Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Presidente da República
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ministro da Educação
PAULO RENATO DE SOUZA
Secretária Executiva
MARIA HELENA GUIMARÃES DE CASTRO
CONGRESSO
BRASILEIRO
DE QUALIDADE
NA EDUCAÇÃO
FORMAÇÃO PE PROFESSORES
SIMPÓSIOS
Marilda Almeida Marfan
Organizadora
Volume 1
Brasilia
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete
COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosângela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello
COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira
Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDl)
SUMARIO
APRESENTAÇÃO
Iara Glória Areias Prado
SIMPÓSIO 1
EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA
Andy Hargreaves - Canadá
Álvaro Marchesi - Espanha
SIMPÓSIO 2 25
UMA ESCOLA REFLEXIVA
Juan Casassus - Chile
José Tavares - Portugal
SIMPÓSIO 3 43
DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA LEITORA E ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman - Unicamp/SP
Beatriz Cardoso - Cedac/SP
Euzi Rodrigues Moraes - Ried/ES
PALESTRA 55_
MEDIANDO A LEITURA: RUMO À AUTONOMIA DO LEITOR
Tânia Mariza K. Ròsing - Universidade de Passo Fundo/RS
SIMPÓSIO 4 59
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ENFOCANDO o TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho - Portugal
Maria Kliana Matos de E Lima - UFPE/PE
Ana Claudia Rocha -CEEV/SP
SIMPÓSIO 5 73_
TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE: DIFICULDADES, AVANÇOS E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson - Inglaterra
SIMPÓSIO 6 81_
o LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Angela Paiva Dionísio - UFPE/PE
Kazumi Munakata - PUC/SP
Márcia de Paula Gregório Razzini - Unicamp/SP
SIMPÓSIO 7 103
o DESENVOLVIMENTO DA EJA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA AMÉRICA LATINA
José Rivero - Unesco/Peru
Maria Dulce Borges - Unesco/Brasil
Graciela Messina - Unesco/Chile
SIMPÓSIO 8 123_
o FUNDEF E A VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini - Fundef/MEC
Oswaldo José Fernandes - Jundiaf/SP
SIMPÓSIO 9 129_
DESEMPENHO DO PROFESSOR E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji - França
Maria Helena Guimarães de Castro - Inep/MEC
SIMPÓSIO 10 151
ARTICULAÇÃO ENTRE AS FORMAÇÕES INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário - Portugal
Célia Maria Carolino Pires - PUC/SP
Charles Hadji I rança
SIMPÓSIO 11 175
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM, CURRÍCULO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Andy Hargreaves - Canadá
Iza Locatelli - Inep/MEC
SIMPÓSIO 12 187
FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho - Instituto Avisa Lá/SP
Ana Paula Soares da Silva - USP/Ribeirão Preto
Aricélia Ribeiro do Nascimento - SEF/MEC
Rosaura de Magalhães Pereira - SME/Belo Horizonte/MG
SIMPÓSIO 13 209
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS VINCULADA AO TRABALHO
Enrique Pieck - México
SIMPÓSIO 14 217_
DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM NÍVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares - CNF.
Sylvia Figueiredo Gouvêa - CNE
SIMPÓSIO 15 223
ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz - PROFA/MEC
Ana Teberosky - Espanha
|osé Rivero - Unesco/Peru
SIMPÓSIO 16 247_
PROJETO PEDAGÓGICO: POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva - Fundação Vale do Rio Doce/Cedac
SIMPÓSIO 17 255_
LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade - Ceale/UFMG
Priscila Monteiro - Fundação Abrinq/SP
SIMPÓSIO 18 267
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro \çâo Educativa/SP
Rosaura Soligo - PROFA/MEC
SIMPÓSIO 19 281
ESCOLHA E USO DO LIVRO DIDÁTICO - IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Lucília Helena do Carmo Garcéz - UnB/DF
Marildes Marinho - UFMG/MG
Lívia Suassuna - UFPE/PE
SIMPÓSIO 20 299_
POR UMA PROPOSTA CURRICULAR PARA o 2ª SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires - PUC/SP
Maria Cecília Condeixa - Especialista em Ciências Naturais
Maria José M. de Nóbrega - Especialista em Língua Portuguesa
Paulo Eduardo Dias de Mello - Especialista em História e Geografia
SIMPÓSIO 21 307_
A EJA COMO DIREITO: DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS E PROPOSTA POLÍTICO-PEDAGÓGICA
Carlos Roberto Jamil Cury - CNE/PUC/MG
Guilherme Costa - Seduc/MT
Leda Maria Seffrin - SEF/MEC
SIMPÓSIO 22 317
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman - Unicamp/SP
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio - Ação Educativa/SP
SIMPÓSIO 23 327_
CONCEPÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS: MODELO ATUAL E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto - Unicamp/SP
Luiz Percival I.eme Brito - Unicamp/SP
Luiz Roberto Dante - Unesp/SP
SIMPÓSIO 24 34_1_
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Álvaro Marchesi - Espanha
Carlos Roberto Jamil Cury - PUC/MG - CNE
Soraia Napoleão Freitas - UFSM/RS
SIMPÓSIO 25 355
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE ENSINO E FORMAÇÃO DOCENTE
João Barroso - Portugal
Jean Mebrard - França
Miriam Schlickmann - SEE/Consed/SC
SIMPÓSIO 26 379_
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Saltes - Seed/MEC
Luis Huerta - Chile
APRESENTAÇÃO
Álvaro Marchesi
A Nova Ortodoxia
da Mudança Educacional
Andy Hargreaves
International Centre for Educational Change/Canadá
Resumo
o presente documento descreve o que chamo finida com excesso de detalhes, a nova ortodoxia
de Nova Ortodoxia da Mudança Educacional, com pode tornar a aprendizagem demasiadamente ace-
sua ênfase sobre padrões elevados de aprendiza- lerada, enfatizar apenas seus aspectos mais clíni-
gem, currículo centralizado, avaliações alinhadas cos e destruir o discernimento profissional dos pro-
e obrigatoriedade de punições e recompensas. fessores, que são responsáveis por sua implemen-
Em todo o mundo, o efeito dessa nova ortodo- tação. Entretanto, quando definida de forma mais
xia é arrebatador, mas o caráter positivo ou negati- aberta, meus próprios estudos com professores de
vo desse efeito depende de como ela é integrada e 7ª e 8ª séries que se destacaram entre os demais
implementada. Em seus piores aspectos, quando mostram que ela lhes pode aprimorar o senso de
imposta de forma excessivamente rigorosa ou de- profissionalismo.
Prestação de contas conseqüêncial, na qual que ameaçam solapar seus objetivos educacio-
o desempenho global da escola, no que se nais mais positivos.
refira à elevação dos padrões, esteja estrei-
tamente conectado com os processos de
credenciamento, de inspeção e de vincula- Questionando a ortodoxia
ção do financiamento aos níveis de suces- É difícil questionar o movimento concerta-
so (e fracasso). do em prol de padrões mais elevados. Quem
Essa nova ortodoxia consiste em certas poderia ser contrário a uma reforma baseada
mudanças fundamentais e louváveis em rela- nos padrões? Posicionar-se contra os padrões
ção a detalhes mais específicos da aprendiza- parece eqüivaler a ser a favor do pecado!
gem em sala de aula e à características mais Porém existem diferenças entre apoiar o
gerais de configuração da administração edu- princípio de padrões educacionais elevados e
cacional. Ela valoriza altos padrões para quase inclusivos e os programas particulares de refor-
todos os alunos e não apenas para uns poucos ma nos quais esses princípios se encontram
e conduz os professores e suas escolas a com- freqüentemente incorporados. Vejamos alguns
binar excelência com eqüidade no decorrer de dos problemas.
seu trabalho com alunos dos mais variados
backgrounds. No currículo, desloca a priorida- 0 currículo apressado
de da conveniência e das convenções acerca Nos seus escritos acerca da família pós-mo-
daquilo que os professores ensinam para a qua- derna, David Elkind (1989; 1997) descreve
lidade e o caráter daquilo que se espera que os como, na sociedade contemporânea, as crian-
alunos aprendam. Veicula os tipos de aprendi- ças estão sendo crescentemente empurradas a
zagem aplicada e endereçada para a resolução fazer mais coisas, mais cedo e mais rapidamen-
de problemas, que são mais apropriados para te - como namorar mais cedo, despertar para o
uma sociedade eletrônica e informacional do sexo mais cedo, aprender muitas coisas antes,
que para uma sociedade mecânica e industrial. aderir a mais e mais clubes, equipes e ativida-
Ao tornar muitas avaliações baseadas mais no des mais organizados e, em geral, experimen-
desempenho do que no lápis-e-papel, tal orto- tar uma infância mais apressada, mais acelera-
doxia tenta conseguir que a avaliação seja usa- da e com uma agenda cheia de compromissos.
da como a cauda que irá "balançar o cachorro", Antecipar conteúdos curriculares para séries
sendo que o cachorro seria, no caso, o novo cada vez mais iniciais, ele argumenta, é parte
currículo. Por último, mas não menos impor- desse processo e dissocia os jovens de aspectos
tante, um currículo de âmbito nacional ou es- importantes de sua infância - perambular de
tadual tenta assegurar que, independentemen- forma inocente, brincar sozinhos e com outros
te da escola, de sua localização, de seus profes- em ambientes não-estruturados, ir atrás de
sores ou de sua direção, todos os alunos serão aprendizagens levados por seus próprios inte-
conduzidos a satisfazer os mesmos padrões ele- resses e curiosidades, e assim sucessivamente
vados - e que ninguém "irá cair pelas falhas do (Elkind, 1997).
terreno". Escrevendo na Inglaterra, após mais de uma
Em princípio, esses desenvolvimentos edu- década de reforma baseada em padrões, Dadds
cativos prometem um progresso significativo (2000) critica o que chama de "currículo apres-
na reforma educacional, no que diz respeito à sado", no qual a abrangência vem a ser mais im-
melhoria da qualidade e dos padrões de apren- portante do que a aprendizagem. Esse currícu-
dizagem e de oportunidades para todos os ti- lo, ela salienta, leva os professores a empurrar as
pos de alunos. Entretanto, a nova ortodoxia crianças por meio do material sem que elas o
educativa falha em relação a algumas dimen- compreendam e reduz o período vital do "tem-
sões importantes da aprendizagem e do ensi- po de espera" que os bons professores concedem
no: dentro do seu pacote de reformas, acarreta às crianças antes que estas respondam às per-
outros componentes de maior preocupação guntas aqueles lhes fazem (Guttierrez, 2000).
Esse currículo elimina qualquer espaço para a eram uma réplica quase exata do currículo para
voz do aluno no processo de aprendizagem as escolas secundárias que foi desenhado em
(Rudduck, Day e Wallace, 1997) e inibe o desen- 1907, quando a intenção, para a política educa-
volvimento de habilidades duradouras de apren- cional, tinha sido a de definir um currículo que
dizagem que, justamente, essa reforma baseada qualificasse para a universidade e que excluís-
em padrões elevados pretende promover. se disciplinas técnicas, mais apropriadas e re-
levantes para estudantes da classe operária
0 currículo convencional (Goodson, 1988).
Nos Estados Unidos, a especificação dos
e clínico
novos padrões de aprendizagem tem sido fei-
o currículo mais comum baseado em pa- ta em grande medida sob a alçada das asso-
drões é, freqüentemente, na prática, um currí- ciações nacionais das disciplinas - revivendo
culo clínico e convencional. Trata-se de um cur- e perpetuando a sua influência sobre o currí-
rículo no qual se concede a maior importância culo escolar e sobre aquilo que conta como
à alfabetização, aos rudimentos numéricos e à conhecimento dentro dele. Conteúdos abar-
ciência. Com efeito, em trabalhos-chaves sobre rotados e um ritmo acelerado de movimento
esse assunto, Tucker e Codding (1998, 1999) sa- por entre os diversos padrões deixam pouco
lientam que essas deveriam efetivamente ser as espaço ou incentivo para que os professores
áreas básicas para a configuração de padrões. possam interligar a aprendizagem com os in-
As artes e as ciências sociais, argumentam, de- teresses dos alunos (Rudduck, 1997), para
veriam ser as áreas nas quais os aprendizados contextualizá-la e torná-la relevante em rela-
fundamentais dos alunos deveriam aplicar-se. ção a suas diversas vidas (Tharp, Dalton e
Isso, obviamente, designa de forma arbitrária Yamauchi, 1994), ou para criar programas de
as habilidades nas ciências como fundamentais estudos integrados ou interdisciplinares que
e aquelas das artes como sendo "aplicadas", sen- tornem possível essa profunda contextualiza-
do que o contrário - no que se refere, talvez, às ção. Porém Tucker e Codding (1999: 31) che-
habilidades artísticas relativas à inventividade gam a descartar tal currículo interdisciplinar,
e à criatividade - seria igualmente plausível. Hill de um só golpe, com citações debochadas.
e Crévola (1999) também concedem primazia à Mais ainda, a imensa maioria dos focos
alfabetização no currículo do ensino primário cognitivos e clínicos da maior parte dos con-
e defendem que outras disciplinas do "montão" juntos de padrões de aprendizagem empurra
(tais como artes) sejam removidas ou reduzi- as preocupações com a aprendizagem emo-
das no currículo, para abrir espaço para a tal cional e com o desenvolvimento pessoal para
alfabetização. a periferia das preocupações dos professores
Na Inglaterra e no País de Gales, essas redu- em sala de aula. Mas são justamente esses ti-
ções, que se tornaram comuns, precederam a pos de experiência curricular, emocionalmen-
introdução do Currículo Nacional em 1988. te engajadores para os alunos e inseridos nos
Num trabalho anterior, documentamos o quan- contextos de suas vidas, que serão especial-
to as desdenhadas matérias do "montão", que mente valiosos para a melhoria da aprendi-
abriram espaço para o regime padronizado das zagem de alunos oriundos de minorias e de
disciplinas do Currículo Nacional - matérias setores desfavorecidos. Essas experiências de
como Educação Política, Estudos para a Paz, aprendizagem e de vida dos alunos dentro de
Educação Pessoal e Social e, ultimamente, Ar- suas famílias, culturas e comunidades defini-
tes -, eram de natureza emotiva, social ou críti- tivamente não são padronizadas na sua natu-
ca, o verdadeiro âmago da educação escolar reza (Cummins, 1998; Nieto, 1 9 9 8 ) . O grande
democrática, que desenvolve mentes críticas e progresso que se pode alcançar baseando um
expressivas (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996). Pe- currículo de ciências, para crianças de agri-
culiarmente, e causando perplexidade, as dis- cultores imigrantes, em torno da sua própria
ciplinas básicas desse novo Currículo Nacional base de conhecimentos culturais na agricul-
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
tura, por exemplo, não encontra nenhum es- operária, após mais de uma década de um sis-
paço dentro de um currículo demasiadamen- tema excessivamente padronizado.
te padronizado (Stoddart, 1999). Currículos
excessivamente padronizados não se inserem Eles nos dizem para ir e para nos ocuparmos
bem em sociedades culturalmente diversifi- ali, portanto nós todos vamos fervilhando ali e
cadas. Eles não admitem que, especialmente nos ocupamos. Depois eles mudam de opinião
nesses contextos, a aprendizagem é uma prá- e dizem: "Não, é para lá!". Assim vamos todos
tica social e não apenas uma prática intelec- fervilhando para lá e nos mantemos ocupados
tual (Lave e Wenger, 1991). de outra maneira. E aí, é "por aqui" e, depois,
Em geral, abordagens muito densas en- em algum outro lugar. E nós todos nos mante-
mos fervilhando, enquanto eles apontam para
fatizam em demasia aquilo que Sergiovanni
novas direções. De tempos em tempos, eles
(2000), citando Habermas (1975), chama de
vêm observar se nós estamos fervilhando cor-
"mundo-sistêmico" de conhecimento, cogni- retamente.
