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Capítu1o H

Jusuçemo o cATnrEIRo
A CUUIURA DE RESISIH\CIA ESCRAVA

Paulo Roberto Staudt Moreira

Neste capítulo tratamos da resistência escrava no Rio Grande do Sul


imperial, englobando atitudes indiüduais ou coletivas diversas. O conceito de
',cultura de resistência" (MELLO, 1994) procurará englobar nào só manifes-
taçoes explícitas de antagonismo com os seúores (quilombos, fugas e insur-
reições), mas também aquelas discretas e surdas, como qualquer forma de
luta contra a desumanização imposta pelo escravismo - religiã0, família, alfor-
ria. Entendemos que não havia dicotomia radical entre a negociação diária e

os rompimentos frontais entre senhores e cativos. Revolta e negociação coti


diana não eram planos antagônicos, mas estratégias de resistência/sobrevivên-
cia colocadas em ação conforme as possibilidades de êxito ou fracasso verifi-
cadas pelos atores sociais em determinados contextos, num misto de adapta-
ção e revolta.
Maria Helena Machado critica uma historiografia que construiu "a ima-
gern do esclavo üoiento e rebelado, baseado num conceito de resistência con-
siderado enquanto formas extremas de negação ao sistema: as insurreições or-
ganizadas e os quilombos", e que, por sua vez, nã0 considera "as possibilida-
des de oposiçáo no interior do sistema", "pois é necessário considerar que Ie-
sistir significa, por um lado, impor determinados limites ao poder do seúor,
onerá-]0 em sua amplitude, colocar à mostra suas inconsistências" (MAC}L{-
DO, 1987, p. 19-20).
aparececOmoi,ilat:!:,..r',;.,,',.. iiir,:;g11o,adinâmicadaformaçãos0cialescra-
iistaédesci.,,il,,.lr.:,.'.'i,1 i',,;..,';,'.:li'estanquesessesdiveTsoselementosdaexpe-

lilh!iiâfeS.

kimeirocaso

As vezes percebemos que temos formas de raciocínio demasiado esque-


máticas para compreendermos o que ocorria entrc 0s cativos, seus senhores
e os vários proÍissionais encarregados da vigilância. Pensamos, geralmente, em
tipologias ígidas de resistência escrava, quando 0s seus comportamentos
eram bem mais fluidos e estratégicos, possuindo inúmeros estágios e media-
ções, de conformidade com as condições de êxito e fracasso. O caso a seguir.
ocorrido nas imediações de Porto Negre, ajuda a ilustrar o que estamos ten-
tando dizer, caracterizando um processo de negociação entre escravos e se-
nhores, que vai do acordo à desordem e, desta, à tentativa insurrecional.
No início do ano de 1863. a Secretaria de Poiícia da proúncia recebeu in-
formaçoes de que escravos da fazenda Conceiçã0, do cirurgião Antônio José
de Moraes, em Taquari, har.ram se rebelado. Então, imediatamente foram en-
viadas tropas e amamentos para a regrã0. Na verdade, as autoridades nào sa-
biam ao certo o que estava ocorrendo, com o chefe de Polícia declarando ha-
ver "indícios de insubordinação" e ordenando que os cabeças da revolta fos-
sem remetidos à capital para serem interrogados e "descobrirem-se o inten-
to que levam", apesar dejá terem prestado obediência e pedidoperdõo ao seu
senhor, quando este compareceu à fazenda (AHRS - Polícia, Secretaria, maço
5, olÍcio de 09/01/1863 t.
H:'ni'ia Gould.o
? inrdr
( da Str.l.
O caso, na verdade, não configurava uma insurreição ou rebeliã0, mas
uma disputa em termos da estruturação do poder na fazenda Conceiçã0, da
qual participavam os escravos como elementos ativos e participantes. Em
negociações com o cirurgião Moraes - proprietário absenteísta da fazenda -
0s escravos haüam acertado a demissão do capataz Joã0, por maus-tratos, Ct
escrayo Francisco dizia que eles estavam'Juradgs" pelo capataz por terem feit,,
recluerintento ao proprietário da fazenda, reclamando "que tiúa maltratad
:. :ente, tirando até as rações para dar aos cachorros", Entre-
.:1t0. com a voita de Moraes para a sede do município, o seu
-üo isenhor moço) tratou de recolocar o capataz em seu car-
;-,. desrespeitando os acordos feitos. João - elemento vinga-
.i',-il n0 dizer dos cabeças da desordem -, sem qualquer pro-
',.rcacão por parte da escravaria, reunira
um grupo de ho-
:rens e, numa terça-feira à meia-noite, cercou a senzala dan-
ir voz de prisão, que depois seria complementada com cas-
:rgos Íísicos (AHRS - Polícia, Inquéritos, maço 3, Auto de Per-
:untas de 17101/1863). Dois dos cabeças da revolta foram in-
:enogados em Porto Alegre e em seus depoimentos é que
ros baseamos: Manuel (preto, 18 anos, solteiro, carreiro,
rascido nesta província, morador na fazenda Conceição há
anos) e Francisco (32 anos, casado, alfaiate e hoje falquejador,
ratural de Maceió, morador na fazenda há cinco anos). Ma-
nuel e Francisco foram presos, amarrados e mantidos no tron-
Cabeças de negros.
co por dois dias e meio. Dúvidas quanto às
marcas no Íosto: tratasse
Chegando à janela da senzala, um dos homens deu ',,02
de pinturas ou marcas de
de prisã0, respondendo de dentro 0s escravos que "não ti- suplícios? Costumes e
vestimentas do Rio
úam cometido crime nenhum". Neste momento o cativo
Grande do Sul. 1851.
Justo "abriu a porta pela parte de dentro" e saiu portando Herrmann RudolÍ
uma faca. Como oito homens cercavam a senzala, provavel- Wendroth.

