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caetano soRDi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
embargos estrangeiros à carne brasileira; como vino, talvez algo próprio daquela personagem
resistir àqueles que, pelos animais ou pela saú- em específco. No entanto, logo reparei que
de, criticam o consumo e a produção do pro- os discursos do sistema-carne e da literatura
duto; entre outros. zootécnica que lhe serve de suporte estão reple-
O palco deste trabalho ideológico é um se- tos de paráfrases deste juízo particular, isto é,
tor da feira denominado Espaço Carne, no qual enunciados segundo os quais os bovinos seriam
se realizam palestras, conferências e workshops. como máquinas transformadoras de matérias, a
Em 2011, o Espaço Carne foi abrilhantado princípio, não-alimentares, em substâncias ali-
com uma iniciativa denominada Caminho do mentares (carne, leite etc.) ou economicamen-
Boi, em que o visitante era convidado a percor- te aproveitáveis (couro, chifres etc.). Em outro
rer, de maneira simulada, o trajeto que conduz evento realizado na mesma feira, em 2012,
o animal até o seu abate6. Tratava-se de uma ex- ouvi uma variante muito particular da afr-
posição didática dos mais modernos métodos mação, segundo a qual a quadratura manejo-
de bem-estar e “manejo racional” dos animais nutrição-sanidade-genética seria a “interação
da pecuária de corte, de modo a disseminar a fundamental para a máquina funcionar bem”.
ideia entre os produtores. Ademais, salientava- E um pouco antes deste evento, numa outra
-se que, para além da agregação de um valor palestra que assisti na mesma feira, a ideia da
ético ao seu produto, o “manejo racional” tam- máquina já havia sido evocada: a máquina de
bém servia como uma poderosa maneira de quatro estômagos que transforma matéria seca
preservação da integridade e da qualidade da em carne de primeira qualidade.
carcaça, na medida em que se minimizavam Não é de hoje que se ressalta a analogia
os riscos de hematomas e descargas de adre- entre animais e máquinas no contexto pecuá-
nalina no sangue do animal. Embora visasse rio (MITCHELL, 2006, 2011; PORCHER,
conscientizar os visitantes de que o manejo 2011). Muitas vezes, sob a forma de denúncia,
racional operava a síntese entre produção de como no caso do discurso dos direitos animais
carne e respeito ético, a iniciativa também vi- (SINGER, 2010). Assim, o que me chamou
sava conscientizar o produtor de que aquilo era particularmente atenção foi o caráter transfor-
bom para o seu bolso, ao manter a carcaça dos mativo da máquina, ou seja, o tipo de operação
bovinos macia e intacta. Ao longo do trajeto, ao qual seu efeito maquínico era referido. No
estavam afxados banners que informavam, em centro de tal operação, o que se vislumbrava
termos de toneladas, a quantidade de carcaças era o rúmen, centro desta máquina descrita por
que eram desperdiçadas todos os anos devido à muitos no setor agropecuário como milagrosa.
