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CUIABÁ – MT
2016
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Cuiabá – MT
2016
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Ficha Catalográfica
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367, - Boa Esperança – CEP: 780609000 – Cuiabá/MT
Tel: (65) 3615-8408 – Email: secretariameel@hotmail.com.br
FOLHA DE APROVAÇÃO
Cuiabá – MT
2016
4
Agradecimentos
A Deus, pela força e providência em todos os momentos dessa caminhada que Ele me
permitiu trilhar.
À professora Drª. Maria Inês Pagliarini Cox, minha orientadora dos sonhos, por me guiar
nessa jornada, pelas sábias e ricas orientações, paciência e afeto, cuja excelência me inspira na
busca do conhecimento.
Aos professores do PPGEL, pela partilha e incentivo em nossas buscas. Vocês são brilhantes.
Aos professores Dr. Fernando Zolin Vesz e Drª. Sueli Correia Lemes Valezi, pelas
iluminações e sugestões feitas no exame de qualificação.
À minha mãe, Aparecida M. Figueiredo, que inculcou em mim o amor aos estudos. Meu
exemplo de luta, honradez e persistência.
Ao Rony, meu esposo e incentivador, sempre acreditando em meus sonhos mais do que eu
mesma, pela companhia mesmo à distância e apoio incondicional.
À Clézia Figueiredo, minha irmã e amiga, por desempenhar tão bem seu papel de tia,
amenizando minha ausência constante durante esse processo.
À IBN Sorriso, pelas orações que me fortaleceram em todo o tempo, principalmente nos
momentos de enfermidade da minha mãe. Obrigada a todos os membros dessa casa.
Aos meus inesquecíveis colegas de mestrado, Márcio, Patrícia, Rochelle, Ivanete e Aparecida,
pelos momentos de distração que deram mais leveza aos meus dias e pelas trocas que me
enriqueceram durante esse tempo. Obrigada pelo carinho e amizade.
À Betsemens e Rosângela, amigas de mestrado e para a vida toda, que desde o primeiro dia
partilharam comigo das mesmas lutas e sonhos. Obrigada por amenizarem a saudade da
minha família durante minha estada em Cuiabá.
À Lili Marlene Ergang, minha amiga cult, pelas proveitosas conversas sobre a „sorrisidade‟
que muito contribuíram para esse trabalho.
RESUMO: Este estudo tem por objeto de investigação discursos produzidos acerca da divisão
do corpo social urbano de Sorriso-MT pela BR 163 em duas regiões bem distinta: o lado de
“cá” (o lado dos sulistas) e o lado de “lá” (o lado dos não-sulistas). No imaginário da
população de Sorriso, essa divisão geográfica corresponde a diferenças socioeconômicas,
étnicas e culturais que têm gerado interpretações sobre o lado de “lá” como lugar indesejável
onde se origina boa parte dos problemas locais, principalmente aqueles relacionados à
segurança dos cidadãos do lado de “cá”. Não é, pois, como referente físico que a BR 163
interessa a esta pesquisa e sim como referente discursivo. Interposta entre o “lá” e o “cá”, a
rodovia funciona como uma metáfora da divisão interna do corpo social urbano de Sorriso,
como um símbolo do apartheid silencioso que vige entre sulistas e não-sulistas. O estudo tem
por objetivo geral captar os sentidos que recobrem, pois, a divisão geográfica da cidade pela
BR 163. Para a consecução desse objetivo geral, buscar-se-á identificar e interpretar, no nível
da materialidade linguística, as palavras-valise que necessariamente indiciam a relação dos
enunciados atuais (a formulação) com o interdiscurso ou a memória discursiva (a
constituição), no tocante à segregação e à discriminação de não-sulistas por sulistas. Pretende-
se, por meio dessa démarche, compreender como se (re)produzem os sentidos da divisão,
hierarquização, discriminação e segregação, e não os sentidos da complementariedade e
igualdade entre sulistas e não-sulistas na sociedade sorrisense. Pretende-se, ainda, delinear a
formação discursiva que funciona como sítio desse sentido de divisão, bem como a formação
ideológica correspondente. Os procedimentos metodológicos e teóricos mobilizados pela
pesquisa inscrevem-se no campo da Análise do Discurso, desenvolvida sob o signo das ideias
de Michel Pêcheux (1938-1983). A constituição do corpus discursivo se faz pela combinação
de duas vias de pesquisa: a arquivista e a experimental. Mediante pesquisa de arquivo, foram
selecionados quatro textos jornalísticos da mídia local e estadual nos quais se “ouvem”
discursos preconceituosos, excludentes e segregadores a propósito dos outros que vivem no
“lá” de Sorriso. Pela via experimental, foram realizadas cinco entrevistas para trazer à tona os
sentidos que, embora ainda não estivessem textualizados, já funcionavam no imaginário e na
memória discursiva da população sorrisense. A análise mostra que, enquanto os enunciados
das matérias midiáticas procuram mitigar os efeitos de sentido da divisão/segregação entre
sulistas e não-sulistas no corpo social urbano de Sorriso, os enunciados das entrevistas os
admitem sem meias palavras.
ABSTRACT
ALMEIRA, Terezinha Ferreira de. THE BR 163 in the city of Sorriso: urban social
body apartheid. Master Degree on Language Studies Dissertation. Mentor: Maria Inês
Pagliarini Cox Cuiabá, MT: Federal University of Mato Grosso, 2015.
ABSTRACT: This study aims at investigating discourses produced in relation to the division
of the urban social body of Sorriso-MT by the BR 163 into two very distinct regions: the
“here” side (the side of the Southerners) and the “there” side (the side of the non-
Southerners). In the imaginary of Sorriso population, this geographic division corresponds to
the socioeconomic, ethnic and cultural differences which have generated interpretations about
the “there” side as an undesirable place where much of the local problems originate,
especially those related to the security of the citizens from the “here” side. Therefore, the BR
163 is of interest to this research as a discursive referent rather than a physical one. Interposed
between “there” and “here”, the highway serves as a metaphor for the internal division of the
urban social body of Sorriso, as a symbol of the silent apartheid which prevails between
Southerners and non-Southerners. The study aims at capturing the senses that cover the
geographic division of the city by the BR 163. To achieve this overall objective, it will be
sought to identify and interpret, at the level of linguistic materiality, the words which
necessarily show the relationship of the current enunciations (formulation) with the inter-
discourse or discursive memory (the constitution), regarding the segregation and
discrimination of non-Southerners by Southerners. It is intended, through this démarche, to
understand how the senses of division, hierarchy, discrimination and segregation (re)produce
themselves, and not the senses of complementarity and equality between Southerners and
non-Southerners in the society of Sorriso. It is also intended to outline the discursive
formation which works as a site of this sense of division, as well as the corresponding
ideological formation. The methodological and theoretical procedures utilized by the research
fall into the Discourse Analysis, based on ideas of Michel Pêcheux (1938-1983). The
constitution of the discursive corpus is done through the combination of two lines of research:
the archivist and the experimental. Through archival research, four journalistic texts from the
local and state media were selected in which prejudiced, excluding and segregating discourses
“are heard” about the others who live in the “there” side of Sorriso. Through the experimental
line, five interviews were conducted to bring to light the senses that, although not textualized
yet, worked already in the imaginary and in the discursive memory of the population from the
city. The analysis shows that, while the enunciations of media materials seek to mitigate the
effects of the senses of the division/segregation between Southerners and non-Southerners in
the urban social body of Sorriso, the enunciations of the interviews admit them bluntly.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1: Sorriso – limites territoriais p.
Figura 2: Placa de boas vindas no canteiro central da BR163 na entrada de p.
Sorriso
Figura 3: Marco da inauguração da BR 163 em Cachoeira do Curuá (km 877) p.
Figura 4: Rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) p.
Figura 5: Mapa urbano de Sorriso p.
ÍNDICE DE QUADROS
Quadro 1: Materiais obtidos mediante pesquisa de arquivo e experimental p.
Quadro 2: Os níveis do dispositivo analítico p.
Quadro 3: Despesas por função de governo p.
Quadro 4: Projetos oficiais de colonização ao longo da BR-163 em MT (1970- p.
1992)
Quadro 5: Projetos particulares de colonização ao longo da BR-163 em MT p.
(1968-992)
Quadro 6: Semas positivos e negativos do discurso da colonização p.
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SUMÁRIO
Introdução
Capítulo I
DISPOSITIVO TEÓRICO E DISPOSITIVO ANALÍTICO
1. 1 Da constituição do campo da Análise de Discurso
1. 2 Da ideologia jurídica e interpelação do indivíduo como sujeito de direito
1. 3 Do discurso, formação discursiva e forma-sujeito.
1. 4 Do interdiscurso e memória discursiva
1.5 Da cidade e cidade dividida como espaço simbólico
1. 6 Dos procedimentos metodológicos em Análise de Discurso
1. 7 Em resumo
Capítulo II
NARRATIVAS SOBRE A CIDADE DE SORRISO
2.1. Do município de Sorriso
2.2 Da capital nacional do agronegócio
2.3 Dos projetos de colonização e criação de cidades no interior de Mato Grosso
2.4 Da construção da sociedade sorrisense
2.5 Em resumo
Capítulo III
O OUTRO NO ESPAÇO URBANO DE SORRISO: EFEITOS DE SENTIDO
3.1 Enunciados buscados em arquivo
3.1.1 Matéria 1: o artigo definido, a nominalização e a lexia “convidar”
3.1.2 Matéria 2: o advérbio de inclusão “também” e a comparação “assim
como... também”
3.1.3 Matéria 3: a designação pelo topônimo “Maranhão”
3.1.4 Matéria 4: “uma extensão do sul” e “a segunda casa”
3.1.5. Das matérias em conjunto
3.2 Enunciados obtidos mediante entrevistas
3.2.1 Entrevista 1: “quando eu passo ali, nem parece que a gente tá em Sorriso”.
3.2.2 Entrevista 2: “os ladrões que você vê é tudo de lá, as mortes é tudo de lá, as
facadas é tudo de lá”
3.2.3 Entrevista 3: “a escola com maiores problemas é a escola São Domingos”
3.2.4 Entrevista 4: “o São Domingos é o bairro injustiçado da vez”
3.3 Em resumo
Conclusão
Referências bibliográficas
10
INTRODUÇÃO
1
Usar-se-á neste estudo, acompanhando Mohsim Hamid, o termo “migrante”, ao invés de “imigrante”. O autor
argumenta que o termo “imigrante” parece privilegiar o lugar (país, estado, etc) de chegada, ocultando que todo
“imigrante” é também um “emigrante”. O termo “migrante” cobre as duas condições: a imigração e a emigração.
Ademais, para o autor, a migração é um direito humano fundamental, tal como a liberdade de expressão e a não
discriminação de gênero, raça, sexualidade e religão. Enfaticamente afirma Hamid que “If we do not recognise
their right to move, we will be attempting to build an apartheid planet where our passports will be our castes, and
where obedience will be enforceable only through ever-increasing uses of force. There is another way. We can
recognise the human right to migration.[…] Only in doing so can we hope to build a world in accordance with
the values we claim to believe in – liberty, equality, democracy – and wash clean the taste of hypocrisy that
burns so bitter in so many of our mouths”.
11
construídas sem projeto arquitetônico, próximas umas das outras e margeando as ruas,
ausência de espaços de lazer, mostram o descaso do poder público, bem como o baixo poder
aquisitivo de seus moradores.
A divisão do corpo social, coincidindo com um lado e outro da BR 163, é tão presente
e dolorida àqueles que vivem no lado de “cá” de Sorriso na condição de “não-sulistas” que
pode justificar um estudo como tal. Não é outra a motivação que põe em movimento esta
pesquisadora, uma migrante mato-grossense que vive no lado de “cá” da cidade há mais de 10
anos, sempre atenta e incomodada com a divisão entre o “lá” e o “cá”, divisão que, além de
administrativa e política, é também simbólica. Ademais, não se pode deixar ouvir as palavras
de Orlandi (2004, p.11), acerca da relevância de se estudar o espaço urbano na
contemporaneidade: “Para nossa época, a cidade é uma realidade que se impõe com toda sua
força. Nada pode ser pensado sem a cidade como pano de fundo. Todas as determinações que
definem um espaço, um sujeito, uma vida cruzam-se no espaço da cidade”.
Dessa forma, mergulhando no imaginário e na memória discursiva da sociedade
sorrisense, objetiva-se captar os sentidos que recobrem a divisão geográfica da cidade pela
BR 163 que, apesar de ligar o município com o sul e o norte do estado e do país, no perímetro
urbano atua como um muro que divide o corpo social em dois grupos. Não é, pois, como
referente físico que a BR 163 interessa a esta pesquisa e sim como referente discursivo.
Interposta entre o “lá” e o “cá”, a rodovia funciona como uma metáfora da divisão interna do
corpo social de Sorriso, como um símbolo do apartheid silencioso que vige entre sulistas e
não-sulistas. Ecos da memória discursiva que afasta o “lá” (o lado dos não-sulistas) e o “cá”
(o lado dos sulistas) podem ser ouvidos frequentemente em variadas cenas de enunciação.
São, portanto, os ecos dessa memória que este estudo focalizará.
Para a consecução desse objetivo geral, buscar-se-á identificar e interpretar, no nível
da materialidade linguística, as palavras-valise que necessariamente indiciam a relação dos
enunciados atuais (a formulação) com o interdiscurso ou a memória discursiva (a
constituição), no tocante à segregação e à discriminação de não-sulistas por sulistas na cidade
de Sorriso. Pretende-se, por meio dessa démarche, compreender como se (re)produzem os
sentidos da divisão, hierarquização, discriminação e segregação, e não os sentidos da
complementariedade e da igualdade entre sulistas e não-sulistas na sociedade sorrisense.
Pretende-se, ainda, delinear a formação discursiva que funciona como sítio desse sentido de
divisão, bem como a formação ideológica correspondente.
Especificamente para este estudo, optou-se, para a constituição do corpus discursivo,
pela combinação de duas vias: a arquivista e a experimental. Mediante pesquisa de arquivo,
13
foram selecionados quatro textos jornalísticos da mídia local e estadual nos quais se “ouvem”
discursos preconceituosos, excludentes e segregadores a propósito dos outros que vivem no
“lá” de Sorriso. Pela via experimental, foram realizadas quatro entrevistas (com uma dona de
casa, com alunos do 9º. ano de uma escola particular da cidade, com a assessora de projetos
da secretaria municipal de educação e com um policial militar) para trazer à tona os sentidos
que, embora ainda não estivessem textualizados, já funcionavam no imaginário e na memória
discursiva da população sorrisense. Tanto no caso dos enunciados recortados de textos
buscados em arquivos quanto no caso daqueles recortados de entrevistas realizadas pela
pesquisadora, é a posição-sujeito “sulista” que constitui o foco da análise. Não há no corpus
analisado enunciados que possam ser atribuídos à posição-sujeito “não-sulista”. São, pois,
enunciados em que os de “cá” falam dos de “lá” que constituem o corpus.
Balizam a interpretação dos enunciados, conceitos urdidos no campo da Análise do
Discurso, desenvolvida sob o signo das ideias de Michel Pêcheux (1938-1983), lançadas em
1969, na obra Análise automática do discurso, e consolidadas em Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio, publicada em 1975, sob a influência da leitura de Aparelhos
ideológicos de estado de Louis Althusser (1970). Retomam-se também autores como Michel
Foucault (1986), Dominique Maingueneau (2011, 2008, 2007), Denise Maldidier (2003), Eni
Orlandi (2012, 2008, 2004, 1999 e 1998), Sírio Possenti (2004), dentre outros autores filiados
à orientação de Pêcheux.
Esta dissertação está organizada em três capítulos.
O primeiro capítulo delineia as balizas teórico-metodológicas nas quais se fundamenta
a análise. Inscrever-se no universo conceitual da Análise de Discurso não significa lançar mão
de todos os seus conceitos, mas sim eleger aqueles que parecem mais virtuosos em relação ao
objeto analisado. Para este estudo, considerou-se necessária a retomada dos seguintes
conceitos: ideologia, discurso, formação ideológica, formação discursiva, interdiscurso,
memória discursiva, enunciado e forma-sujeito. Dedica-se também uma das seções à leitura
do espaço urbano como um espaço simbólico. Além disso, foram revisitados e detalhados os
procedimentos de constituição do corpus, bem como as etapas de análise.
O segundo capítulo, organizado em quatro seções, revisita brevemente a história de
Sorriso. Na primeira seção, retrata-se o município de Sorriso, seu surgimento como agrovila
na década de 70, bem como sua trajetória até a emancipação, em 1986. Na segunda seção, são
apresentados dados sobre economia, produção agrícola, exportação, arrecadação municipal,
índice de desenvolvimento humano que valeram à cidade o título de “Capital Nacional do
Agronegócio”. Na terceira seção, são retomados os modos de colonização no interior de Mato
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Grosso, para perfilar aquele que deu origem ao município de Sorriso. Por fim, na quarta
seção, trata-se da construção da sociedade sorrisense, focalizando a divisão do corpo social
urbano em sulistas e não-sulistas.
O terceiro capítulo, organizado em três seções, é dedicado à análise do corpus
discursivo, à luz de conceitos da Análise de Discurso revisitados no Capítulo I. A análise
privilegia a interpretação de palavras-valise que funcionam como pontos culminantes da
dependência do enunciado atual com o já-dito, a memória discursiva ou interdiscurso. Na
primeira seção, dividida em cinco subseções, são analisadas os enunciados recortados das
matérias midiáticas. Na segunda, dividida em quatro subseções, são analisados os enunciados
recortados das entrevistas. Nos dois casos, a análise busca mostrar como o conjunto de
enunciados que constituem o corpus se nutrem de um discurso segregador que circula
vigorosamente em meio ao corpo social urbano de Sorriso. Na terceira, faz-se uma síntese das
análises realizadas nas duas seções anteriores.
A conclusão é o espaço-tempo do trabalho dedicado à retomada e à exploração do
vínculo de significação entre discurso e ideologia, mais precisamente entre o discurso
segregador e a ideologia da colonização.
