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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Abril de 2007
Livros Grátis
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Luciana Barroso Gattass
_______________________________________________
Profa. Heidrun Friedel Krieger Olinto de Oliveira
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
________________________________________________
Profa. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia
Departamento de Letras – PUC-Rio
________________________________________________
Profa. Valéria da Silva Medeiros
Universidade Federal de Tocantins – UFT
________________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Ficha Catalográfica
Gattass, Luciana
CDD: 800
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A minha mãe, Márcia, por me ofertar o colo forte e seguro, sempre e por onde
quer que eu vá.
Ao meu pai, Sergio, por ter contradito o poeta e me ensinado que o verdadeiro
amor é eterno e para sempre dura.
À Professora Eliana Yunes, por aceitar fazer parte desta banca e por todas as
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À Professora Valéria S. Medeiro por atravessar o Brasil para estar nesta banca
examinadora.
Ao Sergio Marchado pelo melhor e maior colo deste universo em eterna expansão.
À Stella Caymmi pela extraordinária amizade e genuína alegria que traz à minha
vida.
À Mariana Maia Simoni pela amizade tão generosa e por todas as trocas que
vieram e virão.
Palavras-chave
História e memória; temporalidade; narrativa; mímese; historiografia; passado;
“produção de presença”.
Abstract
Key-Words
W. Heisenberg
1
Heisenberg, Physics and Philosophy: The Revolution in Modern Science (New York:
Harper and Row, 1958). Lectures delivered at University of St. Andrews, Scotland, Winter 1955-
56. Versão em inglês da passagem: “The elementary particles in Plato's Timaeus are finally not
substance but mathematical forms. "All things are numbers" is a sentence attributed to Pythagoras.
The only mathematical forms available at that time were such geometric forms as the regular
solids or the triangles which form their surface. In modern quantum theory there can be no doubt
that the elementary particles will finally also be mathematical forms but of a much more
complicated nature. The Greek philosophers thought of static forms and found them in the regular
solids. Modern science, however, has from its beginning in the sixteenth and seventeenth centuries
started from the dynamic problem. The constant element in physics since Newton is not a
configuration or a geometrical form, but a dynamic law. The equation of motion holds at all times,
it is in this sense eternal, whereas the geometrical forms, like the orbits, are changing. Therefore,
the mathematical forms that represent the elementary particles will be solutions of some eternal
law of motion for matter. This is a problem which has not yet been solved”.
11
1
Esboçando Recomeços
Chego assim ao fim desta minha apologia do romance como grande rede. Alguém poderia
objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia
daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior descoberta de sua própria
vontade. Ao contrário, respondo quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma
combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo
pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.
Mas a resposta que mais me agradaria dar é outra: quem nos dera fosse possível uma obra
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concedida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu
individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que
não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a
pedra, o cimento, o plástico...
Ítalo Calvino
1.1
Passagens
Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue
firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá
o que é felicidade, e pior: nunca fará algo que torne os outros felizes.
Friedrich Nietzsche
no Limite do Tempo com uma advertência: seu livro não possui início nem fim
definidos:
Simplesmente comece por um verbete que lhe interesse em particular. De cada verbete,
uma rede de referências cruzadas o levará a outros verbetes relacionados. Leia no ritmo
que seu interesse determinar (e na medida em que sua agenda permitir). Você
estabelecerá, então, a sua própria trilha de leitura. Da mesma forma que não existe um
começo obrigatório, tampouco existe um final obrigatório ou definitivo para o processo de
leitura. (Gumbrecht, 1999, 2).
What most interests me today in the field of history, the presentification of past worlds —
that is, techniques that produce the impression (or, rather, the illusion) that worlds of the
past can become tangible again — is an activity without any explanatory power in relation
to the relative values of different forms of aesthetic experience. (2004, 94-95).
que, a mim, inquietou e inquieta ao escrever estas linhas — após dois anos de vasta
leitura tanto do próprio Gumbrecht quanto daqueles que o sustentam em suas teorias.
Não haveria uma obrigatoriedade de pensar novas funções para o passado que
transcendessem de fascínios ou interesses?
What makes you so sure that mathematical logic corresponds to the way we think? Logic
formalizes only a very few of the processes by which we actually think. The time has
come to enrich formal logic by adding to it some other fundamental notions. What is it
that you see when you see? You see an object as a key, a man in a car as a passenger,
some sheets of paper as a book. It is the word ‘as’ that must be mathematically
formalized.... Until you do that, you will not get very far with your AI problem. (Ulam,
SEHR, volume 4, issue 2: Constructions of the Mind, 1995).
14
(…) it seems fair to ask: once the memory boom is history, as no doubt it will be, will
anyone have remembered anything at all? If all our past can be made over, aren’t we
just creating our own illusions of the past while getting stuck in an ever shrinking
present — the present of short term recycling for profit, the present of in-time
production, instant entertainment, and placebos for out sense of dread and insecurity
that lies barely underneath the surface of this new gilded age at another fin de siècle?
Computers, we were told, would not know the difference between the year 2000 and
1900 — but do we? (Huyssen, 2003, p. 21).
O Y2K, ou o bug do milênio, prometia fazer com que sistemas confundissem 2000
com o ano 1900 gerando, pois, um apocalipse de proporções impensáveis. Tal, bug,
ou inseto, resultante de nosso próprio erro de cálculo, deglutir-nos-ia de forma tão
15
Esse é um problema absolutamente peculiar. Sua causa é banal, para não dizer ridícula.
Quando o computador passou a ser uma ferramenta comercial nos anos 50, sua
memória ainda era muito cara. Para se ter uma idéia, em 1965 um megabyte de espaço
de memória magnética (suficiente para gravar um texto de 300 páginas) custava US$
761. Hoje [em 1999], o mesmo espaço no chamado disco rígido de qualquer PC custa a
pechincha de US$ 0,75. Então, para economizar o espaço que era muito caro, os
engenheiros da época adotaram a prática de cortar e abreviar tudo o que fosse possível,
inclusive os dois primeiros dígitos comuns a todos os anos do século XX - 1958 era
registrado apenas como 58 para efeito de processamento. Ninguém se deu conta que,
quando houvesse a passagem de 1999 para 2000, o computador não entenderia porque
00 tem que ser maior que 99. Como todos os computadores – e os chips embutidos
neles – funcionam amparados em datas, a conclusão do raciocínio absolutamente
lógico das máquinas será a de que 00 significa 1900 e não 2000. Resultado: ou ele
trava ou remete o trabalho para o início do século XX, com conseqüências desastrosas
como, por exemplo, uma conta de cartão de crédito computar 99 anos de juros.
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(Godoy, 1999).
Assim como Godoy, Huyssen digitava seus anseios e receios sem qualquer indício
de que o Y2K entraria para os anais dos grandes fiascos que costumam irromper em
momentos de grandes transições. Contudo, cabe perguntar o que teria ocorrido caso
contrário, ou seja se as previsões apocalípticas houvessem se concretizado. Bem, de
início, estaria a frágil raça humana atirada de volta a mil e novecentos e um. Dada a
importância das temática da temporalidade neste estudo, a ironia beiraria o
catastrófico, sem dúvida. Contudo, Thomas Edison não retornou da tumba, e a virada
ocorreu, para desapontamento geral, como outra qualquer: tímida, regada a
champanhe, e transmitida ao vivo pela rede americana CNN para um planeta apático.
“This is the way the world ends. / Not with bang, but with a whimper.” - escrevera
T.S. Eliot no ano de 1925.
Teríamos saído impunes? Creio que não. Outros eventos inesperados não
tardariam a abalar estruturas regentes e, logo transformados em extensos programas
televisivos com sóbrios ares de notícia, inundaram nossas mentes e telas.
Reafirmada, portanto, a sociologia do saudoso sociólogo alemão, Niklas Luhmann,
que definia a contingência como palavra de ordem da era contemporânea. Disso
restou uma certeza: o presente — seja o ínfimo milionesimal de Huyssen, ou
expansivo como o quer Gumbrecht — encontra-se invadido como nunca de objetos
16
do passado: modas retrô, revivals de toda a sorte: “Como tudo indica, o nosso olhar
para o futuro há algum tempo é devolvido por um vidro branco fosco,
intransponível.” (2002: 60). Temor do que há por vir? Retornemos ao ano de 1926.
Admitindo que sua busca é motivada por um desejo de representação natural, o que
talvez pudesse ser compreendido como história sensível. Em artigo intitulado
1
Para uma visão mais aprofundada recomenda-se dois textos do próprio Gumbrecht, o primeiro
já citado “Narrating the Past as If it Were our own Time” contido na coletânea Making Sense in Life
and Literature, e o segundo intitulado “Mundo Cotidiano”e “Mundo da Vida”Como Conceitos
Filosóficos: Uma Abordagem Genealógica. In Castro Rocha, J. (org.) (1998).
17
Claro está que sua busca um modelo representativo para o passado que privilegie
também o aspecto sensório da experiência e das vivências não poderá esquivar-se de
certo grau de construtivismo: sim, o mundo só nos é acessível via cognição (e isto
não implica na negação da existência de realidades materiais) e ainda que uma
aproximação total – isto é, não mediada – de uma realidade passada seja impossível, a
investigação do próprio fascínio produzido pela história contém potenciais imensos.
