pesquisa/> e < https://www.geledes.org.br/guest-post-machismo-permanente-no-canteiro-de-
obras-por-lola-aronovich-at/> Acessado em: 20/03/2019.
José reconhece o ambiente como clima pesado, mas ainda assim acha
desinteressante porque seria apenas um gasto para ninguém ver e que mesmo para eles
passaria batido. Ele continua argumentando: ah o preso vai chegar aqui os termos que
usam 'vai tá gozando do bagulho, chega florzinha, decorações de natal, pronto, aí o
preso já não obedece mais. Acionando a categoria respeito, Patrícia diz que os
comentários não chegariam diretamente a ela, mas ainda assim apareciam em
conversinhas, eram uns comentários sarcásticos. Quando chegavam a ela, a mesma
rebatia dizendo 'Tá vendo que bacana? Essa flor é para você, para você trabalhar num
lugar melhor, saber que existem outras coisas fora algemas e a tonfa', buscando
ironizar a suposta posição policial que os agentes de segurança assumem.
A associação das agentes mulheres enquanto as mães no Penal performa uma
expectativa feminizante das mulheres que lá estão. Os autores Priscila Detoni, Paula
138
A escolha do crime de homicídio se deu por um caráter metodológico e prático. Devido ao curto
período de produção da pesquisa, um estudo profundo das diversas possibilidades de violências diferentes
não foi possível. Logo, o foco foi a utilização de um crime baseando no código penal brasileiro (como
forma de chegar aos interlocutores pelos artigos) e por um crime onde a presença de violência física seria
quase que inquestionável.
139
Cientista social australiana que durante boa parte de suas pesquisas sobre masculinidades se
identificava como Robert Connel, mas que atualmente se identifica dessa forma.
140
Nos termos em inglês são respectivamente subordination masculity e complicity masculinity.
Nesse sentido, a autora questiona Connell na medida em que ela parece atribuir a
existência de uma única masculinidade hegemônica global a uma visão limitante para as
múltiplas masculinidades que a própria autora defende. Continua afirmando que “a
masculinidade hegemônica até mesmo em nível local, pode ser vista como
hierarquizada e plural” (Ibid., p. 98). Partindo dessas críticas do conceito, que entendi e
observei durante meu campo no Penal. Acredito que tenha sido possível mapear três
possíveis masculinidades hegemônicas locais que disputam a hegemonia dentro do
sistema penal sul-mato-grossense.
Nesse capítulo, trabalharei com elas. Dividi-as em masculinidade criminosa,
masculinidade trabalhadora e masculinidade religiosa. Essas três masculinidades são
acionadas no campo pelos sujeitos como formas ideais pelas quais um homem
normativamente deveria se portar. Às vezes, elas se aproximam ou até mesmo se
entrelaçam com as mesmas expectativas, mas em outros momentos se afastam de forma
marcante. Acredito que elas estejam em disputa para ganhar uma legitimidade sobre
qual determina “O Homem” no campo do Penal.
As três masculinidades, acima referidas, possuem relações diferentes com a
violência, o que será aprofundado durante o capítulo. É preciso, antes, que seja
apresentada a forma que se trabalhará com a relação entre violência, masculinidade e a
prisão. Apesar das muitas pesquisas sobre masculinidades que vem surgindo, a relação
entre elas, violência e prisão, não foi muito estudada em nosso país.
Uma das poucas pesquisas encontradas sobre a relação entre violência e
masculinidades no Brasil foi a de Fátima Cecchetto (2004). A autora trabalha com três
grupos de jovens distintos, dois da periferia carioca (galeras do funk e frequentadores
Uma outra questão que precisa ser pontuada diz respeito aos interlocutores.
Deixo de entender os internos como internos (assim como apareceram no segundo
capítulo). Passo a me referir a eles enquanto presos. Essa é forma pela qual eles
preferiram ser chamados no decorrer das entrevistas e conversas. Trata-se da forma que
eles se referiam a eles mesmos, bem como aos demais presos que os acompanhavam.
