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EDITORA UFRJ
Diretor Carlos Nelson Coutinho
Coordenadora de Edição de Texto Lisa Stuart
Coordenadora de Produção Janise Duarte
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2009
59 ACI-SO 262/1.116. Informação n° 229, de Lucio Costa, 17 dez. 1951. Igreja do Rosário de
Padre Faria, Ouro Preto/MG.
60 Conforme concepção de Norbert Elias, que trata das especificidades de constituição de uma
intelligentsia nos processos de construção da nação, comparando os casos alemão e francês
Conforme se buscou tratar anteriormente, as redes de relações tecidas entre
(Elias, 1989).
agentes e agências de poder na constituição das ações de preservação cultural
no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940, foram de tal forma eficientes que légi-
timaram um determinadogrupo no controle da agência do Estado criada para esse
fim - o Sphan - e suas representações acerca do patrimônio histórico e artístico
nacional.
Contradizendo tal evidência, corltudo, a memória histórica do período relativo
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à gestão de Rodrigo Meio Franco de Andrade - chamado de fase heroíca -, enfa-
tiza o aspecto de "dedicaçãoà causa", motivo pelo qual a agência teria sido capaz
de sobreviver num contexto histórico hostil (Sphan, 1980a; Falcão, 1984). Man-
tendo-se nessa mesma linha, a história oficial do órgão insiste, ainda hoje, em
demarcar uma "desidentificação" do Sphan com relação ao regime autoritário
estadonovista, questão essa permanentemente reatualizada por "intelectuais do
patrimônio", num esforço aparentemente anacrônico (Campofiorito, 1985 e 1997).
Os anos iniciais da gestão de Rodrigo Meio Franco de Andrade foram, ao con-
trário, um momento de grande investimento na concretização de projetos, por meio
da gestão do ministro Gustavo Capanema, quando foram criadas as condições
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para que o Sphan se legitimasse e se consolidasseem bases legais. A aprovação
do decreto-lei nº 25/1937, vinte dias após o golpe que instalara o Estado Novo,
é o primeiro sinal do que viria se dar ao longo dos anos seguintes, até o final
da ditadura Varqas."
O decreto-lei nº 25/1937 foi, efetivamente, uma lei que pegou. Ao completar
setenta anos, ele se mantém atual, tendo sido, constantemente, uma referência
fundamental às legislações que se seguiram. O perfil jurídico-institucional então
configurado e a problemática delineada, que ainda persistem na atualidade como
referencial dessas ações em âmbito nacional, serão objeto deste capítulo. Preten-
de-se, portanto, mapear os caminhos que levaram à constituição de um aparato
legal, entrelaçando os projetos de lei apresentados e as iniciativas tomadas nas
décadas de 1920 e 1930 - considerados textos mediadores do processo de pro-
dução do decreto-lei nº 25/1937 -, assim como as legislações e instituições cria-
das a partir deste, complementando e/ou retocando seu conteúdo, aperfeiçoando
e/ou ampliando uma dada forma de proteção do "patrimônio nacional". Trata-se de
Figura 8. Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Rio de Janeiro, demolida
determinar os enunciados, os lugares e os sujeitos de enunciação, isto é, de loca- para a abertura da avenida Presidente Vargas (sem data).
lizar os agentes envolvidos nesse processo, assim como as diferentes posições
que ocupavam, e os diferentes interesses em disputa, investigados aqui a partir
dos vários textos que instituíram e legalizaram tais ações.
Pretende-se, com isso, tornar "visível" aquilo que constitui os textos legais
como doxa (Bourdieu, 1989), visando desnaturalizá-Ios e reconstituir-Ihes seu
lugar na história. Tais textos foram essenciais para institucionalizar as ações de
proteção, que foram atuadas para tornar "visível" o "invisível", e para constituir
a coleção de semióforos (Pomian, 1984). Lucio Costa, em 1943, estava atento para
aspecto semelhante:
E, como, afinal, o que importa preservar são precisamente os elementos concretos
e autênticos ''visíveis'' do monumento [...J, o fato de a parte "não visível" da estrutura
da igreja ser reconstituída [...J em pouca diferença importará, pois [oo.J já não estará
ali a mesma igreja.3
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 GmÃo mATIZADA Df BfNI IlhlBÓLlCOI No Brasil, o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organizou a
A ampliação da noção de patrimônio, processada notadamente a partir do final proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; foi a primeira norma jurídica
brasileira a dispor acerca da limitação administrativa ao direito de propriedade,
da década de 1970 e começo da de 1980, no Brasil e no mundo, foi acompanhada
criando o instituto do tombamento. Este é um ato administrativo que deu origem
de uma ampliação da ação pública relativa à preservação cultural, com o aumento
à tutela do Estado sobre o patrimônio histórico e artístico nacional, em virtude do
significativo da rede de agentes e agências de poder envolvidos com a temática.
valor cultural que lhe fosse atribuído, por meio do Sphan. O tombamento tem come
Foi nesse período que a agência estatizada brasileira em nível federal ampliou
finalidade impor uma delimitação de propriedades, públicas ou privadas, sem, na
suas redes de forma considerável, criando novas sedes regionais, do mesmo
entanto, promover a desapropriação ou impedir sua aJienabiJidade.Sem dúvida, c
modo que os poderes municipais e estaduais começaram a atuar nesse âmbito,
patrocinando institutos e conselhos de preservação patrimonial em suas esferas contexto de implantação do decreto-lei nº 25/1937, durante o Estado Novo, foi
político-administrativas. Entidades representativas da sociedade civil, tais como fundamental nesse sentido, já que foram construídos os meios e técnicas neces
as associações de bairro, que proliferaram nesse momento, começavam a buscar sários para sua aplicação, execução e legitimação, consagrando a ideia da pre-
na preservação um recurso para enfrentar poderes econômicos especulativos servação cultural nas mãos do Estado. Vale lembrar que, de 1937 a 1946, o Sphan.
imobiliários, ou para valorizar ou "resgatar", "recuperar", suas identidades de aplicando o tombamento, protegeu legalmente mais de 40% de todo o acervo de
grupo. Empresas públicas também começaram sua sanha preservacionista, bens tombados até 1997.
criando setores para construção de memórias institucionais, tais como a "Memória Desde sua aprovação, o decreto-lei nº 25/1937 sofreu apenas duas rnodiíica
da Eletricidade" da Eletrobrás e o Preserf, da antiga Rede Ferroviária Federal S.A.; ções. A mais recente introduziu a necessidade de homologação ministerial nc
além da proliferação de museus, como o do Telefone, o da Light e o do Bonde, procedimento de tombamento, visando maior controle sobre as ações autônomas
dentre muitos outros. mstitucionals.'
O mesmo tem se processado em outras partes do mundo. As iniciativas de Já a primeira modificação se deu ainda no Estado Novo, dispondo sobre a
preservação na França, por exemplo, partem, atualmente,de diferentes lugares, possibilidade de cancelamento do tombamento de bens do patrimônio histórico E
órgãos e entidades, configurando um sentido novo, voltado para a afirmação das artístico nacional, pelo presidente da República, mediante a aplicação da noçãc
diferenças de grupos identitários de toda ordem, reunidos sob a tutela estatal, e de uli/ídade pública, conferindo, assim, plenos poderes ao chefe do Executivo:
não mais no sentido da divisão, que a exclusão e/ou pertencimento ligado à ideia O Presidenteda República,atendendoa motivosde interessepúblico,poderá
de grupo-nação propiciava. As solicitações feitas ao Estado passam a demandar determinar,deofícioouemgrauderecurso,interpostoporqualquerlegítimointeressado,
uma participação na conservação daquilo que cada grupo considere seu patri- [que]sejacanceladoo tombamentode benspertencentesà União,aos Estados,aos
mônio. Com isso, pode-se vislumbrar uma concorrência, em termos de legitimi- Municípiosou a pessoasnaturaisou jurídicasde direitoprivadofeito no Serviço do
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dade, entre a noção de monumento nacional e a de monumentos .da história par- PatrimônioHistóricoe ArtísticoNacional,de acordocomo decreto-leinº 25, de 30 de
novembrode 1937.(Decreto-leinQ 3.866,de29 de novembrode 1941.Brasil,1967a)
cial, dos grupos etc. (Hartog, 2003). O mesmo processo foi detectado por Handler
(1988). ao analisar a trajetória da construção de um patrimônio québécois e a No ano da implantação desse decreto-lei, 1941, a Capital Federal vivia um
ampliação dessa noção mediante o confronto com a ideia de "patrimônio nacional" momento crucial, quando estavam sendo feitas as obras para a abertura da
no Canadá. Segundo o autor, essa ampliação se deu sem que fosse rejeitada a avenida Presidente Vargas. Na· reta das demolições,-encontravam-se alguns bens
noção de uma cultura "autêntica", mas localizando-a em outro lugar: na vida coti- tombados, sob a guarda do Sphan, tais como o Campo de Santana (atual praça
diana dos cidadãos comuns, concebendo a própria vida como objeto a ser preser-
vado, documentado e exibido, tanto num museu quanto num palco de um teatro
ao ar livre.
, da República), que foi destombado e reduzido para passar a avenida. Encontrava-
se, também, a Igreja de São Pedro dos Clérigos, tombada em 1938, que teve seu
tombamento cancelado, em 1943, também apoiado nesse decreto-lei, para que
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pudesse ser derrubada. Apesar de o Sphan ter apresentado um projeto alternativo com a soma de bens lombados no período, outros cancelamentos de tombamento
ao da prefeitura para o traçado da nova avenida, não obteve êxito. Por um lado, ocorreram, cujos motivos e soluções encontradas variaram relativamente. De um
os agentes do Sphan lutavam efetivamente para atuar e intervir na definição de total de 417 bens tombados de 1937 a 1946, foram cancelados apenas 9 tom-
padrões de ocupação do espaço urbano, intenção revelada em inúmeras outras bamentos," dos quais 7 foram motivados por interesses políticos e/ou econômicos
süuações.' Por outro lado, ficou patente que seu poder de barganha era relativo, em disputa;" os 2 restantes não foram cancelados pelo presidente da República,
num caso em que poderosos interesses econômicos e políticos estavam em jogO.6 mas pelo próprio diretor do Sphan, motivado pelo desaparecimento do bem, em
No processo de tombamento (e destombamento) do Campo de Santana,' encon- função da inoperância na fiscalização do imóvel tombaoo."
tram-se os embates travados nas correspondências trocadas entre vários agentes, O decreto-lei nº 25/1937 vem sendo permanentemente atualizado por diferentes
dentre os quais, Rodrigo Meio Franco de Andrade e Henrique Dodsworth, prefeito formas de apropriação de seu conteúdo e reapropriações que o mesmo possibilita.
da Capital Federal, responsável pela reforma urbana no Rio de Janeiro. No Em 1987, quando se comemoravam os cinquenta anos da instituição, a assessora
processo de institucionalização das ações de proteção, os agentes ligados ao jurídica da Sphan, então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
Sphan lutavam por abarcar um amplo universo em que se incluía a intervenção Sônia Rabello de Castro," assim considerava acerca do tombamento, no debate
na estruturação urbana das cidades onde havia bens tombados, confrontando-se, promovido pela Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional:
por vezes, com interesses antagônicos presentes no interior do próprio Estado.
[...] existe preservaçãono Brasil, mais ou menos desejável,'mas exisiê. Então,acho
Embora as investi das visando tal amplitude tenham sido raramente bem-suce- que só o aspectohistóricodessalei [decreto-lein2 25/1937] mostraque é uma lei que
didas, o sentido dado às ações de proteção puderam, a partir daí, delimitar um pegou,quetevelegitimidade,alémde ser a primeiralei queveiointervirna propriedade,
domínio específico sob o monopólio da agência estatizada, legitimando um lugar dandoao uso socialda propriedadecunho prático.(Castro, 1987, p. 70)
próprio conquistado no calor das disputas.
A ampliação da noção de patrimônio foi consagrada constitucionalmente em
No caso da Igreja de São Pedro dos Clérigos, as ações empreendidas pelos 1988, momento em que o decreto-lei nº 25/1937 foi reinvestido de atualidade, na
agentes institucionalizados não conseguiram evitar sua demolição, nem tampouco medida em que os agentes envolvidos com a preservação cultural adaptaram sua
o cancelamento do tombamento. No entanto, na tentativa de conciliação de interes- aplicação aos novos preceitos. Não contemplava ainda as novas formas de pro-
ses, coube ao Sphan determinar os métodos para desconstrução do monumento teção, posto que esse dispositivo legal regulamentava apenas o instituto do tomba-
visando sua reconstrução em outro local, com "reintegração nela do material an- mento. A Constituição de 1988, no seu artigo 216, definiu de forma mais detalhada
tigo".8 Nesse sentido, Lucia Costa elaborou um parecer, apresentando duas alter- e ampla o que seria merecedor de proteção tutelar e novas formas para sua
nativas técnicas para execução do desmonte. Contudo, ele parecia já poder efetivação além do tombamento, embora até hoje não regulamentadas por lei:
imaginar o desenrolar dos acontecimentos - e a franca desvantagem em que se
Constituempalrimônioculturalbrasileiroos bensde naturezamaterialou imaterial,
encontravam os interesses representados pelo Sphan em jogo naquela disputa.
tomadosindividualmenteou emconjunto,portadoresde referênciaà identidade,à ação,
Desta forma, ainda que tenha optado pela alternativa que lhe parecia melhor à memóriados diferentesgrupos formadoresda sociedadebrasileira,nos quais se
politicamente, para controle da efetiva realização do acordo firmado, ela nem incluem:
mesmo se concretizou, por exigir mais tempo e custos. Efetivamente, foram sim- I - as formas de expressão; :.
plesmente retirados os retábulos, altares - o material antigo de seu interior - e 11- os modosde criar, fazer e' ·\iver;
transferidos para um depósüo onde ficariam aguardando a reconstrução da Igreja, 111- as criaçõescientfficas,artísticas e tecnológicas;
que jamais aconteceu. IV - as obras,objetos,documentos,edificaçõese demaisespaçosdestinadosàs
Os casos relatados acima são. exemplares da fragilidade do Sphan frente a manifestaçõesartístico-culturais;
interesses econômicos e políticos poderosos. Embora poucos, comparando-se
"
v - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, [...] o bem cultural - histórico ou artístico - faz parte de uma nova categoria de bens,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. junto com os demais ambientais, que não se coloca em oposição aos conceitos de
Parágrafo 1º - O" Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá o privado e público, [...] porque ao bem material que suporta a referência cultural ou
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento ambiental [...] se agrega um novo bem, imaterial, cujo titular não é o mesmo sujeito
A legitimidade alcançada pelo Sphan, ao longo dos anos, fez com que fossem
do bem material, mas toda a comunidade. Este novo bem que surge da soma de dois,
isto é, do material e do imaterial, ainda não batizado pelo direito, vem sendo chamado
de bem de interesse público, e tem titularidade difusa, e talvez outro nome lhe caiba
circunscritos em torno do decreto-lei nQ 25/1937 os debates jurídicos a respeito melhor, como bem socioambiental, porque sempre tem de ter qualidade ambiental
dessa ação - consagrada no Brasil como uma questão de política pública -, e humanamente referenciada. (Souza Filho, 1997, p. 18)
também que o mesmo servisse de base ou parâmetro para a maioria das legisla-
A temática patrimonial, sem dúvida, comporta uma gama de abordagens, recor-
ções criadas por estados e municípios. No debate jurídico sobre o assunto, desta- tes e olhares, que corresponde não somente às diversas especializações por meio
cam-se os trabalhos de Sônia Rabello de Castro (1991) e o de Carlos Frederico das quais se analisa o assunto, mas, principalmente, a diferentes posicionamentos
Marés de Souza Filho (1997).13 Os aspectos relacionados à propriedade privada, frente ao problema - gerados no interior de uma luta acirrada -, que está relacio-
no que tange à proteção de bens culturais, são tratados por Castro, considerando nado, diretamente, à configuração do mundo capitalista ocidental. Em detrimento
os vários dispositivos c?nstitucionais que interagem com a matéria. O tema da de uma análise dos debates jurídic)s atuais sobre o tema, que por si só já eviden-
propriedade aparece relacionado aos aspectos relativos à questão do interesse ciariam posições distintas no campo· político, optou-se aqui por uma leitura direta
público, a partir da noção de "função social da propriedade", presente em todas dos textos legais que instituíram ou partilharam da produção desse aparato legal
as constituições desde 1934, quando a matéria da preservação patrimonial tornou- que institucionaliza as ações de proteção no Brasil, a fim de extrair de seu conteú-
se item constitucional. Sônia R. de Castro, portanto, reconstrói - reatualiza na do as representações e os projetos que embasou, assim como os interesses hege-
memória -, a partir de uma discussão jurídica relacionada aos tempos de hoje, monizados nesse processo.
os fundamentos político-ideológicos que embasaram a produção do referido
O Sphan insere-se no universo das "instituições de memória", cujos objetivos,
decreto-lei, visando mantê-Io no universo da doxa, lugar que todo texto legal genericamente, assemelhavam-se à construção da "nação brasileira", pela ins-
tensamente ocupa, ainda que seja, na verdade, construção ideativa historicamente trumentalização da história como legitimadora de ações e amálgama da sociedade,
determinada: por meio da produção de discursos em busca das raízes e origens da nação
Nesse sentido, entendemos que nenhum direito individual explicitado, como é o (Hobsbawm, 1984a), inserindo-se no contexto mais amplo de formação do Estado
direito de propriedade, pode ser tido como mais fundamental do que outro direito, ainda e construção da nação." Dentro deste vasto universo, as tarefas atribuídas ao
que não explicitamente mencionado, mas cujo sentido se possa inferir do conjunto de Sphan, definidas no decreto-lei nQ 25/1937, circunscreveram-no na problemática
normas constitucionais. Se, por um lado, a Constituição faz nascer o direito à propriedade da cultura material, assemelhando-se, sob este aspecto, à questão mais tradicio-
individual, este direito já nasce limitado em função de um outro dispositivo da própria
nalmente colocada pelos museus. Estes participaram conjuntamente do processo
Constituição, que, dispondo sobre a ordem econômica e financeira, determina a
de construção de um "patrimônio nacional", pressupondo um recurso ao con-
necessária presença de interesse público e social para o seu exercício. (Castro, 1991,
p. 11) creto - cultura material - que deveria informar sobre um passado selecionado.
As especificidades administrativas do Sphan, no entanto, caracterizadas no
Souza Filho, com preocupações de ordem bastante diversa, em termos das
referido decreto-lei, a partir da aplicação do instituto do tombamento com exclu-
possibilidades de intervenção no mundo social, acrescenta um novo olhar ao
sividade pelo Sphan, imprimiram-lhe uma atuação bastante diferenciada,
problema, sem, necessariamente, antagonizar com a referida autora:
promovendo a criação de um campo novo em que atuava o Estado, diante da tarefa
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comum de produção do "patrimônio nacional", Em termos de procedimentos, o uma profunda intertextualidade, calcada na figura de Capanema como interlocutor
decreto-lei nº 25/1937 distinguia o Sphan das outras instituições afins, inclusive do processo de produção de ambos. O processo de produção do texto legal defi-
dos museus, que, diferentemente deste, participavam da preservação da cultura nitivamente aprovado pode ser analisado em sua relação com o anteprojeto,
material mediante a incorporação de bens culturais aos seus acervos, basicamente considerando-se este como um texto mediadorY
por meio da doação e da compra, Tal distinção deve-se ao fato de o Sphan ser a .'~;,..