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O que fazer com o conhecimento histórico agora que não mais se poderá aprender
com ele? — indagará o autor em uma das “janelas” que se pode “abrir”
“pressionando” a tecla “Help” localizada no “Manual do Usuário”. Antes de tudo, há
que reformular a pergunta. Sem temer as conseqüências (imprevisíveis) de tentar
tornar o passado novamente disponível — i.e. “pronto para pegar” (Zuhandenheit),
Gumbrecht abre caminhos inéditos para formulações afirmativas (em um mundo tão
abarrotado de negativas) acerca do que nós, hoje, acreditamos que a história
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realmente seja.
Escrever na rede não se refere à adaptação do processo produtivo usual para uma nova
mídia de representação, mas caracteriza antes, um procedimento que se funda nas
possibilidades estéticas específicas da mídia digital, acentuando, portanto, a diferença.
Esta literatura não terá o livro como estágio final, e consiste de textos impossíveis de
serem lidos da esquerda para direita e do início ao fim, porque o leitor precisa, primeiro
configurá-las e às vezes até escrevê-las. (Olinto, 2005:42).
Como uma hipótese parcial deste encaminhamento, cabe introduzir uma terceira
categoria de subjetividade: a transubjetividade, baseada no conceito de
transculturação (transculturality), desenvolvido pelo critico da cultura alemão
Wolfgang Welsch.
The transcultural webs are, in short, woven with different threads, and in a different
manner. Therefore, on the level of transculturality, a high degree of manifoldness results
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again – it is certainly no smaller than that which is was found between traditional single
cultures. It’s just that now the differences no longer come about through juxtaposition of
clearly delineated cultures (like in a mosaic), but result between transcultural networks,
which have some things in common while differing in others, showing overlaps and
distinctions at the same time. The mechanics of differentiation has become more complex
– but it has also become genuinely cultural for the very first time, no longer complying
with geographical or national stipulations, but following cultural interchange processes.
(Welsch, 1999: 8).
Em lugar da oposição ‘eu’ e o ‘outro’, o que podemos daí inferir é uma nova
categoria: o ‘transujeito’ — uma espécie de leitor-feito-autor-feito-ator-feito-(com)
texto. Acentuando um verdadeiro enlace funcional entre autor e receptor, o crítico
das novas mídias norte-americano, George Landow, sugere uma reformulação da
concepção de sujeito. A leitura de Landow, acoplada a uma análise das teorias de
presença de Gumbrecht e, especialmente, ao estudo do experimento Em 1926:
Vivendo no Limite do Tempo, sugere o abandono do conceito de sujeito centralizado,
e a configuração deste único-múltiplo como ponto nodal inserido em uma rede.
Curiosamente, este sujeito-múltiplo-online interage com seu ambiente de forma
predominantemente associativa, sempre visando extrair desses objetos estéticos em
emergência experiências sensíveis. Bem entendido, tal abertura aos afetos não é, de
forma alguma, algo novo. Essas propostas radicais encontrariam mais tarde
ressonâncias mais tênues em modelos como o de “produções de presença”, em
20
referencia interna que este (A) atribui ao outro (B). Para Luhmann, torna-se
problemática uma teoria fundamentada na correspondência entre modelos
interpretativos e uma realidade exterior e anterior. Conseqüentemente, também as
teorias hermenêuticas que se orientam neste mesmo princípio. Nesta situação, creio
ser a tarefa de estudiosos da literatura não simplesmente ignorar as transformações
em curso — que afetam diretamente o sistema literário — mas investigar seus
possíveis novos lugares, funções e contextos.
fluído, leve, rápido — assim como previu Ítalo Calvino em suas propostas para este
milênio que hoje é nosso.
qual o estrangeiro descrito pela teórica da literatura, Julia Kristeva, este trans-sujeito
formado de multiplicidades, inescapável observador de terceira ordem, jamais
percorre um solo firme, pois “todos os objetivos deveriam se consumir e se destruir
no louco impulso do errante em direção a um alhures sempre recuado, insaciado,
inacessível”. (Kristeva, 1994). Não há tréguas ou domicílios possíveis; não há terra
prometida. Há apenas travessias múltiplas em terrenos gradativamente aumentados
em complexidade. Neste sentido, essas obras de arte em constante estágio de
emergência habitam eternamente a terceira margem do rio de Guimarães Rosa.
Relembrando as belíssimas palavras de Tzvetan Todorov em seu Aller Retour: após
visita à sua terra natal, Sofia, declara o autor que “je vis désormais dans un espace
singulier, à la fois dehors et dedans: étranger chez moi (à Sofia), chez moi à l’étranger
(Paris)”. (Todorov, 1996). Sendo o sistema literário interligado ao social e cultural
(Schmidt) entende-se que ao tratar de literatura digital em um mundo de fronteiras
mutantes, torna-se necessário abolir certas distinções binárias típicas, tais como centro
e margem, fora e dentro, local e global, como o faz Gumbrecht em seu modelo de
códigos e seus corolários código em colapso, que descrevem visões da cultura do
interior do ano de 1926.
Independentemente por onde você entrar ou sair, qualquer seqüência de leitura com
uma certa extensão deve produzir o efeito ao qual alude o título deste livro: você deve
se sentir em 1926. (1999: 11).
teóricas acerca de modelos de redes. E por que isso nos importa? Por ser o modelo
de redes o paradigma no qual se insere o ensaio em simultaneidade histórica de
Gumbrecht. Ao refletir sobre seu método de seleção e análise de fontes no ensaio
“Depois de Aprender com a História”, ele coloca:
A análise das fontes foi dirigida não para uma fórmula totalizante ou para uma espécie de
denominador comum do ano em questão, mas para a identificação de uma multiplicidade
de tópicos que tenham prendido a atenção em 1926. (22).
(...) não se trata de uma coincidência se a metáfora tecnológica da rede [tenha] gozado
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de crescente popularidade nas nossas disciplinas, pois ela sugere com otimismo uma
analogia entre aquelas técnicas de simultaneidade que os cientistas e os engenheiros
parecem controlar e a simultaneidade como dimensão histórica e sociológica que só agora
começamos a tematizar. (22).
Não surpreende que tal multiplicidade gere questionamentos: que tipo de realidade
se constrói com este acúmulo de verbetes? Como qualificar tais inter-relações?
Mas se hoje questionamos a função pedagógica da história — uma função que parece
visível também no próprio hábito de pensar e representar a história como encadeamento
de eventos numa seqüência narrativa — seria necessário elaborar simultaneamente novas
funções e novas formas de escrita para uma historiografia que se quer não-narrativa.
(Olinto, 2001, 121).
Se não são causais, então há que se investigar as novas formas de associação que
ocorrem entre os pontos nodais da rede de Gumbrecht. Feito isto, talvez pudéssemos
nos aproximar de uma concepção mais precisa daquilo que ele —aqui representando
“pessoas educadas dentro da cultura ocidental” (Gumbrecht, 199:11), e com a
autoridade que apenas o saber atualizado com a rapidez de um processador de última
geração lhe poderia conferir — acredita que a História seja. Este me parece um
caminho rico em possibilidades tanto de prática como de teorização. Sigamos por
ele.
25
2
1926: Um Ano Bastante Comum
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2.1
Espaço-Tempo
1926 - RELÓGIOS
passed The New York Herald bureau with the window full of clocks. ‘What are all the
clocks for?’ she asked. ‘They show the hour all over America.’ ‘Don’t kid me’.”
(Hemingway, 15).
Não fica claro se Georgette entendeu a explicação de Jake sobre os relógios na vitrine
do New York Herald. Será que ela sabe que o globo é dividido em 24 fusos horários?
Ela sabe que, no momento em que conversa com Jake, a hora em Paris é diferente da
hora em cada um dos 23 fusos? [ver Polaridades] Em todo caso, a simultaneidade
temporal não é uma forma de experiência que interesse a Georgette. A sua vida
depende de encontros casuais nas ruas e cafés de Paris, e ela não precisa de outro
horizonte além deste mundo limitado.
Existe o medo de que a verdade não possa ser (e nunca tenha sido) acessível. Como
um ideal reverenciado, a verdade está fortemente presente. Mas, além disso, as pessoas
querem perceber o mundo e os fenômenos como eles são — isto é, sem distorções de
perspectiva. Eles não querem um saber e uma compreensão que estejam sujeitos à
revisão e à mudança histórica. Eles ainda acreditam que a posse da verdade será um
fator de aprimoramento e das condições da experiência humana. Mas quanto mais
forte este desejo e esta esperança, menos realistas eles parecem. Tal situação afeta
diretamente o trabalho da maioria dos intelectuais, e parece também ter impacto sobre
o comportamento daqueles que não se preocupam com questões filosóficas. Como
reação a esta desintegração da verdade como critério último para o saber, surgem duas
atitudes diferentes. Por um lado os intelectuais se queixam de que um mundo sem
verdade é um mundo caótico. Eles buscam as causas dessa crise e as formas de
resolvê-la. Por outro lado pensadores, sem reprimir a consciência da inevitável
Incerteza, tentam chegar a um acordo com ela. Eles puseram de lado, adiaram ou
27
1998 – O TERMINAL
Aeroportos são emblemas das relações espaço / tempo pós-modernas. Pois uma frase
como “eu estou em Nova York”, se for pronunciada no saguão do aeroporto Kennedy
de Nova York por um passageiro sem cidadania americana e sem o visto americano,
tem uma pragmática que, há algumas décadas, só era imaginável em casos extremos de
exceção. Esse passageiro pode ter visto, na aterrisagem, o Empire State a uma
distância que a fenomenologia do espaço parece caracterizar como “alcance potencial”,
no qual o público da virada do século acreditava que os objetos da tela eram dados à
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sua experiência e ação. Na verdade, para um tal passageiro, o Empire State está fora
do alcance potencial. O mundo do saguão do aeroporto, ao contrário, é parte do
alcance real, mas esse alcance não é Nova York, mas uma esfera sem nome que na
experiência se unia aos saguões de trânsito de todos os outros aeroportos. Talvez
mesmo hoje proceda a tese de Michel Serres, de que esses espaços de trânsito ou de
distribuição (échangeurs) estejam no centro da nossa maneira de viver (1987, p. 60).
