Вы находитесь на странице: 1из 46
eid ee are) ey Cent ried auténtica dito Nenhuina parte dela pAbcasho ordre se esisiyre, a HRI, SAID 8 BUNIHILAL AO Gr be Etore 1 5 BELEN oe ton aor tr yn omnisshies MvOhuntbas 8 Aon conisenascnny 6 sUbrsecyuenities, Introducao Entre a transparéncia e a opacidade - 0 que a imagem da a pensar Emmanuel Alloa Nao se olha a imagem como se olha um objeto. Olha-se segundo a imagem. Maurice Merleau-Ponty O que é uma imagem? A miltipla proliferagio de imagens no mundo contemporaneo parece — ¢ esse € seu paradoxo — inversamente proporcional a nossa faculdade de dizer com exatidao ao que elas correspondem. Parece ocorrer com as imagens quase 0 mesmo que acontece com 0 tempo em Santo Agostinho: somos perpetuamente superexpostos as imagens, interagimos com elas, mas se alguém nos pedisse para explicar o que é uma imagem, terfamos dificuldades de fornecer uma resposta. Poder-se-ia retrucar que existem duas razdes para essa dificuldade e que a questio est4 mal colocada. Por um lado, interrogar-se sobre 0 que é wma imagem seria ainda ignorar que a imagem tende a se disseminar, declinar-se dela mesma em formas plurais, se desmultiplicar em um devir-fluxo que se sustentaria instan- taneamente no Um, Por outro lado, perguntar o que é uma imagem retorna inevitavelmente a uma ontologia, a uma interrogacao sobre seu ser, Ora, nada parece menos seguro do que o ser da imagem. O triptico fotogrifico de Retratos Ficticios, de Keith Cottingham (1992), nos da a ver sucessivamente um, dois, depois trés adolescentes, instalados sobre um fundo negro diante da camera fotogrifica (Fig. 1). Expostos a meio-corpo a uma luz fria, os bustos iméveis remetem a plis- tica idealizante, uma vez que os olhares expressam uma aristocracia im- passivel. Esses rostos de cabelos lisos ¢ tragos regulares, quase andréginos, pos cujo crescimento ainda nio esti come repousam sobre 08 Cor como um crescimento 4} prico evoca o retrato de um Dorian Gray sobr € 0.qualo melhor, ue foi interrompido. Na sua 1 perfeicg congelada, 0 tri passar. Assim como o niimero de imagens da gens da série, 4 tempo nio iri mais vinidade do sujeito represencado se difrata em um polimorfism ' ismo ingu tante: ligados 1 quase idénticos se disti entre si por uma perturbadora gemeidade, os adolescent nguem, entretanto, insensivelmente, embc ae nea alcangarsoas individuatidades distinas. Inegavelmente RRetrtas Fictcos de Cottingham provocam. Ao ieee 6 mecanism jdentificador e confundir o automatismo da atribui¢ io, suas ima exigem que a elas se dedique tempo Figura 1 ~Keith Cottingham, S: em tulo (trip Fotografia modificada, Série Retnutos F FILdE A imagem pensativa Atraente ao olhar, as fotos de Cottingham s6 podem, no seu des- locamento infimo, deixar sonhar aquele ou aquela que as contemplam Superficies impenetraveis, elas aspiram, entretanto, 0 movimento do olho, forgando-o a procurar a origem da sua intranquilidade. Através da superexposicio do grio, a materialidade da imagem introduz areia nas engrenagens do visual ¢ cria um tempo, o do olhar. Segundo Roland Barthes (2003, p. 1134), esse é o instante preciso em que a fotografia se faz subversiva, “no quando se assusta, repele, ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa”. Na sua anilise nas linhas finais da Sarrasine balzaquiana (“E a marquesa permanece pensativa”), Barthes (2003, p. 700-701) entrevé 0 esbogo de uma indecisio suspensiva que, por sta vez, Jacques Ran- ciére (2009, p. 115-140) encontra na atitude pensativa dos adolescentes sonhadores fotografados por Rineke Dijkstra. Esta “pensatividade” ainda permanecera relativa, por muito tempo s6 nomear4 o estado de alma de um sujeito representado, em resumo, a pensatividade da imagem ser, portanto, confundida com a pensatividade do sujeito da imagem. Ora, a “pensatividade” s6 desenvolve realmente sua forga de subyersio quando nao realga mais 0 sujeito representado, mas quando se difunde e afeta tudo que a cerca. No espaco entre a imagem ¢ 0 olhar que ela provoca, uma atmosfera pensativa se forma, um meio pensativo. Tal meio ¢ tal espaco potencial, indeterminado ainda nas suas atualizacdes singulares, um meio de pensatividade precedendo todo pensamento e que, assim, “encerra o pensamento nao pensado” (Rancrére, 2009, p. 115 [2012, p. 103))." Com forca, as fotos de Cottingham lembram que, longe de ter permanecido exterior a0 pensamento ocidental, a imagem sempre esteve no coracio do pensamento, suscitando nela uma exterioriza gio, uma saida de si. Operacionalizado em um projeto de apreensio compreensiva como representacio, de esquema ou de cliché, a ima- gem inevitavelmente arruina todo recentramento, no que ela expde 6 pensamento como seu fora, no que cla carrega, para fora de si, a Entre colchetes, referéncia a tradugio brasileira, que reproduzo. RANCIERE, Jac- ques. O espectador emancipado. Traducio Ivone Castilho Benedetti. Sio Paulo: Martins Fontes, 2012. (NT) EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA E A OPACIDADE 9 forga de se expor ao que ela nao pode ainda pensar e a que hit Peale peasarauendizer, ave ojpensamemo emerye mesmo de uma pensatividade sensivel, de um sensivel impensad. porque inesgotvel em sua exterioridade. ‘A ambivaléncia fundamental ao olhar as imagens talvez se lang, inteiramente nesta oscilagao entre a dendncia dos limites da imagen, ea operacionalizagio de seu ser-limitado, na ambiguidade entre o qu se dé por finito (podendo, portanto, servir de suporte representatiy 20 que, de outra forma, se subtrai ao olhar) ¢ isso que, entretanto, ng sua finitude, se excede em permanéncia, nao reconhecendo nunca os limites da sua propria razio. Dai este es olhar a imagem: reconhecendo que ela te esta ausente, tornando presente aquele que est d. Alberti (1992, p. 131), em Da pictura, a compard-la 3 forca da amizade-, de controlar e de inspecionar esse autoexcedente tranho paradoxo na atitude ao um o poder de tocar o que istante ~ 0 que levari trata-se precisament Na Antiguidade, 0 que os detratores da imagem denunciavam a titulo de excesso, de sta hybris, retorna aqui: essa pretensio de ser presente, de se apresentar no lugar daq literalmente um “pretendente” do ser. tuilo que é representado, faz da imagem A imagem pretendente pretendente aqui no é nada além de um simulador, No lugar de se contentar de permanecer em seu lugar e de nio ser aquilo que ele 6, ele se faz simulacro, ele faz “como se” (ele € 0 simul dos latinos) A diferenga do substituto que suplementa a auséncia do original, 0 pretendente visa nao somente a fun¢ao do representante, mas pretende substituir o original, simulando o ser (DELEUZE, 1969, p. 292-307) Quando tentamos compreender as novas realidades visuais que nos cercam, é indtil apelar a uma tradi¢o que, na sua ambivaléncia 20 olhar as imagens, nem por isso deixou de produzir uma reflexio frequentemente significativa sobre elas. E por isso que descrever @s revolugées tecnolégicas — como a passagem do anal6gico ao digital nfo necessariamente ajuda-nos a compreender isso que modifica a eficacia das imagens e nao apenas mascara o que muito frequentemente ainda faz falta em um pensamento da imagem, Ora, as palavras que utilizamos, sem tomar muito cuidado, para nos referir a essas novas 10 FILdESTETICA visualidades, sio resultado de uma tradigio que fez de tudo para man- ter as imagens a distancia, Essas novas visualidades slo chamadas de virtuais, de um lado porque sua realidade nao repousa sobre nenhuma substancia psiquica, mas ainda porque elas participam de um virtus, de uma poténcia ou de uma eficicia que age sobre o espectador, que, depois de Platio, o pensamento tenta circunscrever. Diz-se ainda que as novas visualidades consistem em imagens de sintese. Mas 0 que isso quer dizer? Uma vez mais, a distingio platénica se impde entre as imagens-c6pias (eikénes) que a tudo representam, mas permanecem ainda separadas do representado, as imagens-simulacro (eidola), que se curvam, se apiedam e se confundem com o que elas presumem representar. No primeiro caso, 0s eikténes obtém sua representatividade da autoridade que guardam com o representado em sua auséncia, em seu lugar, sem colocar em questio o espaco; no segundo caso, os efdola, nGo contentes em simular sua dependéncia com o representado, a ele substituem e tornam impossivel toda distingdo. Quando tal sintese ilicita acontece, impedindo de distinguir de dircito os elementos que a compée, se retine uma contranatureza quimérica, Sobre esse pano de fundo, os Reiratos Ficticios de Cottingham s6 podem convocar esses simulacros evocados por Platio: nenhum adolescente real serviu aqui de modelo para 0 fotdgrafo, os corpos imaculados sao, na realidade, quimeras eletrénicas, mosaicos hibridos cujas pecas foram fabricadas a partir de esbogos virtuais, a partir de miscaras de argila e de farrapos de pele ou de cabelos digitalizados, re- sultado de centenas de horas de trabalho. Cottingham realiza, portanto, imagens “hibridas” que no enviam mais a nenhuma realidade iden tificdvel e consistem em pura aparéncia. Resultado de uma facultas ‘fingendi que nao revela mais a alma, mas os aparelhos em si mesmos, essas imagens sio simulacros no sentido em que se apresentam como se fossem retratos, que pretendem, portanto, ser aquilo que nunca foram. O carter hibrido ou quimérico aqui faz par com uma hifbris fundamen- tal da imagem, um “excesso”, ou melhor, uma “pretensio” de ocupar um lugar para o qual nio ha retorno. Os debates sobre a imagem, novos ou antigos, sio frequentemente debates em torno dos lugares ¢ dos espagos aos quais atribuir as imagens, Por essa razio, os pensamentos da imagem raramente foram pensamentos a partir da imagem (ou segundo EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIAE A OPACIOADE n imagem, para falar como Merleau-Ponty), mas consistiam antes ey, uma insereio desse objeto incmodo e perturbador em uma ordeyy, de saberes i estabelecido. Com frequéncia, o cariter proteiforme da, imagens e sua forca de deslocamento suscitou estratégias eficazes de reterritorializacio, permitindo desarmar os conflitos em torno do “ugar” e corrigir essa pretensio. Paradoxalmente, a distancia interna de toda imagem entre seu aparecer e aquilo que ela faz aparecer ~ dis. tancia que se poderia qualificar, com Gottfried Bochm, de “diferena icénica” — pode servir de pretexto aos mais ferozes iconoclastas, mas também a uma verdadeira iconofilia incondicional. Insistir sobre 0 fato de que a imagem que aparece é sempr menos que aquilo que ela torna visivel, € insistir sobre sua auto- nomia irredutivel e sua materialidade insuperavel; insistir sobre o fato de que aquilo que vemos em uma imagem € sempre mais que seu objeto fisico, € concordar com uma