15
Capítulo I
Este estudo é balizado pela Análise de Discurso que se desenvolveu a partir da ideias
de Michel Pêcheux, com a publicação, em 1969, de Análise Automática do Discurso –
AAD69, considerada a obra inaugural desse campo de investigação da linguagem. O estudioso
francês analisa as bases epistemológicas que viriam a dar origem à Análise de Discurso,
enfatizando o papel da linguística com ciência humana. O “corte saussuriano”, ou seja, a
dicotomia língua/fala (langue/parole), tem papel decisivo no que viria a se constituir como
Análise de Discurso, pois, até então, estudar a língua era estudar suas normas em sentido
16
objeto. Deleuze (1983, p. 21) afirma que a revolução copernicana de Kant ensina que “somos
nós que comandamos”. Depois de Kant, o segundo sentido tende a substituir o primeiro não
apenas na filosofia, mas também nas ciências humanas, nas artes, na política, e,
principalmente, no direito etc.
Essa inversão de sentido inscreve-se na mudança da ordem econômica feudal em
direção ao capitalismo, encetada pelo surgimento de uma nova classe social – a burguesia. É
nesse novo tipo de sociedade que se universaliza a ideologia jurídica, nucleada pela categoria
do sujeito de direito. Nas sociedades erigidas sobre a escravatura e a servidão, não era
necessário dizer que “todos são iguais perante a lei”, que todos “são sujeitos de direito”, pois
a desigualdade era tida como legítima. É próprio da ideologia jurídica a evidência de que
somos sempre já sujeitos. Sobre isso afirma Batista (2014) que:
[...] a constituição dos indivíduos em sujeitos de direito não se dá por meio de procedimentos
de interpelação propriamente subjetivos, mas materiais. Ninguém tem sua individualidade
formatada para ser sujeito de direito [...], mas esta condição lhe é atribuída
independentemente de qualquer subjetividade psicológica pelo seu próprio registro de
nascimento. Não é possível existir na sociedade capitalista sem a condição de sujeito de
direito. Ela é mediação necessária da sociabilidade. Fetos nascituros, bebês sem
individualidade psíquica formada, indivíduos em estado vegetativo e pessoas com
deficiências intelectuais severas são todos sujeitos de direito, ainda que, eventualmente, suas
condições não os tornem sujeitos interpeláveis por outros Aparelhos Ideológicos de Estado
(BATISTA, 2014, p. 13)
administração, polícia, tribunais, prisões etc., funciona pela violência, os AIEs funcionam por
meio da ideologia. Todos os AIEs “concorrem para um mesmo fim: a reprodução das relações
de produção, isto é, das relações de exploração capitalista” (ALTHUSSER, [1970] 1985, p.
78). Os AIEs são o lugar da luta de classes e, neles, o poder não impera de modo unilateral,
pois as antigas classes dominantes não abandonam prontamente suas posições para dar lugar
às novas. Se, por um lado, os AIEs são a instância de realização da ideologia dominante, por
outro, são o espaço em que as classes dominadas com ela se confrontam.
Althusser ilustra o processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos nos AIEs,
recorrendo ao exemplo da ideologia religiosa:
Tal análise não tentaria isolar, para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de
coerência; não se disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes; mas estudaria
formas de repartição (...) descreveria sistemas de dispersão.
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado
carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar
semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio
de objetividade” (FOUCAULT, [1969] 1986, p.42 e 43). (grifos da pesquisadora)
[...]o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, não existe em si
mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao
contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é,
reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões e
proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seus sentidos em referência a essas
posições, isto é, em referência às formações ideológicas, isto é, às formações
discursivas nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos então formação
discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o
que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um
panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.).
Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu
sentido da formação discursiva na qual são produzidos: diremos que os indivíduos são
interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações
23
[...] a formação discursiva é uma unidade dividida, a qual, embora seja passível de
descrição por suas regras de formação, por suas regularidades, não é una, mas
heterogênea, não de forma acidental, mas constitutiva. Assim, no interior de uma
formação discursiva coabitam vozes dissonantes que se cruzam, entrecruzam
dialogam, opõem-se, aproximam-se, divergem, existindo, pois, espaço para a
divergência, para as diferenças, pois uma formação discursiva é “constitutivamente
frequentada por seu outro” (GRANJEIRO, 2007, p. 39).
Como afirma Granjeiro (2007, p. 38), “O sujeito não é mais um je tout-puissant2, que assume
os enunciados. São, inversamente, os enunciados que se impõe a ele em função das posições
que ocupa”.
A forma-sujeito que, na postulação de Althusser (1985), é constituída pelas ideologias
engendradas sob o signo da ordem antropocêntrica, sobre a qual se erigiram, na idade
moderna, o direito, a filosofia idealista, a estética romântica, a ética, a economia e a política
neoliberal, o capitalismo, a psicologia, a pragmática, dentre tantos outros saberes e práticas
que regem a vida do homem, figura como um sujeito responsável pelo que diz, como um
sujeito livre, autônomo e criativo para dizer o que pensa/deseja, como um sujeito que se auto-
governa e controla seu dizer, como um sujeito consciente que sabe o que diz, como um sujeito
uno, homogêneo e coerente. Contudo, para fazer sentido, esse sujeito, qualquer sujeito, não
pode não perder-se no Outro, não pode não fazer ecoar os sentidos que povoam a memória
discursiva. Diz propriamente Pêcheux (1975, p. 153), “Como se eu que falo estivesse no lugar
onde alguém me escuta”.
Nos termos de Cox (1989, p. 139), “sob a máscara do „eu falo‟, vive o Outro a me
fazer falar sem que eu queira/saiba/fale. Sob a evidência do „eu falo‟, age ininterruptamente o
processo de interpelação ideológica e discursiva”. Nenhum outro enunciado reflete tão
propriamente a ideia do sujeito cindido quanto aquele de Rimbaud (1972, p. 248) C’est faux
de dire Je pense: on devrait dire on me pense – pardon du jeu de mot. Je est um autre.3 Nesse
enunciado a quebra sintática entre je e est (ou seja, a não concordância verbal entre o sujeito
pronominal je e o núcleo do predicado est) é a expressão material de uma desconstrução
violenta do cogito cartesiano que leva a uma afirmação paradoxal: a identidade é a alteridade
(COX, 1989, p. 103). Na oração on me pense, o sujeito/agente je se transforma em
objeto/paciente me. O sujeito é o on, um pronome indefinido, que evoca “uma força anônima
que escapa à condição de pessoa, quer seja o texto do inconsciente, a linguagem, o corpo
social do discurso, o texto da cultura, que me fala, que fala através de mim” (FELMAN, 1978,
p. 104). Trazido para a Análise de discurso, esse on seria o equivalente das formações
discursivo-ideológicas que interpelam o indivíduo em sujeito.
Para dar conta da contradição vivida pelo sujeito entre ser determinado pelas
formações discursivo-ideológicas (estar/ser sujeito a) e ter a ilusão de ser a fonte do sentido
2
A expressão francesa „je tout-puissant‟ pode ser traduzida como „eu todo-poderoso‟ que, segundo o idealismo,
era tido como o senhor do pensamento, do conhecimento e da expressão. Esse „eu todo-poderoso‟ foi destronado,
pelo materialismo, da posição central que ocupava, para ser concebido como determinado pelas posições que
ocupa.
3
“É falso dizer Eu penso: deveríamos dizer pensam-me – perdão pelo jogo de palavras. Eu é um outro”.
(RIMBAUD, 1972, p. 248).
25
(ser sujeito de), Pêcheux (1988, p. 173-185) propõe a noção de esquecimento nº. 1 e nº. 2 . O
esquecimento não deve ser entendido como perda de algo sabido, mas como acobertamento
da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito. O esquecimento nº. 1 é de ordem
ideológica, já o esquecimento nº. 2 é de ordem enunciativa. Pelo esquecimento nº. 1, temos a
ilusão de ser a fonte dos nossos enunciados e produtores de sentidos, quando na verdade, só
fazemos repetir sentidos já existentes. Pelo esquecimento nº. 2, somos tomados por uma
ilusão referencial que “produz em nós a impressão da realidade do pensamento [...] e nos faz
acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo
que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só
pode ser assim.” (ORLANDI, 1999, p.35). É preciso deixar claro que o esquecimento e a
ilusão são constitutivos do sujeito e dos sentidos: “As ilusões não são „defeitos‟, são uma
necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos”
(ORLANDI, 1999, p.36).
que autorize seu dizer frente a seu destinatário, que participa da constituição do discurso por
meio do jogo das imagens.
Ao se referir à dêixis enunciativa, Maingueneau (2008) a diferencia da dêixis
linguística que corresponde à localização espacial e temporal no sentido literal. Para o teórico,
“essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e temporal, define de fato uma instância de
enunciação legítima, delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua
própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2008, p.89). Não se trata da data tampouco do local
geográfico da enunciação em si, e sim de tempo e espaço ideológicos e históricos, conforme
as restrições da formação discursiva.
Para Maingueneau (2008) o modo de enunciação corresponde à maneira de dizer do
discurso, que, mesmo que seja escrito, apresenta uma „voz‟ peculiar, chamada
preferencialmente de „tom‟. Ao tom estão associados a voz, a oralidade e o ritmo, bem como
o próprio corpo, observados no discurso. “A fé em um discurso supõe a percepção de uma voz
fictícia, garantia de um corpo. [...] O próprio tom se apóia sobre uma dupla figura do
enunciador, a de um caráter e a de uma corporalidade, estreitamente associadas”
(MAINGUENEAU, 2008, p.91 - 92). Em artigos posteriores, o autor tratará do modo de
enunciação na perspectiva do ethos, uma noção tomada da retórica clássica, mas
ressignificada no escopo da Análise de Discurso.
Se, na retórica clássica aristotélica, o ethos vinculava-se à eloquência, à oralidade em
situação de fala pública, na Análise de Discurso, a noção aplica-se a todos os tipos de texto,
(orais, escritos ou mesmo multimodais). De acordo com o autor, qualquer texto apresenta
“uma „vocalidade‟ que pode se manifestar numa multiplicidade de „tons‟”, que se associam ao
“corpo do enunciador (e, bem entendido, não do corpo do locutor extradiscursivo), a um
„fiador‟, construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação”
(MAINGUENEAU, 2011, p. 17-18). O termo “tom” e não “voz” lhe parece mais adequado
para designar tanto o escrito quanto o oral (MAINGUENEAU, 2011, p.18). Acrescenta,
ainda, que o ethos “recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto de
determinações físicas e psíquicas associadas ao „fiador‟ pelas representações coletivas”,
correspondendo ao “caráter” e à “corporalidade”. Maingueneau (2011, p. 18) explica que “o
„caráter‟ corresponde a um feixe de traços psicológicos”. E a “corporalidade” está associada a
uma compleição física e a uma maneira de vestir-se”. Ele se refere a um certo modo de
mover-se no espaço social, que ratifica certos comportamentos estereotípicos próprios de um
“mundo ético” compartilhado pelo enunciador e seus coenunciadores. O teórico afirma que o
modo de enunciação está, pois, sujeito às mesmas restrições semânticas. O enunciador exerce
31
restrições que funda a existência do discurso pode ser igualmente pertinente para outros
domínios simbólicos.
Na sétima hipótese, afirma-se que a formação discursiva revela-se, assim, como um
esquema de correspondência entre campos à primeira vista heterônimos. Porém, a teoria da
articulação entre a prática discursiva, a formação social e a conjuntura histórica ainda precisa
ser lapidada. Maingueneau (2008) exemplifica a correspondência entre o discurso religioso,
cosmológico e político ao estudar o discurso humanista devoto (a ele corresponde o discurso
do Cosmos finito e o discurso político pró-aristocrático e pró-feudalismo) e o discurso
jansenista (a ele corresponde o discurso do universo infinito e o discurso político
tendencialmente burguês).
A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao
discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como
aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos
memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob
a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada
tomada da palavra. (ORLANDI, 1999, p. 31)
cidade e erguer barracos onde pudessem se abrigar. Em pouco tempo, o que era para ser o
parque industrial se tornou uma área residencial popular que não cessa de se expandir. Muito
comumente o espaço concebido é incapaz de conter a potência da prática espacial que parece
ganhar vida própria.
Contudo, nem sempre a direção da interferência é da prática espacial sobre o espaço
concebido. Pode ocorrer o inverso por meio do processo de “gentrificação” de áreas urbanas
muito importantes no passado (centro histórico, regiões portuárias, ferroviárias etc.), mas
que, com o crescimento da cidade, se degradaram e passaram a abrigar uma população de
pessoas empobrecidas e marginalizadas sócio-econômica e culturalmente. Gentrificar
significa, pois, enobrecer uma área desvalorizada de acordo com projeto de revitalização do
espaço urbano, via de regra envolvendo iniciativa público-privada. Tudo começa com uma
representação do espaço. Porém, as melhorias das áreas revitalizadas nunca são desfrutadas
pelos seus antigos moradores, já que eles terão sido “despejados” e “depositados” nos bairros
populares da periferia da cidade. Não há unanimidade na visão dos urbanistas com relação a
essa prática: para uns ela é a solução para regenerar áreas deterioradas, mas para outros se
trata de uma prática higienista que busca transformar áreas centrais degradadas e conflituosas
em espaços destinados ao entretenimento e ao consumo para uma parcela da população com
perfil socioeconômico superior. A gentrificação atua no sentido inverso ao ideal democrático
da polis que é o de convívio e interação das diferenças sociais e culturais. O exemplo mais
conhecido de “revitalização” no Brasil é o do Pelourinho em Salvador, realizado na década
1990. Por meio dele se desalojaram os antigos moradores dos casarões coloniais do centro
histórico e se promoveu uma operação de restauração das fachadas dos edifícios e de
renovação e readequação de seu interior para a instalação de restaurantes, lojinhas de
artesanato, escolas, museus, espaços para show e apresentações artísticas, instituições várias
etc., voltados diretamente para os turistas.
Segundo Lefebvre, (1999, p. 110), o espaço urbano é uma força centrípeta, uma
“centralidade” que reúne todas as diferenças, mas é também uma força centrífuga que gera a
“policentralidade”, a saber, “a disseminação e a constituição de centros diferentes, seja para a
dispersão, seja para a segregação”. Para lidar com a noção paradoxal do espaço urbano como
espaço que, ao mesmo tempo, reúne e separa, Lefebvre distingue diferença e distinção de
separação e segregação. Para ele, a diferença implica relação, proximidade, encontro,
informação, ao passo que a segregação implica a ruptura da relação, dificultando a
aproximação e o encontro dos diferentes. Consoante o autor, a separação e a segregação são
36
próprios de uma ordem totalitária que nega a lógica do urbano – a lógica da concentração e da
centralidade.
Se é a centralidade que caracteriza o urbano, então o modelo da racionalidade
industrial (que separa/discrimina/classifica/distribui) é inadequado para o exercício de pensá-
lo e representá-lo. Para se aproximar do urbano, o pensamento não pode separar, segregar e
descartar nada, precisa juntar tudo o que foi, historicamente, separado; não pode mais imitar
a empresa ou a indústria, mas a própria forma urbana que, como prática espacial, reúne e
promove o encontro das diferenças. Enfim, o pensamento do urbano precisa se desatrelar da
racionalidade industrial que é discriminatória e classificatória e passar a imitar a racionalidade
urbana que é acumulativa, uma forma de racionalidade cuja origem, segundo Lefebvre (1999),
é prenunciada no gesto ancestral dos coletores.
De acordo com Lefebvre (1999, p. 42-48 e 115-124), o espaço urbano é, pois, um
espaço diferencial. E, para esmiuçar o conceito de espaço diferencial, o autor recorre aos
conceitos de isotopia e heterotopia. Pelo conceito de isotopia, o autor se refere à ordem
próxima, àquilo que faz de um lugar (-topia) um lugar do mesmo (iso-), um lugar de
homologias. Para se chegar às isotopias, transformam-se diferenças contíguas em separação e
segregação urbana, para evitar que elas se encontrem no mesmo espaço. Nada ilustra tão bem
o princípio isotópico quanto os condomínios fechados que reúnem os iguais e os apartam
concretamente dos diferentes. Também são exemplos de isotopia os conjuntos habitacionais
populares, geralmente plantados em áreas consideradas menos nobres do ponto de vista do
capital imobiliário-financeiro. Já pelo conceito de heterotopia, o autor se refere à ordem
distante, àquilo que faz de um lugar (-topia) um lugar do outro (hetero-), ao mesmo tempo
excluído e incluído. Quando se pensa no espaço urbano de modo global, é impossível não vê-
lo como uma acumulação de heterotopias. As cidades são profundamente heteretópicas, mas
as políticas públicas em cumplicidade com a iniciativa privada não se afastam do propósito de
torná-las isotópicas.
É preciso lembrar ainda que isotopia e heterotopia não são categorias estanques. Um
espaço aparentemente isotópico, como o das imediações de um shopping de luxo, pode se
tornar altamente heterotópico, ao atrair uma numerosa população de indesejáveis (vendedores
ambulantes, flanelinhas, mendigos, artistas de rua, trombadinhas e uma série de outras
pessoas marginalizadas) que frequentam o local não como potenciais consumidores, mas
como proscritos da sociedade de consumo. Na heterotopia, sempre há o contraste que pode
gerar o conflito. Porém, a violência costuma irromper quando o discurso sobre o urbano (o
espaço concebido), ignorando a ordem do urbano (a prática espacial), que é uma ordem
37
Por exemplo, na memória de quem vive na cidade, ruas são espaços públicos, espaços
interpretados como livres à circulação de quem quer que seja, espaços potencialmente
heteretópicos. Assim, quando se fecha uma rua com cerca e cancela e se planta um guarda
para vigiá-la 24 horas por dia, com poder de decidir quem pode e quem não pode circular por
ela, modifica-se a memória que se tinha da cidade. Trata-se, pois, de um gesto de violência
simbólica que afeta a relação do cidadão com o urbano: os que se encontram do lado de fora
do muro são tomados indistintamente como indesejáveis, tendo sua circulação regulada nesses
espaços. Conforme Orlandi (2004, p. 49): “Se a cidade é o lugar da interpretação com sua
particularidade significativa, a rua é estruturante no imaginário em que a cidade s ignifica:
via pública, calçadas, passantes. Lugar do público, lugar „comum‟”. A prática de
condominializar ruas em nome da segurança dos moradores, muito em moda em bairros
de classe média alta ou alta, implica, pois, uma divisão e uma mudança no modo de
significar os cidadãos: ela separa sujeitos que ficam pelo lado de dentro dos sujeitos que
ficam do lado de fora. Quem está dentro da cidadela é visto como socius (os iguais), ao
passo que quem está do lado de fora é visto como hostis (os inimigos). O gesto de
fechar/murar um bolsão de residências modifica, segundo Orlandi (2004, p. 84), “as
condições de produção de sentido em sua materialidade”. Diz a autora:
Por esse gesto, fica “dito” que os que estão do lado de lá do muro são as pessoas com as
quais se quer conviver, quem está para fora são as que se excluiu. O social fica
indistinto porque não são todos que estão do lado de fora que são nossos „inimigos‟.
