Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
SÃO PAULO
2017
Laura Añasco Orciuolo de Paula
SÃO PAULO
2017
“Parece que é deselegante
falar da minha menstruação em público
porque a verdadeira biologia
do meu corpo é real demais
-Rupi Kaur
(Outros jeitos de usar a boca)
RESUMO
In this thesis, it is discussed the reflex of the menstruation taboo in the narrative of absorbent
brands and its influence on the feminine identity construction. Having as objects two ads of
absorbent brands, this study has as assumption that their narratives ratify the menstruation taboo
and influence women as individuals and their relations with their bodies and menstruation. To
support the thesis’ reasoning, a bibliographical research was made based primarily on Monique
Augras, Mary Del Priore, Sandra Lee Bartky and Emily Martin, to comprehend the construction
of the feminine taboos, on Chris Bobel, to understand precisely the menstruation taboo and the
Third Wave of feminism, and on Anthony Giddens, to clarify the process of identity
construction. Besides that, an exploratory research on the internet was conducted to develop a
mapping that exposes absorbent brands' narratives since 1930.The objective of this pare of the
study is to comprehend if there is a pattern of discourse in these media throughout history.
Figura 5 – Print Screen da Propaganda “Aderente à Calcinha” de Sempre Livre de 1973 ...... 52
Figura 12 – Print Screen do Branded Content de Intimus de 2015, 2016 e 2017 ................... 62
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 9
1.1 Contextualização............................................................................................................... 9
3 O TABU DA MENSTRUAÇÃO......................................................................................... 30
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 76
9
1 INTRODUÇÃO
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Um dos elementos que tem sido alvo de tabu é o corpo feminino. A partir de Del Priore
(2011), é possível compreender que as regras e limitações impostas às mulheres possuem um
histórico de serem justificadas a partir de suas funções reprodutivas. Analisando a questão da
intimidade e sexualidade desde o Brasil Colonial, a autora nos auxilia no entendimento da
construção de exigências e expectativas em relação às mulheres. Bartky (1990) permite um
aprofundamento nessa parte do estudo e nos leva a compreender a vigilância social que tem
acompanhado as mulheres: a concepção de feminilidade. A partir dessas perspectivas, se torna
possível, com a ajuda de Chris Bobel (2010) e sua perspectiva sobre a Terceira Onda do
feminismo, entender como essas questões se aplicam especificamente ao período menstrual e
influenciam a relação das mulheres com seus corpos.
Qual é o papel das narrativas publicitárias nesse processo? Quais são as influências na
construção identitária feminina? A partir de Giddens (2002) e o que o autor chama de
modernidade tardia, se torna possível compreender a relação de simetria que se construiu entre
todos os atores na construção da identidade. Influenciados por uma infinidade de diálogos
cotidianos, inclusive os da publicidade, os indivíduos assumiram uma postura mais ativa e
passaram a poder interferir nesse processo. Por isso, este estudo considera duas narrativas
publicitárias como objetos, mas não exclui a importância do levantamento do questionamento
sobre a responsabilidade que o indivíduo tem conquistado sobre a construção de sua identidade.
Martin (2006), ao apresentar as concepções culturais sobre o corpo feminino a partir da
perspectiva de mulheres, permite a essencial análise da existência de um deslocamento entre
10
Por isso neste estudo, com a utilização dos autores citados e de mais alguns, tem-se
como objetivo compreender como o tabu da menstruação é refletido nas narrativas publicitárias
e se elas têm um papel de ratificação dele. Além disso, levanta-se a discussão de como esse
tabu influencia a construção identitária feminina.
1.2 TEMA
1.3 OBJETO
1.4 PROBLEMA
b) compreender o como tabu se manifesta na mulher, na sua relação com seu corpo e
construção de identidade;
c) compreender a construção do tabu da menstruação;
d) entender a presença do tabu da menstruação nas narrativas publicitárias.
Por se tratar de um estudo que se propõe a ser realizado em três principais partes -
compreensão de conceitos específicos, realização de um mapeamento e análise de dois objetos-
são três metodologias adotadas para atender cada uma das fases. Primeiramente, será feita uma
revisão bibliográfica em que os temas constitutivos desse projeto serão compreendidos a partir
12
de autores relevantes. Em segundo lugar, será realizada uma pesquisa exploratória na internet
com o intuito da construção de um mapeamento de narrativas publicitárias de marcas de
absorvente. Por último, a Análise de Discurso será a principal ferramenta para a compreensão
da carga ideológica dos dois objetos selecionados.
Apesar dessa origem, o significado de tabu que perpetua atualmente é de que ele
representa algo que é sujo e até impuro e, por isso, o medo do contato direto o acompanha. De
acordo com Douglas (2004), o tabu em si é uma prática de codificação de comportamentos e
significados, que caso “[...]não seja respeitada, as consequências serão pontuais e perigosas.
Uma delas é aquela advinda do contato direto com o que é considerado tabu. O medo do
contágio é o que faz com que todos de uma comunidade respeitem aquele tabu.” (DOUGLAS,
2004 apud THOMAS, 2007, p. 66, tradução livre1).
A relação percebida entre a hierarquia social e a construção do tabu, contudo, faz com
que Augras (1989) estenda a reflexão e perceba uma relação conflitante de medo e desejo
relacionada à figura tabu, uma vez que, de acordo com ela, não existe a necessidade de se proibir
aquilo que não se deseja. Tal ambiguidade gera tanto o sentimento de aversão, quanto de
fascínio, o que veremos mais claramente a frente, na análise da construção de tabu acerca do
corpo feminino.
Em primeiro lugar, por ser algo que é construído de acordo com determinada cadeia
de pensamentos e valores de um meio social, o tabu se torna não algo “irracional”, mas sim que
se apoia em outras crenças e que possui, portanto, um embasamento. Um segundo ponto é que,
assim como o tabu em si, os rituais e ordens prático-simbólicas que o cercam também são
criados culturalmente e proporcionam experiências particulares para as pessoas presentes em
determinado meio social. A menstruação, por exemplo, é um processo natural apropriado pela
sociedade e cujos significados foram adquiridos e transformados ao longo do tempo e contexto.
Mais à frente neste estudo, analisa-se especificamente a questão da menstruação, mas em um
primeiro momento já se pode observar que:
1
It threatens specific dangers if the code is not respected. Some of the dangers which follow on taboo-breaking
spread harm indiscriminately on contact. Feared contagion extends the danger of a broken taboo to the whole
community.
16
Por mais que nossa atual sociedade ocidental não possua um sistema sociopolítico que
envolve sacerdotes e figuras sagradas, ainda perpetuam as mesmas crenças. De acordo com a
autora, na maior parte das vezes, quem determina os tabus são os “líderes da sociedade”,
enquanto as pessoas em posições desprivilegiadas na hierarquia social e cujas transgressões
causariam a sua desordem são aquelas consideradas tabu. Tal consideração é frequentemente
baseada em alguma “poluição corporal”, ou seja, alguma característica física que as classifica
como impuras, e que serve de justificativa para a submissão dessas pessoas aos rituais de
purificação. “Por exemplo, tabus têm sido usados para reforçar hierarquias de gênero. Esses
tabus funcionam como argumentos sociais que obrigam as pessoas a aderirem às relações de
gênero definidas” (THOMAS, 2007, p. 67, tradução livre2).
O ritual se torna, portanto, o modo de resgate de uma ordem que o tabu ameaçou. Ao
mesmo tempo que ele purifica aquilo que é considerado sujo, ele reafirma a sua importância ao
periodicamente relembrar aos membros daquele meio social sobre os “perigos” do tabu. Por
mais que, como já vimos anteriormente, o tabu seja um símbolo cultural e, por isso, absorva
significados do ambiente em que está inserido, a prática de rituais de purificação, de acordo
com Thomas (2007), é universal. Isso ocorre porque os rituais são também, de acordo com
2
For example, taboos have been used to reinforce gender hierarchies. These taboos function as social arguments
compelling social adherence in regards to gender relations.
