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Luciana Barroso Gattass

Passados, Presentes e Presenças:


A Simultaneidade Histórica em Hans Ulrich
Gumbrecht
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510591/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação


em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para a
obtenção do Título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa Dra Heidrun Krieger Olinto

Rio de Janeiro
Abril de 2007
Livros Grátis
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Luciana Barroso Gattass

Passados, Presentes e Presenças:


A Simultaneidade Histórica em Hans Ulrich Gumbrecht

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de


Mestre pelo programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de
Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510591/CA

_______________________________________________
Profa. Heidrun Friedel Krieger Olinto de Oliveira
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________
Profa. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia
Departamento de Letras – PUC-Rio

________________________________________________
Profa. Valéria da Silva Medeiros
Universidade Federal de Tocantins – UFT

________________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, ______ de ___________________ de ________.


Todos os Direitos Reservados. É Proibida
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora, e da
orientadora.

Luciana Barroso Gattass

Graduou-se magna cum laude em Artes na


Universidade de Columbia (Columbia University
of New York) em 1999.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510591/CA

Ficha Catalográfica

Gattass, Luciana

Passados, Presentes e Presenças : a


simultaneidade histórica em Hans Ulrich
Gumbrecht / Luciana Barroso Gattass ;
orientadora: Heidrun Krieger Olinto. – 2007.
109 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. História e memória. 3.


temporalidade. 4. Narrativa. 5. Mímese. 6.
Historiografia. 7. Passado. 8. “produção de
presença”. I. Olinto, Heidrun Krieger. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800
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Para o meu irmão Bernardo, pelo amor incondicional e


inabalável crença no risco.
Para minha orientadora Heidrun, pelo afeto, integridade e
delicadeza com que conduz e ilumina meus caminhos.
Agradecimentos

A minha mãe, Márcia, por me ofertar o colo forte e seguro, sempre e por onde
quer que eu vá.

Ao meu pai, Sergio, por ter contradito o poeta e me ensinado que o verdadeiro
amor é eterno e para sempre dura.

À Roberta, ao Álvaro e ao Antonio Pedro Borgerth, pelo mais puro amor.

À Flávia Nogueira, à Carmem e ao Carlos Alberto Vieira, por me provarem que


família transcende os laços de sangue.

Ao meu tio, Marcelo Gattass, pelo acolhimento, carinho e generosidade.

Ao Professor Júlio César Diniz, pela amizade, inspiração e pela aposta


incondicional em mim.

À Professora Eliana Yunes, por aceitar fazer parte desta banca e por todas as
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palavras, Ecos e Calvinos que trouxe à minha vida.

À Professora Valéria S. Medeiro por atravessar o Brasil para estar nesta banca
examinadora.

À Professora Marília Rothier Cardoso por me ensinar sobre arquivos, espectros e


bondade.

À Francisca Ferreira de Oliveira, pela imensa doçura, competência e paciência.

Ao Sergio Marchado pelo melhor e maior colo deste universo em eterna expansão.

À Stella Caymmi pela extraordinária amizade e genuína alegria que traz à minha
vida.

À Mariana Maia Simoni pela amizade tão generosa e por todas as trocas que
vieram e virão.

Ao miglior fabbro Mariano Marovatto, por todas as palavras e por todos os


silêncios também.

À Mariana Newlands, por me convidar a passear em seu mundo encantado.

Á Cátia Assumção pelo afeto rizomático.


Resumo

Gattass, Luciana Barroso. Olinto, Heidrun Krieger. Passados, Presentes e


Presenças: A Simultaneidade Histórica em Hans Ulrich Gumbrecht. Rio
de Janeiro, 2007. 109p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Passados, Presentes e Presenças: A Simultaneidade Histórica em Hans


Ulrich Gumbrecht. Tomando o experimento historiográfico, Em 1926: Vivendo
no Limite do Tempo de Hans U. Gumbrecht como ponto de partida, visa-se aqui
investigar certos aspectos centrais nos estudos teóricos de literatura atuais. É com
um inusitado “Manual do Usuário” que Gumbrecht inaugura sua indagação acerca
das possibilidades de um texto (vs. uma miríade de recursos midiáticos
disponíveis) simular no leitor o efeito de imediação completa. Compartilhando
deste desejo de formulação de uma história sensível – onde “presença” está como
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“outro do sentido” – pretende-se encaminhar uma discussão acerca da proposta de


“produção de presença” — vinculada a seu projeto de materialidade nos processos
comunicativos, artísticos e literários. Propõe-se discutir implicações teóricas do
experimento de Gumbrecht contrapostas a outros modelos inovadores de
representação do passado, tais como os discutidos por expoentes da escola dos
Annales – em particular, Michel de Certeau, François Furet e Paul Veyne.
Segundo Gumbrecht, a simulação de imediação reduziria a ênfase sobre a prática
hermenêutica do conhecimento do passado. Portanto, neste “palco sem atores”
parece imperar a materialidade dos elementos envolvidos nos processos
comunicativos. Neste âmbito cabe perguntar: seria plausível a teorização acerca
destas novas formas comunicativo-literárias – que em toda a sua inegável
virtualidade não deixam de acentuar afetos e sensibilidades, minimizando (sem
excluí-las) formas de racionalização?

Palavras-chave
História e memória; temporalidade; narrativa; mímese; historiografia; passado;
“produção de presença”.
Abstract

Gattass, Luciana Barroso. Olinto, Heidrun Krieger. Pasts, Presents and


Presences: Historical Simultaneity in Hans Ulrich Gumbrecht. Rio de
Janeiro, 2007. 109p. M.A. Dissertation – Letters Department. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Pasts, Presents and Presences: Historical Simultaneity in Hans Ulrich


Gumbrecht. Taking Hans U. Gumbrecht’s In 1926: Living on the Edge of Time
as a starting point, it is the purpose of this study to explore and scrutinize certain
specific aspects and unresolved questions present in current Literary Studies. The
somewhat whimsical “User’s Manual” is indicative of the experimental nature of
his project. The central question will fall upon the capabilities of a written book
(as opposed to other media) to produce or, rather, to re-produce past
experiences—“you should feel in 1926”. Seeking, then, the effect of (almost)
perfect immediacy, Gumbrecht hopes to help formulate or contribute to what
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could be classified as Sensorial Historiography – wherein the act of generating


presence is to be understood as opposed to Hermeneutics. Sharing his impulse to
evoke past worlds, this paper intends to develop a thorough discussion centered
upon Gumbrecht’s own notion of production of presence. Inevitably, this
includes a short analysis of his theories on the materialities of communication. In
addition, the essay will also attempt to draw connections and parallels between his
notions of historiography and those of the Annales school in France — i.e. Michel
de Certeau, François Furet and Paul Veyne who, in their new proposals of
historiography, offer interesting counterpoints to the non-hermeneutical model.
Therefore, the question which will guide and orient the course of this study will
be: would it be plausible and relevant to theorize about these new (and very
experimental) forms of representation, which seem to privilege affections and
sensibilities over more rational approaches – albeit without excluding them
entirely?

Key-Words

Historigraphy; memory; time; narrative; “production of presence”; re-


presentation.
Sumário

1. Introdução: Esboçando Recomeços


1.1 Passagens 11

2. 1926: Um ano bastante comum


2.1 Espaço-Tempo 25
2.2 Dictionnaire des idées Reçues 31
2.3 Leia as Instruções! 36
2.4 “Tutmania” 38
2.6 Autopoiesis 42

3. Um Breve Hiato: 1925 e Mrs. Dalloway


3.1 Que Caiam as Máscaras da Mimesis 53

4. História, Memória e Esquecimento


4.1 Lupus in Fabula 60
4.2 Saltando da Torre Eiffel 69
4.3 Um Conto de Joge Luis Borges 75
4.4 A Contrapelo 80
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5. Conclusão: (Des) aprender com a História?


5.1 Falar aos Mortos 86
5.2 O Impossível Local da Fala: Fluidez e a Terceira Margem 92
5.3 O Intelectual e o Risco 96
5.4 Centro Versus Periferia / Centro = Periferia (infinitude) 99

Referências Bibliográficas 105


Lista de Quadros e Figuras

Quadro 1: Futuro em Luhmann 42


Figura 1: Escher: Autopoiesis 44
Figura 2.1 Rizoma 46
Figura 2.2 Rizoma por Sylvano Bussoti 47
Figura 3 Eixos 58
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Physik und Philosophie

Die Elementarteilchen in Platos Dialog Timaios sind ja


letzten Endes nicht Stoff, sondern mathematische Form.
Alle Dinge sind Zahlen' ist ein Satz, der dem Pythagoras
zugeschrieben wird. Die einzigen mathematischen
Formen, die man in jener Zeit kannte, waren solche
geometrischen oder stereometrischen Formen wie eben
die regulären Körper und die Dreiecke, aus denen ihre
Oberfläche gebildet ist. In der heutigen Quantentheorie
können wir kaum daran zweifeln, daß die
Elementarteilchen letzten Endes auch mathematische
Formen sind, aber solche einer sehr viel komplizierteren
und abstrakteren Art. Die griechischen Philosophen
dachten an statische, geometrische Formen und fanden sie
in den regulären Körpern. Die moderne
Naturwissenschaft aber hat seit ihren Anfängen im 16.
und 17. Jahrhundert das Bewegungsproblem in den
Mittelpunkt gestellt, also den Zeitbegriff in die
Grundlagen eingeschlossen. Unveränderlich in der Physik
seit Newton sind nicht Konfigurationen oder geometrische
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Formen, sondern dynamische Gesetze. Die


Bewegungsgleichung' gilt zu allen Zeiten, sie ist in diesem
Sinne ewig, während die geometrischen Formen, wie z. B.
die Bahnen der Planeten, sich ändern. Daher müssen die
mathematischen Formen, die die Elementarteilchen
darstellen, letzten Endes Lösungen eines unveränderlichen
Bewegungsgesetzes für die Materie sein. 1

W. Heisenberg

1
Heisenberg, Physics and Philosophy: The Revolution in Modern Science (New York:
Harper and Row, 1958). Lectures delivered at University of St. Andrews, Scotland, Winter 1955-
56. Versão em inglês da passagem: “The elementary particles in Plato's Timaeus are finally not
substance but mathematical forms. "All things are numbers" is a sentence attributed to Pythagoras.
The only mathematical forms available at that time were such geometric forms as the regular
solids or the triangles which form their surface. In modern quantum theory there can be no doubt
that the elementary particles will finally also be mathematical forms but of a much more
complicated nature. The Greek philosophers thought of static forms and found them in the regular
solids. Modern science, however, has from its beginning in the sixteenth and seventeenth centuries
started from the dynamic problem. The constant element in physics since Newton is not a
configuration or a geometrical form, but a dynamic law. The equation of motion holds at all times,
it is in this sense eternal, whereas the geometrical forms, like the orbits, are changing. Therefore,
the mathematical forms that represent the elementary particles will be solutions of some eternal
law of motion for matter. This is a problem which has not yet been solved”.
11

1
Esboçando Recomeços

Chego assim ao fim desta minha apologia do romance como grande rede. Alguém poderia
objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia
daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior descoberta de sua própria
vontade. Ao contrário, respondo quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma
combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo
pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Mas a resposta que mais me agradaria dar é outra: quem nos dera fosse possível uma obra
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concedida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu
individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que
não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a
pedra, o cimento, o plástico...
Ítalo Calvino

1.1
Passagens

Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue
firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá
o que é felicidade, e pior: nunca fará algo que torne os outros felizes.

Friedrich Nietzsche

Encaminhar uma discussão mais abrangente acerca da proposta de “produção de


presença” do teórico da literatura Hans Ulrich Gumbrecht — proposta esta,
intimamente vinculada a seu projeto de materialidade nos processos comunicativos,
artísticos e literários. Eis o ponto de partida. Com isto busco inserção em um debate
extremamente atual ainda que incipiente: a elaboração de uma linguagem teórica
adequada a novos formatos literários multimidiáticos, provisoriamente denominados
12

por um de seus expoentes, o professor da universidade de Brown, Roberto


Simanowski, de interfictions, ou interficções — sendo o prefixo inter denotativo do
caráter híbrido destes experimentos: imagem, texto, movimento, interatividade, sendo
todos pressupostos para este formato estético. Simanowski vem a ser um dos
pioneiros nos campos teóricos da escrita em rede e, na função de editor da revista
Dichtung-Digital, é capaz de reunir pensadores de todo o mundo em torno do debate
acerca das novas maneiras de se compreender o processo literário. Primeiramente,
nada muito original, adentrar as discussões teóricas acerca das novas funções da
história e da escrita historiográfica, uma vez destituída de suas tradicionais funções
pragmática e pedagógica.

Hans Ulrich Gumbrecht inicia seu experimento historiográfico, Em 1926: Vivendo


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no Limite do Tempo com uma advertência: seu livro não possui início nem fim
definidos:

Simplesmente comece por um verbete que lhe interesse em particular. De cada verbete,
uma rede de referências cruzadas o levará a outros verbetes relacionados. Leia no ritmo
que seu interesse determinar (e na medida em que sua agenda permitir). Você
estabelecerá, então, a sua própria trilha de leitura. Da mesma forma que não existe um
começo obrigatório, tampouco existe um final obrigatório ou definitivo para o processo de
leitura. (Gumbrecht, 1999, 2).

Independentemente da duração ou do percurso tomado, o efeito deve ser o mesmo


ao que alude o título: Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo – i.e. o leitor deve
sentir-se em 1926. “Quanto mais imediata e sensual esta ilusão se tornar, mais sua
leitura atenderá à meta do livro”. (2). A meu ver, o grande salto do projeto teórico de
Gumbrecht consiste em propor uma alternativa à explicação (relativamente lugar-
comum) de que o boom do arquivamento e a invasão de passados no presente — i.e.
simultaneidade — teriam sido ocasionados por uma suposta aceleração do tempo.
Calcado nas noções sistêmicas do sociólogo alemão Niklas Luhmann, o autor
aventará que o surgimento da simultaneidade estaria relacionado não à aceleração do
tempo, mas ao desaparecimento do sujeito. Mas como explicar esta necessidade de
olhar constantemente para trás se sabemos (Gumbrecht o sabe) que não mais se pode
derivar da História lições práticas para a vida cotidiana?
13

Em um grupo de ensaios publicados pela Stanford University Press em 2004, sob o


título Production of Presence: What Meaning Cannot Convey, Gumbrecht declara
explicitamente que seu interesse em mundos passados responde, em muito, a um
fascínio e a um desejo específico de re-presentificá-los. Se isso o aproxima da
experiência estética, ora, tanto melhor:

What most interests me today in the field of history, the presentification of past worlds —
that is, techniques that produce the impression (or, rather, the illusion) that worlds of the
past can become tangible again — is an activity without any explanatory power in relation
to the relative values of different forms of aesthetic experience. (2004, 94-95).

Previsivelmente, a primeira acusação feita à proposta de Gumbrecht no livro Em


1926: Vivendo no Limite do Tempo, é que sua proposta geraria uma espécie de
despolitização da História e sua conseqüente estetização. Certamente uma questão
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que, a mim, inquietou e inquieta ao escrever estas linhas — após dois anos de vasta
leitura tanto do próprio Gumbrecht quanto daqueles que o sustentam em suas teorias.
Não haveria uma obrigatoriedade de pensar novas funções para o passado que
transcendessem de fascínios ou interesses?

Inicialmente, parecem-me bastante ilustrativas as pesquisas cognitivas executadas


no campo da inteligência artificial. Simular o olhar humano é tarefa bem mais
complexa do que a mera captação de imagens — i.e. o olhar da câmera — olhar, ou
perceber é, acima de tudo, selecionar e priorizar. É precisamente esta dificuldade que
o cientista Douglas R. Hofstader explora em seu artigo “On Seeing A’s and Seeing
As”. (Hofstader, 1995). Citando o eminente matemático Stanislaw Ulam em um
diálogo com seu colega Gian-Carlo Rota, Hofstader cita a seguinte provocação de
Ulam feita a Rota a respeito dos caminhos do campo da Inteligência Artificial (AI):

What makes you so sure that mathematical logic corresponds to the way we think? Logic
formalizes only a very few of the processes by which we actually think. The time has
come to enrich formal logic by adding to it some other fundamental notions. What is it
that you see when you see? You see an object as a key, a man in a car as a passenger,
some sheets of paper as a book. It is the word ‘as’ that must be mathematically
formalized.... Until you do that, you will not get very far with your AI problem. (Ulam,
SEHR, volume 4, issue 2: Constructions of the Mind, 1995).
14

A capacidade de perceber funções e contextos remete exatamente às delicadas


articulações entre aspecto associativo e o caráter narrativo da construção de
conhecimento: questões indispensáveis tanto ao modelo de Gumbrecht quanto à
elaboração de uma estética intermidiática que se possa classificar de literária. Uma
única certeza nos resta: hoje, em abril de 2007, efetuadas as muitas travessias no
campo das ciências humanas e sociais, nossa concepção tradicional de história (como
texto verbal caracterizado por uma configuração específica) encontra-se, no mínimo,
afetada.
Certamente que uma dissertação sobre o tema não poderá, ou melhor, não desejará
esquivar-se de tais provocações. Há exatos 28 anos, um dos padrinhos teóricos do
Pós-Modernismo, Jean François Lyotard, publica seu A Condição Pós Moderna,
prenunciando — ou anunciando — o esgotamento das metanarrativas como
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estratégias de legitimação. Se anteriormente (antes de 1979), a formação do indivíduo


(Bildung) caracterizava-se pela interiorização de conhecimentos, a “condição pós-
moderna” reverte este percurso (Lyotard, 2002). A proliferação de bibliotecas e
museus, a epidemia do arquivamento, e principalmente a Internet, consolidam a
“explosiva exteriorização” do saber, como coloca o crítico Silviano Santiago em seu
posfácio à 9ª edição da obra de Lyotard no Brasil. (Santiago, 1990). Atirado num
oceano de informações, novos problemas emergem: que memória acessar? Tomando
as palavras recentes do crítico alemão radicado nos Estados Unidos, Andreas
Huyssen, acerca de um notório boom mnemônico:

(…) it seems fair to ask: once the memory boom is history, as no doubt it will be, will
anyone have remembered anything at all? If all our past can be made over, aren’t we
just creating our own illusions of the past while getting stuck in an ever shrinking
present — the present of short term recycling for profit, the present of in-time
production, instant entertainment, and placebos for out sense of dread and insecurity
that lies barely underneath the surface of this new gilded age at another fin de siècle?
Computers, we were told, would not know the difference between the year 2000 and
1900 — but do we? (Huyssen, 2003, p. 21).

O Y2K, ou o bug do milênio, prometia fazer com que sistemas confundissem 2000
com o ano 1900 gerando, pois, um apocalipse de proporções impensáveis. Tal, bug,
ou inseto, resultante de nosso próprio erro de cálculo, deglutir-nos-ia de forma tão
15

inexorável quanto a própria morte. O jornalista da revista Isto É, Norton Godoy,


escreveria em 1999:

Esse é um problema absolutamente peculiar. Sua causa é banal, para não dizer ridícula.
Quando o computador passou a ser uma ferramenta comercial nos anos 50, sua
memória ainda era muito cara. Para se ter uma idéia, em 1965 um megabyte de espaço
de memória magnética (suficiente para gravar um texto de 300 páginas) custava US$
761. Hoje [em 1999], o mesmo espaço no chamado disco rígido de qualquer PC custa a
pechincha de US$ 0,75. Então, para economizar o espaço que era muito caro, os
engenheiros da época adotaram a prática de cortar e abreviar tudo o que fosse possível,
inclusive os dois primeiros dígitos comuns a todos os anos do século XX - 1958 era
registrado apenas como 58 para efeito de processamento. Ninguém se deu conta que,
quando houvesse a passagem de 1999 para 2000, o computador não entenderia porque
00 tem que ser maior que 99. Como todos os computadores – e os chips embutidos
neles – funcionam amparados em datas, a conclusão do raciocínio absolutamente
lógico das máquinas será a de que 00 significa 1900 e não 2000. Resultado: ou ele
trava ou remete o trabalho para o início do século XX, com conseqüências desastrosas
como, por exemplo, uma conta de cartão de crédito computar 99 anos de juros.
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(Godoy, 1999).

Assim como Godoy, Huyssen digitava seus anseios e receios sem qualquer indício
de que o Y2K entraria para os anais dos grandes fiascos que costumam irromper em
momentos de grandes transições. Contudo, cabe perguntar o que teria ocorrido caso
contrário, ou seja se as previsões apocalípticas houvessem se concretizado. Bem, de
início, estaria a frágil raça humana atirada de volta a mil e novecentos e um. Dada a
importância das temática da temporalidade neste estudo, a ironia beiraria o
catastrófico, sem dúvida. Contudo, Thomas Edison não retornou da tumba, e a virada
ocorreu, para desapontamento geral, como outra qualquer: tímida, regada a
champanhe, e transmitida ao vivo pela rede americana CNN para um planeta apático.
“This is the way the world ends. / Not with bang, but with a whimper.” - escrevera
T.S. Eliot no ano de 1925.

Teríamos saído impunes? Creio que não. Outros eventos inesperados não
tardariam a abalar estruturas regentes e, logo transformados em extensos programas
televisivos com sóbrios ares de notícia, inundaram nossas mentes e telas.
Reafirmada, portanto, a sociologia do saudoso sociólogo alemão, Niklas Luhmann,
que definia a contingência como palavra de ordem da era contemporânea. Disso
restou uma certeza: o presente — seja o ínfimo milionesimal de Huyssen, ou
expansivo como o quer Gumbrecht — encontra-se invadido como nunca de objetos
16

do passado: modas retrô, revivals de toda a sorte: “Como tudo indica, o nosso olhar
para o futuro há algum tempo é devolvido por um vidro branco fosco,
intransponível.” (2002: 60). Temor do que há por vir? Retornemos ao ano de 1926.

No livro Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, Gumbrecht anetecipa-se à


críticas prematuras e, já no manual do usuário, explicita a “Questão” que o leva
escrever um ensaio sobre simultaneidades: “O que fazer com o conhecimento do
passado agora que perdeu sua função didática?” (11). Em “Narrating the Past as if it
Were Our Own Time”, Gumbrecht já intuíra que uma proposta séria para novas
historiografias deveria ter como ponto de partida uma investigação que levasse em
conta aquilo que nos impulsiona a buscar realidades históricas: nosso fascínio com o
passado. Partindo da hipótese de que o desejo de olhar para trás encaixa-se na
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categoria de constante antropológica, Gumbrecht recorre à interpretação


fenomenológica de Edmund Husserl a respeito do conceito de “mundos-da-vida”
(Lebenswelt). O Lebenswelt, segundo Husserl, compreenderia uma totalidade das
formas culturais do comportamento humano 1 . Apontando a necessidade de diferir tal
conceito de um outro mais restrito, “Mundos-Cotidianos” — uma espécie de redução
prática dos “mundos-da-vida” — Gumbrecht aventa a hipótese de que certas
invenções concretas existentes no mundo cotidiano atenderiam a desejos mais
profundos, paradoxalmente excluídos do leque das possibilidades humanas, embora
pressupostos ou implícitos nos “mundos-da-vida”. (Gumbrecht, 1998 (I) 159).
Telefones, por exemplo, atenderiam, em última análise, a um desejo de onipresença, a
vasta memória dos computadores à um anseio por onisciência e a História atenderia,
assim, a um desejo de eternidade. (1999: 467).

Admitindo que sua busca é motivada por um desejo de representação natural, o que
talvez pudesse ser compreendido como história sensível. Em artigo intitulado

1
Para uma visão mais aprofundada recomenda-se dois textos do próprio Gumbrecht, o primeiro
já citado “Narrating the Past as If it Were our own Time” contido na coletânea Making Sense in Life
and Literature, e o segundo intitulado “Mundo Cotidiano”e “Mundo da Vida”Como Conceitos
Filosóficos: Uma Abordagem Genealógica. In Castro Rocha, J. (org.) (1998).
17

“Produção de Presença Perpassada de Ausência: Sobre Música, Libreto e


Encenação”, Gumbrecht comenta:

O que realmente me fascina (...) é o que permanece excluído, mais implicitamente


postulado, na produção e identificação de sentido. Interessa-me aquilo que chamarei
de “produção de presença”, em que o aspecto da espacialidade é acentuado no
conceito de presença, em detrimento do aspecto da temporalidade. (Gumbrecht, 2001:
10).

Claro está que sua busca um modelo representativo para o passado que privilegie
também o aspecto sensório da experiência e das vivências não poderá esquivar-se de
certo grau de construtivismo: sim, o mundo só nos é acessível via cognição (e isto
não implica na negação da existência de realidades materiais) e ainda que uma
aproximação total – isto é, não mediada – de uma realidade passada seja impossível, a
investigação do próprio fascínio produzido pela história contém potenciais imensos.
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A aposta básica de Gumbrecht, em seu ensaio de simultaneidade histórica, localiza-se


na crença de que a simulação de imediação reduzirá a obrigatoriedade de uma
aproximação hermenêutica para com o conhecimento do passado.

Evidentemente que não se trata de um devaneio acadêmico. Aquilo que se faz


presente, já no sentido etimológico da raiz latina prae-esse, coloca-se diante de nós e
é passível de toque. Num primeiro contato, o raciocínio por trás de Em 1926:
Vivendo no Limite do Tempo, poderá soar incrivelmente ingênuo: já que não sabemos
o que fazer com nosso vasto conhecimento do passado, devemos examinar os
impulsos que motivam nosso interesse. O primeiro passo mostrar-se-á não tão
elementar: de antemão, exige-se a renúncia aos preceitos da hermenêutica clássica,
que distingue no sujeito a capacidade de interpretar objetos (significantes) de forma a
encontrar neles sentido (significados). Como desatar amarras tão profundas? Uma
pista seria, para Gumbrecht, a troca de modelos clássicos de representação
historiográfica (narrativos e teleológicos) — i.e. redutores de complexidade — em
favor de quadros sistêmicos que privilegiem a contingência e a simultaneidade (2004:
122-123).

Neste sentido, a crítica de Gumbrecht ao Novo Historicismo não deixa de ser


relevante, pois elucida (ainda que por negação) alguns dos aspectos mais complexos
18

do modelo por ele proposto. Em primeiro lugar, Gumbrecht discorda veementemente


da idéia de que escrever História pudesse significar “fazer História”:

Num primeiro (e comparativamente inofensivo) nível, frases como “a invenção de


classes” parecem ter estimulado a crença que estas realidades são de fato produtos da
intencionalidade humana e das invenções humanas. (1999, p.464).

O que fazer com o conhecimento histórico agora que não mais se poderá aprender
com ele? — indagará o autor em uma das “janelas” que se pode “abrir”
“pressionando” a tecla “Help” localizada no “Manual do Usuário”. Antes de tudo, há
que reformular a pergunta. Sem temer as conseqüências (imprevisíveis) de tentar
tornar o passado novamente disponível — i.e. “pronto para pegar” (Zuhandenheit),
Gumbrecht abre caminhos inéditos para formulações afirmativas (em um mundo tão
abarrotado de negativas) acerca do que nós, hoje, acreditamos que a história
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realmente seja.

