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FEDERAL

Por J. Monteiro
Romance baseado no roteiro do filme
CAPITULO 1

A cena daquela manhã no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, não era
nada comum no local de moradia dos poderosos da Capital Federal.
Acostumados à segurança de suas mansões, desconheciam o cheiro
metálico do sangue que se espalhava por todo o quarteirão da casa, de
onde podiam ser vistos vários policiais que dali entravam e saíam. As
viaturas estacionadas de modo desorganizado por toda a rua indicavam
que algo de muito grave ocorrera, suspeita que se agravava com a
constante chegada de repórteres, ávidos por saber o que havia ocorrido
no lugar onde eram mais comuns as notícias dos cadernos sociais da
cidade. O lugar estava um pandemônio.
O Lago Sul havia se tornado o bairro mais chique de Brasília, dentre
outros motivos, porque ficava na orla do Lago Paranoá, construído junto
com a capital, para amenizar o clima seco do planalto central brasileiro.
O lago oferecia uma barreira entre o bairro e o Plano Piloto, garantindo
um belo refúgio àqueles que podiam pagar pela privacidade e pela
grande área propícia à construção de mansões luxuosas. A região sul da
cidade foi ocupada e urbanizada em primeiro lugar, o que possibilitou
que se desenvolvesse pelo menos uma década antes da parte norte, o
que tornou o bairro ainda mais valorizado, situação que perdura até os
dias de hoje. Moram ali os grandes empresários e o alto funcionalismo
público, assim como as pessoas que ganham dinheiro através do crime:
do grande tráfico de drogas e de influência, da corrupção e de um sem
número de delitos que torna poderosa grande parte da população
lacustre.
A varanda da casa, no entanto, em nada lembrava a tranqüilidade
cotidiana do local. No chão, recoberto de granito, jaziam três corpos,
nus e mortos. A movimentação de peritos era grande: um deles
fotografava o corpo crivado de balas de um rapaz, atingido sete vezes
por todo o corpo, mergulhado em uma poça de sangue vermelho escuro.
As balas haviam arrancado parte do maxilar do jovem de cerca de 23
anos, além de terem penetrado pelas costas na altura do coração e
pulmões. Ao seu lado, quase empilhados, dividiam o mesmo espaço
sobre o chão negro mais dois corpos: o de uma mulher de meia-idade e
de um senhor idoso, ambos também mortos a tiros. A expressão no
rosto do homem demonstrava o medo que sentira em seus momentos
finais. Seus olhos quase saltavam das órbitas, mesmo depois de sem
vida, e sua boca escancarada parecia ainda ser capaz de emitir algum
som, algum pedido de socorro, que não apareceu a tempo.
As conversas entre os policiais eram sussurradas. Mesmo para homens
acostumados com a tragédia, uma situação como aquela era
repugnante. Outros dois peritos examinavam os outros corpos, com
lenços sobre o nariz. Não se acostuma nunca com o cheiro da morte. A
poucos metros de distância, dois policiais militares também observavam
a cena, consternados.
A sala contígua à sacada, que naquele momento servia de depósito de
corpos, era bem decorada. A cristaleira posicionada no outro extremo
do lugar recebia, através dos vitrais multicoloridos, uma iluminação
safirina, fazendo parecer que um arco-íris se formava da refração da luz
sobre os copos e talheres do móvel. Tinha três ambientes, cada um com
um jogo de grandes sofás. Vital estava em frente a um deles, pensativo,
procurando vislumbrar o que havia ocorrido naquele mesmo lugar
poucas horas antes. O distintivo da Polícia Federal na cintura, já gasto
pelo tempo, parecia embotado como ele próprio, de certa forma cansado
do cotidiano de tragédias. Quando isso vai acabar? Pensava, tendo a
certeza de que não viveria para ver um mundo melhor. Pensava no
pequeno Alberto, em sua mulher grávida do segundo filho, no que o
mundo havia se tornado e como seria quando seus filhos tivessem sua
idade. Tinha 54 anos, quase a metade deles no serviço policial, e
atualmente chefiava um grupo de repressão ao tráfico de drogas.
- E aí, chefe. - Interrompeu Lua, um dos policiais de sua equipe.
Vital assentiu com a cabeça. Os dois passaram a caminhar juntos,
observando a decoração do recinto, as flores nos vasos, enquanto
voltavam ao local dos crimes. Ao cruzarem o umbral que dava acesso à
varanda, encontraram Rocha e Dani. Os quatros policiais formavam
uma equipe que trabalhava na divisão de entorpecentes da Polícia
Federal. Rocha e Lua, apesar de não fazerem parte da Instituição,
haviam sido recrutados da Polícia Militar e Civil do Distrito Federal para
comporem uma célula investigativa sob o comando da PF.
Lua tinha 37 anos. Estava há 12 na Polícia Civil, tempo suficiente para
descobrir que a guerra contra o tráfico de drogas estava perdida.
Conhecera Vital durante uma investigação conjunta três anos antes,
quando conseguiram, juntos, prender o maior traficante de cocaína da
região centro-oeste. A investigação havia durado mais de seis meses,
mas no dia de efetuar as prisões o grupo subestimou o poder de fogo da
quadrilha. Houve um grande tiroteio. Lua, em certo momento, se jogou
na frente do chefe, levando um tiro no colete para proteger Vital. Foi
convidado em seguida a fazer parte de sua equipe, no lugar de Seixas,
morto na mesma troca de tiros. Era casado havia sete anos, mas Paula,
sua esposa, não estava mais disposta a suportar a vida que o marido
lhe oferecia. Após um ano de casado, Lua quase não parava em casa. As
investigações tomavam todo o seu tempo, e sua saúde. Chegava em
casa quase sempre bêbado. Como grande parte dos policiais, havia se
tornado alcoólatra. Paula o havia convencido a procurar ajuda nos
Alcoólicos Anônimos, o que ajudou muito o marido nos problemas com
a bebida. Estava limpo já havia alguns meses. Mas Lua, além do vício
do álcool, era também viciado no trabalho policial, e sempre deixava a
mulher em segundo plano. Jamais dizia aonde ia nem quando voltaria
para casa. Seu casamento estava no fim e sabia disso. Amava a esposa,
mas não tinha forças para procurar a reconciliação.
- E aí, chefe. - Cumprimentou Rocha.
- Que merda, hein? - Acrescentou Dani.
Os quatro, lado a lado, passaram a caminhar entre os corpos. Vital
parou, olhando em volta e perguntou:
- Concorrência isso aqui, Dani?
Dani discordou:
- Que nada. Cobrança de dívida, eu já te explico. Os colegas do Rocha aí
da PM foram os primeiros a chegar, daí ele me ligou.
Rocha assentiu enquanto Lua, próximo a Dani, olhava em volta,
observando a chacina. Filho de uma família de classe média alta, Daniel
havia ingressado na PF havia pouco mais de três anos. Tinha 26 e havia
sido convocado para a entorpecentes devido a sua coragem e habilidade
com armas. Havia sido o melhor atirador de seu curso de formação,
tendo chamado a atenção de Vital, que fora seu professor na Academia.
Na infância, nunca havia pensado em ser policial. Seu pai, bancário e
sua mãe, advogada, o incentivaram quando disse que queria fazer o
vestibular para psicologia. Quatro anos depois, logo após a formatura,
censuraram sua escolha quando anunciou que gostaria de fazer
carreira na polícia. Não houve, no entanto, quem o demovesse da idéia.
- Meu filho, vá pelo menos para a Polícia Federal, que é mais respeitada
- Aconselhou o pai.
A tristeza foi maior quando informou à família que teria de se mudar
definitivamente para Brasília, distante quase 2.0000 km da capital
paranaense. Seus pais iam vê-lo periodicamente, e ficavam preocupados
com a vida que o rapaz levava.
Os funcionários do IML começaram a recolher os corpos para o rabecão,
apelido dado ao carro da polícia que armazenava os defuntos e os
encaminhava para a necropsia.
- Só tem esses três mêrmo? - Perguntou Vital a um dos funcionários,
que acabava de colocar suas luvas de proteção.
- Não, não – Adiantou-se Dani – Tem mais um. Disse apontando para o
canil, onde havia uma movimentação de enfermeiros. Vital abaixou a
cabeça, desanimado, suspirou e começou a caminhar em direção ao
quarto corpo, sendo seguido pelo restante da equipe.
Chegando próximo à grade de um canil, passaram por um pastor
alemão caído perto da entrada da casinha. O cheiro de sangue
misturado ao das fezes e urina do cachorro era enauseante. Lembra o
fedor de motim em presídio, pensou Rocha. Ele sabia muito o bem o que
era isto.
O soldado Rocha era um negro de cerca de 37 anos. Filho de pais
pobres, moradores da periferia, era considerado a pessoa mais bem-
sucedida da família. Depois de uma infância difícil se viu em um
dilema: estudar ou entrar para o mundo do tráfico de drogas. Escolheu
o primeiro, pois apesar de menos rentável, lhe proporcionava uma
segurança que sempre havia desejado. Não estava disposto a passar
pelo que o pai sofrera. Visitou o “Seu Rocha” algumas vezes na prisão
antes que morresse durante uma rebelião de presos na Papuda,
presídio de segurança máxima em Brasília. Seu pai cumpria pena por
latrocínio. No dia em que foi avisado da tragédia foi até a cadeia
reconhecer o corpo. O que mais o impressionou foi o cheiro: sangue,
suor, restos de alimento, além do cheiro de mijo e merda, tudo junto.
Quase não podia respirar. Havia escutado, ao entrar na PM, que toda
cadeia do mundo tinha o mesmo fedor. Não conhecera nenhuma prisão
fora do Brasil, mas acreditava que isso era verdade. O cheiro do quintal
da casa naquela manhã era muito parecido.
Ao lado do canil, sobre o gramado bem aparado, estava o quarto corpo,
também nu e também baleado de outro jovem. Estava sendo colocado
em uma maca. Os enfermeiros o medicavam. Estava vivo, agonizante.
Suas roupas haviam sido jogadas na grama.
- Esse garoto aqui é o seguinte – Esclareceu Dani - Eu conhecia.
Doidão, viciado. O boato que rola é que tinha uma dívida grande de
droga por aí. Hoje foi o dia do pagamento e taí, a família que pagô. Ele
tá vivo, tomô foi muita porrada.
Lua lamentou, olhando o corpo sendo levado para a ambulância, que
aguardava com o rotolight ligado sobre o teto.
- Será que é cliente do Béque? - Pensou alto Vital.
- Parece, né Vital, o cara é um animal - disse Dani, revoltado com a
situação.
- É - concordou Vital, pensativo.
Lua, ainda com o olhar fixo no rapaz, argumentou:
- Se a gente pegar o cara, talvez, quem sabe, a gente venha saber disso.
- Difícil seria provar essa ligação – Atalhou o jovem policial.
Vital, alheio a conversa entre Dani e Lua, se aproximou do rapaz, semi-
inconsciente, antes que fosse embarcado na ambulância. Perguntou a
um dos enfermeiros:
- E aí, como é que ele tá?
Rocha chegou e se colocou ao lado de Vital, também observando o
garoto, respondendo antes que o enfermeiro pudesse falar:
- Vai escapar. Sangue de drogado demora pra sair. É mais grosso que
os outros. Ia levar o dia inteiro pra essa íngua morrer de hemorragia.
Outro dia eu tava patrulhando e descobri um cara no meio de um
matagal. Foi esfaqueado tinha mais de três horas, um corte fundo pra
cacete e tava lá, vivinho. Se fosse eu, tava fudido.
O enfermeiro concordou. Vital ainda observava o rapaz, que já
recebendo soro, foi embarcado na ambulância, que saiu de sirene e
rotolight ligado para o Hospital de Base de Brasília, destino certo dos
drogados e acidentados da cidade.
Vital se virou para os outros policiais, desanimado:
- Pelo menos a gente tem uma testemunha - Falou como se não
estivesse realmente acreditando no que dizia.
- Esse cara tá fudido, chefe! - acrescentou Dani. - É ruim dele falar.
Vital olhou para o chão, sem responder. Estava cansado, após várias
noites sem dormir direito. Pensou novamente em seu filho.
- Esse filha da puta matou a família toda, mas vai vivê. - Desabafou
Rocha. - Porra, esse troço me deixa puto, rapá.
- A pena dele foi pior que morrê, negão – Lua bateu nas costas de
Rocha.
- Chefe! – Rocha virou-se para Vital - acho que tem um noiado na
Ceilândia, cliente nosso aí, que pode sabê de alguma coisa. Podemo ir
lá, vê a parada?
Rocha se referia a uma das cidades satélites mais povoadas da capital.
Ceilândia, distante pouco mais de 20 quilômetros do coração do Distrito
Federal - o Plano Piloto, é composta por mais de 350.000 habitantes.
Nascera no ano de 1971, em uma campanha de erradicação de invasões
– C.E.I., promovida pelo governo local, daí o seu nome. Conhecida por
ser uma das cidades mais violentas do DF, a Ceilândia possui em seu
território várias “bocas de fumo” que abastecem os “noiados”, ou
usuários de droga, de toda a região.
Vital ainda podia escutar a sirene da ambulância que já ia a duas
quadras dali. Abaixou a cabeça. Estava visivelmente abalado. Virou-se
pra Rocha e determinou:
- Manda ver.
CAPITULO 2

A cidade de Brasília localiza-se na região centro-oeste do país. Criada


no ano de 1960 pelo então Presidente Juscelino Kubitscheck, foi
considerada na época um dos grandes feitos da arquitetura mundial.
Todos que desembarcavam em seu aeroporto, ou se acotovelavam em
sua rodoviária, ao andar pela cidade observavam, admirados, o
diferente traçado de suas ruas e monumentos. A esplanada dos
ministérios, considerada a maior avenida do mundo, constitui seu mais
famoso cartão postal. Ruas amplas, iluminadas e limpas são a marca
do Plano Piloto, marcado pelos inúmeros prédios residenciais,
comerciais e públicos, todos distribuídos por setores, de acordo com a
sua finalidade. Foi construída para ser uma cidade administrativa, “o
centro das altas decisões nacionais”. Em 1980 já tinha ultrapassado em
habitantes a previsão para o ano 2000, e chegou em 2006 com mais de
dois milhões e meio de pessoas oriundas de todos os estados
brasileiros, que buscavam, no planalto central, uma vida melhor. Com
toda essa população, houve a necessidade constante da criação de
novas cidades ao redor do Plano Piloto, que abriga apenas 10% dessa
grande quantidade de pessoas.
A criação das cidades-satélites, por sua vez, incentivava a vinda de mais
e mais imigrantes, fazendo com que o DF, outrora tranqüilo e sem vida,
se transformasse em uma grande metrópole, com todos os problemas
característicos dos grandes conglomerados humanos.
Costuma-se dizer que na capital federal não chove nos meses que não
têm a letra “R” no nome: maio, junho, julho e agosto. Realmente essa é
uma das características da região: a seca que castiga pessoas, animais
e plantas.
Em meio a esse tempo seco e quente,Vital dirigia seu carro pelas ruas
da cidade. Não havia nenhuma nuvem no céu. Sintonizou o rádio na
emissora que naquela hora transmitia um programa de notícias
policialescas. Dois locutores, entendidos no assunto, berravam um para
o outro:
- A Polícia Federal ontem fez uma grande apreensão de drogas, fechando
um grande ponto de distribuição da Ceilândia Norte, que aliás é daonde
sai boa parte da droga pra toda Brasília, pra todo o Distrito Federal.
-Éééééééééééé - interrompeu o outro locutor - mas e daí?!?! Isso é o
mínimo que esses caras têm que fazer, pô!....Agora à tarde, em plena luz
do dia, uma família inteira foi assassinada dentro da própria casa, no
Lago Sul!
Vital fechou os vidros e ligou o ar-condicionado do carro. A gritaria
continuava no rádio:
- Só um sobreviveu. O crime, claro, está relacionado com o tráfico de
drogas..... Eeeeé.... o dia foi é sangrento na capital federal, meus amigos!
Como é que fica? Três pessoas de uma mesma família perdem a vida
aí.... e o governo diz que tá trabalhando pela nossa segurança, só porque
fechou uma ‘boquinha de merda’ lá nos cafundó da Ceilândia ?!?! Conta
outra! Ó, chacina agora não é só mais coisa do entorno não.... chegou na
burguesia!...
O primeiro locutor cortou o outro, se esforçando para ser ainda mais
sarcástico:
- Ué, mas isso é bom! Quem sabe agora não vão se empenhar mais pra
resolver alguma coisa?!
- Agora é oficial, gente boa de Brasília: cada um por si, porque se a gente
for depender da polícia, vamo é morrer todo mundo!...
A vinheta encerrou o programa. Vital balançou a cabeça. Olhou a
cidade através da janela do carro, e virou-se novamente para frente.
- ‘A.M. Polícia’, segunda edição, Rádio Independente, sempre com você.
Sem olhar para o console, Vital bateu a mão em uma das teclas do
rádio, que ficou mudo.

Naquele mesmo momento, no Setor Comercial Norte, próximo de onde


Vital passava com seu carro, Eliézer Gallo olhava a cidade enquanto
subia pelo elevador de um belo prédio do centro da capital. O céu sem
nuvens e o sol inclemente ofereciam uma bela vista através dos vidros
escuros do elevador panorâmico. Dali se via a torre de TV. Tenho que
passar na feira da torre pra pegar o quadro que encomendei pra minha
sala, lembrava-se Eliézer, quando seu telefone celular o interrompeu:
- Oba. E aí, tudo certinho? - Cumprimentou Gallo.
- Tranqüilo, Gallo. - Respondeu o homem do outro lado da linha.
O elevador parou, chegando ao seu destino. A porta se abriu às suas
costas. Quando Eliézer se virou para sair, trazia uma expressão de
contentamento. O dia começava bem para ele.
- Beleza. Boas novas? - Perguntou para seu interlocutor
- Isso aí!
- Minha verba foi liberada?
- Foi. Eu te falei que eu conseguia. Tenho meus contatos no Governo do
DF.
Eliézer Gallo, enquanto falava ao telefone, atravessava um amplo
corredor de mármore, com várias plantas adornando sua passagem. À
sua direita pôde ver, de relance, o escritório de um afamado advogado
dos poderosos de Brasília. Voltou-se a tempo de olhar para as pernas
da secretária, que não notou sua presença. Mais à frente cumprimentou
o zelador do prédio, que fazia uma vistoria em um dos hidrantes, com
um técnico.
- Boa tarde, Doutor Gallo. – Cumprimentou-o, subserviente, o zelador.
Gallo o cumprimentou com a mão livre e passou adiante.
- Lindo, te agradeço, hein - Mal podia esconder a satisfação.
- Ok, cara, um abraço.
Gallo virou à direita, ao final do grande e luxuoso corredor e leu, na
grande porta de vidro da recepção de seu escritório:

ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL


“PARA UM FUTURO MELHOR”

Parou por um instante em frente à porta. Nunca deixava de admirar a beleza de seu
local de trabalho. Custou uma fortuna, mas eu não gosto de pobreza,
dizia sempre a quem insinuava que seu escritório era exageradamente
luxuoso.
No momento em que abriu a porta, sua secretária já o aguardava em pé,
no centro da recepção da ONG.
- Bom dia, Doutor Gallo.
- Bom, muito bom, dona Rita. - Respondeu o chefe, passando pela
mulher e dando-lhe um tapinha na bunda.
Atravessou o suntuoso corredor, observando, pelos vidros dos pequenos
escritórios, seus funcionários trabalhando. Entrou na sala, cruzando
um portal de vidro com a inscrição, em letras douradas:

Doutor Eliézer Gallo – Executivo Presidente

Ao sentar-se na mesa, a secretária lhe passou vários documentos para


serem assinados, dentre eles um bilhete. Gallo leu: o Reverendo do
Templo “Filhos da Luz” confirmou o encontro de hoje. Nesse momento
percebeu que nada podia dar errado em seu dia. Tudo estava perfeito.
Virou-se para a ampla janela que ficava atrás de sua mesa a tempo de
ouvir:
- O senhor deseja alguma coisa?
- Um cafezinho, por favor, dona Rita.
CAPITULO 3

A inscrição no muro de um dos casebres mal acabados chamou a


atenção de Rocha, que balançou a cabeça, fazendo cara de desprezo, no
momento em que abaixava o pára-sol da viatura disfarçada que dirigia -
Esses moleques só tem merda na cabeça! Pensou. “O C.V. COMANDA A
CEILÂNDIA: TE CUIDA MANO”. Ao seu lado ia Lua, que observava
naquele momento um grupo de crianças brincando em um campo onde
a terra seca se misturava com os restos de lixo jogados no aterro
improvisado. Era entardecer na Ceilândia. Rocha rompeu o silêncio do
carro dizendo, em tom de reflexão:
- Béque Batista....... que nome ridículo!
- E tu já viu traficante com apelido ou nome decente? – Retrucou Lua.
Rocha riu, concordando.
- E foi vir logo pra cá, pentelhar a gente – Acrescentou Rocha, com um
meio sorriso no rosto. Lua deu de ombros, em um sinal de conformação.
- Cuidado com o baú aí, negão – alertou Lua, se referindo ao ônibus que
se aproximava do veículo. A rua por onde passavam era estreita, suja e
extremamente mal cuidada, bem como grande parte das expansões que
se anexaram ao projeto original da cidade. Aquela era a Ceilândia.
Como na maioria dos locais pobres de moradia, a C.I., como é chamada,
é composta por uma grande maioria de gente honesta e trabalhadora,
acossada por pequenos grupos de delinqüentes que garantem o seu
“direito” de trabalhar através da violência com que tratam os “cagüetes”,
forma como chamam os moradores que delatam as ações criminosas
dos marginais. Rocha morara alguns anos no local, tempo suficiente
para perceber que ali não era lugar pra se dar mole. Sempre andava
com a arma à mão. Tanto ele como Lua levavam, sob a perna esquerda,
uma pistola “ponto quarenta”, a arma portátil mais utilizada pelas
polícias em todo o mundo, cheia de munição e pronta pra ser usada.
Até a década de 80, a pistola mais utilizada pelos policiais era a 9
milímetros. Era considerada a mais eficiente no combate urbano, onde
as trocas de tiro em geral são muito aproximadas. Ao contrário das
armas de guerra, nas quais se prioriza o poder de fogo de alto calibre e
grande capacidade de armazenamento de munição, no combate à
criminalidade quase nunca se gasta mais do que seis tiros em um
confronto. Na polícia se diz que se o agente não resolver uma situação
com um tambor de revólver, que em geral carrega meia dúzia de balas,
deve começar a rezar, pois sua situação é muito complicada. Em um
confronto com dois criminosos, uma equipe do FBI composta por mais
de dez agentes foi quase completamente dizimada. Tudo começou em
uma perseguição a uma caminhonete. Os dois ocupantes do veículo
eram veteranos de guerra com grande conhecimento militar, e muitas
armas também. Um deles, apesar de algumas vezes alvejado, ainda teve
capacidade para reagir atirando diversas vezes e matando vários
policiais. Depois desse trágico acontecimento, o FBI encomendou
pesquisas para que se chegasse a um calibre que fosse mais adequado
para uma situação como aquela, onde o suspeito, uma vez atingido,
perdesse a capacidade de reação. Daí surgiu a “ponto” quarenta.
- Essas pistas são uma esculhambação.
- Ah, isso é – acrescentou Rocha – uma esculhambação. E é só um
exemplo. A “perifelândia” aqui é o seguinte: juntô nós, o povo, o povão,
jogou aqui e disse: Taí, toma, se vira, vive aí....
Rocha virou em uma ruela à esquerda. A situação da rua era ainda
mais precária do que a anterior. Dirigia devagar, cuidando para não
atropelar os vários pedestres que tentavam andar pelo terreno cheio de
buracos e mato. Rocha olhou para Lua e falou, em tom de sacanagem:
- Aí, Lua, sabe o que um cara disse pra mim, uma vez, sobre a tua
Civil? – Lua se virou, curioso para ouvir.
- Dois canas da civil juntos é uma parceria. Três é uma quadrilha.
Quatro já é grupo de extermínio. Cinco é máfia, crime organizado, com
contador e tudo...
Lua ajeitou os óculos escuros, olhou pra frente e disse, com um meio
sorriso no rosto:
- Segunda melhor do mundo, colega...
- E qual é a primeira? – Inquiriu Rocha, mal contendo o riso.
- A de Toronto, no Canadá – respondeu Lua.
- Então lá a máfia se organizou melhor, então. - Lua riu.
- Tá bom, tá bom. Na PM é que é tudo lindo. Mas, ô negão, pára de papo
furado e me diz aí, qual é o plano? Tu falou com o Vital aquele lance,
mas não explicou o que é que tá rolando.
- Porra Lua, tu já sabe, o velho método “sangue e porrada na
madrugada”, mermão. Que vocês da Civil conhecem tão bem quanto
nós. Apertando o saco do filho da puta de jeito, não tem um que não
entregue até o endereço da mãe.
- Polícia para quem precisa de Polícia - sacaneou Lua. Rocha lhe
questionou:
- Fala sério, Lua. Tu alguma vez já se imaginou fazendo algum serviço
com a Federal?
- O Vital é um velho amigo. – disse Lua, reflexivo.
- Ah, então não é a tua primeira vez?
Lua balançou a cabeça negativamente. Rocha continuou:
- A minha é... sou cabacinho...... e tô gostando!
- Mais grana, né? Refletiu Lua, enquanto se preparava para acender um
cigarro.
- E tirar a farda, andar em carro civil, tirar onda de Federal, pra fazer o
mesmo serviço? É comigo mêrmo!
Lua concordou, rindo.
O carro continuava andando lentamente. Os dois já começavam a forçar
a vista para enxergar os veículos mais distantes. Rocha apontou para
uma movimentação de pessoas à frente. Indicou um capoeirista que se
exibia no meio de uma roda. Dali já dava pra ouvir as palmas e o canto
do grupo. Rocha parou o carro.
De repente o capoeirista parou uma manobra no meio. – Fudeu, os
gambé! – gritou, apontando para a viatura. Não era difícil, para aqueles
jovens reconhecerem um carro da polícia, mesmo sendo um gol branco
sem qualquer inscrição. O capoeira saiu pulando por entre os membros
da roda e disparou por uma das ruas próximas. Outros membros do
grupo também saíram correndo. Rocha desceu do carro com a pistola
na mão e saiu correndo atrás do capoeira. Não conseguiu sequer ouvir
os gritos de Lua, que ficara parado ao lado do carro.
- Polícia, porra! – Tentava fazer o jovem parar de correr.
O capoeira certamente não ouvira os gritos, e mesmo se escutasse não
pararia a sua corrida. Sabia que se fosse pego estaria em apuros. Não
sabia porque estava sendo perseguido. Podia ser por pelo menos uma
dúzia de crimes. Rocha continuava a corrida atrás do fugitivo.
- Essa merda de pistola! - praguejou Rocha, colocando a arma em sua
cintura, nas costas. Assim facilitava a corrida. O capoeirista já tomava
uma boa distância de Rocha, que se virava de vez em quando
procurando Lua, que não aparecia para ajudá-lo.
O jovem lutador parecia um gato. Pulava cercas, muros, entrava em
vielas malcheirosas com uma agilidade que não permitia a Rocha
acompanhá-lo de perto. O soldado já havia caído duas vezes e estava
jurando matar o capoeira se o pegasse. – Filho da puta, safado!!! –
Gritava, cansado da correria. Já pensando em desistir, Rocha observou
que o rapaz havia entrado em uma casa.
Quando o fugitivo entrou em sua casa, pela cozinha do barraco,
encontrou sua mãe e irmã, que se assustaram com sua chegada. A mãe
ia lhe perguntar algo, mas ele a interrompeu, fazendo sinal para que
ficasse calada, no que foi obedecido. As mulheres se entreolharam,
preocupadas. O homem atravessou a casa e correu para os fundos.
Momentos depois as mulheres ouviram o barulho da porta vindo
abaixo. Era Rocha, que entrava enfiando o pé na porta. A velha então se
levantou e foi em direção a ele, indignada:
- Que é isso, filho da puta? – gritou a velha.
Rocha, concentrado na perseguição nem respondeu. Empurrou a velha
contra a parede, tirando-a do caminho:
- Dá licença, dona Maria. Polícia, porra!
A mulher, sem ter o que fazer, ficou calada, nervosa, observando Rocha
se dirigir aos fundos da casa, ainda a tempo de ver o capoeira pulando o
muro chapiscado, que tinha cerca de dois metros. Rocha correu em
direção a ele e também o saltou, com alguma dificuldade. Cadê o filho
da puta do Lua? Pensou. Caiu mais uma vez ao pular de cima do muro.
Ao se recuperar percebeu que o capoeira também havia caído, e que
ainda tentava se levantar. Reunindo as últimas forças que tinha, Rocha
correu e deu uma rasteira no capoeira, que caiu no chão, levantando-se
rapidamente e preparando-se para a luta.
Rocha nem pensou duas vezes. Exausto pela corrida, ele queria acabar
com aquilo logo. Partiu para cima do lutador, que ao observar a
proximidade do soldado girou, em uma “meia-lua de compasso”,
acertando Rocha no rosto, fazendo com que o policial caísse
violentamente ao chão. O soldado ainda tentava se levantar, meio
atordoado, quando recebeu um segundo chute no rosto, e um terceiro, e
um quarto. Tateou as costas buscando sua arma quando o jovem lhe
deu um último pontapé, que o fez cair de vez.
Naquele mesmo momento, antes que o capoeira pudesse escapar, Lua
chegou pela ruela que ficava às costas do lutador, que somente
percebeu a presença de Lua quando este já colocava a arma na direção
de seu rosto. O policial civil disse, ofegante:
- Ô, vamo pará com isso aí, caralho!...
O capoeira recuou, levantando as mãos. Seus olhos denunciavam o
medo da certeza do que iria lhe acontecer. Sabia que ninguém batia em
PM, era pego e ficava numa boa.
- Caralho, negão, tá maluco?!?! Esqueceu como isso aqui funciona?! Tá
maluco?! – Disse Lua, sacaneando Rocha, que ainda não havia
conseguido se levantar. Mantinha a arma apontada para o capoeirista
enquanto o algemava.
Mal acabou de algemar o capoeira, Lua foi empurrado para o lado pelo
colega, que desferiu um violento soco contra o rosto do lutador, que
com as mãos presas não tinha como se defender. Rocha lhe deu um
segundo soco que o derrubou, com o nariz quebrado, já sangrando
muito. Tentou ainda se levantar, mas o policial lhe deu um pisão no
peito, fazendo com que ficasse sem ar e deitasse novamente no chão.
Desistira de tentar reagir. Sabia que seria pior. Várias pessoas já
haviam sido atraídas pela movimentação e observavam o policial bater
no jovem capoeirista. Ninguém, entretanto, falava nada.
- Levanta, porra!!! - Gritava Rocha. Lua observava tudo, tentando
esconder o riso, enquanto o outro continuava a surrar o preso, que de
forma desengonçada tentava se defender.
- Chega, negão! Já deu. – disse Lua a Rocha, que, visivelmente irritado,
atendeu a ordem do colega.
Lua então ajudou o capoeirista a se levantar, levando-o aos empurrões
para a viatura. No meio do caminho, Rocha, ainda revoltado, aplicou
um chute na bunda do preso, que gemeu. Cada ferimento em seu corpo
doía, e sua expressão não escondia tal fato. Lua balançou a cabeça
negativamente, rindo da situação de seu colega.
- Cabô, cabô, todo mundo pra casa, aí. Todo mundo pra casa. – Dizia
Lua para os populares que, curiosos, observavam a prisão do capoeira.
Poucos obedeceram, e a maioria ia ficando pra ver o que ocorreria em
seguida. Rocha ia logo atrás de Lua, ainda limpando seus ferimentos,
indignado.
- Larga o meu filho, seu filho da puta! – Lua e Rocha se viraram ao
ouvirem a mesma mulher que estava na cozinha da casa em que Rocha
arrombou a porta. – Vamo, larga meu filho, seus filhos de uma vaca!!!
Ele não fez nada pra ir preso, caralho! Larga ele!
Rocha e Lua seguiam como se não estivessem ouvindo. Sabiam que
numa situação daquelas o melhor que podiam fazer era ignorar. Nunca
sabiam do que uma mãe revoltada era capaz.
A velha continuava seguindo a dupla de policiais com seu filho. Ia já
resignada, pois sabia que pouco podia fazer. Acompanhando o grupo
iam vários populares, gente que não tinha nada melhor para fazer. Um
bêbado começou a gritar, dizendo que a polícia estava prendendo um
rapaz inocente da comunidade.
Enquanto se dirigiam até a viatura, a quantidade de pessoas ia
crescendo em uma aglomeração que parecia um cortejo fúnebre, tal a
tensão que se criava à medida que iam avançando por entre as quadras
da Ceilândia. Rocha então sacou sua arma e a manteve junto ao corpo.
Ele e Lua trocaram olhares preocupados. Sabiam das histórias que
aconteciam na Ceilândia. Alguns colegas já haviam sido, inclusive,
linchados pela população, que havia se revoltado com o modo de agir da
polícia. A situação não estava ficando nada fácil. Torciam pra chegarem
logo no carro e saírem dali. Mas daí a mãe do detido começou a incitar
as pessoas:
- Eles é bandido disfarçado! Quem eles pensa que é?! Vem aqui e pega
meu filho, seu filho, seu filho. – disse apontando para outra senhora
que estava ao seu lado e a um homem que estava um pouco mais
distante – o teu irmão – disse, apontando para outra pessoa. - Quando é
que isso vai parar? Quando é que isso vai acabar, gente? – disse a
velha, com um misto de angústia e desespero na voz.
Como que convencidas pela velha, as pessoas que acompanhavam os
policiais e o preso começaram a hostilizar Rocha e Lua. Estavam
cansadas de serem tratadas com violência pela polícia, e tal sentimento
era, naquele momento, completamente perceptível.
- Só prende nóis porque nóis é pobre! Vai prender vagabundo de
verdade, pé de bota filha da puta! – vociferava um homem que estava
visivelmente revoltado com aquela situação.
Lua também sacou sua arma, permanecendo calado. Os dois já haviam
apressado o passo para chegarem logo ao carro. Nunca uma caminhada
havia sido tão longa.
Quando finalmente chegaram no carro, a situação já estava quase
incontrolável.
Lua abriu a porta de trás para jogar o sujeito no banco, enquanto
Rocha permaneceu de frente para a população, encarando-os, sem
demonstrar o temor que na realidade sentia. Lua então entrou no carro
pela porta do passageiro, passou para o banco do motorista e já deu
com a chave na partida.
No momento em que Rocha começou a se deslocar para entrar no carro,
a mãe do capoeira avançou na sua direção, em frente às pessoas que
também se aproximavam logo após a velha. Rocha se virou e quando a
velha abriu a boca para falar, lhe deu uma coronhada no rosto.
Por um instante o tempo parou para todos os que estavam presentes
ali. Policiais, populares, transeuntes, tudo se imobilizou em um quadro
surreal, onde a tinta mais viva era a do sangue que agora jorrava do
rosto de uma senhora que foi até ali para brigar por seu filho. Caída no
chão, próxima à viatura, a senhora sangrava, e seu sangue se
misturava com a terra vermelha do chão da Ceilândia. Misturava-se aos
muitos “sangues” que já haviam sido derramados naquele derradeiro
rincão do Distrito Federal. Misturava-se também à revolta e ao ódio das
pessoas que presenciavam a cena. Revolta e ódio que, por maiores que
fossem, não resistiram ao tiro disparado para o alto por Rocha. O
barulho do estampido fez com que todos saíssem correndo. Alguns
correram para um matagal próximo, outros em direção às casas
vizinhas. Ficou ali só a mãe do capoeira, que agora chorava, como
chorava o homem preso no banco de trás do carro branco. Chorava por
sua mãe caída, pela sensação de impotência, por tudo que vivera até ali
e por tudo o que jamais viveria.
Rocha, indiferente à senhora caída quase a seus pés entrou no carro.
Lua arrancou. Queria sair logo daquele inferno, e saía rápido.
CAPITULO 4

