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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM-SP)

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO


GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM
PUBLICIDADE E PROPAGANDA

LAURA AÑASCO ORCIUOLO DE PAULA

O TABU DA MENSTRUAÇÃO NA COMUNICAÇÃO


Seu reflexo no discurso das marcas de absorvente no Brasil e sua influência na construção
identitária feminina

SÃO PAULO
2017
Laura Añasco Orciuolo de Paula

O TABU DA MENSTRUAÇÃO NA COMUNICAÇÃO


Seu reflexo no discurso das marcas de absorvente no Brasil e sua influência na construção
identitária feminina

Projeto monográfico de conclusão de curso apresentado como


requisito para obtenção de título de Bacharel em Comunicação
Social com ênfase em Publicidade e Propaganda pela Escola
Superior de Propaganda e Marketing – ESPM.

Orientadora: Martha Terenzzo – Mestre em Comunicação e


Consumo.

SÃO PAULO
2017
“Parece que é deselegante
falar da minha menstruação em público
porque a verdadeira biologia
do meu corpo é real demais

É legal vender o que


uma mulher tem entre as pernas
mas não é tão legal
mencionar suas entranhas

O uso recreativo deste


corpo é considerado
uma beleza mas
sua natureza é
considerada feia”

-Rupi Kaur
(Outros jeitos de usar a boca)
RESUMO

Neste estudo, é discutido o reflexo do tabu da menstruação nas narrativas publicitárias de


marcas de absorvente e sua influência na construção identitária feminina. Tomando como
objeto de estudo duas propagandas de marcas de absorventes, ele tem como suposição que tais
narrativas ratificam o tabu da menstruação e influenciam as mulheres como indivíduos e suas
relações com seus corpos e menstruações. Para a articulação de tal raciocínio, é realizada uma
revisão bibliográfica concentrada em Monique Augras, Mary Del Priore, Sandra Lee Bartky e
Emily Martin para a compreensão da construção dos tabus femininos, em Chris Bobel para o
entendimento preciso do tabu da menstruação e a Terceira Onda do feminismo, e em Anthony
Giddens para o esclarecimento sobre o processo de construção identitária. Além disso, é
realizada uma pesquisa exploratória na internet para a construção posterior de um mapeamento
das narrativas de marcas de absorvente desde a década de 1930. Toma-se como objetivo
compreender se existe um histórico de discurso nessas comunicações.

Palavras-chave: Tabu. Menstruação. Identidade. Narrativas Publicitárias.


ABSTRACT

In this thesis, it is discussed the reflex of the menstruation taboo in the narrative of absorbent
brands and its influence on the feminine identity construction. Having as objects two ads of
absorbent brands, this study has as assumption that their narratives ratify the menstruation taboo
and influence women as individuals and their relations with their bodies and menstruation. To
support the thesis’ reasoning, a bibliographical research was made based primarily on Monique
Augras, Mary Del Priore, Sandra Lee Bartky and Emily Martin, to comprehend the construction
of the feminine taboos, on Chris Bobel, to understand precisely the menstruation taboo and the
Third Wave of feminism, and on Anthony Giddens, to clarify the process of identity
construction. Besides that, an exploratory research on the internet was conducted to develop a
mapping that exposes absorbent brands' narratives since 1930.The objective of this pare of the
study is to comprehend if there is a pattern of discourse in these media throughout history.

Keywords: Taboo. Menstruation. Identity. Advertising Narratives.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa “O Tabu da Menstruação Mundial” .............................................................. 31

Figura 2 – Propaganda de Modess dos anos 30 ........................................................................ 48

Figura 3 – Propaganda de Modess dos anos 40 ........................................................................ 49

Figura 4 – Propaganda de Modess dos anos 50 ........................................................................ 51

Figura 5 – Print Screen da Propaganda “Aderente à Calcinha” de Sempre Livre de 1973 ...... 52

Figura 6 – Print Screen da Propaganda de Modess de 1976 .................................................... 53

Figura 7 – Print Screen da Propaganda de Sempre Livre de 1988 ........................................... 54

Figura 8 – Propaganda de Sempre Livre de 1992 .................................................................... 55

Figura 9 – Propaganda de Sym de 2008 ................................................................................... 56

Figura 10 – Print Screen da Propaganda de Always de 2015 ................................................... 58

Figura 11 – Print Screen da Propaganda de Always de 2016 ................................................... 61

Figura 12 – Print Screen do Branded Content de Intimus de 2015, 2016 e 2017 ................... 62
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 9

1.1 Contextualização............................................................................................................... 9

1.2 Tema........... .................................................................................................................... 10

1.3 Objeto......... .................................................................................................................... 10

1.4 Problema..... .................................................................................................................... 11

1.5 Objetivo Geral ................................................................................................................ 11

1.6 Objetivos Específicos ..................................................................................................... 11

1.7 Metodologia e Estruturação ............................................................................................ 11

2 A MULHER E SEU CORPO.............................................................................................. 14

2.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 14

2.2 Os tabus presentes........................................................................................................... 14

2.3 O feminino e a identidade ............................................................................................... 19

2.4 Considerações ................................................................................................................. 29

3 O TABU DA MENSTRUAÇÃO......................................................................................... 30

3.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 30

3.2 A menstruação como opressão?...................................................................................... 30

3.3 A menstruação e a identidade ......................................................................................... 35

3.4 Considerações ................................................................................................................. 41

4 AS NARRATIVAS DAS MARCAS DE ABSORVENTE ................................................ 43

4.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 43

4.2 Mapeamento das narrativas ............................................................................................ 46

4.3 As narrativas escolhidas e o nosso recorte para análise do discurso .............................. 64

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 73

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 76
9

1 INTRODUÇÃO

1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO

Ao longo da História, a sociedade tem apresentado temas considerados tabus. Questões


silenciadas e contornadas em conversas do cotidiano tem estado presentes nas realidades
sociais, o que é tratado por Augras (1989). A partir de Freud e seus apontamentos sobre a
relação entre os tabus primitivos e as regras morais vigentes em nossa sociedade, a autora nos
direciona na compreensão da atual concepção do tabu e no papel de manutenção de ordem
social que ele assumiu. De fato, existe uma justificativa para o silenciamento de determinados
temas, o que resulta em construções sociais e, em um último momento, influencia percepções
individuais.

Um dos elementos que tem sido alvo de tabu é o corpo feminino. A partir de Del Priore
(2011), é possível compreender que as regras e limitações impostas às mulheres possuem um
histórico de serem justificadas a partir de suas funções reprodutivas. Analisando a questão da
intimidade e sexualidade desde o Brasil Colonial, a autora nos auxilia no entendimento da
construção de exigências e expectativas em relação às mulheres. Bartky (1990) permite um
aprofundamento nessa parte do estudo e nos leva a compreender a vigilância social que tem
acompanhado as mulheres: a concepção de feminilidade. A partir dessas perspectivas, se torna
possível, com a ajuda de Chris Bobel (2010) e sua perspectiva sobre a Terceira Onda do
feminismo, entender como essas questões se aplicam especificamente ao período menstrual e
influenciam a relação das mulheres com seus corpos.

Qual é o papel das narrativas publicitárias nesse processo? Quais são as influências na
construção identitária feminina? A partir de Giddens (2002) e o que o autor chama de
modernidade tardia, se torna possível compreender a relação de simetria que se construiu entre
todos os atores na construção da identidade. Influenciados por uma infinidade de diálogos
cotidianos, inclusive os da publicidade, os indivíduos assumiram uma postura mais ativa e
passaram a poder interferir nesse processo. Por isso, este estudo considera duas narrativas
publicitárias como objetos, mas não exclui a importância do levantamento do questionamento
sobre a responsabilidade que o indivíduo tem conquistado sobre a construção de sua identidade.
Martin (2006), ao apresentar as concepções culturais sobre o corpo feminino a partir da
perspectiva de mulheres, permite a essencial análise da existência de um deslocamento entre
10

essas construções e o retrato da menstruação nas propagandas de absorvente.

Devido a importância desse retrato na possível ratificação do tabu e na construção


identitária, a propaganda "Aderente a Calcinha" de Sempre Livre, de 1973, e
"#TheSleepingTest" de Always, de 2016, se mostram objetos interessantes de análise. A partir
da ferramenta de Análise de Discurso de Orlandi (2007), busca-se compreender as narrativas a
partir de um sujeito, inserido em um contexto sociocultural e interpolado por uma ideologia. A
existência de um deslocamento entre essas partes pode demonstrar que as propagandas de
absorventes não têm retratado a mulher menstruada de modo realista, contribuindo para a
permanência do tabu da menstruação em nossa realidade social.

Por isso neste estudo, com a utilização dos autores citados e de mais alguns, tem-se
como objetivo compreender como o tabu da menstruação é refletido nas narrativas publicitárias
e se elas têm um papel de ratificação dele. Além disso, levanta-se a discussão de como esse
tabu influencia a construção identitária feminina.

1.2 TEMA

O tabu construído em relação à mulher e, especificamente à menstruação, é um


elemento historicamente construído. Procura-se compreender nesse estudo o papel da
comunicação das marcas de absorvente como refletora dessa percepção e como a sua
permanência em nossa sociedade é capaz de influenciar a construção de identidade das
mulheres.

Para tanto escolhemos como tema “O tabu da menstruação na comunicação: seu


reflexo no discurso das marcas de absorvente no Brasil e sua influência na construção identitária
feminina.”

1.3 OBJETO

Tem-se como objeto o reflexo do tabu da menstruação das campanhas “Aderente à


Calcinha” com participação de Marilia Pera, de 1973 e “#TheSleepingTest” de 2016, das
marcas, respectivamente, Sempre Livre e Always.
11

1.4 PROBLEMA

O problema de pesquisa a ser considerado para o desenvolvimento do trabalho


monográfico é: como o tabu da menstruação é refletido na comunicação das marcas de
absorventes?

Tem-se como suposição que as marcas de absorvente ratificam o tabu da menstruação


e influenciam a conquista da identidade feminina.

1.5 OBJETIVO GERAL

Compreender a construção das duas narrativas publicitárias: “Aderente à Calcinha” de


Sempre Livre e veiculada em 1973, e “#TheSleepingTest” de Awalys, de 2016, e seus discursos
de marca.

1.6 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

O objetivo geral do projeto se desenvolverá a partir do estabelecimento de três


objetivos específicos, que protagonizarão na ordem apresentada a seguir os capítulos desta
monografia:

a) entender o tabu como elemento de manutenção de uma ordem social;

b) compreender o como tabu se manifesta na mulher, na sua relação com seu corpo e
construção de identidade;
c) compreender a construção do tabu da menstruação;
d) entender a presença do tabu da menstruação nas narrativas publicitárias.

1.7 METODOLOGIA E ESTRUTURAÇÃO

Por se tratar de um estudo que se propõe a ser realizado em três principais partes -
compreensão de conceitos específicos, realização de um mapeamento e análise de dois objetos-
são três metodologias adotadas para atender cada uma das fases. Primeiramente, será feita uma
revisão bibliográfica em que os temas constitutivos desse projeto serão compreendidos a partir
12

de autores relevantes. Em segundo lugar, será realizada uma pesquisa exploratória na internet
com o intuito da construção de um mapeamento de narrativas publicitárias de marcas de
absorvente. Por último, a Análise de Discurso será a principal ferramenta para a compreensão
da carga ideológica dos dois objetos selecionados.

Considera-se Freud (2013) e Augras (1989) como principais autores ao analisar a


construção de proibições e noções morais na atual sociedade ocidental a partir de tabus
primitivos, e a sua extensão à figura feminina. Por tratar de uma questão com historicidade, Del
Priore (2011) será a principal referência no resgate de antigas percepções sobre o corpo e o
sistema reprodutivo feminino.

Já Thomas (2007) e Sardenberg (1994) enriquecerão a discussão sobre o tabu


especificamente relacionado à menstruação e a menstruação como um ritual. Bartky (1990)
tratará da questão da feminilidade e Bobel (2010), do ativismo da menstruação e a necessidade
de torná-la uma pauta de discussão vigente na contemporaneidade.

Em um segundo momento, será realizada uma pesquisa exploratória na internet e um


mapeamento das narrativas publicitárias de marcas de absorventes entre 1930 e 2017 no Brasil,
com o auxílio do Arquivo da Propaganda e Propagandas Antigas. As narrativas serão colocadas
em uma linha do tempo para que haja uma percepção geral do desenvolvimento de seus
discursos.

Os objetos serão selecionados a partir da época e relevância com as questões discutidas


nesse estudo. Em primeiro lugar, é considerada uma peça atual que parece refletir as questões
consideradas nesse estudo, responsáveis pela ratificação do tabu. A outra será uma peça
veiculada em uma época significativa na história do feminismo em que a consciência sobre as
questões das mulheres e seus corpos foi elevada, para que posteriormente haja uma comparação.
A comparação se torna coerente ao considerar que ambas as peças são de marcas fortes
multinacionais, mas foram veiculadas com uma diferença de 43 anos. Trata-se de um período
de muitas mudanças em relação à vida da mulher na esfera pública, que resultou no atual
momento de fortificação e apoio ao empoderamento feminino praticado por marcas.

A partir disso, as narrativas publicitárias selecionadas serão analisadas de acordo com


o modelo de Análise de Discurso, proposto por Orlandi (2007), no qual se procura
13

[...]compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do


trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. [...]A Análise de
Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade
natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência
e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade
em que ele vive. (ORLANDI, 2007, p. 15-16).
14

2 A MULHER E SEU CORPO

2.1 INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

Neste primeiro capítulo é importante que haja a compreensão do significado do tabu,


uma vez que ele é um conceito chave para este estudo. É uma noção que nasce a partir de outras
implicações, mas que mais tarde é construída em torno do corpo feminino e da menstruação,
analisados no capítulo próximo. Essa compreensão geral parte de Freud (2013), uma vez que o
psicanalista identificou uma relação entre os tabus primitivos e a regras morais vigentes em
nossa sociedade.

2.2 OS TABUS PRESENTES

De acordo com o autor, o tabu possui duas principais características. Em primeiro


lugar, ele carrega consigo uma dualidade intrínseca, remetendo-se a “tudo aquilo que é ao
mesmo tempo sagrado e proibido” (AUGRAS, 1989, p. 13); o segundo ponto é que ele
representa a objetificação de um medo comum entre os homens: de acordo com o psicanalista,
os povos primitivos acreditavam na existência de forças demoníacas em tudo aquilo que eles
desconheciam e sobre o qual não tinham nenhum tipo de controle. Percebe-se, portanto, a partir
dessa perspectiva, que o tabu é algo presente na fronteira entre diversas percepções: o sagrado,
o proibido e o temido. O primeiro registro que se encontra sobre o termo “tabu” foi feito pelo
navegante inglês James Cook (1728-1779) que tomou conhecimento de tal expressão quando
viajou a Oceania e entrou em contato com os nativos da Ilha Tonga, que chamavam de “Tapu”
tudo aquilo que era ao mesmo tempo sagrado e proibido. De acordo com Augras (1989), no dia-
a-dia dos antigos polinésios, existia uma relação proporcional entre a importância de uma
pessoa dentro daquele ambiente social e a sua percepção como uma figura tabu. O rei polinésio,
por exemplo, era cercado de restrições e proibições como a não permissão do toque e contato
direto com a sua cabeça, inclusive por ele mesmo, já que ele representava um perigo para todos.

À medida que as pessoas se elevavam na hierarquia social, viam aumentar suas


próprias proibições. Era como se as pessoas importantes ou coisas sagradas estivessem
carregadas com uma energia tão poderosa que acabavam por tornar-se extremamente
perigosas para as pessoas comuns, e até mesmo, em certos casos, para si próprias.
(AUGRAS, 1989, p. 14).
15

Apesar dessa origem, o significado de tabu que perpetua atualmente é de que ele
representa algo que é sujo e até impuro e, por isso, o medo do contato direto o acompanha. De
acordo com Douglas (2004), o tabu em si é uma prática de codificação de comportamentos e
significados, que caso “[...]não seja respeitada, as consequências serão pontuais e perigosas.
Uma delas é aquela advinda do contato direto com o que é considerado tabu. O medo do
contágio é o que faz com que todos de uma comunidade respeitem aquele tabu.” (DOUGLAS,
2004 apud THOMAS, 2007, p. 66, tradução livre1).

A relação percebida entre a hierarquia social e a construção do tabu, contudo, faz com
que Augras (1989) estenda a reflexão e perceba uma relação conflitante de medo e desejo
relacionada à figura tabu, uma vez que, de acordo com ela, não existe a necessidade de se proibir
aquilo que não se deseja. Tal ambiguidade gera tanto o sentimento de aversão, quanto de
fascínio, o que veremos mais claramente a frente, na análise da construção de tabu acerca do
corpo feminino.

É importante observar que o tabu é um elemento da cultura que, de acordo com


Sardenberg (1994), funciona como um sistema cuja formação se dá por diversos outros sistemas
ou subsistemas que ultrapassam o tempo e obedecem a uma lógica interna. “...a cultura tem as
propriedades de um sistema, sistema esse que media a relação entre um determinado símbolo e
o seu embasamento social” (ORTNER; WHITEHEAD, 1981 apud SARDENBERG, 1994, p.
334). Identifica-se que a construção do tabu como um símbolo social acontece a partir de outras
verdades construídas socialmente e acaba tendo duas principais consequências.

Em primeiro lugar, por ser algo que é construído de acordo com determinada cadeia
de pensamentos e valores de um meio social, o tabu se torna não algo “irracional”, mas sim que
se apoia em outras crenças e que possui, portanto, um embasamento. Um segundo ponto é que,
assim como o tabu em si, os rituais e ordens prático-simbólicas que o cercam também são
criados culturalmente e proporcionam experiências particulares para as pessoas presentes em
determinado meio social. A menstruação, por exemplo, é um processo natural apropriado pela
sociedade e cujos significados foram adquiridos e transformados ao longo do tempo e contexto.
Mais à frente neste estudo, analisa-se especificamente a questão da menstruação, mas em um
primeiro momento já se pode observar que:

1
It threatens specific dangers if the code is not respected. Some of the dangers which follow on taboo-breaking
spread harm indiscriminately on contact. Feared contagion extends the danger of a broken taboo to the whole
community.
16

[...]ela [a menstruação] geralmente envolve elementos constituintes das ideologias de


parentesco e da reprodução, dos modelos nativos sobre o corpo masculino e feminino
(ou corpos de gênero) e, assim, das relações recombinadas de uma sociedade ou época
para outra de maneira diversificada. Tal qual ocorre quando se move um
caleidoscópio, isso resulta em configurações sócio-culturais ou ordens prático-
simbólicas da menstruação bastante diferentes. E, na medida em que são interiorizadas
no processo de socialização e enculturação, pode-se afirmar que, embora “sangrar
todo mês” seja destino de toda e qualquer mulher, a experiência vivida da menstruação
será significativamente diferente para mulheres situadas em diferentes contextos
históricos, culturais, sociais. (SARDENBERG, 1994, p. 332).

