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INQUISIÇÃO E CONFISCO DE BENS

normas e práticas na ação jurídica do Juízo das Confiscações1

Davi Silva2

Resumo: este artigo apresenta a nossa compreensão de alguns aspectos acerca da atuação da
justiça do Juízo do Fisco Real. Escolhemos apresentar e dialogar com os assuntos
relacionados à matéria de fé que também fizeram parte do organograma institucional do
Império português. Neste sentido, tanto em Portugal, como em relação aos espaços do além-
mar, a Coroa portuguesa lançou mão dos mesmos expedientes, ou seja, manter-se vigilante
com relação às práticas religiosas de seus súditos, isto é, buscar o predomínio e fortalecimento
da Santa Fé. Garantidora da justiça a Coroa portuguesa em matéria de fé era assistida pelo
Tribunal do Santo Ofício. Mas também, contava com outros expedientes a exemplo de ações
ordinárias voltadas àqueles que incidiam em erros de fé, como o crime da heresia, executadas
pelo Juízo do Fisco Real.
Palavra- chaves: Heresia, Juízo do Fisco Real, Inquisição.
Abstract: This article presents our understanding of some aspects about the performance of
the justice of the Royal Treasury Court. We chose to present and discuss matters related to the
matter of faith that were also part of the institutional structure of the Portuguese Empire. In
this sense, both in Portugal and in relation to the overseas territories, the Portuguese Crown
used the same expedients, that is, to be vigilant in relation to the religious practices of its
subjects, that is, to seek the predominance and strengthening Of Santa Fé. Guarantor of justice
the Portuguese Crown in matters of faith was assisted by the Court of the Holy Office. But
also, it counted on other expedients, like ordinary actions directed to those that were based on
errors of faith, as the crime of heresy, executed by the Judgment of the Real Treasury.
Keywords: Heresy, Royal Treasury Court, Inquisition.

1
Este trabalho, transformado agora em artigo, foi elaborado, inicialmente, como parte integrante da tese de
doutorado, e, por isso, sua forma mais explicativa em algumas de suas passagens.
2
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Para além do zelo pelos domínios e possessões que possuíam os monarcas lusitanos,
também fazia parte do plano português no que diz respeito à expansão territorial de seu
império, reprimir o crescimento e proliferação do protestantismo e calvinismo nos domínios
do Império Português3 – evento que já ocorria na Europa – sobretudo, com relação às áreas de
interesses econômicos como as capitanias da Bahia e Pernambuco. Das perseguições e
condenações ocorridas nos Estados europeus, decorre desse ambiente a institucionalização de
órgãos cuja composição e atuação consolida uma cooperação entre Estado e Igreja, buscando:
o controle, a vigilância e a orientação da vida em sociedade4.
A Coroa portuguesa em matéria de fé era amplamente fundamentada pelo Tribunal do
Santo Ofício, instituição bicéfala, ou seja, criada pela Santa Fé, mas regulada e administrada
pelos monarcas. Em razão desta característica, talvez os reis portugueses procuravam destacar
o lugar daquele tribunal no organograma das instituições lusitanas,
[...] e de que sendo o Conselho Geral do Santo Officio hum dos Tribunaes
mais conjunctos, e immediatos á minha Real Pessoa, pelo seu instituto, e
ministerio; se introduzio o abuso de se lhe dar o Tratamento, que Compete
ao seu Presidente, como se pratica com o Senado da Camara de Lisboa5.

Já com relação aos oficiais e agentes do Santo tribunal, estes, também não foram
esquecidos, municiados por uma miríade de privilégios, os funcionários inquisitoriais com um
certo exagero de nossa parte, podem ser concebidos como uma das categorias mais
privilegiadas no âmbito do organograma institucional do Império português:
Primeiramente Hei por bem, que sejaõ daqui em diante privilegiados, e
escusos de pagarem em fintas, talhas, pedidos, emprestimos. [...] que os
Officiaes e Familiares da Santa Inquisiçaõ até nas causas civeis saõ mais
privilegiados que os Moedeiros, e naõ pódem os Moedeiros usar de seu
privilegio ainda que digaõ que o tem incorporado na Ordenaçaõ6.

3
Cf.: HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima, (org). O Antigo Regime
dos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
4
CRUZ, Maria Leonor Garcia da. Relações entre o Poder Real e a Inquisição (séculos XVI- XVII): fontes de
renda, realidade Social e política financeira. In: Inquisição portuguesa: Tempo, Razão e Circunstancia.
Coordenação: Luís Filipe Barreto e outros. Lisboa, São Paulo, 2007, pp. 107-126.
5
Privilegios dos Officiaes, Privilegios Concedidos aos Officiaes e Familiares do Santo Officio da Inquisiçaõ
destes Reinos, e Senhorios de Portugal. In: Regimento do Juízo das Confiscações pelo crime de Heresia, e
Apostasia, de 10 1620, de 57 capítulos, foi publicado por José R.M. de Campos Coelho e Soisa no Tomo III do
Systema ou colecção dos Regimentos (Lisboa, 1785), a pp.: 120- 227.
6
Idem. p. 120.
2
Reunindo alguns indícios dispersos nas palavras do rei acerca da relação deste com o
Aparelho Burocrático Inquisitorial, suscitamos algumas reflexões. Em primeiro lugar, se por
um lado verificamos na documentação acima, que o próprio soberano deixa claro a utilização
daquela instituição para fins próprios, ou seja, sendo hum dos Tribunaes mais conjunctos, e
immediatos á minha Real Pessoa; por outro lado, a fonte também nos informa, o quanto é
possível verificar a existência da prática política baseada nos princípios de uma tradição de
larga presença na história portuguesa, a saber, o ato de dar. Sendo este dispositivo, uma
prerrogativa régia em consonância com a expectativa de remuneração justa por parte dos
vassalos. No entanto, cumpre ressaltar, que tal dispositivo, fora componente da cultura
política que se consolidou ao longo dos séculos XVI e XVII alcançando também o século
XVIII, tornando-se um estratégico instrumento nas relações de poder do Antigo Regime.
Embora, o uso dos conceitos tanto de economia do dom como o da mercê7, para o século
XVIII, deve estar em sintonia com as transformações estruturais da base econômica da
Europa. Neste sentido, a aplicabilidade de formulações, como a da economia do dom,
analisada por Mauss8 para períodos de baixa monetarização, precisa sofrer adaptações, pois,
em tempos de capital mercantil, tanto as fontes de riqueza da Coroa, quanto o ato de
redistribuí-las aos vassalos, estava condicionado a interesses que iam além de uma simples
motivação inata do monarca.
Diferentemente da Espanha que implantou um tribunal inquisitorial em sua porção
territorial na América espanhola, Portugal apenas contou com alguns dos agentes e oficiais
inquisitoriais. Para além de comissários, notários e qualificadores, a malha inquisitorial
atuante em Pernambuco também contou com revedores, visitadores das naus e familiares do
Santo Ofício.
Em linhas gerais, àqueles oficiais e agentes da Fé buscavam no âmbito de um contexto
de controle social reprimir crimes contra a ordem e à moral. Isto é, os crimes contrários a
ordem eram aqueles que ofendiam os dogmas religiosos, já os crimes de caráter natureza
moral, eram aqueles que ofendiam a moral imposta pela Igreja católica, a exemplo de
desobediências às regras do casamento, desvios sexuais, ou mesmo, pensamentos impuros em