O céu de Brasília mais uma vez presenteava seus moradores com as


tintas de um dos crepúsculos mais bonitos do país – e dizem - do
mundo. As cores vermelho-alaranjadas tingiam o plano e largo
horizonte da capital, como se o sol se desmanchasse em outras mil
cores, mais frias e suaves.
Essas luzes penetravam, como ocorria em todas as tardes, no suntuoso
interior do “Templo Filhos da Luz”. O templo não se definia como
católico ou evangélico ou espírita, e era um belo lugar. O largo corredor
de entrada contava com um bem acabado tapete azul, que se confundia
em suas laterais como sendo a continuação das paredes, que iam se
desfazendo em um degradê que terminava em um alvo teto, de onde
pendia um lustre de várias luzes. Sob o lustre estava a recepção, onde
havia um grande painel informando os horários dos cultos.
À direita da recepção ficava a entrada do local de celebração dos cultos.
Do portal de acesso se via a grande quantidade de bancos estofados,
circundados por um tapete vermelho que tornava ainda mais sóbrio e
solene o recinto, que dispunha de uma grande cruz negra pendurada
sobre o tecido branco do altar.
Naquela tarde, ao entrar no templo, Eliézer Gallo cumprimentou os fiéis
que ainda se encontravam no templo. Alguns rezavam, outros
simplesmente caminhavam, circunspectos, ao redor da construção, que
não contava com nenhuma imagem de santos ou mártires. Somente a
cruz figurava, solitária, na imensidão da nave.
Gallo avistou, logo adiante, o Reverendo do templo, e foi até seu
encontro. O Reverendo, percebendo sua presença, o cumprimentou:
- Dr Gallo.... satisfação...
- Ô, Reverendo, como vai? – Respondeu Gallo – É o seguinte, hoje recebi
uma ótima notícia: aquela verba que estávamos esperando para nossas
obras assistenciais foi finalmente liberada.
Alguns fiéis passaram naquele momento próximos aos dois
interlocutores. Cumprimentaram Gallo, que assentiu com a cabeça. O
Reverendo suspirou:
- Não me diga, Doutor, benza Deus!
- Eu já vinha trabalhando todo o apoio do governo do Distrito Federal
para esse nosso projeto – Completou Gallo.
- Fico muito satisfeito, Doutor. Orei muito para que tudo desse certo,
que bom.
Os dois permaneceram alguns segundos em silêncio, saboreando a
novidade. O reverendo sorriu, saindo do breve devaneio:
- O senhor aceita uma água, um cafezinho?
- Com essa seca, uma água é sempre muito bem-vinda.
Os dois então se dirigiram alegremente ao luxuoso escritório do
Reverendo, mal escondendo a excitação sentiam.
A noite chegava em Brasília e Vital deixava o trabalho, no Setor Policial
Sul. Àquela hora o trânsito na capital era catastrófico. Todos voltando
para casa ao mesmo tempo. Vital, dentro de seu carro, fez menção de
ligar o rádio. Desistiu. Hoje não vou ouvir esses babacas! – pensou
enquanto passava ao lado do cemitério Campo da Esperança. Demorou
pouco mais de meia hora para chegar em casa.
Girou a chave e entrou. Deixou o blazer e sua pasta sobre uma das
cadeiras da mesa de jantar. Tirou sua pistola da cintura, retirou o
carregador e puxou o ferrolho para trás, dando um “golpe de
segurança”, fazendo com que o projétil que se encontrava na câmara –
ou na agulha, como dizem – fosse extraído. Vital em um movimento
rápido apanhou a bala ainda no ar. Deixou a arma e o carregador sobre
a mesa, assim como o revólver que guardava no tornozelo, de onde
retirou toda a munição e colocou tudo ao lado da pistola. O policial fazia
todos esses procedimentos com uma mecanicidade que denunciava a
freqüência com que daquela forma procedia. Nunca deixava a arma
carregada dentro de casa, com medo de que o pequeno Betinho mexesse
e provocasse um acidente.
Na Academia Nacional de Polícia, onde são formados todos os policiais
federais, sempre houve uma grande preocupação com a segurança dos
policiais com o manuseio de armas de fogo. Durante as aulas nos
cursos de formação, a vigilância era rígida. Ali era ensinado que nunca
se apontava uma arma para alguém, a não ser em extrema necessidade.
Ensinava-se que na atividade, apenas em pouquíssimos casos a atitude
era necessária. Eram os casos de legítima defesa ou em casos de
resistência a prisão em que as pessoas a serem presas colocavam em
risco a vida ou a integridade física do policial ou de outras pessoas.
Vital ainda se lembrava de seu professor de tiro, que alertara seus
alunos para os perigos de uma arma de fogo em casa. Havia inúmeros
casos de acidentes com filhos de policiais, ou amigos de seus filhos.
Cada policial, entretanto, criava suas regras para a manutenção da
segurança de sua família.
Há aqueles que possuem um cofre em casa, onde guardam suas armas.
Acreditam que somente dessa forma podem evitar que outras pessoas
mexam no armamento. Há aqueles ainda que não concordam com o
cofre, sob o argumento de que se for necessária a utilização da arma,
esta não estará a mão a tempo de ser usada. Outros deixam a arma em
local acessível, mas sem munição, como Vital fazia. Alguns preferem
ainda educar os filhos a não mexerem nas armas dos pais, que sempre
estão em local acessível e prontas para disparar. Acreditam que
estigmatizar uma arma só aumenta a curiosidade das crianças a
respeito.
Leila, esposa de Vital, assistia televisão sentada no sofá da sala quando
o policial entrou na casa. Em seu colo, dormindo profundamente,
estava Alberto.
- E aí, dupla? – Disse Vital.
- Ele bem que tentou te esperar – Respondeu Leila, apontando com o
queixo para Alberto.
Vital se aproximou da esposa e do filho, deu um beijo em Leila e pegou
Alberto no colo. Olhou para o filho, reparando em seu rosto. Deu-lhe
um beijo na testa e disse à esposa:
- Esse garoto tá pesando uma tonelada. Daqui pra frente é melhor pegar
leve no “colinho”. Olha o barrigão.
Leila se levantou e desligou a TV. Estava com uma camisola branca que
deixava à vista a saliência indicando uma gravidez de aproximadamente
cinco meses. Vinte e uma semanas – diria ela. Foi até Vital e pegou
Alberto dos braços do pai, reclamando:
- Ih,..... esse papo de novo, Vi......
Vital olhou para a esposa e apenas sorriu, se dirigindo a cozinha. Abriu
a geladeira e se serviu de um copo de água. Essa secura tá braba,
pensou.
- Vou botar o “chumbinho” na cama e já volto – Informou Leila, indo
para o quarto do filho, que ficava em frente ao do casal.
O apartamento de Vital e Leila era típico de uma família de classe
média. Três quartos, uma suíte, sala, cozinha, banheiro social e
dependência de empregada. Haviam demorado quinze anos para
conseguir comprá-lo. Vital sempre reclamava dos juros que eram
cobrados pela Caixa Econômica Federal.
- E como é que tá a gripe dele? – Perguntou à esposa, que voltava do
quarto ainda com o filho no colo.
- Ah, não melhorou não – Informou Leila - Acho que vou entrar com
antibiótico.
Vital se voltou para a esposa, preocupado:
- Faz isso não. Condicionar o menino desde pequeno a isso. Já falou
com o Doutor Jansen?
- Já. – Respondeu enfaticamente Leila, fazendo cara de impaciente.
-Tá bom. – Resignou-se Vital, dirigindo-se para a janela da sala do
apartamento. A cidade estava em intenso movimento, apesar da hora.
Leila voltou para a sala e abraçou o marido por trás. Gostava de
apreciar a presença de Vital em casa, tão inconstante. A vida dele era
bastante imprevisível e ela nunca sabia quando o telefone tocaria e ele
novamente teria de sair.
Nos primeiros anos de casados, essa era a principal reclamação de
Leila. Desacostumada com a solidão, sofria muito com as idas e vindas
constantes do marido, em viagens intermináveis para todos os mais
diferentes lugares, no Brasil e no exterior. Às vezes Vital informava seu
destino, outras vezes ela mesmo descobria pela televisão, ao ver o
marido participando de uma operação de apreensão de drogas. Vital
explicava que não a deixava a par de tudo temendo por sua segurança.
Leila se acostumara. Tudo havia ficado mais fácil quando Betinho
nasceu. Ao menos agora ela sempre tinha uma companhia. Apesar de
tudo eram felizes. Vital era um bom marido e um bom pai.
Vital se virou para a esposa, levando-a ao sofá. Sentaram-se e ele,
absorto, começou a acariciar a barriga de Leila.
- Eu vi no jornal o que aconteceu no Lago hoje. – disse ao marido.
- É – respondeu Vital, reflexivo, enquanto acariciava a barriga da
esposa. Olhava eventualmente para ela, como se não quisesse levar o
terror do que presenciara naquele dia para dentro de casa. Leila o ficou
observando. Foi de encontro ao marido e o beijou, no que foi retribuída.
O telefone celular tocou. Vital lamentando olhou para Leila, e foi
atender.
- Alô.
- Tão interrogando o cara.- disse do outro lado da linha Dani.
- Tô indo. – respondeu secamente Vital, desligando o celular.
Virou-se para Leila, sem graça, e lhe disse:
- Tenho que sair, disse já colocando a munição nas armas. Leila se
levantou do sofá, triste, e foi até o marido, dando-lhe um beijo no rosto:
- Tá bom, vou dormir. Cuidado. – disse, encaminhando-se para o
quarto.
CAPITULO 5

Em meio a uma área do cerrado brasiliense, durante aquela noite, em


um pequeno casebre situado no interior de uma reserva ecológica,
Rocha e Lua interrogavam Sílvio, o capoeirista que haviam prendido
naquela tarde na Ceilândia. No interior do barraco, amarrado a uma
cadeira velha no centro do único cômodo, o rapaz arfava, de boca
aberta, tentando em vão buscar um pouco de ar para respirar. Sua
cabeça estava coberta por um saco plástico. Rocha o asfixiava.
Sílvio desmaiou, sendo amparado por Rocha, que tinha o rosto
machucado pelos golpes que levara do lutador. Tirou o saco do rosto do
rapaz. Lua observava tudo, sentado em outra cadeira no canto do
barraco, fumando.
- E aí? – perguntou a Sílvio – Vai entregar o serviço ou não, filho da
puta!
- Eu não sei..... não sei de nada dessa..... dessa chaci... – Tentou em
vão responder, ofegante, o capoeira. Rocha colocou novamente o
plástico em sua cabeça. Sílvio se desesperou, seus olhos estavam
injetados de sangue, seus lábios, roxos. Babava em todo o saco plástico.
Já havia urinado duas vezes nas calças. Lua foi até a única janela do
casebre e a abriu. O cheiro estava ficando insuportável lá dentro.
Sílvio se debatia e se contorcia em uma luta desesperada por ar.
Quando ia desmaiar novamente Rocha tirou o saco de sua cabeça:
- Me dá alguma coisa, seu merda! – Gritou o policial.
O olhar do preso era de pânico. Não sabia quanto tempo mais
agüentaria a tortura. Já havia passado outras vezes pelas mãos de
policiais como aqueles, mas nunca havia sido tratado de forma tão
brutal.
Lua se levantou da cadeira, sacando sua pistola da cintura. Engatilhou
a arma e disse de forma quase suave:
- Escuta aqui. - Começou a falar lentamente com o capoeira, enquanto
roçava com o cano da arma no rosto do preso. – Mataram hoje uma
família inteira na cidade. Não perdoaram nem a porra do cachorro. –
prosseguia encarando o capoeirista, com um ar nervoso. – Então é
melhor você falar alguma coisa, qualquer coisa.
Sílvio olhava para a arma e para Lua, entendendo que se não falasse
nada, iria morrer ali mesmo. Com uma voz fraca, quase estertorando,
olhou para o teto do barraco e disse:
- Tem um bar novo....... que é uma boca.
- Grande novidade – Disse sarcasticamente Lua, enquanto se levantava.
– É do Béque?
- Sei lá de Béque, - respondeu sem forças o rapaz. – É de alguém, porra.
Sei lá, caralho!
Rocha se virou para Lua, que fez cara de desanimado. Aquela
informação estava dando mais trabalho do que imaginavam.
Lua desengatilhou a arma. Andava em círculos ao redor do capoeira,
que estava estirado no chão. Começaram a ouvir o barulho de um carro
se aproximando.
- Os caras chegaram. – disse Lua para si mesmo.
Vital chegava em seu carro ao local, parando-o ao lado dos carros de
Rocha e Lua. Desligou o motor, mas deixou o farol ligado. Dirigiu-se ao
interior do barraco fracamente iluminado. Antes que entrasse Lua abriu
a porta e foi até o seu encontro. Pôde ver, através da porta entreaberta,
no chão, todo ensangüentado, o capoeirista. Ao lado dele estava Rocha.
- Que que houve aí? - Perguntou Vital para Lua.
- Não sei não, chefe. Chegamo aí e ele já tava assim.
Vital meneou a cabeça, fazendo vista grossa para a situação. Desde que
começara a trabalhar com o pessoal da papa mike e da papa charlie,
como eram conhecidas a Polícia Militar e Civil, aprendera que havia
situações onde a violência era um mal necessário. Nunca havia
cometido um ato de tortura, mas em certas ocasiões se fazia de
desentendido diante de um fato como aquele.
Ainda não havia entrado na casa quando ouviu o barulho da
motocicleta de Dani se aproximando. O jovem parou ao lado dos carros,
cumprimentando Vital e Lua, enquanto se aproximava da entrada do
casebre.
- E aí. Alguma coisa? – Perguntou Vital apontando para o homem
estirado no chão.
- Ah, Vital, um monte de não sei. Mas ele mencionou um bar aí, novo –
Disse Lua enquanto o chefe ouvia. – Pelo menos mais uma boca. Do
Béque ou não a gente vai acabar fechando.
Dani se aproximou dos dois. Podia ver através da porta o estado do
rapaz semi-inconsciente no chão de terra batida. Olhou pra Vital com
um ar de reprovação. Todos sentiram que o clima havia ficado pesado
diante da reação de Dani. Rocha, de dentro do barraco, querendo aliviar
a situação, cumprimentou os dois recém chegados:
- E aí, pessoal? Tudo em cima, moleque? – Disse, dirigindo-se a Dani.
- Algum problema, garoto? – Acrescentou Lua.
- Ahã, - Respondeu Dani sem demora – pra que isso? – Disse,
apontando para o rapaz no chão. Vital apenas ouvia a conversa.
- Qualé, rapá? – Reclamou Rocha, levantando-se e ficando em posição
desafiadora. – Esse é o método mais moderno de investigação policial
contra vagabundo cadeado.
- Só se for pra policial bárbaro. – Retrucou Dani. – Não tamo na idade
média não, meu irmão. E a ditadura acabou, já, há muito tempo.
Lua se voltou para Vital, como que pedindo apoio contra a atitude do
rapaz. Rocha sorriu sem graça. Vital permaneceu calado, observando as
atitudes de Dani.
- Daqui a um tempo eu quero ver você sustentar isso, moleque. –
Ameaçou Lua.
- Se você viver, verá. – Respondeu o jovem policial.
- Tratando bandido na maciota, quem não vai durar muito é você. –
Esbravejou Rocha.
- Vai se foder, Rocha. – Gritou Dani.
- Chega, Dani. Me espera lá fora. - Ordenou Vital.
Dani saiu, diante da ordem de Vital, olhando para o capoeira e para os
policiais, com um sério ar de indignação.
- Deixa o cara dormir aí. Solta amanhã. – Sussurrou Vital para Lua,
tendo cuidado para não ser escutado por Sílvio. Respirou fundo por
duas vezes e continuou. – Quanto a esse bar, eu quero vocês de olho
nele. Amanhã. Já. Ontem. Anota tudo, quem entra, quem sai, tudo.
Vital se virou, nervoso, e saiu da casa. Dani estava mais afastado.
Estava visivelmente revoltado com o que presenciara. Lua e Rocha
voltaram para dentro do barraco.
Dani subiu em sua moto e deu a partida. Vital o indagou:
- Vai aonde, garoto?
- Vô trabalhar. – Disse, ainda consternado. - Tá rolando um festão. –
Falou enquanto olhava pensativo para Vital. – Vou me misturar, chefe.
Vital olhou para o rapaz, compreensivo, gostando da atitude do jovem:
- OK. – Concordou. – Vai nessa!
Dani arrancou com sua moto bruscamente, numa clara demonstração
de repúdio aos que ficavam ali. Sempre havia sido radicalmente contra
qualquer tipo de tortura. Seus professores da Academia haviam
reforçado em sua personalidade um traço pessoal muito forte em seu
íntimo. Sempre fora contra qualquer tipo de injustiça, e considerava a
tortura uma das mais graves. Uma covardia.
Lua se aproximou de Vital, dizendo:
- Esse garoto tem personalidade.
- E taria na minha equipe por quê? - Sacaneou Vital, fazendo ar blasé,
já se dirigindo para o carro.
- Chefe! – Chamou Lua, querendo explicar a situação. - O negão
apanhou. Ficou puto...
- Esquenta não - Respondeu Vital. – Trabalha. – Ordenou enquanto
batia a porta do carro.
Na volta, dentro de seu carro, Vital pensava a respeito do que ocorrera
durante todo o dia. Quanto tempo mais agüentaria essa rotina, essa
vida? Pensou na possibilidade de ser louco, pois ao mesmo tempo em
que sofria com o dia-a-dia que levava, não se imaginava fazendo outra
coisa na vida. Estava convencido que ser polícia viciava. Riu de seus
próprios pensamentos um riso amargo, lembrando-se que de certa
forma permitira os abusos que Rocha e Lua cometeram naquela noite e
em tantas outras. É o preço, pensou. Lembrou-se de Dani, lembrando-
se de si próprio vinte anos antes.
Chegou em casa cansado. Já era madrugada quando abriu a porta de
seu apartamento, tirando suas armas e fazendo todo o “ritual” de
desmuniciamento, como sempre. Leila apareceu. Estava com o cabelo
molhado.
- Tudo bem? - Perguntou a Vital.
- Ahã. E o Betinho?
- Ih! Ferrado no sono.
Vital se aproximou da esposa. Estava decidido que pelo menos naquele
momento iria esquecer todos os seus problemas. Beijou-a com vontade,
no que foi correspondido. Abraçou Leila, tomando cuidado com sua
barriga. Começou a acariciá-la por baixo da camisola, tocando seu
corpo com os dedos, com as mãos. Leila se virou de costas pra ele, mas
seus lábios não se desgrudaram. Era como se naquele exato momento
não houvesse qualquer outro lugar do mundo onde pudessem estar.
Não existia a polícia, não havia telefones que tocavam a toda hora. Não
existiam as ausências prolongadas, a solidão.
Vital levantou a camisola da mulher, que ao mesmo tempo tirou a
camisa do marido, despindo-o completamente. Deitou-a sobre o tapete,
com cuidado. Acabou de despi-la, beijando todo o seu corpo. Beijou-a o
pescoço, os seios, a barriga, as pernas até chegar ao sexo, onde
detidamente se concentrou, arrancando palavras sussurradas da
esposa, que gozou ali mesmo, no tapete da sala, na boca do marido.
Vital, sem esperar, penetrou a esposa, que se contorcia toda,
aproveitando o momento raro de prazer com o marido. Depois do
orgasmo os dois permaneceram deitados no chão da sala, olhando para
o teto, pensativos. Leila se acomodou sobre o ombro de Vital, que se
deixava levar pelos pensamentos. Instantes depois os problemas
voltaram a povoar sua mente. Uma família morta, um homem
torturado, um traficante à solta.
CAPITULO 6

