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© 2005 Maria Silvia G. E. Hanna ¢ Neusa Santos Souza (orgs.) Produgao editorial Debora Fleck Isadora Travassos Jorge Viveiros de Castro Marilia Garcia Valeska de Aguirre Revisiio Sandra Passaro CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOs EDITORES DE LIVROS, RJ O14 © objeto da angtistia / Maria Silvia G. K Hanna ¢ Neusa Santos Souza (orgs.). - Rio de Janeiro : 7Letras, 2005 Inclui bibliografia ISBN 85-7577-238-4 1. Lacan, Jacques, 1901-1981. 2. Anguistia. 3. Psicandlise. |. Hanna, Maria Silvia G. E II. Souza, Neusa Santos. 05-3422. CDD 157.3 CDU 616.89-008.442 2005 Viveiros de Castro Edirora Leda. | (21) 2540-0130 / 2540-0037 R, Jardim Botinico 674 s!.417 | editora@7letras.com. br Rio de Janeizo RJ ce» 22461-000 | www.7lecras.com.br SUMARIO Introdugio . PRIMEIRA PARTE Angiistia: Intensao e Extensio A angtistia na experiéncia analitica Neusa Santos Souza A angiistia na cena do mundo . Maria Label Lins Perda de laces, solidao ¢ sentimento de estranheza: algumas questées na clinica com idosos... Gléria Castilho Consideragées sobre o “Além do Principio do Prazer” na segunda teoria freudiana sobre a angustia ... Carlos Fernando Motta SEGUNDA PARTE Angiistia: As inibigdes ¢ seus desdobramentos As inibig6es revistas & luz do cotidiano da clinica psicanalitica .. 67 Maria Silvia Garcia Ferndndez Hanna A passagem ao ato como fracasso das defesas contra a anguistia na obesidade.. + 81 Lia Amorim Maria Amélia Martins Sant'Anna Perder ou nao perder: eis a questao Astréa da Gama e Silva TERCEIRA PARTE Anguistia: A Resposta do Analista A resposta do analista: o caso Frida de Margaret Little... Angela C, Bernardes Da falta & perda: 0 que é possivel saber disso na experiéncia analitica ..... 122 Licia Mariano Autismo ¢ 0 objeto a partir do Semindrio X. +136 Ana Beatriz Freive A psicanidlise ¢ 0 transtorno do panico . +152 Mauro Rabacov INTRODUGAO Os onze artigos que comp6em este livro giram em torno do Semindrio X, A angistia, semindrio de Lacan que, no seu ensino, ocupa um lugar privilegiado. O lugar de destaque ocu- pado por este semindrio se deve ao fato de ter sido ai, ao longo de suas ligoes, que Lacan construiu um dos seus mais originais conceitos: o conceito de objeto a como causa de desejo. Destaca-se também neste semindrio a presenga viva das questGes que atravessam o dia a dia do trabalho clinico e que nenhum analista desconhece: a angustia do paciente, a angus- tia do analista, a angiistia provocada no interior do dispositive analitico pelo proprio fato de haver analista, angustia que nem analista, nem analisante podem economizar. Desta angiistia, é certo, ndo se pode fazer economia, mas 0 analisante, posto que éhumano, demasiado humano, procusa se defender. E 0 faz com os recursos que tem: acting-out, passagem ao ato, inibi- cées, compulsdes, reagdes depressivas, e no limite, ruptura do processo analitico. Neste semindrio, ao tematizar essas questdes, Lacan pare- ce levar o leitor pela mao, conduzindo-o e mostrandv-lhe os escolhos do caminho, as passagens tortuosas, os pontos de impasse, 0 vivo da clinica. Nessa condugio ele nos leva tam- bém a revisitar Freud, particularmente seu texto maior sobre a angustia, Inibigio sintoma e angustia, e O Estranho, vextos estes que Lacan percorre com olhar de lince, garimpa € extrai o ouro. No Semindrio X, nfo s6 0 objeto a € construido a partir do conceito de angustia, como aangustia serve de pivé em torno do qual Lacan faz, girar um dos conceitos mais destacados de seu ensino: o desejo do Outro. Conceito que, via desejo e em mao dupla, articula o sujeito €.0 Outro —o desejo que o Outro suscita no sujeito € 0 desejo quo sujeito provoca no Outro —o desejo do Outro aparece desde 7 0 Semindrio V, As Formagées do Inconsciente, desenvolve-se ¢ ga- nha novo estatuto no Semindrio IX, A Identificagdo, seminsrio que antecedc ¢ prepara o da Angrstia, em muitos pontos. E no seminario A Identificagao que aparece, senio pela primeira vez, certamente com maior énfase, a relagao entre desejo do Outro e angustia. Na aula XVI deste semindrio, por cxemplo, encontra- se 0 apdlogo do louva-deus, apdlogo utilizado por Lacan para se fazer compreender a propésito de sua definicao da anguistia como sensagao do desejo do Outro. No entanto, a novidade do Semindrio Xéa tematiza¢io do objeto da angustia ea definigao deste objeto como objeto 4, causa de desejo. Aqui, duas afirmagées novas se impéem: a primeira € que hd objeto quando se trata de angtistia ~ um objeto bem estranho, fora do texto do mundo, como se vers > €a segunda € que o objeto em questio é um objeto causa e nfo um objeto meta, Sobre este tiltimo ponto, raras vezes Lacan foi tao claro. Logo na oitava aula do Semindrio X ele afirma alto e bom-som que este objeto, 0 objeto a, nao se situa no plano da intencionalidade do desejo, nao estd adiante, estd atrés do desejo. O Semindrio X, diziamos, ocupa um lugar privilegiado no ensino de Lacan. Falta ainda dizer que este mesmo semindrio ocupa um lugar privilegiado no aprendizado, na formacio, no trabalho, de cada um de nds, Este livro ¢ prova disto: seus onze artigos so fruto da poténcia desse semindrio em suscitar nos- so desejo de pensar, de trabalhar, ¢ de efetuar a condi¢ao pré- pria do analista, aquele que tem que se desdobrar em dois ~ um que produz efeitos e outro que pensa sobre estes efeitos. O