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Por J. Monteiro
Romance baseado no roteiro do filme
CAPITULO 1
A cena daquela manhã no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, não era
nada comum no local de moradia dos poderosos da Capital Federal.
Acostumados à segurança de suas mansões, desconheciam o cheiro
metálico do sangue que se espalhava por todo o quarteirão da casa, de
onde podiam ser vistos vários policiais que dali entravam e saíam. As
viaturas estacionadas de modo desorganizado por toda a rua indicavam
que algo de muito grave ocorrera, suspeita que se agravava com a
constante chegada de repórteres, ávidos por saber o que havia ocorrido
no lugar onde eram mais comuns as notícias dos cadernos sociais da
cidade. O lugar estava um pandemônio.
O Lago Sul havia se tornado o bairro mais chique de Brasília, dentre
outros motivos, porque ficava na orla do Lago Paranoá, construído junto
com a capital, para amenizar o clima seco do planalto central brasileiro.
O lago oferecia uma barreira entre o bairro e o Plano Piloto, garantindo
um belo refúgio àqueles que podiam pagar pela privacidade e pela
grande área propícia à construção de mansões luxuosas. A região sul da
cidade foi ocupada e urbanizada em primeiro lugar, o que possibilitou
que se desenvolvesse pelo menos uma década antes da parte norte, o
que tornou o bairro ainda mais valorizado, situação que perdura até os
dias de hoje. Moram ali os grandes empresários e o alto funcionalismo
público, assim como as pessoas que ganham dinheiro através do crime:
do grande tráfico de drogas e de influência, da corrupção e de um sem
número de delitos que torna poderosa grande parte da população
lacustre.
A varanda da casa, no entanto, em nada lembrava a tranqüilidade
cotidiana do local. No chão, recoberto de granito, jaziam três corpos,
nus e mortos. A movimentação de peritos era grande: um deles
fotografava o corpo crivado de balas de um rapaz, atingido sete vezes
por todo o corpo, mergulhado em uma poça de sangue vermelho escuro.
As balas haviam arrancado parte do maxilar do jovem de cerca de 23
anos, além de terem penetrado pelas costas na altura do coração e
pulmões. Ao seu lado, quase empilhados, dividiam o mesmo espaço
sobre o chão negro mais dois corpos: o de uma mulher de meia-idade e
de um senhor idoso, ambos também mortos a tiros. A expressão no
rosto do homem demonstrava o medo que sentira em seus momentos
finais. Seus olhos quase saltavam das órbitas, mesmo depois de sem
vida, e sua boca escancarada parecia ainda ser capaz de emitir algum
som, algum pedido de socorro, que não apareceu a tempo.
As conversas entre os policiais eram sussurradas. Mesmo para homens
acostumados com a tragédia, uma situação como aquela era
repugnante. Outros dois peritos examinavam os outros corpos, com
lenços sobre o nariz. Não se acostuma nunca com o cheiro da morte. A
poucos metros de distância, dois policiais militares também observavam
a cena, consternados.
A sala contígua à sacada, que naquele momento servia de depósito de
corpos, era bem decorada. A cristaleira posicionada no outro extremo
do lugar recebia, através dos vitrais multicoloridos, uma iluminação
safirina, fazendo parecer que um arco-íris se formava da refração da luz
sobre os copos e talheres do móvel. Tinha três ambientes, cada um com
um jogo de grandes sofás. Vital estava em frente a um deles, pensativo,
procurando vislumbrar o que havia ocorrido naquele mesmo lugar
poucas horas antes. O distintivo da Polícia Federal na cintura, já gasto
pelo tempo, parecia embotado como ele próprio, de certa forma cansado
do cotidiano de tragédias. Quando isso vai acabar? Pensava, tendo a
certeza de que não viveria para ver um mundo melhor. Pensava no
pequeno Alberto, em sua mulher grávida do segundo filho, no que o
mundo havia se tornado e como seria quando seus filhos tivessem sua
idade. Tinha 54 anos, quase a metade deles no serviço policial, e
atualmente chefiava um grupo de repressão ao tráfico de drogas.