legitimidade que vem de fora ao objeto 20 qual fornecemos o sentido. Trata-se, portanto, de negar a eficacia das imagens ou, ao contrario, de defender sua fungio significante, se esta diante de uma busca pela univocidade das imagens, permitindo arranjé-las ou bem na ordem das coisas ou bem na ordem dos significantes. O paradigma duplo da transparéncia e da opacidade Retomando a categorizagio que Arthur Danto (1981, p. 159) propée para a arte, se poderia entao distinguir entre as feorias da trans- paréncia, de um lado, ¢ as teorias da opacidade da imagem, de outro. Dizer que as imagens sio “janelas abertas” sobre uma significacio é trata-las como simples “lembrancinhas”,? transitividades cuja funcio de referéncia funciona melhor quanto mais sejam esquecidas na sua materialidade. Os criticos de uma tal semiologizagio da imagem insistiram sobre a irredutibilidade e a inesgotivel materialidade das Imagens, nio a remetendo mais a nenhum referente e s6 expondo set ser bruto, como nos objetos especificos de Donald Judd. Se quisermos reformular essas duas estratégias que reintegram as imagens em termos ? ; O termo francés ¢ fuire-part e designa pequenos brindes distribuidos ao final de wma festa de casamento, aniversirio, etc. (N:T) 12 FILOESTETICA linguisticos, respectivamente, na ordem dos signos e na ordem das coisas, se poderia dizer que as teorias da transparéncia consideram que a proposicdo/imagem/ é uma proposi¢o em dois termos, enquanto que as teorias da opacidade assumem que a proposi¢i0/imagem/ é uma proposi¢o em um tinico termo. Para manté-las em transparéncia, é preciso que toda imagem seja sempre imagem de alguma coisa, € por- tanto sempre um x imagem de um y (em termos formais, a proposi¢i0/ imagem/ deveria ser escrita “imagem (x,y)"). Para tomi-las como 0 contrario da opacidade, o ser-imagem coincide com seu ser-ai e nao “imagicidade”? ha necessidade de um termo exterior instituinte da “ (aqui, a proposi¢4o/imagem/ se escreve “imagem (x)”). Essas duas posi¢des so, no entanto, menos antinémicas do que parecem e s6 se pode observar que, na tradi¢io, uma combinagio tio improvavel quanto eficaz se estabeleceu entre elas. Contra a afirma¢do de que as imagens tém um poder, se insistir4 sobre o seu cardter material, 0 qual em seguida se poder4 denunciar rapidamente a impoténcia (“tém uma boca, mas nao falam, so dotadas de olhos, mas nao veem” [Salmo 115]). Sobre a outra vertente, se insistir sobre 0 fato de que nao hé lugar para travestir a imagem com propriedades migicas, visto que se trata de um certo tipo de simbolizagio da qual se podera em seguida descrever a estrutura referencial. A imagem — “verdadeira”, 0 cikén, e no 0 idolo que se toma por uma “presenca real” — remete a coisa representada, desviando a atengio de sua pré- pria materialidade. Daf toda uma semiologia da imagem, de Tomas de Aquino a Umberto Eco, que visa demonstrar que as idolatrias, antigas e modernas, apenas compreenderam mal que a imagem revela simplesmente um sistema de simbolizacao, entre outros. O quadro do castelo de Marlborough pintado por John Constable fixa menos 05 tragos comuns com o castelo real de Marlborough — com 0 qual, entretanto, se diz semelhante — que com outro quadro representando qualquer outro sujeito. A identificacio nao procederia, portanto, das qualidades intrinsecas da imagem, mas de sua inscri¢io em uma rede de significantes (RECANATI, 1979, p. 84-87) > No original, imagéité, neologismo usado por Jacques Ranciére em Le destin des images, aqui publicado como O destino das imagens (Contraponto, 2012, p. 20). A tradutora Ménica Costa Netto optou por manter o termo no original. (NT) EMMANUEL ALLOA ENTRE & TRANSPARENCIA A OPACIDADE 13 Tal subordinagao da imagem ao discurso nio se mantey incontestada, De Félibien a minimal ar, sublinhou-se a dimen, fisica irredutivel das obras, essa profundidade da cor, todas es, manchas, esses toques e tragos propriamente “insignificantes” qu, formam, no entanto, a condigio sine qua non de toda obra (June »D. 1976). As “opacidades da pintura’, para falar como Louis Marin, (2005, p. 202), resistem a toda verbalizagio sem resto. Acidentes da matéria, vestigios do gesto que o abrir4, essas concretudes fisicas reconduzem o olhar inelutavelmente em diregao ao tecido de que sio feitas as imagens. Uma tal estética da imanéncia esta resumida na formula programatica de Frank Stella; “what you see is what you see” ~ inatil procurar um sentido escondido, de fato, se a obra coincide com a sua identidade material. Pode-se, todavia, perguntar se uma tal estética esta realmente > vem con- alforriada da posigao que ela pretende combater ¢ se ela firmar, de forma ainda mais dissimulada, a dicotomia entre mat e forma. Pode-se realmente alcangar 0 nivel de uma matéria nua ¢ indecifravel? Existe um punctun puro, afastado de todo studium? Nessa contra-hist6ria do discurso da imagem na época classica, Louis Marin nio parou de insistir sobre 0 fato de que opacidade e transparéncia sio, em sua oposi¢ao, religadas por uma combinagio irredutivel Janela aberta, a pintura da representacao permite a visibilidade, corpo opaco, ela garante a lisibilidade, O retrato do rei constituir’, entio, essa figura na qual o envio convencionado ¢ a presenga real se reen contram em um ato eucaristico, em que a matéria autentica o signo, € 0 signo inversamente garante o milagre, “opacidade e transparéncia reconciliadas ~ ao menos idealmente — em uma teologia do ato real” (Marin, 2005, p. 202). A alianca subterrinea entre uma ontologia do objeto e uma semiologia da referéncia permite operacionalizar a imagem e neutralizar o escandalo inicial. Esse fendmeno que nio se deixa pensar nem como 1m com aquilo que dé a ver nem como fundamentalmente outro pode ser assim reabsorvido no duplo registro unificante da ontologia e diferenciador da semiologia. A imagem sera pensada sucessivamente na transitividade transparente ¢ na sua intransitividade opaca, sucessivamente como janela e como superficie impenetravel, como simples alegoria (“Allos agoretiein”, diz 0 Outro) € como pura fautologia (“taut6 légein”, diz 0 Mesmo). mu FILBESTETICA — O pensamento exposto A polarizacao da imagem que se opera através do duplo para- digma da transparéncia e da opacidade permite um exorcismo quase perfeito da inquietude suscitada pelas imagens. Assim, dissociada em dois terrenos separados, a imagem nao coloca tanto um proble- ma te6rico, mas formara um objeto a mais para um pensamento ja constituido. Com Georges Didi-Huberman (1990, p. 9-17), pode-se constatar que um “tom de certeza” reina, recentemente como hoje, a propésito das imagens, nao apenas entre seus usuarios profanos, mas ainda de maneira mais forte entre os que se dizem especialistas Tratando a imagem como uma individualidade que se poderé ins- crever em uma genealogia geral e reduzindo todo conhecimento a um reconhecimento, é a superveniéncia singular de uma imagem que se vé recoberta em sua forca irruptiva que se encontra anestesiada, Ao reconduzir assim as imagens visiveis as imagens lisiveis e, portanto, inteligiveis, sé se pode “encerrar muito rapido sua capacidade de provocar, de abrir um pensamento” (Dipi-Huserman, 1998, p. 10). Ora, esse saber das imagens apenas mascara imperfeitamente sua experiéncia, na experiéncia de uma imagem que nos interpela, estamos antes de tudo desamparados e despossuidos de nossa seguranga ao complementar Cézanne, Merleau-Ponty [1964, p. 156] expressava alguma coisa dessa ordem quando sugeria que, com a pintura, nao podemos jamais nos sentir em casa como podemos com a linguagem) © adolescente colocado 4 esquerda na fotografia de Cottingham e cujo olhar aponta, flecha em dire¢io ao espectador e nao larga mais (0s olhos se inscreve na tradicao dessas figurae cunclae videntiu evocadas a partir de Nicolau de Cusa (1986 [1453}), esse olhar proveniente do quadro ¢ no qual o espectador nao pode se subtrair, mesmo se des- locando, Quando Paul Valéry, Walter Benjamin ou Lacan retomam essa evocacio sobre nosso ser-olhado pelas imagens, eles ressaltam, em sintonia, que antes de toda demanda de interpretagio, esse olhar marca um pedido de ateng’o, uma demanda que é a do direito de um olhar de volta (Dipt-Huperman, 1992; Evxins, 1997). E porque ela se dé na simultaneidade de um golpe de vista, a imagem nio saberia se reduzir—apesar do que diz Lessing —a uma visio sindptica. A imagem exige, ao contririo, sempre um lapso de tempo ¢ um lapso no tempo, EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA E A OPACIDADE 15 um sobressalto, um por em movimento do olhar: uma cinest, precisa ser tomada ao pé da letra. Operadora de eclosio ou gin abertura, a imagem introduz um excedente nao reintegrivel , a‘ cS itereprerccasaparricde dentro, uma exposicio ao fe" Bee ete reretn ver do ato de que cla nio pode = esa) se rctirar em direefo a nenhum regime de interioridsg,. exposigio de sua nudez, ela da a ver que s6 existe dentro e por espaco onde ela se precede perpetuamente ¢ onde ete precede todo olhar antecipador. ye Jss0 que a imagem dé a pensar se situa talvez Ii, nesta iminéneiy que nao pertence a ninguém, alguma coisa que se tem diante (em todos os sentidos da palayra): nem aqui nem em outro lugar, nem presente hem ausente, mas iminente, Quando se diz que as imagens sio suspensas & preciso entender essa constatacio literalmente: 0 que elas dio aver est suspenso, sem que essa suspensio possa ser objeto de uma substi- tuigdo sintética, o que aparece em imagem resiste A generalizacio, mas excede sempre, no seu aparecer a um espectador, sua simples redugio go artefato individual. Seria preciso, sem duivida, falar das imagens em termos de “suspense” (Déor te, 1993): paradoxo de um objeto que se dé aver em uma tinica e rapida olhada, nos limites fisicos do objeto pendurado na parede, sem, no entato, jamais ser exaustivo no insane ‘Ao demandar serem percorridas, elas geram uma espera — um suspense— cujo desenrolaré, no entanto, infinitamentereferido,adiado, suspenso, 6 fim da imagem nao podendo ser reduzido a suas bordas materiais Entrelagamentos temporais, quiasmas de olhares, as imagens io saberiam propriamente ser localizadas nem aqui nem li, mas constituem pre as imagens requerem uma outra forma de pensar que suspenderia suas expor is dimensdes de nao saber que implica cisamente esse eritre que mantém a relacao. Como tais, certezas e aceitaria se toda experiéncia imaginal. * Esta coletanea é resultado de um seminirio realizado no Col- Jége Internacional de Philosophie em 2007 e 2008, enriquecido em seguida por alguns textos que testemunham ao mesmo tempo 4a incidéncia da questo da imagem nos saberes contemporineos ¢ * variedade de abordagens. A heterogeneidade dos objetos e dos