que deu infcio a este Livro foi o convite de Maria Silvia Garcia F Hanna endetegado a varios analistas que estavam len- do, em pequenos grupos, o Semindrio X. Cada analista escre- veu cedendo uma parte de si ¢ accitando as criticas e sugesties dos colegas leitores. Um escreve e os outros léem: esta foia sis- temdtica que adotamos ao longo dos encontros, que se deram entre agosto de 2002 ¢ agosto de 2003. Oleitor ird perceber que cada texto possui uma assinatu- ra ¢ uma singularidade, tanto no contetdo quanto na forma de abordd-lo. Cada analista assina seu texto responsabilizando- se por seu dizer. O OBJETO DA ANGUSTIA F. SEU CONCEITO A angistia é um conceito maior para 0 oficio que exerce- mos: a psicandlise. E propulsora, motor do tratamento, nos serve de guia, de indice — de um quantum o sujeito poderé suportar dessa inusitada experiéncia. E desse inusitado, dessa aventura guiada, que os diversos autores vém falar. Situada no amago da questo do que é um perigo vital para 0 sujeito~ estamos nos primérdios da construcao freudiana do conceito —, a anguistia vai ser tratada ao longo do Semindrio X, por Lacan, de mancira a permitir uma recriagdo dessa sublime descoberta freudiana, que € 0 objeto, tal qual, nés analistas, 0 entendemos. Recriagio que realiza ¢ acompanha, sesso por sesso, 0 que poderd e deverd levar o sujeito a sua cessio funda- mental: a de um objeto, agora nomeado de pequeno a, um nadinha, Um nadinha que faz toda a diferenga. E que o sujeito guarda com esse objeto, com esse nadinha justamente, sua re- lagao a mais profunda, a mais radical, a mais enraizada e que, por estar enredada pelas vestimentas narcisicas, essa relagdo também é, profundamente, radicalmente, desconhecida. Mas € esse mesmo desconhecimento do que é 0 objeto a, ou do que se € enquanto objeto a, que abre as portas para a possibilidade de uma anilise, Sendo esse objeto, nas palavras do préprio Lacan, a nossa existéncia a mais radical, a via pri- vilegiada pela qual o desejo pode nos entregar o que nés preci- samos reconhecer. Sé assim a angristia poder ser ultrapassada: que se saia do enigma do que o Outro quer paraa certeza do que se é. Para isso, o analista se faz fiador dessa aventura: é aquele que justamente por seu desejo — desejo do analista — promove- sd o trabalho do analisante pagando um preco, prego da cessio 9 de seu descjo, de seu ser. E esse prego, ¢ mesmo aprego, 0 que possibilicard ao analisante ceder o que Ihe excede e lhe angus- Ua: 0 objeto 4, operagao sempre renovada, de nome castracio, © assim poder continuar a experiéncia do viver, por perigosa que seja. Por inquictante ¢ estranha que ¢ também. Olivro que aprescntamos discorre sobre a angiistia a par- tir de trés grandes eixos que coincidem com as trés partes em que o livro se organiza: Anptistia: intensfo e extensio, Angus- Ua: as inibigdes € seus desdobramentos, Angistia: a resposta do analista. A angistia é uma experiéncia universal, no escolhe lugar nem hora, ¢ nem espera o analista para emergir. De modo sor- rateiro ou abrupto ela impée sua presenga, invade a vida do sujeito, tanto dentro quanto fora do dispositivo analitico, tan- to dentro quanto fora da experiéncia de uma anilise. Dai é que discutimos a anguistia em sua dupla localizacao. No entanto, por sermos clinicos, por ocuparmos boa parte de nossas vidas dobrados sobre o leito a escutar nossos pacien- tes, a angustia que nos ¢ mais familiar, mais cotidiana, é aquela que se desenrola ao pé dos nossos ouvidos, na enunciagio de cada analisante, no interior da experiéncia analitica. E uma anguistia cheia de promessas e riscos, propicia, por um lado, perigosa, por outro, O que a angtistia nos promete, em seu viés propiciador, € o fluir das associag6es ¢ a insergdo decidida no trabalho de andlise, Em sua dimensio de risco, pelo contrério, ela nos acena com atos no lugar da fala, com actings-out ¢ pas- sagens ao ato, com a mudez, o vazio de associagées, e no limi- te, com a ruptura do tratamento. Por sermos analistas, por nos ocuparmos com o que no anda, com a miséria da nossa con- dicao, com o sem sentido, isso que no mundo nao é mundo, ¢ lidarmos muitas vezes com experiéncias-limite — a psicose, o autismo, as adigées —, no estamos a salvo da angustia que, no seio, no coracio da experiéncia de escuta emerge do nosso lado, nos fisga ¢ nos morde. 10 Mas hé também uma angiistia que corre pelo mundo, para além dos consultérios dos analistas, ¢ que s¢ revela nas expe- riéncias mais triviais ou mais trégicas, nas mais criacivas ou mais banais, experiéncias que podem se dar na esquina de uma rua ou na mesa de trabalho, diante da folha em branco, nos en- contros ¢ desencontros que nos esperam a cada dia, a qualquer tempo ¢ qualquer idade, experiéncias das quais podemos ter noticias pelos jornais, pela literatura, pelo cinema, pelas con- versas ao Iéu. Também esta angustia serve ao analista, he obriga a pensar, ase interrogar sobre sua funco, sobre seu desejo ¢ ato. Assim € que o tema da angustia nos levou a pensar sobre as respostas do sujeito ¢ suas defesas quando, sem que o saiba, vive 0 risco de cair no abismo da angtistia, queda essencial do sujeito em sua miséria tiltima, Encontramos af uma diversidade de reagées ¢ defesas tais como inibigées, actings-out, passagens ao ato, compulsées e reagdes depressivas, o que, do lado do analista convoca uma resposta. Tais reagdes ¢ defesas obrigam oanalista a repensar ¢ renovar suas tdticas e manobras, sem abrir mao de sua estratégia: fazer emergir esse algo que torna poss{- vel ao sujeito um saber novo, saber sobre o objeto que se € para o desejo do Outro. Na continuidade de nosso percurso, transitamos por uma das fronteiras que mapeiam nosso campo de ago —a fronteira entre psicandlise € psiquiatria—e apresentamos um contraponto entre a s{ndrome do panico e a angustia. Apresentando este contraponto, mostramos a diferenga de perspectiva entre psi- quiatria e psicandlise: de um lado, a psiquiatria — cada vez mais identificada com o diagnéstice sindrémico e com a busca de farmacos capazes de silenciar 0 sintoma ¢ pér um fim a anguis- tia; de outro lado, a psicandlise — engajada na experiéncia do ser falante, um ser as voltas com o desejo, um sujeito marcado por uma falta imposstvel de preencher, um sujeito aberto a ini- big6es, sintomas e anguistia. iu Bis al O objeto da anguistia, Este livio é algo cedido por cada um de nés ¢, como um fruto cafdo, se encrega ao leitor que deste fruto hd de se servir. Maria lsabel Lins Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna Neusa Santos Souza 12 PRIMEIRA PARTE Angustia: Intensao e Extensio A ANGUSTIA NA EXPERIENCIA ANALITICA Neusa Santos Souza O melhor seria nao comegar. Mas tenho que comegar. Quer dizer, tenho que continuar. SAMUEL BECKETT Talvez existam poucas experiéncias mais familiares ao analista que a angtistia vivida pelo paciente. Muitas vezes € essa anguistia que, ao tornar a vida impos- sivel de suportar, forca 0 sujeito a procurar uma andlise. Ou- tras vezes ela surge em certos momentos privilegiados do tra- balho analitico, como préprio fruto deste trabalho, provocada por um determinado encontro que a andlise propicia. De um modo ou de outro é essa angtistia que interessa, particularmen- te, ao analista. De um modo ou de outro este ¢ 0 afeto pelo qual somos solicitados a lidar, a responder.* A angiistia vivenciada por nossos pacientes na cxperién- cia analitica, é dessa angtistia que podemos falar enquanto ana- listas. Essa é a anguistia que se nos oferece como matéria de tra- balho, esse € 0 afeto que, paradoxalmente, € condi¢ao de pos- sibilidade e obstdculo: € ponte de referéncia para nds, nao nos engana,?€ indicador de que o sujeito estd A frente ¢ as voltas com a opacidade do desejo do Outro, por um ‘ado, mas pode “hos fazer submergir, Fazer desmoronar todo um, trabalho teali- zado ¢ impedir © prosseguimento da andlise, 3@5 Por O1 ‘oucro. Essa é aangtistia que nos pée a prova a todo instante, a prova de ser- mos ou nao capazes de sentir, de perceber, 0 que cada sujeito, de angiistia, pode suportar.* Lacan ilustra essa idéia com 0 exemplo dos hieréglifos en- contrados numa pedra, no deserto. Ao serem encontrados, ime- O Semindrio X, de Lacan, se dedica a pensar e elaborar o conceito de anguistia ¢ desde a primeira aula tematiza a questao da angtistia que afeta o analisante ¢ nao deixa imune o analista. diatamente se sup6e haver, por tras dessas marcas, um enigma — Desde a primeira aula, a angtistia é concebida de tal modo uum sujeito que as teria inscrito, ” que se pode vislumbrar a comunidade de estrutura entre an- ‘e* — O sujeito que emerge no Outro é um sujeito vazio, vazio gtistia ¢ dispositivo analftico. E o ponto estrutural, comum a "de ser e de atributos, situado num lugar indeterminado da ca- anguistia e ao dispositivo analitico, é 0 desejo do Outro, desejo 6° deia, dividido entre um significante ¢ outro, sujeito marcado pelo este em tornd do qual gira 0 préprio conceit de angiistia. ‘ jo slgnificante, tinico sujeito ao qual nossa experiéncia tem acesso.* O que Lacan avanga de essencial diz respcito 4 estrutura e "\ Mas essa operago — extragio do sujeito a partir do Outro — fungo da angustia. Para cle ...bd uma estrutura da anguistid’ 9 deixa um zesto, um produto heterogénco ¢ irredutivel ao sig- ela é realmente a mesma da fantasia.’ Dizer que a estrutura da fl nificante: € 0 objeto a. angustia é a mesma da fantasia é dizer que a angiistia, assim y Trata-se de um objeto conceitual, despojado de toda ob- | como a fantasia, concerme 4 relagae do sujeito frente ao bjeto , _jetividade,’ inapreensivel 4 experiéncia, objeto este que, na al- i ~ do desejo do Outro — a diferenga sendo que, na fantasia “este gebra lacaniana, énomeado objeto a." Objeta dos objetos," con- - objeto se encontra velado, revestido, enquanto na angustia este digéo de possibilidade de todos os objetos da experiéncia, Lacan Objet aparece desnudo revelando a opacidade prépria ao de- 0 identifica ao objeto da pulsdo, objeto parcial,” objeto perdi- sejo do Ouro. Um outro ponto em comum entre angtistia ¢ do, de Freud: este objeto ¢ apenas a presen¢a de um cavo, deum fantasia € fie ambas sao Tespostas ao enigma do desejo do a vazio, ocupdvel, nos diz. Freud, por nao importa que objeto, e cuja Outro —a diferenga sendo’que a fantasia uma resposta pro- —,. instancia sb conbecemos na forma de objeto perdido, a miniscule. i duzida na forma de uma significado enquanto que a angtistia w . Entretanto, esse objeto que sé situa fora da ordem da re- é uma resposta produzida na forma de sensagio.SE certo que * esta sensacao vazia de contetido semAntico vai suscitar um en- xame de significagdes mas sé depois, e como resposta a esse vazio Nas impossivel de suportar. Falar da estrutura ¢ da funcdo da anguistia nos leva, por- tanto, a falar da constituiggo do sujeita.e do objeto, da relagio entre um € outro, da situagao dé perigo que se apresenta no pré- prio momento dessa constituicao, e do desejo que emerge af e se reatualiza em momentos privilegiados da vida do sujeito. & Sujeito e objeto se constiruem a partir do Outro, lugar da cadeia significante. Pelo fato de haver significantes e seres falantes emerge, necessariamente, sujeito. E. que significantes que nado querem dizer nada mas tém que ser decifrados produzem, nos seres falantes, a suposi¢ao de uma significagao e de um sujeito.” 