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A FORMAÇÃO DA CULTURA CONSTITUCIONALISTA MODERNA

Por Dra. Adriana Pereira Campos1

1. ANTECEDENTES

O vocábulo “constituição” pode ser encontrado em diversas sociedades, desde a


Antiguidade até os dias atuais. Segundo Gilissen (1995, p. 419), a palavra constitutio
no Baixo Império Romano designava a lei do Imperador; na Idade Média e na época
moderna ganhou sentido geral de lei, mas era utilizado concorrentemente com
outros termos como ordennances (ordenações), estatutos, decretos, pragmáticas
sanções (pragmaticae sanctiones). O sentido atual do termo constituição surgiu no
curso do desenvolvimento do período moderno e se firmou como lei de natureza
particular na sociedade contemporânea.

Sem dúvida, alguns documentos medievais foram escolhidos pela cultura


constitucionalista como elementos fundadores, tais como: a Magna Carta (1215), a
Bula Áurea da Hungria (1222), a Joyeuse Entrée dps diqies de Brabantes (1356), entre
outros. Entretanto, nenhum dos protagonistas tinha a compreensão do caráter
inovador desses documentos quando o produziram. Pelos menos não no sentido
que tiveram os revolucionários norte-americanos e franceses por ocasião da
confecção dos Articles of Confederation ou da Declaration dês Droits dês Hommes e

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Docente do corpo permanente das Pós-Graduações em Direito Processual (Mestrado) e História (Mestrado
e Doutorado) da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2003), com estágio pós-doutoral na UPEM – L’Université Paris-Est Marne-la-Vallee
(2014). Pesquisadora produtividade do CNPQ e coordenadora do projeto de pesquisa Opino Doctorum com
financiamento do CNPq e FUNCULTURA/ES.

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Citoyens. Para Dieter Grimm (2010, p. 27), ultimamente, o termo constituição


passou do âmbito da linguagem exclusivamente jurídico-política para designar,
inclusive, “a situação de um país, a forma em que este se configurou mediante
características de seu território e seus habitantes, sua evolução história e as relações
de poder existentes, suas normas e jurídicas e suas instituições políticas”.

Não é objetivo deste capítulo discutir o termo do ponto de filológico, mas conhecer
o desenvolvimento da cultura constitucionalista moderna. Consideram-se as
revoluções americana e francesa o momento decisivo da história do
constitucionalismo, quando se colocou no primeiro plano novos conceitos e práticas
em oposição à tradição medieval de precedência das ordens 2 . As revoluções
modernas criaram o poder constituinte, exercido pelos colonos americanos, quando
não aceitaram as decisões do Parlamento Britânico, consideradas por eles ilegais.
Já os franceses aboliram os Estados Gerais e, em seu lugar, criaram a assembléia
popular.

Maurizio Fioravanti (2001, pp. 103-104) sugere o modelo de desenvolvimento da


cultura constitucionalista com base em diferentes conceitos de soberania popular e
estatal. De cada uma desenvolveu-se noção própria de constituição,
correspondendo, denominada por Fioravanti de democrática e estatal. No primeiro
caso, sobressai o poder constituinte; e, no segundo, o controle de
constitucionalidade sob a égide do Estado e do direito público. Fioravanti apresenta

2
O sentido da expressão ordem aqui é de segmento social a que pertenciam as pessoas da sociedade
medieval, tal como a nobreza, composta por guerreiros; os trabalhadores; camponeses e artesãos; clero,
membros da igreja.

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a cultura constitucionalista sob aspecto mais geral da história ocidental, propondo


identificar na Antiguidade e no Medievo culturas constitucionalistas, embora
distintas.

2. É POSSÍVEL FALAR DE CULTURA CONSTITUCIONAL NA


ANTIGUIDADE OU NO MEDIEVO?

Na Antiguidade clássica, a compreensão do conceito de constituição não guarda


relação com a atualidade. Pensadores como Platão, Aristóteles, Políbio ou Cícero
dirigiram severas críticas aos governos sem forma estável de união. Chamavam de
politeia a organização política que reforçava a unidade da pólis por meio de regras e
procedimentos. Maurizio Fioravanti (2001, p. 19) considera legítimo traduzir o temo
“politeia” como constituição.