17
Burke (1969 apud THOMAS, 2007), um mecanismo para manter a unidade e identidade da
sociedade: através da demarcação de diferenças, ele cria uma experiência comum entre todos
os membros e constrói uma realidade social “É exigido dos membros de uma sociedade que
eles levem a sério seus rituais e tabus porque eles funcionam como argumentos e “verdades”
que constroem um modo cultural de conhecimento” (THOMAS, 2007, p. 67, tradução livre3).
A identidade construída através da demarcação de diferenças exige que existam bodes
expiatórios que, nesse caso, são as pessoas consideradas tabu a serem submetidas aos rituais.
De acordo com o autor, elas passam por um ciclo de culpa e redenção embasado na
característica física anteriormente mencionada, pois acreditam ser um perigo para todos. “A
culpa [é causada] pela consciência de ter cometido uma transgressão” (BARTKY, 1990, p. 87,
tradução livre4).
Na História do Brasil, sabe-se que logo no início, no século XVI, em um país tomado
por Portugal e pela Igreja Católica, a mulher era reconhecida apenas pela sua função reprodutiva
e sua sexualidade era ignorada como fonte de prazer. A mulher “[...]- a velha amiga da serpente
e do Diabo - era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma
dos homens” (DEL PRIORE, 2011, p. 20). Mesmo a descoberta do clitóris em 1559, que
demonstrou que a mulher possuía a própria fonte de prazer, foi utilizada para ratificar a
percepção já antiga de que o sexo feminino era fisicamente inferior ao masculino. O clitóris foi
classificado como um pênis de menor tamanho localizado dentro do corpo e com capacidade
limitada a curtas ejaculações, o que legitimou que “[...]a mulher não passava, no fundo, de um
3
Members of a society are required to take seriously that society’s rituals and taboos because they operate as
arguments and “truths” which constructo a culture’s way of knowing.
4
Guilty [is caused] by the consciousness that one has committed a transgression.
5
Throughout the centuries, women were constructed as non-citizens because of exclusion from the public sphere
premised on women’s sexuality and their association with the body.
18
homem a quem a falta de perfeição conservava os órgãos escondidos” (DEL PRIORE, 2011, p.
23). Seguindo o raciocínio, percebe-se, então, que “a vagina era considerada um pênis; o útero,
uma bolsa escrotal; os ovários, testículos, e assim por diante” (DEL PRIORE, 2011, p. 23).
Por muito tempo o corpo feminino foi inexplorado pela Medicina, demonstrando o
tabu construído em torno dele. Ao considerar a sociedade e algumas instâncias da sua vida
cultural como a Arte e a Literatura, percebe-se que a figura feminina sempre foi um elemento
de admiração e fascínio. Contudo, ao se deparar com as diferenças físicas desse corpo em
relação ao corpo masculino, inclusive suas capacidades reprodutivas, a Medicina mantém um
afastamento e percebe-se quase uma relação de temor: trata-se de algo fora de seu controle. Em
relação à incompatibilidade entre o estado social e natural da mulher, José Carlos Rodrigues
(1975) vai além e afirma que a mulher “[...]mais do que o homem, tem a potencialidade de
funcionar simbolicamente como perturbador dos sistemas sociais de classificações, uma vez
que é um ser a Cultura, ostensivamente submetido a processos naturais que escapam aos
esforços que o aparelho cultural depende para controlá-los.” (RODRIGUES, 1975 apud
SARDENBERG, 1994, p. 330).
ser mantidos em controle através de rituais realizados por aqueles privilegiados na hierarquia
social: os homens.
Neste capítulo foi possível compreender a atual concepção do tabu como elemento de
manutenção de uma ordem social. O tabu relacionado ao corpo feminino ratifica a opressão que
as mulheres sentem diariamente e contribui para a permanência de uma sociedade patriarcal.
No próximo capítulo, será entendendo como o tabu de manifesta na mulher, na sua relação com
seu corpo e, em último momento, na construção de sua identidade.
estilo de vida e isso pode ser atribuído à Segunda Onda do movimento feminista nas décadas
de 60 e 70 que enxergou que as questões femininas deveriam ser percebidas com caráter político
e que tal conquista seria alcançada com o afastamento da mulher do ambiente doméstico.
Não é mais exigido que as mulheres sejam castas ou modestas, ou que restrinjam as
suas atividades ao espaço da casa, ou até que percebem seu destino como mulheres na
maternidade. A feminilidade normativa está se concentrando cada vez mais no corpo
da mulher -não nos seus deveres e obrigações ou até em sua capacidade de gerar filhos,
mas sua sexualidade[...] (BARTKY, 1990, p. 80, tradução livre7).
De acordo com Grosz (1994 apud BARTKY, 1990), por ser definida a partir da
sexualidade, a feminilidade é identificada a partir do desenvolvimento dos quadris, seios e
início da menstruação e acompanha a mulher durante toda a sua vida. Trata-se de um conceito
holístico que determina a personalidade e comportamento das mulheres de modo a mantê-las
dentre determinados limites, sem que haja o característico perigo de transgressão daquilo que é
tabu. Bartky (1990) afirma que nascemos homem ou mulher, mas que o feminino é algo a ser
alcançado, conquistado, e que “é um jeito de decretar e reforçar as normas de gênero definidas
e que se manifesta de diversos modos nos corpos das mulheres” (BUTLER, 1985, apud
BARTKY, 1990, p. 65, tradução livre8). De acordo com a autora, existem três critérios e práticas
cotidianas que reconhecem o feminino assim como o construímos em nossa sociedade: 1. O
corpo deve ser de certo tamanho e ter determinada configuração; 2. O corpo tem uma função
ornamental; 3. Espera-se desse corpo determinados gestos, posturas e movimentos. A partir
desses critérios, a sociedade avalia diariamente os corpos femininos, como veremos adiante na
vida das mulheres, nas suas construções identitárias e em seus potenciais.
6
Shame, then, involves the distressed apprehension of oneself as a lesser creature.
7
Women are no longer required to be chaste or modest, to restrict their sphere of activity to the home, or even to
realize their properly feminine destinity in maternity: Normative femininity is coming more and more to be centerd
on woman’s body-not its duties and obligations or even its capacity to bear children, but its sexuality[...]
8
a mode of enacting and reenacting received gender norms which surface as so many styles of the flesh.
9
the norms of femininity suppress the body potential of women. We grow up learning that the feminine body is
soft, not muscular, passive, incapable, vulnerable. Our parentes, teachers and friends suppress our natural urges to
run, jump, risk, by cries that we should not act so boldly and move so daringly... Developing a sense of our bodies
as beautiful objects to be gazed at and decorated requires suppressing a sense o four bodies as Strong, active
subjects moving out to meet the world’s risks and confront the resistances of matter and motion.
22
Essa disciplina, contudo, é diferente daquela apontada por Foucault (1979 apud
BARTKY, 1990) em relação ao corpo: ela não possui instituições responsáveis por emitir as
exigências da feminilidade, trata-se de uma disciplina que vem de todos da sociedade, o tempo
todo “O poder que determina a disciplina da feminilidade no corpo feminino está em todo o
lugar, ao mesmo tempo que em nenhum lugar; os disciplinadores são todo mundo e ninguém
em particular” (BARTKY, 1990, p. 74, tradução livre11). Essa ausência de centro de emissão
exigências tem duas principais consequências que demonstram como a feminilidade é próprio
tabu como um código de conduta: 1. Ela faz com que a imposição da feminilidade pareça natural
e facilite o seu prevalecimento; 2. Todos se tornam disciplinadores, inclusive as mulheres; elas
criam o hábito policiarem seus próprios comportamentos e personalidades, de modo a se
tornarem suas próprias opressoras. “Tem sido induzido em muitas mulheres aquilo o que
Foucault disse: “o estado de visibilidade consciente e permanente que certifica o funcionamento
automático do poder” (BARTKY, 1990, p. 80, tradução livre12).
10
Sexual alienation itself is only one manifestation of a larger alienation of the body.
11
The disciplinary power that inscribes femininity in the female body is everywhere and it is nowhere; the
disciplinarian is everyone and yet no one in particular.
