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O eu lírico aponta para a separação entre este e sua imagem de memória ao colocar no
mesmo plano temporal o “eu” de hoje e o “eu” de ontem. Expressa, desse modo, uma
facilidade para dialogar com a personagem de ficção, mas se debate com a tentativa de
relembrar as próprias experiências, separando, inclusive, o futuro de si, atual, em relação ao
seu “eu” passado. O homem a monologar, no poema, parte do cruzamento de imagens
próprias, de tempos diferentes, para um universo maior de percepção, no qual as duas figuras
se complementam e sintetizam um enigma: o tempo. Mas não apenas o tempo é manifestado
nessa espécie de “digressão” elaborada pelo eu lírico. O fato de ser mistério, sobre o qual não
se pode saber de fato qualquer coisa, e que ainda abarca o nascimento dos “eus-líricos” do
poema (ou homens), dá ao tempo uma ubiquidade na existência. Ele pode ser transmutado em
lembranças, em seu todo, hoje, mas também de outra maneira, completa de significação
dentro da forma única e própria de outra manifestação de sentido para esse mesmo
acontecimento, dita com outras palavras, com outros significados, num outro tempo
(CAMPOS, 2006, p. 403):
Assim o poema inicia outra face, demonstrada no olhar do poeta, não mais para as casas
que não sabem de nada, mas para um movimento interpretativo que sempre pode se apresentar
sob outra forma de dizer. Nessa nova apresentação, uma imagem se apresenta fundida entre o
passado e o presente: “janela do segundo andar, idêntica a si mesma [...] uma rapariga mais
velha [...], mais lembradamente de azul” (CAMPOS, 2006, p. 403-4). A identidade entre a
imagem da memória e a experiência do presente se realiza na lembrança imaginada, descrita,
no poema, a partir da mulher que o eu lírico encontra no alto, na janela do segundo andar. O
azul poderia sugerir a melancolia. No entanto, ao participar do contexto dualista engendrado
pelo eu lírico no confronto de visões temporais diferentes que se desejam comungáveis na
fantasia de uma atemporalidade, o azul, forjado pela lembrança para a rapariga, pode
identificar o firmamento, metáfora para uma divisa entre o real presente e o real passado: a
atemporalidade imaginada, mais velha do que o eu lírico. Há o retorno à realidade do presente
após o trecho descrito acima (CAMPOS, 2006, p. 404):
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem
[agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
1
MORAL. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. V. 3.0. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2009.
“miragem existencial”, provocada pela ausência de pensamento. As observações da rua,
durante as passagens pelo local, se acumulam numa mesma imagem, o cruzamento. Nesse
sentido, tempo e espaço se interpenetram na representação do cruzamento. Não há apenas
ausência de pensamento. Há também ausência de tempo. O cruzamento de espaços pode ser
entendido a partir da colocação dos dois eus, antes apresentados em tempos diferentes (o que
torna os dois espaços também diferentes), mas que, neste novo contexto, são agora entidades
contemporâneas entre si, uma vez que as ideias do tempo e do espaço estão propostas como
unívocas num cruzamento atemporal.
A imaginação do eu lírico, desencadeada quando abdica do pensamento e se entrega às
passadas na rua cotidiana, constata nas lembranças dos mesmos passos, em outros tempos, um
outro eu. O transeunte e seu outro, realisticamente, como traço de realidade, miram-se com
indiferença. Há de se destacar a indiferença do próprio eu lírico para com seu outro, mais
jovem. Os dois se reconhecem e se realizam através de suas indiferenças. O jovem, por não
saber como será o futuro, que é apenas um pensamento alegre, como é descrito pelo próprio
poema; o mais velho, por não ter reconhecido, quando era jovem, seu outro mais velho. Não
se pode dissociar um do outro. A indiferença acaba sendo inevitável. A ausência de tempo
contribui para configurar esta situação. Sendo afirmado que são a mesma pessoa, a ausência
de tempo não impede a transposição de experiências. Outras atividades e experiências do
jovem são lembradas pelo mais velho, a exemplo da rapariga na janela. Embora seja
impensável para o pensamento lógico, o terreno da imaginação, no qual há a defesa das
impressões, desconsidera qualquer ordem dos sentidos e organização em torno da ação
reflexiva. Assim, o poder criativo do pensamento em estado de quase devaneio, em
contraponto à razão, elabora um cruzamento de indivíduos iguais representando, no encontro
de suas temporalidades físicas diversas, o destino de gerações, de um mesmo indivíduo ou de
uma coletividade.