Então o „hostis’ (inimigos) e o socius (nossos iguais) ficam confundidos. [...] Ao se
fechar um bolsão, se está fazendo uma violência social que é separar sujeitos de sujeitos
38
igualmente cidadãos, mas que se passa a tratar como se fossem uma ameaça. Há grave
diminuição do espaço de sociabilidade. Nesse imaginário, eficaz, acabam-se
implementando hostilidades que fazem as pessoas se „estranharem‟. (ORLANDI, 2004,
p. 84).
Essa divisão do corpo social urbano em socius e hostis, certamente motivada pelo
princípio da isotopia, reduz o espaço de sociabilidade que pode resultar em mais
hostilidade e violência, quer dizer, produzir um efeito contrário ao que se deseja com a
condominialização – a segurança. A demasiada preocupação com a segurança é reflexo da
inversão da forma como o Estado administra os problemas sociais que espocam na cidade,
controlando seus efeitos por meio da repressão, sem tratar as causas.
A mão da organização urbana produz uma “verticalização das relações horizontais na
cidade, que, de espaço material contíguo, se transforma em espaço social hierarquizado
(vertical)” (ORLANDI, 2004, p. 35). Essa verticalização reparte o território em regiões e
estabelece fronteiras, dificultando ou mesmo impedindo “a convivialidade, o trânsito
horizontal entre vizinhos” (ORLANDI, 2008, p. 189). Privilegia-se o convívio dos iguais;
interdita-se o encontro dos diferentes. A homogeneização e hierarquização garantida pela
organização urbana buscam silenciar os conflitos estruturantes da ordem urbana, mas, não
raro, podem gerar a violência. Segundo Orlandi (2008, p. 191), o conflito, dada a
concentração de diferenças no espaço urbano, é inerente à cidade, mas não a violência que “se
produz pelas condições de vida social, é mantida por políticas apenas repressivas e não
formadoras da sociabilidade e desencadeadas por soluções imediatistas”. Orlandi (2012,
p.212) afirma ainda que “Quanto mais dentro do social, mais seguros estamos”.
Nem sempre o que segrega tem a concretude de um muro, como aqueles que
apartam as cidadelas condominializadas do resto do corpo social urbano, ou como aquele que
separava a Berlim Oriental da Berlim Ocidental, ou como as cercas como arame farpado e
concertina que países europeus estão instalando em suas fronteiras para impedir a entrada de
refugiados políticos vindos de diversas regiões do Oriente Médio e África, ou como as
muralhas que separam o território palestino da Faixa de Gaza do Egito e Israel, dentre outros.
Às vezes, a barreira que separa é muito mais tênue do que um muro. Pode ser, por exemplo, a
divisão entre centro e periferia, zona norte e zona sul, morro e orla, favela e bairro, os limites
de um bairro, uma avenida ou uma rua etc. Há regiões malditas, há bairros malditos e há ruas
malditas em torno de que se avoluma uma prática discursiva que fomenta a segregação,
gerando “no ambiente da cidade, uma relação tensa entre o socius e o hostis”. (MARTINS,
2012, p. 40 e 41). Nessa prática discursiva, comumente, os hostis são significados como
39
aqueles que não se quer por perto, aqueles com os quais não se quer encontrar de forma
alguma. São demonizados, avaliados negativamente, discriminados, associados a
marginalidade, criminalidade, tráfico, vício, vadiagem, pobreza, ignorância, preguiça etc.
Enfim, por meio de muros concretos e/ou simbólicos, institui-se um apartheid entre o socius e
o hostis.
Não é outro o caso da cidade de Sorriso, dividida pela BR163, em lado de “cá” – o
lado do migrante sulista (os gaúchos) – e lado de “lá” – o lado do migrante não-sulista (os
maranhenses). Quem vive na Sorriso do lado de “cá” sabe o quão fecunda é a prática
discursiva que demoniza o corpo social urbano da Sorriso do lado de “lá”, tanto no
burburinho cotidiano das ruas quanto na esfera política, policial, midiática, dentre outras. A
BR 163 não opera apenas uma divisão geográfica da cidade de Sorriso, mas estabelece
também um apartheid do corpo social urbano, que separa horizontalmente os migrantes que
chegaram primeiro, na condição de colonizadores, daqueles que chegaram depois, na
condição ex-garimpeiros. A separação espacial do “cá” e “lá” pela BR 163 vale, pois, como
uma metáfora da separação social, econômica, étnica e de sentidos vigente na sociedade de
Sorriso. E são os discursos cuja tópica seja essa separação/segregação que se recorta como
objeto desta pesquisa.
Pela via experimental, os dados que constituem o corpus são obtidos por meio de uma
cenografia que põe os locutores em situação de teste, motivada pelo desenho da pesquisa.
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares.[...] O arquivo não é o que protege,
apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as
memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que na própria raiz do enunciado-
acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua
enunciabilidade. O arquivo não é, tampouco, o que recolhe a poeira dos enunciados
que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressureição; é
o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de seu
funcionamento. Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio
confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio
do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria.
Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que
recolhe passivamente as palavras pronunciadas, o arquivo define um nível particular:
o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos
acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à
manipulação. [...] Entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de
uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se
modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e transformação dos
enunciados. (grifos do autor)
O autor enfatiza que o arquivo (de uma sociedade, de uma cultura, de uma civilização,
de uma época etc.) em sua totalidade é indescritível. A ele só se chega por fragmentos, regiões
e níveis. A análise do arquivo se dá numa região privilegiada: “trata-se da orla do tempo que
cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que fora de nós
nos delimita” (FOUCAULT, 1986, p. 151).
4
http://www.hojenews.com.br/2012/10/www.hojenews.com.br_6904.html
5
http://mtnoticias.net/sorriso-festrilha-nordestina-recebera-incentivo-da-prefeitura/
6
http://mtnoticias.net/sorriso-pc-prende-autor-de-assalto-em-drogaria-e-ara-utilizada/
7
http://gshow.globo.com/TV-Centro-America/E-Bem-MT/noticia/2015/09/e-bem-mt-conta-historia-do-
municipio-de-sorriso.html
43
Neste trabalho, cujo corpus é constituído por meio de recortes de textos midiáticos,
buscados em arquivo, bem como de entrevistas com pessoas dos variados segmentos sociais e
representantes de instituições públicas locais, buscar-se-á evidenciar a persistência ou a
mudança do discurso do apartheid que divide a sociedade de Sorriso e é concretamente
metaforizado pela BR 163 que corta o perímetro urbano da cidade. Vai-se observar como os
diferentes textos, fontes de enunciados recortados para o corpus, convergem ou divergem na
significação dos diversos segmentos que compõem a sociedade sorrisense contemporânea.
Vale, pois, ressaltar que, em Análise de Discurso, como assinala Orlandi (2000, p. 72),
“não se toma o texto como ponto de partida absoluto nem de chegada. Um texto é só uma
peça de linguagem de um processo discursivo bem mais abrangente (...). Ele é um exemplar
do discurso”. Os textos serão, pois, a fonte de onde se extrairão os enunciados que formarão
as famílias parafrásticas a serem remetidas aos discursos, às formações discursivas e, por
último, às formações ideológicas. A relevância do texto para a AD reside no fato de ele ser
visto como parte de uma cadeia. Pouco importa se ele é ou não é uma unidade de sentido, o
que conta é o fato de ele ser “uma superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um
processo discursivo específico” (POSSENTI, 2004, p. 364).
Em Análise de Discurso, não se visa à exaustividade horizontal, aliás, essa é uma
exigência impossível de ser cumprida, uma vez que “todo discurso se estabelece na relação
com um discurso anterior e aponta para outro” (ORLANDI, 1999, p. 62), numa cadeia que
não cessa de se expandir e que, por isso mesmo, dificilmente se deixa capturar pela análise. A
exaustividade visada é a vertical, aquela que faz do dado linguístico um fato de linguagem,
“com sua memória, sua espessura semântica, sua materialidade linguístico-discursiva”
(ORLANDI, 1999, p. 63). Os dados não estão à disposição do analista, mas são construídos
por ele. Construir um corpus é já uma operação em grande parte teórica – há um ir e vir entre
a construção e a análise do corpus e não sequencialidade. Consoante Pêcheux e Fuchs (1993,
p. 180 e 181), a análise envolve três níveis: 1) superfície linguística (sequência oral ou escrita,
dado empírico, discurso concreto, afetado pelos esquecimentos 1 e 2, ou seja, pela dupla
ilusão); 2) objeto discursivo (resultante da transformação da superfície linguística em objeto
teórico, pela de-superficialização que visa a anular o esquecimento 2); 3) processo discursivo
(resultante da de-sintagmatização que rompe a conexidade própria a cada objeto discursivo e
começa a anular o efeito do esquecimento 1). Assim, vai-se da superfície linguística para o
objeto discursivo e desse para o processo discursivo. Na companhia de Pêcheux e Fuchs
(1993, p. 181) e Orlandi (1999, p.77), sugere-se a seguinte sistematização do dispositivo de
análise em três níveis:
45
sejam os mesmos e também que eles se transformem”. Afinal, o mesmo sempre em relação
com o Outro (o interdiscurso), que lhe é constitutivo, está sujeito ao deslizamento de sentido.
E o deslizamento do sentido, inerente às línguas naturais, leva os sujeitos do/no discurso à
interpretação. “E onde está a interpretação está a relação da língua com a história para
significar” (ORLANDI, 1999, p. 78). Em síntese, em Análise de Discurso, o mesmo e outro
sentido estão sempre em fricção, o que torna impensável um momento de pura inércia de
sentido. O devir outro de um sentido é inseparável de sua repetição, vis-à-vis seu enredamento
na trama interdiscursiva.
Revisitado o dispositivo analítico, imagina-se, para este estudo, um percurso que se
inicia com a seleção/produção das superfícies discursivas (matérias midiáticas e entrevistas)
que serão submetidas a um processo de de-superficialização mediante exame dos vestígios da
discursividade deixados nos enunciados, a fim de desautomatizar a interpretação da sociedade
sorrisense como sendo “naturalmente” dividida pela BR163. Por meio das famílias
parafrásticas, chegar-se-á ao objeto discursivo que – com sua materialidade linguageira,
espessura semântica e memória – permitirá abeirar as formações discursivas que dominam a
forma de significar as relações sociais entre sulistas e não-sulistas na cidade de Sorriso. O
passo seguinte será a compreensão do processo discursivo que consistirá na remissão das
formações discursivas às formações ideológicas. Nesse nível, provavelmente se chegará à
compreensão de como se produz o sentido da divisão e hierarquização e não o sentido da
complementariedade e da igualdade entre sulistas e não-sulistas na formação social de
Sorriso.
1. 7 Em resumo
Nomeou-se este capítulo como Dispositivo teórico e dispositivo analítico. Na parte
relativa ao dispositivo teórico, revisitou-se a teoria específica, focalizando conceitos tidos
como nucleares à Análise de Discurso, assim sintetizados:
Ideologia (uma teia de significações historicamente constituídas que norteiam
a interpretação numa dada formação social);
Ideologia jurídica (a ideologia jurídica nucleia-se pela categoria do sujeito de
direito, afirmando que “todos são iguais perante a lei” e que somos sempre já
sujeitos; a ideologia jurídica desenvolve-se em sincronia com o modo de
produção capitalista, tornando-se hegemônica; sua versão mais recente é o
neoliberalismo);
47
A escolha desses conceitos e não outros se fez orientada pelo dispositivo analítico,
uma vez que se apresenta como uma leitura particular da teoria, tendo em vista os materiais
reunidos para a constituição do corpus. Como se trata de um estudo acerca do(s) discurso(s)
do/sobre o urbano, a passagem por autores que pensam a cidade contemporânea foi inevitável
(seção 1.5). Considerando que não há sentido fora da sociedade e da história, antes de se
proceder à análise, far-se-á, no capítulo 2, uma retomada das narrativas que se contam sobre a
formação de Sorriso.
48
Capítulo II
Sorriso é um dos 141 municípios que compõem o estado de Mato Grosso. Localizado
ao norte do estado, ocupa uma área territorial de 9.329,603 Km2. Situa-se numa região de
transição entre o cerrado e a floresta amazônica. Sua população atual é de aproximadamente
77 000 habitantes, dentre os quais contam-se 45.099 eleitores. Segundo dados do IBGE em
2014, Sorriso apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)
considerado alto, 0.744, ocupando a 667º colocação no ranking do país e a 9º posição no
estado de Mato Grosso. Distando cerca de 410 km da capital pelas BRs 364 e 163, o
município é constituído por dois distritos: Boa Esperança e Primavera. Limita-se, ao norte,
com os municípios de Ipiranga do Norte e Sinop; ao leste com os municípios de Vera e Nova
Ubiratã; ao sul com Santa Rita do Trivelato e Nova Mutum e a oeste com Lucas do Rio Verde
e Tapurah, conforme figura 1:
É na década de 1970 que a história de Sorriso começa a ser escrita, ao menos em sua
versão oficial. Nesse momento, havia uma política federal de integração do país, implantada
pelo regime militar, vigente desde 1964, que se atribuía, em nome da segurança, grandeza e
desenvolvimento nacional, a tarefa de povoar os imensos vazios demográficos do território
brasileiro principalmente a Amazônia, considerada um flanco aberto a investidas estrangeiras.
A maior floresta tropical do mundo era vista, segundo a retórica militar, como uma “terra de
ninguém”, mas como objeto de desejo de muitos, graças a uma biodiversidade ainda
completamente inexplorada. São desse período, lemas nacionalistas como: “A Amazônia é
nossa” e “Integrar para não entregar”. Se o perigo de invasão das nossas fronteiras era real e
justificava, de fato, o chamado à nação para colonizar a região amazônica não se sabe, mas
sabe-se que ele deflagrou um descomunal projeto de colonização predatória que, em poucas
décadas, tem arrasado aquilo que a natureza demorou cerca de 55 milhões de anos para gerar.
Ademais, essa representação do imenso vazio amazônico ignorava totalmente a existência dos
povos indígenas. Era como se eles não existissem e, se existiam, eram considerados um
empecilho à abertura de fronteiras agrícolas onde havia floresta virgem. Estavam na
contramão do projeto desenvolvimentista.
O apelo dos generais presidentes para a ocupação da Amazônia soava, entre aqueles
que viviam no lado mais desenvolvido do Brasil, como o canto da sereia, ainda mais porque
vinha acompanhada de uma farta distribuição de benesses a quem quisesse explorar os
recursos naturais daquele território virgem. Em 1965, foi criada a Operação Amazônia e,
1968, a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) que praticava
uma política de incentivos fiscais e liberação de créditos para empresas colonizadores com
disposição para se instalar e participar do desenvolvimento da região. Em 1970, foi criado o
Plano de Integração Nacional, cujo principal objetivo era ligar o norte ao centro-oeste e sul do
país, pondo em prática o princípio ideológico nacionalista “Integrar para não entregar”, tão
caro aos militares no poder. Uma das estratégias para promover a integração nacional seria
ligar todas as regiões por meio de estradas, uma vez que o acesso a muitas delas, como a
Amazônia, por exemplo, era feito, quase que exclusivamente, por transporte aéreo e fluvial.
Sem estradas, a política de integração do Brasil seria apenas um devaneio. Por isso, uma das
providências dos governos militares foi planejar e construir estradas, dentre elas a
Transamazônica e a BR 163.
51
A BR 163, em cuja margem Sorriso iria crescer, foi construída nesse período, ligando
o sul ao centro-oeste e norte do Brasil, mais precisamente ligando Tenente Portela, no Rio
Grande do Sul, a Santarém, no Pará. O 9º Batalhão de Engenharia de Construção (9º BEC) se
instalou em Cuiabá em 1971, incumbido de abrir o trecho sul (de Cuiabá a Serra do
Cachimbo), na divisa com o Pará, e o 8º BEC, sediado em Santarém, construiria o trecho
norte (de Santarém até a Serra do Cachimbo). Foi, pois, nesse contexto de incentivo, por parte
dos governos militares, à povoação da Amazônia e construção da BR163 que Sorriso
começou a se inscrever no mapa de Mato Grosso.
Conta-se que o senhor Benjamin Raiser, que vivia com a família em Santa Catarina,
teria comprado terras no município de Barra do Bugre por intermédio de um corretor que fora
visitá-lo em seu Estado. Contudo, quando o senhor Benjamim, seu filho Ivo e seu genro
Nelson Frâncio vieram ver as terras adquiridas, constataram haver nelas muitos posseiros e,
por isso, desfizeram o negócio, mas não desistiram do projeto de comprar grandes áreas em
Mato Grosso. Em Cuiabá, conheceram um outro corretor que lhes oferecera terras no norte do
Estado, situadas no antigo Município de Nobres. As terras pertenciam a um italiano que vivia
nos Estados Unidos e, por isso, era referido como “o americano” pelo corretor. Deslocaram-se
para região para conhecer a terra e aprovaram o que viram. Diante da aprovação de Ivo e
Nelson, o senhor Benjamin adquiriu uma área de 2000 alqueires, doando 200 a seu filho e 100
a seu genro, com a condição de que eles abrissem as divisas e demarcassem as fronteiras dos
terrenos.