12
There has been induced in many women, then, in Foucault’s words,, “a state of conscious and permanente
visibility that assures the automatic functioning of power
23
inclusive o movimento das mulheres, demonstrou que, em nossa sociedade, não existe apenas
a opressão econômica ou político, mas também a psicológica. E ser oprimido psicologicamente
é
[...]ser abatido em sua própria mente; é sentir um forte exercício de dominação sobre
a sua autoestima. Aqueles oprimidos psicologicamente se tornam seus próprios
opressores; eles passam a exercitar a dominação sobre suas próprias autoestimas. Em
outras palavras, a opressão psicológica pode ser considerada a internalização de
indicações de inferioridade. (BARTKY, 1990, p. 22, tradução livre13).
13
is to be weighed down in your mind; it is to have a harsh dominion exercised over your self-esteem. The
psychologically oppressed become their own oppressors; they come to exercise harsh dominion over their own
self-esteem. Differently put, psychological oppression can be regarded as the “internalization of intimations of
inferiority.
14
the splitting of the whole person into parts.
15
the systematic obscuring of both the reality and agencies of psychological oppression so that its intended effect,
the depreciated self, is lived out as destinity, guilt, or neuroses.
24
funções sexuais em situações em que não há esse consentimento, como em uma entrevista de
emprego ou em sala de aula. “A identificação de uma pessoa com a sua sexualidade se torna
opressiva quando tal identificação é transbordada a todas as instâncias de sua vida” (BARTKY,
1990, p. 26, tradução livre16).
A fragmentação nesse caso ocorre, portanto, criando uma relação conflitante entre o
“eu real” e o “eu construído a partir da feminilidade”: a mulher não se reconhece plenamente
nas suas decisões, postura e comportamento em geral. A questão da estereotipização se mostra
relevante quando se observa, mais a frente no mapeamento realizado neste estudo, que ela é
uma ferramenta do retrato da mulher menstruada na comunicação de absorventes, e deixa em
segundo plano as reais sentimentos e necessidades femininos durante seus períodos menstruais.
16
The identification of a person with her sexuality becomes oppressive, one might venture, when such an
identification becomes habitually extended into every área of her experience.
17
: It is hard enough for me to determine what sorf of person I am or ought to try to become without being shadowed
by na alternate self, a truncated and inferior self that I have, in some sense, been doomed to be all the time.
18
The estrangement or separating of a person from some of the essential attributes of personhood.
25
Através do que chama a modernidade tardia, o autor indica que os princípios dinâmicos
da modernidade se encontram na realidade atual. A constituição do indivíduo ocorre a partir de
um número complexo e infinito de discursos que se cruzam, complementam ou se anulam,
concebendo um mundo de diversidade de escolhas e muitas possibilidades de novos diálogos a
serem formados. As instituições presentes na sociedade se entrelaçam na vida de cada
indivíduo, que também as influencia, de modo a criar uma relação bilateral.
O eu não é uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao forjar sua
auto-identidade, independente de quão locais sejam os contextos específicos da ação,
os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) a influências sociais que
são globais em suas consequências e implicações (GIDDENS, 2002, p. 9).
De acordo com o autor, alguns fatores são essenciais para que a vida individual se
torne internamente reflexiva, ou seja, seja separada de outros eventos e se torne uma construção
distinta e fechada. Dois desses fatores serão destacados aqui devido à sua relevância para nosso
19
The possession of autonomy,for example, is widely thought to distinguish persons from nonpersons; but some
female stereotypes, as we have seen, threaten the autonomy of women. Opressed people might or might not be in
a position to exercise their autonomy, but the psychologically oppressed may come to believe that they lack the
capacity to be autonomous whatever their position.
26
Em segundo lugar, existe a redução dos ritos na vida dos indivíduos: “a vida passa a
ser estruturada em torno de limiares abertos de experiência” (GIDDENS, 2002, p. 138) e as
passagens ritualizadas nas principais transições como o nascimento, o casamento e a puberdade
-oriundas da tradição- se tornam cada vez mais ausentes na cultura ocidental. Isso faz com que
essas experiências se tornem mais autônomas e o indivíduo, sem o apoio que possuía
anteriormente, crie ansiedades em relação a elas.
O corpus dessa monografia investiga se tal identidade recebe algum tipo de influência
através das narrativas publicitárias de absorventes higiênicos. Ao analisarmos Giddens (2002),
compreendemos que o processo dessa identidade feminina, através das manifestações de tabus
27
presentes na modernidade tardia, se articula de forma subjetiva pois ela constitui a natureza do
emissor -nesse caso as marcas de absorventes- e receptor, o sujeito que recebe as narrativas
publicitárias. É necessário, portanto, discorrer sobre a constituição de subjetividade, uma vez
que no capítulo terceiro, utiliza-se a Análise do Discurso para responder ao problema da
monografia.
De acordo com Giddens (2002), no início dos movimentos feministas no século XIX,
já existia a percepção de que a emancipação propriamente dita não era o suficiente.
Seriam necessárias amplas mudanças, mas ao mesmo tempo essa voz ajudaria a
provocar essas mudanças. Quando as mulheres eventualmente chegassem a setores da
sociedade dominados pelos homens numa base de igualdade com eles, levariam com
elas valores e atitudes que reformulariam profundamente esses domínios masculinos
(GIDDENS, 2002, p. 210).
As mulheres e seus corpos ainda são alvo de violência devido as noções de moralidade
vigentes na sociedade, o que faz com que elas vivam em angústia e sejam privadas de suas
liberdades. Suas sexualidades e sistemas reprodutivos ainda estão aquém da perspectiva e
validação do olhar masculino e, por isso, prevalece a necessidade da remoralização da vida
social: o corpo da mulher precisa ser compreendido por todos e o coletivo precisa ser construído
garantindo a sua liberdade.
Por isso, a eleição deste corpus foi conduzida pela ideia de que, ao considerar uma
peça publicitária como produto de uma instituição construtora de ideias e percepções, parte-se
de uma complexa produção que resulta na entrega de um produto ou serviço carregado com
uma mensagem. Ela envolve o estudo do produto, de seu posicionamento no mercado (com
relação aos concorrentes e ao público alvo) e das promessas que pode fazer a tal público, assim
como o estudo dos meios de comunicação, selecionando o veículo da mensagem
cuidadosamente ajustada e adequada quanto ao que se identifica como o público alvo.
2.4 CONSIDERAÇÕES
3 O TABU DA MENSTRUAÇÃO
A mulher, ao mesmo tempo que é um elemento que tem causado fascínio ao longo da
História, também é um ser da Cultura frequentemente submetido a processos fisiológicos que a
aproximam da Natureza e trazem o poder da contradição.
Mulher é bicho porque sangra, seu corpo é seu brasão, não deixa ninguém esquecer
que somos todos animais, mas ela é bicho estranho, por ser seu corpo reinterpretado
pela cultura. A menstruação, com todos os rituais que a acompanham, torna manifesta
a dupla natureza da mulher, como ser cultural e animal ao mesmo tempo. É nessa
duplicidade que reside sua força, pois todos os seres situados na interseção de ordens
opostas gozam dos poderes da ambiguidade. (SARDENBERG, 1994, p. 40).
No Brasil, existe uma diversidade de rituais que ocorrem quando a mulher está
menstruada, que variam bastante. Em Alagoas, por exemplo, há uma restrição alimentar que
impede a mulher de comer determinadas frutas. Em outras regiões brasileiras, existe a crença
de que as mulheres não podem cozinhar e nem realizar determinadas atividades na cozinha
31
A figura acima demonstra como é uma realidade global o hábito de exclusão da mulher
menstruada de suas atividades cotidianas. Em cada sociedade existe um modo de vida
socialmente construído, constituído de todos os seus elementos: as pessoas, o modo de
alimentação, a religião e seus rituais. Ao fazer parte dessa realidade social, eles adquirem um
caráter normativo e distanciam da possibilidade de contestação. Por isso, a publicidade, aliada
20
Disponível em: <https://www.femmeinternational.org/our-work/the-issue/>. Acesso: em jun. 2017.
32
A realidade social abrange uma sociedade, mas os significados dela oriundos criam
experiências particulares, afetando cada indivíduo ali presente. “O ciclo menstrual não é apenas
um aspecto central da vida das mulheres, mas ele também oferece um modelo para quem quer
entender as relações entre mente e corpo, e entre significados sociais e experiência individual”
(DAN, 2004 apud BOBEL, 2010, loc. 838, tradução livre21). Quando a menstruação se torna
argumento de opressão e exclusão da mulher da esfera pública, isso influencia tanto a sua
percepção sobre esse processo natural, como se vê no próximo capítulo, quanto a exploração
de seu potencial e a construção de sua identidade.
