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RESUMO
1
AGRADECIMENTOS
2
«Quando pensamos sobre o futuro do mundo, tomamos sempre
em consideração o facto de ele estar no local em que estaria se
continuasse a mover-se como o vemos mover agora. Não nos
apercebemos de que ele não se move em linha recta, mas curva,
a comichão?»
Ludwig Wittgenstein, 2005
3
INTRODUÇÃO
4
critica e totalmente desprendida do tradicionalismo habitual?», se sim, «Quais são as
condições necessárias e os handicaps opositores ao seu pleno desenvolvimento?
No sentido de responder a estas e outras questões, este artigo está dividido em três
partes: i) Será importante o ensino da Filosofia? ii) uma proposta crítica sobre o modo «como
não se ensina» e se deve ensinar filosofia; iii) estará o universo escolar preparado para
exercer uma filosofia crítica?; iv) Afinal, o que pensam os alunos sobre a Filosofia?
Este trabalho é o resultado de um momento de investigação e reflexão pessoal, motivado
por uma curta experiência de «leccionação» realizada no presente ano lectivo. Espera-se, que
na sua forma presente, sirva alguns propósitos práticos, nomeadamente, como uma
alternativa a ponderar, face ao «lugar» insatisfatório que a Filosofia ocupa, hoje, no ensino
secundário e como um incentivo à futura realização de trabalhos que solucionem esta
problemática, cuja pertinência «persiste».
«A Filosofia ocupa, no sistema do ensino secundário, um lugar cada vez mais precário e
sofreu rudes golpes, em termos institucionais, que a põem em causa.»
António Guerreiro, 2007
Que importância tem realmente o ensino da Filosofia no conjunto do funcionamento do
ensino secundário? Faz sentido «ensinar Filosofia»? Deve ou não existir Filosofia no Ensino
Secundário? Se fizéssemos uma hierarquia de prioridades das «coisas» mais importantes no
currículo das escolas secundárias, que lugar ocuparia a «Filosofia»?
A condição institucional da Filosofia como disciplina e o seu lugar no sistema de ensino é
uma velhíssima questão, desde a polémica do «desaparecimento» do ensino da Filosofia em
1988»1 que a Filosofia vem vivendo tempos de agitação. Embora alguns pedagogos considerem
que a disciplina de Filosofia deve ser preservada no plano educativo, pelas repercussões que
têm em todas as outras, pois prepara o indivíduo para adquirir uma «grande variedade de
competências», nem todos os peritos outorgam à Filosofia um «lugar» de destaque na
formação intelectual, o que vai originando «penosamente o seu declive»2. A Filosofia é
frequentemente considerada uma disciplina «inútil», improdutiva, sem qualquer
aplicabilidade prática, «(…) difícil, traumatizante e eventualmente burguesa ou livresca.
Também pode ser que a considerem perigosa, porque ajuda a pensar» (Barreto, A., 2006). A
Filosofia parece, assim, num primeiro olhar, algo demasiado polido e distante das nossas
1
Segundo a proposta de reestruturação curricular realizada pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo (que
na altura articulava diferentes grupos de trabalho e nomes como Roberto Carneiro, Marçal Grilo e Fraústo Silva),
tornada pública em 1988, a Filosofia iria perder o seu tradicional estatuto de cidadania no término do Ensino
Secundário português.
2
A propósito do futuro da Filosofia no Reino Unido, Alfred Ayer chamou a atenção para o crescente «declive» da
Filosofia nas universidades. Embora se reclame a presença da Filosofia nos currículos universitários, bem como nos
básicos e secundários como complemento essencial à formação, o facto é que o seu futuro avista-se negro.