Atualizando ainda mais a discussão, percebemos considerável congruência entre as


buscas de Gumbrecht e as investigações do crítico alemão Roberto Simanowski
acerca de critérios estéticos adequados às formas literárias digitais. Tais empreitadas
aludem à polêmica demarcação dos limites do campo estritamente literário face às
novas exigências impostas pelo cybernetic turn. Evidentemente, a noção de que
certos textos simplesmente extrapolariam o formato linear do escrito impresso, habita
o centro de uma miríade de argumentações fomentadas pela virada cibernética.
Como aponta Heidrun Krieger Olinto em seu ensaio intitulado “Fogos de Artifícios
Verbais”:

Escrever na rede não se refere à adaptação do processo produtivo usual para uma nova
mídia de representação, mas caracteriza antes, um procedimento que se funda nas
possibilidades estéticas específicas da mídia digital, acentuando, portanto, a diferença.
Esta literatura não terá o livro como estágio final, e consiste de textos impossíveis de
serem lidos da esquerda para direita e do início ao fim, porque o leitor precisa, primeiro
configurá-las e às vezes até escrevê-las. (Olinto, 2005:42).

Reduzir a literatura digital a um mero processo de re-mediação seria destituí-la de


sua riqueza e complexidade. Precisamente por recusarem fixação dentro de
categorias pré-estabelecidas, esses novos objetos reconduzem o debate acadêmico
para as maneiras inéditas de teorização. E é neste ponto que tais teorias se aproximam
19

do projeto historiográfico de Hans Gumbrecht. Ambas provocam a necessidade de


um olhar acrescido de complexidade. Assumir e privilegiar a dimensão
multimidiática de obras estéticas criadas na rede exige não menos esforço cognitivo
do que a proposta de “re-presentação” do passado, que implica em produzir, de fato,
sua presença no presente.

Como uma hipótese parcial deste encaminhamento, cabe introduzir uma terceira
categoria de subjetividade: a transubjetividade, baseada no conceito de
transculturação (transculturality), desenvolvido pelo critico da cultura alemão
Wolfgang Welsch.

The transcultural webs are, in short, woven with different threads, and in a different
manner. Therefore, on the level of transculturality, a high degree of manifoldness results
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again – it is certainly no smaller than that which is was found between traditional single
cultures. It’s just that now the differences no longer come about through juxtaposition of
clearly delineated cultures (like in a mosaic), but result between transcultural networks,
which have some things in common while differing in others, showing overlaps and
distinctions at the same time. The mechanics of differentiation has become more complex
– but it has also become genuinely cultural for the very first time, no longer complying
with geographical or national stipulations, but following cultural interchange processes.
(Welsch, 1999: 8).

Em lugar da oposição ‘eu’ e o ‘outro’, o que podemos daí inferir é uma nova
categoria: o ‘transujeito’ — uma espécie de leitor-feito-autor-feito-ator-feito-(com)
texto. Acentuando um verdadeiro enlace funcional entre autor e receptor, o crítico
das novas mídias norte-americano, George Landow, sugere uma reformulação da
concepção de sujeito. A leitura de Landow, acoplada a uma análise das teorias de
presença de Gumbrecht e, especialmente, ao estudo do experimento Em 1926:
Vivendo no Limite do Tempo, sugere o abandono do conceito de sujeito centralizado,
e a configuração deste único-múltiplo como ponto nodal inserido em uma rede.
Curiosamente, este sujeito-múltiplo-online interage com seu ambiente de forma
predominantemente associativa, sempre visando extrair desses objetos estéticos em
emergência experiências sensíveis. Bem entendido, tal abertura aos afetos não é, de
forma alguma, algo novo. Essas propostas radicais encontrariam mais tarde
ressonâncias mais tênues em modelos como o de “produções de presença”, em
20

Gumbrecht. No ensaio “Depois de Aprender com a História”, adendo contido em


seu livro-experimento Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, o autor lança a
problemática pergunta: como podemos ser responsáveis pela impressão de que
interpretamos e compreendemos o outro se optamos por uma teoria do discurso que
nega o sujeito?

A resposta só se torna possível através de uma reformulação do conceito de


sociedade nos moldes de sistemas autopoiéticos, por exemplo. Segundo Niklas
Luhmann, sistemas funcionam de maneira cega: “they do what they do. They
reproduce the system”, diz Luhmann (Luhmann, 1998). Logo, noções de
compreensão ou interpretação seriam necessariamente elaboradas internamente — i.e.
resultado de uma mera oscilação entre a auto-referência do próprio sistema (A) e a
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referencia interna que este (A) atribui ao outro (B). Para Luhmann, torna-se
problemática uma teoria fundamentada na correspondência entre modelos
interpretativos e uma realidade exterior e anterior. Conseqüentemente, também as
teorias hermenêuticas que se orientam neste mesmo princípio. Nesta situação, creio
ser a tarefa de estudiosos da literatura não simplesmente ignorar as transformações
em curso — que afetam diretamente o sistema literário — mas investigar seus
possíveis novos lugares, funções e contextos.

Algumas conseqüências se tornam evidentes no contexto do debate acerca das


literaturas digitais emergentes. Face à inexistência de formas de teorização
integradas, minha proposta se entende como uma tentativa de elaboração de
elementos teóricos a partir de um estudo da proposta historiográfica de Hans
Gumbrecht Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo. Com isso pretendo iniciar
abordagens a novas condições de superposição do fenômeno literário interficcional.
Fenômeno este que acrescenta à compreensão baseada na seqüencialidade verbal uma
percepção visual instantânea e uma nova concepção de temporalidade. Em seu
conjunto, tais propostas demandam desenvolvimento de novas competências de
compreensão e descrição. Em tempos de hyperlinks e super-highways, evocamos o
profeta Lyotard. Diria ele que o “si mesmo”, ou self, embora por si fraco, não está só,
tampouco está preso a um local ou ponto. (Lyotard, 2002:28). Ao contrário, é móvel,
21

fluído, leve, rápido — assim como previu Ítalo Calvino em suas propostas para este
milênio que hoje é nosso.

A priori, trata-se de um deslocamento do campo da construção da subjetividade


para um mergulho mais aprofundado na esfera da inter-subjetividade e, mais ainda,
no campo da transubjetividade descrita pelo sociólogo alemão Wolfgang Welsch.
Aquém mesmo do “observador de segunda ordem” proposto por Luhmann, este novo
sujeito auto-reflexivo-observador-e-observado é lançado em um jogo de espelhos de
bibliotecas infinitas e ruínas circulares que finalmente o conduzem à era de incertezas
que hoje experimentamos.

No tocante ao papel institucionalizado do sujeito — i.e. o sujeito intelectual — a


situação se torna opaca, uma vez que as próprias fronteiras se tornam flutuantes: tal
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qual o estrangeiro descrito pela teórica da literatura, Julia Kristeva, este trans-sujeito
formado de multiplicidades, inescapável observador de terceira ordem, jamais
percorre um solo firme, pois “todos os objetivos deveriam se consumir e se destruir
no louco impulso do errante em direção a um alhures sempre recuado, insaciado,
inacessível”. (Kristeva, 1994). Não há tréguas ou domicílios possíveis; não há terra
prometida. Há apenas travessias múltiplas em terrenos gradativamente aumentados
em complexidade. Neste sentido, essas obras de arte em constante estágio de
emergência habitam eternamente a terceira margem do rio de Guimarães Rosa.
Relembrando as belíssimas palavras de Tzvetan Todorov em seu Aller Retour: após
visita à sua terra natal, Sofia, declara o autor que “je vis désormais dans un espace
singulier, à la fois dehors et dedans: étranger chez moi (à Sofia), chez moi à l’étranger
(Paris)”. (Todorov, 1996). Sendo o sistema literário interligado ao social e cultural
(Schmidt) entende-se que ao tratar de literatura digital em um mundo de fronteiras
mutantes, torna-se necessário abolir certas distinções binárias típicas, tais como centro
e margem, fora e dentro, local e global, como o faz Gumbrecht em seu modelo de
códigos e seus corolários código em colapso, que descrevem visões da cultura do
interior do ano de 1926.

Esquivando-nos de qualquer conjectura vazia a respeito dos futuros da humanidade,


cabe-nos sugerir que, ao menos culturalmente, o Google assumiria a função da
22

terceira margem onde todos ‘navegamos’. Simanowski destaca em seu Interfictions.


Vom Schreiben im Netz (Interfictions. Writing in the Net), o aspecto intermidiático
dessas novas produções. É precisamente por verificar que é neste cenário que se
reacende a prenunciada e anunciada “morte” do livro, parece-me particularmente
oportuna uma análise de um formato comunicativo literário onde figure, de forma
central, o atualíssimo de historiografia de presenças de Hans Ulrich Gumbrecht.

Revisitados os bosques de teorias comunicativas, percorridas as inter-relações entre


texto-leitor via herança da estética de recepção e do efeito, aparece como saída
plausível modelos descritivos construtivistas. Desse modo, parece-me oportuno
recorrer às teorias do alemão Sigfried Schmidt, que me seu modelo, prioriza a
descrição e explicação do sistema social da literatura, ao invés de enfatizar a
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interpretação de textos particulares. Que tal se ocupássemos nossas mentes com


questões mais modestas?. Ou, como sugere Heidrun K. Olinto, e se alterássemos a
pergunta: “o que podemos observar por meio de conceitos construtivistas em relação
à cognição, à comunicação, à mídia, à compreensão e à cultura?” (Olinto, 2006).

A necessidade de um olhar mais cuidadoso sobre modelos interficcionais


fundamenta-se exatamente em novas demandas por gestos associativos
(performáticos), que influem diretamente nos mecanismos de construção social e
individual da realidade. Landow explicita tal condição quando aponta para o
remanejamento de poderes entre autores e leitores, atentando para a necessidade de
criação de um “intrusive reader” (Landow, 1997). Este tipo de leitor — que sem
dúvida é também o leitor-ideal para o experimento Em 1926: Vivendo no Limite do
Tempo — individualizará sua experiência de leitura a ponto de torná-la absolutamente
singular, ainda que vinculada a certas noções de mundo que sabemos ter ocorrido
apenas no interior do ano de 1926.

Esta ênfase na materialidade, bem como o contínuo esforço pela recuperação do


sensível no âmbito das artes e cultura emergem em um momento de virtualidade
quase absoluta. Mas quem pode hoje, honestamente, surpreender-se por paradoxos?
Andreas Huyssen, em sua famosa análise da febre do arquivamento, cita um
supervisor de arquivos canadense acerca da fragilidade do neo-arquivo:
23

Reflecting on such phenomena, a senior manager charged with information technology


at the Canadian archives was recently quoted as saying ‘It is one of the great ironies of
the information age. If we don’t find methods for enduring preservation of electronic
records, this may be an era without memory’. The threat of oblivion thus emerges from
the very technology to which we entrust the vast body of contemporary records and
data, that most significant part of the cultural memory of our time. (Huyssen, 2003,
26).

Ironias à parte, trágicas ou não, Huyssen e Gumbrecht estão em pleno acordo


quando detectam algo de estranho ocorrendo com os relógios da atualidade.

“O tempo enlouqueceu” teriam dito certamente nossos antepassados ( e ainda nossos


avós), reagindo a estas impressões de tempo e ao peso da consciência delas
decorrentes, que ameaçam hoje acabar em crises-coletivas de auto-confiança. Jean
François Lyotard, há mais de uma década, falou em mobilization génerale (mas
também poderíamos falar em nervosidade), que permanece em sua própria condição de
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presente, por que não se desenvolve em direção alguma em que modificações


decorrentes pudessem ser adicionadas numa “transformação histórica”. (Gumbrecht,
2002, 56).

Ao leitor de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo é imposta a tarefa — não


menos impossível que o desejo do autor de ouvir as vozes dos mortos — de conjurar
mundos ausentes e senti-los (mais) próximos — ainda que tanto ele leitor, quanto,
naturalmente, o produtor saibam ser impossível a “vivência direta”, isto é, não
mediada, de mundos que existiram apenas no passado. Mas o que significaria
vivência direta? Seria ela possível em nosso próprio presente?

Independentemente por onde você entrar ou sair, qualquer seqüência de leitura com
uma certa extensão deve produzir o efeito ao qual alude o título deste livro: você deve
se sentir em 1926. (1999: 11).

O leitor tem, assim, uma espécie de leitura ‘customizada’ — antecipando


experimentos bastante interessantes, como o ousado projeto The Impermanence
Agent, proposto pelo teórico de mídia Noah Wardruip-Fruin, autor de The New Media
Reader (MIT Press, 2003), peça chave na exibição “Brave New World”, organizada
pelo museu Guggenheim em Nova York no ano de 2001. (Wardruip-Fruin, 2004).
Ali, através das preferências do usuário, o ‘agente’ gerava histórias que, por sua vez,
relacionavam eventos do mundo real às escolhas individuais. O resultado do
experimento artístico virtual é tão inusitado quanto convidativo a novas formulações
24

teóricas acerca de modelos de redes. E por que isso nos importa? Por ser o modelo
de redes o paradigma no qual se insere o ensaio em simultaneidade histórica de
Gumbrecht. Ao refletir sobre seu método de seleção e análise de fontes no ensaio
“Depois de Aprender com a História”, ele coloca:

A análise das fontes foi dirigida não para uma fórmula totalizante ou para uma espécie de
denominador comum do ano em questão, mas para a identificação de uma multiplicidade
de tópicos que tenham prendido a atenção em 1926. (22).

A tradução da obra do teórico alemão Friedrich Kittler, Discourse Networks:


1800-1900, publicado pela Stanford University Press, é para Gumbrecht, uma
evidência da predominância do modelo das redes:

(...) não se trata de uma coincidência se a metáfora tecnológica da rede [tenha] gozado
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de crescente popularidade nas nossas disciplinas, pois ela sugere com otimismo uma
analogia entre aquelas técnicas de simultaneidade que os cientistas e os engenheiros
parecem controlar e a simultaneidade como dimensão histórica e sociológica que só agora
começamos a tematizar. (22).

Não surpreende que tal multiplicidade gere questionamentos: que tipo de realidade
se constrói com este acúmulo de verbetes? Como qualificar tais inter-relações?

Mas se hoje questionamos a função pedagógica da história — uma função que parece
visível também no próprio hábito de pensar e representar a história como encadeamento
de eventos numa seqüência narrativa — seria necessário elaborar simultaneamente novas
funções e novas formas de escrita para uma historiografia que se quer não-narrativa.
(Olinto, 2001, 121).

Se não são causais, então há que se investigar as novas formas de associação que
ocorrem entre os pontos nodais da rede de Gumbrecht. Feito isto, talvez pudéssemos
nos aproximar de uma concepção mais precisa daquilo que ele —aqui representando
“pessoas educadas dentro da cultura ocidental” (Gumbrecht, 199:11), e com a
autoridade que apenas o saber atualizado com a rapidez de um processador de última
geração lhe poderia conferir — acredita que a História seja. Este me parece um
caminho rico em possibilidades tanto de prática como de teorização. Sigamos por
ele.
25

2
1926: Um Ano Bastante Comum
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2.1

Espaço-Tempo

Equação da Relatividade Geral de Albert Einstein (1926)

1926 - RELÓGIOS

Todos os relógios estão invadindo o mundo da ficção. Na abertura do romance The


Sun Also Rises, de Hemingway, uma jovem francesa com um “wonderful smile” (mas
dentes ruins) é convidada para tomar um drinque — e mais tarde jantar — por Jake
Barnes, o narrador. [ver Americanos em Paris]. Entre o drinque e o jantar, Jack e
Georgette passeiam pelas ruas de Paris num táxi: “Settled back in the slow, smoothly
rolling fiacre we moved up the Avenue de l’Opera, passed the locked doors of the
shops, their windows lighted, the Avenue broad and shiny almost deserted. The cab
26

passed The New York Herald bureau with the window full of clocks. ‘What are all the
clocks for?’ she asked. ‘They show the hour all over America.’ ‘Don’t kid me’.”
(Hemingway, 15).

Não fica claro se Georgette entendeu a explicação de Jake sobre os relógios na vitrine
do New York Herald. Será que ela sabe que o globo é dividido em 24 fusos horários?
Ela sabe que, no momento em que conversa com Jake, a hora em Paris é diferente da
hora em cada um dos 23 fusos? [ver Polaridades] Em todo caso, a simultaneidade
temporal não é uma forma de experiência que interesse a Georgette. A sua vida
depende de encontros casuais nas ruas e cafés de Paris, e ela não precisa de outro
horizonte além deste mundo limitado.

Existem poucos protagonistas literários que pensam sobre os fusos ou a relatividade do


tempo, e são menos aqueles que conseguem voltar da esfera da relatividade para
parâmetros cronológicos individuais e fechados. O banqueiro John S.S., no conto
“Curiosa metamorfose de John” publicado na Revista do Ocidente, é um desses heróis
cosmopolitas. Depois de comer, John saiu sem chapéu (...) para passear pelos Jardins
de Luxemburgo. Era a hora do dia em que (...) os balconistas faziam os cilindros de
suas máquinas registradoras girar como máquinas de jogo, e também a hora em que a
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taxa de câmbio do franco suíço em Constantinopla subia. Pensando nisso, John


começou a rir. Porque esta hora do dia quando a correspondência já tinha sido
despachada e a Bolsa de Nova York já estava fechada, também era a hora do lanche
das crianças, hora do chá com bolo”. (Revista de Ocidente, 10-11). Provavelmente por
uma falta de experiência cotidiana adequada, o autor da história confunde a relação
entre o horário padrão da Europa Oriental com o da Europa Central. O começo da
tarde em Nova York corresponde à meia noite em Paris, e não ao começo da tarde.
Mesmo que John precise levar em conta a pluralidade e a relatividade do fuso horário
quando estiver tomando decisões para o seu banco, ele precisa esquecê-las — aboli-las
de sua realidade se quiser apreciar a beleza de uma tarde em Paris. [Ver Incerteza
versus Realidade]. (Gumbrecht, 1999, 233-234).

1926 - INCERTEZA VERSUS REALIDADE

Existe o medo de que a verdade não possa ser (e nunca tenha sido) acessível. Como
um ideal reverenciado, a verdade está fortemente presente. Mas, além disso, as pessoas
querem perceber o mundo e os fenômenos como eles são — isto é, sem distorções de
perspectiva. Eles não querem um saber e uma compreensão que estejam sujeitos à
revisão e à mudança histórica. Eles ainda acreditam que a posse da verdade será um
fator de aprimoramento e das condições da experiência humana. Mas quanto mais
forte este desejo e esta esperança, menos realistas eles parecem. Tal situação afeta
diretamente o trabalho da maioria dos intelectuais, e parece também ter impacto sobre
o comportamento daqueles que não se preocupam com questões filosóficas. Como
reação a esta desintegração da verdade como critério último para o saber, surgem duas
atitudes diferentes. Por um lado os intelectuais se queixam de que um mundo sem
verdade é um mundo caótico. Eles buscam as causas dessa crise e as formas de
resolvê-la. Por outro lado pensadores, sem reprimir a consciência da inevitável
Incerteza, tentam chegar a um acordo com ela. Eles puseram de lado, adiaram ou
27

rejeitaram deliberadamente a questão de saber se o conhecimento humano pode atingir


o nível definitivo da verdade, e tentam estabelecer o valor de qualquer tópico do
conhecimento exclusivamente segundo as funções que ele pode executar para a vida
humana. No lugar do clássico binarismo “verdadeiro versus falso” (Luhmann, 167ss.).
(Gumbrecht, 1999: 333).

1998 – O TERMINAL

Aeroportos são emblemas das relações espaço / tempo pós-modernas. Pois uma frase
como “eu estou em Nova York”, se for pronunciada no saguão do aeroporto Kennedy
de Nova York por um passageiro sem cidadania americana e sem o visto americano,
tem uma pragmática que, há algumas décadas, só era imaginável em casos extremos de
exceção. Esse passageiro pode ter visto, na aterrisagem, o Empire State a uma
distância que a fenomenologia do espaço parece caracterizar como “alcance potencial”,
no qual o público da virada do século acreditava que os objetos da tela eram dados à
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sua experiência e ação. Na verdade, para um tal passageiro, o Empire State está fora
do alcance potencial. O mundo do saguão do aeroporto, ao contrário, é parte do
alcance real, mas esse alcance não é Nova York, mas uma esfera sem nome que na
experiência se unia aos saguões de trânsito de todos os outros aeroportos. Talvez
mesmo hoje proceda a tese de Michel Serres, de que esses espaços de trânsito ou de
distribuição (échangeurs) estejam no centro da nossa maneira de viver (1987, p. 60).
Pois diferentemente de Nova York, visível agora mesmo para o nosso passageiro,
Montreal ou Cidade do México, que ele (ainda) não pode ver, podem estar ao seu
alcance potencial — seja como for, ele poderá encontrar e comprar inúmeros vôos de
conexão para lá, se dispuser do visto necessário. (1998 (I), 279).

Ignoremos a ênfase na obtenção de vistos — compreensível a qualquer cidadão não


inglês que já tenha tentado imigrar, ou mesmo passar inocentes férias em territórios
norte-americanos. Claramente, a inquietação de Gumbrecht está diretamente
relacionada a uma mudança nas concepções usuais de tempo e espaço. O interessante
na justaposição dos textos — dois deles “verbetes” constituintes da rede de Em 1926:
Vivendo no limite do tempo, e o terceiro proveniente de um ensaio teórico intitulado
“Tempos e Espaços Pós Modernos”— é não apenas a congruência temática
(sugerindo que linhas convergentes atuam em diferentes pontos cronológicos), mas a
maneira com que o autor tangência, de forma delicada, uma materialidade nunca
atingida. O acaso da escolha do ano de 1926 — precisamente o ano em que Martin
Heidegger escrevia seu O ser e o tempo — denota a confluência teórica de certos
28

aspectos básicos para a compreensão do modelo de simultaneidade histórica de


Gumbrecht: especialmente naquilo que concerne sua noção de produção de presenças.

Martin Heidegger estabelece, em Sein und Zeit (ser e tempo) uma relação explícita entre
as novas possibilidades tecnológicas de atravessar distâncias e suas próprias análises do
espaço como uma condição estrutural para a existência humana (Heidegger 102 ss.)
Através de uma daquelas hifenações que são características de seu estilo, como um
filósofo e escritor, Heidegger transforma Entfernung (distância) em seu oposto Ent-
fernung (encurtamento da distância). Este jogo de palavras leva Heidegger à tese —
análoga e derivada da prioridade que ele dá à Zuhandenheit (pronta para o manuseio)
sobre o Vorhandenheit (presente às mãos) — de que, de um ponto de vista existencial, a
proximidade (o resultado do encurtamento da distância) tem prioridade sobre a distância
(411).

Esta oposição Zuhandenheit vs. Vorhandenheit conduz a uma idéia do modelo


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representativo selecionado pelo autor. O caleidoscópio de sons, imagens e sensações


pertinentes a este período de 365 dias entrecruzam-se com códigos culturais bastante
específicos. É claro que Gumbrecht tratará de algumas dessas questões baseando-se
firmemente nas teorias sistêmicas de um de seus padrinhos intelectuais, o sociólogo
Niklas Luhmann. Este interpreta a sociedade como um sistema, isto é, observando-a
através da distinção entre sistema e meio. Diz Armin Mathis, um estudioso de
Luhmann, que se deve recorrer aos instrumentos da teoria geral dos sistemas,
sobretudo às mudanças paradigmáticas que ocorreram nos anos 70 e 80, em função de
novas descobertas nas ciências exatas e biológicas. Feito isto, há que se manter em
mente que a teoria de sistemas autopoiéticos trata de entidades auto-referenciais e
operacionalmente fechadas. (vide item 2.7).

A sugestão de Gumbrecht de pensar história como simultaneidade reflete um


momento acadêmico que ele classifica como “comparativamente fraco” (1999:12).
Escorando-se na reformulação sistêmica de Luhmann, Gumbrecht chega à importante
conclusão de que a ênfase na espacialidade — sintomática da crise da subjetividade e
enfraquecimento do paradigma hermenêutico — está relacionada a mudanças
epistemológicas que ocorrem no próprio momento de produção do livro (1997).
Dada a universalidade atribuída — e já incutida no “campo hermenêutico” — vê-se
que a proposta de Gumbrecht, ainda que assuma uma posição de ponta nos contextos
29

acadêmicos, enfrenta dificuldades à parte. Valendo-nos das palavras de David


Wellbery no prefácio ao livro de Friedrich Kittler:

[The] breadth of appeal is built into hermeneutic theory itself, which conceives of
interpretation as our stance in being: we cannot but interpret, we are what we are by
virtue of acts of interpretation. Hence the “universality claim”
(Universalitaetsanspruch). (Wellbery, 1990: 2).

Por um lado, trata-se de um ambiente ávido por rejeitar paradigmas e decretar a


morte de uma miríade de certezas, por outro, recusa-se a oferecer alternativas às
lacunas que insiste em denunciar. Ao traçar uma breve genealogia da relutância em
abandonar o passado como fonte de conhecimento, Gumbrecht situará seu projeto de
forma bastante precisa dentro de um quadro complexo que se poderia conceber como
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uma espécie de preâmbulo à tão necessária “teoria do presente” (1994:26). Em


síntese, pode-se dizer que a operação de contextualização genealógica de Gumbrecht
foca-se em três eixos básicos: a perda da consciência histórica, a historicização do
tempo histórico — derivada da percepção de que a própria construção do tempo
histórico dominante desde o século XVII até o XX é culturalmente específica — e,
por fim, a crise da subjetividade. Um caminho viável consistiria, para Gumbrecht, na
troca de modelos clássicos de representação (narrativos e teleológicos) em favor de
quadros sistêmicos que privilegiem a contingência e a simultaneidade:

Uma crítica sistêmica da hermenêutica teria que começar com a reformulação da psique
humana (“sistemas psíquicos”) e das sociedades humanas (“sistemas sociais”) intrínsecas
aos “sistemas autopoiéticos.” (Gumbrecht, 1999:471).

Para esclarecer e pontuar ainda mais o elo entre a historiografia proposta por
Gumbrecht e as teorias de Luhmann, tomo as palavras de Heidrun Olinto em seu
ensaio, “Voracidade e velocidade: Historiografia literária sob o signo da
contingência”:

Teorias que adotam a contingência como objeto de sistematização precisam lidar com de
transição sem permanência, com disparidades, fenômenos regionais e locais não
universalizáveis. Essa contingência confere aos fenômenos um estatuto particular fundado
sobre incertezas e constantes processos de redefinição. Nesta situação, emergem as teorias
sistêmicas de Luhmann como promissoras e vantajosas, uma vez que abandonam
hipóteses de identidade e favorecem suposições de diferença. O seu modelo, baseado na
30

hipótese de diferenciação entre sistema e entorno, permite uma análise da sociedade como
funcionalmente diferenciada que insere, entre outros sistemas sociais parciais, o sistema
artístico. Um olhar sobre o conjunto de suas propostas evidencia uma impressionante
dimensão multi-estrutural e policontextual, correspondendo à despedida enfática de
quaisquer fundamentos ontológicos estáveis. (Olinto, 2001: 1).