A alguns quilômetros da casa de Vital, em uma mansão do Setor de


Mansões Park Way, o barulho era ensurdecedor para quem estivesse a
menos de duzentos metros do local da festa. Havia várias festas como
aquela em Brasília, onde os jovens da classe média se encontravam. E
onde muita, muita droga era consumida.
Pela quantidade de carros estacionados nas adjacências da casa dava,
era possível se estimar o número de pessoas. Eram veículos caros,
muitos importados. Os “flanelinhas” disputavam as áreas onde havia
maior número de vagas, esperançosos de ganharem um troco a mais no
final da noite. Os cachorros da vizinhança reclamavam do barulho,
latindo, o que tornava o local ainda mais ruidoso.
A mansão onde ocorria a festa era grande. Havia sido a moradia de uma
das primeiras famílias “nobres” da capital, mas os herdeiros haviam
decidido transformá-la em uma casa de shows e festas. Paredes foram
destruídas e criadas com esse objetivo, e o que se via era um grande
hall onde se acotovelavam centenas de jovens e onde se tocava a música
mais alta e barulhenta da cidade.
A moto de Dani chegou ao local quando a festa estava no auge. Alguns
estavam tão bêbados e drogados que eram apoiados pelos seguranças
na volta aos seus carros. Dani teve que desviar de um grupo de
adolescentes que ajudava uma moça, que vomitava em plena rua.
Guardou sua moto em um local mais iluminado do estacionamento
improvisado, recomendando ao “flanelinha” da área que tivesse cuidado
com ela. Ao entrar na festa foi recebido por uma espessa nuvem de
fumaça que tomava conta do ambiente, acompanhada do hálito de
álcool que até as paredes exalavam. As pessoas conversavam
animadamente e aos gritos. Era muito difícil comunicar-se com alguém
com o som daquela altura. Vários garçons serviam aos convivas em
mesas dispostas ao redor da pista de dança. Entre as mesas pôde
perceber diversas pessoas deitadas no chão, outras escoradas em sofás,
se drogando ali mesmo, em pleno salão.
Continuou andando no meio da multidão quando sentiu um tapinha
nas costas. Rapidamente se virou:
- E aí, brother? Tudo certo? – berrou um rapaz de cerca de 25 anos, já
lhe oferecendo um cigarro de maconha.
- Beleza, véio! Cumprimentou-o Dani, aceitando o baseado e dando uma
profunda tragada no cigarro.
- Vamo dançar com a galera, mermão. Tá todo mundo logo ali. – grita ao
seu ouvido o jovem, que estava vestido todo de preto, com uma camisa
estampando uma grande caricatura de Bob Marley.
Dani acompanhou o amigo, cumprimentando os demais que estavam na
pista de dança. Passou a dançar com o grupo. Todos estavam
“pilhados”, dando a impressão de estarem sob o efeito do ecstasy.
A pílula do amor, ou balinha, ou ainda docinho, nomes pelos quais o
ecstasy é conhecido, é uma meta anfetamina amplamente difundida
entre os freqüentadores de boates e shows de música eletrônica. Dizem
que esse estilo musical está para o ecstasy como o reggae está para a
maconha. Produz distorções nos sentidos, fazendo com que o
consumidor possa dançar durante dias e dias sem parar. Para tanto
devem tomar bastante água, pois a droga causa desidratação. Nesses
locais a garrafa de água é mais cara do que a de cerveja, e é vendida
abundantemente, o que explicava a quantidade de garrafas plásticas
vazias de água que Dani observava por toda parte. Também provoca
uma potencialização no sentido táctil da pessoa, que passa a perceber
de forma diferente o toque, a carícia. Daí ser chamada de pílula do
amor.
Enquanto dançava Dani percebeu uma jovem de minissaia que também
estava na pista de dança, se movendo ao som das batidas monocórdicas
da música. A mulher dançava de forma muito sensual. Fumava um
cigarro. Passaram a se olhar. Quando se preparou para se aproximar da
mulher, Dani foi cutucado por um homem que o chamou em um canto.
Era um traficante. Ofereceu a Dani ecstasy e cocaína. Dani comprou
uma pequena quantidade de cocaína e foi até a moça. Ela olhava
fixamente para seus olhos, correspondendo seus olhares. Chegou até
ela e a puxou calmamente em direção a um banheiro. Ela foi,
assentindo com o “convite”. A porta do banheiro se fechou e foi
trancada por dentro.
A mulher se virou para Dani e perguntou, demonstrando, pelo sotaque
carregado, ser estrangeira:
- Que que cê tem aí pra gente?
Dani não respondeu. Espalhou a cocaína pela pia, fazendo diversas
“carreirinhas”. A mulher puxou um canudinho. Cheirou de uma vez
duas carreiras. Olhou pra Dani, oferecendo o pó:
- Vai? - disse com os dentes cerrados por efeito da droga.
- Não - respondeu o policial. – tô bem. – disse apontando para o cigarro
de maconha que tinha na mão. Tinha os olhos vermelhos e uma
aparência cansada.
A mulher, diante da negativa de Dani, se abaixou e cheirou mais duas
carreirinhas. Ao se abaixar deixou a mostra a parte superior das coxas.
A mulher era muito bonita. Dani então a abraçou por trás, agarrando-a
pela cintura com força. Percebeu que estava sem calcinha. A mulher
começou a se excitar, passando a cheirar toda a cocaína que estava
sobre o tampo de granito escuro da pia. Quando aspirou todo o pó,
virou-se para Dani, sentando-se na pia. Dani a essa altura já estava
excitadíssimo. Safada e gostosa, é isso que eu estou precisando hoje,
pensou o policial, enquanto a mulher lhe deu um beijo.
- Vamos pra minha casa? – convidou a mulher, encarando Dani, que
sorriu, com um ar de concordância.
CAPITULO 7

Lua morava no segundo andar de um prédio simples, sem elevadores,


em uma das cidades-satélites de Brasília: o Guará. Já havia morado em
diversos outros apartamentos, mas nunca se havia fixado em nenhum
deles. Paula, sua esposa, vivia insistindo que economizassem para
comprar um imóvel, mas mesmo após tantos anos de casados, nunca
haviam conseguido se livrar do aluguel. Não tinham filhos e viviam uma
difícil fase do casamento, principalmente por causa dele.
O policial estava sentado em frente à televisão, assistindo um desenho
animado, ou melhor, olhando para a TV sem realmente ver o que estava
sendo transmitido. Tinha a cara cansada, o que denunciava as
constantes noites mal dormidas. Não se sentia bem em casa, e não
conseguia ficar à vontade diante de Paula. Só não sabia porque.
Sobre a mesa de centro, entre o televisor e o policial, havia um
sanduíche mordido e uma lata de refrigerante. Era o jantar de Lua. Ao
lado da coca-cola estava sua pistola, desmontada. Entre uma mordida e
um gole Lua, fazia a manutenção na arma, o que garantiria que não ia
falhar na hora da necessidade. Lubrificava peça por peça,
concentrando-se no ferrolho e no cano da arma, que limpava usando
uma escova que se assemelhava à usada para limpar mamadeiras. A TV
berrava, mas Lua não parecia interessado no programa.
Paula então saiu do quarto. Estava pronta para sair para a faculdade.
Foi até a cozinha, largando sobre a mesa os vários livros e pastas que
levava nas mãos. Pegou o café que havia preparado há pouco e foi até a
sala.
- Oi. – Disse ao marido, procurando ser simpática com Lua, que sem
tirar os olhos da televisão respondeu, casual:
- Oi.
- Demorou - Continuou a esposa – tudo bem no serviço?
- Mais ou menos - Respondeu Lua, desinteressado. – Como sempre...
Paula o observava, procurando entender o porquê da indiferença do
marido em relação a ela.
- E você? – Insistiu a mulher – tá legal?
- É, tô. – Respondeu o policial, enquanto continuava a limpar sua
pistola.
Paula ainda ficou olhando para Lua por alguns segundos, talvez com a
esperança de que ele lhe desse a oportunidade de travarem um diálogo,
o que há muito não ocorria. Sentia-se uma mulher infeliz no
casamento, mas ainda gostava demais do marido para estar convencida
a tomar uma decisão definitiva. Quando perdeu as esperanças de algum
sinal de Lua, Paula suspirou, desanimada. Largou a xícara de café,
pegou suas coisas e saiu de casa.
Lua, que fingia não dar importância para sua mulher, quando ouviu o
barulho da porta se fechando se virou naquela direção, permanecendo
com o olhar na porta durante algum tempo, enquanto limpava a mola
do êmbolo de sua pistola.
Acabou de limpar a arma e foi até a cozinha. Abriu um dos armários e
pegou uma caixa. Ia trabalhar durante toda a madrugada, e só com
aquele remédio teria condições de permanecer acordado. Ligou para
Rocha e saiu de casa. Tinham de começar a investigar a boca de fumo
descoberta naquele dia.
Se de dia a Ceilândia não era o local mais tranqüilo do mundo, à noite
parecia ainda mais assustadora. A população honesta sempre sofria
quando o sol se punha, e se trancava em suas casas, amedrontada
pelos grupos de pequenos criminosos e traficantes. Como sempre ocorre
nas grandes cidades do Brasil, o Estado não havia assumido de
maneira eficiente o local, e, dentre inúmeros outros itens de infra-
estrutura mínimos para o bem-estar da comunidade, faltava também
uma iluminação que pudesse oferecer mais segurança aos moradores e
transeuntes. A Unidade da Polícia Militar responsável pelo policiamento
da área, o 8º Batalhão, era conhecido por ter o maior número de
policiais corruptos e criminosos da Corporação, o que dificultava ainda
mais a situação do público que se via obrigado a viver ali. O maior
problema da Ceilândia era, sem dúvida, o tráfico de drogas, que trazia,
para seu financiamento, o aumento da incidência de outros crimes
como roubos e furtos; assassinatos e latrocínios.
Em uma das escuras ruas da cidade estava estacionado um carro
branco. O mesmo que naquela tarde havia efetuado uma prisão em um
local a poucas centenas de metros dali. Lua e Rocha observavam, a
uma distância segura, o bar que havia sido indicado como sendo uma
“boca de fumo” pelo capoeira, que continuava amarrado no interior do
casebre onde sofrera os maus-tratos.
O movimento no boteco era normal. Alguns homens entravam e saíam
de lá sem, inicialmente, provocar qualquer suspeita nos policiais.
Mas tanto Rocha quanto Lua sabiam que havia alguns requisitos
básicos para um ponto de venda de drogas ter sucesso. Um deles é a
localização discreta. É preciso que a “boca” não chame a atenção da
polícia, que sempre está à procura: seja para a repressão, feita pelos
bons policiais, ou para a cobrança de “taxas”, pelos policiais corruptos.
Os traficantes temem os dois tipos de policiais, em especial os honestos,
que são, no Distrito Federal, a grande maioria. Outro requisito para o
sucesso do negócio é manter uma movimentação normal. Qualquer
lugar que, sem motivos e de uma hora para outra, começa a ser
freqüentado por um grande número de pessoas, também chama a
atenção da polícia. Um movimento aparentemente normal, inicialmente,
em um bar ou boate não significa nada, e os policiais que estavam no
interior da viatura sabiam muito bem disso.
Permaneceram observando o bar até o dia começar a clarear:
- Tá com fome, negão? – argüiu Lua.
- Pra caralho. – respondeu o PM – Vamo bater um rango numa
lanchonete aqui perto e aí voltamo pra campana.
O termo utilizado por Rocha – campana – é como os policiais chamam a
vigilância a um local ou pessoa determinada. E dessa forma conseguem
desvendar um grande número de crimes. Na prática é seguir o suspeito
ou ficar observando um ponto específico.
Dirigiram-se à birosca indicada por Rocha, onde pediram refrigerantes e
sanduíches. Retornaram para junto do carro, onde Lua se sentou em
um meio-fio. Continuavam observando o bar. Lua acabou de comer e
jogou o guardanapo no meio da rua, já suja por outros pedaços de papel
e restos de comida.
Àquela hora, Dani acordava em uma grande cama de casal em um
apartamento do Plano Piloto. Não havia reparado na noite anterior a
suntuosidade da casa da mulher, mas agora, mesmo com as pesadas
cortinas que impediam a entrada da maior parte da claridade no
recinto, podia ver que se tratava de um apartamento amplo, com
decoração fina e de bom gosto. Olhou para o lençol que o cobria,
percebendo que era de seda. Nunca havia estado em um local assim, a
não ser para efetuar prisões de ricaços, sempre a serviço.
Levantou-se e se vestiu, não querendo acordar a mulher, que julgava
estar dormindo. Ia em direção à porta quando ouviu:
- Você volta? - Perguntou a mulher, sonolenta, de costas para ele.
Dani não respondeu, abriu a porta e ia saindo quando a mulher gritou
ainda da cama, já virada em direção à saída do quarto:
- E o teu nome?!?!
Dani deteve o passo, voltou e respondeu, colocando seu rosto através da
porta entreaberta:
- Daniel – disse, saindo rumo à porta de saída do apartamento, a tempo
de ouvir outro grito da mulher:
- Sofia........... prazer, Daniel! – Ouviu o policial, que abria a porta da
casa, sorrindo.
Dani foi para casa. Precisava descansar.
Preparava-se para dormir, deitado em um sofá no pequeno apartamento
alugado, que era composto, além da sala, de dois quartos mínimos e um
banheiro, além da cozinha, que raramente era visitada pelo jovem
policial, a não ser para tomar água, quando havia. Tinha ganhado um
jogo de sofás da mãe, mas sua sala não comportava as duas peças,
tendo Dani que se desfazer do estofado de dois lugares, ficando com o
maior. Tinha, além do sofá, uma mesinha de centro e um pequeno
móvel onde ficava sua televisão de 29 polegadas, além de um potente
som, um DVD e um vídeo-cassete. Era um cinéfilo e passava grande
parte de seu tempo livre deitado, assistindo filmes. Seu quarto contava
com uma cama de casal king size, que pelo seu tamanho não permitia
que a porta se abrisse completamente. Para entrar ali Dani, e seus
visitantes, tinham de se espremer entre a moldura e a porta. O segundo
quarto servia de depósito para alguns móveis que havia ganhado, mas
não tinha espaço para colocar. Não tinha fogão, microondas ou filtro
d’água, e a geladeira tinha sido adquirida há pouco, mas raramente
tinha em seu interior alguma outra coisa que não fosse queijo e
presunto estragados, além de restos de refrigerante sem gás. A cafeteira
elétrica era o eletrodoméstico mais usado pelo policial.
Dani olhava para a televisão, mas não prestava atenção no programa de
variedades que era transmitido no canal da TV a cabo. Foi despertado
de seus pensamentos pela campainha, que quase nunca era usada.
Dani instintivamente se levantou, pegando rapidamente a pistola que
estava no chão junto ao sofá. Enfiou a calça que estava jogada no braço
do sofá e olhou pelo “olho mágico” da porta. Verificou que se tratava de
Vital, que esperava do outro lado, olhando para baixo.
Dani abriu a porta, sem jeito pela situação catastrófica que estava seu
apartamento, que tinha sido limpo a última vez havia dois meses.
Amontoava-se pela casa um impressionante número de peças de roupas
jogadas pelo chão da sala e do corredor de acesso aos quartos.
Vital entrou na casa olhando para a situação do local, quando Dani lhe
ofereceu uma cadeira, ou melhor, um banco para que se sentasse.
Depois, embaraçado, sentou-se no banco e indicou o sofá para que Vital
se acomodasse. Ofereceu também o café que havia feito na véspera. A
garrafa térmica estava sobre a mesa de centro.
Vital assentiu e Dani foi até a cozinha lavar uma das xícaras que
estavam sobre a pia. Voltou, serviu Vital, apagou seu cigarro e se
sentou no banco. Os dois se encararam por um instante, enquanto Vital
tomava um gole do café morno.
- Já sei o que você vai dizer. – Falou Dani, sem olhar para Vital, e
tomando também um pouco do café. – Pode ficar tranqüilo, isso não vai
acontecer de novo, não.
Vital riu, parecendo se divertir com o que Dani havia falado. O jovem
continuou olhando para Vital sem entender o motivo do riso. O chefe,
com ar de quem estava sacaneando, falou:
- Não tô aqui pra pagar sapo não, garoto. – Falou, enquanto sorvia o
resto de café na xícara. – Tá ótimo isso aqui.... já pode casar –
completou, ironizando. Dani riu. Vital continuou:
- Só vim bater um papo ver se você tá legal. – Os dois policiais se
encararam de novo. Dani baixou a cabeça e disse ao outro:
- O estilo deles não é bem o nosso, chefe.......... da Federal.
- Sei disso, - Respondeu Vital. – não é e nem tem que ser. Mas bota
uma coisa na sua cabeça, garoto. O que não pode nunca é a gente
perder pra vagabundo..... isso nunca. – Dani ouvia, olhando
eventualmente para o chefe. – Essa situação é especial. Pede medid......
deixa os caras fazerem a “parada” deles lá. Foram requisitados pra isso.
Fez-se silêncio entre eles. Dani procurava assimilar o que havia
escutado e Vital aguardava qual seria a sua reação. Depois de alguns
segundos Dani se voltou para Vital e perguntou, sarcasticamente:
- Especial? Igual era no tempo da ditadura militar? – Dani fuzilava Vital
com o olhar. Fez uma pausa para que o outro pensasse a respeito. Em
seguida continuou. – E aí? Como é que era naquela época?
Vital se surpreendeu com a pergunta. Quando fora conversar com Dani
não imaginou que a conversa enveredaria por aquele caminho. Nos
poucos instantes em que ficou calado se lembrou de seus primeiros
anos na Polícia Federal, em um país que ainda era comandado por um
General. Tempos duros aqueles. Lembrava-se claramente o que lhe fora
dito quando chegou para assumir o cargo na cidade de Dionísio
Cerqueira, município de Santa Catarina. A cidade fica na divisa com o
Paraná, juntando-se à cidade de Barracão, no outro estado, e ainda
com a cidade de Bernardo de Irigoyen, na Argentina. Recordou-se do
frio que sentira quando chegou à cidade, em pleno inverno. Nunca mais
esqueceria o frio ou a impressão que teve de sua nova atividade.
- Vital - alertou-lhe o chefe da delegacia - esqueça tudo o que aprendeu
até hoje na escola ou na faculdade. Esse meio é dominado por
subversivos. Todos comunistas! Agora você vai ter a oportunidade de
servir à pátria, de fazer alguma coisa pelo Brasil. Temos várias
denúncias da presença de núcleos socialistas na fronteira. Temos que
fazer o possível para não permitir que continuem com essa atividade
perniciosa ao país.
Naquela mesma noite foi participar, infiltrado, de uma reunião do
sindicato dos trabalhadores rurais do extremo oeste catarinense. Levou
um gravador sob a roupa surrada que usara para passar despercebido.
Sentiu-se mal com o que fazia. Não entendia o porquê de tudo aquilo, mas
ordens eram ordens. Não podia contestar.
No dia seguinte, foi à delegacia, que ficava situada bem próxima ao
posto aduaneiro da Receita Federal, e transcreveu tudo aquilo que havia
sido gravado. Sentiu-se meio inútil porque nada demais havia sido
falado pelos sindicalistas. Entregou a transcrição ao chefe, incluindo
um relatório a respeito de suas impressões sobre a reunião.
Dias depois foi chamado pelo chefe em seu gabinete, dizendo-lhe que
organizasse uma ação para efetuar a prisão de um dos dirigentes do
sindicato, explicando-lhe que tomava aquela decisão porque o homem
havia reclamado que não havia financiamento público suficiente para o
plantio daquele ano. Temeroso, tentou dissuadir o chefe:
- Mas vamos prendê-lo somente por isso? O que há de mal em ele ter
falado que falta dinheiro pra plantar?
- Garoto, você chegou ontem e ainda não sabe de nada, - disse com um
ar de falsa compreensão o chefe – Daqui a pouco tempo você vai entender
que se deve cortar o mal pela raiz. Hoje ele reclama de financiamento.
Amanhã pega em armas e tenta destruir o país, tenta socializar as terras
privadas. Esses malditos lêem Marx, aquele hipócrita.
Dois dias depois, acompanhou o cumprimento do mandado de prisão
expedido pelo chefe. Foram até a casa do colono, que ficava na Linha
Novo Horizonte, em um município vizinho. Era uma casa simples de
teto de amianto. Três cômodos que eram divididos pelo casal e mais
quatro filhos, que sobreviviam pela atividade agrícola do pai, que
plantava soja e erva-mate.
Ainda se lembrava da cara de espanto do sindicalista, a quem não foi
dado sequer o direito de se despedir dos filhos, ou de pegar roupas
antes de ser levado à delegacia. Lembrava-se também das torturas
feitas contra o agricultor, com o objetivo de que ele confessasse fazer
parte de uma milícia armada financiada por Moscou. O pobre coitado
apanhou tanto que confessou. Não tinha outra saída. Confessaria
qualquer coisa.
Vital não conseguiu dormir aquela noite pensando no absurdo que
havia presenciado. Quando chegou à delegacia no dia seguinte pela
manhã, recebera a notícia: o homem havia se suicidado. O policial que
estava de plantão tinha notado há pouco que o preso tinha se
enforcado. Vital foi até a cela e só não entendeu como o preso poderia
ter conseguido uma corda como aquela para praticar o suicídio. Tudo
era armação, estava claro, mas ninguém investigava ou reclamava. Era
muito perigoso fazer isso. Vital, da mesma forma, calou-se e nunca
mais falou com ninguém a respeito. Mas se lembrava do fato com
freqüência. Lembrava-se ainda de outras situações em que se calara
com o passar do tempo. Nunca concordara com aqueles atos, mas
muitas vezes não podia agir diferente. A pressão do grupo era forte
demais, e a todo o momento todos eram colocados à prova, para medir a
“fidelidade” à instituição.
- Hein, chefe? - Dani chamou a atenção de Vital, que estava pensativo -
Como era na época da ditadura?
Vital assustou-se com a nova inquirição do rapaz. Quanto tempo havia
ficado absorto em seus pensamentos?
- Era diferente, - Respondeu, procurando retomar o raciocínio. – O país
tava confuso, histérico. Nem sempre se sabia o que se tava fazendo.
- E você, sabia? – Insistiu Dani.
- Na época eu achava que sim. Não tinha espaço para dúvidas.
- Torturou alguém?
Vital deixou a xícara na mesa vagarosamente, pensando na pergunta.
- Não. Nem todo mundo que servia ao governo militar participava desse
tipo de coisa. Minha função era outra.
- E se você fosse chamado? - questionou Dani.
- Hoje eu não seria policial - respondeu Vital, sem muita convicção na
voz. – Não ia fazer uma porra dessa por questão política.
- E tem diferença? – insistiu o jovem.
Vital percebeu a besteira que havia falado. Estava em um beco sem
saída. Então se rendeu:
- Não. Não tem.
Fez-se silêncio na sala. Dani esvaziou sua xícara de café em um gole
nervoso. Colocou-a sobre a mesa. Fitou o chefe e disse:
- Se eu vivesse naquela época certamente seria da guerrilha urbana......
e poderia ter sido morto pelos teus colegas......
- Nossos colegas! - Interrompeu enfaticamente Vital.
Dani continuou:
- Apesar de que hoje eu penso que comunismo não tem nada a ver.
Ditadura de direita, de esquerda, da tudo na mesma.
- Então ia lutar por quê? – questionou Vital.
- Porque sim, porque me conheço, já tive minha fase de revoltado com o
mundo. - Disse Dani, fazendo uma pausa para organizar o raciocínio. –
Lutaria do lado de quem tava contra o sistema.
- Então você tá lutando do lado errado agora. – afirmou Vital.
- Não – retrucou imediatamente o rapaz. – Luto pelo lado menos errado.
- Eu pensava, e penso, o mesmo que você quando entrei na polícia
aquela época. – Afirmou o mais velho.
Novamente os dois silenciaram. Vital pelas lembranças de seu passado.
Dani imaginando como teria sido viver em uma época tão difícil como os
“anos de chumbo”. O jovem policial quebrou o silêncio, em tom quase
filosófico:
- É. As coisas não mudam.
Vital assentiu com a cabeça, concordando:
- Não.
Dani começou a servir mais café na xícara do colega, que o interrompeu
dizendo que já era o suficiente. Dani fechou a garrafa e, olhando para
Vital, perguntou, curioso:
- E o Lua, hein? Qual é a dele?
- Que que tem o Lua ? - respondeu defensivamente Vital.
Dani permaneceu em silêncio. Sabia que seu chefe havia entendido a
pergunta. Vital olhou para ele e disse:
- O Lua acredita no que tá fazendo. E não faz por mal, nem por bem.
Simplesmente faz.
Dani ficou olhando para Vital, esperando-o terminar. Vital sorriu,
afirmando:
- O Lua é gente muito, muito boa, Dani..... um velho amigo..... não julga
ele tão depressa, não. – Vital pegou o café e virou de uma vez. – Eu
confio minha vida a ele. Posso te garantir isso, e já tive prova suficiente.
CAPITULO 8

Lua e Rocha continuavam na campana, próximos ao bar. O policial civil


estava observando o estabelecimento de binóculos. Havia equipamentos
de investigação e vigilância na viatura: Usavam uma câmera para o
registro visual do tráfico de drogas. Lua bocejou, denunciando cansaço.
Pegou uma garrafa de água mineral e tomou um gole. Bocejou de novo,
continuando a observar a movimentação no bar. Rocha ressonava ao
seu lado.
Entre uma e outra piscada mais longa, observou que um carro esporte
havia parado em frente ao bar, com vários jovens em seu interior. Um
dos rapazes desceu do carro, se dirigindo ao estabelecimento. Lua
cutucou Rocha, acordando-o e chamando-lhe a atenção para o
movimento logo à frente. Acionou a câmera e acompanhou os
movimentos do jovem dentro do bar. O rapaz foi até o balcão e comprou
um lanche. Junto com o sanduíche foram-lhe entregues alguns
papelotes de cocaína. Entrou novamente no carro e se retirou, cantando
pneus. Lua e Rocha se olharam, satisfeitos. Em seguida chegou outro
carro. Desceu um homem de meia idade, cabelos pretos e óculos
escuros. A câmera continuava a registrar. O homem foi até o vendedor
do bar, com quem travou uma conversa.
- Ó lá, - Disse Lua. – Não é o mesmo cara daquela hora?
- Ahã – Confirmou Rocha – Ele mesmo.
Após trocarem a fita da câmera e discutirem um rápido plano de ação
em caso de alguma coisa dar errado, Lua se encaminhou casualmente
ao bar. Entrou no recinto como um freguês normal, sem chamar
atenção. Foi até o balcão onde foi atendido pelo dono do bar, que lhe
perguntou o que queria beber. Lua olhou para as garrafas sobre a
prateleira do outro lado do balcão. Bebidas baratas que exalavam,
juntas, um abundante cheiro de álcool ordinário, e produziam um
curioso espetáculo multicolorido. Um verdadeiro caleidoscópio. Lua
estremeceu intimamente olhando para todas aquelas garrafas.
Lembrou-se das inúmeras vezes que passara dias e noites inteiras em
bares como aqueles, bebendo até onde podia pagar. Aquele odor e
aquele ambiente mexiam profundamente consigo. Concentrou-se,
procurando afastar o desejo que começava a se aproximar,
conscientizando-se que teria de pedir uma daquelas bebidas, mas não
poderia beber. O dono do bar estava esperando, quando Lua decidiu:
- Dá um teco aí, parceiro.
O homem serviu uma dose e Lua pegou o copo e se dirigiu a uma mesa
localizada em um ponto onde teria completa visão do bar. Sentou-se e
ficou um tempo olhando para o copo à sua frente, perdido em seus
pensamentos, quando foi interrompido:
- A cadeira tá ocupada?
Lua levantou os olhos, sobressaltado. No instante em que ouviu a
pergunta, teve receio de ter sido reconhecido por alguma pessoa que já
tivesse prendido. Mas era apenas Dani que havia chegado. Lua não
demonstrou a surpresa que havia sentido. Tinha há muito aprendido a
não demonstrar suas emoções.
- Tá servido? – Disse para Dani, empurrando o copo em sua direção.
- Eu peço um para mim. – Agradeceu o jovem.
- Eu não posso, Dani....... alcoólatra.
Dani ouviu Lua, assentindo com a cabeça, em sinal de compreensão.
Não comentou. Apenas pegou o copo e deu um gole, fazendo
imediatamente uma careta, porque a bebida era muito ruim. Lua
apontou com o queixo para a bebida e continuou:
- Ia ficar estranho se eu pedisse um suquinho de laranja. – Dani sorriu,
compreendendo.
- Então porque você veio aqui, porra? – perguntou em tom de
brincadeira Dani.
- Pois é, burrice. Devia ter mandado o Rocha. O negão ia gostar: beber
em serviço e sem ser punido.
Os dois policiais ficaram quietos por um instante. Dani reiniciou o
diálogo:
- Ô Lua, sobre aquele lance.....
- Tá tudo bem, garoto – interrompeu Lua, olhando para o outro, quase
ternamente. – Esquece.
Dani concordou com a cabeça, terminando ali o assunto. Lua girou o
olhar pelo bar, casualmente. Por um momento havia esquecido o que
viera fazer ali.
- E aí? – questionou-lhe Dani, se referindo ao que haviam descoberto do
local.
Lua se preparava para responder quando fixou o olhar em algum ponto,
sobre o ombro esquerdo de Dani, que entendeu e ficou calado,
aguardando. O mesmo homem que ele e Rocha haviam filmado estava
entrando novamente no bar. O dono lhe serviu uma bebida. Quando o
homem se virou de costas para os policiais, Lua apontou-lhe com o
olhar:
- Dá uma sacada. – disse a Dani, que no momento se virou
disfarçadamente e observou o homem. Lua lhe explicou:
- Volta e meia esse sujeito aparece por aqui, fica no balcão, não pega
mesa, bate um papo com o dono do boteco, dá um tempo e depois vai
embora.
- Vai ver que é freguês, ué. – brincou Dani. Lua riu.
Dani bebeu mais um pouco do uísque. Olhou de novo para o “sujeito”
que estava ainda no balcão do bar, tranqüilamente, bebendo e
conversando com o dono do boteco. De perto podiam ver mais detalhes
de sua aparência. Tinha cerca de quarenta anos, com uma barriga
saliente de cerveja. Vestia roupas simples e calçava sandálias de feira.
Passados alguns minutos se despediu e deixou o bar. Dani olhou para
Lua, que continuava acompanhando o homem enquanto ele se
distanciava.
CAPITULO 9

Brasília foi idealizada para ser um exemplo de organização urbanística.