5
necessidades quotidianas! Numa sociedade praxista, ideologicamente tecnocrática (no mau
sentido) em que o valor e a pertinência de uma actividade se medem cada vez mais pelo
critério exclusivo da produtividade económica e financeira (…) a Filosofia aparece como a
disciplina menos necessária, mais vã e mesmo, para alguns, nefasta, porque é perturbadora
do funcionamento controlado da «sociedade do conhecimento». Pois não é certo que nem
conhecimento produz? (…) Abaixo, pois a Filosofia — a religião substitui-a plenamente e com
proveito para a boa ordem social.3» (Gil, J., 2006).
Numa sociedade altamente tecnológica, em que parar para pensar é perder tempo e numa
altura em que o ensino (direccionado para a empregabilidade) tende cada vez mais a reduzir-
se a uma espécie de «adestramento» adequado ao desempenho particular de determinadas
funções, a Filosofia vai-se tornando cada vez mais «dispensável» do currículo. Enquanto a
matemática é fulcral para se entrar em Engenharia e a Biologia para entrar em Medicina -
áreas consideradas «práticas, objectivas e com saídas profissionais específicas»4 - a Filosofia é
fundamental para desenvolver as capacidades intelectivas, reflexivas e argumentativas. No
fundo, ela existe para formar cidadãos pensantes, autónomos e críticos. Mas o que há de
«útil» nisso? Em que medida a perícia intelectual e flexibilidade argumentativa contribui para
o progresso da sociedade? Numa época em que se pensa cada vez menos e se consome mais,
onde o ensino está cada vez mais orientado para a assimilação passiva de conteúdos, em pena
de se ser excluído do comboio da vanguarda, haverá lugar para a filosofia? Poderemos, neste
contexto, prescindir da Filosofia? Ou, pelo contrário, devemos «repensá-la»? A resposta não é
fácil, se dizemos que «sim» parecemos restauradores da independência e liberdade em prol
de «um Portugal mais crítico»; mas se respondemos «não» estamos a assumir que a Filosofia
não assume importância no currículo do ensino secundário e que a sua «inutilidade» é real.
A Filosofia assume particular relevância no currículo do Ensino Secundário, sobretudo,
devido à sua urgência na sociedade actual. Face à perda de identidade e consciência de si
mesmo, o homem vê-se hoje, sob diversos ângulos, à beira do abismo, onde o sentido se
esgota para dar lugar ao vácuo. Saúde, dinheiro no bolso e tempo para o gastar, eis o retrato-
robot do actual francês médio traçado por Gérard Mermet»: Consumo, logo existo5. Repto que
ignora o sentido mais profundo da existência humana - a sua dignidade e virtuosidade -
substituindo-o pelo mero ideal de subsistência e promoção de uma boa qualidade de vida. É
justamente no combate desta existência mecanicista e tecnocrática que a Filosofia surge
como um «ingrediente polarizador de uma cultura nova, de um novo mundo» (Cantista, M. J.,
3
A questão da «produtividade» é um dos maiores ataques à Filosofia, sendo muitas vezes utilizada como desculpa
para o seu «afastamento» do ensino (sem produção, não há consumo. Logo, não existe.)
4
Este tom irónico não pretende desprezar as outras áreas do saber, refere-se apenas à «massa crítica» que
considera as áreas ditas «pragmáticas», superiores às humanísticas, as quais, de facto, não enchem a barriga, mas
protegem intelectualmente a sociedade do vácuo, oferecendo cultura aos ditos «profissionais».
5
Expressão utilizada por Gérard Mermet numa radiografia sobre a sociedade actual intitulada Francoscopie e
citada por Maria José Cantista em «Filosofia Hoje: Porquê e Para quê?», 1988.
6
1988) cuja função é ampliar as faculdades de pensar, imaginar e querer, instaurando a
racionalidade perdida: «Num tempo em que os conhecimentos explodem e se diversificam,
nada mais essencial, nada mais útil do que uma disciplina que possa fazer sínteses, que ajude
à formação de uma visão do mundo, que permita aprender como os homens pensam e que
ajude a raciocinar. A filosofia é essa disciplina. É quando a escola se vira para as profissões e
foge da cultura que se precisa mais da filosofia. Já o senhor marquês de Pombal dizia que era
necessário o estudo da filosofia e das artes, pois servem de base de todas as ciências!»