Para Platão, consoante Fioravanti (2001, p. 20), o maior equívoco da democracia foi
a ausência da forma verdadeiramente estável de união, ou melhor, a ausência de
regime constitucional. A acepção de politeia, aqui traduzida como constituição,
possui estreito vínculo com a experiência, a tradição e os antepassados. A noção
não incluía o significado de norma, pois se configurava em ideal, ao mesmo tempo
ético e político, de preservação da comunidade política diante da tirania, oligarquia
e demagogia. Em geral, a preocupação emergia diante de crise e separação política
e social, como foi o caso da decadência da polis grega e da república romana.

Para os antigos, a politeia não devia se orientar nem pelo método democrático de
sorteio dos cargos públicos, nem pelo aristocrático de reserva da eleição apenas aos
melhores da sociedade. O governo deveria se orientar por propriedades médias,
compósitas, experimentadas ao longo do tempo. Não existia, por óbvio, entre

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gregos e romanos constituição propriamente dita, senão apenas a politeia ou res


publica enquanto critério de ordem e medida das árduas relações políticas e sociais
de seu tempo. Por isso, a constituição dos antigos nunca foi institucionalizada por
votação ou imposta por vontade particular. Quase sempre a constituição nutria-se,
consoante Fioravanti (2001, p. 30), do mito dos antepassados, desenvolvida por via
da progressão e da razoabilidade.

Para consideração da cultura constitucionalista no Medievo, é primordial considerar


o pluralismo jurídico que delineia a espinha dorsal da política ao longo de todo o
período. Toda pessoa submetia-se a direito próprio (ou de seu grupo de
pertencimento), fosse étnico, funcional, territorial. O poder político respeitava a
coexistência da diversidade de tradições, pois ao senhor, à comuna ou ao monarca
interessavam exclusivamente as regras de conservação do poder, identificadas
hodiernamente como direito público. Havia relativo desinteresse sobre os demais
campos ou interesse apenas episódico (GROSSI, 2014, pp. 62-66).

No Medievo, especialmente no século XIII, surgiram por toda a Europa assembleias


representativas com estreita ligação com o desenvolvimento de tribunais e da
jurisprudência. Emergiu, na Baixa Idade Média, a compreensão de que os costumes
não deviam ser alterados sem acordo geral. Os novos impostos, exemplo mais
evidente, necessitavam da aprovação dos súditos e todas as decisões importantes
deviam ser tornadas públicas (STRAYER, 1970, p. 71).

Assim, a ordem jurídica medieval assentava-se sobre a “plataforma constitucional


do costume”, frequentemente invisível, mas onipresente e imperial; outras vezes,
expressa pela palavra escrita e transformada em lex por um príncipe zeloso

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(GROSSI, 2014, p. 117). A plataforma constitucional servia à defesa do caráter plural


e orgânico da sociedade, em que cada segmento social possuía singular importância
na organização do poder, inclusive o monarca. A violação de qualquer jurisdição
particular significava o desequilíbrio do tecido social. Como resume Fioravanti
(2001, p. 56), “a constituição mista dos antigos se dirige à legitimação dos poderes
públicos comumente reconhecidos, já a constituição mista medieval destina-se à
limitação desses mesmos poderes”.

3. O IMPÉRIO DA LEI ANTES DAS LEIS FUNDAMENTAIS

A destruição crescente da sociedade plural medieval ocorreu com a crescente


extensão do poder dos monarcas modernos. Como leciona Koselleck (1999, pp. 19-
31), o ponto de partida do fenômeno do Absolutismo foram as guerras religiosas.
No século XVI, a ordem tradicional encontrava-se cindida pela intolerância religiosa,
rompendo com o primado da identidade entre religião e política. Coube ao
soberano ampliar seu poder ao ponto de subjugar o antigo sistema pluralista de
poderes do Medievo, transformando a todos em súditos. O monarca passou à
condição de fonte do direito, colocando-se no papel, a um só tempo, de legislador
e juiz.

No plano da teoria política, dois modelos mantiveram-se em constante luta, o


tradicional e o pós-cartesiano. Eles possuíam em comum o universo literário dos
juristas e teólogos dos séculos XVII e XVIII. Além disso, os dois modelos tentavam
explicar a origem da sociedade, a constituição social, os limites do poder da Coroa
e as formas de governo (DELUMEAU, 1984).