O caráter mediador do anteprojeto deveu-se ao papel fundador que teve neste
única organização administrativa - dentre todas as do gênero - fundada na relação
processo, bem como aos vínculos entre os agentes envolvidos, até se chegar ao
de tutela," e no consequente "poder de polícia", O poder daí originado implicou
texto legal definitivo, Esse caráter se confirmou também ao se detectar, na prática
garantir o monopólio dos atos de definir e controlar o que fosse - ou não - o patri-
da agência estatizada regida pelo decreto-lei nº 25/1937, vestígios das ideias
mônio nacional sobre o qual tal poder incioirla. No que se refere ao aspecto
contidas no anteprojeto, conformadas em novos moldes. Estes documentos
jurídico da tutela:
mantêm, portanto, relações intertextuais, sendo matérias significantes, produtoras
[",] os valores e interesses coletivos, de diversas ordens - higiene, saúde, segurança, de sentido.
cultura e outros -, são o objeto das restrições e limitações administrativas, tuteladas
Apesar do papel decisivo atribuído ao anteprojeto, ouíros textos também
pela administração pública por meio do seu poder de polícia administrativa, (Castro,
1991, p. 34)
mediaram a produção do decreto-lei nº 25/1937, tendo Rodrigo Meio Franco de
Andrade assumido o papel de articulador de diversas proposições, algumas na
forma de projetos de lei, que circularam no Congresso Federal, na década de
(ONIIRUINDO A fJfJ;(J: O DECRflO-lEI Nº 25/1937
1920, além do caráter referencial da legislação francesa, de 1913, que instru-
Um texto de lei deve ser lido como elemento constituinte da sociedade política, mentalizou várias dessas propostas. No entanto, a referência a uma possível in-
cuja função coercitiva, no sentido da imposição de regras de controle, assegura fluência estrangeira não foi reconhecida por aqueles que viveram de perto aquele
"legalmente" a disciplina sobre o conjunto da sociedade. Nem por isso, no entanto, momento, ao se contar a história da produção do texto legal, cuja memória
o texto legal deixa de ser atravessado pela dimensão ideológica. Ao contrário, "o histórica tem priorizado a influência de Mário de Andrade nesse processo."
efeito propriamente ideológico consiste precisamente na imposição de, sistemas
Se a participação de Mário de Andrade não deve ser minimizada, por outro
de classificação políticos sob a aparência de taxinomias filosóficas, religiosas,
lado, para uma melhor compreensão das estratégias adotadas, deve-se levar em
jurídicas ate." (Bourdieu, 1989, p. 14).
conta o empenho de Rodrigo Meio Franco de Andrade para se manter na linha de
O texto legal, em verdade, caracteriza-se como um discurso que ocupa a po- frente da temática patrimonial de seu tempo, considerando-se as diversas
sição dominante, Nessa posição, a visão de mundo que apresenta, isto é, o que,
proposições a que se pode ter acesso e fazendo novas apropriações das mesmas.
ela tem de arbitrário, é tido corno verdade - como doxa - não passível de conhe-
cimento (Bourdieu, 1989), Analisar um texto legal, nessa perspectiva, visa des- Os projetos de lei dos anos 1920
construir a doxa para situá-Ia na história. Ao papel exclusivo do Estado, tanto na
identificação (leia-se seleção), quanto na proteção (e seus meios) do chamado Alguns projetos para institucionalização da proteção ao "patrimônio nacional"
patrimônio histórico e artístico nacional, é conferi da uma condição dóxica, e, desta foram produzidos no bojo do nacionalismC que se configurava na década de 1920.
forma, não percebida como um ato produtor de sentido, parecendo, sobretudo, algo Nenhum deles, contudo, partiu daqueles intelectuais envolvidos com as diferentes
evidente e natural. correntes do movimento modernista. Esse envolvimento se configurou somente na
década de 1930, quando engajaram-se na concratização de seus projetos, institu-
Sob essa ótica, a comparação entre o anteprojeto de Mário de Andrade, datado
cionalizando políticas anunciadas de forma dispersa e assistemática, enfatizando,
de 24 de março de 1936, para criação do Span e o decreto-lei nº 25/1937 tomou-se
na prática, a articulação entre modernidade e tradição, não projetada anteriormente.
reveladora." Enquanto dois corpi discursivos distintos, eles foram marcados por
É ínteressarfe notar o caráter federativo que tiveram as iniciativas da década queológico "pré-histórico" (ibid.), conforme era recorrente na arqueologia, na qual
de 1920, na medida em que propunham às tarefas de proteção uma ação conjunta o Museu Nacional investia pioneiramente no Brasil. Tal iniciativa partiu de uma
entre uma entidade federal e instituições congêneres estaduais, além de atribuir solicitação do professor Bruno Lobo, ex-diretor do Museu Nacional e membro da
inúmeras responsabilidades aos executivos estaduais. Embora fossem iniciativas Sociedade Brasileira de Belas Artes (SBBA). Alguns aspectos sobre esse
em que a marca da região não estava submetida ao nacional, todas elas referiam- processo engendrado na década de 1920 serão considerados, e, posteriormente,
se a um "patrimônio nacional", característica histórica da noção de patrimônio, destacadas as características de cada um deles, identificadas no decreto-lei
~ imbricada à ideia de constituição da nação. Da mesma forma, tais propostas nº 25/1937.
previam a utilização de instituições jurídicas disponíveis na sociedade política, Na verdade, tais projetos não representaram interesses hegemônicos que Ihes
tais como "registro público-de hipotecas", ou a eleição do judiciário como poder conferissem a força política necessária ;.para alteração de princípios constitu-
autorizado para fazer o "registro" do patrimônio e para dirimir conflitos que por- cionais vigentes, em que a questão do uso social da propriedade não estava pre-
ventura surgissem, com a aplicação das medidas preservacionistas. Da mesma vista.20 Isso se daria somente com a Constituição de 1934, ao tratar da temática da
forma, a autoridade técnica do especialista era buscada também no universo cultura e da proteção patrimonial, dispondo sobre o dever da União nessa matéria:
institucionalizado preexistente, propondo formalmente o envolvimento do IHGB e
Cabe à União, aos estados e aos municípios favorecer e animar o desenvolvimento
suas filiais, do Museu Histórico Nacional e da Escola de Belas Artes. Todos es- das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de in-
ses aspectos, no momento em que foi produzido o decreto-lei nº 25/1937, seriam teresse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao
solucionados no interior do próprio Sphan. Seriam criados, para esse fim, meca- trabalhador intelectual. (Sphan, 1980a, p. 16)
~ nismos dentro da estrutura burocrática do Sphan, com poder decisório, autoridade
Os vários projetos então em circulação nesse momento estavam articulados
técnica e atributos administrativos que proporcionariam o controle e a execução
a poderes regionais, redes de relações tecidas em níveis locais que não conquis-
de todos os procedimentos da ação de proteção do patrimônio histórico e artístico
taram espaço como política nacional. Destacam-se, dentre tais redes, as ligações
nacional.
de Gustavo Barroso, que esteve ao lado dos projetos de criação das inspetorias
Um outro aspecto bastante interessante, com relação aos projetos de lei da estaduais na Bahia (em 1927) e em Minas Gerais, além de manter laços de ami-
década de 1920, refere-se ao fato de terem sido tomadas iniciativas por represen- zade com Augusto de Lima Júnior, autor do projeto de lei de 1924 (Anais do Museu
tantes dos estados de Minas Gerais, Bahia e Pernarnbuco." Os projetos de lei Histórico Nacional, n. 4, 1947, p. 558). Também a Sociedade Brasileira de Belas
encaminhados ao Congresso Federal foram: do pernambucano Luiz Cedro, em Artes - agência periférica no campo das disputas das artes, com estreitos vínculos
1923, visando a organização da defesa dos monumentos históricos e artísticos do com o movimento neocolcnial conforme visto anteriormente - esteve ao lado dos
País; o do mineiro Augusto de Lima Júnior, em 1924, visando a proibição de saída projetos, pelo Museu Nacional, de Alberto Childe e de Bruno Lobo, também mem-
do País de obras de arte tradicional; o do baiano José Wanderley de Araújo Pinho, bro da SBBA. Quanto a Luiz Cedro, era amigo e conterrâneo de José Mariano
em 1930, reapresentado em 1935, visando a criação de uma Inspetoria Estadual Filho, líder da corrente neocolonial e membro da SBBA.
de Monumentos Nacionais, não chegando, contudo, a ser votado em nenhuma das Os modernistas que participavam então de outras redes, na década de 1930,
ocasiões (Sphan, 1980a). tomariam as rédeas desse projeto junto a Capanema. Noções como as de "passa-
Apenas o anteprojeto produzido por Alberto Childe, professor de Arqueologia dismo" e de "culto à saudade", defendidas por aqueles agentes na década de 1920,
do Museu Nacional, e que'. posteriormente comporia o Conselho Consultivo do seriam desconsideradas pelo grupo que se articulou junto ao MES. Ainda assim,
Sphan, tratou-se de uma iniciativa sem cunho regional e fora do universo daqueles tais projetos guardam muitas semelhanças com o decreto-lei nº 25/1937.
três estados. Datando de 1920, esse anteprojeto sintetizava preocupações Por outro lado, o grupo articulado junto a Capanema e ao Sphan reafirmou a
relativas não a um patrimônio "histórico e artístico", mas 'a um patrimônio ar- ênfase na valorização de um "patrimônio nacional" nas regiões de Minas Gerais,
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l!lli 01 ARQUlltlOI OA MfMÓRIA A PRofECio INllllUCIONAlIIAOA ps[]
Bahia e Pernambuco, parecendo pertinente pensar que essa valorização vinha se propostas: "proibição de destruição no todo ou em parte, como ainda de qualquer
construindo e sendo consagrada, desde a década de 1920, por diferentes grupos modificação, reforma ou restauração sem que as obras sejam aprovadas pela
e frações de classe. Excetuando-se o Rio de Janeiro - que também teve, nas Inspetoria" (Sphan, 1980a, p. 63).26
décadas de 1930 e 1940, um alto índice de bens tombados pelo Sphan, represen-
Essas ideias são advindas da legislação francesa, que assim tratou em seu
tando o cosmopolitismo da "Corte", dada a presença histórica do poder central -,
texto:
Minas Gerais, Bahia e Pernambuco foram os estados onde um maior número de
tombamentos foi realizado," consagrando-se o período colonial como fundador da
o imóvel protegidocomo monumentohistórico não pode ser destruído,deslocado,
modificado, mesmoque em parte, nem pode ser objeto de um trabalho de restauração
nacionalidade, a partir de alguns recortes significativos. Minas Gerais, com suas
ou reparaçãosem a autorizaçãopréviado Ministérioda Cultura. O imóvelprotegidonão
cidades históricas e a opulência de suas igrejas barrocas, constituía-se, progressi- pode ser cedido (dado, vendido, legado [...]) sem que o ministro seja informado.
vamente, a partir especialmente da década de 1920, na representação mais genuí- (Direction du Patrimoine,1984, p. 6)
na das origens da nação e fundadora de uma produção artística "autenticamente
O mesmo ocorreu na primeira legislação preservacionista da província de
nacional". Na Bahia, foram valorizadas as produções seiscentistas, como as
Ouebec, no Canadá, em 1923, cujo texto muito se assemelha ao francês, utilizando
sedes de fazenda do Recôncavo Baiano e suas capelas rurais, que, segundo
também o termo classement
definição de Rodrigo Meio -Franco de Andrade, eram os "monumentos mais ar-
caicos e genuínos do acervo arqulíetônico de nosso país" e, para ele, "as maiores Essa lei trata da "classificação"de "monumentose objetos de arte cuja preservação
é de interesse nacionalsob o ponto de vista histórico e artístico". Uma vez classificado
e mais imponentes", pela sua "ancianidade e o valor arquitetônico" (Andrade,
[no Diário Oficial de Québec], o bem imóvel não poderá ser destruído, refomnado,
1986b, p. 135). Somava-se a isso a majestade jamais perdida da cidade de
restaurado ou alterado sem o consentimentodo secretário provincial, que deve ser
Salvador, cuja "ancianidade" de primeira capital da Colônia lhe valeu também um aconselhadopela Comissãode MonumentosHistóricos, formada por cinco membrose
caráter fundador: "sentimento comum de todos os baianos amantes das tradições estabelecida por lei. (Handler, 1988, p. 142)
imortais de sua terra, berço da naclonalidade"." -
Sem minimizar o caráter referencial da França em matéria cultural para boa
A "arquitetura arcaica" era representada pelas construções anteriores ao século parte do mundo ocidental, especialmente naquele momento em Ouebec os motivos
.XVIII, marco a partir do qual Minas Gerais assumia papel preponderante, cuja seriam ainda mais evidentes, na medida em que os québécoises lutavam para
produção arquitetônica foi denominada "tradicional". Pernambuco, portanto, tam- "resgatar" e garantir suas origens francesas - nada mais apropriado do que se
bém tinha sua arquitetura "seiscentista - isto é, arcaica - valorizada, suas capelas utilizar da matriz a partir da qual queriam referendar-se.
e engenhos que consubstahciavam uma ancianidade para a nação, e suas fortifi-
O projeto de lei do pernambucano Luiz Cedro, de 1923, propunha a criação
cações, que faziam lembrar a vitória portuguesa sobre os holandeses, relativa a
de uma Inspetoria de Monumentos Históricos dos Estados Unidos do Brasil, "para
esse tempo remoto, que era reatualizado na memória como um primeiro momento
o fim de conservar os imóveis públicos ou particulares que, do ponto de vista da
de nacicnalismo."
história ou da arte, revistam um interesse nacional" (Sphan, 1980a, p. 63). Nele
Outro aspecto que reunia os três projetos de lei conslderados" era o fato de ficava explicitamente referida a necessidade de um arquiteto,-como o protlssional
terem possivelmente se baseado na legislação da França de 1913, aspecto mais adequado para realizar tais tarefas, e as fotografias seriam a fonte docu-
perceptível devido a algumas semelhanças que' se evidenciam nos textos. Primei- mental privilegiada para o trabalho de análise e avaliação. Esses dois aspectos
ramente, por proporem a criação de uma "inspetoria", dentro da estrutura minis- não seriam considerados no texto do decreto-lei n2 25/1937; contudo, fariam parte
terial pertinente, e utilizarem a noção de classificação e/ou catalogação de mo- das práticas que se rotinizaram no Sphan. As fotografias se tornariam, na prática
numentos a serem incluídos numa lista geral, tal e qual a norma francesa." Além do Sphan, um elemento fundamental de conhecimento e informação, em todos os
disso, a definição das restrições impostas se repetia textualmente nas diversas trabalhos realizados, quer no momento da "descoberta" ou seleção do bem para
tombamento, quer nas etapas do trabalho relativas a sua conservação e a sua [...] todas as coisas, imóveis ou móveis, a que deva estender a sua proteção o Estado,
restauração. Esse assunto será retomado mais adiante, ao serem consideradas em razão de seu valor artístico, de sua significação histórica ou de sua peculiar e
notável beleza, quer pertençam à União, aos estados, ao Distrito Federal, aos
as práticas de restauração empreendidas pelo Sphan, valendo destacar, por hora,
municípios, a coletividades ou a particulares. (Sphan, 1980a, p. 79)
que a fotografia é uma forma de expressão não substituível pelo texto escrito,
cujas especificidades lhe conferem um poder de autenticação do real - "assim é O conjunto desses projetos caracterizou-se, principalmente, pela tentativa de
a foto: não pode dizer o que ela dá a ver" (Barthes, 1984, p.15). definir medidas juridicamente cabíveis para a "proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional" e seus procedimentos burocrático-administrativos. No entanto,
Embora não tenham sido apresentados ao Congresso Nacional como projeto
f nenhum deles aprofundou, como o fez Mário de Andrade em seu anteprojeto, as
de lei, os trabalhos da comissão designada pelo presidente de Minas Gerais, Meio
concepções de cultura e arte, assim como o papel do intelectual especializado
Viana, para "organizar a pr.oteção do patrimônio histórico e artístico" resultaram
na execução dessas ações. Este foi, por sua vez, um texto frutificador de ideias,
num anteprojeto de lei federal apresentado pelo mineiro Jair Uns, em 1925. Ele
propondo procedimentos, de forma integrada às concepções que os embasavam,
propunha:
engajado que estava seu autor na construção de uma "cultura nacional". Se tais
Os móveis e imóveis, por natureza ou destino, cuja conservação interessar à concepções não foram plenamente apropriadas no texto do d~~reto-Iei n: 25/1937,
coletividade, devido a motivo de ordem histórica ou artística, serão catalogados total
serviram de escopo para a constituição de um pensamento a respeito da temática
ou parcialmente, na forma desta lei e, sobre eles, a União ou os Estados terão direito
da preservação cultural, que, apesar de hegemonizado àquela época, manteve-se
de preferência [...]. (Sphan, 1980a, p. 71)
atual, tendo sido em boa medida retomado na década de 1970, no bojo do processo
Os principais aspectos desse projeto, incorporados pelo decreto-lei nº 25/
de ampliação da noção de patrimônio.
1937, advinham de sua ênfase na noção de direito de preferência conforme expos-
to anteriormente; das possibilidades de catalogação "voluntária" ou "compulsória" o anteprojeto de Mário de Andrade
com relação ao interesse do proprietário do bem; da proposição de criação de uma
Segundo Sônia R. de Castro,
revista especializada sobre a temática patrimonial, proposta por d. Helvécio, arce-
bispo de Mariana e membro da referida comissão mineira, agente que, posterior- Até na questão históricadas duas propostas legislativas, a de Mário de Andrade,
mente, apoiaria inúmeras ações do Sphan; da preocupação em preservar também que nem foi uma proposta,foi um ensaio, e a proposta de que saiu mesmo o decreto-
a vizinhança do bem "catalogado"; e, por fim, da criação de um livro especial para lei nO25/1937, a coisa é muitoclara. O que Mário de Andrade propunha era uma política
de preservação, Mas aquela política de preservação não tinha os instrumentos legais
"catalogação", ideia que seria reelaborada por Mário de Andrade e incorporada
para efetivar uma intervenção na propriedade. (1987, p. 75)
plenamente pelo decreto-lei nº 25/1937. 27
Além disso, o texto, encomendado por Capanema, teria circulação restrita e não Mas, prosseguia o autor, foram criadas para um determinado fim que se
se propunha a deter-se na "eficácia jurídica", voltado que estava para os aspectos tornou histórico, porque nelas ou por elas se passaram fatos significativos de nos-
conceituais de definição do que se enquadraria na categoria de "patrimônio sa história, ou porque nelas ou por meio delas viveram pessoas ilustres da
artístico nacional". nacionalidade. A arte histórica definia-se ainda mediante uma datação: tudo aquilo
Dentre os objetivos expressos no anteprojeto estavam as ações de organizar, que, sem outros atributos, fosse anterior a 1900 ou tivesse, doravante, mais de
conservar e defender o patrimônio artístico nacional. Para a ação proposta de cinquenta anos. Dessa forma, esta categoria não se definiu por atributos intrín-
propagar, Mário de Andrade previa a criação de uma "Seção de Publicidade" para secos ao objeto material, servindo, assim, como uma espécie de "coringa", ou seja,
o Span, com duas séries de publicações capazes de divulgar os seus trabalhos. abrigando aqueles objetos sem atributos artísticos. Critérios bastante semelhantes,
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(
relacionados à inscrição no Livro de Tombo Histórico, foram utilizados, corrente- estabelecer uma hierarquia legal/formal entre os diferentes livros, sendo o
mente, na prática do SptjJn, e serão oportunamente tratados no capítulo 4. tombamento o atributo comum a todos eles. O anteprojeto previa outras finalidades
Para inclusão nas categorias de arte erudita nacional, arte erudita estrangeira, aos livros, integrando os museus nacionais à proteção do patrimônio, conforme
artes aplicadas nacionais e artes aplicadas estrangeiras, Mário de Andrade explicitado anteriormente, junto às denominações dadas aos livros. Tais museus
buscava conjugar critérios 'de consagração externos, tais como: se o artista era deveriam ser criados ou incorporados ao Span para cumprirem o objetivo de
vivo ou morto; se a obra havia sido oficialmente premiada; se o artista estrangeiro propagar o patrimônio artístico nacional. Heloísa Alberto Torres, então diretora do
era reputado de mérito; se era uma propriedade pública etc. Isentava, desta forma, Museu Nacional, consultada por Rodrigo Meio Franco de Andrade a: respeito do
os agentes institucionalizados desse papel. Já, para as categorias de arte arqueo- anteprojeto de Mário de Andrade, fez sérias críticas a essa tentativa de incor-
lógica, arte ameríndia, arte popular, ele especificava o tipo de objeto que deveria poração de museus nacionais, deixando transparecer, inclusive, que em algum
se enquadrar, fornecendo vários exemplos e deixando a atribuição de valor, para momento havia sido proposta por Mário a incorporação do próprio Museu Nacional,
esses casos, a cargo da agência do Estado, e não mediatizada por atributos exter- ou melhor, seu desmembramento para criação de um Museu Etnográfico. Projeto
nos, como as anteriores. no mínimo ousado, levando-se em conta as negociações necessárias para sua
Se vários desses critérios foram posteriormente utilizados pelo Sphan, não o realização. A diretora do Museu Nacional argumentava, enfaticamente, contra a
foram como norma explicitada no decreto-lei nº 25/1937, mas como uma reapro- ideia de afastar os "laboratórios de etnografia dos de qualquer ramo de estudo da
priação desse ideário, o que foi percebido em alguns momentos, especialmente história natural", explicando como essa seção, no Museu Nacional, recorria aos
caracterizados no trabalho do Conselho Consultivo, analisado no próximo capítulo. demais laboratórios, considerando que a pesquisa etnográfica estava ligada às
ciências naturais:
A segunda noção básica no anteprojeto era a de classificação e registro do
patrimônio, de acordo com a inscrição daquilo que pertencesse ao patrimônio [...] fosse o novo museuetnográficodotadode um botânico e de um etno-zoólogo,ainda
artístico nacional, em quatro Livros de Tombo. A noção de registro parecia advir assim não estaria suprida a falta [...]. Não se pode atribuir ao nosso museu etnográfico
a função de museu-arquivoque o projetoparece recomendar. Em todo ele apenas uma
de uma necessidade de. controle jurídico e de fiscalização, tal qual os Livros de
palavra faz crer que a pesquisatambémé admitida [...] o termo enriquecer o patrimônio.