má organização do manejo ante mortem. Um exemplo. Segundo um manual zoo-
Também nesta edição da feira, assisti a uma técnico (PERRY, 1980, p. 3), “a forma mais
palestra, denominada “Pecuária Brasileira: des- abundante de energia renovável neste mundo
vendando mitos”, na qual um dos participantes é fbra e celulose. Infelizmente, o homem não é
proferiu um juízo bastante veemente sobre ser capaz de utilizar celulose. Felizmente, animais
necessário valorizar “este animal de quatro es- ruminantes são aptos a utilizá-la”. Isto se daria
tômagos que opera o milagre de transformar pelo fato de que
pasto cru em alimento”, isto é, o ruminante. A
princípio, pensei que se tratava de uma manei- Ruminantes são encontrados em quase todo am-
ra deveras idiossincrática de qualifcar um bo- biente onde plantas transformam energia solar
em formas químicas. Esta aptidão é a manifesta- pécies ruminantes (lã, couro, carne, leite, ossos
ção do processo evolucionário que os proveu de etc.) têm exercido desde tempos milenares um
um aparato alimentar capaz de liberar, de forma importante papel na reprodução material de vá-
aproveitável, a energia química desde os carboi- rias sociedades ao redor da Terra (MAZOYER
dratos estruturais das plantas. Nenhuma enzima e ROUDART, 2010). Igualmente, muitos des-
degradativa dos mamíferos é capaz de “quebrar” tes animais são empregados desde tempos ime-
esta cadeia. É interessante notar que a maior di- moriais como tração pelas sociedades pastoris,
ferença entre amidos, que podem ser digeridos movendo carros, moinhos ou simplesmente
por animais monogástricos, e celulose, que não servindo como montaria. Também é importan-
pode, é a confguração espacial da (1,4-)cadeia te relembrar o papel exercido pelos ruminantes
glucosídica. (...) Esta súbita diferença perpetra- do velho mundo na fxação das populações eu-
da pela Mãe Natureza é um dos maiores efeitos rasianas na América, na Oceania e em outras
que conduziu ao desenvolvimento do animal partes do mundo colonizado, servindo como
ruminante. Ruminantes e herbívoros adquiri- verdadeira vanguarda biótica do “imperialismo
ram assim populações microbianas simbióticas, ecológico” (CROSBY, 2011; BARETTA e MA-
as quais os provêm com as enzimas degenerati- RKOFF, 1978) a partir do século XV. Sabe-se
vas requeridas (PERRY, 1980, p. 3). o quanto a introdução destas novas espécies de
ruminantes alterou profundamente os ecossis-
Por fm, o manual defende que “por causa temas e suas regulações socioecológicas locais,
destas relações simbióticas entre o animal rumi- produzindo alto impacto no modo de vida das
nante e os microorganismos de seu rúmen, estas populações nativas.
espécies possuem um grande valor para o ho- Em jogo, para Ingold (2007), o que se
mem” (idem). De fato, dos chamados big fve, desvela nestas dinâmicas é uma certa produ-
isto é, das cinco principais espécies domestica- tividade econômica calcada na apropriação de
das pelas sociedades humanas com fns alimen- um uma produtividade ecológica. Por produ-
tares e econômicos (WILKIE, 2010), três são tividade econômica, o autor compreende o
ruminantes: bovinos, caprinos e ovinos. As duas emprego de trabalho humano (como o dos
outras (galináceos e suínos) são monogástricas. pastores e pecuaristas) na produção de objetos
Pesquisadores da domesticação corrobo- para o consumo. Por produtividade ecológica,
ram esta ênfase na ruminância ao destacarem por sua vez, a criação de matéria orgânica na
a importância da mesma para o surgimento de natureza, através da radiação solar (fotossínte-
duradouros sistemas pastoris envolvendo estes se). Torna-se muito claro, com isso, o porquê
animais. Em lugares tão díspares como a estepe de tamanho entusiasmo com as capacidades
eurasiana (INGOLD, 2007), o Oriente Médio transformativas dos animais ruminantes: de
(HAUDRICOURT, 1962; DESCOLA, 2005), uma substância inassimilável pelo nosso orga-
a pampa sul-americana (CROSBY, 2011) ou a nismo, porém abundante (fbra de celulose),
África nilota (EVANS-PRITCHARD, 2008), derivam-se múltiplas substâncias alimentares
seres humanos têm se valido historicamente das e economicamente apropriáveis. O que ainda
propriedades transformativas dos ruminantes não está claro, contudo, é de onde advém a
para obter os víveres necessários à sua subsistên- leitura destes animais como máquinas trans-
cia. Em maior ou menor grau de colaboração formativas. Em outras palavras, se tanto os
com a agricultura, produtos oriundos das es- nuer do Sudão quanto os pecuaristas da FEI-
CORTE vivem dos milagres da ruminância – de modo que o tipo causalidade implícito neles
isto é, de uma apropriação econômica de uma seria de ordem pessoal, e não mecânica. Os ins-
produtividade ecológica – porque no “idioma trumentos do caçador-coletor, portanto, seriam
bovino” (EVANS-PRITCHARD, 2008) dos instrumentos de revelação da alteridade animal.