mente bem armados, os escravos, em minoria, simularam


um ataque saindo "cada um com 0 seu cacete", ficando pre-
sos os cabeças Manoel e Francisco, enquanto os outros esca-
pavam para o mato.
A senzala era diüdida em duas partes, uma delas para os casados e ou-
tra para os solteiros, sendo a primeira, provavelmente, diviüda em cubículos
ou quaftos), com um colredor comum. O ataque foi feito primeiro na seção dos
escravos casados, até que os solteiros, percebendo a invasã0, atacaram os in-
tlusos. Dois escravos casados (Venceslau e Mateus Moçambique) e três soltei
ros (Romã0, Cândido e Pedro Pernambuco) fugiram na véspera, percebendo \blume 2
Império
que alguma "amarração" estava sendo planejada, principalmente quando o fei-
tor recolheu todas as chaves da senzala, contrariando o costume de uma das
chaves ficar "na mão de um preto". Dormiam lá naquela noite Pedro Cabinda,
lustiçando o
Pedro Crioulo, Justo, Antônio, José Maria, Manuel e Chico Alfaiate, além do catit'eiro
preto velho Luiz e de dois criouliúos, Miguel e Ventura. Em neúum momen-
to da investigação são citadas mulheres.
217
O caPaLazJoáo - odiado Pei'- s

escravos - demonstrou que não '


= era úngativo como imPreüden:'
e, ao voltar ao seu antigo calg
,ê causou insegurança nos trabah:"
"â:--
dores cativos, ameaçando-os e

ffi
ilfL
dando todo armado na fazenda-
ResPondendo a um dos questiol''-

ã+:- .ir+ - mentos da polícia, Francisco cits-

confronto que estava existindo : '


Escravos conduzindo barrica e escravo acorrentado
Pelotas. 1851 . Herrmann RudolÍ Wendroth'
fazenda entre caPataz e escra\' :
No domingo, com o capataz
"t' l
da Íazenc.-
armado,, e acompaúado de um peão liwe e do administrador
facà'-
Francisco aproximou-se para uma convelsa de trabalho "armado de
(isso nas da polícia). Com o argumento de que apenas trazia no cir,: -
puiu*u, .-
Francisco prOcu'
o facão que usava n0 mato em seu serviço de falquejador,
isentar-se de qualquer atitude agressiva, mas podemos imaginar
a eleYac:--

da tensão no encontro desses indiúduos quando - sem


qualquer declaraÇ:'--
formal de guerra - grupos rivais comunicam através de gestos e
mudal:.-'
que um desfet:
comportamentais que as negociações estavam por um Íio e
desagradável e violento seria bem provável'
No camiúo para a cidade, os guardas encontraram alguns "parcei:'
.'
dos escravos presos e tiveram de recuar temendo uma luta
direta que p'- -=-
ria alastrar o conÍlito por outras fazendas üziúas. Nos interrogatórios. a ;' -

das r-a:--' '


Iícia logo quis saber se existiam contatos e cgnversas entre escravos
se os escravos h:-.:
fazendas da região (o que conÍiguraria uma insurreição) e "
ao segundo quesito, sobre andarem ala'-l'
tualmente usavam cacetes. Quanto
dos, o preto Manoel respondeu que sempre portavam cacetes
"pala pass.--
:
A descrição da senzala da fazenda esclarece que várias negociações -la -.-
: -"
viam sido feitas, melhorando as condições de üda dos cativos da fazenda.
já que estamos tl'e::- -
sas melhorias não eram feitas com prejuízo do senhor,
HLstóriaCnraLda
do de um peíodo em que o tráfico internacional de escravos
havia sidc, r: '
R.io Grandt ü Sul
er': r:-
bido e que o aumento das taxas de natalidade do plantel de escravos
que os escravos cj'- '--'
comendável. outras informações nos dáo a imagem de
du'e': .
zenda conceição há tempos vinham conseguindo garantir alguns
Paulo Roberto
ítaudt Moreira como 0 trânsito controlado pelos arredores da propriedade
(o escravo r: :
cisco haüa conseguido um cavalo emprestado para ir à
casa de seu sogl'- -l
(a chave da senz.--'
218 negro for:ro), além de um certo controle de sua moradia
üutras regalias duramente conquistadas (cativos haüam pedido ao seúor
para comprar um cavalo, o qual "não deu com cetteza, mas que prometeu se
cumprissem com suas obrigações").
A situação na fazenda parece ter se tranqtiilizado, pois não foi instaura-
do neúum processo, parecendo que apenas o habitual tratamento policial
ieom chicotes e outros tipos de agressão) teúa sido colocado em açã0.