O poema apresenta sentidos opostos para as duas gerações, personificadas nos
transeuntes desconhecidos e de mesma identidade. Os dois em movimento, agora não mais
enquanto realidades atuais, mas em destinos traçados, seguem o próprio caminho de suas
existências. Nesse trecho do poema, o eu lírico transforma-se numa “pseudo-terceira-pessoa”,
se dirigindo a si mesma como “eu antigo” e “eu moderno”, vinte anos mais velho. Vê o “eu
antigo” subir a rua em busca do mundo que o “eu moderno” já viveu. As vivências pelas quais
o “eu antigo” descobrirá a inutilidade de imaginar demonstrada pelo eu mais velho (principal
personagem pela qual a perspectiva se apresenta) reflete um niilismo em relação ao homem e
suas gerações. Os dois rumos representam, assim, o percurso e a distância que separam os
homens, em níveis de realidade e imaginação, juventude e velhice, individual e “coletivo”,
personificados na casualidade fantástica de um encontro imaginário:
O eu poético transita pelo poema na perspectiva de primeira pessoa. Mas seus juízos se
apresentam no plural, utilizando metáforas. Ao falar sobre “o mistério do tempo”,
exemplificado no problema de interpretar seu outro, o “eu antigo”, inclui todos
(provavelmente se referindo a um homem e sua descendência numa cultura ou discurso) no
verso “Sim, o termos todos nascido a bordo”. Há outra ideia de movimento incluída no verso,
corroborando com a ambientação que o poema apresenta: uma rua e um cruzamento. Estar, e
mesmo já nascer a bordo significa formar-se num conjunto de fatores e valores preexistentes e
atuantes na formação do ser. O condicionamento associado à expressão “nascer a bordo”
remete à história da formação e ascensão do estado português na época das chamadas Grandes
Navegações. Esse traço do imaginário da cultura portuguesa pode ser atribuído ao conjunto de
referências que o poema pode suscitar. Nesse sentido, os destinos de uma nação, de um
indivíduo e sua genealogia ou, no caso do poema, de um homem e suas memórias em estados
de fantasia e reflexão, podem ser elementos que remetem a uma realidade que, além de
fictícia, no âmbito do próprio do homem, se vale de um traço para abrir a recepção de um
leitor nacional. Se a melancolia e o niilismo de um homem se fazem relacionar, por
fragmentos do poema, com a história portuguesa ― ainda que para expressar mais claramente
a condição de homem sem certezas ―, lê-se que nos planos real, verdadeiro e carnal, como
dizem os últimos versos, isso pode ser possível, talvez.
O outro enquanto si mesmo, inicialmente uma projeção efetuada por uma lembrança,
provoca correlações entre elementos individuais e coletivos, expressos num fato imaginado e
numa realidade possível de interpretação. O “eu antigo” e o “eu moderno”, em rumos
diferentes, poderiam ser apontados como uma posição niilista do poeta, no plano realista, em
relação à instalação do Estado Novo em Portugal. Como o poema está datado de 15/12/1932
(CAMPOS, 2006, p. 204), data em que a preparação para o governo Salazarista já estava
encaminhada e consolidada, pode-se apontar que tanto o reencontro do velho com o seu
passado a “imaginar um futuro girassol” quanto a ausência de imaginação são posturas de
uma visão sem vislumbre de mudança numa ordem vigente, institucional ou existencial. O
poema, assim, pode ser lido considerando sua relação crítica, por exemplo, à aprovação
estatutos que firmaram o único partido do País, a União Nacional, cuja principal liderança era
aquele que seria o governante de Portugal por mais de trinta e cinco anos, António de Oliveira
Salazar.
O poema “Realidade” apresenta a imaginação como propulsora de relações individuais
que se descobrem pertencentes, em uma leitura possível, a uma coletividade. A princípio
atemporal, a questão do tempo entre as projeções “eu moderno” e “eu antigo” se
complementam numa ideia aberta a interpretações e sugestões de leitura que podem dialogar,
não raro, com a história nacional. Álvaro de Campos apresenta um eu lírico solilóquio que,
em seu diálogo com as próprias lembranças, se descobre pouco esperançoso quanto ao futuro,
forjando uma imagem do passado e expondo, através atemporalidade e numa situação
fantástica, o estado de niilismo ao destino do homem que se sente apático e perdido nos
próprios caminhos que construiu e que percorre em sua realidade.
REFERÊNCIAS
PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006.
Realidade
Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
Sim, talvez...
Álvaro de Campos, 15/12/1932.