primeiros a ideia do animal como “máquina” O que se abriria em seu emprego seria antes um
não se faz presente? “quem”, dotado de subjetividade, do que um “o
quê”, aberto à imoderada disponibilidade.
Já nas sociedades classifcadas como pasto-
Da confança à dominação, da ralistas, a relação seria totalmente diferente. O
dominação à reifcação engajamento já não seria mais mediado pela
confança, mas sim pela dominação [domina-
No quarto capítulo de Te Perception of the tion], cuja evidência seria atestada pela natureza
Environment, Ingold (2000) esboça um mo- mesma dos instrumentos empregados na lida
delo de interpretação da história das relações com os animais: chicote, jugo, espora etc. Es-
entre humanos e animais a partir de uma di- tes não seriam mais instrumentos de revelação,
ferenciação entre modos de engajamento [mo- mas sim de dominação, pelos quais o humano
des of engagement] distintos com a alteridade demarca sua assimetria em relação ao animal si-
animal. O modelo, evidentemente, não está multaneamente como seu protetor e seu algoz.
livre de críticas, na medida em que se refe- Sob o engajamento pastoril, os animais deixa-
re, em grande medida às condições de vida e riam de se constituir como um coletivo à parte
relações com o mundo natural dos povos da da comunidade humana para se tornarem uma
franja ártica, com os quais o autor possui fa- parte dela – a parte subordinada.
miliaridade7. Do ponto de vista de um tipo- Contudo – e isto é muito importante –,
-puro weberiano, contudo, o esquema pode mesmo no pastoralismo a causalidade per-
ser interessante para se refetir sobre as ques- maneceria sendo do tipo pessoal, pois “o uso
tões anteriormente elencadas. da força é predicado sobre a assunção que o
De acordo com Ingold, a relação dos po- escravo8 é um ser dotado da capacidade de
vos caçadores-coletores com os animais de seu agir e sofrer, e, neste sentido, uma pessoa”
mundo circundante se fundaria numa relação (INGOLD, 2000, p. 73). Desta maneira, so-
de confança [trust], baseada em uma simetria mente com o advento da pecuária industrial,
social e ontológica entre os coletivos humanos argumenta Ingold, que os animais teriam
e animais. A caça, neste sentido, seria uma es- sido “reduzidos, na prática e não só na teoria,
pécie de relação social mediada pelo paradigma aos meros ‘objetos’ que os teóricos da tradi-
da dádiva, em que a captura de um indivíduo ção ocidental sempre os supuseram ser” (IN-
do grupo animal pelo grupo humano seria re- GOLD, 2000, p. 75). Em outras palavras,
tribuída de alguma forma pelo grupo humano o que o autor defende é que a apropriação
ao grupo animal. Sendo uma relação social en- maquínica dos animais como mero recurso
tre parceiros simétricos, os instrumentos envol- (ou, nos termos com que Marx os descreve,
vidos na caça seriam mais como instrumentos “instrumentos de trabalho”), seria mais uma
de conhecimento (no sentido intersubjetivo do novidade propriamente moderna do que um
termo, “conhecer alguém”) do que como ins- traço constitutivo e universal das relações
trumentos de manipulação e controle técnicos, humano-animais.