Com os presos, houve certos limites que não existiam com os agentes, tais como a
questão do tempo, abordada no Capítulo I.
Devido a essa questão, optei por trabalhar com eles, no texto, de forma a não os
individualizar tanto quanto fiz com os agentes. Suas narrativas se misturam a partir da
temática da dissertação. Logo, os discursos deles foram vistos em conjunto e de forma
Dessa forma, o contexto da cadeia parece ter sido um desses contextos que
moldou, em maior ou menor grau, as narrativas dos presos. Acredito aqui que o preso
“conta também aquilo que mais lhes parece oportuno”, mais oportuno para o
pesquisador de 26 anos, branco, que apareceu certo dia de sua pena de anos, para lhe
fazer algumas perguntas sobre si mesmo.
Os nove presos entrevistados, em ordem da escolha pelos critérios do Quadro I,
da introdução, foram João, Gabriel, Lucas, Pedro, Mateus, Marcelo, Gustavo e
Guilherme. Como trabalhado com os agentes no capítulo anterior, selecionei categorias
para os presos, foram elas: cor/raça/etnia, naturalidade, trabalho, faixa etária, nível de
escolaridade, filhos ou religião quando se mostram presente e relevantes durante a
entrevista.
João se mostrou como um “ponto totalmente fora da curva” por ser bem
diferente dos outros presos. Essa diferença se dava principalmente por possuir o ensino
médio e ter iniciado uma faculdade, além de estar fazendo outra no tempo que está no
Penal. Sua condenação é de 9 anos. Ele é branco, natural de Campo Grande e tem 30
anos de idade. Durante a conversa, se mostrou como um dos presos que teria melhores
condições de vida. Sua família se adequaria ao padrão tradicional brasileiro com pais
juntos e de acordo com ele pertenceria a classe média ou alta. Ele estava tirando sua
A vida dos presos que passam pelo Penal pode ser vista metaforicamente dentro
dos processos de separação do Estado aos moldes montesquianos. Primeiro, passando
para o Legislativo, órgão representativo do estado brasileiro responsável pela criação de
141
Essa questão sempre é presente nos dados gerais sobre a população prisional, onde de acordo com
Infopen 2016 temos 64% de negros/pardos e apenas 35% de brancos que se encontram nas prisões.
142
Temos a pesquisa a partir de obras literárias que Richard Miskolci (2012) realizou pensando a
branquitude, junto da questão de masculinidades no Brasil dos fins do século XIX. Além disso temos a
pesquisa de Rolf Souza (2009) a respeito das representações do homem negro na sociedade brasileira.
143
As siglas significam respectivamente: Ensino Fundamental Incompleto ou Completo, Ensino Médio
Incompleto ou completo e Ensino Superior Completo ou Incompleto.
Pedro experimentou isso dos outros presos, ao comentar que existe uma lei que
se a pessoa chega ali no corró144, e tentar ir direto para esse grupo, os presos que estão
mais para criminalidade vão falar 'Ah tá querendo se esconder, tá se protegendo'. Essa
masculinidade possui uma visão de cuidado mais tradicionalmente associada às figuras
femininas como já vimos. Nela, temos a negação de qualquer tipo de violência física na
resolução de conflitos. Nessa masculinidade, o controle, respeito e autonomia do corpo
são fundamentais. Por meio das regras que proíbem estar sem camisa, resguardando a
exposição do corpo em público, e a não utilização de substâncias que alterem a
consciência, como cigarros ou bebidas. Pedro comenta que essas seriam as formas mais
inteligentes, mais sábias, mais caridosa com as pessoas onde os homens devem tentar
entender os problemas dos outros. Ao alcançar uma posição de destaque a partir da
masculinidade religiosa, os presos recebem um reconhecimento dos demais. Nesse
sentido, existe um profundo respeito, eles falam que é algo muito sagrado aqui dentro, e
até mesmo, por parte dos agentes do Penal se tem essa diferenciação os separando em
um respectivo solário entre iguais. Os agentes consideram-nos como pessoal mais
tranquilo de trabalhar, e exemplo pros demais.
