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Sob o sol escaldante, um enorme oceano de pó. Apenas isso era visto por
centenas de quilômetros. O ar aquecido, dançando sobre a areia, carregando
miragens e delírios dos poucos que se aventuravam ali. E tudo que se via era o
nada.
Exceto por um ponto. Semienterrado na paisagem, se destacava algo
brilhante. Ruínas de algum veículo enorme... Talvez uma aeronave?
Sinceramente, isso pouco importava ao único espectador de tal cena.
Por dentro dos destroços caminhava um indivíduo. Era um garoto de baixa
estatura, vestindo uma colcha de retalhos para se proteger do calor. Por baixo
do capuz amarelado se revelava um vislumbre de olhos intensamente azuis,
mechas negras e desgrenhadas desciam pelo rosto até a altura do nariz. A pele
era de um tom que já fora mais claro, mas estava acobreado pelo sol.
Ele caminhou pelo que restava da sala de controle, em busca de alguma
peça útil do computador central. Outros saqueadores já tinham levado a maior
parte do tesouro, ele teve de se contentar com alguns pedaços de placas
quebradas, dois capacitores e uma bateria descarregada.
Deixou o local de saque com os espólios dentro da mochila. Uma longa
caminhada pelo deserto o aguardava. Ele estava acostumado... Vivera tal
realidade dia após dia, durante todos os dias, pelos quinze anos de sua vida. E
provavelmente viveria isso até morrer. Mesmo que desejasse algo mais.
Após duas horas, finalmente se aproximava daquilo que chamava de casa.
Estava de frente para uma enorme rocha. A entrada era pelo outro lado, mas
antes disso tomou um tempo para escalar até o topo. Era parte de sua rotina
checar os arredores e observar movimentação.
Ele se colocou em seu observatório improvisado, tomando as últimas
gotas d’água em seu cantil. Com os binóculos que ele mesmo construíra, olhou
para o horizonte. O pequeno vilarejo ao longe... Normal. Os pássaros circulando
algum ponto do deserto... visão comum. Um comboio rodando pelo deserto? Isso
não se via todo dia.
Deu uma olhada melhor no movimento. Eram três carros de transporte
grandes, pintados de preto e equipados com grandes pneus e tração 4x4.
Tinham uma cabine com espaço para três ou quatro passageiros e um largo
espaço atrás onde carregavam sabe-se-lá-o-que. O símbolo pintado nas laterais
era o mesmo para todos os carros, mas não pode ser distinguido à distância.
Deixando o movimento de lado, o garoto finalmente foi para a entrada.
Abriu uma pesada escotilha através de um sistema hidráulico. A porta ficava
oculta por trás das rachaduras da pedra, seria necessário uma investigação
muito precisa para descobrir o local.
Por dentro, uma curta escadaria de metal levava aos restos de alguma
instalação antiga. Ferrugem e poeira cobriam o chão e as paredes. Tudo estava
escuro e parecia deserto, mas o jovem apenas gritou enquanto descia as
escadas:
— Ava, acorda! Eu tô em casa!
E como se o prédio todo acordasse, todas as luzes se acenderam. O que
a iluminação revelou foi uma tela enorme presa a uma das paredes, cercada por
varias telas menores. Logo abaixo, controles, painéis, mecanismos, tudo
compunha um computador enorme que ocupava toda a sala. O monitor
representava uma linha que oscilava conforme a voz saía dos potentes speakers
espalhados pela sala:
— Mas já? A caça ao tesouro não foi produtiva?
— Bem... — Ele respondeu. — Trouxe uns pedaços de placa e mais
algumas coisas que ainda funcionam... provavelmente.
— Ou seja. — O computador respondeu em tom irônico. — Um monte de
lixo. — E deu uma risadinha para completar.
O garoto olhou indignado para a tela:
— Não existe essa de lixo, Ava... Aposto que consigo fazer algo incrível
com estas coisas.
— Com certeza você consegue, garoto. — Ela respondeu com voz terna.