A pergunta que se impõe agora é: de que Tanto faz se através do pasto livre ou do conf-
maneira os animais do agronegócio brasileiro se namento, a conta que interessaria de conversão
abrem ao discurso como fonte de acumulação biológica “é o quanto de matéria seca tem de
e multiplicação da riqueza? A resposta é multi- ser consumida para produzir tantas arrobas no
forme. Em paralelo à carne e ao leite, há outras gancho”. Haveria até mesmo um software para
atividades econômicas envolvendo bovinos que medir todo este processo. Para ilustrar a indife-
se fazem presentes na sociedade contemporâ- rença do produto fnal em relação ao input ini-
nea, na medida em que, “além de laboratórios cial, o palestrante contou com auxílio de uma
nutritivos onde são processadas nossas substân- projeção em data show na qual eram mostrados
cias vitais” – maneira como os descreve Augus- dois inputs iniciais diferentes (pasto e confna-
to Comte, resgatada por Lévi-Strauss (2009, mento), um só produto intermediário (uma
p. 213) –, estes animais também permanecem carcaça) e um único output fnal (um bife).
sendo unidades de troca e reserva de valor por Como argumentam alguns autores (WI-
outras potencialidades de apropriação econô- LKIE, 2010; INGOLD, 2007; FRASER,
mica de sua produção ecológica. 2012), é apenas tardiamente na história da do-
Sob esta perspectiva, enquadram-se merca- mesticação de animais que rebanhos passaram
dos como o da reprodução de gado de elite, a ser criados visando primeira e exclusivamente
enfocado por Leal (2011). Segundo a autora, carne. Há registros etnográfcos e históricos de
o gado de elite se conforma como um setor que povos pastores tradicionais muito excep-
muito particular da economia pecuária, na cionalmente consomem a carne dos seus gran-
medida em que seus espécimes não são cria- des herbívoros, ainda que, quando o façam, o
dos para o abate. Ao contrário, comportam-se façam com alegre disposição e muito bom-gra-
como verdadeiras reservas de valor genético e do (INGOLD, 2007; EVANS-PRITCHARD,
genealógico, reserva esta que é comercializada, 2008). Em linhas gerais, os animais são apro-
muitas vezes, como ativo fnanceiro. Individu- priados economicamente nestas sociedades
ados e subtraídos do mercado comum do boi tendo em vista primeiramente seus subprodu-
gordo, touros “de genética” e “de genealogia” tos, sua força de trabalho como tração e trans-
são como emblemas garantidores do valor de porte e, muito recorrentemente, como unidade
toda uma raça, à maneira – se me for permitida de valor e troca (em contratos matrimoniais,
a aproximação – do lastro em outro que outro- por exemplo). O consumo carnívoro acaba
ra garantia o valor do dinheiro em circulação. ocorrendo no caso de morte acidental das reses,
Neste mercado, a substância visada como obje- em tempos de condições econômicas adversas
to ideal da produção (MARX, 2011) dos ani- ou devido a ofícios sacrifciais.