olhares FILBESTETICA 16 s6 confirmaram o fato de que a imagem é também indisciplinada, indisciplinar, e que constitui precisamente o que resta ainda a pensar. O livro se articula em miiltiplas subdivisdes. A primeira (“O lugar das imagens”) circunscreve as imagens como lugares de uma interroga¢ao originaria. Na sua interven¢io, Gottfried Boehm explica por que as imagens colocam o problema mais amplo da mostragio ¢ indica 0 caminho de uma antropologia da imagem, em que o homem ser pensando como “iconéforo”,’ no entanto, com si mesmo e tendo diante de si suas proprias repre- sentac¢des. A partir de mios negativas da arte paleolitica, Marie-José Mondzain prope uma meditacio sobre 0 gesto do retrato como origem da imagem e a autoridade do espectador como sua destinagio. Partindo de uma coimplicacio originaria entre mimesis e méthexis, Jean-Luc Nancy caracteriza, em seu ensaio, o lugar da imagem como esse fundo que permanece quando a aparéncia escapa. A segunda parte (““Perspectivas historicas”) é dedicada a outras conceitualidades da imagem — em geral espantosas, por vezes enga- nadoras — que puderam ser desenvolvidas no pensamento ocidental, notadamente com uma troca com outras tradigdes. Emanuele Coccia faz reviver os debates medievais em torno das “espécies intencionais”, cuja aceitagao implicaria que o sensivel fosse no uma vasta assom- bracdo espectral. Emmanuel Alloa retraga o destino fantasmatico de uma ciéncia que jamais se constituiu como disciplina— a “idolologia — retomada por Heidegger em sua luta, perdida por antecipagio, contra as filosofias da cultura. Hans Belting propée langar um olhar sobre a concep¢io da imagem como janela transparente com a qual se constituiria a forma simbélica do mundo arabe: 0 muxarabi como © que extrai o olhar, deixando transparecer a luz. A terceira parte (“A vida das imagens”) promove uma refle- xio sobre a presenca das imagens no mundo contemporineo. O crescimento exponencial do imageamento cientifico analisada por Horst Bredekamp se refére, de um lado, a um imperativo ilustrati- mo de vo, produzindo “{cones” cientificos, mas convoca, antes mes seus resultados, de Galileu a Darwin, as descobertas cientificas que + Tcondforo é a traducio literal do neologismo icanophore, que tem como significa “portador do icone”. (N.T.) EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIA EA OPRCIOADE W “>| principalmente de esbogos, croquis ¢ outros esquem, 4 margem dos textos. Em seu ensaio Programitic, idas e os desejos das imagens, W. J. T. Mitchell sustenta a ideia de que a imagem, longe de ser apenas um instr, representagao, usa seus espectadores segundo seus Proprios le reconhece que tal posi¢ao visa denunciar a neutralizacie ujo prego foi pago pelas imagens durante muito tempo nciére traz de volta, em sua discussio critica das tese, , as ambiguidades de uma biologizagio, para defender, orrente, uma fungao critica da imagem, resultado preci. n, na ultima parte (“Restituigdes”), Georges Didi-Hu- promoye um didlogo com a obra de Harun Farocki em que io. Em sua “entrega”, que s6 pode ser feita sobre o fundo agem heterogénea, a imagem pode tornar-se uma su- reparagao onde, longe de todo lugar-comum, se desenha como um “lugar-comum”, ‘© aqui a todos os que, proximos ou distantes, acom- te projeto desde seu inicio, a editora Presses du Réel alorosa e — last but not least — os tradutores (Fabrice Ghermani, Stéphane Roth et Maxime Boidy), s a circulagio do pensamento para além das fronteiras Basileia, maio de 2010. FILBESTETICA Referéncias ALBERTI, L. B. De la peinture. Trad. J.-L. Schefer. Paris: Macula, 1992. [Da pintura. Campinas: Ed. da Unicamp, 1989] BARTHES, R. La chambre claire. Notes sur la photographie. In: Euvres com- pletes en trois volumes, t. III, 1974-1980. Paris: Le Seuil, 2003. [A camara dara: nota sobre a fotografia. Trad. Jélio C Guimaraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984] BARTHES, R. S/Z., In: GEuvres completes en trois volumes, t. 1, 1966-1973. Paris Le Seuil, 2003. [S/Z: uma anilise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1992] DANTO, A. The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art. Har- vard: Harvard University Press, 1983. [4 transfiguragao do lugar comum. Trad Vera Pereira. Sio Paulo: Cosac Naify, 2010.) DE CUES, N. Le Tableau ou a vision de Dieu. Trad. A. Minazzoli. Paris: Cerf, 1986. DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969. [Légica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. Sio Paulo: Perspectiva, 2009.] DEOTTE, J-L. Le Musée. L'Origine de Vesthétique. Paris: L;Harmattan, 1993. DIDI-HUBERMAN, G. Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris: Minuit, 1992. [O que vemos, 0 que nos olka, Sao Paulo: Editora 34, 1998] DIDI-HUBERMAN, G. Devant image. Paris: Minuit, 1990. [Diante da Imagem Trad. Paulo Neves. Si Paulo: Editora 34, 2014 DIDI-HUBERMAN, G. Phasmes. Essais sur l'apparition. Paris: Minuit, 1998 ELKINS, J. The Object Stares Back. On the Nature of Seeing. New York: Columbia University Press, 1997. GOODMAN, N. Languages of Art. An Approach to 4 Theory of Symbols. India~ napolis: Bobbs-Merrill, 1976. [Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos simbolos. Lisboa: Gradiva, 2006.] JUNOD, P. Tiansparence et opacité. Lausanne: LAge d’Homme, 1976 MARIN, L. De l'entretien. Paris: Minuit, 1997 MARIN, L. Opacité de la peinture. Essais sur la représentation au Quattrocento. Paris: Editions de 'EHESS, 2006. MARIN, L. Politiques de la représentation. Paris: Kimé, 2005 MERLEAU-PONTY, M. La Prose du monde. Paris: Gallimard, 1964. [A prosa do mundo. Trad. Paulo Neves. Sao Paulo: Cosac Naify, 2014.) RANCIERE, J. Le Spectateur émancipé, Paris: La Fabrique, 2009. (O espectador emancipado, Trad. Ivone Castilho Benedetti. Sao Paulo: Martins Fontes, 2012,] “EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARENCIAE A OPACIDADE 19 |. O lugar das imagens . Sobre a diferenca icénica Gottfried Boehm Introdugao. O lugar da imagem © que uma imagem daa ver, o que mostra e, sobretudo: como tra? Sao as questées das quais gostaria de partir. Pensar a imagem portanto, refletir sobre o entrelagamento entre as imagens e aquilo ue elas mostram. A légica das imagens — aqui esta a nossa tese — é uma ica da mostragao: as imagens nos dao a ver alguma coisa, nos colocam coisa “sob os olhos” ¢ sua demonstracao procede, portanto, na mostragao. Partindo de tal assergio, jé fizemos, todavia, apelo a pressupos- complexos que se tratard em breve de situar. Trata-se de recolocar sstdo da imagem em seu lugar. Mas existe verdadeiramente esse ar? Porque a realidade da imagem se revela ser tio plurivoca, é a. Ao nao levar em conta que as transformagées que a arte XX operou sobre a grandeza do quadro, outrora solido, se jd a amplitude desta transgressio: ela se faz bruscamente ¢ zer uma palavra. O que toma lugar, entio, é — para nomear 0 essencial —a fotografia ¢ o filme, a colagem, 0 objeto hibrido 9), 0 objeto-imagem (Schwitters), 0 ready-made (Duchamp), (Pollock), 0 objeto especifico (Judd), a performance, a a videoinstalagao, assim como diversos outros “neo- proprios 4 expressio imaginal. Ao lado dessa avaliagio 23 colocou-se @ prova critica a imagem ¢ seu alargamento, vig partir dos anos 1980 0 acontecimento da tec nologia digital que nas ciéncias, por exemplo, fizeram da imagem wma ferramenty conhecimento e, por consequéncia, alguma coisa que nunca tinh, havido na sua histéria: o meio de comunicagio cotidiano, flexivel , fluido, que comeca ja, aqui ¢ acolé, a suplantar a linguagem, Con, tudo isso, ainda nao falamos das imagens en Mos: gens mentais, dessa misteriosa faculdac, as imagens do sonho as representagGes ou as ima; interior chamada imaginagio ou fantasia. O que a linguagem produy so imagens, metéforas ou figuras pocticas? Como se viu: a polissemia eas disparidades disso que a imagem realga revelam ser tanto extremas quanto perturl tém verdadeiramente uma identidade declinavel, alguma coisa de co mum que as liga? £ aqui que a filosofia entra em jogo? Certament se pode chamar de filosofica a questo da imagem ¢ das imagens Mas como se arranjam, entio, esses conhecimentos que as diferent disciplinas puderam constituir sobre 0 sujeito ¢ antropologia, a teologia adoras. As imagen: 1a imagem: a historia da arte, a arqueologia, a paleontologia, a apsicanilise, a literatura, a hist6ria das ciéncias? Porque parece que ha poucas disciplinas que tém de lidar com as imagens, Se formo tirar uma constata¢ao cética desse resumo muito curto, isso tomaria sem diivida a seguinte forma: a questio da imagem nao fem nin Ingar univoco € nao pode, consequentemente, ser enfrentado como um problema coerente. Seria, portanto, mais honesto interromper aqui € nao ir muito longe com essas elucubragdes. Mas 0 que, entio, nos permite evitar nosso ceticismo ¢ continuar nosso questionamento? A filosofia nao fornece, apesar de tudo, um remédio eficaz contra a davida radical? E porque, no fundo, um bom namero de teorias da imagem est4 atualmente disponivel e todas manifestam, mais ou menos, uma certa coeréncia. Por enquanto, nos ocuparemos de resistir a0 canto da sereia de uma ou outra teoria. Nao apenas por causa do carter necessariamente parcial de toda teoria em geral, mas ainda porque bem sabemos que a entrada em jogo determina, sempre ¢ inevitavelmente, a conclusio e 0 método do resultado — visto que optamos por um procedimento certamente mais elementar, mas talvez também mais circunspecto. Comegamos por uma teorla 24 iuBestérica [Lee nite da teoria, tentando efetuar um certo nimero de distingdes dos fendmenos em si. Tentaremos decifrar a imagem em si, como ela funciona, que momentos sio nela operadores e 0 que poderia — tal- vez — nos permitir fundar uma epistéme icénica. Essa circunspeccio ressalta ainda uma outra razao. As culturas mediterrineas e euro- peias tém certamente produzido uma histéria pictérica abundante, 0s museus transbordam; e milhares de imagens circulam em torno do globo. Mas por que razio o saber (no sentido do saber tedrico) nunca pode andar no mesmo passo? Por que o projeto de uma epis- téme icOnica s6 apareceu dois mil anos depois da fundagio de uma filosofia da linguagem? Evitaremos aqui a palavra “logocentrismo” para nos arriscar em outra hipétese. Seria concebivel que sejam as imagens, elas mesmas — e mais precisamente, um certo tipo de imagens —, que impedem que a imagem seja enfrentada como tal? De fato, a maior parte das imagens, as imagens de uso, cotidianas ¢ tipicas, visam ser lidas como uma simples indic 10 em dire¢do ao que, sempre, se tem ji para além da imagem. Pouco importa, alids, se se trata de fotografias banais ou de pinturas ditas exigentes: a imagem representa um caso de figura cujo