7
Cf.: OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, mercê e venalidade em
Portugal (1641 – 1789). Lisboa: Estar Editora, 2001.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
8
Ver: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Editora: COSAC NAIFY, Coleção: Portátil, V. 25. Ano: 2013.
3
relação à vida sexual. Outras penas também merecem destaque, como o confisco de bens,
crime este pertencente ao rol dos crimes contra a ordem9.
Acertadamente, a professora Sônia Siqueira destaca que a ação do Santo Ofício na
América portuguesa prendeu-se à tônica que dominou a vida colonial. Na criação de uma
réplica do mundo português além-mar, impôs-se o Direito, que se converteu, num instrumento
de aplicação à cambiante realidade dos valores cotidianos, tidos por universais e permanentes.
Na América portuguesa, estiveram em vigor tríplices leis, a saber, régias, eclesiásticas e
inquisitoriais, que muitas das vezes se misturaram para atender às exigências de dois planos: o
da defesa da ortodoxia, da Igreja e o da defesa da unidade das consciências, do trono10, leis
estas que representaram a complexidade jurídica vigente tanto lá em Portugal, quanto aqui na
América portuguesa.
Para o teórico do direito António Manuel Hespanha os juízes portugueses, ainda que
tivessem jurisdição sobre os nativos, cabia-lhes aos magistrados aplicar o seu próprio direito,
ou seja, o direito específico do nativo, exceto em situações que estivessem em causa valores
supremos da ordem jurídica ou da ética europeia, isto é, o âmbito do foro religioso11.
À compreensão do professor Hespanha, para além de confirmar a tese defendida por
ele próprio, ou seja, a do direito pluralista português, também alinha, no entanto, uma série de
argumentos justificativos. Em primeiro lugar destacamos a importância da religiosidade, ou
seja, da grande diferença entre a visão acerca do mundo que nos rodeia hoje daquela a séculos
atrás, a saber, uma divergência amparada por visões muito dispares sobre a existência humana
e o devir universal. O homem da época da Reforma, estivesse ele do lado católico ou
protestante, aceitava a existência de Deus e a ideia de que Ele era a origem de toda a verdade.
Esta panóplia de argumentos acima mencionada favorece ainda discussão acerca da
concepção de um direito inquisitorial há pouco lembrado por Sônia Siqueira.
Ou seja, partindo de situações nas quais o indivíduo era submetido a julgamentos no
âmbito do foro religioso, incluindo aí a jurisdição inquisitorial, era por meios dos regimentos
do Tribunal do Santo Ofício que se materializavam as regras e práticas processais, ou seja, a
9
CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito e Inquisição: o processo funcional do Tribunal do Santo Ofício. 1ª
edição (2001), 5ª tiragem / Curitiba: Juruá, 2009. p. 19.
10
SIQUEIRA, Sônia Aparecida de. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a 157,
nº 392, pp. 495- 1020, Julho/ Setembro, 1996 p. 497.
11
HESPANHA. A constituição do Império português, Revisão de alguns enviesamentos correntes. Op. cit. p.
173.
4
processualística inquisitorial. Também eram nos regimentos que se estatuíam ritos, etiquetas,
cerimônias públicas ou privadas, como também a regularização acerca das aplicações de
penas que serviram como parâmetros moral e religioso, como numa espécie de controle
pedagógico nas sociedades tanto lusitana como da América portuguesa. Neste sentido,
analisando por meio dessa pequena amostragem de casos, comporta-se à compreensão de um
direito inquisitorial.
O estudo da Inquisição tem sido feito em linhas gerais seguindo dois tipos de
enfoques: analisar as transgressões como determinantes das perseguições empreendidas pela
Inquisição, ou, sob a ótica voltada aos aspectos jurídico-institucionais do Tribunal do Santo
Ofício, a proposta deste estudo se enquadra nesta segunda vertente. Ao tentarem compreender
a ação da Inquisição Ibérica, vários autores fizeram uso de certas interpretações, das quais a
ideia de que a perseguição ao cristão-novo era motivada pelas condições econômicas,
identificando os perseguidos como burguesia nascente, os quais seriam alvo da cobiça dos
cristãos-velhos, identificados com a nobreza12.
Em termos conceituais o Tribunal do Santo Ofício português, instituído em 1536, fez
parte dos grandes conselhos portugueses, ou seja, o rei, ao mesmo tempo em que garantia a
realização da justiça, era assistido por uma série de grandes conselhos especializados nas
diferentes áreas da vida na época13. Já com relação à Inquisição, esta, se enquadrava dentro
da ação jurídica da Igreja Católica Romana, cujo objetivo era combater os crimes contrários a
ordem e a moral da Santa Fé católica. Ainda segundo Michel Foucault, foi a Inquisição
medieval, que de uma forma ou de outra instaurou as bases do processo judicial moderno,
participando da construção de toda a cultura ocidental, já que no processo inquisitorial
começam a se reduzir a escrito as memórias, isto é, depoimentos e decisões do julgamento.
Neste sentido, surge uma burocracia judicial: meirinhos e notários; as fases processuais são
organizadas seguindo uma certa clareza e, mesmo, se reconhece a necessidade da presença de
um advogado de defesa14.

12
SARAIVA, Antônio José. Inquisição e Cristãos-Novos. 5ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1985.
13
Ver: CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime: Portugal e o império
colonial, séculos XVII e XVIII. Edição: Fundação Calouste Gulbenkian - Fundação para à ciência e a tecnologia.
2010. p. 59.
14
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Editora: NAU EDITORA. Gênero: ciências humanas e
sociais, direito; sub-gênero: Filosofia, teoria e História do direito. Edição 3, ano 2002.
5
A atividade jurisdicional da justiça do Fisco é pouco estudada na literatura
inquisitorial aqui no Brasil; como também é muito mal conhecida: o silêncio das fontes, o
desinteresse de estudos sobre a temática, como também, a ausência de funcionários, criaram
na historiografia inquisitorial a propensão para subvalorizar a importância do juízo do Fisco.
Embora, neste último quesito, isto é, a falta de agentes do Fisco na colônia portuguesa, nos foi
de grande valia algumas literaturas que pôde iluminar nossa análise.
Para a região da Capitania de Pernambuco, por exemplo, recorremos aos estudos de
Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, que registra para a região da Capitania de
Pernambuco a presença de Gonçalo Novo de Lira, tesoureiro fiscal do Santo Ofício da
Capitania de Pernambuco – em data não indicada - quando o ouvidor de Pernambuco fez
arrematar os bens de Beatriz Fernandes, filha de Diogo Fernandes e Branca Dias 15. Já José
Antônio Gonsalves de Melo, ressalta, em sua obra Gente da Nação, que durante o processo de
habilitação a familiar do Santo Ofício de Gonçalo Novo de Lira – o filho- , o coronel
Francisco Berenguer de Andrade, em depoimento de 10 de julho de 171016, afirmou ser
Gonçalo Novo de Lira – o pai – tesoureiro e fiscal do Santo Ofício17. Apesar das informações
de Borges da Fonseca em sua Nobiliarquia com relação a Gonçalo Novo de Lira ao longo do
texto, pois, ora o refere como procurador fiscal do Santo Ofício, ora como promotor fiscal,
como já discutido, a região da Capitania de Pernambuco não contou com funcionários do
Juízo do Fisco, logo, lançou mão de outros funcionários, situação que acreditamos também
ocorrera nas demais capitanias anexas.
Ainda de acordo com o professor Bruno Feitler, a história do Juízo do fisco real –
diferenciado do Conselho da Fazenda - é difícil de se apreender por causa de seu estatuto
ambíguo. Ou seja, segundo as leis canônicas os bens dos hereges devem ser confiscados em
benefício da Coroa, daí seu estatuto real do Tribunal do Fisco. No entanto, era o Inquisidor