Tombo existentes em museus. Já a ideia de classificação, que resultou na criação
[...] O projeto não abre novas possibilidadesaos estudos aníropolóqicos."
de quatro livros diferenciados, reaglutinava as oito categorias de obra de arte dis-
secadas num primeiro momento, conforme exposto anteriormente, criando uma nova Rodrigo Meio Franco de Andrade promovia, então, um intenso debate, do qual
tipologia. A inscrição nesses livros efetivava o tombamento, expressão cunhada pôde fazer suas próprias leituras e aprorlações, tomando uma posição a partir
pelo autor: das relações que ia tecendo. Nesse embale, Mário de Andrade, confrontando-se
abertamente com Heloísa Alberto Torres, escrevia para Rodrigo esclarecendo sua
1) Livro do Tombo 'Arqueológico e Etnográfico (categorias 1, 2 e 3);
proposta de desmembrar o Museu Nacional:
2) Livro do Tombo Histórico (categoria 4);
Um museu etnográfico deve estar separado dum museu de história natural [...].
3) Livro do Tombo das Belas-Artes / Galeria Nacional de Belas-Artes
D. Heloísa, ao entender etnografia,pelassuas especializações,só pensa em "etnografia
. ;'1
(categorias 5 e 6); ameríndia", ao passo que eu, pelas minhas especializações, entendo principalmente
4) Livro do Tombo das Artes Aplicadas / Museu de Artes Aplicadas e Técnica "etnografia popular". Se não me engano, no meu trabalho mostrei que a etnografia
Industrial (categorias 7 e 8). ameríndia podia estar ajuntadaà arqueologia.E tudo não fará um desgraçadomal que
fique no Museu de História Naturalque é o Museu Nacional. Mas a etnografia do nosso
A organização destes livros em quatro volumes diferentes promovia um enqua- povo brasileiro tem, creio, só uma sala no Museu Nacional, e essa é a parte pra mim
dramento desse patrimônio, de uma dada forma particular, sem, contudo, mais importante." (Andrade, 1981, p. 61)
,;
amigos para discuti-Io. Afirmava "dona" Judith: ingenuidade de Mário de Andrade. Ele próprio, àquela altura, em qual categoria
se enquadraria, com seus 43 anos?
Reduzir o projeto inicial a esse decreto-lei [nO25/1937] foi uma luta tremenda [00']'
O Mário de Andrade subordinava todos os museus ao Patrimônio. Os diretores de A concepção do anteprojeto fundava-se na ideia da competência técnico-
museus se insurgiram, não quiseram concordar. E o trabalho de elaboração desse profissional, por meio da qual, para seu autor, o Span seria legitimado, instrumen-
decreto-lei foi muito grande, levou muitos meses para concatenar todos os pareceres talizando-se em termos de quadros profissionais de excelência técnica. Ao que
e reduzi-los à essência. (Martins, 1987, p. 26) parece, o aprendizado a respeito das relações entre saber e poder fez-se marca-
O anteprojeto preocupou-se em definir os diferentes tipos de profissionais damente presente na trajetória pessoal e profissional de Mário de Andrade. Nesse
considerados necessários para apoiar as decisões da direção do Serviço. De sentido, ele expressava sua crença na valorização da competência técnica, com
acordo com Mário de Andrade, o Span deveria ter um arqueólogo, um etnólogo, a pretensão de garantir, por meio dela, a manutenção do conflito de interesses em
um historiador e um professor de história da arte, em sua área central, asses- disputa circunscrito à esfera da própria agência, que estaria autorizada, mediante
sorando a direção. O r\,~smo quadro de profissionais deveria se repetir em cada essa legitimidade e reconhecimento, a dirimir quaisquer dúvidas, questionamentos
um dos estados da União. Estes profissionais deveriam propor a inscrição de e controvérsias no exercício das tarefas do Span.
obras de arte nos respectivos estados, ficando a decisão final a cargo da direção
central do Span. Quanto ao Conselho Consultivo proposto por Mário de Andrade, o decreto-lei nO 25/1937
suas atribuições não ficaram discriminadas, mas foram definidos sua composição Como se viu, em alguns dos textos mediadores referidos acima, em especial
e os critérios para sua renovação. Este Conselho deveria constituir-se de cinco no anteprojeto de Mário de Andrade, foi identificada uma preocupação em definir
membros fixos (diretor do Span e quatro diretores dos museus) e mais vinte mem- o tipo de profissional necessário para lidar com a problemática da proteção ao
bros móveis: dois historiadores, dois etnógrafos, dois pintores, dois escultores, "patrimônio nacional". O autor do decreto-lei nº 25/1937, ao contrário, embora fa-
dois arquitetos, dois arqueólogos, dois gravadores, dois artesãos e dois escritores/ zendo uso de várias ideias anteriormente enunciadas, não se deteve no assunto.
críticos de arte. A definição de profissionais se faria na prática do Span, conforme se verá no de-
A renovação do Conselho Consultivo deveria se dar parcial' e anualmente, correr deste trabalho." Com certeza, essa indefinição não resultou de esque-
trocando-se dez membros móveis, sendo vetada a reeleição sem descanso de cimento, mas da conveniência de se manter em aberto uma amplitude de possi-
dois anos. Os critérios para a escolha de nomes seriam a partir de cada "par bilidades.
móvel", que deveria conter um representante com mais de quarenta anos, outro Os limites e os recursos formais impostos à produção do texto legal, ao
com menos e, de preferência, um representando ideias acadêmicas e outro, ideias contrário do anteprojeto, fizeram talvez com que a escrita do decreto-lei nQ 25/1937
2) Aplicação Ao PAN, ou seja, 'todas as obras de arte pura ou de arte aplica- "A presente lei se aplica às eoísas pertencentesàs pessoas natu-
da, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos rais, bem como às pessoasjurídicas de direito privado e de direito
poderes públicos, a organismossociais -e a-particulares nacionais, público interno." (Art. 2') .- <,
4) Condições de Obras de arte classificadas em oito categorias (arte arqueológica; Que sua "conservação seja de interesse público": 'quer por sua
pertencimento/inclusão ameríndia; popular; histórica; erudita nacional; erudita estrangeira; vinculação a fatos da história do Brasil, quer por seu excepcional
aplicadas nacionais e aplicadas estrangeiras). Especifica as valor arqueológico ou etnógrafico, bibliográfico ou artístico", e
formas e tipos de manifestaçãode cada uma delas como critério/ "monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que im-
condição de inclusão. portem conservar e proteger".
5) Finalidades dos Inscrição dos nomes de artistas, coleções públicas e particulares, A realização do tombamento com a inscrição dos bens descritos
livros do Tombo e das obras de arte que pertencerão oficiallmente ao PAN. noartigo 1', no livro que for correspondente. São eles: 1) livro
Correspondência entre os livros, as oito categorias de arte e os do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (arte arqueo-
museus nacionais pertencentese ao Span: 1) Livro do Tombo Ar- lógica, ameríndia e popular e monumentos paisagísticos); 2)
queológico e Etnográfico (arte arqueológica, ameríndia e popular); livro do Tombo Histórico (coisas de ínteresse histórico; obras
contmua .(J.
2) livro do Tombo Histórico (arte histórica); 3) Livro do Tombo de arte histórica); 3) livro do Tombo de Belas-Artes (arte erudita
de Belas-Artes/Galeria Nacional de Belas-Artes (arte erudita nacionaf e estrangeira); 4) Livro do Tombo de Artes Aplicadas
nacional e estrangeira); 4) Livro do Tombo de Artes Aplicadas (artes aplicadas nacionais e estrangeiras).Quantoà especificação
(nacionais e estrangeiras). Deverão ser instalados os museus dos bens que se incluem em cada um dos quatro livros, afirma
Histórico Nacional, Arqueológicoe Etnográfico,e deverá ser criado que 'serão definidos e especificados no regulamento que for
C>
o Museu de Artes Aplicadas, vinculando-os aos respectivos livros. expedido para execução do Sphan".
~
=
6) Procedimentos para Quem faz a inscrição do tombamento é o diretor do Span, com 1) O proprietário deve ser sempre notificado; 2) quando de bens
tombamento (inclusão) exposição de motivos, apoiado por área técnica chamada Chefia pertencentes à União, estados ou municípios, se fará de ofício
de Tombamento, composta por um núcleo centraf com: um ar- por ordem do diretor, 3) quando de coisa de propriedadeprivada,
queélogo; um etnógrafo; um historiadore um professor de história poderá ser voluntário ou compulsório; 3.1) voluntário: quando o
da arte; e comissões regionais, compostas dos mesmos tipos de proprietárioanuir a notificação; ou quando pedir seu tombamento,
profissionais, com função de escolher e sugerir o tombamento e a juízo do Coselho ConsuHivodo Sphan, for avaliado com os
das obras de arte de seus estados respectivos,sem função deci- requisitos necessários para constituir parte integrante do patrimô-
<,
séria A participação do Conselho Consultivo será apenas na de- nio histórico e artístico nacional; 3.2) compulsório: quando o pro-
cisão das obras de arte erudita nacionaf ou estrangeira, quando prietário se recusar a anuir a inscrição; terá quinze dias para im-
deverá avaliar se são de "mérito nacional" para tombamento. pugnar, justifICandosuas razões, e o Sphan terá mais quinze dias
para elaborar suas contra-razões.Caberá ao Conselho ConsuHivo
a decisão final.
7) Conselho Consultivo Sua composição: os quatro chefes dos museus mais vinte mem- Suas atriquiçães estão acima descritas (art. 7' e 9') (ver item 6
bros móveis: dois historiadores; dois etnógrafos; dois músicos; deste quadro); o art. 14' detenminaainda que cabe ao Conselho
dois pintores; dois escultores; dois arquitetos; dois arqueólogos; Consultivo decidir se a coisa tombada poderá sair do País e o
dois gravadores; dois artesãos; dois escritores. Renovação: prazo que' ficará fora para fim de intercâmbiocuHuralsem transfe-
anualmente, de dez dos membros móveis de cada par. Cade par rência de 'domínio. Não apresenta sua constituição, composição
móvel deverá conter um representantecom mais de 40 anos de e renovação. (A lei n' 378, de 13 de janeiro de 1937, determina
idade e outro com menos de 40, de preferência um que repre- que seus membros serão escolhidos pela presidência da Repú-
sente ideias acadêmicas, e outro, ideias renovadoras blica, sem esclareder os critérios).
o tombamento não retirava o direito do proprietário de alienar seu patrimônio. O Conselho Consultivo deveria ser ouvido também quando se tratasse de
Contudo, impunha o direito' de preferência, obrigando que o bem a ser alienado tombamento compulsório - casos em que o proprietário, não anuindo ao tomba-
fosse oferecido prevlarnentéà União, ao estado e ao município onde o mesmo se mento, apresentasse suas razões de impugnação, num prazo de quinze dias da
encontrasse, nessa ordem." Semelhante aos projetos de lei anteriormente citados data de recebimento da notificação, devendo o Conselho, em sessenta dias,
e ao texto da legislação francesa, no artigo 17 do decreto-lei nº 25/1937 ficava
2 avaliar e decidir a respeito. A partir do Regimento Interno de 1946, todo pedido
determinada a obrigatoriedade do proprietário na conservação do bem tombado e de tombamento passa a ser julgado pelo Conselho Consultivo.
a autoridade do Sphan como único orgão competente para garantir a integridade .. Com tais medidas, embora criando mecanismos de integração com agentes
de tais bens, vigiando, fiscalizando e definindo as formas apropriadas para' sua sociais interessados, a agência estatizada tinha grande autonomia e domínio do
restauração: processo de decisão, em função dos próprios critérios de inclusão/seleção expli-
[ ... J as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidasou citados (ver itens 2 e 6 do quadro 3.1), na medida em que não ficaram esclarecidos
mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e os procedimentos para renovação dos membros do Conselho Consultivo (nem
Artístico Nacional, ser reparadas,sob pena de multa de 50% do dano causado. (Sphan, mesmo em sua lei de criação, conforme já foi visto). Esse, que atuava no sentido
1980a, p. 115)'" de dirimir possíveis conflitos como uma instância superior, garantiria o exercício
Para que um proprietário pleiteasse o financiamento pelo Sphan de obras em de articulação discursiva a respeito da ri~cionalidade, com o triunfo do "interesse
seu imóvel tombado, deveria comprovar não dispor de recursos, devendo comu- público", legitimando as práticas seletivas do sphan."
nicar o estado precário em que se encontrasse o bem. Ao Sphan caberia a de- O decreto-lei nº 25/1937 (Sphan, 1980a) desenvolveu, ainda, um aspecto
cisão sobre a necessidade de financiar e executar as obras. Por outro lado, caso levantado brevemente no anteprojeto, a respeito da necessidade de proibição de
o Sphan julgasse necessárias obras em quaisquer dos imóveis tombados, poderia saída do País de obras de arte tombadas. Segundo o que ficou estabelecido no
"projetá-Ias e executá-Ias" sem que o proprietário as solicitasse. decreto-lei, as obras de arte tombadas somente poderiam sair do País para fins
Tais regras, pertinentes aos bens arquitetônicos, maciçamente privilegiados de intercâmbio cultural, por curto espaço de tempo e a juízo do Conselho Consul-
na atuação do Sphan, garantiram a criação de um vasto mercado de obras e res- tivo; caso contrário, se caracterizaria crime de contrabando.
taurações aos arquitetos que lá se aparelharam. Se por um lado esses proce- Nesse sentido, o decreto-lei imputava ao Sphan o direito de controlar o
dimentos, assim definidos; possibilitaram ao Estado garantir a permanência de um comércio de antiguidades, visando intervir também sobre o mercado de arte em
considerável acervo de bens culturais arquitetônicos, por outro, sua aparente res- formação, já que obrigava não somente os "negociantes de antiguidades, de obras
ponsabilização mútua - dÇJp'roprietário e do Estado - escamoteava a subjetividade de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros" (artigo 26) a se
que permitia aos aqentes do Sphan tratamentos diferenciados na escolha dos cadastrarem no Sphan, como a terem autenticados pelo mesmo, ou por perito de
bens, cujas obras seriam financiadas pelo poder público." sua confiança, quaisquer desses objetos, antes de serem leiloados ou vendidos.
O decreto-lei nº 25/1937 definiu os procedimentos para consecução do tomba- Essa autenticação seria feita mediante o pagamento de uma taxa de peritagem,
equivalente a 5% do objeto avaliado e avalizado peio Sphan.43 Com essas me-
mento, considerando a possibilidade de haver tombamento voluntário - quando o
didas, visou-se evitar o contrabando de peças incluídas na categoria de patrimônio
proprietário do bem anuísse à notificação de tombamento obrigatoriamente feita a
histórico e artístico nacional, o que foi efetivamente feito, ainda que precariamente.
ele pelo Sphan - e de haver casos em que a indicação e a conclusão do tomba-
Por outro lado, o Sphan passou a valorizar o mercado de arte, nele intervindo por
mento não ultrapassariam a esfera da direção do Sphan; ou quando o pedido de
tombamento fosse feito pelo próprio proprietário do bem ou por interessados.
meio de sua autenflcação."
Nesse caso, o Conselho Consultivo deveria ser ouvido a respeito do merecimento O anteprojeto de Mário de Andrade tentou garantir, no processo de composição
ou não de tal bem receber a chancela do tombamento e a tutela do Estado. e renovação do Conselho Consultivo do Span, a multiplicidade de competências
técnicas e posições conflitantes, legitimando o papel do intelectual na adminis- classés, nos quais nenhuma demolição, restauração ou alteração poderia ser efe-
tração pública e vice-versa, isto é, legitimando esta, a partir da especialização tuada sem o consentimentodo Ministério da Cultura. Quando essa permissão era ''' •• 1
técnica, delimitando o lugar das disputas de posições no universo de intelectuais dada, os trabalhos deveriam ser executados sob a supervisão do Serviço de Mo-
consagrados da agência estatizada. numentos Históricos (arquiteto responsável pelas restaurações, arquiteto dos edi-
Tais procedimentos, como tantos outros, não foram incorporados no decreto- fícios da França responsável pela manutenção) (Direction du Patrimoine, 1984,
t. p. 8). Isto é, somente os arquitetos pertencentes aos quadros das duas reparti-
lei n° 25/1937, mas constituíram as bases de legitimação do Sphan, nos anos
subsequentes, em seus diversos toei de ação. A variedade de conhecimentos ções - Arquitetos dos Edifícios da França ou Arquitetos dos Monumentos Históri-
especializados foi mais restrita e, obviamente, sem a lógica proposta por Mário cos - poderiam supervisionar o trabalho que, frequentemente, era executado às
de Andrade. Ela foi cuidadosamente distribuída de acordo com os objetivos do custas do próprio poder público. Existiam, ainda, mais de vinte mil edifícios ins-
órgão, em seus diterenciados, âmbitos de atuação e, com certeza, o arquiteto erits, nos quais o proprietário deveria notificar o referido Ministério com quatro
passou a ter uma participação n~ Sphan jamais imaginada por um intelectual como meses de antecedência sobre qualquer modificação que pretendesse fazer; sua
Mário de Andrade, imbuído de' premissas universalizantes. Por sua vez, no Con-
I
obrigação, no entanto, restringia-se a conservá-Io no estado em que se encontrava
selho Consultivo, o arquiteto não teve participação significativa. quando tornou-se um monumento inserit, mas o Ministério da Cultura poderia
O Sphan engendrou, em sua prática, a legitimidade de tais procedimentos conceder subvenção de até 20% do montante requerido pela obra" (Gouveia,
previstos em lei, naturalizando a exclusividade de seus agentes nessas tarefas. 1985; Direction du Patrimoine, 1984).