espaco de significagio precede, a titulo de pré-tex- to, toda representacio. Essa identificacao interna de significagdes externas carrega um nome: iconografia. Queiramos ou nao, todos ja nascemos iconograficos. Em tal atitude iconogrifica, apelamos a “ama concep¢io implicita da imagem, a da transparéncia ideal. A ima- gem aparece entao como um vidro transparente sobre um universo textual que se tem por tras ou ainda como uma lua que nio dispde de nenhuma luz propria e cuja claridade apenas provém da luz do sol que ali se reflete. Da mesma forma, no sentido da imagem, a luz da significacao realgari pouco de sua propria forga. Antes, cla procedera de uma outra realidade que, sob a forma de um texto ou , no de uma narrativa, precedera o pér em imagem. Certament ha dtividas de que a identificagdo de contetidos desconhecidos — e aqui Panofsky tem razio — constitui um aspecto indispensivel para aanilise, porque, muito frequentemente, ndo compreendemos bem aquilo que vemos. Nesse sentido, as obras da pintura religiosa ¢ mitol6gica apelam, com certeza, a uma histéria extrinseca que vem apoiar as imagens e lhes justifica a existéncia. Mas, se a imagem GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOSTRA 25 Figura 1 — Andy Warhol, Rorschach, 1984 Tal retorno a uma histéria pessoal nao se di sem relagio a um retorno 4 historia da humanidade. Numerosos vestigios paleoliticos indicam que a hominizacio acontece a0 mesmo tempo que o desen- volvimento de priticas visuais, assim como a diferenga antropologica residiria talvez nisto: 0 homem € 0 tinico animal a se interessar pelas imagens, ele 6, portanto, um homo pictor (Boru, 2001, p. 3-13). Ora, realizar uma imagem é menos criar uma coisa e mais proceder um ato de diferenciagio. Uma diferenciagio que precede, alids, as diferencas conceituais ou as diferengas de valor, mas observa uma diferenciacio liberada do material sensivel. Para avangar, pode-se dizer que tal ato de diferenciagao implica trés condigdes: 1) as imagens estao localizadas em um substrato material onde elas se encarnam. Se elas agem sobre 0s corpos que as contemplam, as imagens tém uma insisténcia, até uma persisténcia que frequentemente sobrevive 4 vida biolégica do cérebro que as concebeu. emergéncia, no sentido mesmo de um campo visual que se diferencia, ) O corpo material das imagens faz fundo a de alguma coisa que emergira como isso ou aquilo. 3) Se insistir sobre aimanéncia dos processos no material imaginal, esse acontecimento de emergéncia seria, todavia, suspender © objeto: todo processo de diferenciacio implica uma motricidade elementar do espectador que GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE WosTRA 27 se desloca — com suas mos, seus pés € seus olhos — em direcio, em torno e no centro da imagem. Pode-se, entao, 4 maneira da diferenc, ontoldgica de Heidegger, falar de uma “ em milltiplos niveis ao mesmo tempo. Qualquer que seja seu modo de distina0 — recordem-se das di- ferenciagées invocadas inicialmente ¢ por um contraste visual. Uma image ‘Mesmo uma imagem perfeitamente mo! de uma diferenga, nesse caso da diferen relac¢io a um muro. Como a diferenga onto) nio seria, portanto, mais restrita 4 imanéncia de um ente, mas ela acon- tece onde haja uma diferenciagio. Nivelar 0 contraste é fazer a imagem desaparecer: 0 fendmeno da camuflagem ilustra isso bem. A camufla- gem que determina inicialmente (e sempre) uma estratégia militar de dissimulagio visa fazer desaparecer algo visiv superficie visual do mundo. Warhol, alis, refletiu sobre esse aspecto nas suas Pinturas Camufladas, 0 que se poderia igualmente interpretar como uma referéncia irénica a estética do all-over de Pollock. Além o exemplo da camuflagem ilustra que, 3 presenca, uma fo pode se mostrar sob a diferenga icénica” que oper, _ essas se estabelecem sempre na sm sem contraste € inconcebivel, nocromiatica tira sia iconicidade ca de um campo colorido em logica, a diferenca icénica fl, a0 integra-lo de novo 3 do mais, rea paca vem se opor 3 transparéncia. A imagem s6 condigio de mostrar, a minima, alguma coisa. Ora, na camuflagem, ¢ por assim dizer, a opacidade que ganha por acabar impedindo o cami- pho do olhar atravessador. A imagem se faz objeto entre outros, ela se perde como imagem. Ora, a equivocidade das imagens provém dessa tensio fundamental entre isso que se poderia chamar de literalidade material e 0 que se separa como apresenta¢4o visual, sem que esses dois aspectos nunca possam ser separados. Essa diferencia¢ao por contraste abre uma teoria da diferen¢a que nio se deixa resumir pelo conceito de diferenga por oposicio e sintese desenvolvida pela tradicio ocidental. A génese do sentido a partir de uma diferenga visual fundamental se refere a um pensamento do entrelaca- mento, idéntico e diferenciador ao mesmo tempo, que fascina a filosofia desde a antiguidade até Hegel, Heidegger ou Whitehead. Em O sofista, Platio - 0 grande inimigo filosofico das imagens — se empenha em uma disputa critica com Parménides, encontra no desvio de uma frase uma se tio memoravel quanto intrincada do que constitu! a esséncia das imagens. Portanto, 0 “nao ser é aquilo que realmente 28 = FILBESTETICA chamamos de imagem” (PLATAO, 240b). Essa dupla negagao expressa justamente o estatuto estranhamente flutuante da imagem, que marca seu lugar na ordem do real. Ora, na tradigio que se inscreve na esteira desses grandes textos, as imagens sio excluidas do [égos precisamente por causa de sua equivocidade, o légos terminando por ser reduzido a uma l6gica proposicional do tipo linguageiro. A predicagao torna assim, 0 modelo de todo sentido auténtico, permitindo estabelecer sem $e, equivocos 0 que é e o que nio é. As imagens s6 serio razoaveis como participantes da linguagem: um Idgos icnico permanece inconcebivel. A figura da diferenga icénica abre, todavia, outra perspectiva, permitindo dobrar esse dogma: as imagens produzem sentido, sem obrigacao de fazer uso das regras da predicagio, da atribuicio de um predicado a um sujeito (no sentido de “S é p”); a0 contririo, as imagens dio a que se poderia chamar de um “pensamento com os olhos”. Toda pes- soa que leve as imagens a sério (mas se poderia invocar também outras formas expressivas, como a miisica, a danga ou a mimica) sabe bem que cesso 20 © acesso ao real se faz ainda por outros desvios que nao a linguagem direta. Ha um sentido que se pode passar com as palavras ¢ que nio seria passado, inteiramente, na linguagem Um pensamento da diferenciagio faz, portanto, apelo nio mais ao mecanismo dialético da negagio reciproca, mas antes a distingio que a psicologia da Gestalt descreveu como uma distingio entre figura ¢ fundo. Também nio é por acaso que numerosos exemplos da teoria da imagem se referem a ela, como Wittgenstein (1953), por exemplo, quando evoca a visada-vaso ow ainda o coelho-pato, Ora ainda fre- quentemente, essa referencia 3 Gestalt torna a depreciar o essencial do que essa distingao permitiria obter. Em resumo, se pode dizer que o exemplo das imagens duplas ainda concede muito a légica opositiva, exclusiva. Ao insistir sobre 0 fato de que nao se pode nunca ver mais de uma figura por vez, pouco se explicou ainda do que se passa quando 0 olhar se modifica da percep¢io do coelho para a percepgio do pato. Sobre esse assunto, a fenomenologia de Husserl nos da algumas indicagdes preciosas, vindo complexificar o quadro. Husserl desenvolve sua filosofia, como se sabe, sobre 0s atos intuitivos nos quais o polo do suijeito (a noese) vem ao encontro do objeto (noema) em um vinculo chamado de “intencional”. A intencionalidade vem aqui dizer que, ainda que vejamos sempre apenas um aspecto limitado das coisas (0 termo GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MosTRA 29 técnico empregado por Husserl é entretanto, toda a coisa. Mesmo estando de costas, nao teremos ny, nada além de visadas, Husserl conclui que toda coisa € simultanearneny. alguma coisa ¢ ao mesmo tempo o horizonte sobre 0 fundo no qual aly coisa se mostra. Disso decorrem duas r a ‘A coisa pertence ao reino do sucessivo: ela é limitada, singularizagy, justaposta e atrai a ateng40; 0 horizonte, a0 contrario, abi simultaneidade: é fluido, continuo, indivisivel, potencial e indeterming & Abschattng, aspecto Ou esbo¢6), vor tng alidades radicalmente distin, as, © rein dy do, ele difrata o olhar. Se aplicarmos as anilises de Husser! as imagens poderiamos dizer que as imagens sio constituidas de uma associagig do continuo e dos elementos diferenciaveis que se mostram diante oy nele. Bindria primeira vista, essa organizagio se revela ser, todavia ~¢ contrariamente ao que afirma a psicologia da forma ~, teméria, porque mao outro, se invertem, Tem-se a figuragio e 0 continuum se referem w uma questo a0 mesmo tempo com a tr tarefa, nao resolvida ainda, consistiré, entio, nao tanto em distingui-l, Me que se insinua entre eles. Essa ligagio preenche a funcio do que na linguagem é operado pela predicagio. Mas como pensar, entio, 0 acontecimento da mediagio visual, sem fazer uso das regras de sintaxe, quer dizer, das regras da linguagem? Em outros termos: a mostracio implicada em uma logica propria, em sua forma prOpria de racionalidade? Como essa racionalidade se relaciona com a racionalidade do dizer? ansparéncia ¢ com a opacidade. A A légica da mostracao Em Vers une écologie de Vesprit, epistemologista ¢ antropdlogo americano Gregory Bateson (1977 [1951]) relata, nao sem humor, um didlogo ficticio com sua propria filha sobre a gesticulagio dos fran- ceses. Quando o pai responde que a gesticulagio nao é um apanagio exclusivo dos franceses, os dois se perguntam sobre a razio pela qual ‘os humanos gesticulam. Bateson termina por concluir: “A ideia de que a linguagem se faz exclusivamente de palavras é perfeitamente falsa”. E continua: “S6 ha palavras acompanhadas ou bem de gestos ‘ou bem de uma certa entona¢io ou alguma coisa desse tipo. No entanto, ha constantemente gestos sem palavras”. Seria preciso “co- megar mais uma vez do come¢o € considerar que a linguagem ¢ em primeiro lugar e antes de tudo um sistema de gestos... As palavras _ foram inventadas depois”. * - w ruudester8 Essa passagem resume rapidamente em que movimento consis- te a virada linguistica, a qual esti associados nomes como Herder, Nietzsche, Wittgenstein, Biihler, Cassirer, Merleau-Ponty ou ainda Heidegger. Atualmente, as neurociéncias podem mostrar que 0 dis- curso verbal e o discurso gestual so comandados pelas mesmas regides do cérebro. A inteligéncia humana é manifestadamente motora, 0 que quer dizer ser organizada de forma somitica, que ela dispde portanto da mio e da boca — para retomar a expressio do linguista Ludwig Jager (2001, p. 22) — “dois drgaos falantes