(Barreto, A., 2007)». O que se pretende evidenciar é que apesar de a sociedade actual não
abrir brechas para o «aparecimento» da Filosofia, o seu cultivo afigura-se cada vez mais
imprescindível à manutenção de uma sociedade interventiva e crítica. Num mundo em que a
forte interacção da Ciência e da tecnologia com a Economia propicia novos valores e padrões
sociais, determinando novos comportamentos e métodos de trabalho e onde o ensino está
formatado para a profissionalização, o «saber-fazer» e a especialização, «a Filosofia afigura-
se essencial à (…) construção de uma nova sociedade que harmonize o Homem, a Máquina e a
Natureza.» (Simão, V., 1988). Paralelamente ao mundo de disciplinas e áreas do saber
prontas a serem recepcionadas (passivamente) pelas mentes dos estudantes, o único «espaço»
onde eles podem e devem exercitar as suas faculdades de pensar e problematizar, de tomar
conhecimento das problemáticas dos outros, de reconhecer a inocuidade do questionamento,
de construir uma visão mais ampla dos outros saberes reconhecendo-lhes as «limitações», de
compreender o mundo em que estão envolvidos, de alargarem o seu potencial cognitivo para
uma melhor produção noutros saberes, de aprender a cogitar e, sobretudo, a construir a sua
identidade pessoal e social, é o laboratório da disciplina de Filosofia entendido como
simulação da actividade filosófica6. Neste laboratório, o instrumento principal com que se
trabalha é o próprio aluno, mais concretamente as suas faculdades. Isto significa (perdoem a
minha transparência) que a Filosofia «não dá nada a ninguém», pois não tem nada de «físico»
para oferecer, não possui nada de ‘palpável’ (desculpem-me a expressão vulgar: de
ostentoso, que «encha o olho»). Aquilo que a Filosofia faz é desenvolver, essencialmente, a
faculdade de pensar, que se encontra previamente instalada em cada um de nós7. Neste
sentido, a Filosofia aparece como um espaço de reflexão crítica, essencial ao alargamento
adequado de horizontes, expectativas, opiniões e tomadas de decisão, pois a Filosofia é a
disciplina «(…) que coloca questões, que identifica os problemas, que interroga e abre o
caminho, que enaltece a possibilidade da dúvida e da reflexão, antes mesmo de se saber para
onde caminha (…)» (Ferreira, A. M., 1988). Embora não «ajude a construir casas», a filosofia
contribui para construir mentalidades, aguçar o engenho na praxis tecnológica e a preparar os
6
A apresentação do ensino da filosofia como simulação da actividade filosofia (Iziuzquiza, I., 1982) irá ser
parcialmente apresentada posteriormente, aquando da apresentação de uma alternativa ao modo como a filosofia
é actualmente praticada nas escolas. E
7
Esta ideia assemelha-se, de certo modo, a um velho ditado espanhol «Quod natura non dat, salmantica non
prestat» (o que a natureza não dá, a universidade salmantina também não o pode dar).