— Desde que você se alimente primeiro. Eu fiz o jantar, está no seu quarto.
— Valeu... já eu pego. Vou passar na sala do reator primeiro.
— Tudo bem. — Ela respondeu. — Mas não demore demais, senão vai
secar.
Ele seguiu por dentro de uma portinha que ia para trás da sala do
computador central. Lá dentro estava o coração de Ava, uma enorme e brilhante
esfera suspensa dentro de uma câmara, que transformava sua energia pura em
eletricidade. Por mais que ele tivesse buscado informações sobre aquilo nos
dados de Ava, não havia encontrado nada. Então ele chamava apenas de “O
Reator”.
Para além disso, lá também estavam os processadores, memórias,
barramentos e tudo mais que permitia que o computador funcionasse
perfeitamente.
Ava em si era um programa. Um sistema operacional e também uma
inteligência artificial. Seu nível de linguagem era perfeito, podendo se passar por
um ser humano facilmente. O raciocínio do sistema se desenvolvia de forma
quase humana, ela era capaz até mesmo de emular emoções e, de fato, ser
afetada por elas.
O nível de tecnologia da IA era inconcebível para os padrões da sociedade
atual. Provavelmente ela fora desenvolvida pelas pessoas que vieram antes,
assim como as instalações que a cercavam. Mas agora, eles tinham ficado no
passado e sua memória era inacessível.
Mas aquele garoto duvidava disso. Ele achava que as pessoas do
passado tinham deixado uma mensagem em Ava. Em suas buscas pelo sistema,
ele descobriu que grande parte dos dados estavam armazenados em um disco
externo, tal que o hardware de Ava não tinha a entrada necessária para acessar.
Por isso ele esteve incansavelmente revirando as ruínas durante anos, em busca
de peças para construir uma interface que tornasse a interação possível. Dessa
forma, Ava poderia recuperar suas memórias.
Depois de conferir que tudo estava bem, ele finalmente foi para o quarto.
Era um cubículo pequeno de paredes metálicas. Um colchão velho e um
travesseiro em um canto. Um armário com algumas roupas em outro. Prateleiras
presas às paredes exibiam pequenos troféus: Uma escultura feita de peças
sobressalentes, pequenos protótipos de máquinas, livros e objetos da civilização
antiga e tudo mais que o garoto considerava interessantes.
Ele encostou a bolsa em um canto e sentou-se na cadeira de sua mesinha.
Sobre o suporte estava o jantar, um prato de sopa. Era muito mais luxo do que
qualquer um poderia conseguir no deserto. O esconderijo tinha sua própria horta
e um complexo sistema de coleta e reaproveitamento de água, que permitiam a
sobrevivência de um ser humano no ambiente hostil. Tudo era administrado por
Ava... O garoto sabia que sem ela, ele provavelmente já estaria morto há muito
tempo.
Ele devia muito a ela. Na verdade, devia tudo. Ava era sua única amiga e
companheira neste mundo, ela o protegera desde bebê. Por isso se esforçava
ao máximo para recuperar suas memórias.
Após o jantar ele descansou na cama. A noite caiu e a longa viagem do
dia cobrou seu preço: O garoto estava exausto.
— Ava, tô indo dormir.
— Durma bem. — Ela respondeu, através da caixa de som presa ao teto
do quarto.
— Você também. — Ele desejou que ela dormisse bem... Mesmo sabendo
que inteligências artificiais não dormem, ela entrava em uma espécie de estado
suspenso à noite. Então era quase o mesmo que dormir.
— Boa noite, Ava. — Ele disse, enquanto se virava para ficar confortável.
— Boa noite, Dust. — Ela respondeu, enquanto apagava as luzes.