ligados estreitamente entre eles”. Tudo isso nos obriga a retomar a questao de uma teoria geral do sentido sobre outras bases. Tudo se passa como se, ao comegar pela linguagem articulada, se tenha interrompido aquilo que constitui as suas condi¢Ges de possibilidade. Ora, antes mesmo de desenvolver uma linguagem estruturada, 0 homo sapiens se serviu de comunica- ges visuais e gestuais. A prioridade do discursive como principio estruturante parece remontar, segundo o atual estagio das pesquisas, hé cerca de 50 mil anos, ao passo que as representagdes pictéricas sio conhecidas ha mais de 200 mil anos, sendo que os artefatos mais antigos (uma arma de pedra)! existem ha pelo menos um milhio de anos. Mas que nio se tome essas consideragées por aquilo que elas nio sio. Nao quero de forma alguma contribuir para os debates so- bre a origem do homem que agitam a linguistica e a antropologia ha muitos séculos, mas fa¢o alusao a isso para vir fundar de outra forma o problema da imagem, para evitar, portanto, nao tratar a iconicidade como um simples registro de signos entre outros. O gesto e a imagem se reencontram em seu potencial déitico. Desde sua obra fundamental, Sprachtheorie, de 1934, o linguista austriaco Karl Biihler (2001 [1934]) estabeleceu o papel essencial dos deiticos para a linguagem. No espaco motor do gesto, com seu vai e vem, se estabelece j4 a diferenga entre “aqui” e “14”, 0 comprimento do eixo intencional ja evocado. Ele se encontra ainda no que Biihler chamou de “particulas mostrativas” (Zeigepartikel), quer dizer, aqui/ No original, coup-de-poing, hoje usado como sinénimo de soco-inglés, tipo de arma que se prende nos dedos para aumentar a poténcia dos golpes. Considero que o termo nao seria opcio de traducio na medida em que autor esti tratando de uma pega de 200 mil anos. Naque ponta afiada para corte. (NT) nomento, tratava-se de uma pedra esculpida com uma GOTTFRIED BOEHM AaUILO QUE SE MOSTRA 31 1h, ew/voce, isto/aquilo, Essas particulas fundam e estruturam yp, “campo mostrativo” (Zeigefeld) da linguagem. As analogias con : imagem, imediatamente ¢ sempre em um campo da mostragio, ¢i4 evidentes. Quando contemplamos as imagens, nos orientamos com a ajuda de diferencas déiticas tais como alto/baixo, direita/esquerd, aqui/la, proximo/distante — sempre em funcao do olhar do espectador Mas ainda aqui nao se trata de aplicar uma categor!® linguistica ~ mas ao contrario. Toda detxis déitico — a outras formas de expressio, seja ela codificada e arbitraria, supde uma localiza precede a locugio € no 0 inverso; por ‘do de um locutor encarnado. A encarnagio } outro lado, outras express6es 30 locativas sio possiveis. Insistindo na dimensio mostrativa das imagens, queremos, portanto, sublinhar ‘0s seguintes aspecto: 1) A lbgica das imagens ndo pode se resumnir a uma gramitica icénica: ela implica nos corpos aos quais elas se mostram € pelos quais elas podem se mostrar. 2) A “imagicidade”? nio depende em nada do objeto repre- sentado, As imagens nao sio simples representacdes demonstrativas de uma significagio j4 constituida em outro lugar, so, ao contritio, mostracdes origindrias. 4) As imagens exibem, no seu funcionamento, 0 fundo déitico de toda expresso (que diz respeito, portanto, igualmente 3 linguagem iscursiva), visto que, em sua singularidade, as imagens nos ensinam alguma coisa sobre o fendmeno expressivo em geral. Se elas se abrem a decidibilidade, as imagens nao tém, contudo, l6gos predicativo como horizonte ou fées. Na sua dimensio circuns- tancial, as imagens sio, portanto, ao mesmo tempo mais e menos do que a Tinguagem discursiva. Menos, porque clas nfo podem preten- der a generalizagio descontextualizada da linguagem. Mais, porque clas tornam evidente uma légica que nao é mais restrita 4 dimensio opositiva dos signos. Operando por ligago ¢ conjungio, a imagem nos carrega em direcio ao sentido primeiro da palavra légos: “legein”, ligadura, ligagio, laco. Pensar a imagem significa, na minha opiniio. pensar a unidade sempre em tensio entre 0 olho, a mio ¢ a boca. * No original, imagier, ncologismo usado por Jacques Ranciére em Le destin des nae’ aqui publicado como O destino das imagens (Contraponto, 2012, p. 20). A tradutora Ménica Costa Netto optou por manter o termo no original. (N.T.) 2 a B FILBESTETICA Isso que aquilo mostra © que significa dizer que a imagem mantém uma ligagio pri- vilegiada com a mostragio? E antes de mais nada: 0 que é um gesto de mostracao? Parece que os gestos nos mostram alguma coisa onde no se trata tanto de um gesto de indicagio explicita ou consciente. Todos esses gestos que, inconscientemente, acompanham nossa fala nao sio nada além de simples acidentes motores ou ornamentos ex- trinsecos: eles desempenham um papel essencial no acontecimento expressivo. Existem, sem divida, os gestos involuntirios, 0s lapsos corporais que dio a ver 0 que 0 discurso reprimiu. Mas, para além desses gestos altamente “falantes”, trata-se de dar conta dessa presen- 6a tio discreta quanto permanente da gestualidade nas nossas ages, um tipo de companhia fiel ¢ silenciosa que constitui o fundo de nossos atos significantes. Para caracterizar essa dimensio, se poderia invocar 0 termo alemio Hintergriindigkeit, que remete de uma s6 vez 4 profundidade e ao enigma.’ Quaisquer que sejam as diferengas da gesticulagao entre as pessoas — as diferengas de cultura, sexo, classe, idade sio de fato consideraveis —, um aspecto sempre se apresenta. Os gestos se afastam do corpo e voltam em dire¢io a ele. Um vai e vem incessante estabelece, com seu ritmo, um espaco visual. Com seu t6nos vital especifico, 0 corpo participa de maneira essencial. Sua calma tende a servir, por assim dizer, de cenirio ao que os bragos e as mos representam diante dele. A atitude do corpo e 0 discurso dos gestos se reliam — para poder se distinguir. A partir do ponto de vista do es- pectador, e na medida em que sio sempre fundadas em um corpo, as méos com seus signos performativos tém 0 corpo como fundamento. Una diferenca gestual se manifesta, ainda que passe despercebida se se presta aten¢ao nas maos por muito tempo. Diante do continuo opaco e impenetravel do fundo corporal, os gestos singulares se separam como tantos signos discretos que se reconfiguram perpe- tuamente. Uma assimetria complexa esta aqui em obra. O corpo é 0 fundo continuado para os gestos que vao e vém. Uma tal diferenga nao implica somente a opacidade do corpo e, com ele, a transparén- cia dos gestos, mas ainda o gesto motor de sua liga¢io, a conjungio > Para um tratamento mais detalhado da questio, permito-me referir a Boehm (2007). (NA) GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE Se MOSTRA 33 estabelecendo sua relacio. Simultaneamente, 0s gestos mostrando ¢ corpo s¢ mostrando instalam uma relagio entre falante ¢ significante De repente, a gesticulagio das mios, que nio era até entio nada alény de um movimento local, comega agora a produzir significagio, Uma vez pos fazemos emergir das obras que nos permitirio precisar 0 que esta « s essas questdes, podemos tentar ver que estrutura jogo. A tese segundo a qual as imagens mantém um lugar privilegiad com a mostracio nao é nada além de uma simples especulacao ~ é surpreendente observar 0 néimero de artistas que insistiram sobre a dimensio gestual em suas obras. Para concluir, iremos, portanto, evocar ressio da sucessivamente trés obras nas quais se pode observar uma pr (0. 4 mostragao questao da mostraco como tema ou motivo em dire como principio operador. Entre as numerosas obras que nos colocam diante do papel das mios como tema, se pode evocar o quadro de Al brecht Diirer, Jesus entre os doutores da lei (Fig. 2). Nessa obra, de 150¢ que ele intitulou Opus quingue dierum, Diirer inventa uma ilustragaio Figura 2 ~ Albrecht Diirer, Jesus entre os doutores da lei, 1506 Lugano, Colegio Thyssen-Bornemisza 34 FILOEST excepcional para esse duelo de palavras. Na rosacea gestual situada no centro do quadro, o artista d4 corpo a esse agén intelectual onde tudo se di e se entrelaga mutuamente em um corpo a corpo inextricavel Diirer nao nos da a ver, portanto, um gesto de indicagao que aponta em dirego ao que nao esta presente — 0 gesto mostra sua propria condi¢io de intricado, seu proprio retorno sobre si mesmo, sua reflexividade. Uma outra constelagio é posta em cena por Ticiano no seu Retrato de Jacopo Strada, dos anos 1566- 68 (Fig. 3). Nessa representagio do Figura 3 ~ Ticiano, Retrato de Jacopo Strada, ¢ Vie 1a, Museu Kunsthistorisches GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOSTRA 35 ndica seus objetos qu sta teve a inteligénc mostrar antes de tudo célebre colecionador de Mantoue, aquele que i fizeram sua gloria como antiquario. Mas 0 arti de relativizar esse gesto de indicagao para nos 1 © corpo se mostrando. Ao se desviar da estatua Strada flexiona seu corpo em direcio a0 espect bilidade do que se mostra e do que é mostrado, T alegoria sobre o retrato como essa tarefa imposs é inefivel porque total para dar lugar a el ador. Nessa indivisi- iciano nos lega uma vel, que consiste a Jmente singular: a tornar o que, por definicao, el importante na in-dividualidade. Mas, se a mostrag4o teve um PaP aesta limitada. Trata-se, ua forma de mostrar ~ que pela analogia pintura figurativa, no esta ao contrario, de compreender como a imagem nos mostra S la mostra —, € isso sem passat garrado em um gesto de indicagao. No de observar uma redugio nos mostra, portanto, como é de um corpo representado a expressionismo abstrato americano, se Po ct minimum, sem que, entretanto, nunca se redugio é essencial para as da iconicidade, das relagGes ic6nicas ao stri deixe a imagem. Ao contrario, parece que essa exemplificar ainda melhor as estruturas intrinsec Concluiremos, ento, evocando, para terminar, o quadro inti- tulado Nr. 7, de Mark Rothko (Fig. 4). Obra datada de 1960, realga um mundo no sentido silencioso. De uma s6 vez, 0 titulo indica uma reserva ao olhar de toda decidibilidade ¢ se aproxima do titulo preferido do pintor ~ Sem titulo, apresentando ao espectador alguma coisa de funcionamento inominado. Uma composi¢ao frontal criada por relacdes claras: quatro campos de cores diferentes sobre um fun- do escuro, A figuracio que Rothko pode trabalhar na sua primeira fase nao tanto rejeitada, mas incorporada. O continuum de castanho escuro faz intervir uma opacidade impenetravel, um campo de relagdes dinamicas entre as superficies coloridas que parecem ocupar distancias diferentes. Elas se destacam do fundo e nele recaem ao mesmo tempo. Aquilo que, do ponto de vista da técnica pict6rica, é realizado através de vernizes, dito de outra forma, de camadas semitransparentes dei- xando transparecer 0 fundo na