7
jovens para a era da informação. Nunca a Filosofia foi tão importante como instrumento de
cultivo de um espírito aberto, multidisciplinar, reflexivo e interveniente, tão necessário para
viver uma boa vida na presente sociedade. A desconsideração pelo seu «lugar» é um mero
equívoco ligado ao preconceito ou raciocínio de «estreiteza de vistas» e de desconhecimento
absoluto da essência do funcionamento da disciplina de Filosofia, sempre em convulsão com
as reformas que lhe vão sendo impostas. A importância do papel do ensino da filosofia, na era
moderna, em particular nas «escolas» pós-contemporâneas, permite destacar três ideias que
servirão de base às reflexões que serão depois realizadas em torno do ensino da Filosofia:
i) a ideia de que a Filosofia sofre do síndrome da «importância» não é disparatada,
mas complexa: o constante menosprezo pela disciplina de Filosofia acontece pela
incapacidade que a própria filosofia possui em assumir-se como uma «disciplina» diferente,
com finalidades incertas, com um conjunto de competências muito próprias e constituída por
uma amálgama de conteúdos peculiares. A importância como se sabe é relativa e, por isso,
sempre discutível; logo, a Filosofia, tal como as outras áreas do saber não escapa imune à
censura. Porém, tudo seria mais fácil se a Filosofia saísse do campo doutrinário, ideológico ou
se quiséssemos ‘humanístico-cutural’ e se assumisse, essencialmente, como um «laboratório»
de apoio ao progresso e alargamento da compreensão de todas as outras «áreas do saber»,
com aptidões próprias e finalidades dirigidas ao desenvolvimento da ‘arte de pensar’ – sempre
invisível e distante - espalhando-se, assim, o mais possível por todos os núcleos de ensino.
ii) a ideia que o ensino da Filosofia sofre do síndrome de inanidade, sendo uma
componente importante na formação dos nossos estudantes,: quem pensa que o ensino da
filosofia não tem espaço na sociedade actual, por ser absolutamente «inútil», não está
enganado, mas totalmente equivocado. Numa sociedade de «todos contra todos», em que o
conflito económico cresce desmesuradamente, a flexibilidade e rapidez de pensamento são
extremamente úteis no desbravamento de soluções e na indagação de alternativas a futuros
obstáculos tecnicistas. Neste ponto, o ensino da Filosofia não só é importante, como
absolutamente insubstituível, pois a sua ausência teria consequências nefastas para a
sociedade em geral, tal como nos retrata Diogo Aurélio, num artigo intitulado «O Vírus»8: «Se
a filosofia deixar de ensinar-se nas escolas, a comunidade científica no seu todo ficará mais
pobre, a qualidade ressentir-se-á no mundo do trabalho e a sociedade ver-se-á afectada nesse
centro vital que é a capacidade de questionar e de criticar». É absolutamente necessário
admitir, tal como Aristóteles, que a filosofia «não serve para nada» e reconhecer nessa
inutilidade, a sua função libertadora e desacorrentadora do frio funcionalismo do tecno-
sistema, pois é por ela ser inútil que «(…) alarga o conhecimento, estabelece pontes novas
entre domínios científicos diferentes, proporcionando a criação de novos objectos e novas
disciplinas. O trabalho do conceito é um trabalho de criação, e a Filosofia é, antes de mais,
8
Aurélio, D. P. (2006)
8
criação de pensamento. Daí as suas repercussões, da política ao design — atravessando toda a
cultura, a arte e o conhecimento; assim como na ética e prática da democracia.» (Gil, J.,
2006). O ensino da Filosofia contribui para a manutenção de um pensamento livre, autónomo
e crítico; sem a Filosofia, não haveria uma ‘espaço' em que o aluno pudesse especular sobre o
conhecimento em geral e adquirir um conjunto de instrumentos - conceitos e vocábulos - que
estão na base de discursos praticados em muitas outras áreas do saber, indispensáveis ao
progresso do pensamento, à criação intelectual e à manutenção de uma atitude crítica.
2. SERÁ QUE A FILOSOFIA PODE SER ENSINADA HOJE, COMO ERA ANTIGAMENTE? UMA
PROPOSTA CRÍTICA SOBRE O MODO «COMO NÃO SE ENSINA» E SE DEVE ENSINAR FILOSOFIA
«Quem hoje em dia ensina filosofia não selecciona o alimento para o seu aluno com o
objectivo de lhe adular o gosto, mas sim para o modificar.»
Ludwig Wittgenstein, 2004
10
próximo da essência da disciplina. O problema em Filosofia está justamente na sua essência.