Segundocaso

Eram duas horas da madrugada do dia 21 de março de 1870 quando o ci-


dadao brasileiro João Pereira Soares foi "despertado do sono em que se acha-
va", Íra sede de sua fazenda de criar, na margem direita do Imbúá, aroio
afluente do rio Uruguai e passo do mesmo nome, no municÍpio de Uruguaiana
(APERS - Uruguaiana, 1q Cartório Cível e Crime, Maço 70, ne 2604; FARIA,
1914, p. 179; SILVA, 1865, p. 33). O responsável pela quebra do descanso do
fazendeiro Soares foi o catarinense Francisco José de Medeiros (de 58 anos),
morador nas imediações do Imbahá e que, na ocasiã0, estava de pouso na casa
do mesmo, onde "fez sua cama no galpão da estância". Francisco foi contar a
Soares que havia percebido moümento suspeito e observou o preto forro An-
tônio e outro indiúduo que ele não recoúeceu conduzindo a esoava Rosa e
seus cinco filhos (Eugênio, Francisco, Flaubio, Domingos e um ainda de pei
to)para uma mangueira.
Comunicado o roubo de seus escravos e sabendo a proximidade geográ-
frca de sua fazenda da liúa üvisória com a Argentina, Soares tratou de mo-
bilizar-se rapidamente. Apesar de possível, sempre almejada e às vezes con-
cretízada, a fuga de escravos sulinos pela fronteira em busca de proteção nos
paÍses fronteiriços onde a escravidão não mais vigorava não era fácil.
Antes de montar a cavalo, Soares ordenou que Francisco fosse à casa de
um seu agregado e compadre, Anastácio Silveira Gularte (desta proúncia, ca-
sado, trinta anos, morador na Costa do Imbahá, analfabeto), chamá-lo para au-
Volume2
xiliar na captura dos escravos roubad.os. Depois, Soares montou a cavalo e foi
Impérío
acordar seu posteiro Pedro Fagundes (nascido na Comarca de Missões, casa-
do,42 anos) e com ele foi em perseguição aosroubadores de seus escravos.
Meia légua aüante, Soares e seu posteiro Fagundes encontraram as
Justiçando o
mercadorias roubadas próximas a0 passo do Imbúá: "Rosa que trazia dois fi- cativeiro