É importante ressaltar que diferente das outras masculinidades que veremos mais
a frente, a masculinidade religiosa se mostra como uma resistência. Essa masculinidade
é perfomatizada tendo a negação da violência como pressuposto de solução dos
conflitos, algo diferente as outras masculinidades elencadas. Se afastando assim das
144
Corró é a palavra que os presos usam e, que, os agentes usavam no PTRAN, para se referir ao presídio
de trânsito. Local onde todos os presos, menos os dos artigos (crimes sexuais e contra crianças), passam,
antes de serem encaminhados, para uma unidade maior.
145
Infopen, 2016.
Lucas, tentando ganhar uma responsa com os irmãos do PCC, utilizou algo que
ouviu na rua de conhecidos sobre o comportamento de um dos irmãos. Mas, como não
conseguiu apresentar nenhuma prova sobre sua acusação, sua fala tem poder menor dos
que os membros do PCC, logo ele se viu em risco de vida por essa acusação e teve que
se proteger indo para o Penal. A Máxima sob o controle do PCC possui uma visão de
masculinidade bem mais exigente do que a massa não faccionada, para ela, nenhuma
forma de sexualidade além da estritamente heterossexual seria permitida por parte de
seus membros, sejam eles homens ou mulheres. Quem percebeu algo semelhante foi
Natália do Lago (2014) que, ao notar em uma festa de dia das crianças no presídio
feminino do Comando, foram distribuídos presentes com recortes de gêneros
Nesse contexto, crianças e jovens das classes populares estariam sujeitos a uma
“disposicionalidade violenta”, como aponta o sociólogo Marcos Rolim (2016) ao tratar
a respeito da formação de jovens violentos. Seria também o que Alba Zaluar (1994;
2014) chamaria de “sociabilização violenta” isso que daria o “ethos ou disposições para
a guerra, exibidos por jovens pobres e vulneráveis que vivem nas favelas do Rio de
Janeiro” (ZALUAR, 2014, p.12). Compreender essa constituição da violência é
fundamental148 para entender a masculinidade criminosa e a masculinidade
148
Gostaria de deixar claro que aqui não se busca reforçar a tese de que “a pobreza é a causa da
criminalidade, ou do aumento da violência urbana” (MISSE, 1995, p.4), como Michel Misse (1995) em
seu Cinco Teses equivocadas sobre a criminalidade Urbana. Pois, como o próprio autor reconhece em
seu artigo, isso significaria dizer que todos ou a grande maioria dos pobres ou membros da classe
trabalhadora, seriam criminosos, o que está totalmente longe da realidade. O que se buscou apresentar é
de que forma a classe se relaciona com o gênero masculino para produzir determinada aceitação ou
legitimação do comportamento violento.
No caso de Marcelo, ele não se sentia confortável ao falar sobre o crime, disse
incomoda, não gosto de voltar atrás assim. Optei então por cruzar os dados da Agepen
com notícias presentes na mídia e o processo no judiciário149, caso tivesse acesso. Com
os dados do processo, Marcelo foi condenado por apenas um homicídio, mas possuía
outro e duas tentativas ainda que seriam julgadas.
De acordo com as notícias e processo, Marcelo teria ido à casa da ex-mulher no
horário da madrugada, jogado gasolina nela e no namorado, que estava dormindo na
149
Essa opção foi utilizada como forma de ter mais versões do ocorrido. Como já foi dito, nesta
dissertação não se está buscando uma verdade nas falas dos interlocutores. O mesmo se aplica às notícias
da mídia e dos dados no sistema da Agepen. Eles são usados para expandir a compreensão do fenômeno
que relaciona a violência com as masculinidades.
153
A agente Maria comenta a respeito quando chega um estuprador aqui, a cadeia treme. Você sente as
grades batendo e os presos querendo pegar.
154
Esse lema teria vindo da passagem bíblica, João 10:10 que diz “O ladrão não vem senão a roubar, a
matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância.”.
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Anexo I
Anexo VI – Figura 3