15
FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana [1748], vol. I. In: Annaes da
Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XLVII 1925. Rio de Janeiro: Bibliotheca Nacional, 1935. p. 477.
16
O identificamos como testemunha no caso de Felipe Paes Barreto, ver O nome e o sangue de Evaldo Cabral
de Melo; como também do fidalgo José Gomes de Melo. Confira: SILVA, Davi, Celestino da. DE BRITES MENDES
DE VASCONCELOS AO FIDALGO JOSÉ GOMES DE MELO: Enredos sobre um nobre de sangue maculado no
Pernambuco setecentista. Revista Ultramares, Nº 9, Vol. 5, jan-jun/2016. Disponível em:
http://media.wix.com/ugd/5a45bd_17443da7bc7240dd89567325dd137bd8.pdf
17
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um tribunal da inquisição em Olinda, 1594- 1595. In: MELLO, José
Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristão- novos e judeus em Pernambuco 1542- 1654. Recife: Fundaj,
Ed. Massangana, 1996. pp. 164-5.
6
geral, ou o Conselho Geral do Santo Ofício quem controlava a gestão dos bens confiscados,
nomeando assim os juízes do fisco. Ainda segundo o autor, essa origem “bicéfala” esteve no
cerne de vários conflitos entre a Coroa e os inquisidores18.
Nossa proposta é sair das questões mais gerais, ou seja, dos dados quantitativos acerca
daqueles que foram penalizados com o confisco de bens por si só, isto é, que sofreram a ação
ordinária da justiça inquisitorial– os cristãos-novos – que em linhas gerais apresentam-se tão
somente como números em quadros e tabelas. Priorizamos esboçar a arquitetura jurídica dos
mecanismos institucionais que legitimam e enquadram nas ações jurisdicionais os condenados
pelo Santo Ofício, com a aplicação do confisco de bens, a saber, o Regimentos dos Juízes das
Confiscações Pelo Crime de Heresia, como também o Regimento do Juízo das Confiscações
Pelo Crime de Heresia e Apostasia19.
Para uma melhor compreensão acerca da ação e dinâmica do Juízo do Fisco, faz-se
necessário ressaltar alguns detalhes. Primeiramente, quem é o Juiz do Fisco? Quais critérios
são impostos para tal cargo? E, mais, quem o nomeia? A reunião dessas perguntas, podem ser
respondidas pela principal fonte distribuidora da justiça, isto é, próprio o rei: primeiramente, o
juiz do fisco será pessoa de boa consciência, letras e de muita confiança. Sem descendência
moura ou judia, e será por mim nomeado e provido de tal ofício 20. Apesar de conciso, o
enunciado Real nos fornece algumas pistas; como também, fica claro, a lógica adotada pelo
monarca àqueles que fazem parte do corpo funcional de suas instituições, ou seja, a adoção do
critério de limpeza de sangue, dispositivo legal jurídico que normatiza os valores vigentes das
sociedades da Europa e Além-mar à época do Antigo Regime, forjada pela fenda étnica,
social e religiosa entre cristãos-velhos e cristãos-novos.
Também é interessante destacar, que para o estudo da processualística inquisitorial
iniciada por aquele juízo, é necessário que entendamos o modo por meio do qual as pessoas
eram denunciadas pelo crime da heresia, que, por conseguinte, caso fossem consideradas
culpadas, aplicava-se o confisco de bens.

18
.FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo, Phoebus, 2007.p. 104.
19
Cumpre salientar que o primeiro Regimento é datado no período do monarca Dom Sebastião, enquanto que
o seguinte Regimento foi elaborado durante o período da União Ibérica.
20
Regimento dos juízes das confiscações pelo crime de heresia. Códice 311- Relação da Bahia – 1752. Arquivo
Nacional – Rio de Janeiro.
7
Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, fica claro àqueles que
incorrem em erros de fé, neste sentido, “[...] que o crime da heresia, e judaísmo se extinga,
[...] possa ser punido pelo Tribunal do Santo Ofício o delinquente, conforme os Breves
Apostólicos”.21 Desse modo, cabia aos Familiares do Santo Ofício em seu exercício no
âmbito da justiça inquisitorial executar a prisão, sendo logo em seguida dado início aos
sequestros dos bens dos acusados, por crimes como os acima mencionados nas constituições.
Embora cumpre lembrar, que o confisco de bens também era aplicado aos culpados
pelo crime de sodomia22. Ou seja, tanto as Ordenações Afonsinas, quanto as Manuelinas
preconizavam que a sodomia era o mais sujo, torpe, desonesto de todos os crimes,
sentenciando seus praticantes à fogueira23.
Vejamos no livro V das Ordenações Filipinas, o mais duradouro código legal
português que fora promulgado em 1603 por Filipe I, rei de Portugal, e que ficou em vigência
até 1830. Nele verifica-se que para além de apontar um conjunto de dispositivos legais que
definiam os crimes e a punição dos criminosos, constituindo assim uma forma explícita de
afirmação do poder régio, tal conjunto também nos esclarece acerca do crime de sodomia:
Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por
qualquer maneira cometer, seja queimado e feito por fogo em pó, para que
nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos seus bens
sejam confiscados para a Coroa de nossos reinos, posto que tenha
descendentes pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inábeis e infames,
assim como os daqueles que cometem crime de lesa-majestade24.

Já com relação ao crime de heresia o código filipino nos esclarece que:


O conhecimento do crime da heresia pertence principalmente aos juízes
eclesiásticos25. E porque eles não podem fazer as execuções nos condenados
no dito crime por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges, os
devem remeter a nós com as sentenças que contra eles derem, para os nossos
desembargadores as verem, aos quais mandamos que as cumpram, punindo
os hereges condenados, como por direito devem. E além das penas corporais

21
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal,
conselho editorial. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853. p. 311.
22
É licito destacar que só a partir do Regimento de 1613, que a sodomia passou a ser um crime da alçada
inquisitorial, como também vale destacar que a Inquisição só punia pelo crime de sodomia quando esta era
considerada “perfeita”, ou seja, devendo haver ejaculação no “vaso traseiro”
23
CIDADE. Direito e Inquisição. Op. cit. p. 79.
24
Título 13. DOS QUE COMETEM PECADO DE SODOMIA E COM ALIMÁRIAS. In: Ordenações Filipinas: Livro V /
Organização Silvia Hunold Lara, – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.91.
25
O juízo eclesiástico regia-se pelo direito canônico, não pelas Ordenações. O Tribunal eclesiástico mais
importante era o do Santo Oficio.
8
que aos culpados no dito maleficio forem dadas, serão seus bens
confiscados, para se deles fazer o que nossa mercê for, posto que filhos
tenham26.