Obviamente, a hegemonia e o consenso alcançados pouco a pouco, durante o Com efeito, por meio da construção do discurso legal, foram reificadas ideias
Estado Novo, não se deram sem conflitos, os quais serão tratados nos capítulos construídas num tempo e lugar muito precisos, tais como a noção explícita de per-
seguintes. Neles, serão analisados diferentes IDei de ação do Sphan. tencimentolinclusão, e a concentração do processo de seleção e de decisão de
A legislação francesa foi inspiradora da produção dos projetos de lei ante- inclusão dos bens na categoria de patrimônio histórico e artístico nacional nas
riores e do próprio decreto-lei r'lº 25/1937, especialmente com relação à presença mãos da direção da agência estatizada e de um Conselho Consultivo escolhido
do Estado nesse assunto. No éntanto, se com a lei de 1913 o Estado francês pas- pela presidência da República. Isso dava ampla margem ao Estado, mediante sua
sa a financiar 50% das' obras de restauração dos imóveis "classificados", gerando agência, para construir uma visão particular da nação, escolhendo aquilo que me-
um ônus real ao poder público, que compartilhava, assim, efetivamente, da restau- lhor representasse a história que pretendia consagrar. Inaugurou-se, assim, oficial-
ração do "patrimônio nacional" por ele designado como tal, no caso brasileiro, o mente, a ação de preservaçãodo patrimônio histórico e artístico no Brasil, fundada
decreto-lei nº 25/1937 foi bem menos claro com relação aos critérios de escolha na sua identificação com o Estado. É a própria história do Estado que é contada,
de qual bem tombado mereceria financiamento público para restauração, per- pelo seu "não reconhecimento"como uma escolha política que a diferenciasse de
mitindo, por sua vez, uma proliferação de tombamentos de bens sem que hou- outras ações possíveis. O Estado se autoatribuiu o papel de agente dá memória
vesse, necessariamente, o correspondente investimento em sua conservação. Por da nação, detentor da tutela do paírímônohisíórtco e artístico nacional - e também
outro lado, inúmeras restaurações foram feitas às custas do Estado, sendo que de sujeito da história.
os critérios de seleção dos bens tombados a serem restaurados ficavam basica- Foi sob essa ótica que se deu a escolha dos bens a serem conservados, aos
mente a cargo do Sphan, sujeito a injunções de toda ordem." quais se atribuiu paralelamente toda uma série de significados, num esforço de
Também na França o arquiteto tornou-se o especialista das ações de proteção seleção daquilo que não deveria ser esquecido, daquilo que, para consolidação
ao "patrimônio nacional", ainda que, como no Brasil, isso não estivesse definido da nação, deveria permanecer na memória, materializando-se nos bens tombados.
por lei. Na década de 1980, somavam-se, na França, mais de doze mil edifícios Tratava-se de encerrar escolhas de um passado que representassetoda a nação.
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1º) a preservação e conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens
Legislaçõescomplementaresao decreto-lei nQ 25/1937
móveis de valor histórico ou artístico [...J. (Brasil, 1967, p. 15)
O processo de institucionalização da prática oficial de preservação cultural
Na década de 1960, foi aprovada a lei n° 3.924, de 26 de julho de 1961,47
levou à criação de algumas legislações complementares. Parte delas, notada-
dispondo sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos, no sentido de
mente motivadas por problemas conjunturais e pontuais, tratou de aspectos
regulamentar as ações do Sphan nesse âmbito, expressas no decreto-lei nº 25/
bastante específicos, para os quais o exercício de aplicação do decreto-lei nº 25/
1937. Era, no entanto, dificilmente executável, pois, apesar de previsto como
1937, exclusivamente, mostrou-se ineficaz. Por meio da criação de novas leis,
passível de proteção, a natureza do "patrimônio arqueológico" não se adequava
buscava-se mediatizar conflitos gerados a partir da implementação do decreto-lei
à aplicação do tombamento, devido à pesquisa de prospecção, que, por si, des-
nº 25/1937.
truía o bem, ato inadmissível a um bem tombado. Nesse sentido, a monumenta-
O decreto-lei nº 2.809, de 23 de novembro de 1940, por exemplo, dispôs sobre
lização do 'patrimônio arqueológico", que ampliava o domínio do sagrado para
a aceitação e aplicação de donativos particulares pelo Sphan. Segundo seu texto,
abaixo da superfície da terra e para um tempo ainda mais remoto, dava lugar à
o Sphan ficava autorizado a receber qualquer quantia que lhe fosse oferecida a
sua objetivação científica, permitindo-se que o mesmo fosse dissecado, manu-
título de contribuição, por iniciativa particular, visando realizar trabalhos concer-
seado, desmontado, em busca de vestígios subterrâneos de uma pré-história, ou
nentes à defesa, conservação e restauração dos monumentos e de obras de valor
mesmo de uma história ancestral, até então invisível, da nação.
histórico e artístico existentes no País, e definia, então, os procedimentos a serem
adotados. O diretor do Sphan deveria submeter as contas referentes à aplicação Se, por um lado, essa lei regulamentou esse assunto em aberto no decreto-
desses recursos à aprovação do Ministério da Educação e Saúde (ver Sorgine, lei nº 25/1937, por outro, ampliou em muito o âmbito de intervenção da instituição,
2008). Por sua vez, o doador poderia determinar o destino da quantia doada. garantindo-lhe um poder exclusivo também nessa área. O assunto era matéria de
Dessa forma, mantendo em seu poder essa decisão, o capital (econômico e sim- grandes interesses econômicos e de segurança nacional, na medida em que esta-
bólico) do doador se sobrepunha ao "interesse público", que, segundo o próprio va relacionado, dentre outros aspectos, aos projetos de mineradoras, barragens,
discurso instituinte das práticas do Sphan, deveria ser o único capaz de decidir hidrelétricas etc. Essa lei definiu o que era considerado monumento arqueológico
o que deveria ser priorizado nas ações de conservação e/ou restauração de ou pré-histórico e determinou a proibição de seu aproveitamento econômico, sua
monumentos, aquisição de obras etc. O "dono" do capital privado, nesse momento, destruição ou sua mutilação, antes de devidamente pesquisados, considerando
portanto, poderia também capitalizar-se, simbolicamente, passando a integrar o rol tais práticas como crime contra o patrimônio nacional.
dos "sabidos". Por meio dessa lei, a Dphan passava a ter responsabilidade sobre o cadastra-
Já o decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, dispondo sobre desapro- mento de pesquisadores - "para efeito de registro, fiscalização e salvaguarda do
priações por "utilidade pública", incluía nesse conceito a temática patrimonial, interesse da ciência" - e sobre o registro de jazidas arqueológicas no Cadastro
reforçando a noção de uso social da propriedade. Ele reuniu um amplo universo dos Monumentos Arqueológicos do Brasil. E, ainda, sobre a concessão de licença
de possibilidades de configuração do patrimônio histórico e artístico nacional, evi- para transferência de objetos de interesse arqueológico ou pré-histórico, histórico,
tando dúvidas que fossem geradas quanto à atribuição de "valor cultural", segundo numismático ou artístico para o exterior, assim como a autorização para escava-
fica explicitado na descrição de casos passíveis de serem considerados "utilidade ções arqueológicas por pesquisadores estrangeiros e para aproveitamento eco-
pública". No aspecto em questão, assim tratava o decreto-lei: nômico das jazidas após exploração clentltlca."
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou Com o término do Estado Novo, foi dada nova organização a inúmeras agên-
integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a cias estatizadas criadas até então, dentre elas o Sphan, quando foi feito seu Regi-
manter-Ihes e realçar-Ihes os aspectos valiosos ou característicos e, ainda, a proteção mento Interno, pelo qual ele passou a Diretoria (Ophan)," e foram instituciona-
de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; [...J
Respeitando-se as atribuições legais da agência, estabelecidas no decreto-lei Embora não se pretenda aqui analisar a constituição e a trajetória dos museus
nº 25/1937, o Regimento Interno definia que as quatro Seções das duas Divisões criados pelo Sphan no período, a compreensão dessa ação como parte das polí-
da Dphan deveriam prestar assistência aos museus federais; no entanto, em seu ticas de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, basicamente por
texto não foram explicitadas as formas dessa assistência, que se manteve às meio dos textos legais que Ihes deram origem, torna-se bastante reveladora das
custas de relações de poder pessoais, em função de interesses pontuais, não se concepções que embasaram a musealização do "patrimônio nacional". A criação
constituindo num setor especializado dentro da agência, ainda que, a partir da dé- de museus vinculados ao Sphan, no período do Estado Novo, teve um caráter
cada de 1950, a Dphan passasse a incorporar em seus quadros alguns poucos estruturante das concepções e práticas que vinham se constituindo. Buscava-se
profissionais das áreas de museoíoqia." formular uma vertente museológica para o Sphan que conjugasse as represen-
Por fim, o Conselho Consultivo da Dphan teve suas atribuições razoavelmente tações espaciais que ao imóvel-sede do museu pudessem ser atribuídas, com o
ampliadas pelo Regimento Interno, na medida em que deveria, a partir de então, ajui- acervo que nele seria exposto.
zar sobre todos os pedidos de tombamento, o que antes se restringia exclusiva- Segundo Lígia Martins Costa," em 1937 esse assunto foi levado a Rodrigo
mente aos casos de impugnação, segundo determinado no decreto-lei nº 25/1937. Meio Franco de Andrade por Lucia Costa, que, a pedido do primeiro, havia viajado
Passava, assim, a avalizar todas as ações de tombamento da Dphan, ganhando para São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, a fim de averiguar o estado
um poder decisório sobre a definição do patrimônio histórico e artístico nacional em que se encontravam as ruínas das antigas missões jesuíticas. Ao retornar, o
como um todo, a partir do encaminhamento da Direção. Ficaram também expres- arquiteto propôs, além dos trabalhos de contenção e recuperação arquitetônicas,
sas algumas atribuições que já exercia, responsabilizando-se, legalmente, pela a constituição de um pequeno museu, para "dar ao visitante uma impressão tanto
conveniência de saída temporária do País de bens tombados, opinando ainda junto quanto possível aproximada do que foram as Missões".59Lígia Martins Costa con-
particular, papéis velhos, móveis antiquados, artefatos, objetos de um tempo lembrar - antigos fatos seriam (re)lembrados como uma história própria e familiar.
passado, para o status de arte, ou seja, deixavam de ser vistos como vestígios passando-se a reconhecê-Ios como "antigos fratricídios":
de um "outro" particular, para serem incluídos como parte integrante da cultura Não encontramos, porém, nas peças estudadas, vestígios, senão muito vagos, de
tradicional da nação - monumentos da uma história ancestral. Dessa forma, influência indígena. [...] a maneira especial de "ornamentar" provém não só da falta de
proteger o patrimônio cultural como propriedade pertencente à coletividade do experiência dos "operários" [...] mas, também, da colaboração de escultores do centro
grupo-nação implicava fazer o inventário do que se possuía, a aquisição de tudo e do norte da Europa - que não foram poucos os que vieram juntamente com italianos
aquilo que se mostrasse autêntico, genuíno e representativo do ser nacional, e a e espanhóis, trazendo com eles aquele renascimento retardatário e impregnado ainda
de gosto gótico e até mesmo românico, que durante tanto tempo se manteve ali, lado
proteção, pelo isolamento dessa propriedade por regras especiais e pela cons-
a lado com o desenvolvimento da escola erudita e latina [...]. Este [o elemento nativo],
trução de museus nacionais, onde deveria ser exposta (Handler, 1988).
vencida a primeira fase de rebeldia, deixou-se moldar com docilidade pela vontade
O Museu das Missões60 seria instalado numa construção projetada para esse poderosa do jesuíta. Parece mesmo não ter havido da parte dos irmãos, cientes da
fim por Lucia Costa, reconstituindo uma das seções dos antigos alpendrados que superioridade de sua própria técnica, compreensão e simpatia pelo que as interpretações
formavam a praça do Povo de São Miguel. A obra foi executada pelo arquiteto Lucas dos indígenas pudessem apresentar de imprevisto e pessoal, por que desprezavam
como errado tudo o que fugisse às receitas do formulário europeu, estimulando, pelo
Meyerhofer, que prestou serviços ao Sphan, no Rio Grande do Sul. O acervo do mu-
contrário, as cópias servis - a que, aliás, eles se entregavam de bom grado e com
seu foi constituído, basicamente, de artefatos dos jesuítas nas Missões e de peças
muito "proveito" - e impondo, assim, junto com a nova crença e a nova moral, uma
artesanais produzidas pelos indígenas reduzidos nas missões, encontrados na região beleza já pronta."
e reunidos para proteção e exibição no museu. Deveria a dizimação dos indígenas
Nessa mesma trilha, aberta ainda em 1937, foram idealizados mais dois mu·
ser lembrada ou esquecida? E a tomada de posição da metrópole portuguesa ao
seus em Minas Gerais: o Museu da Inconfidência, de Ouro Preto, e o Museu de
expulsar os jesuítas, aqueles que, segundo uma série de bens arquitetônicos tom-
Ouro, de Sabará." Ambos seguiram a proposta de aproveitamento de prédios cuja
bados quis significar posteriormente, firmaram um dos pilares da nacionalidade?
história tinha vinculação com a temática definida para o museu. No primeiro caso,
Para Lucio Costa, a recuperação da "ambiência", com a consolidação das
sua sede foi a antiga Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto, edifício doado à
ruínas de São Miguel, e a construção de um museu teriam uma função educativa:
União pelo estado de Minas Gerais, cujas obras de restauração e adaptação para
Aliás, para que os visitantes - geralmente pouco ou mal informados - "compreen- o novo uso foram feitas pelo arquiteto da Seção Técnica do Sphan Renato Soeiro.
dam" melhor a significação das ruínas, sintam que já houve vida dentro delas [...], Por seu turno, o mausoléu para abrigar, dentro do museu, os despojos dos lncon
parece-me indispensável a organização de uma série de esquemas e mapas, além da
fidentes - com os restos mortais de Tiradentes, trasladados para o Brasil - foi
planta de São Miguel, acompanhados de legendas que expliquem de maneira resumida,
concebido por José de Souza Reis, também arquiteto da Seção Técnica do Sphan,
porém clara e precisa, a história em verdade extraordinária das Missões, e como eram
as casas, a organização dos trabalhos nas estâncias e oficinas, as escolas de ler e em 1942 (Costa, 1991). Junto ao mausoléu foram reunidas peças relacionadas ae
de música, as festas e os lazeres - a vida social da comunidade, em suma. Com datas martírio do "herói nacional", assim como os autos da Devassa, a condenação de
Até o momento, foram consideradas as noções historicamente construídas que Anteprojeto para criação do Span, de 1936 (Sphan, 1980a, p. 96).
embasaram as representações acerca da proteção do patrimônio histórico e O texto do decreto-lei nº 25/1937 encontra-se no anexo 4.
artisüco nacional, assim como a inserção dessa problemática no amplo processo
Parecer de Lucia Costa, de 1943, sobre a reconstrução da Igreja de São Pedra dos Clérigos,
de construção do Estado e de formação da nação. Foram consideradas, ainda, as
RJ, que teve seu tombamento cancelado para ser demolida em função da abertura da
redes de relações tecidas e os agentes e agências de poder que, constituindo a avenida Presidente Vargas (ACI-processo 17-T).
própria ossatura material do Estado, consolidaram, nas décadas de 1930 e 1940,
Esta modificação se deu por meio da lei nº 6.292, de 15 de dezembro de 1975 (Sphan,
as estratégias de construção do "patrimônio nacional", com base num eficiente
1980a).
aparato legal.
Nesse momento, a categoria profissional de arquiteto disputava com sanitaristas e enge-
Nos capítulos subsequentes, buscar-se-á analisar as práticas e procedimentos nheiros a legitimidade de atuar como urbanista, o que foi conquistado com a abertura do
engendrados cotidianamente, que se consolidaram, se reproduziram e se legitima- primeiro curso, denominado de Arquitetura e Urbanismo, em 1945. Isso será abordado no
ram, posteriormente, de forma naturalizada, embora comportando uma série de capítulo 4.
conflitos, posições em disputa, visões ou (di)visões do mundo social tensamente Caso semelhante a esse, ocorrido no Rio Grande do Sul, será considerado no capítulo 4.
em confronto. Sem dúvida, contudo, instituíram-se regras visando a racionalização
ACI-processo 99-T-38.
administrativa, na verdade, nunca plenamente alcançada, posto que uma outra
ordem de regras, determinada pelas relações pessoais, foi sempre poderosamente Parecer de Lucia Costa, de 1943 - Igreja de São Pedra dos Clérigos/RJ (ACI-processo
17-T).
determinante no funcionamento do Sphan, tal qual na administração pública federal
brasileira de uma forma geral. Embora não tenha sido possível quantificar esses mesmos dados para o total de tomba-
mentos realizados até o presente, pode-se afirmar terem sido mantidas as proporções
Com tais objetivos, serão analisados, a seguir, a partir das diferentes formas
semelhantes às daquele período, tendo sido extremamente reduzidos os cancelamentos
de registro dos discursos - a produção impressa, o exercício das práticas admi- realizados com relação às 1.040 inscrições de tombamento realizadas até 2008.
nistrativas e a arquitetura dos monumentos - os três loei de ação do Sphan, a
10 Dentre eles, destacam-se o destombamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em
fim de evidenciar as distinções entre o lugar da "escrita do patrimônio", e o lugar Porto Alegre/RS, a ser analisado no capítulo 6; e o da cidade de São João Marcos, no
da sua "materialização". Os loei de ação foram assim considerados: a "área téc- Rio de Janeiro, em função de uma represa da Light que inundaria a região. Para este último,
nico-administrativa"; o Conselho Consultivo do Sphan - ambos responsáveis pela ver Paula, 1994.
seleção e classificação de bens para inclusão na categoria de patrimônio histórico 11 Foram também, no mesmo período, arquivados 24 processos abertos pelo Sphan, cujas
e artístico nacional, a serem analisados no capítulo 4; e as linhas editoriais do justificativas variaram entre ausência de "excepcional idade" (seis casos); julgados com valor,
Sphan, cujas publicações ampliaram significativamente o universo de agentes mas a demora para aplicação da lei fez com que se perdessem suas características, tendo
30 Carta a Rodrigo Meio Franco de Andrade, 29 jul. 1936. 42 Conforme será visto no capítulo 4.
31 Carta a Rodrigo Meio Franco de Andrade, 9 maio 1936 (ACI - Pasta de personalidades - 43 Esses aspectos não se concretizaram, como também não foram regulamentados, não
Heloísa Alberto Torres). havendo até hoje procedimentos definidos para sua execução. Apesar disso, o Sphan atua,
legitimamente, até hoje, no controle de saída de obras de arte do País.
32 Carta de 29 jul. 1936.
44 Em 1965, a lei nº 4.845 ampliou esse controle, proibindo a saída para o exterior não somente
33 Até hoje, não há uma determinação a respeito do assunto. Seus profissionais são denomi-
de obras tombadas, mas de obras de arte e ofícios "tradicionais" produzidos no País, até
nados 'técnlcos em preservação cultural".
o fim do período monárquico, assim como as oriundas de Portugal e "incorporadas ao meio
34
Esse aspecto fica bastante marcado por se dar dentro do regime autoritário. O Executivo nacional durante os regimes colonial e imperial", ou "produzidas no estrangeiro que represen-
era responsável por todas as proposições, pois o Congresso encontrava-se fechado, tendo tem personalidades brasileiras ou relacionadas com a história do Brasil, bem como paisagens
sido bastante recorrente, no Estado Novo, a implantação de leis, criação de agências etc., e costumes do Brasil", anteriormente restrita aos bens tombados, sem prévia autorização,
sem uma definição clara de onde partiram as iniciativas para sua concretização. atribuição incorporada pelo Conselho Consultivo (Brasil, 1967).
35 Como se pode ver, diferentemente da proposição de Mário de Andrade, a composição do 45 Esse foi, sem dúvida, o espaço do clientelismo, ainda que as verbas do Sphan tenham sido
Conselho Consultivo não ficou determinada, a não ser quanto à sua constituição por dez frequentemente escassas; tratar-se-á do assunto no capítulo 6.
membros indicados pelo presidente da República.