Como na saga dos velhos colonizadores, os homens vieram sem suas famílias para a
abertura das divisas, tarefa que levou dois anos para ser realizada. Então, “Ivo e Nelson
voltaram para a Região Sul para buscar suas mulheres e filhos e instalá-los em Sinop,
município recém-criado em Mato Grosso, ainda mais ao norte do que viria a ser Sorriso”
(PRESTES, 2010, p. 19), ocasião em que apresentaram Mato Grosso a amigos e parentes
como uma terra de futuro, como uma terra em que pequenos lavradores do sul tinham a
oportunidade de se tornar “fazendeiros”. De volta a Mato Grosso com as famílias, Ivo e
Nelson receberam, em 1975, a visita de Claudino Frâncio e outros paranaenses que tinham
vindo com a intenção de comprar terras na região. Sobrevoaram a região em companhia do
mesmo corretor que havia vendido terras a Benjamin Raiser e fecharam o negócio: Claudino
Frâncio comprou 3000 e Dorival Brandão, 1000 alqueires. De volta ao sul, Claudino Frâncio
revendeu parte das terras adquiridas em Mato Grosso a parentes, amigos e compadres.
Sobre o nome “Sorriso”, os pioneiros entrevistados por Dias e Bortoncello (2003)
contam que ele teria surgido informalmente nas conversas de membros da família Frâncio e
52
amigos que, em vista do sucesso alcançado na venda da primeira área adquirida no norte de
Mato Grosso a compradores sulistas, decidem entrar no ramo do comércio de terras e fundar
uma colonizadora. Com a empresa em pleno funcionamento, faziam propaganda das terras
mato-grossenses nas cidades do sul onde residiam e organizavam caravanas de possíveis
compradores. Como as caravanas a Mato Grosso haviam se tornado uma atividade rotineira,
era preciso saber qual era o seu destino no mapa do estado. Assim, a necessidade de designar
a gleba objeto de compra e venda de lotes rurais pela Colonizadora se tornou um imperativo.
Destarte, numa das conversas travadas pelos pioneiros, vários nomes foram aventados:
Videira, Rio das Antas, Ampére, nomes de cidades de Santa Catarina e Paraná onde
residiam 8 . Um deles sugeriu Curitiba, pois lá vivia Alberto Frâncio. O nome “Curitiba”
catalisou o interesse do grupo. Porém, Claudino Frâncio sugeriu que, ao invés de Curitiba,
poderiam chamar a gleba de “Sorriso”, que era um título dado a Curitiba. O nome “Sorriso”
agradou a todos e ficou decidido que assim designariam a gleba. Identificada no mapa do
estado de Mato Grosso a pedido de Claudino, a Gleba Sorriso era o endereço para onde as
caravanas de compradores do sul rumavam em busca da “terra prometida”. Apesar de a
designação da gleba e, posteriormente, da Colonizadora e da cidade ser uma transposição do
título outorgado a Curitiba no início do século XX, as narrativas fundadoras referem-se a ela
topofilicamente, relacionando-a a qualidades do lugar, como: “alegria, entusiasmo, coragem e
força de vontade dos pioneiros, motivo pelo qual ficou registrado na memória o ponto mais
forte que era a capacidade de sorrir, mesmo quando tinha vontade de chorar” (DIAS e
BORTONCELLO, 2003, p. 85).
Porém, essa versão acerca do nome „Sorriso” não é a única que circula na cidade.
Conta-se também que o sucesso dos primeiros plantios de arroz na gleba era
entusiasticamente noticiado aos familiares do sul, como: “É só rizzo!”. Quer dizer, ao invés de
dizerem “É só arroz!”, descendentes de italianos usavam o termo “rizzo” que é como
nomeiam “arroz”9. A junção de só e rizzo teria resultado em “Sorriso”. Em torno do nome de
uma cidade sempre há muitas lendas.
Assim, atraídos pela propaganda governamental e por incentivos fiscais e créditos para
a colonização e ocupação da Amazônia Legal, como é conhecida a floresta tropical, vieram
muitos paranaenses e catarinenses, bem como gaúchos oriundos da região de Passo Fundo-
8
Em Mato Grosso, muitas cidades criadas a partir da década de 1970, estimuladas pela política governamental
de colonização e povoamento da Amazônia, receberam nomes de cidades do sul, a exemplo de Nova Maringá,
Nova Ubiratã e Porto Alegre do Norte.
9
http://www.mteseusmunicipios.com.br/municipios/sorriso/historia-de-sorriso/571. Acesso em 07/01/2016
53
RS, trazidos pela Colonizadora Sorriso, que administrou o comércio de grande quantidade de
terras às margens da BR 163 no médio norte mato-grossense.
Por meio desta estratégia, a “Gleba Sorriso” foi sendo loteada e vendida. Sulistas
foram chegando e formando, com incentivo da Colonizadora, uma agrovila num dos lados da
BR 163. A agrovila não parou mais de crescer e foi elevada à categoria de distrito do
Município de Nobres em 26 de dezembro de 1980. Em 20 de março de 1982, passou a contar
com uma subprefeitura. E, no dia 13 de maio de 1986, Sorriso foi elevado à categoria de
município, tendo sua área territorial desmembrada dos municípios de Nobres, Sinop e
Diamantino.
Figura 2 “Soja, o ouro do Brasil”. Escultura alusiva à vagem de soja situada no canteiro central da
BR163.
Fonte: Arquivo pessoal
produção chega a 85,656 milhões de toneladas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Os
dois países produziram juntos mais de 175 milhões de toneladas do grão, representando mais
de 50% da produção mundial de soja.
No Brasil, Mato Grosso é o maior produtor de soja. Em 8616 milhões de hectares
plantados, o estado chega a produzir 26442 milhões de toneladas, com uma produtividade de
3069 kg/ha, bem acima da média nacional que é de 2842 kg/ha. Da produção nacional, 38,5
milhões de toneladas são destinadas ao consumo interno e o restante é exportado, tanto em
grão, como beneficiado em farelo e óleo, rendendo cerca de U$31 bilhões para a economia
brasileira. Da soja produzida em Mato Grosso, boa parte sai do município de Sorriso. Na safra
de 2013/2014, foram produzidas cerca de 2.070.000 toneladas em 633.400 hectares
cultivados. De acordo com o estudo “Perspectivas para a Agropecuária”, realizado pela
CONAB, há previsão de aumento para a safra de 2014/2015.
Em 2011, Sorriso ocupava o primeiro lugar entre os cinco municípios de Mato Grosso
que apresentavam o maior PIB agropecuário do país. Segundo o IBGE, Sorriso apresentou o
melhor desempenho no estado e o segundo melhor no país. O valor adicionado bruto da
agropecuária totalizou R$ 745,6 milhões, representando 0,39% do total. Não sem razão, nesse
ano, a revista Dinheiro Rural, em sua edição nº 85, sob o título “A soja colocou Sorriso no
mapa”, trouxe uma reportagem na qual relata o desafio dos agricultores do município que
consiste em melhorar ainda mais a produtividade por área plantada, passando de 62 sacas de
60kg/ha (o que já é um bom índice, tendo em vista que a média nacional de produtividade é
de 50,8 sacas/ha), para 74 sacas/ha, contabilizando 20% de aumento de produtividade.
Contudo, o que, efetivamente, ocorreu, desde 2011, foi uma queda considerável de
produtividade. Segundo o presidente do Sindicato Rural de Sorriso, no ano de 2012, devido
ao excesso de chuva na região, a produtividade caiu para 55 sacas/ha. Devido a condições
climáticas irregulares, a safra 2014/2015 manteve a produtividade em torno de 56 sacas/ha,
abaixo da média histórica de 60 sacas/ha. Contudo, apesar dos percalços climáticos que
desencadearam as quedas na produtividade, não houve prejuízos na lavoura e o preço por saca
em janeiro de 2015 chegou a R$55,00, garantindo boa lucratividade aos produtores. Pelo seu
destaque como município brasileiro produtor de soja, Sorriso foi laureada, em outubro de
2012, por meio da Lei nº 12724, sancionada pela então Presidente da República, Dilma
Roussef, com o título de “Capital Nacional do Agronegócio”.
No ano de 2013, Sorriso foi o município brasileiro que mais exportou. Em dez meses,
as vendas de produtos oriundos do campo superaram US$ 1,2 bilhão. Desse montante, US$
55
728,1 milhões são resultantes da venda da soja, conforme matéria publicada no site G110.
Contudo, em 2015, Sorriso registrou queda nas exportações de quase 40%: somente a soja em
grão caiu 54%, de acordo com a Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), ligada ao
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). As possíveis causas
da queda nas exportações estão ligadas ao atraso na safra, visto que, além do clima atípico,
houve greve de caminhoneiros entre os meses de fevereiro e março, bem como chuva nos
portos. Esse declínio nas exportações representou, no geral, uma queda nas negociações de
US$ 402,5 milhões para US$ 244,08 milhões e, no caso da soja em grão, foi de US$ 273,2
milhões para US$ 124,9 milhões.
Em 15 de dezembro de 2014, em sessão ordinária da Câmara de Vereadores, foi
aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentária (LOA) para 2015, a Lei nº 2.425, que previa uma
receita de R$ 250 milhões para uma despesa estimada no mesmo valor. Desse montante, R$
229 milhões seriam destinados ao poder legislativo, judiciário e executivo para suprir as
despesas dos setores públicos sob a responsabilidade do governo municipal. Do restante, R$
21 milhões seriam destinados ao Fundo Municipal de Previdência Social dos Servidores de
Sorriso (PREVISO). De acordo com o Quadro 3, os gastos públicos municipais ficam assim
discriminados:
Quadro 3: Despesas por função de governo
1. POR FUNÇÕES DO GOVERNO R$
Legislativa 7.891.000,00
Judiciária 776.500,00
Administração 21.179.695,00
Segurança Pública 2.235.000,00
Assistência Social 10.584.765,00
Saúde 58.870.040,00
Educação 67.599.000,00
Cultura 290.000,00
Habitação 480.000,00
Urbanismo 22.485.500,00
Gestão Ambiental 485.000,00
Agricultura 11.375.000,00
Indústria 5.826.000,00
Comércio e Serviços 1.171.000,00
Energia 2.000.000,00
Transporte 7.492.500,00
Desporto e Lazer 5.627.000,00
10
http://g1.globo.com/mato-grosso/agrodebate/noticia/2013/11/sorriso-lidera-ranking-dos-maiores-
exporta dores-de-mt-ate-outubro.html (Sorriso lidera ranking dos maiores exportadores de MT até outubro)
Acesso em 08/07/2015.
56
A abertura do trecho que compreende do Trevo do Lagarto até Santarém foi realizada
pelo 9° BEC. Entretanto, a pavimentação da BR-163começou a acontecer após sua
inauguração, em 1976, e de modo fracionado. O maior trecho, entre o posto Gil e Sinop, com
cerca de 330 km, foi inaugurado em 1984. Em território mato-grossense, o trecho asfaltado
vai de Cuiabá a Guarantã do Norte (mais ou menos 750 km). Todavia, o trecho paraense
(cerca de 1000 km) ainda se encontra sem pavimentação.
Quando os primeiros pioneiros de Sorriso chegaram, já havia promessa de término da
pavimentação da BR-163. No entanto, até hoje ela se encontra parcialmente concluída. Desde
o início da colonização da região norte mato-grossense, na década de 70, a BR 163 já
representava uma importante via de acesso ao interior do país. Mesmo antes de o projeto se
concretizar, já determinava o rumo da colonização no norte do estado, visto que vários
municípios foram estabelecidos em localização estratégica em função do traçado da BR, que,
aliás, sofreu modificações, alterando, consequentemente, a colonização de determinadas
áreas, a exemplo do município de Vera, que foi projetado de acordo com o primeiro traçado
da BR 163. Com a mudança do trajeto, um novo município – Sinop – surgiu ao longo da BR
163. Essa BR é de vital importância para os municípios do norte do estado, pois é o único
meio de escoamento da produção agrícola, que é a principal atividade econômica da região.
O fato de a BR163 não estar inteiramente pavimentada (Fig. 3) representa um grande
problema para o agronegócio, não deixando alternativa aos agricultores de Mato Grosso que
não a de escoar toda a safra pelos portos do sul e sudeste – Paranaguá e Santos. Pela distância
geográfica, tais portos estão longe de ser uma alternativa lucrativa. O Porto de Santarém
encurtaria em centenas de quilômetros a distância percorrida pelos caminhões nos escoamento
das commodities produzidas no norte do Estado. Porém, há épocas do ano – estação das
chuvas – em que a rodovia, sem pavimentação, fica intransitável. Mesmo os trechos
pavimentados da BR 163 estão longe de oferecer condições ideais de trafegabilidade pelo
intenso movimento, quantidade de buracos, deterioração do asfalto sob o impacto das cargas
acima do permitido, falta de sinalização e duplicação em determinados trechos.
58
Como é possível observar pelo Quadro5, Sorriso é um dos muitos municípios de Mato
Grosso que teve origem a partir de um projeto de colonização particular nas últimas três
décadas do Século XX. Esse modelo de colonização, no qual a terra é tida como capital,
automaticamente restringe sua posse àqueles que possuem poder aquisitivo para obtê-la e
cultivá-la, deixando de fora as famílias que dependem da concessão de terras por parte do
Estado para se estabelecer e desenvolver a agricultura de subsistência.
62
sorrisenses dos mais diversos setores. Vale observar que o termo “gaúcho” é empregado
metonimicamente pela população local para designar o migrante sulista em geral e não apenas
aquele que vem do Rio Grande do Sul.
Há relatos de que os índios Kayabi viviam na região de Sorriso e, além deles, também
„grileiros‟, como mostra a narrativa seguinte, feita por um dos primeiros responsáveis pelas
ações da colonizadora:
Quando nós compramos essa área de Sorriso, era oito mil alqueires. Tinha mais ou
menos umas duzentas pessoas aqui em cima, de grileiros. Nós compramos de uma
firma do Rio de Janeiro, do Euclides Aranha, que era ministro de Guerra do Governo
Castelo Branco. E nós compramos isso só que limpo, sem ninguém em cima. Eles
deram conta. Vieram ali com a justiça e tiraram todo mundo pra fora. Até fiquei
arrepiado! Tinha tanta criança! (DIAS; BORTONCELLO, 2003, p.197).
Essa narrativa sugere que a compra de uma área de oito mil alqueires, onde
sabidamente havia mais ou menos duzentas pessoas na condição de grileiros, foi condicionada
à limpeza do terreno, ou seja, à expulsão daqueles que lá se encontravam antes do processo de
colonização oficial se instalar (“E nós compramos isso só que limpo, sem ninguém em cima”).
Aos grileiros, que usufruíam da terra sem serem donos dela, estava associada implicitamente a
concepção metafórica de „sujeira‟, daí o emprego do termo “limpo”. Comprar a área “limpa”,
quer dizer, sem grileiro em cima, significava não ter de se haver com problemas de qualquer
ordem, até mesmo de consciência. Como espectador da retirada dos grileiros ou da “limpeza
do terreno” pela ação da “justiça”, neste caso confundida com “ação de policiais” (“Eles
deram conta”), o narrador se permite até “ficar arrepiado”, ao observar que havia “tanta
criança” entre eles. O mesmo entrevistado, quando questionado sobre possíveis
enfrentamentos no processo de „limpeza‟ da área, responde não ter participado, mas ter se
“comovido” com a cena que avistava: “Não, nada, só dava dó de ver, era um dia de chuva”.
Indagado sobre o destino dos desalojados, ele responde: “Vieram com autorização do
Ministro do Exército, com dois ônibus de policiais levavam na beira da rodovia e mandavam
embora”. Enfim, que “justiça” é essa feita com “Autorização do Ministro de Exército” e “dois
ônibus de policiais” que se encarregaram de “tirar todo mundo pra fora”, “despejar na
rodovia”, com a ordem de que “fossem embora”? Que justiça é essa feita sem tribunal, sem
juiz, sem defesa, apenas pela intimidação de um batalhão de policiais? Era o período da
ditadura militar. Não se estranha, pois, que as práticas repressivas fossem “confundidas” com
justiça.
64
Outro entrevistado, cujo nome não foi revelado na obra, quando indagado sobre a
questão da expulsão dos posseiros que viviam na área anteriormente à colonização oficial pela
iniciativa privada, se negou a relatar o que de fato ocorreu. Contudo, foi contundente ao dizer
que o que aconteceu em Sorriso acontece também em outros projetos de colonização. Nada de
explícito foi dito, mas respondendo de maneira apofática, refutando o pré-construído da
“expulsão dos posseiros” presente na pergunta do entrevistador, fez muitas insinuações acerca
do acontecido:
O entrevistado tem plena consciência de que sua fala está colaborando para a produção
de uma obra que se propõe a ser o registro histórico da cidade e não tem a intenção de “expor
a face” dos pioneiros e a sua própria, uma vez que ainda residem na cidade que é vista como
uma família. A comparação da obra em que seu relato seria publicado com “um álbum de
família” revela sua preocupação em não macular a história “heroica” dos fundadores de
Sorriso, centrada na figura do senhor Benjamin Raiser juntamente com seu filho Ivo Raiser e
Nelson e Claudino Frâncio que construíram um município próspero onde antes havia uma
terra “desabitada”. Essa história, como se viu, silencia a presença dos índios Kayabi e a de
grileiros na região, os primeiros deslocados para a reserva do Xingu e os segundos despejados
na beira da BR por uma centena de policiais. Silencia também a presença dos atores
coadjuvantes que chegaram nos primeiros tempos da colonização, como pequenos
comerciantes, borracheiros, donos de pensão etc., referidos como “nordestinos” e, mais
comumente, como “maranhenses”. Afinal, a terra que colonizaram era uma “terra vazia”.
Dos relatos das primeiras famílias a fixar residência em Sorriso, encontra-se registro
apenas daquelas oriundas da região sul do país na condição de proprietários de grandes áreas:
os Frâncio, os Raiser e os Cappellari, tidos como “pioneiros”. Não se encontra na narrativa de
Dias & Bortoncello (2003), ou mesmo em entrevista de algum pioneiro, a identificação de
pessoas que tenham vindo, não na condição de proprietários, mas na de mão de obra.
Transformar mata em pé em área agricultável é um processo bastante complicado que envolve
65
muitas etapas, do desmate ao plantio da semente e colheita. Esse processo demandava muitos
trabalhadores braçais para execução das diversas tarefas. Porém, esses passam quase
despercebidos, apesar de sua relevância na formação do município e da cidade. São tratados
como sujeitos sem nome, designados por um substantivo comum, como “catadores de raiz”,
“peões”, “peonada”, “saqueiro” (DIAS; BORTONCELLO, 2003) e não por um nome próprio.