ção, habilidades técnicas e sistemas. Sob um
ponto de vista comparativo, não se concede
Na Inglaterra e no País de Gales, mais de
muita importância ao "mundo-vital" da mo-
uma década de minuciosa prescrição cur-
ral, dos valores, da aprendizagem emocional
ricular tem feito muitos professores se senti-
e da experiência social. Na sociedade infor-
rem desqualificados profissionalmente (Nias,
macional de hoje, teremos piores democra-
1991), menos confiantes (Helsby, 1999), cini-
cias e economias mais fracas se não puder-
camente complacentes (Woods et al., 1997) e
mos educar os alunos tanto para o mundo-
estressados de forma crescente (Troman e
vital artístico, crítico e sociocientífico quan-
Woods, 2000) - até chegar ao ponto, atualmen-
to para o mundo-sistêmico da alfabetização,
te vigente, de uma séria crise de contratação
dos rudimentos numéricos e das ciências na-
para o ensino (Suplemento Educacional do Ti-
turais!
mes, 31 de março de 2000), na qual os jovens
demonstram pouco entusiasmo em aderir à
Padronização e desprofissionalização profissão (Hargreaves e Evans, 1997).
Por mais bem fundamentados que os no- Algumas crises semelhantes afligem tam-
vos conjuntos de padrões de aprendizagem bém os Estados Unidos, especialmente em áre-
possam ser, os professores desanimam e per- as urbanas (Darling Hammond, 1997). Uma
dem eficácia se pressentirem que já não pos- imagem comum entre o grande público (e, tam-
suem voz no desenvolvimento de padrões, bém, na própria sala de aula) é a do ensino
bem como se esses padrões forem prescritos como uma atividade altamente estressante,
de forma tão hermética que não dêem espaço sobrecarregada e sujeita a crescente regulamen-
ao exercício de seu discernimento sobre como tação e controle externo, o que pouco ajuda. Ao
devem ser implementados e interpretados escrever acerca dos padrões, uma professora da
dentro de suas próprias salas de aula. Até ago- cidade de Los Angeles, Myranda Marsh (1999:
ra, contudo, uma evidência crescente aponta 192), faz um alerta incisivo aos seus pares aca-
para a existência de um profundo abismo en- dêmicos e aos formuladores de políticas ao res-
tre a confiança e, inclusive, a grandiosidade saltar que "se reformas de quaisquer índoles
com que os encarregados da política educacio- precisam ter sucesso, os professores precisam
nal prescrevem seus planos-mestres baseados acreditar que serão significativamente ouvidos
em padrões, por um lado, e a confusão e desi- nas decisões e que não se transformarão em
lusão dos professores encarregados de imple- bodes expiatórios por qualquer lacuna em se
mentá-los em sala de aula, por outro. atingir metas".
Na Inglaterra, Marion Dodds (2000) regis- Os professores, Marsh salienta, ressen-
trou a percepção de uma professora sobre si tem-se de ser tachados de "opositores" sim-
mesma como nada mais do que uma abelha plesmente porque adotam atitudes realistica-
mente cautelosas acerca das reformas. "Opo- sobre a sociedade de redes, Castells (1998) for-
sição aos padrões", ela diz, "não está funda- neceu dados para mostrar que o Estado da
mentada num desejo de evitar um espírito de Califórnia gasta mais com o sistema penitenci-
prestação de contas, mas sim num receio de ário do que com escolas. As escolas públicas,
ficar de fora da discussão acerca do que cons- em algumas áreas urbanas, como aquelas de Los
titui, de fato, o sucesso" (Marsh, 1999: 194). Angeles, foram quase totalmente abandonadas
Como complemento aos padrões, Marsh e pela população branca. Quando um de nós che-
outros (McLaughlin e Lieberman, 2000) pro- gou a trabalhar recentemente com um grupo
põem um enfoque nos processos de consulta grande de diretores de escolas da área urbana
aos professores (especialmente em torno do de Los Angeles, dois terços deles disseram, com
significado de dados sobre o desempenho) base na sua experiência em super-regulamen-
bem como a construção de comunidades de tação e apoio escasso, que, se pudessem esco-
prática profissional nas quais os professores lher, em nova oportunidade não voltariam a ser
experimentariam, em termos de tempo, mo- diretores.
tivação e urgência baseada em padrões, tra- Os contextos crescentemente ampliados
balhar sobre padrões e reformas conjunta- para as reformas baseadas em padrões são, na
mente. Isso pareceria ter maior atrativo. To- prática, aqueles de recursos e apoio decrescen-
davia, para que seja possível ligar os padrões tes para a educação pública, paralelamente ao
de aprendizagem aos tais padrões profissio- desenvolvimento de sistemas de quase-merca-
nais de colegialidade e de consulta no ensi- do de competição entre escolas, por alunos
no, os próprios padrões de aprendizagem pre- matriculados, por recursos, ou por ambos
cisam oferecer liberdade de ação suficiente (Whitty et a l , 1997). Na Nova Zelândia, por
para permitir a apreciação e o envolvimento exemplo, a evidência indica que, após anos de
profissional. Mais ainda, é essencial providen- experiência com tais reformas, não houve di-
ciar níveis suficientes de apoio e de financia- minuição nas diferenças de aprendizagem en-
mento para que a consulta dos professores e tre alunos de setores privilegiados e aqueles
a discussão colegiada se efetivem no perío- menos favorecidos (Wylie, 1997). Na Austrália,
do escolar. Se, de um lado, evidenciam-se re- extensos sistemas de apoio para escolas mais
sultados promissores em iniciativas especiais pobres, incluindo assistência para as escolas
e programas-piloto que combinam reformas trabalharem com famílias e alunos que apresen-
baseadas em padrões com consultas aos pro- tam múltiplos problemas, têm sido substituí-
fessores, do outro, existem poucos sinais de dos por iniciativas de reforma especificamente
que níveis de apoio que sejam, ao mesmo direcionadas à melhoria da alfabetização, como
tempo, regulares e extensivos, direcionados se os padrões de desempenho não fossem afe-
para tais tipos de profissionalismo aprimo- tados por esses fatores contextuais de longo al-
rado, sejam iminentes no curto prazo em ou- cance (Thomson, 1999).
tros lugares. Enquanto isso, as propaladas reformas ba-
seadas em padrões do Estado norte-americano
de Kentucky foram, logo após um período de
Contextos contraditórios sucesso, sufocadas por um excessivo controle
As reformas baseadas em padrões não têm central, redirecionadas por imperativos de com-
sido nem estão sendo implementadas em con- petição resultantes da aplicação de testes pa-
textos que sejam neutros. Assim, os níveis de dronizados e asfixiadas por surtos de controle
apoio financeiro com base na arrecadação de e de convergência políticos (Whitford e Jones,
impostos e naqueles direcionados para a edu- 2000).
cação pública, bem como os investimentos so- Na Inglaterra, o Suplemento Educacional
ciais em geral e em outros setores públicos, in- do Times relata regularmente taxas crescentes
felizmente, permanecem baixos em muitos pa- de exclusão e de interrupção dos estudos es-
íses (Hargreaves, 2000). Na sua brilhante trilogia colares (desproporcionalmente altas entre alu-
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
Institute for Studies in Education (Instituto de Obviamente, a nossa amostragem não é re-
Ontário para Estudos em Educação), a Univer- presentativa dos professores que lecionam na
sidade de Toronto e os quatro distritos. Todos 7ª e na 8ª séries. Os professores do estudo fo-
esses distritos eram urbanos e dois deles apre- ram identificados justamente porque eles de-
sentavam populações estudantis extremamen- monstravam ter um compromisso sério e per-
te multiculturais. O propósito do estudo foi exa- manente em implementar as mudanças nos
minar a compreensão que os professores desen- Transition Years (Anos de Transição). Assim sen-
volveram sobre as mudanças inseridas na nova do, o estudo oferece noções significativas sobre
política curricular; determinar como e até que as experiências de professores altamente com-
ponto foram capazes de integrar as mudanças prometidos. Entretanto, se a mudança cria di-
em suas práticas; identificar que condições, ficuldades para esses professores, ou para as
apoio e processos eram necessários para efeti- relações intrínsecas ao seu trabalho, é provável
var tal integração; e entender suas experiências que essas dificuldades sejam ainda maiores no
acerca das mudanças envolvidas. caso daqueles professores menos receptivos, ou
Os professores da nossa amostra tinham menos entusiasmados, com as mudanças aqui
sido identificados por administradores, nos descritas, ou até mesmo com a mudança edu-
seus distritos, como sendo aqueles que partici- cacional em geral.
pavam ativamente de esforços para incorporar o nosso propósito, portanto, é entender
as mudanças curriculares em suas práticas. So- como os professores orientados para a mudan-
licitou-se que, em cada uma das escolas de cada ça compreendem as requeridas e complexas
um dos distritos, dois professores permitissem mudanças educacionais, como é que as efeti-
que visitássemos suas salas de aula e os entre- vam ou realizam em suas turmas, o que os aju-
vistássemos a respeito de suas experiências no da e o que os atrapalha e o que o processo de
momento em que tentavam atender às diretri- mudança requer e demanda deles.
zes curriculares. À exceção de três, todos con- Tipicamente, enquanto os formuladores das
cordaram em participar do estudo. reformas agem como se a mudança fosse um as-
Os professores foram entrevistados, duran- sunto simples para os professores - uma ques-
te uma a duas horas, sobre suas interpretações tão de ingerir e cumprir como solicitado -, as
pessoais das políticas de integração curricular situações de mudança que os professores en-
em curso; os resultados comuns da aprendiza- frentam são extremamente complexas. Os pro-
gem e a reforma da avaliação; onde é que ti- fessores que estudamos não estavam apenas
nham adquirido tal interpretação; como é que tentando implementar inovações isoladas, uma
integravam essas mudanças nas suas práticas; de cada vez: estavam enfrentando mudanças
quais eram essas práticas; que êxitos e dificul- múltiplas e multifacetadas nas suas práticas de
dades encontraram durante o processo de im- integração curricular, nos resultados comuns da
plementação e em que medida recebiam apoio aprendizagem e em sistemas alternativos de
dos seus colegas e da direção do estabelecimen- avaliação e de apresentação de relatórios. Mais
to nos seus esforços por introduzir as mudan- ainda, esse conjunto de mudanças não poderia
ças. De forma mais geral, perguntamos aos pro- ser implementado de forma isolada em relação
fessores a respeito de seus registros de mais lon- a todos os demais aspectos do trabalho dos pro-
go prazo sobre mudanças e da relação entre fessores nas suas escolas. Algumas das escolas
seus compromissos profissionais e seus com- também estavam envolvidas no desenvolvi-
promissos e obrigações mais amplos da vida mento de estratégias cooperativas de aprendi-
corriqueira. Três dos professores autorizaram- zagem. A maioria já estava começando a se
nos a observá-los nas suas aulas e participaram acostumar com o uso de computadores e com
de várias entrevistas adicionais para nos forne- outras novas tecnologias. Uma prioridade pa-
cer uma visão mais aprofundada sobre os seus ralela era a construção de relações com os pais
trabalhos e suas experiências com respeito às de alunos e o estabelecimento obrigatório de
mudanças educacionais. conselhos de pais. Muitos diretores das escolas
haviam assumido o cargo recentemente ou es- ras de envolver os alunos e seus pais, de forma
tavam prestes a fazê-lo - o que acarretava mu- integrada, nos processos de aprendizagem e de
danças no estilo de liderança e na focalização avaliação.
das mudanças nessas escolas. Numa crise cada Mostramos como, com apoio adequado e
vez mais profunda de retração econômica, os uma suficiente capacidade de discernimento, os
recursos tornavam-se crescentemente escassos professores podem alcançar grandes progres-
(e continuam a sê-lo no momento em que es- sos, fazendo que a Nova Ortodoxia da Mudança
crevo este trabalho). Havia rumores e, às vezes, Educacional funcione com os seus alunos, de
mais do que rumores de aumento no tamanho modo que a aprendizagem em sala de aula se
das turmas, de cursos que seriam eliminados, torne animada para eles. Também mostramos
de professores que seriam transferidos ou que onde definições mais claras de resultados, do
perderiam os seus e m p r e g o s . O apoio de con- tipo incorporado em esforços subseqüentes por
sultores distritais para assessorar os professo- implantar padrões, são requeridas com urgên-
res durante o processo de mudança estava de- cia, onde os números de resultados (como os
saparecendo e os dias dedicados ao desenvol- atuais números de padrões) podem proliferar
vimento profissional estavam sendo reduzidos. até se tornarem excessivos, onde o apoio pode-
Através dos olhos e da experiência dos pro- ria ser inadequado e onde o ritmo de mudança
fessores queremos criar e recriar uma imagem poderia ser rápido demais, mesmo para os me-
de como alguns dos nossos melhores professo- lhores professores.
res entendem - e freqüentemente lutam contra Nesse sentido, nosso trabalho nos ajuda a
- o duro trabalho intelectual e emocional de penetrar nas complexidades da mudança edu-
empreender conjuntos complexos de reformas cacional nos dias de hoje, tal como os professo-
educacionais como as que descrevemos. Que- res a experimentam dentro da nova ortodoxia
remos retratar o que a ortodoxia emergente de educacional. Ele nos levará para dentro, para
mudança educacional - baseada no que se deve antes e para além dos padrões. Reconhecer o que
aprender, não no que deve ser ensinado - pare- uma complexa reforma educacional significa
ce ser, vista no contexto mais nítido das suas para os professores e o que realmente requer
salas de aula. Partimos das experiências desses deles não é uma tentativa nem cínica, nem
professores para alcançar, acompanhar e ultra- elogiosa. Os nossos achados estão longe de cons-
passar os padrões e examinar a Nova Ortodoxia tituir um catálogo de tragédias - de um entusi-
da Mudança Educacional quando ela inclui e asmo em declínio, de esperanças perdidas ou de
apoia os professores em vez de ser simplesmen- boas intenções que não deram certo. Tampouco
te imposta a eles. Mostramos, ainda, como os eles descrevem nossos professores como exces-
professores lutam para conectar reformas cur- sivamente otimistas - que avançam imper-
riculares e de avaliação aos diversos estilos de turbáveis por problemas ou contratempos que
vida dos seus alunos, como desenvolvem pro- surgem no seu caminho. Nossas descobertas,
gramas integrados de qualidade que se inter- sim, abrem uma janela para as realidades e não
relacionam com as vidas e a aprendizagem de apenas para a retórica da Nova Ortodoxia da Mu-
todos os seus alunos e como procuram manei- dança Educacional do começo do século.