- E aí, chefe. - Interrompeu Lua, um dos policiais de sua equipe.
Vital assentiu com a cabeça. Os dois passaram a caminhar juntos,
observando a decoração do recinto, as flores nos vasos, enquanto
voltavam ao local dos crimes. Ao cruzarem o umbral que dava acesso à
varanda, encontraram Rocha e Dani. Os quatros policiais formavam
uma equipe que trabalhava na divisão de entorpecentes da Polícia
Federal. Rocha e Lua, apesar de não fazerem parte da Instituição,
haviam sido recrutados da Polícia Militar e Civil do Distrito Federal para
comporem uma célula investigativa sob o comando da PF.
Lua tinha 37 anos. Estava há 12 na Polícia Civil, tempo suficiente para
descobrir que a guerra contra o tráfico de drogas estava perdida.
Conhecera Vital durante uma investigação conjunta três anos antes,
quando conseguiram, juntos, prender o maior traficante de cocaína da
região centro-oeste. A investigação havia durado mais de seis meses,
mas no dia de efetuar as prisões o grupo subestimou o poder de fogo da
quadrilha. Houve um grande tiroteio. Lua, em certo momento, se jogou
na frente do chefe, levando um tiro no colete para proteger Vital. Foi
convidado em seguida a fazer parte de sua equipe, no lugar de Seixas,
morto na mesma troca de tiros. Era casado havia sete anos, mas Paula,
sua esposa, não estava mais disposta a suportar a vida que o marido
lhe oferecia. Após um ano de casado, Lua quase não parava em casa. As
investigações tomavam todo o seu tempo, e sua saúde. Chegava em
casa quase sempre bêbado. Como grande parte dos policiais, havia se
tornado alcoólatra. Paula o havia convencido a procurar ajuda nos
Alcoólicos Anônimos, o que ajudou muito o marido nos problemas com
a bebida. Estava limpo já havia alguns meses. Mas Lua, além do vício
do álcool, era também viciado no trabalho policial, e sempre deixava a
mulher em segundo plano. Jamais dizia aonde ia nem quando voltaria
para casa. Seu casamento estava no fim e sabia disso. Amava a esposa,
mas não tinha forças para procurar a reconciliação.
- E aí, chefe. - Cumprimentou Rocha.
- Que merda, hein? - Acrescentou Dani.
Os quatro, lado a lado, passaram a caminhar entre os corpos. Vital
parou, olhando em volta e perguntou:
- Concorrência isso aqui, Dani?
Dani discordou:
- Que nada. Cobrança de dívida, eu já te explico. Os colegas do Rocha aí
da PM foram os primeiros a chegar, daí ele me ligou.
Rocha assentiu enquanto Lua, próximo a Dani, olhava em volta,
observando a chacina. Filho de uma família de classe média alta, Daniel
havia ingressado na PF havia pouco mais de três anos. Tinha 26 e havia
sido convocado para a entorpecentes devido a sua coragem e habilidade
com armas. Havia sido o melhor atirador de seu curso de formação,
tendo chamado a atenção de Vital, que fora seu professor na Academia.
Na infância, nunca havia pensado em ser policial. Seu pai, bancário e
sua mãe, advogada, o incentivaram quando disse que queria fazer o
vestibular para psicologia. Quatro anos depois, logo após a formatura,
censuraram sua escolha quando anunciou que gostaria de fazer
carreira na polícia. Não houve, no entanto, quem o demovesse da idéia.
- Meu filho, vá pelo menos para a Polícia Federal, que é mais respeitada
- Aconselhou o pai.
A tristeza foi maior quando informou à família que teria de se mudar
definitivamente para Brasília, distante quase 2.0000 km da capital
paranaense. Seus pais iam vê-lo periodicamente, e ficavam preocupados
com a vida que o rapaz levava.
Os funcionários do IML começaram a recolher os corpos para o rabecão,
apelido dado ao carro da polícia que armazenava os defuntos e os
encaminhava para a necropsia.
- Só tem esses três mêrmo? - Perguntou Vital a um dos funcionários,
que acabava de colocar suas luvas de proteção.