Gumbrecht aposta na premissa de que seria possível reunir num só quadro teórico
duas correntes distintas: de um lado, a “destemporalização” do cronópio do tempo
histórico e, de outro, a crise da representabilidade, apontada e divulgada por Michel
Foucault.

O que talvez nos separe mais claramente do início da modernidade é a sua confiança —
confiança cega, como muitas vezes constatamos — no conhecimento do observador de
primeira ordem. Entre o início da modernidade e nosso presente epistemológico há um
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processo de modernização, abrangendo as décadas em volta do ano de 1800, que gerou


um observador que é incapaz de deixar de se observar ao mesmo tempo em que
observa o mundo. (Gumbrecht, 1998, 13).

Na genealogia da episteme foucaultinana tal ordem transforma-se


completamente já no momento em que Descartes separa cogito da res cogitans,
estabelecendo, pois, a dicotomia sujeito / objeto. O cogito traz em si uma espécie de
bomba-relógio que hoje vemos explodir. De acordo com esta visão, tanto para
Gumbrecht, Luhmann e Foucault, estão estabelecidas as pré-condições para o
nascimento da modernidade. Não mais parte integrante e indissociável do universo, o
homem passa a ver-se a si mesmo como excêntrico ao mundo que o circunda. Como
tal, torna-se capaz de conhecer este mundo — transforma-se no produtor de saberes.
(13). Gumbrecht atribui esta separação sujeito / objeto a um eixo horizontal das
mudanças epistemológicas que culminam no período que hoje classificamos de pós-
moderno. O eixo vertical conteria o surgimento do “campo hermenêutico” —
precedendo em séculos a instituição disciplinar da Hermenêutica propriamente dita.

Penetrando o mundo dos objetos como uma superfície, decifrando seus elementos
como significantes e dispensando-os como pura materialidade assim que lhes é
atribuído um sentido, o sujeito crê atingir a profundidade, i.e. a verdade última do
mundo. A interseção dessas duas polaridades — entre sujeito e objeto, entre superfície
e profundidade — constitui, séculos antes da institucionalização da Hermenêutica
31

como subdisciplina filosófica, aquilo que podemos chamar de campo Hermenêutico.


(1998 (I), 12).

Acontece que o campo hermenêutico presume que a materialidade do mundo


concreto oculta verdades mais profundas. Apenas o homem, dotado da capacidade e
interpretar, poderá então extrair das superfícies descontínuas e deficientes,
significados ordenações e, portanto, conhecimento.

2.2
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Dictionnaire des Idées Reçues

TEMPS : Eternel sujet de conversation. Cause universelle des maladies. Toujours s’en plaindre.

TERRE : Dire les quatre coins de la terre, puisqu’elle est ronde.

THÈME : Au collège, prouve l’application, comme la version prouve l’intelligence. Mais dans le
monde il faut rire des forts en thème.

TOILETTE (des dames) : Trouble l’imagination.

Gustave Flaubert

Ao apontar o Dictionnaire des Idées Reçues de Gustave Flaubert como fonte


inspiradora — ao menos do modelo rizomático que jamais se quer fechado ou
totalizante — Gumbrecht admite que embora não seja o Dictionnaire um modelo
viável de historiografia justamente por não se propor a conjurar mundos passados:

(...) Não conheço qualquer outro texto que proporcione aos leitores de hoje uma
ilusão tão poderosa de experimentar por dentro de um mundo cotidiano passado.
Além da arbitrariedade descentralizadora da ordem alfabética, dois aspectos
contribuem para este efeito. Flaubert trata como citações os lugares-comuns que
compilou, como fragmentos de uma realidade histórica — e não como descrição desta
realidade. Eles aprecem como citações (embora não estejam cerradas entre aspas)
porque não existe voz ou discurso autoral que os comente ou que os coloque numa
perspectiva histórica. (Gumbrecht, 1999, 485).
32

Certamente não se pode dizer o mesmo de Gumbrecht: “Nas seções


‘Dispositvos’, ‘Códigos’ e ‘Códigos em Colapso’, o texto pretende ser não
estritamente descritivo”, o que por si já gera questionamentos entre as tênues
fronteiras entre os atos de narrar e descrever. E decerto que um olhar cuidadoso sobre
o texto de Gumbrecht apontará não apenas uma, mas uma série de instâncias onde se
pode argüir que o texto extrapola seu comprometimento com a descrição pura (de
‘concretudes’ e ‘superfícies dominantes’) para recair na narrativa pura e simples.
Afirmo isso não apenas calcada nos inúmeros exemplos das várias citações incluídas
nos seus 51 verbetes, mas em exemplos de prosa descritiva tais como, por exemplo, a
passagem que se encontra dispositivo intitulado “Artistas da Fome”, onde se um certo
encadeamento narrativo não fica evidente (não, ao menos, um que se possa chamar de
aristotélico clássico, calcado exclusivamente na causalidade), o caráter “descritivo”
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dos verbetes encontra-se constantemente invadido por observações autorais altamente


interpretativas:

ARTISTAS DA FOME

(...)
Uma dinâmica sadomasoquista semelhante atrai milhares de espectadores pagantes
para as jaulas dos artistas da fome — embora isto seja freqüentemente camuflado sob
vários discursos filosóficos e até teológicos. As massas que ficam diante das jaulas
admiram o paradoxo de uma existência humana que, isolada de seu alimento terreno,
adquire uma forma quase transcendental: “Nós bebemos o vento, provamos os gases /
fumamos gordura com óleo vermelho-flamejante / nós saboreamos, e quando neva
revolvemos o solo. A boca apaziguada” (Becher, 134). [Ver Imanência versus
Transcendência] (1999:30).

Vejamos então:

IMANÊNCIA VERSUS TRANSCENDÊNCIA


Freqüentemente, um escritor usará conceitos e metáforas de natureza tradicionalmente
religiosa apenas para mostrar que os homens podem passar sem eles. Uma das maiores
preocupações do momento entre os intelectuais é transformar elementos de
Transcendência em elementos de Imanência. Parece que as idéias e imagens da
Transcendência são evocadas apenas para serem imediatamente rejeitadas, quase com
desprezo. A distinção entre os mundos cotidianos e os mundos transcendentes
raramente é mantida. Os discursos de ideologia política são as exceções mais óbvias
33

nesta tendência, mas nem sempre fica claro se os espaços transcendentes que eles
denotam devem ser levados a sério ou se são puramente ornamentais (321).

Gumbrecht pretende aferir a cada um dos verbetes um certo clima, ou atmosfera


específica (Stimmung) daquilo que representam, atribuindo este fato a um certo “tom
heideggeriano” presente no livro. Isso de fato ocorre, mas uma observação não pode
deixar de ser re-enfatizada. A combinação teoria / descrição (implicando em
interpretação) é inegável na obra de Gumbrecht. Como um último exemplo, tomemos
o verbete “Repórteres”: O verbete “Repórteres” contido em Em 1926, ilustra
exatamente as nuances e congruências não apenas semânticas, mas também teóricas,
entre os conceitos que caracterizam as discussões teóricas acerca dos novos rumos da
historiografia e aquilo que, entendemos, eram visões de mundo experimentadas do
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interior do ano de 1926.

REPÓRTERES:

Em sua edição de 26 de junho, a revista Die literarische Welt (O Mundo Literário) traz
um debate sobre “reportagens e literatura”. Ao lado de importantes autores nacionais
como Max Brod, Alfred Döblin, Leohnard Frank e Heirich Mann, o jornalista Leo
Lania analisa o impacto do jornalismo nos estilos da literatura contemporânea. Lania
se concentra na relação entre o que chama de voz penetrante do presente e um estilo
particular de pensamento: “A penetrante voz do presente não pode ser ignorada. Ela
arrasta os mais românticos de seus cantos reclusos para a impiedosa luz do dia. Lá
todas as coisas ganham novas formas e cores, e seu significado e existência se revelam
para aqueles que têm coragem de medir seus contornos sem pretensão. Olhar para elas,
ouvi-las, experimentá-las novamente as aproxima da experiência vivida” (Lania, 322).
Vindo no final de uma seqüência de verbos — “medir”, “olhar”, “ouvir” — que devem
caracterizar a relação do repórter com o mundo — o conceito de Erleben recebe uma
ênfase específica no texto de Lania. Ele volta na forma do incomum substantivo der
Erleber (‘o experimentador’) numa série de citações, artigos e resenhas recentes, com
os quais o editor de Berlim Eirich Veiss Verlag anuncia a décima quinta edição do
livro Der rasende Reporter (O Reporter Furioso), de Ergon. (1999, 241).

Exercendo a função de re-produzir, com o maior grau possível de materialidade,


“percepções de superfícies dominantes” e “visões de mundo, tais como elas eram
produzidas por determinados conceitos, durante o ano de 1926”, os 51 dispositivos
que compõem Em 1926 possuem uma característica bastante peculiar. Por terem
estilos e estruturas determinados por seus temas, os dispositivos tentam aproximar-se
34

de Erleben — i.e. “experiência vivida”, em contraposição à Erfahrung, ou experiência


— que pressupõe interpretação. Como já previamente explicado, o termo Erleben
serve como uma espécie de intermediário entre percepção e experiência. Ao
produtor coube buscar pontos nodais específicos e pertinentes. Gumbrecht é bastante
enfático ao declarar que o sucesso de seu experimento está intimamente relacionado
com o fato de os verbetes não terem sido “inventados”. (10). Dito de outro modo, o
sucesso do livro depende da inequívoca referencialidade de seu conteúdo. A re-
presentificação de mundos passados é, para Gumbrecht, compreensível se pensada
em termos teatrais: uma re-encenação de um quadro complexo. Todavia, a
comparação com o teatro e a ficção serve a um propósito bastante preciso a um
teórico com a vasta experiência que possuiu Hans Gumbrecht. Não se trata de um
romance histórico, e os códigos da ficção, embora aplicáveis criticamente, não são
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suficientes para avaliar a obra.

A minha metáfora predileta para uma caracterização desta perspectiva [de


simultaneidade de posições, fenômenos e gostos freqüentemente contraditórios] é,
portanto, a de encenar um quadro complexo que, na sua simultaneidade reuna a
exterioridade dos objetos múltiplos e ofereça espaço para uma pluralidade de
espectadores e observadores. (Gumbrecht, 1994, p. 18).

Evidentemente que ‘toque’ é um conceito bastante escorregadio quando empregado


neste contexto de re-presentificação de mundos: olhar, cheirar, ouvir. Embora a
argumentação de Gumbrecht seja calcada na hipótese de que o conhecimento do
passado perde sua função pedagógica, ainda assim nos é imperativo examinar os
impulsos que motivam nosso fascínio. O quadro sincrônico de Em 1926 é formado
por 51 pontos nodais (dispositivos 1 ). Esses dispositivos, por sua vez, dividem-se em
três categorias distintas e interligadas: dispositivos, códigos e códigos em colapso,
que representam respectivamente três categorias predominantes. Os dispositivos,
termo foucaultiano apropriado por Gumbrecht, consistem em artefatos, papéis e
atividades, cuja relação com corpos humanos são pertinentes a determinadas e

1
Cf. Termo que toma da historiografia de Michel Foucault precisamente por constatar o caráter
antiparadoxal da tendência de dispositivos serem transformados em distinções binárias. Ver.
Gumbrecht (1999) p. 483.
35

especificas visões de mundo observadas apenas no interior do ano de 1926. Por


exemplo, transatlânticos, boxe e engenheiros:

(...) eu chamo estas relações — os modos pelos quais artefatos, papéis e atividades
influenciam os corpos — dispositifs ou dispositivos. Coexistindo e se sobrepondo no
espaço de simultaneidade, grupos de dispositivos são frequentemente zonas confusas
de convergência e tendem, portanto, a gerar discursos que transformam esta confusão
na — antiparadoxal — forma de opções alternativas (digamos, Centro vs. Periferia, ou
Individualidade vs. Coletividade, ou Autenticidade vs. Artificialidade) (1999, 483).

Superpostos a esses dispositivos estão os códigos e seus corolários, os códigos em


colapso, que seriam equivalentes a mudanças em um modelo de historiografia
teleológico. A ênfase num aspecto sensorial do passado, contudo, não deve induzir —
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ao menos, Gumbrecht assim o deseja — ao que usualmente é denominada de


estetização do passado. (1999, 467). Este ‘depois’, utilizado no título do ensaio
“Depois de aprender com a história” causa mais impacto por desafiar frontalmente
atitudes Neo-Historicistas ou saudosistas. Transforma-se em provocação que, ao
contrário de negar as funções da história, ou mesmo de reduzi-la a meros discursos
(aproximando-a da ficção), reformula a questão: agora que sabemos que não mais
podemos derivar lições do passado, o que fazer sem renunciá-lo?

Ao construir seu quadro sincrônico, Gumbrecht aproxima-se daquilo que um dos


expoentes da Escola dos Annales francesa, François Furet, denominaria “história-
problema”, apontando, de forma inequívoca, as falhas do modelo tradicional
historiográfico — e inevitavelmente narrativo:

Ora o que me parece caracterizar a evolução recente da historiografia é o recuo talvez


definitivo [da história vivida no eixo do tempo ou narrativa], sempre florescente ao
nível das produções de grande consumo, mas cada vez mais abandonada pelos
profissionais da disciplina. (Furet,1975, 84).

Este abandono dos profissionais da disciplina é sintomático da mudança


paradigmática da qual se ocupa Gumbrecht. Evidente no modelo de Furet está o re-
posicionamento da figura do historiador contemporâneo. Outro notável da Escola dos
Annales francesa, o historiador Paul Veyne, chega a indagar em seu artigo “Tudo é
36

história logo a história não existe”: “Mas o que é importante? Não se trata antes do
que é interessante?” (Veyne, 1983: 29). Isso nos leva a crer que, se a disposição
maior de Em 1926: Vivendo no limite do tempo é tentar atender ao desejo (em última
instância impossível) de “falar aos mortos”, a aposta básica localiza-se na crença de
que a simulação de imediação trará alternativas a tentativas de compreender o passado
como encadeamento de eventos causais, dele derivar leis de mudança, ou
simplesmente extrair lições que se possam utilizar no futuro.

2.3

Leia as Instruções!
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No Dasein existe uma tendência essencial em direção à proximidade. Todos os meios


pelos quais nós aceleramos as coisas, mais ou menos como somos compelidos a fazer
hoje, nos empurram rumo à conquista do que é remoto [Entferntheit]. Com o ‘rádio’,
por exemplo, o Dasein estendeu o ambiente cotidiano que ele tinha alcançado através
de um des-distanciamento [Ent-fernung] do ‘mundo’ — um des-distanciamento cujas
implicações para o sentido do Dasein ainda não podem ser visualizadas. (Heidegger,
1926).

Gumbrecht inicia seu experimento historiográfico, Em 1926: Vivendo no limite do


tempo com um inusitado “Manual do usuário”, objeto mais tipicamente encontrado
em pacotes de software ou acompanhando aparelhos de DVD, televisores de plasma
ou geladeiras de última geração. Raramente lidos na íntegra, esses panfletos
costumam acabar no fundo de uma gaveta qualquer ou na mesa de cabeceira do típico
apreciador de guias, almanaques e manuais de toda a sorte. Já no leitor de Gumbrecht
— supostamente não apenas leitor especializado, mas também o leitor comum 2 — o
formato desperta interesse e curiosidade. É proposto a ele a experiência de simulação
completa: ter visões do mundo “de dentro” de 1926. Subjacente a isto, está o desafio

2
Evidentemente que o livro está voltado para a comunidade acadêmica. Gumbrecht deixa este
fato claro ao falar de seu compromisso com aqueles que o antecederam: “o autor sente que uma forte
pressão está sendo feita sobre sua geração para que ela apresente algo novo. (GUMBRECHT, 1999. P.
12). Por outro lado, Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo tornou-se um best-seller nos Estados
Unidos na ocasião de seu lançamento. (OLINTO, p??).
37

teórico do autor: indagar-se sobre as possibilidades de um texto afetar sensorialmente


seus receptores (vs. outros recursos midiáticos literalmente mais imediatos).

Sei obviamente que um livro nunca chegará tão perto da ilusão de tocar, cheirar ou
saborear mundos passados como um filme ou museu. Isso explica as duas questões
que mais me dominaram ao escrever este livro: até onde se pode ir num discurso
historiográfico para satisfazer o desejo de tornar presentes mundos passados? Há
funções específicas nesta abordagem que um texto possa cobrir com maior eficácia que
outro meio? (1994. p. 18).

Que vem a ser imediação completa? Como sentir-se em 1926 quando lhes são
negados imagens, sons, cheiros e rastros deste ano comum, a princípio selecionado
aleatoriamente? A propósito, não obstante a ressalva contida curiosamente na seção
onde enumera certas “regras de bolso” para a escrita da História, Gumbrecht admite
um possível interesse familiar que o poderia tê-lo influenciado na escolha do ano (a
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crença de que um de seus avós teria morrido em 1926). Isso me leva a concluir que a
intenção do teórico-autor, embora ele negue, atende ao comum desejo intelectual de
escovar seus materiais a contrapelo, como colocaria Walter Benjamin 3 — que,
incidentemente, participa como figurante no quadro múltiplo de Gumbrecht. É
interessante notar as palavras do próprio autor acerca da escolha aleatória de um ano
“não limiar”:

Em relação ao ano de 1926, quero enfatizar que ele não atende ao requisito clássico de ser
ano limiar nem antecipa qualquer aniversário público. Inicialmente, eu o escolhi como
um emblema do acaso, porque ele parece ser um dos poucos anos do século XX para os
quais nenhum historiador jamais atribuiu uma relevância hermenêutica específica. (1999:
475).

Posteriormente, Gumbrecht admite a possibilidade de ter sido influenciado pelo


“desejo impossível de ouvir as vozes dos [seus] avós”. (475). Seja como for, a
importância não reside propriamente na aleatoriedade da escolha, mas sim nos
questionamentos implícitos na tarefa de hoje re-presentificar mundos que já não

3
Cf. Benjamin, Walter. “Sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas: Magia e
Técnica, Arte e Política. (Trad. Sergio Paulo Rouanet). Editora Brasiliense: São Paulo, 1996.
Evidentemente que aqui adapto o termo a meus propósitos. Qualquer comparação estrita com o
sentido que lhe atribui Benjamin recairia – assim espero — fora do escopo deste trabalho.
38

existem mais. A crítica do autor ao Novo Historicismo é bastante contumaz 4 . Em


prosa acadêmica, porém, imbuído da simpática ironia que lhe é habitual, afirma
categoricamente que embora o Novo Historicismo mantenha ainda a habilidade de
impressionar “historiadores convencionais” (464) — clube este, que ele deixa claro
que não pretende tornar-se membro ou freqüentar — há muito perdeu o poder
polêmico que uma vez o caracterizou. E pior, o movimento sequer obteve forças para
substituir o modelo clássico teleológico de historiografia — indubitavelmente
obsoleto — por uma alternativa viável de representação do passado.

2.4
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“Tutmania”

Como pode a tumba de um rei menino se tornar o centro de uma preocupação de


âmbito mundial? Os objetos que ela contém não são mais belos que aqueles
encontrados na maioria de outros sarcófagos reais no Egito; e os historiadores têm
pouco a dizer sobre Tutancâmon, além do fato de que ele foi uma figura política e
culturalmente sem importância durante seu breve reinado. Em novembro, como
escreve Howard Carter no segundo volume de seu estudo sobre a tumba, ele luta para
entender a intensidade desta fascinação. Certamente ele não acredita nos poderes
mágicos de outro mundo que a imaginação européia associou durante muito tempo a
essas tumbas: “Não é minha intenção repetir as histórias ridículas que foram inventadas
sobre os riscos de cair numa armadilha que existiria na tumba para destruir o intruso.
Histórias parecidas têm sido comuns na ficção por muitos anos; são em geral variações
das histórias de fantasmas e podem ser aceitas como uma forma legítima de
entretenimento literário” (xxv). Carter se aproxima da fonte de sua estupefação e de
sua “emoção extraordinária e confusa” (vii) quando ele lembra que os objetos preciosos
descobertos na antecâmara da tumba, mais que impressioná-lo por seu valor ou sua
possível significação histórica, evocaram uma atmosfera de uma forma de privacidade
há muito tempo perdida: “Uma miscelânea quase incongruente de objetos e móveis,
porta-jóias e camas, cadeiras, banquinhos, carruagens e estátuas, entulhava a
antecâmara. Eram elementos bastante heterogêneos mas mostravam, em muitos
aspectos, uma arte suave, cheia de afeto doméstico, fazendo-nos imaginar se ao
procurarmos a tumba de um faraó, não teríamos encontrado a tumba de um menino”
(ix). Mas a mediação com o mundo remoto através de seus artefatos se faz de forma

4
O que não impede Gumbrecht de prestar homenagem a um dos expoentes do movimento,
Stephen Greenblatt, tampouco de ironicamente adicionar o nome de seu colega Hayden White nos
agradecimentos: “por imaginar Viena durante aquele ano” (550).
39

misteriosamente instantânea, quando o arqueólogo finalmente olha o rosto de


Tutancâmon e vê o passado se tornar presente:

As experiências arrebatadoras (...) foram muitas, mas agora, olhando para trás,
acho que foi quando a última das ataduras deterioradas foi removida e os traços do
jovem rei foram finalmente revelados, que foi alcançado o auge das minhas
emocionantes impressões. Finalmente o Jovem Faraó estava diante de nós: um
soberano obscuro e efêmero, deixando de ser mera sombra de um nome, havia
reingressado depois de três mil anos, no mundo da realidade da História! Ali
estava o ápice das nossas longas pesquisas! A tumba tinha nos entregue seu
segredo; a mensagem do passado tinha atingido o presente, apesar do peso do
tempo e da erosão de tantos anos. (xxxiii).

A emoção de Carter não decorre da beleza ou do conhecimento histórico. O que


direciona suas pesquisas é um desejo paralelo e complementar às aspirações daqueles
que buscam ativamente o perigo mortal, para tornar a morte uma parte de suas vidas.
(1999:220-221). 5
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Antes de um aprofundamento no tipo de realidade histórica produzida por Em


1926: Vivendo no limite do tempo, é oportuno esclarecer os significados de dois
termos que aqui serão utilizados e que são intimamente relacionados à noção de
produção de presenças. O primeiro deles vem a ser a noção de “experiência”
(Erfahrung), que engloba tanto o ato quanto o resultado da interpretação do mundo
através de conhecimentos previamente adquiridos. O segundo é traduzido em
português por “percepção” (Walhrnehmung) e pressupõe uma apreensão não mediada
do mundo através dos sentidos. Entre os dois situa-se um termo intermediário,
normalmente traduzido por “experiência vivida” ou em alemão Erleben — que é de
suma importância pois define-se como algo além da mera absorção do mundo via
sentidos, entretanto, exclui interpretação. Quando o antropólogo Carter enuncia sua
estupefação diante do desvelamento do rosto do rei menino, Gumbrecht nega que sua
reação seja decorrente da beleza ou do conhecimento histórico. Não. Trata-se
explicitamente do fascínio do retorno do passado ao presente: “a mensagem do
passado [que havia] atingido o presente”. (220).

***

5
Grifo meu.
40

Se as filosofias políticas que advogam a Ação direta cobrem um espectro tão amplo
que inclui do fascismo ao anarquismo, todos os seus defensores compartilham a tripla
convicção de que o mundo de hoje é permeado por uma confusão medrosa, que ele
precisa, portanto, retornar urgentemente ao estado de ordem, e que esta só pode surgir
da certeza específica de intuições individuais. Dentro desta visão de mundo carregada
de emoção, o medo de perder o controle é ainda maior que o desejo de clareza. (1999:
296).

A queda do muro de Berlim — para Gumbrecht: “O Fracasso mais dispendioso de


todas as experiências intelectuais jamais empreendidas” — marca também o fim da
“filosofia da história”. Assim, se o tempo não pode mais ser visto como agente de
mudança, a história é destituída de sua função pedagógica. Dela não mais se extrairá
“leis de mudança” a partir do estudo e observação sistemática de eventos passados.
Com isso, o futuro perde seu estatuto de “horizonte aberto de expectativas” — termo
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adotado do historiador Reinhardt Koselleck. Ao contrário, a práxis presente não mais


determina ou sequer é capaz de prever eventos futuros. No momento atual (marcado
por dissensos), o autor detecta a existência de um consenso restante: de lugar utópico,
o futuro transforma-se em um espaço de imprevisibilidade. Vive-se na era das
incertezas profundas, como eloqüentemente coloca Luhmann:

The public description of time conceives of the present as the differential of the past
and the future, that is, as the time for decision, and this leads to new, highly organized
forms of recursivity. Memory and oscillation, selectivity of reconfirmations and
uncertainty of the future, are now unavoidable facts of social life. 6

A realização de prognósticos, que antes se fazia através da indução histórica,


passa a ser feita através do cálculo de riscos — que como observa Gumbrecht,
constitui uma atividade “cujo primeiro princípio é a imprevisibilidade do futuro”.
(1999:463). Evidentemente, implícita na noção de risco está uma modificação na
acepção do tempo. Aquilo que se modifica da década de 1970 para o período atual
teria relação imediata com a alteração na idéia de futuro. Se a modernidade era
marcada por uma crença no progresso — e conseqüentemente no futuro — a pós-
modernidade, como a definem Gumbrecht e Luhmann, vive uma espécie de “presente

6
International Review of Sociology Mar97, Vol. 7 Issue 1, p67, 13p.
41

alargado” 7 . Em um ensaio intitulado “O Presente em (crescente) expansão”,


Gumbrecht esclarece:

Caso não tenha ficado claro o que [o autor] pretendia dizer com “presente em
expansão” acrescentamos alguns comentários esclarecedores. Ele não está pensando
no nível de descrição fenomenológica que, segundo Husserl, define o tempo como
“forma de vivência”, porque intuitivamente fica claro que o momento do presente no
fluxo (fenomenológico) da consciência, o momento de transição entre o eco do que
acabou de passar e a antecipação do próximo momento, que este momento vivencial do
presente entre uma percepção apenas física e a sua interpretação semântica resiste, em
grande parte, à mudança histórica. (2002, 55).

Em um ensaio intitulado “Describing the Future”, quarta parte de sua coletânea


Observations on Modernity, de 1998, Luhmann chama a atenção do leitor para a
estranheza da formulação do próprio título — impossível descrever aquilo que ainda
não pode ser visto:
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Why should we describe the future? And how can we do so when what is described is not
yet visible in the present? This is precisely the point to be examined here. At the same
time there is an intentional distance to perspectives of knowing and wanting. (1998: 63).