Os conteúdos ou assuntos em filosofia não existem no concreto. Enquanto na Matemática e na
Física, os conteúdos assentam em «factos» empíricos, sendo possível constatá-los e/ou
verificá-los, em Filosofia não há factos, logo não é possível resolver problemas ou confrontar
teorias recorrendo pura e simplesmente à experiência externa. A Filosofia é uma actividade
eminentemente teorética: o debate filosófico é abstracto, os pensamentos e as teorias
residem única e exclusivamente no «entendimento».
Contrariamente às outras disciplinas, a Filosofia não se conforma à característica geral do
ensino, pelo que deveria assumir-se como uma disciplina ‘diferente’:
i) não tem um corpo de conhecimentos ‘prontos’ a serem administrados e absorvidos
pelos discentes: a Filosofia não possui o mesmo tipo de conteúdos que se encontram na
Matemática ou na Física; os seus problemas decorrem, sobretudo, daquilo que se pretende
ensinar, i. e. da natureza da própria filosofia (ex. O que é o pensamento? O que são as ideias?
O que é a conhecimento?). O filósofo move-se, por natureza, num terreno movediço, repleto
de dúvidas, problemas e, sobretudo, de inquietações intelectuais que mantêm a máquina
filosófica em actividade e sem as quais a Filosofia não faria muito sentido. A filosofia é o
estudo rigoroso e continuado dos conceitos mais básicos do nosso quotidiano, é um saber em
permanente construção que não sabe quase nada e que tem muito que aprender, pois «o
estudo que se faz em filosofia é como o estudo que um historiador faz ao explorar as
fronteiras do conhecimento: descobre problemas, procura resolvê-los, discute a solução com
os seus colegas, os colegas discordam dele e o filósofo avança outras soluções apoiadas
noutros argumentos.» (Murcho, D., 2002). A Filosofia é, assim, um trabalho crítico de
problematização incessante, razão pela qual não é possível oferecer aos alunos conteúdos
estáveis de conhecimento, mas propor ou exercitar a aprendizagem do filosofar: indagar
problemas e procurar resolvê-los mediante a discussão de teorias.
ii) a Filosofia não existe no concreto (real), é uma actividade13: só é possível imprimir
na memória o que nos pode ser exposto como uma disciplina acabada. Ora, a Filosofia não é
uma matéria concluída, finita, pelo que não é possível «dá-la» como se fosse uma disciplina
composta por conjunto de «receitas» ou «soluções» instantâneas para os problemas, tal como
se faz, hoje, irreflectidamente, em muitas salas de aulas. Para aprender filosofia seria
preciso que existisse realmente uma, mas a Filosofia, tal como reflectiu Wittgenstein nas
Investigações Filosóficas (2002) - e muitos outros filósofos em contextos diferenciados - não é
uma doutrina, mas uma actividade, razão pela qual não pode ser leccionada
convencionalmente, como se tratasse de uma sabedoria inquestionável, passada de discípulo
em discípulo, sem qualquer reformulação.
13
A concepção da filosofia como uma actividade é partilhada por vários filósofos (Wittgenstein, Russell, Jaspers,
entre outros) e está ligada à ideia da inquietude inerente à própria filosofia.
11
iii) o modo de ensinar-aprender filosofia é como que um modo de pensar e viver
filosoficamente que deve ser continuamente melhorado: a ideia de que a filosofia é uma
forma de estar na vida, um modo peculiar de «olhar» o mundo, não sendo possível separá-la
da pessoa que a exerce, coloca a ideia de estarmos sob o domínio da formação do
pensamento autónomo do indivíduo, na construção de um pensar por si mesmo, que não é
espontâneo e para o qual é necessário dar passos filosóficos. O pensamento não desperta ‘por
si próprio’ para actividade sem qualquer ajuda externa. O exercício reflexivo exige tempo,
esforço e, sobretudo, silêncio, para se poder desenvolver. A sala de aula pode e deve ser o
local privilegiado para a realização do exercício do pensar autónomo e não para a
aprendizagem desmedida de pensamento concluído (tal como sucede noutras disciplinas).