Nomes próprios são reservados aos “pioneiros”, aos “fundadores”.
À medida que Sorriso avulta na mídia nacional como uma “terra prometida” e
abundante em oportunidades de emprego, começa a atrair migrantes dos mais diversos estados
brasileiros, principalmente do norte e nordeste. Na década de 90, em meio à severa crise de
desemprego que assolava o país e ao fracasso das atividades de garimpagem em Mato Grosso,
Sorriso despontava como um oásis para muitos aventureiros. Sobre essa afirmação, é possível
constatar, em Prestes (2010, p.168), que no período de 1994 a 1996, no interior do estado de
Mato Grosso, mais precisamente em Peixoto de Azevedo, reconhecidamente uma área de
garimpo, corria a fama de Sorriso, como um lugar que oferecia oportunidades de trabalho e
boa remuneração. Então, entravam em cena os migrantes nordestinos e nortistas que haviam
migrado para Mato Grosso, mais precisamente, para o município de Peixoto de Azevedo, num
momento em que a garimpagem era uma atividade econômica atrativa. Com a precipitação da
crise nessa atividade, em razão da desvalorização do ouro e do encarecimento dos insumos
para a sua extração, teve início uma nova e maciça corrente migratória, em direção a Sorriso,
de paraenses e maranhenses, vindos não diretamente de seus estados de origem, mas de
Peixoto de Azevedo.
A chegada desses novos trabalhadores alterou a lógica do planejamento da cidade por
assim dizer, visto que Sorriso era um município essencialmente agrícola, cujas famílias,
vindas do sul, com larga experiência em agricultura, estavam transformando o ácido solo
mato-grossense num imenso e fértil canteiro de grãos. Os novos migrantes que buscavam
Sorriso vinham de uma experiência com garimpo, que é uma atividade de exploração, numa
lógica bem diferenciada da atividade dos primeiros migrantes que é a de cultivo. Havia ainda
uma diferenciação crucial na forma de migração praticada por ambos os grupos étnicos
observados. Os sulistas são conhecidos como pioneiros, desbravadores e colonizadores, que
migram para terras com florestas virgens, tornando-as agricultáveis, realizando benfeitorias, a
fim de fincar suas raízes, permanecer no local e gerar riquezas. Em síntese, sulistas são vistos
como promotores do progresso onde há atraso. Já os nortistas e nordestinos possuem um
histórico de migrações constantes em busca de lugares que já possuem boas condições de
trabalho para então fixarem residência, até que tenha se esgotado o potencial desse local,
66
como aconteceu com o garimpo de Peixoto de Azevedo, e seja necessário partir novamente à
procura de outras frentes de trabalho. Enquanto os migrantes do sul vieram para Sorriso com
o intuito de adquirir uma porção de terras para cultivar, virar fazendeiro e, consequentemente,
ficar rico, os do norte e nordeste vieram em busca de trabalho nas lavouras já estabelecidas,
no comércio e em setores de serviço que não demandassem mão de obra especializada,
visando muito mais a sobrevivência cotidiana do que a prosperidade futura.
Foram tantos os maranhenses que se deslocaram dos garimpos de Peixoto para Sorriso
que todo migrante não sulista que chegava à cidade era designado pelo adjetivo pátrio
“maranhense”, tivesse ele vindo ou não do estado de São Luiz do Maranhão. Assim, como
pelo termo “gaúcho” se nomeia todo migrante do sul, pelo termo “maranhense” se nomeia
todo migrante do norte ou nordeste. Em Sorriso, “maranhense” é o que era o “baiano” na
região cafeeira de São Paulo. Monbeig (1984), estudando o processo de colonização e
formação da cafeicultura no estado de São Paulo, havia observado algo semelhante em
relação ao uso dos gentílicos “paulistas” e “baianos”: “paulistas” designava os grandes
cafeicultores mesmo que não fossem paulistas e “baianos”, os trabalhadores braçais dos
cafezais, mesmo que não fossem originários da Bahia. Grosso modo, pode-se dizer que
Sorriso é uma terra de “gaúchos” e “maranhenses”, que, ao menos no plano simbólico,
mantêm uma relação de oposição e não de aliança.
Ao chegarem a Sorriso, os “maranhenses” se depararam com inúmeras dificuldades, e
uma delas foi a de moradia. Apesar de terem encontrado um município bem estabelecido,
diferentemente dos sulistas que tiveram que construí-lo, não puderam desfrutar de boas
condições de vida logo de início. Como mencionado anteriormente, os lotes urbanos eram
concedidos gratuitamente aos agricultores que adquiriam suas terras por intermédio da
Colonizadora Sorriso, ou seja, não se vendiam lotes urbanos a terceiros, sem que estes
adquirissem terras para plantio. Essa prática era uma forma de a Colonizadora deter o controle
da ocupação do espaço urbano, inicialmente da agrovila, mais tarde da cidade. Assim, quando
os “maranhenses” começaram a chegar em massa, as casas disponíveis para locação, bem
como pensões, hotéis e similares eram insuficientes para atender a demanda. Sorriso
vivenciava forte especulação imobiliária, com aluguéis, em virtude do desequilíbrio entre
oferta e demanda, atingindo preços estratosféricos.
Na época em que os “maranhenses” descobriram o caminho de Sorriso, a cidade
praticamente não dispunha de bairros periféricos em seu entorno, onde fosse possível, mesmo
que sem infraestrutura adequada, os recém-chegados se alojarem. De acordo com relatos de
moradores, os bairros periféricos começaram a surgir, a partir da década de 1990, por pressões
67
sociais dos novos migrantes que vinham para se estabelecer na cidade e não nas fazendas. São
dessa época os bairros São Domingos e Fraternidade, popularmente conhecidos como „bairros
de maranhenses‟.
Ao observar o posicionamento do perímetro urbano de Sorriso e a localização dos
bairros formados inicialmente, é possível evidenciar que a Colonizadora direcionou a cidade
para uma das margens da BR 163, ficando a outra margem destinada à construção de silos e
armazéns, isto é, a uma espécie de distrito industrial, criado por volta de 1988, onde se
fixaram serrarias, indústrias de beneficiamento de commodities, dentre outras empresas do
setor produtivo. Atualmente, ainda é essa a impressão de quem chega a Sorriso pela primeira
vez e trafega pelo perímetro urbano da BR 163. De um lado é possível observar, além de
empresas de vendas de insumos e máquinas agrícolas, as duas avenidas principais contendo
lojas, bancos, hotéis, como também, partindo delas, as ruas residenciais. Do outro lado, tudo o
que se vê são silos, armazéns, revendas de máquinas agrícolas e insumos, postos de gasolina e
outras empresas do gênero. À primeira vista, quem circula pela BR 163 não percebe nenhum
indício de que atrás daqueles silos e armazéns gigantescos encontram-se inúmeros bairros
residenciais. É lá que reside a maioria dos migrantes que vieram a Sorriso não com a intenção
de se tornar fazendeiros (esses foram agraciados com lotes urbanos na agrovila que veio a se
transformar na cidade de Sorriso em 1986), mas com a intenção de arrumar algum trabalho
para seguir sobrevivendo.
Não há dados oficiais do surgimento dos bairros periféricos localizados no lado da BR
163 que inicialmente foi destinado à área industrial (Figura 4). Porém, de acordo com Prestes
(2010, p. 207), as datas aproximadas para a criação dos bairros residenciais nessa área seriam
as seguintes: Área Industrial (1988), Fraternidade (1991), São Domingos (1992), Boa
Esperança I (1996), São Mateus (1997),Novos Campos (1999), Vila Bela (1999)11, todos na
década de 1990.Quer dizer, os bairros da área industrial surgiram não na primeira década de
Sorriso, mas sim na segunda, coincidindo com a chegada dos “maranhenses”. Como se pode
notar, são vários os bairros formados desse lado da BR 163, mas os “gaúchos” costumam se
referir a eles simplesmente como São Domingos, como se fosse um só bairro.
11
As informações fornecidas por Prestes têm como data limite o ano de 2010. Depois disso, mais dois bairros
residenciais já surgiram na área industrial: Nova Aliança I e Nova Aliança II.
68
69
Durante nossa primeira estadia em Sorriso vários bairros haviam sido nomeados,
sendo caracterizados como pobres e habitados por “nordestinos” (a maioria
“maranhenses”), mas até então não sabíamos onde os mesmos se localizavam.
Somente durante a segunda viagem descobrimos que bairros como São José 1 e 2,
Jardim Carolina e União estavam onde deveria estar apenas a “Cidade A”. Sendo
assim, tivemos a primeira evidência de que poderíamos questionar a separação entre
“Cidade A” e “Cidade B” que havíamos definido no início do trabalho.
[...]
Notamos então que a divisão da cidade não se limita àquela feita pela passagem da
BR163. Na realidade percebemos que há diversas “Cidades B”, pois algumas se
localizam onde estaria apenas a “Cidade A”, ocorrendo o mesmo com a última: onde
deveria haver apenas “Cidade B”, também existe “Cidade A” (PRESTES, 2010, p. 33-
34)
2. 5 Em resumo
72
Resulta dessa revisita a narrativas oficiais ou não sobre Sorriso a percepção de que a
decantada divisão da cidade em lado de “cá” e lado de “lá”, tendo a BR163 como símbolo do
apartheid do corpo social urbano, está relacionada a seu processo de formação em dois
tempos: o tempo da colonização, nas décadas de 1970 e 1980, capitaneado por migrantes
sulistas e o tempo do pós-colonização, a partir da década de 1990, que, graças à fama de
cidade próspera, atrai um enorme contingente de trabalhadores desempregados dispostos a
vender a única coisa que possuem – sua força de trabalho. Essa formação em dois tempos e
por migrantes originários de regiões distintas e com propósitos diversos fez de Sorriso uma
cidade dividida, com um contraste econômico, social e étnico flagrante entre um lado e outro
da rodovia. Quem chegou primeiro, na condição de colonizador, não se afasta da
representação de “dono” do lugar. Nesse cenário, quem chega depois é representado/se
representa como o outro, o intruso, o que traz problema, o que desequilibra a ordem até então
reinante, tornando-se uma tópica discursiva fecunda, frequentemente sujeita a mal-dizer, nas
mais diversas esferas de comunicação da sociedade sorrisense, como se verá no capítulo
seguinte.
73
Lado de cá: Galpão da Associação de Feirantes de Sorriso onde as feiras acontecem às terças, quintas
e sábados.
Lado de cá: Escola Municipal Prof.ª Ivete Lourdes Arenhardt, situada na região central.
Lado de lá: Escola Municipal Valter Leite, com o melhor índice IDEB no município.
75
Lado de lá: Shopping “do Chagas”, contendo posto de combustível, loja de móveis, agência bancária,
pizzaria, farmácia e casa de carnes.
80
Lado de lá: Bares cujos frequentadores se espalham pela rua em dias de movimento intenso.
83
Lado de cá: Praça das Fontes, situada na área nobre da cidade, cercada por belas casas.
Lado de lá: Praça da Integração, situada na divisa dos bairros São Mateus e Novos Campos.
85
Lado de cá e lado de lá: Ao cruzar o viaduto da BR163, Av. Idemar Riedi tem sua largura reduzida.
Lado de lá: Rua estreita de difícil tráfego no cruzamento com a Rua São Francisco
88
Lado de cá: Início da Av. Natalino Brescansin (Os silos do outro lado da BR163 camuflam os bairros
do lado de lá)
Lado de lá: Rua São Francisco de Assis (por trás dos grandes silos e armazéns, a continuidade da vida
urbana de Sorriso).
89
Lado de cá: Cruzamento da Av. Tancredo Neves com Av. Blumenau, ponto de encontro de jovens
nos finais de semana para ouvir som automotivo e consumir bebidas alcóolicas.
Lado de lá: Rua Passo Fundo, vulgarmente conhecida como “Passo o fumo” ou “Cracolândia de
Sorriso”.
90
Lado de cá: “Gaúcho”. Escultura situada no canteiro central da Av. Blumenau. Além
da cuia, havia uma chaleira na mão direita.
91
Lado de cá: “Agricultor”. Escultura situada na Av. Blumenau. Tributo aos profissionais do
setor. Originalmente havia brotos na semente que o agricultor tem nas mãos.
92
Lado de cá: “Nordestino”. Escultura situada na Praça da Juventude. Havia um triângulo em uma das
mãos, instrumento musical típico dos forrós.
94
Lado de cá: “Capoeirista”. Escultura localizada no centro da Praça da Juventude ( Além de muito
fotografada, a estátua é sempre visitada por crianças que a escalam . À sua volta acontecem rodas
de capoeira).
95
Lado de cá: “Índia”. Escultura situada na Praça Antenor Balbinot, em local de pouca visibilidade.
96
Lado de cá: “Raça”. Escultura situada na Av. dos Imigrantes. Uma alusão à raça negra. (É a
escultura mais alvejada por vândalos, seus braços já foram restaurados várias vezes).
97
Capítulo III
Como mencionado no primeiro capítulo deste trabalho (seção 1. 6), o corpus que será
aqui analisado foi construído pelas vias arquivista e experimental. Da pesquisa em arquivo
resultou um conjunto de quatro matérias – notícias e vídeos – em circulação nos meios de
comunicação locais e estaduais. Já pela pesquisa experimental, foram produzidas quatro
entrevistas com pessoas residentes em Sorriso, atuantes em diversas esferas de atividades
sociais. Nem as matérias midiáticas e nem as entrevistas serão analisadas integralmente; elas
se constituirão em fontes de enunciados a serem recortados pelo pesquisador em convergência
com o objeto e a perspectiva teórica da pesquisa. São justamente aqueles elementos materiais
– as palavras-valise – que, no enunciado, indiciam a relação do atual com as condições de
produção, as formações discursivas, a memória discursiva ou interdiscurso o alvo dos gestos
de leitura realizados pelo analista de discurso. Como se pergunta Sèriot (1986, p. 14): “Se se
considera a sintaxe como um sistema neutro e fechado, como se pode admitir que um texto
possa portar em si, na sua própria materialidade, alguma coisa que lhe seja “outra”.
Nesta seção, serão analisados enunciados recortados das quatro matérias que
circularam na mídia local e estadual entre os anos de 2012 e 2015, listadas nos procedimentos
metodológicos constantes do Capítulo I.
cidade de Sorriso relatam a difícil acomodação dos nordestinos que chegaram a um território
tido como domínio, por excelência, de sulistas. Apesar de mão de obra indispensável ao
cultivo da terra, os nordestinos carregam o estigma de indesejáveis, estando à sombra dos
sulistas na construção do município.
A BR 163 que divide fisicamente a cidade em duas partes funciona também com uma
linha fronteiriça que divide o corpo social, apartando a maioria sulista (gaúchos) que habita o
“cá” da maioria não-sulista (maranhenses) que habita o “lá”. O “cá” é o lugar ocupado por
aqueles tidos como pioneiros, por aqueles que assumem a posição de colonizadores do
município e, por isso, se arrogam o direito de dizer o discurso fundador. O “lá”, no discurso
dos pioneiros, é o lugar de quem chega depois, é o lugar do Outro, é o lugar dos intrusos e
invasores, daqueles que ameaçam a ordem, que são portadores da violência, da insegurança e
de toda sorte de problema social. Em meio a essa formação sócio-histórico-ideológica,
floresce uma prática discursiva permeada de preconceito e discriminação em relação à
presença do Outro em Sorriso, prática que é evocada e explorada eleitoreiramente em
campanhas políticas, como sugere o Enunciado 1 (E1), que figura como título da Matéria 1:
E2: O prefeito eleito Dilceu Rossato condena a tentativa de divisão entre nordestinos e sulistas
adotada por um grupo político durante a campanha eleitoral em Sorriso. [...] disse que refuta
toda forma de preconceito racial ou econômico contra cidadãos que vieram do Nordeste,
principalmente do Maranhão.
E3: “A maior parte dos funcionários da minha empresa é maranhense”, cita Rossato. “Ontem
[segunda-feira 8] cheguei na minha empresa fui recebido pela secretária e as duas mulheres
responsáveis pela limpeza. Nos abraçamos e choramos, porque elas ficaram indignadas
durante a campanha toda com aquilo que os nossos adversários pregavam a nosso respeito”,
contou.
tenha sido atribuída às próprias funcionárias maranhenses: “elas ficaram indignadas durante a
campanha toda com aquilo que os nossos adversários pregavam a nosso respeito”. “Elas”
seriam uma espécie de prova viva de que o que disseram contra seu patrão/prefeito era
calúnia, inverdade. O gesto e a palavra delas (maranhenses) são dignos de fé porque elas
falam com conhecimento de causa, são testemunhas vivas de que prefeito/patrão não é o que
falam dele os adversários.
Em E4, prossegue a contraposição ao discurso divisionista que faz parte da memória
discursiva da sociedade de Sorriso e veio a ser explorado, na disputa eleitoral, para rebaixar a
imagem do candidato que disputava o mandato pela segunda vez.
E4: Rossato, no entanto, pede que nunca mais numa campanha se tente jogar pessoas de uma
região contra outra. “Nós, de Sorriso, estamos de portas abertas para receber gente do país
inteiro. Essa é uma cidade ordeira e que precisa de mão de obra. Vai faltar gente para trabalhar
nesses próximos anos. Nós queremos que toda a gente de bem venha morar em Sorriso. Não
importa a cidade ou o estado de origem. Sorriso é uma terra de oportunidades para todos. E
nós queremos cuidar bem do nosso povo”, convida.
Em primeiro lugar, no relato indireto da fala do prefeito, o enunciado introduzido pela negação
nunca mais: “nunca mais numa campanha se tente jogar pessoas de uma região contra outra”,
contém uma afirmação: “nessa campanha se tentou jogar pessoas de uma região contra outra”.
O que esse enunciado silencia é que o discurso divisionista é muito anterior à campanha em
que foi explorado para rebaixar o candidato Rossato. Ele circulava antes da campanha,
provavelmente de uma forma menos ruidosa, e continua a circular e a dividir o corpo social de
Sorriso depois dela, como se verá na análise das entrevistas.