Pois diferentemente de Nova York, visível agora mesmo para o nosso passageiro,
Montreal ou Cidade do México, que ele (ainda) não pode ver, podem estar ao seu
alcance potencial — seja como for, ele poderá encontrar e comprar inúmeros vôos de
conexão para lá, se dispuser do visto necessário. (1998 (I), 279).
Martin Heidegger estabelece, em Sein und Zeit (ser e tempo) uma relação explícita entre
as novas possibilidades tecnológicas de atravessar distâncias e suas próprias análises do
espaço como uma condição estrutural para a existência humana (Heidegger 102 ss.)
Através de uma daquelas hifenações que são características de seu estilo, como um
filósofo e escritor, Heidegger transforma Entfernung (distância) em seu oposto Ent-
fernung (encurtamento da distância). Este jogo de palavras leva Heidegger à tese —
análoga e derivada da prioridade que ele dá à Zuhandenheit (pronta para o manuseio)
sobre o Vorhandenheit (presente às mãos) — de que, de um ponto de vista existencial, a
proximidade (o resultado do encurtamento da distância) tem prioridade sobre a distância
(411).
[The] breadth of appeal is built into hermeneutic theory itself, which conceives of
interpretation as our stance in being: we cannot but interpret, we are what we are by
virtue of acts of interpretation. Hence the “universality claim”
(Universalitaetsanspruch). (Wellbery, 1990: 2).
Uma crítica sistêmica da hermenêutica teria que começar com a reformulação da psique
humana (“sistemas psíquicos”) e das sociedades humanas (“sistemas sociais”) intrínsecas
aos “sistemas autopoiéticos.” (Gumbrecht, 1999:471).
Para esclarecer e pontuar ainda mais o elo entre a historiografia proposta por
Gumbrecht e as teorias de Luhmann, tomo as palavras de Heidrun Olinto em seu
ensaio, “Voracidade e velocidade: Historiografia literária sob o signo da
contingência”:
Teorias que adotam a contingência como objeto de sistematização precisam lidar com de
transição sem permanência, com disparidades, fenômenos regionais e locais não
universalizáveis. Essa contingência confere aos fenômenos um estatuto particular fundado
sobre incertezas e constantes processos de redefinição. Nesta situação, emergem as teorias
sistêmicas de Luhmann como promissoras e vantajosas, uma vez que abandonam
hipóteses de identidade e favorecem suposições de diferença. O seu modelo, baseado na
30
hipótese de diferenciação entre sistema e entorno, permite uma análise da sociedade como
funcionalmente diferenciada que insere, entre outros sistemas sociais parciais, o sistema
artístico. Um olhar sobre o conjunto de suas propostas evidencia uma impressionante
dimensão multi-estrutural e policontextual, correspondendo à despedida enfática de
quaisquer fundamentos ontológicos estáveis. (Olinto, 2001: 1).
Gumbrecht aposta na premissa de que seria possível reunir num só quadro teórico
duas correntes distintas: de um lado, a “destemporalização” do cronópio do tempo
histórico e, de outro, a crise da representabilidade, apontada e divulgada por Michel
Foucault.
O que talvez nos separe mais claramente do início da modernidade é a sua confiança —
confiança cega, como muitas vezes constatamos — no conhecimento do observador de
primeira ordem. Entre o início da modernidade e nosso presente epistemológico há um
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Penetrando o mundo dos objetos como uma superfície, decifrando seus elementos
como significantes e dispensando-os como pura materialidade assim que lhes é
atribuído um sentido, o sujeito crê atingir a profundidade, i.e. a verdade última do
mundo. A interseção dessas duas polaridades — entre sujeito e objeto, entre superfície
e profundidade — constitui, séculos antes da institucionalização da Hermenêutica
31
2.2
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TEMPS : Eternel sujet de conversation. Cause universelle des maladies. Toujours s’en plaindre.
THÈME : Au collège, prouve l’application, comme la version prouve l’intelligence. Mais dans le
monde il faut rire des forts en thème.
Gustave Flaubert
(...) Não conheço qualquer outro texto que proporcione aos leitores de hoje uma
ilusão tão poderosa de experimentar por dentro de um mundo cotidiano passado.
Além da arbitrariedade descentralizadora da ordem alfabética, dois aspectos
contribuem para este efeito. Flaubert trata como citações os lugares-comuns que
compilou, como fragmentos de uma realidade histórica — e não como descrição desta
realidade. Eles aprecem como citações (embora não estejam cerradas entre aspas)
porque não existe voz ou discurso autoral que os comente ou que os coloque numa
perspectiva histórica. (Gumbrecht, 1999, 485).
32
ARTISTAS DA FOME
(...)
Uma dinâmica sadomasoquista semelhante atrai milhares de espectadores pagantes
para as jaulas dos artistas da fome — embora isto seja freqüentemente camuflado sob
vários discursos filosóficos e até teológicos. As massas que ficam diante das jaulas
admiram o paradoxo de uma existência humana que, isolada de seu alimento terreno,
adquire uma forma quase transcendental: “Nós bebemos o vento, provamos os gases /
fumamos gordura com óleo vermelho-flamejante / nós saboreamos, e quando neva
revolvemos o solo. A boca apaziguada” (Becher, 134). [Ver Imanência versus
Transcendência] (1999:30).
Vejamos então:
nesta tendência, mas nem sempre fica claro se os espaços transcendentes que eles
denotam devem ser levados a sério ou se são puramente ornamentais (321).
REPÓRTERES:
Em sua edição de 26 de junho, a revista Die literarische Welt (O Mundo Literário) traz
um debate sobre “reportagens e literatura”. Ao lado de importantes autores nacionais
como Max Brod, Alfred Döblin, Leohnard Frank e Heirich Mann, o jornalista Leo
Lania analisa o impacto do jornalismo nos estilos da literatura contemporânea. Lania
se concentra na relação entre o que chama de voz penetrante do presente e um estilo
particular de pensamento: “A penetrante voz do presente não pode ser ignorada. Ela
arrasta os mais românticos de seus cantos reclusos para a impiedosa luz do dia. Lá
todas as coisas ganham novas formas e cores, e seu significado e existência se revelam
para aqueles que têm coragem de medir seus contornos sem pretensão. Olhar para elas,
ouvi-las, experimentá-las novamente as aproxima da experiência vivida” (Lania, 322).
Vindo no final de uma seqüência de verbos — “medir”, “olhar”, “ouvir” — que devem
caracterizar a relação do repórter com o mundo — o conceito de Erleben recebe uma
ênfase específica no texto de Lania. Ele volta na forma do incomum substantivo der
Erleber (‘o experimentador’) numa série de citações, artigos e resenhas recentes, com
os quais o editor de Berlim Eirich Veiss Verlag anuncia a décima quinta edição do
livro Der rasende Reporter (O Reporter Furioso), de Ergon. (1999, 241).
1
Cf. Termo que toma da historiografia de Michel Foucault precisamente por constatar o caráter
antiparadoxal da tendência de dispositivos serem transformados em distinções binárias. Ver.
Gumbrecht (1999) p. 483.
35
(...) eu chamo estas relações — os modos pelos quais artefatos, papéis e atividades
influenciam os corpos — dispositifs ou dispositivos. Coexistindo e se sobrepondo no
espaço de simultaneidade, grupos de dispositivos são frequentemente zonas confusas
de convergência e tendem, portanto, a gerar discursos que transformam esta confusão
na — antiparadoxal — forma de opções alternativas (digamos, Centro vs. Periferia, ou
Individualidade vs. Coletividade, ou Autenticidade vs. Artificialidade) (1999, 483).
história logo a história não existe”: “Mas o que é importante? Não se trata antes do
que é interessante?” (Veyne, 1983: 29). Isso nos leva a crer que, se a disposição
maior de Em 1926: Vivendo no limite do tempo é tentar atender ao desejo (em última
instância impossível) de “falar aos mortos”, a aposta básica localiza-se na crença de
que a simulação de imediação trará alternativas a tentativas de compreender o passado
como encadeamento de eventos causais, dele derivar leis de mudança, ou
simplesmente extrair lições que se possam utilizar no futuro.
2.3
Leia as Instruções!
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2
Evidentemente que o livro está voltado para a comunidade acadêmica. Gumbrecht deixa este
fato claro ao falar de seu compromisso com aqueles que o antecederam: “o autor sente que uma forte
pressão está sendo feita sobre sua geração para que ela apresente algo novo. (GUMBRECHT, 1999. P.
12). Por outro lado, Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo tornou-se um best-seller nos Estados
Unidos na ocasião de seu lançamento. (OLINTO, p??).
37
Sei obviamente que um livro nunca chegará tão perto da ilusão de tocar, cheirar ou
saborear mundos passados como um filme ou museu. Isso explica as duas questões
que mais me dominaram ao escrever este livro: até onde se pode ir num discurso
historiográfico para satisfazer o desejo de tornar presentes mundos passados? Há
funções específicas nesta abordagem que um texto possa cobrir com maior eficácia que
outro meio? (1994. p. 18).