Vários são os pontos e pistas que podemos observar a partir das duas colocações
expostas pelas Ordenações Filipinas acima. Nossa primeira observação encontra-se na
menção que o primeiro texto exprime: ou seja, toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja.
Aqui fica claro por meio desse anunciado que a Inquisição buscava um nivelamento acerca de
suas sentenças, no entanto, pessoas de boa condição social e que fossem discretas, a sentença
era lida dentro das “instalações” inquisitoriais; já, no caso de pessoas menos afortunadas
financeiramente e, ademais, escandalosas, lia-se a sentença durante um auto-de-fé.27 Desse
modo, enquanto a denúncia igualava a todos no sentido de que à todos permitia-se o dever de
denunciar; a sentença era encarada como sendo um elemento socialmente desnivelador. Em
seguida, o que observamos no segundo texto é que essa dupla sujeição criou um espaço de
incerteza hierárquica, isso é, materializava e revestia-se num frenético vai e vem de apelações
e conflitos jurisdicionais.
Pensar na aplicação de uma das principais penas impostas pelo Tribunal do Santo
Ofício – o confisco de bens - aos condenados pelo crime de heresia, na qual acarretava a ruína
de toda uma família, devido sua intervenção ser voltada diretamente ao âmbito financeiro, é
propor alguns questionamentos sobre gestão, uso e aplicabilidades daqueles bens confiscados
por meio das instituições que os administrava. Acresce, que o confisco de bens foi um fator
decisivo nas prisões dos cristãos-novos, apesar de a ideologia incluir ricos e pobres.
De acordo com Anita Novinsky, uma das pioneiras a se debruçar sobre a literatura
inquisitorial no Brasil, em sua obra Gabinete de investigação: uma “caça aos judeus” sem
precedentes, aponta que as investigações sobre a ação inquisitorial na América portuguesa
num período entre os séculos XVI ao XVIII revelou a existência de sociedades subterrâneas,
onde pululavam crenças, valores e tradições proibidas pela ação do Santo Ofício. Novinsky
também registra que existe um certo exagero na literatura inquisitorial em afirmar a influência

26
Título 1. DOS HEREGES E APOSTATAS. In: Ordenações Filipinas: Livro V. Op. cit. pp. 55- 6.
27
CIDADE. Direito e Inquisição. Op. cit. p. 83.
9
dos judeus na formação da Companhia das Índias Ocidentais, como também no mundo
financeiro holandês.28
Anita Novinsky também nos dá outras importantes contribuições para uma melhor
compreensão dos mecanismos jurídicos acerca da ação do Juízo do Fisco na série Fontes para
a História de Portugal e do Brasil. A coleção é composta por quatro volumes, incluindo a já
mencionada. No primeiro volume Inquisição- Inventários de Bens Confiscados a Cristãos
Novos no Brasil século XVIII destaca a transcrição de 129 inventários dos bens confiscados
aos presos cristãos-novos de várias regiões do Brasil no século XVIII. 29 Já o segundo volume,
Inquisição Rol dos Culpados, apresenta um índice com 1819 nomes de cristãos-novos no
Brasil no século XVIII, uns presos, outros apenas denunciados com suspeita de judaísmo.30
Por fim, o terceiro volume Inquisição- Prisioneiros do Brasil destaca um total de 1.076
nomes de brasileiros presos pelo Santo Ofício entre os séculos XVI ao XIX, incluindo ai
cristãos- novos e cristãos- velhos acusados por diversas heresias.31
Apesar da contribuição à historiografia inquisitorial dos trabalhos acima, Novinsky
preocupa-se em avaliar a atuação da prisão do herege apenas transversalmente do ponto de
vista religioso, ou seja, a partir do âmbito persecutório da Inquisição. A autora destaca as
prisões de judeus e cristãos-novos devidamente aos seus comportamentos e crenças.
Cumpre lembrar, que tal linha de observação foi por muito tempo adotada por aqueles
que dedicaram algumas linhas acerca da presença inquisitorial na América portuguesa a
exemplo do sociólogo Gilberto Freyre ao destacar que a inquisição escancarou nossa vida
íntima da era colonial, sobre as alcovas e suas camas que em geral parecem ter sido de couro,
rangendo as pressões dos adultérios e dos coitos danados. Sobre as relações de brancos com
escravos. As confissões e denúncias reunidas pelo Santo Ofício na América portuguesa reúne
material precioso sobre a vida sexual e de família entre os séculos XVI e XVII.32

28
NOVIINSKY, Anita Waingort. Gabinete de investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. São Paulo:
Humanitas Editora / Fapesp, 2007. p. 11.
29
Ver: NOVINSKY. Anita. Inquisição– Inventários de Bens Confiscados a cristãos-novos no Brasil – século
XVIII. Fontes para a história de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1976.
30
NOVINSKY, Anita. Inquisição. Rol de Culpados. Fontes para a História do Brasil (Século XVIII). Editora
Expressão e Cultura. Rio de Janeiro, 1992.
31
Cf.: NOVINSKY. Anita. INQUISIÇÃO - PRISIONEIROS DO BRASIL. Brasil: Editora Perspectiva. 2009.
32
Ver: FREYRE, Gilberto. 1900- 1987. Casa Grande e Senzala. São Paulo, global, 2006. p.45.
10
Os estudos direcionados acerca da ação e procedimentos do Juízo do Fisco na América
portuguesa ainda são escassos. Lina Gorenstein no livro A Inquisição contra as mulheres
retrata a ação inquisitorial na praça fluminense entre os séculos XVII e XVIII, destaca que nas
quatro primeiras décadas do século XVIII a Inquisição prendeu trezentos e vinte e cinco
cristãos-novos no Rio de Janeiro, dos quais cento e sessenta e sete eram mulheres. Analisando
seus processos a autora constatou nos inventários de bens daquelas mulheres que o ”bem”
mais constante era a posse de escravos.33
Outra informação interessante pronunciada por Gorenstein é que no Arquivo Nacional
da Torre do Tombo há documentações acerca de reclamantes quanto à questão do confisco de
bens, como também sobre pessoa que tentaram burlar o Fisco.34 Com relação às reclamações
temos informações que os herdeiros dos condenados – esposas, filhos ou maridos – poderiam
requisitar a sua parte antes que o confisco fosse efetivado, assim como qualquer pessoa que
tivesse alguma dívida a receber dos réus.35 O corolário de questões como essas, já era previsto
no âmbito da justiça do fisco. Pois diz o regimento que,
acabados os ditos inventarios, Todas as peças de ouro, e prata, predaria e
outras quaesquer cousas desta qualidade, e Toda a mais fazenda, que foi
achada, será entregue pelos ditos imventarios ao Thesoureiro das
Confiscações, para que a Tenha em boa guarda e administre, e possa dar
della. [...] O Thesoureiro das Confiscações Terá dous livros de sua receita,
por que há de dar suas contas36.