Nas afirmações “Nós, de Sorriso, estamos de portas abertas para receber gente do país
inteiro.” e “Nós queremos que toda a gente de bem venha morar em Sorriso.”, o pronome
„nós‟ reveste-se de uma certa ambiguidade. Pode ser lido como um plural de modéstia, usado
para amenizar a distância entre a autoridade e o povo que governa, já que o “nós” é inclusivo,
refere-se a uma coletividade. Parece ser esse também o efeito de sentido produzido pelo
“nós/nosso” em “E nós queremos cuidar bem do nosso provo”.
Porém, também pode ser lido como um “nós” que inclui apenas os colonizadores
oriundos do sul que se estabeleceram primeiro na região e, por isso, se consideram os „donos‟
da casa. E, como „donos‟ da casa „podem‟ „abrir as portas‟ para receber os „hóspedes‟, no
caso, os nordestinos/maranhenses, que venham na condição de “mão de obra” e “gente para
trabalhar”, desde que preencham requisitos como o de ser “gente de bem” e “ordeira”. A
102
afirmação de que Sorriso é uma “cidade ordeira” funciona como uma advertência aos que
vem de fora. Eles serão benvindos desde que não perturbem essa ordem, como aconteceu no
início da migração dos nordestinos que causou desarranjo social.
Não se pode deixar de perceber, em E4, o discurso divisionista em pleno
funcionamento, embora seja explicitamente negado pelo enunciador. Nesse discurso, os
sulistas são emissários da ordem, da disposição para o trabalho, do progresso e da riqueza; já
os nordestinos são associados à desordem, à preguiça, ao atraso e à pobreza. Enfim, Sorriso
está de portas abertas àqueles migrantes nordestinos dispostos a participar ativamente da
cadeia produtiva do município e a se integrar ao modus vivendi do colonizador. Quem não
vier para trabalhar tanto quanto os colonizadores, para aproveitar as oportunidades que a terra
oferece, quem vier como emissário da violência e da criminalidade, esse não será recebido de
braços abertos. Introduz-se assim uma divisão no grupo dos não-sulistas
(nordestinos/maranhenses): os que são gente de bem e os que não são gente de bem,
polemizando com um dos sentidos correntes em torno de „ser nordestinos/maranhenses‟ no
discurso divisionista (nordestinos/maranhenses = não são gente de bem, são gente desordeira).
E5: Para a presidente da Câmara de Sorriso, vereadora Marilda Savi (PSD), a participação do
poder público municipal na Festrilha demonstra ao povo sorrisense que o nordestino também
contribui para o crescimento do Município. “Assim como o CTG, o CTNS também é uma
entidade filantrópica que precisa de repasse financeiro para suas manifestações culturais”,
ressaltou. [grifo da pesquisadora]
103
E6: Festrilha Nordestina- O evento cultural que tem por objetivo integrar os mais de 25 mil
nordestinos que vivem em Sorriso através de danças, bebidas e comidas típicas vai contar com
diversas atrações.[...]
De acordo com o presidente do CTNS, Claudiano de Oliveira, a festrilha é a principal
manifestação da cultura nordestina. “É a oportunidade que todos têm de conhecer um
pouquinho do Nordeste. Também é a chance que damos aos nordestinos e aos seus filhos e
netos que aqui residem de terem um contato maior com suas raízes, não deixando que percam
suas origens”, explicou.
Ao invés de troca e mistura entre sulistas e nordestinos, essa postura de cultivo e manutenção
das origens favorece a fissura do corpo social e a produtividade do discurso divisionista.
E7, além do nome do suspeito, aparece também sua alcunha: „Maranhão‟, um apelido
provavelmente motivado pelo estado de origem de J. P. F. da C. Nos enunciados seguintes, E8
e E9, o acusado deixa de ser identificado pelo seu nome próprio e passa a ser designado apenas pelo
apelido Maranhão.
E8: Maranhão já tem outras passagens pela policia e agora vai responder
pelo crime de roubo, porte irregular de arma e munições, e falsidade ideológica.
E9: Maranhão ainda deve ser interrogado, pois a polícia quer descobrir quem era o
comparsa, que conduzia a motocicleta durante o assalto.
acerca do caráter suspeito dos maranhenses em geral. A matéria parece jogar com a
associação de semas negativos aos maranhenses que residem em Sorriso, reafirmando o
interdiscurso que os generaliza como sendo os que causam a desordem e praticam os crimes
ocorridos na cidade.
Ao término da matéria, há uma seção de comentários de leitores. Dentre os quatro
comentários postados no site, um (E10), em tom de revolta, reafirma e generaliza a valoração
negativa dos maranhenses.
E10: Comentário de leitor: Até quando ficará preso? Daqui uma semana estaremos vendo a
noticia da soltura do mesmo.. E outra…. tinha que ser, Só pelo apelido. (Maranhão). Not
comment !!!
A forma verbal “tinha que”, aqui funcionando como o elemento-valise que traz a
memória discursiva para dentro do enunciado atual, indicia uma relação necessária,
obrigatória entre ser chamado de Maranhão e ser bandido. Na expressão “Só pelo apelido
(Maranhão)”, também o “só” funciona como uma palavra-valise que traz o discurso
segregaconista para dentro do texto e coloca todos os maranhenses no „mesmo saco‟, o saco
da criminalidade. Tal pensamento encontra-se filiado ao determinismo, corrente filosófica que
afirma que o comportamento humano é condicionado por três fatores: genética, meio e
momento.
uma caraterística individual para a classe. A interpretação, nesse caso, seria: é bandido porque
é maranhense, e, não, é um bandido que, por acaso, é maranhense.
E11: Na verdade a gente fez de Sorriso uma extensão do sul, pra mim.
Pra nós hoje o CTG é a segunda casa.
107
E13: Nós era sócio do Sol Nascente [clube de piscina] e a gente ia lá, depois começou a
misturar muita gente, deixavam todo mundo entrar, aí eu não quis ir mais. E eu sou muito…
sistemática.
110
E14: Daí a gente, quando eu ia pro clube, eu me estressava antes de chegar no clube. [risos]
Porque passa no meio desses bairrozinho pequeno aqui que tu vê de tudo. Dai era aquela
criançada no meio da rua, pelada, de tudo que era jeito. Quando eu chegava lá em baixo,
parecia que eu tinha que atravessar aquilo pra poder ter alguma coisa e ver toda aquela gente
daquele jeito e eu chegava lá embaixo estressada. Eu não gostava mais de ir. Comecei a
desgostar de ir só por ter que passar ali. Parecia que tinha que ter outra rua do outro lado pra
passar. Ali tu via de tudo. Tinha uns bairrozinho, tem ainda...
Em E14, ao falar da travessia que tinha de fazer para chegar ao clube, a entrevistada
avalia negativamente o que vê nos bairros do lado de “lá”, assumindo, como enunciadora, um
ethos12 de estranheza, de reprovação e, até mesmo, de certo repúdio. Ao se referir aos bairros
que ficam no trajeto do clube, a enunciadora emprega o diminutivo (esses bairrozinho, uns
bairrozinho) que parece se revestir de um tom pejorativo. Aliás, o emprego do diminutivo
para significar, não algo pequeno, mas o apoucamento, o menosprezo de algo, é bastante
comum no uso do português em práticas discursivas de avaliação negativa. O tom de
reprovação permeia praticamente todo o enunciado.
Quando ela diz à pesquisadora “aqui (nesses bairrozinho) tu vê de tudo” e “Ali tu via
de tudo”, muito provavelmente ela está se referindo a “tudo” como coisas reprováveis, coisas
que seus olhos não gostavam/queriam de ver, como por exemplo: “aquela criançada no meio
12
Na Análise de Discurso, o ethos é concebido como a maneira de dizer vinculada à figura do enunciador, que é
o “fiador” de seu discurso, e que deverá, por meio de sua fala, construir uma imagem de si compatível com os
mundos criados pelos enunciados. O autor insiste, pois, que “as „ideias‟ apresentam-se por uma maneira de dizer
que remete a uma maneira de ser” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 73).
111
da rua, pelada, de tudo que era jeito”. Neste trecho de E14, o termo “criançada”, em que o
morfema “-ada” indica um coletivo de crianças, parece dialogar com uma memória discursiva
que circula Brasil afora de que os nordestinos geram muitos filhos, mais do que são capazes
de sustentar e cuidar, por isso os abandonam à própria sorte. Neste trecho, a falta de cuidados
é significada pelo predicativo “pelada” e pelo adjunto adverbial “no meio da rua”, indiciando
o desleixo e a negligência dos pais ao permitirem a exposição dos filhos a situações de risco e
vulnerabilidade social. Certamente, há um efeito de sentido de reprovação dessa forma de
“criar filhos” que contrasta com o modo sulista que inclui uma vigilância constante das
crianças pelo olhar do adulto, que não permite a brincadeira no meio da rua e muito menos a
exposição da criança nua em público (é preciso cobrir „as vergonhas‟ desde pequeno).
A visão de tal quadro era tão desconfortável aos entrevistados, que eles desistiram de
frequentar o clube. Se, para desfrutar de alegres momentos de descanso e lazer em um espaço
reservado, aconchegante, bem cuidado e entre os socius, o preço a pagar era ver o que viam
na travessia obrigatória dos “bairrozinho”, então não valia a pena ir ao clube. O mal-estar
sentido pelo choque de culturas que o casal tinha de vivenciar no trajeto para o clube
materializa-se em formas como: “eu chegava lá embaixo estressada. Eu não gostava mais de
ir. Comecei a desgostar de ir só por ter que passar ali. [...] Ali tu via de tudo”. Nesse
enunciado, o adjunto adverbial ali não é apenas uma forma dêitica referencial que designa o
lugar que está longe fisicamente da enunciadora, mas é um dêitico discursivo que significa o
reduto da gente indesejável na Sorriso contemporânea, reduto da gente que não se quer
encontrar, com que não se quer interagir.
E14 culmina com a enunciadora aventando a hipótese de outra rua de acesso ao clube,
que passasse fora do perímetro dos “bairrozinho”: “Parecia que tinha que ter outra rua do
outro lado pra passar”, de modo a evitar a visão do inferno. Nem o contato esporádico e fugaz
da passagem era tolerado pela enunciadora que explicita a posição do casal e, possivelmente,
de outros sócios do clube em relação ao outro que eram obrigados a avistar no caminho. E14
parece ser muito mais a expressão de uma atitude de reprovação moral de hábitos culturais
destoantes daqueles da cultura gaúcho, tidos como ideais, do que uma sensibilidade para a
desigualdade social entre o lado de “lá” e o lado de “cá”. E se há uma sensibilidade para a
desigualdade social, ela se manifesta, às avessas, por se impor à visão e não poder ser
esquecida num momento em que se quer apenas desfrutar de um instante de lazer, afinal ser
forçado a se deparar com a desigualdade e a ter consciência social incomoda, “estraga” a
diversão. O tempo da ludicidade e o tempo da consciência social parecem ser antitéticos. O
112
E15: Eu não gostava de passar por ali. Via aquelas crianças, tristeza de vida aquilo ali.
Quando eu chegava lá em baixo, eu tava estressada de ver aquelas crianças, uma vida que a
gente não quer pra gente.
As formas “tristeza de vida” e “uma vida que a gente não quer pra gente”, em E15,
produzem o sentido de que há uma certa consciência da desigualdade social. Se, em E14, o
que era reprovado e estressava a enunciadora era o modo de criação dos filhos destoante do
modo gaúcho, em E15, o que parece incomodá-la e estressá-la é a pobreza, a privação em que
vivem as crianças. Para evitar encontrar o outro, quer por desaprovar o modo “solto” e
negligente de criar os filhos, quer por não querer se deparar com a pobreza visível do lado lá,
a entrevistada deixa até frequentar o clube “só por ter que passar ali”. Enquanto as análises
das matérias midiáticas nas seções anteriores indiciavam os sentidos de inclusão do outro, a
análise desta entrevista indicia sentidos de segregação e desejo de não se encontrar com o
outro nem de passagem. Também em E15, o “ali” é um dêitico discursivo que significa o
“lado de lá” como lugar de pobreza.
Contudo, o lado de “lá” não é só o lugar de abandono das crianças, de carência, de
pobreza e de tristeza; é também um lugar de muita festa e diversão, conforme E16:
E16: Se um dia você vir aqui eu vou te levar na sexta-feira. Ali você vê festa. Ali você vai ver
festa. Meu Deus do Céu! Incrível de ver! Que nem formiga! Tu não pode andar de carro. E
começa na sexta e vai até domingo. Se for lá agora tá fervendo. Divertido? Mas e muito! [...]
E cada boteco tem festa, festa, festa... Dança no meio da rua, por tudo.
a ponto de “não se poder andar de carro”. São festas populares que se diferenciam muito das
que ocorrem no lado de “cá” da cidade, geralmente em recintos fechados como clubes,
danceterias, casas de shows, pubs nos quais se cobram entradas, mesas, camarotes, e, por
consequência, há uma seleção de público e também uma lógica diferente do que é concebido
como festa. Em E16 e E18, as palavras “ali” e “lá” também funcionam discursivamente,
significando o “lado de lá” como lugar de muita festa e diversão.
Apesar de admitir que há muita animação, o casal entrevistado ressalta o perigo de
frequentar as festas do lado de “lá”, demarcando seu limite em relação à interação com o
povos além BR163. Permitem-se apenas passar de carro para espiar a festança de longe, pois a
linha que separa a diversão da briga é muito tênue (E17).
E17: Eu já passei umas duas, três vezes por que eu acho muito interessante aquilo ali. Passar
de carro. Nunca desci, não tem como descer ali. Não, porque tem que levar a faca na bota.
Talharam uma ontem de noite. Nove facadas ontem de noite. Enterraram ela hoje.
E18: Ali é virado em boteco e música alto. É um lugar onde o povo... são muito divertido e
tem muito boteco, som alto e a bebida... [...] O povo é bem divertido, só que onde tem muita
bebida...
E17 evoca a memória discursiva de que os nordestinos são um “povo divertido”, mas
também briguento, principalmente quando se excede na bebida. A expressão “tem que levar a
faca na bota” reproduz o discurso de que necessariamente as festas promovidas pelos
nordestinos, no lado de lá, são permeadas pela desordem e violência, logo, é imprescindível
dispor de meios para se defender de alguma investida sempre provável naquele ambiente de
excesso de álcool. Na cidade, conta-se a anedota de que na revista feita na portaria do clube,
caso o frequentador esteja desarmado, lhe é oferecido uma arma à sua escolha para que possa
se defender lá dentro. Para dar sustentação à tese de que o lado de „lá‟ é um lugar de
desordem, briga, criminalidade, a enunciadora apela para o argumento do exemplo, contando
o “causo” de um assassinato violento, provavelmente a facadas, a julgar pelo termo
“talharam”, ocorrido na noite anterior à entrevista. Em E17, o “ali” é o lugar da violência,
insegurança e criminalidade, remetendo-se ao discurso da segregação social e não apenas ao
lugar distante da enunciadora.
Em E18, a enunciadora ressalta a presença copiosa de botecos nos bairros situados no
lado de „lá‟ da BR 163, nos quais sempre há música alta, bebida e muita diversão. Porém, nem
tudo é diversão nos botecos, pois onde se consome muita bebida, a diversão e a confusão
estão muito próximas, como sugere a afirmação “O povo é bem divertido, só que onde tem
114
muita bebida...”. A enunciadora concorda com o fato de que o povo nordestino é animado,
festeiro, o que é algo atrativo para quem está de fora da festa, contudo, o emprego do termo
„só‟ permite antever que, apesar da diversão, não convém partilhar da folia porque a confusão
é inevitável. O restante da frase é suspensa por meio do emprego de reticências, supondo que
já seja do conhecimento do enunciatário o seu complemento, ou seja, onde há muita bebida,
há violência, bagunça, crimes, confirmando o estigma dos nordestinos como desordeiros,
beberrões, criminosos, embora sejas festeiros.
Em E19, a seguir, a enunciadora destaca o comportamento territorial dos machos do
lado “lá” que toleram mal a presença dos machos do lado de “cá” em seu quintal, quando os
identificam como estranhos ao lugar:
E19: Se eles sabem que você é desse lado... antes era pior, agora nem tanto... O filho da Odete
ele se enfia em tudo, que ele é muquirana. Ele disse que quando ele chegava pros cara lá e que
eles viam que ele era desse lado de cá da cidade, eles não desviavam o olho dele. Que
qualquer resbalozinho dele tava feito. Tava feita a briga. E se pegar as mulheres deles, Deus o
livre.
Por meio de E19, pode-se observar que o preconceito étnico existente na cidade de
Sorriso opera como uma via de mão dupla: do lado de „cá‟ em relação ao lado de „lá‟ e vice-
versa. Se, nos clubes e festas do lado de “cá”, os habitantes do lado de lá são discriminados,
nos clubes e festas do lado de “lá” os habitantes do lado de “cá” também o são. Quando em
território do „outro‟, os gaúchos são constantemente vigiados, devendo se portar como
visitantes bem comportados e não ameaçar as relações afetivas do anfitrião, pois qualquer
“resbalozinho” é motivo para briga. Há uma espécie de lei que regula a formação de pares nas
festas do lado de “lá”. Como se trata de festa realizada no lado nordestino da cidade, as
mulheres da festa, que também são nordestinas, são pares para os nordestinos, tanto para
dança como para envolvimentos afetivos. Assim, o sulista que ousar transgredir essa regra
local é interpretado como alguém que está provocando uma desordem e, consequentemente,
uma contenda. As festas do lado de “lá” são mais baratas e, por isso, atraem os “muquirana”
do lado de “cá”, como o filho da Odete, citado pela enunciadora, que deve funcionar como
uma espécie de cronista das confusões que presencia no território do outro.
A narrativa, em tom de reprovação, sobre a estranheza que a entrevistada sente a ter de
atravessar o bairro para chegar ao clube que frequentava, assim como a narrativa, em tom de
admiração, sobre as festas (espiadas de dentro do carro em movimento) que tomam conta das
115
ruas de sexta a domingo culminam com E20 que vincula tudo ao fato de o povo de lá ser
“mais nordestino”:
E20: O povo desse lado ali é o povo mais nordestino. A maioria é nordestino.
É incrível de ver, quando eu passo ali, nem parece que a gente tá em Sorriso.
13
Disponível em: http://www.vagalume.com.br/caetano-veloso/sampa.html. Acesso em 15/01/ 2016.