- Não, não – Adiantou-se Dani – Tem mais um. Disse apontando para o
canil, onde havia uma movimentação de enfermeiros. Vital abaixou a
cabeça, desanimado, suspirou e começou a caminhar em direção ao
quarto corpo, sendo seguido pelo restante da equipe.
Chegando próximo à grade de um canil, passaram por um pastor
alemão caído perto da entrada da casinha. O cheiro de sangue
misturado ao das fezes e urina do cachorro era enauseante. Lembra o
fedor de motim em presídio, pensou Rocha. Ele sabia muito o bem o que
era isto.
O soldado Rocha era um negro de cerca de 37 anos. Filho de pais
pobres, moradores da periferia, era considerado a pessoa mais bem-
sucedida da família. Depois de uma infância difícil se viu em um
dilema: estudar ou entrar para o mundo do tráfico de drogas. Escolheu
o primeiro, pois apesar de menos rentável, lhe proporcionava uma
segurança que sempre havia desejado. Não estava disposto a passar
pelo que o pai sofrera. Visitou o “Seu Rocha” algumas vezes na prisão
antes que morresse durante uma rebelião de presos na Papuda,
presídio de segurança máxima em Brasília. Seu pai cumpria pena por
latrocínio. No dia em que foi avisado da tragédia foi até a cadeia
reconhecer o corpo. O que mais o impressionou foi o cheiro: sangue,
suor, restos de alimento, além do cheiro de mijo e merda, tudo junto.
Quase não podia respirar. Havia escutado, ao entrar na PM, que toda
cadeia do mundo tinha o mesmo fedor. Não conhecera nenhuma prisão
fora do Brasil, mas acreditava que isso era verdade. O cheiro do quintal
da casa naquela manhã era muito parecido.
Ao lado do canil, sobre o gramado bem aparado, estava o quarto corpo,
também nu e também baleado de outro jovem. Estava sendo colocado
em uma maca. Os enfermeiros o medicavam. Estava vivo, agonizante.
Suas roupas haviam sido jogadas na grama.
- Esse garoto aqui é o seguinte – Esclareceu Dani - Eu conhecia.
Doidão, viciado. O boato que rola é que tinha uma dívida grande de
droga por aí. Hoje foi o dia do pagamento e taí, a família que pagô. Ele
tá vivo, tomô foi muita porrada.
Lua lamentou, olhando o corpo sendo levado para a ambulância, que
aguardava com o rotolight ligado sobre o teto.
- Será que é cliente do Béque? - Pensou alto Vital.
- Parece, né Vital, o cara é um animal - disse Dani, revoltado com a
situação.
- É - concordou Vital, pensativo.
Lua, ainda com o olhar fixo no rapaz, argumentou:
- Se a gente pegar o cara, talvez, quem sabe, a gente venha saber disso.
- Difícil seria provar essa ligação – Atalhou o jovem policial.
Vital, alheio a conversa entre Dani e Lua, se aproximou do rapaz, semi-
inconsciente, antes que fosse embarcado na ambulância. Perguntou a
um dos enfermeiros:
- E aí, como é que ele tá?
Rocha chegou e se colocou ao lado de Vital, também observando o
garoto, respondendo antes que o enfermeiro pudesse falar:
- Vai escapar. Sangue de drogado demora pra sair. É mais grosso que
os outros. Ia levar o dia inteiro pra essa íngua morrer de hemorragia.
Outro dia eu tava patrulhando e descobri um cara no meio de um
matagal. Foi esfaqueado tinha mais de três horas, um corte fundo pra
cacete e tava lá, vivinho. Se fosse eu, tava fudido.
O enfermeiro concordou. Vital ainda observava o rapaz, que já
recebendo soro, foi embarcado na ambulância, que saiu de sirene e
rotolight ligado para o Hospital de Base de Brasília, destino certo dos
drogados e acidentados da cidade.
Vital se virou para os outros policiais, desanimado:
- Pelo menos a gente tem uma testemunha - Falou como se não
estivesse realmente acreditando no que dizia.