Em termos gerais, acreditamos que o confisco de bens, sobretudo, de judeus, fora


durante a existência do Tribunal do Santo Ofício, dispositivo jurídico legal, que se constituiu
numa das principais forças de sustentação, ou seja, um aliado à economia do Império
português. Explicitando melhor, procuramos fazer uso da compreensão de Stuart Schwartz:

33
GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas; Fapesp, 2005. pp. 111 e 183.
34
GORENSTEIN. A Inquisição contra as mulheres. Op. cit. p. 137.
35
SIQUEIRA, Sônia, A Inquisição portuguesa e os confiscos, Revista de História. São Paulo: volume XLI, número
82, 1970; pp. 323- 340.
36
Regimento do Juízo das Confiscações Pelo Crime de Heresia, e Apostasia, de 10 de julho de 1620, de 57
capítulos, publicado por José R. M. de Campos e Soiza no Tomo III do Systema ou Coleção dos Regimentos
Reaes. In: O Governo dos outros: Imaginários Políticos no Império Português. (Lisboa, 1785), a pp. 196-219.
p. 200.
11
Não era o delito e sim a origem do réu que determinava como e quão severamente ele seria
punido37.
A par das colocações acima acerca do confisco de bens sobre os hereges, que se
revestiu num fator decisivo diante das prisões, sobretudo, dos cristãos-novos; buscamos em
outra documentação a complementariedade sobre aquela ação inquisitorial, que incluía ricos e
pobres,
Tanto que o dito juiz [do fisco] tiver especial Recado dos Inquizidores por
escrito em que lhe fação saber que mandarão prender algúma pessoa, era
logo muita diligencia as cazas donde moravam os culpados com o escrivaõ
do seu cargo, e com outro escrivam, ou Tabeliaõ, e Tomará, e haverá a sua
maõ Todas as chaves das ditas cazas, e das cazas, que nellas estiverem, para
que Senaõ possa sobnegar, nem esconder couza alguã, e mandará (?) hum
dos ditos escrivães que faça seu inventario por (?) apartado de todos os bens
moveis e de Raiz. [...] se possão conhecer, e saber quaes saõ, e Ter ido
pessas de ouro, ou de prata; Se pezarão; e avaliarãm, por officiaes e pessoas
bem entendidas. [...] e se aSentara nos ditos inventarios com declaraçaõ da
validade dellas, [...] naõ possa haver engano nas ditas pessoas, nem se
possaõ por outras (peças) em seu lugar, nem haja sobre isso duvida
alguma38.
A documentação acima nos oferece algumas pistas acerca da dinâmica da justiça do
Fisco. Privilegiamos dá destaque a organicidade na distribuição operacional de sua ação. Isto
é, para que seja acionado o procedimento do juiz, torna-se necessário a autorização por escrito
dos inquisidores, logo, essa confidencia, já revela de saída o zelo por parte do monarca, na
tentativa de evitar abusos e descaminhos dos bens confiscados. No entanto, também havia
lugar no Regimento do Juízo das Confiscações para pessoas de poucas posses, como também
relacionado ao âmbito matrimonial,
E quando os prezos forem Taõ pobres, naõ Tenhaõ fazenda alguma, de que
se possa fazer inventarios, os Officiaes passaraõ Certidaõ de como se naõ fez
invetario da Tal pessoa, por naõ ter fazenda alguma; e estas Certidões se
ajuntaraõ aos mais inventarios, que se fizerem: e dado cazo que prendendo-
se sômente o marido, ou só a mulher, se faça inventario de toda a fazenda,
que ao Tal Tempo houver no casal; e depois se prender aquelle que ficou
solto, se fará outro inventario de novo, porque poderia adquirir bens no meio
Tempo39.

37
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras; Bauro, Edusc, 2009. p. 151.
38
Regimento dos juízes das confiscações pelo crime de heresia. Códice 311- Relação da Bahia – 1752. Arquivo
Nacional – Rio de Janeiro.
39
Regimento do Juízo das Confiscações Pelo Crime de Heresia, e Apostasia, de 10 de julho de 1620, de 57
capítulos, publicado por José R. M. de Campos e Soiza no Tomo III do Systema ou Coleção dos Regimentos
Reaes. In: O Governo dos outros: Imaginários Políticos no Império Português. (Lisboa, 1785), a pp. 196-219.
12
Já aqui, a documentação nos revela um outro procedimento jurídico adotado pela
justiça do fisco, isto é, a utilização de uma certidão para contar nos autos que o réu não
continha nenhum tipo de bens, isto é, os denominados presos pobres; e finalmente, a
obrigatoriedade de um novo inventário no caso do segundo cônjuge também ser preso, mesmo
que já tenha ocorrido um inventário à época da prisão do primeiro, justificado pela lógica da
possibilidade de aquisição de algum bem durante o período intermediário.
Na tentativa de uma melhor instrumentalização de nosso trabalho, recorremos aos
estudos da historiadora portuguesa Isabel Drumond Braga, sobretudo, Bens de Hereges.
Inquisição e Cultura Material. Portugal e Brasil (séculos XVII-XVIII). Aqui Isabel Braga
compreende que com o estabelecimento do Santo Ofício em 1536, Portugal 40 não obteve
imediatamente a possibilidade de proceder ao confisco de bens face aos réus. Ainda segundo a
autora, a 18 de novembro de 1559, a rainha regente D. Catarina, na menoridade de D.
Sebastião, promulgou um alvará, com aprovação papal, isentando, outra vez, os cristãos-
novos do confisco de bens, por mais 10 anos. No entanto, no ano de 1563, o cardeal infante
D. Henrique, igualmente na qualidade de regente, revogou o referido alvará com efeitos
retroativos. O mesmo, por alvará de 26 de Novembro de 1563, isentou do pagamento da sisa
os bens confiscados pelo Santo Ofício e vendidos pelos inquisidores, “havendo respeito a
serem bens que pertenciam à Coroa de meus reinos e eu os ter dado e aplicados ao Santo
Ofício para ajuda das despesas dele e os vendedores serem eclesiásticos.”41
Tomando por base o quadro acima descrito, ou seja, do material confiscado podia-se
deles fazer o que nossa mercê for, resume-se àquilo que poderíamos chamar na falta de
palavra melhor, “um lugar de fusão de interesses”. Como também dar-se destaque à outra
compreensão, isto é, nos faz entender que tais procedimentos estavam sujeitos à fatores
políticos como também monetários.
Por seu lado, Evaldo Cabral de Mello também nos oferece uma outra compreensão
para que possamos entender aquilo que concebemos como “fusão de interesses”; ele aponta