mais não é propriamente a sua carne, mas sim Mesmo em sociedades cujo criatório bovino se
o seu sêmen, substância destinada a perpetuar desenvolveu, desde seu início, em articulação aos
materialmente a mística de sua genealogia. mercados capitalistas – como é o caso de todo o
No mercado de boi gordo, evidentemente, continente americano, de norte a sul – não é des-
o objeto ideal da produção é a carne. Ou me- de sempre que as reses foram vistas como máqui-
lhor, a carcaça. De acordo com a palestra de um nas produtoras de carne. Fraser (2012) e Wilkie
veterinário na FEICORTE de 2012, “o segre- (2010) ressaltam a importância do desenvolvi-
do da boa carcaça” seria a combinação ótima mento das tecnologias de refrigeração para o sur-
de genética, bom manejo, nutrição e sanidade. gimento global de uma indústria da carne, bem
como para a consolidação deste produto como pública positiva para o setor e a preservação da
commodity no mercado internacional. É graças integridade das carcaças. Sob este aspecto, a
à indústria frigorífca e a montagem de grandes adoção de práticas “racionais”, “humanitárias”
parques industriais destinados à desmontagem de ou “inteligentes” de manejo ante mortem têm
carcaças que a carne pôde estar presente, fresca e como objetivo, para além do bem-estar animal,
constante, mesmo em locais muito distantes dos a minimização de perdas econômicas poten-
polos produtores, alterando para sempre o perfl ciais para o pecuarista, altamente dependente
tanto do consumo quanto da produção de carne. da avaliação que os demais agentes da rede so-
ciotécnica da carne fazem da carcaça que ele,
No meio agropecuário, se percebe a centra- o produtor, lhes envia. O informativo Manejo,
lidade da carcaça por todos os lados. De certa produzido pela mesma empresa que organiza
maneira, um evento como a FEICORTE é um o “Caminho do Boi”, anteriormente descrito,
momento social em que fornecedores de car- assim defende:
caças e compradores da mesma se encontram
e celebram sua parceria, que nem sempre é Em termos práticos signifca dizer que em 1/3
amigável. Se a quadratura “genética-sanidade- das vezes o boi como embalagem da carne é mal
-manejo-nutrição” é o segredo para a produção aproveitado. E este ponto é determinante para a
de uma boa carcaça, percebe-se, pelo primeiro produtividade do rebanho @/ha/ano, rendimen-
termo do conjunto, a genética, que os próprios to de carcaça no gancho pago ao produtor e pelos
animais têm sido produzidos ab ovo tendo em baixos rendimentos que impactam diretamente
vista sua carcaça e suas capacidades de produzir na sua renda bruta. Também perde a indústria
carne. Não existe uma vaca ou um boi predados por não maximizar sua produtividade com quali-
“lá fora”, para que se consuma sua carne. Ao dade de matéria-prima (Manejo, jun-jul. 2010).
contrário, desde seu nascimento, suas carcaças
já aparecem como objetos ideais da produção, Através da fgura do boi como “embalagem
modulados pelas necessidades do consumo car- da carne”, nos deparamos com a ideia de que o
nívoro. Como nos diz Marx nos Grundrisse, boi é a sua carcaça em desenvolvimento:
O consumo cria o estímulo da produção; cria (...) quando é avaliado o perfl das carcaças ao
também o objeto que funciona na produção abate, observa-se um grande número de carcaças
como determinante da fnalidade. Se é claro com acabamento escasso ou ausente e uma fre-
que a produção oferece exteriormente o objeto quência muito pequena de carcaças de alto pa-
do consumo, é igualmente claro que o consu- drão de qualidade (Manejo, jul-ago-set. 2011).
mo põe idealmente o objeto da produção como
imagem interior, como necessidade, como im- Também na literatura zootécnica, a carcaça
pulso e fnalidade (MARX, 2011, p. 46-47). toma ares de produto aprimorável, que com-
porta “graus de perfeição” dependendo daquilo
Com a emergência da questão do bem-estar que seu portador – o animal – incorpora a si:
na produção de carne, abriu-se espaço para
que a categoria do manejo racional pudesse ser A limitação do nível alimentar durante a fase
mobilizada em prol do próprio sistema produ- fnal de produção bovina contribui para limitar
tivo, visando ao mesmo tempo uma imagem a deposição de gordura. Entretanto, a vantagem
nas sociedades tradicionais são descritos por O que subjaz à argumentação de Heidegger
Ingold (2000) de maneira afm a Heidegger: é a constatação, dentre outras coisas, de que a
são instrumentos de revelação da alteridade real racionalidade da técnica moderna é uma ra-
do outro, instrumentos “poiéticos” que fazem cionalidade energética, isto é, que visa extrair
(e deixam) viger o real desta alteridade. Como e armazenar a energia contida na alteridade
na experiência heideggeriana da aletheia, é uma natural sob a forma de uma disponibilida-
experiência de abertura para a verdade do outro de universal. De preferência “com o máximo
que se oferece ao caçar. de rendimento possível com o mínimo de gas-
Pois bem. Mas em que sentido a técnica mo- to” (HEIDEGGER, [1953]2008, p. 19). Ora, é
derna se distinguiria da técnica tradicional? Por forçoso reconhecer que tal imperativo coaduna-
que a técnica moderna nos aparece como proble- -se perfeitamente com a justifcação zootécnica
mática, demandando o exame da sua essência? da apropriação econômica da ruminância, ex-
Segundo Heidegger, a técnica moderna também posta anteriormente.