46 Os trabalhos devem ser realizados pelo proprietário, "conduzidos pelo arquiteto dos Edifícios
36 Segundo o próprio Rodrigo Meio Franco de Andrade, seu projeto de lei foi aprovado pela da França ou por um arquiteto de sua escolha" (Direction du Patrimoine, 1984, p. 8; minha
Câmara sem emendas, votado pelo Senado Federal, incorporando algumas modificações, tradução). Como se sabe, o turismo é uma das principais fontes de recurso francesas. O
mas não retornou à Câmara, devido à dissolução do Congresso Nacional, em 10 de investimento na área de patrimônio, desta forma, tem atualmente um sentido econômico
novembro de 1937. Em 30 de novembro foi promulgado o decreto-lei nº 25/1937, organizando nada desprezível naquele país.
a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, que manteve a base do projeto de
lei anteriormente formulado (Andrade, 1987). 47 A lei nº 3.924, também conhecida como a "lei dos sambaquis", que divide as escavações
segundo quem as realiza e em que propriedade é realizada. As terras a serem escavadas
37 As restrições que o decreto-lei nº 25/1937 apresentou a essa definição ampla referiram-se podem ser particulares ou públicas, e a execução pode ser por particulares ou por instituições
exclusivamente a questões diplomáticas, referentes à não interferência na propriedade cientificas do poder público (Souza Filho, 1997, p. 54). Trata-se, ainda hoje, da legislação
estrangeira, e neste aspecto assemelhava-se ao anteprojeto. Ambos incluíram em seus fundamental para o assunto.
textos itens relativos ao que fica excluído, apenas no sentido de explicitar esta questão
50 Este regimento funcionou até a década de 1970, quando o órgão passou a instituto (Iphan). 6\
Relatório de Lucio Costa, 20 dez. 1937 (ACI - Pasta de personalidades - Lucio Costa
Nessa ocasião, não foi feito novo regimento para ele.
62 Relatório de Lucio Costa, 20 dez. 1937 (ACI - Pasta de personalidades - Lucio Costa
51 Os assuntos de interesse do Distrito Federal e dos outros estados e territórios não incluídos
63 Respectivamente, pelo decreto-lei nº 965, de 1938, e pelo decreto-lei nº 748, de 1945 (Bras
nos Distritos seriam tratados diretamente pela "área central" do órgão.
1967).
52 Ver quadro 4.1 e anexo 2.
64 Pela lei nº 2.200, de 12 de abril de 1954 (Brasil, 1967).
53 Depoimento de Lucio Costa, colhido em entrevista realizada por Márcia Chuva, Lia Motla
6S Outros dois museus foram criados no Governo Juscelino Kubitschek, em 1957, visand
e Cícero Almeida, em 4 de julho de 1997, em sua residência no Leblon, Rio de Janeiro
outros enfoques do "nacional". O Museu Nacional de Imigração e Colonização, em Joinvillr
(RJ).
SC, criado por meio da lei nº 3.188, de 2 de julho de 1957. Este museu simbolizava a polític
54
Essa produção de moldagens não se tornou prática rotineira, nem um acervo foi constituído, desenvolvimentista de JK, e teve como finalidade recolher todos os objetos que recordassa
aparecendo estranhamente no Regimento Interno, tipo de documento normativo que tratou a imigração no Sul do país e documentos e publicações afins. Para sua sede, autorizoi
das ações mais diretamente ligadas às ações substanciais do órgão. Encontram-se, hoje, se a aquisição de edifício pertencente a herdeiros do príncipe de Joinville, conhecido com
exemplares dispersos, como o profeta de Aleijadinho existente no segundo andar do Palácio Palácio do Príncipe. E o Museu da Abolição, em Recife/PE, criado pela lei nº 3.357, d
Gustavo Capanema (antigo prédio do MES), Rio de Janeiro, onde, desde sua inauguração, 22 de dezembro de 1957, que determinava a aquisição de tudo quanto se relacionasse ac
encontra-se a sede do Sphan, seu Arquivo Central e sua Biblioteca Noronha Santos. "leitos memoráveis" das leis imperiais relacionadas ao processo da Abolição da Escravatur
(Brasil, 1967).
55 Conforme se pode verificar nas propostas orçamentárias para o período (Ministério da
Fazenda, 1936, 1938, 1939, 1940a, 1940b, 1941a, 1941b, 1942, 1944, 1945b). 66 No capítulo 5, ao se tratar das edições do Sphan, esses estudos de Mário de Andrade serã
considerados.
56 A criação do Programa Nacional de Preservação da Documentação Histórica (Pró-Do-
cumento), em 1984, vinculado à Fundação Nacional Pró-Memória, foi uma iniciativa nesse
sentido, que teve o mérito de especializar profissionais de história na área de documentação,
além de organizar uma equipe multidisciplinar para diagnóstico de acervos documentais.
Contudo, foi extinto em 1988, tendo sua equipe e proposições sido dispersamente aproveita-
dos em diferentes agências estatizadas voltadas para a problemática dos acervos documentais.
CAPíTULO 4
PRATICA) DE TOMBAMENTO: A INVENCÃO DO
PMRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTíSTICO NACIONAl
Por outro lado, em pouco tempo essa indefinição foi diluída, com o ingresso
maciço de arquitetos para os quadros do Sphan, concentrados' na sua Seção
Técnica, e também na direção das suas representações regionais, chegando-se
ao final da década de 1940 com uma definição bastante clara a esse respeito.
Considerando que as formas de intervenção dos agentes na realidade social são
delimitadas, em grande medida, a partir do seu perfil profissional, pretende-se neste
capítulo analisar, inicialmente, a formação desse profissional - o arquiteto - que
toma as rédeas da proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. É de
especial relevância a relação entre a trajetória do Sphan e a luta travada pelos
rI arquitetos, naquele momento, para constituir uma profissão autônoma em relação
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de arquiteto no Brasil. A afirmação do Sphan, nas décadas de 1930 e 1940, consti- proceder à seleção e à classificação de objetos a serem incluídos na categoria
tuiu mercado de trabalho privilegiado para a profissão que se autonomizava, con- de patrimônio histórico e artístico nacional - os "bens culturais" representativos
forme preconizava o próprio Lucio Costa, ao falar que conhecer a "nossa casa" da nação.
é ''Trabalho a ser feito, senão pelo homem do ofício, ao menos com a assistência Nesse sentido, responsabilizaram-se pela conservação da "materialidade" de
dele, a fim de garantir exatidão técnica e objetividade, sem o que perderia a uma história, objetivada nos bens arquitetônlcos." Conforme Bourdieu,
própria razão de ser" (1937, p. 36).
A história no sentido de tes gestae constitui a história feita coisa, a qual é levada,
As lutas de representação que se configuravam no bojo das disputas .também "atuada", reativada pela história feita corpo e que não só alua como traz de volta aquilo
travadas para afirmação da "nova arquitetura" acabaram por marcar iridelevel- que a leva. [...]
mente a formação do arquiteto no Brasil, como também as práticas engendradas A história objetivada, instituída, só se transforma em ação histórica, isto é, em
no Sphan. Conforme ·se verá, essa formação se constituiria na única de caráter história "atuada" e atuante, se for assumida por agentes cuja história a isso os predispõe
e que, pelos seus investimentos anteriores, são dados a interessar-se pelo seu funcio-
técnico especializado com atuação na agência estatizada, embora um conjunto de
namento e dotados de aptidões necessárias para o pôr a funcionar. (1989, p. 82-83)
intelectuais tenha sereunido no interior do Sphan.
Pretende-se também, neste capítulo, analisar os dois loci de ação em que fo- O quadro 4.1 retrata a presença maciça dessa formação profissional nos pos-
ram instituídos os tombamentos do patrimônio histórico e artístico nacional dentro tos de direção do Sphan, junto às regionais, ou mesmo na sua Seção Técnica, hie-
do Sphan. O primeiro deles, majoritariamente ocupado por arquitetos, foi aqui rarquicamente superior àquelas. Observa-se, a partir do quadro, que apenas num
considerado como a "área técnico-administrativa" do Sphan, constituída pelas primeiro e breve momento os cargos nas representações regionais foram ocupa-
representações regionais do Sphan, e pela sede (composta pela Seção Técnica dos por intelectuais sem formação especializada. Logo em seguida, contudo, a
e pelo Gabinete do Diretor). O segundo locus aqui analisado é o Conselho Consul- ocupação desses postos foi feita, em substituição, por arquitetos ou ençenheiros.'
tivo do Sphan, que complementava e intervinha nas decisões do primeiro, quando A distinção entre a formação de engenheiro e de arquiteto, evidenciada no
se instauravam conflitos de interesses entre as determinações de tombamento e quadro 4.1, se verificou especialmente por não existir, na época, curso autônomo
os proprietários dos imóveis. A partir das relações estabelecidas entre esses se- de Arquitetura, como se verá a seguir, havendo duas possibilidades de formação:
tores, com base em procedimentos determinados no próprio decreto-lei nQ 25/1937 pela Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, que formava artistas, escultores
e calcados numa forte hierarquia, esses dois loci de ação constituíram a autori- e arquitetos, ou pelas Escolas Politécnicas de Engenharia, que formavam os
dadelegal para a aplicação do instituto do tombamento e definiram, por sua vez, engenheiros.
a feição da nação brasileira, a partir de seu "patrimônio nacional". Nesses primeiros anos, os arquitetos concentraram-se na Seção Técnica do
Arquitetos ligados à vertente modernista ocuparam, desde cedo, postos no Sphan, na sede do órgão, localizada na Capital Federal, com poder de coordena-
Sphan, onde teceram uma rede de relações pessoais na distribuição de projetos ção sobre os trabalhos das representações regionais, onde se encontravam, basi-
e obras de arquitetura e restauração, explorando o conteúdo da aparente contra- camente, os engenheiros, já que não existiam escolas de Belas-Artes no âmbito
dição verificada entre seu papel de "revolucionários de novas formas artísticas estadual. Posteriormente, com a proliferação das escolas de Arquitetura, a partir
e os árbitros e zeladores do passado cultural", conforme se referiu Cavalcanti de 1945, os novos quadros do Sphan foram sendo preenchidos especialmente por
(1993). Isso levou à constituição, ali, de um campo próprio de atuação para a car- arquitetos, consagrando uma hegemonia desse profissional dentro do órgão, sem
reira. Eles efetivamente tiveram peso significativo no processo de rotinização das que se descaracterizasse, no entanto, a hierarquia entre Seção Técnica e regionais.
práticas de preservação cultural no Brasil, sempre sob a orientação e direção de
Paulo Thedim Barreto Arquiteto a partir de 1940 Seção Técnica A PROfllSIONAlIZACÃO DO ARQUIlElO: 01 "CONIIRUIOREI" DA NACÃO
Edgar Jacinto Arquiteto a partir de 1938 Seção Técnica
O Relatório sobre o Ensino de Arquitetura no Brasil,a de 1974, referia-se a um
Lucio Costa Arquiteto a partir de 1938 Seção Técnica
ofício apresentado pelo Instituto Politécnico Brasileiro ao Governo Imperial que
Fonte: Pastas de personalidades, Arquivo Central do Iphan." denunciava a disparidade dos cursos na Escola Politécnica e na Academia Impe-
rial de Belas Artes, solicitando
Excetuando-se os arquitetos e/ou engenheiros, os profissionais que ocuparam
[...] um maior desenvolvimento.à parte artística do curso de Arquitetura, a fim de se
cargos no Sphan não permaneceram por muito tempo em seus postos, e sua for-
criar, nesse estabelecimento,um título especial de arquiteto, independente do de
mação não configurava especificidades próprias. Eles foram se formando dentro
engenheiro civil, conservando-sena Academia de Belas Artes o curso de artistas
do Sphan, que, ao criar uma prática, estruturava uma 'tormação", ou seja, um con- desenhistas. (Abea, 1977, p. 51)
não diplomados, mas licenciados pelos estados e Distrito Federal, se provado o projeto de Arquimedes Memória, professor catedrático e diretor da EBA desde a ~.v ~
exercício à data da publicação do decreto (Conselho Federal de Engenharia e saída de Lucia Costa. No entanto, seu projeto não foi realizado, e, em março de
Arquitetura, 1947). 1936, Capanema convidava Lucio Costa para elaborar uma nova proposta. Lucio
"
Por meio desse decreto, ficaram também criados o Conselho Federal de En- Costa constituiu então uma equipe, junto com alguns arquitetos desclassificados
genharia e Arquitetura e os Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura, nos no concurso: Carlos Leão, Jorge Moreira, Afonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer
quais todo profissional em exercício deveria registrar-se. Foram definidas as e Ernani Vasconcelos. Com apoio de Carlos Dnummond de Andrade (então chefe
atribuições do engenheiro civil; do arquiteto ou do en,genheiro-arquiteto, do enge- de Gabinete de Capanema). Mário de Andrade, Rodrigo Meio Franco de Andrade
nheiro industrial, do engenheiro mecânico eletricista, do engenheiro eletricista, do e Manuel Bandeira Oá engajados no Sphan), Lucio Costa convenceu diretamente
, ! ~
para tombamento, Nesse período, o Sphan tombou 417 bens, representando exata- primeiro ano de funcionamento do órgão. Em muito pouco tempo, portanto, atingi-
mente 40% de todos os bens tombados até 2008, ram essas altas taxas, possibilitando a hegemonização de uma determinada
A partir desse universo de bens tombados, buscou-se compreender as "(di)vi- prática seletiva. Os arquitetos do Sphan, ocupando lugares decisivos, a partir de
sões de mundo", representadas pelas escolhas então feitas, construindo uma uma central idade dada pela figura de Rodrigo Meio Franco de Andrade, foram
coleção de bens da cultura material que deveriam expressar a "memória nacional" coautores, de fato, dos critérios de seleção, definindo, nessa prática contundente
ou a produção cultural "mais autêntica" da nação, capaz, portanto, de narrar' sua e incisiva, as características básicas que delinearam esse patrirnõnio."
história e origem, conforme expressão distintiva e recorrente nos discursos dos Os percentuais de tombamento relativos aos anos subsequentes - 1939 a
agentes do órgão, A adjetivação expressava, assim, a desqualificação daquilo que 1946 - caíram significativamente, mantendo-se apenas Minas Gerais ainda com
não estivesse nela incluído, como não significativo da "brasilidade", altas taxas, em 1939, dando continuidade ao projeto identificatório de um tempo
originário da nação. Os trabalhos de seleção, depois do surto inicial, organizaram-
A hierarquização do patrimônio histórico e artístico nacional se com maior regularidade, mantendo, em anos intercalados, uma taxa em torno
de 11% (1939, 1941 e 1943), e taxas bastante baixas nos anos de 1940,1942 e
A partir da análise da listagem dos bens tombados no período de 1938 a 1946,
1944. Tratavam-se, talvez, de períodos de "buscas" de novos "capitais" ou de or-
foi possível fazer algumas ilações a respeito do tipo de bem selecionado como
ganização dos investimentos feitos nos anos anteriores. A partir de 1944, as taxas
"patrimônio nacional", Conforme estabelece o decreto-lei nº 25/1937, o tombamento
mantiveram-se abaixo dos 3%, denotando um retraimento da prática seletiva, que
se concretiza mediante a inscrição do bem selecionado em um ou mais Livros de
já havia acumulado volumoso trabalho de controle, fiscalização e eenservação
Tombo, de acordo com decisão do Diretor e/ou do Conselho Consultivo, Os Livros
desse vasto acervo tombado.
de Tombo são assim denominados: Livro das Belas-Artes; Livro Histórico; Livro
Arqueológico, Etnográfico e', Paisagístico; e Livro das Artes Aplicadas. Rubino (1992a) chega a conclusões bastante semelhantes a respeito do tipo
de bem que foi tombado, analisando um período mais longo, relativo à gestão de
Alguns procedimentos administrativos devem ser adotados antes de sua
Rodrigo Meio Franco de Andrade, de 1937 a 1967. A partir dessa constatação,
concretização: a partir da indicação, um processo de tombamento é aberto, rece-
pode-se concluir que a feição dada ao patrimônio histórico e artístico nacional,
bendo um número e o nome do bem indicado, cidade e estado onde se localiza,
a qual reproduziu-se posteriormente, foi delineada e consagrada ainda nas déca-
Embora qualquer pessoa pudesse Iazê-lo, as indicações, nesses primeiros anos
das de 1930 e 1940. Qual feição seria essa, então?
de funcionamento do Sphan, partiram, basicamente, dos próprios agentes do
órgão, não contendo, portanto, nos processos a motivação da indicação." O contexto de nacionalização do Estado brasileiro em que se inseriu a gestão
estatizada de bens simbólicos encetada a partir do Sphan caracterizou-se pelo
A concentração de tombamentos de bens arquitetônicos foi um dado flagrante
projeto em que nacionalizar significou, antes de tudo, impingir unidade, impedindo
e já bastante conhecido, perfazendo um total, no período, de 93,76%. O patrimônio
qualquer feição plural da nação. Nessa busca de "capitais simbólicos" que deve-
histórico e artístico nacional constituiu-se, portanto, pela arquitetura, sendo os
riam sintetizar a nação numa única brasilidade, reuniram-se diferentes frentes de
6,24% restantes inexpressivos." A quantidade de tombamentos realizada somente
ação no MES, numa ampla teia que ia da pedagogia à higiene, na tentativa de "cons-
no ano de 1938 - 56,59 %
do total - foi reveladora da clareza, convicção e cons-
trução do homem brasileiro". O Sphan investiu no projeto de construção da nação,
ciência que os agentes do Sphan possuíam, previamente, a respeito daquilo que
consagrando uma história concreta, autenticando-a pela material idade de um
pretendiam enquadrar na categoria de patrimônio histórico e artístico nacional.
patrimônio histórico e artístico nacional apresentado, conforme a prática seletiva
Reunindo-se os estados em que houve maior concentração de tombamentos - Rio
revelou, como um objeto predefinido e que, ness: momento, estava apenas sendo
de Janeiro (20,14%), Bahia (13,19%), Pernambuco (9,11%) e Minas Gerais
(des)vendado, (des)coberto.
(5,28%)18 -, chega-se a 47,7% dos bens tombados em todo o período, apenas no
[
A seleção dos bens resgatou a produção artística e arquitetônica do período
! encenado como a única fala sobre o assunto, naturalizando-se o monopólio do
colonial, sendo identificada aos discursos sobre a história do Brasil que busca- Estado na produção desses bens simbólicos?
vam, naquele mesmo período, as raízes fundadoras da nacionalidade. O processo A história da preservação do patrimônio histórico e artístico no Brasil ficou
histórico decorrido nas Minas Gerais, que propiciou o surgimento do movimento marcada pela relação entre "conservação do passado" e "modernização do pre-
de 1789, foi considerado a expressão-síntese da origem da nacionalidade, con- sente", especialmente em função dos agentes envolvidos com a questão. Regis-
cretizada com o tombamento das cidades mineiras. Além disso, foi também extre- tre-se que esse aspecto não tem precedente em outros países, tendo se tornado
mamente valorizada a arquitetura jesuítica como representativa da ancestralidade uma das especificidades do caso brasileiro no processo de invenção do "patrimô-
da nação. De todo modo, a chamada "arquitetura tradicional", então selecionada nio nacional".
como representativa das-oriqens da nação, reafirmava permanentemente as raízes Ambas as concepções compunham um mesmo projeto, que buscava como
portuguesas, especialmente expressivas nas construções religiosas, como forma- características constituintes da nacionalidade a sua "racionalidade", "simplicidade"
doras da nacionalidade. e "pureza", identificadas pelos arquitetos aparelhados no Sphan como qualifica-
Ainda que esse momento tenha sido crucial para a naturalização dessa "bio- tivos da "boa arquitetura" de qualquer época, e particularmente presentes na do
grafia" da nação, conforme diria Anderson (1991), há que se ressaltar que, desde período colonial.
fins do século XIX, os positivistas ortodoxos, também preocupados com as "ori- Fundamentando essa ideia, Lucio Costa tew.; a oportunidade de expressar, em
gens da nacionalidade", já preconizavam a respeito da "raça" portuguesa, predomi- 1939, alguns dos critérios básicos que nortearam a ação seletiva do Sphan, em
nante na formação do "povo brasileiro", que, "apesar dos seus desmandos, era carta pessoal ao diretor do órgão,20 motivada por questões surgidas a respeito de
a verdadeira herdeira do mundo da Idade Média e, portanto, portadora de imensos construções novas na cidade de Ouro Preto, tombada em 1938. Nessa carta, defi-
valores morais e espirituais" (Azzi, 1980, p. 105). Por sua vez, o papel desempe- ne a obra de arte por critérios de "beleza e verdade"; pela pureza de linhas e equi-
nhado pelos jesuítas teria sido fundamental "na luta contra as invasões protes- líbrio; sem compromissos com estilos, mas baseada em técnica atualizada, para
tantes": "Devemos especialmente não esquecer o papel eminente que co~be à resolver seus problemas de construção da melhor forma possível, no momento de
Companhia de Jesus na defensão dos míseros fetichistas americanos, vítimas da sua produção. Segundo ele, o patrimônio histórico e artístico nacional era
cobiça colonial" (Teixeira Mendes apud Azzi, 1980, p. 115). constituído de obras de arte, desde que contendo aqueles atributos:
Na verdade, quando se trata do século imperial brasileiro, muito se poderia Ora, o projeto de ONS [Oscar Niemeyer Soares] tem pelo menos duas coisas
falar a respeito do surgimento de uma historiografia que buscou dar conta dessa em comum com elas: belezae verdade.Compostode maneiraciara, direta, sem com-
"biografia" nacional. É nesse bojo que a instrução deveria cumprir um papel funda- promissos [...]. De excepcionalpureza de linhas, e de muito equilíbrio plástico, é, na
verdade, uma obra de arte, e, como tal, não deverá estranhara vizinhançade outras
mental, para permitir que o Império se colocasse ao lado das "nações civilizadas",
obras de arte, emboradiferentes,porquea boa arquiteturade um determinadoperíodo
proposta essa que, fundamentalmente, "vislumbrava no alcance de uma civilização vai sempre bem com a de qualquerperíodo anterior- o que não combina com coisa
a condição de o povo - isto é, a 'boa sociedade' - não só conservar o lugar que nenhuma é a falta de arquitetura.(Apud Moita, 1987, p. 109)
ocupava na sociedade, mas também reconhecer as diferenças e hierarquizações
A arquitetura colonial nomeava a nação e, segundo essa mesma concepção,
no seu próprio interior" (Maltos, 1990, p. 259-260), parte do processo então en-
~ teria havido uma ruptura da produçãoarquitetônica, em fins do século XIX e
gendrado de constituiçã,o ?e, uma classe senhorial e do processo de longa duração,
começo do XX, interrompendo a orodução daquelas obras de arte. A partir daí,
que se vem tratando aqui, 'de formação do Estado. r~ as novas produções tornaram-se espúrias, porque importadas e não mais autenti-
Mas quais seriam os elementos estruturantes do discurso que formulou tais
escolhas dentro do Sphan e se constituiu em critério de verdade, podendo ser t camente nacionais - aquilo que não era identificado com a nação e não podia
legitimamente nomeá-Ia. Para Lucio Costa:
t
~ OS ARQUIlElOS DA NHÓRIA PRÁTICAS DE TOMBAMENTO l1QYJ
Os mestres-de-obras estavam, ainda em 1910, no bom caminho. Fiéis à boa favor do papel de reveladores. Assumiam, com isso, um papel magnãnimo, cujo
tradiçãn portuguesa de,não mentir, eles vinham aplicando naturalmente, às suas suporte era justamente a crença na "causa" da preservação da memória nacional.
construções meio telosas,' todas as novas possibilidades da técnica moderna [...].