iv) o ensino da filosofia não se faz por imposição, a vontade do outro pensar por si
próprio é sempre pessoal e intransferível: podemos impor fórmulas, conceitos, teorias, até
mesmo obrigar o aluno a fixar teoremas, datas, denominações, sistemas de pensamento,
«frases bem-feitas» ou conceitos, mas não podemos obrigá-lo a cogitar sobre essas mesmas
coisas, pois a vontade de pensar por si é sempre pessoal. Cabe ao professor de filosofia –
colocando-se no lugar de ‘eterno aprendiz’ da filosofia – levar o seu aluno através de um
trabalho conceptual crítico14: a pensar, a reflectir, a reconstruir o pensamento por si próprio
e a desenvolver uma atitude crítica, concedendo-lhe sempre a liberdade de pensamento. Para
isso, o professor não poderá limitar-se à mera transmissão do «recheio» das soluções, tal
como acontece hoje, esperando, a partir daí, que o aluno seja capaz de colocar a cruz certa
no teste de escolha múltipla. O objectivo da Filosofia não é o aluno narrar aquilo que vem nos
manuais ou responder às perguntas como se tratassem de palavras-chave. Os conteúdos
filosóficos praticados desta forma são uma «ilusão», pois deturpam a verdadeira essência
daquilo que é a Filosofia e não permitem exercê-la de modo correcto. O professor de filosofia
deverá à boa maneira kantiana, levar o aluno a pensar por si próprio, a desenvolver as suas
próprias ideias e convicções, mediante uma abordagem crítica dos problemas.
v) em filosofia é confuso separar educabilidade de ensinabilidade: tradicionalmente,
a ensinabiliadade remete para o saber constituído, mas a Filosofia não pode limitar-se à mera
transmissão estática de conteúdos. Em filosofia não só se pretende que o aluno fique
familiarizado com os temas e problemas, mas que se introduza no «jogo de linguagem»
específico que é a filosofia e que, mediante o seu exercício (filosofar) desenvolva as
capacidades cognitivas e pense por si mesmo, pois só assim se poderá assegurar que ele
pensará bem em qualquer domínio (Marnoto, I, 1990). Por esta razão, o Professor de Filosofia
deverá ser transmissor, simultaneamente, de: 1) um saber constituído – descritivo-
14
Designação utilizada por Desidério Murcho a propósito da Natureza da Filosofia e do seu Ensino (2002), um
ensaio provocador, mas que isola excelentemente os problemas e apresenta «soluções» mediante a defesa uma
perspectiva crítica da filosofia.
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doutrinária15: a filosofia tem temáticas próprias que podem e devem ser lidas como
problemas ou questões, bem como um corpo específico de conteúdos a concretizar, tornando
viável o seu ensino-aprendizagem (autores, correntes); 2) um saber por constituir –
conceptual-problemática16: a filosofia implica uma constante vigilância ao real que se
concretiza num agir adequado em sintonia com os outros e o mundo, o que induz à
reformulação incessante de problemas – que é onde se encontra a verdadeira essência da
Filosofia. Geralmente, o ensino da Filosofia não ultrapassa o primeiro nível de transmissão de
conhecimentos - descrição-doutrinária - tornando-se mais num ensino de «soluções» do que
problemas, que só estragam o ensino da Filosofia, comprometendo a sua genuína finalidade.
Não se pretende, neste momento, prolongar a discussão sobre a transmissibilidade em
filosofia, mas reflectir sobre «como» deve ser administrada – nesta dupla vertente.