Grandes avenidas se cruzam com uma precisão que se traduz nas
linhas retas, sem esquinas, do Plano Piloto. Realmente uma obra-prima
da arquitetura de Lúcio Costa, o idealizador do desenho da capital
federal. O projeto do arquiteto foi um dos muitos apresentados no
concurso que foi instituído para escolher o melhor desenho para
Brasília. Era o governo de Juscelino Kubitscheck.
A história de como Brasília surgiu é ao menos curiosa. O então
candidato à Presidência da República Juscelino estava em fase de
campanha quando visitou a cidade de Jataí, no interior de Goiás. Ao
término de um comício, abriu espaço para responder as perguntas dos
presentes. Foi então inquirido por Antônio Soares Neto, conhecido como
Toniquinho, cidadão daquela cidade, se cumpriria todos os preceitos da
Constituição da República. Juscelino abriu um largo sorriso e
respondeu que sim, com toda certeza. Então o jovem lhe perguntou se
ele transferiria a capital para o interior, como determinava a
Constituição. Naquele momento, sem hesitar, Kubitscheck respondeu
que sim. Depois de eleito, manteve sua palavra e instituiu o concurso
que foi ganho pelo arquiteto Lúcio Costa, que contou com o inestimável
apoio do também arquiteto Oscar Niemeyer, responsável pelo desenho
dos grandes prédios e monumentos de Brasília, em especial os da
Esplanada dos Ministérios.
O Plano Piloto tem a forma de um avião. O eixo monumental compõe o
corpo desse avião e as asas do desenho se dividem em Asa Norte e Asa
Sul, onde estão as quadras formadas por prédios residenciais,
identificados pelas letras do alfabeto. É dividido por setores, de acordo
com a finalidade de cada uma das áreas do bairro, como os setores
hospitalar, comercial, bancário, de clubes, de autarquias e o policial,
que fica no final da Asa Sul. Ali se encontram diversas unidades dos
órgãos de segurança.
O Quartel do Comando-Geral da Polícia Militar se destaca na paisagem
do setor policial. Feito todo em mármore branco, ocupa posição de
destaque, ao lado da Agência Brasileira de Inteligência. Mais atrás estão
a Academia da Polícia Militar, o 1º Batalhão, responsável pelo
policiamento ostensivo na asa sul, e o Batalhão de Operações Especiais,
responsável pelas ações mais sensíveis.
O BOPE, como é conhecido, é formado por diversas companhias: de
operações de choque, utilizada nos motins em presídios e nas
freqüentes manifestações na Esplanada dos Ministérios, quando
eventualmente há a necessidade de se empregar a atividade de controle
de distúrbios civis. Há também, na estrutura do quartel, a companhia
de patrulhamento tático móvel, o temido PATAMO, responsável pelo
patrulhamento em áreas de risco, com quatro ou cinco viaturas que
levam, em seu interior, cerca de vinte homens, não raro acusados de
cometer excessos: um mal necessário para o comandante-geral, que não
gosta da dor de cabeça que provocam as repercussões negativas das
arbitrariedades cometidas, mas por outro lado sente a necessidade de
manter uma tropa especializada para casos emergenciais. Outra
atividade desenvolvida pelo BOpE é a de policiamento com cães, seja
apoiando a tropa de choque, ou ainda na busca de drogas, com cães
farejadores. E aos fundos do quartel, no local mais reservado está a
companhia de operações especiais, treinada para ser a elite da elite da
corporação. Seqüestros, atentados com bombas, roubos a bancos e
situações que necessitam da utilização do sniper são as especialidades
dos homens que trabalham na COE.
Este é o grande complexo da Polícia Militar do Distrito Federal. Ao lado
dele, bem próximo, está a grande área em que funcionam várias
unidades da Polícia Federal, ocupando dezenas de milhares de metros
quadrados. Está ali o COT – comando de operações táticas, que como o
BOpE da PM, atua em casos em que a utilização da tropa normal se
mostra, ou se mostraria, insuficiente para debelar situações de alto
risco. Ao lado do COT se encontra a coordenação de tecnologia da
informação, que é a responsável pelos vários bancos de dados da PF.
Em frente à CTI está a Superintendência Regional da Polícia Federal,
responsável pelas operações da instituição na capital. É um grande
prédio escuro onde funcionam diversas delegacias especializadas. No
interior do prédio, Vital caminhava quando avistou Dani, que o viu e se
aproximou.
- E aí, como é que foi lá? – perguntou o chefe.
- A coisa tá indo....... os dois vêm aqui agora a tarde pra gente
conversar.
- Beleza - Acrescentou Vital - tô indo encontrar um amigo da D.E.A.
agora.
- Quem é?
- O Sam Rhames, ‘cê não conhece. Tá aí de passagem. – explicou Vital. -
Que horas você marcou com eles?
- Daqui a pouco eles devem tá aí.
Vital assentiu e continuou caminhando para seu encontro.
Sam Rhames era um agente do Drugs Enforcement Administration, ou
D.E.A., como é conhecida. A agência é apenas uma das várias que o
governo americano dispõe no combate ao crime. Boa parte das
operações antidrogas da Polícia Federal é viabilizada com os recursos de
um acordo firmado entre o Brasil e os Estados Unidos. Quem
administra esse dinheiro é o D.E.A. Parte dos policiais brasileiros não
tolera a agência americana, que sempre procura interferir na gestão do
combate às drogas no Brasil. Vital conhecera Sam há muitos anos,
durante um curso realizado na cidade de Washington. Os dois tinham
aproximadamente a mesma idade e tempo de polícia. O americano era
um negro de traços fortes e um afiado senso de humor. Não tinha
pudores em tentar arrancar as informações dos policiais brasileiros que
beneficiassem suas investigações, mas sem oferecer grande coisa em
troca.
Vital caminhou mais um pouco e avistou o americano, que conversava
animadamente com outros policiais federais, no saguão próximo ao
elevador da superintendência. Assim que avistou Vital, Sam se virou,
saudando-o, satisfeito, com um sotaque bem carregado:
- Oi, Vital. Quanto tempo! – os dois se abraçaram.
- Pois é, Sam. E aí..... trazendo alguma dica boa pra mim?
Sam fez uma expressão de quem não tinha entendido a pergunta:
- Dica? – perguntou o americano, enquanto começavam a caminhar.
Sam ainda se virou para se despedir do grupo com quem conversava.
- É isso aí: “bizú”, novidade – explicou o policial brasileiro.
- No – respondeu Sam em inglês.
- Pô, então por que eu vou perder meu tempo com você? - Em inglês
disse, brincando, Vital.
O americano respondeu rapidamente, também em inglês:
- Quisera eu ter alguma informação pra você... ouvi dizer que vocês
estão enrolados com o “caso batista”.... andando em círculos....... não
saem do lugar. – disse Sam. Vital riu ao ouvir, respondendo
ironicamente, ainda no idioma do amigo:
- Ouviu errado - falou em tom sério enquanto fitava o outro – e Sam,
você vai me perdoar, mas quem tá enrolado, andando em círculos há
tempos são vocês, que não sabem o que fazer enquanto lá nos Estados
Unidos as pessoas se esfaqueiam por um pouco de crack, negociam
droga por nada e são enviadas para lutar guerras que não são suas. –
Vital disparava as palavras como um desabafo. Sam ouvia, espantado,
Vital continuou – Só pra voltar pra casa drogado e manter a roda do
tráfico girando, enquanto idiotas como nós lutam nessa guerra urbana,
do dia-a-dia, aonde tá todo mundo, inclusive eu, pouco se fudendo pra
porra da Convenção de Genebra.
Os dois continuavam caminhando enquanto conversavam. Sam se
recuperou do que ouvira e contra-atacou:
- E tem que tá mesmo, pouco se fudendo. Paisinho escroto é esse aqui.
Violência já tá fora de controle há muito tempo. Vocês perderam a mão.
Nos últimos vinte anos enfraqueceram seus sistemas de informação,
suas forças armadas, suas polícias.....agora tão querendo correr atrás
do prejuízo.
Os dois pararam, ficando um de frente pro outro. Vital encarou o amigo
e desabafou:
- Seja o que for, Sam, mas o fato é: vocês ainda são o mercado número
um de consumo de droga no mundo, e ficam vindo pra cá pressionar,
encher o saco. Querem fechar a torneira só aqui nessas “selvas do
terceiro mundo”, porra. Se não tem procura não tem oferta, my friend.
- Você tá enganado. Sobre a questão do primeiro lugar, o Brasil já tá
passando a gente. Aqui é onde tá a maior oferta e a maior procura! –
interrompeu Sam.
- Não é o que dizem os relatórios da ONU, Sam. Tu sabe disso. E por
que vocês não fech...
O americano não deixou Vital completar a frase e interrompeu, dizendo,
ainda em inglês:
- E desde quando esses relatórios valem alguma coisa?
Vital olhou para o amigo e riu, com ironia. Continuou de onde tinha
parado. A esta altura já conversavam ininterruptamente em inglês:
- OK, pois então por que vocês não fecham ou pelo menos controlam os
paraísos fiscais lá nas Ilhas Caimãs, por exemplo, onde a grana suja de
todo esse esquema circula livre, com o teu Tio Sam, como sempre,
pegando a cota dele, hã?
- E a minha grana? – brincou ironicamente o americano. – iria pra
onde?..... o Bush tomou conta disso, ou você não ficou sabendo?
- Sei...... como ele e o pai dele tomaram conta do Bin Laden e do
Noriega, né?
Sam desconversou, e disse para provocar Vital:
- Vital, é o seguinte: nós vamos acabar cortando a verba, hein? As
coisas não caminham direito, não vão pra frente – acrescentou
ironizando – a gente não sabe quem de vocês é corrupto...
Vital riu mais uma vez e disse ao outro:
- Eu posso te dizer o mesmo. Eu queria era pegar os caras do DEA que
estão metidos nisso.
Sam assentiu, bem humorado:
- Yeah, yeah. Algumas pessoas realmente dizem que até o DEA está
metido nessa conspiração toda, que a existência dessa “roda do tráfico”
nos interessa, blá, blá, blá. Eu não posso falar pelos outros, mas posso
falar por mim, pelos meus homens: nós acreditamos nesse trabalho que
estamos fazendo, eu sou exatamente como você.
- Sam, - completou Vital – se esse cara não tivesse mandando coca
daqui, e ecstasy e LSD da Europa pra Miami e Porto Rico, você, meu
velho amigo, não estaria me dando o prazer dessa visita. Se não tem o
rabo de vocês na reta, ‘ces não tão nem aí. Que a gente cheire pó aqui
até morrer.
- Não. Aí é que você se engana. – discordou Sam – Nos preocupa essa
aproximação que está havendo, cada vez mais profunda, entre o crime
organizado internacional e o centro do poder aqui, Brasília. Esse é o
maior país da América Latina. Vocês estão começando a ficar pior que a
Colômbia. Vai ser um desastre para o continente!
Vital ouvia o colega, que o abraçou e disse, calorosamente:
- Isso é um trabalho conjunto nosso, uma colaboração, cara. Calma...
- Calma porra nenhuma, Sam. Isso tudo é uma grande hipocrisia.
- Hipocrisia da qual você faz parte, então – acrescentou o americano.
- Tem razão. Mas andando em círculos é o caralho, tá entendendo?
Tamo trabalhando aqui...
Sam interrompeu mais uma vez o colega brasileiro:
- Deixa disso Vital, relaxa. Vamos tomar um cafezinho bem brasileiro.
Tô com saudade disso.
- Vocês tão é de olho na Amazônia, seus putos. – disse ainda o
brasileiro, ironicamente.
Os dois continuaram a caminhar pela Superintendência. Outros
cruzavam por eles cumprimentando Vital, que acenava a cabeça. O
telefone celular de Vital tocou. Ele olhou para a tela e viu que era sua
esposa. Atendeu, enquanto se encaminhavam para a lanchonete do
prédio:
- Oi, meu amor. – disse ao telefone Vital. – E aí, como foi a consulta do
Betinho?..... Que bom, fico feliz que ele tá bem.... Tudo bem, chegando
em casa nós conversamos...... OK, beijo, tchau.
Assim que Vital desligou, ouviu de Sam:
- Ô, meu amigo, viagra ajuda esse teu problema. Tu tá muito
nervosinho. – Vital riu de Sam, que continuou – falando nisso, eu tô a
fim de foder. Tem como me arranjar uma gostosa aí?
- Aqui a gente paga pontualmente o FMI e ainda tem que arranjar
mulher pra gringo? Sei disso não, porra.
Sam sorriu das palavras do amigo. Vital ainda acrescentou:
- Porra, tu só pensa em café e mulher no Brasil, rapá?
- Não - discordou Sam – traficante primeiro, mas café e mulher
também. Além de pó, esses são seus principais produtos de exportação.
- Talvez nessa você tenha razão. – Concordou Vital.
- De novo.
- Vai se fuder, Sam!
O diálogo prosseguia em inglês. Sam argumentava:
- Ah, jogadores de futebol também. Anyway, o que seria da diversão das
pessoas pelo mundo se não fosse pelas suas mulheres, drogas e
jogadores, meu camarada?!
Continuaram andando e chegaram à lanchonete. Sentaram-se e Vital,
apontando para Sam, pediu ao atendente:
- Ô Davi, vê dois cafezinhos aí. – Sam esfregou as mãos e concordou
com o pedido:
- Yeah! E uma caipirinha, tem? – perguntou o americano em tom de
brincadeira.
O atendente balançou a cabeça negativamente, rindo da pergunta de
Sam. Vital se virou para o outro e perguntou, em inglês:
- Tá maluco, Sam?
- Eu adoro álcool, Vital. Meus problemas são com as drogas ilegais.
Contra essas, eu luto de peito aberto, de preferência carregado, se é que
você me entende.
- É, clareia a mente. Faz a gente arriscar mais. – completou o policial
brasileiro, sorrindo.
- Mas e aí, Sam. Quando é que tu volta pra Washington? – O atendente
chegou e serviu os dois cafés.
- Ainda tenho umas coisinhas pra resolver aqui. Vou ficar um
tempinho. Depois....... férias no Havaí. – disse tomando um gole do café
e estalando a língua em seguida. – Eu mereço, Vital, sério. Mas e aí, e o
Béque? Como estão as coisas?
Vital fitou o americano, mas continuou em silêncio. No fundo sabia que
a pergunta não tardaria.
- Top secret? – inquiriu o estrangeiro em tom de gozação.
- É isso aí! - determinou o brasileiro.
- Vocês estão trabalhando bem. – elogiou Sam.
- Eu sei. – concordou Vital.
- Técnicas da CIA. – prosseguiu o americano – nada de dividir
informações.
Vital sorriu. Os dois falaram juntos a frase que fora a máxima do curso
que fizeram anos atrás:
- Só o necessário, quando necessário.
Conversaram mais um pouco a respeito de amenidades, e se
despediram, prometendo reverem-se em breve. Depois do encontro,
Vital retornou à sala de trabalho de sua equipe, que ficava no segundo
andar do prédio escuro. Das janelas da sala o grupo podia acompanhar
o trânsito da EPPM – Estrada Parque Polícia Militar, bem em frente ao
prédio. O nome da via fora dado em função da localização do Quartel do
Comando Geral da PM. Lua, Dani e Rocha estavam sentados à mesa de
reuniões. Sobre a mesa de Vital, no outro extremo da sala havia uma
fotografia do Presidente da República. A porta se abriu e o chefe entrou:
- Gente, desculpe o atraso. Eu tava com um cara da DEA, até agora.
- Ah é, Vital – perguntou Lua – E aí, como foi?
- Querendo saber demais e sem nada pra dizer. - reclamou Vital – Esses
americanos são uns escrotos, vem aqui pra cagar regra.
- Manda quem pode, obedece quem tem juízo, né, chefe? – brincou
Rocha, que estava sentado displicentemente, enquanto fazia a
manutenção de sua pistola sobre a mesa.
Depois de um breve silêncio, Vital voltou-se asperamente para Rocha,
dizendo:
- Tem razão. Então por que você não cala a boca? - Lua e Dani riram do
colega.
- Calei – respondeu Rocha, disfarçando o riso.
- Bom – chamou a atenção de todos Vital – Vamos cuidar da nossa vida.
E aí, o que vocês têm pra mim? - perguntou se dirigindo a Lua e Rocha.
CAPITULO 10

Não há quase nada que chame mais a atenção das pessoas do que um
comboio policial. Ninguém permanece indiferente à passagem de uma
grande quantidade de viaturas, com seus rotolights ligados e sirenes
estridentes chamando a atenção e pedindo passagem. E é exatamente
por isso que os governos investem tanto nesses veículos: porque dão
votos.
Há uma reclamação constante dos policiais em relação à política
populista dos governos em querer mostrar os gastos feitos em
segurança pública com a compra de novas viaturas, não investindo da
mesma forma em armas, em equipamentos de segurança ou em
equipamentos não letais, que facilitariam muito o trabalho dos
profissionais de segurança. Mas ano após ano, os governantes insistem
em aumentar o número de carros, sem ter, muitas vezes, quem os
dirija. As viaturas da Polícia Civil do DF provocaram polêmicas, há
poucos anos, quando se discutiu o porquê da necessidade de serem
ostensivas, se seriam utilizadas para investigações. Depois de muita
briga com a PM de Brasília, nada mudou e grande parte das viaturas da
Civil são ostensivas, oferecendo a devida publicidade ao governo.
Naquela noite, um grande comboio de viaturas policiais cruzava a
cidade, em direção à Ceilândia. À frente ia um camburão da Polícia
Federal, que era seguido de perto por várias outras da própria PF e do
BOpE da PM.
Uma das regras da ″doutrina operacional″ dos comboios é a de que
nenhum outro carro pode permanecer entre as viaturas. Por isso elas
andam tão juntas. Se há necessidade posicionam, ao final da fila,
tantas viaturas quantas forem necessárias para bloquear todas as
faixas da via, não permitindo que nenhum carro ultrapasse o comboio.
Os diversos carros de polícia se dirigiam em alta velocidade ao bar que
havia sido investigado por Lua e Rocha. No carro da Federal estavam,
além do motorista, Rocha, Vital e Dani, que estava com uma máscara
na cabeça, conhecida por bala-clava, ainda não totalmente colocada.
Fazia-se um profundo silêncio no carro, de onde só se podia ouvir o
barulho dos motores das viaturas e os rádios de comunicação entre as
equipes. Era o momento em que se concentravam para entrar em ação.
Em um carro parado em local próximo ao bar, Lua aguardava, com seu
intercomunicador na mão, a chegada do grupo. As viaturas, logo que se
aproximaram da Ceilândia, desligaram os rotolights e sirenes, passando
os policiais a agir com cautela e discrição. Não havia sido dada qualquer
ordem a esse respeito, mas todos agiram automaticamente,
acostumados com o procedimento.
Lua pôde observar as viaturas passando ao seu lado, silenciosamente, e
se dirigindo ao bar, que estava com um movimento fraco, com poucos
freqüentadores naquele momento. Em seu interior estava o homem que
sempre se fazia presente no estabelecimento. Servia-se de uma bebida.
Ninguém imaginava que a polícia se aproximava. Os outros poucos
freqüentadores assistiam a um ruidoso filme em uma televisão velha e
engordurada sobre o balcão.
De repente, os vários faróis das viaturas, em um só momento,
iluminaram todo o ambiente, enchendo-o de uma claridade ofuscante,
que assustou os fregueses do bar. O assíduo ″freguês″ interrompeu o
movimento da garrafa enquanto se servia, observando a quantidade de
veículos que estacionavam estrategicamente e o grande número de
policiais que desciam simultaneamente dos carros.
Dani terminou de colocar sua máscara, permanecendo somente com os
olhos, boca e nariz descobertos, através dos orifícios da bala-clava.
Tanto ele quanto Vital e Rocha vestiam uniformes pretos de combate da
Polícia Federal. Os distintivos brilhavam no cinto de Vital e Dani, assim
como as armas que carregavam consigo. Alguns policiais
automaticamente se dirigiram ao bar. Outros permaneceram
guarnecendo o ″perímetro″ - expressão que designa a área em volta do
alvo – para oferecer proteção aos que entravam e às viaturas.
Vital e seu grupo entraram no bar, tranqüilos em função da segurança
que os apoiava. O chefe ordenou:
- Atenção, pessoal, todo mundo na parede. Procedimento padrão.
Identidade na mesa e mão na parede. – As pessoa, vagarosamente,
cumpriam a ordem de Vital, enquanto Rocha e Dani começavam a
percorrer toda a extensão do bar.
O dono do bar ameaçou reclamar da ação, quando Vital o advertiu,
apontando o dedo na direção de seu rosto:
- O senhor cala a boca!
- Mas não....... vocês não têm...... cadê o ″mandato″ ? – inquiriu,
trêmulo e nervoso o homem.
Vital tirou um pedaço de papel dobrado do bolso de sua jaqueta, e sem
olhar para o dono do bar, colocou-o no balcão, desdobrando o mandado
de busca e apreensão, expedido pouco mais de uma hora antes. O dono
do bar pegou o papel e o leu, resignado.
Vários policiais já começavam a entrar na área atrás do balcão,
vasculhando cada prateleira e gaveta, com eles ia Rocha. Dani analisava
a documentação do bar, enquanto os demais policiais faziam a revista
pessoal, o famoso ″baculejo″ nos freqüentadores do bar. Dani podia
observar que a postura dos policiais militares era firme, chegando a ser
grosseira com as pessoas. Sem dúvida, impunham-se pelo medo.
Dani pediu ao homem que estava se servindo no balcão que
apresentasse seus documentos pessoais. ″Nome: Ciro Ramos de
Almeida″. Vital de longe observava cada movimento dos policiais.
- OK. – Dani devolveu os documentos de Ciro. – Tá liberado, pode ir
embora. O homem balbuciou um agradecimento e se retirou.
Rocha apareceu, vindo do interior do bar, acompanhado dos outros
policiais. Segurava dois pacotes de cocaína e outro com vários potinhos
de merla, subproduto da cocaína. Visivelmente satisfeito com o achado,
Rocha sacaneava:
- Hoje tem festa no barraco. Tá todo mundo convidado. Merla pros
soldados e cocaína pros federais. – Dani não se conteve e riu. Vital
olhou para o dono do bar, que tremia descontroladamente. Um policial
do BOpE já apontava uma arma para sua cabeça.
CAPITULO 11