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
o ex-presidente Sanguinetti (Uruguai) pro- cia e para maior coesão social. Além disso, as
feriu há pouco tempo uma frase carregada de expectativas que a sociedade deposita na edu-
significado: "o futuro já não é como era antes". cação são cada vez maiores. Tem-se a esperan-
No passado talvez fosse possível prever o que ça de que a escola possa resolver praticamente
aconteceria a seguir. Atualmente, o ritmo das todos os problemas que suscitam alguma pre-
mudanças é tão acelerado que poucos ousam ocupação: se houver violência, a escola deve
fazer prognósticos. Todavia, é necessário anali- combatê-la e reduzi-la; se aparecerem novas
sar as características mais relevantes da socie- doenças, a escola deve preparar seus alunos
dade e da educação, definir as diferentes alter- para evitá-las; se houver desigualdades, xeno-
nativas colocadas aos sistemas educativos, op- fobia, acidentes de trânsito, desrespeito ao meio
tar por aquela considerada mais vantajosa e co- ambiente e t c , a escola torna-se responsável
locar em prática as mudanças que podem torná- pela diminuição dessas atitudes e comporta-
la possível. Esses são os temas que serão trata- mentos. Não obstante, além disso, os alunos
dos nesta palestra. Em primeiro lugar, descre- devem ser bons cidadãos, humanistas, leitores
veremos os principais traços da situação atual, interessados, falar diversas línguas, demonstrar
bem como seus riscos e possibilidades. Em se- habilidade no manuseio de novas tecnologias,
gundo lugar, apresentaremos três possíveis ce- além de ser dotados de senso crítico.
nários educativos do futuro: o liberal, o buro- o risco existente é o de que a sociedade e os
crático e o comunitário. Finalmente, ressaltare- podêres públicos não estejam conscientes das
mos as mudanças mais importantes que devem enormes dificuldades que a busca desses obje-
ser implementadas para que as escolas venham tivos acarreta, nem das novas condições que de-
a constituir comunidades de aprendizagem. veriam ser criadas para a t i n g i - l o s . O que acon-
tece com crescente freqüência é que as exigên-
cias se mantêm e, até mesmo, aumentam, sem
Uma realidade social que haja um apoio decisivo para lidar com elas.
e educativa ambivalente No entanto, seria possível pensar que essa maior
exigência poderá algum dia transformar-se num
Uma das características mais importantes da
efetivo empenho pela mudança.
atual sociedade talvez seja sua ambivalência,
isto é, sua capacidade tanto para aprofundar as o segundo traço diz respeito à crescente in-
atuais desigualdades como para se dirigir rumo corporação da competitividade no sistema edu-
cativo.
a uma melhor distribuição dos bens coletivos. O quadro abaixoPartindo
retrata osdo funcionamento
traços mais da econo-
relevantes que caracterizam o sistema mia, esta regida pelas leis da oferta e da procu-
educativo e os riscos existentes, bem
como suas possibilidades. Principais traços da realidade educativa,
seus riscos e possibilidades
i
ra, pela ausência de protecionismo e pelo do- necessidade de um processo contínuo de ino-
mínio das regras do mercado, a educação tem vação em sala de aula é evidente. Contudo, a
sido pressionada a reger-se de acordo com nor- escassa formação e a falta de tempo dedicado à
mas semelhantes. As escolas lutam por matri- reflexão podem vir a impedir essa dinâmica e
cular alunos e por conseguir bons resultados. manter os professores utilizando modelos de
Caso contrário, poderiam vir a ser suprimidas ensino que sejam ao mesmo tempo tradicionais
ou desprezadas. e repetitivos.
o risco desse enfoque é o aumento das de- Finalmente, existe uma exigência de melho-
sigualdades. A liberdade de escolha que os pais ria da qualidade do ensino público, onde uma
têm à sua frente transforma-se em liberdade das grande parte dos alunos de um país aprende,
escolas para escolher seus alunos, o que leva al- especialmente aqueles que se encontram em
gumas delas a poder selecionar os melhores de- condições sociais mais desfavorecidas. Quan-
les, enquanto outras não têm saída senão ma- do as horas diárias durante as quais os alunos
tricular alunos com os maiores problemas, o se encontram em escolas públicas são inferio-
que só faz aumentar o hiato existente entre res às de seus colegas de escolas privadas, quan-
umas e outras. Existe, entretanto, a possibilida- do seus recursos são insuficientes e o número
de de que essa pressão pelo sucesso venha a se de alunos por turma excessivo e não se faz qua-
traduzir num maior empenho para que a edu- se nada para resolver tal situação, existe o risco
cação de melhor qualidade chegue a todos os de que a escola pública rume para a margina-
alunos. lização, na medida em que os pais com alguns
o terceiro traço aponta para a demanda das recursos optem por escolas privadas para seus
famílias. Os pais também estão conscientes de filhos. Todavia, a exigência por escolas de qua-
que a melhor herança para os seus filhos é uma lidade para todos os alunos permite a possibi-
boa educação e exigem das escolas que assegu- lidade de que os podêres públicos responsáveis
rem para estes bons resultados escolares. No pela educação se empenhem na melhoria das
entanto, existe o risco de que os pais repassem escolas públicas.
para as escolas toda a responsabilidade pela
educação dos seus filhos, dadas as dificuldades
que eles mesmos encontram tanto em termos Diferentes cenários
de (falta de) tempo como de pouco preparo para
Em que direção irão orientar-se os sistemas
se dedicarem eles mesmos a tal tarefa. Contu-
educativos? Será que prevalecerão os riscos aci-
do essa mesma demanda pode converter-se
ma descritos ou serão aproveitadas as oportu-
num poderoso instrumento para uma maior
nidades positivas existentes? Não é possível
cooperação entre as famílias e a escola.
sabê-lo. Enquanto nos anos 1980 grande parte
Acompanhando de perto essa maior exi- das reformas educativas baseou-se em políti-
gência de educação vem a importância do tra- cas liberais, ao começar o novo milênio despon-
balho dos professores. Os sinais nessa direção ta uma possível mudança de orientação. Seja
são contínuos. Porém, na maioria das vezes, qual for o futuro, existem três possíveis cená-
essa suposta valorização do trabalho dos do- rios, um dos quais predominará, dependendo
centes não se traduz em ações de reconheci- das iniciativas que venham a ser adotadas nos
mento e de apoio. É preciso modificar essa si- próximos anos.
tuação e transformar o reconhecimento verbal
da importância dos professores num esforço
contínuo, em que se favoreça o seu desenvol- 0 cenário liberal
vimento profissional. Esse cenário supõe, em síntese, fortalecer os
As atuais mudanças na sociedade, especial- elementos competitivos no funcionamento da
mente aquelas que resultam da influência dos educação. Os principais objetivos seriam me-
sistemas de comunicação e de informação, exi- lhorar o rendimento escolar dos alunos e am-
gem dos docentes novas formas de ensinar. A pliar as opções de escolas para os pais. Para
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
alcançá-los, seria necessário reforçar os siste- munidades de aprendizagem não pode efetivar-
mas de avaliação baseados nos resultados es- se com exclusividade a partir das escolas, mas
colares dos alunos, comparar o que foi obtido exige a ativa participação de outras instituições.
em cada escola e torná-los públicos, para que a Esse seria o cenário mais desejável, aquele que
sociedade pudesse conhecer e controlar o fun- melhor garante o equilíbrio entre a qualidade e
cionamento dos estabelecimentos. a eqüidade na educação, porém o que exige mu-
danças mais profundas e de mais longo alcan-
0 cenário burocrático ce. Essas mudanças serão descritas de forma su-
As suas principais características são a ma- cinta nas páginas que seguem.
nutenção da atual situação e a incapacidade de
empreender reformas profundas. De um lado, As condições da mudança
existe receio em avançar com o modelo liberal,
seja pela pressão da sociedade ou dos sindica- A mudança para a configuração mais
tos dos professores, seja pela convicção de suas abrangente de comunidades de aprendizagem
conseqüências negativas no âmbito da eqüida- não é algo que se produz em si. É necessário
de. De outro, tampouco existe vontade política um projeto global, no qual se integrem dife-
em modificar os ajustes existentes: situação rentes estratégias que confluam para o objeti-
ruim dos professores, abandono da escola pú- vo desejado. As principais características das
blica, poucos investimentos, rigidez na organi- mudanças que devem ser impulsionadas são
zação da escolas e no desempenho profissional as seguintes: a mensagem e a ação educativa,
dos professores, sistemas de formação obsole- as novas estratégias para a formação do pro-
tos etc. A falta de decisão, normalmente asso- fessorado, o tempo dos professores, as redes
ciada ao receio de conflitos e à falta de perspec- de escolas, a participação da comunidade edu-
tiva futura, leva à conclusão de que as escolas e cativa, os modelos eqüitativos de avaliação e a
os professores continuam agindo como sempre, atenção à diversidade.
embora se permitam e estimulem projetos li-
mitados de inovação e de mudança realizados A mensagem e a ação educativa
por equipes de professores empreendedores.
A mudança educativa em determinado sen-
tido exige que as mensagens e a ação também
0 cenário da comunidade se orientem na mesma direção. Quando a ênfa-
de aprendizagem se se limita ao rendimento acadêmico dos alu-
Esse cenário implica acreditar que a apren- nos, quando se responsabilizam exclusivamen-
dizagem dos alunos, de todos eles, exige um te as escolas pelos problemas existentes e quan-
modelo diferente de e n s i n o . O objetivo não é do se esquece, sistematicamente, de outras con-
que os professores lecionem e os alunos apren- dições, os avanços se tornam difíceis.
dam, mas que toda a comunidade educativa - Ao contrário, a mudança das escolas no sen-
professores, pais e alunos - participe no proces- tido de virem a se tornar comunidades de
so de aprendizagem. Além disso, a responsabi- aprendizagem supõe um discurso alternativo.
lidade pelo ensino e pela aprendizagem não re- Os objetivos das escolas vão além da transmis-
cai com exclusividade na escola, mas conside- são de conhecimentos e estendem-se em três
ra-se que deveriam existir mais instituições direções complementares: o desenvolvimento
comprometidas com esse objetivo. Sob essa do desejo de saber, o reforço da sensibilidade e
perspectiva, o papel da escola se vê modifica- do afeto e a construção de valores pessoais.
do, o que, por sua vez, exige mudanças na sua Nesse processo, é preciso que o conjunto da
organização, nas suas relações com o mundo comunidade educativa esteja comprometido.
externo, nos seus objetivos educativos, na sua Esses objetivos condicionam o trabalho dos
forma de ensinar e na sua maneira de avaliar. professores, a organização das escolas e sua
o avanço em direção a escolas que sejam co- conexão com o entorno, os sistemas de avalia-
ção, a assessoria e o apoio que as escolas rece- em colaborar com ele. Mas, para alcançar o ex-
bem, bem como as relações com a administra- posto, é preciso uma maior estabilidade e de-
ção educativa. dicação dos professores a sua escola e um tem-
po disponível para elaborar e colocar em práti-
0 compromisso com as escolas ca os projetos educacionais. Quando os profes-
sores devem ministrar a docência em várias es-
A ampliação da escolarização dos alunos, a
colas, é muito difícil assegurar essa forma de
melhoria da qualidade do ensino ou a redução
colaboração.
do fracasso escolar não são tarefas que as esco-
las e os professores possam realizar de forma
isolada. Ao contrário, exigem o apoio decidido A redução do abandono escolar
das administrações educativas e dos poderes Altas taxas de abandono escolar são incom-
públicos. Esse compromisso pode se concreti- patíveis com uma educação de qualidade, mas
zar, prioritariamente, em duas direções. Em o abandono escolar não é responsabilidade ex-
primeiro lugar, deve propiciar o aumento dos clusiva do sistema educativo, nem das escolas.
orçamentos educacionais de forma sustentada, Uma alta porcentagem de fracasso escolar tem
possibilitando, assim, o alcance dos objetivos sua origem diretamente ligada às carências eco-
previstos. Esse incremento do investimento nômicas, sociais e culturais de que sofrem de-
público em educação deve ser acompanhado de terminados grupos populacionais. Os estudos
uma progressiva e eficiente distribuição, de for- que analisam a influência social no acesso à
ma que aqueles que possuem menos possam educação têm demonstrado que alunos que vi-
receber mais. De toda maneira, o incremento vem em piores condições sociais apresentam
dos recursos deveria se destinar a ampliar a maior probabilidade de estudar menos anos e
Educação Infantil nos setores mais desfavo- de estar situados em grupos de alunos cuja
recidos, a fortalecer a Educação Básica, a au- valoração acadêmica é mais baixa: turmas cujos
mentar a oferta da Educação Secundária, a ele- alunos têm nível acadêmico inferior, grupos
var o nível de formação das mulheres jovens, especiais ou sem qualificação final reconheci-
especialmente aquelas com menor nível de es- d a . O informe do Banco Interamericano do De-
colaridade, e a reforçar os recursos e o funcio- senvolvimento (BID, 1998: 30) assinala que os
namento das escolas públicas. 10% da população mais pobre, com mais de 25
Em segundo lugar, esse compromisso deve- anos, no Brasil, estudaram em média apenas
ria supor uma nova forma de relação com as es- durante 1,98 ano, enquanto os 10% mais ricos
colas. A administração educacional deve ser ca- estudaram durante 10,53 anos.