16 wh presentagao nao deixa de ter seus representantes, seus equiva- lentes, seus suportes, suas figuragées, seus modos. Sao as qua- tro formas do objeto a, isoladas por Lacan: seio, fezes, voz € olhax. p__ Bes objetos, estas quatro formas do objeto a, detém um traco comum: sio todos objetos perdidos, objetos destacdveis por exemplo, nao ¢ 0 seio anatémico, mas sim, 0 scio enquan- to objeto equivoco entre a mae ¢ a crianca, seio este do qual um dia a crianga tem que se separar, tem que perder. O mesmo é valido para os demais objetos que ma ser suportes do objeto a, todas cles objetos semesséncia’ objetos perdi- dos, ¢ como tal, adequados para simbolizar a perda constituti- "AZ va de sujeito. A perda constitutiva do sujeito ¢ a perda deste objeto, o mais profindo objeto perdido," do qual sé podemos dizer que ele ¢ 0 correlato de wm pathos do corte,” objeto do qual nada sabemos a nao ser que ele €a causa de desejo. O objeto perdido é0 substrato do desejo, ele éa causa que nos faz desejar. E por ser vinculado a nés como unha e carne, ¢ por ter sido de nés arrancado, cortado na carne, por isso mes- mo ele nos engaja no caminho de buscar reencontr-lo, por isso mesmo ele nos conduz, nos comanda,'* na via de desejar. Esse objeto que ¢ a causa do desejo ocupa rambém um lugar privitegiado em relacao A angiistia ~ tanto A anguistia en- quanto func4o,"* angiistia estructural, a priori, quanto 4 anguis- tia camo fendmeno do qual o sujeito faz a experiéncia. Aangustia como fungao estaria siruada no momento pri- meiro de constituigéo do sujeito c do objeto. Poder-se-ia pensa- la como angistia primaria, condi¢io de possibilidade de todas as manifestagGes de anguistia que emergem na vida do sujeito. E uma exigéncia do pensamento supor sua anterioridade ldgi- ca posto que cla é definida como sinal que aponta, que alerta, para uma situagao de perigo: ...a experiéncia nos impede, como 4 prépria necessidade de sua articulacao obriga Freud, de situar alguma coisa de mais primitivo que a articulagio da situagao de perigo desde que a definamos como a fizemos, em um nivel, em um momento anterior a uma cessto do objeto.” O perigo de que se trata — ¢ aqui Lacan se atribui uma originalidade em relagao a Freud — € um perigo preciso, ligado a perda de um objeto cujo cardter ¢ de ser separdvel do corpo. A situacao de perigo éa cessio do objeto @.*! A situagao de pe- tiga € 0 corte na carne, a queda, a separagio, a perda do objeto. Aquilo que se supde no plano légico - 0 lago radical da anguis- fia.com este objeto enquanto ele cai” — aparece no plano empitico, tem uma traducao no plano do fenémeno. A angiistia emerge nos momentos de separagio, corte ou perda, momentos que comemoram a perda primeira — localizada no Outro e, ao 18 mesmo tempo, no sujcito que se situa ai —e que péem em jogo a propria perda do sujeito. A angtistia aparece nos momentos em que o sujeito é obrigado a ceder — ceder algo precioso, algo que cle preferiria reter, algo cuja perda Ihe ameaga de queda, desmoronamento, morte. Imanente ao dispositive analitico, ssa anguistia concerne ao dizer, ao fluxo proprio das associa- Ges, O dispositivo analitico, no que conyaca o sujeito a falar, necessariamente o pressiona a dizer — dizer que vai além de seus ditos, fala que o leva a ceder um a mais, algo a mais, um pe- queno nada que, a qualquer custo, ele se aferra em reter e cuja perda ¢ impossivel de deter. A perda primeira concerne ao Outro e ao sujeito. Ambos sofrem uma perda inaugural, constitutiva do sujeito enquanto tal e de seu desejo. Do lado do Outro ocorre uma perda: o que o Outro per- de, o que lhe é tomado, subtraido, arrancado, é a inica coisa que o Outro pode perder: significante. Esse significante, por ser perdido, adquire um estatuto estranho, hetcrogéneo, am- biguo: é e nao é significante. E significante porque vem do Outro, nao é significante porque se cornou elemento isolado, testo, outra coisa, objeto. Esse significante arrancado do Ou- tro, sua perda, isso que do Outro resta como resto, €0 objero.424, “Po lado do’sujeito duas perdas se impéem para que ele se constitua como tal, Alienagdo e separagao, assim Lacan as no- cmeou. ——. — A primeira é perda de ser—o sujeito do inconsciente é vazio de ser e de acributos —, uma perda a priori, universal ¢ necessd- ia, relativa ao fato de haver significantes no mundo e seres afe- tados por esses significantes. Aliena¢ao, assim Lacan nomeou essa perda. A segunda € uma perda que, para ser efetiva, convoca o trabalho do sujeito-eexige um querer:*6 ele ndo sé tem que perder — também aqui ha uitia perda @ priori, perda de vida, prépria a todo vivo sexuado —, mas tem que consentir em per- 19 der algo de seu. Algo que fazia parte do seu organismo, esse algo cle tem que ceder, Algo que fazia