Antes então de esboçar prognósticos — afinal como saber qual será o futuro se este
ainda não está visível no presente? Por que desenvolver projetos ou criar
expectativas a respeito de um tempo ainda inexistente? — Luhmann decide
investigar as manifestações do futuro no presente.

My point of departure is that there is no right answer to any of these questions. All
statements about the future depend upon the society in which they are formulated.
Concepts of time and concepts of history. (1998: 63).

Dito isto: sociedades contemporâneas ainda têm necessidade de descrever o futuro


— o que não se pode mais fazer através de indução histórica e, portanto, passa a ser
feito através do cálculo de riscos, como já referido. De acordo com este modelo (vide
gráfico abaixo) sociedades modernas experimentam o futuro como pura contingência.

7
Cf. O ensaio de Gumbrecht “O Presente em (Crescente) Expansão” IN: OLINTO, H.K &
SCHØLLHAMMER, K. E. (Orgs.). Revista PALAVRA No. 9: Volume Temático: Em Torno dos
Estudos de Literatura. Rio de Janeiro: Editora Trarepa Ltda., 2002. pp.53-69.
42

Futuro

Provável Improvável

+ Provável - Provável + Improvável - Improvável

Quadro 1. Novas Temporalidades: O Futuro como Risco: a concepção de Futuro de


acordo com as teorias sistêmicas de Niklas Luhmann.
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2.5

Autopoiesis

Eu queria estar só de um modo inusitado, totalmente novo. O oposto do que vocês


pensam: isto é, sem mim e, portanto, com um estranho por perto.
Isto já lhes parece um primeiro sinal de loucura?

Talvez porque não tenham refletido bem.

Pode ser que a loucura já estivesse em mim, não nego, mas peço que acreditem que o
único modo de estar realmente só é este que lhes digo.
A solidão nunca está com você, ela está sempre sem você e, portanto, ela só é possível
na presença de algo estranho, lugar ou pessoa que seja, que o ignore completamente
(...) (Pirandello, 1926, p. 32).

Derivados da biologia cognitiva de Francisco Varella e Humberto Maturana,


sistemas autopoiéticos são sistemas funcionalmente diferenciados, auto-reprodutivos
e operacionalmente fechados. Por orientarem sua auto-reprodução através de
operações de distinções e observações entre sua própria estrutura e o ambiente que os
cerca, sistemas não-triviais — sistemas psíquicos (consciência) e sistemas sociais
43

(sociedades humanas) — são capazes de observação de 2ª ordem. Isto é, através de


uma operação de distinção (utilizando códigos binários), são capazes de elaborar
internamente um modelo de seu meio e sua própria identidade. Contudo, por reagirem
apenas intrinsecamente às perturbações do meio-ambiente, esses sistemas são
efetivamente cegos:

Systems that operate at the level of a re-entry of their form into their form are non-trivial
machines in the sense of von Foerster (1984). They cannot compute their own states. They
use their own output as input. They are ‘autopoietic’ systems, and that means that they are
their own product. In contradistinction to all traditions that teach that one can only
understand what one has made oneself (Bacon, Hobbes, Vico etc.), a re-entry leads to an
unresolvable indeterminacy. The system cannot match its internal observations with its
reality, nor can external observers compute the system. (1997: 13).
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Sistemas autopoiéticos que se auto-denominam “modernos” funcionariam,


portanto, como geradores constantes de alteridade em relação a seus próprios
passados. Posto que Luhmann propõe a reformulação de sociedades (sistemas
sociais) em termos de sistemas autopoiéticos, concluímos que as sociedades estão
sujeitas às mesmas regras que determinam o funcionamento de tais sistemas. Por
orientarem sua auto-reprodução através de operações de distinção entre sua própria
estrutura e o ambiente, as sociedades também podem definir-se como cegas no
sentido de serem capazes apenas de elaborar referências externas internamente. Logo,
sendo as sociedades são sistemas não-triviais, elas são também capazes de observação
de 2ª ordem. Voltando ao ano de 1926 e a seu autor, é evidente que seres humanos
razoavelmente inteligentes e normais não experimentam o mundo em que vivem
como sistema. (1999, 484). Aplicando o modelo de Luhmann, Gumbrecht chamará
cultura de 1926 o conjunto dos códigos binários que exercem a função antiparadoxal
— i.e.de ordenação — dentro da simultaneidade em que interagem os dispositivos.
Na medida em que os códigos em colapso representam zonas de alta visibilidade, por
atraírem funções discursivas específicas — além de sobrecarga emocional —
localizam-se em uma zona fronteiriça ainda que dentro dos “mundos cotidianos”
(afinal baseiam-se nos códigos binários que organizam o sistema).
Por haverem perdido sua função antiparadoxal, esses “códigos em colapso”
equivalem — no contexto de um quadro sincrônico — a um conceito de
44

“acontecimento”, isto é, a interferência da contingência indicando um potencial de


zonas de atrito. Selecionados os pontos nodais e retirando a obrigatoriedade de
relações causais de retroação e acoplamento entre eles, Gumbrecht cria, portanto,
uma rede referencial específica ao ano de 1926. Entretanto, não se trata da redução
de complexidade e, sim, do aumento desta, uma vez que permanecem em aberto as
relações entre os dispositivos e estes códigos. Contornado o ato de totalização, pode-
se — ao menos potencialmente, e através de um livro — recriar “a complexidade do
conhecimento social que caracterizou a cultura ocidental em 1926”. (Gumbrecht,
1999).
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Fig. 1 “Dawing Hands” de M.C. Escher utilizada como exemplo visual de autopoiesis.

Ocorre que ao lançar mão dos modelos sistêmicos de Luhmann, Gumbrecht


encontra uma alternativa menos ampla do que a noção de “mundos cotidianos” da
tradição da sociologia fenomenológica. O que então vem a ser o “ambiente histórico
45

de 1926”, ou seja, que tipo de realidade o livro de fato reconstrói? Gumbrecht


imputará a escolha da preposição em no título do livro à “sua proximidade ao menos
metonímica” ao conceito heideggeriano de estar-no-mundo (Dasein). Este se
caracteriza por um engajamento pré-reflexivo e não-metafísico com o mundo — i.e.
senti-lo facticamente, isto é, materialmente. Aonde então quer Gumbrecht chegar
com seu raciocínio sobre o “cotidiano médio” que não é redutor como um Zeitgeist, e
que se permite permanecer aberto desde que certos pontos fixos (verbetes) façam
parte da rede? Entende-se que o “cotidiano médio” precisa ser um “espaço de
simultaneidade” (Gumbrecht, 1994) e o lugar da experiência quase imediata
(Erleben). Neste ponto, torna-se importante traçar uma distinção, enfatizada
repetidamente pelo autor nos ensaios teóricos “Depois de aprender com a história” e
“Estar-nos-Mundos-de-1926”: Martin Heidegger, Hans Friedrich Blunk, Carl Van
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Vechten”. Dentro de um quadro sistêmico a referência externa somente pode ser


articulada internamente. Nas palavras de Gumbrecht:

A auto-referência da referência externa é o que o Eu observador confunde com a auto-


reflexividade do Outro e a referência externa da referência externa contém o que o Eu
considera a imagem que o outro tem do Eu. O que chamamos de “compreensão” ou
“interpretação” é, segundo esta formulação, a oscilação de um sistema entre sua própria
referência interna e a referência interna que ele atribui a um sistema que é parte de sua
referência externa. SE a compreensão então aparece como um processo-de-sistema-
intríseco — e não mais como uma “(inter)penetração” ou uma “ponte” entre sujeitos, já
não existe mais a possibilidade de se avaliar esta compreensão com base na sua
“adequação”. (1999, 471).

Logo, três implicações tornam-se evidentes: (1) Quanto à palavra espaço: trata-se
de trazer fenômenos a uma posição de disponibilidade, uma vez que “somente esta
proximidade nos capacitaria de fato a tocar, cheirar, ouvir o passado”. (Gumbrecht,
1999, 467). (2) A sincronia, inevitavelmente, engendrará uma multiplicidade de
relações temporais paradoxais. (3) Estão imediatamente excluídos sujeitos-agentes, já
que a teoria da ação pressupõe a linearidade temporal. O autor encontrará uma
resposta na estrutura rizomáticas das redes descentralizadas (naturalmente adaptada
dos escritos de Gilles Delleuze e Felix Guattari). O rizoma, ao contrário da raiz,
desenvolve-se de forma múltipla, descentralizada e imprevisível.
46

Tomando emprestada a denominação da botânica, o rizoma é por definição uma


haste subterrânea inteiramente distinta de outras raízes ou radículas. O Rizoma nele
mesmo tem formas muito mais diversas, “desde sua extensão superficial ramificada
em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos.” (Deleuze, 2006:
15). Ao sublinharem a especificidade dos diversos tipos de caule, Deleuze e Guattari
lhe concedem escopo filosófico, atribuindo-lhe certas características que a este
trabalho interessa ressaltar: especialmente os dois princípios de conexão e
heterogeneidade: “de qualquer ponto o rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve sê-lo” e finalmente o terceiro – i.e. multiplicidade – que o exime de qualquer
tentativa de subjetivaçao ou objetificaçao – não é sujeito tampouco é objeto.

Não existem pontos ou posições no rizoma como se encontra numa estrutura, numa
árvore, numa raiz. Existem somente linhas. (...) Nós não temos unidade de medida,
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mas somente multiplicidades ou variedades de medida. (17).

Fig. 2 Rizoma

A figura 2 mostra que a extensão dos caules se dá em direções variadas,


impossibilitando o desenho de uma origem determinada.
47
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Fig. 2.2. Rizoma por Sylvano Bussoti (cópia da imagem que abre a introdução de Mil
Platôs) 8 .

O modelo adequado ao rompimento com o formato clássico de representação


historiográfica — história como grande narrativa (Rüsen, 1997) — há que ser
rizomático. Tomando as palavras de Delleuze e Guattari trata-se da celebração do
múltiplo:

É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas ao
contrário, de maneira simples, com força e sobriedade, no nível das dimensões de que
se dispõe (...).Um rizoma como haste subterrânea distingui-se absolutamente das raízes
e radículas. (...) Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. (Delleuze e Guattari, 2006:
14).

E mais precisamente:

8
Cf. Gumbrecht: 1999. Nota do autor, no. 45. E acrescenta-se: "finite networks of automata in which
communication runs from any neighbour to any other, the stems or channels do not pre-exist, and all
individuals are interchangeable, defined only by their state at a given moment - such that the local
operations are coordinated and the final, global result synchronized without central agency." In:
Deleuze, Gilles & Felix Guattari. (Translation: B. Massumi) A Thousand Plateaus: Capitalism and
Schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
48

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma tem como conjunção “e... e...
e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para
onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. (...)
Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que
carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire
velocidade no meio. (idem: 37).

Gumbrecht entende que ao eliminar um modelo redutor de complexidade incorreria


no risco de trocá-lo por outro igualmente problemático. Dito de outro modo, a
renúncia de estruturas homogeneizantes de representação implicaria na redução de
seu modelo a um denominador comum cultural (Zeitgeist). Ele é bastante enfático
neste ponto quando em suas “Teses”, contidas no “manual do usuário”, afirma:
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Se imaginarmos e representarmos [a história] sincronicamente, como faz este livro,


percebemos que os elementos desta sincronia não convergem num quadro coerente e
homogêneo. Todavia, e talvez paradoxalmente, este livro sugere a existência de uma
“rede” ou “campo” de realidades (não apenas discursivas) que moldaram fortemente os
comportamentos e as interações de 1926. (1999: 12).

Diante deste aparente paradoxo — que afinal está intimamente relacionado à idéia
de testar os limites do discurso historiográficos por meio (mídia) de um texto —
Gumbrecht percebe a necessidade de uma reformulação metodológica bastante
significativa. Abandonando todo e qualquer critério não-cronológico de seleção de
fontes, ele estabelece como igualmente relevantes quaisquer artefatos ou documentos
que datem de 1926. Seu raciocínio é bastante claro. Na medida em que não queria
“inventar” estruturas — mesmo aceitando não ser possível esquivar-se integralmente
de certa dose de criação — sua “construção” deveria referir-se, ou aproximar-se tanto
quanto possível, das visões de mundo “de dentro” de 1926.

Assim, a questão crítica que estou pronto para responder não é se existem
acontecimentos, obras de arte ou livros que eu “esqueci” na minha reconstrução de
1926, mas se a sua inclusão teria modificado de uma forma importante a minha
descrição e aquela simulação das visões de um mundo passado (479).

Abandonar a tentativa (de todo o modo inatingível) de “exaurir as fontes” permite-


lhe, pois, privilegiar a recorrência em lugar da saturação. A implicação imediata
49

desta escolha é a substituição da prática dedutiva pela operação indutiva. A excelente


colocação do historiador inglês Peter Burke ilustra aquilo que Gumbrecht tentava
evitar:

De acordo com o paradigma tradicional, memoravelmente enunciado pelo historiador


R. G. Collingwood, “Quando um historiador pergunta ‘Por que Brutus apunhalou
César? Ele quer dizer ‘O que Brutus pensou? O que fez com que ele decidisse
apunhalar César?.’ (Burke, 1992: 16).

Suspensas as relações causais entre os objetos e artefatos selecionados, a observação


empírica da recorrência viabiliza a identificação imediata de estruturas de relevância
— “focos de atenção pública em 1926” (Gumbrecht, 1999). É claro que isso implica
em um processo de seleção de arquivos e de certa dose de interpretação. Gumbrecht
argumenta que suas escolhas estão baseadas na saturação, isto é, na freqüência com
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que se viam repetidos certos temas, nomes e ocorrências:

Em toda investigação histórica existe um momento no qual a recorrência de


determinados tipos de material e conclusões se torna vazia — ou (para usar uma
metáfora contrastante) um momento no qual a nossa imagem do passado atinge um
nível de saturação. Se, é claro, não se pode teorizar sobre a questão de quando,
exatamente, a busca de fontes e materiais do passado chega a um fim tão “natural”, é
óbvio que qualquer texto historiográfico só pode citar (e usar) uma quantidade limitada
de material documental (1999:479).

Como já previamente apontado, uma pista seria, para Gumbrecht, a troca de


modelos clássicos de representação historiográfica (narrativos e teleológicos) — i.e.
redutores de complexidade — em favor de quadros sistêmicos contingentes. Se a
premissa que guiará o experimento de Gumbrecht é justamente a negativa, e se tal
negativa parece deixar pouco espaço para uma visão da história como narrativa,
então, a ênfase recairá em outras possibilidades de usos do conhecimento do passado.
Implícito no texto está a difícil premissa contida na historiografia de Gumbrecht:

Não restou uma única situação do cotidiano em relação à qual se possa confiar
seriamente no conhecimento sobre o passado para decisões sobre investimentos
financeiros, gestão de crises ecológicas, preferências de gostos, etc. (1994:9).

Evidentemente que o ensaio “Depois de aprender com a história” é claramente


voltado aos leitores com interesses acadêmicos na proposta historiográfica de
Gumbrecht. O autor observa que, mesmo antes da queda do muro de Berlim, o meio
50

acadêmico já evidenciava certo descontentamento diante das premissas hegelianas de


que a história seria regida por leis necessárias de mudança. Ainda que em 1930,
Alexandre Kojéve tivesse decretado o “fim da história” 9 , até 1989 uma significativa
parcela do mundo atribuía à “filosofia da história” a capacidade de reduzir incertezas
e realizar prognósticos. Após a queda do muro de Berlim e do fracasso do sistema
comunista, o autor verifica uma mudança radical dos quadros:

Pelo menos dentro de um plano oficial de auto-referência, a vida cotidiana de mais da


metade da população mundial tornou-se dependente da premissa de que era possível
extrapolar as “leis” da mudança histórica do futuro a partir da observação sistemática
do seu desenvolvimento no passado — e que, a longo prazo, sistemas sociais baseados
neste tipo de extrapolação necessariamente prevaleceriam sobre aqueles nos quais a
“filosofia da História” estava confinada a um estilo específico de pensamento
acadêmico. Quando o comunismo europeu entrou em colapso após 1989, este
experimento — que era único, meramente em função de suas proporções —
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demonstrou mais uma vez a sua unicidade ao se tornar o mais caro fracasso de todos os
experimentos intelectuais já levados a cabo. (1999:461).

Perde-se definitivamente a esperança de fazer uso do passado para reduzir a


alteridade do futuro. Eis, novamente, a imagem do vidro opaco branco que nos
retorna aos olhos como colocara Gumbrecht. Na mesma passagem citando o colega
“impertinente e generalista”, Niklas Luhmann, Gumbrecht atenta para a adaptação na
prática de políticas de cálculo de risco. De fato, nas palavras de Luhmann, resta-nos
uma única e pífia certeza: não podemos estar certos de que nada daquilo que
classificamos como passado permanecerá, no futuro, fato imutável.

We can only be certain that we cannot be certain of whether or not anything that we
remember as being past will in the future remain as it was. But that is not all. We
know that much of what we know will be true in future presents depends on decisions
we must make now. (Luhmann,1998:67).

Uma das conseqüências da alteração da análise de leis de mudança para o cálculo


de riscos é um significativo aumento na complexidade destas previsões. Se
considerarmos que o nível de incerteza do futuro aumenta exponencialmente quando
se fala do interior de modelos autopoiéticos — onde tudo o que se vê é resultado de
elaborações realizadas internamente — concluí-se que não há espaço para a

9
Cf. Gumbrecht cita Kojéve ao introduzir a sua historicizaçao do tempo histórico já no início
do ensaio “Depois de Aprender com a História”.
51

observação objetiva de conceitos como “intenção” ou “propósito”, já que estes não


passam de auto-simplificações dos sistemas.

Every teleological perspective of the future, the natural as well as the mental, is
radically abandoned with the concept of autopoiesis. Intention and purpose are only
self-simplifications of systems. (1998, 69).

Implícito na noção de risco está uma modificação na acepção do tempo. No início


do século XXI, pós Osama Bin Laden, Bush, Saddam Hussein (enforcado num
cenário medieval diante das câmeras da CNN) não há como discordar que
vivenciamos uma distopia absurda a la Funes, O memorioso de Jorge Luis Borges,
sobrecarregados de memórias inúteis e paralisados por um medo absurdo de dar um
passo à frente, estaríamos condenados ao acúmulo incessante de passados.
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Neste contexto, a proposta de inserção dos estudos de literatura dentro de quadros


teóricos da sociologia da comunicação não é, em hipótese alguma, redutora. Ao
contrário, esta parece ser a tendência de maior recorrência entre os pensadores (de
ponta) da atualidade. Guardadas as diferenças e as subscrições individuais dentro das
comunidades acadêmicas — onde assuntos desta natureza são debatidos e estudados
— percebe-se, acima de tudo, indícios da necessidade gritante (cada vez maior) de
diálogos interdisciplinares. É este, a meu ver, o gesto mais ousado da coletânea,
Pensar a leitura: Complexidade, organizado por Eliana Yunes. Já em artigo
introdutório, a autora afirma ser a leitura “uma investigação da tensão entre
modalidades de significação” que, indubitavelmente, haveria de interessar não apenas
às letras, mas à sociologia, à história, à psicanálise, etc. (Yunes, 2003: 23). Sob esta
ótica, não me parece surpreendente que o objeto do presente estudo seja, antes de
qualquer coisa, um estudo historiográfico: isto é, um questionamento acerca dos
pressupostos daquilo que hoje se compreende por História, e não meramente uma
análise de um pseudo-arquivo que beirasse o literário. Sendo assim, não é
surpreendente que muitas das fontes usadas em Em 1926 sejam precisamente textos
literários, tão passíveis de questionamento quanto notícias de jornais, notas em
tablóides, estatísticas oficiais ou frases atribuídas a personagens da época. “Que
textos e artefatos ‘pertencem’ ao ano de 1926?” — questiona-se Gumbrecht no
terceiro adendo a seu ensaio “Depois de aprender com a história”:
52

Não me lembro exatamente com que tipo de documentos eu comecei, mas sei que, num
estágio muito inicial, abandonei todos os critérios não-cronológicos de seleção.
Quaisquer fontes, artefatos ou acontecimentos que datassem de 1926 eram
potencialmente relevantes. (1999: 477).

Desde já, fica evidenciado o caráter monumental do projeto historiográfico de


Gumbrecht. Ora, se tudo é história, então nada é, diriam os céticos. Paul Veyne —
como citado anteriormente — expõe tal problemática no ensaio intitulado “Tudo é
história, logo a história não existe”.

Então, o que é história, o que não é? (...) digamos desde já que não podemos confiar,
para fazer a distinção, nas fronteiras que são as do gênero histórico num dado
momento; seria o mesmo que acreditar que a tragédia racineana ou o drama brechtiano
encarnam a essência do teatro (...) (1983: 31).
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Uma das chaves do sucesso do experimento de Gumbrecht encontra-se


precisamente nesta atitude consciente de não hierarquização — uma vez demarcados
os pontos de saturação da rede por ele criada, os elementos passam a interagir entre si
sem qualquer precedência temática ou de qualquer outra ordem. Forma-se, portanto,
um mosaico que reflete ou ao menos aproxima-se de forma surpreendente dos
elementos que constituíram a cultura no ano de 1926.
53

3
Um Breve Hiato: 1925 e Mrs. Dalloway

For it was the middle of June. The War was over, except for some one like Mrs. Foxcroft at the
Embassy last night eating her heart out because that nice boy was killed and now the old Manor House
must go to a cousin; or Lady Bexborough who opened a bazaar, they said, with the telegram in her
hand, John, her favorite, killed; but it was over; thank Heaven--over. It was June. The King and Queen
were at the Palace. And everywhere, though it was still so early, there was a beating, a stirring of
galloping ponies, tapping of cricket bats; Lords, Ascot, Ranelagh and all the rest of it; wrapped in the
soft mesh of the grey-blue morning air, which, as the day wore on, would unwind them, and set down
on their lawns and pitches the bouncing ponies, whose forefeet just struck the ground and up they
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sprung, the whirling young men, and laughing girls in their transparent muslins who, even now, after
dancing all night, were taking their absurd woolly dogs for a run; and even now, at this hour, discreet
old dowagers were shooting out in their motor cars on errands of mystery; and the shopkeepers were
fidgeting in their windows with their paste and diamonds, their lovely old sea-green brooches in
eighteenth-century settings to tempt Americans (but one must economise, not buy things rashly for
Elizabeth), and she, too, loving it as she did with an absurd and faithful passion, being part of it, since
her people were courtiers once in the time of the Georges, she, too, was going that very night to kindle
and illuminate; to give her party. But how strange, on entering the Park, the silence; the mist; the hum;
the slow-swimming happy ducks; the pouched birds waddling; and who should be coming along with
his back against the Government buildings, most appropriately, carrying a dispatch box stamped with
the Royal Arms, who but Hugh Whitbread; her old friend Hugh--the admirable Hugh!

Virginia Woolf

3.1
Que Caiam as Máscaras da Mimesis

Antes de prosseguir no estudo das implicações do modelo de Gumbrecht, convém


discutir um modelo ficcional que, em muitos aspectos, estende os limites da narrativa,
expondo a precariedade da representação – uma vez mescladas as noções de
simultaneidade e diacronia. Para isso, proponho um breve hiato. Retornemos ao ano
anterior a 1926 e falemos da obra de Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, tomando como
54

suporte teórico a concepção da tríplice mimética do hermeneuta francês Paul


Ricoeur 1 . Ao introduzir tal conceito no primeiro tomo de seu Tempo e narrativa, o
autor estabelece que a sua concepção de mimesis divide-se em três etapas. A primeira
é a mimesis 1 ou o “antes” da configuração poética. Já de início, Ricoeur estabelece
uma relação de dependência entre a compreensão da trama narrativa e aquilo que ele
chamará de “pré-compreensão do mundo da ação” — em outras palavras, a
capacidade humana natural de identificação de estruturas inteligíveis, recursos
simbólicos e uma certa noção de temporalidade. De acordo com o autor, o tempo se
faz humano na medida em que se articula no modo narrativo, e a narração alcança sua
plena significação quando se converte em uma condição de existência temporal.

Para Ricoeur, a narrativa emprega traços discursivos ou sintáticos, que fazem dela
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algo distinto de uma simples enumeração de “frases de ação”. É exatamente aqui que
se aplica a distinção semiótica entre os eixos paradigmático e o sintagmático. Diz o
autor que, por possuírem agentes, finalidades, meios e circunstâncias reversíveis, os
termos referentes às ações, na mimesis 1 são sincrônicos e, conseqüentemente
relacionados à ordem do paradigmático. O “ato configurante”, operação efetuada
pela mimesis 2, confere à narrativa seu caráter diacrônico, já que ordena os termos
referentes às ações de forma definitiva — aproximando-a à ordem do sintagmático
(Ricoeur (1): 90-91).

Um aspecto a ser ressaltado é o que Ricoeur chama o “corte temporal” da mimese


1. Ele encontra na distentio animi de Agostinho — em sua capacidade de ordenar um
a respeito do outro, o presente do futuro, o futuro do passado e o presente do presente
— o indutor mais elementar da narrativa. Subseqüentemente, associa a compreensão
do tempo práxico da pré-narração à noção de Innerzeitigkeit, ou intra-temporalidade
heideggeriana, calcada na idéia de cuidado. Ricoeur afirma optar esta noção
justamente por encontrar nela aspectos que a difeririam da concepção vulgar de tempo
como entidade linear, ou mera sucessão de “agoras”. Como afirma Heidegger, “a
essência do agora é agora em que...”. ( 1986: 234).

1
Embora Ricoeur tenha desenvolvido uma análise crítica da mesma obra, não será esta a
referência principal que será utilizada aqui.
55

Em sua tríplice mimética Ricoeur localiza o “como se” — pacto ficcional — do


teórico alemão Wolfgang Iser, na segunda etapa da operação mimética (mimese 2).
O local da configuração da trama (muthos). Esta, explica Ricoeur, é mediadora por
algumas razões, das quais três nos interessam em particular: inicialmente, a trama tem
a função de mediar entre acontecimentos isolados e uma história unificada ou, mais
claramente, é aquilo que transforma os acontecimentos em história. Em segundo
lugar, em sua construção, a trama integra discordâncias e concordâncias — numa
reedição da concepção de Aristóteles que institui que toda a tragédia é composta de
complicação (desis) e resolução (lusis). Referindo-se a este filósofo, Ricoeur afirma
que, ao incluir na trama complexa componentes como peripeteia e anagnôrisis,
Aristóteles equipara o muthos à configuração. Os jogos de mudanças de fortuna
sempre de acordo com o “verossímil e o necessário” (Aristóteles, 1998: 255) são
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exatamente o ato de configuração que, em última análise, faz prevalecer a


concordância sobre a discordância. Finalmente, Ricoeur aponta uma terceira
característica mediadora da trama: a sua função na resolução das aporias da
temporalidade presentes no campo pré-narrativo. A ação da trama combina duas
dimensões temporais: uma cronológica e outra não cronológica e, ao agrupar as ações
de modo a formar uma temporalidade coerente, ele afirma:

(...) la poiésis fait plus que refléter le paradoxe de la temporalité. En médiatisant les
deux pôles de l´événement et de l´histoire, la mise em intrigue apporte au paradoxe une
solution qui est l’acte poétique lui-même. Cet acte, dont nous venons dire qu’il extrait
une figure d’une sucession, se revéle à l’auditeur ou au lecteur dans l’aptitude de
l’histoire à être suivie. (T1, 1994:104)

Tendo tais conceitos em mente, parece-me oportuno comparar a proposta a priori


não narrativa de Gumbrecht a experimentos indubitavelmente narrativos, para então
estabelecer o local da diferença. Isto é, o ponto onde a proposta de Em 1926:
Vivendo no limite do tempo separar-se-ia estilisticamente de um romance modernista
como, por exemplo, Mrs. Dalloway. Apropriado ainda será o fato de o próprio
Ricoeur ter desenvolvido uma leitura do romance de Woolf. No capítulo intitulado
“A configuração do tempo na narrativa de ficção”, no Tomo II, Ricoeur indaga:
56

Será que um gênero narrativo tão novo quanto, por exemplo, o romance moderno,
conservaria ainda o muthos trágico, para os gregos sinônimo de enredo, de intriga, um
laço de filiação tal qual se possa também colocá-lo sob o princípio de concordância
discordante através da qual caracterizamos a configuração narrativa? (1995).