40
Já com relação à Espanha – leia-se Castela – a Inquisição medieval, praticou o sequestro de bens, a título de
medida cautelar. Ver: MILLAN, Jose Martinez. LA HACIENDA DE LA INQUISICIÓN (1478- 1700). Editora C.S.I.C.
Coleção monografias de História. Hespanha, 1984.
41
BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Bens de Hereges. Inquisição e Cultura Material. Portugal e Brasil
(séculos XVII-XVIII). Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra. CIDEHUS, FCT/ 2012. p. 45.
13
em sua obra Olinda Restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630- 1654, alguns dos
contornos da emblemática “quebra de braço” entre o rei Dom João IV e o Tribunal do Santo
Ofício, acerca do projeto da criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil, projeto este
que tivera como maior incentivador o padre Antônio Vieira.
Mello compreende que à época da Restauração Pernambucana o restabelecimento da
navegação e o livre comércio dependiam da restauração dos engenhos. Como solução o padre
Antônio Vieira insistia no estabelecimento de duas companhias de comércio, uma no Brasil e
a outra para o Estado da Índia. Tais companhias seriam custeadas com capital judeu, desde
que os homens de negócios – a grande maioria cristãos-novos – tivessem seus bens isentos do
confisco pela Inquisição. A ideia apontada por Vieira fora descartada devido à resistência da
Inquisição, em não concordar com a isenção do confisco de bens dos cristãos-novos. Em
1649, desagradando o Tribunal do Santo Ofício, Dom João IV por meio de um alvará concede
isenção do confisco de bens 42; aprova a criação da companhia geral de comércio do Brasil,
incluindo aí a companhia de comércio de Pernambuco43. Tal procedimento da coroa em favor
dos cristãos-novos fazia parte da audácia política de Dom João IV, ou seja, boa parte do
financiamento da guerra contra Castela seria proveniente de capital dos cristãos- novos44.
Ainda a respeito desses ecos de forças em colisão, dispomos de uma significativa
explanação apontada pelo historiador português, João Lúcio de Azevedo em História dos
Cristãos-Novos Portugueses. Segundo Azevedo, com a morte de Dom João IV, entrou em
fase crítica a controvérsia acerca dos confiscos de bens, e devido os acontecimentos, ou seja,
devido as ameaças holandesas em relação ao território das Índias45, era necessária uma
expedição de socorro àquele território. Expedição esta que custaria aos cofres da Coroa
trezentos mil cruzados. Segundo informações do Conselho da Fazenda, não se podiam desviar
das obrigações correntes trezentos mil réis. Com isso, segundo Azevedo, tomar aquela quantia
42
Este fato ocasionou na excomunhão do rei D. João IV, pois o alvará régio foi passado sem prévia autorização
papal. Cf.: BRAGA. Bens de Hereges. Op. cit. p. 46.
43
MELLO, Evaldo Cabral. Olinda Restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630- 1654. São Paulo. Ed. 34,
2007. pp. 105-25.
44
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições- Portugal, Espanha e Itália, Séculos XV- XIX- São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.p. 331.
45
Identificamos uma documentação no Arquivo Nacional Torre do Tombo (online)- doravante ANTT – na qual o
conteúdo da ementa registra-se: CONFISCO de bens. Data de produção: 1646 – 1657. Âmbito e conteúdo:
Cópia de consultas, pareceres e breves sobre a confiscação de bens aos cristãos novos penitenciados pelo
Santo Ofício, sobre o empréstimo do dinheiro das confiscações para o socorro da Índia e sobre a Companhia
de Comércio do Brasil. PT/TT/TSO-CG/010.
14
emprestada não se devia pensar, pois todos os homens de negócios tinham investido todos os
seus capitais na Companhia do Brasil; os demais eram vassalos pobres, o único recurso eram
os bens do Fisco46.
Recorrendo mais uma vez aos estudos de António Manuel Hespanha com relação aos
orçamentos do reino português, o autor aponta que na categoria das condenações, os
rendimentos da justiça também decorriam do confisco, no qual os condenados pelo Santo
Ofício devessem perder seus bens para a Coroa47. Já Francisco Bethencourt nos aponta que a
imagem da ação arbitrária – da Inquisição - é complementada pela imagem da ação
interessada. As penas para o crimes de heresia revestiam-se nos condenados não apenas a
ruína de toda a sua família, sem falar na inabilitação dos seus descendentes para o exercício
de ofícios ou profissões; com relação ao caso da Inquisição espanhola a o autor compreende
que a remuneração dos funcionários não era estável, tanto as multas quanto os confiscos de
bens desempenhavam papel significativo na administração do Tribunal do Santo Ofício
espanhol48. Ainda no recorte espanhol, José Martinez Millan defende a tese que as finanças da
Inquisição, já na segunda metade do século XVI, eram relativamente estáveis devido às
rendas regulares provenientes ou da igreja ou do estado. No entanto, parte de seu orçamento
dependia de recursos “flutuantes”, isto é, ordens explicitas dos organismos de controle social
com intuito de aumentar os confiscos de bens nas conjunturas mais difíceis49. Daí decorria
naturalmente a suspeita, levantada pelos cristãos-novos, de que a ação dos inquisidores não
era desinteressada do ponto de vista material, dado o volume de riqueza de numerosos
perseguidos.
Como já vimos, de acordo com a determinação regimental, quando a prisão ocorresse
com sequestro de bens - ponto que será retomado mais abaixo - encaminhava-se recado ao
Juízo do Fisco para que fosse iniciado o inventário, como também para pôr em segurança a

46
AZEVEDO, João Lúcio de. História dos Cristãos-Novos Portugueses. Livraria Clássica Editora A.M. Teixeira &
C.A. (FILHOS), Lda. Praça dos Restauradores, 17 Lisboa. 2ª edição. p. 274.
47
HESPANHA, Antônio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal, século
XVII. Coimbra: Almedina, 1994.p. 122.
48
BETHENCOURT. História das Inquisições. Op. cit. p. 340.
49
MILLAN. LA HACIENDA DE LA INQUISICIÓN. Op. cit. pp. 59-81.
15
fazenda do confiscado. No entanto, em locais que não houvesse Juízo do Fisco,
primeiramente recorria-se ao corregedor ou juiz de fora e, na falta deste, o juiz da terra50.
Em função dessa pequena amostra sobre os usos e aplicações do confisco de bens aos
reconhecidamente culpados pela Inquisição, importa destacar mais uma vez, trechos do
Regimento dos Juízes das Confiscações pelo crime de Heresia, publicado no ano de 1572. Seu
conteúdo não fora feito no vazio. Dispõe de um sistemático conjunto de procedimentos
processuais organizados por uma burocracia judicial, ao mesmo tempo nos revela uma série
de critérios que busca salvaguardar os acusados de possíveis abusos ou transgressões por parte
de seus funcionários:
Regimento dos Juizes das Confiscações pelo crime da Heresia
Dom Sebastião [...] Faço saber, que querendo eu prover, e dar ordem acerca
do modo de proceder, e julgar, que haja de ter os juizes executores, e mais
officiaes dos bens confiscados pelo crime da Heresia, e apostasia, e
aplicados para o fisco, e minha Camera Real, em Todos meus Reynos, e
Senhorios mandey ver por letrados de boa consciencia, e de muita
experiencia nos negocios, e couzas do Santo Officio da Inquiziçam o
Regimento de aqui thé gora se uzou, e por ser necessario declarasse algumas
couzas e accrescentaremse outras com informação dos ditos Letrados,
Ordeney o Regimento seguinte, do qual hey por bem, que se uze daqui em
diante. Primeiramente o Juiz das Confiscaçoes sera huma pessoa de
consciencia, e letras, e de muita confiança, sem raça alguã de Mouro, ou
Judeo, e Sera por mim nomeado, e provido do dito officio. Tanto que o dito
Juiz Tiver especial Recado dos Inquisidores por escrito em que lhe fação
saber que mandarão prender alguma pessoa, era logo com muita diligencia
as cazas donde morarem os culpados com o escrivão de seu cargo, e com
outro escrivam, de tabelião, que tambem consigo levará, e tomará, e haverá a
sua mão todas as chaves das ditas cazas, e das cazas que nelas estiverem,
para que não possam sobnegar, nem esconder couza alguã (?) e mandará
hum dos ditos escrivães que faça seu inventário51.