lhoziúos e mais um sujeito que trazia três criouliúos pequenos, ao qual ele
testemuúa [Pedro Fagundes] atropelou, porém não pode agarrar por ter ele 219
gaúado o mato, pôde contudo apaúar o
cavalo". O preto liberto Antonio - apontado
no processo como réu - não foi encontrado
quando dessa apreensá0. No dia seguinte,
o fazendeiro João Pereira Soares conseguiu
efetuar a prisão de Antonio e moveu uma
queixa contra ele na Delegacia de PolÍcia de
Uruguaiana, pedindo que fosse incurso no
artrgo 257 do Código Criminal: "Tirar a
cousa alheia contra a vontade de seu dono,
para si 0u para outro. Penas: de prisão com
trabalho por 2 meses à quatro anos; e de
Negras. Designadas pelo pintor como "beldades multa de cinco a 20Vo do valor furtado",
brasileiras". 1 851 -1 852.
Herrmann Rudolf Wendroth.
Soares não informa como procedeu à
prisão, mas Antonio declarou que estava
num mato com sua carreta buscando ma-
deira para uma casa e na volta foi preso. Em seu auto de qualificação disse cha-
mar-se Antonio Mina, ser liberto, ignorava quem era seu pai, não sabia a ida-
de ("porém representa ter perto de sessenta anos"), era casado, lawador,
africano de Iguá (porto de Mina)e analfabeto. Ele havia sido escravo de Soa-
res e sua famíia e, n0 momento do crime, tiúa alguma lavoura em teras de
uma vizinha de seus ex-seúores, Dona Joaquina Fonseca, na verdade irmã
da esposa de seu ex-seúor. A carta de alforria plena de Antonio foi passada
em Imbúáem 8 de março de 1869, assinada por João Pereira Soares e sua
mulher Maria Inácia da Fonseca Soares. Antonio é descrito na sua caúa de
alforria como sendo da Costa, com 56 anos de idade, e sua seúora, analfabe-
ta, não assinou o documento que a liwou do cativeiro. A rogo da seúora assi-
nou a carta Vicente Osório Rodrigues e, como testemuúas, Augusto Peres de
Farias e Zeferino Ávila Rodrigues (APERS - Liwo de Tabelionato ne 8 - T[ans-
missões e Notas, folha 111 e l72r).
O roubo dos escravos ocoffeu na madrugada de domingo para segunda-
I
HistoriaGemldn
feira e o réu Antonio defendeu-se üzendo que no dia 20 (domingo) estivera na
Rio Grande do Sul
viia de Uruguaiana vendendo melões e outros frutos de sua lavoura, apresen-
tando como testemunha Domingos Barbier, que os comprou. Depois, voltara
para a estância de dona Joaquina Fonseca, onde tem suas lavouras, e ai pou-
Paulo Roberto
Staudt Moreira sara, pois no dia seguinte precisava examinar suas plantações, ústo que lhe
I
disseram que o gado as estragara. Antonio negou durante todo o processo ter
participado do delito, apesar de todas as provas contrárias, e entre suas ale-
220
gações uma soa quase ingênua: ele não poderia planejar atravessar o rio L-ru-
guai, pois "nem sabe nadar".
per-
Queixa montada e réu preso, os documentos apontam para um roubo
petrado por um liberto, com intençáo de obter gaúos pecuniários pessoais.
A impressão primeira sobre o caso começa a mudar quando do depoimento
como testemuúa informante de um dos escravos roubados, o criouliúo Eu-
gênio, filho de Rosa, com 12 anos de idade. Eugênio informou que.pai Anto-
nio" se escondeu no quarto de sua mãe, junto à coziúa, e de lá, na madruga-
da, conduziu uma "trouxa de roupa para de trás do chiqueiro e de ai em um
cavalo picaço conduziu na garupa a ele testemuúa informante até a ponta do
mato". O cúmplice de "pai Antônio" era um crioulo chamado Joã0, que, segun-
do Eugênio, parava há um tempo na casa de
Escravo acorrentado chicoteando outro
Antonio Pedro de Miranda e Castro, despa-
escravo cruciÍicado em pelourinho. Pelotas,
chante da Alfândega, morador na vila de 1851 (?). Herrmann RudolÍ Wendroth.
Uruguaiana. Segundo o depoimento do fllho
mais velho de Rosa, na proximidade do local
onde foram capturados, o "pai Antônio" se-
parara-se deles dizendo "até logo".
Antônio, que ao longo de todo o proces-
so manteve-se insistentemente na tese de
sua absoluta inocência no caso, teve ainda de
assistir, angustiado, a um segundo depoi-
mento, ainda mais constrangedor a sua afir-
mação de nada ter feito. Foi chamada a de-
por a escrava Rosa, solteira, com 39 anos de
idade. Rosa iluminou e afastou a nebulosida-
de que poderia ainda estar anuviando a rea-
lidade do ocorrido, Perguntado o que sabia
do ocorrido: "Respondeu que tendo seu se-
úor forrado ao réu presente e querendo também dar carta de liberdade a ela
informante, sua seúora se opôs, e como já tivesse ela informante dado onze
crias, achou que isso era injustiça da parte de sua seúora, e que chegou ate a Volum2
Império
recusar o preço dela informante pela sua liberdade"'
Assim, depois de ter gerado 11 fllhos, que aumentaram o capital de seu
seúor, Rosa achava que merecia a liberdade. Antônio e Rosa eram parceilos,
lusticando o
integrantes da dura realidade de uma famflia de escravos, porém que só o pri- caüveiro
meiro recebeu a alforria como lecompensa por seus bons serviços. O casal de
escravos, descartada a liberdade sem ônus ou condiçã0, ainda tentou cgmpral 221
a alforria, o que lhes foi
negado. Era necessário
pensff uma reformu-
lação dos proietos fami-
liares e, conversando na
própria estância de
onde haüam fugido, de-
cidiram, "üsto lhe recu-
sarem a liberdade e
ainda mesmo pagando",
buscarem outras solu-
Família de negros. Moradores itinerantes do campo, residindo num
carretão. 1851. Herrmann Rudolf Wendroth. ções. O réu ocultou-se
em seu quarto uma noi-
te"até que se fecharam
as portas" e dali fugiram com seus filhos. segundo Rosa, não iam para corrien-
tes, mas "viúam para esta üla a ver se encontravam quem comprasse a ela
informante e seus filhos".
Pressionado por esses depoimentos que colocavam em dúüda sua ale-
gação de inocência, Antônio Mina foi novamente inquirido sobre a relaçào que
mantinha com a cativa crioula Rosa. Teve de admitir que a conhecia e que ela
era sua parceira: "e que com ela tem viüdo sempre como o cão com o gato, isto
é, sempre de ponta um com outro".
Mesmo assumindo coúecê-la e com ela manter relações íntimas e fami-
liares, apesar de não coabitarem, Antônio depôs que "nunca se importou com
a liberdade" de Rosa, jamais conversaram sobre isso e, se acaso houvessem
falado, ele "teria procurado disperpersuaü-la de fugir". Alforriado em 1g69,
Antonio compartilhava com Rosa a expectativa de que a liberdade não era
uma concessão dos seúores, mas uma conquista. Perguntado pelas autori-
dades judiciárias se era "estimado" por seus ex-senhores, Antonio respondeu
"que era, pelo muito que lhes tiúa servido".
Feita a queixa, apresentadas as provas e ouúdas as testemunhas, o de-
HistóriaCflraldo
Rio Grantle d,o SuL
legado de PolÍcia de uruguaiana, Joaquim do Nascimento costa da cunha e
Lima, considerou "justo" que Antonio Mina fosse incurso no ar.tigo 257, com-
binado com o 269 do código criminal do Império ("Roubar, isto é, fuúar fazen-
do üolência à pessoa ou às cousas. Penas: de galés por 1 a 8 anos"), e decreto
Paulo Roberto
Staudf -\.{oreira 138, de 15 de outubro de 1837 ("Fazendo extensivas ao derito de fuúo de es-
cravos as penas e mais disposições estabelecidas para o de roubo"). conclur-
aal dos os autos na esfera policial, foram enüados ao juiz de direito da comarca
ie Alegrete para que desse continuidade a0 processo. Em dezembro de 1g70
-ri aberta a sessão dojúri presidida pelojuiz de direito Evaristo de Araújo e
f rntra, sendo nomeado para defender Antonio o advogado Matias Teixeira de
-{lmeida.
o advogado Matias de Almeida, em seu arrazoado, baseia a contestação
que faz à pena imposta a Antonio, procurando descaracterizar o crime de rou-
bo. afinal o réu não teria desejadofuúar os escravos para si: "Quando estives-
se provado que o Réu ajudou a Escrava Rosa e seus filhos a fugirem, o que se
nega, apenas teria concorido a ajudar a essa escrava a levar a efeito o seu pro-
ieto de subtrair-se com seus filhos a escravidã0, indo gozar da liberdade em
um outro país onde não é permitido o cativeiro".
o juiz de direito cintra simpatizou com as declarações do advogado
llatias e em sua sentença absolveu Antonio Mina:

houve é certo a tirada da cousa alheia contra a vontade de seu dono, mas o
que a tirava não t nha intenção de torná-la sua propriedade e nem também a
tirava para outro, visto como a sua intenção era levar esses escravos a Repú-
blica do Uruguai, a Ílm de recuperarem a sua Iiberdade, que o senhor lhes
neSava,

0 suplício de Antonio parecia estar chegando ao fim, mas 0 promotor pú-


blico interino José Sérgio de oliveira apelou ao Superior Tlibunal de Relação (Rio
de Janeiro), que, em sessão de 19 de maio de 1871, confirmou a absolüção.
Não devemos nos sulpreender com a absolüção de Antonio, um preto
aÍlicano liberto acusado de roubo de escravos. Entre o suposto crime cometi-
do em março de 1870 e o alvará definitivo de soltura, expedido em 28 de agosto
de 1871, vemos Antonio amargando um ano e cinco meses de prisãol Aos ses-
senta anos de idade, Antonio teria condições de reorganizar suas plantações
abandonadas? será que alguns dos parceiros que ele enumerou como teste-
munhas de sua inocência (os pretos forros Pedro e João e os escravos Henri-
queta e Benedito), que nunca foram chamados a depor, conseguiram salvar Volunu2

pelo menos parte de seu patrimônio? Império


Esse caso, contado dessa forma tão sucinta, parece se limitar a uma sim-
ples anedota olJcatrsot sem qualquer relevância para 0 entendimento da com-
plexa sociedade escraüsta. Mas tentemos olhá-lo mais de peúo para que ele lustiçando o
cativeiro
possa nos revelar a realidade histórica da escraüdão sulina em sua dimensão
agréda e fronteiriça.
223
Rosa crioula e Antonio Mina, assim como os filhos gerados nessa uniã0,
que certamente durou vários anos, comprmham uma famflia de escravos.
(GUTERRES,2005;LAUREANO,2000). Náo temos informações sobre o res-
tante do plantel de escravos possúdo por João Pereira Soares, mas a diferença
de procedência (origem) entre o casal - ela crioula e ele africano - não parece
ter impedido o seu longo relacionamento (apesar de ser descrito por Antonio
como de "cão com gato'). Antonio era definido na carta de alforria como "da
Costa", mas em seu auto de qualificação autodefiniu-se como'Mina". Como
'Mina'foram designados, a paúir 'todos os que proüúam da
do século X\{I,
Costa ilo Ouro, mas também os da Costa dos Escravos e do golfo de Benim,
ou seja, indiúduos oriundos de povos mütas vezes diferentes, mas que pos-
súam traços culturais, crenças e um panteão religioso muito próximo'(P0R-
TUGAL, 1999, p.73).

Joáo Perein Soares hleceu em | 3 de junho de | 893 na vila de Uruguaiana, sem

deixar testamento, apenas deixando três Íilhos: Uquilidia Soares de Farias (ca-
sada com o tenente-coronel Ceciliano de Farias Correia, 30 ano$, Joáo Batista

Soares (30 anos) e Manoel Antonio Soares (28 anos). Nesse inventário, o
bem avaliado pelo maior valor foi uma parte de campo cito na sesmaria do
lmbahá, "que estava o inventanado de posse", por cinco contos de réis, APERS
- 2o Cartório Cível de Uruguaiana, inveniariante: IYaria Fonseca Soares 1893,
maço I auto no 38,