Que vem a ser imediação completa? Como sentir-se em 1926 quando lhes são
negados imagens, sons, cheiros e rastros deste ano comum, a princípio selecionado
aleatoriamente? A propósito, não obstante a ressalva contida curiosamente na seção
onde enumera certas “regras de bolso” para a escrita da História, Gumbrecht admite
um possível interesse familiar que o poderia tê-lo influenciado na escolha do ano (a
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crença de que um de seus avós teria morrido em 1926). Isso me leva a concluir que a
intenção do teórico-autor, embora ele negue, atende ao comum desejo intelectual de
escovar seus materiais a contrapelo, como colocaria Walter Benjamin 3 — que,
incidentemente, participa como figurante no quadro múltiplo de Gumbrecht. É
interessante notar as palavras do próprio autor acerca da escolha aleatória de um ano
“não limiar”:
Em relação ao ano de 1926, quero enfatizar que ele não atende ao requisito clássico de ser
ano limiar nem antecipa qualquer aniversário público. Inicialmente, eu o escolhi como
um emblema do acaso, porque ele parece ser um dos poucos anos do século XX para os
quais nenhum historiador jamais atribuiu uma relevância hermenêutica específica. (1999:
475).
3
Cf. Benjamin, Walter. “Sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas: Magia e
Técnica, Arte e Política. (Trad. Sergio Paulo Rouanet). Editora Brasiliense: São Paulo, 1996.
Evidentemente que aqui adapto o termo a meus propósitos. Qualquer comparação estrita com o
sentido que lhe atribui Benjamin recairia – assim espero — fora do escopo deste trabalho.
38
2.4
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“Tutmania”
4
O que não impede Gumbrecht de prestar homenagem a um dos expoentes do movimento,
Stephen Greenblatt, tampouco de ironicamente adicionar o nome de seu colega Hayden White nos
agradecimentos: “por imaginar Viena durante aquele ano” (550).
39
As experiências arrebatadoras (...) foram muitas, mas agora, olhando para trás,
acho que foi quando a última das ataduras deterioradas foi removida e os traços do
jovem rei foram finalmente revelados, que foi alcançado o auge das minhas
emocionantes impressões. Finalmente o Jovem Faraó estava diante de nós: um
soberano obscuro e efêmero, deixando de ser mera sombra de um nome, havia
reingressado depois de três mil anos, no mundo da realidade da História! Ali
estava o ápice das nossas longas pesquisas! A tumba tinha nos entregue seu
segredo; a mensagem do passado tinha atingido o presente, apesar do peso do
tempo e da erosão de tantos anos. (xxxiii).
***
5
Grifo meu.
40
Se as filosofias políticas que advogam a Ação direta cobrem um espectro tão amplo
que inclui do fascismo ao anarquismo, todos os seus defensores compartilham a tripla
convicção de que o mundo de hoje é permeado por uma confusão medrosa, que ele
precisa, portanto, retornar urgentemente ao estado de ordem, e que esta só pode surgir
da certeza específica de intuições individuais. Dentro desta visão de mundo carregada
de emoção, o medo de perder o controle é ainda maior que o desejo de clareza. (1999:
296).
The public description of time conceives of the present as the differential of the past
and the future, that is, as the time for decision, and this leads to new, highly organized
forms of recursivity. Memory and oscillation, selectivity of reconfirmations and
uncertainty of the future, are now unavoidable facts of social life. 6
6
International Review of Sociology Mar97, Vol. 7 Issue 1, p67, 13p.
41
Caso não tenha ficado claro o que [o autor] pretendia dizer com “presente em
expansão” acrescentamos alguns comentários esclarecedores. Ele não está pensando
no nível de descrição fenomenológica que, segundo Husserl, define o tempo como
“forma de vivência”, porque intuitivamente fica claro que o momento do presente no
fluxo (fenomenológico) da consciência, o momento de transição entre o eco do que
acabou de passar e a antecipação do próximo momento, que este momento vivencial do
presente entre uma percepção apenas física e a sua interpretação semântica resiste, em
grande parte, à mudança histórica. (2002, 55).
Why should we describe the future? And how can we do so when what is described is not
yet visible in the present? This is precisely the point to be examined here. At the same
time there is an intentional distance to perspectives of knowing and wanting. (1998: 63).
Antes então de esboçar prognósticos — afinal como saber qual será o futuro se este
ainda não está visível no presente? Por que desenvolver projetos ou criar
expectativas a respeito de um tempo ainda inexistente? — Luhmann decide
investigar as manifestações do futuro no presente.
My point of departure is that there is no right answer to any of these questions. All
statements about the future depend upon the society in which they are formulated.
Concepts of time and concepts of history. (1998: 63).
7
Cf. O ensaio de Gumbrecht “O Presente em (Crescente) Expansão” IN: OLINTO, H.K &
SCHØLLHAMMER, K. E. (Orgs.). Revista PALAVRA No. 9: Volume Temático: Em Torno dos
Estudos de Literatura. Rio de Janeiro: Editora Trarepa Ltda., 2002. pp.53-69.
42
Futuro
Provável Improvável
2.5
Autopoiesis
Pode ser que a loucura já estivesse em mim, não nego, mas peço que acreditem que o
único modo de estar realmente só é este que lhes digo.
A solidão nunca está com você, ela está sempre sem você e, portanto, ela só é possível
na presença de algo estranho, lugar ou pessoa que seja, que o ignore completamente
(...) (Pirandello, 1926, p. 32).
Systems that operate at the level of a re-entry of their form into their form are non-trivial
machines in the sense of von Foerster (1984). They cannot compute their own states. They
use their own output as input. They are ‘autopoietic’ systems, and that means that they are
their own product. In contradistinction to all traditions that teach that one can only
understand what one has made oneself (Bacon, Hobbes, Vico etc.), a re-entry leads to an
unresolvable indeterminacy. The system cannot match its internal observations with its
reality, nor can external observers compute the system. (1997: 13).
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Fig. 1 “Dawing Hands” de M.C. Escher utilizada como exemplo visual de autopoiesis.
Logo, três implicações tornam-se evidentes: (1) Quanto à palavra espaço: trata-se
de trazer fenômenos a uma posição de disponibilidade, uma vez que “somente esta
proximidade nos capacitaria de fato a tocar, cheirar, ouvir o passado”. (Gumbrecht,
1999, 467). (2) A sincronia, inevitavelmente, engendrará uma multiplicidade de
relações temporais paradoxais. (3) Estão imediatamente excluídos sujeitos-agentes, já
que a teoria da ação pressupõe a linearidade temporal. O autor encontrará uma
resposta na estrutura rizomáticas das redes descentralizadas (naturalmente adaptada
dos escritos de Gilles Delleuze e Felix Guattari). O rizoma, ao contrário da raiz,
desenvolve-se de forma múltipla, descentralizada e imprevisível.
46
Não existem pontos ou posições no rizoma como se encontra numa estrutura, numa
árvore, numa raiz. Existem somente linhas. (...) Nós não temos unidade de medida,
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Fig. 2 Rizoma
Fig. 2.2. Rizoma por Sylvano Bussoti (cópia da imagem que abre a introdução de Mil
Platôs) 8 .
É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas ao
contrário, de maneira simples, com força e sobriedade, no nível das dimensões de que
se dispõe (...).Um rizoma como haste subterrânea distingui-se absolutamente das raízes
e radículas. (...) Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. (Delleuze e Guattari, 2006:
14).
E mais precisamente:
8
Cf. Gumbrecht: 1999. Nota do autor, no. 45. E acrescenta-se: "finite networks of automata in which
communication runs from any neighbour to any other, the stems or channels do not pre-exist, and all
individuals are interchangeable, defined only by their state at a given moment - such that the local
operations are coordinated and the final, global result synchronized without central agency." In:
Deleuze, Gilles & Felix Guattari. (Translation: B. Massumi) A Thousand Plateaus: Capitalism and
Schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
48
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma tem como conjunção “e... e...
e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para
onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. (...)
Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que
carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire
velocidade no meio. (idem: 37).
Diante deste aparente paradoxo — que afinal está intimamente relacionado à idéia
de testar os limites do discurso historiográficos por meio (mídia) de um texto —
Gumbrecht percebe a necessidade de uma reformulação metodológica bastante
significativa. Abandonando todo e qualquer critério não-cronológico de seleção de
fontes, ele estabelece como igualmente relevantes quaisquer artefatos ou documentos
que datem de 1926. Seu raciocínio é bastante claro. Na medida em que não queria
“inventar” estruturas — mesmo aceitando não ser possível esquivar-se integralmente
de certa dose de criação — sua “construção” deveria referir-se, ou aproximar-se tanto
quanto possível, das visões de mundo “de dentro” de 1926.
Assim, a questão crítica que estou pronto para responder não é se existem
acontecimentos, obras de arte ou livros que eu “esqueci” na minha reconstrução de
1926, mas se a sua inclusão teria modificado de uma forma importante a minha
descrição e aquela simulação das visões de um mundo passado (479).
Não restou uma única situação do cotidiano em relação à qual se possa confiar
seriamente no conhecimento sobre o passado para decisões sobre investimentos
financeiros, gestão de crises ecológicas, preferências de gostos, etc. (1994:9).
demonstrou mais uma vez a sua unicidade ao se tornar o mais caro fracasso de todos os
experimentos intelectuais já levados a cabo. (1999:461).
We can only be certain that we cannot be certain of whether or not anything that we
remember as being past will in the future remain as it was. But that is not all. We
know that much of what we know will be true in future presents depends on decisions
we must make now. (Luhmann,1998:67).