É possível perceber como a construção de um tabu acontece e como ele está


interiorizado em cada cultura, mas é possível questionar a razão da sua existência. De acordo
com Douglas, o tabu existe e se manifesta para a manutenção de determinada estrutura social.
Ao envolver uma figura sagrada com determinadas restrições e proibições cujas transgressões
têm consequências diversas, cria-se um modo de manter afastados aqueles que não são
sagrados, da fonte de poder. “Parece que o tabu constitui um eficiente mecanismo de controle
social. Pois se o poder é perigoso, e não sou sacerdote, nem rei, nem iniciado, vou ter mais é
que ficar quieto no meu canto para não me arriscar” (AUGRAS, 1989, p. 45-46).

Por mais que nossa atual sociedade ocidental não possua um sistema sociopolítico que
envolve sacerdotes e figuras sagradas, ainda perpetuam as mesmas crenças. De acordo com a
autora, na maior parte das vezes, quem determina os tabus são os “líderes da sociedade”,
enquanto as pessoas em posições desprivilegiadas na hierarquia social e cujas transgressões
causariam a sua desordem são aquelas consideradas tabu. Tal consideração é frequentemente
baseada em alguma “poluição corporal”, ou seja, alguma característica física que as classifica
como impuras, e que serve de justificativa para a submissão dessas pessoas aos rituais de
purificação. “Por exemplo, tabus têm sido usados para reforçar hierarquias de gênero. Esses
tabus funcionam como argumentos sociais que obrigam as pessoas a aderirem às relações de
gênero definidas” (THOMAS, 2007, p. 67, tradução livre2).

O ritual se torna, portanto, o modo de resgate de uma ordem que o tabu ameaçou. Ao
mesmo tempo que ele purifica aquilo que é considerado sujo, ele reafirma a sua importância ao
periodicamente relembrar aos membros daquele meio social sobre os “perigos” do tabu. Por
mais que, como já vimos anteriormente, o tabu seja um símbolo cultural e, por isso, absorva
significados do ambiente em que está inserido, a prática de rituais de purificação, de acordo
com Thomas (2007), é universal. Isso ocorre porque os rituais são também, de acordo com

2
For example, taboos have been used to reinforce gender hierarchies. These taboos function as social arguments
compelling social adherence in regards to gender relations.
17

Burke (1969 apud THOMAS, 2007), um mecanismo para manter a unidade e identidade da
sociedade: através da demarcação de diferenças, ele cria uma experiência comum entre todos
os membros e constrói uma realidade social “É exigido dos membros de uma sociedade que
eles levem a sério seus rituais e tabus porque eles funcionam como argumentos e “verdades”
que constroem um modo cultural de conhecimento” (THOMAS, 2007, p. 67, tradução livre3).
A identidade construída através da demarcação de diferenças exige que existam bodes
expiatórios que, nesse caso, são as pessoas consideradas tabu a serem submetidas aos rituais.
De acordo com o autor, elas passam por um ciclo de culpa e redenção embasado na
característica física anteriormente mencionada, pois acreditam ser um perigo para todos. “A
culpa [é causada] pela consciência de ter cometido uma transgressão” (BARTKY, 1990, p. 87,
tradução livre4).

Ao considerar essa concepção de tabu e suas implicações, pode-se começar a


compreender a posição que a mulher tem ocupado ao longo da História. Existe a tradição de
associar as mulheres aos seus corpos, sistema reprodutivo e sexualidade –diferenças claras entre
os gêneros- e utilizar eles como argumento para a definição de limites, proibições e criação de
expectativas sobre as mulheres. “Através dos séculos, as mulheres foram determinadas como
não-cidadãs devido a sua exclusão da esfera pública pautada em sua sexualidade e sua
associação com o corpo5” (THOMAS, 1990, p. 72, tradução livre).

Na História do Brasil, sabe-se que logo no início, no século XVI, em um país tomado
por Portugal e pela Igreja Católica, a mulher era reconhecida apenas pela sua função reprodutiva
e sua sexualidade era ignorada como fonte de prazer. A mulher “[...]- a velha amiga da serpente
e do Diabo - era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma
dos homens” (DEL PRIORE, 2011, p. 20). Mesmo a descoberta do clitóris em 1559, que
demonstrou que a mulher possuía a própria fonte de prazer, foi utilizada para ratificar a
percepção já antiga de que o sexo feminino era fisicamente inferior ao masculino. O clitóris foi
classificado como um pênis de menor tamanho localizado dentro do corpo e com capacidade
limitada a curtas ejaculações, o que legitimou que “[...]a mulher não passava, no fundo, de um

3
Members of a society are required to take seriously that society’s rituals and taboos because they operate as
arguments and “truths” which constructo a culture’s way of knowing.
4
Guilty [is caused] by the consciousness that one has committed a transgression.
5
Throughout the centuries, women were constructed as non-citizens because of exclusion from the public sphere
premised on women’s sexuality and their association with the body.
18

homem a quem a falta de perfeição conservava os órgãos escondidos” (DEL PRIORE, 2011, p.
23). Seguindo o raciocínio, percebe-se, então, que “a vagina era considerada um pênis; o útero,
uma bolsa escrotal; os ovários, testículos, e assim por diante” (DEL PRIORE, 2011, p. 23).

Por muito tempo o corpo feminino foi inexplorado pela Medicina, demonstrando o
tabu construído em torno dele. Ao considerar a sociedade e algumas instâncias da sua vida
cultural como a Arte e a Literatura, percebe-se que a figura feminina sempre foi um elemento
de admiração e fascínio. Contudo, ao se deparar com as diferenças físicas desse corpo em
relação ao corpo masculino, inclusive suas capacidades reprodutivas, a Medicina mantém um
afastamento e percebe-se quase uma relação de temor: trata-se de algo fora de seu controle. Em
relação à incompatibilidade entre o estado social e natural da mulher, José Carlos Rodrigues
(1975) vai além e afirma que a mulher “[...]mais do que o homem, tem a potencialidade de
funcionar simbolicamente como perturbador dos sistemas sociais de classificações, uma vez
que é um ser a Cultura, ostensivamente submetido a processos naturais que escapam aos
esforços que o aparelho cultural depende para controlá-los.” (RODRIGUES, 1975 apud
SARDENBERG, 1994, p. 330).

Influenciados pela herança medieval, por exemplo, os médicos lusitanos acreditavam


que o útero era capaz de se movimentar por todo o corpo da mulher e que possuía personalidade
própria, inclusive um desejo extraordinário de procriar. “A entranha, mal descrita e mal
estudada - comparada às peras, ventosas e testículos -, acabava por reduzir a mulher à sua
bestialidade” (DEL PRIORE, 2011, p. 26). No século XIX, depois da descoberta dos ovários
no século anterior, passou-se a considerar o sistema reprodutivo feminino como algo divergente
do masculino. Contudo, destacou-se o potencial sexual da mulher que, considerado duas vezes
e meia maior do que o do homem e incoerente com o seu pudor expectável, deveria ser
controlado pela própria figura masculina. “Cabia ao marido, portanto, regular a “enervação” da
esposa, aplicando-lhes as doses homeopáticas do santo remédio da cópula” (DEL PRIORE,
2011, p. 67). Acreditava-se que caso o homem não cumprisse suas três maiores funções -
“combinar a reserva espermática, a fecundação vigorosa e evitar a volúpia da parceira” (DEL
PRIORE, 2011, p. 67) - o útero de sua esposa entraria em uma espécie de delírio e despertaria
forças que se mantém adormecidas em mulheres normais, mas se manifestam em ninfomaníacas
e histéricas. De acordo com a crença dos médicos europeus, portanto, as questões psicológicas
das mulheres tinham como origem o seu sistema reprodutivo e, ao mesmo tempo, dependiam
unicamente dos homens para serem regularizadas. O corpo feminino e suas capacidades
reprodutivas eram demonizados ao representarem um medo comum, cujos “perigos” deveriam
19

ser mantidos em controle através de rituais realizados por aqueles privilegiados na hierarquia
social: os homens.

Ao iniciar o estudo do tabu da menstruação, percebe-se que ele faz parte de um


espectro maior de tabus relacionados ao corpo feminino, dos quais não pode ser separado. As
práticas diárias de restrições sobre as mulheres vêm de todas as instituições sociais e resultam
em um código de conduta que se estende, inclusive, aos dias de seus períodos menstruais. A
análise desse processo se torna importante na solução do problema proposto neste estudo uma
vez percebido que a publicidade é um desses elementos presentes na nossa sociedade, que são
construtores e influenciadores de percepções. Como será visto mais a frente, em tempos atuais,
as pessoas são influenciadas pela abundância cotidiana de informações e diálogos, mas também
os influenciam, de modo que as mulheres passam a assumir uma responsabilidade na possível
ratificação dos tabus. Passa-se a considerar que a elevação da consciência proposta pelas
feministas ainda no século XIX ainda seja necessária, mesmo que em novos formatos ou
relacionada a outras questões.

O tabu como código de conduta direcionado a mulheres ainda existe como um


elemento de manutenção de uma estrutura social. A associação das mulheres com seus corpos
se mantém presente no atual contexto das sociedades ocidentais como um deslocamento de tudo
o que já foi conquistado. Hoje em dia elas podem optar por fazer parte do ambiente doméstico,
público ou os dois. Mesmo vivendo diante de uma diversidade de possibilidades, elas ainda não
são e nem se sentem livres. Existem questões ligadas aos seus corpos que ainda não são
abertamente discutidas por serem consideradas privadas e não do interesse de todos.

Neste capítulo foi possível compreender a atual concepção do tabu como elemento de
manutenção de uma ordem social. O tabu relacionado ao corpo feminino ratifica a opressão que
as mulheres sentem diariamente e contribui para a permanência de uma sociedade patriarcal.
No próximo capítulo, será entendendo como o tabu de manifesta na mulher, na sua relação com
seu corpo e, em último momento, na construção de sua identidade.

2.3 O FEMININO E A IDENTIDADE

Como foi visto anteriormente, a censura à sexualidade da mulher e a associação direta


dela com sua função reprodutiva tinha como consequência a concepção do papel doméstico
como sua única possibilidade. Hoje em dia a mulher se depara com outras possibilidades de
20

estilo de vida e isso pode ser atribuído à Segunda Onda do movimento feminista nas décadas
de 60 e 70 que enxergou que as questões femininas deveriam ser percebidas com caráter político
e que tal conquista seria alcançada com o afastamento da mulher do ambiente doméstico.

Os movimentos feministas surgiram a partir de uma percepção de relação assimétrica


entre os sexos e, por isso, demonstravam interesses emancipatórios, essenciais em seus
discursos. De acordo com Giddens (2002), a política emancipatória se trata da iniciativa de
eliminar a opressão, exploração e desigualdade entre um indivíduo ou grupo sobre o outro. De
acordo com o autor, primeiramente, ela funciona a partir da ruptura do passado permitindo que
haja transformações sociais legítimas, o que é, como será visto a seguir, uma característica dos
tempos pós-tradicionais. Em segundo lugar, ela tem como objetivo eliminar a dominação
ilegítima do indivíduo ou grupo. Percebe-se, portanto, que a emancipação do indivíduo se torna
legítima a partir do princípio da autonomia, ou seja, quando a vida coletiva passa a ser
“organizada de tal maneira que o indivíduo seja capaz – num ou noutro sentido – de ação livre
e independente nos ambientes de sua vida social” (GIDDENS, 2002, p. 196).

Nesse sentido, compreende-se como a questão da emancipação da mulher através do


afastamento do ambiente doméstico se tornou, posteriormente, uma questão de autoidentidade.
Foi percebido pelo movimento feminista que as mulheres, ao saírem de suas casas, encontravam
um ambiente que ainda as percebia como seres meramente domésticos cujos únicos objetivos
envolviam suas famílias.

[...]ao se libertarem do lar, e da vida doméstica, as mulheres enfrentavam um ambiente


social fechado. As identidades das mulheres eram definidas tão estritamente em
termos do lar e da família que “davam o passo” e entravam em ambientes sociais em
que as únicas identidades disponíveis eram aquelas oferecidas pelos estereótipos
masculinos. (GIDDENS, 2002, p. 199).

Nesse ambiente externo, ainda existe a concepção de feminilidade, construída a partir


da imagem da mulher que se dedica exclusivamente às atividades domésticas.

A feminilidade é um conceito que exige determinada postura, comportamento e


disciplina das mulheres, na maior parte das vezes sem nem mesmo que elas percebam, e que,
ao ser desrespeitado, as atinge com um sentimento de vergonha. Diferente da culpa, a vergonha,
de acordo com Deigh (1983 apud BARTKY, 1990), é um sentimento manifestado a partir do
reconhecimento de defeitos, ou seja, atributos com os quais nascemos. Existe a autopercepção
de ser alguém inadequado, em que a exposição de determinados traços compromete a
construção positiva da autoidentidade. Ao desrespeitar as normas da feminilidade, as mulheres
percebem isso como uma característica pessoal que lhes falta, o que influencia suas construções
21

identitárias. “A vergonha envolve a percepção angustiada de alguém como uma criatura


inferior” (BARTKY, 1990, p. 87, tradução livre6).

Não é mais exigido que as mulheres sejam castas ou modestas, ou que restrinjam as
suas atividades ao espaço da casa, ou até que percebem seu destino como mulheres na
maternidade. A feminilidade normativa está se concentrando cada vez mais no corpo
da mulher -não nos seus deveres e obrigações ou até em sua capacidade de gerar filhos,
mas sua sexualidade[...] (BARTKY, 1990, p. 80, tradução livre7).

De acordo com Grosz (1994 apud BARTKY, 1990), por ser definida a partir da
sexualidade, a feminilidade é identificada a partir do desenvolvimento dos quadris, seios e
início da menstruação e acompanha a mulher durante toda a sua vida. Trata-se de um conceito
holístico que determina a personalidade e comportamento das mulheres de modo a mantê-las
dentre determinados limites, sem que haja o característico perigo de transgressão daquilo que é
tabu. Bartky (1990) afirma que nascemos homem ou mulher, mas que o feminino é algo a ser
alcançado, conquistado, e que “é um jeito de decretar e reforçar as normas de gênero definidas
e que se manifesta de diversos modos nos corpos das mulheres” (BUTLER, 1985, apud
BARTKY, 1990, p. 65, tradução livre8). De acordo com a autora, existem três critérios e práticas
cotidianas que reconhecem o feminino assim como o construímos em nossa sociedade: 1. O
corpo deve ser de certo tamanho e ter determinada configuração; 2. O corpo tem uma função
ornamental; 3. Espera-se desse corpo determinados gestos, posturas e movimentos. A partir
desses critérios, a sociedade avalia diariamente os corpos femininos, como veremos adiante na
vida das mulheres, nas suas construções identitárias e em seus potenciais.

[...]as normas da feminilidade oprimem o potencial do corpo da mulher. Nós


crescemos aprendendo que o corpo feminino é macio, não muscular, passivo, incapaz,
vulnerável. Nossos pais, professores e amigos suprimem nossos impulsos naturais de
correr, pular, arriscar, com a crença de que não deveríamos agir de modo tão ousado
ou nos mexer tão perigosamente.... Desenvolver a percepção de que nossos corpos são
lindos objetos a serem contemplados e decorados exige que anulemos a percepção
deles como fortes, como elementos ativos que buscam conhecer os riscos do mundo e
confrontar as resistências da matéria e do movimento (YOUNG, 1979, apud
BARTKY, 1990, p. 35, tradução livre9).

6
Shame, then, involves the distressed apprehension of oneself as a lesser creature.
7
Women are no longer required to be chaste or modest, to restrict their sphere of activity to the home, or even to
realize their properly feminine destinity in maternity: Normative femininity is coming more and more to be centerd
on woman’s body-not its duties and obligations or even its capacity to bear children, but its sexuality[...]
8
a mode of enacting and reenacting received gender norms which surface as so many styles of the flesh.
9
the norms of femininity suppress the body potential of women. We grow up learning that the feminine body is
soft, not muscular, passive, incapable, vulnerable. Our parentes, teachers and friends suppress our natural urges to
run, jump, risk, by cries that we should not act so boldly and move so daringly... Developing a sense of our bodies
as beautiful objects to be gazed at and decorated requires suppressing a sense o four bodies as Strong, active
subjects moving out to meet the world’s risks and confront the resistances of matter and motion.
22

Isso é chamado de alienação sexual. Devido à moralidade, as mulheres se tornam seres


apartados de suas próprias sexualidades, não sendo capazes de alcançar a compreensão plena
de seus desejos sexuais ou de seu corpo como um todo: quando se comportam de acordo com
a disciplina da feminilidade, se afastam daquilo que seria sua postura genuína, coerente com
sua identidade. “A alienação sexual é apenas uma manifestação de uma alienação mais ampla
do corpo” (BARTKY, 1990, p. 35, tradução livre10).

Essa disciplina, contudo, é diferente daquela apontada por Foucault (1979 apud
BARTKY, 1990) em relação ao corpo: ela não possui instituições responsáveis por emitir as
exigências da feminilidade, trata-se de uma disciplina que vem de todos da sociedade, o tempo
todo “O poder que determina a disciplina da feminilidade no corpo feminino está em todo o
lugar, ao mesmo tempo que em nenhum lugar; os disciplinadores são todo mundo e ninguém
em particular” (BARTKY, 1990, p. 74, tradução livre11). Essa ausência de centro de emissão
exigências tem duas principais consequências que demonstram como a feminilidade é próprio
tabu como um código de conduta: 1. Ela faz com que a imposição da feminilidade pareça natural
e facilite o seu prevalecimento; 2. Todos se tornam disciplinadores, inclusive as mulheres; elas
criam o hábito policiarem seus próprios comportamentos e personalidades, de modo a se
tornarem suas próprias opressoras. “Tem sido induzido em muitas mulheres aquilo o que
Foucault disse: “o estado de visibilidade consciente e permanente que certifica o funcionamento
automático do poder” (BARTKY, 1990, p. 80, tradução livre12).

Quando a exigência da feminilidade concebe um padrão a ser ascendido, isso passa a


ter uma importância em relação à construção feminina de identidade. A mulher perfeitamente
feminina é um conceito idealizado e, portanto, impossível de ser alcançado, o que faz com que
as mulheres vivam com um constante sentimento de vergonha que, como visto anteriormente,
diz respeito à percepção de características que lhe faltam. Tal sentimento, como veremos no
próximo capítulo, é ainda aprofundado em situações como a menstruação e Tensão Pré-
Menstrual (TPM), que confrontam diretamente o conceito de feminilidade. Qualquer tipo de
transgressão tem como resposta a opressão psicológica, que obriga a mulher a ingressar no ciclo
de culpa e redenção. De acordo com Bartky (1990), a recente história de movimentos sociais,

10
Sexual alienation itself is only one manifestation of a larger alienation of the body.
11
The disciplinary power that inscribes femininity in the female body is everywhere and it is nowhere; the
disciplinarian is everyone and yet no one in particular.
12
There has been induced in many women, then, in Foucault’s words,, “a state of conscious and permanente
visibility that assures the automatic functioning of power
23

inclusive o movimento das mulheres, demonstrou que, em nossa sociedade, não existe apenas
a opressão econômica ou político, mas também a psicológica. E ser oprimido psicologicamente
é

[...]ser abatido em sua própria mente; é sentir um forte exercício de dominação sobre
a sua autoestima. Aqueles oprimidos psicologicamente se tornam seus próprios
opressores; eles passam a exercitar a dominação sobre suas próprias autoestimas. Em
outras palavras, a opressão psicológica pode ser considerada a internalização de
indicações de inferioridade. (BARTKY, 1990, p. 22, tradução livre13).