é um desencobrimento. Mas o desencobrimento Tendo em vista a produção de carcaças, os
dominante na técnica moderna “não se desenvol- saberes zootécnicos aplicados no sistema-carne
ve, porém, numa pro-dução, no sentido de poie- podem ser compreendidos, neste sentido, como
sis” (HEIDEGGER, [1953]2008, p. 18), mas sim dispositivos destinados a tornar “disponíveis” os
num sentido de exploração, de desafo [Heraus- corpos dos animais. O que ocorre, no entanto,
forderung], que “impõe à natureza a pretensão de é que nesta relação de exploração, a própria si-
fornecer energia, capaz de, como tal, ser benefcia- tuação de precedência entre dispositivo, de um
da e armazenada” (HEIDEGGER, [1953]2008, lado, e o que é disposto, por outro, corre o ris-
p. 19). Este aspecto é sobremaneira importante: co de ser invertida. É o que Heidegger procura
estoque e benefciamento energético. De acor- ilustrar a partir do caso do Reno, tendo em vista
do com o flósofo, “o moinho de vento não ex- a instalação da usina hidrelétrica:
trai energia das correntes de ar para armazená-la”
(HEIDEGGER, [1953]2008, p. 19), mas a usina Nesta sucessão integrada de dis-posições de
hidrelétrica instalada no Reno o faz em relação às energia elétrica, o próprio rio Reno aparece
correntes fuviais. Heidegger compreende esta ex- como um dis-positivo [als etwas bestelltes]. A
ploração sob o signo da disposição [Das Stellen], usina hidrelétrica não está instalada no Reno,
isto é, de um “pôr” [stellen] em disponibilidade, como a velha ponte de madeira que, durante sé-
em efetividade, existência [Bestand]: culos, ligava uma margem à outra. A situação se
inverteu. Agora é o rio que está instalado na usina.
Não se dis-põe [gestellt] do carvão processado na (...) O Reno continua, de fato, sendo o rio da
bacia do Ruhr apenas para torná-lo disponível paisagem. Pode ser. Mas de que maneira? – À
[vorhanden] em algum lugar. O carvão fca estoca- maneira de um objeto dis-posto à visitação tu-
do no sentido de fcar a postos para se dis-por [für rística por uma agência de viagens, por sua vez,
die Bestellung] da energia solar nele armazenada. dis-posta por uma indústria de férias (HEIDE-
Explora-se, a seguir, o calor, para fornecer a tem- GGER, [1953]2008, p. 20) [grifo meu].
peratura que, por sua vez, se dis-põe [die bestellt
ist] a fornecer o vapor, cuja pressão movimenta os No caso dos animais de produção, a relação
mecanismos que mantêm uma fábrica em movi- é a seguinte: é a carcaça que existe em função do
mento (HEIDEGGER, [1953]2008, p. 19). boi ou é o boi que existe em função da carcaça?