- Esse cara tá fudido, chefe! - acrescentou Dani. - É ruim dele falar.
Vital olhou para o chão, sem responder. Estava cansado, após várias
noites sem dormir direito. Pensou novamente em seu filho.
- Esse filha da puta matou a família toda, mas vai vivê. - Desabafou
Rocha. - Porra, esse troço me deixa puto, rapá.
- A pena dele foi pior que morrê, negão – Lua bateu nas costas de
Rocha.
- Chefe! – Rocha virou-se para Vital - acho que tem um noiado na
Ceilândia, cliente nosso aí, que pode sabê de alguma coisa. Podemo ir
lá, vê a parada?
Rocha se referia a uma das cidades satélites mais povoadas da capital.
Ceilândia, distante pouco mais de 20 quilômetros do coração do Distrito
Federal - o Plano Piloto, é composta por mais de 350.000 habitantes.
Nascera no ano de 1971, em uma campanha de erradicação de invasões
– C.E.I., promovida pelo governo local, daí o seu nome. Conhecida por
ser uma das cidades mais violentas do DF, a Ceilândia possui em seu
território várias “bocas de fumo” que abastecem os “noiados”, ou
usuários de droga, de toda a região.
Vital ainda podia escutar a sirene da ambulância que já ia a duas
quadras dali. Abaixou a cabeça. Estava visivelmente abalado. Virou-se
pra Rocha e determinou:
- Manda ver.
CAPITULO 2
Parou por um instante em frente à porta. Nunca deixava de admirar a beleza de seu
local de trabalho. Custou uma fortuna, mas eu não gosto de pobreza,
dizia sempre a quem insinuava que seu escritório era exageradamente
luxuoso.
No momento em que abriu a porta, sua secretária já o aguardava em pé,
no centro da recepção da ONG.
- Bom dia, Doutor Gallo.
- Bom, muito bom, dona Rita. - Respondeu o chefe, passando pela
mulher e dando-lhe um tapinha na bunda.
Atravessou o suntuoso corredor, observando, pelos vidros dos pequenos
escritórios, seus funcionários trabalhando. Entrou na sala, cruzando
um portal de vidro com a inscrição, em letras douradas:
Não há quase nada que chame mais a atenção das pessoas do que um
comboio policial. Ninguém permanece indiferente à passagem de uma
grande quantidade de viaturas, com seus rotolights ligados e sirenes
estridentes chamando a atenção e pedindo passagem. E é exatamente
por isso que os governos investem tanto nesses veículos: porque dão
votos.
Há uma reclamação constante dos policiais em relação à política
populista dos governos em querer mostrar os gastos feitos em
segurança pública com a compra de novas viaturas, não investindo da
mesma forma em armas, em equipamentos de segurança ou em
equipamentos não letais, que facilitariam muito o trabalho dos
profissionais de segurança. Mas ano após ano, os governantes insistem
em aumentar o número de carros, sem ter, muitas vezes, quem os
dirija. As viaturas da Polícia Civil do DF provocaram polêmicas, há
poucos anos, quando se discutiu o porquê da necessidade de serem
ostensivas, se seriam utilizadas para investigações. Depois de muita
briga com a PM de Brasília, nada mudou e grande parte das viaturas da
Civil são ostensivas, oferecendo a devida publicidade ao governo.
Naquela noite, um grande comboio de viaturas policiais cruzava a
cidade, em direção à Ceilândia. À frente ia um camburão da Polícia
Federal, que era seguido de perto por várias outras da própria PF e do
BOpE da PM.
Uma das regras da ″doutrina operacional″ dos comboios é a de que
nenhum outro carro pode permanecer entre as viaturas. Por isso elas
andam tão juntas. Se há necessidade posicionam, ao final da fila,
tantas viaturas quantas forem necessárias para bloquear todas as
faixas da via, não permitindo que nenhum carro ultrapasse o comboio.