The menstrual cycle not only is a central aspect of women’s lives, but it also offers a model to researches who
21
want to understand relationships between mind and body, and between social meanings and individual experience.
22
should behave in public settings as if they did not menstruate, denying the monthly hormonal changes[...].
33
Isso é um reflexo do que foi mostrado neste estudo. A cultura ocidental concebeu uma
sociedade androcêntrica em que os homens têm tido tanto a liberdade de dizer como as mulheres
devem se relacionar com seus corpos, quanto a se falar o que quiserem sobre eles. Foi criado
um sistema de etiqueta que diz “quem deve falar o que para quem e em qual contexto. É negado
às mulheres o direito a qualquer comportamento que leve a atenção à menstruação, enquanto
homens têm mais liberdade de falar sobre ela se quiserem. Assim, a etiqueta expressa e reforça
a distinção de status” (LAWS, 1990 apud BOBEL, 2010, loc. 874-880, tradução livre23). Criar
essas imposições sobre as mulheres e suas menstruações as oprime e reforça o sentimento de
culpa, tendo uma influência no que diz respeito ao conhecimento de seus corpos e a construção
de suas subjetividades e identidades.
23
who may say what to whom, and in what context. Women are discredited ny any behavior which draws attention
to menstruation, while men maymore freely refer to it if they choose to. Thus the etiquette expresses and reinforces
status distinctions.
24
When women ignore their bodily processes or worse, recognize them merely as problems whose solutions are
available only through consumerism, internalized oppression takes over.
34
Como vimos no capítulo 2, a opressão direcionada às mulheres e seus corpos tem uma
influência na construção de suas identidades e subjetividades, o que não é diferente quando se
trata da menstruação. O que é dito sobre a menstruação para as mulheres desde a menarca, as
exigências que nascem nesse momento e o silenciamento sobre essas questões são práticas
disciplinadoras que constroem suas percepções sobre esse processo natural e o modo como elas
lidam com ele.
25
Ironically, most of the time, it is the older woman who imposes such restrictions on younger girls, in a family.
After all, they have grown up accepting such restrictions as norms. And in the absence of any intervention, it is
the myth and misconception that propagate from generation to generation.
35
Como foi visto no capítulo anterior, a identidade e a subjetividade das mulheres são
influenciadas pelas percepções construídas sobre seus corpos. Nesse capítulo, busca-se estender
essa compreensão à menstruação para mais à frente no estudo entender o papel das narrativas
publicitárias.
1. Para elas, a menstruação não se trata de algo produzido pelos seus corpos, mas sim
algo que “acontece”, que elas devem “aguentar”; 2. O sangue do mênstruo é algo nojento e
sujo, com o qual se deve evitar o contato direto; 3. Os períodos pré-menstruais e menstruais são
momentos em que elas são atingidas por um sentimento de raiva; 4. A menstruação é um
processo que faz parte do “ser mulher”.
Tanto o primeiro ponto quanto o segundo podem ser analisados a partir do que já foi
considerado anteriormente sobre o tabu neste estudo. Como já foi visto em Giddens (2002), a
construção do eu em tempos pós-tradicionais acontece também a partir da infinidade de
diálogos com os quais ele entra em contato. No caso das mulheres, a elas é ensinada –por
instituições de ensino, pela família e publicidade -desde o momento da menarca uma rotina de
higiene, ocultação e afastamento de suas menstruações. Esses rituais as lembram
periodicamente da sujeira e impureza de seus corpos e constroem uma relação de distância entre
as mulheres e suas menstruações. Tal processo tem como resultado essa separação entre a
mulher e seu corpo e a percepção de que se trata de algo que “acontece” a elas, e não algo que
elas produzem.
Além disso, existe um estereótipo que foi construído da mulher menstruada. Acredita-
se que nesses períodos do mês as mulheres assumem seus piores humores e sentimentos,
tornando-se figuras que entram em conflito direto com as expectativas de feminilidade. Trata-
se do momento que as mulheres se tornam seres que reclamam e se irritam facilmente,
características que a mulher feminina, pudica e atenciosa não possui.
defina sua figura. Os problemas relacionados a esse processo se dão na banalização não apenas
da menstruação, mas também das mulheres menstruadas e seus sentimentos: se a mulher tem
sentimentos negativos em determinada situação e é assumido que eles são resultado de sua
menstruação, tais sentimentos passam a ser invalidados.
O ciclo menstrual, portanto, tem sido usado como elemento para a submissão das
mulheres em uma sociedade patriarcal através de uma opressão internalizada. O corpo da
mulher passa a ser percebido como a fonte de raiva que ela sente durante a menstruação, que
ratifica a culpa que ela sente durante os períodos menstruais. “A raiva vivenciada dessa forma
(como resultante exclusivamente da maldade intrínseca da mulher) só pode levar à culpa. E
parece possível que a origem dessa raiva difusa possa muito bem ser a percepção das mulheres,
por mais inarticulada que seja, da opressão que sofrem na sociedade” (MARTIN, 2006, p. 212).
tabu comunicacional em dois principais âmbitos. Por um lado, quando a menstruação se torna
assunto entre as próprias mulheres, o conteúdo de tais conversas, aponta Sardenberg (1994),
costuma ser os incômodos e dificuldades que esse processo traz para elas. Ao mesmo tempo,
ouve-se as mulheres que atingiram a menopausa falarem sobre a liberdade de terem se livrado
de tal fardo.
Por isso, A Terceira Onda do feminismo considerada por Bobel (2010), iniciada em
meados dos anos dois mil, se mostra elemento essencial para este estudo. Trata-se, assim como
nos outros momentos do movimento, de uma política vida com reivindicações emancipatórias:
existe a consciência da necessidade de uma vida coletiva organizada de uma maneira que
permita a ação livre das mulheres em suas vidas sociais, inclusive nos momentos que dizem
respeito a sua menstruação.
Eu não conheço nenhuma mulher – virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária – que
ganha a vida como dona de casa, garçonete, ou com escaneamento de ondas cerebrais
– para quem o seu corpo não é um problema fundamental: seu significado inexato, sua
fertilidade, seu desejo, sua chamada “frigidez”, seu discurso de sangue, seu silêncio,
suas mudanças e mutilações, seus estupros e amadurecimentos. Existe hoje, pela
primeira vez, a possibilidade de converter nossa fisicalidade em conhecimento e poder
(RICH, 1977 apud BOBEL, 2010, loc. 821-826, tradução livre26).
26
I know no woman-virgin, mother, lesbian, married, celibate-wheter she earns her keep as a housewife, a cocktail
waitress, or a scanner of brain waves- for whom her body is not a fundamental problem: its clouded meaning, its
fertility, its desire, its so-called frigidity, its bloody speech, its silences, its changes and mutilations, its rapes and
ripenings. There is for the first time today a possibility of converting our physicality into both knowledge and
power.
38
27
For now, the revolution takes place when I stay up all night talking with my best friends about feminism and
marginalization and privilegie and opression.
39
Por que, exatamente, quase todas as mulheres odeiam suas menstruações mais do que
odeiam outros processos corporais? Como a cultura, a ideologia de gênero e
consumismo constroem essas reações? [...]essas questões são o centro do ativismo
menstrual e levam os esforços ativistas a confrontar as representações negativas da
menstruação, que impede o desenvolvimento de produtos seguros, a distribuição de
informação correta e construção de um diálogo honesto sobre esse processo corporal
(BOBEL, 2010, loc. 338, tradução livre28).
Mas nem todas as mulheres menstruam e não apenas mulheres menstruam. Mulheres
que já passaram pela menopausa, mulheres que passaram pelo processo de
terterectomia e alguns atletas, por exemplo, não menstruam, e alguns homens trans
que ainda não realizaram a operação menstruam (assim como muitos intersexuais).