(Há de se pensar, inclusive, se a própria “tra- vertida como “com-posição”. Heidegger chama
dicionalidade” de alguns métodos produtivos de Gestell ao “apelo [Anspruch] de exploração
alternativos, que hoje se apresentam como ex- que reúne o homem a dis-por o que se des-en-
celente oportunidade de mercado no ramo do cobre como dis-ponibilidade” (HEIDEGGER,
anticonsumo – do consumo natural ou “verde” [1953]2008, p. 23). Situando a Gestell no âm-
–, não seria também uma forma outra de “dis- bito do apelo, do Anspruch, que em português
ponibilidade”, tal como captura do Reno “tra- também pode ser traduzido como “reivindica-
dicional” pela indústria de férias...). Em suma, ção”, Heidegger afrma uma coisa interessante:
percebe-se aí o possível sentido flosófco mais mais do que algo que simplesmente acontece, a
amplo da asserção de Ingold segundo a qual so- dis-posição [Bestellen] universal das coisas é algo
mente com o advento da pecuária industrial os que nos chama, algo que nos incita. Poderíamos
animais teriam sido “reduzidos, na prática e não dizer, portanto, que é algo de natureza ideoló-
só na teoria, aos meros ‘objetos’ que os teóricos gica: é um chamado à ação, que pode ser atua-
da tradição ocidental sempre os supuseram ser” lizado ou não. A possibilidade deste “ou não”,
(INGOLD, 2000, p. 75). Em um sentido hei- deste desvio, é o que exige o controle, o que rei-
deggeriano, esta reifcação dos animais se rela- vindica [anspricht] o imperativo de segurança.
ciona com o próprio modo de desencobrimento Desta forma, se recorrermos à tradução de
que domina a técnica moderna, que, segundo o Agamben (2011) do conceito de Gestell como
flósofo, “se dá e acontece um múltiplo movi- “ordenabilidade de tudo que existe” (pois o
mento” (HEIDEGGER, [1953]2008, p. 20): correlato latino de Gestell seria justamente dis-
positio, a ordenação) veremos que, acima de
A energia escondida na natureza é extraída, o extra- tudo, o que vige neste contexto é uma relação
ído vê-se transformado, o transformado, estocado, de poder governamental. Na linha foucaultia-
distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, na com a qual Agamben trabalha – linha esta,
transformar, estocar, distribuir e reprocessar são aliás, muito infuenciada pelo pensamento de
todos modos de desencobrimento. Todavia, este Heidegger – o governo (ou a governamen-
desencobrimento não se dá simplesmente. Tam- talidade) pode ser compreendido(a) como a
pouco, perde-se no indeterminado. Pelo controle, administração de coisas e pessoas, o que não
o desencobrimento abre para si mesmo suas pró- se diferencia muito da ideia heideggeriana de
prias pistas, entrelaçadas numa trança múltipla uma disponibilidade universal. Para Agamben,
e diversa. Por toda parte, assegura-se o controle. “o termo dispositivo nomeia aquilo do qual e
Pois controle e segurança constituem até as mar- por meio do qual se realiza uma pura atividade
cas fundamentais do desencobrimento explorador de governo”, isto é, “qualquer mecanismo que
(HEIDEGGER, [1953]2008, p. 20). seja capaz de governar a vida” (AGAMBEN
apud CASTRO, 2012, p. 164). Poderíamos
É importante ressaltar esta passagem: o completar: e também as vidas animais9.
desencobrimento inerente à técnica não se dá Para Heidegger, é este apelo, esta reivindica-
simplesmente. Ou seja, é necessário, a todo ins- ção, o que responde à questão sobre a essência
tante, controlar e ter segurança sobre o processo da técnica moderna. Assim sendo, “a teoria da
para que a disponibilidade tenha lugar. Neste natureza, proposta pela física moderna [a nature-
sentido, urge introduzir o conceito de Gestell, za como um sistema de forças, como reservató-
que, na tradução que nos serve de referência, é rio último de energia], não preparou o caminho
para a técnica, mas para a essência da técnica mo- serviços – que estamos falando (o setor agro-
derna” (HEIDEGGER, [1953]2008, p. 25). Em pecuário, a pecuária de corte), mas também de
outras palavras, o discurso científco, no qual a uma economia em sentido agambeano11, isto é,
técnica se apoia, não se confunde imediatamen- um dispositivo de governo integral da realida-
te com a disponibilidade de tudo, mas prepara a de, aplicado, neste caso específco, aos animais.