um com o seu corpo, esse algo ele tem que consentir em que se torne parte, parte que se perde. E além de consentir em perder algo que era seu, ele tem que querer recuperar a perda, isto &, pos la, tornd- la algo, algo com o qual ele possa fazer alguma ¢ E assim que, ao perder e recuperar essa perda, 0 sujeito se fard parte, comard parte do jogo cuja partida jogaré com 0 Outro. Lacan batizou essa perda com o nome de separacao. Isso que 9 sujeito perde, Lacan o nomeou tanto em ter- mos ldgicos, quanto em termos m{ticos. Em termos ldgicos é © objeto a, condigao de possibilidade, causa do desejo, e em termos miticos é a damela, a libido como puro instinto de vida, vida onisciente, indestrutivel e imortal, Da perda de uma libido imortal advém a libido dos po- bres mortais: um érgao”” que nos move, incessantemente, a buscar recuperar o perdido, a buscar encontrar a parte que se perde. Nessa busca ininterrupta, nessa arividade constante cujo nome € pulsao, 0 que o sujeito conquista ¢ sua prépria condi- Gao de ser sexuado: a de ter um par, a de ter o Outro como parceiro, a de jogar com o Outro a partida, num jogo que gira em torno da perda e de sua recuperaco. A perda é, portanto, o ponto dé entace e de identificacdo do sujeito com o Outro, ponto este que permite ao sujeito, n30 86 identificar-se com aquilo que falta ao Outro, mas também constituir, a partir daf, um jogo, um espaco de jogo, com 0 Outro. E que ao aceitar perder o perdido, ao acatar a perda que marca tanto 0 sifjeito quanto o Outro, ao positivar ess perda, 6 sujeito Se"torna capaz de fazer e faz alguma coisa com ela. A primeira coisa que faz € transformar perda em falta ca segunda, ¢ aprender a jogar com ela. Nesse jogo em que 0 par- Ceito € 0 Ourtto, 0 sujeito joga o jogo de fazer falta, desaparecer Dara fazer saudade, como me disse uma paciente, jogo de pro- duzir falta no Outro. Jogo amoroso, eis o seu nome, jogoem 20 que o sujeito se oferece como falta; como o que falta ao Outro, como 0 que ao Outro pode faltar: Ele pode me perder?* ‘Tramado em torno pergunta Ele pode me perder?, o que estd no cerne desse jogo € 0 desejo do Outro, um desejo turvo, opaco, a suscitar angiistia. Com esse jogo amoroso cheio de manhas e artimanhas 0 que o sujeito visa é evitar esse desejo em sua opacidade, em seu vazio, fonte de anguistia. Com esse jogo o que o sujeito busca ¢ evitar uma angustia que lhe acena com o desmoronamento do mundo, angustia que poe tudo em questo e ameaga nfo deixar pedra sobre pedra. Mas, 0 que mutto se evita, se convive,” nao se escapa. E assim que, mais dia, me- nos dia, o sujeito faz a experiéncia do desejo do Outro, do en- contro com 0 real, real do qual a angtistia é sinal.?° Esse encon- tro € uma queda. Lacan se refete & queda do sujeito na angustia com pala- vras fortes: essa queda essencial do stjeito em sua miséria tiltima?! E por que referir-se A queda do sujeito na angustia como sua miséria viltima? —t> Porque a angistia ¢ a experiéncia do sujeito langado af, p-enuregue &5 Feras, entreguc ao desejo do Outro. Porque, na ” angustia, 0 sujeito vive, de Fato, uma experiéncia, no sentido tea literal do termo, ou seja, uma travessia perigosa, uma situagio cheia de riscos.* Aqui a situagHo arriscada éa do enconiro do sijeito com o objeto, o objeto em sua presenca.de vazio, abje- to TU, Objéto nada, tiada tornado objeto, objeto desnudado das mascaras c vestiméntas da fantasia. Ea anguistia que brota dai éattadugio subjetiva, a unica radugte subjetiva,” da presenga dess€ objeto. Ela assinala nto desse encontro, momento €m que 0 sujeito nao pode fazer outra coisa a nao ser tremer, vacilay, Cat ranpuistia € 28 gieda essencial da sujeite em sua mistria ultima ...,** queda diante do objeto que assim posto, exposto, faz a miséria do sujeito® “Um outro modo de falar da experiéncia da anguistia ¢ di- zer que ela é a travessia do sujeito em diregio ao desejo do Outto. A anguistia a sensagdo do desejo do Outro indiztvel por onde chegamos & prépria dimensdo do lugar do Outro enquanto o desejo pode aparecer ai. O desejo do Outro suscita angistia por ser um desejo opaco, desconhecido para o sujeito, um sujeito que ao encon- trar-se coin esse desejo se situa como objeto, um objero que, a rigor, o préprio sujeito desconhece e, perigo maior, um objeto que o Outro pode querer.” E por isso que as situagdes onde o sujeito se vé chamado a responder ao Outro sdo especialmente propicias a provocar angiistia. Nessa situagées, mais além da demanda, mais além do pedido, o sujeito atina com o desejo do Outro: ele me pede isso mas o que serd mesmo que ele quer? Responder, tomar a palavra, responsabilizar-se diante do Outro ¢ seu desejo, eis af uma situago angustiante para o sujei- to, cis af a exigéncia de toda anilise, eis af uma determinagio constitutiva do dispositivo analitico. Impossivel, a partir daf, no concluir com uma constatagio e um reconhecimento: a constatacio de que existe uma comunidade de estrutura entre anguistia candlise — na andlise hd algo que é anterior a tudo 0 que podemos elaborar ou compreender, e isso chamei presenga do Ou- tro. Nio hd auto-andlise, mesmo quando se 0 imagina, 0 Outro esté at ...a angistia ...tem relacao com o desejo do Outro*— eo reconhecimento de que essa angiistia com a qual nés, analis- tas, lidamos, a anguistia que emerge na andlise, é uma resposta a estrutura e As exigéncias do dispositivo analitico. Poucas ve- zes Lacan foi tao claro quanto ao falar desta anguistia: ...