Reconhecendo esses fatos, um número cada vez maior de ativistas menstruais,
principalmente aqueles ligados ao punk e a comunidades da Terceira Onda, percebem
o discurso “Eu menstruo e, por isso, eu sou uma mulher” problemático (BOBEL,
2010, loc. 439-445, tradução livre29).
28
Why, exactly, do nearly all women hate their periods more than their other bodily processes? How do culture,
gender ideology, and consumerism shape these reactions? [...]these questions are at the core of menstrual activism
and drive activist efforts to confront negative representations of menstruation, which impede the development of
safe products, the distribution of comprehensive information, and honest, informed dialogue about this bodily
process.
29
But not all women menstruate, and not only women menstruate. Postmenopausal women, women
posthysterectomy, and some athletes, for example, do not menstruate, and some preoperative transmen do
menstruate (as do many intersexuals). Recognizing these facts, a growing number of menstrual activists, especially
those linked to punk and third-wave feminist communities, find the “I bleed, therefore I am a woman” discourse
problematic.
40
Ao analisar, percebe-se que essa pode ser uma extensão da associação historicamente
construída da mulher com sua função reprodutora. Ao considerar a menstruação como elemento
que define o “ser mulher”, são excluídos grupos de mulheres que não menstruam, como aquelas
que já passaram da menopausa.
30
However, defining menstruation as the “gateway to womanhood” [...] reinscribes a reproductive paradigma that
conflates “womanhood” and “reproductive being.” Is the essential feminine thus reduced to future mother? And if
so, how does this paradigma limit girls’ and women’s sense of their multiplicity and self-determination to shape
their own lives? This reductive causal logic ignores the role of intelectual and emotional maturity, importante
variables in this developmental equation.
31
The theme of taking control is perhaps the most pervasive in the discourse of radical menstruation. Without
control, the activists explained, people are vulnerable to inhabiting a body alienated from the self, a body co-opted
by corporate interests, a body disciplined by consumer culture. And when menstruators assert control over their
own menstrual experience, they may feel enabled to live more whole lives.
41
Então, de repente, ok, decidem que o mundo é das mulheres. E aí você coloca isso
numa estampa de camiseta, e isso não está efetivamente mudando o mundo. É só uma
mensagem vazia se ficar reduzida a isso. A gente precisa começar um procedimento
de organização das mulheres, de elas se sentirem em mais condições de se organizar
politicamente e em movimentos sociais, conseguirem acessar os espaços de tomada
de decisão de poder. (MOIRA, 2017, p. 24).
3.4 CONSIDERAÇÕES
menstruação, dos estereótipos estabelecidos e da atual relação da mulher com seu corpo. Se a
menstruação tem sido retratada como um momento em que a mulher fica em desvantagem,
busca-se entender as falas dessas narrativas como elementos que normatizam o tabu da
menstruação e influenciam a construção identitária feminina.
43
Ao direcionar o seu olhar não apenas ao que está sendo dito, mas a quem está dizendo
e em qual momento/situação, a Análise de Discurso considera a não-transparência da
linguagem. De acordo com Orlandi (2007), nela existe equívocos e opacidades que são
manifestados em uma ideologia, construída pela História e constitutiva do sujeito. “Não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2007, p. 16-17). A ideologia é o
efeito da relação entre o sujeito, sua história e sua língua, tornando necessária a análise de sua
manifestação e do inconsciente na produção do sentido.
passado que deixam vestígios nos discursos presentes e que interferem em seus significados,
independente da vontade dos sujeitos.
[...]alguma coisa mais forte – que vem pela história, que não pede licença, que vem
pela memória, pelas filiações de sentidos constituídos em outros dizeres, em muitas
outras vozes, no jogo da língua que vai-se historicizando aqui e ali indiferentemente,
mas marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder – traz em sua
materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades. O dizer
não é propriedade particular. As palavras não são só nossas (ORLANDI, 2007, p. 31-
32).
De acordo com M. Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2007, p. 34) existe dois tipos de
esquecimentos que são estruturantes e que devem ser considerados nesse estudo. O primeiro é
o esquecimento ideológico e “é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos
afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 34). O sujeito, ao construir um discurso, tem a
falsa percepção de que seus sentidos nasceram ali, naquele momento, quando, na verdade, eles
são constituídos a partir da memória discursiva, de sentidos preexistentes. Já o segundo, o
esquecimento enunciativo, se trata daquele em que ocorre o que é chamado de ilusão
referencial: acredita-se que aquilo que foi dito só pode ser o feito de uma maneira, com aquelas
palavras e não com outras. Não é percebido que o modo de construção de discurso interfere na
sua criação de sentido.
Outro fator a ser considerado pela Análise de Discurso são as chamadas formações
discursivas, que demonstram que o sentido também depende da posição do sujeito em
determinado contexto em que ele está inserido e das relações ali presentes. Tudo o que é dito
possui um traço ideológico que é expresso na materialidade do discurso. “A formação
45
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada -determina o que pode e deve ser dito”
(ORLANDI, 2007, p. 43). Ao observar as condições de produção e o funcionamento da
memória, portanto, deve-se remeter o discurso a uma formação discursiva para compreender o
sentido.
A Análise de Discurso considera que, assim como o próprio discurso, seus sentidos
estão sempre em movimento e sua relação com a história, memória e ideologia permite esse
deslocamento. Ela se torna um método importante e a ser considerado nesse estudo ao permitir
a compreensão desse imaginário que condiciona os sujeitos em suas discursividades e ao
responder não apenas a questão “o que esse texto diz?”, mas também a questão “o que esse
texto significa?”.
A partir disso, fica clara a importância do uso da Análise de Discurso nesse estudo. A
partir dessa metodologia, é possível ir além da fala e analisar um discurso, carregado de
significações e construído a partir de um sujeito, imerso em um contexto. Considerando que os
absorventes são produtos ofertados juntamente com mensagens e simbolismos pelas narrativas
46
Para definir os objetos desse estudo, foi realizado um mapeamento das narrativas
publicitárias de marcas de absorvente do Brasil desde a década de 30 até 2016 para a realização
posterior de um recorte. Registra-se aqui a análise realizada de cada comunicação a partir do
discurso das marcas e do contexto em que as mulheres de cada época estavam inseridas. É
preciso apontar também que tal mapeamento se mostra importante a partir da percepção da
publicidade como um dos elementos que permitiram que a menstruação quebrasse os limites do
espaço privado e passasse a ser discutida na esfera pública, e como um dos fatores construtores
de identidade em tempos pós-tradicionais.
O trabalho nas ruas, o motor a explosão, o movimento das cidades exigia velocidade
e agilidade. O corpo deixou de ter um papel secundário e ganhou em animação, em
movimento. O lazer, graças aos teatros, festas públicas, feriados com sol e mar,
incentivou outros jeitos de exibir as formas (DEL PRIORE, 2011, p. 87).
Havia ainda, portanto, uma série de tabus que permeavam a sociedade, incluindo a
menstruação, cujas metáforas “estou de chico” e “naqueles dias” já eram expressões utilizadas
no Brasil para se evitar o tema. O que era, anteriormente, considerado uma doença a ser
comentada entre sussurros, agora era um tema a ser trazido abertamente pela publicidade.
Tratava-se do momento em que a menina se transformava numa mulher e os mistérios da
reprodução lhe deveriam ser revelados pela mãe.
47
Em meados do século XX surgiu, como já foi visto neste estudo, a Segunda Onda do
feminismo. Considerando a perspectiva de Bobel (2010) sobre o assunto, é percebido que se
trata de um momento em que as mulheres passaram a questionar a relação social de
desigualdade entre elas e os homens. Em um primeiro instante a questão trabalhista foi a
principal indagação, mas mais afrente as mulheres abrangem o seu olhar e se tornam conscientes
das questões de seus corpos, violência e opressão cotidiana. Elas criam uma cultura de união
para que o conhecimento se espalhe e atinja o maior número de mulheres, fazendo com que
haja uma elevação de consciência em relação a questões como sexualidade, estupro e aborto.
Por isso, a partir desse mapeamento, busca-se compreender se as narrativas publicitárias de
marcas de absorvente se mostram coerentes com esse momento em que as mulheres buscam
por um maior conhecimento de seus corpos, apesar da ainda existência da moralidade.