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Os tradicionais cultivavam a doutrina tardo medieval de condenação dos políticos


como “ímpios e imorais” e suspeitavam dos tiranos. Já os modernos, condenavam a
dialética escolástica, os juristas praxistas e bartolistas. Interessavam-se pela boa
lógica matemática, assim como pelo jusracionalismo. Os dois paradigmas,
corporativismo e individualismo, entravam em conflito. No primeiro, prevalecia a
compreensão do mundo ordenado cristologicamente, da prudência do direito com
o uso do código de Justiniano e a ideia de cooperação das partes para formar o todo.
Nenhuma parte podia ser dispensável, nem o Rei, nem os súditos. A boa governança
reconhecia a autonomia dessas partes na balança equilibrada da sociedade. Cada
parte possuía seu iusrisdictio e seu officium (XAVIER & HESPANHA, 1998, pp. 113-
140).

Os modernos defendiam que, diante da impossibilidade de conhecer o plano de


Deus para as pessoas concretas, restava apenas discuti-las no plano abstrato. Deus
colocava-se no campo da fé, enquanto natureza humana no âmbito da razão. Dessa
premissa, o paradigma individualista configurou a laicização da teoria social.
Considerados em sua natureza, os indivíduos, de acordo com os modernos,
possuíam natureza belicosa e violenta: “[...] o homem é o lobo do próprio homem”
(HOBBES, 2006, p. 9).

Para as correntes corporativas, a vontade soberana de Deus manifestava-se na terra


pelo príncipe, fundamento que se tornou conhecido como providencialismo (ou
direito divino dos reis). Para os modernos, a vontade dos homens, levados pelos
perigos e inseguranças da sociedade natural, manifestava-se no pacto, cujo
princípio se denominou contratualismo e orientou o absolutismo pensado por
Thomas Hobbes e Samuel Pufendorf. Constituíram-se, portanto, dois modelos de

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absolutismo – o providencialista, em que “[...] Ele [Deus] governa a todos os povos,


dando-lhes a todos os seus reis [...]” (BOSSUET, 1999, p. 58) e o contratualista, em
que a sociedade civil se organizava segundo o acordo das vontades individuais.

Em Portugal, Pascoal de Mello Freire concebeu que os príncipes possuíam o direito


fazer leis e ditar regras e os súditos deviam segui-las para a utilidade da república,
denominação de época, embora o regime político fosse a monarquia. Esse princípio
contrariava a um só tempo a pretensão legislativa das Cortes e a opinião comum
entre os juristas de que a lei do Reino se acomodava à ratio iuris do direito comum.
Fortalecia-se igualmente a ideia de prevalência das leis em relação aos costumes e
de que as normas locais deveriam se conformar às leis do Reino (HOMEM, 2003, p.
237).

Para Antonio Barbas Homem (2003, p. 190), houve verdadeira obsessão, no século
XVIII, pela lei ao ponto de se falar de “delírio da literatura legiferante”. Dessa onda,
surgiu a obrigação primeira dos juristas Setecentistas de realizar compilações como
remédio à desobediência das leis principalmente pelos juízes, afeiçoados que eram
à interpretação criativa. A elaboração doutrinária confirmava o rei como fonte de
jurisdição e do poder normativo. Ultrapassava-se, assim, a ideia consensual de
autonomia dos corpos da antiga sociedade medieval. As autonomias corporativas
cederam lugar à centralização da vontade do soberano expressa em atos
normativos (HOMEM, 2003, p. 197).

Para Fioravanti (2001, p. 76; 80) Do ponto de vista político, servia ao absolutismo o
uso moderado das assembleias, corpos e comunidades, prevenindo o perigo do
isolamento e o do desgaste das atividades cotidianas de governo. Porém, a

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atribuição da soberania permanecia em todo caso exclusivamente nas mãos do


monarca. O rei encontrava-se autorizado, segundo os modernos, pela vontade dos
indivíduos que resolveram abandonar o precário estado da natureza em nome do
poder soberano comum; segundo os tradicionais pela providência divina que
governa os homens em direção à virtude.

A par das distinções no campo da teoria social, a imposição da lei pelo rei realizou-
se no período moderno com bastante dificuldade. Luís XIV adotou diversos
provimentos legislativos destinados a limitar os poderes dos juízes depois de entrar
dos conflitos ocorridos entre os anos de 1653 e 1673. Concentrado o poder no rei,
desaparecia a antiga concepção de nação organizada autonomamente, emergindo
a prevalência do Estado. Substituiu-se o rei-guerreiro dos tempos medievais pelo
rei-legislador do mundo moderno (PICARDI, 2008, pp. 82-89).