A nação tem sentimentos, tem cultura, mas precisa de porta-vozes.
Conviria, pois, trazer os esíudos até nossos dias, procurando-sedeterminaros motivos
do abandonode tão boas normas e a origem dessa desarrumaçãoque há vinte e tantos Por meio da fala de seus construtores, a arquitetura moderna no Brasil foi
anos se observa. (Costa, 1937, p. 32) identificada com a arquitetura do período colonial, e, numa transferência do cons-
trutor para a obra construída, o objeto arquitetônico foi subjetivado, tornando-se
Dessa forma, conceitualizava o patrimônio histórico e artístico nacional como
o próprio identificante do eu-nação que o pensamento nomeava, ou seja, o iden-
obra de arte arquitetõnica, cuja essência estaria na "qualidade construtiva",
tificado. Conforme Aulagnier (1985), essa unidade identificante-identificado é
encontrada especialmente na arquitetura produzida até o começo do século XIX,
condição fundamental de existência do eu. A manutenção desse investimento dos
sem imitações ou "compromissos" com estilos estrangeiros. A obra de arte era,
pensamentos com função identificatória só persiste enquanto o identificante pre-
portanto, essencialmente descompromissada: sua qualidade estava no engenho de
serva a crença de que esses enunciados correspondem efetivamente ao eu que
o construtor fazer o melhor e o mais belo possível, dentro das condições tecnoló-
eles nomeiam.
gicas vigentes, o que .a,. contextualizava em seu próprio tempo histórico, sem
disfarces. Foi esta também uma das bases conceituais fundadoras da arquitetura A nação, assim, se humanizava recebendo um nome originário - arquitetura
moderna, que buscava' universalizar-se como verdade - como obra de arte. colonial -, tendo-lhe sido negados, para tanto, outros atributos. A nação, agora,
reconhecendo-se por um nome, apropriando-se desse enunciado como primeira
Segundo Lia Motta, Lucio Costa
antecipação de seu futuro ou primeira aspiração identificatória, era capaz de
[...] aborda o problema da arquitetura nova nos centros antigos segundo um ponto de
encontrar a unidade identificante-identificado no processo de identificação desse
vista modernista e dogmático que visava a manutenção da cidade como objeto
eu-nação - na coisa com o pensamento que a nomeia. Um batismo de nascimento.
idealizado.[...] Esvaziadaeconomicamente,a cidade foi usadacomo matéria-primapara
um laboratóriode nacionalidadede inspiração modernista,deixandoas populaçõesque No entanto, para que o eu-nação se reconheça como enunciante de seus pen-
lá moravam subordinadas a esta visão idealizada, não sendo elas sequer motivo de samentos, precisará fazer suas próprias aspirações identificatórias, investindo no
referência. (1987, p. 110) futuro e não mais como simples desejo de retorno dp passado. Sendo assim, para
Dentro desse universo discursivo, enquadraram-se as especificidades do que o eu-nação se preserve, é necessário que o identificante assegur~ o inves~i-
projeto modernista, propondo um resgate, uma reapropriação e uma modernização mento de dois suportes: o identificado atual (arquitetura colonial) e a transformação
desse saber esquecido. Utilizando-se de tais estratégias discursivas, atribuíram desse identificado (arquitetura moderna brasileira).
a esse projeto a capacidade de concretizar uma produção arquitetônica autentica- Lucio Costa afirmou, sobre as construções brasileiras coloniais, que "o enge-
mente nacional, identificando-se com a fala produzida no Sphan sobre a definição nhoso processo de que são feitas - barro armado e madeira - tem qualquer coisa
do que seria o patrimônio histórico e artístico nacional. de nosso concreto armado" (1937, p. 34).
A crença, portanto, na existência de uma memória e de uma identidade nacio- Essa afirmativa apresenta-se de forma invertida, como num espelho, tendo
nais a serem desvendadas (e não construídas pelos agentes em relação no mundo sido reveladora desse projeto de identificação, posto que seria no concreto armado
social e constituintes do processo histórico de formação do Estado e construção da que se deveria encontrar algo daquele "engenhoso processo", pois a tecnologia
nação brasileira) fundamentou a concepção de nação como sujeito - eu-nação -, existente na época colonial nem sequer sonhava com a possibilidade de sua
entidade viva, que devia ser conhecida, descoberta. Nessa concepção, caberia a invenção.
esses agentes apenas dar-lhe voz, deixá-Ia expressar sua fala. Ocultava-se, as- Foi necessário, portanto, transformar a nação em sujeito, para garantir as
sim, o papel de construtores (nos seus vários sentidos), enunciantes de ideias, em condições de identificação dos seus próprlos agentes produtores, pois, mediante
. -s . ~.
Inicialmente valorizando a arquitetura vernacular do período colonial, rejeitava Além da seleção daquilo que nomearia a. nação, processou-se também uma
a erudição da obra de Aleijadinho. Ao longo dos anos, contudo, a rejeição transfor- hierarquização dos bens considerados "patrimônio nacional". Apesar de os quatro
mou-se em admiração - consagração do gênio de Aleijadinho -, discurso assim Livros de Tombo terem sido criados para um enquadramento dos bens em função
veiculado pelo Sphan e reconhecido por Lucio Costa: de sua "natureza" diversa, sem qualquer hierarquia preestabelecida entre eles no
decreto-lei n2 25/1937, ao se analisar os livros em que foi inscrito cada um desses
Eu fazia certas restrições a essa obsessão das pessoas por Aleijadinho, quando
havia uma tradição colonial muito variada. [...] Eu, erradamente,lamentava a projeção bens tombados (o que poderia ser feito em um ou mais livros), identificou-se uma
de Aleijadinho. Hoje reconheço que a personalidade importante na história da nossa significativa distinção entre eles. No entanto, isso não se encontrava explicita-
arquitetura é o Aleijadinho. Sou apaixonado por ele. (Costa, 1996c, n. p.) mente informado na documentação constante dos processos. Nesse sentido, para
compreensão dos critérios que levaram a escolhas diferenciadas no momento da privilegiado de uma forma geral, imóveis localizados em áreas urbanas e centrais
inscrição nos Livros de Tombo, foi feito um esquadrinhamento dos tipos de bens foram considerados obras de arte. Essas áreas foram primordiais na economia por-
inscritos em cada livro, a partir da listagem geral desses bens tombados, consi- tuguesa escravista colonial e suas histórias foram materializadas e objetificadas,
derando-se ainda sua denominação e sua localização. Dessa forma, foram ou seja, autenticadas, por esses bens em bases sólidas - de pedra e cal -, riqueza
criadas, para efeito da. análise, categorias de bens por tipo de arquitetura. No cru- material e técnica que qualificavam o patrimônio. Nesse sentido, pode-se perce-
zamento desses dados, foi possível identificar vários dos critérios então utilizados ber, também no Livro de Belas-Artes, que esses bens hierarquizados estavam
concentradamente nas capitais dos estados acima discriminados, o que é distin-
pelos agentes do Sphan, para uma hierarquização do bem tombado mediante a
tivo em relação aos outros livros. Aquilo que ficou fora desses estados recebeu
escolha do livro em que o mesmo foi mscrno."
tratamento distinto pelos agentes do Sphan, como se verá a seguir.
Analisando-se tais dados, constata-se que a escolha dos Livros de Tombo
Na construção desse universo, adjetivações como "autêntico" e "genuíno" ser-
para a inscrição dos bens tombados privilegiou o Livro de Belas-Artes (com 173
viram para distinguir os bens tombados. Em termos de produção artística, esses
inscrições, sendo que 6 delas reunindo centenas de imóveis das cidades mineiras
eram atributos essenciais da arquitetura do período colonial, especialmente a mi-
tombadas) e os Livros de Belas-Artes e Histórico conjuntamente (185 inscrições),
neira, que serviu constantemente de parâmetro. Ela serviu ainda para secundarizar
e, em seguida, o Livro Histórico, com 44 inscrições.
o "valor histórico", utilizado como compensação à ausência de valor artístico "pu-
Evidenciou-se também que, ao Livro de Belas-Artes, ficaram reservados ro", ou para caracterizar a excepcionalidade, que definia o conceito de obra de arte.
aqueles bens considerados obras de arte - obras autênticas da produção artística
Somadas, essas duas formas de inscrição mais recorrentes - somente no Livro
originária da nação, em que o recorte privilegiado da arquitetura mineira colonial,
de Belas-Artes, e conjuntamente nos Livros de Belas-Artes e Histórico - perfi-
especialmente religiosa, foi consagrado.
zeram um total de 358 inscrições (85,8% dos bens tombados no perlodo)." Ao
O Livro de Belas-Artes destinou-se, basicamente, aos bens considerados inscreverem um mesmo bem nos Livros de Belas-Artes e Histórico, os agentes
monumentais, localizados concentradamente nos principais centros urbanos da do Sphan buscaram conjugar os aspectos relativos à antiguidade do bem e à sua
antiga colônia, assim como nas cidades históricas mineiras. Esse livro deveria localização, pois, malgrado estivessem situados nas mesmas regiões privilegia-
servir aos bens com atributos coloniais e territorializados em Minas Gerais, ou das - Minas, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco -, caracterizadas como especí-
ter estes como parâmetro de qualidade. A maioria absoluta desses tombamentos ficas das obras de arte, inverteram-se os lugares. Ou seja, nesses casos, os bens
foi processada ainda em 1938, ano inaugural dessa prática: somente neste ano, localizam-se nas regiões periféricas, onde se processou uma espécie de apro-
49% dos bens tombados foram inscritos somente no Livro de Belas-Artes. Para priação popular da produção artística, conforme se depreendeu de textos de Lucia
todo o período, as inscrições feitas com exclusividade nesse livro representaram Costa (1941) e mesmo de Mário de Andrade (1937; 1945), que consideraram a
41,49% do total. São percentuais bastante altos, considerando-se que havia quatro necessidade de um tratamento diferenciado, especialmente em comparação com
Livros de Tombo diferentes e, ainda, a possibilidade de inscrição de um mesmo as obras de arte encontradas em Minas Gerais e na Bahia.
bem em mais de um livro. De 1938 a 1942 foram escolhidos os bens merecedores Os bens inscritos conjuntamente nesses dois livros, portanto, reafirmavam a
deste status das belas-artes. Nos anos seguintes, de 1943 a 1946, não houve mais hierarquização identificada anteriormente, concentrando-se aqui os bens perten-
tombamentos exclusivos nesse livro. centes a cidades do interior, e sendo residual a presença das capitais. Com rela-
Observando-se ainda '0 Livro de Belas-Artes, a hierarquização se com ple- ção a Minas Gerais, foram apenas cinco inscrições. As opções de inclusão de bens
mentava pelas regiões que tiveram bens inscritos exclusivamente neste livro. Os a partir da reunião desses livros - Belas-Artes e Histórico - sintetizaram a hierar-
estados da Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro comportaram prati- quia estabelecida entre o artístico e o histórico, que configurou efetivamente a prá-
camente todos os bens considerados obras de arte. Se o objeto arquitetônico foi tica do Sphan, apesar de o órgão ter sido nomeado de forma isonômica.
Os bens de tipo r~ligioso são excelentes exemplos dos critérios anteriormente Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico foram feitas somente oito ins-
identificados para inscrição no Livro Histórico, visto que se encontram nesse livro crições, das quais apenas dois bens arquitetônicos.
tanto pela sua antig~i~ade, quanto por pertencer a séries históricas que tipificam Já o Livro das Artes Aplicadas não vingou. Apenas duas inscrições foram
as igrejas por época de-construção, conforme classificação feita por lucia Costa feitas aí até hoje, referentes a cinco jarras de louça encontradas em Cachoeira,
(1941), e não por uma qualificação de excepcionalidade como obra de arte. Outro na Bahia. A ideia desses quatro Livros de Tombo foi extraída do anteprojeto de
aspecto a ser destacado é o fato de que todos os bens inscritos somente no Livro Mário de Andrade, reproduzida, na íntegra, no decreto-lei nº 25/1937, como já dito.
Histórico se encontram iocaíizados em regiões distantes das áreas privilegiadas No entanto, a denominação "arte aplicada" - que, para Mário de Andrade, poderia
como produtoras de obras de arte, conforme o parâmetro mineiro de classificação, ser erudita ou popular - não foi incorporada na prática do Sphan. Os objetos que,
que servia também para a exclusão. Situam-se em cidades distantes do centro conforme o anteprojeto, se encaixariam nessa categoria (móveis, joias etc.) foram
da economia escravista colonial. Apesar de os objetos serem ainda as igrejas - efetivamente tombados, ainda que em pequena proporção, mas inscritos nos
majoritariamente selecionadas -, identificou-se a configuração de áreas peri- outros livros. -.
féricas de seleção. Dentre estas, as localizadas em capitais de estados são: cinco Dentre as combinações de uma mesma inscrição em mais de um livro, encon-
igrejas em Belém, no Pará; duas em Vitória, no Espírito Santo; uma em João traram-se, além da combinação dos Livros de Belas-Artes e Histórico, apenas
Pessoa, na Paraíba. O restante é constituído por representantes do "interior" quatro bens inscritos simultaneamente nos três livros - Belas-Artes; Histórico; e
(Pirenópolis, em Goiás: ~I)gra dos Reis, no Rio de Janeiro; Carapicuíba, em São Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. E, por fim, uma única inscrição foi feita
Paulo; Anchieta, no. Espírito Santo, esta última tanto pela ancianidade quanto por conjugando-se os Livros de Belas-Artes e Arqueológico, Etnográfico e Paisagís-
ter sido cela de Anchieta). tico, tratando-se de uma casa na ladeira do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro.
Outra característica do conceito de histórico, contido na seleção e inscrição A história contada por meio da maioria absoluta dos bens selecionados foi
de bens exclusivamente nesse livro, é a ideia fetichista de homenagear persona- demarcada cronologicamente no período colonial, com ênfase no processo sacio-
gens vinculadas a uma história a ser contada por meio de edificações que as cultural advindo da proliferação de cidades auríferas mineiras, assim como nos
simbolizavam, como, por exemplo, "a casa onde nasceu Ana Néri".23 Ao fazê-Ia, centros de poder político e econômico desse período - Salvador e Rio de Janeiro;
criavam heróis que teriam sido, nessa perspectiva, peças-chave na construção a região de ocupação antiga em Pernambuco, graças à economia açucareira, onde
da nacionalidade. Vários dos bens inscritos aqui enumerados foram selecionados foi também enfatizado, na seleção de bens, o caráter de berço da nacionalidade,
nesse sentido, correspondendo ao item do decreto-lei nº 25/1937, que atribuía va- referindo-se à vitória sobre os holandeses em Pernambuco; e a arquitetura jesuí-
ler aos bens com "vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil".24 Um tica e a "sobriedade" de suas formas artísticas, conforme escreveu lucio Costa
único bem de tipo arquitetura rural foi inscrito somente no Livro Histórico, e a (1941).
motivação foi, mais uma vez, sua "ancianidade", expressa em artigo na Revista Dentro desses recortes cronológico e territorial-temático, foi supervalorizado
do Sphan.25 o aspecto religioso do período colonial - atríbunâo valor artístico às manifestações
nação e reproduzidos infinitamente por meio de fotos, da imprensa, de livros "estado de alienação"
didáticos etc. [...] que visa um estadoa-conflitualpormeio da abolição de todas as causas de conflito
Os recortes operados para a definição do universo de bens culturais, objetos entre o identificantee o identificadoe tambémentreo E'J e seus ideais, isto é, abolição
de qualquer conflito entre o Eu, seus desejos e os de"ejos do Eu dos outros por ele
privilegiados na seleção para proteção e sacralização, não poderiam, portanto, ser
investidos. (Aulagnier,1985, p, 34) ,'
desvendados sem um olhar atento ao aparelhamento feito no Sphan pelo profis-
sional arquiteto: por um lado, foram privilegiados os bens arquitetônicos, adicio- Segundo a autora, os suportes essenciais em que se apoia o estado de alie-
nados ao recorte de uma dada arquitetura (colonial), resgatada como representante nação do eu são, por um lado, uma idealização maciça daquele que exerce para
mais genuína da produç~Q nacional, que conferia uma profundidade histórica à ele a função de força alienante, e que é, portanto, suporte de um desejo de alienar;
nação e legitimava sua ancestral idade. A monumentalização dessa arquitetura e, por outro, a retomada, pelo sujeito alienado, desse mesmo desejo e desta mes-
deu-se, basicamente, por ~ma valorização estética dela como obra de arte. Por ma função em relação aos outros, só que agora como adepto. Ele atribui ao poder
outro lado, a própria produção do profissional arquiteto ficava também delimitada alienante a capacidade de demonstrar e de garantir sua verdade, supremacia e
no âmbito artístico - afinal.. são eles os construtores desse patrimônio. "bondade". É sempre em nome de uma "boa causa" que se aliena o pensamento.
. ".
