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será alusão, lampejo de memória que ora brilha ora some, fazendo alusões a isso e
aquilo ao mesmo tempo. Trata-se, algumas vezes, de um local que suscita medo, afinal
basta sair de casa e dá-se de cara com a floresta, em que se é rondado por dentes e olhos
(1988, p. 162). Também “Andara foi onde Santa Maria do Grão começou. No
emaranhado.” (1988, p. 162). E para surpresa do leitor o emaranhado concede o
conceito de região:
Este [o emaranhado] não tem fim, seus rios que não existem e estas
árvores ausentes ao redor se estendem a perder de vista. Isto vai até onde
um homem puder ir. E vai mais longe ainda. Esta é a região” (1988, p.
162).
E o emaranhado não deixa de ser também o conceito do todo “(...) E
Andara é mais: Andara é o emaranhado inteiro (1988, p.163).
Os textos são prosa e poesia, contam histórias, criam imagens e sons e dão à luz
aforismos densos, que fazem calar os leitores mais eloquentes. Aforismos podem estar
localizados em qualquer ponto dos textos e por vezes se repetem. Vejamos alguns: “É
preciso amar os mortos como se ama os vivos” (1988, p. 30), “Um homem racional está
perdido. Ele não pode dizer que não compreende aquilo que acaba de compreender”
(1988, p. 35), “Andara é a África que temos dentro de nós” (1988, p.132), “A infância.
Ela é bem esse tempo de espantos por toda parte. E ela não acaba nunca, eu sei.” (1988,
p. 164), “Embora a ave mais bela seja aquele que se recusa a voar” (1988, p. 59), ou
ainda: “E dito isso, então dizer: muletas./E: sozinho se descobre as coisas melhor./ Aí
começam as chances de alguém se tornar centopeia.” (1988, p. 60), e: “A fome vem na
ora inicial da vida, quando é manhã e os olhos se abrem./Está então dizendo uma outra
voz./E é só?/Então, nada mais irá acontecer além dessas vozes? Não?/Ainda não
sabemos. Inquietos, os viciados da continuidade.” (1988, p. 137). Os dois últimos
nitidamente cheios de presença do estilo do aforismo nietzschiano, que pensa, reflete,
sugere e mistura poesia e narrativa.
Golpe de maestria de invenção: Cecim criara o que não há, algo invisível, algo
que nos escapa, e se nos escapa é porque inevitavelmente o percebemos presente no
fundo, no raso, cheio de mistérios, animais e acontecimentos, e reflexos no vidro que
possibilitam a miragem da visão de um outro, quando o que se vê é ainda a si mesmo.
Sua literatura, ele a chama “literatura fantasma” e a alimenta com muitas escrituras e
entrevistas que potencializam o mistério que é Andara.
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Por que estas palavras, e não outras, para contar pela primeira vez a
vocês a história?
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Em perspectiva diversa, para aproximar-se de uma abordagem da face hermética,
mística e metafísica da obra de Cecim, consultar JUCÁ (2010) e CAMÊLO (2010).
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Este narrador também declara ao leitor que seu relato é suspeito, como a passar
ares de sinceridade, como se nada escondesse de seu leitor, e divide a narrativa com o
vento e com certas vozes, de modo que esses outros narradores fortaleçam seu relato,
afinal as palavras estão no vento, não teriam sido propriamente inventadas. E o leitor
que não se engane: o narrador é hábil em dar elementos para o leitor que ele não saberá
onde colocar. Aproveita-se de seu não-saber e dos pontos cegos que cria para criar uma
atmosfera de acaso, como se não estivesse em seu controle as passagens lacônicas, as
elipses, os brancos, as frases inconclusas, o vento e a terra que de repente passam a
narrar. E o leitor nisso tudo percebe algo semelhante à vida e aceita, cúmplice do não-
saber da vida, dos subentendidos, do não dito, das intuições eloquentes que não usam
palavras. O texto, a despeito do que se possa pensar, é cheio de enigmas, enigmas da
ordem semântica e linguística. É o que se pode perceber no trecho em que há repetição
de parte do texto, repetição e variação, trata-se dos dois finais falsos sobre os quais o
narrador avisara o leitor; o narrador matara sargento Nazareno uma vez, matará
novamente?