De acordo com Bartky (1990), assim como a opressão econômica, a opressão


psicológica é institucionalizada e sistemática fazendo com que o oprimido não reconheça
pontualmente a natureza da opressão, facilitando a manutenção e legitimidade do sistema
presente. A opressão psicológica sobre as mulheres, a partir das palavras de Fanon (1967 apud
BARTKY, 1990), pode ocorrer em três categorias distintas: 1. Dominação cultural; 2.
Objetificação sexual; 3. Estereotipização. A última se mostra fundamental para nosso estudo e
será destacada, uma vez que temos como objeto analisar como as narrativas publicitárias
produzem sentido na perspectiva sociocultural.

É importante ressaltar que tanto a fragmentação quanto a mistificação são fenômenos


comuns em todos os modos de opressão psicológica. O primeiro se trata da “quebra de uma
pessoa em partes” (BARTKY, 1990, p. 23, tradução livre14), de modo que ela fique mais
vulnerável à dominação; o segundo afirma que “tanto a existência quanto os agentes da opressão
psicológica não ficam claros e o efeito disso é o oprimido com a autoestima depreciada, vivendo
com um sentimento de culpa e neuroses” (BARTKY, 1990, p. 23, tradução livre15).

A dominação cultural afirma que a supremacia masculina está presente em nossa


Cultura, se apresentando em todos os aspectos da realidade social - como a linguagem, as artes
e o comportamento das pessoas – fazendo com que sua percepção e possível contestação seja
dificultada. A submissão feminina como única possibilidade legítima passa a ser o
embasamento para a construção do tabu em torno do corpo feminino, como já mencionado
antes. Já a objetificação sexual ocorre quando a figura feminina é reduzida ás suas partes e/ou

13
is to be weighed down in your mind; it is to have a harsh dominion exercised over your self-esteem. The
psychologically oppressed become their own oppressors; they come to exercise harsh dominion over their own
self-esteem. Differently put, psychological oppression can be regarded as the “internalization of intimations of
inferiority.
14
the splitting of the whole person into parts.
15
the systematic obscuring of both the reality and agencies of psychological oppression so that its intended effect,
the depreciated self, is lived out as destinity, guilt, or neuroses.
24

funções sexuais em situações em que não há esse consentimento, como em uma entrevista de
emprego ou em sala de aula. “A identificação de uma pessoa com a sua sexualidade se torna
opressiva quando tal identificação é transbordada a todas as instâncias de sua vida” (BARTKY,
1990, p. 26, tradução livre16).

A estereotipização, de acordo com Bartky (1990), é opressiva pois compromete a


relação dos estereotipados com a sociedade e suas autopercepções. Em primeiro lugar, quando
existe estereótipos, existe as pessoas que apoiam neles. Com isso, as individualidades e reais
necessidades dos oprimidos ficam em segundo plano, fazendo com que o desrespeito prevaleça.
Em segundo lugar, as individualidades dos estereotipados também ficam ofuscadas para eles
mesmos. A estereotipização faz com que eles se percebam a partir da figura socialmente criada
e não de suas identidades. Por isso, a criação do estereótipo feminino ameaça a autonomia das
mulheres e dificulta a construção de suas identidades de modo genuíno. “Já é difícil o suficiente
determinar o tipo de pessoa que eu sou ou desejo ser sem que eu seja bloqueado por um “eu
alternativo”, um “eu inferior” que tem, de algum modo, me dominado o tempo todo”
(BARTKY, 1990, p. 24, tradução livre17).

A fragmentação nesse caso ocorre, portanto, criando uma relação conflitante entre o
“eu real” e o “eu construído a partir da feminilidade”: a mulher não se reconhece plenamente
nas suas decisões, postura e comportamento em geral. A questão da estereotipização se mostra
relevante quando se observa, mais a frente no mapeamento realizado neste estudo, que ela é
uma ferramenta do retrato da mulher menstruada na comunicação de absorventes, e deixa em
segundo plano as reais sentimentos e necessidades femininos durante seus períodos menstruais.

Pode-se perceber que a opressão psicológica exerce um papel sobre a construção da


identidade da mulher por influenciar a sua personalidade. Ela é desumanizadora e
despersonalizante por se tratar de uma alienação psicológica, “um estranhamento ou separação
de uma pessoa de seus atributos essenciais de personalidade” (BARTKY, 1990, p. 29, tradução
livre18).

16
The identification of a person with her sexuality becomes oppressive, one might venture, when such an
identification becomes habitually extended into every área of her experience.
17
: It is hard enough for me to determine what sorf of person I am or ought to try to become without being shadowed
by na alternate self, a truncated and inferior self that I have, in some sense, been doomed to be all the time.
18
The estrangement or separating of a person from some of the essential attributes of personhood.
25

A autonomia, por exemplo, é amplamente considerada como atributo de distinção


entre pessoas e não-pessoas; mas alguns estereótipos femininos, como nós vimos,
ameaçam a autonomia das mulheres. As pessoas oprimidas podem ou não estar em
posição de exercer sua autonomia, mas aqueles oprimidos psicologicamente passam
a acreditar que eles não possuem a capacidade de serem autônomos,
independentemente de suas posições (BARTKY, 1990, p. 30, tradução livre19).

A partir de Giddens (2002) pode-se compreender como a construção do tabu em


relação ao corpo feminino e os seus desdobramentos podem influenciar a construção de
identidade das mulheres, mas também sua complexidade oferecendo ao indivíduo uma
possibilidade de mutação.

Através do que chama a modernidade tardia, o autor indica que os princípios dinâmicos
da modernidade se encontram na realidade atual. A constituição do indivíduo ocorre a partir de
um número complexo e infinito de discursos que se cruzam, complementam ou se anulam,
concebendo um mundo de diversidade de escolhas e muitas possibilidades de novos diálogos a
serem formados. As instituições presentes na sociedade se entrelaçam na vida de cada
indivíduo, que também as influencia, de modo a criar uma relação bilateral.

O eu não é uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao forjar sua
auto-identidade, independente de quão locais sejam os contextos específicos da ação,
os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) a influências sociais que
são globais em suas consequências e implicações (GIDDENS, 2002, p. 9).

Essa concepção de um novo modo de construção do eu a partir do indivíduo e das


instituições se mostra relevante para este estudo ao considerarmos a publicidade como parte
delas. Ao ser responsável por iniciar diálogos que não apenas atingem os consumidores, mas
interferem em suas construções identitárias, a publicidade deixa de ter um acesso limitado ao
meio social e passa exercer uma força na vida de cada indivíduo. A oferta de produtos através
de construções discursivas que ratificam os tabus relacionados ao corpo feminino influencia a
vida de cada mulher presente no ambiente social e contribui para a construção de uma esfera
pública opressora que lhes priva de certas liberdades.

De acordo com o autor, alguns fatores são essenciais para que a vida individual se
torne internamente reflexiva, ou seja, seja separada de outros eventos e se torne uma construção
distinta e fechada. Dois desses fatores serão destacados aqui devido à sua relevância para nosso

19
The possession of autonomy,for example, is widely thought to distinguish persons from nonpersons; but some
female stereotypes, as we have seen, threaten the autonomy of women. Opressed people might or might not be in
a position to exercise their autonomy, but the psychologically oppressed may come to believe that they lack the
capacity to be autonomous whatever their position.
26

objeto e compreensão do problema.

Em primeiro lugar, existe um rompimento, ainda que parcial, da tradição como


elemento da vida do indivíduo. Nessa perspectiva, a tradição não se trata de algo que é apenas
passado de geração em geração através do hábito, mas algo que possui um caráter normativo e
que implica um componente moral. “O centro normativo da tradição é a força inercial que
mantém a sociedade numa forma dada ao longo do tempo” (SHILS, 1981 apud GIDDENS,
2002, p. 136). Ao ditar como as coisas devem ou não ser feitas de acordo com a moralidade
vigente, a tradição impede que novos formatos sejam testados, entrando em conflito com a
dinâmica característica da modernidade. O eu, portanto, precisa se desligar desse processo para
se tornar “autossuficiente” e tomar controle da sua construção de vida e de identidade. Na
modernidade tardia, promove-se a autonomia pessoal parcial mas retira-se a sensação de
firmeza da tradição. Cada indivíduo realiza sua síntese de identidade pessoal e desenvolve suas
reflexões com escolhas contínuas, sempre abertas à revisões e questionamentos, uma vez que a
tradição foi parcialmente interrompida.

Em segundo lugar, existe a redução dos ritos na vida dos indivíduos: “a vida passa a
ser estruturada em torno de limiares abertos de experiência” (GIDDENS, 2002, p. 138) e as
passagens ritualizadas nas principais transições como o nascimento, o casamento e a puberdade
-oriundas da tradição- se tornam cada vez mais ausentes na cultura ocidental. Isso faz com que
essas experiências se tornem mais autônomas e o indivíduo, sem o apoio que possuía
anteriormente, crie ansiedades em relação a elas.

Desprendido da tradição e das passagens ritualizadas, o indivíduo assume um papel


mais ativo e passa a ter uma vida internamente reflexiva, mas também é atingido por
consequências desse processo. Giddens (2002) afirma que esse maior controle que o eu passa a
ter sobre o contexto em que está inserido, oriundo do afastamento da moralidade, faz com que
o sentimento de vergonha obtenha um papel maior na sua vida e construção de identidade. “A
vergonha corrói diretamente a sensação de segurança tanto no eu como nos meios sociais
circundantes. Quanto mais internamente referida torna-se a autoidentidade, tanto mais a
vergonha passa a desempenhar um papel fundamental na personalidade adulta” (GIDDENS,
2002, p. 143).

O corpus dessa monografia investiga se tal identidade recebe algum tipo de influência
através das narrativas publicitárias de absorventes higiênicos. Ao analisarmos Giddens (2002),
compreendemos que o processo dessa identidade feminina, através das manifestações de tabus
27

presentes na modernidade tardia, se articula de forma subjetiva pois ela constitui a natureza do
emissor -nesse caso as marcas de absorventes- e receptor, o sujeito que recebe as narrativas
publicitárias. É necessário, portanto, discorrer sobre a constituição de subjetividade, uma vez
que no capítulo terceiro, utiliza-se a Análise do Discurso para responder ao problema da
monografia.

Como foi visto anteriormente, os movimentos feministas foram essenciais para a


possibilidade de deslocamento da mulher para outros papéis na sociedade. Tal movimento
serviu como ferramenta para demonstrar que o corpo feminino –o pessoal- era, de fato, político,
e que questões relacionadas a sexualidade e reprodução deveriam ser discutidas em esfera
pública. Além disso, há mais de um século existe um reconhecimento de que o afastamento da
tradição da vida individual da mulher é um dos elementos essenciais para a desvinculação da
figura feminina de seu corpo e dos aspectos morais que ditam o seu comportamento.

De acordo com Giddens (2002), esses movimentos são a inauguração da política-vida:


dentro de um contexto de uma ordem reflexivamente mobilizada, eles deram condições às
mulheres para que elas tivessem o poder de escolha de seus estilos de vida. Por um lado, existem
as questões políticas que fluem a partir de uma autorrealização das mulheres, pois ela foi
conquistada, parcialmente. Do outro lado, as manifestações feministas emancipatórias ainda
existem porque outras questões consideradas pessoais ainda não alcançaram a esfera pública,
de modo a prejudicar as subjetividades das mulheres.

A apropriação reflexiva dos processos e do desenvolvimento corporais, portanto, é um


elemento fundamental dos debates e lutas da política-vida, inclusive dos movimentos das
mulheres.

O corpo, como eu, torna-se o lugar da interação, apropriação e reapropriação, ligando


processos reflexivamente organizados ao conhecimento especializado
sistematicamente ordenado. O próprio corpo foi emancipado – condição para sua
reestruturação reflexiva. Alguma vez pensado como lugar da alma, e depois o centro
de obscuras necessidades perversas, o corpo está agora plenamente disponível para
ser “trabalhado” pelas influências da alta modernidade (GIDDENS, 2002, p. 200).

Percebe-se, portanto que se, em um contexto de modernidade tardia, as mulheres se


deparam com uma variedade de possibilidades de estilo de vida, mas ainda vivem com a falta
de liberdade relacionada com seu corpo, elemento essencial identitário. A parcial emancipação
das mulheres permitiu que elas passassem a obter o poder da escolha, mas, por outro lado, a
vinculação com um passado em que a moralidade ditava suas restrições prevalece. Os valores
morais, embasados pela tradição e rituais femininos, são os elementos de manutenção do tabu
28

em relação ao corpo feminino e na vigência da noção de feminilidade em nossa sociedade. O


comportamento da sociedade em geral em relação à mulher e à sua conduta é oriundo do caráter
normativo da tradição apontado por Giddens (2002), de modo que a moralidade prevaleça e
impeça a dinâmica de controle.

De acordo com Giddens (2002), no início dos movimentos feministas no século XIX,
já existia a percepção de que a emancipação propriamente dita não era o suficiente.

Seriam necessárias amplas mudanças, mas ao mesmo tempo essa voz ajudaria a
provocar essas mudanças. Quando as mulheres eventualmente chegassem a setores da
sociedade dominados pelos homens numa base de igualdade com eles, levariam com
elas valores e atitudes que reformulariam profundamente esses domínios masculinos
(GIDDENS, 2002, p. 210).

As mulheres e seus corpos ainda são alvo de violência devido as noções de moralidade
vigentes na sociedade, o que faz com que elas vivam em angústia e sejam privadas de suas
liberdades. Suas sexualidades e sistemas reprodutivos ainda estão aquém da perspectiva e
validação do olhar masculino e, por isso, prevalece a necessidade da remoralização da vida
social: o corpo da mulher precisa ser compreendido por todos e o coletivo precisa ser construído
garantindo a sua liberdade.

Por isso, a eleição deste corpus foi conduzida pela ideia de que, ao considerar uma
peça publicitária como produto de uma instituição construtora de ideias e percepções, parte-se
de uma complexa produção que resulta na entrega de um produto ou serviço carregado com
uma mensagem. Ela envolve o estudo do produto, de seu posicionamento no mercado (com
relação aos concorrentes e ao público alvo) e das promessas que pode fazer a tal público, assim
como o estudo dos meios de comunicação, selecionando o veículo da mensagem
cuidadosamente ajustada e adequada quanto ao que se identifica como o público alvo.

Devido a esse papel que as empresas assumiram na construção da identidade dos


indivíduos, faremos uma análise realizada posteriormente sobre as narrativas publicitárias de
marcas de absorvente. Seus discursos passam a ter uma influência na construção da identidade
e dos próprios discursos das mulheres, que refletem de volta para a sociedade? Se sim, o reflexo
do tabu da menstruação em seus discursos poderá se mostrar como um dos elementos que
permitem que esse silenciamento e ocultação do período menstrual permaneça normatizado.
29

2.4 CONSIDERAÇÕES

Ao considerar que de um lado do processo de comunicação está o sujeito constituído


de subjetividade e do outro, as marcas de absorventes cujas narrativas e linguagens possuem
uma ideologia, a Academia assume um papel de análise dessas mediações e construções de
sentido.

Dessa forma, procura-se responder o problema deste estudo identificando se essas


narrativas reforçam as condições sob as quais as mulheres estão submetidas. Com esse objetivo,
será apresentado posteriormente um mapeamento histórico de narrativas publicitárias de
absorventes higiênicos para um recorte temporal necessário entre 1973 e 2016. Tal recorte será
realizado para que seja possível compreender se houve transformações nos discursos das
narrativas publicitárias de marcas de absorventes em épocas relevantes para a História da
Mulher considerando as Ondas do feminismo.

No entanto, primeiramente, é preciso entender como o tabu da menstruação se


manifesta nas mulheres a partir do tabu de seu próprio corpo. No próximo capítulo vamos
analisar o tabu da menstruação e seu simbolismo no corpo e identidade feminina.
30

3 O TABU DA MENSTRUAÇÃO

3.1 INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

No capítulo interior foi possível perceber as exigências da feminilidade e a opressão


são elementos que se interligam e têm como resultado o tabu em relação ao corpo feminino.
Nesse capítulo compreende-se como essas questões se manifestam na menstruação, um
processo natural sobre o qual significados culturais foram construídos.

3.2 A MENSTRUAÇÃO COMO OPRESSÃO?

A mulher, ao mesmo tempo que é um elemento que tem causado fascínio ao longo da
História, também é um ser da Cultura frequentemente submetido a processos fisiológicos que a
aproximam da Natureza e trazem o poder da contradição.

Mulher é bicho porque sangra, seu corpo é seu brasão, não deixa ninguém esquecer
que somos todos animais, mas ela é bicho estranho, por ser seu corpo reinterpretado
pela cultura. A menstruação, com todos os rituais que a acompanham, torna manifesta
a dupla natureza da mulher, como ser cultural e animal ao mesmo tempo. É nessa
duplicidade que reside sua força, pois todos os seres situados na interseção de ordens
opostas gozam dos poderes da ambiguidade. (SARDENBERG, 1994, p. 40).

Se a ambiguidade da mulher é manifestada na menstruação, o sangue menstrual é a


sua materialização. Em primeiro lugar, ele reserva o mistério de como as mulheres são capazes
de sangrar e não morrer. Em segundo lugar, de acordo com Sardenberg (1994), por trazer à tona
as capacidades do corpo feminino, existe uma percepção sobre o sangue menstrual de que se
trata de um tipo diferente daquele que corre nas veias. “Não são poucas as sociedades nas quais
o mênstruo é tido como agente poluidor, datado de impurezas, [...] uma atitude que também se
estende à mulher menstruada” (SARDENBERG, 1994, p. 321). Por causa dessas percepções, o
sangue menstrual se torna a poluição corporal que causadora de vergonha para as mulheres, que
embasa os rituais pelos quais elas são submetidas quando menstruadas.

No Brasil, existe uma diversidade de rituais que ocorrem quando a mulher está
menstruada, que variam bastante. Em Alagoas, por exemplo, há uma restrição alimentar que
impede a mulher de comer determinadas frutas. Em outras regiões brasileiras, existe a crença
de que as mulheres não podem cozinhar e nem realizar determinadas atividades na cozinha
31

porque se tornam temporariamente incapazes de não atingirem o ponto desejado de preparação.


Como pode ser percebido no mapa abaixo, criado pela Femme International, existe tradições
culturais pelo mundo todo que também resultam no afastamento dela de suas atividades
cotidianas e/ou na sua exclusão temporária do meio social (figura 1).

Figura 1 – Mapa “O Tabu da Menstruação Mundial”

Fonte: Femme International.20


Legenda: Na Venezuela rural, mulheres menstruadas são forçadas a dormir em
cabanas especiais durante o período;
Na tradição islâmica, mulheres menstruadas não têm a permissão de rezar, tocar o
Alcorão, nem participar de tradições de jejum.
Na Índia, uma mulher menstruada não pode tocar em vacas.
Em áreas remotas do Nepal, uma mulher não tem a permissão de interagir com
ninguém durante sua menstruação; ela é banida para uma cabana especial de argila
na região selvagem até o fim do período;
Em muitas comunidades no Sul da Ásia, meninas menstruadas não podem usar as
mesmas instalações de água que o resto da comunidade, devido ao medo de
contaminação.
Na Quênia, mulheres na região semi-nômade de Masal não têm a permissão de
entrar em apriscos ou ordenhar vacas enquanto estão menstruadas, devido ao medo
de contaminação do animal. Elas também não podem consumir produtos de origem
animal.