A percepção de que o espaço público deveria ser construído para receber a mulher, seu
corpo e sexualidade pode ser considerada uma das uniões entre a Segunda e Terceira Onda.
Atualmente o feminismo, ainda considerando o ponto de vista de Bobel (2010), se mantém
como um movimento que aponta que a mulher não tem plena liberdade no ambiente social. São
consideradas as mesmas questões como a sexualidade e o aborto, mesmo que em formatos
diferentes. Vive-se um momento em que a individualidade das mulheres é valorizada e acredita-
se que a mudança no dia-a-dia é o que causa transformações em âmbito global. Mais à frente
neste mapeamento será considerada de modo profundo a questão da Terceira Onda, mas é
importante apontar tais características e iniciar o questionamento sobre o retrato desse atual
momento nas narrativas publicitárias de absorvente (figura 2).
48
Em primeiro lugar, percebe-se que existe um apelo às mulheres que fazem esportes, o
que, de acordo com Del Priore (2011) era um tema polêmico. A mulher esportiva é o retrato da
mulher moderna: aquela que usa parte de seu tempo, antigamente dedicado apenas às atividades
domésticas, para se exercitar e se sentir bem consiga mesma.
Modess utiliza essa figura feminina para se posicionar como um produto que
possibilita que a mulher seja fiel ao seu novo estilo de vida e siga normalmente sua rotina sem
que seja interrompida, uma vez que a menstruação é retratada como um processo
impossibilitador dessas atividades. De acordo com o discurso da marca, a mulher e suas
capacidades são colocadas em risco quando ela está menstruada, mas o controle e ocultação do
sangue permitem que ela se torne capaz de acessar o espaço público novamente.
32
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/04/modess-anos-30.html>. Acesso em: fev.
2017.
49
a sua rotina plenamente e oferecer um produto como solução, a peça ratifica a relação comercial
criticada pela Terceira Onda atualmente e dificulta que a mulher perceba o seu corpo de modo
mais natural.
33
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/07/modess-anos-40.html>. Acesso em: jun.
2017.
50
feminina.
Por se tratar do início do século XX, a fortificação desse retrato social da mulher
menstruada demonstra, ao conquistar um maior acesso à esfera pública, a mulher se deparou
com um ambiente em que as únicas possibilidades de identidades eram os estereótipos
construídos a partir de uma perspectiva masculina. Tais estereótipos, como já foi visto neste
estudo, prejudicam a autonomia feminina ao fazer com que as mulheres se identifiquem com
essa figura retratada e não com suas individualidades. A internalização desse formato de
opressão psicológica faz com que as mulheres não se reconheçam quando menstruadas e se
afastem de seus corpos, os rejeitando durante esse período.
Mais uma vez, através da apresentação de seus atributos, Modess se posiciona como
um produto moderno que sobrepõe as toalhas antigas, consideradas desconfortáveis e inseguras.
A menstruação é apresentada como um processo que entra em conflito com os novos interesses
e objetivos da mulher moderna, mas que pode ser limitado e ocultado com o uso dos
absorventes.
Por fim, o retrato da conversa entre mãe e filha também demonstra essa relação típica
da menstruação. Tradicionalmente a mãe é a figura que ensina sua filha sobre seu corpo e
menstruação, e seu discurso é composto também pelos aprendizados que ela recebeu de sua
própria mãe. O tabu da menstruação, mantido através do caráter normativo da tradição, se
manifesta nessas falas e permanece presente nas percepções das mulheres (figura 4).
51
Nessa peça de Modess de 1950, percebe-se que mais uma vez o retrato da mulher
moderna como elemento comunicativo. Sua rotina e estilo de vido, de acordo com o discurso
apresentado, serão prejudicados pela menstruação, processo que pode ser revertido pelo produto
e seus atributos. A ocultação da menstruação, portanto, traz a liberdade, conforto e segurança
que permitem que a mulher acesse normalmente a esfera pública e desfrute dessa conquista
recente. “Ela sabe viver” demonstra uma figura feminina capaz de tomar decisões que permitem
que ela viva plenamente, e essas decisões incluem o uso de Modess.
Trata-se de uma mulher que é independente e exige conforto e segurança. Ela valoriza
novos formatos ao buscar o fim de métodos como as toalhas sanitárias, que traziam a
inconveniência da lavagem. Tal afirmação retrata o contato direto com o sangue -inevitável na
34
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2014/06/modess-johnson-johnson-anos-50.html>.
Acesso em: jun. 2017.
52
lavagem das antigas toalhas sanitárias- como um processo antigo, que ficou para trás junto com
a mulher não moderna. Quanto mais afastada de seu corpo, mais moderna a mulher é.
Existe uma construção, portanto, que vem pelo menos da década de 30, de um
estereótipo da mulher moderna. Trata-se de uma figura que abre mão de parte dos afazeres
domésticos para andar de moto, se embelezar ou fazer esportes e sobre a qual é construída uma
percepção ilusória de liberdade. A mulher conquistou um espaço inédito na esfera pública, mas
influenciar as suas escolhas através da comunicação não é torná-la livre, é apenas determinar
mais um modo de oprimi-la.
35
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/06/sempre-livre-marilia-pera-anos-70.html>.
Acesso em: jun. 2017.
53
Essa propaganda se trata de um comercial da marca Sempre Livre, de 1973, que tem a
atriz Marilia Pera como protagonista. Considerando o contexto social, político e cultural em
que essa peça foi veiculada, ela foi selecionada como um dos objetos de estudo e, portanto, será
analisada de modo mais profundo posteriormente (figura 6).
Fonte: YouTube36.
Ainda em 1970, Modess segue com o mesmo discurso que valoriza a maior aderência
à calcinha que seu produto possibilita. Não são necessários elementos como fivelas,
antigamente utilizadas, trazendo uma maior comodidade e conforto para a mulher.
36
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Lu1NGJvrlSQ>. Acesso em: out. 2017.
54
O uso de uma linguagem que impede que a menstruação seja retratada de modo
verdadeiro e natural influencia na percepção feminina sobre seus corpos e os processos
advindos dele. A partir desse ponto, fica claro que a mulher, durante o século XX, obteve
diversas conquistas, mas se deparou com um ambiente que não estava pronto para lidar com as
potencialidades de seu corpo de modo genuíno (figura 7).
Fonte: YouTube37.
Nessa propaganda de Sempre Livre de 1988, mais uma vez é explorado o retrato da
mulher multifuncional, dessa vez através da figura da Malu Madder. “Eu vivo tudo ao mesmo
tempo” revela a atriz que também diz gostar de se sentir segura, se referindo à sua autoconfiança
e autoestima. A mulher que é intensa e assume o seu lugar tanto no espaço privado quanto
público é a nova meta das mulheres nos anos 80, aquelas que vivem após a Revolução Sexual.
Mesmo menstruadas, elas precisam se manter capazes de realizar todas as suas atividades
cotidianas e Sempre Livre é o produto que permite isso. De um lado existe o estereótipo da
mulher menstruada, aquele ser sobre o qual os sentimentos negativos tomam conta, a tornando
incapaz de ser ela mesma plenamente; do outro, existe o estereótipo da mulher menstruada que
usa o absorvente, aquela que vive alegremente e se encontra completamente satisfeita com sua
vida em geral e autoconfiança.
Mais fino e, portanto, mais confortável, o novo produto continua “seguro como
sempre” devido à sua camada de “células multiabsorventes que distribuem e retém melhor o
fluxo”. Mais uma vez, a narrativa publicitária demonstra à mulher que ela pode acessar a esfera
pública desde que esconda devidamente o seu fluxo menstrual. Ela só se tornará capaz de se
37
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RkAdYBFQEMs>. Acesso em: out. 2017.
55
“Quando uma mulher decide ser muitas mulheres, o absorvente tem que ser um só”
demonstra Sempre Livre como um produto supostamente empoderador. O “absorvente do nosso
ritmo”, assinatura da campanha, se posiciona como compreensivo das reais necessidades das
mulheres, quando, na verdade, contribui para a construção não devida do espaço público para
o recebimento da mulher como um indivíduo (figura 8).
Fonte: YouTube38.