paz de negociar e estabelecer, por acordo, um Esses dados não significam que as famílias,
programa específico com cada escola, de ma- o sistema educacional, as escolas, os profes-
neira que elas possam desenvolvê-lo no perío- sores e os próprios alunos não tenham nada a
do de tempo compactuado - procedimento este fazer diante de tal realidade sociocultural des-
que supõe uma aposta decidida em favor da au- f a v o r á v e l . O abandono escolar prematuro deve
tonomia das escolas e de sua maior responsa- ser entendido numa perspectiva multidimen-
bilidade sobre os assuntos educacionais. A sional e interativa, em que as condições so-
contrapartida deve ser uma avaliação rigorosa ciais, a atitude da família, a organização do sis-
de seu funcionamento, na perspectiva de co- tema educacional, o funcionamento das esco-
nhecer e melhorar, e não de comparar e selecio- las, a prática docente em sala de aula e a dis-
nar. Portanto, é preciso que as escolas públicas posição do aluno para a aprendizagem ocupam
deixem de ser um número - entre muitos - que papel relevante. Cada um desses fatores não
depende da administração educacional para ter pode ser considerado de forma isolada, mas
personalidade própria, capacidade de em estreita relação com os d e m a i s . O caso da
interlocução e um projeto estável que permita disposição do aluno é um bom exemplo desse
a participação de setores sociais interessados modelo explicativo e interativo. Sua falta de
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
também a suas atitudes e estratégias de apren- a realidade que estão vivenciando. O ensino não
dizagem, processos educativos da escola e da pode estar desvinculado das suas experiências,
sala de aula e às ponderações de pais, professo- nem alheio a suas preocupações. Porém esse ob-
res e alunos. Uma avaliação que tenha por ob- jetivo desejável complica-se quando se constata
jetivo principal colaborar com as escolas para a existência de uma grande heterogeneidade de
que se conheçam melhor e possam elaborar alunos nas salas de aula. Ademais, essa diversi-
estratégias de mudança. Uma avaliação que não dade dos alunos tende a aumentar, na medida
seja feita apenas num momento pontual, mas em que a educação obrigatória de dez anos de
que prossiga ao longo dos anos. A organização escolaridade se transforme em realidade.
de redes de avaliação de que participem dife- A criação de comunidades de aprendizagem
rentes escolas é uma das possíveis estratégias que buscam um ensino de qualidade para to-
para colocar em prática esse modelo de múlti- dos os alunos enfrenta seu principal desafio
plos níveis de avaliação. quando as escolas exercem sua função em con-
textos sociais e familiares desfavorecidos. Nes-
tes casos, torna-se ainda mais urgente e
A atenção à diversidade
prioritário o trabalho conjunto de todas as ins-
em sala de aula tituições, tanto para apoiar e fortalecer o tra-
As mudanças apresentadas até agora fica- balho dos professores quanto para melhorar as
riam incompletas se não impulsionassem a condições de vida das f a m í l i a s . O desenvolvi-
transformação do ensino em sala de a u l a . O pro- mento de políticas de emprego, de habitação,
fessor terá de ser capaz de assistir os alunos para de saúde, de proteção social e de educação em
que encontrem o significado das suas múltiplas favor dos grupos de pessoas com maiores ca-
e dispersas experiências. Por esse motivo, o seu rências irá colaborar de maneira insubstituível
ensinamento deve estar conectado com os co- com o esforço levado a cabo pelo estabeleci-
nhecimentos prévios dos alunos, bem como com mento escolar.
SIMPÓSIO 2
José Tavares
L
Uma escola reflexiva
e desigualdade educacional
Juan Casassus
Unesco/Oreolc/Chile
Nos últimos tempos, tenho concentrado É relativo à nossa cultura e, portanto, tem
meu trabalho na análise e no desenvolvimen- um significado particular, um significado
to conceituais. Por esse motivo, quando rece- que não está presente em outra cultura.
bi o convite para participar deste Congresso Não é algo que tem um tipo de existência
e concordamos em que eu desenvolveria o como a de uma montanha ou de uma ár-
tema da escola reflexiva, tive que me pergun- vore. Qualidade não existe "lá fora" de uma
tar que conceitos poderia trazer a este Con- maneira objetiva e independente de nós.
gresso que fossem, de alguma maneira, úteis Contudo, qualidade tampouco existe "aqui
dentro" de uma maneira subjetiva, como
para a reflexão sobre o que estamos chaman-
é o caso de uma emoção ou de um estado
do de escola reflexiva.
de espírito. Qualidade existe como um
Como seu nome indica, este Congresso construto que ocorre quando alguém ob-
tem como eixo o conceito da qualidade da serva um espaço determinado a partir da
educação e, por essa razão, parece-me impor- ótica, dos conceitos, da qualidade. É im-
tante abordar alguns elementos vinculados ao portante compreendermos que a qualida-
que chamamos de qualidade da educação. de é um conceito construído que se apli-
Assim, esta apresentação se insere no contex- ca a algo, como, por exemplo, a um auto-
to de uma reflexão sobre a qualidade da edu- móvel, a uma casa, a uma pessoa ou à edu-
cação e o movimento da prática reflexiva. cação. No entanto, sua forma de ser não
Nesse marco, gostaria em primeiro lugar está na coisa em si (objetiva), nem no ob-
de ilustrar alguns aspectos vinculados à cons- servador (subjetiva): ela existe sob a for-
trução do conceito de qualidade e caracteri- ma de uma relação entre um observador e
o observado.
zar o problema da qualidade como um pro-
blema de desigualdade. Em segundo lugar, • Em segundo lugar, a relação entre o obser-
gostaria de formular alguns conceitos que nos vador e o observado ocorre no plano da lin-
permitam construir a idéia de uma escola re- guagem. Ela é, particularmente, espe-
flexiva ligada à desigualdade. cificada na formulação de um juízo, ou seja,
um observador observa uma situação com
seus conceitos de qualidade, que lhe ser-
A qualidade vem de óculos, e sobre ela emite um juízo
em função das lentes que usa. Observemos
é um construto cultural que a qualidade aparece com o juízo: sem
A qualidade é um conceito cultural. Isso ele não há qualidade.
significa que ela se desenvolve no plano da • Em terceiro lugar, os juízos têm a capaci-
cultura. Essa idéia tem várias implicações. dade de determinar se algo é de qualida-
• Em primeiro lugar, precisamos compre- de ou não. Nesse sentido, são atos
ender que tipo de entidade seria um con- lingüísticos poderosos e, por essa razão,
ceito cultural. Quando falamos de quali- precisamos entender que não são "objeti-
dade na educação, estamos nos referindo vos". Eles são construídos e apresentam
a algo que construímos conceitualmente. determinadas características.
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Para uma discussão mais detalhada sobre o tema ver Casassus e Arancibia, 1997. Ver também Casassus, Lenguaje. poder y calidad de Ia
educación. Boletin del Proyecto Principal de Educación, 50, Santiago de Chile: Unesco, 1999.
o exposto anteriormente constitui uma mar que os que tinham educação podiam ter
condição importante pois. definitivamente, é o acesso a determinados empregos e meios soci-
grupo social que determina a validade ou a ais. Além disso, como "antigamente" a educa-
pertinência de um padrão. Se um país adota ção era predominantemente elitista e limitada
padrões, por mais bem formulados que sejam, em sua oferta e por seus conteúdos, as elites
eles não se tornarão uma referência aceita se eram privilegiadas.
não forem percebidos como válidos e úteis pe- Afirmar que a educação de hoje não é tão
los usuários. Nesse sentido, é interessante ob- boa é, além do mais, emitir um juízo baseado
servar as tensões que ocorrem, por exemplo, em critérios e padrões do passado, desconhe-
nos Estados Unidos, onde, de um lado, existe cendo o que aconteceu em decorrência da
um movimento que tenta estabelecer padrões massificação e da democratização da educação.
nacionais e, de outro, há resistência de docen- Uma afirmação dessa natureza seria, portanto,
tes para validá-los e permitir que sejam usados um juízo mal fundamentado.
como referência. o juízo é formulado com base em um pa-
drão, porém os padrões têm uma referência
0 grupo social constrói temporal, histórica. Se a qualidade é histórica,
os juízos sobre a qualidade isso significa, por um lado, que ela não é algo
abstrato, atemporal e, por outro, que ela faz sen-
Quando, em países como Argentina, Chile ou tido em uma situação concreta específica e
Venezuela, foi realizada uma consulta junto aos pode não fazer sentido em outra situação con-
pais sobre a qualidade da educação de seus fi- creta. Como os critérios e os padrões variam
lhos, as respostas foram bastante parecidas nos segundo as circunstâncias, não se pode aplicar
três países e verificou-se que, quanto mais bai- um padrão de um contexto em outro contexto.
xo o nível socioeconômico das pessoas, mais fa- Podemos dizer que qualidade não é um concei-
voráveis eram as respostas, e vice-versa. As ra- to absoluto, e sim relativo e dinâmico.
zões dessa discrepância precisam ser explicadas.
Para esclarecê-las, precisamos fazer uma
análise dos elementos contextuais que influen- Múltiplas qualidades,
ciam esses juízos. Uma educação considerada múltiplos pontos de vista
"menos boa ou ruim" pode ser julgada "boa" Partindo da conclusão de que não é válido
pelo grupo mais imediato de seus usuários. Ao afirmar que a qualidade é absoluta, cabe per-
contrário, uma educação considerada "boa" do guntarmos se seria conveniente impor um cri-
ponto de vista de sua localização, infra-estru- tério único de qualidade em vez de concebê-la
tura, salários ou materiais, tende a ser conside- como flexível, relativa, dinâmica e ajustável às
rada "ruim" pelos pais de um grupo favorecido. diferentes necessidades dos usuários.
Assim, podemos concluir que os juízos sobre a
o critério atualmente predominante é o de
qualidade da educação são socialmente cons-
que a educação deve satisfazer a diversidade;
truídos e variam de acordo com a cultura e o
portanto, podemos afirmar que a qualidade é
nível social.
multidimensional e que existem múltiplas qua-
lidades. Há qualidades para cada pessoa e para
A qualidade é um conceito histórico cada grupo. Cada pessoa tem uma idéia dife-
Freqüentemente, afirma-se que "a educação rente da qualidade porque seus critérios são
de hoje não é tão boa quanto a de antigamen- diferentes, bem como suas necessidades, sua
te". No entanto, fazer referência a critérios do história e suas perspectivas.
passado é aludir a um certo tipo de educação e Além disso, não é necessário considerar pes-
aos frutos que dela podiam ser colhidos em soas diferentes para apreciar a diversidade dos
outro período histórico. juízos sobre a qualidade. Cada pessoa tem concep-
No que se refere ao emprego, por exemplo, ções diferentes da qualidade, segundo o campo
dizer que a educação de antes era melhor é afir- considerado e o propósito do juízo nesse campo.
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Alguns pais poderão considerar que uma escola boa é uma vantagem e uma escola defi-
escola com disciplina autoritária é boa para seu ciente é uma desvantagem.
filho mais velho, mas podem também pensar Em outro sentido, as maneiras de se chegar
que essa mesma disciplina é um fator negativo a essa qualidade não precisam ser as mesmas
em se tratando do segundo filho mais velho. para todos. Qualidade para todos, num contex-
Além do mais, embora a escola possa ser consi- to de diversidade, é como chegar à qualidade
derada boa para o mais velho, pela sua capaci- definida para todos mas adaptada ao sujeito
dade de "disciplinar", pode muito bem ser con- individual ou coletivo que dela necessita. No
siderada de má qualidade em outros aspectos, contexto da diversidade, a qualidade exigida
como, por exemplo, se o jovem estiver interes- por grupos interessados em questões de gêne-
sado em aprender informática e a escola não ro implica considerações da problemática do
possuir os equipamentos necessários para sa- gênero; por grupos religiosos, do tema de sua
tisfazer a esse interesse. religião; por pessoas superdotadas, de um cur-
rículo que garanta seu pleno desenvolvimento.
Qualidade e eqüidade
A desigualdade e a qualidade
o tema da qualidade na educação também
está ligado ao tema da eqüidade. Todas as pes- da educação
soas têm direito a uma educação de qualidade. Gostaria, agora, de examinar o aspecto que
Além disso, na prática, é muito difícil distinguir pode ser considerado o maior problema da qua-
a qualidade da educação da igualdade de opor- lidade na educação. Esse problema não é tanto
tunidades. o da qualidade em si, que é um assunto com-
A partir dessa perspectiva, quando se fala plicado, mas o de como garantir qualidade para
em qualidade, não se está fazendo referência o sistema como um todo: o problema da desi-
apenas a esquemas tutoriais, a uma relação per- gualdade na geração ou no acesso à qualidade.
sonalizada e unipessoal entre professor e alu- Se alguém se pergunta "qualidade na educa-
no, e sim ao sistema como um todo. Nesse sen- ção, para quem?", a resposta é: "para todos". Nos
tido, convém observar que, embora a qualida- relatórios dos sistemas de avaliação, a primeira e
de deva ser entendida como algo ligado à eqüi- mais constante informação é a da desigualdade
dade, esta também pode ser vista como algo nos resultados acadêmicos obtidos pelas escolas.
separado da qualidade. Em estudos internacio- Vemos, assim, que estamos diante de um proble-
nais, podemos observar países que apresentam ma sério, porque as oportunidades de acesso a
um rendimento baixo (baixa qualidade) e pou- essa qualidade não são iguais para todos.
ca diferença de rendimento entre as escolas Há um acesso diferençado às possibilidades
(alta eqüidade). No outro extremo, há países de produção da qualidade que o sistema ofere-
com poucas diferenças entre as escolas (índi- ce. Alguns têm acesso a boas escolas, enquanto
ces de alta eqüidade) que apresentam, ao mes- outros só têm acesso a escolas deficientes. Essa
mo tempo, altos rendimentos (índices elevados situação é muito delicada, pois os setores ca-
de qualidade). Este é um objetivo de política rentes, os que mais precisam das melhores es-
educacional. colas, só têm acesso a escolas de baixa qualida-
A massificação, por sua vez, suscita proble- de, produzindo-se, assim, um "duplo risco" de
mas pedagógicos completamente diferentes. fracasso (Willms, 1992). Os que mais precisam
Um deles é a busca de qualidade para os estu- são os que menos recebem. As crianças caren-
dantes como um t o d o . O público assume o tema tes não estão apenas expostas a um risco de fra-
da qualidade da educação e transforma-o em casso; na verdade, estão expostas ao duplo ris-
objeto de política pública; além disso, procura co duplo de fracasso escolar e de gerar desigual-
qualidade educacional com distribuição eqüi- dade educacional. Portanto, as ações para pre-
tativa na sociedade. Isso ocorre porque as es- venir esse quadro devem levar em considera-
colas fazem diferença na vida das crianças: uma ção essa situação específica.