Os diversos carros de polícia se dirigiam em alta velocidade ao bar que
havia sido investigado por Lua e Rocha. No carro da Federal estavam,
além do motorista, Rocha, Vital e Dani, que estava com uma máscara
na cabeça, conhecida por bala-clava, ainda não totalmente colocada.
Fazia-se um profundo silêncio no carro, de onde só se podia ouvir o
barulho dos motores das viaturas e os rádios de comunicação entre as
equipes. Era o momento em que se concentravam para entrar em ação.
Em um carro parado em local próximo ao bar, Lua aguardava, com seu
intercomunicador na mão, a chegada do grupo. As viaturas, logo que se
aproximaram da Ceilândia, desligaram os rotolights e sirenes, passando
os policiais a agir com cautela e discrição. Não havia sido dada qualquer
ordem a esse respeito, mas todos agiram automaticamente,
acostumados com o procedimento.
Lua pôde observar as viaturas passando ao seu lado, silenciosamente, e
se dirigindo ao bar, que estava com um movimento fraco, com poucos
freqüentadores naquele momento. Em seu interior estava o homem que
sempre se fazia presente no estabelecimento. Servia-se de uma bebida.
Ninguém imaginava que a polícia se aproximava. Os outros poucos
freqüentadores assistiam a um ruidoso filme em uma televisão velha e
engordurada sobre o balcão.
De repente, os vários faróis das viaturas, em um só momento,
iluminaram todo o ambiente, enchendo-o de uma claridade ofuscante,
que assustou os fregueses do bar. O assíduo ″freguês″ interrompeu o
movimento da garrafa enquanto se servia, observando a quantidade de
veículos que estacionavam estrategicamente e o grande número de
policiais que desciam simultaneamente dos carros.
Dani terminou de colocar sua máscara, permanecendo somente com os
olhos, boca e nariz descobertos, através dos orifícios da bala-clava.
Tanto ele quanto Vital e Rocha vestiam uniformes pretos de combate da
Polícia Federal. Os distintivos brilhavam no cinto de Vital e Dani, assim
como as armas que carregavam consigo. Alguns policiais
automaticamente se dirigiram ao bar. Outros permaneceram
guarnecendo o ″perímetro″ - expressão que designa a área em volta do
alvo – para oferecer proteção aos que entravam e às viaturas.
Vital e seu grupo entraram no bar, tranqüilos em função da segurança
que os apoiava. O chefe ordenou:
- Atenção, pessoal, todo mundo na parede. Procedimento padrão.
Identidade na mesa e mão na parede. – As pessoa, vagarosamente,
cumpriam a ordem de Vital, enquanto Rocha e Dani começavam a
percorrer toda a extensão do bar.
O dono do bar ameaçou reclamar da ação, quando Vital o advertiu,
apontando o dedo na direção de seu rosto:
- O senhor cala a boca!
- Mas não....... vocês não têm...... cadê o ″mandato″ ? – inquiriu,
trêmulo e nervoso o homem.
Vital tirou um pedaço de papel dobrado do bolso de sua jaqueta, e sem
olhar para o dono do bar, colocou-o no balcão, desdobrando o mandado
de busca e apreensão, expedido pouco mais de uma hora antes. O dono
do bar pegou o papel e o leu, resignado.
Vários policiais já começavam a entrar na área atrás do balcão,
vasculhando cada prateleira e gaveta, com eles ia Rocha. Dani analisava
a documentação do bar, enquanto os demais policiais faziam a revista
pessoal, o famoso ″baculejo″ nos freqüentadores do bar. Dani podia
observar que a postura dos policiais militares era firme, chegando a ser
grosseira com as pessoas. Sem dúvida, impunham-se pelo medo.
Dani pediu ao homem que estava se servindo no balcão que
apresentasse seus documentos pessoais. ″Nome: Ciro Ramos de
Almeida″. Vital de longe observava cada movimento dos policiais.
- OK. – Dani devolveu os documentos de Ciro. – Tá liberado, pode ir
embora. O homem balbuciou um agradecimento e se retirou.
