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Álvaro de Campos e as realidades de “Realidade”

Danilo Cerqueira Almeida

O poema “Realidade”, de Àlvaro de Campos, retrata o solilóquio de alguém que ao


rememorar o lugar por onde passou há vinte anos, manifesta a indissociabilidade desta
lembrança de ser partido na inteireza de uma realidade sem perspectiva de memória. A
rememoração acontece num contexto de passagem por uma rua. O homem, vinte anos mais
velho, tece comentários sobre sua frequência naquele ponto. Promove, então, um diálogo com
um outro imaginário, projeção de si mesmo, num processo de construção lento como as
passadas que faz. Os vinte anos que separam o homem (eu) presente (moderno) do homem
(eu) passado são apresentados através da descoberta dos arredores, “as casas [que] não sabem
de nada...” (CAMPOS, 2006, p. 403). O aprofundamento promovido pelo texto inicia-se
através de uma viagem do exterior para o interior, capitaneada pelo próprio transeunte a partir
de suas precárias memórias e insaciável imaginação. O eu lírico mostra-se em sua dubiedade
quanto à inutilidade e aproveitamento dos anos. Essa instabilidade em definir a situação é
levada durante todo o poema em diversos planos. O plano real e o fictício (CAMPOS, 2006,
p. 403):

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro


De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

O eu lírico aponta para a separação entre este e sua imagem de memória ao colocar no
mesmo plano temporal o “eu” de hoje e o “eu” de ontem. Expressa, desse modo, uma
facilidade para dialogar com a personagem de ficção, mas se debate com a tentativa de
relembrar as próprias experiências, separando, inclusive, o futuro de si, atual, em relação ao
seu “eu” passado. O homem a monologar, no poema, parte do cruzamento de imagens
próprias, de tempos diferentes, para um universo maior de percepção, no qual as duas figuras
se complementam e sintetizam um enigma: o tempo. Mas não apenas o tempo é manifestado
nessa espécie de “digressão” elaborada pelo eu lírico. O fato de ser mistério, sobre o qual não
se pode saber de fato qualquer coisa, e que ainda abarca o nascimento dos “eus-líricos” do
poema (ou homens), dá ao tempo uma ubiquidade na existência. Ele pode ser transmutado em
lembranças, em seu todo, hoje, mas também de outra maneira, completa de significação
dentro da forma única e própria de outra manifestação de sentido para esse mesmo
acontecimento, dita com outras palavras, com outros significados, num outro tempo
(CAMPOS, 2006, p. 403):

Sim, o mistério do tempo.


Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Assim o poema inicia outra face, demonstrada no olhar do poeta, não mais para as casas
que não sabem de nada, mas para um movimento interpretativo que sempre pode se apresentar
sob outra forma de dizer. Nessa nova apresentação, uma imagem se apresenta fundida entre o
passado e o presente: “janela do segundo andar, idêntica a si mesma [...] uma rapariga mais
velha [...], mais lembradamente de azul” (CAMPOS, 2006, p. 403-4). A identidade entre a
imagem da memória e a experiência do presente se realiza na lembrança imaginada, descrita,
no poema, a partir da mulher que o eu lírico encontra no alto, na janela do segundo andar. O
azul poderia sugerir a melancolia. No entanto, ao participar do contexto dualista engendrado
pelo eu lírico no confronto de visões temporais diferentes que se desejam comungáveis na
fantasia de uma atemporalidade, o azul, forjado pela lembrança para a rapariga, pode
identificar o firmamento, metáfora para uma divisa entre o real presente e o real passado: a
atemporalidade imaginada, mais velha do que o eu lírico. Há o retorno à realidade do presente
após o trecho descrito acima (CAMPOS, 2006, p. 404):

Hoje, se calhar, está o quê?


Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

A possibilidade de repetição pode ser comparada a algo imaginado que acontece?