superficie. As cores criam diferentes aspectos visuais, E seria preciso se deter longamente para nomear as principais caracteristicas da temperatura da cor, a luminosidade ou pie baal ee a forma da superficie colorida . is se nutre da assimetria entre a figura ¢ o fundo, FIBESTETICN Figura 4 ~ Mark Rothko, Nr Sezon (Japa), Museu de Arte Moderna [sso implica trés intuigGes fundamentais no que diz respeito a uma teoria da imagem, Primeiro, compreendemos a partir de que a mostracio io. um verdadeiro clindmen visual’ que se estabelece ganha em persua 10 usado pelos epicuristas para se referir a0 mo + Na historia da filosofia, cindmen & um ter vimento de desvio espontineo da trajet6ria dos atomos que cia colisdes e agh as formas do universo. (N.T.) lomeragdes de matéria, a partir do qual se constituem to GOTTFRIED BOEHM AQUILO QUE SE MOSTRA 37 entre a opacidade do continuum e a figuragdo transparente que ela Tecapty. Ta, carrega e contém, Essa pintura é — visualmente falando — inesgotiye} A cada olhar posto sobre 0 quadro, ela faz um tipo de imagem, ess, coisa estatica que é percebida como movente e significante. A segunda intuicio esta diretamente ligada a primeira: a logica da mostragio s6 pode ser processual, trata a imagem como uma equa¢ao energética. Enfim, a opacidade impenetravel do fundo provoca um retorno ao olhar do espectador. Na medida em que mergulhamos na imagem, 0 que ali esta Tepresentado se sobressai como aspecto visual, como aquilo se mostra. O mutismo de Rothko caminha ao lado do pathos e do afeto. Seus quadros, aparentemente vazios, geram de fato uma semintica, dao a impressao de Tespirar, € esse arranjo vertical de superficies faz alusio a um corpo que Gem ser humano) parece vivente. Em uma palavra: 0 que mostra — a imagem, em sua ocorréncia ~ nos mostra como alguma coisa se mostra. E ao nos dar a perceber, a imagem gera um sentido. Do sentido. Referéncias BATESON, G. Vers une écologie de l'esprit. Trad. F. Drosso; L. Lot; E. Simion t. 1. Paris: Le Seuil, 1977. BOEHM, G. (Ed.) Homo Pictor. Munique: Saur, 2001 BOEHM, G. Deixis~ Vom Denken mit dem Zeigefinger. Gottingen: Wallstein, 2007. BOEHM, G. Wie Bilder Sinn erzeugen. Die Macht des Zeingens. Berlin: Berlin University Press, 2007. BUHLER, K. Théorie du langage. Marseille: Agone, 009, JAGER, L. Audio-Visualitat vor und nach Gutenberg. Vienne: Kunsthistorisches Museum, 2001 PLATAO. Sophist. Paris: Flammarion, 2006. [O sofista, Tr: ad. Juvino Maia Jr. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012.] WITTGENSTEIN, L. Recherches philosophiques. Paris: Gallim: ard, 2014. [In- vestigasdes Filoséficas, Petropolis: Vozes, 2005.) FILDESTETICA A imagem entre proveniéncia e destinacao Marie-José Mondzain Interrogar a proveniéncia da imagem é interrogar a origem, quer dizer, a causa. Qual serd a causa da imagem? Alguma coisa como a questio: de onde ela vem? Se seguirmos um bom preceito aristotélico que jamais envelhece, toda ciéncia é ciéncia da causa, € ‘© conhecimento da causa contribui para a definigio; a causa tem por tarefa definir seu objeto. Portanto, a questio ti esti, o que ¢ a ima- gem, a ciéncia da imagem responderia determinando sua causa ¢ por consequéncia enunciaria sua natureza, designando seu género ¢ sua espécie, quer dizer, sobre qual fundo se inscreve sua proveniéncia qual é sua especificidade. Se mantivermos essa postura, se pressup6e, entio, que a imagem é totalmente paradoxal: produgao do sujeito, a ito mesmo que a produz. A imagem é, por- duas coisas em uma: ao mesmo tempo bjeto produzido por essa relagao. imagem faz devir 0 sujei tanto, se posso dizer assim, uma operadora em uma relacio € {As operagdes imaginantes sio inseparaveis dos gestos que produ- zem os signos que, por essa razao, permitem os processos de identificagio €.a separagdo sem as quais ndo haveria sujeito. A definicio da imagem é, portanto, inseparavel da definigao do sujeito. Entao, a questao se ha uma ciéncia da imagem, a resposta é a mesma daquela que pergunta se hd uma ciéncia do sujeito. Sua fundagio reciproca nos convida a des- confiar que a imagem nao é um objeto ¢, portanto, que, se ela pode, sob certas referéncias, ser considerada como um objeto, isso nao se da Tanto e tio bem que cada vez jamais sem consequéncia para o sujeito. ue um objeto, se coloca que se reduz a imagem a nao ser mais do q 40 a destinacao do sujeito, Por outro lado, uma expressio como 39 a a marca da historicidyg le “entre proveniéncia ¢ destinagio” ca quer dizer, uma inscrigio temporal sobre 0 qual se aplica a pes, da imagem na reflexio subjetiva, mas ¢ , Nio é somente o lugs i a imagem em uma trajetoria que visa uma génese da imagem ¢ y,,, visada sobre seu desdobramento, uma visada que a inscreve no fiugy,,, ou segundo um fim, Mas, se a hist6ria da imag historia do sujeito, essa trajet6ria historica concerne, portanto, a genes, do sujeito ele mesmo, seu desenvolvimento ¢ as modalidades sobre m é articulad, aa uma quais a imagem indica um regime de subjetividade, na medida en, que nao se reduz a ser uma simples existéncia natural submetida as loi, gerais daquilo que vive e daquilo que morre. A imagem diz respeigg 4 vida do sujeito sobre o aspecto da sua existéncia no natural. Quer indicar com isso que as operagoes imaginantes sio sem davida 0 modo produtivo da resisténcia do sujeito 4 natureza. De que natureza se tratg? Desta aquela, cle deve, no entanto, viver, mas se distancia resolutamen te no projeto de inscrever o sentido pela via dos pep05) Dizer que as imagens tém uma historia ou participam de uma historia nio é voltar a dizer que as imagens podem fazer o objeto de uma narrativa, na qual o modelo de exceléncia seria a historia da arte, aquilo que seria muito trivial ou apenas levaria em conta uma ciéncia da imagem como uma historia das figuras de produgio das formas visiveis, sem interrogar a natureza do objeto do qual se fala. Fazer de conta que se sabe 6 que 6 uma imagem e assim, dispensados de dar 4 imagem uma definicio, nos Jangaria em um conjunto composto de proposigdes cronolégicas onde as imagens acompanhariam a hist6ria das formas, dos estilos, dos objetos, quer dizer, das representacdes, se, com temeridade, se forea 0 uso de tal léxico. Ora, interrogar a proveniéncia ¢ a destinacio tem outro objetivo. Trata-se de reparar aquilo que a titulo da imagem se inscreve na historia da humanidade, e mais ainda: de interrogar as ope- Tages imaginantes na sua relagio com o que constitui o sujeito falante € sociavel. Na genealogia do humano, a imagem é parte integrante Escolhi, portanto, outra forma de responder 4 questo enten- dendo de outra forma a sua abertura. Proponho a hipdtese de que, entre nossa proveniéncia € nossa destinagio, é a imagem que vem se colocar como operador histérico da mediacio ¢ da produgio da Tesposta. Quero dizer que, interrogando a imagem, posso recolher uma Tesposta para a questio da nossa proveniéncia e correr 0 risco FILDESTETICA — | — definigao de humanidade, A questio do comego, em ma téria de imagem, pode ser posta de duas formas, As duay tem seu estatuto proprio € nao sio excludentes entre si, A primeira consiste em considerar a origem das operagdes imaginantes na sua manifes tagao inaugural. Sobre isso, adota segunda consiste ~ para nés, no Ocidente ~, em colocar a questio historicamente para constatar a incidéncia determinante das posighes teolégicas na legitimagao das imager essas duas abordagens sio insepariveis, é porque a suspeita que pesa uma postura antropologica, A $ proprias A nossa cultura, Se sobre as imagens pelas raz6es teoldgicas antes do cristianismo tem relacio direta com a liberdade em jogo no estatuto antropologico das operacdes imaginantes. Aquilo que constitui o sujeito na sua liberdade de iniciativa constitui um perigo para aqueles cujo poder € assentado sobre a negagio dessa liberdade. Dito de outra forma, ¢ porque a capacidade do sujeito de produzir imagens faz parte de uma economia constituinte do desejo que as instituigdes que constituiram seu poder tomaram 0 cuidado tanto de interditar as imagens quanto de controlar a produgio de seus efeitos. Em uma palavra, se poderia dizer que a proveniéncia das operacdes imaginantes esti na origem do problema politico que coloca sua destinacio. A imagem, o retrato Imaginemos. Imaginemos um homem que corre o risco de um retorno ao passado, de um retorno as entranhas, de um mergulho no cora¢ao da noite de onde ele provém. Um homem mergulha nas s costas ao mundo dos viventes. Ao trevas, por um instante dando chegar nessa caverna matricial, reino das sombras, ele acende um fogo, ele se ilumina, ele ilumina a rocha. Ali é seu ponto de partida De pé, diante da rocha, ele esta la, na opacidade brutal de um face a face, confrontado com seu ponto de apoio que é também seu ponto de partida. Ai esta ele, braco estendido, ele se apoia Sua mio repousa, essa mao se afasta, se separa ¢ toma da rocha a distancia de um brago. Tal é de fato a primeira tomada de distancia de si, disso com que ele se manter4, no entanto, em contato, A mao € aquilo que aproxima, toca ¢ ao mesmo tempo rejeita, afasta. Esse gesto de afastar e de ligar é aquele que constitui a primeira operacio, constitui¢io dos lugares entre os quais se joga 0 sentido de um gesto [MARIE-JOSE MONDZAIN & IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGAO 4 que vird. Inaugura-se uma conversa, no sentido em que © homem g¢ mantém diante da parede, que tem sua propria atitude e que a convers, vai advir entre essas duas polaridades. A imagem ¢ mantém entre eles, entre o homem e a parede. Segunda operagao: 0 sopro, Nesta distancia em que olho ea mig © homem liquefez na sia boca o teor do que s¢ Se arranjam, outro gesto se torna possivel. 