9
Cf. Gumbrecht cita Kojéve ao introduzir a sua historicizaçao do tempo histórico já no início
do ensaio “Depois de Aprender com a História”.
51
Every teleological perspective of the future, the natural as well as the mental, is
radically abandoned with the concept of autopoiesis. Intention and purpose are only
self-simplifications of systems. (1998, 69).
Não me lembro exatamente com que tipo de documentos eu comecei, mas sei que, num
estágio muito inicial, abandonei todos os critérios não-cronológicos de seleção.
Quaisquer fontes, artefatos ou acontecimentos que datassem de 1926 eram
potencialmente relevantes. (1999: 477).
Então, o que é história, o que não é? (...) digamos desde já que não podemos confiar,
para fazer a distinção, nas fronteiras que são as do gênero histórico num dado
momento; seria o mesmo que acreditar que a tragédia racineana ou o drama brechtiano
encarnam a essência do teatro (...) (1983: 31).
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3
Um Breve Hiato: 1925 e Mrs. Dalloway
For it was the middle of June. The War was over, except for some one like Mrs. Foxcroft at the
Embassy last night eating her heart out because that nice boy was killed and now the old Manor House
must go to a cousin; or Lady Bexborough who opened a bazaar, they said, with the telegram in her
hand, John, her favorite, killed; but it was over; thank Heaven--over. It was June. The King and Queen
were at the Palace. And everywhere, though it was still so early, there was a beating, a stirring of
galloping ponies, tapping of cricket bats; Lords, Ascot, Ranelagh and all the rest of it; wrapped in the
soft mesh of the grey-blue morning air, which, as the day wore on, would unwind them, and set down
on their lawns and pitches the bouncing ponies, whose forefeet just struck the ground and up they
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sprung, the whirling young men, and laughing girls in their transparent muslins who, even now, after
dancing all night, were taking their absurd woolly dogs for a run; and even now, at this hour, discreet
old dowagers were shooting out in their motor cars on errands of mystery; and the shopkeepers were
fidgeting in their windows with their paste and diamonds, their lovely old sea-green brooches in
eighteenth-century settings to tempt Americans (but one must economise, not buy things rashly for
Elizabeth), and she, too, loving it as she did with an absurd and faithful passion, being part of it, since
her people were courtiers once in the time of the Georges, she, too, was going that very night to kindle
and illuminate; to give her party. But how strange, on entering the Park, the silence; the mist; the hum;
the slow-swimming happy ducks; the pouched birds waddling; and who should be coming along with
his back against the Government buildings, most appropriately, carrying a dispatch box stamped with
the Royal Arms, who but Hugh Whitbread; her old friend Hugh--the admirable Hugh!
Virginia Woolf
3.1
Que Caiam as Máscaras da Mimesis
Para Ricoeur, a narrativa emprega traços discursivos ou sintáticos, que fazem dela
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algo distinto de uma simples enumeração de “frases de ação”. É exatamente aqui que
se aplica a distinção semiótica entre os eixos paradigmático e o sintagmático. Diz o
autor que, por possuírem agentes, finalidades, meios e circunstâncias reversíveis, os
termos referentes às ações, na mimesis 1 são sincrônicos e, conseqüentemente
relacionados à ordem do paradigmático. O “ato configurante”, operação efetuada
pela mimesis 2, confere à narrativa seu caráter diacrônico, já que ordena os termos
referentes às ações de forma definitiva — aproximando-a à ordem do sintagmático
(Ricoeur (1): 90-91).
1
Embora Ricoeur tenha desenvolvido uma análise crítica da mesma obra, não será esta a
referência principal que será utilizada aqui.
55
(...) la poiésis fait plus que refléter le paradoxe de la temporalité. En médiatisant les
deux pôles de l´événement et de l´histoire, la mise em intrigue apporte au paradoxe une
solution qui est l’acte poétique lui-même. Cet acte, dont nous venons dire qu’il extrait
une figure d’une sucession, se revéle à l’auditeur ou au lecteur dans l’aptitude de
l’histoire à être suivie. (T1, 1994:104)
Será que um gênero narrativo tão novo quanto, por exemplo, o romance moderno,
conservaria ainda o muthos trágico, para os gregos sinônimo de enredo, de intriga, um
laço de filiação tal qual se possa também colocá-lo sob o princípio de concordância
discordante através da qual caracterizamos a configuração narrativa? (1995).
O fim da ficção seria para Ricoeur um salto para fora do paradigmático. Em outras
palavras, o próprio Ricoeur rejeita veementemente a possibilidade de “um salto
absoluto para fora de qualquer expectativa paradigmática,” afirmando que embora
seja possível abdicar da cronologia, não se pode prescindir de algum tipo de
configuração temporal inteligível. (Tomo II p. 41) Umberto Eco afirma ser
inteiramente possível que uma narrativa prescinda de uma intriga (plot), mas que
jamais abra mão do discurso ou da história (story). Ricoeur apropria-se da
terminologia de Northrop Frye para descrever Robinson Crusoe, concluindo que na
obra de Defoe, “a fábula é regida por seu tema.” (Tomo II, p.21) — sendo o “tema”
não só o condutor do fluxo narrativo, mas o elo de ligação entre autor e receptor.
Deste modo, a narrativa pseudo-autobiográfica quebra convenções, porém permanece
dentro do escopo da possibilidade da recepção. Estas considerações sobre a narrativa
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O desejo de uma experiência imediata do passado surgiu dentro de uma naova e ampla
dimensão do presente. Este novo presente é a moldura para a experiência da
simultaneidade (...). (1999: 470).
Paradigmático
Sintagmático
4
História, Memória e Esquecimento
Mas de tudo, terrível, fica um pouco, / E sob as ondas ritmadas / E sob as nuvens e os ventos / E
sob as pontes e sob os túneis / E sob as labaredas e sob o sarcasmo / E sob a gosma e sob o vômito
/ E sob o soluço, o cárcere, o esquecido / E sob os espetáculos e sob a morte de escarlate / E sob
as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes / E sob ti mesmo e sob os teus pés já duros / E sob o
gonzo da família e da classe, / Fica sempre um pouco de tudo. / Às vezes um botão. Às vezes um
rato.
Carlos Drummond de Andrade
Virginia Woolf
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4.1
Lupus in Fabula
1
Cf. Thomas Kuhn e suas teorias acerca das mudanças paradigmáticas no campo das
ciências exatas.
61
Ítalo Calvino, proferira cinco de suas Seis Propostas para o Novo Milênio.
(Calvino, 2004). Não é apenas por ser um bom trocadilho que aqui se opta pela
discussão do jogo de palavras. A dubiedade em si conduz-nos a difícil condição
de ser leitor em uma obra de tamanha complexidade como Em 1926: Vivendo no
Limite do Tempo, de Hans Gumbrecht.
***
62
Tal qual o trágico Moscarda de Luigi Pirandello em Um, Nenhum, e Cem Mil,
este novo observador auto-reflexivo é lançado em um jogo de espelhos de
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An individual in the modern sense is someone who can observe his or her own
observing. And whoever fails to understand this intuitively or he is not made aware
of this by his or her therapist can read novels and project them into the self.
(Luhmann 1998, 7).
Meu campo de experiência, contudo, não é preenchido apenas por minha visão
direta de mim (ego) e pela do outro (alter), mas pelo que chamarei
metaperspectivas — minha visão da visão do outro sobre mim. De fato, não sou
capaz de me ver como os outros me vêm, mas constantemente suponho que eles
estão me vendo de um modo particularizado e ajo constantemente à luz das
atitudes, opiniões, necessidades, etc., reais ou supostas dos outros sobre mim.
(Laing e Lee, 1966, 2).
2
Idem Ibid. “<inter+legere, em que o –r— de inter sofreu assimilação parcial, resultando o
dígrafo –ll—> e que em seu sentido primeiro significava ‘escolher mentalmente entre’. Idem Ibid.
P. 71.
64
A língua que já trazia o mundo pelo que o olho “via”, e não pelo que existia, passa
a depender de uma segunda “modalização” — a do relato escrito — para
apresentar/representar o mundo “lido”. (9)
Diante deste quadro, resta-nos indagar: quem é este novo “leitor empírico”, a
um só tempo co-constrututor de realidades e inexoravelmente preso a uma rede
comunicativa que lhe dá forma e o conforma a regras previamente dadas? Ou
apropriando-nos das palavras de Yunes, “quem é este que conhece, como conhece
e que alteração lhe traz o conhecimento e seu uso?” (Yunes, Cit. P, 23).
Gumbrecht conta que em seus primeiros rascunhos, Em 1926: Vivendo no Limite
do Tempo continha o significativo adendo: “Um ensaio em simultaneidade
histórica”. Ora, tal proposta aumenta consideravelmente a complexidade exigida
deste novo leitor — a começar, ela pressupõe uma imensa variedade deles e,
portanto, de percursos possíveis por eles traçados. Todavia, há que se considerar
que em 1997, quando o livro foi lançado nos EUA, e mesmo hoje, em 2007, este
membro de uma “comunidade interpretativa”, (para lançar mão do termo cunhado
3
É precisamente por este motivo que ao justificar seu método de pesquisas de fontes,
Gumbrecht alegará ter favorecido a recorrência em lugar da totalização. Cf. Gumbrecht: 1999. p
478-479.