A figura acima demonstra como é uma realidade global o hábito de exclusão da mulher
menstruada de suas atividades cotidianas. Em cada sociedade existe um modo de vida
socialmente construído, constituído de todos os seus elementos: as pessoas, o modo de
alimentação, a religião e seus rituais. Ao fazer parte dessa realidade social, eles adquirem um
caráter normativo e distanciam da possibilidade de contestação. Por isso, a publicidade, aliada

20
Disponível em: <https://www.femmeinternational.org/our-work/the-issue/>. Acesso: em jun. 2017.
32

a esses tabus culturalmente construídos, assume um papel de ratificação e intensificação dessa


identidade. Diálogos construídos a partir de uma tradição opressora contribuem para a sua
fortificação e internalização na vida de cada indivíduo.

A realidade social abrange uma sociedade, mas os significados dela oriundos criam
experiências particulares, afetando cada indivíduo ali presente. “O ciclo menstrual não é apenas
um aspecto central da vida das mulheres, mas ele também oferece um modelo para quem quer
entender as relações entre mente e corpo, e entre significados sociais e experiência individual”
(DAN, 2004 apud BOBEL, 2010, loc. 838, tradução livre21). Quando a menstruação se torna
argumento de opressão e exclusão da mulher da esfera pública, isso influencia tanto a sua
percepção sobre esse processo natural, como se vê no próximo capítulo, quanto a exploração
de seu potencial e a construção de sua identidade.

Em muitas sociedades, portanto, menstruar significa exclusão e isso, certamente, tem


consequências no que tange à maneira de as mulheres vivenciarem a menstruação.
Não é à toa que o sentimento de vergonha ou de estranhamento por parte das mulheres
em relação à menstruação, ou mesmo ao seu corpo como um tempo, é amplamente
difundido, o que se reflete também na construção da identidade e subjetividade
femininas (SARDENBERG, 1994, p. 336).

É um engano considerar, contudo, que os rituais possuem sempre um aspecto místico.


Considerando a cultura ocidental, criou-se uma noção de que a mulher não deve entrar em
contato direto com seu sangue ou até deixar a mostra que está menstruada, o que concebeu o
hábito do uso de absorventes. Ao correlacionarmos a época em que os absorventes higiênicos
são introduzidos no mercado ocidental no final do século XIX e sua crescente adoção nos
últimos 127 anos, a perda dos rituais são substituídos pela forma pedagógica de como uma
mulher deve ser e se comportar ao usar o produto.

As narrativas publicitárias, que serão analisadas no último capítulo, demonstram essa


função objetiva e racional de uso mas que sublimam o sangue menstrual vermelho a cor azul.

As mulheres atualmente seguem um código de conduta de encobrimento e limpeza da


menstruação, uma espécie de etiqueta da menstruação que dita como elas “devem se comportar
em público como se elas não menstruassem, negando suas mudanças hormonais mensais[...]”
(BOBEL, 2010, loc. 880, tradução livre22). Trata-se não apenas do uso de absorventes, mas sim
do absorvente certo para que o sangue não vaze e manche a calça; trata-se de ir ao banheiro e

The menstrual cycle not only is a central aspect of women’s lives, but it also offers a model to researches who
21

want to understand relationships between mind and body, and between social meanings and individual experience.
22
should behave in public settings as if they did not menstruate, denying the monthly hormonal changes[...].
33

levar o absorvente escondido. A estereotipização da mulher menstruada abrange dois perfis -


aquela que se sente leve e livre usando uma roupa toda branca ou aquela incapaz de realizar
suas atividades cotidianas-, impossibilitando que as mulheres se enxerguem em qualquer lugar
entre esses dois extremos. Trata-se, inclusive, de um tabu comunicacional, em que as mulheres
não podem comentar abertamente sobre suas menstruações e todas as informações a serem
trocadas devem ser realizadas entre sussurros e/ou dentro de banheiros.

Isso é um reflexo do que foi mostrado neste estudo. A cultura ocidental concebeu uma
sociedade androcêntrica em que os homens têm tido tanto a liberdade de dizer como as mulheres
devem se relacionar com seus corpos, quanto a se falar o que quiserem sobre eles. Foi criado
um sistema de etiqueta que diz “quem deve falar o que para quem e em qual contexto. É negado
às mulheres o direito a qualquer comportamento que leve a atenção à menstruação, enquanto
homens têm mais liberdade de falar sobre ela se quiserem. Assim, a etiqueta expressa e reforça
a distinção de status” (LAWS, 1990 apud BOBEL, 2010, loc. 874-880, tradução livre23). Criar
essas imposições sobre as mulheres e suas menstruações as oprime e reforça o sentimento de
culpa, tendo uma influência no que diz respeito ao conhecimento de seus corpos e a construção
de suas subjetividades e identidades.

É preciso observar que tal comportamento já advém das mulheres de modo


espontâneo, o que demonstra que tal opressão já foi internalizada e que, portanto, passou a fazer
parte de suas estruturas identitárias, suas percepções e autopercepções. “Quando as mulheres
ignoraram seus processos corporais ou, pior, os reconhecem como meros problemas cujas
soluções estão disponíveis apenas através do consumo, a opressão internalizada se manifesta”
(BOBEL, 2010, loc. 812, tradução livre24). O que não quer dizer que se trata de um processo
concluído. O eu na modernidade tardia, como já foi visto anteriormente, assume uma postura
mais ativa na construção de sua identidade, a partir de uma infinidade de discursos com os quais
ele entra em contato diariamente. A elevação de consciência em relação a essa opressão é capaz
de fazer com que as mulheres assumam outras reflexões e tomem decisões diferentes ao pensar
ou falar sobre suas menstruações. Como consumidoras, inclusive, são capazes de causar
mudanças no atual retrato do período menstrual construído pelas narrativas publicitárias.

23
who may say what to whom, and in what context. Women are discredited ny any behavior which draws attention
to menstruation, while men maymore freely refer to it if they choose to. Thus the etiquette expresses and reinforces
status distinctions.
24
When women ignore their bodily processes or worse, recognize them merely as problems whose solutions are
available only through consumerism, internalized oppression takes over.
34

Um dos motivos da existência da opressão internalizada é a imposição precoce de


determinado comportamento quando se trata da menstruação. De acordo com Bobel (2010),
quando uma menina tem a sua primeira menstruação, frequentemente a reação daqueles a sua
volta não é uma reação afetiva, mas sim uma reação direcionada ao consumo, o que demonstra
um íntimo entrelaçamento entre a construção de vida e a publicidade, que transforma o
comportamento das pessoas de reação à menarca. Trata-se do momento em que a menina
precisa aprender a usar os tipos de absorvente, o que é uma das primeiras lições que fazem a
mulher se afastar do seu corpo e compreender que ele faz coisas sobre as quais as pessoas não
querem e nem devem falar. “Ironicamente, na maioria das vezes, é a mulher mais velha que
impõe tais restrições às garotas mais jovens, em uma família. Afinal, elas cresceram aceitando
tais restrições como normas. E na ausência de qualquer intervenção, é o mito e falso juízo que
se perpetuam de geração em geração” (GUPTA, 2015, min. 03:30 - 03:48, tradução livre25).

Como vimos no capítulo 2, a opressão direcionada às mulheres e seus corpos tem uma
influência na construção de suas identidades e subjetividades, o que não é diferente quando se
trata da menstruação. O que é dito sobre a menstruação para as mulheres desde a menarca, as
exigências que nascem nesse momento e o silenciamento sobre essas questões são práticas
disciplinadoras que constroem suas percepções sobre esse processo natural e o modo como elas
lidam com ele.

O objetivo deste estudo, portanto, é compreender se a comunicação tem contribuído


para esse processo. Caso positivo, busca-se entender o motivo de tal silenciamento e se existe
a possibilidade de quebra desse ciclo de opressão através das narrativas publicitárias, que
podem assumir, através de seus discursos e simbolismos, um papel informativo e educativo
positivo na construção de novos sentidos.

No próximo capítulo, portanto, analisa-se o discurso das mulheres sobre a menstruação


e como suas identidades podem ser influenciadas pelas narrativas publicitárias.

25
Ironically, most of the time, it is the older woman who imposes such restrictions on younger girls, in a family.
After all, they have grown up accepting such restrictions as norms. And in the absence of any intervention, it is
the myth and misconception that propagate from generation to generation.
35

3.3 A MENSTRUAÇÃO E A IDENTIDADE

Como foi visto no capítulo anterior, a identidade e a subjetividade das mulheres são
influenciadas pelas percepções construídas sobre seus corpos. Nesse capítulo, busca-se estender
essa compreensão à menstruação para mais à frente no estudo entender o papel das narrativas
publicitárias.

Para compreender como a identidade das mulheres é influenciada pela internalização


do tabu da menstruação é preciso primeiramente entender como elas se relacionam com esse
processo biológico. De acordo com Martin (2006), as mulheres atrelam sentimentos negativos
à menstruação e em seus discursos são quatro os principais pontos mencionados:

1. Para elas, a menstruação não se trata de algo produzido pelos seus corpos, mas sim
algo que “acontece”, que elas devem “aguentar”; 2. O sangue do mênstruo é algo nojento e
sujo, com o qual se deve evitar o contato direto; 3. Os períodos pré-menstruais e menstruais são
momentos em que elas são atingidas por um sentimento de raiva; 4. A menstruação é um
processo que faz parte do “ser mulher”.

Tanto o primeiro ponto quanto o segundo podem ser analisados a partir do que já foi
considerado anteriormente sobre o tabu neste estudo. Como já foi visto em Giddens (2002), a
construção do eu em tempos pós-tradicionais acontece também a partir da infinidade de
diálogos com os quais ele entra em contato. No caso das mulheres, a elas é ensinada –por
instituições de ensino, pela família e publicidade -desde o momento da menarca uma rotina de
higiene, ocultação e afastamento de suas menstruações. Esses rituais as lembram
periodicamente da sujeira e impureza de seus corpos e constroem uma relação de distância entre
as mulheres e suas menstruações. Tal processo tem como resultado essa separação entre a
mulher e seu corpo e a percepção de que se trata de algo que “acontece” a elas, e não algo que
elas produzem.

Além disso, existe um estereótipo que foi construído da mulher menstruada. Acredita-
se que nesses períodos do mês as mulheres assumem seus piores humores e sentimentos,
tornando-se figuras que entram em conflito direto com as expectativas de feminilidade. Trata-
se do momento que as mulheres se tornam seres que reclamam e se irritam facilmente,
características que a mulher feminina, pudica e atenciosa não possui.

Como analisamos anteriormente, quando há a estereotipização, o oprimido internaliza


essa construção e não vê, em um primeiro momento, motivos para duvidar que aquele retrato
36

defina sua figura. Os problemas relacionados a esse processo se dão na banalização não apenas
da menstruação, mas também das mulheres menstruadas e seus sentimentos: se a mulher tem
sentimentos negativos em determinada situação e é assumido que eles são resultado de sua
menstruação, tais sentimentos passam a ser invalidados.

Através dos diálogos construtores do eu, portanto, a menstruação ainda é retratada


como um momento que deixa as mulheres em desvantagem; em que elas ficam emocionais,
irracionais e em última instância, incapazes de exercer suas atividades cotidianas, sejam elas
domésticas, de lazer ou de trabalho. Em primeiro lugar, a menstruação se torna um momento
em que a mulher tem a permissão de assumir sentimentos negativos. Constantemente exposta a
uma vigilância da feminilidade que é descentralizada, os períodos menstruais podem ser
percebidos como a fuga temporária dessas exigências. Por outro lado, a raiva característica do
estereótipo da mulher menstruada é internalizada pela mulher e faz com que ela relacione esse
sentimento ao seu corpo e à sua menstruação. Passa a persistir um sentimento de fragmentação
e não reconhecimento do eu, atingindo o âmbito de sua identidade.

Não há dúvida de que a raiva delas é extraordinária. De fato, muitas mulheres


descrevem a si mesmas durante a pré-menstruação como estando “possuídas”. A auto-
imagem que a pessoa tem como mulher (e, por detrás disso, a construção cultural do
que é ser mulher) simplesmente não permite que a mulher se reconheça na “criatura”
raivosa, barulhenta e, às vezes, violenta em que se transforma uma vez por mês
(MARTIN, 2006, p. 209).

O ciclo menstrual, portanto, tem sido usado como elemento para a submissão das
mulheres em uma sociedade patriarcal através de uma opressão internalizada. O corpo da
mulher passa a ser percebido como a fonte de raiva que ela sente durante a menstruação, que
ratifica a culpa que ela sente durante os períodos menstruais. “A raiva vivenciada dessa forma
(como resultante exclusivamente da maldade intrínseca da mulher) só pode levar à culpa. E
parece possível que a origem dessa raiva difusa possa muito bem ser a percepção das mulheres,
por mais inarticulada que seja, da opressão que sofrem na sociedade” (MARTIN, 2006, p. 212).

De acordo com Sardenberg (1994), a discussão da menstruação era feita de modo


íntimo entre sussurros ou apenas dentro dos consultórios médicos, contudo, hoje em dia, o tema
está em processo de extrapolação desses limites rumo ao espaço público, o que pode ser
atribuído tanto à publicidade de absorventes, quanto ao crescimento do debate sobre os direitos
reprodutivos das mulheres.

Por isso, ao considerar os diálogos da menstruação presente na modernidade tardia,


período definido por Giddens (2002), deve-se considerar neste estudo que também existe um
37

tabu comunicacional em dois principais âmbitos. Por um lado, quando a menstruação se torna
assunto entre as próprias mulheres, o conteúdo de tais conversas, aponta Sardenberg (1994),
costuma ser os incômodos e dificuldades que esse processo traz para elas. Ao mesmo tempo,
ouve-se as mulheres que atingiram a menopausa falarem sobre a liberdade de terem se livrado
de tal fardo.

Considerando Giddens (2002) e os discursos das próprias mulheres e instituições


sociais em geral, percebe-se que existe uma responsabilidade de ambos os lados em garantir a
permanência dos tabus nos diálogos em geral.

Por isso, A Terceira Onda do feminismo considerada por Bobel (2010), iniciada em
meados dos anos dois mil, se mostra elemento essencial para este estudo. Trata-se, assim como
nos outros momentos do movimento, de uma política vida com reivindicações emancipatórias:
existe a consciência da necessidade de uma vida coletiva organizada de uma maneira que
permita a ação livre das mulheres em suas vidas sociais, inclusive nos momentos que dizem
respeito a sua menstruação.

Eu não conheço nenhuma mulher – virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária – que
ganha a vida como dona de casa, garçonete, ou com escaneamento de ondas cerebrais
– para quem o seu corpo não é um problema fundamental: seu significado inexato, sua
fertilidade, seu desejo, sua chamada “frigidez”, seu discurso de sangue, seu silêncio,
suas mudanças e mutilações, seus estupros e amadurecimentos. Existe hoje, pela
primeira vez, a possibilidade de converter nossa fisicalidade em conhecimento e poder
(RICH, 1977 apud BOBEL, 2010, loc. 821-826, tradução livre26).

Atualmente o cenário do feminismo possui uma característica inédita: a alta


diversidade de vertentes. Com o surgimento do ciberespaço e a possibilidade de cada vez mais
diálogos e mais específicos, diversas ramificações surgiram de um grande movimento que
busca a emancipação da mulher. Questões que tratam da opressão em geral vivenciada pela
mulher - a violência, o estupro e a falta de liberdade no dia-a-dia – são tratadas por todas as
vertentes por dizerem a respeito de todas as mulheres. Contudo, elevou-se a consciência de que
questões de gênero, raça e até religião influenciam nas experiências das mulheres e fazem com
que cada grupo precise ter a sua voz. A Terceira Onda do feminismo, portanto, busca incluir
todos os tipos de feminismo dentro de uma grande luta que abrange não apenas todos os tipos

26
I know no woman-virgin, mother, lesbian, married, celibate-wheter she earns her keep as a housewife, a cocktail
waitress, or a scanner of brain waves- for whom her body is not a fundamental problem: its clouded meaning, its
fertility, its desire, its so-called frigidity, its bloody speech, its silences, its changes and mutilations, its rapes and
ripenings. There is for the first time today a possibility of converting our physicality into both knowledge and
power.
38

de mulheres, mas também todas as possibilidades de experiências.

De acordo com Bobel (2010), ao olhar da Terceira Onda do feminismo, as


transformações globais serão resultado da aplicação de quatro principais temas na vida das
mulheres, que refletem os valores e prioridades do atual momento do movimento: a inclusão,
multiplicidade, contradição e feminismo no dia-a-dia. A inclusão se trata da redefinição do
feminismo e papéis de gênero para garantir que o movimento abranja todas as mulheres e as
diversidades de experiências, enquanto a multiplicidade diz respeito às identidades dessas
mulheres. Existe a percepção de que a atenção do feminismo deve ser direcionada a todas as
formas de opressão: gênero, raça, classe e sexualidade.

A Terceira Onda busca considerar, portanto, as contradições e ambiguidades presentes


nas identidades das mulheres para a criação de algo novo que abrace as multiplicidades. Existe
a consciência das diversas relações possíveis -inclusive de opressão- entre mulheres e busca-
se, a partir desse reconhecimento, evitar o afastamento entre as mulheres e perda de unidade do
movimento.

Já o feminismo do dia-a-dia se trata da crença de que atos individuais cotidianos de


resistência constroem transformações globais. “Agora, a revolução se manifesta quando eu fico
a noite inteira conversando sobre feminismo, marginalização, privilégio e opressão com as
minhas melhores amigas” (LAMM, 1995 apud BOBEL, 2010, loc. 721, tradução livre27). O
individual, como afirma Giddens (2002), passa a ter uma responsabilidade inédita sobre os
rumos que a vida social, inclusive em um âmbito global.

Ao considerar o feminismo de meados do século XX em que a saúde da mulher e o


conhecimento sobre seu corpo eram prioridades, percebe-se que o ativismo menstrual é um de
seus resultados. A elevação da consciência durante a Segunda Onda ocorria em encontros entre
mulheres, que compartilhavam suas experiências individuais. Com essa troca de informações,
percebeu-se que tudo o que acontecia em comum com todas as mulheres era algo político e não
pessoal. Elas já trabalhavam no âmbito individual de autotransformação, com o objetivo de
criar um poder feminino.

O ativismo da menstruação, portanto, exemplifica essa característica do feminismo


porque engloba tanto as chamadas “feministas espiritualistas”, quanto “rebeldes radicais da
menstruação”. De acordo com a visão de Bobel (2010), as primeiras compreendem a

27
For now, the revolution takes place when I stay up all night talking with my best friends about feminism and
marginalization and privilegie and opression.
39

menstruação a partir da mesma percepção positiva que as mulheres em geral possuem em


relação a esse processo, apresentada no início desse capítulo: trata-se de uma experiência que
as classifica como mulheres; um momento sagrado, empoderador e até prazeroso. A segunda
vertente, analisada neste estudo, são as ativistas que se rebelam contra a relação comercial e
comunicacional que foi construída com a menstruação.