¢ wma angistia que nos responde, é uma angustia que provocamos, éuma angiistia com a qual temos uma relagdo determinante.” E 0 que fazer diante da angtistia que, necessariamente, provocamos? O que fazer diante da angistia do analisante suscitada pela presenga do Outro e seu desejo que nés, analistas, encarnamos na experiéncia analitica? O que fazer diante da anguistia que desencadeamos a par- tir da nossa presenga, por mais discreta que seja, e de nossas demandas, por mais estritas que possam ser? 22 Quando hi transferéncia, 0 simples fato de o analista es- tar af, a espera de palavras e dinheiro, é condicéo necesséria ¢ suficiente para que 0 analisante 0 coloque no lugar do Outro que deseja, que deseja outra coisa mais além do que ele diz ou nao diz querer. Pelo simples fato de estar af, em seu lugar, 0 analista é capaz de provocar angiistia. Ainda que ele tence € consiga se apagar, suspender os interesses ¢ ideais de sua pessoa, ainda que ele tente ¢ consiga ler e seguir, 4 risca, 0 fio estrito do dizer de seu analisante, ainda assim, ¢ pelo puro e simples faro de estar af, em scu lugar, o analista é capaz de suscitar ¢ suscita angustia. Mas entio, o que fazer? Continuar.*” Continuar af ¢ lidar com os acontecimen- tos. Continuar ai ¢ manejar a anguistia, O manejo da angustia se refere nao a uma cota ideal de anguistia — supostamente a servico da andlise — que o analista deveria provocar em seu pacicnte, mas sim, a uma operagio do analista diante de um fato consumado: o fato da emergéncia da angiistia no seio do trabalho associativo. Tal manejo impli- ca uma avaliagio feita pelo analista a propdsito do quanto de angtistia o paciente seria capaz de suportar, o quanto de angiis- tia seria passivel de ser experimentada pelo analisante, sem que dai viesse a resultar um bloqueio das associagées. Considerado assim, o manejo da angustia deixa ao analis- ta apenas uma alternativa quanto & sua operagio: minimizar _ ou nao a angtistia experimentada pelo paciente. Ou seja, in- tervir- buscando minorar’a anguistia suscitada ‘ou manter-se numa posigio de reserva e espera atenta ao que se seguird. ‘Tentar minorar, em nosso paciente, a anguistia que supo- mos demasiada é procedimento que todo analista conhece. Acontece quase todos os dias, faz parte da rotina do oficio. Os recursos para tal mister costumam ser os mais singelos —a oferta da sala de espera, um palavra, um lengo, uma pergunta, um sorriso na despedida, um quase nada —e por mais diversos que 23 sejam na forma, todos eles se identificam num trago comum: o de oferecer acolhida e sustentacao, o de oferecer a mo, o de segurar na mito para ndo deixar cair| O manejo da angiistia implica portanto responder a pro- va que nos é posta a cada instante: ...sentir 0 que 0 sujeito pode suportar de angistia, é 0 que lhes poe a prova a todo instante,” nos adverte Lacan. Sentir 0 que o sujeito pode suportar de angtistia a cada instante é continuar a caminhar, caminhar na corda bamba, tentando se equilibrar entre firmeza ¢ delicade- mpossivel negar que ~~ ~Bem se vé nao poucas vezes fracassamos. Em contrapartida, o que nao é dificil ~ a ndo ser que in- sistamos na cegueira e na surdez — é constarar que houve erro, é perceber que houve falha. Falha esta que pode ser necessaria ouacidental, intrinseca ao dispositivo da anilise € ao desejo do Outro que af habira ou contingente a operagao analitica, auma determinada operagio do analista. Sabe-se que houve falha por- que a anguistia experimentada mais além do limite de cada su- jeito costuma langj-lo-raquilo que é a tinica saida diante da angtistia a mais: 0 ato,/tinico correlativo possivel no lugar da angistia.™ . Na andlise, do lado do analisante, 0 ato aparece sob os modos de acting-out e passagem ao ato. O acting-out é um agir em que o essencial € mostrar, de- monstrar, algo ao analista. Euma Tesposta, uma mensagem, do paciente dirigida’ao analista ¢ provocada a partir de sua inter- veng4o," seja porque algo na sua interpretagao foi articulado insuficientemente,® seja porque seu dizer, ainda que ndo te- nha sido falso, deu lugar 4 emergéncia daquilo que, para cau- sar desejo, deve ficar de fora e cuja presenga na cena — presenga de um vazio, de um cavo*”— é causa de anguistia: o objeto a.** Ha também o caso, nao raro, em que 0 acting-out € pro- vocado por aquilo que o paciente ouve em sua prépria fala. Ao 24 falar, sabe-se, fala-se mais e menos do que ¢ enunciado, fala-se mais e menos do que tinhamos inten¢o de dizer. Ao falar, so- mos suscetiveis & enunciagio, ¢ a enunciagao ~ esse mais além do enunciado — pode surpreender, causar impacto, assustar, angustiar. Quando isto ocorre, n&o poucas vezes o sujeito sai da angistia se precipitando no ato, acting-out ¢, as vezes, pas- sagem ao ato. py Apassagem ao ato éa rupeura do discurso, de lace sasial,. tecido e sustentado entre analisante ¢ analista. Passageira ou efinitiva, esa Fiptara € um agit: abrupto, um nada querer sa- ber, ato que langa o sujeito numa queda livre — 0 lago analitico funciona como um modo de sustentacao, 0 analista opera um certo segurar na mio para niio deixar cair™— queda no vazio onde 0 sujeito se identifica e se reduz a objeto, por um lado, e des- titui o analista, por outro. Diante da angtistia a mais e do ato que advém como seu correlato, 