Essa história de 1870, ocor:rida em Uruguaiana, integra ümensões da


vida escrava como familiaridade, alforria, fuga e uso estratégico do espaço fron-
teiriço e contempla a necessidade de decisões políticas cotidianas "feitas em
condições de extrema incettÊ2a", afinal, "durante a vida de cada um apare-
cem, ciclicamente, problemas, incertezas, escolhas, enfim, uma política da üda
cotidiana cujo centro é a utilização estratégica das normas sociais". Abordar
nessa perspectiva a açáo dos escravos, salientando as dúvidas constantes na
Historinkmldo plena execução dos projetos, mútas vezes extremamente precários, e a neces-
RioGmndndaSul
sidade de tomada de decisões em situações de extrema inferioridade de for-
ças, é um pressuposto que nos auxilia a aproximar a lente historiografica
da
vida desses seres humanos que o sistema escravista queria transformar em
Paulo Roberto
meras mercadorias: "Nos intervalos entre sistemas normativos estáveis ou em
fuudt Morcira
formaçá0, os g1'upos e as pessoas atuam com uma própria estratégia signifi-
cativa capaz de deixar marcas duradouras na realidade política que, embora
221
náo sejam súcientes para impedir as
formas de dominaçã0, conseguem
condicioná-las e modificá-las"
(GIOVANNI LÉVI,2ooo, p. +5;.
Frustradas as esperanças e tentati-
vas canalizadas para a alforria, Antonio
e Rosa optaram pela fuga, usando a fron-
teira em seus planos de obtenção de Ii-
berdade. Os depoimentos constantes no
processo podem nos levar a densificar
um p0uc0 mais a análise. Rosa, ao teste-
muúar, não só contraria a versão de Negro com arpão de pesca. Pode estar levando na
Antonio, como introduz um detalhe que cabeça um taro de água ou um urinol. Costumes e
vestimentas do Rio Grande do Sul. 1851.
passa sem chamar a atenção dos interro-
Herrmann Rudolf Wendroth.
gadores: ela declara que não estava indo
com seus filhos em direção à fronteira,
mas à yila de Uruguaiana, onde procurariam quem os quisesse comprar. O de-
creto 1.695, de 15 de setembro de 1869, ao mesmo tempo em que proibiu as
vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição pública, determinou em
seu artigo 2a: "Em todas as vendas de esmavos, ou sejam particulares oujudi-
ciais, é proibido, sob pena de nulidade, separar o marido da mulher, o filho do
pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos".
Como foi üto, inicialmente, Rosa levava consigo cinco fi1hos, sendo o mais
novo "ainda de peito" e o mais velho com 12 anos. A rota de fuga e o local onde
foram apreendidos levam-nos a duvidar que não fossem para o outro lado da
fronteira. Mas, talvez, a estratégia fosse colocar Rosa e os filhos em local se-
guro, enquanto Antonio tratava de conseguir um padrinho para agenciar a
compra e posterior alforria de sua parceira. O misterioso cúmplice de Anto-
nio (o crioulo Joã0, que nunca foi encontrado) montava um cavalo que foi
apreendido quando fugiu para o mato, que trazia uma marca desconhecida dos
fazendeiros locais. Seria João um contato de Antonio do outro lado da fronteira
que garantiria local protegido para Rosa e seus filhos? Volum2
lmpério
Citado no processo como dono da casa onde Joáo "paravd', Antonio
Pedro de Miranda e Castro, despachante da Alfândega, morador na vila de
Uruguaiana, poderia ser o contato do casal de negros paÍaaobtenção de apa-
Justiçando o
driúamento. Sabemos a imporbância na sociedade colonial e imperial dos la- caüveiro

ços de apadriúamento para a resolução de problemas entre seúores e cati-


vos. Era usual escravos procurarem padriúos que intermediassem a obten-
225
ção de alforrias, agenciassem o retorno após alguma
fuga ou, ainda, a venda
para seúores "melhores",