Bem entendido, a história da composição narrativa demonstra a gradativa


priorização da verossimilhança sobre o formalismo aristotélico. Ricoeur afirma que o
romance moderno, ao justificar-se em sua empreitada como única saída mimética
para uma realidade em si desconexa, fragmentada e inconsistente, reconduz a
mimesis à sua função mais frágil — a de replicar o real, copiando-o. No caso de Em
1926, tal função se vê agravada pelo peso daquilo que se quer representar ou, no caso
de Gumbrecht, re-presentificar. Para fins comparativos, tomemos Mrs. Dalloway,
romance emblemático do método de “fluxo de consciência” (stream of
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consciousness) como claro exemplo deste novo e ambicioso exercício da mimesis na


modernidade. Em Dalloway, replicar a realidade é abarcá-la por completo: penetrar a
mente humana, seus vácuos, suas impossibilidades, seu agir no tempo e seu encontro
com o outro. Contrapondo Mrs. Dalloway e Ulysses de James Joyce, James Hafley
observa, “[Woolf] used the single day as a unity to show that there is no such a thing
as a single day”.

Entretanto, tomar o dia como objeto mimético — o que só se difere da proposta de


Gumbrecht na medida em que a diacronia permanece como modus operandi em
Woolf, implica em enquadrar o campo da ação narrada à ordenação cronológica —
violar, portanto, a regra aristotélica da prevalência da unidade de ação sobre a
unidade de período. Além disso, a mimese do real dá margem à notória
problemática: significante iguala-se a significado — por significante entende-se,
prioritariamente, o instante ou o fenômeno, “cujo significado aponta para zero”
(Bohrer, 2001:18) sem que seu caráter epifânico seja comprometido. Subverte-se,
pois, a distinção entre paradigmático e sintagmático, que Ricoeur propõe ser
exatamente o ponto que demarca a transição entre mimese 1 e 2 . Este ponto reconduz
às discussões de Gumbrecht a cerca de um modelo de representação de uma história
sincrônica.
57

O fim da ficção seria para Ricoeur um salto para fora do paradigmático. Em outras
palavras, o próprio Ricoeur rejeita veementemente a possibilidade de “um salto
absoluto para fora de qualquer expectativa paradigmática,” afirmando que embora
seja possível abdicar da cronologia, não se pode prescindir de algum tipo de
configuração temporal inteligível. (Tomo II p. 41) Umberto Eco afirma ser
inteiramente possível que uma narrativa prescinda de uma intriga (plot), mas que
jamais abra mão do discurso ou da história (story). Ricoeur apropria-se da
terminologia de Northrop Frye para descrever Robinson Crusoe, concluindo que na
obra de Defoe, “a fábula é regida por seu tema.” (Tomo II, p.21) — sendo o “tema”
não só o condutor do fluxo narrativo, mas o elo de ligação entre autor e receptor.
Deste modo, a narrativa pseudo-autobiográfica quebra convenções, porém permanece
dentro do escopo da possibilidade da recepção. Estas considerações sobre a narrativa
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epistolar fornecem significativo ponto de entrada para qualquer compreensão da


estruturação de Mrs. Dalloway. A dificuldade está no fato de ser o “tema” em Mrs.
Dalloway, o próprio tempo. O tempo é a rede invisível, o fio condutor que une
personagem a personagem, acontecimento a acontecimento—como o “thin thread”
(fino fio) que Lady Bruton percebe haver entre as pessoas após a dissolução de um
encontro, ou o movimento da agulha de Clarissa ligando o fio de seda verde ao cinto.
Estes traços, rastros temporais indeléveis, as marcas que uma presença exerce sobre
as demais, são a premissa para a compreensão da causalidade em Mrs. Dalloway. A
narrativa é apreendida pelo leitor como totalidade sensível e inteligível, integrada, e
não desconexa. Irônico que Woolf equipare esta percepção à insanidade, através da
personagem de Septimus Warren Smith — i.e. sentado num banco, ele se dá conta
das folhas conectadas a seu corpo através de milhões de fibras.
Como conceber, e pior, como executar tal salto?. Obviamente que a escrita
histórica — fato admitido pelo próprio Ricoeur — em muito se difere da escrita da
ficção especialmente em sua obediência às normas da referencialidade. O crítico
italiano Umberto Eco afirma ser inteiramente possível que uma narrativa prescinda de
um enredo (plot), mas que jamais abra mão do discurso ou da história (story).
Gumbrecht efetivamente executa propositadamente tal impossibilidade quando, em
Em 1926: Vivendo no limite do tempo, rompe com a diacronia e insiste em construir
58

um experimento de simultaneidade, para ele obrigatória e necessária dentro de uma


nova acepção do presente:

O desejo de uma experiência imediata do passado surgiu dentro de uma naova e ampla
dimensão do presente. Este novo presente é a moldura para a experiência da
simultaneidade (...). (1999: 470).

Quando ressalto a análise de Ricouer sobre a narrativa epistolar fornecem um ponto


significativo de entrada para qualquer compreensão da estruturação do modelo
experimental como Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo. Todavia, este modelo
serve-nos tão somente como ponto de partida. Em 1926: Vivendo no limite do tempo
há um emaranhado de linhas que se entrelaçam e formam vários padrões (por diversas
vezes, narrativos, ainda que não convencionalmente). Não se pode falar de tema, mas
dos encontros e passagens por diversas possibilidades temáticas, cujos resultados são
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inevitavelmente contingentes, imprevisíveis e fragmentários.

Paradigmático

Sintagmático

Figura 3: Os Eixos Paradigmático (sincrônico) e Sintagmático (diacrônico).

Atendendo ao “imperativo auto-imposto [de suspensão] da seqüencialidade”,


(1999) a rede de referências cruzadas define-se, já por sua própria constituição, como
um “palco sem atores”, oferecendo espaço a uma multiplicidade de observadores.
Neste contexto, assim como ocorre na obra de Woolf, torna-se complexo discutir
59

causalidade e, por conseguinte, enredo, ou muthos aristotélico. E o que dizer da


mimesis quando o que visa representar é o passado como matéria crua, não em seu
caráter narrativo ou mesmo cronológico, mas ao contrário, especificamente em sua
materialidade e sincronia?.
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60

4
História, Memória e Esquecimento

Mas de tudo, terrível, fica um pouco, / E sob as ondas ritmadas / E sob as nuvens e os ventos / E
sob as pontes e sob os túneis / E sob as labaredas e sob o sarcasmo / E sob a gosma e sob o vômito
/ E sob o soluço, o cárcere, o esquecido / E sob os espetáculos e sob a morte de escarlate / E sob
as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes / E sob ti mesmo e sob os teus pés já duros / E sob o
gonzo da família e da classe, / Fica sempre um pouco de tudo. / Às vezes um botão. Às vezes um
rato.
Carlos Drummond de Andrade

‘Were they like that?’ Isa Said abruptly...


‘The Victorians,’ Mrs. Swithin mused. ‘I don’t believe,’ she said with her odd little smile, ‘that
there ever were such people. Only you and me and William dressed differently.’
‘You don’t believe in history,’ said William.

Virginia Woolf
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4.1
Lupus in Fabula

No artigo intitulado “O jogo do texto”, o teórico da literatura, Wolfgang Iser,


declara que seria sensato pressupor que autor, texto e leitor estão intimamente
inter-conectados “em uma relação a ser concebida como um processo em
andamento que produz algo que antes inexistia”. (Iser, 2002:105). A estética da
recepção, a teoria do efeito e a teoria dos atos da fala, dentre outras, ocasionam
uma mudança paradigmática (no sentido que o teórico Thomas Kuhn 1 atribui ao
termo) nos campos da teoria literária. Figuras exponenciais como o já citado
Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss e Stanley Fish, embora em trajetos paralelos e
não necessariamente convergentes, podem ser interpretados um re-
direcionamento de olhar crítico em favor da figura do leitor. Wolfgang Iser é

1
Cf. Thomas Kuhn e suas teorias acerca das mudanças paradigmáticas no campo das
ciências exatas.
61

responsável pela criação de uma nova categoria, o “leitor implícito” presumido


pelo texto, que em si contém espaços vazios a serem preenchidos apenas no ato da
leitura. O teórico italiano Umberto Eco discorre amplamente sobre a figura de seu
“leitor-modelo” em seu Lector in Fabula, que no original italiano recebia o
inspirado título de Lupus in Fabula. Eco inaugura seus passeios pelos bosques da
ficção (1994:7) explicando a ironia do título da obra precedente. Lupus em latim
significa leitor — especificamente, o leitor no conto de fadas. Assim, lupus teria
em leitor sua tradução literal. Entretanto, lupus também quer dizer lobo, que
remete a um campo semântico bastante ligado aos contos de fadas e a figuras
como o lobo mau de Chapeuzinho Vermelho. Ocorre que na Itália, a expressão
“lupus in fabula” corresponde ao ditado da língua portuguesa, “e por falar no
diabo...”. (7). O valor anedotário da explicação cai como uma luva para a abertura
de um conjunto de palestras ministradas na prestigiosa Universidade de Harvard
pela série Charles Eliot Norton Series, onde anos antes o compatriota de Eco,
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Ítalo Calvino, proferira cinco de suas Seis Propostas para o Novo Milênio.
(Calvino, 2004). Não é apenas por ser um bom trocadilho que aqui se opta pela
discussão do jogo de palavras. A dubiedade em si conduz-nos a difícil condição
de ser leitor em uma obra de tamanha complexidade como Em 1926: Vivendo no
Limite do Tempo, de Hans Gumbrecht.

Já que Gumbrecht rechaça qualquer possibilidade de leitura de seu modelo


como totalização, e uma vez óbvio que a multiplicidade de possibilidades de
entrada e saída do texto infere em experiências altamente distintas, optamos por
um gesto radical. Que tal se roubássemos da ficção a figura de Ireneo Funes,
célebre personagem do conto Funes, O Memorioso de Jorge Luis Borges, como
uma espécie de leitor-ideal de Gumbrecht? Em minha defesa, só resta alegar que
a idéia da personificação do mise-em-abîme borgeano — um homem incapaz de
esquecer no formato de um leitor empírico para uma obra que ainda não se queira
totalizante, possui uma vastidão digna de um homem-arquivo — não pode ser
vista como uma escolha mais absurda do que a idéia de um possível guia para Em
1926: Vivendo no Limite do Tempo, que no fim das contas existe, a priori, apenas
para transcender esta possibilidade. Todavia, isso veremos em instantes.

***
62

Por ora cabe retomar e aprofundar algumas das questões previamente


abordadas. Como já dissemos, tanto para este autor como para Niklas Luhmann,
a crise da representabilidade demarca uma espécie de fronteira discursiva que
ocorre no ano de 1800. Tal virada demarcaria o nascimento da modernidade
epistemológica que culmina no momento presente. Nomeada e imortalizada por
Michel Foucault em seu Les Mots et les Choses, onde a crise da representação
aponta “a profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita”.
(Foucault). O que distinguiria o início da modernidade, para Gumbrecht e
Luhmann, desta nova fase seria a emergência de uma nova figura que radicaliza a
separação iniciada com o cogito cartesiano. Luhmann dá o nome de “observador
de segunda ordem” a este novo sujeito auto-reflexivo, não apenas apto a observar
o mundo que o rodeia mas também observar-se a si próprio no ato da observação.

Tal qual o trágico Moscarda de Luigi Pirandello em Um, Nenhum, e Cem Mil,
este novo observador auto-reflexivo é lançado em um jogo de espelhos de
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bibliotecas infinitas e ruínas circulares que finalmente o conduzem à era de


incertezas que hoje experimentamos. Nas palavras de Luhmann:

An individual in the modern sense is someone who can observe his or her own
observing. And whoever fails to understand this intuitively or he is not made aware
of this by his or her therapist can read novels and project them into the self.
(Luhmann 1998, 7).

Em termos iserianos, traduzem-se as postulações do crítico e teórico norte-


americano Stanley Fish em “Como Reconhecer um Poema ao Vê-lo” nos termos
das interações diádicas. Parece-me importante notar que Wolfgang Iser, em seu
inicia seu capítulo intitulado “A interação do texto com o leitor”, com a seguinte
citação de Laing:

Meu campo de experiência, contudo, não é preenchido apenas por minha visão
direta de mim (ego) e pela do outro (alter), mas pelo que chamarei
metaperspectivas — minha visão da visão do outro sobre mim. De fato, não sou
capaz de me ver como os outros me vêm, mas constantemente suponho que eles
estão me vendo de um modo particularizado e ajo constantemente à luz das
atitudes, opiniões, necessidades, etc., reais ou supostas dos outros sobre mim.
(Laing e Lee, 1966, 2).

Bem entendido, há uma disparidade evidente entre relações interpessoais (face


à face) e a relação que se estabelece entre texto e leitor. Iser aventa a hipótese de
que justamente a carência daquilo que denomina quadro de referências
63

semelhantes. Ao observador de segunda ordem é imposta a dupla tarefa de: (1)


emitir juízo acerca do mundo que o cerca, e partindo do pressuposto que este
mundo seja de fato real ou material, e (2) fazê-lo sabendo que cada fenômeno
particular pode potencialmente produzir uma infinidade de percepções, formas de
experiência e representação. (1998: 14). Recorrendo ao feliz trocadilho cunhado
por Eliana Yunes, é imprescindível considerar que “ser leitor é diverso de ser
ledor”. (Yunes, 26). Ao menos dentro de certas fronteiras acadêmicas — sejam
porosas, esponjosas, ou sulcos prestes a serem transpostos por sacrílegas pontes,
como apontaria Umberto Eco em Interpretação e Superintepretação. De fato, se
pensamos nas raízes latinas do verbo legere — como bem o faz Miriam Sutter em
artigo intitulado “Pelas Veredas da Memória: Revisitando Ludicamente Velhas
Palavras”— constatamos, então, que em sua primeira acepção o verbo latino
legere denota o ato de colher, ajuntar, reunir etc. — Sutter cita o ilustrativo
exemplo, legere nuces, ou “colher nozes”. Ao leitor catador de nozes-palavras
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caberá portanto não apenas a tarefa de legere mas também a incumbência-mor de


intelligere, ou compreender — este último também derivado do original legere,
que significa compreender, ou “escolher mentalmente entre” 2 . Quanto a proposta
de Hans U. Gumbrecht em Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, ressalto que é
o próprio autor o primeiro a admitir — antecipando-se aos críticos previsíveis — a
dificuldade (impossibilidade?) implícita na tarefa de produzir modelos de
representação que abram mão da seqüencialidade como moldura de referência.
(1999: 12).
Aqui torna-se plausível nossa incursão pelas teorias miméticas de Paul
Ricoeur. Como já explicitado, Ricoeur entende que a ruptura com a
representação linear do tempo estaria localizada no âmbito da mimese 1: esta
constituiria o primeiro passo em direção à refiguração do tempo através da
narrativa. O desdobramento da proposta não-hermêutica de Gumbrecht
reconduzirá nossa discussão às mais recentes publicações de Iser, como suas
discussões acerca de mimese e performance realizadas em sua obra O Fictício e o
Imaginário. (1996). Anos antes, em Ato da Leitura, Iser já sublinhara a
impossibilidade de se obter qualquer tipo de percepção que a priori não seja a

2
Idem Ibid. “<inter+legere, em que o –r— de inter sofreu assimilação parcial, resultando o
dígrafo –ll—> e que em seu sentido primeiro significava ‘escolher mentalmente entre’. Idem Ibid.
P. 71.
64

percepção de uma percepção: “não tem sentido falar-se da recepção percebida


como pura percepção.” (43). Ora, se a mimese clássica propõe-se a representar
um mundo pré-dado, as teorias miméticas, já em suas origens, desvelariam a
precariedade desta noção. Iser detecta a ambiguidade inerente à operação
mimética já em Aristóteles. No sentido aristotélico, a função de representação é
dupla: (1) tornar perceptíveis as formas constitutivas da natureza; (2) completar o
que a natureza deixara incompleto. Em nenhum dos casos, acrescenta o teórico,
poderá a mimesis restringir-se “à mera imitação do que é, pois os processos de
elucidação e de complementação exigem uma atividade performativa”. (1996).

Entende-se pois, que já em Aristóteles, no cerne ato interpretativo que afinal é


o contraponto forçoso da operação mimética, está contido o germe da
performance. Completar aquilo que a natureza deixara incompleto sugere uma
postura pró-ativa por parte daquele que lê. Com o advento da escrita, como
assinala Eliana Yunes, o problema agrava-se consideravelmente:
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A língua que já trazia o mundo pelo que o olho “via”, e não pelo que existia, passa
a depender de uma segunda “modalização” — a do relato escrito — para
apresentar/representar o mundo “lido”. (9)

Antes de reproduzir um mundo pré-dado, o “jogo” do texto forçosamente


conduz ou induz seus participantes à criação de um evento inteiramente novo. E o
faz via leitura. A operação mimética é, portanto, inseparável do ato performativo
e ambos convertem-se em “[modos] de criação de mundo”. (Iser, 106). Para Iser,
a suposta migração da morphé aristotélica da natureza para a mente do autor
evidencia uma modificação no conceito de natureza: tomar a natureza como objeto
significa abri-la permanentemente — i.e. natureza como “série aberta”, onde
objetos não são mais passíveis de representação sem que as condições de
percepção sejam limitadas. O leitor trará consigo esquemas cognitivos contidos
no repertório de seus conhecimentos e concepções de mundo. Em plena pós-
modernidade — e cientes do desconforto que o termo “pós-moderno” ainda hoje é
capaz de suscitar — é evidente que, como adverte Eliana Yunes, nomear a
natureza significa interpretá-la. (56). Neste caso, ainda mais arriscada torna-se a
opção de seguir um leitor-modelo ficcional e ironicamente totalizador, como o
personagem Funes, o Memorioso, de Borges para percorrer uma matriz aberta e
65

de certo modo, infinita como a que se produz em Em 1926: Vivendo no Limite do


Tempo.

Como previamente explicitado, a hipótese de Gumbrecht, não obstante sua


evidente ousadia, é bastante direta: a cada leitor será possível —
independentemente do percurso escolhido — experimentar (antes de perceber)
certas “visões de mundo” tais como, de fato, teriam potencialmente existido
dentro dos mundos existentes em 1926 3 . Portanto, se abro aleatoriamente o livro
no verbete intitulado “Jazz”, poderei conduzir-me a outro intitulado “Gomina”;
ou, se preferirem, partindo de um código de cunho mais teórico “Incerteza versus
Realidade”, chega-se a “Lutas de Boxe”. Contidos neste modelo estão também as
áreas de fricção no sistema, ou possivelmente seus limites (porosos) que são os
códigos em colapso; do jazz pode-se recair em “Ação = Impotência (Tragédia).
Tais áreas de fricção seriam equivalentes a mudanças (que pressupõem
causalidade e diacronia) em um ambiente sincrônico. Este aspecto do modelo de
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Gumbrecht merece atenção redobrada. É importante notar que em seu manual


(advertência) Gumbrecht ironicamente sugere que não tem pretensões maiores
com seu “experimento”, embora tendo em vista que escreve por sentir-se na
obrigação de contribuir para gerações futuras.

Diante deste quadro, resta-nos indagar: quem é este novo “leitor empírico”, a
um só tempo co-constrututor de realidades e inexoravelmente preso a uma rede
comunicativa que lhe dá forma e o conforma a regras previamente dadas? Ou
apropriando-nos das palavras de Yunes, “quem é este que conhece, como conhece
e que alteração lhe traz o conhecimento e seu uso?” (Yunes, Cit. P, 23).
Gumbrecht conta que em seus primeiros rascunhos, Em 1926: Vivendo no Limite
do Tempo continha o significativo adendo: “Um ensaio em simultaneidade
histórica”. Ora, tal proposta aumenta consideravelmente a complexidade exigida
deste novo leitor — a começar, ela pressupõe uma imensa variedade deles e,
portanto, de percursos possíveis por eles traçados. Todavia, há que se considerar
que em 1997, quando o livro foi lançado nos EUA, e mesmo hoje, em 2007, este
membro de uma “comunidade interpretativa”, (para lançar mão do termo cunhado

3
É precisamente por este motivo que ao justificar seu método de pesquisas de fontes,
Gumbrecht alegará ter favorecido a recorrência em lugar da totalização. Cf. Gumbrecht: 1999. p
478-479.
66

por Stanley Fish), não desponta ingênuo ante ao texto — seja este ficcional,
histórico, teórico, ou mesmo um manual de auto-ajuda:

... o que nós temos não são leitores livres e autônomos em uma relação de
adequação ou inadequação perceptiva para com um texto igualmente autônomo.
Ao contrário, o que temos são leitores cujas consciências são constituídas por
uma série de noções convencionais que, quando colocadas em funcionamento,
irão construir, por sua vez, um objeto convencional, visto de forma convencional.
(FISH, 1993).

Contudo, noções como “comunidades interpretativas”, lançadas por Fish e


outros em meados dos anos 70, além de terem perdido seu caráter de grande
novidade, são hoje vistas por outros ângulos. Os tempos são outros e as teorias
também. Passados aproximadamente 30 anos desde as primeiras publicações da
estética da recepção e do reader-response criticism, parece-nos bastante óbvio
que, como coloca Hans Ulrich Gumbrecht em um ensaio intitulado “As
Conseqüências da Estética da Recepção: Um Início Postergado”, não mais se trata
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da dissolução de figuras como autor e leitor, nem tampouco se busca aferir o grau
de adequação de um suposto “leitor-ideal”:

Mas sim [...] um esforço re-construtivo cujo propósito é compreender as condições


sob as quais vários significados de um determinado texto são gerados por leitores
cujas disposições receptivas possuem diferentes mediações históricas e sociais.
(Gumbrecht 1998 (2).

Sintomática desta transformação é a opção por uma dose bem humorada de


autocrítica do teórico Stanley Fish na coletânea de ensaios, Is There a Text in This
Class?. Fish abre o texto com a seguinte e surpreendente declaração: “what
interest me about many of the essays collected here is the fact that I could not
write them today”. (Fish, 1980, p.1). Se na estética da recepção encontrava-se
uma espécie de grau zero para o lançamento da proposta — a meu ver, bastante
pertinente e contemporânea — da ampliação do escopo dos estudos de literatura,
então há que repensar as perguntas.

As tentativas pouco frutíferas de detecção de marcas estilísticas


exclusivamente pós-modernas na literatura, nas artes plásticas, arquitetura, etc., se
é que algum dia pertenceram ao centro do debate acerca da pós-modernidade, hoje
parecem redutoras e pouco interessantes — que o diga Pierre Menard, ou o
próprio Señor Borges, como colocaria John Barth. Então cabe perguntar se
haveria ainda algo a ser dito sobre o pós-modernismo. Será então a pós-
67

modernidade uma espécie de Alto Modernismo acrescido de uma dose reforçada


de complexidade, como o designa Gumbrecht em sua estratificação da
modernidade no ensaio de 1998, “Cascatas de Modernidade”?. Em se tratando de
formas artísticas, Gumbrecht diria que a pergunta é inadequada já que a
associação entre um certo intervalo de tempo a um determinado estilo artístico ou
literário só é eficaz dentro de um contexto do “cronótopo do tempo histórico”. É
preciso inicialmente determinar que a questão não mais se coloca de forma a
simplesmente reorganizar os códigos modernos e aplicá-los ao momento presente.
Em primeiro lugar, eles não se adequariam — é precisamente neste sentido que
Luhmann afirmaria que a semântica tradicional moderna fracassa:

Sociology has achieved little in comparison to the intensity with which hope and
need, the avant-garde and survivalism are experienced and portrayed, and in
comparison to the way contemporary society attempts to describe itself in this
regard. Unable to speak of concepts, the terminology sociology produces carries
signs of a forced one-sidedness. Here we need only to think of such terms as
“society of risk” and “information society”. What is missing, not considering old
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topics such as differentiation and complexity, is a concept of structural


characteristics that distinguishes contemporary society from older social formations
in the long term and not just in the moment. (Luhmann, 1998, p.4).

Antes de nos aprofundar na discussão sobre a experiência temporal


tipicamente pós-moderna e suas implicações, algumas palavras de advertência se
fazem necessárias. É evidente que não se pode rechaçar completamente o
argumento dos céticos que afirmam que as incessantes buscas por definições de
modernidade e de sua descendente (bastarda?), a pós-modernidade, consistem
única e exclusivamente em gestos intelectuais vazios que pouco repercutiriam no
domínio concreto da existência. A terra continuará girando, quer a possamos
observar ou não. Citando as sábias palavras do sociólogo alemão Niklas
Luhmann, trata-se de uma questão de sobrevivência intelectual e nada mais:

The proclamation of the “postmodern” has at least one virtue. It has clarified that
contemporary society has lost faith in the correctness of its self-description. (...)
We seem to be dealing with a matter of intellectual survival. But apparently, this is
all we are dealing with. In the meantime, what happens, happens, and society
evolves toward an unknown future, leaving behind its accomplishments. (1998:
1).

A teorização de Luhmann demonstra claramente que, lançar mão de processos


comunicativos, já estamos obrigatoriamente operando no interior do sistema. No
que diz respeito à relação com o passado, dirá Luhmann que, por operarem apenas
internamente, sistemas são incapazes de distinguir entre elaborações internas e o
68

que seria de fato a realidade (externa). Sistemas autopoiéticos, portanto,


forçosamente elaboram uma espécie de “função de memória” — que Luhmann
equipara com a noção de “cultura” — para que possam compreender o presente
como resultado lógico de um passado. 4 .

But memory means forgetting and highly selective remembering, it means


constructing identities for re-impregnating recurring events. In addition, such
systems need an oscillator function to be able to cross the boundaries of all
distinctions they use, such as, being/not-being, inside/outside, good/bad,
male/female, true/false etc. (1997: 4).