66
por Stanley Fish), não desponta ingênuo ante ao texto — seja este ficcional,
histórico, teórico, ou mesmo um manual de auto-ajuda:
... o que nós temos não são leitores livres e autônomos em uma relação de
adequação ou inadequação perceptiva para com um texto igualmente autônomo.
Ao contrário, o que temos são leitores cujas consciências são constituídas por
uma série de noções convencionais que, quando colocadas em funcionamento,
irão construir, por sua vez, um objeto convencional, visto de forma convencional.
(FISH, 1993).
da dissolução de figuras como autor e leitor, nem tampouco se busca aferir o grau
de adequação de um suposto “leitor-ideal”:
Sociology has achieved little in comparison to the intensity with which hope and
need, the avant-garde and survivalism are experienced and portrayed, and in
comparison to the way contemporary society attempts to describe itself in this
regard. Unable to speak of concepts, the terminology sociology produces carries
signs of a forced one-sidedness. Here we need only to think of such terms as
“society of risk” and “information society”. What is missing, not considering old
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The proclamation of the “postmodern” has at least one virtue. It has clarified that
contemporary society has lost faith in the correctness of its self-description. (...)
We seem to be dealing with a matter of intellectual survival. But apparently, this is
all we are dealing with. In the meantime, what happens, happens, and society
evolves toward an unknown future, leaving behind its accomplishments. (1998:
1).
While the author is not dead, it is perhaps more appropriate to announce the death
of the reader. Of course, this slogan can be understood in many ways: With respect
to the click gesture, one could talk about the reader’s transformation into a restless
traveler through the world of text. With respect to the visualization of the web one
could talk about the reader’s transformation into a viewer. What I would like to talk
about is the reader’s transformation into an author. (Simanowski, 2001).
O leitor feito autor feito ator feito (con)texto já não se parece tanto com o
leitor ideal de Eco. A certa altura de seu adendo a Em 1926, “Depois de Aprender
com a História”, Gumbrecht se pergunta como podemos ser responsáveis pela
impressão de que interpretamos e compreendemos o outro se optamos por uma
teoria do discurso que nega o sujeito? (Gumbrecht, 1999 p. 463). A resposta,
conclui rapidamente, só se torna possível através de uma reformulação do
conceito de sociedade em termos de sistemas autopoiéticos. Mas será este o
caminho para a teoria literária?
Em seu ensaio “O Futuro dos Estudos de Literatura?”, Gumbrecht sugere a
todos os interessados que reflitam sobre as conseqüências reais da crise dos
conceitos de “verdade”, “objetividade”, e mesmo “literatura”, especificamente
dentro do campo dos estudos literários. Gumbrecht subscreve à teoria de Derrida,
4
The system cannot match its internal observations with its reality, nor can external
observers compute the system. Such systems need a memory function (i.e. culture) that
presents the present as an outcome of the past. Luhmann - International Review of Sociology
Mar97.
69
de que dificilmente deixaremos para trás a era da metafísica, tampouco seria este
o objetivo: “I think beyond metaphysics can only mean something in addition to
interpretation”, diria Gumbrecht mais tarde em seu Production of Presence.
(Gumbrecht, 2004). Uma saída seria o reposicionamento do campo estrito dos
estudos literários em um contexto mais amplo, o das Humanidades. Neste
sentido, proponho uma leitura de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo não
como experiência de imersão em passados longínquos, mas como experimento
teórico, cujas bases epistemológicas se inserem numa rede discursiva atual e
relevante.
4.2
Something else must be at stake that produces our desire for the past in the first
place and that makes us respond so favorably to the memory markets. That
something, I would suggest, is a slow but palpable transformation of temporality in
our lives, brought on by the complex intersection of technological change, mass
media, and new patterns of consumption, work, and global mobility. (Huyssen,
2003: 21).
5
Derrida, Jacques. Mal d’Archive. Paris: Galilée, 1995: “Le mal d'archive rappelle sans
doute un symptôme, une souffrance, une passion: l'archive du mal mais aussi ce qui ruine, déporte
ou emporte jusqu'au principe d'archive, à savoir le mal radical. Se lève alors infinie, hors de
proportion, toujours en instance, "en mal d'archive", l'attente sans horizon d'attente, l'impatience
absolue d'un désir de mémoire.”
70
***
O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações mais
complexas e mais móveis do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, homem
ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de comunicação,
por ínfimos que sejam. (Lyotard, 1979: 28).
A questão fundamental para Barth parece ser uma modificação do olhar que
implica, dentre outras coisas, numa atitude mais conciliatória ou amorosa para
com o passado, atitude que encontra total confluência com o quadro de
simultaneidade apresentado por Gumbrecht. Gumbrecht, aliás, exalta a
capacidade do precursor do pós-moderno de se apresentar não no papel de
fundador de uma tradição, mas antes no papel de editor, herdeiro de passados
longínquos. Altas doses de ironia à parte, e salvaguardadas as variações Groucho
marxianas que povoam seu “The Literature of Replenishment”, John Barth diz
algo extraordinariamente similar quando condiciona seu ingresso ao clube dos
pós-modernos à participação de Calvino e Garcia Márquez — i.e. “I myself will
not join any literary club that doesn’t include the expatriate Gabriel Garcia
Márquez and the semi-expatriate Italian Ítalo Calvino”. Acrescentamos que em
um ensaio de 1985, escrito em resposta a um convite que recebe da Funarte,
Silviano Santiago falaria da permanência, ou existência do discurso da tradição
71
A impressão que tenho é a de que o tema que me foi proposto pela Funarte não o
foi inocentemente. A questão da tradição — na década de 80 — estaria vinculada à
revisão crítica do moderno e em particular do modernismo, [e à abertura] do
caminho para o pós-moderno. (Santiago, 1985).
Actuality is the instant between the ticks of a watch: it is a void interval slipping
forever through time: the rupture between past and future: the gap at the poles of
the revolving magnetic field, infinitesimally small but ultimately real. It is the
interchronic pause when nothing is happening. It is the void between events,
(Kubler 1962:17).
It is not only postmodernism that lacks definition in our standard reference books.
(…) Neither my Reader’s Encyclopedia (1950) nor my Reader’s Guide to Literary
Terms (1960) enters modernism by any definition whatever, much less
postmodernism. (Barth, 1984: 194)
Em seu Los Hijos del Limo, Paz discorrerá amplamente sobre a estrutura
paradoxal do termo modernidade. Antes de mais nada, parece-nos oportuno
descrever aquilo que Paz entende pelo oxímoro, “tradição da ruptura”. De início,
trata-se de um paradoxo, uma vez que não há outro princípio na ruptura que não o
da interrupção, ou da descontinuidade: uma tradição fundada nas interrupções em
que cada ruptura é um prenúncio de uma nova ruptura. Eis a impossibilidade: o
termo tradição implica continuidade: “entende-se por tradição a transmissão de
uma geração a outra de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes (...)”.(Paz:
1984). Dirá Paz que a modernidade é sempre outra: a tradição da ruptura seria
6
Gumbrecht, Hans Ulrich. Em 1926: Vivendo no Limite do tempo. Tradução Luciano
Trigo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
7
Idem Ibid. p. 14: “O autor acredita que a batalha acadêmico-ideológica pela preservação
dos valores modernos ou modernistas (isto é “não pós-modernos”) é uma causa perdida”. Ibid.
73
Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica e é, assim, uma dupla
negação, como uma crítica e como paixão, tanto das geometrias clássicas como dos
labirintos barrocos. Paixão vertiginosa, pois culmina com a negação de si mesma:
a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora. (12).
4.3
Huyssen lembra que Adorno sugere que a semelhança entre museu e mausoléu
supera a mera paridade etimológica. Entretanto, o museu contemporâneo não se
limita à sua função de túmulo do passado. Vale notar que ao traçar sua
genealogia, Huyssen declara que o museu tem sua origem no ensejo de ruptura
modernista e na ameaça de obliteração das tradições. Uma sociedade tradicional,
desprovida de um conceito teleológico de história, não necessita de museus — as
tradições são asseguradas na práxis individual e coletiva. É a ameaça do
apagamento que gera a necessidade do arquivo. Esta estruturação paradoxal do
museu como espaço híbrido — a um só tempo, local de preservação de rastros e
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El principio de inclusión (de una imagen dentro de otra y de esa dentro de otra...)
afecta nuestra creencia en la verdad de las percepciones y establece una tensión
entre lo que puede ser lógicamente aceptado y lo que puede ser sensorialmente
77
o oposto e repousa sobre a lei soberana da rarefação, onde nem tudo é dito, onde
lacunas se formam e se estabelecem. São as ausências, os limites, os recortes.
Deste raciocínio entende-se que o arquivo para Foucault seja “a lei do que pode
ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos
singulares”. (149).
Além disso, a passagem evoca a distinção entre hábito e lembrança, traçada
por Henri Bergson em seu Matéria e Memória. Sendo assim, pode-se ler a
hesitação do narrador como o esforço endêmico ao exercício da rememoração
(lembrança) – que inexiste para Funes, já que o mal que acomete Ireneo descende
exatamente da perda da capacidade de priorização e síntese — que
obrigatoriamente pressupõem esquecimento. Extrapolando, seria possível
postular que na experiência cognitiva de Ireneo Funes, é como se todo estímulo
visual ou aural fosse imediatamente impresso na memória como hábito — sem
hierarquização ou contextualização prévias, nem tampouco empenho inicial de
memorização.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos
e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens
austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança
às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas
da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado.
(125).
79
Não apenas lhe custava entender que o símbolo genérico cão abarcava tantos
indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão
das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro
(visto de frente). Sua própria face, suas próprias mãos surpreendiam-no cada vez.