Em Os animais da terra, por sua vez, o narrador divide sua voz com a terra. É
ela que anuncia ao leitor a história que será contada:
As vozes da terra não cessam.
São tantas.
Falam várias línguas.
Sobre homens condenados ao trabalho escravo numa plantação de
urtigas. Sobre insetos, peixes e aves na grande orgia da vida fecundando
a mulher do opressor. O cruel cego Dias. O nascimento luminoso do deus
vermelho.
É uma delas que dá início, agora, para dizer:
Este texto poderia ter duas epígrafes: (1988, p. 59)
O leitor está intrigado com o que virá: a exploração do trabalho dos homens, mas
se pergunta sobre a fecundação da mulher do opressor, não há, ainda, compreensão que
se possa adiantar, e quem será o deus vermelho? Trata-se de um início de relato que não
esclarece mas atrai por tudo que não explica.
Ainda no início, o narrador observa que o texto não deve ser decifrado pela
leitura:
Não serão os textos da inquietação, e este quer ser um deles, aqueles que
fornecerão fórmulas. Estes textos não são textos práticos, não querem ser
isso. Sempre teremos um segredo. E para negar a farsa das aparências,
sem necessariamente se aliar ao mito da profundidade, nada mais
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O leitor que, por sua vez, já percorrera o livro anterior, suspeita do que se trata: a
inquietação não surge apenas dos acontecimentos insólitos plurais que há nos livros, o
que será tratado mais adiante, mas da linguagem em ritmo irregular, do não saber que
possui lugar cativo nas frases e do falso acaso que se intromete na condução das ações e
palavras.
Aqui a palavra dada pelo narrador no início do relato se cumpre, mas o leitor
está estupefato por ter percebido como a narrativa mescla a história da realidade dos
trabalhadores da plantação, explorados por Dias a mando de Sombra, e a história de sua
libertação que ocorre na outra história, a que é narrada febrilmente pelo doidinho,
personagem que provoca a libertação pela fecundação da esposa do opressor, o cego
Nunes, de modo que todos os seres vivos sejam os pais da mudança e do novo mundo
que acontece.
Em um misto de vozes telúrica e onírica, aquelas que dividem a narração com o
protagonista narrador, e na mescla de ações dos seres da terra, da água e do ar, o ritual
da fecundação acontece para que o novo tome seu lugar e a realidade dos homens se
transforme. O ritual evoca o mito da fecundidade e da criação, neste caso apenas
possível pela mentira do narrador, que tece seu ardil em torno do cego, em nome da
possível transformação das condições em que vivem os homens a ele submetidos.
Em Os jardins e a noite, por sua vez, o narrador é Jacinto, um cego que se
posiciona em uma janela em Santa Maria do Grão, de onde narra histórias que lhe são
contadas pelas vozes do vento e da terra. Entre as primeiras páginas do relato encontra-
se o seguinte excerto: “Eis o que temos. Um homem numa janela. Não há como evitá-
lo. E há vozes. Então é só entregar-se, esta viagem fala da vida e não vai parar antes do
fim.” (1988, p.115). Primeiramente, Jacinto conta histórias a um homem que vem até
ele, mais tarde contará para o filho desse homem. Algumas vezes, ainda, o narrador tem
o papel de ventríloquo do vento, mesmo quando o vento faz retornar apenas os pedaços
de alguma história.
Tantas peripécias dos narradores fazem o conteúdo dos relatos evanescer,
preparando, desse modo, o surgimento da literatura fantasma e as ocorrências insólitas,
como a volta do Sargento Nazareno da morte e sua segunda vida em A asa e a serpente,
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Histórias insólitas....
O personagem Nazareno de A asa e a serpente, após caminhar carregando seu
caixão, é um morto e um fantasma adormecido que se posiciona na praça de Santa
Maria do Grão, exatamente no lugar em que fora morto pelo narrador movido pela
traição, sobre a qual o leitor não encontra maiores explicações. Está claro no texto que o
Sargento, antes de morrer, fora alguém cruel, que humilhava e agredia a todos. E ainda
que a mão esquerda do morto seja uma mão morta, a direita guarda a crueldade em toda
sua força. É ela que agarra o cachorro e o solta morto, prestes a se transformar em terra
ao tocar no chão (1988, p. 22).