Por que, exatamente, quase todas as mulheres odeiam suas menstruações mais do que
odeiam outros processos corporais? Como a cultura, a ideologia de gênero e
consumismo constroem essas reações? [...]essas questões são o centro do ativismo
menstrual e levam os esforços ativistas a confrontar as representações negativas da
menstruação, que impede o desenvolvimento de produtos seguros, a distribuição de
informação correta e construção de um diálogo honesto sobre esse processo corporal
(BOBEL, 2010, loc. 338, tradução livre28).

A análise das chamadas “menstruatoristas radicais” se mostra importante porque elas


partem da ideia de tornar menstruação um elemento queer, ou seja, um elemento corporal
desligado da identidade de gênero. Ou seja, existe a valorização do corpo, contudo, desatrelada
da identificação “mulher” ou “feminino”, criando uma narrativa que parte dos “menstruadores”:
pessoas cujos corpos sangram periodicamente. Essa vertente da Terceira Onda considera
questões específicas da identidade nunca consideradas antes e cria uma nova estratégia de
demonstrar que a menstruação é um problema de todos ao desatrelá-la da questão de gênero.
Considerando o que foi visto até agora neste estudo, pode-se questionar se aconteceria se
existisse a percepção da desconexão do corpo da questão de gênero? É interessante refletir sobre
quais seriam as transformações acerca da mulher.

Mas nem todas as mulheres menstruam e não apenas mulheres menstruam. Mulheres
que já passaram pela menopausa, mulheres que passaram pelo processo de
terterectomia e alguns atletas, por exemplo, não menstruam, e alguns homens trans
que ainda não realizaram a operação menstruam (assim como muitos intersexuais).
Reconhecendo esses fatos, um número cada vez maior de ativistas menstruais,
principalmente aqueles ligados ao punk e a comunidades da Terceira Onda, percebem
o discurso “Eu menstruo e, por isso, eu sou uma mulher” problemático (BOBEL,
2010, loc. 439-445, tradução livre29).

28
Why, exactly, do nearly all women hate their periods more than their other bodily processes? How do culture,
gender ideology, and consumerism shape these reactions? [...]these questions are at the core of menstrual activism
and drive activist efforts to confront negative representations of menstruation, which impede the development of
safe products, the distribution of comprehensive information, and honest, informed dialogue about this bodily
process.
29
But not all women menstruate, and not only women menstruate. Postmenopausal women, women
posthysterectomy, and some athletes, for example, do not menstruate, and some preoperative transmen do
menstruate (as do many intersexuals). Recognizing these facts, a growing number of menstrual activists, especially
those linked to punk and third-wave feminist communities, find the “I bleed, therefore I am a woman” discourse
problematic.
40

A partir do afastamento da ideia de relacionar “ser mulher” com a menstruação, pode-


se considerar que ter opção de não menstruar é um modo de empoderar a mulher. Trata-se do
corpo dela e, portanto, sobre ele só cabem suas decisões. Contudo, o ativismo menstrual afirma
-e isso é demonstrado nesse estudo- que as mulheres não conhecem plenamente os seus corpos.

Ao analisar, percebe-se que essa pode ser uma extensão da associação historicamente
construída da mulher com sua função reprodutora. Ao considerar a menstruação como elemento
que define o “ser mulher”, são excluídos grupos de mulheres que não menstruam, como aquelas
que já passaram da menopausa.

“[..] definir a menstruação como o modo de acesso a “feminilidade” [...] reinscreve o


paradigma reprodutivo que confunde “feminilidade” e “ser reprodutivo”. A essência
feminina é assim reduzida ao papel de mãe? E se sim, como esse paradigma limita o
senso de multiplicidade e autodeterminação de meninas mulheres de construir suas
próprias vidas? Essa lógica redutiva ignora o papel do intelectual e maturidade
emocional, variáveis importantes nessa equação de desenvolvimento” (BOBEL, 2010,
loc. 2323, tradução livre30).

Para as rebeldes radicais da menstruação, não existe a necessidade de romantização da


menstruação para torná-la algo percebido como normal. A menstruação é um processo
biológico produzido pelo corpo feminino assim como qualquer outro e deve ser encarado assim.
As mulheres devem conhecer seus corpos de modo íntimo sem que haja a necessidade de uma
mistificação de seus processos naturais. Trata-se, portanto, de uma questão de saúde e seu
corpo, que foi colonizado por outras instituições e cujo controle deve ser retomado.

A questão de tomar o controle talvez seja a mais penetrante o discurso do feminismo


radical da menstruação. Sem o controle, os ativistas explicam, as pessoas estão
vulneráveis a habitar um corpo alienado do eu, um corpo co-habitador por interesses
corporativos, um corpo disciplinado pela cultura do consumo. E quando os
menstruadores garantem o controle sobre suas experiências corporais, eles podem se
sentir como se estivessem vivendo vidas mais plenas (BOBEL, 2010, loc. 2633-2639,
tradução livre31).

Ao serem ensinadas a terem uma visão comercial e comunicacional de suas


menstruações, as mulheres assumiram um silenciamento que permitiu que as marcas de

30
However, defining menstruation as the “gateway to womanhood” [...] reinscribes a reproductive paradigma that
conflates “womanhood” and “reproductive being.” Is the essential feminine thus reduced to future mother? And if
so, how does this paradigma limit girls’ and women’s sense of their multiplicity and self-determination to shape
their own lives? This reductive causal logic ignores the role of intelectual and emotional maturity, importante
variables in this developmental equation.
31
The theme of taking control is perhaps the most pervasive in the discourse of radical menstruation. Without
control, the activists explained, people are vulnerable to inhabiting a body alienated from the self, a body co-opted
by corporate interests, a body disciplined by consumer culture. And when menstruators assert control over their
own menstrual experience, they may feel enabled to live more whole lives.
41

absorvente se apropriassem de seus discursos e ratificassem tal perspectiva.

Um mapeamento mais detalhado será apresentado no próximo capítulo deste estudo


com o objetivo de definir o recorte de objetos a serem analisados a partir de seu discurso. Deve-
se analisar se as marcas de absorvente têm auxiliado as mulheres a se aproximarem e
conhecerem melhor os seus corpos ou se tem ratificado o tabu da menstruação e indo contra
esse processo, buscado e exigido pelas mulheres principalmente nos momentos das grandes
Ondas feministas.

Então, de repente, ok, decidem que o mundo é das mulheres. E aí você coloca isso
numa estampa de camiseta, e isso não está efetivamente mudando o mundo. É só uma
mensagem vazia se ficar reduzida a isso. A gente precisa começar um procedimento
de organização das mulheres, de elas se sentirem em mais condições de se organizar
politicamente e em movimentos sociais, conseguirem acessar os espaços de tomada
de decisão de poder. (MOIRA, 2017, p. 24).

Considerando as questões levantadas pelo feminismo, a mulher é dona do seu corpo e,


portanto, a única encarregada de tomar as decisões que lhe dizem respeito. Contudo, o ambiente
social, ainda não construído para discutir sobre menstruação, impede as mulheres de terem
acesso pleno a informações que lhe possibilitem tomar tais decisões. Pode-se questionar se
grande parte das mulheres que atualmente optam pelo encerramento de suas menstruações não
estão pautadas na carga ideológica dos discursos presentes e na permanência do tabu. De acordo
com Bobel (2010), ao levar a menstruação em questão, “Meu corpo, minhas regras” deve se
transformar em “Meu corpo, meu direito ao acesso a informações, minhas regras”.

3.4 CONSIDERAÇÕES

Ao considerar o processo de construção identitária proposto por Giddens (2002),


percebe-se que existe uma responsabilidade simétrica de todos os atores: nesse caso, tanto das
mulheres, quanto das empresas, das agências de publicidade e dos veículos, que ofertam
produtos e serviços carregados de simbolismos. Por isso, a compreensão das narrativas
publicitárias de marcas de absorvente a partir de um mapeamento se mostra importante. A
análise da existência de um histórico de discurso na modernidade tardia pode revelar a
responsabilidade da publicidade na atual percepção social da menstruação.

No próximo capítulo será construído um mapeamento de narrativas publicitárias de


marcas de absorventes desde os anos 30 com o objetivo de compreender o histórico de seus
discursos. Procura-se entender o papel delas na ratificação dos rituais de higienização da
42

menstruação, dos estereótipos estabelecidos e da atual relação da mulher com seu corpo. Se a
menstruação tem sido retratada como um momento em que a mulher fica em desvantagem,
busca-se entender as falas dessas narrativas como elementos que normatizam o tabu da
menstruação e influenciam a construção identitária feminina.
43

4 AS NARRATIVAS DAS MARCAS DE ABSORVENTE

4.1 INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

Em primeiro lugar, é preciso compreender que a Análise de Discurso atribui três


elementos à complexidade da produção de sentido: a não linearidade da comunicação, a
constituição dos agentes presentes nela e as circunstâncias em que eles estão emitindo seus
discursos. Não se trata da análise do conteúdo de um texto ou fala, mas de sua materialidade
linguística, ou seja, quem diz, como diz, em qual situação, etc. Entende-se que o discurso é um
acontecimento que parte de um sujeito imerso em um contexto, e que ambos os elementos
participam da construção de seu sentido. É a contribuição da Análise de Discurso, ela “nos
coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes a tudo, permite-
nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem” (ORLANDI,
2007, p. 9).

A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o


homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível
tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da
produção da existência humana. (ORLANDI, 2007, p. 15).

Ao direcionar o seu olhar não apenas ao que está sendo dito, mas a quem está dizendo
e em qual momento/situação, a Análise de Discurso considera a não-transparência da
linguagem. De acordo com Orlandi (2007), nela existe equívocos e opacidades que são
manifestados em uma ideologia, construída pela História e constitutiva do sujeito. “Não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2007, p. 16-17). A ideologia é o
efeito da relação entre o sujeito, sua história e sua língua, tornando necessária a análise de sua
manifestação e do inconsciente na produção do sentido.

A importância do contexto nesse processo concebe o que é chamado de ‘condições de


produção’. Por um lado, pensando um sentido mais estrito, existe as condições de produção que
se tratam do contexto imediato em que o sujeito está inserido: o lugar, o momento e a situação
nos quais ele exprimiu o seu discurso. Por outro, as condições de produção de sentido englobam
o contexto sócio histórico e ideológico daquela situação: envolve a sociedade, suas instituições
e o modo de distribuição de poder entre elas. De acordo com Orlandi (2007), esse sentido mais
amplo é o que constrói a ideologia e a ‘memória discursiva’, ou seja, sentidos construídos no
44

passado que deixam vestígios nos discursos presentes e que interferem em seus significados,
independente da vontade dos sujeitos.

[...]alguma coisa mais forte – que vem pela história, que não pede licença, que vem
pela memória, pelas filiações de sentidos constituídos em outros dizeres, em muitas
outras vozes, no jogo da língua que vai-se historicizando aqui e ali indiferentemente,
mas marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder – traz em sua
materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades. O dizer
não é propriedade particular. As palavras não são só nossas (ORLANDI, 2007, p. 31-
32).

A primeira fase da Análise de Discurso, portanto, possui uma natureza linguístico


enunciativa, em que é analisado, a partir de um recorte, como o discurso é afetado pelas
memórias discursivas, uma vez que escolhas dos sujeitos na construção do discurso são
influenciadas também pelo seu inconsciente, moradia da ideologia. Desse modo, o
esquecimento passa a ser considerado um elemento essencial, uma vez que, de acordo com
Orlandi (2007) o efeito do dizer só ocorre de fato quando ele se torna anônimo.

O trabalho ideológico é um trabalho da memória e do esquecimento pois é só quando


passa para o anonimato que o dizer produz seu efeito de literalidade, a impressão do
sentido-lá: é justamente quando esquecemeos quem disse “colonização”, quando,
onde e porquê, que o sentido de colonização produz seus efeitos. O dizer tem história.
Os sentidos não se esgotam no imediato. Tanto é assim que fazem efeitos diferentes
para diferentes interlocutores. Não temos controle sobre isso. Mas tentamos. Faz
entrada, assim, em nossa reflexão, a noção de contradição junto à de equívoco
(ORLANDI, 2007, p. 50).

De acordo com M. Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2007, p. 34) existe dois tipos de
esquecimentos que são estruturantes e que devem ser considerados nesse estudo. O primeiro é
o esquecimento ideológico e “é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos
afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 34). O sujeito, ao construir um discurso, tem a
falsa percepção de que seus sentidos nasceram ali, naquele momento, quando, na verdade, eles
são constituídos a partir da memória discursiva, de sentidos preexistentes. Já o segundo, o
esquecimento enunciativo, se trata daquele em que ocorre o que é chamado de ilusão
referencial: acredita-se que aquilo que foi dito só pode ser o feito de uma maneira, com aquelas
palavras e não com outras. Não é percebido que o modo de construção de discurso interfere na
sua criação de sentido.

Outro fator a ser considerado pela Análise de Discurso são as chamadas formações
discursivas, que demonstram que o sentido também depende da posição do sujeito em
determinado contexto em que ele está inserido e das relações ali presentes. Tudo o que é dito
possui um traço ideológico que é expresso na materialidade do discurso. “A formação
45

discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada -determina o que pode e deve ser dito”
(ORLANDI, 2007, p. 43). Ao observar as condições de produção e o funcionamento da
memória, portanto, deve-se remeter o discurso a uma formação discursiva para compreender o
sentido.

A segunda fase da Análise de Discurso busca relacionar as formações discursivas com


a formação ideológica. Deve-se compreender as relações do discurso com as formações
discursivas pensando as relações destas com a ideologia. “Esse é o processo que constitui as
diferentes etapas da análise, passando-se da superfície da linguística ao processo discursivo.
Correspondentemente, passamos pela análise dos esquecimentos e chegamos mais perto do real
dos sentidos na observação das posições dos sujeitos” (ORLANDI, 2007, p. 71).

O analista conta, portanto, tanto com um dispositivo teórico, quanto com um


dispositivo analítico, inserido no primeiro. O dispositivo teórico se mantém inalterado porque
se trata da própria Análise de Discurso e seus princípios gerais como uma forma de
conhecimento e um método de investigação. Já o dispositivo analítico, mais específico e
individualizado, se trata de uma questão formulada pelo analista, a ser respondida no fim do
processo. Se trata, portanto, do seu objetivo de análise e todos os conceitos que ele opta por
mover visando a resolução de sua questão. “Portanto, sua prática de leitura, seu trabalho com a
interpretação, tem a forma de seu dispositivo analítico” (ORLANDI, 2007, p. 27). A questão
formulada pelo analista funciona tanto como elemento desencadeador da investigação, como
elemento de ligação entre os resultados obtidos ao fim do processo e seu domínio disciplinar
específico, a Análise de Discurso.

A Análise de Discurso considera que, assim como o próprio discurso, seus sentidos
estão sempre em movimento e sua relação com a história, memória e ideologia permite esse
deslocamento. Ela se torna um método importante e a ser considerado nesse estudo ao permitir
a compreensão desse imaginário que condiciona os sujeitos em suas discursividades e ao
responder não apenas a questão “o que esse texto diz?”, mas também a questão “o que esse
texto significa?”.

A partir disso, fica clara a importância do uso da Análise de Discurso nesse estudo. A
partir dessa metodologia, é possível ir além da fala e analisar um discurso, carregado de
significações e construído a partir de um sujeito, imerso em um contexto. Considerando que os
absorventes são produtos ofertados juntamente com mensagens e simbolismos pelas narrativas
46

publicitárias, e recebido pelos consumidores que as ressignificam, se torna relevante a


percepção da ideologia acerca da menstruação nesses discursos. O tabu da menstruação pode
se mostrar presente, identificando uma responsabilidade informativa e pedagógica por parte da
publicidade.

4.2 MAPEAMENTO DAS NARRATIVAS

Para definir os objetos desse estudo, foi realizado um mapeamento das narrativas
publicitárias de marcas de absorvente do Brasil desde a década de 30 até 2016 para a realização
posterior de um recorte. Registra-se aqui a análise realizada de cada comunicação a partir do
discurso das marcas e do contexto em que as mulheres de cada época estavam inseridas. É
preciso apontar também que tal mapeamento se mostra importante a partir da percepção da
publicidade como um dos elementos que permitiram que a menstruação quebrasse os limites do
espaço privado e passasse a ser discutida na esfera pública, e como um dos fatores construtores
de identidade em tempos pós-tradicionais.

Em primeiro lugar, é preciso observar que o século XX, principalmente em suas


primeiras décadas, foi uma época em que a mulher, seu corpo e sua sexualidade eram percebidos
de modo ambíguo. O padrão de beleza parou de exigir que as mulheres ficassem presas em
espartilhos e lhes permitiu mais movimento, enquanto o pudor também se afastou de seus
corpos. A mulher passou a acessar a esfera pública e conquistou liberdades que permitiam que
ela não ficasse confinada em tempo integral em casa, ao mesmo tempo em que sobre ela eram
mantidas percepções e exigências oriundas da moralidade.

O trabalho nas ruas, o motor a explosão, o movimento das cidades exigia velocidade
e agilidade. O corpo deixou de ter um papel secundário e ganhou em animação, em
movimento. O lazer, graças aos teatros, festas públicas, feriados com sol e mar,
incentivou outros jeitos de exibir as formas (DEL PRIORE, 2011, p. 87).

Havia ainda, portanto, uma série de tabus que permeavam a sociedade, incluindo a
menstruação, cujas metáforas “estou de chico” e “naqueles dias” já eram expressões utilizadas
no Brasil para se evitar o tema. O que era, anteriormente, considerado uma doença a ser
comentada entre sussurros, agora era um tema a ser trazido abertamente pela publicidade.
Tratava-se do momento em que a menina se transformava numa mulher e os mistérios da
reprodução lhe deveriam ser revelados pela mãe.
47

[...]foi, também, o fim de paninhos avermelhados, lavados às escondidas, no fundo do


quintal. As vitrines das boas casas do ramo passaram a exibir os “serviets higiênicos”,
“os panos higiênicos de cretone”, as “toalhas higiênicas felpudas e franjadas”, o
“protetor em borracha e marquisette”, a “calça sanitária em borracha” (DEL PRIORE,
2011, p. 90).

Em meados do século XX surgiu, como já foi visto neste estudo, a Segunda Onda do
feminismo. Considerando a perspectiva de Bobel (2010) sobre o assunto, é percebido que se
trata de um momento em que as mulheres passaram a questionar a relação social de
desigualdade entre elas e os homens. Em um primeiro instante a questão trabalhista foi a
principal indagação, mas mais afrente as mulheres abrangem o seu olhar e se tornam conscientes
das questões de seus corpos, violência e opressão cotidiana. Elas criam uma cultura de união
para que o conhecimento se espalhe e atinja o maior número de mulheres, fazendo com que
haja uma elevação de consciência em relação a questões como sexualidade, estupro e aborto.
Por isso, a partir desse mapeamento, busca-se compreender se as narrativas publicitárias de
marcas de absorvente se mostram coerentes com esse momento em que as mulheres buscam
por um maior conhecimento de seus corpos, apesar da ainda existência da moralidade.