Memórias assaltavam a mente de Dust enquanto ele dormia. Os sonhos
não eram claros e ele não sabia ao certo o que estava vendo. Em maior parte,
só se lembrava de sensações: Calor, medo e acima de tudo dor. Sentia algo
doendo na parte de trás dos olhos, cortando profundamente seus nervos, quase
atingindo o cérebro. Depois, era como se fosse lançado de um lugar alto e
estivesse para atingir o chão. Então ele acordava, normalmente de frente para o
seu quarto mal iluminado.
Mas dessa vez algo estava errado. De sua cama ele viu um clarão romper
da escada, seguido pelo barulho de detonação.
— Uma explosão! — Exclamou, levantando em um salto. — Ava! Ava! O
que tá rolando?
Pegou um cano de ferro e correu para a sala central. Os invasores
aparentavam ser ao menos três homens muito altos. Dois deles já apontavam
rifles de assalto para o computador quando Dust se aproximou. Com o cano em
uma das mãos, saltou sobre um dos alvos e o atingiu na cabeça.
Como se não fosse nada mais do que um incomodo, o invasor se virou
enquanto o cano caía no chão, entortado pelo impacto.
Dust pode observá-lo melhor, sob o clarão das chamas. Ele tinha quase
dois metros. Coberto por um sobretudo preto com um símbolo indistinto pintado
no peito. Abaixo do capuz, também negro, um rosto mal se revelava através de
um par de brilhantes olhos... vermelhos?
Um olhar mais atento para as mãos percebia que, apesar de terem forma
humana, eram feitas de metal.
“Máquinas!”, o garoto pensou, surpreso. Paralisado pelo medo, ele sequer
foi capaz de gritar.
O cano da arma voltou-se para ele, mas uma pancada inesperada lançou
o inimigo contra a parede. Um enorme cabo se desprendera do teto e acertara o
robô com força. Mas este logo se pôs de pé novamente.
— Corra para o quarto. — A voz de Ava soava abafada pelos autofalantes.
— Mas e você, Ava? — Dust gritou aflito para as paredes.
— Eu vou ficar bem. Agora corre!
E o garoto obedeceu. Quando chegou em seu quarto, um pequeno
compartimento no chão estava aberto:
— Um quarto de pânico? — Ele estranhou. — Não sabia que tinha isso
aqui.
— Eu o guardei para casos de emergência. — A voz da IA chiou pelos
falantes quebrados, seguida de mais estrondos e explosões. — Entra logo, não
temos tempo.
E novamente Dust seguiu a recomendação da amiga. Mas ao entrar,
notou que algo parecia errado. Era um espaço pequeno, com um único banco e
cinto de segurança. Suas suspeitas se comprovaram quando a escotilha se
fechou, o painel de controle acendeu e uma voz mecânica disse:
— Preparando sequência de ejeção... Lançando em 5...
O cinto se fechou forçadamente sobre seu corpo, enquanto ele batia com
as mãos no teto e gritava:
— Ava, não! Não vou te deixar sozinha aqui! Nem morto.
4...
A voz de Ava agora era só um sussurro por dentro da capsula:
— É melhor assim, você vai ficar seguro até isso tudo passar.
3...
Dust estava em à beira das lágrimas enquanto exclamava:
— Tá bom, mas eu vou voltar o mais rápido possível!
2...
Mais uma explosão. Um pedaço massivo de metal acertou o chão. O som
dos alarmes de incêndio.
1...
O urro dos motores de fuga abafou qualquer outro ruído externo.
0.
A capsula subiu a toda, como um micro elevador em velocidade
supersônica. A força G colou o garoto contra o banco, enquanto o projétil
desenhava um arco pelo céu noturno.
Pela janela era visível a base se afastando. Um fatídico ponto de luz. Um
farol de desesperança no oceano da noite incógnita. E era nesse mar obscuro
que Dust forçadamente mergulhara.
Um misto de descrença, cansaço e pavor assaltaram seu corpo. As
últimas gotas de lágrimas levaram consigo a consciência, enquanto ele entrava
em um estado catatônico preso entre dormência e desmaio.
E a esfera de metal seguiu cruzando a noite...
Capítulo 2: O inventor e a ladra