Retomando as considerações anteriores, a Filosofia é, por excelência, reflexão crítica do
homem, questionamento incessante, um exercício conceptual crítico, em constante
aperfeiçoamento e realização, razão pela qual se considera que o seu ensino deve estar
ligado ao seu poder de problematização (saber por construir), pois os seus verdadeiros
problemas são de ordem filosófica. Tal como refere Iziuzquiza (1982), a aula de Filosofia deve
ser um laboratório de simulação da actividade filosófica, pois ensinar filosofia é ensinar a
filosofar:
17
Para poder ter uma visão clara de como funciona o processo de reforma de uma disciplina e como são
implementadas ou sugeridas as suas alterações, seria necessário estar a trabalhar numa escola.
14
realização de trabalhos, ensaios ou artigos, motivadores da investigação filosófica e
desejáveis para que se aprenda a exercer filosofia - não apenas a «despejá-la» para um
exame - são fundamentais, mas praticamente inexistentes. A faculdade não promove a
investigação individual, nem a verdadeira «discussão» mediante a produção de trabalhos em
grupo. Desta forma, como pode um professor saber fazê-lo com os seus alunos? É necessário
formar convenientemente os professores de filosofia, desenvolver ao longo da sua formação
ferramentas essenciais à boa prática ou transmissão de conteúdos filosóficos, pois «para
ensinar é necessário amar e saber; porque quem não ama não quer; e quem não sabe não
pode» (Padre António Vieira). Não é possível mudar de um dia para o outro, o modo como
centenas de professores administram a filosofia. É necessário respeitar o modo como esta lhes
foi ensinada, procurando promover paulatinamente uma interacção entre os diferentes modos
de se «praticar filosofia» – os novos e os antigos – numa espécie de dialéctica transformadora.
Falar de antigos filósofos numa aula de filosofia é uma velha excêntrica. A Filosofia mudou,
está mais atenta aos problemas da actualidade e menos centrada na leitura de grandes
tratados como se fossem doutrinas à espera de serem repetidas. A Filosofia deve incrementar-
se na pós-contemporaneidade, não acomodar-se às costas dos grandes gigantes da história.
Essa incrementação exige o seu exercício de uma forma crítica, colocando problemas e
discutindo-os mediante argumentos. ii) é preciso criar condições necessárias para que os
alunos assumam um maior protagonismo na sua aprendizagem: para tornar tal desejo
possível, os alunos precisam de muito silêncio interior e exterior, bem como das capacidades
apropriadas para o gerir. O silêncio sempre foi considerado uma condição básica para
aprender, sobretudo no passado, em que os professores e estudantes procuravam na reflexão
e no estudo repousado o caminho para a sabedoria. Hodiernamente, perderam-se parte
destes referentes, senão todos. As Escolas e as Universidades tentam sobreviver em contextos
bem mais amplos e barulhentos. Mas o silêncio é importante, pois liga tempos e espaços
pessoais – dois bens escassos nos nossos dias – à implicação pessoal no trabalho e à capacidade
para trabalhar autonomamente. Na sociedade actual repleta de imagens, estímulos e ruídos,
torna-se difícil aprender, em particular, a aprender a partir do próprio sujeito, de um modo
pessoal. Os estudantes precisam de uma combinação de tempos de discurso e tempos de
silêncio, porque um processo de aprendizagem baseado nos inputs externos, proporcionados
pelo material didáctico ou actividades que o docente de filosofia promove, torna-se rotineiro
ou técnico. Tal como refere Caranfa (2004), o resultado acaba por ser, frequentemente, o
caos e o ruído provocado por muitas informações fragmentadas que carecem de união
interna. Os momentos de trabalho pessoal e reflexão parecem uma condição evidente para a
aprendizagem criativa. São igualmente importantes para conseguir um bom conhecimento de
si mesmo e do próprio estilo de trabalho. Geralmente, os alunos possuem muitas actividades,
escutam muitas coisas diferentes a todo o momento, o que os mantêm em permanente tensão
15
e sem possibilidade de quietude. A leitura e a escrita constituem recursos básicos essenciais à
aprendizagem pessoal, que devem ser fomentados. Ler sossegada e reflectidamente sob uma
perspectiva global e não ler três parágrafos que foram pontualmente «aconselhados» para o
teste. Não se compreende como pode um aluno do ensino secundário não redigir uma única
composição ou ensaio crítico ao longo dos três anos de formação. É necessário o estudante
criar um texto sozinho ou em grupo – mas não na estratégia de «copiar e colar» que não
permite uma aprendizagem efectiva. É necessário propiciar aos estudantes tempo para
pensar, para construir o seu próprio discurso e, se possível, de debatê-lo e complementá-lo
junto dos colegas. Porém, a situação nas nossas Escolas não propicia muito isso.