A percepção de que o espaço público deveria ser construído para receber a mulher, seu
corpo e sexualidade pode ser considerada uma das uniões entre a Segunda e Terceira Onda.
Atualmente o feminismo, ainda considerando o ponto de vista de Bobel (2010), se mantém
como um movimento que aponta que a mulher não tem plena liberdade no ambiente social. São
consideradas as mesmas questões como a sexualidade e o aborto, mesmo que em formatos
diferentes. Vive-se um momento em que a individualidade das mulheres é valorizada e acredita-
se que a mudança no dia-a-dia é o que causa transformações em âmbito global. Mais à frente
neste mapeamento será considerada de modo profundo a questão da Terceira Onda, mas é
importante apontar tais características e iniciar o questionamento sobre o retrato desse atual
momento nas narrativas publicitárias de absorvente (figura 2).
48

Figura 2 – Propaganda de Modess dos anos 30

Fonte: Propagandas Históricas. 32

A comunicação de Modess de 1930 pode ser analisada a partir desse contexto. As


mulheres viviam em um tempo em que se havia conquistado o acesso ao espaço público, mas
esse mesmo ambiente ainda percebia seus corpos e sexualidade a partir de uma moralidade
historicamente construída.

Em primeiro lugar, percebe-se que existe um apelo às mulheres que fazem esportes, o
que, de acordo com Del Priore (2011) era um tema polêmico. A mulher esportiva é o retrato da
mulher moderna: aquela que usa parte de seu tempo, antigamente dedicado apenas às atividades
domésticas, para se exercitar e se sentir bem consiga mesma.

Modess utiliza essa figura feminina para se posicionar como um produto que
possibilita que a mulher seja fiel ao seu novo estilo de vida e siga normalmente sua rotina sem
que seja interrompida, uma vez que a menstruação é retratada como um processo
impossibilitador dessas atividades. De acordo com o discurso da marca, a mulher e suas
capacidades são colocadas em risco quando ela está menstruada, mas o controle e ocultação do
sangue permitem que ela se torne capaz de acessar o espaço público novamente.

Percebe-se, portanto, que essa comunicação de Modess, através de sua linguagem,


contribui para que a mulher construa uma relação negativa com a sua menstruação. Ao retratar
o processo como um momento em que a mulher fica em desvantagem por não conseguir viver

32
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/04/modess-anos-30.html>. Acesso em: fev.
2017.
49

a sua rotina plenamente e oferecer um produto como solução, a peça ratifica a relação comercial
criticada pela Terceira Onda atualmente e dificulta que a mulher perceba o seu corpo de modo
mais natural.

Além disso, pode-se perceber que a propaganda possui um apelo à autoconfiança da


mulher. Ao se posicionar como um produto com absorvência inédita, Modess promete que a
mulher ficará mais tranquila, cômoda e segura ao ocultar devidamente a menstruação. Outra
vantagem percebida na maior absorvência do produto e também na “inconveniência da
lavagem” que ele evita, é a garantia do não contato direto da mulher com o seu sangue. A
relação de nojo e aversão e construída com o sangue menstrual é ratificada e normatizada nessa
comunicação, prejudicando a autopercepção corporal da mulher (figura 3).

Figura 3 – Propaganda de Modess dos anos 40

Fonte: Propagandas Históricas.33

A narrativa acima de 1940 apresenta um apelo ainda mais notável à identidade da


mulher. Ao retratar a menina menstruada como “aborrecida com tudo”, percebe-se uma
fortificação da crença de que a mulher assume um caráter desagradável quando está menstruada.
Esse estereótipo, como foi visto neste estudo, retrata a menstruação como um momento em que
a mulher fica em desvantagem, influenciando suas autopercepções e ratificando a submissão

33
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/07/modess-anos-40.html>. Acesso em: jun.
2017.
50

feminina.

Por se tratar do início do século XX, a fortificação desse retrato social da mulher
menstruada demonstra, ao conquistar um maior acesso à esfera pública, a mulher se deparou
com um ambiente em que as únicas possibilidades de identidades eram os estereótipos
construídos a partir de uma perspectiva masculina. Tais estereótipos, como já foi visto neste
estudo, prejudicam a autonomia feminina ao fazer com que as mulheres se identifiquem com
essa figura retratada e não com suas individualidades. A internalização desse formato de
opressão psicológica faz com que as mulheres não se reconheçam quando menstruadas e se
afastem de seus corpos, os rejeitando durante esse período.

Mais uma vez, através da apresentação de seus atributos, Modess se posiciona como
um produto moderno que sobrepõe as toalhas antigas, consideradas desconfortáveis e inseguras.
A menstruação é apresentada como um processo que entra em conflito com os novos interesses
e objetivos da mulher moderna, mas que pode ser limitado e ocultado com o uso dos
absorventes.

Ao trazer a influência das colegas da menina menstruada ao discurso, Modess retrata


a relação próxima que as mulheres constroem naturalmente umas com as outras quando se trata
da menstruação. Tal relação é bastante positiva, contudo os diálogos e percepções construtoras
dela ainda são influenciadas por uma ideologia que ratifica o tabu da menstruação. As amigas
da menina falam sobre como Modess acabou com os aborrecimentos que a menstruação traz e
se cria uma relação, mesmo que amena, de competitividade entre as amigas: não usar Modess
vai fazer com que a menina menstruada fique para trás em relação às suas amigas.

Por fim, o retrato da conversa entre mãe e filha também demonstra essa relação típica
da menstruação. Tradicionalmente a mãe é a figura que ensina sua filha sobre seu corpo e
menstruação, e seu discurso é composto também pelos aprendizados que ela recebeu de sua
própria mãe. O tabu da menstruação, mantido através do caráter normativo da tradição, se
manifesta nessas falas e permanece presente nas percepções das mulheres (figura 4).
51

Figura 4 – Propaganda de Modess dos anos 50

Fonte: Propagandas Históricas34.


Texto: É uma líder - nas ideias, no vestir, no
viver. Em proteção higiênica, ela exige Modess.
Porque ela exige conforto e segurança em todos
os dias do mês. Sua maciez… uma absorvência
sem igual e -mais que tudo- a higiene de Modess
(usa-se uma vez e joga-se fora) fazem
indispensável. E o suficiente para um mês custa
menos que um vidrinho de esmalte.

Nessa peça de Modess de 1950, percebe-se que mais uma vez o retrato da mulher
moderna como elemento comunicativo. Sua rotina e estilo de vido, de acordo com o discurso
apresentado, serão prejudicados pela menstruação, processo que pode ser revertido pelo produto
e seus atributos. A ocultação da menstruação, portanto, traz a liberdade, conforto e segurança
que permitem que a mulher acesse normalmente a esfera pública e desfrute dessa conquista
recente. “Ela sabe viver” demonstra uma figura feminina capaz de tomar decisões que permitem
que ela viva plenamente, e essas decisões incluem o uso de Modess.

Trata-se de uma mulher que é independente e exige conforto e segurança. Ela valoriza
novos formatos ao buscar o fim de métodos como as toalhas sanitárias, que traziam a
inconveniência da lavagem. Tal afirmação retrata o contato direto com o sangue -inevitável na

34
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2014/06/modess-johnson-johnson-anos-50.html>.
Acesso em: jun. 2017.
52

lavagem das antigas toalhas sanitárias- como um processo antigo, que ficou para trás junto com
a mulher não moderna. Quanto mais afastada de seu corpo, mais moderna a mulher é.

Existe uma construção, portanto, que vem pelo menos da década de 30, de um
estereótipo da mulher moderna. Trata-se de uma figura que abre mão de parte dos afazeres
domésticos para andar de moto, se embelezar ou fazer esportes e sobre a qual é construída uma
percepção ilusória de liberdade. A mulher conquistou um espaço inédito na esfera pública, mas
influenciar as suas escolhas através da comunicação não é torná-la livre, é apenas determinar
mais um modo de oprimi-la.

Nessa peça, o produto é apresentado através de dois atributos. Em primeiro lugar, a


“absorvência sem igual” que, pela primeira vez, apresenta a questão da higiene de modo
explícito: trata-se de um absorvente descartável que evita o contato direto com o sangue. O
segundo ponto se trata da comparação entre o absorvente com um item de beleza: “e o suficiente
para um mês custa menos que um vidrinho”. Trata-se de uma sentença que aproxima o
absorvente dos itens de beleza e afirma que a mulher, ao ocultar sua menstruação e higienizá-
la, fica e se sente mais bonita, influenciando a sua construção de autopercepção e autoestima
(figura 5).

Figura 5 – Print Screen da Propaganda “Aderente


à Calcinha” de Sempre Livre de 1973

Fonte: Propagandas Históricas35

35
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/06/sempre-livre-marilia-pera-anos-70.html>.
Acesso em: jun. 2017.
53

Essa propaganda se trata de um comercial da marca Sempre Livre, de 1973, que tem a
atriz Marilia Pera como protagonista. Considerando o contexto social, político e cultural em
que essa peça foi veiculada, ela foi selecionada como um dos objetos de estudo e, portanto, será
analisada de modo mais profundo posteriormente (figura 6).

Figura 6 – Print Screen da Propaganda de Modess de 1976

Fonte: YouTube36.

Ainda em 1970, Modess segue com o mesmo discurso que valoriza a maior aderência
à calcinha que seu produto possibilita. Não são necessários elementos como fivelas,
antigamente utilizadas, trazendo uma maior comodidade e conforto para a mulher.

Ao longo dessa peça, o atributo de encaixe perfeito do novo produto é narrado


enquanto a imagem de uma mulher colocando luvas e se preparando para praticar algum esporte
inicialmente não revelado é mostrada. Ao final do vídeo, ela, ao subir em uma moto sozinha,
demonstra que o estereótipo de mulher moderna ainda é utilizado como apelo comunicativo.
“Modess mudou porque as mulheres mudaram”.

Além disso, é necessário compreender a linguagem utilizada nessa peça. A imagem da


mulher menstruada colocando luvas é utilizada como uma ferramenta supostamente criativa de
retratar o encaixe do absorvente em seu corpo. A comparação entre os dois processos possibilita
que a mensagem fique clara sem que o absorvente, a vagina, a menstruação ou até o corpo
feminino seja mostrado, demonstrando um claro tabu comunicacional.

36
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Lu1NGJvrlSQ>. Acesso em: out. 2017.
54

O uso de uma linguagem que impede que a menstruação seja retratada de modo
verdadeiro e natural influencia na percepção feminina sobre seus corpos e os processos
advindos dele. A partir desse ponto, fica claro que a mulher, durante o século XX, obteve
diversas conquistas, mas se deparou com um ambiente que não estava pronto para lidar com as
potencialidades de seu corpo de modo genuíno (figura 7).

Figura 7 – Print Screen da Propaganda de Sempre Livre de


1988

Fonte: YouTube37.

Nessa propaganda de Sempre Livre de 1988, mais uma vez é explorado o retrato da
mulher multifuncional, dessa vez através da figura da Malu Madder. “Eu vivo tudo ao mesmo
tempo” revela a atriz que também diz gostar de se sentir segura, se referindo à sua autoconfiança
e autoestima. A mulher que é intensa e assume o seu lugar tanto no espaço privado quanto
público é a nova meta das mulheres nos anos 80, aquelas que vivem após a Revolução Sexual.
Mesmo menstruadas, elas precisam se manter capazes de realizar todas as suas atividades
cotidianas e Sempre Livre é o produto que permite isso. De um lado existe o estereótipo da
mulher menstruada, aquele ser sobre o qual os sentimentos negativos tomam conta, a tornando
incapaz de ser ela mesma plenamente; do outro, existe o estereótipo da mulher menstruada que
usa o absorvente, aquela que vive alegremente e se encontra completamente satisfeita com sua
vida em geral e autoconfiança.

Mais fino e, portanto, mais confortável, o novo produto continua “seguro como
sempre” devido à sua camada de “células multiabsorventes que distribuem e retém melhor o
fluxo”. Mais uma vez, a narrativa publicitária demonstra à mulher que ela pode acessar a esfera
pública desde que esconda devidamente o seu fluxo menstrual. Ela só se tornará capaz de se

37
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RkAdYBFQEMs>. Acesso em: out. 2017.
55

sentir segura e autoconfiante quando confiar na multiabsorvência de Sempre Livre.

“Quando uma mulher decide ser muitas mulheres, o absorvente tem que ser um só”
demonstra Sempre Livre como um produto supostamente empoderador. O “absorvente do nosso
ritmo”, assinatura da campanha, se posiciona como compreensivo das reais necessidades das
mulheres, quando, na verdade, contribui para a construção não devida do espaço público para
o recebimento da mulher como um indivíduo (figura 8).

Figura 8 – Propaganda de Sempre Livre de 1992

Fonte: YouTube38.

Em 1992, Sempre Livre continua a apostar na figura de uma celebridade para retratar
a mulher que não apenas tem um trabalho, mas que também o prioriza, buscando aperfeiçoá-lo
cada vez mais. Ela assume vários personagens, assim como na vida real, em que possui diversas
funções que procura exercer cada vez melhor. Mais uma vez é retratada uma mulher
multifuncional que se sente completa desse jeito e que, portanto, busca evitar que tal estilo de
vida seja prejudicado durante seu período menstrual. Sempre Livre se posiciona como a solução
desse problema.

O novo produto “Sempre Livre sempre seca” é apresentado como um elemento


moderno, um avanço, que permite que as mulheres se sintam cada vez mais seguras. Além de
suas 3 camadas características, essa linha do produto possui uma cobertura com “furinhos em
forma de funil” que permitem que o “fluxo passe rápido e não volte mais” e que a mulher se
sinta limpa e seca. A ideia de higienização fica ainda mais clara nessa propaganda que valoriza
o atributo do produto que permite um afastamento maior da mulher de seu sangue menstrual.
A impossibilidade de contato direto com o sangue é apresentada como a grande vantagem para

38
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l_jThH7rggY>. Acesso em: out. 2017.
56

uma mulher moderna que busca se aperfeiçoar cada vez mais, inclusive no ocultamento de seu
fluxo.

Além disso, outro elemento importante de ser apontado é a representação do sangue


menstrual com a cor azul. O ocultamento do aspecto realista do sangue menstrual também
demonstra essa necessidade de higienização, uma vez que a cor azul supostamente representa
uma ideia maior de limpeza e traz uma suavização ao retrato da menstruação.

“Quem sabe interpretar o que uma mulher deseja? Sempre Livre sabe” é a principal
fala que demonstra uma suposta preocupação com as necessidades femininas. Ela deseja um
acesso cada vez maior ao ambiente público, além de reconhecimento em diversas instâncias
como a profissional, mas tais conquistas só se tornam possíveis com o ocultamento de sua
menstruação e de todos os sentimentos que ela carrega (figura 9).

Figura 9 – Propaganda de Sym de 2008

Fonte: YouTube.39

Em 2008, a marca Sym construiu uma propaganda mais realista de marcas de
absorvente que questionava os elementos que têm sido utilizados por tanto tempo mas que
apenas ratificam o tabu da menstruação, como visto neste estudo. Em um primeiro momento da
peça, uma moça levanta a questão sobre o retrato de mulheres usando calças brancas nas
propagandas, sendo que “absorvente não combina com calça branca”. Em seguida, ela se depara
com um cientista fazendo a demonstração do funcionamento de um absorvente e questiona o
porquê do líquido que ele está usando ser azul. Por fim, ao encontrar uma mulher que demonstra
o estereótipo de mulher menstruada usando absorvente -alegre e satisfeita-, ela afirma que

39
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TXno-zeLu7M>. Acesso em: out. 2017.
57

ninguém fica assim durante a menstruação e, de fato, utilizada a palavra “menstruada”, caso
inédito nesse mapeamento.

A tentativa de transformar o retrato da mulher menstruada nas propagandas de marcas


de absorvente de Sym deve ser reconhecida. Levantar o questionamento da presença insistente
de tais elementos não realistas é o primeiro passo para que haja mudanças nos discursos
publicitários e, consequentemente, na relação das mulheres com seus corpos quando
menstruadas. A propaganda, contudo, também apresenta elementos que ratificam o tabu da
menstruação que devem ser apontados neste estudo.

Em primeiro lugar, questiona-se a apresentação não realista do sangue menstrual nas


propagandas de absorvente, mas, mesmo assim, em nenhum momento um sangue vermelho é
retratado. Parece que existe uma terceirização desse processo: Sym apresenta o problema,
enquanto alguma outra marca deverá assumir a postura de mostrar o sangue como ele é.

Além disso, mesmo que o discurso da narrativa se mostre inédito ao utilizar a palavra
“menstruada”, o tabu comunicacional especificamente em relação ao sangue menstrual se
mostra bastante presente. Ao questionar o retrato frequente de mulheres utilizando calças
brancas nos comerciais de absorventes, a moça utiliza o discurso de que “absorvente e calça
branca não combinam”, quando, ao analisar a questão do ocultamento a fundo, sabe-se que, de
acordo com essa perspectiva, o que, de fato, não combina com calça branca é o sangue. A
mancha de sangue na calça demonstrando que estão menstruadas tem sido uma das maiores
preocupações das mulheres quando em esfera pública, como já foi visto neste estudo.

Em um outro momento, ao se deparar com o cientista, a mulher diz “e esse líquido,


por que ele é azul?” demonstrando que, mais uma vez, existe o questionamento do retrato não
realista da menstruação nas propagandas, mas também existe um tabu que busca palavras que
substituem o sangue menstrual.

Ao final da peça, ao comparar a transparência do seu discurso com a transparência de


seu novo produto, Sym assume a postura comum de marcas de absorvente. Ao apresentar os
atributos como verdadeiros avanços, ela promete mais proteção e discrição à mulher, que, de
acordo com essa perspectiva, deve se manter em pudor quando menstruada.

Sym apresentou uma tentativa de transformar o discurso comum das marcas de


absorvente no começo dos anos 2000, o que deveria ter tido uma maior repercussão e ter
causado, de fato, mudanças nessa prática da propaganda. A comunicação, contudo, ao pisar em
terreno perigoso, se manteve em uma zona parcialmente confortável. A marca, ao ter como
58

slogan “ser mulher é uma delícia” também assume apenas um extremo do estereótipo feminino
e nega uma visão realista sobre o mundo feminino em geral (figura 10).

Figura 10 – Print Screen da Propaganda de Always de 2015

Fonte: YouTube.40

Para a consideração das próximas peças, é preciso perceber o século XXI como um
tempo em que, com o advento da internet e o surgimento da chamada cibercultura, um novo
formato de conexão global foi estabelecido, transformando o conceito de comunicação.

A cibercultura, de acordo com Lemos e Lévy (2010), se trata de uma nova esfera
púbica digital mundial, em que não há mais os recortes geográficos que separam as culturas. A
comunicação entre as partes do globo passa a funcionar de modo bilateral, mais aberto e
colaborativo, uma vez que é estabelecida uma conversa em que os receptores se tornam também
produtores, assumindo uma postura menos passiva às informações que recebem.

Enquanto as mídias de massa, desde a tipografia até a televisão, funcionavam a partir


de um centro emissor para uma multiplicidade receptora na periferia, os novos meios
de comunicação social interativos funcionam de muitos para muitos em um espaço
descentralizado. Em vez de ser enquadrado pelas mídias (jornais, revistas, emissões
de rádios ou de televisão), a nova comunicação pública é polarizada por pessoas que
fornecem, ao mesmo tempo, os conteúdos, a crítica, a filtragem e se organizam, elas
mesmas, em redes de troca e de colaboração (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 13).