O discurso que se constrói para a arquitetura em torno dos conceitos de bele- O que caracterizao discurso do poder [...] é proibir os sujeitos de reconhecero
za e verdade, da obra de arte como algo atemporal, recortou uma história da nação, que, nesta realidade,é a atuação de uma finalidade pulsional, a realizaçãoparcialou
a ser contada por meio da material idade dos bens tombados, em busca das "raízes fantasmáticada realidade.
de nossa nacionalidade", a ser resgatada no momento contemporâneo, embora O sujeito, para conquistaro direito de cidadania neste espaço social, é obrigado
com a pretensão de retomar o elo perdido no final do século XIX, para dar continui- a lhe atribuir pensamentose palavras que negam a realidade, a interpretaçãoe a
dade à sua produção, resgatando a "boa tradição", como dizia Lucio Costa (1937). fantasmatizaçãoque o induziram e que ele induz por sua vez. (Ibid., p. 39)
Alguns estados não foram contemplados com tombamentos nesse período, A nação torna-se palpável, além de visível. A crença na "causa" deu suporte
excluídos também da organização dada aos novos distritos pelo Regimento Interno à concepção de uma história "comprovada" pela materialidade dos objetos-teste-
da Dphan, de 1946, já visto. São eles: Mato Grosso, Amazonas, Acre, Goiás, Ceará, munhos. A seleção de bens que representassem uma história "remota" é "origi-
Maranhão e territórios. Possivelmente, isso se deu não só pelas dificuldades de nária" possibilitou a omissão dos conflitos na história da nação, que se fundou
pela possibilidade de, ao distanciar-se do presente, construir heróis nacionais e estilo, eram apenas escravos do espírito do seu tempo. Foi assim que se criaram,
espontaneamente,os estilos de arquitetura conhecidos não somente por monumentos
uma origem "pura", que deveriam informar as ações no futuro e conter as dife-
conservados-edifícios, como também por objetos de uso familiar colecionados pelos
renças no presente. O mesmo pode ser dito quando se identificou a arquitetura
museus. E é de se observar que esses objetos de uso familiar são do mesmo estilo
moderna com a do perí~dó ~olonial. Negavam-se as produções contemporâneas que as casas onde se encontram, havendo entre si perfeita harmonia. Um carro de
diferentes, que não se enquadrassem nesse padrão, desqualificando-as para o cerimônia traz as mesmas decorações que a casa de seu dono.
. "
confronto. 1
Em busca de um sentido nacional para a "arquitetura moderna", foi forjada a A ENUNCIACÃO DO A'tI(jON;jf EN1RE O IOfI5/M E A RHÓRICA: O (ONIHHO (ONIULIIVO DO SPHAN
origern da nação, identificando-se, ern sua pretensão evolutiva, "arquitetura moder-
Em termos legais, a ação de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacio-
na" e "arquitetura colonial", e esta, com a da "Antiguidade clássica": a tríade da
nal foi fundada com base na tutela jurídica, a partir da aplicação do instituto do
"boa arquitetura".
tombamento, por meio da qual o Estado obteve o monopólio dos atos de definir
Para não deixar de retomar o texto de Warchavchik, Manifesto acerca da
e controlar o que seria este patrimônio.
arquitetura moderna:
O monopólio do Estado, no enlanto, se deu não por relações de força, mas
O arquiteto moderno deve estudar a arquitetura clássica para desenvolver seu
pela sua "eufemização", mediante o reconhecimento do poder a ele atribuído.
sentimento estético e para que suas composições reflitam o sentimento do equilíQrio
Nesse sentido, o Estado investiu na legitimação do seu papel para o desempenho
e medida, sentimentos próprios à natureza humana. Estudando a arquitetura clássipa,••.
poderá ele observar quanto os arquitetos de épocas antigas, porém fortes, sabiam dessa nova tarefa, ao longo das décadas de 1930 e 1940, a partir dos discursos
corresponder às exigências daqueles tempos. Nunca nenhum deles pensou em criar Vm e práticas dos intelectuais que se áparelharam na nova agência, quando o Sphan
ma naturalizada e legitimada. por um reconhecimento que impede que a mesma cruzadas a fatos conjunturais surgidos em diferentes ocasiões, propiciaram toma-
seja compreendida como arbitrária. das de posição bastante variadas, muitas vezes de acordo com o público-alvo
Para se compreender os atributos legais e retóricos que configuraram as parti- envolvido no confronto - a posição ocupada pelo proprietário interessado, ou as
cularidades da ação do Conselho Consultivo, dentre as diferentes frentes abertas forças políticas e econômicas em jogo. Por terem sido casos polêmicos, foram
pelo Sphan visando a imposição de uma fala própria e legítima, pretende-se, a utilizados recursos retóricas e também políticos bastante contundentes, que contri-
seguir, caracterizar o âmbito de atuação desse Conselho, os mecanismos burocrá- buíram para tecer a trama em que estava sendo circunscrita a temática preserva-
ticos que o configuraram como instância máxima na decisão de casos polêmicos ção no Brasil, e sua consagração sob a tutela do Estado.
de tombamento, a constituição de seus quadros e as estratégias discursivas por Segundo a legislação que o crlou," o Conselho Consultivo deveria ser cons-
eles utilizadas, o que se fez a partir da seleção de alguns casos mais represen- tituído pelo diretor do Sphan, seu presidente, pelos diretores dos museus nacionais
tativos dos embates e das' distinções internas, do próprio Conselho, e externas, ligados a objetos históricos ou artísticos, e por mais dez membros nomeados pela
nas relações estabeleci das com a sociedade civil. presidência da República, sem que fossem estabele-idos os critérios para a es-
colha desses ndriJés:;~'d;Conselho foi composto, sem dúvida, "por especialistas de suas carreiras, beneficiados, de algum modo, com trabalhos executados para o
I notável competência ~ \I~comprovado espírito público", assim valorizado no dis- poder público. Este último foi sócio de Lucio Costa num escritório de arquitetura
curso do ministr~ Gust~v~ ·Capanema, na sessão inaugural do órgão, em 10 de de 1933 a 1936 e integrou a equipe de arquitetos modernistas que projetaram o
li
J
Ir11
maio de 1938.30
O conjunto dos conselheiros do Sphan possuía outros importantes atributos
que os tornavam personagens fundamentais para a legitimação da tutela do Estado
mitológico prédio do Ministério da Educação e Saúde. Carlos Leão afastou-se do
Conselho Consultivo em dezembro de 1939, após desentendimento provocado por
sua derrota para Oscar Niemeyer, numa disputa travada dentro do Sphan a res-
r
sobre as ações de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional, a partir peito do projeto vencedor para a construção do Grande Hotel na cidade histórica
da teia de relações que mantinham e das posições estratégicas por eles ocupadas de Ouro Preto." Quem o substituiu provisoriamente foi o arquiteto Lucio Costa,
como notórios integrantes dos campos intelectual e político brasileiros. Nesse cuja atuação no Sphan havia se iniciado em 1937.
'I sentido, dentre os atributos que compartilhavam, estava o fato de que todos os É curioso notar que a diversidade de especializações característica. desse locus
seus membros tinham' alguma forma de inserção no Estado. Dentre os componen- de ação do Sphan, identificada como um de seus atributos fundamentais, não se
tes do Conselho, h~v!a aqueles que o eram por força da lei, devido aos postos fez sentir, conforme visto anteriormente, na constituição de seus quadros técnicos.
que ocupavam na rede burocrática do MES: os diretores do Museu Nacional de Estes, na verdade, tiveram a presença maciça e quase absoluta do arquiteto que,
Belas Artes (Oswaldo Teixeira, artista), do Museu Nacional (Heloísa Alberto no entanto, teve uma representação bastante reduzida no Conselho Consultivo,
Torres, antropóloga), do Museu Histórico Nacional (Gustavo Barroso, advogado nesses primeiros anos de funcionamento.
ll)
e historiador) e do Museu Imperial (Alcindo de Azevedo Sodré, historiador). O an- Desta forma, os critérios para a escolha dos nomes objetivavam, dentre ou-
h\
'[
(. tropólogo Edgard Roquette-Pinto teve assento no Conselho Consultivo não por tros aspectos, uma variedade de especializações, dentre intelectuais de "notório
direito legal, mas por seu prestígio, como antigo diretor do Museu Nacional e como saber"." Tendo por base esses critérios, outras razões influenciaram as escolhas,
fundador e diretor do Instituto Nacional do Cinema Educativo. a partir das propriedades de posição desses agentes, apenas sugeridas no quadro
Havia também os que participaram do Conselho mesmo sem ocupar cargos 4.2, que reúne também o conjunto de conselheiros do Sphan, no período de 1938
que os tornassem membros naturais. Eram pesquisadores e/ou professores de a 1946 (ver também anexo 2).
instituições de ensino federais, ligados a atividades profissionais cuja especifi- A sessão inaugural do Conselho Consultivo, realizada em 10 de maio de 1938,
cidade precisava ser demarcada como pertencente ao território multifacetado do foi presidida pelo ministro Gustavo Capanema. Em seu discurso, Capanema abriu
patrimônio histórico e artístico nacional. Tal é o caso dos pesquisadores Alberto ritualisticamente os trabalhos do Conselho, destacando as iniciativas tomadas pelo
Childe e Raimundo Lopes da Cunha, respectivamente arqueólogo e antropólogo do Governo Federal, desde 1934, em defesa dos monumentos artísticos e históricos
Museu Nacional; de' Francisco Marques dos Santos, historiador da arte, perito do existentes no País. Não "se esquecendo" da Inspetoria de Monumentos Nacionais,
Sphan, professor da USP e membro do IHGB; do afamado escritor modernista teceu elogios ao seu antigo diretor, ali presente, Gustavo Barroso, esclarecendo,
Manuel Bandeira, professor da Faculdade Nacional de Filosofia; de Afonso Arinos no entanto, a necessidade de criação de uma "repartição autônoma, com atribui-
de Meio Franco, jurista e político, professor da Universidade do Brasil; de Augusto ções privativas para assumir a proteção do patrimônio histórico e artístico nacio-
José Marques Júnior, artista, que por longos anos participou do elitizado Salão nal", assim como a de um Conselho. com atribuições consultivas e deliberativas.33
Nacional de Belas Artes, e professor da Escola Nacional de Belas Artes. Dessa forma, deu uma aura de continuidade aos esforços já empreendidos, tazen-
Dentre os componentes do Conselho, apenas José Otávio Corrêa Lima (artista do seu papel conciliador naquele momento solene, mas, ao mesmo tempo,demar-
consagrado comilnurneras obras públicas no Rio de Janeiro) e Carlos de Azevedo cando o começo de um novo tempo, distinto daquele simbolizado pela figura de
Leão (arquiteto) não exerceram o magistério, sendo profissionais de ponta em Gustavo Barroso, agora em franca desvantagem.
Rodolfo G. de Siqueira Historiador de arte QUADRO 4.3. ~PHAN - \MPUGNACÕts AO 10MBAMENIO (1938-1946)
CASO IMPUGNANTE PARECER SOLUÇÃO
TECNICO CONSELHEIRO T A C
Na solenidade, ficou determinado que o Salão Nacional de Belas Artes, DOSPHAN
anteriormente responsabilldade do Conselho Nacional de Belas Artes, extinto pela Casa da praça Proprietária José de Souza Edgard x
Condessa de Reis Roquette-Pinto
mesma lei que criou o Conselho Consultivo, passaria a ser tratado por uma comis- Frontin 52,
são especializada para o assunto, presidida pelo diretor do Museu Nacional de Rio de Janeiro/RJ .'
Belas Artes, Oswaldo Teixeira, e composta pelos conselheiros artistas plásticos: Palácio Episcopal de Arcebispo Aníbal Fernandes " Francisco Marques x
Olinda e Seminário, de Olinda dos Santos
José Otávio Corrêa Lima e Augusto José Marques Júnior." OlindalPE
As formas de funcionamento do Conselho Consultivo foram regulamentadas Fazenda do Viegas, Proprietários Paulo Thedirn Raimundo Lopes x
Rio de Janeiro/RJ Barreto
também na sessão inaugural, quando se deliberou que a distribuição dos proces- Capela da Jaqueira, Invenlariante Anfbal Fernandes Carlos Leão x
sos de tombamento a serem analisados se fizesse pelo presidente do Conselho - Recife/PE do espólio
o diretor do Sphan -, considerando que a circunstância da nomeação havia sido Igreja de Nossa Vigário Paulo Thedim Rodrigo Melo x
Senhora da Penha responsável Barrete Franco de Andrade
inspirada no critério de especialização dos seus membros e que este, também di- de França, pela igreja
retor do Sphan, estaria melhor inteirado das necessidades de cada caso a ser Rio de Janeiro/RJ
continua q
extensa rede se articulava: contra a demolição da Igreja, o engenheiro Fernando Pedro responde"."
!
Duprat da Silva,39 que h'avia cedido para o Sphan plantas e desenhos de fachada Rodrigo Meio Franco de Andrade respondeu às acusações, apresentando uma
que possuía da Igreja, e q presidente da Biblioteca Riograndense, Abeillard Barreto, resposta aos "quesitos" solicitados:
escrevendo em jornais, fazendo apelo aos intelectuais do Estaoo,? ofereceu ao
[...) pela conveniência de serem preservadas no País as obras arquitetônicas caracte-
Sphan extenso histórico da referida igreja, com vasta bibliografia; o cardeal dom
rísticas de determinados períodos de nossa história, carecem de ser tombadas todas
Sebastião Leme também envolveu-se no assunto, enviando telegrama ao bispo de as igrejas que se enquadrem no partido geral de composição peculiar à arquitetura
Pelotas em defesa da manutenção da igreja. O encaminhamento do tombamento religiosado século XVIII e que apresentem nas fachadas certos elementos e pormenores
foi feito, então, por Augusto Meyer. também característicos daquele período."
[...] sua preservação se impõe tanto mais quanto me.os é rico o patrimônio artístico
do Estado [...]. A simplicidade de concepção e execução da Matriz não constitui razão
suficiente para lhe negar valor como obra de arte [...]. Não seria possível fazer tal lista
de quesitos porque a conceituação e especificação dos elementos que possam distinguir
[...] não lograram ainda ser apurados, daí a existência do decreto-lei nQ 2511937.44
Por fim, para refutar a acusação de leviandade feita contra Meyer, responsável
pela proposta de tombamento, Rodrigo Meio Franco de Andrade saiu em sua defe-
sa, afirmando veementemente que ele havia feito acurado estudo, com relatório,
fotos, plantas e bibliografia.
Figura 11. Igreja Matriz' de' São Pedra, em Rio Grande, Rio Grande do Sul (sem data). Em seu parecer, Augusto Meyer utilizou-se do "critério histórico", dada a "insig-
nificância do ponto de vista artístico", afirmando que "Exceptuada a zona missio-
Foi O próprio bispo' de Pêlotas que apresentou a impugnação, de modo arro- neira, [...] pouco ou quase nada apresenta o Rio Grande do Sul indiscutivelmente
gante, questionando, inclusive, a idoneidade do representante do Sphan em Porto digno de tombamento"." Segundo ele, abandonar a Matriz ao seu destino seria
Alegre - Augusto Meyer -, e fazendo exigências quanto aos critérios que o Sphan abrir uma porta a todas as concessões, tendo sido esta uma preocupação recor-
adotava. As considerações do bispo foram de que a Matriz estava pequena para rente naquele momento.
o culto, necessitando de reformas para sua ampliação, visto que não seria conve- O conselheiro Carlos Leão assim abordou essa ideia em seu parecer:
niente trocá-Ia de lugar, devido às "tradições paroquiais". Duvidava das qualidades
Se fôssemos nos cingir a tombar exclusivamente obras perfeitas de arte, bem
arquitetônicas da igreja, afirmando que "não é nenhuma obra de arte, como por
pouco teríamos no Brasil [...). Não se trata de comparar os nossos monumentos-com
tal erroneamente dada ao Sphan - são puras paredes sustentando um teto já grandes obras da Grécia, Itália ou França, mas sim de proteger nosso patrimônio
bastante arruinado"." Sugeriu, enfim, que o Sphan fizesse uma "lista de quesitos, histórico e artístico."
No entanto, o caso não nada, evidenciando que o capital político do Sphan, nessas disputas, não foi capaz
, se encerrou por aí. O Rio Grande do Sul precisava ser
atado a essas redes, oque não parecia tarefa fácil naquele momento. Os diversos de sensibilizar o executivo federal, na rede de relações tecidas. Vários artigos
interesses envolvidos nesse episódio foram ficando em evidência. O vigário insis- continuaram saindo nos jornais, inclusive do Rio de Janeiro, sobre o assunto,
tia em reformar a Capela de São Francisco, anexa à Igreja de São Pedro, dizendo durante o ano de 1948.51
que a capela não estava tombada. A prefeitura também entrava em confronto com
o Sphan, porque desejava construir na praça da igreja um prédio de oito andares.
Relações entre proprietários particulares
O arquiteto Lucas Mayerhofer, prestando serviços ao Sphan no Sul, em 1939, en-
e o Conselho Consultivo do Sphan
tendia que isso prejudicaria a Matriz, e, portanto, a praça deveria ficar como esta- Os casos de impugnação a tombamentos feita por particulares, analisados
va, apenas com árvores e jardim. Em carta a Rodrigo Meio Franco de Andrade, pelo Conselho Consultivo, reportaram-se, todos eles, a uma única argumentação -
pedia que conversasse com Lucio Costa sobre o que julgava conveniente para o direito de propriedade. Os proprietários consideravam o tombamento um ônus
atender às reclamações do vigário, sem a demolição da Igreja de São Pedro. Caso allíssimo sobre suas propriedades, podendo causar-Ihes sérios prejuízos econô-
o vigário não concordasse, entendia que deveriam apenas reparar o telhado para micos. Um dos casos chegou a questionar a constitucionalidade do decreto-lei
a segurança do monumento. Assim, sugeria que se fizesse "Abertura de arcos nas nQ 25/1937, com base nas restrições ao direito de propriedade que ele impingia.
paredes da nave, conservando-se como está a da capela-mar; cessão do interior A conquista paulatina com relação à legitimidade do Sphan no que se refere a
de São Francisco para instalação da casa canônica, respeitada, bem entendido, esse aspecto foi, sem dúvida, um ponto crucial para o reconhecimento da ação
a sua fachadinha"." de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional nas mãos do Estado.
Em carta encaminhada a Rodrigo Meio Franco de Andrade, em 11 de fevereiro Na análise dos procedimentos adotados para solução da impugnação impetrada
de 1942, o vigário da Matriz reclamava que o Sphan fazia apenas obra no telhado ao tombamento da casa à praça Condessa de Frontin, nQ 52, na cidade do Rio de
e que não podia pedir dinheiro aos fiéis para fazer o restante das obras, porque, Janelro," transpareceram aspectos significativos das posições em disputa.
-. , ..
dizia ele, "ouvimos invariavelmente a resposta - o Sphan que o faça".49
Este imóvel foi uma antiga chácara, pertencente ao visconde de Estrela. A
Diante de demorada polêmica, o diretor do Sphan enviou Paulo Thedim Barreto proprietária, Elvira de Souza Ferreira, apresentou sua impugnação, alegando o
ao Rio Grande para vw.a~ obras da Matriz. Este reafirmou em seu relatório que prejuízo econômico que sofreria. Com um vocabulário bastante inteirado das
a Capela de São Fran~is60 era parte do conjunto tombado da Matriz, não podendo disposições existentes no jíecreto-lei nQ 25/1937, a proprietária não questionou o
ser demolida.50 Parecia,
. I
por
•
um lado, que a Matriz, sacralizada com o tombamento, "valor artístico" do imóvel, dizendo-se com interesse em "cooperar com Vª. Sr'!.
havia "contagiado" a capela anexa. Por outro lado, a pretensão de intervir na orde- para a seleção artística do nosso Patrimônio Nacional Artístico e Histórico, [...)
nação urbana da cidaoe, ao .tratar do agenciamento da praça, visava manter uma achando até uma grande honra possuir uma propriedade de tal valor"." Ainda
ambiência condizente 'com.' a' igreja tombada, entendendo que as alterações pro- assim, solicitava que o tombamento não fosse realizado.
postas pela prefeitura poderiam profanar o bem sacralizado. Recorrentemente, os
O arquiteto do Sphan José de Souza Reis fez seu parecer, afirmando ser o
agentes do Sphan buscavam aíuar como urbanistas, argumentando, para isso, em
imóvel
defesa do patrimônio tombado.