Ocorreram mudanças em nossa forma de ber, a educação como uma atividade destinada
compreender o fracasso escolar. Numa primei- a desenvolver, no indivíduo, as capacidades e
ra etapa, as políticas promoveram a busca da as atitudes dele exigidas pela sociedade políti-
"igualdade de oportunidades". A questão da ca e pelo meio ao qual ele está destinado. Tam-
qualidade - a primeira qualidade - era a do bém se parece com a visão de Parsons, de acor-
acesso à escola. A desigualdade era vista como do com a qual a educação é meio de socializa-
desigualdade no acesso à educação. A resposta ção e de diferenciação seletiva. Segundo essas
foi a ampliação do sistema, de modo que ele visões, a igualdade de oportunidades é esta-
pudesse oferecer acesso à escola a todos que belecida inicialmente e a diferenciação de re-
desejassem. Em alguma medida, a desigualda- sultados surge, no final, como uma conseqüên-
de no contexto do acesso persiste, se conside- cia da desigualdade de status. Nessa perspecti-
rarmos como se dá o acesso dos alunos ao En- va, a avaliação "objetiva" das provas padroni-
sino Médio. Essa diferença é ainda maior no zadas apenas consagra e mantém, na prática, o
acesso ao ensino superior. princípio da desigualdade.
Posteriormente, até o fim da década de Este último comentário merece explicação
1980, estimou-se que a oferta era suficiente para mais detalhada. Quando as chamadas provas de
todos os alunos que quisessem ter acesso ao sis- avaliação "objetivas" foram desenvolvidas, a
tema. Quando isso aconteceu, o problema da idéia da igualdade residia na possibilidade de
qualidade foi desvinculado da questão do aces- todos os alunos passarem numa mesma prova
so e vinculado à necessidade de se oferecer qua- que contivesse os mesmos itens. Assim, evita-
lidade no interior do sistema. No entanto, para va-se que a avaliação caísse naquilo que no iní-
que isso acontecesse, seria necessário, em pri- cio da revolução behaviorista chamou-se de
meiro lugar, tornar visível algo que corres- "tergiversações subjetivas". As provas "objeti-
pondesse a alguma idéia de qualidade "quali- vas" foram, assim, concebidas numa perspecti-
tativa", em vez da qualidade "quantitativa" an- va de igualdade de oportunidades baseada na
terior. Com essa idéia em mente, foram então aplicação de uma mesma prova, e a discrimi-
estabelecidos os sistemas de avaliação da qua- nação que se lograva com esse esquema devia-
lidade da educação, produtos de uma mudan- se às deficiências que os alunos apresentavam
ça em nossa forma de ver o problema da desi- em suas respostas à prova. No entanto, os alu-
gualdade. nos não chegam iguais às provas. Assim como
A mudança consistiu na introdução da idéia ocorre com o conceito do "duplo risco", também
de que a qualidade devia ser mensurada. Para se produz um "duplo privilégio". É importante
que os sistemas de avaliação funcionassem, foi observar que um sujeito situado no topo desse
então necessário gerar alguma idéia de quali- "duplo privilégio", apenas por esse fato e inde-
dade que se pudesse medir. Assim, o que fosse pendentemente de qualquer outra considera-
medido seria considerado produto ou resulta- ção, está numa situação qualitativamente qua-
do do processo educacional. Então, a desigual- tro vezes melhor que outro situado na base do
dade foi desvinculada do acesso à educação e duplo risco. Essa desigualdade é patente nos
passou a ser vista como uma "desigualdade sistemas de avaliação, uma vez que eles geram
quanto aos resultados" da educação. uma constatação estatística da existência de
desigualdades.
Uma educação centrada em resultados,
como parece ser o critério predominante hoje, A explicação para as desigualdades também
é uma educação centrada na idéia da hierar- está sofrendo mudanças. Desde a década de
quização das pessoas e da educação como um 1960, diversos estudos realizados em nível
processo de seleção, preparatório para a distri- macro oferecem explicações para as diferenças
buição da população de alunos em posições nas estruturas sociais, econômicas e culturais.
sociais e em lugares de trabalho hierarquizados. Em um estudo recente para a América Latina
Essa visão contemporânea está muito ligada à (Casassus, 2001) estima-se que essas estruturas
noção que Durkheim tinha da educação, a sa- expliquem cerca de 30% da variação observada
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
nos resultados. Essa estimativa empírica é con- referência a algo que existe, que tem edifica-
sideravelmente menor que a que se tem usado. ções, um lugar onde aulas são dadas, onde gru-
É importante observarmos que o tipo de refle- pos de pessoas de diferentes gerações intera-
xão que tem sido feita nesse âmbito tende a afir- gem. No entanto, o que caracteriza uma escola
mar algo como: as crianças de determinadas não são essas coisas, que freqüentemente ve-
comunidades apresentam resultados baixos mos em desenhos de escolas. A existência da
porque vêm de comunidades carentes. Desse escola reside no fluxo de interações entre pes-
modo, muitas pessoas estimam que os baixos soas. Devemos observar que o aspecto funda-
resultados podem ser atribuídos à comunida- mental dessa noção de escola é a idéia de que
de de origem do a l u n o . O problema é geralmen- nos elementos que a constituem são as pessoas
te formulado da seguinte maneira: "a escola de que interagem. Na verdade, a interação de duas
baixos resultados é uma escola cuja comunida- pessoas, a interação de dois sujeitos. A interação
de não alcança os padrões ou níveis estabeleci- entre dois (ou mais) sujeitos é chamada de
dos para essa escola". Assim, a dificuldade é atri- intersubjetividade.
buída à comunidade e a suas limitações para Quando consideramos a interação que carac-
alcançar o nível estipulado. No entanto, pode- teriza o tipo de entidade que uma escola é, impli-
ríamos também pensar exatamente ao contrá- ca que estamos considerando qualquer fluxo de
rio: podemos pensar que os padrões e os pro- interações de maneira genérica. Trata-se de um
cedimentos é que não são adequados para as tipo de fluxo particular, modelado por um conjun-
necessidades da comunidade. to de normas, culturas e pautas que lhe dão coe-
o mesmo estudo mostra também que, em rência. A escola constitui-se, em primeiro lugar,
nível micro, ou seja, no nível da escola, os pro- como entidade que se apresenta como uma
cessos que nela ocorrem explicam cerca de 60% interação intersubjetiva (entre sujeitos), desenvol-
das variações observadas nos resultados. Essa vida num padrão que regula o fluxo de interações
constatação implica que, sem descontarmos o e lhe confere identidade - unidade - como escola.
impacto da macroanálise, é na microanálise que Efetivamente, podemos dizer que uma escola tem
podemos encontrar diversas pistas para ações edificações, normas e coisas assim. No entanto, sua
que podem reduzir as desigualdades. unidade, o que permite a uma pessoa afirmar que
se trata de "uma escola", é definida pelo padrão de
interações intersubjetivas. O fenômeno "escola"
Uma escola reflexiva emerge do padrão das interações h u m a n a s . O
Consideremos agora o tema da escola re- modo de existir da escola é definido por um pa-
flexiva e de como esta pode nos ajudar nesse drão de interações entre sujeitos. Uma escola as-
contexto. sim concebida é o que no campo das ciências
Em primeiro lugar, precisamos nos pergun- cognitivas é chamado de "fenômeno emergente"
tar se não seria tolice afirmar que uma escola (Varela, 2000). Outros nomes dados a esse modo
pode refletir. Não seria um abuso de linguagem? de existência seriam "auto-organização", no cam-
É legítimo falar sobre uma escola reflexiva? Não, po da biologia, "complexidade", no campo da filo-
não é tolice, tampouco abuso de linguagem. Para sofia, ou "rede comunicacional", na teoria das or-
compreender essa afirmação, precisamos inicial- ganizações.
mente esclarecer o que se entende por escola, É importante observar que, nesse sentido,
da mesma maneira que inicialmente nos pergun- "a escola" é um nível de análise caracterizado
tamos o que seria a "qualidade na educação". pelo tipo de interações próprio do sentido da
Assim como, quando falamos em qualida- interação. É próprio do "porquê" e do "para que"
de, não nos estamos referindo a uma coisa que da i n t e r a ç ã o . O "porquê" e o "para que" são de-
existe "fora", como uma árvore, devemos nos terminados pelo que é próprio da escola. Por
perguntar sobre de que tipo de entidade exemplo, uma interação entre professores para
estamos falando quando nos referimos a "uma ir jantar num restaurante não é - em princípio
escola". Ao fazer esta locução, em geral fazemos - regida pelo padrão do fluxo de interações,
como seria uma reunião de professores para uma prática e das conseqüências que ela gera.
discutir o projeto do estabelecimento. No nível A perspectiva reflexiva não constitui um con-
da escola, interagem as pessoas que formam a junto de procedimentos específicos. Trata-se,
comunidade educacional. A interação constitui como indica Schõn, de uma epistemologia da
a escola, confere a ela identidade como prática, uma epistemologia diferente, que se
interação regida pelas preocupações dessa co- caracteriza por ser um estado mental, uma for-
munidade educacional. Portanto, quando dize- ma de enfrentar e responder a problemas. A
mos "uma escola", estamos denotando um pa- ação reflexiva constitui um processo mais am-
drão específico de interações entre sujeitos e plo que o da solução lógica e racional dos pro-
não entre edifícios, livros e coisas desse tipo. blemas. A reflexão implica intuição, sentimen-
Observemos esse fato no nível da sala de aula. to, paixão. Nesse sentido, não é algo que se pos-
Nesse nível, um sujeito, como professor, interage sa delimitar precisamente e ensinar, como um
com outros sujeitos como alunos. Eles fazem com conjunto de técnicas a serem usadas por pro-
que a "aula" exista: literalmente criam a aula na fessores; ao contrário, trata-se de uma posição
medida em que sua interação esteja regida pelo de consciência.
padrão que orienta o processo de ensino-apren- A ação reflexiva é, acima de tudo, uma posi-
dizagem. Observemos que, independentemente ção mental que coloca o professor em estado
do nível de análise, o que sempre a constitui são de consciência em relação ao que ele está fa-
os sujeitos interagindo segundo um padrão de zendo e a como está fazendo. Não uma consci-
ação determinado. ência quanto a estar fazendo o que lhe disse-
No entanto, esses sujeitos podem interagir ram para fazer ou a estar usando a técnica ade-
de forma reflexiva ou não-reflexiva. A escola quada, mas uma consciência do que está fazen-
reflexiva tem lugar quando os sujeitos que for- do em relação à aprendizagem de seus alunos.
mam a comunidade educacional entram em Isso é o que Schõn descreve como reflexão na
processo de interação, reflexivamente. ação, diferentemente da reflexão sobre a ação,
que é uma reflexão posterior ao que se realizou,
que não ocorre na ação e, sim, posteriormente,
0 que seria o processo para melhorar a próxima ação.
reflexivo? A reflexão na ação significa pensar no que se
o processo reflexivo refere-se ao processo faz enquanto se está fazendo, o que produz uma
de conscientização da ação que está sendo de- sensação especial: a sensação de se estar numa
senvolvida. J. Dewey distingue a ação reflexiva situação singular, num momento singular, num
da ação rotineira. A ação rotineira é dirigida pela momento incerto, aberto à criação pessoal. Essa
reação reflexa, pela convenção, pela tradição e sensação tem a particularidade de produzir uma
pela autoridade. Por exemplo, na prática, os certa tensão, um tipo de tensão que permite al-
docentes de uma escola têm diferentes postu- ternativas. Por um lado, pode fazer brotar o me-
ras em relação aos problemas de aprendizagem lhor do ser docente no professor, pois nessa ten-
com os quais se defrontam. Dentre essas pos- são prevalecem a criação e a relevância da solu-
turas, existe a cultura da escola, expressa na fra- ção. Por outro lado, se o professor tiver perdido
se "aqui fazemos as coisas desta maneira", que a confiança em si mesmo, a tensão pode fazê-lo
passa a constituir a cultura oficial dessa escola. cair na tentação de se apoiar exclusivamente em
Essa cultura é, freqüentemente, percebida técnicas aprendidas, que não estão formuladas
como um "freio" a mudanças. Os professores para situações particulares como as que ele pode
não-reflexivos aceitam automaticamente a vi- estar vivenciando num determinado momento,
são que se adota como regra geral numa deter- mas para situações gerais que, concretamente,
minada situação. não existem.