Rocha apareceu, vindo do interior do bar, acompanhado dos outros
policiais. Segurava dois pacotes de cocaína e outro com vários potinhos
de merla, subproduto da cocaína. Visivelmente satisfeito com o achado,
Rocha sacaneava:
- Hoje tem festa no barraco. Tá todo mundo convidado. Merla pros
soldados e cocaína pros federais. – Dani não se conteve e riu. Vital
olhou para o dono do bar, que tremia descontroladamente. Um policial
do BOpE já apontava uma arma para sua cabeça.
CAPITULO 11
No interior da sala do grupo chefiado por Vital o clima era pesado. Lua,
ainda de óculos escuros e mascando um chiclete estava sentado na
mesa do chefe e mexia no computador. Dani estava sentado em sua
mesa, brincando com uma liga de borracha. Vital consultava um
arquivo em um armário de aço. Todos estavam sérios e calados. Dani se
virou ao notar a porta da sala se abrindo. Era Rocha que entrava com
um sorriso no rosto:
- E aí, canas ? – Saudou os colegas, quebrando um pouco o clima. Vital
se virou ao ouvir a voz do policial, perguntando-lhe:
- Já teve alta?
- Já. – Disse enquanto entregava um papel a Dani – Não quebrou nada.
Tô pronto pra outra.
- Inacreditável – Disse, irônico, Dani, recebendo o papel, sem entender
do que se tratava – Ué! O que é isso? Teu telefone? Tu é viado, negão? –
Perguntou, mal disfarçando o riso, enquanto dobrava o papel.
Todos riram, inclusive Rocha, que já havia sentado sobre uma das
mesas.
- Não – Esclareceu o policial militar – É de uma gostosa que eu tô
comendo. Soube que cê teve seu batismo de fogo ontem, e não amarelô.
Tá virando cana de verdade, tu merece variar de buceta um pouco, é o
teu prêmio do negão parceiro aqui.
- Tá corretíssimo. – Lua aprovou a idéia. Dani guardou o papel em um
dos bolsos da jaqueta.
- Belê...... vou ligar hoje pra piranha.
- Não, hoje não, moleque – Advertiu-o Rocha – Hoje é dia dela ver o
"bastão de ébano".
Todos começaram a gargalhar. Lua, sem acreditar no que ouvia,
perguntou:
- Como é que é?
- Não sou ciumento não – falou Dani, em tom de sacanagem – Lavou, tá
novo.
- Pois é – arrematou Rocha – Se tu não se incomodar de pegar a rebarba
do negão.....
- E como é que ela é ? Perguntou, curioso, Dani.
- Preto gosta de loira, rapá. – Vangloriou-se Rocha.
- Racista do caralho – sacaneou o jovem policial.
- Puta que pariu. – Disse Rocha, rindo – Os gringo quando vem aqui não
querem as mulatas? E não são racistas por isso? Não, né? Pelo
contrário. Eles papam as mulatas, eu papo as loiras. É uma questão de
gosto de cada um, de preferência, só.
Vital, que acompanhava a conversa calado, se manifestou, reclamando:
- Êta, papo brabo!
Rocha, ainda rindo, se virou para Lua e Vital, que estava de costas, se
lamentando:
- Ó, mudando de pau pra cacete, o que eu lamento é não ter podido tá
com vocês lá no hospital. O cara sumiu mêrmo, né? – Disse apontando
para Vital e fazendo careta – Com Bope, Civil, Secretaria de Segurança
apoiando e o caralho? – Dani ria discretamente da sacanagem de
Rocha.
- Sumiu. – Respondeu secamente o chefe.
- É. O Gallo é passado – Refletiu Lua.
- Não! É futuro. – Decretou Vital, sem se virar.
O dia passou sem novidades para o grupo, que aguardava as
informações necessárias para uma operação de recaptura de Gallo.
Dani ficou resolvendo problemas administrativos, enquanto Vital
passou o dia inteiro em contato com a Divisão de Comunicação Social
da PF, em virtude da enorme demanda da imprensa em relação à fuga
de Gallo. Não gostava da imprensa, mas havia aprendido que era
indispensável o posicionamento oficial da polícia naquelas ocasiões.
Alguns outros policiais antigos não pensavam da mesma forma.