Em um dos hangares do Aeroporto Internacional Juscelino


Kubitscheck, junto a um avião de prefixo americano, Sam Rhames
aguardava por algo, ou alguém, na companhia de alguns de seus
homens, alguns brancos, poucos negros e um asiático, que se
distribuíam pelo hangar. O jatinho americano era um luxuoso Citation,
que comportava nove pessoas mais o piloto e o co-piloto. De dentro dele
eram retirados, por brasileiros, vários pequenos tonéis de metal na cor
prateada, que eram encaminhados para uma caminhonete vermelha,
que tinha os vidros completamente enegrecidos por uma película
escura. Havia ainda uma caminhonete blazer preta parada próxima
dali.
Uma das portas do hangar se abriu, dando passagem a Carlos "Béque"
Batista, que vestia um sobretudo preto, que era sacudido pelo forte
vento do aeroporto. Usava uma corrente grossa de ouro no pescoço e
um cavanhaque preto bem aparado. Carregava uma pistola Magnum
357 na cintura. Ao seu lado, o acompanhava um capanga, carregando
duas maletas pretas, estilo 007. Atrás dos dois seguia uma dupla
armada com metralhadoras. Béque parou na frente de Sam e seus
homens. Os dois se encararam por um instante, satisfeitos.
O capanga de Béque deixou as duas malas próximas ao chefe e foi até
os tonéis, verificar seu conteúdo. Béque se abaixou, pegou as duas
malas e, entregando-as a Sam, questionou-lhe, em um inglês fluente:
- E aí, Sam..... Como tão as coisas:
- Beleza! – falou Sam, enquanto pegava as malas e entregava a um de
seus comandados – Eu não preciso conferir o dinheiro, né? – Béque riu
da pergunta de Sam, afirmando:
- É bom saber que posso contar com você, Sam.
- Sempre que precisar, Béque. Isso é muito fácil pra mim, você sabe. –
disse Sam apontando para os tonéis, que tinham em seu conteúdo as
substâncias necessárias para a produção de diversas drogas, em
especial a cocaína. Havia caveiras pintadas nas latas, assim como os
nomes dos conteúdos escritos em inglês.
A Polícia Federal é a responsável pelo controle do comércio e fabricação
de produtos químicos no Brasil. Tal controle passou a ser feito depois
que as autoridades chegaram à conclusão de que poderiam enfrentar
com mais eficiência o tráfico de drogas atacando também os
laboratórios, que necessitam dos insumos químicos para prepararem as
drogas.
- É.... – completou Béque, pensativo – Só que esses químicos estão
caros demais. Daqui a pouco não compensa. Tá quase o preço da
cocaína!
- Ah, mas esse aí tem qualidade – advertiu Sam – E o preço é pelo risco
também. Se meus chefes me pegam, tô fudido. Ó, falando nisso, os
Federais tão na tua cola, hein? Cuidado. Não tem muito o que eu possa
fazer por você não.
- Não esquenta, Sam, estou acostumado. – disse calmamente Béque.
Sam virou-se e fez um movimento de cabeça a um de seus homens, que
lhe entregou um envelope pardo, se afastando em seguida. O americano
estendeu o envelope a Béque:
- Isso aqui é o máximo de informação que eu pude arrumar sobre o teu
caso. Se cuida. A Polícia Federal juntou uns caras muito bons, como
você vai vê aí. Um grupo de caras corretos, se é que eu posso dizer isso.
Gente difícil de corromper.
- Eu vou me lembrar disso – afirmou Béque – mas eu tenho dúvidas
sobre esse lance deles serem “corretos”. Isso é raro na nossa polícia.
Não é como na tua.
- Eu não gostaria que você fosse pego. É bom fazer negócio contigo –
disse Sam.
- Obrigado – assentiu Béque – Aproveita as férias, Sam.
- Eu mereço, realmente. Eu mereço – riu sarcasticamente o agente do
DEA – mas antes de ir embora, eu ainda quero foder algumas
mundialmente famosas bucetinhas brasileiras.
Todos riram de Sam, que ri de si mesmo, completando:
- É. Eu não fodi ninguém no Brasil ainda. Isso é ridículo.
Um dos capangas de Béque informou que estava tudo pronto para a
partida do traficante, enquanto fechava o compartimento de cargas da
caminhonete, acompanhado por outros dois homens.
- Se cuida – advertiu Sam.
- Você também - responde Béque, ainda em inglês.
Os dois se despediram no centro do hangar. Sam e seus homens
seguiram para o avião, enquanto Béque e os seus saíram pela mesma
porta que entraram. O traficante ordenou:
- Pra casa do “dotô”.
A casa referida por Béque também ficava no Lago Sul, a algumas
quadras de distância do palco dos assassinatos ocorridos havia pouco
tempo. Naquele horário os raios de sol preenchiam todo o terreno onde
as caminhonetes estacionavam. Na casa havia uma piscina, além de
quadra de tênis e campo de futebol, tudo muito bem cuidado.
Destacava-se, também, nos fundos da casa, uma grande churrasqueira
usada nas festas promovidas para a fina-flor da sociedade brasiliense.
Vários empregados circulavam pela grande área da casa, uns cuidando
dos jardins, outros da manutenção de toda a grande área edificada,
além do pessoal de segurança.
Isolando o terreno havia um grande e alto muro, encimado por duas
guaritas localizadas nas extremidades do terreno, voltadas para fora. O
lugar era, de fato, um bunker.
Passava das quatro horas quando Béque entrou na sala da mansão.
Nas paredes do lugar poderiam ser vistos vários diplomas emoldurados:
“Eliézer Gallo – Doutor Honoris Causa – UnB”
“Cidadão honorário de Brasília – Câmara Legislativa”
Gallo estava de costas para a entrada da sala quando Béque entrou.
Apreciava a paisagem do fim de tarde. Sem se virar, perguntou:
- E o gringo?
- Preocupado com a gente – respondeu Béque, enquanto se servia de
uísque. Encheu o copo, pegou o envelope que havia sido entregue por
Sam e jogou-o sobre a mesa. Gallo estendeu a mão e o abriu.
Dois homens estavam armados e posicionados no piso superior da casa,
atentos a qualquer movimento. Carregavam, cada um, uma garrafa de
água mineral. Um deles era Ciro, o visitante do bar da Ceilândia.
- O boteco é que foi foda – reclamou Béque – nosso principal ponto lá da
Ceilândia.
- É – lamentou Gallo – O prejuízo foi grande.
- E o seu Manoel? – argüiu Béque.
- Não te preocupa. É fiel. O advogado que coloquei é dos melhores. E a
família dele tá assistida. Fica uns três anos e sai.
Os dois permaneceram em silêncio, enquanto o vento vindo do lago
soprava por uma das janelas entreabertas. Ao mesmo tempo o sol
entrava pelos vitrais da sala, provocando um bonito show de sombras
bruxuleantes no recinto.
- É...... o cerco está se fechando – concluiu Eliézer.
Béque foi até uma das janelas e acendeu um cigarro de maconha.
Queria relaxar, descontrair. Entre uma tragada e outra ouviu Gallo:
- Pior é que você não veio pra cá porque quis.
- Não – confirmou Béque – tavam precisando de mim aqui, vim.
Gallo pegou novamente o envelope e começou a reler a documentação.
Perguntou a Béque:
- E o resto?
Béque faz uma cara feia. Gallo compreendeu e falou:
- Ciro me falou – disse olhando para Ciro, que assentiu com a cabeça –
dívidas estão sendo cobradas, recados sendo dados – completou Gallo,
se referindo à chacina.
- Pelo menos isso – murmurou Béque.
- Interessante isso aqui, hein? – afirmou Gallo, referindo-se ao envelope.
- Muito – concordou o traficante.
O capanga que fazia segurança interrompeu a conversa, nervoso:
- Béque, tem uns cana lá fora. Tão cercando a casa.
Gallo levantou-se, preocupado. Ciro, tenso, também olhou pela janela
da casa.
Do lado de fora, vários camburões da Polícia Federal, incluindo do COT,
chegavam e estacionavam na rua em frente à casa. Automaticamente se
posicionavam ao redor dela, caminhando em grupos e utilizando as
técnicas para aquele tipo de cerco.
Dani e alguns homens do COT foram para o portão de entrada,
próximos ao interfone. Vital ficara no meio da rua, observando,
preocupado, os preparativos da ação. Rocha se posicionara ao seu lado.
Dani olhou para Vital, esperando que ele autorizasse o toque na
campainha. Após conferir atentamente o trabalho das equipes, Vital
olhou para Dani, fazendo-lhe sinal para que apertasse o botão do
interfone.
Dani ergueu a mão em direção ao botão, quando o portão ao seu lado
foi arrancado por um carro que saía da garagem a toda velocidade.
Vital assustou-se com o barulho provocado pela derrubada do portão.
Rocha instintivamente engatilhou sua metralhadora e foi em direção ao
carro. Os motoristas das viaturas tentavam bloquear a saída da rua,
para impedirem a fuga do veículo.
Antes que pudesse se refazer do susto, Dani ouviu outro carro se
dirigindo à saída da garagem. Encostou-se junto à parede e viu um
segundo veículo saindo da casa.
Rocha, de maneira ousada, colocou-se em frente ao primeiro carro,
atirando desesperadamente contra o motor e o pára-brisa, em uma
tentativa de fazê-lo parar. Outros policiais, incluindo Vital, também
disparavam contra o veículo, que seguia acelerando em direção ao
grupo. Os ocupantes dos carros não respondiam ao fogo, preocupados
somente em fugir. No último momento antes de ser atropelado pelo
veículo Rocha pulou para a sua direita, tentando desviar do carro.
Atrasou-se alguns milésimos de segundo e foi atingido, ficando no chão,
ferido. A caminhonete, após atropelar o Policial Militar, subiu na
calçada e conseguiu furar o bloqueio. A blindagem de seus vidros e
lataria conseguiu resistir bem aos disparos dos policiais.
Lua, que já havia se posicionado dentro de um camburão, gritou para
que o motorista desse meia-volta:
- Vâmo lá, Mathias!
- Bóra. – Respondeu o motorista, nervoso. Colocou a chave na ignição,
mas o carro demorava para dar a partida. Lua estava quase fora de
controle:
- Porra, Mathias. Vamo, caralho!
O motor do camburão enfim começou a funcionar e os dois saíram em
perseguição ao primeiro carro, que já seguia com uma boa vantagem em
relação a eles. Outra viatura deu um cavalo de pau e seguiu logo atrás
de Lua.
O segundo carro também ia conseguindo passagem entre os policiais.
Mas ao tentar passar pela última viatura, chocou-se contra ela, sendo
arremessado contra a grama, fora da pista. Os policiais então
começaram a fuzilar o carro que foi detido na fuga. Concentraram todo
o poder de fogo nos vidros do carro, que se estilhaçaram, apesar de
blindados. Os dois homens na frente do carro foram mortos em poucos
segundos, e o sangue começou a escorrer pelos bancos. Gallo, que
estava no banco de trás, se abaixou para evitar os tiros. Sentia, porém,
que o mais seguro era tentar deixar o carro. Em sua boca começava a
sentir um gosto forte de sangue. Não sabia se havia sido ferido ou se era
pelo pânico que tomava conta de si. Abriu a porta para sair do carro
quando percebeu que o homem que estava ao seu lado no banco
traseiro caiu sobre ele, morto.
Esgueirou-se para fora do carro em desespero. Começou a gritar para
que parassem de atirar. Seus óculos caíram no asfalto, e segundos
depois ele próprio se jogou sobre uma enorme quantidade de vidros
quebrados, misturados ao sangue dos ocupantes do veículo.
Dani rapidamente se deslocou para junto de Vital, que também atirava
contra o carro. Antes porém, virou-se para os policiais do COT que
ainda estavam junto à entrada da porta:
- Tomem conta dessa porra aí!
Imediatamente os policiais do COT se posicionaram em coluna e
iniciaram a entrada na residência.
Rocha continuava imóvel, deitado sobre o asfalto.
Vital, percebendo que a situação do carro já estava controlada, pegou o
rádio:
- E aí, Lua, como é que tá aí? Esse aqui já era.
- Tá foda, Vital, o cara abriu muito.
Vital fez uma careta, lamentando a fuga. Foi então ao local onde Rocha
estava caído. O policial já estava consciente, mas fazia uma cara de dor,
colocando a mão sobre a perna esquerda. Dani conversava com Rocha.
Alguns minutos se passaram até que Lua retornasse. O Policial Civil
desceu da viatura e foi ao encontro do chefe, que já o aguardava:
- Porra, hein, Lua, se tivesse com a porra do helicóptero.
- Tá falando com o cara errado, patrão. O meu trabalho eu fiz. Reclama
lá com os teus chefes.
- Essa porra dessa Federal precisa de mais apoio aéreo, caralho!
Enquanto isso, os outros policiais faziam uma revista minuciosa no
interior da casa. O terreno aparentemente estava vazio, com exceção de
alguns poucos empregados que surgiam, assustados, com as mãos para
cima, se rendendo. Os policiais gritavam:
- Abaixa, abaixa. Todo mundo no chão!
- Não atira, não atira! A gente só trabáia aqui! – Pedia nervosamente um
dos empregados da casa.
Outros policiais checavam, com cautela, os carros que ainda ficaram
parados no quintal da casa. Enquanto revistavam cada veículo podiam
ouvir os latidos dos cães farejadores de drogas da Polícia Federal, que
eram levados para o interior da casa pelos policiais cinotécnicos. Outros
eram levados para os fundos da propriedade, onde eram soltos. Uma
ação como aquelas dificilmente teria sucesso sem a utilização dos cães
treinados para farejar drogas.
A utilização policial de cães no Brasil ainda é muito restrita e pequena,
se comparada a dos países desenvolvidos, ficando limitada, geralmente,
às operações da Polícia Federal, que possui um Canil Central em
Brasília, onde os animais são treinados e posteriormente enviados para
todo o país. Algumas polícias estaduais também possuem, em pequeno
número, cães farejadores.
Nos Estados Unidos, Austrália e Europa, por exemplo, os cães
farejadores de drogas são amplamente utilizados por todos os
Departamentos Policiais, não sendo concebido o combate ao tráfico sem
a utilização deles.
É impressionante a capacidade olfativa do cão. Enquanto o homem
possui cerca de cinco milhões de células olfativas, o cachorro tem
duzentos e vinte milhões, mas ao contrário do que muita gente pensa, o
cão policial nunca entra em contato direto com a droga. Geralmente as
substâncias permanecem lacradas no interior de pequenos pedaços de
tubos PVC, de onde o cão a percebe somente pelo cheiro exalado
indiretamente. O cão é estimulado através de presentes, toda a vez que
consegue localizar a droga.
Depois de poucos minutos, toda a propriedade estava dominada. A rua
já havia retornado ao silêncio rotineiro. Ouvia-se somente o vento
contra as copas das árvores e as sirenes das ambulâncias que
chegavam para transportar os feridos.
Gallo continuava caído ao lado do carro atingido pelos tiros. O
advogado, com os olhos semicerrados, procurou se localizar. Olhou para
um dos vidros do carro e leu JESUS em um adesivo. Tentou se mexer
mas não conseguiu. Seu corpo estava extremamente dolorido.
Após verificar a situação no interior da casa, Vital retornou à rua.
Olhou em volta e somente aí percebeu o estado do carro que havia sido
baleado pelos policiais. Todos os vidros do carro ficaram reduzidos a
cacos espalhados pelo chão, misturados ao sangue dos ocupantes.
Policiais já arrastavam os corpos para fora do veículo, conferindo os
sinais vitais.
Dani continuava a conversar com Rocha, preocupado com o colega.
- Tô ficando velho, moleque. – disse Rocha, visivelmente abalado, sem
encarar Dani. – Cai fora dessa profissão. Isso não é trabalho de gente,
não. – completou, olhando nos olhos do jovem, que estremeceu.
Vital ia se dirigindo novamente ao interior da casa, quando foi
chamado:
- Chefe!
- Fala, Vaz. – Respondeu Vital, voltando-se ao Agente Federal.
- Tem um vivo aqui. "Adêvogado".
Vital riu, relaxando pela primeira vez. Chegou mais perto do grupo de
policiais, alguns apontavam suas armas para Eliézer Gallo. Dani vinha
logo atrás.
- Quem diria, hein, doutor? – disse Vaz a Gallo – Hospital nele, chefe?
- Não leva esse vagabundo pro hospital não. Vagabundo no hospital é só
mais dor de cabeça. – desabafou Dani, falando para que Gallo ouvisse.
Vital riu da situação.
- Quem te viu e quem te vê, garoto. Tá aprendendo, hein?
- Tô. – Respondeu Dani, de cabeça baixa. Vital virou-se para Vaz:
- Leva o cara. Olho nele!
Vaz olhou para Vital, assentindo com a cabeça.
A equipe de paramédicos já chegava ao local. Começaram a tratar de
Gallo ainda no local, observados por Vaz e outros policiais, que faziam a
segurança.
Vital então se dirigiu ao interior da casa, acompanhado de Dani. Voltou-
se para o colega, preocupado:
- Como é que tá o Rocha?
- Esquenta não.
Vital então deixou Dani do lado de fora do terreno, entrando para
conferir as buscas na casa. Cruzou com o chefe da tropa do COT, que
foi em sua direção:
- Chefe, checamos toda a casa, por dentro e por fora, terreno, tudo.
Nada de Béque Batista. Só os pobres coitados dos empregados mesmo.
Nem seguranças encontramos.
Vital assentiu, desanimado. Foi até a cozinha da casa, abriu a geladeira
e tomou um gole de água na própria garrafa. Depois se encaminhou
para sua viatura, seguindo para o hospital para onde estava sendo
levado Eliézer Gallo.
CAPÍTULO 12

Eliézer Gallo foi transportado para um dos hospitais do setor hospitalar


sul de Brasília. Um prédio de muitos andares, abrigava quase uma
centena de pacientes internados naquele dia. Possuía diversas entradas
e saídas, para a emergência, ambulatório e um grande número de
clínicas e laboratórios instalados na edificação. Gallo foi levado ao 9º
andar, depois que foram tratados seus ferimentos e escoriações na
emergência do hospital. Estava ainda meio tonto, mas permanecia
consciente.
Ao seu lado, sentado em uma cadeira branca de espaldar baixo, postou-
se o agente Vaz, responsável pela guarda do preso. Sobre suas pernas
repousava uma metralhadora. Lia casualmente uma revista semanal de
notícias. Do lado de fora do quarto havia dois policiais guardando a
entrada. Os dois conversavam animadamente sobre o jogo de futebol da
véspera. Nos corredores do andar a movimentação era normal: médicos
e enfermeiros iam e vinham transportando os doentes. Vital caminhava
por um dos corredores. Dani chegou e foi até ele:
- Levantei a ficha do cara. – disse entregando a Vital uma folha
impressa.
- Presidente de uma organização não governamental? – ironizou Vital. –
Puta que pariu, era só o que faltava. – completou, devolvendo o
documento ao outro policial.
- Alguma novidade do carro que escapou? – perguntou a Dani.
- Que nada. Sumiu mêrmo.
- A gente tem é que tirar esse advogado daqui o mais rápido possí... –
comentou Vital, tenso, sendo interrompido por Dani:
- É. O Lua já tá tentando resolver isso.
Vital assentiu com a cabeça, se despedindo com um gesto de cabeça.
Dani ficou ali, próximo à entrada do quarto.
Naquele mesmo instante, Lua conversava com a médica-chefe do
plantão do hospital, em seu consultório. A sala era toda branca, com
duas grandes janelas. A limpeza do local contrastava com o estado de
Lua, que estava completamente sujo e suado, vestindo um uniforme
preto que se destacava no meio da brancura da sala e dos móveis.
Procurava convencer a médica a liberar o preso:
- A senhora tem que liberar o cara, doutora.
- Ele não está em condições. Tem que ficar pelo menos 24 horas em
observação. Depois disso, é todo de vocês.
- O cara é traficante. Vão tentar tirar ele daqui. – insistiu o policial.
- Lá fora ele é traficante, mas aqui dentro é meu paciente.
- A senhora sabe tanto quanto eu que bandido em hospital é convite pra
resgate, doutora. Não vai ter como garantir ninguém aqui dentro.
- E por acaso vocês da polícia conseguem garantir quem está lá fora. –
Encerrou o assunto a médica com um meio sorriso na boca. Diante da
negativa ninguém podia fazer nada, pois no hospital ela era a maior
autoridade.
Lua ficou parado na sala, sem graça, enquanto a médica deixava o
local. Vital entrou naquele instante na sala, passando pela médica, para
quem olhou de canto de olho. Olhou para Lua, com ar de interrogação.
- Nada feito. – Disse-lhe o policial civil. – A vaca disse que não libera.
- Ela tá fazendo o trabalho dela. – contemporizou Vital. – Melhor a gente
fazer o nosso. – Completou, pensando no que ia fazer. – Aciona o
Secretário. Liga pro BOpE, pra nossa Superintendência, pra Civil, sei lá.
Reforça o que der na segurança. – Lua balançou a cabeça, concordando
com o chefe.
- Quem é que tá com o "Doutor Gallo"?
- O Vaz, né. Disse que não desgruda dele, ordens suas.
- Ótimo. – concordou Vital, se dirigindo a uma das janelas. Lá fora, o
mundo alheio aos problemas internos do hospital continuava sua rotina
normal. Carros andavam nas ruas, pessoas esperavam o ônibus na
parada da via W3 sul. Voltou-se para Lua, alertando:
- Esse cara é importante vivo.
Lua coçou a cabeça, acrescentando:
- É. Vivo, mas com a gente.
- É. – disse Vital.
Lua ia deixando a sala quando ouviu do policial federal:
- Em último caso, mata ele.
Lua parou junto à porta do consultório, respirou fundo e continuou.
Vital se voltou novamente para a janela. Estava abatido e tenso. Sabia
que Béque Batista não iria lhe dar de graça um arquivo vivo como
aqueles. Não via a hora de tirar Gallo do hospital, para poder interrogá-
lo. Nunca antes estivera tão perto de prender Béque, mas sabia que a
situação no hospital era delicada. Todo cuidado era pouco.
Lua ia caminhando pelo corredor, quando se encontrou com Dani
- E aí?
- Colocaram o Rocha lá em cima, no 10º andar. Daqui a pouco vão
sedar ele. O negão vai dormir até amanhã. – informou Dani.
Lua assentiu com a cabeça, alertando Dani:
- Fica esperto, mêrmão. – Disse, enquanto seguia em frente.
Rocha, em seu quarto, olhava para o teto, pensativo. Fitava o vazio
escuro do quarto, relembrando o seu dia. Dormiu revivendo a agonia
dos momentos em que estava imobilizado no asfalto. Podia ainda sentir
o calor do sol em seu rosto se confundindo com o asfalto que queimava
suas costas. Não sabia porque estava vivo, e nem tinha certeza se
gostava do fato de ter escapado daquela.
Lua entrou no quarto onde estava Gallo, deitado em seu leito. Não havia
janelas no cômodo, o que de certa forma tranqüilizou o policial. Passou
pela porta, olhou ao redor, procurando alguma alternativa de fuga.
Virou-se para Vaz e disse:
- Vaz, daqui pra frente olho vivo.
Vaz bateu com suas mãos na metralhadora e nas duas pistolas que
carregava na cintura:
- OK, Lua. Tá comigo, tá com Deus.
- Nós vamo tá lá fora a noite inteira, de guarda. Mas se você perceber
que vão conseguir chegar perto desse cara, mete uma bala na cabeça
dele. – Ordenou Lua, falando em tom normal, sem se preocupar que o
advogado ouvisse o que dizia. Gallo apertou os olhos, suando frio. Tudo
que queria era que aquilo tudo acabasse o mais rápido possível. Lua
saiu do quarto, acrescentando a Vaz:
- E qualquer coisa, avisa a gente pelo rádio.
Vaz concordou com a cabeça e continuou a ler sua revista. Lua saiu do
quarto, passando pelo leito de Gallo, que ficava ali, à mercê da sorte.
CAPÍTULO 13

Os funcionários de Gallo espantaram-se com a grande quantidade de


policiais vestidos de preto que entrava nas dependências da ONG. O
expediente já estava terminando e alguns empregados já se preparava
para ir embora. Uma das policiais jogou um papel impresso sobre a
mesa da secretária, que pegou atônita o mandado de busca e
apreensão. Olhou para uma outra funcionária que passava por ali, sem
saber o que fazer. Começava a crescer o número de rostos curiosos
através dos vidros das divisórias das salas.
Parte dos policiais entrou no escritório de Gallo. Participava da busca o
COT da Polícia Federal. Alguns homens usavam máscaras. A busca era
comandada pela policial que entregara o mandado à secretária. Ela
observava a movimentação no interior das salas, onde os policiais se
espalhavam procurando evidências da ligação de Gallo com o tráfico de
drogas.
Um dos policiais que entrou por último na sala do advogado estava
vestido à paisana. Era um perito em computadores da Polícia Federal.
Caminhava lentamente entre os policiais armados, levando sob um dos
braços um notebook preto. Perguntou para outro policial sem uniforme:
- Onde é que tá o computador?
O outro apontou uma das mesas onde estava o computador de Gallo. O
rapaz abriu seu notebook sobre a mesa, conectando uma das saídas
USB da outra máquina com a entrada da sua. Tirou do bolso três
disquetes e um CD-ROM. O outro agente lhe perguntou:
- Vai demorar?
Antes que pudesse responder, já surgiram várias imagens nas telas dos
dois computadores interconectados. O policial, concentrado nos
computadores, respondeu ao outro:
- Péra um pouco que o cara deletou uma porrada de coisa aqui. – Disse
enquanto começava a digitar freneticamente. Retirava e inseria os
disquetes e o CD em ambos os computadores, enquanto seu parceiro e
a agente-chefe aguardavam. Fez-se um quase silêncio na sala. Todos
esperavam que o policial terminasse seu trabalho com o computador. O
jovem parou de digitar, olhando para a chefe, chamando-lhe a atenção
para a tela do computador de Gallo.
A comandante sorriu, discreta. Havia conseguido o que foram procurar.
CAPÍTULO 14

Vaz continuava sua guarda no quarto de Gallo quando a porta se abriu.


Ele imediatamente se levantou com a mão segurando a coronha da
metralhadora. Entraram dois enfermeiros com o uniforme do hospital.
Vaz olhou desconfiado para os dois e se aproximou, ficando entre eles e
a cama de Gallo. Do lado de fora, os dois agentes que estavam de
guarda observavam tudo.
- Tem que levar ele pro raio X – Disse um dos enfermeiros.
- De jeito nenhum. – respondeu Vaz, apertando sua mão contra a arma.
- A doutora tá esperando. – Falou o outro enfermeiro, mostrando a
autorização para a realização do exame.
Vaz pegou o papel, lendo-o minuciosamente. Devolveu para o
enfermeiro, ainda desconfiado. Sem saber o que fazer, advertiu:
- Eu vou junto.
- O senhor é quem sabe. – respondeu, casualmente, um enfermeiro.
Vaz se afastou um pouco, deixando os enfermeiros moverem Gallo para
a maca. O advogado fez uma cara de dor enquanto o removiam. Os
enfermeiros o retiraram do quarto, sendo acompanhados de perto pelo
policial, que acalmou os dois policiais da porta:
- Tá "tranquis". - Os policiais assentiram.
Os enfermeiros conduziram Gallo até uma sala ampla, sempre seguidos
por Vaz. Quando entraram a médica-chefe estava os esperando. Vaz
sentiu que havia um estranho silêncio no ambiente. Gallo também
percebeu que havia alguma coisa no ar. Quase entrou em pânico.
- Não tô vendo nenhum raio X aqui. – Disse Vaz, olhando ao redor. –
Que porra é essa?
A médica, nervosamente, fez sinal para que os enfermeiros levassem a
maca adiante:
- O raio X é no outro anexo. – Falou se dirigindo ao policial.
Quando a maca se moveu, imediatamente Vaz a prendeu com a mão
esquerda, forçando-a a parar. Gallo olhou para ele, quase em
desespero. Lembrou-se da recomendação que Lua fizera. Vaz segurou a
maca por um instante e depois a liberou, dizendo para Gallo:
- A gente se vê por aí.
Gallo, sem entender absolutamente nada do que estava ocorrendo, foi
levado rapidamente em direção a uma das portas de saída. Ciro então
entrou na sala, vestido de médico, ainda a tempo de ver a maca sendo
levada dali. Gallo olhou para ele, entendendo o que acontecia. Ciro
seguiu em direção a Vaz, passando pela médica que a tudo observava,
incrédula.
- E aí, Vaz.
Vaz assentiu com os olhos, para em seguida desculpar-se, olhando para
baixo:
- Desculpa, não deu pra avisar antes do lance lá na casa, não deu
tempo. Nessa operação as informações são tudo compartimentada,
chega tudo em cima da hora.
- Agora tá quite, Vaz, esquenta não. – Disse Ciro, pegando sua arma e
dando uma coronhada na cara de Vaz, nocauteando-o.
A médica se assustou com o golpe, dando um grito. Ciro se virou para
ela, cutucando seu peito com o silenciador do cano de sua pistola:
- A senhora fez a coisa certa. – Disse enquanto colocava uma máscara
cirúrgica e saía em direção à maca onde estava Gallo e os "enfermeiros".
Lua ainda caminhava pelos corredores do hospital, fazendo uma ronda,
atento ao que estava ocorrendo ali. De repente viu, de relance, a maca
com Gallo passar por outro corredor em direção a uma das portas, a
alguns metros. Continuou andando sem tirar os olhos da maca. Virou-
se para a direção do grupo que transportava Gallo:
- Ô, vocês aí! – falou em tom alto para que escutassem.
Ciro ouviu o chamado de Lua, mas fingiu não escutar, assim como os
"enfermeiros", que continuaram a caminhar. Lua deu dois passos na
direção deles, que continuaram se afastando. Lua os chamou
novamente, aumentando os passos em direção ao grupo, que também
aumentou a velocidade da caminhada. Ciro deu uma pequena olhada
para trás, para se certificar qual a distância que os separava do policial,
notando que Lua começara a quase correr atrás da maca. Então deu a
ordem para que o grupo começasse a correr.
Um tumulto se formou no interior do hospital. As pessoas tinham de
abrir passagem para os homens que carregavam um paciente sobre
uma maca, para não serem literalmente atropelados. Atrás deles vinha
um outro homem com uma arma na mão. As pessoas se jogavam contra
o chão, em pânico, provocando uma onda de gritos por onde o grupo
passava. Gallo apertava suas mãos firmemente nos apoios da maca,
enquanto Ciro comandava a fuga pelos diversos corredores do hospital.
O local parecia um labirinto.
Lua tentava alcançar o grupo quando avistou Vital. Gritou para chamar
a atenção do colega, que prontamente atendeu, vindo até ele em uma
corrida nervosa, já adivinhando o que estava acontecendo. Os dois
começaram juntos a perseguir os criminosos que a esta altura já
tinham conseguido uma boa vantagem em relação aos policiais.
Em um dos corredores adjacentes estavam passando duas enfermeiras,
alheias ao que estava ocorrendo. Cruzaram um dos corredores quando
Ciro se deixou ficar um pouco atrás do grupo para dar cobertura. Puxou
sua pistola e aguardou que os policiais aparecessem. No momento que
avistou Lua e Vital, disparou sua arma, atingindo uma das enfermeiras,
que tombou de costas, com os olhos arregalados. Sua amiga começou a
gritar histericamente quando viu sua amiga cair. Ciro continuou
atirando e as balas passavam perigosamente próximas a outra
enfermeira, que de repente também caiu no chão. Não fora atingida,
mas perdera os sentidos. Ao menos agora deixava de ser um alvo tão
fácil.
Vital e Lua quando ouviram os disparos, pararam em um corredor
perpendicular ao que estava Ciro. Viram o momento em que a
enfermeira tinha sido atingida, mas não podiam fazer nada. Se se
mostrassem seriam alvos fáceis para Ciro. Em uma tentativa de
confrontar o traficante, Vital quase perdera a orelha com um disparo de
Ciro, que passara perto da cabeça do policial, atingindo um crucifixo
que pendia na parede, que caiu provocando um baque surdo no chão
polido do prédio.
A enfermeira olhava para Vital. Estava desesperada e chorava baixinho,
pedindo ajuda. Lua pedia calma a ela. Não havia mais nada a fazer no
momento. Os dois policiais estavam visivelmente tensos em função da
fuga de Gallo e da situação da moça que sangrava a poucos metros.
O grupo finalmente chegou com a maca em uma das portas de acesso a
outra ala do hospital. Ciro deixou a posição que ocupava e correu em
direção a porta, alcançando-a e se virando novamente para a direção
onde estavam os policiais. Continuava na posição de tiro, caso eles
resolvessem reagir.
Vital rapidamente puxou o rádio de comunicação:
- Dani, tá aí fora?!
- Positivo, Vital.
- O cara tá vazando. Checa as ambulâncias!!!
Lua e Vital se entreolharam. Não sabiam como agir, pois tinham certeza
que Ciro continuava em condição de tiro, caso saíssem de onde
estavam. Ciro tirou a máscara do rosto, de olhos atentos ao corredor.
Viu somente o braço de um deles segurando uma pistola e atirando em
sua direção. O barulho era ensurdecedor. A bala atingiu uma pilastra
bem na frente de Ciro, que se assustou, movendo instintivamente a
cabeça para o lado contrário do local que foi atingido pelo disparo de
Lua.
Lua fez um sinal para Vital, avisando que iria sair. Vital disse que podia
ir que ele lhe daria cobertura. Lua saiu, se esgueirando, arma em
punho em direção à porta. Vital veio logo atrás. Não escutaram nenhum
tiro, tampouco viram Ciro, que já havia passado pela porta de vai e vem,
que balançava. Os dois policiais então começaram a correr em direção à
saída, atentos para o caso de Ciro estar escondido em algum lugar.
Chegaram até a porta e Lua a abriu com um dos pés, chutando-a. Os
dois entraram de uma vez, apontando as armas para os cantos da sala,
que estava vazia.
No centro da sala estava a maca de Gallo, vazia, largada às pressas. No
outro extremo da sala havia outra porta dupla, igual à primeira, que,
também abria e fechava.
Vital estava visivelmente arrasado. Chegou perto da maca e deu um
chute, fazendo com que se chocasse contra a parede, provocando um
grande estrondo. Lua passava as mãos pelo rosto, não acreditando no
que havia acontecido. Passado esse momento, os dois não perderam
tempo e continuaram a perseguição. Passaram pela segunda porta e
verificaram que o corredor se dividia em dois. Cada um foi para um
lado.
Vital percorreu todo o caminho até chegar a uma das portas de saída do
hospital. Saiu e deparou-se com um estacionamento externo. Olhou
para os dois lados e viu Lua saindo por outra porta. Na rua o
movimento era normal. Nenhum sinal de Ciro ou Gallo.
Dani, acompanhado de outros policiais, apareceu. Já haviam
vasculhado toda a área e todos os veículos e não haviam achado os
fugitivos.
Vital abaixou a cabeça, em sinal de desânimo, mas repentinamente
sacou sua arma e retornou correndo ao interior do hospital. Parecia se
lembrar de algo. Lua e outros policiais acompanharam o chefe,
entrando também no prédio. Dani permaneceu no pátio externo do
hospital, continuando a busca aos criminosos.
O grupo alcançou Vital e passou a caminhar ao seu lado,
nervosamente. Passaram pela enfermeira baleada, que ainda estava
deitada no chão, sendo atendida por dois médicos. Entraram no quarto
que havia sido ocupado por Gallo. Vaz estava lá, sendo atendido pela
médica-chefe, que tratava o ferimento em seu rosto. Os agentes que
montavam guarda continuavam ali. Vital passou por eles, com Lua logo
atrás. O chefe voltou-se para o grupo que o acompanhava:
- Segura esses dois aí. – disse apontando para a dupla do lado de fora
do quarto. Lua os encarou e passou reto. Dois policiais rapidamente
lhes retiraram as armas e os algemaram, levando-os para uma das
viaturas no estacionamento.
Vital parou na frente de Vaz, encarando-o. A médica, visivelmente
nervosa, parou o que estava fazendo e olhou para Vital, que não mexia
um músculo em seu rosto, olhando Vaz nos olhos. Lua puxou a médica,
tirando-a do quarto e fechando a porta, permanecendo em seu interior.
- Quê que houve? – Perguntou o policial federal a Vaz, com uma voz que
denotava a raiva que sentia.
- Nem eu sei, Vital. – dizia, trêmulo Vaz, com a voz embargada.- Não vi
nad.....
Vital sem esperar a resposta de Vaz, levantou sua pistola e deu um
golpe no rosto de Vaz, no local do outro ferimento com o cabo da arma.
Foi uma reação violentíssima e inesperada de Vital, que fuzilava com os
olhos o outro, que chorava de dor, agachado sobre uma poça de sangue
que esguichava de seu rosto, do ferimento totalmente aberto.
A médica ao ouvir o barulho forçou a porta e pôde ver o estado de Vaz,
se lamentando, sobre o chão do quarto. Olhou assustada para os
policiais. Lua voltou a fechar a porta. Vital puxou Vaz pela camisa,
colocando sua pistola na cara do agente, que tremia
descontroladamente.
- Ce não vai atirar – conseguiu dizer ainda Vaz, por entre a saliva que
saia aos borbotões de sua boca.
- Não, não vô, Vaz. – disse Vital, engatilhando sua arma.
O agente, completamente em pânico começa a chorar alto, olhando para
Lua e Vital.
- Por quê?! – Gritou para o policial ferido.
Vaz chorava. Estava totalmente descontrolado. Não conseguia mais
encará-los.
Lua abriu a porta e chamou uma dupla de policiais que aguardava do
lado de fora, para que prendessem Vaz. A médica entrou atrás deles no
quarto.
- Pode levar – ordenou Vital, abalado, aos policiais. – Segurem ela aqui
também. – Disse se referindo à médica. – A senhora vai responder por
isso também.
A médica olhou para Vital, incrédula. Vital saiu da sala enquanto os
policiais algemavam Vaz. Passou por Lua.
- Assim fica MUITO difícil.
- E nem deu pra interrogar o cara – Lamentou Lua, desconsolado.
Vital deixou o quarto, mal conseguindo controlar sua raiva. Esmurrou
um armário de aço no corredor do hospital, enquanto era observado por
vários pacientes que assistiam a tudo sem entender o que havia
ocorrido. Lua apenas observava, da porta do quarto, o chefe indo em
direção à saída do prédio.
CAPITULO 15