(127)
4.4
“A Contrapelo”
(...) Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações
musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três
vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia
requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram
desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a
aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-
negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo
se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um
coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um
grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.
O golpe de gênio de Proust está em não ter escrito “memórias”, mas justamente
uma “busca”, uma busca das analogias e das semelhanças entre passado e o
presente. Proust não encontra o passado em si — que talvez fosse bastante insosso
—, mas a presença do passado no presente (...). (Gagnebin, 1996:15).
colega o matemático Stanislaw Ulam, Hofstader nota a diferença entre dois atos
distintos: ver e ver como:
When you perceive intelligently, you always perceive a function, never an object in
the physical sense. Cameras always register objects, but human perception is
always the perception of functional roles. The two processes could not be more
different. (16).
arquivo 8 ; ele alerta: o que se passa hoje não é de modo algum análogo ao esforço
de construção de identidades nacionais que marca o século XIX; não se trata de
meramente deixar “as coisas como estão”, ou deixar o passado no passado — nem
tampouco adiantaria praticar o salutar esquecimento nietzscheano — mas sim de
fazer o passado emergir, de vendê-lo e de comprá-lo. Retorna-se à dificuldade de
que falava Lyotard: que memórias acessar? Assim como Funes, que prefere ficar
no quarto escuro a abarrotar seu cérebro com novas imagens tão inúteis quanto
serão indeléveis, o indivíduo moderno é, para Huyssen, bombardeado por
imagens/textos/ícones memorialistas — fictícios ou não — produzidos por uma
mídia ambivalente que, se por um lado o escora — concedendo-lhe lugar no
contexto “histórico” — por outro é responsável por sua desestabilização —
impondo-lhe uma overdose informativa de tal ordem que acaba por abalar não
apenas sua identidade, mas qualquer possibilidade de identificação.
Este argumento conservador (...) precisa ser retirado de seu marco de referência
binário e empurrado para outra direção, (...) que aceite o deslocamento fundamental
nas estruturas do sentimento, experiência e percepção, na medida que elas
caracterizam o nosso presente que se expande e contrai simultaneamente. (Huyssen
2003: 24).
8
Cf. Mal D’archive.
84
Dito isso, dá-se crédito a Huyssen por resistir a postura de combate à febre
mnemônica e sugerir um processo de rememoração produtiva — processo este que
leve em conta as falhas endêmicas à globalização da memória e a função política
dos ‘acertos de contas’ com o passado. Recente no Brasil é a discussão da
abertura dos arquivos da ditadura militar. O mesmo se passa no Chile e na
Argentina. Sob esta luz, parece-nos apropriado ressaltar que, como diz Huyssen,
“a memória não pode ser substituta da justiça”. Há e sempre houve, um tênue
equilíbrio entre lembrar e esquecer e, como assinala Silviano Santiago, mesmo no
auge da vanguarda antropofágica é possível detectar o discurso da tradição.
Fraturado, apagado, morto, ainda assim o sujeito pós-moderno — que na imagem
do anjo benjaminiano é arrastado pelo tufão inexorável do tempo, mas insiste em
olhar para trás — sabe, ou intui, que um olhar para o passado é necessário para a
sobrevivência. Gumbrecht examina este fascínio com o passado e chega a indagar
se não estaria tratando de uma constante antropológica.
Hans Gumbrecht alega que o conceito de identidade permite mais de um tipo
de articulação: enquanto a identidade social pode ser meramente descritiva, a
identidade pessoal é sempre narrativa. Talvez. Entretanto, parece-nos válido
afirmar que a primeira depende da segunda, o que significa dizer que a descrição
só se permite isolar por entender-se como parte de uma história. Neste sentido, o
87
5
(DES)APRENDER COM A HISTÓRIA?
Réaffirmer, qu’est-ce que ça veut dire? Non seulement l’accepter, cet heritage, mais le relancer
autrement et le maintenir en vie. Non pas le choisir (car ce qui caractérise l´heritage, c’est
d’abbord qu’on ne le choisit pas, c’est lui qui nous élit violemment), mais choisir de le guarder
en vie. La vie, au fond, l’être em vie, cela se définit peut-être par cette tension interne de
l’heritage, par cette interpretation de la donnée du don, voire de filiation. Cette reaffirmation
qui a la fois continue et interrompt, elle ressemble au moins a une eléction, à une selection, à
une decision. La sienne comme celle de l’autre: signature contre signature. Mais je ne me
servirai de aucun de ces mots sans les entourer de guillemets et précautions. À commencer par
le mot “vie”. Il faudrait penser la vie à partir de l‘heritage, et non l’inverse. Il faudrait donc
partir de cette contradiction formelle et apparente entre la passivité de la reception et la
decision de dire “oui”, puis sélecioner, filtrer, interpréter, donc transformer, ne pas laisser
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intact, indemne, ne pas laisser sauf cela même qu’on dit respecter avant tout. Et après tout.
Ne pas laisser sauf : sauver, pêut-être, encore, pour quelque temps, mais sans illusion sur un
salut final.
Jacques Derrida
5.1
“I began with a desire to speak with the dead.” (Greenblatt, 1998, 1). Eis a frase
inaugural de Shakespearean Negotiations de Stephen Greenblatt, um dos
fundadores do Novo Historicismo nos Estados Unidos. Não, Greenblatt não crê
que os mortos o possam ouvir, mas está certo de que é possível re-criar uma
conversa com eles. Um alento? Devaneio? Vejamos. Inicia seu diálogo-
monólogo. Projeta a voz na expectativa de obter algum indício de resposta.
Silêncio. Nada escuta exceto o som de sua própria voz que reverbera e é
89
I never believed the dead could hear me, and if I knew that the dead could not speak, I
was nevertheless certain that I could re-create a conversation with them. Even when I
came to understand that in my most intense moments of straining to listen all I could
hear was my own voice, even then I did not abandon my own desire. It was true that I
could hear only my own voice , but my own voice was the voice of the dead, for the
dead had contrived to leave textual traces of themselves, and those traces make
themselves heard in the voices of the living. Many of the traces have little resonance,
though every one, even the most trivial or tedious, contains some fragment of a lost
life; others seem uncannily full of the will to be heard. (1)
Tal qual Gumbrecht, que anseia por tocar, cheirar, ouvir, sentir o passado,
ainda que saiba ser impossível assemelha-se ao esforço de Stephen Greenblatt. O
que decorre da tentativa de falar aos mortos é uma acuidade auditiva imprevisível.
Passa-se a ouvir ecos e reverberações de milhares de outras vozes — aquelas que
nos precederam em passados longínquos e que a nós constituiu. Qual o sentido
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***
Por que nós falamos de tradição hoje? Acho que nós não falamos de tradição hoje,
gratuitamente, falamos de tradição tentando exatamente compreender, por exemplo, a
diferença entre paródia e pastiche. Por que uma arte deixa de ser paródia? Ela deixa
de ser paródia porque a paródia se tornou um ritual, se tornou uma cerimônia, se
tornou uma coisa esclerosada. Portanto, a paródia deixa de ser paródia no momento
no momento em que ela é um mero recurso técnico para um jovem poeta ter acesso à
poesia. Nesse sentido, então, é que Jameson vai dizer que uma das características do
90
Qual seria o próximo passo, uma vez que já se mostrou o quanto o material
lingüístico, as pinceladas e as cores são capazes de não representar? (Gumbrecht,
1998 (I), 25).
(...) O tipo de literatura que o presente pós-moderno produz não pode ser medido
em relação a possíveis referentes. Mesmo que os críticos descubram que O Nome
da Rosa de Umberto Eco não descreve adequadamente o mundo medieval do
aprendizado, que Cem Anos de Solidão não tem nada a ver com formas
especificamente caribenhas de sociabilidade e que as referências entre as ações
militares e políticas da Segunda Grande Guerra em Gravity’s Rainbow estão
incorretas, isso impressionaria seus autores e leitores infinitamente menos que uma
crítica similar teria afetado seus predecessores do Realismo do século XIX. (25-
26).
in general but the world of art itself, in short, that it uses one work of art as an
occasion to make another. (Fiedler, 1969).
Minha opção por abordar Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo como objeto
de uma dissertação de mestrado poderia conter uma miríade de explanações
teóricas e citações infindáveis. Contudo, a resposta mais honesta que tenho a
ofertar é extremamente, (espero não estarrecedoramente), simples: fascínio.
Vontade de falar aos mortos talvez? Necessidade de integrar a vida presente aos
campos abstratos das teorias e meta-teorias sobre mundos passados? Desejo de
não fugir a discussões políticas, embora crendo, como Gumbrecht, que política e
academia devem, para o bem de todos, manter uma certa distância salutar.
Queremos conhecer mundos que existiram antes que tivéssemos nascido, e ter
deles a experiência direta. Esta experiência direta do passado deveria incluir a
possibilidade do tocar cheirar e provar estes mundos através dos objetos que o
constituíram. O conceito enfatiza um longamente subestimado (ou mesmo
reprimido) aspecto sensual da experiência histórica — sem constituir
necessariamente uma problemática de estetização do passado. Pois um passado
tocado, cheirado e provado não se torna necessariamente belo ou sublime. (467-8).