Pela narrativa do sonho de duas mulheres, sabe-se que Nazareno era esfaqueador
de aves e incendiário de florestas. O morto na praça, temido por todos os habitantes, ora
abre o olho, ora adormece e ora volta para a morte, isso acontece todas as vezes em que
sua cabeça cai no peito em perspectiva abissal. Suas falas são inusitadas, como por
exemplo: “- Venham beijar a minha mão esquerda, a que não mata”.
Além do fato de um morto voltar à vida e ir se tornando homem outra vez, esse
morto conta a história de um outro; o sargento veio antes para anunciar sua vinda.
Acompanhemos uma parte de seu relato:
Este que virá coçara a cabeça, extrairá dela um inseto, que estala entre os
dedos, de tanto andar sob as árvores eles já aprenderam a viver no seu
corpo, e não entenderá. Não entenderá isso, que eu repito. É preciso amar
os mortos como se ama os vivos.
Ele virá a Santa Maria do Grão para entender e não entenderá. E de Santa
Maria do Grão ira até Andara. E não entenderá Andara, onde Santa Maria
do Grão vai para a floresta.
(...)
E irá entrando devagar em Andara, como faz um estranho que chega e
ninguém aparecerá.
E verá que vem pela rua alguma coisa, rolando. Parece água amarga, ele
dirá então. E depois já estará diante dele um velho, e não sabe o que lhe
aconteceu. E esse velho vai dizer a ele nada fica no seu lugar em Andara.
Foi sorte que saiu do caminho e escondeu-se numa nesga de porta
enquanto aquilo passava para afundar lá no fim da rua, no rio. (1988, p.
30-31)
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frequentemente é um homem cego que pode ver tudo, inclusive o futuro. Nesse sentido,
Jacinto é aquele que foi avisado antes, em sonho, sobre a vinda de Curau, ele encontrou
a ave, dela cuidou, deu-lhe um nome e teve seus olhos furados por ela. O narrador não
apenas defende como anuncia o retorno da ave, única forma de todos livrarem-se das
coisas que não mudam (1988, p.119).
O relato a seguir será Terra da sombra e do não. Nele a história do livro
invisível começa outra vez (1988, p. 179). Começos/recomeços incessantes que
corporificam o invisível, o não-livro, a literatura fantasma tornando o visível
fantasmático, rarefeito, frágil, inacreditável mesmo, quase fora do mundo dos possíveis,
e que só está ali para, de modo insólito, apontar para lá: Andara, que não fica nunca no
mesmo lugar e que a cada momento exige novas conotações e sentidos.
A obra de Vicente Franz Cecim realiza o sonho da escritura pós-moderna, pós-
sujeito e pós-mítica: segundo as reflexões metalinguísticas dos narradores, os sentidos
se dão na superfície da linguagem e da leitura, não supõem a busca da profundidade que
se esconde à espera do olhar decifrador; personagem e narrador já não são, ou melhor,
vivem ocultos pelo invisível, vivem a vida de fantasmas. Esta a proposta que se pode
vislumbrar explicitamente nas reflexões metalinguísticas dos narradores ao longo da
obra. Entretanto, cabe ao leitor a leitura que suspeita, afinal, não é um dos mesmos
narradores que afirma que “[...] a floresta em torno de Andara também fala.”(1988,
p.168) ?.
Sobretudo a partir da perspectiva da dúvida sobre a palavra dos narradores, as
narrativas ressuscitam personagens mortos e mitos, reabilitam os silêncios portadores de
um tipo de eloquência esquecida, que cala na intuição do leitor, e oferecem linguagem
cifrada, simbólica e metafórica, tudo aquilo que, supostamente, as narrativas não
pretendem já que, segundo palavras do próprio texto, não se aliam ao mito da
profundidade; cabe ao leitor decidir se dará credibilidade aos não enigmas anunciados
ou aos enigmas com os quais bate de encontro, e se perguntar: não serão os não-
enigmas apenas artifícios que distraem o leitor? para que não perceba a construção da
face insólita de uma linguagem, que, no fundo, supõe a origem, a essência, o significado
e o desvendamento das coisas deste e outros mundos, o que claramente a integraria, sim,
ao mito da profundidade?