A ação reflexiva, por sua vez, expressa uma É importante observar que a racionalidade
consideração ativa, persistente e cuidadosa dos positivista subjacente à racionalidade técnica
fundamentos que dão base a uma crença sobre pressupõe que o professor é um instrumento na
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
aplicação da técnica, e não um profissional cri- contrário, a idéia fica mais clara: uma escola
ativo. Ao nos refugiarmos na técnica, corremos não-reflexiva caracteriza-se pela aceitação de
o risco de perder as virtudes do conhecimento um estado de coisas na realidade cotidiana.
profissional adquirido na prática, perdemos a Uma escola não-reflexiva não questiona as cau-
oportunidade da criação, da relevância, e a ação sas da desigualdade educacional e do fracasso
passa a ser orientada no sentido de produzir escolar. Uma escola não-reflexiva atua nos sin-
soluções preconcebidas. tomas de um estado de coisas, sem indagar as
Quero deixar claro que não estou dizendo causas desses sintomas. Uma escola não-refle-
que não devemos usar técnicas. Ao contrário, é xiva é a que funciona no espaço das interações
importante dominar o uso de técnicas, pois elas rotineiras.
facilitam o desenvolvimento dos recursos pes- Na perspectiva do pensamento reflexivo, o
soais do d o c e n t e . O que estou dizendo é que o padrão que rege o fluxo das interações pode ser
pensamento reflexivo é caracterizado por uma modificado pela reflexão. O padrão pode ser alte-
atitude, por um estado mental c o n s c i e n t e . O uso rado pela ruptura entre interações rotineiras para
de técnicas é secundário. Usá-las não-reflexiva- que se estabeleçam interações reflexivas. Quan-
mente é desconhecer uma outra capacidade de do o padrão de interações gera desigualdade, é
análise que a realidade permite. Se traçarmos um necessário entrar num processo reflexivo.
paralelo com outras atividades profissionais, o padrão que rege a desigualdade, o proces-
como a medicina ou a advocacia, podemos no- so de produção da discriminação, ocorre coti-
tar que os profissionais de sucesso sempre atu- dianamente na prática da sala de aula. Ele se
am com base na interpretação profissional dos dá quando o professor não percebe que um alu-
problemas que precisam enfrentar. no não está entendendo um teorema de álge-
Como todo estado mental consciente, a bra. Em contrapartida, a superação da desigual-
ação reflexiva sustenta-se, nutre-se de atitu- dade ocorre quando o professor, ao ouvir a per-
des. Dewey identifica três delas: abertura in- gunta de um aluno, identifica onde está a dúvi-
telectual, responsabilidade e sinceridade. da. Essa percepção de onde está a dúvida do
Abertura intelectual: desejo ativo de consi- aluno é como uma compreensão intuitiva, e a
derar mais de um ponto de vista, visualizar solução dessa dúvida resulta de um processo
alternativas, reconhecer a possibilidade de criativo, da arte do professor ao enfrentar a si-
erro, perguntar-se por que se faz o que se tuação. Nesse processo, o professor cria, testa
faz e - o que talvez seja mais importante - novas estratégias para esclarecer a c o n f u s ã o . O
identificar as emoções que estão na base do não-atendimento e o não-esclarecimento da
que se faz, uma vez que a ação é determi- confusão estigmatizam o estudante como um
nada pela emoção. "mau aluno". Embora a desigualdade certamen-
Responsabilidade: avaliação e cuidadosa te não se restrinja à sala de aula nem necessa-
consideração das conseqüências produzidas riamente se origine nela, é ali que ela se produz
por nossa ação. Conseqüências nos planos e reproduz.
emocional, intelectual e social dos alunos.
Como mencionamos anteriormente, o ris-
Sinceridade: ser honesto consigo mesmo co duplo faz os alunos chegarem com carências
em relação ao que se está fazendo. Essa ati- à escola e à sala de aula. Esse assunto é matéria
tude é o suporte da abertura intelectual e não apenas da sala de aula, mas também da es-
da responsabilidade. cola. Num texto anterior (Casassus, 2001), de-
monstrou-se que os processos desenvolvidos
nas escolas e nas salas de aula podem reverter
Uma escola reflexiva diante
as dinâmicas da desigualdade. Determinadas
da desigualdade educacional práticas de gestão, a vinculação da escola à co-
Uma escola reflexiva é aquela capaz de munidade, o tipo de pedagogia e, principalmen-
ensejar respostas para os principais problemas te, um clima emocional positivo são algumas
da desigualdade. Formulando a afirmação ao das áreas que permitem identificar o que pode
ser feito para alterar a produção e a reprodução flexiva se estabeleça nas escolas, pois só ela
da desigualdade educacional. As dificuldades pode produzir conhecimentos relevantes para
dos alunos e suas carências são experiências a situação concreta dos alunos.
particulares (e não gerais). Elas ocorrem em Só podemos aprender a refletir sobre a ação
uma situação c o n c r e t a . O diagnóstico adequa- fazendo. Ninguém pode fazê-lo por outra pessoa.
do das experiências particulares (não- gerais), Cada pessoa precisa fazê-lo por si mesma. No
a forma como um problema é situado e formu- entanto, poderá receber apoio, e o apoio de que
lado não é, por si só, uma questão técnica. É um precisa é do tipo oferecido por um treinador
problema de reflexão que combina aspectos (coach). Aprendemos fazendo e também refletin-
políticos, administrativos e pedagógicos e que do sobre o que fizemos. É importante observar
exige atitudes de abertura, responsabilidade e que estou propondo uma mudança na forma de
sinceridade. Esse é um pensamento sistêmico, apoiar o trabalho da comunidade educacional.
porque a realidade é complexa. Mas não pode Não se trata de ensinar dizendo o que se deve fa-
acontecer se a escola não reflete sobre si mes- zer; trata-se de conversar de modo que os que
ma, se não aprende consigo mesma. Essa é uma precisam fazer descubram, por eles mesmos, as
postura semelhante à proposta nos planos de possibilidades de que dispõem para detectar, for-
gestão das organizações que aprendem (ver, por mular e resolver os problemas de sua escola. Tal-
exemplo, Senge, 1996). É na reflexão sobre si vez seja uma proposta um pouco utópica, porque
mesmo que se abre o espaço da aprendizagem. pressupõe professores muito competentes para
Se a desigualdade se apresenta concreta- aprender por conta própria, mas a utopia come-
mente na prática de uma escola como lugar de ça pela mudança emocional e pela atitude de
risco duplo é só nela que se pode tentar rever- abertura, responsabilidade e sinceridade.
ter o processo - e isso só pode ocorrer numa
escola que reflita sobre si mesma e que apren-
da consigo m e s m a . O desânimo e a falta de
Bibliografia
ambição que podem ser observados em muitas ALARCÃO, Isabel (Org.). Escola reflexiva e nova
racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.
escolas precisam ser abordados promovendo-
CASASSUS, Juan. La revalorizacion de Ia escuela: los
se uma mudança emocional e uma atitude re-
factores que afectar» el rendimiento acadêmico. São
flexiva. Uma escola reflexiva só pode apoiar-se Paulo. 2001.
em seus profissionais e em suas competências. CASASSUS, Juan; ARANCIBIA. Violeta. Claves para una
Gostaria de terminar com este pensamen- educación de calidad. Buenos Aires: Kapelusz, 1996.
to: para que a reflexão seja uma forma de ser DEWEY, John. Como pensamos. Cognición y desarrollo
humano. Barcelona: Paidós, 1989.
das escolas, seus profissionais precisam assu-
DURKHEIM, Emile. Education et Sociologie. 3. ed. Paris:
mir a responsabilidade da reflexão. Estamos
PUF, 1992.
atravessando um período paradoxal, caracteri- PARSONS, Talcott. Estructura y proceso en Ias sociedades
zado pela coexistência de políticas que cami- modernas. Madrid: Instituto de Estudos Políticos, 1966.
nham em sentidos aparentemente opostos. Por SCHÒN, Donald. A. Educating the reflective practitioner. San
um lado, as autoridades do sistema educacio- Francisco: Jossey Bass Publishers, 1987.
nal procuram aperfeiçoar práticas de descen- SENGE, Peter. La quinta discipina. Madrid: Granica, 1996.
tralização e autonomia; por outro, propõem, em VARELA, Francisco. El fenômeno de Ia vida. Santiago de
Chile: Dolmen. 2000.
número crescente, soluções baseadas nas "me-
WILLMS, J. Douglas. Monitoring school performance: a guide
lhores práticas" e nas "escolas bem-sucedidas" for educators. Washington, DC: Falmer, 1992.
de outros contextos. Essa situação paradoxal só ZEICHNER, Kenneth. El maestro como profesional reflexi-
poderá ser superada à medida que a prática re- vo. Cuadernos de Pedagogia, n. 220, Madrid, dez. 1993.
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Escola reflexiva
resiliência e sentimento de si
Um objetivo que os profissionais
da educação não poderão perder de vista
José Tavares
Universidade de Aveiro/Portugal
Introdução
0
dos obtidos é, sem dúvida, um dos caminhos a * Pedagogia, pedagogos e formação de pro-
fessores: busca e movimento. 3. ed. Campinas: Papirus,
seguir. Os instrumentos para avaliar esse tipo
2000.
de experiência ainda não são muito fiáveis. Exis- CARNEIRO, R. Sociedade e informação. Lisboa:Texto, 1997.
tem, no entanto, já alguns trabalhos, entre os CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma
quais os de Grotberg, Cobassa, Tavares e teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
Albuquerque, em que se tem procurado elabo- DAMÁSIO, A. O sentimento de si: o corpo, a emoção e a
rar instrumentos de avaliação em torno do con- neurobiologia da consciência. Mira-Sintra: Publicações
ceito de auto-estima dos sujeitos em relação ao Europa-América, 2000.
ERIKSON. E. H. Identidade: juventude e crise. São Paulo:
ter, ao poder, ao querer e ao ser, que se têm re-
Harper & Row do Brasil, 1976.
velado sensíveis para compreender essa dimen-
Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,
são da personalidade que nos parece essencial 1976.
para configurar a escola reflexiva que defende- FONSECA, V. Cognição e aprendizagem. Lisboa: Âncora,
mos. Afigura-se-nos efetivamente que é por essa 2001.
via que será necessário continuar, porventura, GEORGEN, P: SAVIANI, D. (Orgs.). Formação de profes-
recorrendo às teses defendidas por Damásio em sores: a experiência internacional sob o olhar brasilei-
ro. Campinas: Autores Associados, 1998.
torno da consciência e do sentimento de si e das
MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, refor-
suas mútuas implicações no nível do si neuronal
mar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
ou do proto-si, do si nuclear e autobiográfico, PLACCO, V. M. N. S. Formação e prática do educador e do
uma nova via para perceber como se constrói a orientador: confrontos e questionamentos. Campinas:
pessoa do sujeito humano e, conseqüentemen- Papirus, 1994.
te, o sentido profundo da emergência da consci- ROLDÃO, M. C; MARQUES. R. (Orgs.). Inovação, currículo
ência, da emoção, da reflexibilidade, da flexibi- e formação. Porto: Porto Editora, 2001.
lidade, da resiliência, que não só exprimem as SENGE, P The lifth discipline: the art practice of the learning
organization. 2. ed. New York: Currency Doubleday, 1994.
modalidades do desenvolvimento humano, mas
TAVARES. J. Uma sociedade que aprende e se desenvolve:
também as diversas formas que deverão confi-
relações interpessoais. Porto: Porto Editora, 1996.
gurar a formação e a educação do novo cidadão (Org.). Resiliência e educação. São Paulo:
numa escola que se quer mais inteligente, Cortez. 2001.
aprendente, qualificante, cordial, solidária, exi- TAVARES, J.; ALBUQUERQUE, A. M. Sentidos e implica-
gente e tolerante, reflexiva. Para que essa escola ções da resiliência na formação. Revista de Psicologia,
aconteça e se desenvolva, certamente os profes- Educação. Cultura, v. II, n. 1, p. 143-52. Gaia: Colégio
sores e os educadores terão de rever o seu real Internato dos Carvalhos, maio 1998.
TAVARES, J.; BRZEZINSKI, I. Construção do conhecimen-
envolvimento e desempenho e preparar-se, for-
to profissional: um novo paradigma científico e de for-
mar-se continuadamente, ao longo da vida, para mação. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1999.
realizar essa missão.
SIMPÓSIO 3
DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA LEITORA E
ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman
Beatriz Cardoso
Dada a importância da leitura para o desen- são cultural e, mais tarde, uma perspectiva so-
volvimento pleno do aluno, para a cidadania cial crítica, própria dos estudos do letramento,
crítica e para a participação nas práticas soci- visando ao fortalecimento do professor.
ais das instituições que usam a escrita, a pro-
cura de soluções para a chamada "crise de lei-
tura" das três últimas décadas compete a todo 0 leitor
professor, no seu domínio específico de ação, e Nas décadas de 1970 e 1980, o ensino foi for-
ao professor de português, no seu domínio re- temente influenciado pelos resultados de pes-
lativo ao ensino de aspectos lingüísticos e quisas da Psicologia Cognitiva e da Psico-
discursivos da modalidade escrita da língua. lingüística, ciências que forneceram, nessa épo-
Pode-se pensar no ensino de leitura na esco- ca, as principais vertentes teóricas em relação ao
la como tendo dois objetivos básicos: um deles estudo da leitura. Tanto na Psicolingüística como
é o incentivo e o desenvolvimento do gosto pela na Psicologia Cognitiva, o sujeito leitor ocupa
leitura e o outro, o desenvolvimento da capaci- lugar preeminente e central, daí o interesse pelo
dade de compreensão do texto escrito. Para atin- seu funcionamento cognitivo durante a compre-
gir o primeiro objetivo, precisamos de pessoas, ensão e pelas relações entre linguagem e pensa-
atividades e infra-estrutura que permitam o con- mento durante a leitura. Essas abordagens pres-
tato prazeroso com o livro, a experimentação, o supunham um leitor inteligente, que reagia não
manuseio de muitos e variados suportes e reper- apenas aos estímulos externos - as letras no pa-
tórios de textos: professores que contagiem com pel -, fazendo todas as permutações e combina-
seu entusiasmo pela leitura, contadores de his- ções possíveis já aprendidas, mas que se anteci-
tórias, bibliotecários prestativos, bibliotecas pava, elaborava hipóteses, enfim, usava, em no-
bem-aparelhadas, atividades lúdicas que envol- vas e imprevisíveis combinações, todo o seu co-
vam a leitura, são todos eles essenciais. Para atin- nhecimento e experiência a c u m u l a d o s . O impac-
gir o segundo objetivo, precisamos de tudo o que to dessa pesquisa no ensino foi considerável para
foi anteriormente citado e, ainda, de um profes- a ampliação da concepção do que era leitura: por
sor bem-formado que seja, além de leitor, for- exemplo, em vez de se exigir apenas a oralização
mador de novos leitores, orientando os muitos certa da leitura, passaram a ser desenvolvidas
caminhos que se pode tomar para chegar à cons- abordagens para o ensino de estratégias para tra-
trução de um sentido. balhar o texto.
Esta apresentação visa a discutir três aspec- Aliás, se um programa de leitura estiver fun-
tos da leitura relevantes para o seu ensino na damentado nos estudos cognitivos, um de seus
escola e para a formação do professor: os aspec- objetivos certamente será o desenvolvimento de
tos cognitivos, os aspectos textuais e, por últi- um leitor independente, capaz de entender tex-
mo, os elementos sociais a serem levados em tos de diversos gêneros sem a mediação de um
conta no desenvolvimento de atividades didáti- adulto, professor ou leitor mais experiente, por
cas com o objetivo de formar leitores. Discutire- meio de programas que propiciem atividades para
mos as contribuições de estudos sobre os aspec- o aluno a desenvolver um conjunto de estratégias
tos sociocognitivos da leitura, aos quais foi sen- de compreensão de língua escrita envolvendo o
do progressivamente incrementada uma dimen- uso, monitorado ou não, de sua memória, de sua
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
capacidade de inferência, de sua atenção. Visan- dos grupos sociais nas diversas práticas cultu-
do àquele momento de independência, um pro- rais. A prática cultural passa a ter lugar central
grama de leitura nessas linhas deverá incluir ati- na investigação e, portanto, as áreas que se ocu-
vidades de leitura mediadas pelo professor, por pam das práticas discursivas, do impacto social
meio das quais ele cria e modela estratégias de e cultural da escrita e da história da escrita e
leitura cada vez mais complexas e que exigem dos leitores são as que passam a fornecer as
cada vez mais independência do aluno. vertentes teórico-metodológicas mais impor-
tantes para a investigação dos usos da escrita,
em geral, e da leitura, em particular.