As leis não são, obviamente, novidades criadas na época moderna. No entanto, a


compreensão atual de lei construiu-se longamente durante o absolutismo.
Concorria com a norma legislada o Direito prudencial 3 , pois o Absolutismo não
conseguira derrotá-lo antes de ser ele próprio, como forma de governo, abatido:
“Julgar criticamente é nivelar tudo, reduzir até mesmo o rei [...] à condição de
cidadão” (KOSELLECK, 1999, p. 105).

A crítica do absolutismo guarda profundo vínculo com a formação da esfera pública


entre os séculos XVII e XVIII (HABERMAS, 1984, pp. 75-109). Especializados

3
Por direito prudencial compreende-se a ordem construída pelos juristas cuja autorictas lhes permitia
declarar a verdade jurídica nos casos concretos (NEDEL, 2008).

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inicialmente em críticas literárias, jornais e revistas passaram a se desenvolver como


centro de crítica às ações do Estado 4. A esfera pública ascendeu como contrapeso
ao poder do governo, e assuntos que antes se restringiam ao âmbito privado
começaram a ser expostos ao público. A opinião pública passou a disputar com o
poder do Estado a regulamentação da esfera social. À prática do segredo de Estado
foi contraposto o princípio de publicidade. Colocou-se a questão de saber se a lei
deveria depender apenas do arbítrio do príncipe ou de alguma lei.

Reinhart Koselleck (1999, pp. 50-55) considera o processo de crítica da opinião


pública ao Estado absolutista responsável por sua crise na Idade Moderna. A opinião
pública teria se fortalecido por meio de amplo debate intelectual e a sociedade
ganhou poder de intervenção indireta e paralela ao Estado. Consoante Habermas
(1984, p. 70), o critério confiável de diferenciação passou a ser o conceito rigoroso
de lei que não deveria se albergar somente na justiça, mas também na legitimidade
por “emanação de normas gerais e abstratas”.

4. DO IMPÉRIO DA LEI ÀS CONSTITUIÇÕES MODERNAS

A cultura constitucionalista moderna tem seus fundamentos mais importantes


lançados no Iluminismo e consubstancia-se nas revoluções americana e francesa. O
documento aprovado na Convenção da Filadélfia em 1787 possuía caráter provisório
porque não continha inicialmente a declaração dos direitos fundamentais. A

4
“O processo ao longo do qual o público constituído pelos indivíduos conscientizados se apropria da esfera
pública controlada pela autoridade e a transforma numa esfera que a crítica se exerce contra o poder do
Estado realiza-se como refunionalização (Umfunktionierung) da esfera pública literária, que já era dotada de
um público possuidor de suas próprias instituições e plataformas de discussão (HABERMAS, 1984, p. 68).

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ratificação do texto introduziu, por exigência de alguns Estados-membros, a Carta


de Direitos. Os responsáveis pelo feito foram Thomas Jefferson e James Madison,
dando origem às dez primeiras Emendas insertas na Constituição da Filadélfia e
aprovadas em 1791. Embora se reconheça o caráter revolucionário do Bill of Right
americano, a carta de independência americana representava preocupações menos
universais do que a declaração francesa, que refletia maior inquietação com as
garantias e direitos individuais (HUNT, 2009, pp. 116-126).

Para Maurizio Fioravanti (2001, p. 106), os americanos formularam a constituição


contra o sentido parlamentarista da constituição histórica inglesa, que reputavam
como o formato moderno do absolutismo. Na França, a revolução pretendeu criar a
nova constituição a partir do nada, separando “ por um abismo o que tinham sido
até então do que queriam ser de agora em diante” (TOCQUEVILLE, 1982, p. 43).

A Constituição francesa de 1791 procurou institucionalizar a sociedade com base em


princípios racionalistas e iluministas erigidos ao longo de todo o movimento
jusracionalista do século XVIII. Estabeleceu-se a igualdade de todos os cidadãos
perante a lei para fins de acesso às funções públicas e cobrança de impostos.
Entretanto, houve a sobrevivência de limitações à igualdade civil, dividindo a
cidadania política em ativa e passiva, conforme possuíssem ou não bens imóveis ou
rendimentos elevados. (HUNT, 2009, p. 148).