Entendemos, em acréscimo, ao enunciado acima exposto, sem excluir totalmente as


interpretações, e sugerindo um olhar mais pragmático sobre as disposições dos regimentos,
tendo em vista interesses pessoais - por parte da Coroa – que é importante destacar que em
nenhum momento vê-se registrado pelo regimento acima a participação naquela ação jurídica
algum membro da esfera eclesiástica, isto é, membros da Igreja católica. Neste sentido,

50
Livro I – Dos ministros e oficiais do Santo Ofício e das coisas que nele há de haver. In: SIQUEIRA, Sônia
Aparecida de. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a 157, nº 392, pp. 495-
1020, Julho/ Setembro, 1996.p. 745.
51
Regimento dos juízes das confiscações pelo crime de heresia. Códice 311- Relação da Bahia – 1752. Arquivo
Nacional – Rio de Janeiro.
16
cremos que o confisco de bens se tornou um dos mais importantes dispositivos legais de
sustentação do Santo Ofício.
Um outro trecho daquela documentação que bem ilustra o funcionamento acurado e
sistemático do Aparelho Burocrático Inquisitorial, que por sua vez, representa ao nosso ver,
um dos elementos mais significativos no tocante aos procedimentos de controle acerca dos
bens confiscados, refere-se à,
que alguma pessoa, for preza pello S. Officio, os Inquisidores logo, passados
alguns dias, que lhes parecer, lhe façaõ fazer rol das dividas que devem, e a
que pessoas, e por que via, e de que Tempo saõ, e assim das que a elle saõ
devidas; e dizendo que as Tem em algum livro, ou livros, diraõ quantos saõ,
e os finaes que Tem. [...] A experiencia Tem mostrado, que os culpados no
crime de Heresia, e Apostasia, para encobrirem a fazenda que sabem Ter
perdida pelos Taes delitos, passaõ Letras do cambio, em que se fazem
devedores das quantias que querem52.

Estudioso do assunto, José Veiga Torres, considera que para se esboçar o perfil social
de uma instituição, como também para compreendermos como se estrutura e articula-se os
vários setores que uma instituição cria para o desempenho do papel que pretende
desempenhar numa sociedade, um dos fundamentais elementos da sua história a ser analisado
é sem sombra de dúvidas, a sua vida financeira53.
Na sequência de outras observações, recorremos mais uma vez às pesquisas da
historiadora Maria Leonor Garcia da Cruz acerca do confisco de bens, destacando que a
concórdia ou aliança Estado – Igreja, ao apropriar-se do espaço público garantindo a sua
manutenção por meio de medidas coativas e censórias, evidentemente que impõem ao
coletivo a obediência a regras dominantes, dificultando um conhecimento alargado do
diferente, de outras concepções, cerceando uma liberdade individual absoluta. Ainda de
acordo com a autora, o estudo dos mecanismos institucionais de gestão das finanças públicas,
torna-se interessante por serem essas finanças o nervo fundamental no processo da construção

52
Regimento do Juízo das Confiscações Pelo Crime de Heresia, e Apostasia, de 10 de julho de 1620, de 57
capítulos, publicado por José R. M. de Campos e Soiza no Tomo III do Systema ou Coleção dos Regimentos
Reaes. In: O Governo dos outros: Imaginários Políticos no Império Português. (Lisboa, 1785), a pp. 196-219.
pp. 203-4.
53
TORRES, José Veiga. A vida financeira do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição – séculos XVI – XVIII,
publicado pela revista “Notas Económicas”, 2, 1993, pp.: 24-39.
17
do Estado moderno, cujo estudo, ainda nos permite elucidar teias e relações sociais e políticas,
econômicas e religiosas, que se submetem às instituições, as condicionam e as modificam54.
Tal compreensão do trecho acima tecido pela historiadora, também reflete parte da
política adotada pela Coroa portuguesa com relação aos descaminhos acerca do confisco de
bens, sobretudo, com relação à América portuguesa,
Eu El Rey faço saber aos que esta minha provisão virem que fui informado,
que na Rellação do Brazil o Juiz da Coroa, e minha fazenda se intrometem
fazer Sequestros, e inventarios das fazendas das pessoas que se prendem
pelo Sancto Officio, ou tem culpas pertencentes a elle, o que faz fundado no
Regimento da Rellação, que ordena, que o dito Juiz de minha Coroa, e
fazenda vivia tambê do fisco, e posto que isso tenha força em alguns dos
cazos, não tem nos bens que são Confiscados, e Sequestrados pelos
Inquizidores, porque estes somentes sam de Sequestrar, e Confiscar por
Ordem dos Inquizidores, ou Juiz do Fisco da Caza da Supllicação. [...] e
mando que o dito Juiz de minha Coroa, e fazenda, Senão intrometa neste
cazo, Senão quando os Inquizidores, ou Juiz do fisco lho deprecarem. [...]
em Lisboa, vinte e tres de Setembro de mil seiscentos e onze55.

Em linhas gerais, a América portuguesa, a par das outras instâncias inquisitoriais56,


não contou com a presença de funcionários do Juízo do Fisco- fato anteriormente já
enunciado. Considerando a relevância da ausência destes funcionários, acrescida do volume
de mercadorias e bens confiscados, sobretudo, de cristãos-novos, condenados pela Inquisição
no Brasil, já revela de saída o cerne de uma das preocupações da Coroa. Ou seja, a se utilizar
dos critérios acima descritos na documentação, sobressai, sobretudo, na provisão real, a
preocupação do monarca com os descaminhos proporcionados pelas outras justiças acerca da
apropriação indevida dos recursos e bens oriundos do confisco de bens dos condenados pela
Santo Ofício. Como nos bem o aquele documento, os assuntos relacionados aos bens de
hereges, são de exclusividade do Juízo das Confiscações.
António Manuel Hespanha, de seu lado, observa que a organização da vida financeira
da Inquisição portuguesa e do seu Conselho Geral acompanhou as vicissitudes da sua
evolução. As suas fontes de receita oscilaram entre rendimentos provindos de um tipo de
35
CRUZ. Relações entre o Poder Real e a Inquisição (séculos XVI- XVII). Op. cit. pp. 107-126.
55
Regimento dos Juízes das Confiscações pelo crime de heresia de 1572. Op. Cit.
56
A América portuguesa, ao contrário da espanhola não contou com um Tribunal do Santo Ofício, além disso, a
própria presença inquisitorial no Brasil se compôs de forma deficitária. Em diversas situações a inquisição
portuguesa contou com o apoio da justiça eclesiástica, como também, algumas funções devidamente
pertencentes a agentes e oficiais inquisitoriais, eram realizadas por indivíduos não pertencentes aos quadros
do Santo Ofício.
18
economia senhorial-eclesiástica, rendimentos originários de uma economia mercantil, como
também da sua especifica atividade, isto é, penalizações pecuniárias, sobretudo, os confisco
de bens57.
Creio que nesta seara de discussões voltada ao âmbito jurídico-institucional é
interessante ressaltar o estudo das instituições. Estudos estes, que são instrumentos
necessários para se esboçar o perfil social de instituições como o Tribunal do Santo Ofício.
António Manuel Hespanha promove uma leitura da história das instituições, na qual destaca
que a história das instituições surge como reação contrária a dois modelos de entender a
história do direito: a história das fontes que analisa a evolução das normas jurídicas com suas
leis e costumes; a outra seria a história dogmática, que descreve a evolução das doutrinas e
sistemas de conceitos. O autor compreende que estas duas orientações tendiam isolar
realidades que tratavam de outras realidades a exemplo dos sistemas políticos, econômicos e
culturais, aspectos que conjuntamente com o direito, organizavam a vida social58. Na
sequência, optamos por registrar a compreensão de Maurice Hariou no qual ele aponta que
uma instituição é uma ideia que se realiza e dura juridicamente num meio social; e que para a
realização dessa ideia, organiza-se um poder que lhe confere órgãos; por outro lado, entre os
membros do grupo social interessado na realização daquela ideia, produzem-se manifestações
de comunhão dirigidas pelos órgãos do poder e reguladas por procedimentos59.
Os Regimentos de 1572 e 1640 do Tribunal do Santo Ofício, são de extrema
importância uma vez que estabelecem o delineamento de esferas de competência reativamente
ao funcionamento ordinário de órgãos e de oficiais da Inquisição e da Coroa, assim como
revelam objetivos do Estado face a preocupações e controvérsias decorrentes do dinamismo
social e seus condicionantes de natureza variada60. Este tipo de compreensão nos permitiu
observar a vigência de critérios explícitos ou implícitos, de restrição e dificuldades por parte
da Coroa portuguesa em evitar os possíveis abusos e descaminhos arquitetados por agentes e
oficiais do Fisco,