Era mais um dia de culto no templo “Filhos da Luz”. O Reverendo fazia


sua pregação sob a grande cruz que pendia do teto da nave do templo.
Falava da importância da caridade para com os menos favorecidos. Na
platéia havia dezenas de pessoas que ouviam atentamente as palavras
do pastor, que vestia uma grande túnica branca com detalhes
dourados. Era ladeado por dois jovens que lhe auxiliavam nos
procedimentos litúrgicos. Não se ouvia mais nada a não ser a voz grave
e suave do Reverendo. Fixada na parede de entrada do recinto via-se
uma faixa “OBRAS ASSISTENCIAIS EM PARCERIA COM A ONG ‘PARA
UM FUTURO MELHOR’”
O Reverendo parou por um instante sua pregação ao ouvir passos
rápidos entrando no templo. Virou o olhar em direção à porta,
percebendo a presença de policiais. Não teve tempo sequer de reclamar,
pois os federais já ocupavam todas as entradas e saídas da edificação.
- Ninguém sai, por favor – disse a agente-chefe para os fiéis que
assistiam o culto.
O rosto das pessoas era de incompreensão. Alguns cochichavam, outros
seguravam firmemente a Bíblia entre as mãos, rezando de olhos
fechados. Algumas crianças estavam assustadas e começaram a chorar
em função da movimentação dos policiais. A agente que chefiava o
grupo, acompanhada de outro policial se aproximou do Reverendo, que
a tudo assistia nervosamente. Não podia acreditar que aquilo estava
acontecendo. A esta altura, vários agentes do COT já se posicionavam
nas laterais do templo, vigiando o comportamento de todos. Outros se
dirigiam ao escritório do Reverendo, o mesmo em que ele se reunira com
Eliézer Gallo.
A porta do escritório estava aberta. Em seu interior havia uma grande
mesa de vidro. Atrás dela se podia ver uma cadeira alta, tipo executivo,
na cor azul. Nas paredes vários diplomas e certificados de
reconhecimento em nome do Reverendo.
Os policiais começaram então a procurar por provas que incriminassem
o Reverendo. Haviam conseguido estabelecer uma relação entre ele e
Gallo na perícia do computador do advogado. Restava agora encontrar
algo de concreto naquele escritório.
Um dos agentes resolveu, então, afastar um dos armários de madeira
da sala, verificando que atrás dele havia uma porta trancada. Chamou
a chefe da equipe que determinou que ela fosse arrombada. Já com a
porta aberta puderam ver uma escada íngreme. Um dos grupos de
operações especiais começou a descer, em formação de combate. Não
sabiam o que os esperava na outra extremidade da escada e apenas
percebiam uma claridade tênue no subsolo.
Chegaram ao final e puderam perceber que havia uma grande sala ao
pé da escada. Na verdade era um laboratório, e pessoas estavam
naquele momento trabalhando ali. O lugar não tinha janelas, mas um
conjunto de fortes lâmpadas brancas fornecia a luz necessária para os
funcionários. O chão era de porcelana cara, e sobre ele havia várias
mesas de metal polido, com uma infinidade de tubos e provetas de
vidro. Havia também vários mecanismos e máquinas não identificadas.
Havia ainda diversas estantes de aço encostadas nas paredes do
cômodo subterrâneo, com variados tipos de recipientes contendo
materiais químicos. Havia, por fim, três torneiras nos cantos da sala.
Os funcionários do laboratório já haviam parado o trabalho quando
ouviram o estrondo da porta sendo arrombada. Quando a equipe
desceu já estavam todos de olho na escada. Ao perceberem que se
tratava da polícia, imediatamente levantaram os braços, atendendo aos
comandos dos policiais, que lhes apontavam suas armas. Não houve
reação ou tentativa de fuga. O local estava completamente dominado.
Em um canto, empilhadas cuidadosamente, várias bíblias preenchiam
dezenas de caixas de papelão. Um dos agentes pegou alguns exemplares
e começou a abri-los. O interior do livro de capa preta e dourada era
oco. Dentro, vários saquinhos de ecstasy.
CAPITULO 16

No interior de um casebre, Béque estava sentado em um sofá velho


junto à parede, aguardando ansioso notícias de Gallo. Fumava um
cigarro atrás do outro, batendo as cinzas sobre o chão de cerâmica
barata. Ao seu lado havia uma pequena mesa e sobre ela um copo, com
um resto de água, que servia como cinzeiro. Ao seu lado estava o
silencioso segurança que o acompanhava onde quer que fosse. O negro
alto havia sido recrutado por Béque havia dois anos, e se tornara o fiel
escudeiro do traficante, junto com Ciro.
Béque se levantou sobressaltado quando ouviu o barulho de um carro
se aproximando de onde estava. Foi até a porta, onde recebeu Ciro e os
outros homens, que estavam ainda agitados em virtude da troca de tiros
no hospital. Junto a eles estava Gallo, que caminhava com dificuldades
e era ajudado por um dos enfermeiros. Foi levado até o sofá e sentou-se,
calado. Sua cara era de extrema preocupação.
Béque cumprimentou Ciro, festejando o sucesso do resgate. Ciro
assentiu com a cabeça, agradecendo. Foi se retirando da sala,
acompanhado pelo capanga. Deu um tapinha nas costas de Gallo, que
resmungou um agradecimento.
- E aí, meu irmão?
- Sei lá, Béque. Talvez fosse melhor tá preso. Responder e pronto. –
Disse Gallo, trêmulo. Fazia muito esforço para não chorar, embargando
a voz para responder ao traficante, que o observava enquanto acendia
mais um cigarro. Gallo continuou:
- É, acabou minha ficha limpa, a ONG. Perdi a liberdade. Que merda!
- Tu quase perdeu foi a vida, Gallo.
- Pra mim é a mesma coisa. – Murmurou o advogado.
- É. Mas tu não podia ficar é na mão desses caras. Isso sim ia me dar
uma dor de cabeça filha da puta. – disse enfaticamente Béque,
oferecendo o cigarro ao outro. – Agora são dois fugitivos em vez de um, e
tu vai fazer um curso intensivo com o melhor deles. – Brincou Béque,
tentando relaxar.
Gallo riu meio sem graça. Béque sentou-se ao seu lado. O advogado,
ainda trêmulo, falou com dificuldade:
- Esses federais tão alucinados, determinados, Béque. Você nem faz
idéia.
- É. Fecharam o templo, já. – Relatou Béque, surpreendendo Gallo, que
fechou os olhos com cara de dor. – Mas não tô preocupado não, dotô. A
situação não tá boa, mas podia ser pior.
Gallo ouvia atentamente.
- Se tem uma coisa que funciona bem no Brasil é crime. As leis nesse
país são feitas por bandidos também. – Discursava o traficante,
levantando-se. – E é exatamente por isso que elas protegem a gente.
Gallo, o nosso é o único produto que eu conheço que tem propaganda
gratuita, meu, a toda hora, todo momento, em revista, jornal, TV,
sempre se fala e se pergunta a respeito. E perguntou, meu irmão,
pronto, despertou a curiosidade da rapaziada.
Gallo concordou com a cabeça, pensativo. Deu outra tragada e
continuou ouvindo:
- É por essas e por outras que a gente sempre vai ter alguém
interessado em investir, em financiar a gente. Qual o outro produto que
já vem com marketing pronto desse jeito? – Béque gesticulava muito.
Realmente acreditava em tudo o que estava dizendo. – Só o “capitalismo
democrata” – frisou as aspas com os dedos - proporciona tudo isso.
Gallo prestava atenção.
- E falando nisso. – Completou Béque enquanto abraçava o
companheiro. – Vamo trabalhar que a Micarê tá começando. Temos que
suprir a demanda. – Béque foi até a porta, puxando o maço de cigarros
que estava em seu bolso. Virou-se para Gallo e finalizou:
- Ainda tem mais essa, Gallo. Nesse país tem carnaval o ano inteiro. –
Baixou a voz como se confidenciasse um segredo - Puta mercado.
CAPITULO 17

Já era tarde quando Paula chegou em casa. Fazia faculdade de


pedagogia todos os dias à noite. Deixou seus livros, as pastas das aulas
e as chaves sobre a mesa da sala. Foi até a cozinha beber água quando
viu Lua sentado à mesa, com um copo de uísque em uma das mãos. A
garrafa em cima da mesa já estava pela metade. Lua a olhou com um ar
indiferente. Sua esposa explodiu:
- Puta que pariu!!!
- Porra, Paula, calma. Tô no controle, tô bem.
- Isso cê diz lá pros teus amigos da polícia, pro pessoal do A.A. A mim,
tu não me engana, não.
- O dia foi foda hoje. Ansiedade, caralho!
- Que papo é esse de ansiedade, porra. É a tua profissão, cê que
escolheu essa merda! – Paula o olhou de cima a baixo, fazendo cara de
nojo. – Tenho repugnância por isso tudo.
Lua se virou para ela, olhando-a de maneira irônica. Sua voz indicava
que estava ficando bêbado:
- Eu também. – Disse, voltando o olhar para o líquido amarelo da
garrafa.
Paula saiu da cozinha, batendo a porta violentamente. Lua ficou ali, no
escuro da cozinha. Sabia que não devia estar bebendo, mas não
conseguia largar o copo.
Naquele mesmo instante, Dani tocava a campainha do apartamento de
Sofia. Pôde ouvir o delicado som enquanto apertava o interruptor ao
lado da porta de madeira. O hall de espera também era fino, com
algumas plantas e vários espelhos. A iluminação era indireta, o que
dava um ar ainda mais rico ao local. Dani olhou-se o espelho, tentando
desfazer a expressão cansada. Bateu as mãos contra o rosto.
A porta se abriu. Sofia apareceu, vestida com um robe de seda lilás. Seu
rosto, embora sonolento, era de uma beleza exótica que agradava o
policial. Ela sorriu, oferecendo espaço para que Dani entrasse no amplo
apartamento. Ele virou-se sobre os calcanhares e a abraçou, beijando-a
intensamente, sendo correspondido. Os dois começaram a trocar
carícias ainda na sala, sobre um tapete felpudo. Sofia rapidamente
abriu a calça de Dani, enfiando a mão. Ele revirava os olhos, deixando o
pescoço livre para que ela o mordesse, enquanto arrancava as calças do
rapaz. Abaixou-se e, olhando nos olhos de Dani, engoliu seu pau,
fazendo movimentos rápidos, arrancando gemidos de Dani. Após algum
tempo ela se levantou, deixando cair o robe. Dani deitou-a no tapete e
começou a chupá-la, enquanto ela o apertava em direção ao seu sexo.
Um mordomo abriu uma das portas de acesso à sala, fechando-a
novamente ao ver a cena.
Na manhã seguinte, depois de uma longa sessão de sexo, Dani acordou
com Sofia roçando seu corpo. Fizeram sexo mais uma vez, e depois de
gozarem ficaram deitados, cada um com seus pensamentos. Dani se
levantou e foi até sua calça, de onde retirou um cigarro de maconha.
Pegou um isqueiro em outro bolso e acendeu o baseado. Estava
pensativo. Sofia olhou para ele e perguntou, com um sotaque carregado:
- Ainda tá no cigarrinho? Não quer nada mais forte, não?
Dani se levantou com um sorriso no rosto. O cigarro pendia em um dos
cantos de sua boca, enquanto começava a se vestir:
- Não, tô bem com isso aqui. – Respondeu, fazendo bico para indicar o
cigarro.
- Isso brocha, hein. – Alertou, em tom de sacanagem, a mulher. Dani
sorriu.
Sofia olhou para um rádio-relógio sobre a mesa de cabeceira:
- Nossa, tenho que ir para a embaixada. Tô atrasada.
- Você é diplomata? – Argüiu Dani, pronto para sair.
- Sou. – Respondeu Sofia, recostada na cabeceira da cama, olhando
para Dani. – da França.
- Terra das mulheres mais bonitas do mundo. Você não é diferente.
Sofia sorriu, ruborizada, acrescentando:
- Não. As brasileiras são mais bonitas. – Fez uma pausa e questionou. –
E você? Que que cê faz:
- No momento, te adoro. – Respondeu galantemente Dani, dando um
beijo na moça e se virando para ir embora. – Eu te ligo.
Sofia ainda ficou olhando em direção à porta, com um ar malicioso.
Torcia para que o jovem voltasse logo à sua casa.
Enquanto isso a cidade acordava mais uma vez para o trabalho. Uma
infinidade de carros já circulava pelas vias da capital, dando vida a
mais uma manhã de sol e seca no planalto central. As pessoas já se
apertavam nas paradas de ônibus, tornando visível um dos maiores
problemas urbanos de Brasília: o transporte público. As vans de
transporte clandestino tomavam as principais ruas, tornando o trânsito
ainda mais caótico.
- Bom dia, gente boa de Brasília! Está começando mais um A.M. Polícia,
primeira edição, diretamente aqui da sua Rádio Independente. E ó, pra
começar, notícias quentes da capital da república.- Desde cedo o
famigerado programa de notícias policiais já iniciava sua gritaria no
rádio. A dupla de apresentadores aproveitava os acontecimentos do dia
anterior para tornar ainda mais sensacionalista o diário. O segundo
locutor, aproveitando a deixa do outro, prosseguiu:
- Ééééééééé! Ontem, dois traficantes peixes grandes fugiram de um cerco
armado pela "nossa" polícia federal...!
O metrô fazia mais uma viagem da cidade de Samambaia para o Plano
Piloto. Dentro de um dos vagões, um dos usuários carregava um
pequeno rádio de pilhas.
- Pois é, um é o tal do Béque Batista, que de um tempo pra cá se instalou
por aqui para a alegria do povo consumidor de pó da cidade, e o outro.....
pasmem, é Eliézer Gallo, respeitado senhor da "côrte", da sociedade
brasiliense, que foi hospitalizado.....
- E enquanto isso – Esbravejava o outro – um monte de gente morrendo
em fila de hospital, dá pra acreditar?
- .....depois de ser ferido à bala e preso pela federal em sua mansão no
Lago Sul, por conta de suas ligações com esse esquema de narcotráfico.
Dani seguia para o trabalho com sua moto. Gostava de pilotar ouvindo
um pequeno walkman que carregava na cintura. Depois de uma longa
noite de prazer, voltava para a realidade.
- E tem envolvimento de policial na fuga do tal do Gallo, que como se vê,
acabou cantando por último. – um cacarejo bem ao estilo A.M. pôde ser
ouvido ao fundo.
Lua estava em casa, sozinho, sentado na mesa da cozinha. Usava
óculos escuros e tinha a cara inchada. Estava de ressaca pelo litro de
uísque que havia consumido durante a noite. Tomava café requentado
em um copo de vidro enquanto ouvia o rádio.
- Pois é, tráfico de drogas em Brasília. Me diz uma coisa: como é que
entra droga nessa cidade? Pelo mar? – O outro locutor dá uma
gargalhada enquanto completa:
- Pelo Lago Paranoá? – continuava:
- Uma cidade que fica no meio do país! Porra, é só fechar meia dúzia de
estrada por terra aí, gente, e fiscalizar melhor esse aeroporto que acaba
com essa festa, com essa palhaçada.
- Por que não fazem isso? Por que, "seu" secretário de segurança?- Dizia
como quem insinuava algo – Qual o problema?
- Nããããão, não fecham, e sabe por quê? Ia acabar com o "direito" de ir e
vir das pessoas. A constituição não deixa. - Lua sorriu, aparentemente
concordando com o locutor.
Rocha caminhava por uma feira popular, no meio do povão. Algumas
pessoas estavam paradas em frente a uma banca, onde o rádio
transmitia o programa:
- Deviam é rasgar essa merda dessa constituição e fazer outra, porra. Os
únicos que tem direito de ir e vir nessa merda desse país são os
bandidos – Decreta um dos apresentadores, interrompido pelo colega.
- Aliás, as autoridades competentes deveriam ver isso melhor, é ou não
é?
- Autoridades? Que autoridades? Ah! Cê diz os "responsáveis", ou
melhor, os irresponsáveis pelo Brasil que, ao invés de pagar, armar,
preparar melhor a polícia prum troço ridículo como essa fuga aí não
acontecer, ficam construindo prédios caríssimos, gabinetes suntuosos,
faturando os tubos, cagando pro resto, pro povo!......... Espera sentado!
Vital dirigia seu carro em direção à Superintendência da PF. O trânsito
estava lento no "buraco do tatu", como é chamado o viaduto que passa
por baixo da rodoviária da cidade, e que divide o Plano Piloto em norte e
sul. Teve que parar o carro e esperar o trânsito voltar a andar. Olhou
para o lado e viu os vários cartazes de propaganda fixados nas paredes
do viaduto, propagandas da "micarecandanga", o carnaval fora de época
da cidade, Estava irritado e ouvia o rádio. Sabia que todos os policiais
também estavam sintonizados, ouvindo as primeiras notícias do dia.
- Esse Béque Batista, por exemplo, tá dando um baile na Polícia Federal.
Ta ridículo isso já, sô.
- Ué, nada de novo no "front".
- Porra, não pode ser tão difícil pegá bandido assim – Ria o locutor – Eu
junto uma meia dúzia de informante meu, aí das quebrada, e consigo
fácil, fácil uma entrevista com esse cara sobre essa fuga dele, aí. – O
outro apresentador gargalhava – Cê tá rindo? É verdade! Ô POLÍCIA,
VAMO TRABALHAR, CACETE!!!
A vinheta do programa trouxe alívio aos policiais que a ouviam.
Finalmente aquela edição chegara ao fim.
CAPITULO 18

No interior da sala do grupo chefiado por Vital o clima era pesado. Lua,
ainda de óculos escuros e mascando um chiclete estava sentado na
mesa do chefe e mexia no computador. Dani estava sentado em sua
mesa, brincando com uma liga de borracha. Vital consultava um
arquivo em um armário de aço. Todos estavam sérios e calados. Dani se
virou ao notar a porta da sala se abrindo. Era Rocha que entrava com
um sorriso no rosto:
- E aí, canas ? – Saudou os colegas, quebrando um pouco o clima. Vital
se virou ao ouvir a voz do policial, perguntando-lhe:
- Já teve alta?
- Já. – Disse enquanto entregava um papel a Dani – Não quebrou nada.
Tô pronto pra outra.
- Inacreditável – Disse, irônico, Dani, recebendo o papel, sem entender
do que se tratava – Ué! O que é isso? Teu telefone? Tu é viado, negão? –
Perguntou, mal disfarçando o riso, enquanto dobrava o papel.
Todos riram, inclusive Rocha, que já havia sentado sobre uma das
mesas.
- Não – Esclareceu o policial militar – É de uma gostosa que eu tô
comendo. Soube que cê teve seu batismo de fogo ontem, e não amarelô.
Tá virando cana de verdade, tu merece variar de buceta um pouco, é o
teu prêmio do negão parceiro aqui.
- Tá corretíssimo. – Lua aprovou a idéia. Dani guardou o papel em um
dos bolsos da jaqueta.
- Belê...... vou ligar hoje pra piranha.
- Não, hoje não, moleque – Advertiu-o Rocha – Hoje é dia dela ver o
"bastão de ébano".
Todos começaram a gargalhar. Lua, sem acreditar no que ouvia,
perguntou:
- Como é que é?
- Não sou ciumento não – falou Dani, em tom de sacanagem – Lavou, tá
novo.
- Pois é – arrematou Rocha – Se tu não se incomodar de pegar a rebarba
do negão.....
- E como é que ela é ? Perguntou, curioso, Dani.
- Preto gosta de loira, rapá. – Vangloriou-se Rocha.
- Racista do caralho – sacaneou o jovem policial.
- Puta que pariu. – Disse Rocha, rindo – Os gringo quando vem aqui não
querem as mulatas? E não são racistas por isso? Não, né? Pelo
contrário. Eles papam as mulatas, eu papo as loiras. É uma questão de
gosto de cada um, de preferência, só.
Vital, que acompanhava a conversa calado, se manifestou, reclamando:
- Êta, papo brabo!
Rocha, ainda rindo, se virou para Lua e Vital, que estava de costas, se
lamentando:
- Ó, mudando de pau pra cacete, o que eu lamento é não ter podido tá
com vocês lá no hospital. O cara sumiu mêrmo, né? – Disse apontando
para Vital e fazendo careta – Com Bope, Civil, Secretaria de Segurança
apoiando e o caralho? – Dani ria discretamente da sacanagem de
Rocha.
- Sumiu. – Respondeu secamente o chefe.
- É. O Gallo é passado – Refletiu Lua.
- Não! É futuro. – Decretou Vital, sem se virar.
O dia passou sem novidades para o grupo, que aguardava as
informações necessárias para uma operação de recaptura de Gallo.
Dani ficou resolvendo problemas administrativos, enquanto Vital
passou o dia inteiro em contato com a Divisão de Comunicação Social
da PF, em virtude da enorme demanda da imprensa em relação à fuga
de Gallo. Não gostava da imprensa, mas havia aprendido que era
indispensável o posicionamento oficial da polícia naquelas ocasiões.
Alguns outros policiais antigos não pensavam da mesma forma.
A Divisão de Comunicação Social é formada por dois grandes grupos: o
da assessoria de imprensa e o da assessoria em relações públicas, mas
nem sempre foi assim. A cultura da Polícia Federal, assim como das
demais polícias, sempre foi a de manter uma assessoria de imprensa
para informar a todos que não haveria um posicionamento oficial.
Ocorre que com o tempo os dirigentes perceberam que quando se trata
de comunicação, não existe vácuo. Ou há a versão oficial sobre os
assuntos ou surgem as versões oficiosas, que geralmente são
desfavoráveis à instituição. Após anos de uma postura mais rígida, a
atividade de comunicação social na Polícia Federal foi reformulada,
tendo sido convocados para compor seus quadros vários policiais com
formação em comunicação. Os "policiais jornalistas" foram para a
assessoria de imprensa e os com formação em relações públicas foram
para o setor de RP. Além disso foram contratados, via concurso, alguns
especialistas. Esse conjunto de medidas alterou drasticamente a
cultura policial no trato com as informações, fator esse que possibilitou
que a PF passasse a gozar de um prestígio maior.
Após o dia inteiro de explicações e entrevistas, Vital voltou pra casa.
Pôde observar vários jovens com camisas coloridas indo para a "micarê
da paz", como noticiavam vários outdoors por toda a cidade.
Após jantar, ficou na sala olhando para o filho. O pequeno Alberto
girava, em torno de si mesmo, até cair, ao som de uma pequena caixa
de músicas de brinquedo. Se levantava e repetia a brincadeira. A cada
vez que caía, dava risadas. Entre um gole de café e outro, Vital segurava
o filho para que não caísse e se machucasse.
- Esse já é teu terceiro café, Vi? – indagou-lhe Leila, enquanto retirava
os pratos da mesa – Tá viciado nisso já, hein! Faz mal.
Vital balançou a cabeça, concordando com a esposa. Não tirava a
atenção do filho, que continuava brincando.
- Não esquece de me dar teu talão de cheques. Vou fazer o controle
antes de dormir. – Lembrou Leila. Toda semana ela conferia o que havia
sido gasto pelo casal. Ao contrário do que fazia a maioria das pessoas, a
verificação feita pela esposa de Vital era com o objetivo de constatar se
havia algum dinheiro a mais na conta do policial. Vários casos já
tinham ocorrido de traficantes fazerem depósitos na conta de policiais,
com a finalidade de incriminá-los. Por isso, Leila e o marido eram
rígidos com esse controle.
A música do brinquedo de Alberto acabou. Ele estava tonto e caiu no
chão, dando gargalhadas. Vital aproveitou aquele momento para pegar
sua carteira e entregá-la à esposa. Tentou enfiar a mão no bolso da
calça, mas não conseguiu por causa da pistola que estava
atrapalhando. Então retirou a arma e a colocou sobre a mesa, ao lado
da xícara, dando a carteira para Leila.
Alberto, suado e cansado, parou de brincar e dirigiu sua atenção à
arma do pai, para onde fixou o olhar. Vital percebeu e pegou a pistola,
colocando-a nas costas, na altura da cintura. Chamou o filho para o
seu colo.
Abraçou-o fortemente, passando a conversar com o garoto, distraindo-o,
sendo observado por Leila, que saía da cozinha.
Abraçado também estava Rocha com sua "gata loira", sobre uma cama
de lençóis vermelhos, em uma casa na cidade de Taguatinga. Na
verdade, tratava-se de uma mulata com os cabelos descoloridos, de uns
vinte e sete anos de idade.
Rocha puxava seus quadris enquanto a comia de quatro. Batia na
bunda da moça com as duas mãos, enquanto gemia. A mulher olhava
para trás, pedindo para que o policial fizesse com mais força. Entre
uma gemida e outra, Rocha informou à sua parceira, ofegante:
- Ó, um camarada meu vai te ligar. Trata ele bem.
- Já ligou. – Disse a loira, virando-se e ficando de frente para Rocha,
puxando-o para si.
- Ah, ligou é? Legal. Quando ele vier.....
- Já veio – Disse a moça, cortando.
Rocha parou, olhando, incrédulo, para a mulher:
- Como assim, já veio?
- Ah, Rocha, continua – Reclamou a parceira, dando um tapa na bunda
do policial. Rocha continuou os movimentos.
- Ele veio e já tratei ele muuuuuito bem.
- Mas não é melhor do que "o trato" que cê dá pra mim, né nêga?
- Beeeem melhor. – Disse a mulher, sacaneando Rocha. – Você planta o
que você colhe.............. e o garoto plantou muuuuuito bem.
Rocha riu, se lembrando de Dani.
- É colhe o que planta, nêga burra. Tá certo, ele meréééci!
Os dois gozaram juntos. Os gritos quase podiam ser ouvidos da rua.
Ficaram deitados na cama, nus, por alguns momentos. A moça
levantou-se e foi até o banheiro. Quando voltou Rocha já havia colocado
o relógio e a camisa. Vestia a calça enquanto a "gata loira" deitava
preguiçosamente na cama.
- Tchau, gata. – Despediu-se o policial, sendo abraçado por trás pela
mulher, que o enlaçou com os braços. Deu a volta, sentando no colo de
Rocha, e olhou fixamente em seus olhos:
- Tchau....... te adoro, viu?
- Adora nada, piranha. Vagabunda.
A mulher riu. Rocha, satisfeito, se foi. Bateu a porta, dando uma última
olhada para trás.
- Nêgo gostoso – Elogiou a parceira, sozinha no quarto.
Rocha foi até o portão, abrindo-o. Quando passou por ele foi
repentinamente atacado por um homem, que lhe deu um chute nas
costas. Automaticamente o policial sacou seu revólver, ainda
cambaleando em função do golpe. Disparou a arma em direção a um
grupo de homens que vinham em sua direção. Um deles caiu no chão,
aparentemente morto. Rocha não teve tempo de disparar outra vez. Os
agressores começaram a lhe bater, derrubando-o na calçada. Um
homem alto apontou uma arma para sua cabeça, fazendo sinal para
que fizesse silêncio e parasse de reagir. O policial fechou os olhos,
deixando sua cabeça encostar no chão. Os homens levantaram Rocha,
colocando um capuz sobre sua cabeça. Empurraram-no para o interior
de um veículo e partiram.
Depois de algum tempo, que Rocha não sabia determinar, chegaram ao
destino. O policial foi amarrado a uma cadeira, quando foi retirado o
capuz. Rocha estava trêmulo e nervoso.
Béque apareceu, Rocha olhou em sua direção, indiferente.
- Rocha, é o seguinte – Disse Béque, parando em frente ao policial. – Eu
te trouxe aqui por um motivo bem simples. Vou ser curto e grosso. Você
tem duas chances: ou trabalha pra mim ou morre agora. A escolha é
sua.
Rocha o ouvia, olhando pra uma das paredes nuas do recinto. Não
havia móveis ou qualquer outro detalhe no cômodo que pudesse o
identificar. O silêncio era total, dentro e fora da casa. Os olhos do
policial estavam fixos, sem qualquer sentimento. Suas mãos doíam,
amarradas para trás. Béque puxou sua arma e a apontou para a cabeça
do PM, engatilhando a pistola. Rocha abaixou a cabeça, sabia que sua
vida não valia absolutamente nada naquele momento. Um filme passou
em sua cabeça. Lembrou-se de seus pais e irmãos. Uma música que
aprendera na infância lhe veio à mente. Começou a tremer
descontroladamente.
Fechou os olhos e sentiu o cano da arma sendo encostado na sua
têmpora esquerda. Era seu instante fatal. Béque começou a puxar o
gatilho da arma, quando ouviu:
- Quanto?! – Murmurou Rocha, com lágrimas nos olhos.
- O suficiente. – Respondeu-lhe o traficante, friamente.
Béque retirou a arma da cabeça do policial, desengatilhando-a. Rocha
abaixou a cabeça, chorando.
CAPITULO 19