A Divisão de Comunicação Social é formada por dois grandes grupos: o
da assessoria de imprensa e o da assessoria em relações públicas, mas
nem sempre foi assim. A cultura da Polícia Federal, assim como das
demais polícias, sempre foi a de manter uma assessoria de imprensa
para informar a todos que não haveria um posicionamento oficial.
Ocorre que com o tempo os dirigentes perceberam que quando se trata
de comunicação, não existe vácuo. Ou há a versão oficial sobre os
assuntos ou surgem as versões oficiosas, que geralmente são
desfavoráveis à instituição. Após anos de uma postura mais rígida, a
atividade de comunicação social na Polícia Federal foi reformulada,
tendo sido convocados para compor seus quadros vários policiais com
formação em comunicação. Os "policiais jornalistas" foram para a
assessoria de imprensa e os com formação em relações públicas foram
para o setor de RP. Além disso foram contratados, via concurso, alguns
especialistas. Esse conjunto de medidas alterou drasticamente a
cultura policial no trato com as informações, fator esse que possibilitou
que a PF passasse a gozar de um prestígio maior.
Após o dia inteiro de explicações e entrevistas, Vital voltou pra casa.
Pôde observar vários jovens com camisas coloridas indo para a "micarê
da paz", como noticiavam vários outdoors por toda a cidade.
Após jantar, ficou na sala olhando para o filho. O pequeno Alberto
girava, em torno de si mesmo, até cair, ao som de uma pequena caixa
de músicas de brinquedo. Se levantava e repetia a brincadeira. A cada
vez que caía, dava risadas. Entre um gole de café e outro, Vital segurava
o filho para que não caísse e se machucasse.
- Esse já é teu terceiro café, Vi? – indagou-lhe Leila, enquanto retirava
os pratos da mesa – Tá viciado nisso já, hein! Faz mal.
Vital balançou a cabeça, concordando com a esposa. Não tirava a
atenção do filho, que continuava brincando.
- Não esquece de me dar teu talão de cheques. Vou fazer o controle
antes de dormir. – Lembrou Leila. Toda semana ela conferia o que havia
sido gasto pelo casal. Ao contrário do que fazia a maioria das pessoas, a
verificação feita pela esposa de Vital era com o objetivo de constatar se
havia algum dinheiro a mais na conta do policial. Vários casos já
tinham ocorrido de traficantes fazerem depósitos na conta de policiais,
com a finalidade de incriminá-los. Por isso, Leila e o marido eram
rígidos com esse controle.
A música do brinquedo de Alberto acabou. Ele estava tonto e caiu no
chão, dando gargalhadas. Vital aproveitou aquele momento para pegar
sua carteira e entregá-la à esposa. Tentou enfiar a mão no bolso da
calça, mas não conseguiu por causa da pistola que estava
atrapalhando. Então retirou a arma e a colocou sobre a mesa, ao lado
da xícara, dando a carteira para Leila.
Alberto, suado e cansado, parou de brincar e dirigiu sua atenção à
arma do pai, para onde fixou o olhar. Vital percebeu e pegou a pistola,
colocando-a nas costas, na altura da cintura. Chamou o filho para o
seu colo.
Abraçou-o fortemente, passando a conversar com o garoto, distraindo-o,
sendo observado por Leila, que saía da cozinha.
Abraçado também estava Rocha com sua "gata loira", sobre uma cama
de lençóis vermelhos, em uma casa na cidade de Taguatinga. Na
verdade, tratava-se de uma mulata com os cabelos descoloridos, de uns
vinte e sete anos de idade.
Rocha puxava seus quadris enquanto a comia de quatro. Batia na
bunda da moça com as duas mãos, enquanto gemia. A mulher olhava
para trás, pedindo para que o policial fizesse com mais força. Entre
uma gemida e outra, Rocha informou à sua parceira, ofegante:
- Ó, um camarada meu vai te ligar. Trata ele bem.
- Já ligou. – Disse a loira, virando-se e ficando de frente para Rocha,
puxando-o para si.