0s pigmentos da cor. Ele agora vai projetat parede. A boca deixa de ser uma boca que pega MastiB inge ou cuspe para se tornar um buraco pleno que SOPEy apeacscs' separa. © homem sopra, sopra sobre a mao que ele pousou. Terceira operagao: 0 retrato. O gesto de retratar a mao sobre a qual ele acaba de soprar aparece agora diante dos olhos do soprador, a imagem, sua imagem, tal qual ele pode vé-Ia, porque sua miso nio esta:mais Ia, Retirar-se para produzir sua imagem ¢ da-la a ver aos ols como sum trago vivente mas separado de si Salvo por amputagao, nao se pode se separar de sua propria mio para vé-Ia longe, como aquela de outro, mas se pode se retirar de sua imagem € dala a ver a um outro, aos olhos, e d-la a ver também aos olhos que eles nao se verao jamais. {A parede é um espelho, espelho nio reflexivo. A mio negativa é 0 primeiro autorretrato, autorretrato nio especular, sem espelho, do homem que é um sujeito que s6 conhece de si ¢ do mundo 0 trago deixado ali por suas mios. A imagem de si é uma prova da separacio, a instaurago de um regime de separacio ¢ de uma subjetividade desatada, Quando esse sujeito se engaja no caminho imaginante que ‘0 subtrai da necessidade natural, ele inaugura um regime de liberda- de que nio ser aceito, sem controle, tanto pela vontade instituinte quanto pelos poderes instituidos. Joga-se assim na imagem alguma coisa como a cena primitiva do sujeito sobre 0 caminho da rentincia a seu fantasma. As imagens rupestres nos oferecem a prova que teste- munha um procedimento altamente instituinte, dado que vemos os homens se designarem a si mesmos como sujeitos fazendo nascer na escuridio em que habitam apenas gestos que figuram como o dispo- sitivo imaginante de um ponto de partida, de um lugar de separagio da natureza (Fig. 1). A meditacio sobre a “arte” paleolitica permite pensar a proveniéncia em termos de ponto de partida mais do que com um s6 sopro sobre a engole azia e se origem ou menos em termos de arcaismo. Ir ao antro noturno matricial € nao respirdvel para instalar 0 cenério inaugural da separacio. Nio se trata do que a ideologia do originario reivindica como funda¢io ae FILOESTETICA substancialista ou essencialista. Nao é mais uma questo de, em nome do arcaico, desdobrar 0 léxico do primitivismo, do balbuciamento ou de uma infincia da imagem que corresponderia a uma infancia da humanidade. Muito pelo contririo, essa proveniéncia indica, na sua integralidade completa, a destinagio do homem como sujeito imaginante, quer dizer, contranatureza. Aquilo que esta no comego permite sempre ser derivado em dire¢io a uma sobreinterpretagio do que vem primeiro em relacio ao que se segue, na complacéncia de uma consideragao lirica da infancia de nossos pais. O interesse antropolégico disso que se chama arte rupestre ou do que é designado Por esses termos consiste, ao contrario, em reconhecer nesses gestos € nesses tragos que reunimos uma maturidade completa da questio da separacio, considerada como ponto de partida da humanidade no lugar mesmo disso que esses tragos indicam como sendo 0 cenario fundador de toda operagio imaginal e icénica. 30,000 a.C. Figura 1 — Maos negativas, Gruta Chauvet (Ardéche, Frangal (Cuauver; Descuames; Hivtate, 1996) MARIE-JOSE MONDZAIN & IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINACAD 43 1a fanda a histéria na medida em que é pre~ © ponto de partid ja trajetoria, um ciso deixa-lo para inscrever percurso de humanidade e, em essa partida é infinitamente posta € ainda mais capital agora que as ©} que nunca ameacadas de serem toma nio separagio, da regressio, do retorn Chauvet nos lembram que nao estamos n ton ima cena oripinéria, Ao contratio, € a ruptura com © originario que de repente se inscreve na origem da arte. A origem da arte éa ruptura peleayy ciaie Seen eterireneiNaolba imagem OTiginsri2, svenigncia do homem que so obtém seu sentido nossos gestos em um segundo lugar, para reconhecer que jam questio ha milénios. Tudo isso peragdes imaginais estio mais do das pelo lucrativo mercado da 20 infantilismo. As mios de o campo pré-hist6rico, em gesto, um lugar de pr. indicando sua destinacio. Historicamente, a separagao induzida pela imagem se incent ficari, todavia, em uma verdadeira disjun¢io, vindo rep! aquilo que indica ainda uma grande proximidade, Intervér um monotefsmo da distancia que se legitima doravante por um missio simbélica 4 origem. udiar tudo m, entao, a re- A preocupagao monoteista com o sujeito das imagens © monoteismo nasce a principio de um iconoclasmo. As re- Ligides da imagem sio cultos da imanéncia, da poténcia maternal ¢ matricial, da imanéncia do poder dos signos em si, A imagem € terra que se precisa deixar. Se é preciso cassar os idolos, egipcia, éa que nio ha nada mais estranho ao velado que a magia é para mostrar imanente das cois: mada é priva-la de toda relacio, portanto, de todo sentido. Todos 0s procedimentos de separagao nao so nada além da sistematiza¢io de todos os gestos ¢ de todos os signos que formam a construgio simb6lica dos sujeitos falantes submetidos 4 lei do pai. E, portanto, ‘nome dessa exigéncia de separacio que se atravessa toda a ar- ra do templo como um lugar de encontro com o proibido as proprias do animismo. Tornar a imagem inani- io da imagem. clastia hebraica apresenta analogias estruturais com a da metafisica cléssica: a pureza do efidos s6 se mantém a cegueira que encontrara seu consolo na retérica do FILGESTETICA ofuscamento. E para defender a for¢a e a pureza da imagem que se declara sua invisibilidade, reservando todas as outras palavras que designam as produgées sensiveis a fim de dizer que elas traem a verdadeira imagem. Esté tudo ai: a imagem, sendo fiel ao verdadeiro, nio pode mostrar sua face nem se oferecer ao olhar. Escapa-se, portanto, da imagem tanto por raz6es positivas quanto negativas, porque ela é excesso de trevas e excesso de luz. O medo das imagens é indisso- ciavel do medo das forgas libidinais. A iconofobia como a negagao do iconismo especulativo sio, de fato, confrontados com a defini- ga0 do desejo da imagem como sendo um desejo do objeto. Ora, é com 0 cristianismo que acontece um deslocamento fundamental: © que qualifica uma imagem é doravante no mais a natureza da sua matéria, mas a esséncia do olhar que se coloca sobre ela. Toda a doutrina da encarnagio volta a estabelecer doutrinalmente que a encarna¢io nao é nada além do “devir-imagem” da divindade. A distingao entre a carne e 0 corpo vem agora sobrepor ¢ mesmo re- cobrir a distingio da imagem como carne ¢ do objeto como corpo. A redencao da carne é a transfiguracio do olhar sobre o mundo pela via da imagem, a redengio do corpo a identificagio do corpo de Cristo com 0 corpo da Igreja. E, portanto, a institui¢do que da sua visibilidade redimida e salvadora is instituigdes historicas do poder temporal. Se 0 icone nio reina mais ele mesmo, como no caso do idolo, ele vira doravante a fundar um reino. Ora, as crises sucessivas que abalaram a patristica na questio da imagem ~ todas as crises bizantinas que estudei em Image, icéne, économie (1996) ~ indicam, no entanto, que a disjun¢io definitiva que 0 cristianismo propée entre idolo como simples imanéncia € 0 icone como pura distancia nunca pode ser tio clara Ao longo da histéria humana, o desejo de ver ¢ 0 de mostrar serio habitados pela ambivaléncia do desejo de estar em busca da Jo, e de constatar que a satisfacao estimula 0 fim do desejo, mento nao pode fazer viver o sujeito constituido senao designar aquilo que ele deseja como se designa um a imagem, se situando sobre a trajetdria do desejo, satisfag: seu relanga' “renunciando a “objeto; é assim que s dois estatutos que Ihe conferem o regime do sujeito it ro modo, as imagens tém um poder, ¢ esse oscila entre o: ~ e do objeto. Dito de out MARIE-JOSE MONDZAIN & IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGHO 45 poder tem, por definigao, uma estrutura critica, quero dizer, uma estrutura de crise: elas sio provenientes de uma energia desejante a cada vez, a pulsio regressiva de um retorno a que coloca em jogo, 0 risco das visibilidades trevas fusionais ou a pulsio vivente de corre ; que se quer compartilhar com o restante dos homens (Fig. 2). Entre a disjungo sem apelo e a regressio fusional, ele nos incumbe de to~ Iriar a iesponsabilidadelpeloldesanojdanmas=m nosey movimento de desligamento. Entendo por desligamento a imagem resiste a toda determinagio e determinismo irreversive, ‘Aiindeterminagao da proveniéncia, por sua vez, orienta as Operacoes imaginantes em dire¢io a uma destinagao indeterminada Este é 0 preco da liberdade, inscrito nas produgdes visuals quando elas cons- tituem o sujeito em um lugar inaugural. O sujeito que comeca, com quem tudo pode comerar, o homem do comega, como designa Han- nah Arendt. Este € 0 ponto em que est em jogo a dimensio politica Entendo aqui por politico as apostas do compartilhamento da vida em comum, quer dizer, no sentido em que a polis grega instituiu com a implica um regime comum na circulacio dos do espaco, mas do tempo. Ora, a liberdade ‘© movimento pelo qual politeia, no qual a cidade i signos e na partilha nao necessiria a essa partilha gamento prépria a toda criagao. que as leis da psique, quer dizer, a lei do objeto tal qual cle se impse obre os sujeitos desejantes. E preciso supde que seja mantida a energia de desli Para que haja 0 politico, é preciso como mercadoria, no reinem s ficcionalizar a liberdade; é preciso imaginar ¢ somente imaginar, a0 compora imagem para tornar a cren¢a viva, s6 energia politica E por isso que a liberdade nao é nem um objeto nem um sujeito, nao é nem um estado origindrio que se teria perdido nem um reino por vir. A liberdade é uma ficeao no sentido pleno da palavra, quer dizer, uma imagem, necessdria, que se tem entre os sujeitos e permite a troca de lugares. Visto que se fizeram essas ressalvas, a resposta 4 questio da destinacao vem se inscrever naturalmente na inflexdo desse destino pulsional. Indicagao de que a via politica da partilha é a possibilidade problematica de constituir, pelo desejo, um objeto politico situado no percurso de uma demanda insaciavel. Porque designei anterior- mente a saciedade como um campo de consumagio imediata que m0 pode, em nenhum caso, ser identificado no percurso constituinte no qual, a0 contrario, a vitalidade ¢ determinada pela auséncia e pela 46 FILOESTETION separagao. Que se nos dé de comer quando temos fome é uma coisa, © esse desejo € uma necessidade que precisa da presenga de objetos que nutram, ¢ ndo apenas suas imagens ou signos que ali tenham lugar. Ao contririo, o desejo que anima a circulagio de signos s6 se sustenta com a separacao entre os sujeitos que trocam esses signos na auséncia das coisas em si. Tait Nira ew remapops + Gitemioncirreis Tepep payroour ow Saltério Chludov, metade do sécule MARIE-JOSE MONDZAIN A IMAGEN ENTRE PROVENIENCIA € DESTINAGAD a7 > No livro Le souci traverse le flenve (1990), Hans Blumenbery evoca um artigo de jornal de 1985 mencionando que, em Papy,. Nova Guiné, quatro pescadores' naufragaram € haviam sobrevividg porque todos os dias liam a Biblia e comiam as paginas do livro, um, ap6s a outra, Blumenberg conclui que 2 consciéncia de si € 0 orgig que permite nao engolir 0 mundo sem, contudo, renunciar a0 sey 070 e4 sua possessio, Nao engolir também a condivio para nig na producio das opera. ser engolido. © que est4 em jogo, portanto ées imaginantes é a capacidade de produzir signos que nunca virg preencher uma necessidade, mas que, 20 cont de tecer as dist’ncias e as ligagdes entre aqueles que os trocam, quer dizer, 0s signos, marcados pelo selo do desligamento, de tal forma pela primeira vez. As imagens que 0 que esta agora ligado, 0 est sio, por exceléncia, 