Gumbrecht discute a teoria do presente. Somente através de um reajuste —


uma atualização (refreshening) do sistema, talvez? — nas formas tradicionais e
mesmo pós-modernas de teorização literária, passa a ser possível apreender a
inversão da premissa barthesiana proposta por um teórico atual das literaturas em
rede, Roberto Simanowski, sobre a “morte do leitor”:
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While the author is not dead, it is perhaps more appropriate to announce the death
of the reader. Of course, this slogan can be understood in many ways: With respect
to the click gesture, one could talk about the reader’s transformation into a restless
traveler through the world of text. With respect to the visualization of the web one
could talk about the reader’s transformation into a viewer. What I would like to talk
about is the reader’s transformation into an author. (Simanowski, 2001).

O leitor feito autor feito ator feito (con)texto já não se parece tanto com o
leitor ideal de Eco. A certa altura de seu adendo a Em 1926, “Depois de Aprender
com a História”, Gumbrecht se pergunta como podemos ser responsáveis pela
impressão de que interpretamos e compreendemos o outro se optamos por uma
teoria do discurso que nega o sujeito? (Gumbrecht, 1999 p. 463). A resposta,
conclui rapidamente, só se torna possível através de uma reformulação do
conceito de sociedade em termos de sistemas autopoiéticos. Mas será este o
caminho para a teoria literária?
Em seu ensaio “O Futuro dos Estudos de Literatura?”, Gumbrecht sugere a
todos os interessados que reflitam sobre as conseqüências reais da crise dos
conceitos de “verdade”, “objetividade”, e mesmo “literatura”, especificamente
dentro do campo dos estudos literários. Gumbrecht subscreve à teoria de Derrida,

4
The system cannot match its internal observations with its reality, nor can external
observers compute the system. Such systems need a memory function (i.e. culture) that
presents the present as an outcome of the past. Luhmann - International Review of Sociology
Mar97.
69

de que dificilmente deixaremos para trás a era da metafísica, tampouco seria este
o objetivo: “I think beyond metaphysics can only mean something in addition to
interpretation”, diria Gumbrecht mais tarde em seu Production of Presence.
(Gumbrecht, 2004). Uma saída seria o reposicionamento do campo estrito dos
estudos literários em um contexto mais amplo, o das Humanidades. Neste
sentido, proponho uma leitura de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo não
como experiência de imersão em passados longínquos, mas como experimento
teórico, cujas bases epistemológicas se inserem numa rede discursiva atual e
relevante.

4.2

Saltando da Torre Eiffel


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Em um ensaio datado do ano 2000 intitulado Present Pasts: Media Politics


and Amnesia, Andreas Huyssen propõe que o desafio teórico contemporâneo
consistiria em compreender o paradoxo da coexistência de duas tendências
opostas: de um lado, o que Jacques Derrida descreve como a febre do
arquivamento 5 , de outro, a propensão à amnésia ou à perda da consciência
histórica. (Huyssen, 1995). Sem chegar a macro-estruturas — afinal, bom leitor
de Lyotard que é, Andréas Huyssen já fora plenamente advertido sobre o ocaso de
estruturas totalizadoras — o autor aponta como possibilidade uma mudança na
estrutura da própria temporalidade:

Something else must be at stake that produces our desire for the past in the first
place and that makes us respond so favorably to the memory markets. That
something, I would suggest, is a slow but palpable transformation of temporality in
our lives, brought on by the complex intersection of technological change, mass
media, and new patterns of consumption, work, and global mobility. (Huyssen,
2003: 21).

5
Derrida, Jacques. Mal d’Archive. Paris: Galilée, 1995: “Le mal d'archive rappelle sans
doute un symptôme, une souffrance, une passion: l'archive du mal mais aussi ce qui ruine, déporte
ou emporte jusqu'au principe d'archive, à savoir le mal radical. Se lève alors infinie, hors de
proportion, toujours en instance, "en mal d'archive", l'attente sans horizon d'attente, l'impatience
absolue d'un désir de mémoire.”
70

Com o passado enfronhado na tessitura do presente, quem encontrará tempo


para pensar no futuro? “So is this an archivist’s fantasy gone mad?” — indagar-
se ia Huyssen, seremos todos uma comunidade de Funes Memoriosos Borgeanos
acovardados ante ao futuro ameaçador e apocalíptico, fadados à morte por asfixia
mnemônica? Luhmann escreve, com sua dose de humor negro, que “no one that
jumps off the Eiffel Tower knowing how it will end really enjoys the fall”
(Luhmann, 1998, 76). Haverá, de fato, algo inédito nas maneiras com as quais
hoje estruturamos nossos presentes, passados e futuros?

***

Em seus escritos sobre o ímpeto restaurador da literatura “ The Literature of


Replenishment”, John Barth sugere um reposicionamento tanto ético quanto
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estético. Com o peso da legitimação sorrateiramente deslizando por entre os


dedos dos experts intelectuais e recaindo diretamente no colo dos criadores, é
preciso compreender que, como coloca Lyotard:

O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações mais
complexas e mais móveis do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, homem
ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de comunicação,
por ínfimos que sejam. (Lyotard, 1979: 28).

A questão fundamental para Barth parece ser uma modificação do olhar que
implica, dentre outras coisas, numa atitude mais conciliatória ou amorosa para
com o passado, atitude que encontra total confluência com o quadro de
simultaneidade apresentado por Gumbrecht. Gumbrecht, aliás, exalta a
capacidade do precursor do pós-moderno de se apresentar não no papel de
fundador de uma tradição, mas antes no papel de editor, herdeiro de passados
longínquos. Altas doses de ironia à parte, e salvaguardadas as variações Groucho
marxianas que povoam seu “The Literature of Replenishment”, John Barth diz
algo extraordinariamente similar quando condiciona seu ingresso ao clube dos
pós-modernos à participação de Calvino e Garcia Márquez — i.e. “I myself will
not join any literary club that doesn’t include the expatriate Gabriel Garcia
Márquez and the semi-expatriate Italian Ítalo Calvino”. Acrescentamos que em
um ensaio de 1985, escrito em resposta a um convite que recebe da Funarte,
Silviano Santiago falaria da permanência, ou existência do discurso da tradição
71

no interior do modernismo brasileiro. Verificando a própria seleção do tópico de


sua palestra como sintomática, dirá Silviano:

A impressão que tenho é a de que o tema que me foi proposto pela Funarte não o
foi inocentemente. A questão da tradição — na década de 80 — estaria vinculada à
revisão crítica do moderno e em particular do modernismo, [e à abertura] do
caminho para o pós-moderno. (Santiago, 1985).

Tratam-se de novas solidariedades, de sujeitos inseridos em redes


desprendidas de teleologia ou fronteiras previsíveis. Dentro do contexto do
presente alargado de Gumbrecht, a ruptura decididamente perde sua razão de ser.
Mas qual seria, então, o próximo passo, uma vez que as palavras e as cores já
provaram por “a” mais “b” que são incapazes de representar as coisas? —
indagaria Gumbrecht, “Não há nenhuma além desta intuição”, responderia.
Seguramente, a reformulação do conceito de sociedade em sistemas autopoiéticos
oferecerá um caminho desconfortavelmente auto-reflexivo: “there is no merit in it
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because there are no external observers” — diria Luhmann. E Gumbrecht o sabe


bem. A realidade não mediada é inacessível. Como coloca George Kubler:

Actuality is the instant between the ticks of a watch: it is a void interval slipping
forever through time: the rupture between past and future: the gap at the poles of
the revolving magnetic field, infinitesimally small but ultimately real. It is the
interchronic pause when nothing is happening. It is the void between events,
(Kubler 1962:17).

Ocorre que no momento considerado — não sem polêmica — pós-moderno, já


não se pode mais falar de representação impunemente. Gumbrecht assinala a
confluência entre um quadro de complexidade aumentada e uma situação
intelectual nas humanidades “comparativamente fraca” 6 . Decerto que tal
perspectiva poderá mudar em retrospecto — o que admite o autor. Em última
análise, se o ‘experimento’ de Gumbrecht não contém uma mensagem
explicitamente política, tampouco recorre a propostas niilistas de renúncia.
Relevada a recusa indireta do autor de enquadrar-se em categorias como crítico
pós-moderno, observa-se que há uma dose de “auto-reflexividade”
sintomaticamente contemporânea nas colocações do autor. Gumbrecht afirma
categoricamente que embora o livro compartilhe alguns dos leitmotifs tipicamente
pós-modernistas, só o seria por razões negativas, isto é, por acreditar estarem
72

superadas as batalhas ideológicas e teóricas associadas ao período moderno 7 .


Interessa-nos, particularmente, assinalar a atitude conciliatória tipicamente pós-
modernista que esta necessidade de posicionamento perante seus pares denota —
Gumbrecht coloca-se como alguém que escreve não apenas no, mas para o
presente visível, ou antes com seus predecessores na carne. Assim, o termo pós-
moderno traz em si o germe inegável da polêmica.

Em 1979, a Deutsche Gesellshaft für Amerikastudien, realizada pela


Universidade de Tübingen, elege como tema “América nos Anos 70”, enfatizando
particularmente a literatura pós-moderna. O encontro conta ainda com a
participação especial do protótipo do “escritor pós-moderno,” dentre os quais,
previsivelmente, figura John Barth, convidado de honra. Todavia, Barth recebe o
convite como um chamado à reflexão e em sua sagacidade ímpar opta por iniciar
sua fala indagando a própria premissa do encontro, isto é buscando definição para
o termo pós-modernismo. Ainda que lhe escape uma resposta conclusiva, o autor
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é muito bem sucedido na tarefa de demonstrar que sua hesitação e ambivalência


em relação ao pós-modernismo tem origem na problemática contida no próprio
modernismo:

It is not only postmodernism that lacks definition in our standard reference books.
(…) Neither my Reader’s Encyclopedia (1950) nor my Reader’s Guide to Literary
Terms (1960) enters modernism by any definition whatever, much less
postmodernism. (Barth, 1984: 194)

Em seu Los Hijos del Limo, Paz discorrerá amplamente sobre a estrutura
paradoxal do termo modernidade. Antes de mais nada, parece-nos oportuno
descrever aquilo que Paz entende pelo oxímoro, “tradição da ruptura”. De início,
trata-se de um paradoxo, uma vez que não há outro princípio na ruptura que não o
da interrupção, ou da descontinuidade: uma tradição fundada nas interrupções em
que cada ruptura é um prenúncio de uma nova ruptura. Eis a impossibilidade: o
termo tradição implica continuidade: “entende-se por tradição a transmissão de
uma geração a outra de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes (...)”.(Paz:
1984). Dirá Paz que a modernidade é sempre outra: a tradição da ruptura seria

6
Gumbrecht, Hans Ulrich. Em 1926: Vivendo no Limite do tempo. Tradução Luciano
Trigo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
7
Idem Ibid. p. 14: “O autor acredita que a batalha acadêmico-ideológica pela preservação
dos valores modernos ou modernistas (isto é “não pós-modernos”) é uma causa perdida”. Ibid.
73

uma tradição centrada na obrigatoriedade de negar-se continuamente — tradição


autofágica?

Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica e é, assim, uma dupla
negação, como uma crítica e como paixão, tanto das geometrias clássicas como dos
labirintos barrocos. Paixão vertiginosa, pois culmina com a negação de si mesma:
a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora. (12).

Todavia, não se esgotam aí as potencialidades de mise-em-abîme. Em sua


própria etimologia, o termo tradição introduz o potencial polêmico. A raiz latina
traditìo (ónis) indica “ação de dar”, “entregar”, “passar a outro”, “confiar”. No
entanto, do antepositivo trad derivam-se também os verbos opostos: “trair”,
“atraiçoar”; “abandonar”. Dentro desta lógica, o conceito de “tradição da ruptura”
seria, apropriadamente, o paradoxo do paradoxo — i.e. dupla negativa, ou seja, a
anulação da negação. Paz articula de forma bastante precisa o complexo elo que
se estende entre o poeta Romântico e seu alter-ego: o poeta de vanguarda.
Segundo Paz, em suas disputas com o racionalismo, os poetas românticos acabam
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redescobrindo uma outra tradição — tão antiga quanto a própria humanidade.


Trata-se de um movimento a um só tempo contrário à e indissociável da “tradição
da ruptura”, e Paz o batiza tradição da analogia. (Paz, 1984).
A analogia, tal como a descreve Paz, “é a ciência de correspondências, é a
visão da linguagem como doble do universo”. Convém notar que o crítico alemão
Hugo Friedrich, em Die Struktur der Modernen Lyrik (Estrutura da Lírica
Moderna), localiza o nascimento do estilo lírico moderno ocidental no poeta de
Correspondences, Charles Baudelaire. Cabe, no entanto, uma ressalva: Paz alerta
o leitor para o fato de que no interior da analogia dos românticos e simbolistas já
cresciam os germes da ironia: “a analogia dos românticos e simbolistas encontra-
se carcomida pela ironia”. (Friedrich). Quanto se atinge o século XX, essa ironia
assume a configuração de humor. Predomina, pois, o regime da paródia:
ridicularizar “mundos caducos”, substituir valores ultrapassados por outros
inteiramente novos: make it new, sem lirismos namoradores ou sifilíticos, a
“língua sem arcaísmos, sem erudição, neológica: como falamos, como somos”,
afirmaria o ultra-modernista Oswald de Andrade em seu seminal, “Manifesto da
Poesia Pau Brasil”. Ao menos aparentemente. Eis aí a chave para a compreensão
da ênfase de Silviano sobre tradição da analogia. Paz afirma que a poesia
74

moderna fundamenta-se na duplicidade: de um lado, adota posições ambíguas em


relação “às revoluções modernas e as religiões cristãs”; de outro, constrói-se sob
um eixo duplo, oscilando entre analogia e ironia. Esta última característica da
lírica vanguardista fundamentará o categórico “não” de Silviano Santiago, em
resposta à pergunta acerca da ausência da tradição durante o modernismo, posta
ao próprio durante um simpósio organizado pela FUNARTE em 1985 intitulado,
“A Permanência do Discurso da Tradição no Modernismo”: “se a questão da
tradição esteve realmente ausente da produção teórica de alguns autores modernos
(...), a resposta é não”. (2002).

Publicado originalmente na revista New German Critique, o ensaio de


Andreas Huyssen, “Mapeando o Pós-Moderno”, rejeita de antemão toda e
qualquer tentação de desqualificar o pós-modernismo por suas indefinidas —
indefiníveis? — bases: “Essa rejeição radical nos deixará cegos para o potencial
crítico do pós-modernismo, que acredito também exista, embora seja difícil
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identificá-lo.” (1991. p. 21) — diria Huyssen. Inaugurei esta dissertação


aludindo ao texto seminal de Jean François Lyotard de 1979, por ele
modestamente qualificado como “escrito de circunstância”, A Condição Pós
Moderna. É inegável o fim das meta-narrativas de legitimação, inquestionável a
modificação no estatuto do saber. Com toda a informação do mundo a um toque
de teclado, a pergunta que fica é, nas palavras de Lyotard: “onde endereçar a
questão, isto é, qual a memória pertinente para o que se quer saber?” (2002: 3).

Todavia, história e memória não são termos intercambiáveis. Huyssen alerta


que a perda da consciência histórica, concomitantemente à invasão de discursos
de memória, seria decorrente dos esforços sistemáticos de deslegitimação que
sofre a filosofia da história a partir do final do século XIX e durante o curso do
século XX. Quando a memória abandona os limites da psique e passa a invadir o
discurso historiográfico, ou a penetrar no âmbito político, ela obriga a
modificação da forma com as quais se pensa no passado e, conseqüentemente, em
tradição. Não, ao menos, sem algumas conseqüências de ordem prática:
“inevitably, every act of memory carries with it a dimension of betrayal, and
absence”. (Huyssen:2003, 26). Logo, de forma bastante esquemática, separava-
se a memória — operação efetuada no presente — da história — organização e
demarcação de conhecimentos sobre o passado. Se da primeira ocupavam-se os
75

poetas (subjetividade), como diz Huyssen, a segunda estaria tradicionalmente


vinculada à esfera pública, ou ao saber coletivo (objetividade).

4.3

Um Conto de Jorge Luis Borges

Em seu conto, Funes, o Memorioso, Jorge Luis Borges relata-nos a trágica e


absurda história do homem-arquivo par excellance, Ireneo Funes, que condenado
a lembrar-se de tudo, passa a não entender nada. Trazida para o momento
presente, a aparentemente intuitiva inter-relação memória-cognição-esquecimento
faz com que a pergunta de Lyotard se relance no contexto do debate em torno da
recente emergência dos discursos da memória nas sociedades ocidentais. Para
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Andreas Huyssen, o desafio consiste em compreender o paradoxo da coexistência


de duas tendências opostas: à obsessão pela memória e à febre do arquivamento
sobrepõe-se a propensão à amnésia ou a perda da consciência histórica. Sem
chegar a estruturas totalizadoras — afinal Lyotard já advertira sobre o fim das
meta-narrativas — Huyssen aponta como possibilidade uma mudança na
estrutura da própria temporalidade. Com o passado enfronhado na tessitura do
presente, lembrar do que? Por que? É precisamente por este viés que se pretende
estudar o conto de Borges.

Em seu estudo crítico sobre a obra de Borges, “Borges, un escritor en las


orillas”, Beatriz Sarlo identifica como um dos tropos do escritor a “situación
filosófico-narrativa”. (Sarlo, 2001, 6). Sarlo utiliza-se do termo para designar a
estratégia de Borges, que opta por especular sobre questões filosóficas no
desenrolar da própria intriga sem, entretanto, preocupar-se necessariamente em
oferecer respostas às impossibilidades de seus temas. Em Funes, o Memorioso
tem-se na figura de Ireneo, um exemplo perverso da reversão (será superação?) do
“mal do arquivo” de Jacques Derrida. Se para Derrida é o “impulso de plenitude”
a fonte do sofrimento diante do arquivo, em Funes a plenitude não é impulso mas
realidade: “Minha memória, senhor, é como um depósito de lixo.” — confessa ao
narrador. Em um texto distinto, Sarlo descreve a estranha experiência de
76

perambular pelo Palais de Glace visitando a exposição “El Universo de Borges”.


Diante dos objetos, observa:

Perfectos simulacros, miniaturas, cuya amputación de un cuerpo ausente produce


hoy, en las vitrinas de la exposición, un efecto contradictorio. Son familiares y
siniestras como restos de un pasado que ha perdido su función para conservar sólo
una forma. (2001: 6)

Huyssen lembra que Adorno sugere que a semelhança entre museu e mausoléu
supera a mera paridade etimológica. Entretanto, o museu contemporâneo não se
limita à sua função de túmulo do passado. Vale notar que ao traçar sua
genealogia, Huyssen declara que o museu tem sua origem no ensejo de ruptura
modernista e na ameaça de obliteração das tradições. Uma sociedade tradicional,
desprovida de um conceito teleológico de história, não necessita de museus — as
tradições são asseguradas na práxis individual e coletiva. É a ameaça do
apagamento que gera a necessidade do arquivo. Esta estruturação paradoxal do
museu como espaço híbrido — a um só tempo, local de preservação de rastros e
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meio de (re) construção do passado — serve de ponto de partida para a análise da


oposição história vs. memória e sua relação com o tema do excesso em Borges.
Lembrar-se de tudo, reviver o dia em toda a sua minúcia, significa perder a
capacidade de abstrair-se, de categorizar, de sintetizar, de narrar — será lembrar-
se de tudo o equivalente a perder-se de si?

Borges é claramente um aficionado por paradoxos de totalização. Em “Magia


Parcial do Quixote”, o autor cita o mapa impossível de Josiah Royce: ao traçar a
representação tão minuciosa quanto o terreno representado, o cartógrafo faz com
que o mapa perca sua raison d’être. A hipótese de Sarlo sobre o uso da structure
em abîme em Borges — uma organização espacial barroca que permite
representar a infinidade espacial dentro de um espaço finito — nos é
particularmente interessante neste aspecto. Sarlo observa que o princípio de
‘inclusão infinita’ retira, ou ao menos abala, “as verdades” da percepção,
colocando-as em choque com o raciocínio lógico. Dito de outro modo, o
perceptível e o inteligível tornam-se irreconciliáveis, ainda que não inapreensíveis
em sua simultaneidade:

El principio de inclusión (de una imagen dentro de otra y de esa dentro de otra...)
afecta nuestra creencia en la verdad de las percepciones y establece una tensión
entre lo que puede ser lógicamente aceptado y lo que puede ser sensorialmente
77

percibido. Corrije lo que Borges hubiera llamado la naturaleza imperfecta del


mundo tal como lo captan los sentidos humanos. (Sarlo: 2001).

Dentro desta lógica, a imagem do labirinto (ícone mais perfeito da estrutura do


abismo) exerce função verdadeiramente retificadora da cognição, ou seja, corrige
o devaneio empiricista de que a realidade em si pode ser apreendida através dos
sentidos — tanto maior a ironia da citação de John Locke no conto de Borges.
Trazido para o campo estritamente literário, a dialética percepção vs. razão, em
sua impossibilidade de síntese, abre caminho para uma solução face ao desafio
maior da mimese: a de replicar não somente a perspectiva do real — no sentido
do realismo e do naturalismo do século XIX — mas a experiência sensível de
realidade, naquilo que ela tem de fugaz e impalpável.

Uma segunda análise desta estratégia narrativa em Borges permite-nos


algumas outras considerações acerca também de uma proposta de história
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simultânea. Uma das características vitais da estrutura labiríntica é a imposição


do excesso como regra fundamental: a aproximação da experiência intangível,
eternamente suplementar, dá-se na inclusão infinita (Aleph), na rememoração
compulsiva que remonta ao esquecimento (Funes), ou na tautologia aprisionadora
da (re)invenção (Pierre Menard). Neste sentido, torna-se possível ver Ireneo
Funes como radicalização do discurso da memória dentro da historiografia tal qual
o descreve Huyssen. Entretanto, para que a analogia funcione, é preciso ressaltar
que só há sentido na leitura de Ireneo Funes como metáfora de totalização, — o
próprio “arquivista maluco”, sugerido por Huyssen — se pudermos localizar no
narrador o contraponto do esquecimento. As palavras deste último na abertura do
conto são sugestivas:

Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um


homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura
passiflórea na mão (...). Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado (...). Recordo
(creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate,
(...). Recordo claramente sua voz (...). (Borges: 2003, 119).

A voz que nos fala na primeira pessoa é de alguém diametralmente oposto a


Funes; alguém que, como nós, hesita, repete, e nesta repetição emblemática do
verbo ‘recordar’, remete-nos à leitura de Derrida sobre o arquivo e certamente
também à noção Freudiana de memória como “desejo vital de repetição”, sempre
contraposta à pulsão de morte (responsável pelo esquecimento).
78

(...) a saber, o arquivo, a consignação, o dispositivo documental ou monumental


como hupomnema, suplemento ou representante mnenotécnico, auxiliar ou
memento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma
significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência
espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da
falta originária estrutural da chamada memória.
Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem
certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior. (Derrida, 2001:22).

Ademais, a passagem evoca a distinção Bergsoniana entre hábito e lembrança,


podendo a hesitação do narrador ser vista como o esforço endêmico ao exercício
da rememoração (lembrança). Esta última é uma distinção fundamental em
Funes, já que o mal que acomete Ireneo descende exatamente da perda da
capacidade de ordenação e síntese — que obrigatoriamente pressupõem estruturas
lacunares, os muitos não-ditos, o esquecimento em suma. A raridade da qual fala
Foucault na sua Arqueologia do Saber é precisamente isto. Se o discurso é, “ao
mesmo tempo, plenitude e riqueza indefinida”. (Foucault: AS, 137), o enunciado é
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o oposto e repousa sobre a lei soberana da rarefação, onde nem tudo é dito, onde
lacunas se formam e se estabelecem. São as ausências, os limites, os recortes.
Deste raciocínio entende-se que o arquivo para Foucault seja “a lei do que pode
ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos
singulares”. (149).
Além disso, a passagem evoca a distinção entre hábito e lembrança, traçada
por Henri Bergson em seu Matéria e Memória. Sendo assim, pode-se ler a
hesitação do narrador como o esforço endêmico ao exercício da rememoração
(lembrança) – que inexiste para Funes, já que o mal que acomete Ireneo descende
exatamente da perda da capacidade de priorização e síntese — que
obrigatoriamente pressupõem esquecimento. Extrapolando, seria possível
postular que na experiência cognitiva de Ireneo Funes, é como se todo estímulo
visual ou aural fosse imediatamente impresso na memória como hábito — sem
hierarquização ou contextualização prévias, nem tampouco empenho inicial de
memorização.

Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos
e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens
austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança
às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas
da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado.
(125).
79

A chave de leitura de Borges via Bergson conduz ainda a outro resultado


inusitado: por ser incorporado ao sujeito como ethos, o hábito perde sua
ancoragem na origem e pode ser visto como fundamentalmente atemporal. Talvez
seja a maior ironia do conto de Borges o fato do “cronométrico Funes”, como era
conhecido antes do acidente, tornar-se um homem cuja memória e percepção são
de tal forma infalíveis que abalam sua compreensão intuitiva do tempo como
entidade contínua e, conseqüentemente, de seu próprio ser-aí (verdadeiramente o
dasein Heideggeriano):

Não apenas lhe custava entender que o símbolo genérico cão abarcava tantos
indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão
das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro
(visto de frente). Sua própria face, suas próprias mãos surpreendiam-no cada vez.
(127)

Após o acidente, seria razoável prever que, caso perguntado, Funes


dificilmente saberia dizer que horas são.
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80

4.4

“A Contrapelo”

(...) Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações
musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três
vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia
requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram
desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a
aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-
negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo
se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um
coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um
grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.

Jorge Luis Borges


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Ao elaborar seu “Sobre o Conceito de História”, Walter Benjamin fala da


impossibilidade de resgatar o passado: “irrecuperável é cada imagem do presente
que se dirige ao presente...”. Entende-se que o desejo de fixidez é a motivação do
“materialista histórico”. Como bem articula Jeanne Marie Gagnebin a respeito da
leitura benjaminiana de Proust:

O golpe de gênio de Proust está em não ter escrito “memórias”, mas justamente
uma “busca”, uma busca das analogias e das semelhanças entre passado e o
presente. Proust não encontra o passado em si — que talvez fosse bastante insosso
—, mas a presença do passado no presente (...). (Gagnebin, 1996:15).

Esta presença do passado no presente — de fato, a rememoração da


experiência vivida (“erleben”) — é tudo a que se tem acesso. Gumbrecht
esclarece este ponto em um de seus mais significativos verbetes em Em 1926:
Vivendo no Limite do Tempo. Aliás, servirão de base para a elaboração de seu
conceito de “produção de presença”, mais claramente explorado em seu
Production of Presence, lançado em 2004.