14
Usa-se essa grafia para evocar a palavra apartheid.
116
costumes, o lugar das festas e diversão, o lugar da violência e da criminalidade, o lugar que
não se parece em nada com a Sorriso do lado de cá.
3.2.2 Entrevista 2: “os ladrões que você vê é tudo de lá, as mortes é tudo de lá, as facadas
é tudo de lá”
E20: Fabiano: Ah, porque se eu reprovar, eu tenho que estudar com aqueles noiados. (pausa).
Ah, eu não quero estudar lá não, é muito “paia”. [...] Ah, é São Domingos, tudo noiado lá.
15
O nome da escola – Escola Rachel de Queiroz- é fictício, para preservar a identidade da instituição, bem como
dos responsáveis por ela.
16
Todos os nomes usados nesta seção – Fabiano, Pedro, Jônatas, Paulo, João, Eva, Marta, Camila, Lúcia, Carla,
Fernanda – são fictícios, para preservar a identidade dos sujeitos entrevistados.
117
E22: Professora: Mas como é lá, o lugar, o bairro, as coisas que tem lá?
Jônatas: Depende. Têm umas partes que é feia, têm umas partes que é bonita. Têm umas casas
feias, têm uns becos lá que é menor que... (gesticula) daqui até ali.
E23: Pedro: Eu nunca vi as partes bonitas (risos). Oh, desculpa, mas... eu já andei por lá e as
partes bonitas eu nunca encontrei. (risos, tumulto).
E25: Pedro: Nós ia lá, passar pra pegar os maranhenses lá da fazenda, tinha só negada no meio
da rua, assim, bebendo. Eles sentam no meio da rua.
Um dia, nós fomos lá de camionete, os caras pararam na frente assim, né, a rua ainda estreita,
só passava a camioneta. Daí nós fomos lá pegar uma conta do cara lá que tinha saído do
aluguel. Os caras lá trancando a rua assim, com a moto lá, tudo uns negão, grandão lá. Minha
mãe se cagou toda. Daí ela falou: Pedro, vou trancar as portas. Daí ela trancou as portas. Daí
nós fomos indo bem devagarzinho... Daí eu falei: Óh, mãe, qualquer coisa você finca em cima.
Aí chegamos pertinho assim, os caras saíram e ficaram olhando assim pra nós. Minha mãe
saiu no doze de lá.
119
[...]E quando vem um carro subindo, quando você desce para pegar empregada, um tem que ir
de ré, até do outro lado.
Pedro, em E27, afirma que os maranhenses constituem melhor opção porque não há
outra e porque é a mais barata. Paulo parece discordar de Pedro de que não há outra opção,
dando a entender que do lado sulista também há pessoas que podem realizar trabalhos braçais.
121
Nota-se, portanto, que não é somente no lado dos maranhenses que há mão de obra disponível
para o trabalho na lavoura; no lado dos sulistas também há, contudo, não tão dispostos,
provavelmente, a se submeterem aos trabalhos disponíveis no campo, sendo, por isso, mais
viável buscar esses trabalhadores no lado oposto da BR 163. Na segunda parte de E27, a
pergunta do aluno Pedro não é uma pergunta de fato, é mais uma ironia, com sentido de
negação. Ao indagar o colega sobre quais seriam os outros possíveis trabalhadores, na
verdade está negando a existência destes. A troca de turnos entre os colegas sobre as
“qualidades” dos maranhenses como trabalhadores continua em E28:
Em E28, cada aluno nomeia uma característica dos maranhenses como trabalhador:
Jônatas diz que eles são “fortes”; é contestado por Paulo, que diz que não adianta ser forte se é
“burro”, e também por Fabiano, que diz que eles precisam ser vigiados porque “não fazem
nada”, são preguiçosos. A força do trabalhador maranhense rivaliza com a sua burrice e
preguiça, o que faz com que tenha que ser vigiado o tempo todo pelo empregador (“tem que
ficar na cola”).
Ainda sobre as relações de empregabilidade entre sulistas e nordestinos, nota-se que
há alguns limites. Os maranhenses são aceitos em funções nas quais não há muito
envolvimento pessoal, como nas lavouras, por exemplo, onde a maioria dos empregos
disponíveis é temporária e não há estreitamento de laços nem convivência direta. Já em cargos
que demandam convivência próxima, em que os empregados desfrutam da intimidade da
família, como trabalhos domésticos exercidos pelas mulheres, existe certa cautela devido a
incompatibilidade entre a qualidade dos serviços prestados e a expectativa do empregador e
também a desconfiança acerca da idoneidade e confiabilidade das trabalhadoras maranhenses,
sendo que alguns não cogitam a possibilidade de confiar uma criança aos cuidados de uma
babá maranhense.
E29: Professora: E para trabalho dentro da sua casa, empregada doméstica, uma babá, por
exemplo?
(Confusão de Sim e Não)
Camila: Babá? (espanto e recusa)
Eva: A maioria a minha mãe pega lá. Não fica! Não fica![...] Minha mãe pegou semana
passada, a gente deixou lá em casa sozinha pela primeira vez pra fazer um teste. Ela não fez
nada o dia inteiro! Nada!
Paulo: É bem difícil achar uma pessoa confiável.
122
E30: Marta: Eu tive uma babá dos dois aos sete anos [...]. Ela cuidava da casa e
cuidava da gente... Ela mora lá até hoje [...] Meus pais foram padrinhos do filho dela
[...] gente ainda conversa, mas a gente não vai lá, na casa dela. Ela vai na nossa casa.
Porque ela mesma não gosta que a gente vá lá. Porque ela sabe como que é lá. Daí, ela
vai na nossa casa e a gente não vai lá.
Em E30, Marta relata a experiência de sua família ao ter, por cinco anos, uma mesma
empregada doméstica que residia do outro lado da BR163, com a qual a família estreitou
laços e os manteve mesmo após o término da relação empregatícia a ponto de se tornarem
compadres. Contudo, há nesse enunciado, o funcionamento do discurso que associa o lado de
lá ao lado do mal, da violência, do perigo, da imoralidade. Nesse discurso, a BR 163 demarca
a barreira que não deve ser ultrapassada por questão de segurança e bom senso. Ao dizer que
„ela mesma não gosta que a gente vá lá‟, a aluna atribui à empregada doméstica a assunção do
discurso de segregação. Marta põe sua babá assumindo a posição do sujeito sulista, falando
como fala um sulista, como visto também na matérias analisadas nas seções 3.1.1 e 3.1.4,
neste capítulo. O trecho do enunciado “Porque ela sabe como que é lá” evoca o discurso do
autopreconceito, como se as pessoas de bom senso que moram no lado de lá tivessem a
consciência de que lá realmente é um lugar impróprio para se viver e desagradável para
visitantes. Assim, ao invés de ser visitada, ela prefere fazer visitas aos antigos patrões. Dessa
forma, na fala de Marta, sua ex-babá é uma maranhense que pensa/fala como sulista,
123
reproduzindo o discurso da segregação social, que significa seus conterrâneos como não-
confiáveis, perigosos, baderneiros etc.
Para os alunos que participaram desta entrevista, o discurso discriminatório contra os
maranhenses que residem em Sorriso é justificado pelo próprio comportamento deles, já que
os problemas sociais „residem‟ no lado de lá. Em E31, há uma reafirmação contundente do
apartheid que divide a cidade em dois polos distintos: o “cá”, lado do bem e o “lá”, lado do
mal, conforme E31:
E31: João: Eles dizem que a gente tem preconceito com eles de lá, mas eles fazem a gente ter
preconceito.
Professora: Como eles fazem isso?
João: Os ladrões que você vê é tudo de lá, as mortes é tudo de lá, as facadas é tudo de lá. Tudo
é lá. Quer que a gente pense o quê? Todo mundo tem medo de ir pra lá. E é tudo de menor.
Camila: Tem mais gente ruim do que gente boa, então, essas pessoas ruins não deixam
a gente ver as pessoas boas de lá.
Na fala do aluno João, em E31, o lado de „lá‟ é caracterizado como o lugar onde estão
concentrados os ladrões que praticam roubos no lado de “cá”, os assassinos, as pessoas
violentas. Enfim, em “tudo é lá”, “tudo” significa “tudo de ruim que ocorre na cidade”, não
restando alternativa para que aqueles que habitam o “cá” pensar diferente dos que habitam o
“lá”. Por isso, o “lá” amedronta o “cá”. Ao dizer que os infratores são menores de idade, João
evoca a tópica da impunidade estimulada pelo Estatuto da Criança e Adolescente-ECA,
produtiva não apenas em Sorriso, mas no país inteiro, uma vez que o Judiciário, segundo
críticos do ECA, não pode proceder com menores da mesma forma que procedem com
criminosos adultos, por mais hediondos que os crimes sejam e mesmo se faltar apenas um dia
para o infrator atingir a maioridade. E31 produz o efeito de sentido de que o lado de lá é um
caso perdido. Contudo, Camila tenta uma contra argumentação à posição defendida por João
de que do lado de “lá” todos são ruins. Ela admite haver os que não se encaixam nessa
generalização, mas, como são a minoria, são ofuscados pela maioria e igualmente
desacreditados.
negação irônica. Nesse enunciado, aparece o discurso de que não só os gaúchos desaprovam o
lado de lá, pois até mesmo os maranhenses não estão satisfeitos com o estilo de vida que o
lado de lá lhes oferece, ficando novamente o lado de „cá‟ caracterizado como o espaço ideal
para morar, trabalhar e investir. Muito provavelmente a avaliação do lado de “lá” pelos
próprios maranhenses como um lugar ruim, como referida por Pedro, se deva ao fato de ser
um lugar “esquecido” pela administração pública quanto a serviços e infraestrutura. Em E32,
a pergunta feita pela entrevistadora/professora procura descobrir a origem do esconjuro do
lado de “lá”:
E32: Professora: Mas se você nunca morou lá, como é que você sabe que lá é ruim?
Pedro: Dá de ver pelas pessoas de lá.
Eva: Todo mundo fala.
E32 associa o lugar às pessoas que vivem nele. O sentido é de que o lugar é ruim
porque as pessoas que vivem nele também o são, logo, não há meios de isso ser diferente. No
mesmo enunciado, Eva reitera o senso comum que faz parte da memória discursiva de
Sorriso: “todo mundo fala” que “lá” é ruim, então, eu também, como todo mundo, falo que
“lá” é ruim. Trata-se, pois, de uma adesão ao discurso hegemônico sobre o lado de lá. Em
E33, novamente uma moradora do lado de lá (uma cabeleireira) é convocada, por meio da fala
de Marta, a legitimar o que se diz do lado maranhense de Sorriso:
E33: Marta: O salão que eu vou é lá. Daí sempre quando eu vou, a mulher me conta tudo que
aconteceu lá. Que entrou um cara lá, começou a atirar, e matou uma cabeleireira, foi lá fora
levou facada. Ela foi assaltada 300 mil vezes [...] e desceu um cara correndo e saiu atirando no
povo. Um monte de coisa.
Professora: E por que você vai lá?
Marta: Ah, por que é a melhor que encontrei até hoje. Vou por causa dela.
de que não há entre maranhenses bons profissionais e gente de bem, mas, pelo fato de serem
em menor número, acabam sendo ofuscados pela maioria „desordeira‟.
ancestral cultivado dentro de suas famílias. É desalentador ter de reconhecer que, se, por um
lado, as crianças das classes média baixa e baixa aprendem nas escolas que precisam respeitar
o outro e que as diferenças não podem significar desigualdade de direitos, por outro lado, as
crianças das classes média alta e alta estejam sendo educadas para perpetrar a rejeição
narcísica a tudo o que é diferente delas, a tudo o que não reflete o que elas mesmas foram
levadas a pensar que são. Enquanto as crianças das classes média baixa e baixa podem
aprender na escola lições de multiculturalismo democrático, as das classes média alta e alta
continuam imersas nas águas do iluminismo totalitário que impõe a visão da cultura letrada
como civilização em oposição à barbárie. No sentido antropológico, não se fala em “cultura”
no singular, mas sim em “culturas”, no plural, como também não se hierarquizam as
diferenças culturais em superior e inferior. Além disso, é já consensual que, no mundo
contemporâneo, não se pode mais falar em culturas puras, pois a trocas entre elas por meios
de transporte cada vez mais velozes, por meios de comunicação de massa e agora pela
Internet as tornam todas, em maior ou menor grau, misturadas, híbridas.
A BR163, por ser escolhida como ponto de trabalho noturno por travestis e
homossexuais e prostitutas, funciona como um refúgio para aqueles que não encontram
espaço na sociedade sorrisense. Escandalizariam os moradores do lado sulista, caso atuassem
nas ruas e avenidas do centro, e chocariam os moradores do lado maranhense pela sua
excentricidade. Assim, os travestis, pejorativamente chamados de „travecos‟ por Pedro,
escolhem a BR163 para trabalhar, pois, além de se tornarem visíveis a quem trafega em
direção às cidades vizinhas, estão em território neutro, nem “lá”, nem “cá”, menos sujeitos ao
cerceamento e à repressão tanto da parte de sulistas quanto dos próprios maranhenses, já que,
no tocante ao machismo e à homofobia, ambos se parecem.
E35: Fernanda: Um dos meus melhores amigos é de cor preta e ele é um dos melhores que
dança Free Step da cidade!
Em E35, Fernanda rebate o enunciado anterior quanto a ser amiga de um negro. Ela
confessa que um de seus “melhores amigos é de cor preta”. A entrevistada tenta se mostrar
uma pessoa sem preconceito. Contudo, a qualidade destacada por ela soa como uma
justificativa para a amizade „ele é um dos melhores que dança Free Step da cidade!‟. O efeito
de sentido produzido por esse enunciado é o de que „ele é negro e é um dos melhores
dançarinos, por isso é meu amigo‟, o que leva a crer que este se sobressaia dos demais como
„pessoa de bem‟, já que possui um predicado reconhecido na cidade, apesar de sua
manifestação artística, o Free Step, conhecida também como dança de rua (modalidade de
127
dança popular entre jovens dos grandes centros da região sudeste), não ser ligada ao CTG. Ao
destacar apenas a habilidade na dança, reforça o discurso de que o negro/maranhense é
festeiro, pouco dado ao trabalho. Apesar de tentar contradizer a posição do colega Pedro em
E34, Fernanda não apresenta argumentos capazes de desmontar/negar o discurso racista.
E37: Jônatas: A professora acha que se eles tivessem mais oportunidades que a gente ia ter
aquele bando de gente pobre vivendo lá? Não ia!
Pedro: Só é pobre quem não trabalha. Hoje em Sorriso só é pobre quem não trabalha.
Carla: Em vez de trabalhar, eles vão fazer coisas erradas para sustentar os filhos.
Essa entrevista foi realizada no ano de 2014 com a Assessora de Projetos da Secretaria
Municipal de Educação no intuito de se ter a visão de quem lida com a demanda educacional
da cidade. A Secretaria de Educação do Município atende, em média, 13800 alunos, contando
com 34 unidades escolares e 980 professores (646 deles são efetivos). A entrevista focalizou
problemas e desafios enfrentados pelos gestores da rede municipal, como: indisciplina;
dificuldade em lotar docentes nas escolas periféricas; resistência por parte dos pais em
matricular seus filhos nessas escolas, etc. Em E38, o foco é a indisciplina e a recusa dos
professores em assumir encargos nas escolas do lado de “lá”:
E38: Entrevistadora: É possível mapear a indisciplina por escola? Isso leva os professores a
preterirem uma determinada escola?
Assessora: Não. Isso não dá para ser significativo de uma escola para outra, porque nas
escolas não se separa periferia e central. Não tem escola numa boa parte da periferia, então
não dá pra mapear isso, porém, a escola com maiores problemas é a escola São Domingos.
Escola São Domingos que está também lá no bairro São Domingos [...] mas lá que tem
problemas de ameaças externas, né, ao diretor, aos professores... Alunos que já se rebelaram...
De aluno QUASE agredir fisicamente o professor. Então, o maior problema hoje é lá, mas
existem problemas em todas as escolas, mas lá é o maior, principalmente por essa questão da
comunidade. E essa insegurança lá é onde a gente ouve professor dizendo que se sente
inseguro, é lá que a gente já ouviu. Mas não tem esse número registrado também, a gente fez
reuniões e ouvimos isso, está em ata e tal, mas dizer pra você que lá „x por cento‟, eu não sei.
Uma das justificativas por parte dos professores para se recusarem a trabalhar nas
escolas do lado de lá é a indisciplina e a violência que pontuam o dia a dia escolar. Em E38, a
assessora afirma não haver um mapeamento da indisciplina/violência no ambiente escolar da
rede municipal de Sorriso, já que nem todos os bairros periféricos contam com escola. No
entanto, ela admite que a escola São Domingos, situada no lado de lá, é a que mais apresenta
situações de violência tanto interna como externamente. Ao dizer “lá é o maior [referindo-se
ao problema da violência] principalmente por essa questão da comunidade”, a assessora
129
estabelece uma relação de causa e efeito entre a escola e a comunidade, quer dizer, a Escola
São Domingos é violenta porque o bairro São Domingos é violento. Ameaças externas ao
diretor e aos professores, rebelião de alunos, agressão física são reflexos do que as crianças e
jovens experimentam vivendo no Bairro São Domingos. Segundo a assessora (E39), a Escola
São Domingos era protegida pela comunidade, como as escolas das favelas:
E39: Até os professores relatam que até uns três ou quatro anos atrás, a comunidade protegia
a escola, a escola era um lugar que a comunidade protegia, onde geralmente é assim, a gente
vê, inclusive ouve relatos de grandes centros, de favelas que a escola é protegida.