[...) bastante interessantesob o ponto de vista histórico-artísticopelo seu aspecto
Em 1948, o presidente Eurico Gaspar Dutra cancelou o tombamento da praça
exterior, [...) mostrandoum bom exemplo de arquitetura residencialde época: estilo
como parte integrante do, tombamento da Matriz, a fim de legalizar as obras dos sóbrio, boa proporção,a forma característicade sobrado ocupandosó a parte central,
~ f"j>/'fé"-
der à impugnaçãodà proprietária. Nesse caso, seria conveniente mandar fazer
primento das exigências então feitas. Lucio Costa lntervelo no assunto, fazendo
a cada momento novas exigências à proprietária. Uma "informação técnica" de
' documentação fótográfica' do prédio"."
Costa, datada de 1942, determinava que
'[i O parecer do Sphan ao Conselho Consultivo, elaborado por Rodrigo Meio
Deverão ser entregues pelo proprietário, e:l1 perfeito estado de conservação
Franco de Andrade, considerava que a argumentação apresentada na impugnação,
[elementos arquitetõnicos do prédio] a fim de serem devidamente preservados, como
face ao decreto-lei n2 25/1937, não tinha valor, posto que a proprietária alegava parte integrante do acervo destinadoao Museu de Arquitetura Civil a ser criado opor-
motivos pessoais, de ordem financeira, sem contestar que sua preservação fosse tunamente nesta Capital, com seções nos diferentes estados e municípios.58
de "interesse público", já que não questionou os atributos artísticos do imóvel.
Tal museu jamais foi criado, e, em 1955, o prédio, já em péssimo estado de
Nesse sentido, Rodrigo Meio Franco de Andrade ponderava que "a conveniência
,ilh' canse Nação e interditado pela saúde pública havia alguns anos, foi demolido, sem
para a coletividade está acima da individual". No entanto, concordava com o pa-
I que pudesse ser recolhido o referido material.
recer do arquiteto José de Souza Reis, sugerindo que fosse escolhido, em Niterói,
, '~,',," "um exemplar bem típico para ser tombado". Assim, ele mesmo forneceu os
~ Modelos discursivos dos pareceres
argumentos que a proprietária não havia sido capaz de formular, afirmando:
l Analisando esse loeus de ação do Sphan, percebeu-se a recorrência de proce-
[...) o tombamento só deverá prevalecer quando o interesse público que houver na
preservaçãode um monumento ou de uma obra de arte primar insofismavelmentesobre dimentos que, ao mesmo tempo, instituíam uma racionalidade administrativa no ór-
o interesse particular que porventura militar em sentido contrário." gão e o legitimavam, ao legitimar o próprio Conselho Consultivo. Segundo Santos,
N'em sempre a retórica, porém, foi utilizada em favor dos interesses do pro- [...] procuravam fazer coincidir a autorrepresentaçãode seus membros com a autorre-
prietário. Assim, revelou-se, nesse caso, a maleabilidade do "interesse público" e presentação da instituição Sphan. Assim, é preciso reafirmar continuamente a neces-
sidade de reconhecimentopúblico da legitimidade da instituição Sphan. (1996, p. 82)
a curta distância entre o sofisma e a retórica, enquadrando-se convenientemente
num lugar ou noutro, de acordo com os interesses em disputa. Neste caso, optou- Esses procedimentos se engendraram a partir de três tipos de pareceres, hie-
se por uma conciliação de interesses em que a evidente aparelhagem intelectual rarquicamente situados na sua estrutura de funcionamento, seguindo essa ordem:
da proprietária para lidar com o assunto tornava-a cúmplice da "causa", sendo o parecer técnico do arquiteto; o parecer do Sphan, de Rodrigo Meio' Franco de
conveniente ao órgão atender a um pedido de âmbito privado. Andrade; e o parecer do relator do Conselho Consultivo do Sphan, Considerando
O relator do caso foi o conselheiro Roquette-Pinto. Visando não desprestigiar os pareceres como uma técnica discursiva 'que impõe regras e consubstancia a
a lei, o conselheiro propôs uma solução conciliatória, entendendo que ambos os hierarquia institucional, como dispositivos que prescrevem ao descrever, eles
interesses poderiam ser atendidos, exerciam diferentes papéis e se distinguiam na forma e no conteúdo.
,
[...) desde que o Sphan recolha ao Museu Histórico Nacional ou a outra qualquer Os pareceres técnicos, na maioria das vezes emitidos pelos arquitetos, carac-
repartição colecionadora a maquete, em justa proporção, do ediffcio [...). Resolvendo terizavam-se por serem descritivos das características físicas do objeto - embora
nos termos aqui propostos os casos idênticos, atenderá ao justo interesse particular em termos vagos, crípticos e manipuláveis - e por demonstrarem um conheci-
sem abrir discutíveis exceções que virão, em pouco tempo, inutilizar a lei que hoje regula mento específico das técnicas construtivas e do universo de bens do qual ele fazia
a matéria.57 (Grifos meus)
; parte como peça exemplar ou mesmo única. Dentre os aspectos recorrentemente
...: ,.,
llill 01 ARQUITfl01 DA MEMÓRIA
t ,', LlliJ
tratados, continham, todos eles, descrições detalhadas das características arqui-
tetõnicas e dos materiais utilizados, e do "apuro técnico" com que foi produzida
a obra arquitetõnica em análise, assim como comentários sobre os trabalhos de
restauro necessários para voltar-Ihes a "feição original". Era sempre valorizado
o fato de serem os objetos "exemplares únicos", o que podia ser definido pelas
características arquitetõnicas destacadas ou pela escassez de exemplares no
âmbito regional. Neste caso, era colocada a necessidade de relativização dos va-
lores das diferentes regiões.
Nesse tipo de parecer, o ''valor histórico" era considerado dado para as cons-
truções do século XVIII ou anteriores. Já o critério de valorização propriamente
histórico como justificativa para o tombamento era utilizado, secundariamente, em
função da "insignificância do material sob o ponto de vista artístlco"," tratando
hierarquicamente o interesse não só histórico-artístico do objeto em análise, mas
Figura 12. Fazenda do Viegas, no Rio de Janeiro, constderada por Paulo
o "puramente artístico". com a utilização frequente da expressão "boa arquitetura".
Thedim Barreto um exemplar t1pico da habitação rural brasileira (sem data).
Eram consideradas,' assim, essenciais as características arquitetônicas de dispo-
sição interna e externa, a conservação dos elementos construtivos, seu aspecto Os pareceres do Sphan, por sua vez, eram propositivos e argumentativos,
primitivo e as características de estilo. considerando as "descrições técnicas" realizadas e aspectos jurídiCOS do tomba-
O arquiteto do Sphan' Paulo Thedim Barreto sugeriu, inclusive, a existência mento. Geralmente, esse tipo de parecer conciliava-se com a argumentação de
de uma "planta típica" d~ habitação rural brasileira ao analisar a sede da Fazenda "caráter técnico", no entanto, em alguns momentos, Rodrigo Meio Franco de Andrade
do Viegas, no Rio de J~nei~0.60 Fazendo uma descrição física detalhada do imó- emitia opiniões divergentes a respeito das proposições e encaminhamentos, sendo
vel, considerava que seus 'elementos um parecer estratégico dentro dessa rede hierárquica, pois definia uma tomada de
[...] demonstram o apuro com que foi feita a obra. [...] A casa conserva no que é posição para o Sphan.
essencial, isto é, a sua disposição externa e interna e seus principaiselementoscons- Os pareceres dos conselheiros relatores tinham caráter decisório, pois ainda
trutivos, o aspecto primitivo. [...] Boa arquitetura rural da época já bem remota, que
que dependessem da aprovação pela maioria do Conselho Consultivo, raras vezes
se conserva, e como' um dos poucos exemplares do tipo, existente na l' região [do
foi tomada decisão diferente daquela encaminhada pelo relator. Nesse tipo de
Sphan],"
parecer, considerava-se o "valor nacional" do bem indicado para tombamento e os
A profundidade histórica da nação - sua ancianidade - poderia ser construída
aspectos político-institucionais de legitimação do Sphan. Apoiados nos pareceres
também a partir do conhecimento de tipos arquitetõnicos que se enquadrassem em
anteriores, eles preocupavam-se permanentemente com o caráter nacional do ob-
séries históricas, cuj'a~ características se repetiriam e se transformariam lenta-
jeto apreciado, que articulava, retoricamente, as diferenças das produções arquite-
mente, dependendo do tipo de arquitetura, da região e da época da construção.
tônicas do Brasil, ao relativizar os valores regionais, ainda que também esses
Dessa forma, se constituía uma tipologia arquitetõnica brasileira, uma homoge-
valores fossem hierarquicamente tratados. Esse aspecto ficou bem sintetizado
neidade, uma constância. Os pareceres técnicos eram principalmente caracteri-
nas palavras do arquiteto conselheiro Carlos Leão, citadas anteriormente, no caso
zados dessa forma.
relativo ao tombamento da Igreja Matriz de São Pedra, em Rio Grande.
Alberto' Child~~I~~~~rrireferiu-se ao assunto, de forma talvez resignada, de- se em descrença, perdendo sua força ou tornando-se "letra morta". Para Raimundo
monstrando, por su"â vez,"a 'subjetividade do decreto-lei nº 25/1937, na medida em Lopes, o tombamento poderia "evitar deturpações do utilitarismo conterrporáreo"."
que a inclusão na "datego'ria de patrimônio histórico e artístico nacional dependia Reafirmando as concepções sobre o que seria o patrimônio histórico e artístico
somente de uma bcia retórica. Percebe-se também um forte empenho em consi- nacional, as quais o Sphan consagrava em sua prática seletiva e classificatória,
derar os pedidos de tombamentos feitos por particulares. Nesse sentido, referindo- o debate no Conselho Consultivo concentrou-se sobretudo em torno da valorização
se à solicitação de tombamento de um bem de arquitetura religiosa descrito como do aspecto artístico-arquitetônico, estando presente entre os conselheiros, tal
de feição popular, a Igreja de Santa Rita, em Uberaba, Minas Gerais, feita por um como entre os arquitetos, a preocupação com a unidade arquitetônica primitiva,
morador da cidade, considerou: "Na falta de outro monumento em Uberaba de valor intenção essa que revelava o desejo de que a arquitetura fosse intocável, tal qual
histórico ou artístico, deve ser considerada obra de excepcional valor"." uma obra de arte. Ainda assim, Raimundo Lopes amplia a noção de "interesse
público" sem deixar de enfatizar o "caráter nacional" que tanto o preocupava:
sua origem lusitana e também católica, ainda que reapropriada e transformada (Martins, 1987; Silva-Nigra, 1991).
numa "nacionalidade que é nossa", como dizia Lucio Costa. A respeito desse assunto, ver Pacheco, 1996, especialmente p. 260-262.
Outros atributos também delinearam a grande coleção de bens patrimoniais: Conforme tratado anteriormente, Lucio Costa formou-se pela Escola de Belas Artes em 1924,
sua antiguidade e/ou o "caráter histórico" de bens vinculados a personagens ou ligando-se ao movimento neocolonial. Ao abandonar essa corrente, fazia sua crítica afirmando
, . ser "irrelevante a querela entre o falso colonial e o ecletismo dos falsos estilos europeus"
a fatos memoráveis da história nacional, condensando assim a própria existência
(Coutinho, 1962, p. 350).
da nação. E, também, aqueles que 'fipiticavam" a arquitetura brasileira, para os
quais eram feitas taxinomias por tipo de arquitetura ou técnica construtiva, nas Ver, por exemplo, União Internacional dos Arquitetos - Unesco. Relatório sobre o ensino
de Arquitetura no Brasil - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
quais se buscava, por exemplo, conhecer a "planta típica", conforme afirmou Paulo
Paulo, out 1974 (Abea, 1977).
Thedim Barrete." Ern" resumo, o que era histórico e típico era autêntico, e esta
autenticidade deveria.ser objetivamente perceptível. A relação entre a nação e a A respeito do revolucionário Salão de 1931, ver Vieira, 1984.
cultura deveria, assim, $ei caracterizada pelos atributos de originalidade e auten- 10 Foi quando Lucio Costa associou-se com Warchavchik e, juntos, projetaram a "Vila Operária
fi ,.' . I
da Gamboa", no Rio de Janeiro. De 1933 a 1936, associou-se com Carlos Leão (que seria
ticidade, todavia, seguirido':.s~mpre a suposição de que a nação portadora de cultu-
posteriormente membro do Conselho Consultivo do Sphan), e, em 1935, foi professor da
ra existe naturalmenre (ibid., 1988).
UDF. Em 1936, iniciam-se as negociações para construção do MES.
16 Os processos de tombamento das décadas de 1930 e 1940 contêm pouca documentação, 'EI Sociedade civil constitui-se de agências ou aparelhos privados de hegemonia (Igreja,
geralmente apenas a notificação ao proprietário do imóvel, sua anuência e o consequente escolas, órgãos de representação profissional etc.), enquanto a sociedade política constitui-
"Inscreva-se" do diretor. Somente os casos que foram impugnados pelos proprietários se das agências, ou aparelhos de Estado, no sentido restrito (partidos políticos, instituições
contêm um conjunto mais variado de documentação, como será visto adiante, ao se analisar públicas etc.). Ambas, conjuntamente, conformam espaços em que o poder ordenador da
o Conselho Consultivo do Sphan. Os processos de tombamento encontram-se no Arquivo cultura se exerce no sentido de construção da hegemonia (Gramsci, 1978; 1991).
Central do Iphan - Série Processos.
26 Ata da Sessão Inaugural do Conselho Consultivo, realizada em 10 de maio de 1938
17 O anexo 5 traz a relação de todos os bens tombados pelo Sphan de 1938 a 1946. (ACI - Livro de Atas das Reuniões do Conselho Consultivo do Sphan, v. 1).
(
18 Foram oito conjuntos urbanos tombados entre 1938/1946, sendo sete cidades mineiras e 26 Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, citada no capftulo 3 (Sphan, 1980a)
uma paulista: Das sete mineiras, tombadas pelo Sphan até hoje, apenas o Conjunto
"" ACI - Livro de Atas das Reuniões do Conselho Consultivo do Sphan.
Arquitetõnico e Urbaní~tico de Congonhas/MG foi tombado em 1941 e inscrito no Livro de
Tombo Arqueológico, 'Etnográfico e Paisagístico. Todas as outras foram tombadas em 1938 31 Sobre o assunto, ver Cavalcanti, 1995.
e inscritas no Livro de Tombo de Belas-Artes. São elas: Conjunto Arquitetõnico e Urbanístico
32 Nesse aspecto, esteve de acordo com a proposição de variedade apresentada por Mário
de Diamantina; Conjunto Arquitetõnico e Urbanístico de Mariana; Conjunto Arquitetõnico e
de Andrade no anteprojeto, no entanto, diferindo desse em função do não detalhamento de
I
Urbanístico de Ouro Preto; Conjunto Arquitetõnico e Urbanístico de São João dei Rei; tais critérios. ';', '
Conjunto Arquitetõnico e Urbanístico de Serro e Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de
Tiradentes. O tombamento da cidade paulista - Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da 33 Ata da Sessão Inaugural do Conselho Consultivo, realizada em 10 de maio de 1938.
Aldeia de Carapicuíba/SP - data de 1940, tendo sido inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, (ACI - Livro de Atas das Reuniões do Conselho Consultivo do Sphan, v. 1).
Etnográfico e Paisagístico. 34 A comissão deveria definir regulamento, prêmios e recursos, ainda não previstos no
19 Ver anexo 5. orçamento, para sua concreüzação. Na segunda e na quarta reuniões do Conselho Consultivo
(14 de junho de 1938 e 10 de agosto de 1938), o artista premiado José Rescala relatou
20 Esta carta está reproduzida na íntegra em Moita, 1987, p. 109-110.
as viagens que realizara pelo Brasil como consequência da premiação. A partir do orçamento
21
Diferentemente das legislações francesa e da província de Quebec, no Canadá, que definem de 1939, passa a figurar verba específica para organização e premiação do Salão (Ministério
categorias hierárquicas para classificação do "patrimõnio nacional" (Handler, 1988), no Brasil da Fazenda, 1939; 1940; 1941; 1943).
isso se processou sem que fosse explicitado pela lei, mas por meio dos procedimentos
35 Encontraram-se, no período, colaborações relativas ao Palácio Episcopal e Seminário de
adotados no momento de inscrição de bens tombados nos quatro Livros de Tombo, que,
Olinda/PE, dos pernambucanos Anfbal Fernandes e Gilberto Freyre, este último um consultor
na prática, acabaram sendo hierarquizados.
de todas as horas, bastante envolvido com a temática patrimonial (ACI-processo 131-n,
22 Vale lembrar, novamente, que, embora com 41,49% de inscrições somente no Livro de
36 Em 1947, reuniram-se mais três vezes; depois, uma única vez, em 1949, somente voltando
Belas-Artes, ou seja, inferior aos 44,36% das inscrições conjuntas nos Livros de Belas-Artes
a se reunir em 1953,
e Histórico, elas foram consideradas como primeiro patamar da hierarquia, porque nelas
estão incluídas 6 cidades mineiras que reúnem centenas de imóveis cada uma, apesar de 37 Caso analisado na l' Reunião Extraordinária do Conselho Consultivo, em 17 de maio de
contarem como apenas uma inscrição. 1938 (ACI - Livro de Atas das Reuniões do Conselho Consultivo do Sphan, v. 1).
23 Em Cachoeira/BA (ACI-processo 246-T-1941). 36 Relatório de Augusto Meyer, 7 jul. 1937. Igreja Matriz de São Pedro, Rio Grande/RS
(ACI-processo H).
" Como se verá a seguir, o conselheiro maranhense Raimundo Lopes questionou este tipo
de valoração para um caso por ele analisado, no Conselho Consultivo do Sphan . 39 Engenheiro da Diretoria de Obras do Rio Grande do Sul, da Secretaria de Estado de Ne-
. ,1
gócios das Obras Públicas (ACI-SO 423/1845).
25 Ver, por exemplo, L}lCombe, Lourenço Luiz. A Fazenda de Santo Antõnio em Petrópolis.
Revista do Sphan, n. 8, 1944. ., Em 13 de maio de 1936, escreveu o artigo "Tradição que se apaga", em jornal do Rio Grande
do Sul (ACI-SO 423/2845),
26 Publicado na Revista do I Sphan, n. 12, 1955.
47 Ver ata da 9ª Reunião do Gonselho Gonsultivo do Sphan ( AGI- Livro de Atas das Reuniões
Divulgar o conhecimento de arte e de história que o Brasil possui
do Conselho Gonsultivo do Sphan, v. 1).
e contribuir empenhadamente para o seu estudo.
•• Garta de Lucas Mayerholer a Rodrigo Meio Franco de Andrade, 1939 (AGI-SO 423/1845). Rodrigo MeIo Franco de Andrade'
" Carta do Vigário a Rodrigo Meio Franco de Andrade, 11 lev. 1942. (AGI-SO 423/1845).
54 Parecer de José de Souza Reis, 10 maio 1938 (AGI-processo 53-T). fSIRAlfGIAS pOliIlCO-fOIlORIAIS
Ibid.
55
o investimento numa produção impressa foi uma das ações eficientemente
56 Parecer de Rodrigo Meio Franco de Andrade, 4 maio 1938 (AGI-processo 53-T)._ adotadas visando uma dada forma de proteção do patrimônio histórico e artístico
57 Parecer de Roquette-Pinto, de 16 maio 1938 (AGI-processo 53-T). nacional. Teve papel articulador de um debate entre intelectuais e propagandistas
da ação institucional implementado por meio de notfcias, artigos e polêmicas na
58 Parecer de Lucio Gosta, 27 jul. 1942 (AGI-processo 53-T).
grande imprensa, assim como por meio das edições do Sphan, que somavam o
58 Parecer de José de Souza Reis. Casa de Garibaldi, Piratini/RS (AGI-SO 423/1843). caráter legitimador ao caráter divulgado r de um conhecimento especializado pres-
so Parecer de Paulo Thedirn Barreto, 13 jun. 1938. Fazenda do Viegas/RJ (AGI-processo crito pela agência do Estado. O espaço editorial do Sphan - a "menina dos olhos
54-T). ~• de Rodrigo", como disse lucio Costa' - era, sem dúvida, um locus de ação bastan-
~.' ,