Já era dia quando Vital, Lua, Rocha e Dani se reuniram na sala do


grupo. Dani e Rocha estavam sentados em volta de uma mesa de
reuniões. Vital esclareceu aos demais:
- Bem, é o seguinte já tem uns dias que o Rocha vem falando comigo
sobre umas informações que ele tá derrubando.
- É, cê me falou. – Disse Dani.
- Pois é. – Continuou o chefe. – Tá na mão. São pistas sobre o que pode
ser mais um ponto de estocagem de droga do Béque. – O grupo ouvia
atentamente. Vital prosseguiu. – Nós quatro vamos lá hoje de
madrugada.
- Na tora, mêrmo? - Questionou Lua.
- Hã, hã, isso mesmo. É um ponto pequeno. – Informou Vital.
- Isso aí. – Confirmou Rocha.
- Esse negão é cheio dos bizú. – Brincou Dani. Rocha respondeu,
sacaneando:
- Tu é que devia trabalhar mais, garoto.
- Tô trabalhando num lance aí. Tô trabalhando. – Desconversou Dani,
já provocando Rocha.
- Olha lá em negão. Não vai colocar a gente em roubada.
- Vamo pará com ciumeira, aí. – Determinou Vital. – O Rocha tá
trabalhando muito bem. – Disse reflexivo.
- Se vocês quiserem, eu entro na frente.
- Não tô falando nada, meu comparsa – Adiantou-se Lua, casual.
- Comparsa? – Estranhou Dani. – Isso é coisa de bandido, pô.
- Polícia e bandido é tudo a mesma coisa, não tem diferença. – Ironizou
Rocha. Vital riu da observação do PM. Dani esboçou um sorriso, saindo
da sala, acompanhado por Rocha.
Lua foi até Vital, lhe perguntando:
- E o resto?
- Eu queria era acabar logo com isso. A Leila tá sofrendo muito, mesmo
sem dizer nada. Ser mulher de cana não é fácil, cê sabe disso. –
Respondeu Vital, pensativo. Olhou para o colega e lhe questionou:
- E você, como é que você tá com a Paula?
- Mais ou menos. – Disse, já se virando para sair da sala. Vital
permaneceu olhando para Lua, preocupado. Conhecia os problemas do
amigo.
Vital saiu dali e se dirigiu ao hotel Blue Tree Towers, o mais luxuoso e
caro de Brasília. Às margens do Lago Paranoá, oferece uma grande
estrutura para eventos internacionais, além de uma vista privilegiada
do Palácio da Alvorada, residência oficial do Presidente da República.
Identificou-se na portaria e foi até o quarto de Sam Rhames. A porta
estava aberta e Vital entrou, aguardando na sala de estar. Ouviu a voz
grave do americano pedindo que esperasse um momento. Aproveitou
para observar da janela do quarto todo o complexo do hotel. Ouviu o
barulho da porta do quarto se abrir e viu lá de dentro sair uma mulher.
Sam vinha logo atrás com um copo de uísque na mão. Cumprimentou
Vital, puxou um maço de dólares e o entregou à moça, dando-lhe um
beijo de despedida:
- Thanks, baby.
- Thank you, darling. – Respondeu a mulher, já se retirando. Passou por
Vital e o cumprimentou com a cabeça. A mulher era realmente muito
bonita e Vital só acreditava se tratar de uma garota de programas
porque presenciou o pagamento. A porta se fechou. Os dois policiais
começaram a conversar em inglês:
- Fudeu o dia todo, Sam?
- Isso aí, my friend – Respondeu Sam enquanto vestia uma camisa com
o brasão do D.E.A. Apontou para uma cadeira, oferecendo-a para que
Vital sentasse. – E aí, Vital, quê que manda?
Vital permaneceu em silêncio enquanto se sentava. Sam voltou a falar:
- Quer beber alguma coisa?
- Não, Sam, obrigado. – O americano se sentou. Sentia que o clima
estava pesado, e queria descobrir o porquê.
- É o seguinte, Sam. Recebi umas informações preocupantes. Nosso
pessoal encontrou insumos americanos num laboratório que a gente
fechou. Achamos que só pode ter sido facilitado por gente da D.E.A. Tu
sabe de alguma coisa?
Sam encarou Vital com uma expressão de raiva. Seus olhos estavam
injetados e a boca tensa. Subitamente se levantou, empurrando Vital
contra a parede, revistando-o. Estava extremamente nervoso enquanto
vasculhava as roupas do brasileiro, que preferiu não reagir.
- Cê tá plugado, porra?! – Perguntou o agente da D.E.A.
- Não. – Respondeu de forma tranqüila Vital. Sam o largou, dando as
costas para o policial brasileiro.
- Você tem peito, mother fucker. Vem aqui pra me acusar dessa porra! –
Sam Rhames andava pelo quarto como uma fera enjaulada. Estava
tenso e ofegante. Vital continuava em silêncio.
- Cansei dessa merda toda, Vital. – Disparou, sem rodeios o americano.
– Eu já tô velho e não vou morrer nessa guerra, cara. Eu tô pensando
no leite das crianças. Você devia fazer o mesm....
- Vai se fuder, Sam, - interrompeu Vital. Os dois ficaram calados. O
brasileiro olhou para Sam. – Cê tá em contato com o "barão"?
- Claro.
- Béque?
Sam assentiu com a cabeça. Fez-se outro silêncio tenso. Vital se
adiantou:
- Onde tá o cara?
Sam começou a rir. Respirou fundo retomando a calma. Olhou Vital de
cima a baixo:
- Faz o teu trabalho!
- Que que você passou pra ele? – Questionou Vital, visivelmente
nervoso.
- Você não me disse nada. O que eu ia passar pra ele? – Respondeu
calmamente Sam Rhames.
Vital começou a se dirigir para a porta, revoltado, falando consigo
mesmo:
- Gringo filho da puta, escroto...
- Que que cê vai fazer, Vital? Me delatar? Atirar em mim? – Perguntava
ironicamente Sam, indo atrás de Vital, que ia embora. – Você não tem
nada contra mim e sabe disso. Esses meus contatos com o "barão"
fazem parte do meu trabalho. Eu posso prender esses caras a qualquer
momento. Já que vocês não conseguem, eu consigo.
Vital abriu a porta violentamente e saiu do quarto. Sam ficou o
observando da porta. Provocou ainda, em tom sarcástico:
- Você é um policialzinho brasileiro de merda. Tu come na minha mão.
Vital, que já ia próximo ao elevador, parou e se virou para o americano:
- Pode ser. Mas seu eu tiver que morrer por conta dessa porra aqui.... –
Vital apontava para o seu distintivo. Fuzilava Sam com os olhos. – ...eu
morro, Sam.
- Então morra. – Esbravejou o estrangeiro, enquanto Vital lhe dava as
costas.
Bem longe dali, Lua, Rocha e Dani estavam dentro de um carro.
Esperavam Vital já havia algum tempo. Não era normal o atraso.
Ouviram a batida no vidro do carro. Era o chefe. Lua abriu a janela.
- Atrasado, chefe. Coisa rara, hein?
- É, depois eu explico pra vocês. Vam'bora, gente.
Os três rapidamente saíram do carro e passaram a andar nas ruas da
cidade de Samambaia, uma das mais novas satélites de Brasília. Criada
em 1985, fruto também da remoção de invasões. Seu nome se devia ao
Córrego Samambaia, que banha a cidade. Era, juntamente com a
Ceilândia, um dos locais mais violentos do DF.
Os quatros iam quase em fila indiana, cortando o silêncio da noite, que
só era quebrado pelo som de seus passos. Todos usavam, por baixo da
roupa, coletes a prova de balas. A fraca iluminação não permitia
enxergar nada muito longe e o vento soprava as copas das poucas
árvores, provocando uma dança de sombras na terra batida por onde
andavam. Era uma noite sem lua e não havia ninguém nas ruas. O
grupo procurava demonstrar casualidade, como se fosse possível não
provocar suspeitas. Lua passou a caminhar ao lado do chefe.
Chegaram à casa e a rodearam, observando todo o seu perímetro.
Sacaram as armas e permaneceram em silêncio, observando. Estavam
tensos, pois não era normal realizarem uma ação como aquela sem o
apoio de outros policiais. As poucas construções em volta da casa
pareciam inabitadas, tornando o cenário ainda mais assustador. A um
sinal de Vital, começaram a entrar no terreno da casa, se separando
para cobrirem o máximo de área possível. Andavam agachados,
diminuindo a silhueta, se protegendo contra um possível ataque. Iam se
aproximando cada vez mais da construção, quando ouviram rajadas de
metralhadora sendo em sua direção. Vital empurrou Dani contra o chão
e os outros dois também se jogaram. Antes porém que pudesse se
proteger, Rocha foi atingido no peito e caiu, gritando de dor. Largou seu
revólver, que caiu no escuro do mato que cobria parte do terreno. Os
outros três recuaram, Vital se escondeu atrás de um muro. Rocha e
Dani se protegeram atrás de um carro estacionado na rua, que era
atingido duramente pelos tiros.
Começaram a atirar na direção da casa, sem saber de onde exatamente
vinham as balas. Vital olhou preocupado para Rocha, verificando que
ele se arrastava na direção dos tiros. Ao que tudo indicava, não podia
ser visto por quem descarregava a metralhadora. Os tiros levantavam
muita poeira no chão, que se confundia com a fraca neblina da noite,
tornando ainda mais difícil enxergar. Rocha e Dani se revezavam na
troca de tiros, substituindo os carregadores das pistolas, que
rapidamente eram consumidos.
Rocha sacou a sua pistola do tornozelo e entrou com dificuldades na
casa, por uma porta lateral. Os três policiais observavam a cena,
sabendo que se tratava de uma manobra arriscadíssima por parte do
PM. Intensificaram os tiros para oferecer o mínimo de cobertura ao
colega, e em uma das vezes que Dani se levantou, foi atingido no colete,
na altura do ombro, de raspão. O jovem gritou e caiu de costas,
perdendo a proteção do veículo. Lua, nervoso, se levantou para atirar,
mas sua pistola engasgou. O policial praguejou contra a arma,
enquanto procurava sanar a pane. Olhou de relance em direção a casa
e viu que um vulto, de metralhadora na mão, se aproximava de Dani.
Ficou ainda mais nervoso e começou a bater na arma, para que voltasse
a atirar. O "vulto" começou a trocar o carregador da metralhadora, já
bem perto de Dani. Vital gritou pelo jovem colega, mas quando se
preparava para ir em sua direção, uma saraivada de balas impediu seu
progresso.
No meio da fumaça e da escuridão, o que se pôde ver foi um garoto
magro de cerca de 12 anos, mal vestido, empunhando uma mini Uzi, de
9 mm. Vestia um capuz preto de motoqueiro cobrindo seu rosto. Dani
então apertou o gatilho de sua pistola, mas a munição havia acabado. O
garoto concluiu o carregamento da metralhadora e a engatilhou. Lua
entrou em pânico e começou a gritar pelo colega, procurando assustar o
garoto. Dani então jogou sua pistola no chão e sacou um pequeno
revólver 32 que usava como backup no tornozelo. Rolou seu corpo para
o lado direito e quando olhou novamente para seu adversário, disparou
três vezes contra o franzino atirador, que caiu violentamente, largando a
metralhadora.
Do lado de fora, em uma das laterais da casa, outros dois garotos
também empunhando metralhadoras atiravam contra os policiais.
Rocha foi em direção a uma das janelas e disparou contra os jovens
que, pegos de surpresa, assustados, largaram as armas e saíram
correndo. Vital apontou para os garotos que corriam. Estava em posição
de tiro e começou a apertar o gatilho. Fechou os olhos, apontou sua
arma para o alto e a descarregou, desistindo de atingir os fugitivos.
Virou-se para Dani e o encontrou ainda deitado no chão, arma na mão
direita, ombro esquerdo ferido. Tinha os olhos fechados e uma
expressão de dor no rosto, não tanto pelo ferimento, mas pela
lembrança do olhar do garoto que atingiu. Embrutecia-se a cada dia.
Vital olhou para Lua, ofegante e sentado no chão atrás do carro.
Desviou o olhar para o menino caído no chão. Trêmulo, abaixou sua
pistola. Lua foi saindo de trás do veículo, observando a movimentação
no local. Rocha apareceu, cambaleante. Informou ao grupo:
- Tudo limpo lá dentro. – Abaixou-se e pegou seu revólver no chão.
Recolocou a pistola no coldre. Falava com dificuldade. – Só tem um
pouco de pó ali. Tem sangue no beco também. Acho que acertei um.
- E contigo, tudo bem? – Perguntou Vital a Rocha enquanto caminhava
em direção ao menino caído. O silêncio voltava a reinar.
- Não. Não está nada bem. – Respondeu Rocha.
Vital contraiu os lábios e assentiu, entendendo o colega, que voltou a
falar:
- Sentiu a potência? – Disse se referindo à metralhadora caída ao lado
do corpo do garoto.
Lua ainda estava tenso. Olhava para os lados temeroso de uma reação.
Dani começou a mexer o braço esquerdo com dificuldade. Não deveria
ser nada de mais grave.
- Cuidado, hein, Dani. O próximo vai na cara. Demo muita sorte nós
dois. – Falou Rocha, aproximando-se do colega e o ajudando a se
levantar.
- Puta que pariu. – Disse Vital. – O cara botô criança no lance, porra.
- É novidade pro'cê? – Rocha perguntou.
- Ah, Rocha, no dia que eu me acostumar com essa porra, quero me
aposent......
Vital despencou após o estampido de uma arma. O tiro veio da direção
da casa e acertou o chefe na testa. Tombou com a expressão dura dos
cadáveres. O sangue começou imediatamente a jorrar na terra, junto
com pedaços do crânio e da massa cerebral. O pânico voltou a tomar os
demais. Lua, apavorado, se abaixou e começou a olhar em volta, sem
saber o que fazer. Dani olhou para a casa e saiu correndo, de peito
aberto, em direção aos tiros. Lua, incrédulo, olhava para Vital, não
acreditando que aquilo pudesse ter acontecido.
Dani entrou na casa arrebentando a porta. Lá dentro um garoto tentava
fugir. Dani apontou sua arma em direção a ele:
- Pára, filho da puta!!!
O garoto estacou a fuga, largando a pistola que usara para atirar em
Vital. Estava de costas para Dani. Levantou as mãos e fechou os olhos
sob o capuz preto, comprimindo-os juntamente com a boca. Dani
olhava nervosamente em volta, verificando se não havia mais ninguém
na casa. Apontava sua arma em direção ao garoto e foi se aproximando,
arrancando-lhe o capuz. Virou-o e encostou a pistola na testa do rapaz,
engatilhando a arma. O garoto tinha medo nos olhos. Dani começou a
pressionar o gatilho, mas antes que atirasse, escutou uma saraivada de
balas, que atingiu o corpo do menino, que desmontou sobre o chão de
cimento cru. Olhou em frente e viu Rocha, com a metralhadora na mão.
- Como é que eu não vi esse porra, caralho?! – Lamentava-se Rocha,
indignado consigo mesmo. Dani, ofegante e tenso ao extremo, olhou
para o corpo do garoto e para Rocha:
- Que dica foi essa, negão?!
Antes que Rocha pudesse responder, Lua entrou na casa. Olhou o
corpo do garoto estendido sobre o chão duro e empoeirado da sala.
Agachou-se e pegou a arma junto ao corpo do garoto. Rocha então se
voltou para Dani:
- Calma, moleque, não vamo apavorar.
- Não tem pavor aqui não, negão. O Dani tá certo. – Respondeu
imediatamente Lua.
Dani partiu pra cima de Rocha, gritando com o colega. Seus rostos
quase se encostavam:
- Tu se vendeu pra cara, negão?!?! Tu se vendeu pro Béque?!
Ao ouvir aquela pergunta, Lua constatou que Dani havia chegado a
mesma conclusão que ele mesmo. Automaticamente apontou sua arma
em direção a Rocha, que protestou, gritando:
- Qualé, Lua. Baixa essa porra aí, tá maluco, caralho?! – Lua
continuava impassível, com sua arma em direção ao rosto de Rocha,
que continuava exaltado:
- Tomei tiro de graça aqui também, parceiro!
- Deixa de conversa, negão. Que que tá havendo aqui, porra ?! – Gritou
Lua.
- Quer saber?! O cara me pegou sim, me ameaçou e o caralho. Colocou
um ferro bem aqui ó, no meu olho!!! – Rocha quase espumava de raiva.
Lua parecia não acreditar no que o colega dizia:
- Como é que é, filho da puta?! – Lua aproximou-se ainda mais de
Rocha, ainda com a arma apontada.
- Mas contei tudo pro Vital, porra, no mêrmo dia! – Lua não acreditava
em uma palavra.
- Contou foi? – Ironizou o Policial Civil, demonstrando incredulidade.
Dani interferiu:
- E o Vital não ia abrir uma porra dessa pra gente?
- Sei lá, porra – respondeu Rocha. – Sei que ele falou pra eu ficar na
moita, que a gente ia usando isso contra o cara, pra eu ir "jogando".
- Tô vendo. – Disse Lua, olhando ao redor.
- Eu não ia dá mole pra entregá companheiro meu não. Ele era tão teu
amigo quanto meu, porra! – Rocha suava muito. Seus olhos estavam
injetados de sangue enquanto continuava a olhar para Lua, que
também o encarava.
- Ó, eu nunca vou poder provar nada pra vocês nada do que eu tô
dizendo aqui. O Vital morreu, isso é foda. O cara tá ganhando a porra
do jogo lá. Agora, mais do que nunca, a gente tinha que se unir,
caralho!
Dani, um pouco mais calmo, procurou amenizar a situação:
- Lua, baixa a arma.
Lua afastou-se um passo de Rocha, mas continuou com a pistola
erguida. Rocha ainda argumentava, olhando nos olhos de Lua:
- Sô PM, preto e pobre. Devo tá precisando de dinheiro, né não, meu
irmão?
Lua apertou o gatilho, atingindo o rosto de Rocha. Dani assustou-se,
arregalando os olhos. Viu o corpo desengonçado de Rocha caindo como
um pacote sem forma, o sangue gorgolejando de algum lugar de seu
rosto, coberto por uma espessa camada vermelha.
- Caralho, Lua, que que tu fez? Não tinha como tu tê certeza de nada. –
Lua abaixou sua arma, olhando, impassível, para Dani:
- Por isso mesmo que eu matei.
- Ele podia tá falando a verdade. Eu tava.... – Lua o cortou, jogando a
arma no chão e dando as costas para Dani:
- Não sei, não quero saber e nem tenho tempo pra pensar nisso.
- O Béque tá fudendo com a gente.
- Não é uma merda isso? – Replicou Lua, deixando a casa. Dani ficou
ainda mais um tempo na sala, olhando para os dois corpos na sua
frente.
Em seguida foram até o local onde estava o corpo de Vital,
profundamente abatidos e perturbados. Dani então puxou o celular e
ligou para o centro de operações, para informar o ocorrido. Dali a pouco
várias ambulâncias e viaturas tomariam o local. Antes, porém, tiveram
um último momento com o chefe. Ficaram em silêncio observando o
colega morto. Lua olhou para o cadáver, consternado. Agachou-se e
ficou a observá-lo. Dani acompanhava a cena um pouco mais de longe,
evitando olhar o rosto de Vital. A lua, que começava a aparecer no céu
escuro, era refletida na poça de sangue que molhava a terra de
Samambaia.
CAPITULO 20

- O Vital deve ter esquecido a chave de novo. – Disse Leila para si


mesmo ao ouvir a campainha, enquanto se dirigia à porta. Abriu e viu
que era Lua, com uma expressão inconfundível no rosto.
Leila cambaleou, se apoiando nos móveis da casa, lágrimas começaram
a rolar em seu rosto. Lua a levou para o sofá, onde permaneceu com ela
por mais de meia hora, enquanto a esposa do colega chorava
compulsivamente. Ligou para a mãe de Leila, explicando-lhe a história
pedindo que viesse ficar com a filha.
Passados os primeiros momentos, Leila olhou para Lua, rosto inchado e
vermelho, e perguntou como havia ocorrido a morte de Vital. Lua
começou a contar o que acontecera naquela noite. Leila soluçava a cada
frase sua. Terminada a história e após alguns minutos de silêncio, Leila
desabafou:
- Sempre que estava em casa, o Vital adorava ficar comigo nesse sofá,
acariciando o bebê. Eu olhava pra ele, parecia uma criança, tão doce,
tão sereno. – Leila voltou a chorar novamente. – Nunca mais carinho no
bebê. Lua abraçou Leila, procurando confortá-la. A campainha tocou,
era a mãe de Leila. Lua abriu a porta e mãe e filha se abraçaram,
chorando. Lua olhou para o corredor de acesso aos quartos e percebeu
que Betinho tinha acordado e, assustado, observava tudo, sem entender
o que acontecia. Leila percebeu sua presença e foi até o filho,
abraçando-o. A avó pegou a criança pelo braço e a levou para o quarto.
Lua se virou para Leila e colocou a mão sobre o seu ombro direito e
depois sobre sua barriga. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Foi
até o quarto de Betinho e lhe deu um abraço. O garoto olhou sério para
ele, como se cobrasse uma explicação. Lua olhou para o filho do amigo
e virou as costas, se dirigindo à porta e saindo sem se despedir. Estava
visivelmente abalado com a morte de Vital. Havia perdido o controle.
Paula ouviu um barulho na sala e foi até lá, de camisola. Ainda era
muito cedo e Lua já estava acordado. Na mesa uma garrafa de uísque
vazia. Lua tirou um molho de chaves do bolso do sobretudo que estava
vestindo, separou as três de acesso à casa e as colocou sobre a mesa,
ao lado da garrafa. Guardou sua pistola no coldre, virou-se em direção
à porta. A esposa perguntou:
- Você não vai levar as chaves, mesmo? – Lua parou, ficou de costas,
mão na maçaneta da porta.
- Não. – Disse enquanto se abaixava para pegar uma mochila com as
roupas que havia separado.
- Eu sinto muito pelo Vital, o Rocha.
- Você não conhecia nenhum dos dois. – Disse Lua, se virando para a
esposa.
- Eu não conheci você, Lua. – Gemeu Paula, começando a chorar.
Lua olhou para Paula e abaixou o olhar. Levantou os olhos novamente e
fitou atentamente a esposa, encarando-a:
- Sinceramente, eu te dou razão, Paula. – Disse enquanto se voltava
novamente para a porta
- No que você se tornou, Lua? – Paula chorava nervosamente com as
mãos sobre a boca.
- Policial. – Atalhou Lua, saindo e batendo a porta. Paula olhava sem
acreditar.
CAPÍTULO 21

O dia seguinte ao da morte de Vital transcorreu pesadamente. Os dois


policiais foram convocados para prestar esclarecimentos a respeito do
ocorrido. Sempre que um policial morre em serviço, a comoção interna é
enorme, assim como o empenho nas investigações para saber a causa
da tragédia. A tristeza estava estampada nos rostos de todos os colegas
de trabalho da Superintendência da PF em Brasília. O clima era de
reflexão, pois todos sabiam que qualquer um poderia ser a próxima
vítima. Em uma profissão como essa, a única coisa que fazia com que
aqueles homens e mulheres continuassem era a vocação, pelo menos
para aqueles que integravam a linha de frente do trabalho policial, como
Vital.
A partir daquele momento, para cada policial de Brasília, a caçada ao
traficante havia se tornado pessoal. Não se matava um policial e se
ficava impune, esta era a máxima de todo cana. Talvez fosse apenas o
instinto de autopreservação, mas funcionava perfeitamente.
O enterro aconteceu no cemitério Campo da Esperança, a poucos
metros do antigo local de trabalho de Rocha e Vital. O desfile de
diferentes uniformes demonstrava a grande quantidade de policiais de
todas as Forças que compareceu para prestar a última homenagem aos
colegas. Pouco antes do sepultamento, Dani foi designado para entregar
a bandeira da Polícia Federal a Leila, que chorava copiosamente, com
Betinho ao seu lado. Abraçou a esposa do colega e também chorou,
atrás dos óculos escuros. Enquanto os caixões eram depositados nos
túmulos, as sirenes das viaturas próximas foram acionadas, como
gemidos de lamento pela perda da vida de mais dois policiais mortos em
serviço. Uma guarda de honra, formada por Policiais Militares deu uma
salva de sete tiros para homenagear os dois colegas. Seus exemplos de
vida profissional e bravura seriam lembrados na galeria de heróis da
Polícia Federal.
Após uma longa manhã, Dani e Lua se encontraram na sala da
Superintendência. Sabiam que o grupo, ou o que sobrara dele, seria
desfeito. Sem Vital a frente não havia a menor possibilidade de
continuarem a trabalhar como antes. Dispunham de pouco tempo e não
tinham a menor idéia de como terminar o trabalho que o chefe iniciara.
Béque Batista havia ganhado.
Lua estava sentado na cadeira que era de Vital. Olhava desanimado
para a tela do computador. Estavam calados, frios. O telefone tocou e
Lua o atendeu, passando a mão esquerda sobre a têmpora. Ouviu e
desligou o telefone, murmurando uma despedida.
- Fizeram uma prisão, aí. Querem que a gente vá checar.
- Mas o que que é?
- Sei lá. – Disse Lua, desinteressado. – Uma turma aí que a Civil pegou
numa batida, na balada.
- Eu vou lá. – Apressou-se Dani.
- Vai mêrmo? Eu tô cansado.
Dani fez que sim com a cabeça, já se dirigindo para sair da sala.
- Dani. – O jovem parou e se virou para Lua. – O lance do Vital era
formar um time bom. O mais confiável possível. Mas isso é difícil na
polícia. – Lua fechou os olhos, suspirando lentamente. – Nem ele
conseguiu.
- Isso é o que VOCÊ tá dizendo, parceiro. Eu espero realmente que você
acredite nisso. – Os olhos de Dani acusavam o colega. Ele se referia à
morte de Rocha, na noite anterior. Lua abaixou a cabeça, não sabendo
o que pensar.
Dani chegou à Delegacia da Polícia Civil e foi logo entrando para falar
com o chefe do plantão. Cumprimentou os colegas, que foram até ele
lamentar a morte de Vital, praguejando contra Béque Batista, jurando
que iriam pegá-lo de qualquer jeito. Foi levado em seguida para a sala
de reconhecimento, de onde podia ver, através de um vidro falso, as
pessoas que estavam do outro lado, sem que elas pudessem enxergá-lo.
Aquele tipo de sala é muito comum nas delegacias policiais.
- O negócio é o seguinte, Dani. – Informou o policial civil. – Turminha da
alta. Todo mundo com pó. Como eu sei que vocês tão investigando isso
aí, pensei que podia interessar.
Dani forçou a vista, surpreso com a presença de uma pessoa no grupo.
Colou o rosto no vidro e teve certeza: Sofia estava entre os presos.
Trazia uma expressão aflita no rosto. O policial percebeu o interesse de
Dani e disse, se referindo à mulher:
- Aquela gringa ali folgou. Disse que é diplomata, mas não tem
documentação nenhuma, por isso seguramos ela. Antes de chamar o
Itamaraty, resolvemos dar um toque em vocês.
- Bem que dizem que Brasília é uma grande cidade do interior..... todo
mundo se conhece, todo mundo se esbarra. – Falou consigo mesmo
Dani.
- Conhece?
- Ahã. Isola ela pra mim.
Sofia foi levada para uma sala de interrogatórios. Sentou-se em uma
cadeira gelada de metal. O ambiente era estéril, com apenas duas
cadeiras e uma mesa com um grande tampo polido. Sobre ele pendia
uma espécie de lustre circular que lembrava um grande abajur. No
centro do lustre, uma forte luz branca iluminava o centro do ambiente,
deixando as extremidades na penumbra. A mulher estava nitidamente
nervosa e fumava um cigarro atrás do outro, trêmula.
A porta se abriu e Dani entrou na sala. Sofia ficou surpresa ao ver seu
jovem amante. Ficou calada por um segundo, de boca aberta. Dani
parou na sua frente e a encarou. Sofia disparou, incrédula:
- Você é polic.....
- Sô. – Respondeu Dani, interrompendo.
Sofia sorriu pela primeira vez, desde que chegara à Delegacia.
Inusitadamente se sentiu satisfeita por encontrar o rapaz. Tragou mais
uma vez o cigarro e inquiriu o policial:
- Você não me ligou. – Disse enquanto cruzava as pernas, fazendo o seu
gesto parecer sensual. – E o que acontece agora, Daniel?
- Me conta qualquer coisa. – Ordenou secamente o policial.
- Como assim?
- Qualquer coisa. – Insistiu Dani.
- Não tenho nada pra di.....
Dani deu um violento tapa na cara da mulher antes que ela terminasse
a frase. O cigarro voou contra a parede branca ao lado de Sofia. Um fino
filete de sangue escorreu de sua boca, manchando o chão claro da sala.
Seu olhar de medo, emoldurado pelos cabelos desgrenhados,
denunciava que estava assustada e nervosa. Não esperava que Dani
agisse daquela forma.
- Você me diz alguma coisa e sai daqui, livre e sem ocorrência. Você não
diz nada e fica por tua conta. Amanhã os jornais vão ter uma ótima
primeira página. Antes que você arrume qualquer documento pra
provar que é diplomata, os jornalistas já vão estar aqui, e seus chefes
irão adorar a notícia.
- Mas o que você quer saber, mèrde?! – Gritou. O nervosismo estava
patente na voz de Sofia.
Dani virou de costas. Não tinha a menor esperança que a francesa lhe
desse alguma informação importante, mas não custava perguntar:
- Béque Batista. Você já ouviu falar dess.... – Antes de terminar, Sofia
começou a gargalhar.
- Que que cê tá rindo?
Sofia se levantou, ficando bem próxima a Dani. Começou a alisar seu
pau sobre a calça e falou no seu ouvido:
- Todo mundo nessa cidade, na high society, sabe onde tá esse cara. –
Dani a ouvia, atento. – Pelo jeito só a polícia que não. – Sofia começou a
beijar o pescoço de Dani, lambendo sua orelha. Seu sangue se
espalhava no pescoço do policial. – Você quer o Carlos Batista? – Eu te
dou o Béque Batista.
Os dois começaram a se beijar. Sofia pegou a mão de Dani, colocando-a
no meio de suas pernas. O policial introduziu a mão dentro de sua
calcinha, penetrando-a com um dos dedos. Os dois continuavam a
trocar carícias. Repentinamente Dani parou e se afastou de Sofia,
olhando-a nos olhos. Ela riu, dizendo:
- Pega...
Dani começou a tirar a mão da calcinha de Sofia. Olhou para um
pequeno cilindro que segurava com a ponta dos dedos.
- Foi a única coisa que eu consegui esconder dos seus colegas.
Dani levou o pequeno recipiente, cheio de cocaína, para próximo ao seu
nariz, cheirando-o. Olhou novamente para Sofia, que o fitava com um ar
divertido:
- Guarda com você. Você vai precisar.
- Arruma suas coisas. – Determinou Dani, se encaminhando para a
porta da sala. Já ia saindo quando se voltou novamente para Sofia, com
uma cara de interrogação. – Você não tem medo não?
- No momento, só de você. – Falou, já se preparando para seguir Dani,
que deixava a sala.
CAPÍTULO 22