Inicialmente, a noção de comunidade nacional impôs a preocupação sobre funções


eletivas dos cidadãos. Prevaleceu no Oitocentos os modelos de eleição indireta e
censitária (na França somente em 1848 foi instituído o voto universal, raramente
copiado pelas democracias liberais). Mesmo dentre os cidadãos ativos distinguiam-

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se aqueles com capacidade de concorrer como representante, inclusive, por critério


de renda. A maioria podia apenas votar. Dentre votantes e eleitores, apenas os
últimos tinham o direito de votar e serem eleitos (MARTIN, 2008, pp. 38-39)

A radicalização de setores da revolução francesa, sobretudo, as pretensões de


soberania popular, conduziu a sistemática crítica à experiência. Edmund Burke 5
iniciou uma série de reflexões comparando França e Inglaterra, em que opunha os
excessos dos franceses à segurança jurídica dos ingleses. Em sua opinião, a França
havia estendido de tal forma o poder normativo sobre todo o tecido social que havia
criado nova forma de despotismo, abrindo-se ao arbítrio do momento, ao conflito
político ordinário, à sucessão demasiado rápida das maiorias (BURKE, 1982, p. 154).

A Inglaterra, por oposição, um século antes, fizera uma Revolução (Gloriosa) com o
objetivo de preservar as leis e liberdade. A constituição inglesa, ao contrário dos
franceses, afigurava-se fruto de longa experimentação e ponderação, longe dos
arroubos legislativos dos franceses. Apesar da comparação de Burke não revelar as
vantagens trazidas pela Revolução francesa para a tradição constitucionalista, em
particular o poder constituinte, sua obstinada defesa era a base solidamente
histórica da tradição constitucionalista inglesa (BURKE, 1982, p. 169).

Não cessaram as críticas à insegurança gerada pela revolução francesa. Para


Fioravanti (2001, p. 123), foi mérito de Kant (1724-1804) colocar em plano mais geral
o problema histórico das críticas de Burke. A reflexão kantiana sobre a constituição

5
Em sua célebre obra Reflexões sobre a Revolução Francesa de 1790.

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situa-se na origem de todas as doutrinas que se dirigem a reescrever o conceito de


soberania popular, tentando evitar o excesso radical da revolução francesa. Além
das influências jusracionalistas, a separação dos poderes aparece como a garantia
de segurança aos princípios de liberdade e igualdade. Tocqueville (1998, p. 114)
apresentava, como contribuição à contenção do ímpeto popular francês, a lição dos
americanos que não renunciaram à busca de limites constitucionais, que podia

[...] ser mudada pela vontade do povo, segundo formas estabelecidas e nos casos previstos
[...] Nos Estados Unidos, a constituição domina tanto os legisladores como os simples
cidadãos. Ela é pois a primeira das leis e não poderia ser modificada por uma lei.

Ao final do século XVIII e inícios do XIX, a tradição constitucionalista incluiu nova


reflexão acerca do valor da constituição, sobretudo a respeito do seu conteúdo
fundamental, o poder constituinte das assembléias populares e representativas. A
cultura constitucionalista incluiria os limites e a segurança dos poderes constituídos.

5. A CULTURA CONSTITUCIONALISTA E IDEÁRIO LIBERAL:


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ideário liberal depois de ter colocado em lugar de destaque a garantia das


liberdades fundamentais, avaliada como inerentes à pessoa humana, considerou
capital a divisão de poderes. Ao lado dos direitos dos homens colocava-se os direitos
da Nação, embora subordinados aos primeiros. Para Nilo Odalia (2003, p. 168), a
expressão nação na declaração francesa compreende o conjunto de cidadãos e a lei
como expressão da vontade geral. A nação, isto é, cidadãos e representantes
deveriam controlar as finanças e administração públicas, facilitada pela divisão dos
poderes. Mas, os franceses decidiram que, em nome da segurança das liberdades, o

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direito de representação cabia apenas aos setores considerados como “ativos”, isto
é, indivíduos de rendas mais elevadas (HUNT, 2009, pp. 148-149).

Na Europa, inicialmente, o modelo de direitos políticos consistia na monarquia


constitucional, apoiada no sufrágio censitário. A Revolução francesa foi duramente
combatida, interna e externamente, pelas forças do movimento restaurador ou
contrarrevolucionário. O período corresponde à época da Restauração das
monarquias e ao despertar das nacionalidades. Depois da queda de Napoleão, a
França retornou à monarquia, com o Bourbon Luiz XVIII. Não se tratou, no entanto,
de volta ao Antigo Regime como pretendiam os contrarrevolucionários. O monarca
outorgou carta constitucional muito semelhante à constituição de 1791 e
estabeleceu o regime parlamentar do tipo inglês (FUREIX, 2014, pp. 57-60).