A assessora compara a escola do bairro São Domingos com as escolas das favelas de
grandes centros. Ao estabelecer essa analogia, parece afirmar ser o lado de “lá” a favela de
Sorriso, lugar onde moram os problemas sociais, desde a falta de infraestrutura, saneamento
básico, educação, saúde até o tráfico de drogas, prostituição, violência, criminalidade; lugar
onde a omissão do Estado dá lugar à „comunidade‟ e à formação de um poder paralelo
exercido por milícias e traficantes que dominam o território e ditam a sua Lei, reprimindo e
protegendo a quem bem entender. Segundo a entrevistada, a escola “era”, até pouco tempo,
beneficiada com a „proteção‟ da comunidade. Ao admitir que para que a escola cumpra o seu
papel, ela precisa contar com a „benção‟ da comunidade local, está também admitindo a
ineficiência do poder público em promover a cidadania aos moradores do lado de “lá”,
diferentemente do faz para os moradores de lado de “cá”. Parece possível inferir de E39 que,
enquanto a escola era protegida pela comunidade, era menos violenta. E essa inferência
parece ganhar força pela leitura do E40:
E40: Lá era, mas agora não é mais. Então, eles vão na porta da escola oferecer droga, o diretor
não consegue tirar eles de lá, e aí por isso tem um trabalho com o delegado. O delegado
começou um trabalho que se chama “De bem com a vida”. Esse trabalho conta com a polícia
militar, a civil e com as entidades. Então eles vão trabalhar palestras com os pais também,
palestras com as crianças, tem teatro, vem teatro de Sinop, eles apresentam teatro pra essas
crianças, em questão de drogas... E são oficinas que a sociedade vai financiar pra aquelas
crianças. De música, de teatro, de dança. Existem algumas oficinas lá vinculadas ao
departamento de cultura, mas agora terão mais oficinas que a sociedade irá financiar, então a
intenção é ocupar essas crianças o maior tempo possível. A escola tem o “Mais Educação” que
é aquele tempo estendido. Eles atendem 100 alunos, mas eles diminuíram o índice do IDEB,
em questão de avaliação externa, eles pioraram isso.
E41: Entrevistadora: Você avalia que isso pode ser uma causa para os professores relutarem e
não quererem lecionar lá?
Assessora: Sim, aquela [escola] especificamente, sim, até porque também ela atende alunos
maiores, fundamental II. Eles tendem a ter maiores problemas. Tem alunos de sétimo ano,
oitavo ano, estão com 13, 14 anos, chegando drogado na escola às 7h da manhã. Tem lá. A
única escola que a gente sabe que tem isso, que chega assim, é lá. Os outros a gente sabe que
existem esses problemas também, mas que chega a entrar na escola dessa forma é só lá.
professores se recusam a lecionar nas escolas do lado de “lá”, também muitas mães gostariam
de matricular seus filhos em escolas do lado de “cá”:
E42: A gente tem muita, mas muitas famílias mesmo que se pudessem escolher, estudariam
nas escolas centrais. Sem conhecer número, sem conhecer professor, sem conhecer nada.
Eles escolhem, simplesmente.
E43: Visualmente , a escola Ivete tem uma aparência boa, diferente de outras escolas que às
vezes lá dentro a coisa é muito melhor, mas visualmente não é tão boa. E também tem uma
cultura, eu não tenho pesquisa sobre isso, mas é uma cultura da cidade de querer separar
classes sociais assim, por uma divisória muito firme entre uma e outra. Então a escola Ivete
seria a escola municipal onde as classes sociais mais abastadas estariam, fora as particulares.
É essa vontade de pertencer a essa classe, que seria diretamente vinculada a essa escola.
Em E43, a assessora afirma que ter uma boa aparência não é sinônimo de ter ensino de
qualidade. Logo, escolher a escola pela aparência pode ser um engodo, uma espécie de
“comprar gatos por lebre”. Afirma ainda que há uma separação do público das escolas por
classe social: em algumas delas, como a Ivete, estão os filhos dos mais abastados que não
estudam nas escolas particulares, nas outras estão „o resto‟, aqueles que não se enquadram
nesse padrão. Matricular o filho na escola Ivete dá status, pois há o discurso de que „é pública,
mas é igual a particular, tem até ensino apostilado‟, o que pode soar como uma forma de
“ascensão social”. Como a entrevistada relata, o pertencer a uma classe social mais favorecida
132
está também vinculado ao endereço da escola do filho, se não é o colégio particular, que seja a
pública mais famosa.
E44: A gente tem um trabalho que a gente conseguiu durante esse ano para aquisição de ar
condicionado para todas as unidades através do Governo Federal. A ideia é que no ano que
vem a gente climatize 100% das escolas, porque era uma coisa que eles falavam, porque as
escolas centrais elas já são climatizadas. A escola Ivete já tinha, por iniciativa da própria
unidade. E era o problema que eles sentiam, que eles alegavam, e isso não vai mais acontecer.
Mas eles ainda têm esse preconceito de que lá não é tão bom.
E46: Valter Leite que é a que menos tem professor efetivo atuando, e também no
quadro, eles, conseguiram uma das melhores evoluções do índice do IDEB, por
exemplo, na última medição. É uma escola periférica, também do lado de lá, uma
clientela bastante carente, e não só uma carência financeira. Por outro lado, tem um
número também bom de família que ainda acredita que a escola seja a melhor opção
para os filhos terem alguma coisa, aquelas frases que a gente ouvia algum tempo atrás:
“pra ser alguém na vida”.
Segundo a assessora, a Ivete é a escola mais requisitada, mas não é a que apresenta o
melhor índice do IDEB. Contraponto a realidade da escola Ivete, situada no centro da cidade,
e da escola Valter Leite, situada no lado de lá, vizinha da escola São Domingos, onde ocorrem
os problemas elencados pela entrevistada, a primeira representa o ideal de escola no
133
imaginário dos pais e a segunda a escola rejeitada por não ser bem equipada, bonita, ampla,
não promover festas e apresentações culturais. No entanto, a assessora tenta mostrar que
escolher uma escola por sua aparência e localização pode ser um erro, citando o caso da
Valter Leite que, mesmo não representando o ideal de escola que os pais buscam para os
filhos, foi a que mais progrediu na avaliação do IDEB, mesmo tendo o menor número de
professores efetivos em seu corpo docente. Provavelmente esse bom resultado esteja
relacionado com a participação de um bom número de famílias que acreditam no papel da
educação na possiblidade de ascensão social de seus filhos. Frases do tipo „pra ser alguém na
vida‟, comumente saídas da boca de pessoas simples, com pouca escolaridade e poder
aquisitivo, retratam a memória discursiva dos pais em relação a si mesmos. Se é preciso
estudar para ser alguém na vida, o inverso é que quem não estudou não é ninguém. A
evocação do enunciado da memória discursiva de que “quem não estudou não é ninguém”
serve como motivação para não querer que os filhos repitam sua história. Eles desejam uma
outra sorte para os filhos. O apoio ao trabalho docente está diretamente associado à
valorização do professor por ele ser estudado. O professor estudou, logo, no discurso do pai,
ele é alguém, que tem profissão, emprego, „trabalha na sombra, no leve‟ e está apto a tornar
seu filho um alguém também. O bom rendimento da escola Valter Leite desestabiliza o
discurso de que do lado de lá não há ensino de qualidade.
17
Disponível em:http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/moradores-de-sorriso-protestam-contra-a-criminalidade –
Último acesso em 22/01/2016.
134
tornou a cidade vulnerável a uma crescente onda de violência. Hoje, a questão da segurança é
um dos maiores desafios à administração pública de Sorriso.
Nesta seção será analisada a entrevista realizada em 2014, com um policial militar, na
carreira há doze anos e sempre atuando no município de Sorriso. Essa entrevista foi realizada
especificamente para este trabalho, com o objetivo de observar a correlação entre os dois
lados de Sorriso e a ocorrência de violência e criminalidade. Em E47 e E48, o policial afirma
que é a região central, do lado de “cá”, a região da cidade com maior número de ocorrências
policiais:
E47: Entrevistadora: Se hoje fosse fazer um mapa da violência em Sorriso, de onde são a
maior parte das ocorrências atendidas pela PM?
Policial: Você não vai acreditar, ou vai. Você acredita que onde está ocorrendo é por causa da
oportunidade, o maior foco de ocorrências é na área central. Desse lado. Porque, igual eu te
disse: teve um crescimento de roubo. Roubo a estabelecimento comercial.
E48: Policial: É...tá acontecendo pra cá...assim, compreendendo onde tem comércio,
compreendendo do Bela Vista pra cá, porque antigamente você tinha incidência de ocorrências
em bairros. Em bairros, era questão de alcoolismo, brigas, bate em mulher, bate em filhos, e
um cara esfaqueou, localizados: São José, São Domingos. Agora está havendo incidências de
roubos, inclusive a residências e a estabelecimento comercial, eles procuram locais que vão
dar lucro pra eles, né. Aqui nessa região central nossa. Região que compreende aqui, Recanto
dos Pássaros, aqueles bairros bonitos, bairros nobres.
E50: Entrevistadora: Eu sempre achei que a rua Passo Fundo fosse no São Domingos.
Policial: Pois é, e é no São Mateus. Rua Passo Fundo, São Mateus, e aqueles becos, né,
inclusive onde você vê usuários de drogas ali, de forma diuturna. E aí, só que daí o pessoal
fala do São Domingos, né. Ele compreende tudo como Grande São Domingos. Ali pra eles,
Industrial, Novos Campos, Vila Bela como se fosse tudo como São Domingos. E não é. Na
verdade, pra falar a verdade pra você, o São Domingos é um bairro tranquilo. Tranquilíssimo!
Pra falar verdade. São Mateus que é o que dá um pouquinho de trabalho, de dor de cabeça pra
gente.
Em E50, o policial reafirma para entrevistadora que a rua Passo Fundo fica no São
Mateus e que lá, sim, em seus becos, se concentram os usuários de drogas. Como bom
conhecedor da geografia da região, faz questão de esclarecer que a atribuição generalizada
dos atos criminosos ao bairro São Domingos é equivocada, assim como a designação
toponímica de todo o lado de lá como São Domingos, pois o lado de lá compreende vários
bairros. Porém, reduzir todo o lado de lá a “São Domingos”, ou mesmo a “Grande São
Domingos”, é já um hábito cristalizado nas práticas discursivas locais. A designação „grande‟
não faz jus à sua extensão, tampouco é sinônimo de consideração por parte daqueles que
136
E52: Entrevistadora: Parece que não tem volta. Só o combate ostensivo para coibir um pouco.
Policial: Igual você disse, coibir só, né. Eu costumo dizer de novo, a gente enxuga gelo.
Geralmente você pega sempre o usuário. Aí, os traficantes, esses têm que ter um estudo maior.
Aí teria que contar com um estudo minucioso da polícia civil, de investigação. Nosso serviço
compreende um serviço ostensivo. Você está ali, a população está vendo, viu a polícia militar,
dá aquela sensação de segurança. Tá ali rodando, opa! Aí, às vezes sim, de repente há um
trabalho conjunto. Porque também a polícia civil não conta com um efetivo maravilhoso
também. Acho que bem menos do que a gente. Agora, investiga, identifica, aí você trabalha
assim, pra você tentar pegar. Porque geralmente só pega os usuários mesmo.
Em E52, o policial volta a comparar o trabalho que realiza nas rondas de rua a
“enxugar gelo”, pois só pega o usuário, nunca o traficante. Segundo o entrevistado, para pegar
o traficante seria necessário a participação do serviço de inteligência e investigação, realizado
pela polícia civil. Reconhece, contudo, que a polícia civil, como a polícia militar, conta com
efetivo insuficiente para as demandas locais.
Como se pôde observar, em muitos dos enunciados, o entrevistado, procurou atenuar a
pecha de bairro mais violento de Sorriso que, segundo a opinião pública, recai sobre o São
137
Domingos. Ele faz isso, lembrando que o que se chama indevidamente de São Domingos é
um conjunto de bairros. Mas a redenção do São Domingos (“um bairro tranquilo,
tranquilíssimo”) não é a redenção de todo o lado de “lá”, já que o São Mateus, onde está a rua
Passo Fundo, é um bairro do lado de “lá”. Enfim, permanece a ideia de que a criminalidade se
origina em algum ponto do lado de “lá” e atravessa a BR163, atingindo o centro comercial e
adentrando os bairros residenciais de classe média alta e alta.
3. 3 Em resumo
No percurso realizado neste capítulo, primeiro, com a análise das quatro matérias e,
depois, com a análise das quatro entrevistas, pode-se observar que há, sim, um discurso
segregador circulando na sociedade sorrisense. Esse discurso é negado quando a esfera de
enunciação é a midiática, já que o enunciador, nessa situação, preocupa-se em “salvar a
cara”18, em representar-se como alguém que incorpora os valores oficialmente reconhecidos
pela sociedade, ainda que o faça de modo cínico. Quem daria a cara à tapa e defenderia
abertamente a segregação do outro em praça pública, representada, contemporaneamente, pela
imprensa, televisão e pelas redes sociais via Internet? Ninguém, em sã consciência, faria isso,
diante das políticas de respeito e inclusão do outro, defendidas por organismos internacionais
como a ONU. Nessa cena de enunciação, com raríssimas exceções, todos defendem a inclusão
do outro, como se viu pela análise das quatro matérias. Os enunciadores, na cena pública,
procuram produzir a impressão de que os atributos pretendidos por eles são seus atributos
mais essenciais. Por exemplo, na Matéria 1, nos enunciados atribuídos a Dilceu Rossato, o
prefeito eleito de Sorriso se defende da acusação feita pelo adversário de que ele teria
preconceito contra maranhense, mostrando que tanto não discrimina os maranhenses que os
emprega em sua empresa, evocando a cena do abraço emocionado que ele e sua secretária e as
mulheres da limpeza (supostamente mulheres maranhenses) trocaram no dia seguinte ao da
eleição. Com isso, o prefeito pretendia mostrar que seu apreço e respeito pelos maranhenses
são anteriores ao momento da eleição. A negação do discurso favorável à segregação
materializa-se por meio de palavras-valise que produzem o efeito de sentido de inclusão,
como o advérbio “também”, a conjunção comparativa “assim como... também”, as lexias
“convidar/receber” dentre outras. Tais palavras ou expressões conectam os enunciados atuais
(a formulação) com a memória discursiva (a constituição), no que diz respeito à segregação e
à discriminação de nordestinos/maranhenses por sulistas na cidade de Sorriso.
18
Trata-se de uma expressão usada por Goffman (1989) em sua teoria dramatúrgica da interação social.
138
CONCLUSÃO
também, eu trabalho, eu cultivo o campo. Essa forma latina arcaica está presente na palavra
portuguesa íncola que significa “o próprio habitante da terra” e também na palavra agrícola
que se refere ao “trabalho no campo”. Transformada, a forma colo está presente na palavra
inquilino, significando aquele que reside em terra alheia. Já a palavra cultura viria da forma
culturus (particípio futuro de colo) e culto, da forma cultus (particípio passado de colo)19. A
forma colo está presente também nas palavras colônia, colono e colonizar: colônia (espaço
que se ocupa e terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar), colono (aquele que cultiva uma
propriedade rural e vem se estabelecer no lugar do íncola) e colonizar (ocupar, povoar e
cultivar a terra de modo a fazê-la produzir riquezas). Assim, a forma colo significa tanto eu
moro quanto eu cultivo.
Pergunta-se Bosi (1992, p. 12): “o que diferencia habitar (colônia) e cultivar (colono)
de colonizar?”. Responde o autor: é “o deslocamento que os agentes sociais fazem de seu
mundo (onde vivem como íncola) para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar ou fazer
lavrar o solo alheio (onde se tornarão colonos)”. Em princípio, o colono não é dono da terra, é
apenas aquele que a trabalha. Porém, “a produção dos meios de vida e as relações de poder, a
esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e potenciam-se toda vez que se põe em
marcha um ciclo de colonização” (BOSI, 1992, p. 12). Essa relação entre uma esfera e outra
potencializa o poder daqueles que se imbuem do papel de conquistadores/desbravadores que
correm risco e se sacrificam na empresa da colonização. Sobre isso afirma Bosi (1992):
19
Nesta conclusão, vai-se retomar apenas a família semântica nucleada pela forma colo que inclui palavras como
colonização, colonizar, colônia, colono etc.
141
conforme narrativa constante da seção 2.4 desta dissertação, a imagem da expulsão das
centenas de pessoas – grileiros – que viviam na região de Sorriso antes do início da
colonização. Se a condição para a aquisição da terra que seria comercializada entre
compradores do sul do país era que ela estivesse “limpa”, quer dizer, sem gente em cima,
então se providenciaria a sua desocupação mediante operação policial (dois ônibus de
policiais) que tiraria todos os íncolas da terra e os despejaria na rodovia com a ordem de que
não voltassem mais.
No lugar dos antigos íncolas que foram despejados de seu chão, uma nova população
de íncolas aí se formaria – os primeiros migrantes sulistas, os pioneiros, que viriam na
condição de colonizadores não apenas para morar e cultivar a terra, mas também para
mandar, afinal a produtividade econômica demanda o domínio do homem sobre a natureza e
sobre os outros homens. Domínio econômico (domínio dos meios de produção) e domínio
político andam de mãos dadas. Quem chegou depois à região, e não como colonizador, estava
predestinado a ocupar o lugar de um inquilino incômodo; esses seriam os
maranhenses/nordestinos, enfim, os não-sulistas. Como afirma Bosi (1992, p. 62), “o olho do
colonizador não perdoou, ou mal tolerou, a constituição do diferente e sua sobrevivência. [...]
Sempre uma cultura vale-se de sua posição dominante para julgar a cultura do outro”. A
forma como a moradora do “lado de cá” de Sorriso (seção 3.2.1) e os jovens do 9º. ano (seção
3.2.2) significam o que veem do “lado de lá” é uma manifestação crua da intolerância em
relação à diferença.
Na semântica global do discurso segregador, os semas positivos adjungidos ao “lado
de cá”, lado do colonizador sulista, contrastam com os semas negativos adjungidos ao “lado
de lá”, lado do migrante nordestino/maranhense, conforme quadro 6, a seguir:
Retomando Bosi (1992), imagina-se que este trabalho possa funcionar como tomada
de consciência do passado e do presente de Sorriso como uma sociedade dividida, presidindo
a criação de alternativas para um futuro de algum modo novo. Relembrando Antonio
Gramsci, Bosi (1992, p. 17) propõe “a crítica do senso comum e a consciência da
historicidade da própria visão de mundo como pré-requisitos de uma nova ordem cultural”.
Que essa nova ordem cultural não demore a acontecer, com os dois lados da cidade
costurando as diferenças numa “sorrisidade mestiça” de carne e osso, para além das frias
estátuas com que os do lado de “cá” homenageiam as etnias que teriam participado da
construção de Sorriso!
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