0 quc 0 analista pode fazer? Quando se trata de passagem ao ato, o analista nada pode fazer, mesmo porque ante a passagem ao ato, ante o ato consu- mado, nao h4 mais sujeito nem analista. Mas se € 0 acting-out que surge como correlato da angistia a mais, af sim, hd o que fazer, Eo que fazer é continuar. Continuar a trabalhar, conti- nuar a analisas, continuar a operar com palavras ¢ siléncios, continuar a lidar com o imposstvel de suportar — real, cis 0 seu nome?! — através do simbélico e, assim, reconduzir 0 ato ao es- tado de palavra. E quando se trata da psicose, dos pacientes psicéticos, como pensar a angustia e 0 que fazer? A primeira coisa, me parece, é considerar que a psicose é uma experféncia — uma experiéncia no sentido literal do ter- mo, isto é, travessia cheia de perigos. A experiéncia psicética, esse é o testemunho cotidiano de nossos pacientes, ameaga, poe a vida em tisco — a vida, 0 corpo, o pensamento, a liberdade, os bens, 0 que cada um mais preza, seu maior bem. 2S Quer nas psicoses marcadas por fendmenos dissociativos, quer naquelas outras dominadas por fendmenos parandides, 0 risco éo central da experiéncia, 0 perigo ¢ a matéria da travessia. Impossivel nao lembrar de Artaud a clamar pelo dircito de ter seus poemas publicados — poemas rejeitados pelo editor por considerd-los defeituosos — justamente por serem esses poemas a prova viva de sua experiéncia de perda, perda de pen- samento, desmoronamento central da alma. Esses poemas, diz Artaud, cles valem justamente por screm © que resta dessa ex- periéncia, dessa evosdo, ao mesmo rempo essencial ¢ fuga, do pen- samento.”? : "” Tmpossivel nao lembrar de nossos pacientes a nos dizer de sua experiéncia, senao de forma tio lapidar quanto 0 poeta, a0 menos de modo tio elogitente. Os relatos de complé — contra ova favor — falam de risco ¢ ameaga de perda: além da perda dos bens resulrante do complé contra, tanto num tipo de compld quanto noutro, © paciente se queixa de ser excluido enquanto sujeito de direito e de valer apenas como objeto das maquinagées ¢ planes do outro, Tante num como noutro Case. 0 paciente se queixa de que perde: perde seu poder de determi- nacio, perde sua condigio de agente, sua autonomia: no caso do complé contra, por pura ¢ franca maldade do Outro; no caso do compl!6 a favor, por suas boas intengdes- A experiéncia psicética € tao virulenta em seu risco que ela envolve, no raro, quem est4 por perto, a0 lado € aliado ao paciente. Foi assim que, logo na sua segunda sessdo, uma pa- ciente me alertou: Feche bem sua porta, eles roubam quem estd de meu lado. A psicose como experiéncia € desmoronamento — € pos- terior reconstrugao - do mundo que pode set pensado como conjunco organizado, teia, de sentido. Foi o que me disse uma analisante, num momento posterior & queda, num momento de reconstrugio: Voce conhece aquela misica da Maysa, meu mundo caiu? Pois é, meu mundo cait. 26 Depois de considerar a psicose como uma experiéncia, 0 que pode fazer © analista quando se trata de ouvir os sujeitos dessa experiéncia? Em primeiro lugar, 0 que © analista pode fazer ¢ segurar na mao para nio deixar cair,® prestando-se como, instrumento do qual o sujeite posse se valer nas vicissitudes de sua experién- cia, nos périplos d rayessia, O que © analista pode fazer é dobrar, adequar, odispositivo analitico para receber aquele que, no centro dessa experiencia, No olho do furacio, faz apelo a alguém que posia Ihe ouvir num espago © rempo abertos 20 aconitecimento,* ¢ lhe dara mio para nao deixdto cain O que ovanalista pode fazer é reconstituir o dispositive da analise, reinventando seu método € técnica, segundo as exigéncias da experiéncia de cada sujeito- Em segundo lugar, o que 0 analista pode fazer ¢ accitar 0 que no pode ser mudado. O que nao pode ser mudado aqui é 0 fato de que a angistia € imanente 20 dispositivo analitico, quaisquer que sejam as formas que este yenha a tomar, qual- quer que seja 2 capacidade inventiva do analista de adapta-lo a singularidade de cadaanalisante. O que © analista precisa acei- tar 0 fato desconcertante de que, apesar de todo a nosso €s- forgo ¢ dedicacao, malgrado todo nosso engenho e arte, a an- gustia pode surgir ¢ surge. Eal, o que fazer? O que fazer quando a anguistia surge €m nOSsOS pacientes psicdticos, dlevando a segunda poténcia o risco proprio & sua experiéncia? O que fazer com esse risco 4 mais, com essa an- gristia a mais? O que fazer quando, em nossos pacientes psicdticos, 4 angiistia, além de surgir, se precipitar, se resolver, em ato? Continuar. Continuara trabalhar, trabalhar na diregao de fazero elefante entrar no cercado,® trabalhar no sentido de reen- ‘caminhar 0 ato & palavra. 27 O que fazer é continuar a caminhar, continuar a levar as coisas adiante, nao a levar a angtistia mais além do limite de cada analisante, mas sim, levar as coisas além do limite da an- gustia’® O que fazer é continuar a caminhar no sentido de fazer de cada andlise uma aventura tinica®’ para que, a rigor e de di- reito, ela possa se chamar experiéncia, experiéncia analitica. Notas ‘Lacan, J. Semindrio X, 14/11/62. 2 Idem, 19/1262. 3 Idem, 14/11/62. * Idem, 19112162. 