Retornando a mares mais hermenêuticos. Retomamos Paul Ricoeur. Ao


introduzir seu conceito da tríplice mimética, Ricoeur – Agostinho já o havia
intuído em sua articulação do presente tríplice. Paul Ricoeur associa o universo
pré-figurado da semântica da ação (o que denomina mimesis 1) ao presente
tríplice agostiniano. Para que se torne inteligível, o tempo é configurado através
81

da narrativa (mimesis 2) e re-figurado pelo sujeito, que só desta forma é capaz de


apreendê-lo (mimesis 3). Wolfgang Iser diz algo semelhante ao justificar a
presença da literatura na história do ser humano: por que insistir nessas
encenações (literárias)? “The answer must certainly be the desire, not to repeat
what is, but to gain access to what we otherwise cannot have.” Dito de outro
modo, o modo narrativo dá-nos acesso a algo que sabemos intuitivamente, mas
não podemos ver a olho nu. No contexto da presente análise, é importante
observar que esta entrada no “como se” iseriano organiza a percepção e a
cognição e faz com que o olhar para o mundo constitua-se, a priori, como corte.
Ilustrativas neste aspecto são as pesquisas cognitivas executadas no campo da
inteligência artificial. Simular o olhar humano é tarefa bem mais complexa do
que a mera captação de imagens — i.e. o olhar da câmera — olhar ou perceber é
selecionar e priorizar. É precisamente esta dificuldade que o cientista Douglas R.
Hofstadter explora em seu artigo “On seeing A’s and seeing As”. Citando seu
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colega o matemático Stanislaw Ulam, Hofstader nota a diferença entre dois atos
distintos: ver e ver como:

When you perceive intelligently, you always perceive a function, never an object in
the physical sense. Cameras always register objects, but human perception is
always the perception of functional roles. The two processes could not be more
different. (16).

Isso nos importa no contexto borgeano e, mais amplamente, no estudo da


representação ou re-presentificaçao de mundos passados, especialmente porque
parece ser esta capacidade de perceber funções e contextos (o que, repetimos,
implicaria abstração) que tomamos leigamente como constantes antropológicas.
Ireneo perde esta capacidade após seu acidente. Esta distorção perceptiva torna-se
distorção mnemônica e cognitiva, já que também o passado só nos é accessível
por meio de seleção. Será que o contato possível entre aquilo que é, e o que foi,
dá-se na forma proustiana de busca e re-encenação? Como excluir certa dose de
narração desta equação, como faz Gumbrecht?
No conto de Borges entende-se que o artifício do narrador em Funes é não
apenas proposital estilisticamente, mas absolutamente necessário: conduzir,
selecionar, alertar o leitor sobre a quantidade/possibilidade de outros relatos sobre
o mesmo assunto. Ireneo Funes, neste sentido, pode ser visto como metáfora ao
campo pré-figurado da História, ou aquilo que precede o historiador. Seria ele o
82

acúmulo de verbetes de Gumbrecht? Impossível à história narrar-se a si mesma;


do mesmo modo, para Ireneo a tarefa de lembrar-se de um dia leva (em uma
variação joyceana) exatamente um dia. Exceto que na mente de Ireneo, o tempo
passado, inevitavelmente transformado em mero empilhamento de instantes, é
depósito de lixo inutilizável, e suas inúmeras possibilidades e inter-relações
causais perdem-se no tumulto de imagens desconexas.

A análise e a desmistificação do mecanismo de produção das realidades


passadas, bem como da forma através da qual as mesmas ganham estatuto de
fatos, são praticamente lugares-comuns na historiografia atual. O comentário do
historiador Hayden White parece-nos bastante esclarecedor neste contexto:
segundo White, seria absurdo supor que apenas por ser passível de narração, o
discurso histórico deva ser considerado mítico, fictício ou não-realista.

Dificilmente se poderia refutar completamente tal afirmativa. Contudo, para


que se possa chegar a uma explicação plausível da emergência dos discursos, e
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preocupações acerca da temática da memória nos cenários políticos, sociais e


culturais nas últimas décadas, é preciso ultrapassar este impasse no debate e
admitir que por mais objetivo que possa ser, o discurso histórico é
necessariamente feito por alguém, e que este alguém obrigatoriamente fala de
algum lugar. Em outras palavras, o ponto principal não é decidir se a árvore que
cai na floresta emite ou não um som, mas partindo do pressuposto de que alguém
passava por lá no exato momento da queda, a questão que se coloca é saber como
o acontecimento se torna relato e como esse relato se traduz em história. Michel
de Certeau discorre claramente sobre as implicações do local da fala do
historiador e conseqüências daí extraídas. Eis, portanto, o que nos interessa na
leitura “revisionista do revisionismo” promovida por Huyssen: a ordem do dia é
abarcar as perguntas que se esquivam às respostas imediatas, e refutar qualquer
separação radical entre memória real e memória virtual — dado que a memória é
sempre transitória, notoriamente não confiável e, sempre, sempre passível de
esquecimento.

Huyssen vê a infiltração da memória no discurso histórico como manifestação


para além de sintoma da luta atroz contra o apagamento. Mais precisamente,
interessa-lhe examinar a presença sincrônica de “convulsões mnemônicas”, e da
atrofia da consciência histórica dentro das sociedades assoladas pela febre do
83

arquivo 8 ; ele alerta: o que se passa hoje não é de modo algum análogo ao esforço
de construção de identidades nacionais que marca o século XIX; não se trata de
meramente deixar “as coisas como estão”, ou deixar o passado no passado — nem
tampouco adiantaria praticar o salutar esquecimento nietzscheano — mas sim de
fazer o passado emergir, de vendê-lo e de comprá-lo. Retorna-se à dificuldade de
que falava Lyotard: que memórias acessar? Assim como Funes, que prefere ficar
no quarto escuro a abarrotar seu cérebro com novas imagens tão inúteis quanto
serão indeléveis, o indivíduo moderno é, para Huyssen, bombardeado por
imagens/textos/ícones memorialistas — fictícios ou não — produzidos por uma
mídia ambivalente que, se por um lado o escora — concedendo-lhe lugar no
contexto “histórico” — por outro é responsável por sua desestabilização —
impondo-lhe uma overdose informativa de tal ordem que acaba por abalar não
apenas sua identidade, mas qualquer possibilidade de identificação.

Assim como o museu passa de um local de armazenamento a mass-medium


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pelo pós-modernismo (o que não é totalmente negativo, diz Huyssen), a indústria


cultural apropria-se do discurso histórico impondo-lhe o exercício da memória —
esta irremediavelmente ligada ao esquecimento, como já advertira Freud. O perigo
é que o indivíduo, por medo de esquecer torne-se, à la Ireneo Funes, incapaz de
pensar, de olhar para frente, de existir: e no fim, quando os atuais discursos
memorialistas vierem a fazer parte da história terá alguém realmente se lembrado
de alguma coisa? Não há respostas simples. Porém não creio que se possa cair na
tentação adorniana de culpar a indústria cultural pela ameaça de amnésia coletiva.
Huyssen nota que a dificuldade de compreender história e memória em sua ação
conjunta — e não como forças opostas, como sugere Pierre Nora ao traçar
distinção entre os lugares da memória e seus meios (lieux vs. milieux de
mémoire), sugerindo que os locais surgem para compensar a perda dos meios da
memória — calca-se, em grande parte, na aceitação de uma nova lógica não
dualista e que não seja dependente do discurso de perda:

Este argumento conservador (...) precisa ser retirado de seu marco de referência
binário e empurrado para outra direção, (...) que aceite o deslocamento fundamental
nas estruturas do sentimento, experiência e percepção, na medida que elas
caracterizam o nosso presente que se expande e contrai simultaneamente. (Huyssen
2003: 24).

8
Cf. Mal D’archive.
84

Eis a maior força e, paradoxalmente, a maior fragilidade na argumentação de


Huyssen. É claro que a hipótese do encurtamento de distâncias e dissolução de
fronteiras é facilmente demonstrável; é certo também que a palavra de ordem
atual é a obsolência, e que produtos natimortos ocupam as prateleiras do mercado
por dois segundos (até serem substituídos por outros). De todo modo, mesmo que
o presente seja acometido mais e mais por memórias (involuntárias?), é preciso
notar que o processo de construção de memória coletiva como somatório de
relatos individuais distingue-se — ou deveria se distinguir — do discurso
histórico. A esse respeito recorremos às observações de Derrida sobre a relação
entre testemunho e ficção no contexto de L’Instant de ma Mort, de Maurice
Blanchot: o testemunho deve admitir ao menos a possibilidade da ficção, do
perjúrio, ou da mentira. Sobretudo em se tratando do século XX que, como
observa Huyssen, opera sob a mecânica da memória traumática, há que se ter
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cuidado. Cita-se as palavras de Ricardo Piglia em texto escrito por ocasião do


aniversário de dez anos da morte de Borges:

Los narradores contemporáneos se pasean por el mundo de Proust como Fabrizio


en Waterloo: un paisaje en ruinas, el campo después de una batalla. No hay
memoria propia ni recuerdo verdadero, todo pasado es incierto y es impersonal.
(Piglia, 1980, s/n).

Escrevendo em 1997, o teórico Andreas Huyssen lançará mão do termo


“passados presentes” — trocadilho com o título Futures Past de Reinhart
Koselleck — para descrever a contemporaneidade. Huyssen vê como uma das
mais relevantes empreitadas contemporâneas a busca de explicações plausíveis à
recente emergência dos discursos da memória e à febre do arquivamento em
culturas notoriamente caracterizadas pela perda de consciência histórica. Sem
chegar a estruturas totalizantes — afinal Jean François Lyotard já advertira sobre
o fim das meta-narrativas — Huyssen aponta como possibilidade uma mudança na
estrutura da própria temporalidade. De forma análoga, Silviano utilizaria a linha
de reflexão de Paz para descrever a passagem do moderno ao pós-moderno via a
“poética da agoridade”: sendo este o conceito essencial para o entendimento do
momento do “ocaso das vanguardas” — i.e. a transição do moderno ao pós-
moderno. Silviano explica que para que se possa questionar a tradição da
ruptura, há que se questionar quatro conceitos essenciais. São eles: tempo,
85

história, ética e poética. Permeando as quatro noções destacadas está uma


transformação na apreensão da temporalidade: “o agora, como convergência dos
tempos, originalmente a visão dos poetas, transformou-se numa crença subjacente
de nossos contemporâneos” (2002). A lógica é razoavelmente intuitiva: quando
mudam as maneiras através das quais articulamos nossos passados, lidamos com
nossos presentes e vislumbramos nossos futuros, mudam também nossas acepções
de tradição e, conseqüentemente, de ruptura.

Oferecendo modelos narrativos legitimadores, a historiografia clássica nascida


no século XVIII organiza o tempo sobre as leis da causalidade e da crença
inabalável no progresso. No entanto, quando se perde a confiança no avanço da
civilização e do homem — e conseqüentemente na possibilidade de “colonizar do
futuro” — perde-se também a crença na revolução. Silviano cita o poeta Carlos
Drummond de Andrade como exemplo deste modelo — ainda que este se dissesse
poeta “do mundo presente, da vida presente.” Silviano nota que o engajamento
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político e o ideal revolucionário de Drummond teriam facilitado — induzido até


— a crença que seus atos hoje teriam o poder de modificar o amanhã. Em certo
sentido, quando propõe que o conceito de revolução seja revisto e redefinido em
termos de rebelião — fragmentação do movimento social — Paz (e Silviano)
prenunciam o multi-cuturalismo e mais seu mais novo descendente, o
transculturaismo de Wolfgag Welsh.
Huyssen ressalta que a perda da consciência histórica, concomitantemente à
invasão de discursos de memória, seria decorrente dos esforços sistemáticos de
deslegitimação que sofre a filosofia da história a partir do final do século XIX e
durante o curso do século XX. Quando a memória abandona os limites da psique
e passa a invadir o discurso historiográfico, ou a penetrar no âmbito político, ela
obriga a modificação da forma com as quais se pensa no passado e,
conseqüentemente, em tradição. É claro que — e sobre isso já nos adverte
Huyssen — história e memória não são termos intercambiáveis. Não, ao menos,
sem algumas conseqüências de ordem prática: “inevitably, every act of memory
carries with it a dimension of betrayal, and absence”. Logo, de forma bastante
esquemática, separava-se a memória — operação efetuada no presente — da
história — organização e demarcação de conhecimentos sobre o passado. Se da
primeira ocupavam-se os poetas (subjetividade), como diz Huyssen, da segunda
— e aqui Huyssen refere-se à História positivista nascida no século XVIII —
86

tradicionalmente vinculada à esfera pública, ou ao saber coletivo (objetividade).


Dentro do contexto do presente alargado, ou da “poética do agora” de Paz, a
ruptura perde sua razão de ser. Contudo, é importante observar que a tradição não
retoma necessariamente seu status. Em certo sentido, como afirmou Silviano,
ela não poderia retornar, porque jamais deixou de estar presente. Seja como for,
Huyssen tratará de advertir sobre os usos do discurso do holocausto como
memória globalizada. (2004). Logo, o que pensar quando Paz afirma que a pós-
modernidade nada mais é do que uma modernidade ainda mais moderna? Se este
for de fato o caso, o problema passa a ser a distinção entre o imenso leque de
‘tradições’ que emergirão no presente: pastiche do pastiche do pastiche ad
infinitum. Desse modo, é inevitável discordar das palavras de Jameson:

In faithful conformity to poststructuralist linguistic theory, the past as “referent”


finds itself gradually bracketed, and then effaced altogether, leaving us with
nothing but texts. (JAMESON, 1991, 18)
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Dito isso, dá-se crédito a Huyssen por resistir a postura de combate à febre
mnemônica e sugerir um processo de rememoração produtiva — processo este que
leve em conta as falhas endêmicas à globalização da memória e a função política
dos ‘acertos de contas’ com o passado. Recente no Brasil é a discussão da
abertura dos arquivos da ditadura militar. O mesmo se passa no Chile e na
Argentina. Sob esta luz, parece-nos apropriado ressaltar que, como diz Huyssen,
“a memória não pode ser substituta da justiça”. Há e sempre houve, um tênue
equilíbrio entre lembrar e esquecer e, como assinala Silviano Santiago, mesmo no
auge da vanguarda antropofágica é possível detectar o discurso da tradição.
Fraturado, apagado, morto, ainda assim o sujeito pós-moderno — que na imagem
do anjo benjaminiano é arrastado pelo tufão inexorável do tempo, mas insiste em
olhar para trás — sabe, ou intui, que um olhar para o passado é necessário para a
sobrevivência. Gumbrecht examina este fascínio com o passado e chega a indagar
se não estaria tratando de uma constante antropológica.
Hans Gumbrecht alega que o conceito de identidade permite mais de um tipo
de articulação: enquanto a identidade social pode ser meramente descritiva, a
identidade pessoal é sempre narrativa. Talvez. Entretanto, parece-nos válido
afirmar que a primeira depende da segunda, o que significa dizer que a descrição
só se permite isolar por entender-se como parte de uma história. Neste sentido, o
87

experimento em simultaneidade operaria como uma experiência de acúmulo de


fragmentos, que por mais que se tente, não são completamente desprovidos de
alguma narratividade para que se tornem inteligíveis, ainda que incompletos.
Ireneo Funes, “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme,
instantâneo e quase intoleravelmente preciso”, seria o leitor-ideal de Em 1926.
Beatriz Sarlo propõe que fosse o tempo infinito, Funes não mais se frustraria com
sua memória excessiva. Ora, em um ambiente sincronico aproxima-se bastante da
infinitude, ou da ausência de cronologia.
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88

5
(DES)APRENDER COM A HISTÓRIA?

Réaffirmer, qu’est-ce que ça veut dire? Non seulement l’accepter, cet heritage, mais le relancer
autrement et le maintenir en vie. Non pas le choisir (car ce qui caractérise l´heritage, c’est
d’abbord qu’on ne le choisit pas, c’est lui qui nous élit violemment), mais choisir de le guarder
en vie. La vie, au fond, l’être em vie, cela se définit peut-être par cette tension interne de
l’heritage, par cette interpretation de la donnée du don, voire de filiation. Cette reaffirmation
qui a la fois continue et interrompt, elle ressemble au moins a une eléction, à une selection, à
une decision. La sienne comme celle de l’autre: signature contre signature. Mais je ne me
servirai de aucun de ces mots sans les entourer de guillemets et précautions. À commencer par
le mot “vie”. Il faudrait penser la vie à partir de l‘heritage, et non l’inverse. Il faudrait donc
partir de cette contradiction formelle et apparente entre la passivité de la reception et la
decision de dire “oui”, puis sélecioner, filtrer, interpréter, donc transformer, ne pas laisser
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intact, indemne, ne pas laisser sauf cela même qu’on dit respecter avant tout. Et après tout.
Ne pas laisser sauf : sauver, pêut-être, encore, pour quelque temps, mais sans illusion sur un
salut final.
Jacques Derrida

5.1

“Falar aos Mortos”

“I began with a desire to speak with the dead.” (Greenblatt, 1998, 1). Eis a frase
inaugural de Shakespearean Negotiations de Stephen Greenblatt, um dos
fundadores do Novo Historicismo nos Estados Unidos. Não, Greenblatt não crê
que os mortos o possam ouvir, mas está certo de que é possível re-criar uma
conversa com eles. Um alento? Devaneio? Vejamos. Inicia seu diálogo-
monólogo. Projeta a voz na expectativa de obter algum indício de resposta.
Silêncio. Nada escuta exceto o som de sua própria voz que reverbera e é
89

absolutamente incapaz de saciar seu desejo (impossível) de conversar com os


ausentes:

I never believed the dead could hear me, and if I knew that the dead could not speak, I
was nevertheless certain that I could re-create a conversation with them. Even when I
came to understand that in my most intense moments of straining to listen all I could
hear was my own voice, even then I did not abandon my own desire. It was true that I
could hear only my own voice , but my own voice was the voice of the dead, for the
dead had contrived to leave textual traces of themselves, and those traces make
themselves heard in the voices of the living. Many of the traces have little resonance,
though every one, even the most trivial or tedious, contains some fragment of a lost
life; others seem uncannily full of the will to be heard. (1)

Tal qual Gumbrecht, que anseia por tocar, cheirar, ouvir, sentir o passado,
ainda que saiba ser impossível assemelha-se ao esforço de Stephen Greenblatt. O
que decorre da tentativa de falar aos mortos é uma acuidade auditiva imprevisível.
Passa-se a ouvir ecos e reverberações de milhares de outras vozes — aquelas que
nos precederam em passados longínquos e que a nós constituiu. Qual o sentido
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de se querer permanecer numa tarefa impossível?. Exatamente por sabê-la


inviável seria a resposta contida em Em 1926. Em seu pósfácio ao livro, e ao fim
de uma cadeia de questionamentos, Gumbrecht finalmente conclui que o desafio
maior contido em sua proposta não é a busca da imediação – afinal podemos
cheirar jornais antigos, examinar peças de antiquário ou ouvir gravações de outras
décadas. Além de perseguir a imediação há que se abrir a ela e num tom
Heideggeriano, “deixar que ela aconteça”. (1999: 473).

***

Na discussão sobre a passagem do modernismo para o pós-modernismo, fala-


se muito da reintegração do passado no presente. Quando indagado sobre a
diferença entre paródia e pastiche Silviano Santiago responde de forma bastante
clara e elucidativa:

Por que nós falamos de tradição hoje? Acho que nós não falamos de tradição hoje,
gratuitamente, falamos de tradição tentando exatamente compreender, por exemplo, a
diferença entre paródia e pastiche. Por que uma arte deixa de ser paródia? Ela deixa
de ser paródia porque a paródia se tornou um ritual, se tornou uma cerimônia, se
tornou uma coisa esclerosada. Portanto, a paródia deixa de ser paródia no momento
no momento em que ela é um mero recurso técnico para um jovem poeta ter acesso à
poesia. Nesse sentido, então, é que Jameson vai dizer que uma das características do
90

pós-moderno seria o abandono da estética da paródia e a aproximação da estética do


pastiche. (Santiago, 2002, 133).

Contudo, é importante observar que dentro do regime do pastiche, como o


chama Frederic Jameson em seu Pós-Modernismo (Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio) que equivale à definição de paródia sugerida pela teórica
canadense Linda Hutcheon, em seu célebre A Poética do Pós-Modernismo e que é
também, em certo sentido, a simultaneidade de Gumbrecht, o passado, ou a
tradição jamais retornam do modo que eram.

Qual seria o próximo passo, uma vez que já se mostrou o quanto o material
lingüístico, as pinceladas e as cores são capazes de não representar? (Gumbrecht,
1998 (I), 25).

Aos defensores da tese do retorno da representação, aconselha-se a revisão de


exame oftalmológico:
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(...) O tipo de literatura que o presente pós-moderno produz não pode ser medido
em relação a possíveis referentes. Mesmo que os críticos descubram que O Nome
da Rosa de Umberto Eco não descreve adequadamente o mundo medieval do
aprendizado, que Cem Anos de Solidão não tem nada a ver com formas
especificamente caribenhas de sociabilidade e que as referências entre as ações
militares e políticas da Segunda Grande Guerra em Gravity’s Rainbow estão
incorretas, isso impressionaria seus autores e leitores infinitamente menos que uma
crítica similar teria afetado seus predecessores do Realismo do século XIX. (25-
26).

Não há nada por trás do espelho. Sendo assim, retomamos a indagação de


Andreas Huyssen, o que nos resta dizer a respeito do pós-modernismo? Tudo. Se
os questionamentos ainda não suscitaram respostas conclusivas, caberá a nós,
teóricos do amanhã, continuar buscando não propriamente soluções ou conceitos,
mas como colocaria Hans Gumbrecht, “novas tarefas, tarefas essas que decerto
podem ter caráter teórico”. (Gumbrecht, 1998 (2), 167). No campo estrito dos
estudos de literatura, quando falamos de futuros em tempos parecemos retornar a
um dos pontos de partida. Frente a uma nova literatura que se apropria dos
gêneros antes excluídos, e que se quer mítica, transcendente, restituída de sua
função ética, diria Leslie Fiedler que, ou a nova crítica assume-se como
contextual ou ela morrerá:

(…) criticism is literature or it is nothing. Not amateur philosophy or objective


analysis, it differs from other forms of literary art in that it starts not with the world
91

in general but the world of art itself, in short, that it uses one work of art as an
occasion to make another. (Fiedler, 1969).

Minha opção por abordar Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo como objeto
de uma dissertação de mestrado poderia conter uma miríade de explanações
teóricas e citações infindáveis. Contudo, a resposta mais honesta que tenho a
ofertar é extremamente, (espero não estarrecedoramente), simples: fascínio.
Vontade de falar aos mortos talvez? Necessidade de integrar a vida presente aos
campos abstratos das teorias e meta-teorias sobre mundos passados? Desejo de
não fugir a discussões políticas, embora crendo, como Gumbrecht, que política e
academia devem, para o bem de todos, manter uma certa distância salutar.

E cá estamos onde começamos. Agarremo-nos, pois, a este ousado gesto de


coragem contra as paredes (in)flexíveis das torres de marfim que é Em 1926:
Vivendo no Limite do Tempo — esperando, é claro, não estar em risco. Mais
ambiciosa do que proposta de evocar presentificação de mundos passados
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Gumbrecht põe em movimento, no exercício próprio de escrita, as mais atuais


indagações acerca do papel da Historia e do estudo da historiografia hoje:

Queremos conhecer mundos que existiram antes que tivéssemos nascido, e ter
deles a experiência direta. Esta experiência direta do passado deveria incluir a
possibilidade do tocar cheirar e provar estes mundos através dos objetos que o
constituíram. O conceito enfatiza um longamente subestimado (ou mesmo
reprimido) aspecto sensual da experiência histórica — sem constituir
necessariamente uma problemática de estetização do passado. Pois um passado
tocado, cheirado e provado não se torna necessariamente belo ou sublime. (467-8).

Não é por acaso que em suas “seis regras simples para escrever História depois
de aprender com a História”, (1999: 474), o autor explicita que a renúncia da
necessidade de compreender o passado traz consigo a libertação do historiador:
não há que legitimar a importância daquilo que se escreve. Dentro do paradigma
da simultaneidade histórica, o conceito de anos-limiar perde a razão de ser. Isto
por que anos limiar significam, em última análise, momentos chaves de mudança:
pontos de virada que demarcam fronteiras entre aquilo que passou, o presente em
que se vive e o futuro — nesse sentido, contingente. Greenblatt é também um dos
interlocutores de Hans Ulrich Gumbrecht em sua tarefa (auto-imposta) de propor
algo novo em nome de sua geração:

O momento presente parece corresponder ao fim da metafísica, tal como Derrida o


descreve em Of Grammmatology; nós estamos além da metafísica mas nunca
92

realmente deixaremos a metafísica para trás. Também carecemos de alteridades


fortes para opções que não mais parecem viáveis. O Marxismo não é mais que
uma lembrança nostálgica ou embaraçosa, especialmente nas suas ressurreições e
reencarnações mais recentes (boas intenções não resgatarão uma epistemologia
ultrapassada!). A desconstrução tornou-se azeda e sectária (existe um ar de
mórmons em alguns desconstrutores hoje, com suas roupas pretas), ou foi
absorvida pelo clima interpretativo e hermenêutico geral. O charme (e a força) do
Novo Historiscismo murchou muito rapidamente. E assim por diante. Para piorar
as coisas, o autor sente que uma forte pressão está sendo feita sobre sua geração
para apresentar algo novo, algo não exclusivamente cético; mas ele não se acha
particularmente bom em textos programáticos — isto é, no gênero de texto que é
exigido aqui. Mesmo assim, o autor sente que ele e os acadêmicos de sua geração
deveriam se tornar para os acadêmicos da próxima geração o que Reinhardt
Koselleck, Hayden White e Paul Zumthor (um círculo puramente masculino, ele
admite contrito), representaram para ele. Não obstante a possibilidade do fracasso,
este livro é, por ora, o melhor que ele pode oferecer como uma resposta esta
expectativa auto-imposta. (1999: 13).

Tarefa esta que o parece inquietar e sobre a qual não deixa de discorrer com
certa regularidade: geralmente num tom usual de simpática e auto-ironia que
muito lhe convém. É este mesmo tom que Gumbrecht adota em seu ensaio, “O
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Presente em (Crescente) Expansão” que, naturalmente, se inicia em tom de


anedota acadêmica. Ao descrever, com riqueza de detalhes, os eventos ocorridos
numa noite passada no “grandioso e tradicional palco cultural parisiense”, o autor
afirma ser contra o “paredão de cimento flexível que [ele] lança suas questões
prediletas amortecidas pela cortesia”. (2002: 54):

5.2

O Impossível Local da Fala: Fluidez e A Terceira Margem do Rio

Aceitemos: a modernidade induz à abdicação de modelos teóricos e


representativos que se fiem no cogito cartesiano — este dissociando radicalmente
sujeito de objeto. Ao observador de segunda ordem é imposta a dupla tarefa de,
(1) emitir juízo acerca do mundo que o cerca, e partindo do pressuposto de que
este mundo seja de fato real ou material, e (2) fazê-lo sabendo que cada fenômeno
93

particular pode potencialmente produzir uma infinidade de percepções, formas de


experiência e representação. Ofereço uma proposta alegórica. Em uma breve
leitura do conto “A Terceira Margem do Rio”, de João Guimarães Rosa, como
ponto de partida para se entender a fluidez que caracteriza a posição do sujeito
hoje, e especialmente do sujeito-intelectual fadado a revisar pela terceira, quarta,
quinta vez, seu processo de observação de mundo.