condições de emergência para o apelo. É exata- Para este autor (AGAMBEN, 2011), o governo
mente por isso, me parece, que Jocelyne Porcher pensado como oikonomia é um tipo tal de ad-
visa analisar as relações concretas entre discurso ministração, que até mesmo os efeitos colaterais
zootécnico e práticas de criação animal desde o do processo são capturados em prol da lógica
ponto de vista de um campo de múltiplos possí- que o subjaz. Aplicando a ideia à categoria de
veis, mas pressionado por uma ideologia – a ideo- manejo racional, percebe-se o quanto ela pode-
logia zootécnica (PORCHER, 2011). Nos termos ria ser compreendida neste sentido: a captura
de Heidegger, poderíamos dizer: o apelo zootéc- e otimização das reações imprevisíveis dos ani-
nico. Tal apelo é o subconjunto, aplicado aos mais ao contexto que os cerca; a transformação
animais, do conjunto maior, que é Gestell. Esta do risco em oportunidade de mercado (BECK,
subordinação está marcada pelo prefxo “zoo” em 1986), a partir do marketing da sua mitigação.
zoo-tecnia. Afnal de contas, a zootecnia é uma Isto porque, apesar de todas as iniciativas
técnica, ou um conjunto de técnicas. Logo, pos- de racionalização da produção animal, as reses
sui a assinatura do apelo que lhe é essencial. de corte continuam sendo organismos vivos,
Cabe aqui uma última consideração sobre a vulneráveis a todo tipo de adversidade sanitária
própria noção de “essência”, tal como emprega- e ambiental. Eventos críticos como os embar-
da por Heidegger em seu ensaio sobre a técnica. gos estrangeiros à carne nacional, as recorrentes
O termo Wesen, que se traduz com justeza para suspeitas de febre aftosa, e, mais recentemen-
o português como “essência”, comporta, na lín- te, também de Vaca Louca (Encefalopatia Es-
gua alemã, também o signifcado de vigência, pongiforme Bovina, EEB)12, contribuem para
no sentido de duração10. Assim, quando se fala a confguração de um estado de emergência
em alemão sobre os Hauswesen ou os Staatswe- sanitário-zootécnico permanente, que serve de
sen, estamos falando sobre os afazeres da casa justifcativa para o enquadramento13 cada vez
ou do Estado, isto é “à maneira em que casa mais exaustivo do criatório bovino nacional de
e Estado são e deixam ser o que são, isto é, se acordo com as categorias dos especialistas. Sob
administram, se realizam e se desfazem” (HEI- esta perspectiva, nota-se que um dos principais
DEGGER, [1953]2008, p. 33). Neste sentido, vetores de enquadramento do rebanho brasilei-
a Gestell como essência da técnica se aproxima ro são os protocolos e parâmetros de bem-estar
de uma verdadeira economia da técnica, ou seja, e sanidade emitidos pela poderosa Organização
a maneira com a qual é deixada viger e é admi- Mundial de Saúde Animal (OIE), sediada em
nistrada, desenvolvida, naquilo que é. Paris. A recente inserção global do Brasil como
Ora, segundo Agamben, o termo Gestell potência da proteína vermelha – só em 2012
“corresponde de maneira perfeita (...) ao termo foram exportadas 944.556 toneladas de carne
latino dispositio, que traduz o grego oikonomia” in natura (ABIEC, 2013) – têm ampliado os
(AGAMBEN, 2011, p. 274). No limite, por- apelos internos pela adoção à risca destes pro-
tanto, não é apenas de uma economia – no tocolos, que se impõem, até mesmo na legisla-
sentido de produção e distribuição de bens e ção, como verdadeiras razões de Estado.
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Recebido em 06/03/2013
Aceito para publicação em 28/11/2013