Na cibercultura, portanto, existe a liberação da palavra, ou seja, a capacidade que todos


passam a ter de produzir diálogos dentro de um ambiente digital. Com a internet e posterior
aparecimento das redes sociais, todos os indivíduos passaram a ter um poder de iniciar diálogos

40
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pkW3M3dmGvY>. Acesso em: jun. 2017.
59

que anteriormente apenas os meios de comunicação de massa conseguiam. Suas opiniões e


informações em geral atingem a esfera pública sem que haja a necessidade de concessões e são
capazes de estabelecer uma conversação com qualquer outro indivíduo no mundo.

Esse novo formato de comunicação também se aplica ao feminismo e ao modo que ele
se estabelece nesse contexto. Com esse novo formato de conversa mais colaborativo e aberto,
o feminismo se torna capaz de levar as suas conversas -em um primeiro momento estabelecida
em rodas físicas de pessoas- para novas plataformas e canais, aumentando o alcance de suas
falas.

Na medida em que travou o esforço para elaborar novas mídias, o feminismo passou
a conferir às ferramentas e espaços comunicacionais um enlace estratégico de primeira
ordem para sua causa. E, assim, com o avançar dos processos tecnológicos, o advento
da internet vem ampliar a relação do movimento com suas políticas de comunicação
e gênero. Outros canais, espaços e plataformas vão possibilitar às ações feministas o
alastramento de informações, demandas, organização e a criação de conteúdos,
habitualmente ignorados pelos meios de comunicação mais tradicionais, ou restritos
aos meios alternativos, importantes, porém de limitada abrangência (TOMAZETTI,
2015, p. 5)

Existe, portanto, uma nova esfera pública em que o acesso das mulheres teoricamente
não pode ser dificultado: a digital. Em um espaço mais colaborativo, a conversação entre elas
permite que elas não apenas reconheçam a diversidade de lutas dentro do feminismo-
característica da Terceira Onda já vista neste estudo-, mas também estabeleçam diálogos que
permitem respostas rápidas a discursos que reproduzam o machismo ou repressão da mulher.
“[...]em confluência com as potencialidades comunicativas da era digital, o feminismo passa a
perceber no ambiente virtual um lugar de práticas e expressões coletivas, antes desconhecidas,
com novas significações e endereçamentos múltiplos” (TOMAZETTI, 2015, p. 5). A atuação
do movimento passa a ser o mundo inteiro e as mulheres entram em contato com discursos que
vão além do alcance de seus espaços físicos.

[...]O espaço social e virtual dinamizado pelas redes digitais proporcionou


experiências de ativismo mais livres e acentuou as possibilidades de desenvolvimento
de outros canais de comunicação e intercâmbio informativo, ampliados para além dos
contextos localidades entre as mulheres e suas comunidades (TOMAZETTI, 2015, p.
7).

Por isso, em 2015, quando Always Brasil veiculou a comunicação


#JuntasContraVazamentos, foi bastante criticada, principalmente nas redes sociais.

Nessa campanha, a marca traz um duplo sentido à palavra “vazamento”: trata-se tanto
da menstruação –e da capacidade do produto de evitar 100% de vazamentos-, quanto do
fenômeno comum e criminoso de vazamentos de fotos íntimas na internet. É realizada uma
60

comparação não assimétrica entre ambas as situações através de um discurso apelativo e


supostamente empoderador.

Ao trazer relatos de adolescentes que passaram pela situação traumática de ter fotos
íntimas postadas na internet, a peça traz os danos psicológicos causados à intimidade e à
autoconfiança como consequências também do vazamento da menstruação. “É preciso ter força
para superar e seguir com a vida” é uma das falas presente. Existe um retrato sensacionalista e
falso da menstruação como um processo que, caso seja percebido pelas outras pessoas no
ambiente da esfera pública, causará danos -a longo prazo ou até permanentes- à confiança da
menina.

O trocadilho da marca com a palavra “vazamento” tem o objetivo de claro de destacar


o atributo do produto mais do que defender a causa de não vazamento de fotos íntimas. Desse
modo, percebe-se que, ainda em 2015, existe a ratificação dos rituais de higienização da
menstruação, causando a mesma influência na construção identitária feminina.

Mais uma vez uma marca de absorvente tenta se posicionar como apoiadora da mulher
moderna e seus ideais, mas, Always, ao abraçar essa causa válida através de um trocadilho
vazio, demonstra um sequestro da fala do feminismo para a construção de um discurso
superficialmente empoderador.

Como foi visto, ao realizar campanhas que são veiculadas também no ambiente digital,
a marca se insere em um contexto cujos diálogos são rápidos, diversos e de alto alcance. Nesse
caso, as meninas se pronunciaram nas redes sociais e questionaram o discurso da marca,
inclusive a partir de falas feministas. O amplo e rápido acesso a essas informações fez com que
essas mulheres tivessem voz para responder Always e desvalidar sua fala.

A historicidade do retrato da menstruação percebida até o atual momento deste estudo


e o conhecimento de situações de violência como essa trazida por Always -mesmo que de modo
superficial- possibilitam a reflexão de como ambas as esferas públicas -tanto real quanto digital-
ainda não estão construídas para receber as mulheres plenamente. A sociedade se transforma,
novos formatos são estabelecidos e os ambientes ainda definem relações de violência e opressão
em relação a figura feminina, a seus corpos, sexualidade e menstruação.

Ainda em 2015, é importante apontar, Always lançou uma propaganda criada pela Leo
Burnett Toronto, que levou o nome “Like a Girl”, e que questionava a expressão “como uma
menina” utilizada para caracterizar atividades realizadas de modo suave ou mais frágil. Na peça,
meninas demonstravam o que significa jogar uma bola, correr ou lutar “como uma menina”
61

quebrando esse tabu e demonstrando que a força feminina existe e deve ser valorizada. A peça,
veiculada no Superbowl de 2015, ganhou o Grande Prix na categoria de Relações Públicas em
Cannes e um Emmy de melhor comercial de 2015, além de ter sido um dos vídeos mais vistos
do ano na plataforma do YouTube.

O discurso presente na propaganda e o modo como a força feminina foi retratada -a


partir de adolescentes que durante o próprio comercial quebravam um tabu que elas mesmas
carregavam- demonstraram com êxito uma suposta preocupação da marca com a autoconfiança
tanto das mulheres, quanto das futuras mulheres de nossa sociedade. Foi uma propaganda que
iniciou um diálogo importante, tanto na vida real quanto na vida digital, sobre o modo como o
meio social é capaz de construir a autopercepção das mulheres, incentivando ou desestimulando
suas potencialidades.

Tanto a propaganda da Sabrina Sato apresentada anteriormente, quanto a


#TheSleepingTest retratada a seguir, demonstram que Always Brasil revela uma incoerência
com o posicionamento e valores manifestados em “Like A Girl”. Ao perceber que a marca
pertence a Procter&Gamble, uma multinacional, é percebida uma responsabilidade de
construção de discurso que se estenda a todos os países em que Always esteja presente. Ao
retratar o empoderamento feminino em uma peça e ganhar reconhecimento por isso, mas entrar
em confronto com tal valor em outras comunicações, fica evidenciado uma ação oportunista da
marca de sequestro do discurso feminista com o principal objetivo de ganhar destaque (figura
11).

Figura 11 – Print Screen da Propaganda de Always de 2016

Fonte: YouTube.41

41
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pC2efxlPBIk>. Acesso em: jun. 2017.
62

#TheSleepingTest é uma comunicação de 2017 realizada por Always Brasil que traz o
incômodo da menstruação principalmente no período noturno.

A marca, primeiramente, traz mulheres para falarem sobre essa situação de


desconforto e como ela afeta o seu cotidiano. Em um segundo momento, os companheiros
dessas mulheres se submetem a um experimento que manipula as consequências dos
vazamentos da menstruação durante a noite e depois compartilham as suas percepções.

Ao final do vídeo, existe um objetivo claro de demonstrar de modo supostamente bem


humorado como os homens “finalmente” foram submetidos a uma vingança, mesmo que de
modo temporário. Eles, que sempre reclamam do mau humor que suas companheiras assumem
quando menstruadas, foram capazes de provar o desconforto pelos quais elas passam durante
as noites de períodos menstruais.

Essa peça se mostra opressora, portanto, em três momentos. Em primeiro lugar, ela
fortifica e normatiza o estereótipo da mulher menstruada. De acordo com ela, as mulheres
assumem um caráter raivoso nesse tempo do mês e, por isso, tem suas rotinas prejudicadas.
Além disso, a menstruação é demonstrada como uma situação cujos incômodos só podem ser
reconhecidos e validados pelos homens uma vez que eles são aplicados à sua existência. A fala
da mulher não é verídica até que se prove o contrário. Por fim, a manipulação da menstruação
nessa peça se mostra banal uma vez que se trata de um processo natural cuja construção artificial
não é correspondente (figura 12).

Figura 12 – Print Screen do Branded Content de Intimus de 2015, 2016 e 2017

Fonte: Canal de Intimus Brasil no YouTube.42

42
Disponível em: <https://www.youtube.com/user/intimusonline/videos>. Acesso em: out. 2017.
63

“Marias” se trata de uma webserie produzida pela marca Intimus, em que a sexualidade
é um assunto tratado de modo aberto, assim como outros tabus, inclusive da menstruação. Ela
traz a pluralidade das mulheres através de personagens cujos nomes compostos são iniciados
com “Maria”. Se trata de um novo formato de propaganda, o Branded Content, em que o enredo
criado pela marca propõe entretenimento para o consumidor e, por isso, não pode ser analisado
de modo aprofundado nesse estudo. Pode-se considerar, contudo, o modo como o diálogo e
retrato femininos são retratados na história.

O enredo envolve um grupo de amigas que ao longo do tempo vai crescendo com o
aparecimento de novas personagens. Ao trazer uma história que envolve as multiplicidades
femininas, “Marias” coloca em questão todos os tipos de opressão que as mulheres podem
sofrer além do machismo: o racismo, a gordofobia, a homofobia. Por isso, possui um caráter
típico da Terceira Onda ao trazer um discurso empoderador que envolve a diversidade de
identidades e individualidades das mulheres como elementos principais de uma união feminina,
em uma narrativa em que suas menstruações ficam em segundo plano.

Por estar imersa no ambiente digital, “Marias” se aproxima da consumidora e de suas


críticas de modo inédito. A série traz o retrato do mundo feminino de um modo bastante realista
e moderno, um dos fatores que certamente lhe trouxe sucesso, uma vez que já está em sua quarta
temporada. A liberação da palavra e estabelecimento de uma conversação mais ampla, portanto,
pode ser utilizada por uma marca a seu favor. Existe a possibilidade de um entendimento
psicográfico profundo de consumidores sem que se fique preso no conhecimento apenas sobre
suas características demográficas. Os diálogos construídos dentro da webserie reflete as
conversas estabelecidas entre as meninas no ambiente digital, criando uma familiarização e
aproximação com elas.
64

4.3 AS NARRATIVAS ESCOLHIDAS E O NOSSO RECORTE PARA ANÁLISE DO


DISCURSO

Quadro 1 – “Aderente à Calcinha” de 1973 (Sempre Livre) – Minutagem: 01:08


IMAGEM ÁUDIO
Marilia Pera está posicionada na frente das Moça da produção: Marilia, você prefere
câmeras, se preparando para começar a rodar direto ou vamos dar uma passada no
gravação do comercial. Uma moça da texto?
produção se aproxima.
Marilia: Eu queria dar uma passadinha no
texto para não errar. Eu quero ver se eu
[incompreensível] de primeira.
Marilia pega o produto da mão da moça da Marilia: Deixa eu ver o produto.
produção e o analisa.
Close no produto e em sua embalagem. Marilia: Sabe, vai ser muito fácil pra mim
fazer esse comercial de Sempre Livre porque
eu uso.
Volta a mostrar Marilia e a moça da produção Marilia: Você conhece?
conversando. Moça da produção: Não.
Marilia começa a mostrar o produto para a Marilia: Não? É muito bom. É o novo
moça da produção. absorvente higiênico
Marilia abre o produto e mostra como é seu Marilia: Ele tem uma diferença. Quer ver?
uso, para a moça da produção. Vou te mostrar. Essa parte aqui você destaca
e ele adere à calcinha. Quer dizer que não tem
que usar cintos, presilhas, nada disso. Dá uma
segurança e uma proteção incríveis.
Marilia guarda o produto na embalagem de Marilia: Sabe como eu descobri o Sempre
novo. Livre?
Moça da produção: Me conta.
Marilia: Eu estou sempre trabalhando muito,
né? Do teatro pra televisão, da televisão pro
teatro. No meio dessa correria toda, eu
descobri que era muito bom usar o Sempre
Livre.
Aparece diretor anunciando que a gravação Marilia: Vai rodar? É?
vai começar e a moça da maquiagem começa Diretor: Tudo ok, Marilia? Está pronta?
a retocar a maquiagem da Marilia. Marilia: Como está a maquiagem?
Diretor: Pra mim está bom.
Aparece o produto com o texto ao lado: “Na Narração: Na próxima vez, experimente
próxima vez, experimente Sempre Livre, da Sempre Livre, da Johnson-Johnson.
Johnson-Johnson”.
Marilia de frente para a câmera, com close em Marilia: É realmente sensacional.
seu rosto.
Fonte: adaptado pela autora de Propagandas Históricas.43

43
Disponível em: <http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/06/sempre-livre-marilia-pera-anos-70.html>.
Acesso em: jun. 2017.
65

A primeira propaganda analisada neste estudo tem a atriz Marilia Pera como elemento
comunicativo e é importante perceber que ela assume dois papéis ao se tornar sujeito desse
discurso. “Eu estou sempre trabalhando muito, né? Do teatro para a televisão, da televisão para
o teatro. No meio dessa correria toda, eu descobri que era muito usar o Sempre Livre” Em
primeiro lugar, ela é o retrato da mulher moderna. Por ser uma atriz de sucesso que se desloca
entre diversos ambientes, ela representa a figura feminina cujas liberdades recém conquistadas
envolvem o acesso à esfera pública e a possibilidade de priorização da vida profissional à vida
doméstica. Além disso, considerando o contexto da propaganda, vai-se mais além: por ser não
apenas atriz de televisão, mas também de teatro, bailarina, cantora e diretora, Marilia Pera não
representa apenas aquilo que é novo, mas também uma ameaça ao sistema político vigente na
época. Sua figura representa tudo aquilo cuja expressividade e discursos eram ameaçados pela
censura.

Considerando o mapeamento realizado neste estudo, a representação da mulher


moderna é uma ferramenta comunicativa utilizada desde os anos 30 pelas marcas de
absorventes. A segurança e proteção possibilitadas pelos atributos do produto fazem com que
essa mulher se torne capaz de assumir sua nova rotina mesmo quando menstruada e sujeita às
inconveniências desse período. “Ele tem uma diferença. Quer ver? Vou te mostrar. Essa parte
aqui você destaca e ele adere à calcinha. Quer dizer que não tem que usar cintos, presilhas, nada
disso. Dá uma segurança e uma proteção incríveis”. No caso da Marilia Pera, contudo, é
possível identificar que a vida profissional é pela primeira vez mencionada como parte da vida
feminina, o que pode ser atribuído às condições de produção da propaganda.

Considerando-as, percebe-se que essa peça de Sempre Livre de 1973 foi veiculada em
um momento decisivo para a História da Mulher. Como foi mencionado neste estudo, nos anos
70, de acordo com a perspectiva de Dore (2014) e Bobel (2010), já havia iniciado e ganhado
força a Segunda Onda do feminismo, em que as mulheres passaram a questionar a desigualdade
trabalhista diante dos homens. Havia o questionamento sobre o machismo presente em todos
os âmbitos da carreira profissional de uma mulher: os cargos que ela era capaz de ocupar, a
desigualdade salarial e o discurso sexista na oferta de empregos.

A propaganda, portanto, possui cargas ideológicas a serem analisada. Em primeiro


lugar, ao considerar Giddens (2002), percebe-se que a personalidade e prioridades que a
presença e fala de Marilia Pera retratam nessa propaganda são coerentes com a vida das
mulheres nos anos 1970. A peça, como um dos inúmeros diálogos construtivos do eu,
demonstra a realidade feminina e conversa com as necessidades das mulheres, ao mesmo tempo
66

que só é capaz de construir tal retrato realista graças a influência delas.

Tal fato, contudo, como foi visto anteriormente, por mais que possa ser percebido
como um avanço da representação feminina em narrativas publicitárias, demonstra também a
utilização da estereotipização com tal finalidade. Ao se comunicar com mulheres que abrem
mão de parte ou de toda a vida doméstica para construir uma carreira, Sempre Livre deixa de
falar com aquelas que têm a vida no lar como escolha e não deixam de ser mulheres -e de
menstruarem- por isso. Essencialmente, é necessário que seja percebido e comunicado que o
sucesso das mulheres não está na construção de uma vida profissional, mas sim na possibilidade
de escolha de estilo de vida, independente de qual for.

Em um segundo momento, percebe-se que o retrato da menstruação como um processo


incômodo e impossibilitante continua forte. Existe um histórico, explícito no mapeamento desse
estudo, que demonstra que o período menstrual tem sido percebido e representado a partir de
suas inconveniências. Mesmo quando se fala da mulher moderna, como no caso dessa
propaganda de Sempre Livre, a menstruação aparece como um elemento antagônico a sua
liberdade recém conquistada: o acesso à esfera pública só é permitido durante a menstruação se
a mulher receber o auxílio de um absorvente que oculta o seu sangue de modo inédito, trazendo
sua segurança de volta.