Tipos de firgas e apadriúamento

o historiador Eduardo silva alertacom perspicácia para a existência de


diferentes tipos de fuga de escravos. Existiam as "fugas rompimento", que de-
claravam o fim das negociações e a busca de alternativas de üda fora de qual-
quer acordo cgm 0s senhores, mas também existiram as "fugas reiündica-
tórias,,, uma espécie de greve que funcionava como um protesto por melho-
res condições de üda e trabalho e que tinham na maioria dos casos curta du-
raçá0, acabando com o retorno espontâneo do escravo ou da obtenção por
ele de um padrinho que agenciasse a sua venda (com a permissão do se-
úor) ou o retorno para sua antiga senzala ($ILVA, t989). Em 1857, fugiu o
crioulo cândido (26 anos, estatura baixa, sem barba, cara lisa, pernas meio
arcadas, fala Íina e muito üvo e que andava bem a cavalo) e seu senhor ofe-
receu uma recompensa de 200$000 réis, dizendo que este escravo já havia
andado fugido, mas voltara "apadriúado e tornou a fugir" (MCSHC - Jor-
nal Correio do Sul, 15/10/1857).
As sete horas da maúã de 3 de novembro de 1872, dois portugueses só-
cios de uma flrma de refinamento de açúcar tomavam cafénavaranda da casa
na rua General câmara, quando desceu o escravo Fortunato, a quem 0 seu
senhor Francisco Caetano dos Santos perguntou: "Isto são horas de descer?"
E o preto respondeu: "São!" A0 que o galego retrucou: "É assim que se fala
com seu senhor?'Passando a castigá-l0 com uma acha de lenha: "começan-
do o preto a falar d.izendo que tiúa sido infelicidade dele cair como escra-
vo em poder de [seuseúor] que todos diziam que ele era um carrasco". Pro-
fundamente irritado, Francisco disse que ia ensinar seu escravo a obede-
,,e
cer, o preto respondeu-lhe que se ele fosse mau senhor que teria um as-
sassino em casa" (APERGS - Sumário Júri, maço 43, processo 1255)'
Fortunato estava com esse senhor há dois anos e após a agressão tentou
Históría&raldn
RioüandednSul fugir, entrando na reÍinaria de José Martins Júnior & cia., procurando
"apadrinhar-se".
em busca de um padriúo era conseguir um protetor que negociasse
Ir
Paulo Roberto uma solução para algum problema, que geralmente envolüa negociações com
Staudt Moreira o seúor para a venda do cativo ou o seu retorno para seu proprietário, o pa-
driúo procurado por eSSeS escrav6s era, necessariamente, um senhor bran-
226 co, com maior poder (ou no mínimo igual) ao do proprietário de seu pretenso
-:i,iiado. pois deveria agir como um mediador entre as partes.
\c, çn56 do retorno para a senzala, o padriúo deveria áceftar
úum 0 seúor de seu protegido os castigos que seriam
eventual-
mente ministrados, já que muitos dos escravos ,,apadriúados,,
hariam cometido alguma falta, fosse roubo, fuga etc.
O certo é que alforrias e fugas, assim como insurreições qui_
e
lombos, demandaram, para serem bem-sucedidas, redes
de rpoio
àqueles que se arriscavam nestes projetos de obtenção
de hter_
dade. Antonio Pedro de Miranda e Castro, provavelmente,
pode_
na serrir de protetor dos escravos que queriam comprar a própria
iiberdade e, apesar de não termos muitas informações
a seu res_
peito, um documento emitido dois anos depois da prisão
de An_
tonio Mina pode nos fazer crer que ele mantiúa relações próxi_
mas com a comunidade negra local. Em g de julho de
1g22, pedro
de Miranda e Castro adotou e perfilou a inocente
Adélia, que es_
tava a seus cuidados, nascida em 18 de outubro de 1g6g.
Adéria era
fllha natural da escrava Felicidade (de Antonio Simões pires),
ba_ Negra Costumes ê
tizada como liwe e apadriúada na pia batismal pelo barão
de Ijú vestimentas do Rio
e sua esposa. A liberdade de Adélia foi garantida pelo Grande do Sul. 18S1.
pagamento
Herrmann RudolÍ
de 200 mil réis por uma comissão que comem'rava
a vorta do ba- Wendroth.
rão do Paraguai. Compuúam essa comissão o padre Francisco
Nves Barroso, Fernando vieira de carvalho, Antonio pedroso ilm
de
Albuquerque Sobrinho e pedro Fortunato Ortiz (ApERS _
Tlansmissões e No_
tas,liwo 9,p.27).
A fuga de Rosa, cinco filhos e seu parceiro Antonio Mina,
tomando a fron-
teira como alternativa de sua resistência, se nos mostra
com. este
espaço era
considerado como passível de ser atravessado, também
deixa claras, as difi-
culdades que apresentava. Às vezes percebem.s que nossa
imaginação con-
templa esse espaço fronteiriço como composto por grandes
vazios territoriais
e populacionais. lbabalhos recentes principalmente
- os voltados à história
agá,ia - têm demonstrado que o cenário não era exatamente
esse. Grandes,
médios e pequenos estabelecimentos conviúam, sendo primeiros Volume2
os povoados
não só pelos proprietários e seus trabalhadores (escravos Império
e liwes), mas tam-
bém por agregados e posseiros. Soares, ao ser alertado
da fuga (roubo) de seus
escrav.s, imediatamente mobilizou um agregado (e compadre)
e seu postei-
ro, rapidamente conseguindo paúir em busca de seus cativos Jusüçando o
em locais cativeiro
previamente coúecidos, onde a travessia do rio uruguai era possÍvel
(FARINATTI, 2OO5).
227
A senhora de Rosa, ao negff a alforna jáconcedida a
seu parceiro Antonio, optou por manter parte do casal
ainda preso ao cativeiro, para não só controlar os filhos
ainda escravos, mas o próprio liberto dependente. O fato
de ter sido Maria Fonseca Soares, esposa de João pereira
Soares, a negar a alforria a Rosa, enquanto aparentemen_
te aceitava a libertação de Antonio, pode nos fazer pensar
que esta seúora tiúa ceúa dose de poder na
administra-
ção da fazenda e do plantel de escravos. Na verdade, a
sesmaria do Imbahá pertencia originalmente à famÍlia
dela, não à de Soares, tendo sido obtida pelo casal como
herança de seus pais Manoel Joaquim da Fonseca e Iná-
cia Fer:reira da Fonseca (APERS, 1a Tabelionato, Thans_
'ji
missões e Notas, Umguaiana, Liwo 12, p. 344 e 851).
rÉll
',
Era parte das políticas de dominação seúorial barga_
Negras. Tabuleiro de Írutas e Íorma
de carregar o Íilho. Costumes e
úar com a família escrava, mantendo a parte alforriada
vestimentas do Rio Grande do Sul. por pefto, prestando serviços e obediência. Revisamos
os
1851. Herrmann RudolÍ Wendroth.
iiwos de cartório de Uruguaiana até o final do per{odo
escravista e nada achamos a respeito de Rosa e seus filhos.
Teria essa fuga condenado Rosa e suas crias apermane_
cerem em cativeiro, sem chances de obter a alforria? Teria
sido vendida para
outro seúor? Não raro nos apaixonamos pelos indiúduos que
aparecem fu-
gazmente em n.ssas pesquisas e geralmente apaixdo
é substituída pela frus-
tração que carregamos por não sabermos o destino que
tiveram.