0 texto
As questões tornam-se mais amplas, porque
No fim da década de 1980 e início dos anos as áreas que subsidiam as pesquisas fazem
1990, foram sendo realizadas novas pesquisas questionamentos mais abrangentes, não ape-
sobre as formas naturais de se testar leitores, nas sobre a compreensão da leitura, mas tam-
envolvendo situações reais de leitura de textos bém sobre o papel e o impacto da escrita na vida
autênticos, e o tipo de texto lido passou a ocu- social. Parte-se do pressuposto de que não se
par um lugar mais importante. As característi- pode estudar o leitor sem história nem identi-
cas do texto, a sua legibilidade, os diversos me- dade: são investigadas, então, as práticas leito-
canismos de textualização, as relações de ras da mulher jovem, ou do professor rural, em
similitude e diferença entre o oral e o escrito, as algum momento do seu percurso escolar, pro-
relativas dificuldades de leitura de determinados fissional ou social, em face de um determinado
gêneros tornam-se relevantes na pesquisa. A área gênero em voga numa determinada época. Aos
que trouxe e traz importantes subsídios para es- focos de interesse que incidiam sobre o leitor e
sas questões é a Lingüística Textual. o texto, agrega-se agora o contexto, seja ele o
Uma contribuição importante nesse sentido mais imediato da atividade de leitura, seja o
é o conceito de intertextualidade (a remissão de macrocontexto institucional, histórico, social.
um texto a outro), extremamente relevante para Os impactos desses estudos (conhecidos como
determinar a dificuldade de um texto. Segundo estudos do letramento) no ensino, segundo
Vigner (1988), a intertextualidade é a condição Kleiman e Moraes (1999: 57), são os que seguem.
do texto que diz respeito às suas relações com • As práticas de leitura e de produção de tex-
outros textos e fator essencial da sua legibilidade, tos escritos são extremamente abrangentes.
primeiro, porque o texto funciona segundo leis, Numa sociedade complexa, a "tecnologia"
códigos e convenções de um gênero (uma nor- da escrita permeia todas as instituições e
ma a ser seguida ou subvertida) cujo reconheci- relações sociais e determina até modos de
mento regula as expectativas do leitor; e, segun- falar sobre os assuntos e os textos.
do, porque o texto traz em si fragmentos de sen- • A relação entre oralidade e escrita não é de
tidos de outras fontes - reescrituras de outros opostos, mas de um contínuo. Portanto não
textos - cuja percepção e interpretação facilitam há oposições totais entre textos orais e es-
ou dificultam o ato de ler. critos - haveria redes de relações que os
aproximariam gradativamente.
• As práticas de uso da escrita são dependen-
A interação e a prática social tes do contexto e da instituição e, portanto,
Mais recentemente, os estudos sobre a ca- a aprendizagem de práticas de leitura im-
pacidade de compreender, de inferir e de de- plica a aprendizagem das normas das insti-
duzir numa situação individual de leitura ce- tuições que legitimam essas práticas.
dem lugar para perguntas sobre a construção Não há, do ponto de vista do ensino, incom-
social do conhecimento nas diversas institui- patibilidade entre esses enfoques. Eles se com-
ções em que os textos escritos tipicamente cir- plementam. Um programa de ensino da leitura
culam. Em decorrência desse interesse, surgem que vise introduzir o aluno nas práticas sociais
pesquisas sobre os usos da escrita pelos varia- valorizadas na sociedade é perfeitamente con-
sistente com a focalização, em algum momento como uma restituição para os sujeitos pesqui-
do programa, de algum aspecto da capacidade in- sados (Portelli, 1997), então, ao não-leitor deve-
dividual do leitor, como, por exemplo, os aspec- ríamos estar devolvendo o direito ao prazer da
tos cognitivos envolvidos na compreensão, a fim leitura; ao cidadão comum, o direito a continuar
de desenvolver estratégias cognitivas eficientes no aprendendo ao longo da vida através da leitura;
processo de compreensão do texto escrito. ao professor, o direito a sentir-se capaz e seguro
Há vinte anos, a pesquisa sobre a leitura na sua profissão de formador de leitores.
apontava exclusivamente os problemas, mos-
trando, por exemplo, aquilo que os leitores não
conseguiam compreender e/ou aquilo q u e os
professores não conseguiam ensinar. Há, nesse
Bibliografia
tipo de pesquisa, o risco de os sujeitos partici- KLEIMAN, A. B. A formação do leitor: uma abordagem
psicossocial. Prepes Virtual / Ensino do Português: a
pantes das pesquisas - os alunos e seus profes-
formação do professor leitor, autor e analista de textos.
sores - emergirem fragilizados; contudo os pos-
PUC/MG, 2001.
síveis efeitos negativos diminuirão se houver KLEIMAN, A. B.; MORAES, S. E. Leitura e interdisciplinari-
posicionamento crítico diante do fato social. Isso dade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas:
envolve u m a t o m a d a de posição ao lado dos Mercado de Letras, 1999.
menos poderosos, dos menos escolarizados, dos PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas
menos letrados, bem como a ajuda, a promoção reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História,
ou o avanço desses mesmos grupos. Essa é a ca- n. 15, p. 13-33, São Paulo, abril 1997.
VIGNER, G. Intertextualidade, norma e legibilidade. In:
racterística que devemos exigir hoje da pesqui-
GALVES, o ( O r g . ) . O texto: escrita e leitura. Campinas:
sa sobre a leitura. Se a pesquisa é e n t e n d i d a
Pontes Editores, 1988.
Desenvolvimento da
competência leitora e escritora
dos professores
Beatriz Cardoso
Cedoc
Resumo
Hoje há um consenso de que o professor pre- des e limites de inserção desse profissional no
cisa desenvolver sua competência leitora e escri- mundo da escrita.
tora. É preciso identificar com maior precisão as o processo de formação implica necessaria-
formas de que dispomos nos processos de mente uma interlocução do sujeito com as suas re-
capacitação, para poder ajudá-lo a se aprimorar presentações, à luz das dos outros. Dentro dessa
nesse campo. Apoiada na reflexão sobre experiên- perspectiva, a escrita pode e deve ser incorporada,
cias de capacitação continuada de docentes, pro- no trabalho de capacitação, como um instrumento
curarei discutir as características do texto escrito privilegiado. A questão é justamente refletir sobre
que a profissão docente requisita e as possibilida- como e quando essa tarefa pode ser produtiva.
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
Desenvolvimento da
competência leitora e escritora
Euzi Rodrigues Moraes
Rede Interdisciplinar de Educação (Ried)/ES
Quem escreve, assim como quem lê, o faz Procurei sugerir a Bianca alguns livros que
basicamente movido por um incontrolável de- eu julgava mais interessantes para a idade dela.
sejo de se comunicar. Escritores e leitores nun- Não surtiu e f e i t o . O próximo livro que ela esco-
ca estão sozinhos, por mais solitários que pare- lheu foi Linguagem total, de Francisco Gutierrez,
çam ser esses momentos interativos de criação e o seguinte, Educar para quê?, de Reinaldo
de significados. Ler e escrever são procedimen- Matias Fleuri.
tos indissociáveis e de alta significação social. E o tempo foi passando, enquanto Bianca
Não podem tampouco se desvincular da comu- devorava os livros, até que um dia ela me disse,
nicação por meio da fala. Gostaríamos, então, com olhos iluminados: "Agora estou escreven-
de discutir competência leitora e escritora no do! Já escrevi cinco páginas". "Posso ler o que
contexto mais amplo da comunicação humana você escreveu?" - perguntei.
e do desenvolvimento da competência comu- Com a permissão dela, fui virando as pági-
nicativa. nas e descobrindo que o que ela fizera fora co-
Ensinar a ler e escrever é um dos papéis mais piar partes dos livros. Dava para notar que ela
fundamentais da escola, se não o mais funda- estava orgulhosa do seu feito. A letra era boa e a
mental. Não se pode, portanto, pensar a forma- escrita caprichada. "Dá pra você escrever algu-
ção de comunicadores competentes sem refle- ma coisa da sua cabeça?" - perguntei. Ela sorriu.
tir sobre a ação da escola. Essa reflexão se apoia, Dias depois, Bianca me trouxe outra página
pois, em três focos: os alunos, os professores e escrita. Era a transcrição de um poema inti-
a escola. tulado Solidão. Queria minha opinião sobre a
sua letra, que era firme e insinuante, com tre-
jeitos... letra sestrosa de menina-moça.
Os alunos Elogiei a letra dela - merecidamente. Li o
Como lêem e escrevem os alunos de nossas poema. Fiz alguns comentários pouco relevan-
escolas? Que desempenho têm na sociedade, tes, e insisti: "Por que você não escreve uma
como leitores e escritores? Exemplos é que não coisa da sua cabeça?". "Eu não sei" - ela disse.
faltam. Estou pensando agora em Bianca - 16 Como formar leitores e escritores? Sabemos
anos, 6ª série, aluna da escola pública. que temos pela frente um sério desafio.
Bianca veio trabalhar e morar na minha casa Em 1988, a 33ª Convenção Anual da Associa-
há dois meses. Chegou e, por iniciativa própria, ção Internacional de Leitura aprovou uma Re-
mergulhou nas estantes de livros. E passou a solução que levava o título Sobre o apoio dos
"ler" avidamente, livro após livro. Pelo menos pais ao desenvolvimento da linguagem da cri-
era a impressão que se tinha, pois ela se posta- ança. Ao conclamar as famílias a uma parceria
va em algum canto da casa, virando páginas, com a escola, diz a Resolução que "as crianças
enquanto deslizava os olhos sobre o texto es- aprendem mais durante os seus primeiros cin-
crito. Intrigada, perguntei um dia à garota: "Que co anos do que em qualquer outro período de
livro é este que você está lendo?" Era um exem- sua vida, por isso são os pais seus primeiros e
plar da revista Trabalhos em Lingüística Apli- mais importantes professores". O papel dos pais
cada, da Unicamp. "Está dando pra entender?" foi definido, no documento, como "provedores
- provoquei. "Mais ou menos" - disse ela. de um ambiente rico em linguagem".
Os relatos de Bianca dão conta de que fal- beça", isto é, escreviam. Cópia, montagem, imi-
tou a ela esse ambiente alfabetizador, rico em tação, colagem, colcha de retalhos são todos ró-
linguagem. Segundo o que apurei, ela não tem tulos para a produção escrita não-independen-
e n u n c a teve u m a família estruturada, nunca te, amarrada às palavras do autor sintetizado:
viveu em ambiente letrado nem manteve jamais produto de leitura de palavras, não de i d é i a s . O
qualquer contato com materiais escritos. texto chamado alienado e o lamento são válvu-
Bianca não é um caso isolado. Ela represen- las de escape para um discurso político que in-
ta um grande contingente de alunos da escola felizmente já virou clichê sem produzir resulta-
pública brasileira. dos: as reivindicações por melhores salários ou
A vida na creche é outra situação típica da condições de trabalho. As idéias do texto a sin-
rotina de numerosas crianças em nosso país, a tetizar? Nem menção a elas. A "síntese" da "lei-
maioria delas filhas e filhos do analfabetismo. tura" feita mostra que não aconteceu o diálogo
É confortador saber que já não se pensam mais escritor/leitor, não houve comunicação.
as creches somente como lugar onde as crian- Não foi mencionada no estudo uma forma
ças são cuidadas e n q u a n t o os pais trabalham, de composição escrita que resolvemos c h a m a r
mas também como espaço de educação, de de texto-fala, em virtude da semelhança com a
aprendizagem. Creche é hoje sinônimo de Edu- língua que se fala. É um texto autônomo, tem a
cação Infantil. Vamos torcer para que elas se marca de seu autor, mas não é elaborado como
tornem, no lugar dos pais, as provedoras desse os textos construídos na linguagem com que se
ambiente rico em linguagem de q u e fala a As- escreve.
sociação Internacional de Leitura. Esse p o n t o precisa ser mais investigado.