0s signos que, sobre o lugar mesmo doldescjo/se encarregam de produzir 0 desligamento com a presenca das coisas ea presenca dos corpos, ¢ da igagao entre os sujeitos que Se enderecama esses signos com a intengao de fazer um tecido fragile temporalmente significante. Assim, as imagens vem se colocar entre os sujeitos que no tc definem como tal se ndo pela graca desses signos que vem, poderia seu dizer, dancar entre eles. Para melhor compreender, retomo mais uma vez a historia das operagdes imaginantes na cultura ocidental, em que a questio de seu poder foi posta & prova da legitimidade teo- Tégica e metafisica. Sendo reconhecidas como producdes libidinais, as imagens nio tém sido de fato imediatamente o objeto de uma medi- rario, se encarregarig tagio sobre o tratamento politico do desejo nem sobre o destino das pulsdes no cora¢ao da cidade. Muito pelo contrario, o monoteismo a metafisica partilharam, ainda que com argumentos diferentes, uma mesma suspeita desqualificante sobre o olhar nas produces visuais. O interessante nesse conflito da imagem diante do poder da transcendéncia, do poder da verdade e do ser é primeiro consta- tar que a fragilidade das operagoes imaginantes é detectada como uma ameaca por instancias que tendem a unificar seu monopiélio e de um despotismo que quer vencer toda ha uma sinonimia entre pescadores € pe- ‘por isso optei por pescadores, mas considerei ; duas palavras. (N.T.) turbuléncia desejante. O poder se quer mestre do tempo sobre o duplo registro de sua aceleracio sem limite e da negacio de sua mobilidade. A rela¢do com 0 tempo é inversamente proporcional 3 poténcia da propriedade assim como ao desejo de apropriagio. Ora, a imagem é questao de tempo € nao de espaco, ¢ por isso seu regime é aquele da espoliagao ¢ da depreciagio, Pode-se falar de um verdadeiro recalca- mento do desejo e de uma poténcia ditatorial que tende a concentrar toda energia desejante e toda temporalidade para coloca-los a servico do poder e de uma concepgao substancialista da propriedade. E esse contrato soberano insustentivel que a Igreja cristi virou de cabeca para baixo, redistribuindo a relagio de poder das poténcias do visi- vel. Foi a Igreja que retomou de Aristételes a ideia de que existiria um destino politico do pulsional e uma chance de simbolizagio das paixdes, do pathos. Repensar a perlaboracao catartica que Aristételes confiava inteiramente 4 palavra ou quase, e remeter 4 imagem e a organiza¢ao especular para regular a energia desejante segundo uma visada de ligacio, tal é o sentido da palavra religiio, quer dizer, ligacio A operacao sem precedentes realizada pelos tedricos da imagem durante 0s oito primeiros séculos do cristianismo consistiu em fazer das operagSes imaginantes uma dupla questo: uma aposta de humanidade e uma aposta de poder, uma aposta emancipadora para o sujeito do desejo e uma operagio de submissio a ordem da comunhio. A Igreja poe em crise, por ocasitio de uma crise (iconoclasma), a disungio entre uma verdade antropol6gica e uma realidade politica. Dito de outra forma, a destinagdo das imagens a partir dessa época no ocidente foi dupla e, portanto, em situacio ininterrupta de crise. Se as imagens que fazemos e damos a ver sio figis 4 proveniéncia indeterminada que as fez nascer, a saber, elas sio encarregadas de trabalhar com a auséncia das coisas na tessitura aleatéria de um enderecamento, por- tanto, a indeterminagao de sua destinacio é a medida da liberdade que elas nos legam, na determinagao inapreensivel do sentido. O homem é 0 sujeito de uma depreciacio constituinte. De que maneira 0s pensadores cristios colocaram o problema para lhe dar essa forma eminentemente moderna e politica? Fizeram-no constatando que a imagem nao da nada a conhecer, mas somente a sentir, sua mola pro- pulsora era seu regime de crenga. Constatando no mesmo movimento que a legitimidade de um poder sempre visivel se revela pela forca ou (MARIE-JOSE MONDZAIN A IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGRO 49 de invisivel em non ua autoric 1 ubmeta. O sujeito do autorre, pelo saber, eles fundaran jue aquele que cré se exigira em forma de mio que descrevemo' 1c 0 eristianismo Lentou concel Chauvet « 5 com Chauvet encontrar eruzamento mais vivo daquilo qt inventar “imagens nio feitas pela mao do homem’, pord cran impresses puras (Fig, 3). Em seu desejo de se apropriar da wéncse q, ua destinacio, a douty; homem, tanto de sua origem quanto de do que propor ao olh,, cristi ndo encontrou nada mais pertinente io feita pela mao do homer coletivo uma imagem do homem na mao de Deus. Entre a eficacia de um poder ¢ autoridade, a ima; fim de atribui-la legitimidade de umd nto fragil. gem se mantém sobre urn so tio instavel q Figura 3 ~ Hans Memling, Verdnica, c. 1483 Washington, Galeria Nacional FILOEST 50 Entre 0 autor e 0 espectador _ se abre de fato a problemitica que é consequéncia des- ta primeira meditagio, a saber, aquela que faz da dupla aposta da —m uma questio de poder e de autoridade. Isso volta a por em questo a proveniéncia de uma forma renovada ao perguntar: 0 que €um autor? Quem € 0 autor da imagem? Sente-se bem a que ponto a questao € perigosa atualmente, ja que nio pode haver ai um autor , consequentemente, autoridade, se o gesto produtivo é reconhecido como gesto Criativo e, portanto, inaugural. A producio é condicio- nada, € 0 conjunto de protocolos de producio e de difusio pode ser visto apenas do ponto de vista das condigdes, O inventario dos meios necessarios para a realizacio e a difusio de uma obra tanto quanto de um objeto nio dio nenhuma indicagio nem nenhum critério, per- mitindo dizer que se trata propriamente de falar de uma obra. Sobre essa versio da realizacdo, tudo pode ser analisado em termos de poder e de finalidade. Nesse dominio, a indeterminagao é desqualificada, assim como foi desqualificado o estatuto de indeterminacio desde a crise dos intermitentes.? O que qualifica uma obra, quer dizer, 0 que permite reconhecé-la como tal e, consequentemente, reconhecet naquele ou naquela que a produziu a qualidade de autor, responde a outros critérios que reunirei sob o nome de autoridade. Qual é, entio, a proveniéncia da autoridade? Contrariamente ao poder e aos meios que tornam uma realizacio possivel, quer dizer, aos constrangimentos € as determinaces que condicionam a produgio, contrariamente 4 potestas que repousa sobre a possessdo (0 monopélio) da forga, a auto- ridade — auctoritas — repousa sobre o reconhecimento. Como compreender a natureza do reconhecimento que funda aautoridade? Do lado daquele que produz a obra, é um duplo movi- mento: aquele que consiste em reconhecer o que ele fez, seguramente, mas também aquele que consiste em reconhecer, naquele a quem ele 2 Existe na Franca a categoria do artista intermitente, que vive sob um regime assalariado instituido em 1936 © vem sendo sistematicamente reduzido nas Gili mas duas décadas. Trata-se de uma forma de complementagio de renda me nsal destinada aos que desempenham um tempo min ¢ descontam imposto sobre essas horas, contribuindo para un de securidade. (N.T) de horas mensais de trabalho regime especifico MONDZAIN A DWAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGAO 51 se enderega, uma instincia de dignidade na liberdade. O reconhe. cimento indica, desdi enderecamento, quer di quanto do que ele faz € uma relagao de alteridade isso que se chama a autor! Disso resulta que a indeterm: mpo a proveniéncia 10 daquele que respong um outro. E, portanto le ento, ao mesmo ten izer, a destinagdo tant 1m resposta diante de nto permite construjy que o reconhecime wutoridade do autor jdade e até mesmo 2 ai jnacio da obra que Se €2M ENCE 0 riador 0 espectador no é nada além que sua abertura aleatoria, a atencio ng seu reconhecimento da parte daquele qual ela se mantém de receber a.quem ela se endereca. Reconhecer a obra come obra é reconhece ‘a poténcia que ela tem de colocar em obra uma relasa0 Constituinte “entre dois lugares da depreciacio. Essa relacdo nao é nunca garantida antes, nunca é dada definitivamente, é frégil porque n3o tem sua validade na consisténcia do objeto, mas na existéncia de sujeitos que a fazem circular e operar entre eles. Ma itui mais os lugares da depreciacao co! vidade pode tornar-se uma partilha dos olhares s essa relacdo circulante nio const mo das entidades substan- ciais. Nesse sentido, o termo intersubjeti deira armadilha, uma ilusio. A economia da 1 do tempo, quer dizer, de uma irredutibilidade do sujeito a pectador nao é nema verda é aquel toda captura? A relacao de um autor com um €s possui nem a de quem é possuido. Eles s6 se constituem na partilha paradoxal de sua despossessio em comum. Tal me parece ser a poténcia da arte. E assim que é preciso entender o pensamento de Duchamp, quando ele instaura ou convoca a autoridade do espectador. £, portanto, no coragio de uma opera¢ao paradoxal que se constréi a questio da proveniéncia e da destinacao. ‘A imagem como gesto separador € constitutiva do sujeito de- sejante ¢ falante, ao mesmo tempo que é constitutiva da estrutura “intersubjetiva” na qual se joga o reconhecimento de si no reco- nhecimento do outro, sob condicao de que nele nao se jogue nem conhecimento nem identificag4o. Suspendo ainda “intersubjetiva” entre aspas porque é uma forma insatisfatoria, quer dizer, falaciosa de designar a dinamica que opera entre os lugares que nao tém eles ies Og nenhuma determinagao substancial nem existéncia natural ¢ Ween cewcn - ae eee? da imagem conduz a este ccc parttbamn ee lugar fragil onde o cruzamento je do mundo instala o campo de quem 52 FILOESTETICA politico desta partilha temporal. Mas a imagem é também um objeto determinado por aquilo que o condiciona e propde ao desejo de um — sujeito que se torna, por sua vez, 0 objeto da imagem. - . "Ea qualificagio determinada ou indeterminada da imagem que a situa nessa zona indecidivel na qual ela atende a decisio politica que Ihe conferira seu sentido. Concluiria lembrando a brincadeira de Groucho Marx. A uma mulher que lhe perguntou “How do you do2”, Groucho responde: “How do I do what?”. Em francés ~ traduzindo a brincadeira segundo meus propésitos ~ “Vocé vai bem?” se trans forma em “Vou aonde?”. Acredito que se diz aqui, com humor, que aquele que se inquieta com 0 nosso estado, quer dizer, com 0 nosso ser, s6 podemos responder interrogando, a0 nosso modo, sobre nosso destino comum ou, mais precisamente ainda, sobre nossa destinagio como tinica questo do comum, Referéncia CHAUVET, Lean-Marie; DESCHAMPS; Eliette Brunel; HILLAIRE, Christian. La grote Chauvet a Vallon-Pont-d’Arc Relié. Paris: Seuil: 1996. IE-JOSE MONDZAIN & IMAGEM ENTRE PROVENIENCIA E DESTINAGAO 53

Вам также может понравиться