Considerando o contexto sócio histórico dessa propaganda de Sempre Livre de 1973,


não pode é percebido um deslocamento na construção identitária feminina dessa época e o seu
retrato na narrativa publicitária, uma vez que o perfil de Marilia Pera representa e expõe aquilo
que era buscado pela Segunda Onda do feminismo, de acordo com a perspectiva de Bobel
(2010) e Dore (2014). Em seguida, analisa-se uma peça de 2016 cujos diálogos serão também
desconstruídos para que seja identificada a relação entre contexto e retrato da mulher e
menstruação.
67

Quadro 2 – #TheSleepingTest, de Always (2016) – Minutagem: 03:37


IMAGEM ÁUDIO
Texto: “Homens participando de um teste
Música
sobre absorventes”
Algumas cenas do teste ao fundo com o
Música
texto: “Quer saber por quê?”
Imagens da instalação em que foi realizada o
teste e o texto: “Always apresenta
#TheSleepingTest”
Imagens das mulheres que irão participar do Voz feminina: “Como eu me sinto quando
teste chegando à instalação. estou menstruada? Me sinto incomodada”
Débora: É um desconforto realmente. Pra
Débora (publicitária) sendo entrevistada.
mim, pelo menos.
Caru: Sem contar que a gente não consegue
Caru (arquiteta) sendo entrevistada.
trabalhar direito né?
Texto: “54% das mulheres brasileiras não se
Música
sentem descansadas naqueles dias”
Texto: “A maioria acha que é só por causa
Música
das alterações hormonais”
Evelyn: Eu acho que é um problema
Evelyn (blogueira) sendo entrevistada. hormonal porque muda completamente o
nosso corpo.
Texto: “O que elas não sabem é que também
Música
não dormem bem com medo de vazamentos”
Texto: “Para mostrar isso fizemos um teste
com quem não passa por essas alterações Música
hormonais:”
Imagens com os homens chegando à
Música
instalação e texto: “Os homens”
Imagens com todos interagindo e texto:
“Uma simulação para eles sentirem só um Música
pouquinho como é dormir naqueles dias”
Imagens dos casais se dirigindo cada um para
Música
os quartos em que as simulações serão feitas.
Imagem do primeiro homem se preparando
para a sua simulação e texto: “Experimento Música
1”
Ilustração do experimento e texto: “DIEGO:
vai simular o sono da mulher que não se Música
mexe para evitar vazamentos”
Ilustração do experimento e indicação
Música
“Válvula sensível a pressão”
Casal Evelyn e Diego indo dormir no quarto
Evelyn: Bom, eu vou dormir bem, né? (risos)
da simulação
Imagem do segundo homem se preparando
para a sua simulação e texto: “Experimento Música
2”
Ilustração do experimento e texto: “PEDRO:
vai simular o sono da mulher que levanta Música
para checar o absorvente”
Ilustração do experimento e indicação
Música
“Alarme a cada 2 horas”
Casal Débora e Pedro indo dormir no quarto Pedro: Será que é alto?
da simulação Débora: (risos)
68

Imagem do terceiro homem se preparando


para a sua simulação e texto: “Experimento Música
3”
Ilustração do experimento e texto:
“RENATO: vai simular o sono da mulher Música
que dorme imóvel para evitar vazamentos”
Ilustração do experimento e indicação
Música
“Fenda limitando os movimentos”
Renato: Se eu precisar eu te chamo, porque
Casal Cura e Renato indo dormir no quarto
está difícil.
da simulação
Cura: Me chama.
Cenas dos casais dormindo cada um em seu
Música
quarto de simulação.
Imagens da equipe de Always que controla
Música
toda a simulação.
Alguém da produção aperta um botão. Música
Pedro acordando devido ao alarme que tocou
Música
e indo ao banheiro “checar o absorvente”
Cura (sussurro): Você queria virar de lado?
Imagem do Renato e da Cura. Renato: Está incômodo.
Cura: (risos)
Pedro acordando devido ao alarme que tocou
Música
e indo ao banheiro “checar o absorvente”
Evelyn: O que foi, amor?
Imagem do Diego se levantando da cama.
Diego: Vazou.
Evelyn: Faz assim ó, bota uma toalha Aí
Evelyn se levanta e estica uma toalha na
você não vai sentir que está úmido. Pronto,
cama.
olha.
Imagem do Renato acordado tentando se
Renato: Não dá para dormir aqui não.
mexer na cama.
Imagem da instalação com os três quartos. Música.
Imagem do Casal Pedro e Débora acordando. Pedro: Estou precisando dormir mais.
Imagem dos casais tomando café da manhã
Música.
ainda na instalação.
Evelyn: O mais engraçado é que ele sentiu
Evelyn falando durante o café.
realmente o que eu sinto.
Renato: Não tem como você virar de um lado
Renato falando durante o café.
pro outro. É horrível.
Evelyn: Quero ver como vai ser o seu dia
Evelyn e Diego falando durante o café. hoje.
Diego: Meu dia vai ser um pouco pesado.
Texto: “Se você se sente indisposta naqueles
dias, a causa também pode estar naquelas Música
noites”
Débora: A gente não imaginava que a
questão de não poder se mexer muito a noite,
Casal dando as mãos. de ficar sempre com aquele receio de sempre
ficar quietinha, eu nunca achei realmente que
isso pudesse interferir no sono.
Cura: Muda tudo. Tendo uma noite de sono
Cura e Renato dando entrevista.
legal, realmente não é só hormonal.
Evelyn: Com essa experiência eu pude ver
Evelyn e Diego dando entrevista.
que o sono é muito importante.
69

Eu sempre falava pra ela. Eu falava “cara, é


Imagem do Pedro acordando durante a
impossível que você esteja assim por causa
simulação.
disso. Você está estressada”
Evelyn: Agora diz, fala pra todo mundo. É
impossível?
Evelyn e Diego dando entrevista.
Diego: Não, não é impossível.
Evelyn: (risos)
Texto: “Naqueles dias, há coisas que você
não pode controlar. Mas o medo de Música
vazamentos à noite você pode.”
Texto: “Always Noites Tranquilas Suave. Se
ajusta perfeitamente ao seu corpo para até Música
0% vazamentos”
Imagens que demonstram o encaixe do
absorvente. De um lado: “Outros” com o
desenho de um absorvente sendo mal
encaixado entre dois braços de uma estrela
Música
rosa; do outro lado: “Always” com o desenho
de um absorvente sendo perfeitamente
encaixado entre dois braços de uma estrela
rosa com o texto: “até 0% vazamentos”
Texto: “Durma profundamente e acorde
Música
pronta para o dia seguinte, todos os dias”
Imagem dos dois produtos Always com o
texto “Always Noites Tranquilas” acima e Música
“#TheSleepingTest” abaixo
Fonte: adaptado pela autora de YouTube.44

“#TheSleepingTest” tem como protagonistas três casais heterossexuais e jovens, na


faixa de idade entre 25 e 35 anos. Inicialmente, as mulheres desses casais apresentam suas
percepções sobre a menstruação, enquanto são apresentadas a partir de suas profissões:
arquiteta, publicitária e blogueira. A partir desse momento já é possível identificar a tentativa
de representar mais uma vez a mulher moderna. Trata-se de figuras femininas jovens com
profissões criativas e falas descontraídas, cujas opiniões, em um primeiro momento, parecem
ser valorizadas.

No primeiro momento da propaganda, em que as mulheres contam sobre suas


experiências com suas menstruações, é nítido o destaque as inconveniências desse processo
biológico, apresentado como um problema que causa um desequilíbrio “Eu acho que é um
problema hormonal porque muda completamente o nosso corpo”. Esse desequilíbrio, mais uma
vez, retrata uma dificuldade em meio uma rotina agitada, na qual a vida profissional é
valorizada. “Como eu me sinto quando estou menstruada? Me sinto incomodada”, “É um

44
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=pC2efxlPBIk>. Acesso em: 10 ago. 2017.
70

desconforto realmente. Para mim, pelo menos”, “Sem contar que a gente não consegue trabalhar
direito né?”. Percebe-se que as mesmas inconveniências seguem sendo retratadas do mesmo
modo, assim como há mais de 30 anos atrás, na propaganda de Sempre Livre. A menstruação
continua sendo representada como algo que vai contra a liberdade conquistada pela mulher
considerada moderna.

Após o momento de depoimento das mulheres, fica claro que o enredo foi construído
baseado na questão da incompreensão masculina sobre a menstruação e seus efeitos sobre o
corpo feminino. Como foi visto no mapeamento desse estudo, os retratos da mulher menstruada
são frequentemente pautados em estereótipos que, como foi estudado, afasta o meio social da
compreensão plena das necessidades dos estereotipados. Em geral -e é nisso que a propaganda
se apoia-, os homens têm a percepção de que as mulheres assumem um caráter horrível em seus
períodos menstruais, se tornando seres que apenas reclamam e brigam sem motivos aparentes,
o que impede que eles tenham uma visão realista.

Por isso, ao longo da realização do experimento proposto pela propaganda, é percebido


que o homem é retratado como ignorante quando se trata de menstruação. “Se eu precisar eu te
chamo, porque está difícil”; “Faz assim ó, bota uma toalha. Aí você não vai sentir que está
úmido”; “Eu sempre falava para ela. Eu falava “cara, é impossível que você esteja assim por
causa disso. Você está estressada”. Ao longo do experimento, as mulheres assumem uma
postura didática -inclusive para trazer um tom de humor ao vídeo- que em sua essência, se
mostra ridícula por se tratar de homens na faixa dos 30 anos.

A naturalidade da representação da ignorância dos homens em relação ao corpo


feminino demonstra uma das cargas ideológicas que essa propaganda possui. Como foi
analisado nesse estudo, a menstruação como tabu tem sido percebida como uma questão
unicamente feminina, cujas implicações não têm motivo para atingir a esfera pública.
Considerando Giddens (2002), fica clara a gravidade desse retrato em uma propaganda de 2016:
os diálogos ainda presentes -inclusive em um ambiente digital, em que as possibilidades são
teoricamente ilimitadas- são aqueles que censuram a menstruação e não permitem a construção
de um meio social pronto para recebê-la sem que seja um tabu.

Tal ideologia se mostra presente também na construção artificial da menstruação


proposta pela Always. Em primeiro lugar, toda a tentativa de fazer com que o homem
experiencie a menstruação se mostra falha por se tratar de um processo natural, cujas
experiências são individuais. “O mais engraçado é que ele sentiu realmente o que eu sinto”
71

demonstra uma ilusão, uma vez que homens não menstruam e jamais poderão ter uma
experiência próxima disso. Além disso, o experimento realizado a partir da utilização de uma
bolsa de líquido azul, um buraco na cama e um despertador apenas ratifica isso: trata-se de um
modo de destacar as -possíveis- inconveniências da menstruação através da banalização do
processo.

Ao longo da propaganda fica clara a tentativa de utilização de humor para trazer às


mulheres o sentimento de vingança realizada “Quero ver como vai ser o seu dia hoje”; “Agora
diz, fala para todo mundo. É impossível?”. Essa construção, contudo, além de ratificar a noção
da menstruação como um fardo na vida da mulher moderna, indica que as reclamações
femininas sobre esse processo fisiológico só passam a ser consideradas após a validação
masculina. A construção identitária feminina a partir do olhar masculino, como foi visto neste
estudo, é uma realidade social antiga e aparece nessa propaganda como uma memória
construtiva de seu sentido. Desse modo, fica clara uma incoerência, uma vez que a validação
masculina ou a proposta de uma vingança feminina em uma propaganda de absorvente de 2017
demonstram um deslocamento temporal, que ratifica o tabu da menstruação.

É necessário considerar as condições de produção dessa propaganda, percebendo que


a mulher moderna possui um novo perfil em 2016. Ela ainda tem as liberdades conquistadas
pós Revolução Sexual e Segunda Onda do feminismo, mas também se encontra presente em
uma nova esfera pública, recém-criada e teoricamente ilimitada: o ambiente digital. Como foi
visto neste estudo, de acordo com Lévy e Lemos (2010), o ciberespaço é espaço mais
colaborativo em que os receptores assumiram uma postura mais ativa, estabelecendo uma
conversação aberta e mundial. Não é mais necessário um grande investimento para a criação de
conteúdo -inclusive na publicidade, que pode ser realizada em plataformas digitais mais baratas
que o formato tradicional da televisão-, fazendo com que todos ali presentes se tornem
produtores potenciais, capazes de responder a todo discurso com o qual eles entram em contato.
Essas características também se aplicam ao feminismo que, além de entrar em contato com os
discursos que vão além de seu espaço físico, se torna capaz de respostas mais rápidas e situações
que reproduzam o sexismo no ambiente digital.

Além disso, a Terceira Onda do feminismo, considerando o ponto de vista de Bobel


(2010), possui, como foi visto neste estudo, uma preocupação inédita com a questão da
menstruação e suas representações sociais. Uma de suas vertentes, a das radicais da
menstruação, busca a discussão acerca da desvinculação do processo biológico à questão de
gênero, uma vez que, de acordo com elas, existe mulheres que não menstruam, e pessoas que
72

menstruam que não são mulheres.

A partir da percepção da existência de uma discussão tão forte sobre menstruação,


inclusive em um ambiente que permite uma maior liberdade de diálogos, percebe-se um
deslocamento entre o tempo e a identidade da mulher moderna de 2016 nessa propaganda de
Always. O retrato da menstruação construído a partir de suas inconveniências e necessidade de
validação masculina demonstra incoerência com a atual construção identitária feminina, além
de poder ser considerado um diálogo que dificulta o avanço das mulheres em relação ao
conhecimento sobre seus próprios corpos.

É importante apontar neste estudo também a incoerência da marca Always. Em 2015,


a marca lançou a campanha “Like a Girl” no espaço publicitário internacional mais valioso, o
Superbowl, contando com 122 milhões de espectadores. A campanha, que desafiava os
estereótipos de gênero e pedia para homens e mulheres, meninos e meninas questionarem a
expressão “como uma menina”, conquistou o Emmy no mesmo ano.

Em 2016, após levantar tal discussão no mundo inteiro, Always apresenta um discurso
sexista no Brasil em “#TheSleepingTest e deixa clara uma postura oportunista da marca em
relação ao crescimento da discussão do feminismo no ambiente digital. Ao se deslocar entre a
valorização da força feminina desde a infância e a necessidade de validação masculina para os
possíveis efeitos da menstruação nas mulheres que menstruam, a marca demonstra um
retrocesso que provavelmente não ocorreria se os valores expostos em “Like a Girl” fizessem
parte de seu DNA como empresa. A incoerência no discurso demonstra que mesmo em 2016,
a propaganda ainda contribui para o formato de esfera pública que não valoriza as necessidades
reais das mulheres e banaliza sua causa, suas exigências e seus questionamentos.
73

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo compreender o reflexo do tabu da menstruação nas
narrativas publicitárias e sua influência na construção identitária feminina. Para isso, buscamos
compreender conceitos que se conversaram e auxiliaram a análise dos objetos de estudo.

No primeiro capítulo, compreendemos como a atual concepção do tabu o envolve


como um elemento de manutenção de ordem social. Considerando a sua construção em relação
ao corpo feminino, realizada desde há muito tempo atrás na História, foi cumprido o objetivo
de compreender como ele se manifesta na vida da mulher, na sua relação com seu corpo, na
opressão que ela sente diariamente e na sua construção identitária como indivíduo. A partir
deste ponto, no capítulo segundo, entendemos especificamente a questão do tabu da
menstruação e investigamos todos os rituais que os cercam. A opressão psicológica e vigilância
da feminilidade presentes na construção cultural da menstruação foram expostas, deixando mais
clara a relação do tabu da menstruação e sua influência na construção identitária feminina.

Tal construção, exposta como um processo realizado na modernidade tardia a partir de


uma simetria nas responsabilidades dos atores envolvidos, tornou possível, juntamente com os
outros conceitos analisados neste estudo, o levantamento de alguns questionamentos, que
envolvem tanto as marcas de absorvente, quanto as próprias mulheres brasileiras. Ao final,
foram compreendidos dois principais pontos.

Em primeiro lugar, nossa suposição se mostrou verdadeira e existe o reflexo do tabu


da menstruação em todo um histórico de discurso das marcas de absorvente, o que contribui
para a atual percepção social desse ciclo biológico. Em segundo lugar, nos deparamos com um
fato que não foi previsto: esse retrato da menstruação construído pela publicidade carrega
consigo um tabu que envolve o período menstrual, mas que também envolve a figura feminina
como um todo. O ciclo de opressão presente em nossa sociedade e direcionado a ela
impossibilita que essas coisas sejam separadas e exigiu que considerássemos também em nosso
estudo a percepção socialmente construída sobre a mulher, seu corpo e seus potenciais.

Por isso, em primeiro lugar, é necessário apontar que a utilização da estereotipização


como elemento comunicativo se mostrou obsoleta. O retrato da mulher moderna como aquela
que se desloca entre diversos ambientes e prioriza a vida profissional constrói esse perfil como
ideal, excluindo todas as outras infinitas possibilidades. O estereótipo da mulher moderna
demonstra ser opressão disfarçada de empoderamento, uma vez que a verdadeira liberdade
74

conquistada pelas mulheres é a possibilidade de escolher individualmente o seu estilo de vida.

Além disso, a estereotipização da mulher menstruada também entra em embate com o


que as mulheres têm demonstrado buscar nos movimentos feministas. Nas narrativas
publicitárias, o retrato do período menstrual como o momento em que a mulher não pode
assumir a sua rotina, comportamento e caráter normais, é um hábito. Os rituais de ocultação e
silenciamento da menstruação têm sido ratificados pelos discursos das marcas de absorvente
através de um apelo à autoconfiança e representação da mulher menstruada como aquela que
essencialmente não poderia acessar a esfera pública. Ofertar o absorvente como o produto capaz
de reverter esse cenário demonstra o uso de um discurso empoderador contraditório.

Neste estudo foi possível compreender a responsabilidade que a publicidade possui na


construção identitária dos indivíduos. A comunicação de absorventes, um dos elementos
responsáveis pela abertura de discussão sobre a menstruação no espaço público, possui o dever
de iniciar diálogos que construam mulheres fortes, conhecedoras de seus próprios corpos. Não
se deve retratar a menstruação de modo negativo ou romântico, deve-se representar ela de modo
realista. Trata-se de um processo biológico que pode fazer parte da vida da mulher sem que a
despersonalize ou atrapalhe. O processo em si não é um problema, apenas estamos o
representando desse jeito.

Além disso, há a necessidade de se iniciar um diálogo informativo e didático.


Considerando que ainda estamos em uma fase de transição, em que a grande maioria das
mulheres não atingiu o conhecimento pleno de seus corpos, é necessário que a publicidade seja
provedora desse conhecimento. Vivemos em uma sociedade em que o tabu da menstruação
ainda está muito presente e na qual todo dia meninas menstruam pela primeira vez, é necessário
que a publicidade comece a contribuir na construção de uma esfera pública pronta para receber
essas mulheres, seus potenciais e transformações.

Por um lado, ao analisar as Ondas do feminismo e a atual conjuntura da vertente de


radicais da menstruação, é possível considerar que as mulheres têm buscado cada vez mais
conhecimento sobre seus corpos e as marcas de absorventes não acompanharam esse processo.
Por outro, não se pode assumir uma postura maniqueísta: as propagandas são construídas a
partir da consideração de um contexto sociocultural e de pesquisas realizadas com
consumidores. Os discursos das marcas de absorventes são influenciados pelas percepções que
as mulheres têm e expõe suas menstruações, o que demonstra que a mudança precisa acontecer
em ambos os lados desse diálogo.
75

Fica claro que a representação da mulher, os discursos publicitários e as próprias


marcas ainda representam brechas nos movimentos femininos. Sabe-se que existe a iniciativa
do movimento chamado “femvertising” (feminism + advertising45), mas neste estudo fica claro
que ainda não existe uma representação real da mulher, suas necessidades e sua menstruação
na comunicação de absorventes no Brasil. As marcas e suas narrativas publicitárias continuam
a retratar esse processo biológico de modo irrealista, na cor azul, de forma higienizada,
estereotipando corpos e o comportamento da mulher. Por isso, é importante que estudos como
esse proponham diálogos construtivos tanto para as mulheres quanto para as marcas presentes
no Brasil visando que os tabus analisados neste estudo, especificamente o da menstruação, não
sejam ratificados. Do contrário, será alimentada a imposição de padrões limitantes e limitados
a sociedade feminina, influenciando a identidade de cada uma das mulheres brasileiras.

45
“feminismo+propaganda” (tradução livre).
76

REFERÊNCIAS

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