57
TORRES. Op. cit. pp.: 24-39.
58
HESPANHA, António Manuel. História das Instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Alamedina,
1982. pp. 11- 2.
59
Cf.: HAURIOU, Maurice. A teoria da Instituição e da fundação: ensaio de vitalismo social. Edição 1, Editora
Sérgio Fabris. p. 19.
60
CRUZ. Relações entre o Poder Real e a Inquisição (séculos XVI- XVII). Op. cit. pp. 107-126.
19
O Juiz das Confiscações naõ fará composiçaõ alguma sobre os bens
confiscados, nem os mandará vender, nem os arrematar fóra da almoeda; e
nem elle, nem o Escrivaõ de seu cargo, nem outro Official algum das ditas
confiscações, nem da Inquiziçaõ, comprará, nem haverá por si, nem por
outra interposta pessoa couza alguma das ditas fazendas: e fazendo o
contrario, incorrera cada hum em pena de cem cruzados, e seraõ privados de
seus Officios, e pagaraõ Todos os dannos, e perdas, que por isso recrescerem
á fazenda do Fisco, e perderaõ pelo mesmo fato a fazenda que comprarem; e
o Juiz do Fisco Tirará cada anno disto devassa, e a despachará com os
Adjuntos que lhe saõ nomeados61.

O documento acima, mais uma vez nos traz importantes pistas, primeiramente
configura o Tribunal do Santo Ofício num digno receituário do Antigo Regime português, ou
seja, uma instituição que procura aplicar maior rigor na execução da sua justiça, no controle
dos seus oficiais e na preservação e disponibilidade de bens que não vindo aos seus
possuidores originários, constituem propriedade da Coroa. Tomam-se providencias até
mesmo contra o próprio Juiz do Fisco, na sua possibilidade de incorrer em apropriação
indevida daquilo que por lei pertence à Coroa portuguesa.
Uma outra relevante disposição jurídica por parte da justiça do Fisco, verificamos
acerca dos bens sequestrados, e em caso de confirmação da sentença do condenado, a
confiscação,
E sendo caso que os ditos prezos saiaõ absolutos dos ditos Crimes por
sentença dos Inquizidores, o dito Juiz lhe fará tornar seus bens pelos mesmos
inventarios. [...] E sendo dada sentença final contra os culpados pelos
Inquizidores, e Deputados do Sancto Officio, em que os condemnaõ por
hereges, ou apostasia de nossa santa Fé Catholica, de que se apartaõ, em tal
cazo o dito Juiz, a requerimento do Thesoureiro, mandará apregoar nos
lugares públicos, que as pessoas que pretendem Ter direito nos Taes bens,
conformes as acções que propozeraõ no Tempo dos primeiros pregões,
venha perante elle no Termo que for assignado, e que fará cumprimento de
justiça62.

Aqui privilegiamos dá destaque ao papel da justiça do Fisco com relação a


possibilidade, que apesar de remota, acontecia, ou seja, a absolvição do suspeito pelo crime de

61
Regimento do Juízo das Confiscações Pelo Crime de Heresia, e Apostasia, de 10 de julho de 1620, de 57
capítulos, publicado por José R. M. de Campos e Soiza no Tomo III do Systema ou Coleção dos Regimentos
Reaes. In: O Governo dos outros: Imaginários Políticos no Império Português. (Lisboa, 1785), a pp. 196-219.
62
Regimento do Juízo das Confiscações Pelo Crime de Heresia, e Apostasia. Op. Cit.

20
heresia. Observa-se na documentação que o rei faz expressar de forma objetiva, que os bens
serão devolvidos aos presos, pelos mesmos inventários. Ou seja, no momento da devolução
dos bens aos supostos hereges, tais bens, deveriam ser os mesmos arrolados no inventário à
época de sua prisão. Outro ponto interessante nesta documentação sobressai com relação aos
leilões públicos acerca dos bens daqueles que eram foram considerados culpados pela
Inquisição portuguesa.
Desde o início, a Inquisição portuguesa - como também o poder civil que a desejou -
pretenderia viver, fundamentalmente, do produto do seu trabalho, ou seja, das penalizações
materiais, dos confiscos. Tal lhe foi vedado pelo poder papal. Como instituição de Antigo
Regime teve de procurar os rendimentos nas fontes de rendimento do regime em que se
situava. O poderio econômico das instituições eclesiásticas tradicionais era alvo de
demasiados interesses e, obviamente, nem era suficientemente nem elástico para satisfazer
todas as ambições. Todos os campos de poder, desde o eclesiástico romano, passando pela
realeza e pelos grupos familiares das antigas e novas aristocracias, até às medianas camadas
de magistrados e burocratas letrados, pretendiam partilhar, em parte côngrua, dos rendimentos
globalmente consideráveis do património eclesiástico63.
As resistências como também os conflitos deixavam tal património à competência
daquele que mais poder detinha. Desse modo, não era com certeza a Inquisição. Instituição
nova, surgida devido novos problemas, novas necessidades; da gestação de um novo sistema
de relações económicas e de relações culturais e sociais. Seria assim, em boa lógica, no
interior dessa nova realidade social, que a Inquisição encontraria não só a matéria prima da
sua produção específica, como também a matéria financeira de relações culturais e sociais,
com que se sustentar e se reproduzir, os confiscos de bens deviam pertencer-lhe. No entanto,
o Estado, também ele se confrontava com essa nova sociedade – mercantil - em ascensão e
dela também dependia. Inquisição e Estado, com seus discursos de solidariedade mútua, mas
na prática efetivamente não coincidiam em seus objetivos 64.
Em linhas gerais, o Estado, no campo político e financeiro era superior a Inquisição.
Nesse sentido, a Inquisição também dependia financeiramente da Coroa, e paradoxalmente ao

63
TORRES. A vida financeira do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição. Op. cit. pp.: 24-39.
64
TORRES. Op. cit. Idem.
21
depender do Estado, também dependeria da economia mercantil, economia, esta, sustentada
em sua grande maioria composta por cristãos-novos.
O estudo acerca do confisco de bens está muito longe de esgotar a multiplicidade das
suas relações, e nem chegam para explicar a razoável dinâmica sobre as sociedades modernas.
No entanto, partindo da premissa que nessas sociedades o acesso a bens como também certos
serviços se evidenciava uma distância social, material e cultural de cada indivíduo; como
também o consumo de bens de luxo acentuava a diferenciação entre os grupos sociais. Assim
sendo, como pode parecer aos nossos apressados julgamentos, acreditamos que o estudo do
confisco de bens, descortina um pouco, mas significativos contornos sobre o perfil das
sociedades modernas. Até porque, nosso foco – o confisco de bens – nos serviu de guia para
outras abordagens; apesar de que quase sempre ele nos escapa com certa regularidade do
nosso campo de visão, nos oferecendo outras perspectivas de abordagens.

REFERÊNCIAS

Fontes Impressas ou digitalizadas:

FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana [1748], vol.
I. In: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XLVII 1925. Rio de Janeiro:
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