Em 1992, Sempre Livre continua a apostar na figura de uma celebridade para retratar
a mulher que não apenas tem um trabalho, mas que também o prioriza, buscando aperfeiçoá-lo
cada vez mais. Ela assume vários personagens, assim como na vida real, em que possui diversas
funções que procura exercer cada vez melhor. Mais uma vez é retratada uma mulher
multifuncional que se sente completa desse jeito e que, portanto, busca evitar que tal estilo de
vida seja prejudicado durante seu período menstrual. Sempre Livre se posiciona como a solução
desse problema.
38
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l_jThH7rggY>. Acesso em: out. 2017.
56
uma mulher moderna que busca se aperfeiçoar cada vez mais, inclusive no ocultamento de seu
fluxo.
“Quem sabe interpretar o que uma mulher deseja? Sempre Livre sabe” é a principal
fala que demonstra uma suposta preocupação com as necessidades femininas. Ela deseja um
acesso cada vez maior ao ambiente público, além de reconhecimento em diversas instâncias
como a profissional, mas tais conquistas só se tornam possíveis com o ocultamento de sua
menstruação e de todos os sentimentos que ela carrega (figura 9).
Fonte: YouTube.39
‘
Em 2008, a marca Sym construiu uma propaganda mais realista de marcas de
absorvente que questionava os elementos que têm sido utilizados por tanto tempo mas que
apenas ratificam o tabu da menstruação, como visto neste estudo. Em um primeiro momento da
peça, uma moça levanta a questão sobre o retrato de mulheres usando calças brancas nas
propagandas, sendo que “absorvente não combina com calça branca”. Em seguida, ela se depara
com um cientista fazendo a demonstração do funcionamento de um absorvente e questiona o
porquê do líquido que ele está usando ser azul. Por fim, ao encontrar uma mulher que demonstra
o estereótipo de mulher menstruada usando absorvente -alegre e satisfeita-, ela afirma que
39
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TXno-zeLu7M>. Acesso em: out. 2017.
57
ninguém fica assim durante a menstruação e, de fato, utilizada a palavra “menstruada”, caso
inédito nesse mapeamento.
Além disso, mesmo que o discurso da narrativa se mostre inédito ao utilizar a palavra
“menstruada”, o tabu comunicacional especificamente em relação ao sangue menstrual se
mostra bastante presente. Ao questionar o retrato frequente de mulheres utilizando calças
brancas nos comerciais de absorventes, a moça utiliza o discurso de que “absorvente e calça
branca não combinam”, quando, ao analisar a questão do ocultamento a fundo, sabe-se que, de
acordo com essa perspectiva, o que, de fato, não combina com calça branca é o sangue. A
mancha de sangue na calça demonstrando que estão menstruadas tem sido uma das maiores
preocupações das mulheres quando em esfera pública, como já foi visto neste estudo.
slogan “ser mulher é uma delícia” também assume apenas um extremo do estereótipo feminino
e nega uma visão realista sobre o mundo feminino em geral (figura 10).
Fonte: YouTube.40
Para a consideração das próximas peças, é preciso perceber o século XXI como um
tempo em que, com o advento da internet e o surgimento da chamada cibercultura, um novo
formato de conexão global foi estabelecido, transformando o conceito de comunicação.
A cibercultura, de acordo com Lemos e Lévy (2010), se trata de uma nova esfera
púbica digital mundial, em que não há mais os recortes geográficos que separam as culturas. A
comunicação entre as partes do globo passa a funcionar de modo bilateral, mais aberto e
colaborativo, uma vez que é estabelecida uma conversa em que os receptores se tornam também
produtores, assumindo uma postura menos passiva às informações que recebem.
40
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pkW3M3dmGvY>. Acesso em: jun. 2017.
59
Esse novo formato de comunicação também se aplica ao feminismo e ao modo que ele
se estabelece nesse contexto. Com esse novo formato de conversa mais colaborativo e aberto,
o feminismo se torna capaz de levar as suas conversas -em um primeiro momento estabelecida
em rodas físicas de pessoas- para novas plataformas e canais, aumentando o alcance de suas
falas.
Na medida em que travou o esforço para elaborar novas mídias, o feminismo passou
a conferir às ferramentas e espaços comunicacionais um enlace estratégico de primeira
ordem para sua causa. E, assim, com o avançar dos processos tecnológicos, o advento
da internet vem ampliar a relação do movimento com suas políticas de comunicação
e gênero. Outros canais, espaços e plataformas vão possibilitar às ações feministas o
alastramento de informações, demandas, organização e a criação de conteúdos,
habitualmente ignorados pelos meios de comunicação mais tradicionais, ou restritos
aos meios alternativos, importantes, porém de limitada abrangência (TOMAZETTI,
2015, p. 5)
Existe, portanto, uma nova esfera pública em que o acesso das mulheres teoricamente
não pode ser dificultado: a digital. Em um espaço mais colaborativo, a conversação entre elas
permite que elas não apenas reconheçam a diversidade de lutas dentro do feminismo-
característica da Terceira Onda já vista neste estudo-, mas também estabeleçam diálogos que
permitem respostas rápidas a discursos que reproduzam o machismo ou repressão da mulher.
“[...]em confluência com as potencialidades comunicativas da era digital, o feminismo passa a
perceber no ambiente virtual um lugar de práticas e expressões coletivas, antes desconhecidas,
com novas significações e endereçamentos múltiplos” (TOMAZETTI, 2015, p. 5). A atuação
do movimento passa a ser o mundo inteiro e as mulheres entram em contato com discursos que
vão além do alcance de seus espaços físicos.
Nessa campanha, a marca traz um duplo sentido à palavra “vazamento”: trata-se tanto
da menstruação –e da capacidade do produto de evitar 100% de vazamentos-, quanto do
fenômeno comum e criminoso de vazamentos de fotos íntimas na internet. É realizada uma
60
Ao trazer relatos de adolescentes que passaram pela situação traumática de ter fotos
íntimas postadas na internet, a peça traz os danos psicológicos causados à intimidade e à
autoconfiança como consequências também do vazamento da menstruação. “É preciso ter força
para superar e seguir com a vida” é uma das falas presente. Existe um retrato sensacionalista e
falso da menstruação como um processo que, caso seja percebido pelas outras pessoas no
ambiente da esfera pública, causará danos -a longo prazo ou até permanentes- à confiança da
menina.
Mais uma vez uma marca de absorvente tenta se posicionar como apoiadora da mulher
moderna e seus ideais, mas, Always, ao abraçar essa causa válida através de um trocadilho
vazio, demonstra um sequestro da fala do feminismo para a construção de um discurso
superficialmente empoderador.
Como foi visto, ao realizar campanhas que são veiculadas também no ambiente digital,
a marca se insere em um contexto cujos diálogos são rápidos, diversos e de alto alcance. Nesse
caso, as meninas se pronunciaram nas redes sociais e questionaram o discurso da marca,
inclusive a partir de falas feministas. O amplo e rápido acesso a essas informações fez com que
essas mulheres tivessem voz para responder Always e desvalidar sua fala.
Ainda em 2015, é importante apontar, Always lançou uma propaganda criada pela Leo
Burnett Toronto, que levou o nome “Like a Girl”, e que questionava a expressão “como uma
menina” utilizada para caracterizar atividades realizadas de modo suave ou mais frágil. Na peça,
meninas demonstravam o que significa jogar uma bola, correr ou lutar “como uma menina”
61
quebrando esse tabu e demonstrando que a força feminina existe e deve ser valorizada. A peça,
veiculada no Superbowl de 2015, ganhou o Grande Prix na categoria de Relações Públicas em
Cannes e um Emmy de melhor comercial de 2015, além de ter sido um dos vídeos mais vistos
do ano na plataforma do YouTube.
Fonte: YouTube.41
41
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pC2efxlPBIk>. Acesso em: jun. 2017.
62
#TheSleepingTest é uma comunicação de 2017 realizada por Always Brasil que traz o
incômodo da menstruação principalmente no período noturno.
Essa peça se mostra opressora, portanto, em três momentos. Em primeiro lugar, ela
fortifica e normatiza o estereótipo da mulher menstruada. De acordo com ela, as mulheres
assumem um caráter raivoso nesse tempo do mês e, por isso, tem suas rotinas prejudicadas.