16
Na segunda questão do inquérito (coloca por ordem o que mais te interessa na Filosofia)
chegou-se à conclusão que a maioria dos alunos escolheu como tema de maior interesse ‘os
problemas do mundo actual’ (25%), seguido da ‘arte de pensar’ (20%) e da ‘coerência
intelectual’ (12%), escolhas que reforçam a ideia central por detrás deste ensaio, segundo a
qual a disciplina de filosofia deve ser um espaço propício à realização de um trabalho crítico
de problematização, onde se colocam problemas, se avaliam teorias e se constroem
argumentos, evitando-se um discurso fechado sobre si próprio, quase que doutrinário, sem a
possibilidade de indagação. É preciso ensinar o estudante a construir os seus próprios
argumentos e a adquirir clareza e coerência intelectual, indispensáveis ao bom
desenvolvimento da capacidade crítica. Esta proposta de ensino da Filosofia vai ao encontro
daquilo a que os alunos escolheram como sendo o tema que possui menor interesse, a
‘história da Filosofia’ (32%), seguida da ‘dimensão religiosa’ (20%), talvez porque a
popularidade da religião tem vindo a diminuir drasticamente nos últimos tempos.
Em relação à terceira e quarta questão do inquérito (Como observas a utilidade da
filosofia na tua vida pessoal? Como perspectivas a Filosofia na tua futura vida profissional?),
obtiveram-se resultados deveras interessantes, que reforçam uma notória relação entre si.
Em primeiro lugar, as questões relacionadas com a «utilidade» e a «aplicabilidade» revelam
valores tenuemente mais altos do que os da primeira questão do inquérito (sobre a
«importância da Filosofia»). É curioso, que em muitos questionários constata-se um desprezo
pela disciplina em si, ou seja, a escolha pela «pouca importância», mas no que diz respeito à
utilidade, os alunos demonstram-se mais optimistas, escolhendo, na maioria das vezes, «útil»
(61%) e «aplicável» (57%). Em segundo lugar, é importante referir que uns notáveis 13% a
destacam como «muito útil», o que desperta a atenção, pois é a questão em que a hipótese
de escolher «muito» alcança o valor mais elevado, demonstrando maior segurança. O que
acontece com a questão da «aplicabilidade», embora os resultados variem numa pequena
percentagem, que não é relevante. Assim, na questão da utilidade (e aplicabilidade) os
alunos parecem não possuir tantas dúvidas como na questão da «importância», porém, o
síndrome mantêm-se. Esperava-se que os resultados atingissem uma maioria absoluta, o que
não acontece uma vez que, por exemplo, no caso da aplicabilidade, o «pouco aplicável» e o
«sem aplicação» atingem o incrível resultado de 31%. Note-se que a questão da utilidade não
é fácil, muitos professores de filosofia possuem dificuldade em responder a esta pergunta,
muitas vezes com medo que a disciplina de Filosofia desapareça do ensino secundário. Mas ao
que parece os estudantes – principais alvos do ensino da Filosofia – mostram-se muito seguros.
17
CONCLUSÃO: VALE A PENA «LUTAR» PARA MUDAR O MODO COMO SE ENSINA FILOSOFIA NO
ENSINO SECUNDÁRIO, HOJE?
18
REFERÊNCIAS
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