- Ah, ligou é? Legal. Quando ele vier.....
- Já veio – Disse a moça, cortando.
Rocha parou, olhando, incrédulo, para a mulher:
- Como assim, já veio?
- Ah, Rocha, continua – Reclamou a parceira, dando um tapa na bunda
do policial. Rocha continuou os movimentos.
- Ele veio e já tratei ele muuuuuito bem.
- Mas não é melhor do que "o trato" que cê dá pra mim, né nêga?
- Beeeem melhor. – Disse a mulher, sacaneando Rocha. – Você planta o
que você colhe.............. e o garoto plantou muuuuuito bem.
Rocha riu, se lembrando de Dani.
- É colhe o que planta, nêga burra. Tá certo, ele meréééci!
Os dois gozaram juntos. Os gritos quase podiam ser ouvidos da rua.
Ficaram deitados na cama, nus, por alguns momentos. A moça
levantou-se e foi até o banheiro. Quando voltou Rocha já havia colocado
o relógio e a camisa. Vestia a calça enquanto a "gata loira" deitava
preguiçosamente na cama.
- Tchau, gata. – Despediu-se o policial, sendo abraçado por trás pela
mulher, que o enlaçou com os braços. Deu a volta, sentando no colo de
Rocha, e olhou fixamente em seus olhos:
- Tchau....... te adoro, viu?
- Adora nada, piranha. Vagabunda.
A mulher riu. Rocha, satisfeito, se foi. Bateu a porta, dando uma última
olhada para trás.
- Nêgo gostoso – Elogiou a parceira, sozinha no quarto.
Rocha foi até o portão, abrindo-o. Quando passou por ele foi
repentinamente atacado por um homem, que lhe deu um chute nas
costas. Automaticamente o policial sacou seu revólver, ainda
cambaleando em função do golpe. Disparou a arma em direção a um
grupo de homens que vinham em sua direção. Um deles caiu no chão,
aparentemente morto. Rocha não teve tempo de disparar outra vez. Os
agressores começaram a lhe bater, derrubando-o na calçada. Um
homem alto apontou uma arma para sua cabeça, fazendo sinal para
que fizesse silêncio e parasse de reagir. O policial fechou os olhos,
deixando sua cabeça encostar no chão. Os homens levantaram Rocha,
colocando um capuz sobre sua cabeça. Empurraram-no para o interior
de um veículo e partiram.
Depois de algum tempo, que Rocha não sabia determinar, chegaram ao
destino. O policial foi amarrado a uma cadeira, quando foi retirado o
capuz. Rocha estava trêmulo e nervoso.
Béque apareceu, Rocha olhou em sua direção, indiferente.
- Rocha, é o seguinte – Disse Béque, parando em frente ao policial. – Eu
te trouxe aqui por um motivo bem simples. Vou ser curto e grosso. Você
tem duas chances: ou trabalha pra mim ou morre agora. A escolha é
sua.
Rocha o ouvia, olhando pra uma das paredes nuas do recinto. Não
havia móveis ou qualquer outro detalhe no cômodo que pudesse o
identificar. O silêncio era total, dentro e fora da casa. Os olhos do
policial estavam fixos, sem qualquer sentimento. Suas mãos doíam,
amarradas para trás. Béque puxou sua arma e a apontou para a cabeça
do PM, engatilhando a pistola. Rocha abaixou a cabeça, sabia que sua
vida não valia absolutamente nada naquele momento. Um filme passou
em sua cabeça. Lembrou-se de seus pais e irmãos. Uma música que
aprendera na infância lhe veio à mente. Começou a tremer
descontroladamente.
Fechou os olhos e sentiu o cano da arma sendo encostado na sua
têmpora esquerda. Era seu instante fatal. Béque começou a puxar o
gatilho da arma, quando ouviu:
- Quanto?! – Murmurou Rocha, com lágrimas nos olhos.
- O suficiente. – Respondeu-lhe o traficante, friamente.
Béque retirou a arma da cabeça do policial, desengatilhando-a. Rocha
abaixou a cabeça, chorando.
CAPITULO 19