As forças contrarrevolucionárias mantinham-se ainda atuantes e, em 1830, durante


as jornadas conhecida como os “Três Dias Gloriosos”, a população de Paris voltou
às ruas em protesto às ações de Carlos X, irmão e sucessor de Luiz XVIII. Derrotado
pelas forças populares, Carlos abdicou e, em seu lugar, após alguma polêmica, a
Assembleia Nacional francesa proclamou rei Luís Filipe, pertencente à Casa dos
Órleans. Conhecido como o “Rei Burguês” ou “Rei Cidadão, Luís Filipe conseguiu
conter os radicais republicanos e proclamou nova constituição em 1830, mais liberal
do que a entregue por Luís XVIII em 1814, principalmente, em razão do alargamento
das liberdades públicas e restrições ao poder real (FUREIX, 2014, pp. 61-63).

Da Alemanha sobreveio importante contribuição à cultura constitucionalista.


Diferente de Burke, que afirmava a superioridade da Constituição histórica inglesa,
Hegel lamentava que os alemães considerassem sua constituição o conjunto de

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contratos, pactos, atos de arbitragem sancionados apenas judicialmente.


Fortemente apegados ao seu patrimônio consuetudinário, os alemães permitiam a
cada estamento, autoridade e território certas imunidades, liberdades, privilégios e
direitos. Hegel, nas palavras de Fioravanti (2001, p. 135), criticava em sentido
depreciativo o aglomerado de direitos constitucionais adquiridos na forma do
direito privado.

Para Hegel, apesar de todo o tumulto revolucionário, os franceses foram capazes


manter o Estado coeso por meio de um sistema financeiro e tributário, além de um
único exército. Tudo isso faltaria à Alemanha, apesar da reinvindicação da
Constituição histórica. Hegel chegou a manifestar-se favoravelmente aos príncipes
territoriais alemães que recrutavam burocratas ao custo de parte das autonomias
das cidades e privilégios nobiliárquicos. Chegou a se contrapor aos antigos direitos
como fundados constitucionalmente. No lugar disso, propôs a formulação da
constituição como norma de direito público que deveria se impor sobre a estrutura
privada da constituição estamental. Ao combater todo tipo de privatismo,
consoante Fioravanti (2001, p. 136), Hegel condenava a constituição como norma
de garantia da propriedade e dos direitos dos indivíduos.

Caberia à constituição coibir tanto o antigo privatismo estamental, como o


moderno privatismo dos indivíduos, já que um e outro destruiriam o princípio da
unidade política do Estado. Nas formulações de Hegel, Fioravanti (2001, p. 138)
encontra resposta à necessidade de estabilidade política. A constituição não
poderia apenas ser entendida como a norma que ordena os poderes e garante os
direitos. Deveria, em verdade, representar a ordem fundamental de convivência
civil.

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Para Nobert Bobbio (BOBBIO, 1980, pp. 158-161), a liberdade, em Hegel,


fundamentava-se no respeito à lei e no cumprimento do dever junto à coletividade.
O Estado seria o reino da liberdade porque os indivíduos cumprindo seus deveres
estariam conscientes de estarem buscando o bem coletivo. A sociedade civil seria o
reino da necessidade, pois a busca pela subsistência responde a intenções
inconscientes. O princípio de divisão dos poderes não representava apenas artifício
concebido para prevenir o perigo dos abusos do poder, como em Montesquieu, mas
o princípio de organização do corpo político, mediante o qual as esferas particulares
seriam reconduzidas ao geral.

Chegou-se a considerar o monarca e as assembleias representativas como órgãos


do Estado, expressos no direito público como manifestação da soberania do Estado.
Consoante Fioravanti (2001, pp. 139-140), afigurou na Prússia a compreensão de
que, na ausência de clareza da norma constitucional, o Estado deveria atuar em
nome do interesse público. Já na Constituição belga, declarava-se que os poderes
do rei não podiam ser outros além daqueles atribuídos formalmente. Dos dois
modelos, resultou o arquétipo de soberania do Estado que limitava aos mesmo
tempo a soberania popular e a monárquica. Evitava-se duplamente o exemplo
prussiano e francês. A cultura constitucional do século XIX definia-se somente e
exclusivamente para sustentar o Estado soberano, para organizá-lo, discipliná-lo e
limitá-lo. Esta foi a resposta à necessidade de estabilidade que atravessava a Europa
depois das revoluções de fins do Setecentos e ao longo do Oitocentos.

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