Apenas quando se questionam as barreiras entre real e irreal. A capacidade imaginativa, se
não for posta em confronto com o real, sensível, em movimento interpretativo dialético, não
resultará nas produções humanas de que caracterizam a natureza e a cultura. No poema, a
exaltação à capacidade de figurar o que não se sabe é, sob o ponto de vista do tempo, o
atestado de sobrevivência da espécie humana, do homem enquanto físico e moral. As duas
afirmações, a negação do saber (conhecimento) e a afirmação deste mesmo saber na
perspectiva da possibilidade criativa, demonstram que o homem que se recusa a imaginar está
fadado a uma apoplexia física e moral. Nessa passividade escolhida, a ausência de
imaginação, este pensamento que nasce do confronto entre real e imaginário, implica na
renúncia ao movimento da mente e do corpo do eu lírico. O verso sobre a rapariga na janela
sugere também, nesse sentido, um possível enamoramento, uma fantasia amorosa, o alcance
mais longo do potencial imaginativo, no momento, sobre a amada. Abdicar do poder
metafórico do pensamento é, segundo o eu lírico ― eu-transeunte que fala e sobre o qual fala
o poema — não existir, nem para o mundo físico (enquanto ser humano), nem para a
dinâmica do mundo social (entendendo moral como “conjunto de valores, individuais ou
coletivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta
dos homens” 1).
As lembranças são evocadas pelo texto a partir da passagem numa rua. Esse passeio
memorialístico, em solilóquio, e até certo ponto peripatético, culmina no (s) homem (ns) e
suas ideias alimentadas pela crença ― imaginação prestigiada e convencionada no âmbito da
religião ―, apresentada sob a figura divina do Deus, tornando visível, concreto e/ou sensível
o que não existe. O verso anterior ao analisado, “Houve um dia em que subi esta rua pensando
alegremente no futuro” (CAMPOS, 2006, p. 404), possibilita inferir novamente sobre um
futuro (lembra o eu lírico no passado) romance com a rapariga, sentimento símbolo da
juventude, onde os relacionamentos são imbricados por pensamentos e sentimentos instáveis e
fugazes. O contraponto com “um dia”, quando o transeunte subia, é “hoje”, quando o mesmo
desce a mesma rua, indicando não apenas a passagem do tempo, mas as perspectivas em
relação à própria vida. Ao focalizar situação atual, a qual se apresenta descendo a rua, mais
velho, as experiências do passado do eu-transeunte não tem valor positivo. O “Quando muito,
nem penso...” (CAMPOS, 2006, p. 404), expressado num estado de melancolia e apatia, abre
sentido, contraditoriamente, à imaginação (Id. Ibidem).

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem
[agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Esta nova situação, imaginada realisticamente ― ou seja, uma impressão ―, expressa


uma nova dualidade em questão, o espaço-tempo. Agora, o cruzamento não é apenas um
lugar, “nesta localidade de cidade” (CAMPOS, 2006, p. 403). A aproximação elaborada pelo
eu lírico, de um local para uma possível lembrança a serviço da própria imaginação, para uma
lembrança externa, de uma rapariga, agora chega, após anos de experiência, a uma espécie de

1
MORAL. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. V. 3.0. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2009.
“miragem existencial”, provocada pela ausência de pensamento. As observações da rua,
durante as passagens pelo local, se acumulam numa mesma imagem, o cruzamento. Nesse
sentido, tempo e espaço se interpenetram na representação do cruzamento. Não há apenas
ausência de pensamento. Há também ausência de tempo. O cruzamento de espaços pode ser
entendido a partir da colocação dos dois eus, antes apresentados em tempos diferentes (o que
torna os dois espaços também diferentes), mas que, neste novo contexto, são agora entidades
contemporâneas entre si, uma vez que as ideias do tempo e do espaço estão propostas como
unívocas num cruzamento atemporal.
A imaginação do eu lírico, desencadeada quando abdica do pensamento e se entrega às
passadas na rua cotidiana, constata nas lembranças dos mesmos passos, em outros tempos, um
outro eu. O transeunte e seu outro, realisticamente, como traço de realidade, miram-se com
indiferença. Há de se destacar a indiferença do próprio eu lírico para com seu outro, mais
jovem. Os dois se reconhecem e se realizam através de suas indiferenças. O jovem, por não
saber como será o futuro, que é apenas um pensamento alegre, como é descrito pelo próprio
poema; o mais velho, por não ter reconhecido, quando era jovem, seu outro mais velho. Não
se pode dissociar um do outro. A indiferença acaba sendo inevitável. A ausência de tempo
contribui para configurar esta situação. Sendo afirmado que são a mesma pessoa, a ausência
de tempo não impede a transposição de experiências. Outras atividades e experiências do
jovem são lembradas pelo mais velho, a exemplo da rapariga na janela. Embora seja
impensável para o pensamento lógico, o terreno da imaginação, no qual há a defesa das
impressões, desconsidera qualquer ordem dos sentidos e organização em torno da ação
reflexiva. Assim, o poder criativo do pensamento em estado de quase devaneio, em
contraponto à razão, elabora um cruzamento de indivíduos iguais representando, no encontro
de suas temporalidades físicas diversas, o destino de gerações, de um mesmo indivíduo ou de
uma coletividade.
O poema apresenta sentidos opostos para as duas gerações, personificadas nos
transeuntes desconhecidos e de mesma identidade. Os dois em movimento, agora não mais
enquanto realidades atuais, mas em destinos traçados, seguem o próprio caminho de suas
existências. Nesse trecho do poema, o eu lírico transforma-se numa “pseudo-terceira-pessoa”,
se dirigindo a si mesma como “eu antigo” e “eu moderno”, vinte anos mais velho. Vê o “eu
antigo” subir a rua em busca do mundo que o “eu moderno” já viveu. As vivências pelas quais
o “eu antigo” descobrirá a inutilidade de imaginar demonstrada pelo eu mais velho (principal
personagem pela qual a perspectiva se apresenta) reflete um niilismo em relação ao homem e
suas gerações. Os dois rumos representam, assim, o percurso e a distância que separam os
homens, em níveis de realidade e imaginação, juventude e velhice, individual e “coletivo”,
personificados na casualidade fantástica de um encontro imaginário:

Talvez isso realmente se desse...


Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...
Sim, talvez...

O eu poético transita pelo poema na perspectiva de primeira pessoa. Mas seus juízos se
apresentam no plural, utilizando metáforas. Ao falar sobre “o mistério do tempo”,
exemplificado no problema de interpretar seu outro, o “eu antigo”, inclui todos
(provavelmente se referindo a um homem e sua descendência numa cultura ou discurso) no
verso “Sim, o termos todos nascido a bordo”. Há outra ideia de movimento incluída no verso,
corroborando com a ambientação que o poema apresenta: uma rua e um cruzamento. Estar, e
mesmo já nascer a bordo significa formar-se num conjunto de fatores e valores preexistentes e
atuantes na formação do ser. O condicionamento associado à expressão “nascer a bordo”
remete à história da formação e ascensão do estado português na época das chamadas Grandes
Navegações. Esse traço do imaginário da cultura portuguesa pode ser atribuído ao conjunto de
referências que o poema pode suscitar. Nesse sentido, os destinos de uma nação, de um
indivíduo e sua genealogia ou, no caso do poema, de um homem e suas memórias em estados
de fantasia e reflexão, podem ser elementos que remetem a uma realidade que, além de
fictícia, no âmbito do próprio do homem, se vale de um traço para abrir a recepção de um
leitor nacional. Se a melancolia e o niilismo de um homem se fazem relacionar, por
fragmentos do poema, com a história portuguesa ― ainda que para expressar mais claramente
a condição de homem sem certezas ―, lê-se que nos planos real, verdadeiro e carnal, como
dizem os últimos versos, isso pode ser possível, talvez.
O outro enquanto si mesmo, inicialmente uma projeção efetuada por uma lembrança,
provoca correlações entre elementos individuais e coletivos, expressos num fato imaginado e
numa realidade possível de interpretação. O “eu antigo” e o “eu moderno”, em rumos
diferentes, poderiam ser apontados como uma posição niilista do poeta, no plano realista, em
relação à instalação do Estado Novo em Portugal. Como o poema está datado de 15/12/1932
(CAMPOS, 2006, p. 204), data em que a preparação para o governo Salazarista já estava
encaminhada e consolidada, pode-se apontar que tanto o reencontro do velho com o seu
passado a “imaginar um futuro girassol” quanto a ausência de imaginação são posturas de
uma visão sem vislumbre de mudança numa ordem vigente, institucional ou existencial. O
poema, assim, pode ser lido considerando sua relação crítica, por exemplo, à aprovação
estatutos que firmaram o único partido do País, a União Nacional, cuja principal liderança era
aquele que seria o governante de Portugal por mais de trinta e cinco anos, António de Oliveira
Salazar.
O poema “Realidade” apresenta a imaginação como propulsora de relações individuais
que se descobrem pertencentes, em uma leitura possível, a uma coletividade. A princípio
atemporal, a questão do tempo entre as projeções “eu moderno” e “eu antigo” se
complementam numa ideia aberta a interpretações e sugestões de leitura que podem dialogar,
não raro, com a história nacional. Álvaro de Campos apresenta um eu lírico solilóquio que,
em seu diálogo com as próprias lembranças, se descobre pouco esperançoso quanto ao futuro,
forjando uma imagem do passado e expondo, através atemporalidade e numa situação
fantástica, o estado de niilismo ao destino do homem que se sente apático e perdido nos
próprios caminhos que construiu e que percorre em sua realidade.

REFERÊNCIAS

PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006.

PORTUGAL SALAZARISTA. Disponível em: <http://ditaduras.no.sapo.pt/portugal/portugal.


htm#Estado>. Acesso em: 09 mar. 2012.
ANEXO

Realidade

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...


Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!


Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação


Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava, então,


Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

Sim, o mistério do tempo.


Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,


Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais
lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?


Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,


Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.


Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...


Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...
Álvaro de Campos, 15/12/1932.

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