Além disso, a menstruação é demonstrada como uma situação cujos incômodos só podem ser
reconhecidos e validados pelos homens uma vez que eles são aplicados à sua existência. A fala
da mulher não é verídica até que se prove o contrário. Por fim, a manipulação da menstruação
nessa peça se mostra banal uma vez que se trata de um processo natural cuja construção artificial
não é correspondente (figura 12).
42
Disponível em: <https://www.youtube.com/user/intimusonline/videos>. Acesso em: out. 2017.
63
“Marias” se trata de uma webserie produzida pela marca Intimus, em que a sexualidade
é um assunto tratado de modo aberto, assim como outros tabus, inclusive da menstruação. Ela
traz a pluralidade das mulheres através de personagens cujos nomes compostos são iniciados
com “Maria”. Se trata de um novo formato de propaganda, o Branded Content, em que o enredo
criado pela marca propõe entretenimento para o consumidor e, por isso, não pode ser analisado
de modo aprofundado nesse estudo. Pode-se considerar, contudo, o modo como o diálogo e
retrato femininos são retratados na história.
O enredo envolve um grupo de amigas que ao longo do tempo vai crescendo com o
aparecimento de novas personagens. Ao trazer uma história que envolve as multiplicidades
femininas, “Marias” coloca em questão todos os tipos de opressão que as mulheres podem
sofrer além do machismo: o racismo, a gordofobia, a homofobia. Por isso, possui um caráter
típico da Terceira Onda ao trazer um discurso empoderador que envolve a diversidade de
identidades e individualidades das mulheres como elementos principais de uma união feminina,
em uma narrativa em que suas menstruações ficam em segundo plano.
43
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/06/sempre-livre-marilia-pera-anos-70.html>.
Acesso em: jun. 2017.
65
A primeira propaganda analisada neste estudo tem a atriz Marilia Pera como elemento
comunicativo e é importante perceber que ela assume dois papéis ao se tornar sujeito desse
discurso. “Eu estou sempre trabalhando muito, né? Do teatro para a televisão, da televisão para
o teatro. No meio dessa correria toda, eu descobri que era muito usar o Sempre Livre” Em
primeiro lugar, ela é o retrato da mulher moderna. Por ser uma atriz de sucesso que se desloca
entre diversos ambientes, ela representa a figura feminina cujas liberdades recém conquistadas
envolvem o acesso à esfera pública e a possibilidade de priorização da vida profissional à vida
doméstica. Além disso, considerando o contexto da propaganda, vai-se mais além: por ser não
apenas atriz de televisão, mas também de teatro, bailarina, cantora e diretora, Marilia Pera não
representa apenas aquilo que é novo, mas também uma ameaça ao sistema político vigente na
época. Sua figura representa tudo aquilo cuja expressividade e discursos eram ameaçados pela
censura.
Considerando-as, percebe-se que essa peça de Sempre Livre de 1973 foi veiculada em
um momento decisivo para a História da Mulher. Como foi mencionado neste estudo, nos anos
70, de acordo com a perspectiva de Dore (2014) e Bobel (2010), já havia iniciado e ganhado
força a Segunda Onda do feminismo, em que as mulheres passaram a questionar a desigualdade
trabalhista diante dos homens. Havia o questionamento sobre o machismo presente em todos
os âmbitos da carreira profissional de uma mulher: os cargos que ela era capaz de ocupar, a
desigualdade salarial e o discurso sexista na oferta de empregos.
Tal fato, contudo, como foi visto anteriormente, por mais que possa ser percebido
como um avanço da representação feminina em narrativas publicitárias, demonstra também a
utilização da estereotipização com tal finalidade. Ao se comunicar com mulheres que abrem
mão de parte ou de toda a vida doméstica para construir uma carreira, Sempre Livre deixa de
falar com aquelas que têm a vida no lar como escolha e não deixam de ser mulheres -e de
menstruarem- por isso. Essencialmente, é necessário que seja percebido e comunicado que o
sucesso das mulheres não está na construção de uma vida profissional, mas sim na possibilidade
de escolha de estilo de vida, independente de qual for.
44
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=pC2efxlPBIk>. Acesso em: 10 ago. 2017.
70
desconforto realmente. Para mim, pelo menos”, “Sem contar que a gente não consegue trabalhar
direito né?”. Percebe-se que as mesmas inconveniências seguem sendo retratadas do mesmo
modo, assim como há mais de 30 anos atrás, na propaganda de Sempre Livre. A menstruação
continua sendo representada como algo que vai contra a liberdade conquistada pela mulher
considerada moderna.
Após o momento de depoimento das mulheres, fica claro que o enredo foi construído
baseado na questão da incompreensão masculina sobre a menstruação e seus efeitos sobre o
corpo feminino. Como foi visto no mapeamento desse estudo, os retratos da mulher menstruada
são frequentemente pautados em estereótipos que, como foi estudado, afasta o meio social da
compreensão plena das necessidades dos estereotipados. Em geral -e é nisso que a propaganda
se apoia-, os homens têm a percepção de que as mulheres assumem um caráter horrível em seus
períodos menstruais, se tornando seres que apenas reclamam e brigam sem motivos aparentes,
o que impede que eles tenham uma visão realista.
demonstra uma ilusão, uma vez que homens não menstruam e jamais poderão ter uma
experiência próxima disso. Além disso, o experimento realizado a partir da utilização de uma
bolsa de líquido azul, um buraco na cama e um despertador apenas ratifica isso: trata-se de um
modo de destacar as -possíveis- inconveniências da menstruação através da banalização do
processo.
Em 2016, após levantar tal discussão no mundo inteiro, Always apresenta um discurso
sexista no Brasil em “#TheSleepingTest e deixa clara uma postura oportunista da marca em
relação ao crescimento da discussão do feminismo no ambiente digital. Ao se deslocar entre a
valorização da força feminina desde a infância e a necessidade de validação masculina para os
possíveis efeitos da menstruação nas mulheres que menstruam, a marca demonstra um
retrocesso que provavelmente não ocorreria se os valores expostos em “Like a Girl” fizessem
parte de seu DNA como empresa. A incoerência no discurso demonstra que mesmo em 2016,
a propaganda ainda contribui para o formato de esfera pública que não valoriza as necessidades
reais das mulheres e banaliza sua causa, suas exigências e seus questionamentos.
73
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo compreender o reflexo do tabu da menstruação nas
narrativas publicitárias e sua influência na construção identitária feminina. Para isso, buscamos
compreender conceitos que se conversaram e auxiliaram a análise dos objetos de estudo.
45
“feminismo+propaganda” (tradução livre).
76
REFERÊNCIAS
Livros
FREUD, S. Totem e tabu. Porto Alegre: L&PM, 2013. (Coleção L&PM pocket, 1).
E-book
BOBEL, C. New blood: third-wave feminism and the politics of menstruation. Nova Jersey,
EUA: Rutgers University Press 2010.
Artigos
MOIRA, Amara. A revolução precisa ser sexual. TPM, São Paulo, n. 172, set. 2017, p. 18-29.
Documentários
DORE, M. She’s beautiful when she’s angry. 2014. (1 h. 32 min.), son., color. Youtube.
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=y6ceuqhsvny&list=plelph5bidgtysc963tn9oz3ocl2aazu5
9&index=63>. Acesso em: 20 de outubro de 2017.
GROBMAN, B.; REIS, B.; TIERI, T. Cai Por Terra. São Paulo: 2016. (22 min. 23 s.), son.,
color. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rlt7FAZ9L6k>. Acesso
em: 10 de maio 2017.
Vídeos
DELUCA, R. The good news about PMS. Nova York: TED, 2014. (14 min. 44 s.) son., color.
Disponível em:
<https://www.ted.com/talks/robyn_stein_deluca_the_good_news_about_pms>. Acesso em:
12 de abril de 2017.
78
GUPTA, A. A taboo-free way to talk about periods. Mombai: TED, 2015. (11 min. 10 s.)
son., color. Disponível em: Disponível em:
<https://www.ted.com/talks/aditi_gupta_a_taboo_free_way_to_talk_about_periods>. Acesso
em: 12 de abril de 2017.
Periódicos
Estudos