No interior de um de seus esconderijos, Béque estava sentado em uma


cadeira azul de madeira. Sua expressão era tensa. Ao seu lado, diversas
pontas de cigarro em um cinzeiro exalavam um cheiro ruim, misturado
à fumaça impregnada no ambiente. Ciro apareceu na porta.
- E aí, Ciro? E o Gallo?
- Nem sinal dele, chefe. Será que pegaram ele? – Respondeu
preocupado.
- Não. – Adiantou-se o traficante, enquanto batia as cinzas de mais um
cigarro no cinzeiro já cheio. Fez uma pausa. – Porra, mas que merda!
- Que que tá havendo, Béque?
- Acha o Gallo e mata.
- Tudo bem. – Assentiu Ciro, surpreso. - Se é isso que você quer, eu.....
- O que eu quero?! Não, porra, não é isso que eu QUERO. É isso que eu
TENHO que fazer.
O capanga de Béque apareceu, enfiando a cara através da porta.
Cumprimentou Ciro, que já saía do cômodo. Virou-se para Béque:
- Tua ligação tá pronta. – Disse, entregando-lhe o telefone.
- Alô
- E aí, como é que tá?
- Tá indo, mas tá foda.
- Fica frio, Béque. Pediram pra eu te falar pra ficar tranqüilo. Aconteça o
que acontecer, não esquenta.
- OK. – Disse o traficante, desligando o telefone, pensativo.
Do outro lado, uma mão repousava o telefone sem fio em sua base, em
uma suntuosa sala do Congresso Nacional. O homem que falara com
Béque se levantou de sua mesa com tampo de vidro. Pegou uma maleta
de executivo e se virou para ver se havia esquecido algo. Ao lado da
mesa havia dois mastros, com as bandeiras do Brasil e de Brasília.
Atrás da cadeira, no alto, colada à parede de vidro, a foto do Presidente
da República, de costas para a vista do Palácio do Planalto e do
Supremo Tribunal Federal. Ao lado do telefone, uma pasta com o brasão
da Câmara dos Deputados. Sob o símbolo, lia-se: COMISSÃO
PARLAMENTAR DE INQUÉRITO DO NARCOTRÁFICO. O homem saiu
da sala, desligando as luzes do recinto. Estava colaborando para a
campanha de economia de energia elétrica do prédio.
CAPÍTULO 23

Os primeiros raios de sol iluminavam o céu de Brasília, provocando um


espetáculo único de luzes. A geografia plana da capital proporcionava
uma excelente visibilidade do horizonte, que clareava com o passar dos
primeiros momentos do dia. O movimento de pessoas aumentava na
rodoviária da cidade, que a essa hora já acolhia milhares de
trabalhadores vindos das cidades-satélites. Já havia fila na pastelaria
Viçosa, ponto tradicional de café da manhã na estação rodoviária. De lá,
os usuários de transporte público podiam observar a Esplanada dos
Ministérios à leste. O grande "H" do Congresso Nacional sobressaía-se
do restante do conjunto arquitetônico, ladeado pelos imensos prédios do
Governo Federal.
Próximo ao mastro da bandeira, Dani fumava um cigarro, enquanto
apreciava o nascer do sol. Estava em pé ao lado de sua moto, pensando
nas informações passadas por Sofia durante a madrugada. Lembrou-se
de Vital e prometeu a si mesmo trabalhar ainda mais duro para prender
Béque Batista. Recordou-se também de Rocha, se perguntando se o
colega morto havia ou não falado a verdade. Surpreendia-o também o
fato de não ter tomado qualquer atitude legal contra Lua, que a seu ver
havia cometido uma atrocidade ao matar Rocha. Não entendia porque
agia daquela forma, mas sabia que não iria denunciar o colega. Como as
coisas mudam, e como a gente muda.
O telefone celular tocou quatro vezes até Dani perceber.
- Alô
- E aí, Dani, novidade? – Era Lua.
- Acho que sim. Tinha uma conhecida minha lá.
- Informante?
- Mais ou menos. Abriu que é cliente do cara e deu a idéia de onde ele
tá.
- Dá pra confiar?
- Ela não é louca. Quer dizer....... é....
Os dois policiais conversaram um pouco mais e desligaram o telefone.
Dani estava bastante nervoso com os últimos acontecimentos. Pensou
em sua vida e reparou que deixara de ser uma pessoa normal e se
transformara em um policial que dedicava todo o seu tempo e sua
energia ao serviço. Sabia que com as informações que havia conseguido
com Sofia, era uma questão de horas para que uma grande operação
fosse desencadeada, o que o levaria novamente para o inferno. Sabia
que Lua aproveitaria a revolta provocada pela morte do chefe para
agilizar o mais rapidamente possível uma operação de caça a Béque
Batista. Prometeu a si mesmo que arriscaria tudo para prender o
traficante. Lembrou-se de algo e meteu a mão no bolso da calça,
retirando o cilindro que Sofia havia lhe dado. Cheirou o pequeno
recipiente, sentindo o cheiro do sexo da mulher. Sem pensar, abriu-o,
olhando seu conteúdo. Virou o vidro, deixando o pó branco depositar-se
na palma da sua mão esquerda. Hesitou por um instante. Levou a mão
ao nariz e no último momento desistiu de aspirar a cocaína,
derramando-a sobre o tanque da moto, em um movimento nervoso. Não
iria sucumbir à mesma fraqueza que levava tantas pessoas a
financiarem uma atividade que matou seus colegas mais próximos.
Arrancou com a moto, saindo a toda velocidade pela Esplanada.
Eliézer Gallo estava hospedado em um pequeno hotel na Estrada
Parque Taguatinga, via de ligação entre aquela cidade-satélite e o Guará
e Plano-Piloto. Ciro e Messias, o capanga de Béque, foram até lá para
cumprir a ordem do chefe. Entraram no quarto de arma em punho, não
conseguindo visualizar seu interior, pois a luz do fim da madrugada,
através das cortinas, não era suficiente para iluminar todo o recinto.
Antes porém que pudessem acostumar os olhos com a escuridão do
quarto, Ciro sentiu o frio do cano de uma pistola encostar na sua
têmpora direita. De canto de olho divisou Gallo, que lhe apontava a
arma. Automaticamente Ciro e o capanga abaixaram suas armas.
- Irmão - Gallo conversava com Ciro, imprimindo um tom quase gentil à
voz. – O Béque tá certo. Sou um arquivo vivo, muito maior do que a
Federal achou no meu computador........ isso com certeza. – Respirou e
continuou a falar, encarando Ciro nos olhos. – Nós três somos: tu, ele e
eu, mas a gente não precisa se matar por causa disso. Não pretendo
abrir o bico pra ninguém, nunca.
Ciro ouvia atentamente as palavras de Gallo, sem ao menos respirar
mais fundo. O capanga permaneceu imóvel, em silêncio, olhando para
os dois. O clima era tenso. Gallo continuou:
- Só quero uma chance. Sumir. Tenho como. – Falava convictamente. –
Um ou outro pode até me pegar um dia, mas só quero uma chance. –
Gallo terminou de falar e abaixou sua pistola, colocando-a na cintura.
Ciro e o capanga continuavam a empunhar suas armas ao lado do
corpo. Olharam-se por um momento e Ciro ordenou que Messias
guardasse sua arma, fazendo o mesmo com a sua. Gallo os observava,
nervoso. Sabia que a aposta era alta, mas tinha de fazê-la.
Ciro voltou-se para Gallo, dando-lhe um forte abraço. Olhou para o
capanga, fazendo-lhe um sinal com a cabeça para irem embora. Deu as
costas para Gallo, sendo seguido de perto por Messias. No segundo
seguinte, Gallo sacou sua pistola da cintura e deu três tiros nas costas
do capanga, que despencou no chão do quarto. Ciro continuou
andando, sem olhar pra trás.
- A gente não precisa de testemunha pra esse nosso encontro, Ciro.
- Boa sorte, cara. – Respondeu o outro, sem parar de caminhar.
- Pra você também.
Béque estava sentado na cadeira de seu esconderijo, na penumbra.
Aguardava, ansioso, notícias de Ciro. Temia por sua segurança, caso
Gallo fosse preso. Ele era um dos únicos que sabia detalhes das
transações de compra e venda de drogas, e por isso, se abrisse para a
polícia, Béque seria um alvo fácil para a Federal. O telefone tocou
apenas uma vez antes que o traficante atendesse.
- O Gallo escapou.
- Como é?
- Matou o Messias e escapou.
Béque permaneceu em silêncio, assimilando a informação e pensando
como agiria diante da novidade.
- Não volta pra cá, não, Ciro. Se manda, cai fora. – Determinou,
desligando o aparelho.
Um helicóptero da Polícia Federal e outro da Civil acompanhavam um
comboio de viaturas do Comando de Operações Táticas da PF e do
Batalhão de Operações Especiais, que seguiam em alta velocidade em
direção à Invasão da Estrutural, localizada entre o Plano-Piloto e
Taguatinga. Trata-se da maior invasão do DF, uma dor de cabeça para
os administradores de Brasília, que há muito tentam arranjar uma
solução para retirar os moradores dali, sem sucesso, apesar das
inúmeras tentativas. A década de 90 foi marcada pelos embates entre
os moradores e a Polícia Militar, sendo que em uma das operações
foram mortas várias pessoas que se suspeitava estarem envolvidos na
morte de um PM. Uma das vítimas sobreviveu apesar de ter sido
fuzilada por policiais em uma área de cerrado. Ainda hoje é protegido
pela polícia e é testemunha do inquérito policial militar instaurado para
investigar o massacre. A invasão da estrutural é um enorme conjunto
de barracos que se localiza em uma região privilegiada da capital,
apesar de ser bem próxima ao aterro sanitário de Brasília, conhecido
por lixão. O grande problema é que também ocupa uma área de
proteção ambiental.
O comboio entrou na rua principal da invasão. Entre as viaturas estava
a moto de Dani. A poeira era abundante, já que não havia ruas
pavimentadas no local. O cheiro de lixo era forte. As pessoas assustadas
trancavam-se em suas casas, fechando as janelas dos barracos.
Algumas crianças na rua apontavam para as viaturas, extasiadas com o
que viam, sem saberem do perigo que se aproximava. O comboio em
determinado momento se dividiu. Parte dos carros parou em frente a
uma casa localizada no final de uma rua. Dani estava entre eles. Outras
viaturas bloquearam as duas extremidades da rua, impedindo a entrada
ou saída de pessoas e automóveis. Os dois helicópteros continuavam a
voar no perímetro da invasão, informando ao pessoal do solo a
movimentação lá embaixo.
Os policiais começaram a descer dos veículos. Lua deixou um dos
carros, vestido com um uniforme tático e colete a prova de balas.
Carregava outro colete na mão, estendendo-o a Dani, que já pegava um
fuzil-metralhadora no bagageiro de uma viatura preta. Seus olhos
estavam injetados e seus movimentos eram bruscos. Estava
extremamente nervoso com a possibilidade de enfim encontrar Béque
Batista.
- Tudo bem aí, garoto? – Perguntou-lhe Lua.
- Tudo.
Dois policiais militares arrombaram o portão velho da casa, enquanto
uma equipe de entradas táticas já se posicionava junto à porta,
aguardando ordens para entrar. Lua e Dani estavam entre eles. Policiais
do BOPE davam cobertura à ação. Um dos policiais chutou a frágil
porta do barraco e o grupo entrou. A tensão natural nesse tipo de ação
era potencializada pelo barulho constante dos helicópteros que
acompanhavam tudo de cima.
Na sala vazia ainda queimava um cigarro em um cinzeiro cheio de
pontas. Em um canto, uma TV estava ligada. Havia também restos de
comida em alguns pratos, e copos parcialmente cheios de bebida sobre
uma mesa. Lua e Dani se entreolharam. Sabiam que se Béque estivera
ali, não havia para onde pudesse ter fugido. Alguns policiais começaram
imediatamente a checar os demais cômodos da sala. Lua e Dani se
dirigiram a um dos quartos. Era o escritório de Béque. De um outro
cômodo, um policial gritou, chamando a atenção dos demais. Havia
encontrado um túnel no canto do quarto. Todos se dirigiram
rapidamente pra lá.
Policiais do COT começaram a ligar suas lanternas e a entrar no túnel,
atendendo aos comandos do chefe da equipe. Dani e Lua iam logo atrás.
Um a um os outros policiais também desceram, formando uma grande
fila de homens agachados, no escuro do túnel somente suavizado pelos
fachos das lanternas. Não conseguiam enxergar o fim do buraco e
somente ouviam o som dos passos rápidos sobre o chão úmido e
pegajoso. Lua e Dani, no meio do grupo, seguiam tensos, torcendo para
chegarem logo à saída.
Ao chegarem ao final do túnel, os policiais perceberam que ele
terminava em uma espécie de galpão mal acabado. Perceberam um
vulto correndo através de um vão de uma das paredes do galpão. Um
dos policiais do COT atirou em direção a ele, não conseguindo atingi-lo.
Assim que saíram do túnel, a equipe se posicionou para avançar.
Cautelosamente foram se deslocando em direção ao vão, em completo
silêncio. A tensão podia ser sentida nos olhos de todos.
Lua, com sua pistola empunhada, se posicionou à frente do grupo,
junto ao chefe da equipe do COT. Chegaram à abertura e cada um dos
dois se posicionou em um dos lados, juntos à parede. Olharam
rapidamente pela saída, percebendo que se tratava de um corredor
vazio. Rapidamente Lua se posicionou atrás de uma pilastra, no outro
lado do galpão, atento a qualquer ruído.
Dani, logo atrás do líder do COT, trocou um olhar com Lua, fazendo
sinal para os outros policiais avançarem, enquanto começou a seguir
pelo corredor. Lua continuava o seu deslocamento cautelosamente por
uma das paredes da construção, esgueirando-se pelos cantos do
corredor, atento a qualquer movimentação a sua frente.
O grupo de policiais enfim chegou ao final do corredor. Dani avançou
em direção a uma coluna, protegendo-se atrás dela para observar a
situação à frente, percebendo uma movimentação de pessoas.
Rapidamente olhou para a equipe, fazendo sinal para todos avançarem.
Olhou novamente para frente e viu, de relance, Béque Batista
escapando pelos fundos, enquanto três homens lhe davam cobertura.
Ainda mais tenso com a certeza da presença do traficante, Dani saiu de
trás da coluna e escondeu-se atrás de uma pilha de máquinas de vídeo-
pôquer jogadas em um dos lados ao final do corredor. Mal acabou de se
abrigar, ouviu uma rajada de metralhadora e viu vários pedaços das
máquinas sendo arrancadas pelas balas. Então o tiroteio começou. O
grupo de policiais respondeu ao fogo imediatamente.
Ao ouvir o barulho dentro do galpão, Béque tensionou o rosto,
endurecendo a feição de nervosismo. Olhou rapidamente para trás e
apertou o passo, correndo em direção a um conjunto de barracos.
Ouviu o estampido de um tiro mais próximo, percebendo a queda de um
dos três seguranças que o acompanhavam. O segundo capanga voltou-
se e respondeu com vários tiros em direção a Lua, que se escondeu
atrás de um tonel de ferro.
Dentro do galpão a situação era de guerra. Policiais e criminosos
trocavam tiros quase à queima roupa, tamanha era a proximidade entre
eles. Os homens de Béque estavam visivelmente drogados, o que lhes
dava uma ousadia ainda maior:
- E aí, "fedéras", vieram aqui morrê?! Nóis num tem medo de morrê não,
mêrmão! – Provocou um dos criminosos.
- Bom pra vocês – Respondeu prontamente um dos policiais.
Dani continuava a atirar quando viu a movimentação de Lua, que
deixava o galpão. Preocupado com o colega, puxou o rádio, chamando
por ele:
- Tá na cola do cara, Lua?!
- Tô. – Respondeu Lua, enquanto corria por uma das ruas de terra da
invasão.
- E como é que eu vou te achar nesse labirinto?
- Segue o som dos tiros.
Dani guardou o rádio preocupado com Lua. Tinha que dar um jeito de
sair dali para ajudar o colega. Ainda restavam dois traficantes no
galpão, que concentravam o fogo em direção à saída, dificultando
qualquer tentativa policial de perseguir Béque. Dani então recuou e
tomou o caminho que Lua havia feito, descobrindo uma janela
quebrada por onde Lua havia conseguido sair do galpão.
A essa altura não se via nenhum movimento de moradores na Invasão
da Estrutural. Somente traficantes e policiais eram vistos correndo de
um lado para outro. No interior de um dos barracos, um menino e uma
menina, abraçados ao pai, acompanhavam apreensivos o tumulto do
lado de fora. Estavam na sala da casa, quase em pânico. No quintal, um
cachorro latia sem parar. Béque entrou na casa, observando os
moradores. Atrás dele entrou um dos capangas. O senhor olhou para os
invasores e assustou-se com as armas que carregavam. Demonstrou
conhecer Béque, que lhe disse:
- Calma, não vou fazer mal pra ninguém. – O dono da casa assentiu
com a cabeça, nervoso. – Confia em mim. – Acrescentou o traficante.
Naquele momento, Lua entrou bruscamente na casa, apontando a
pistola para os dois criminosos. Rapidamente Béque pegou a menina
como refém. O capanga, nervoso, ficou em posição de reação, sem saber
exatamente o que fazer. O policial olhou para o senhor e para as
crianças, uma em poder de Béque. Não podia confiar em ninguém.
Sentiu-se no "covil do lobo". O garoto que estava próximo ao velho se
mexeu. Lua lhe apontou a pistola, advertindo:
- Não se mexe, garoto.
O garoto fez menção de se mexer novamente, quando Lua atirou contra
sua cabeça. O senhor, que até aquele momento estava quieto, começou
a gritar. Lua voltou sua atenção para o velho, quando o capanga atirou
contra o policial, acertando-o no pescoço, de raspão. Béque aproveitou a
situação e empurrou a garota para trás de um sofá. Lua atirou no
capanga. Béque descarregou sua arma contra Lua, que apesar de estar
usando colete, foi ferido no tórax, em um dos braços e na perna.
Cambaleante e sem forças, respondeu à queima-roupa os tiros. O
tiroteio foi intenso e aproximado. Um dos tiros atingiu o pai das
crianças, que caiu sobre o corpo do filho. A menina continuou atrás do
sofá, chorando e gritando pelo pai, que jazia no chão de boca aberta
sobre seu sangue misturado ao do filho.
As armas de Lua e Béque travaram, sem munição. Lua apalpou o corpo
à procura de um outro carregador, mas sabia no fundo que aquele era o
último. Estava sentado no sofá, em frente a Béque, que procurava
manter a calma enquanto retirava, trêmulo, um "pente" do bolso. O
bandido deixou cair o carregador que estava no interior da arma, sem
tirar os olhos do policial, que respirava com dificuldade.
Lua tentou se levantar, cambaleando. Largou sua pistola, sentindo-se
fraco por causa dos ferimentos. Respirou fundo e voltou a se sentar no
sofá. O barulho dos tiros do lado de fora diminuíam. Olhou para o
garoto que acabara de matar, caído no chão e de olhos abertos para ele.
Ouviu o som da arma de Béque sendo engatilhada e pensou em Paula.
Pensou no insucesso que havia sido sua vida e julgou que não havia
lugar mais justo para morrer do que aquele. Lembrou-se de Rocha e se
arrependeu do que fizera ao colega. O inferno não deve ser pior do que
isso aqui. Fechou os olhos, lamentando seu destino. Sentiu a
aproximação da arma de Béque contra seu rosto. Abriu os olhos apenas
para ver movimento do dedo do traficante acionando o gatilho. Não pôde
ver o segundo disparo, pois já estava morto. Tombou próximo ao garoto,
seu rosto em frente ao dele, como se o encarasse, em um pedido de
perdão àquele que não pudera viver mais do que alguns anos.
Béque saiu da casa somente alguns segundos antes de Dani chegar. O
jovem policial havia corrido com todas as suas forças para prestar ajuda
ao colega. Ao entrar na sala do barraco, percebeu que não tinha
chegado rápido o suficiente. Olhou para Lua e para os outros dois
corpos. Percebeu a presença da menina, que chorava encolhida em um
canto do lar miserável. Desprezou sua presença e foi até os quartos,
revistando-os cautelosamente. Não achou ninguém. Transtornado,
começou a derrubar as panelas que estavam sobre uma pia
improvisada na cozinha e a chutar um armário velho, de onde
começaram a cair vários objetos.
Foi até a saída dos fundos e continuou a procurar Béque. Um dos
helicópteros sobrevoava o quintal da casa. Em um cercado no fundo do
quintal, um rotweiller latia raivosamente. Dani se assustou com o
tamanho do cachorro. Chegou cuidadosamente perto do limite do
quintal, que acabava em um barranco. Olhou, através da mira da
pistola, para baixo, esperando encontrar Béque. Não havia ninguém.
Sacou o rádio e começou a indagar as equipes:
- Algum sinal do Béque, Unidade 1?
- Negativo, Dani.
- Unidade 2, avistou o alvo?
- Nada por aqui também.
- Apoio aéreo, e aí?
- Um segundo. Estou terminando a verificação.
Enquanto aguardava, Dani começou a andar impacientemente de um
lado para outro do quintal. Parou, esfregou as têmporas, ainda sob
efeito da cocaína. O cachorro latia sem parar, o que aumentava sua
raiva. Novamente olhou para todos os lados, não vendo ninguém. Os
dois helicópteros agora sobrevoavam sobre sua cabeça, à procura de
Béque.
- Negativo, Dani, nada aqui de cima.
Dani começou a se afastar do barranco, desnorteado. Não acreditava
que mais uma vez ia perder para Béque Batista. Virou-se, abaixando a
arma e retornando para o interior da casa, desanimado. O cachorro
começou a latir mais alto. Dani olhou novamente para o canil
improvisado. Então algo lhe chamou a atenção. Empunhou novamente
a arma e se encaminhou para o canil. Lá dentro, em um minúsculo
espaço cheio de merda de cachorro, Béque se escondia encolhido e
imóvel, apesar da nuvem de moscas, que pousavam sobre seu rosto.
- SAI DAÍ !!! – Ordenou Dani, com raiva.
Béque começou a sair da casinha, levantando a arma pelo guarda-mato
do gatilho, para que Dani pudesse vê-la. Levantou-se e jogou a arma
longe. Dani continuava a apontar a pistola em sua direção. Béque, todo
suado e sujo, fazia sinal de rendição, levantando os braços, trêmulo e
nervoso. Chegou até a porta do canil.
- Pode abrir. – Determinou o policial.
Béque abriu e instantaneamente o cachorro saiu e avançou contra
Dani. O policial abaixou sua arma e deu dois tiros contra o cão, que
caiu ganindo de dor. Rapidamente voltou sua arma novamente em
direção à cabeça de Béque. Revistou-o bruscamente, e quando acabou,
olhou nos olhos do traficante e bateu violentamente com o cano da
arma contra a cara do bandido, fazendo com que caísse no chão, com
as mãos sobre o rosto, gemendo de dor. Dani apontou novamente em
direção a Béque, engatilhou a arma e começou a apertar o gatilho.
Queria fuzilá-lo ali mesmo, para vingar a morte de seus três
companheiros. Pensava em quantas vidas aquele homem havia
destruído, inclusive a sua. Sentia-se sem vida, um morto-vivo. A vida
não valia a pena. Abaixou a arma e levantou-a novamente, chorando de
raiva, com os dentes travados e cara de dor. Devia matá-lo ali mesmo.
Foda-se!
Béque fechou os olhos e esperou o tiro que encerraria sua vida. Dani o
observava encolhido covardemente naquela pocilga de lugar. Abaixou-se
e deu outro murro no lugar do ferimento, de onde começou a jorrar
sangue no mato do quintal. Lágrimas brilhavam na face de Dani,
fazendo um trilho no rosto impregnado pela poeira. Dani chorava
reprimindo um gemido de dor, uma dor moral que resumia todas as
outras dores e frustrações que havia vivido durante o pouco tempo de
serviço policial. A dor de ter perdido a inocência, a fé na vida, a alegria e
a esperança. Nada mais existia, somente a raiva daquele mundo,
vergonhosamente destruído por pessoas como aquela que estava
prestes a matar. Apontou a arma uma terceira vez em direção à cabeça
do homem caído, e no momento em que ia desferir o golpe final,
lembrou-se de Vital, percebendo que, se matasse Béque, estaria dando
a vitória definitiva ao mal, a tudo aquilo que naquele momento o fazia
sofrer. Deu um grito de raiva, abaixou-se e virou o traficante de cara
para o chão de terra. Tirou as algemas do cinto e colocou-as nos braços
de Béque, entregando-o a uma equipe de policiais que chegava naquele
momento.
CAPÍTULO 24

O inferno, visto de cima, deve ser bem parecido com a paisagem


observada pelos policiais que sobrevoavam a invasão da estrutural.
Vários corpos eram retirados das ruas sujas e fétidas da favela. Na
manhã seguinte os jornais gastariam seu precioso tempo comentando
as causas daquela guerra urbana. Chegariam à conclusão que mais
uma vez a culpa era da polícia, incapaz de conter a violência.
No interior de um apartamento de classe média, um garoto girava em
torno de si mesmo. Nunca mais poderia mostrar suas brincadeiras para
o pai. A mulher, viúva precoce, procurava esquecer, na companhia de
um copo de uísque, as dores de ter perdido o marido, morto por uma
criança, igual aquela que girava e girava à sua frente.
Os passageiros do DC-10 que sobrevoava o pacífico em direção ao Havaí
tinham certamente uma visão mais agradável ao olharem pelas janelas
do avião. O céu límpido e a água azul do arquipélago nem de longe
lembravam o trágico cenário policial que se descortinava no planalto
central brasileiro.
Os copos de uísque, que eram sorvidos com prazer pelos passageiros,
não tinham por objetivo esquecer a dor da perda, mas antecipavam os
prazeres do passeio. Sentado em uma das poltronas, mexendo as
pedras de gelo com um dos dedos, ia Sam Rhames, desfrutar suas
merecidas férias. Ele nem se lembrava da guerra que estava sendo
travada em todo o mundo por causa das drogas. Naquele exato
momento isso não era, nem de longe, uma de suas preocupações.

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