Aqui convergem os pequenos contos epistemológicos do observador” das


conseqüências da transformação pós-moderna nas dimensões de “tempo” e
“espaço”: a experiência do outro só pode ser experienciada como experiência
individual do observador e, conseqüentemente, em relação ao outro, somente como
experiência contingente. Esta situação não exclui de modo algum a idéia de que
poderia ser importante, por motivos éticos, políticos (e muitos outros), manter —
ou encontrar — no discurso e na experiência, instâncias de autoridade
(instauradora do consenso), mas ao mesmo tempo ela presentifica o quão difícil —
desesperançosa — se tornou a busca de tal autoridade (instauradora do consenso).
(Gumbrecht, 1998, 291).
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***

Na mitologia grega, o mito da migração está sempre associado ao castigo.


Maria José Queiroz relembra a trágica saga da bela e jovem Io, filha do rei
Inacho, uma das primeiras exiladas de que se tem notícia. Após despertar a fúria
de Juno, Io é condenada a vagar por terras longínquas. (Queiroz, 1998, p.39). Em
seu livro, Estrangeiros para Nós Mesmos, Julia Kristeva define a posição do
estrangeiro em sua condição de homem errante, como “transitório perpétuo.”
(Kristeva, 1994, p. 12). Sua única esperança de felicidade, diz Kristeva, estaria
justamente na possibilidade de manter-se em permanente fuga. Mas que tem o
estrangeiro a ver com todos estes debates sistêmicos ultra-teóricos que até aqui
venho desenvolvendo? Uma leitura do conto “A Terceira Margem do Rio”, de
João Guimarães Rosa, como base de sustentação para uma definição do papel do
intelectual — obviamente inserido em um contexto, cujo lugar da fala é
influenciado por ele, mas é (ou talvez devesse ser) também uma figura cambiante,
que assume riscos. Especificamente, interessa-me analisar aquilo que Gumbrecht
vem enfatizando em suas mais recentes palestras acerca do “pensamento de risco”
e o local da universidade. O conto de Rosa, acredito, não apenas tornará a
94

substância teórica aqui tratada mais palatável, como servirá de excelente metáfora
para aqueles que, como eu, ingressam nas águas turvas dos estudos de literatura.

No conto de Rosa, temos como ponto de partida para a análise será a figura do
pai: não bastasse se auto-condenar ao exílio, ele decide passar a vida como um
síssifo, vagando entre as duas margens do rio que beira a casa da família — nas
palavras do filho: “[o pai] se desertava para a outra sina de existir, perto e longe
de sua família.” (Rosa, p.80). Atentaremos para o fato de o narrador do conto de
Rosa ser o filho, e em nenhum momento o autor inserir sequer uma linha de
diálogo na boca do enigmático pai. Sendo terceira pessoa sempre, o pai
apresenta-se como o emblema da alteridade: sempre o outro, incompreendido e
incompreensível, tanto para o filho quanto para o leitor. Levanto, pois outra
hipótese: na medida em que Rosa vincula a imagem do pai às tentativas
interpretativas do filho, pode-se dizer que pai e filho são mais do que meramente
inseparáveis, são, de fato, partes complementares de um mesmo todo. Desse
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modo, se o outro é parte inseparável do eu e se está inexoravelmente afixado a um


local, então pai está para filho (e, conseqüentemente para leitor / receptor), assim
como o Unheimlich está Heimlich. (Freud, 1985).

Calcando-nos na concepção Freudiana do Unheimlich (estranho), notaremos


que a premissa mais óbvia para o surgimento do estranho é a própria existência
do outro, que assim o reconhece — já que o estranho (Unheimlich) só é
considerado como tal por abrigar dentro de si algo familiar (Heimlich), que fora
recalcado. (Freud, 1985). Neste sentido, só se pode trazer para “A Terceira
Margem” as afirmações de Kristeva sobre a capacidade analítica superior do
estrangeiro através do olhar do filho, e de sua dificuldade em assumir o lugar do
pai. A fraqueza do filho reflete a superioridade do pai: diz Kristeva que “(...) seus
anfitriões desdenhosos não possuem a distância que ele [estrangeiro] possui para
se ver e para vê-los”.(Kristeva, 13). Seguindo lógica similar, entende-se que a
culpa do filho, culpa esta que o impede de partir como fazem os demais membros
da família, é marca de um vínculo profundo contido no cerne fraturado da
alteridade. Utilizando a termologia de Eneida de Souza, pai e filho combinados
formam o sujeito-ator e “hipérbole da vacuidade”, manifestando-se, a um só
tempo, como alteridade subjetivada e vazia objetivada (37,38). Torna-se mais
95

complexa a definição das identidades que irão compor este estrangeiro cambiante,
ora pai, ora filho.

Em seu texto, “Minimizar Identidades”, Gumbrecht fala do próprio conceito de


identidade como um constructo, possivelmente passageiro e de fato ameaçado por
um avanço em direção ao mundo globalizado. (1999). Ao debater a modificação
do comportamento e funções sociais em virtude da evolução da mídia, em seu No
Sense of Place, Joshua Meryowitz utiliza-se de uma premissa bastante pertinente
ao contexto do presente estudo: a socialização envolve um processo de devir.
Dentro deste paradigma, os seres humanos são todos tabula rasa, na qual se
inscrevem certas determinações geográficas, culturais, sociais e mesmo políticas,
que vêm a lhes conferir uma ‘identidade’. Uma vez demarcados os limites do
self — uma nacionalidade, um gênero, uma etnia — o curso natural é a
identificação com o grupo que compartilha das mesmas características, e a
afirmação da individualidade dentro da semelhança — ‘eu sou eu, mas sou parte
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de um grupo de pessoas como eu’. O indivíduo nasce estrangeiro e,


gradualmente, torna-se parte de uma comunidade. As observações de Jean
Baudrillard em seu Systéme des Objets, em relação ao comportamento do
indivíduo face às ofertas da sociedade de consumo, iluminam este embate entre o
eu e a maioria:

Advertising tells us, at the same time: “buy this, for it is like nothing else!” (“The
meat of the elite, the cigarette of the happy few!” etc.) but also: “Buy this because
everyone else is using it! And this is in no way contradictory. We can imagine that
each individual feels unique while resembling everyone else. (Baudrillard, 1998:
11).

No conto de Guimarães Rosa, a busca do pai não pode ser reduzida a um surto
de insanidade — “Ninguém é doido. Ou, então, todos.” (84) — diz o filho. De
fato, o texto de Freud, Das Unheimilich prescreve que o estrangeiro habita em
nós, e confirma: ninguém é estrangeiro, ou então todos o são. Se ser estrangeiro é
condição a priori do ser humano, então o estrangeiro desterrado há de ser aquele
que resiste ao impulso natural de assimilação, à vocação adolescente (e jamais
completamente superada de ser como resto), de pertencer a um grupo. Ou talvez,
seja aquele que após passar por um processo de devir, após tornar-se um membro
de determinado segmento, ainda descontente, queira — ou seja obrigado a —
reinventar-se em novas terras, inserindo-se em um novo contexto. Neste sentido,
96

ele não é como os outros: parte, e quando retorna, não encontra lugar, vai viver na
terceira margem do rio. Kristeva escreve que aos olhos do estrangeiro, “os que
não o são não tem vida alguma: mal existem, sejam esplêndidos ou medíocres
(...)” (Kristeva, 15). Assim, partir ou não partir torna-se quase indiferente. Ser
intelectual-estrangeiro é desenvolver um ethos a partir de uma vocação que surge
após a conclusão do processo identitário. Retornando ao conto de Guimarães
Rosa, o pai parte e o filho fica, nutrindo diariamente a culpa que vem do
reconhecimento de um elo visceral com aquele que partiu: não saudade, mas
culpa, estranhamento, o próprio Unheimlich. Isto o consome até o dia em que
resolve assumir o lugar do pai; tornar-se, ele, filho, o estrangeiro para que o pai
possa, enfim, descansar. Porém, o que o velho pai fizera por vocação, o filho
terá que fazer por contrição — “a ambas vontades” — diz. Entretanto, diante da
possibilidade de uma vida que lhe parece insuportável — ele não é como o pai,
não fora feito para isto ! — fraqueja e foge. Já o intelectual permanece.
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Imaginar a vida a partir da herança e não o inverso. Partir da própria


contradição, que para nós, latino-americanos (não, por ora, não problematizando
o termo), não nos parece tarefa impossível. A simultaneidade temporal não é
novidade para nós. E não precisamos que um teórico alemão o ateste. Mesmo
sendo este teórico o simpático Hans Gumbrecht, romanista de formação, carioca
de coração a afirmar que se tentássemos reconstituir a genealogia das formas
literárias pós-modernas, chegaríamos “menos a Finnegan’s Wake ou aos
Manifestos de Breton do que aos primeiros poemas de Borges e a seus cuentos”.
(Gumbrecht, 1998: 25).

5.3

O Intelectual e o Risco

Não são simples as conclusões em tempos de observadores de segunda ordem.


Luhmann afirma e reafirma a catastrófica certeza de que a incerteza é a única
97

invariável de qualquer equação viável na contemporaneidade. E faz isto com um


inegável sorriso no canto da boca, quase como quem quer ocultar o trabalho
Hercúleo embutido no desenvolvimento de tais pensamentos de forma que
“Ecologia da Ignorância” passa nos parecer uma descrição adequada da nossa
modernidade e não uma observação de singular acuidade.

Communication that aims at comprehension must therefore at first cultivate


uncertainty and the shared knowledge of ignorance. Since ignorance is plentiful,
this should not prove to be altogether too difficult. (Luhmann, 1998, p. 100).

Como já citado, tal e qual qualquer outro sistema complexo, cada sistema
autopoiético é desastrosamente cego para o mundo que o cerca. Ora, mas de que
outra forma seria possível falar em autonomia?. Assim segue a caminhar o
sujeito-sistêmico, ciente de que seu único alimento está contido no contínuo
processo de observação e distinção. Cada pensamento que lhe vem, cada
observação, cada construção de realidade serão sempre inexoravelmente
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elaboradas internamente.

The other side cannot be reached, it can only be imagined; for no system can
operate outside of its own boundaries. The structural coupling depends upon
language as linking device, but there is no supersystem organizing this coupling.
Language is not a system. (Luhmann, 1997, p. 69).

Como então constituir-se intelectual, observador de 3ª ordem, se estamos


presos a sistemas cegos? Como posicionar-se na junção de milhares de contextos,
bem aqui, na aurora deste novo milênio seja este nosso (instável, sem dúvida)
local de fala? E não seria este o papel do intelectual hoje? Fadado à meta-crítica
isso não o desmerece nem torna irrelevantes seus juízos, apenas os acresce em
complexidade. Logo, o local do historiador importa na medida que fica claro que
um olhar objetivo ante a qualquer realidade — seja ela histórica ou presente — é
mera ilusão positivista. Precisamente em um momento em que a História se vê
destituída de toda e qualquer função pragmática, detecta-se no Ocidente uma
verdadeira febre de passados-presentes (Huyssen, 2002) — assim como o trágico
protagonista do conto de Jorge Luis Borges, Funes, O Memorioso, sociedades
padecem do que Derrida chamou de “mal do arquivo” (1995).

O que fazer do conhecimento histórico agora que não mais se poderá aprender
com ele? — indagará o autor em uma das “janelas” que se pode “abrir”
98

“pressionando” a tecla “Help” localizada no “Manual do Usuário”. Antes de


tudo, há que reformular a pergunta. Por que insistimos em olhar para trás se não
mais aprendemos com os erros (e / ou acertos) do passado? A resposta
simplificada: há que correr riscos (!). Em seu livro Production of Presence, de
2004, Gumbrecht enfatiza a importância da experiência vivida, mesmo no âmbito
das salas de aula. E ao formular seu conceito de pensamento de risco para as
universidades, escreve:

What I find most interesting is the possibility of associating the distance from
everyday situations that is implied in both our conceptions of aesthetics and history
with the classic — and mostly self-critical — self-reference to the academic world as
an “ivory tower”. For if aesthetic experience and historicization impose the distance
of the ivory tower upon us, they also oblige us to acknowledge that this very distance
opens up the possibility of riskful thinking, that is the possibility of thinking what
cannot be thought out of our everyday worlds. (2004 126).

Este pensamento de risco coaduna-se perfeitamente com a metáfora do rio


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como entre lugar. Lugar de inconstância, fluidez, velocidade. Quanto ao lócus


do intelectual pós-moderno, o rio é emblemático por possuir uma característica de
fluidez, de eterno movimento, que remete à luta interna do estrangeiro em busca
de identidade — seja na forma de assimilação ou na afirmação da diferença.
Manter-se em repouso, reencontrar, ou re-inventar um ‘eu’ com quem se possa
conviver, ainda que em perpétuo trânsito, é extenuante:

Every attempt to describe “what I get out of presence” seems to lure me into this
slightly embarrassing staccato of juxtaposing concepts that do not easily go
together. So let me change the thrust of my question and ask, “How can we get
there?” Rather than, “What is Presence?” And as soon as I ask, “How can I get
there?”— to this intense quietness of presence – the world “redemption comes to
mind. But redemption would not be as some romantic and theological versions of
the concept, a return to a primordial state whose innocence Perhaps by singling
out, preferably on a perfect day, strong feelings of joy or of sadness – and by
concentrating on them (Gumbrecht, 2004, 137)

O rio é o próprio entre-lugar, local onde é necessário esforço para se manter


imóvel. E a imagem deste rio aplica-se à viagem, à seleção de objetos e ao ponto
de chegada — seja ele em forma da dificuldade psicológica do retorno à terra
natal — i.e. provérbio popular, “you can never go home again” — ou na
instalação da alteridade como realidade ética, auto-imposta, e sabedora de sua
condição de eterno observador de si mesmo (segunda ordem de Luhmann):
99

Mas é justamente isso que [a Gumbrecht] interessa: o sentimento, hoje ainda


pouco familiar que nosso mundo, objetos e estruturas centrais se modificam mais
devagar do que antes. É precisamente essa sensação que invade nossa experiência
tanto do mundo quanto de nós mesmos—em oposição a um constante staccato
oficial auto-referencial que continua lamentando pesos e os desafios de uma
aceleradora quota de aceleração na transformação do mundo (mesmo que
implicitamente sempre estivesse co-presente uma dose de entusiasmo com respeito
a esse tempo. E assim, ele [Gumbrecht] acha realmente interessante, apesar de
nossas queixas e eventuais custos. (Gumbrecht, 2002, 55).

5.4

CENTRO VERSUS PERIFERIA CENTRO = PERIFERIA (INFINITUDE)

Em conferência proferida por ocasião do recebimento do Premio Nobel de


Literatura em 1991, Octavio Paz refaz seu próprio percurso biográfico no intuito
de extrair dele o que seriam os primeiros germes de sua inquietação poética, “... el
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sentimiento de separación se confunde con mis recuerdos más antiguos y


confusos: con el primer llanto, con el primer miedo”. (Paz, 1991). O jovem
Octavio descobre, já em sua infância, que as pontes para o mundo que tão
convictamente erguera, as âncoras que o sustentavam e geravam nele a sensação
de habitar o presente (o “ahora mismo”), todas elas não passavam de elos
imaginários. Basta o contato com uma fotografia reproduzida em uma revista
americana para que o menino de seis anos experimente seu primeiro grande
choque com o tempo. A imagem desconcertante de soldados marchando por ruas
de uma cidade estrangeira (somente bem mais tarde identificadas pelo homem
Octavio como Manhattan) trazia notícias de uma guerra acontecida no presente.
Não que não soubesse dela, sabia: “sabía, vagamente, (...) para mí aquella guerra
había pasado en otro tiempo, no ahora ni aquí. La foto me desmentia.” (1991)
Este novo e desconfortável evento ocorrido agora, (e aqui não importa que a
guerra já tivesse acabado) passara-se não no seu México natal, nem tampouco nos
terrenos fictícios (cuja cartografia conhecia como a palma da mão) que
compartilhara com Cid, Robinson Crusoe e d’Artagnan. O pavor do menino —
desespero posteriormente convertido na força do poeta — provém da mais
absoluta certeza da exclusão: não conhecia aquelas ruas por onde marchavam os
soldados. Aquela imagem desalojava-lhe do lugar que imaginara ser só (ou
também) seu. O presente já não lhe pertencia, a imagem era prova definitiva que
100

daquelas ruas — e somente delas — poderia alguém falar legitimamente em


nome do agora:

Sentí que el mundo se escindía: yo no estaba en el presente. Mi ahora se disgregó:


el verdadero tiempo estaba en otra parte. (...) A pesar del testimonio de mis
sentidos, el tiempo de allá, el de los otros, era el verdadero, el tiempo del presente
real. Acepté lo inaceptable: fui adulto. Así comenzó mi expulsión del presente.
(1991).

A opção pela anedota pessoal é bastante eficaz, pois estabelece a diferença


através daquilo que é comum a todos — a crise da constituição da identidade, ou
a fissura inevitável que provém do contato entre o incipiente self com mundo que
o rodeia. Entretanto, a menção de clichês psicanalíticos (tampouco Paz os nega)
atende a um propósito maior na fala do poeta. Seu plano consiste em tornar
visíveis as peculiaridades desses sintomas tal qual são vividos pelos próprios
latino-americanos: “entre nosotros [a ferida] se manifiesta sobre todo en
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términos históricos. Así, se convierte en conciencia de nuestra historia”. (Paz,


1991) Paz estende à sua audiência um convite inusitado, e em certa medida,
irônico. Ao firmarem o pacto (ficcional?) estão certos de que, por alguns
momentos, compartilharão de algo verdadeiramente inédito: acesso à intimidade
do poeta. Entretanto, o que Paz lhes oferece é a total subversão de suas
expectativas. Trata-se de um novo tipo de olhar, um olhar de dentro, e o que se
vê deste olhar diz respeito não ao indivíduo Octavio Paz, vencedor do prêmio
Nobel, mas à coletividade latino-americana, isto é, à duplicidade de suas relações
com a tradição — esta necessariamente sentida como instabilidade. Ao aportarem
no México, escreve Paz, os espanhóis encontram não apenas uma geografia, mas
uma história.

Los españoles encontraron en México no sólo una geografía sino una historia. Esa
historia está viva todavía: no es un pasado sino un presente. El México
precolombino, con sus templos y sus dioses, es un montón de ruinas pero el espíritu
que animó ese mundo no ha muerto. (1991).

O discurso de Paz pode ser lido como uma curiosa retomada do diálogo
efetivamente iniciado por Silviano Santiago em 1985. Diz-se curiosa, pois as
palavras de Paz sobre a perene sensação de expulsão do presente ecoam de forma
101

notável o raciocínio desenvolvido por Silviano em ensaio que precede “A


Permanência do Discurso da Tradição no Modernismo” em 14 anos. Referimo-
nos, obviamente, ao paradigmático texto de 1971, “O Entre-Lugar do Discurso
Latino-Americano”. (Santiago, 1978).

Embora inseridos em momentos histórico-culturais absolutamente distintos —


fato que se torna aparente, aliás, não apenas nos tons adotados, mas naquilo que
visam atingir como meta política — observa-se que os pressupostos são
equivalentes. Tanto Paz, em 1991, quanto Silviano em seu call to arms de 1971
— i.e. “falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (p.1) — relacionam
as vanguardas latino-americanas à duplicidade da fundação da cultura. — i.e. as
relações de duplicidade que se estabelecem entre a tradição adquirida dos
ancestrais indígenas (primeiros habitantes do continente americano), e aquelas
impostas pela metrópole colonizadora. Lembra-se que Silviano citava Claude
Levi-Strauss para descrever o bárbaro defasado. Reproduzimos uma das citações
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retiradas de Tristes Tropiques selecionada por Silviano: “les tropiques sont moins
exotiques que demodés.” (Strauss) Retornando a Paz, nota-se que à medida que o
vai conduzindo pelos labirintos empoeirados de sua memória — a infância
passada em seu velho México (re?)-presentificada 1 através de anedotas
magistralmente orquestradas — vai sedimentando na mente do leitor uma
correlação não apenas cognoscível, mas de certa forma visceral, entre a condição
de saber-se excluído do ‘éden-presente’ e a opção, ou melhor, a necessidade da
escolha da postura vanguardista de ruptura: “para mi (...), la modernidad se
confundía con el presente o, más bien, lo producía: el presente era su flor
extrema y última (1991).

A grande virada da palestra de Paz provém da observação de que em sua


procura pelo moderno, o poeta — particularmente o latino-americano —
confronta-se com a tradição mais longínqua. Sobre a Revolução Mexicana,
escreve o poeta:

[a revolução mexicana] fue tanto o más que una revolución, una revelación. México
buscaba al presente afuera y lo encontró adentro, enterrado pero vivo. La búsqueda

1
Utilizo o termo no sentido que o emprega Hans Ulrich Gumbrecht. Ver especialmente o
capítulo de Gumbrecht. Production of Presence: What Meaning Cannot Convey. Stanford:
Stanford University Press, 2004.
102

de la modernidad nos llevó a descubrir nuestra antigüedad, el rostro oculto de la


nación (...).

Retomando “A Permanência do Discurso da Tradição no Modernismo”, cita-se


a análise da análise da viagem realizada pelos modernistas, em 1924, a Minas
Gerais: para Silviano, o caso mais interessante na discussão da presença da
tradição durante modernismo. Do relato de Brito Broca, Silviano seleciona
algumas passagens que ecoam as palavras proferidas pelo poeta mexicano. Conta
Broca que:

Tarsila teria encontrado na pintura das igrejas e dos velhos casarões mineiros
inspiração de muitos de seus painéis; Oswald de Andrade colheu tema de várias
poesias pau-brasil, e Mario de Andrade veio a escrever seu admirável “Noturno de
Belo Horizonte”. (Santiago, 2002).

Silviano nota que a postura de Tarsila em relação a Paris se modifica em


decorrência do contato com o barroco. Não quer mais ir à metrópole para “saber
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do dernier cri, mas para aprender a restaurar quadros”. (2002). “É preciso


conservar!”, escreveria Mário de Andrade em sua crônica a respeito da viagem.
Silviano grifa o conservar — grande distância do crítico que defendia o falar
contra. Sinal dos tempos? Seja como for, torna-se à contraposição paródia-
pastiche. Cá estamos de volta ao ponto de partida, Gumbrecht e seu presente que
não cessa de crescer:

A interpretação de que tenha chegado ao fim a “lei de substituição dos antiqui


pelos moderni, até há pouco considerada meta-histórica, e a vaga sensação de que
antes devíamos lamentar este fato não justificam de todo a esperança de podermos
escapar, em nossos próprios pensamentos e trabalhos, desta crise sentida por todos,
mas raramente mencionada. Nem sequer somos epígonos, porque epígonos
normais sentem vergonha, pelo menos intimamente (ou mesmo exteriormente) por
seus contemporâneos iconoclastas . Mas a nós, acredita [o autor], falta coragem de
descartar algo como passado. ( Gumbrecht, 2002, ).

****

Retomo a discussão com a qual iniciei esta dissertação – especificamente, o


modelo interficional de Roberto Simanowski. Como previamente dito, trata-se
de um passo além, mesmo de um modelo teórico tão inovador como Opera
Averta de Umberto Eco. Um “palco sem atores” diz Gumbrecht, ou seja, a
eliminação completa de instancias narrativas identificáveis. Se nos anos 60, Eco
103

escrevia sobre uma obra plural que instigasse no leitor a necessidade de efetuar
“escolhas interpretativas e operativas” (Eco, 2003), a exigência agora recai na
materialização dos elementos envolvidos nos processos comunicativos (Olinto,
2002). Somente através deste reajuste nas linhas tradicionais e mesmo pós-
modernas de teorização literária — uma atualização (refreshening) do sistema,
talvez? — será plausível a teorização acerca dessas novas formas comunicativo-
literárias — que em toda a sua inegável virtualidade não deixam de acentuar
afetos e sensibilidades, minimizando (sem excluí-las) formas de racionalização.

Um estudo de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo abre caminhos para


análises de novas e outras mídias. Fundindo cinema, artes plásticas, jogo, e
literatura, esses novos formatos propõem não apenas interessantíssimas
experiências de imersão, mas novas e inusitadas solidariedades entre
(trans)sujeitos inseridos em redes desprendidas de teleologia ou fronteiras
previsíveis "not words-on-the-page but words-in-the-world or rather words-in-
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the-head,” - escreveu Leslie Fiedler em seu “Cross the Border, Close The Gap”
publicado originalmente na edição de natal da revista Playboy do ano de 1969
(ninguém mais, a exceção de Hugh Hefner, estaria disposto a publicá-lo naquele
momento). Posteriormente transformado se transforma em libelo do projeto pós-
moderno para os estudos literários, “Cross the Border, Close the Gap” contém
provocações fervorosas a todos aqueles que vierem a se dedicar ao ofício de
criticar e teorizar a literatura. Há que se posicionar na dobradiça, “at the private
juncture of a thousand contexts, social, psychological, historical, biographical,
geographical, (…)” e olhar o mundo. E Em 1926 é um mundo: “Não há nenhuma
biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número das regiões
fronteiriças” – diz Walter Benjamin. (Benjamin, 2000, 234).

Em tempos de hyperlinks e super-highways, evocamos o profeta Lyotard.


Diria ele que o “si mesmo”, ou self, embora por si fraco, não está só, nem
tampouco afixado a um local ou ponto: ao contrário, é móvel, fluído, leve, rápido
– assim como previu Italo Calvino em suas propostas para este milênio que hoje é
nosso.

A segunda revolução industrial, diferentemente da primeira, não oferece imagens


esmagadoras como prensas de laminadores ou corridas de aço, mas se apresenta
em bits de um fluxo de informação que corre pelos circuitos sob a forma de
104

impulsos eletrônicos. As máquinas de metal continuam a existir, mas obedientes


aos bits sem peso. (Calvino, 2004: 20).

O grande apelo da teorização de Gumbrecht é, parar mim, a coragem de testar


formulações afirmativas (em um mundo tão abarrotado de negativas) acerca do
que nós hoje entendemos por termos como história, escrita historiográfica, e a
complexa leitura de tais disciplinas. Finalizando com as palavras de Gumbrecht,
há que se ter a ousadia de pensar e tratar de assuntos potencialmente perigosos
fora das muralhas da torre de marfim. Há que conjurar os mortos sim, há que
buscar saídas, alternativas. Chega de lamentações.
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