Resistências

o caso descrito anteriormente ocorreu no início de 1g20, período


em que
oBrasil saía do conflito com o paraguai e no qual várias tentativas
insur:recio_
nais de escrav,s assustaram a população do Brasil meridional (MOREIRA.
1998). Fugas, assassinatos e insurreições foram estratégias
HistóriaCeralda colocadas em açào
Rtt Grande do SuL pelos cativos nesse período, conscientes da desestruturação
temporária por
que passavam 0s mecanismos de controle dos
inimigos d,omésticos.
Às 7 horas da maúã de 18 de dezembro de 1g66, no distrito
das pedras
Pattlo lloberto Brancas, 0 escravo Inácio ocupava-se da roça de sua seú.ra,
quando esta pas-
Staudt MoLeira
sou a chamá-lo de preguiçoso e pediu um porrete para
darJhe um corretivo.
Inácio, entã0, usando a erxada com que trabarhava,
assassinou sua seúora
228 com um único golpe e "gaúou o mato". Inácio era crioulo,
escravo da viúr-a
]faria Jeronima Gomes da Silva, filho do preto Miguel (escravo), não
sabia a sua idade, solteiro, roceiro e campeiro, natural de Santa
Catarina, analfabeto. (APERS, Sumário, Júri, maço 38, processo
1130)

No dia seguinte, o escravo assassino foi à casa do pardo José


Inácio, lawador, perguntar se a sua seúora haüa morrido, sendo
pelo mesmo amarrado e entregue à polícia, onde se justificou da se-
guinte maneira: "Respondeu que o escravo Adà0, de Maria de Qua-
dros, andava o aconselhando a ele respondente que matasse sua
seúora por que os Paraguays tiúam de entrar e acabar com os
Brasileiros, e que assim haviam de ficar forros".
Situados entre os brasileiros e os paraguays, os escravos con-
versavam entre si sobre o reflexo que o corúlito internacional teria
em suas üdas, pensando em como tirar vantagem do nervosismo
das elites e da instabilidade dos mecanismos de controle social, Nes-
se período, é provável que os cativos tivessem melhores condições
Negro trajado socialmente.
de tomar consciência de sl, elaborando um sentimento de perten-
Costumes e vestimentas do
cimento ao mesmo gupo, impulsionados pelas discussões que en- Bio Grande do Sul. 1851.
volúam noções relativamente recentes, como o nacionalismo, e pela Herrmann RudolÍ
Wendroth.
renovada presença de um poderoso inimigo estrangeiro, o que fa-
zia aparecer com mais clareza as diferenciações internas do país.
Nesse momento, destaca-se ainda mais a posição fronteiriça de nos-
sa proúncia meridional - üziúa de emergentes Estados nacionais
rivais -, a qual dá à resistência escrava renovadas possibilidades es-
tratégicas.
0 historiador norte-americano Eugene Genovese, influenciado
pelas propostas neomarxistas (ou culturalistas, segundo os oposi-
tores) de E. P. Thompson, propõe a análise dos "moümentos de
contraponto escravo às expectativas seúoriais". Segundo a histo-
riadora Wiessenbach (1998, p. 27), seguindo essa perspectiva,

Volume2
Genovese pôde eliminar a polaridade dos conceitos de resistência e acomoda- Império
ção dirigindo ambos a um sentido comum, retirando-os dos limites estreitos
que tradicionalmente confinavam, na lrteratura a respeito do assunto, a imagem
dos escravos rebeldes e dos submissos. Transformou tais noçoes em 'duas
lustiçando o
íormas de um mesmo processo pelo qual os escravos aceitavam o que não cativeiro
poderia ser evitado e simultaneamente lutavam, individualmente ou como gru-
po peia sobrevivência tanto moral tanto fÍsica',
229
Segundo ainda Wiessenbach (1998, p. 27), Genovese conseguiu, com isso,

reintegrar o conceito de resistência à dinâmica das relaçóes sociais,


reincorporando-o não como repúdio ou negação, mas como conjunto de ele-
mentos provenientes da perspectiva escrava interagindo no mundo dos senho-
res e no Íuncionamento do regime,

Se qúsermos proceder a uma aproximação esclarecedora com a cotidia-


nidade do cativeiro, com isso, adqúrir intimidade com a experiência desses
seres humanos escravizados, devemos nos sensibilizar com a dialética existen-
te entre as várias formas assumidas pela resistência escrava, desde aquela di
reta e violenta (insurreições, justiçamento de seúores) até as üversas formas
de resistência cultural, como a manutenção de locais e indiúduos especiali
zados nas religiões africanas, moradias que propiciassem familiaridade e in-
timidade, fugas temporárias, negociações tensas e delicadas com os seúores
e autoridades responsáveis pela segurança pública.
o antagonismo existente entre seúores e escravos não se manifestava
apenas em alguns momentos das relações entre ambos - quilombos e assas-
sinatos -, mas permeava o dia-a-dia escravista. Resistir significava a utiliza-
ção estratégica das normas sociais, a valorização de microscópicos e altamen-
te significativos gestos e compoúamentos, que não só tornavam a estúpida
realidade do cativeiro suportável, como contribúram decisivamente para a
corrosão desse sistema.

HisLcria&raldn
Rio Grandn dn Sul

Paulo Roberto
Staudt Moreira

230

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