5 Idem, 1AINI62. ® Quanto a isto Lacan é claro: 2 angustia é a sensagdo do desejo do Outro, Semindrio 9, 414162. Lacan, J. Seminario XI, Rio de Janeiro, Zahat, 1979, p. 187 ¢ Escrites, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 854. § Lacan, J. Semindrio X, 23/1163. > Lacan opde 6 termo objetulidade, présprio ao objeto a, objero imundo, aquele de objetividade, relativa aos objetos do mundo: ...2 objetividade é o sltimo termo do pensamento analitico cientifico ocidental,...a objetividade 60 correlato de uma razio pura que ..se traduz, se resume, por um formatisme ligice. A objetalidade...d outra coisa ...a objetalidade ¢ 0 correlato de um pathos do cor- te [irredutivel a qualquer formalismo légico ¢ vinculado} ...a esta fungo essencial a todo mecanismo do vivido de nosso mental, a fungi da causa. (Se- mindrio 10, 815163) Lacan, J. Semindrio XI, ibidem, p. 63. 1 Lacan, J. Semindrio X, 8/5/63. ® Encontra-se, em Lacan, uma identidade entre 0 objeto 2, 0 objeto da pulsio, ¢ 0 objeto parcial: Tudo o que a andlise produz....€. a saber, 0 fato de que a realidade da mie sé nos seja, a principio, relarada, designada, pela fun- ito do que se chama objeto parcial (aceito que seja chamado de objeto parcial desde que é ele que estd no principio da imaginagao do todo)... E, mais adian- te, a0 falar da fangdo da placenta e do seio, diz: ...é 0 seio chapeado sobre 0 28 peito, este seio em rorno do qual gira a questi, uma apartncia do objeto a..é 0 objeto a gue estd no principio da miragem do tado. (Semindrio 15, 13/3168) "3 Lacan, J. Semindrio XI, ibidem, p.170. “ Lacan, J. Seminario X, 26/6163 ¢ 3/7/63. '¥ Lacan, J. Semindrio XV, 10/1/68. '* Lacan, J. Semindrio XI, ibidem, p.187. "7 Lacan, J. Semindrio X, 8/5163. "4 Lacan, Semindrio XV, 6/12/67 "Lacan, J. Semindrio X, 3/7/63. Ver também, Cosentino, J. C. Angistia, fobia, Despertar, Buenos Aires, Eudeba, 1998, pp. 101-115. Idem. 4 Idem. 4 Tdem, 613163. » Miller, J.A. “Os seis paradigmas do goz0”, in Opcao Lacaniana, n. 26/27, abril 2000, p. 95. 34 Lacan, J. Semindria XV, 10/1/68. * Lacan, J. Eseritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, pp. 854-858. % Idem, p. 857. ¥ Idem, pp. 861-863 ¢ Semindrio XL, ibidem, pp.185-186, * Lacan, J. Idem, p. 858. ® Guimaraes Rosa, J. Grande Sertao: Veredas, Rio de Janciro, José Olympio, 1967, p. 9. ™ Lacan, J. Semindrio X, 613/63. 3 fdem. _" Lacoue-Labarthe, P Lapoésie comme expérience, Christian Bourgois, 1997, p: 30. Nesse ponto do texto, na nota de rodapé n. 6, Lacoue-Labarthe re- j mete o Icitor A resposta de Roger Munier a uma entrevista sobre o tema da @xperiéncia: “Experiéncia vem do latim experiri, provar, experimentar. O Eradical ¢ periri, queseo reencontra em periculum, petigo, risco. A raizindo- opéia é PER, & qual sc liga a idéia de travessia, ¢, secundariamente, & de Wa, de experiéncia. Em grego, sio numerosos os derivados que marcam Rtavessia, a passagem: peird, atravessar; pera, mais além; perad, passar atra- de; peraind, ix até o firm; peras, terma, limite.” 29 % Lacan, J. Semindrio X, 16/1/63. ¥ Idem, 613/63. % Lacan, J. Discours al’ E.EP, in Scilicet, .2/3, 1979, p.11. % Lacan, J. Semindrio IX, 414162. ¥ Lacan, J. fedem e também: Semindrio X, 14/11/62 « 3/7/63. 38 Lacan, J. Semindrio X, 21/11/62. ®% Idem, 12/12/62, * Jmpossivel no ouvir a voz de Becket: O melhor seria néo comecan. Mas tenho que comesar. Quer dizer, tenbo que continuar. (O inomindvel) 4) Lacan, J. Semindrio X, 23/1/63. ® Lacan, J. Semindrio X, 14/11/62. © Q titulo do livro de Quinet, A. — Um othar a mais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002 ~ me inspirou aqui. # Idem, 2616163. © Idem, 23/1163 ¢ 26/6/63. * Lacan, J. Semindrio XIV, 813167. # Lacan, |. Semindrio XI, ibidem, p.170. # Lacan, J. Semindrio X, 2616/63. ® Lacan, J, Semindria X, 2311163. * Idem, 1611163. > Lacan, J. Ouverture de la section clinique, in Ornicar 1.9, p. 11. Citado por Blanchot, M., in Le Hvre a venir, Patis, Gallimard, 1959, p. 52. 53 Lacan, J. Semindrio X, 23/1163. » Eipaco aberto ao rempo é 0 nome criado por Lula Wanderlei para o lugar de vida construido em meio ao espaco fechado do velho hospicio do Enge- nho de Dentro e tematizado em seu belo livro O Dragao Pousou no Expago, Rio de Janeiro, Rocco, 2002. % Lacan, J. Semindrie X, 23/1/63. © Lacan, J. Semindrio X, 3/7163. * Idem. 30 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BLANCHOT, M. Le fivve a venir. Paris: Gallimard, 1959. COSENTINO, J. C. Angustia, Fobia, Despertar. Buenos Aires: Eudeba, 1998. GUIMARAES ROSA, J. Grande Serna: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. LACAN, J. “Discoursal’ E.EP”, in Seiicern, 2/3, Paris: Seuil, 1979. Excritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahat, 1998. . “Ouverture de la section clinique”, in Ornicar?, n.9, 1977, p. 9. .. (1961-62) L’ identification (Semindrio inédito). . (1962-63) L’ angoisse (Semindrio inédito). . (1964) O Semindrio, livro XI. Os quatro conceitos findamentais da psicandlise. Rio de Janciro: Zahat, 1979. (1966-67) La logique dus fantasme (Seminério inédito). (1967-68) Liacte analitique (Seminario inédito). LACOUE-LABARTHE, P. La poésie comme expérience. Paris: ChristianBourgois, 1997. LULA WANDERLEI. O dragido pousou no espago. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. MILLER, J.A. “Os seis paradigmas do goz0”, in Opsa0 Laciniana, n. 2617, abril 2000. QUINET, A. Um olhar a mais, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. SOLER, C. Le corps dans lenseignement de]. Lacan. Quarto. Bru- xelas, n* 16, 1984, 31

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