Não é por acaso que em suas “seis regras simples para escrever História depois
de aprender com a História”, (1999: 474), o autor explicita que a renúncia da
necessidade de compreender o passado traz consigo a libertação do historiador:
não há que legitimar a importância daquilo que se escreve. Dentro do paradigma
da simultaneidade histórica, o conceito de anos-limiar perde a razão de ser. Isto
por que anos limiar significam, em última análise, momentos chaves de mudança:
pontos de virada que demarcam fronteiras entre aquilo que passou, o presente em
que se vive e o futuro — nesse sentido, contingente. Greenblatt é também um dos
interlocutores de Hans Ulrich Gumbrecht em sua tarefa (auto-imposta) de propor
algo novo em nome de sua geração:
Tarefa esta que o parece inquietar e sobre a qual não deixa de discorrer com
certa regularidade: geralmente num tom usual de simpática e auto-ironia que
muito lhe convém. É este mesmo tom que Gumbrecht adota em seu ensaio, “O
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5.2
***
substância teórica aqui tratada mais palatável, como servirá de excelente metáfora
para aqueles que, como eu, ingressam nas águas turvas dos estudos de literatura.
No conto de Rosa, temos como ponto de partida para a análise será a figura do
pai: não bastasse se auto-condenar ao exílio, ele decide passar a vida como um
síssifo, vagando entre as duas margens do rio que beira a casa da família — nas
palavras do filho: “[o pai] se desertava para a outra sina de existir, perto e longe
de sua família.” (Rosa, p.80). Atentaremos para o fato de o narrador do conto de
Rosa ser o filho, e em nenhum momento o autor inserir sequer uma linha de
diálogo na boca do enigmático pai. Sendo terceira pessoa sempre, o pai
apresenta-se como o emblema da alteridade: sempre o outro, incompreendido e
incompreensível, tanto para o filho quanto para o leitor. Levanto, pois outra
hipótese: na medida em que Rosa vincula a imagem do pai às tentativas
interpretativas do filho, pode-se dizer que pai e filho são mais do que meramente
inseparáveis, são, de fato, partes complementares de um mesmo todo. Desse
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complexa a definição das identidades que irão compor este estrangeiro cambiante,
ora pai, ora filho.
Advertising tells us, at the same time: “buy this, for it is like nothing else!” (“The
meat of the elite, the cigarette of the happy few!” etc.) but also: “Buy this because
everyone else is using it! And this is in no way contradictory. We can imagine that
each individual feels unique while resembling everyone else. (Baudrillard, 1998:
11).
No conto de Guimarães Rosa, a busca do pai não pode ser reduzida a um surto
de insanidade — “Ninguém é doido. Ou, então, todos.” (84) — diz o filho. De
fato, o texto de Freud, Das Unheimilich prescreve que o estrangeiro habita em
nós, e confirma: ninguém é estrangeiro, ou então todos o são. Se ser estrangeiro é
condição a priori do ser humano, então o estrangeiro desterrado há de ser aquele
que resiste ao impulso natural de assimilação, à vocação adolescente (e jamais
completamente superada de ser como resto), de pertencer a um grupo. Ou talvez,
seja aquele que após passar por um processo de devir, após tornar-se um membro
de determinado segmento, ainda descontente, queira — ou seja obrigado a —
reinventar-se em novas terras, inserindo-se em um novo contexto. Neste sentido,
96
ele não é como os outros: parte, e quando retorna, não encontra lugar, vai viver na
terceira margem do rio. Kristeva escreve que aos olhos do estrangeiro, “os que
não o são não tem vida alguma: mal existem, sejam esplêndidos ou medíocres
(...)” (Kristeva, 15). Assim, partir ou não partir torna-se quase indiferente. Ser
intelectual-estrangeiro é desenvolver um ethos a partir de uma vocação que surge
após a conclusão do processo identitário. Retornando ao conto de Guimarães
Rosa, o pai parte e o filho fica, nutrindo diariamente a culpa que vem do
reconhecimento de um elo visceral com aquele que partiu: não saudade, mas
culpa, estranhamento, o próprio Unheimlich. Isto o consome até o dia em que
resolve assumir o lugar do pai; tornar-se, ele, filho, o estrangeiro para que o pai
possa, enfim, descansar. Porém, o que o velho pai fizera por vocação, o filho
terá que fazer por contrição — “a ambas vontades” — diz. Entretanto, diante da
possibilidade de uma vida que lhe parece insuportável — ele não é como o pai,
não fora feito para isto ! — fraqueja e foge. Já o intelectual permanece.
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5.3
O Intelectual e o Risco
Como já citado, tal e qual qualquer outro sistema complexo, cada sistema
autopoiético é desastrosamente cego para o mundo que o cerca. Ora, mas de que
outra forma seria possível falar em autonomia?. Assim segue a caminhar o
sujeito-sistêmico, ciente de que seu único alimento está contido no contínuo
processo de observação e distinção. Cada pensamento que lhe vem, cada
observação, cada construção de realidade serão sempre inexoravelmente
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elaboradas internamente.
The other side cannot be reached, it can only be imagined; for no system can
operate outside of its own boundaries. The structural coupling depends upon
language as linking device, but there is no supersystem organizing this coupling.
Language is not a system. (Luhmann, 1997, p. 69).
O que fazer do conhecimento histórico agora que não mais se poderá aprender
com ele? — indagará o autor em uma das “janelas” que se pode “abrir”
98
What I find most interesting is the possibility of associating the distance from
everyday situations that is implied in both our conceptions of aesthetics and history
with the classic — and mostly self-critical — self-reference to the academic world as
an “ivory tower”. For if aesthetic experience and historicization impose the distance
of the ivory tower upon us, they also oblige us to acknowledge that this very distance
opens up the possibility of riskful thinking, that is the possibility of thinking what
cannot be thought out of our everyday worlds. (2004 126).
Every attempt to describe “what I get out of presence” seems to lure me into this
slightly embarrassing staccato of juxtaposing concepts that do not easily go
together. So let me change the thrust of my question and ask, “How can we get
there?” Rather than, “What is Presence?” And as soon as I ask, “How can I get
there?”— to this intense quietness of presence – the world “redemption comes to
mind. But redemption would not be as some romantic and theological versions of
the concept, a return to a primordial state whose innocence Perhaps by singling
out, preferably on a perfect day, strong feelings of joy or of sadness – and by
concentrating on them (Gumbrecht, 2004, 137)
5.4
Los españoles encontraron en México no sólo una geografía sino una historia. Esa
historia está viva todavía: no es un pasado sino un presente. El México
precolombino, con sus templos y sus dioses, es un montón de ruinas pero el espíritu
que animó ese mundo no ha muerto. (1991).
O discurso de Paz pode ser lido como uma curiosa retomada do diálogo
efetivamente iniciado por Silviano Santiago em 1985. Diz-se curiosa, pois as
palavras de Paz sobre a perene sensação de expulsão do presente ecoam de forma
101
retiradas de Tristes Tropiques selecionada por Silviano: “les tropiques sont moins
exotiques que demodés.” (Strauss) Retornando a Paz, nota-se que à medida que o
vai conduzindo pelos labirintos empoeirados de sua memória — a infância
passada em seu velho México (re?)-presentificada 1 através de anedotas
magistralmente orquestradas — vai sedimentando na mente do leitor uma
correlação não apenas cognoscível, mas de certa forma visceral, entre a condição
de saber-se excluído do ‘éden-presente’ e a opção, ou melhor, a necessidade da
escolha da postura vanguardista de ruptura: “para mi (...), la modernidad se
confundía con el presente o, más bien, lo producía: el presente era su flor
extrema y última (1991).
[a revolução mexicana] fue tanto o más que una revolución, una revelación. México
buscaba al presente afuera y lo encontró adentro, enterrado pero vivo. La búsqueda
1
Utilizo o termo no sentido que o emprega Hans Ulrich Gumbrecht. Ver especialmente o
capítulo de Gumbrecht. Production of Presence: What Meaning Cannot Convey. Stanford:
Stanford University Press, 2004.
102
Tarsila teria encontrado na pintura das igrejas e dos velhos casarões mineiros
inspiração de muitos de seus painéis; Oswald de Andrade colheu tema de várias
poesias pau-brasil, e Mario de Andrade veio a escrever seu admirável “Noturno de
Belo Horizonte”. (Santiago, 2002).
****
escrevia sobre uma obra plural que instigasse no leitor a necessidade de efetuar
“escolhas interpretativas e operativas” (Eco, 2003), a exigência agora recai na
materialização dos elementos envolvidos nos processos comunicativos (Olinto,
2002). Somente através deste reajuste nas linhas tradicionais e mesmo pós-
modernas de teorização literária — uma atualização (refreshening) do sistema,
talvez? — será plausível a teorização acerca dessas novas formas comunicativo-
literárias — que em toda a sua inegável virtualidade não deixam de acentuar
afetos e sensibilidades, minimizando (sem excluí-las) formas de racionalização.
the-head,” - escreveu Leslie Fiedler em seu “Cross the Border, Close The Gap”
publicado originalmente na edição de natal da revista Playboy do ano de 1969
(ninguém mais, a exceção de Hugh Hefner, estaria disposto a publicá-lo naquele
momento). Posteriormente transformado se transforma em libelo do projeto pós-
moderno para os estudos literários, “Cross the Border, Close the Gap” contém
provocações fervorosas a todos aqueles que vierem a se dedicar ao ofício de
criticar e teorizar a literatura. Há que se posicionar na dobradiça, “at the private
juncture of a thousand contexts, social, psychological, historical, biographical,
geographical, (…)” e olhar o mundo. E Em 1926 é um mundo: “Não há nenhuma
biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número das regiões
fronteiriças” – diz Walter Benjamin. (Benjamin, 2000, 234).
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