Será que uma estratégia para o desenvolvimen-
to da c o m p e t ê n c i a escritora dos professores
Os professores seria estimulá-los a escrever a fala e, então,
No artigo "A evolução da leitura e da escrita tematizar o texto, submetendo-o a um proces-
de um grupo de professores: estudo de caso", so de "tradução" para a escrita padrão? Não se-
publicado na Revista Brasileira de Estudos Pe- ria esse o caminho para libertar os professores
dagógicos, n. 195, encontramos uma tipologia de sua arraigada formação na cópia (na cópia
de textos que tenta identificar as característi- mecânica)?
cas da produção escrita de um grupo de pro- Assim como ensinar a ler é, em sua essência,
fessores participantes do Projeto Formar, um um empreendimento político, como dizem John
projeto de formação continuada de professores, Chapman e Pam Czerniewska no livro Leitura:
desenvolvido no Espírito Santo. do processo à prática, ensinar a escrever com au-
Esse grupo de professores foi a c o m p a n h a - tonomia, isto é, ensinar a escrever, t a m b é m o é.
do, durante um período de dez meses, por meio Em seus escritos, Paulo Freire sempre insistiu: é
da análise das sínteses que eles produziam após preciso ter voz, é preciso ler o mundo.
leitura e discussão de textos programados para Refletindo sobre o trabalho dos professores
estudo d u r a n t e aquele período. de leitura, C h a p m a n e Czerniewska fazem a se-
A tipologia apresenta oito categorias de tex- guinte pergunta: "Para que vale a leitura?" Fa-
to: texto-cópia, texto-imitação, texto alienado, zendo eco, nós perguntamos: "Para que vale a
texto-lamento, texto-colagem, texto-colcha-de- escrita?"
retalhos, texto-montagem e texto com autoria. E eles prosseguem:
Como se pode perceber, a classificação pro-
cede da cópia e segue até atingir o texto com Quando nos damos conta de que a segunda
autoria. Isso quer dizer que, no início dos estu- maior causa de morte entre adolescentes nos
dos, em março de 1998, as sínteses que os pro- Estados Unidos é o suicídio, ou que mais pes-
fessores faziam eram montagens de trechos lite- soas são hospitalizadas para tratamento de
ralmente copiados do texto original, enquanto doenças mentais do que devido a todas as ou-
no final do ano já escreviam "de sua própria ca- tras doenças juntas, ou que um em cada 22
SIMPÓSIO 3
ra da fala, nas interações sociais, ajuda os seus petência escritora dos professores que os ana-
usuários a avançar como comunicadores na lisam. Professores que já investem na sua prá-
modalidade oral. A interação via escrita, no en- tica, hoje, os conhecimentos teóricos construí-
tanto, Fica paralisada. dos com base nos novos paradigmas têm esti-
Desde os seus primeiros anos escolares, os mulado os alunos a produzir muitos textos. Mas
alunos aprendem a confundir fala e escrita. Ao não sabem o que fazer com esses textos para
assumir o papel de ensinar a escrita, a escola ajudar os alunos a avançar.
expulsou de seus domínios a língua oral. E, as- São legítimas as perguntas: "o que pensam
sim, a escrita passou a ditar regras para a fala: as crianças sobre a comunicação entre as pes-
deve-se falar como se escreve. Mas sem sucesso. soas? E sobre a textualidade? Que hipóteses for-
Os sons da fala, antes tão claramente per- mulam nas suas primeiras interações com o
ceptíveis aos ouvidos dos alunos, perdem suas objeto texto? Que hipóteses ortográficas, que
características. Os alunos ficam surdos: não hipóteses textuais? o que pensam as crianças
descobrem na fala as onze vogais do Português sobre o que é escrever, o que é compor um tex-
porque são apenas cinco as letras que as repre- to, o que é comunicar-se por escrito, o que é
sentam. Professores e alunos se descobrem sem fazer um resumo, o que é fazer anotações, o que
chão quando percebem que uma coisa é o som, é um parágrafo, qual a diferença entre escrever
outra coisa é a letra... uma coisa é o som da le- e copiar, para que serve a pontuação...?"
tra, outra coisa é o nome da letra.
Gestão da sala de aula
Tematização da leitura e da escrita nos Não basta ao professor conhecer o objeto lin-
cursos de formação inicial e continuada guagem e refletir sobre a fala, a escrita e a leitu-
de professores ra. É preciso que ele saiba que na sala de aula
"Aprende-se a escrever escrevendo" - este foi o outros conteúdos se articulam e contribuem ou
primeiro slogan que a reação à cartilha produziu, para desenvolver a competência comunicativa
que logo seria reformulado para: "Aprende-se a es- dos alunos ou para condená-los ao silêncio. Sua
crever escrevendo e refletindo sobre o escrito". E as relação com a língua falada e escrita, sua atitude
novas informações que nos chegam da psicogênese diante de um texto, sua disponibilidade para a
da língua escrita, em outra formulação e referindo- prática de ler, escrever e falar, seu envolvimento
se a leitores em seus primeiros contatos com a lín- com os alunos, sua história de falas e leituras,
gua escrita, dizem que os aprendizes de leitura de- sua capacidade de transformar a aula em um
vem "ler antes de saber ler" e que o aluno avança à momento de cooperação e partilha são situações
medida que sua parceira mais experiente, a profes- de aprendizagem tão significativas quanto aque-
sora, o faz pensar sobre o que está lendo, levantan- las em que tradicionalmente se pretendeu ensi-
do problemas. Portanto "aprende-se a ler lendo e nar conteúdos conceituais.
refletindo sobre o lido". Entendemos que a elabora-
ção escrita de sínteses de leituras é uma prática que
deve ser freqüente e que, unindo-se os dois proce-
Conclusão
dimentos e as duas estratégias, pode dar uma con- É impossível desenvolver competência lei-
tribuição significativa à formação de leitores e de tora ou escritora sem o envolvimento de pro-
escritores competentes. fessores e alunos com a prática da leitura e es-
crita e sem que eles conheçam bem o objeto lin-
guagem. Não me refiro necessariamente ao co-
Tematização da escrita e da leitura nhecimento gramatical, embora esteja segura
dos alunos de que a gramática tem uma contribuição úni-
Na verdade, parece-me que a análise com- ca a dar à reflexão sobre a linguagem. Estou
petente dos textos das crianças pode ser a me- pensando na natureza desse objeto que a gra-
lhor estratégia para o desenvolvimento da com- mática tenta explicar.
E quando uso a palavra gramática não tenho • como usuário dos diferentes registros da lin-
em mente aqueles conteúdos que levam esse guagem, sempre sensível à necessidade de
nome na escola e que tanto a descaracterizam, adequação da fala ao seu contexto (não é só
nem a didática escolar usada no ensino da gra- a roupa que usamos que deve estar de acor-
mática. Reporto-me ao modo de ser da lingua- do com o ambiente em que estamos; a lin-
gem: varia no tempo, no espaço (geográfico, so- guagem também);
cial, psicológico...), varia no formato dos textos, • como falante de um dialeto natural, que seja
opera ambigüidades, redundâncias, sutilezas, a marca de sua identidade sociolingüística
usa metáforas, comunica mais por meio do que e cultural;
não diz do que daquilo que diz - explicitamen- • como escritor sensível à diversidade de mo-
te, é um sistema de contrastes. dos de usar a língua e às relações entre o pen-
E cada movimento, cada gesto comunicati- samento e as variadas formas de expressá-lo
vo na direção do outro, é um movimento ou um por escrito;
gesto inteiramente novo, nunca acontecido an- • como pessoa que descobriu a alegria de ler
tes e fadado a não acontecer outra vez (Chomsky, e de escrever.
1967). E cada texto que se constrói é uma obra
Supomos que estes sejam alguns dos tra-
de engenho e arte, é cria do seu autor, é gerado e
ços que formam o perfil do comunicador com-
vem à luz com identidade própria, mesmo quan-
petente.
do é a síntese de um texto escrito por outro.
É original, sim, mas isso não quer dizer que
em sua tessitura não se entrecruzem persona-
gens, pensamentos, eventos, que passam pelo Bibliografia
autor do texto, percebida ou despercebidamen- CHAPMAN, John; CZERNIEWSKA, Pam. Reading: from
te, e são recriados, fazendo de cada um de nós process to practice. London: Routledge & Kegan Paul.
- escritor e leitor - um espécimen humano, um The Open University Press, 1978.
ser social e cultural, um comunicador. CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge:
The M.I.T Press, 1967.
Então, para que a leitura e a escrita na escola
FLEURI, R. M. Educar para quê?: contra o autoritarismo da
sejam fatores de desenvolvimento pessoal e
relação pedagógica na escola. Uberlândia: UFU, 1986.
sociocultural de alunos e professores, não basta GUTIERREZ, Francisco. Linguagem total: uma pedagogia dos
expormos a portadores de textos os leitores e os meios de comunicação. São Paulo: Summus, 1978.
escritores em formação, muito menos dizer-lhes HOCKETT, C. A course in modem linguistics. London:
que é preciso desenvolver uma intimidade com a Macmillan, 1959.
língua escrita. Um pensador anônimo expressa, KATZ, R S.; WARNES, Thomas E. Writing as a tool for learning.
em três pequenas frases, o que é fundamental: Trad. Euzi Moraes. Transactions on Education, v. 31, n. 3,
1988.
Me diz como é, e eu vou esquecer MORAES, E. R. A evolução da leitura e da escrita de um
PALESTRA
Mediando a leitura:
rumo à autonomia do leitor
Tânia Mariza K. Rosing*
Doutora em Letras pela PUC/RS, professora de Literatura Brasileira da Universidade de Passo Fundo/RS.
Essa denominação "professor documenta- rado pelas autoridades educacionais brasileiras
lista" é bastante ampla: a formação dos profissio- no que diz respeito ao processo de implanta-
nais interessados não se restringe ao conhecimen- ção de uma política de leitura no Brasil, parale-
to específico para a realização do arquivamento lamente à formação dos agentes de leitura, no
de documentos ou catalogação de materiais di- contexto das diversidades territorial e cultural
versificados. Tal processo abrange, também, téc- brasileiras e, em especial, das condições dos
nicas de dinamização dos materiais existentes no professores que atuam nas escolas e nas biblio-
espaço da biblioteca, por meio de vivências de tecas existentes nesse contexto plural.
leitura multi e interdisciplinares, e a realização de
práticas de leitura integradoras dos conteúdos de
diferentes disciplinas de um mesmo nível de es- 0 compromisso dos
colaridade, a partir de um tema central, só para mediadores com a seleção
citar um exemplo significativo.
Para que essa dinamização aconteça, é im-
de textos
prescindível, em primeiro lugar, que o professor Tanto no espaço da sala de aula quanto na
documentalista seja, efetivamente, um leitor. sala de leitura ou numa biblioteca, os acervos
Quem é contagiado pelo prazer de ler desde a disponíveis precisam ser dinamizados por um
primeira infância circula entre livros, revistas e profissional leitor. Essa constatação apresenta
outros suportes com entusiasmo, dialoga com os sentido amplo. Ser leitor não significa apenas
seus conteúdos com muita curiosidade, buscan- ser portador de uma erudição que vem de uma
do sempre outros materiais que possam enrique- cultura livresca. Ser leitor implica ter uma vi-
cer o conhecimento acerca de determinado as- são de mundo ampla, que prioriza o ser huma-
sunto. Em segundo lugar, adota uma perspecti- no com todo o seu potencial, identificando o
va interdisciplinar e transdisciplinar em suas in- perfil de cidadão necessário à promoção de
vestigações, pois não deve se apropriar do co- mudanças na sociedade, a fim de transformá-
nhecimento a partir da sua fragmentação. Deve la para melhor, garantindo um convívio de uni-
ter, ainda, a iniciativa de organizar práticas lei- dade na diversidade.
toras multi, inter e transdisciplinares, a partir do Que tipo de mediação é necessária? Enten-
envolvimento de professores de diferentes áre- de-se, atualmente, que o grande objetivo do
as, ao lado de profissionais emergentes dos mais mediador, seja ele professor ou bibliotecário, é
variados setores da sociedade, demonstrando o o de selecionar textos, apresentados em livros
processo em rede e suas implicações na cons- ou em outros suportes, capazes de desencade-
trução do conhecimento. ar uma perspectiva crítica no olhar do leitor
Toda essa competência profissional, aufe- sobre o mundo em toda a sua complexidade,
rida durante a formação específica, é dirigida sobre os demais seres humanos, sobre si mes-
ao desenvolvimento do potencial natural da mo. Para tanto, é necessário conhecer o que está
criança, que precisa ser alimentado e desenvol- disponível não apenas nos acervos existentes na
vido. É importante, nesse caso, lembrar que tal escola, mas também no mercado editorial em
processo não é desenvolvido individualmente, termos de publicações: do texto literário ao tex-
apenas, mas é construído a partir da vivência to científico, passando pelos textos de nature-
da criança entre seus pares, em grupos os mais za explicativa, argumentativa, entre tantos ou-
diversificados possíveis. tros, impressos no papel ou apresentados na
Os referenciais dos alunos, em diferentes tela eletrônica. É preciso acionar o conhecimen-
faixas etárias, são respeitados e se configuram to prévio adquirido ao longo de toda a sua for-
como resultados de ações de leitura que pro- mação profissional e pessoal, além de chamar
movem o ser humano sem o desconhecimento a atenção sobre o que conhece, mas que não
de aspectos fundamentais de sua identidade explicita em seus diálogos com os diferentes
cultural. textos, democratizando-os com seus pares.
o caso francês é um modelo a ser conside- o importante é identificar, no texto escrito, nas
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
vém sobre os elementos estruturantes da profis- são crítica das noções em voga sobre forma-
são propriamente dita e sobre a motivação de ção, bem como das práticas a que dão origem.
exercer: relação positiva com os alunos, sentimen- A tabela de freqüências dos aspectos comuns
to de eficácia e sentimento de desenvolvimento colocou na dianteira a construção de respos-
profissional" (1997:157). Sublinha ainda que par- tas para problemas da prática, ou mesmo a
ticipar como escola e nos seus projetos, embora possibilidade de equacionar problemas, como
com níveis de implicação diversos, significa a pre- as situações de maior potencial f o r m a t i v o . O
sença do "nível da escola" no "núcleo duro da pro- trabalho com os pares e com outros parceiros
fissão". A título de conclusão, remata: enfrentar do processo educativo foi identificado como
problemas cria desestabilização, mas "confere fonte de conhecimento e de produção de com-
todo o sentido à profissão" (Kherroubi, 1997:157). petências profissionais em contraste com a
irrelevância, para esse efeito, dos cursos ma-
gistrais, cuja persistência denunciam, a par da
Três experiências de outras modalidades de formação, ser de ine-
de formação ficácia igualmente reconhecida. Ou seja, o gru-
po reconheceu o impacto da dimensão coleti-
As experiências a seguir relatadas são de di-
va da formação.
mensão variável, constituindo, nos dois pri-
meiros casos, situações pontuais de um curso A partir desse ponto foi possível entrar na
mais abrangente, no primeiro, e de um proje- discussão pela constatação de Dominicé de
to de maior envergadura, no segundo. No ter- que a formação corresponde àquilo que nós fa-
ceiro, a situação corresponde à componente zemos daquilo que os outros queríamos que
formal de formação inerente à construção de nós fizéssemos, ou, de forma mais clara, que
um projeto local de âmbito concelhio. somos sempre nós a proceder à síntese e à in-
tegração das diferentes influências exteriores,
embora com a mediação dos demais.
0 que é ou não formação
Esta primeira experiência foi o resultado Aprender a utilizar o correio
do desenvolvimento de um pequeno disposi-
eletrônico enviando mensagens
tivo de formação em sala, adaptado de uma
proposta de Philippe Merieu, inserida no nú- No presente caso, trata-se de um disposi-
mero de d e z e m b r o de 1998 dos Cahiers tivo simples, destinado a formar tecnicamen-
Pédagogiques. Consistia num conjunto de ati- te no quadro do desenvolvimento de um tra-
vidades que combinava trabalho individual e balho em rede entre escolas, em que se pre-
em grupo, com vista à elucidação, pelos tende introduzir o correio eletrônico como
formandos, do que é, ou não, formação. vertente privilegiada de comunicação e de in-
Com base num pressuposto genérico de formação, entre professores e entre alunos das
análise de práticas durante três sessões de duas diferentes escolas que participam num mes-
horas cada uma, no ano letivo de 1995/1996, mo projeto.
num curso de pós-graduação para professores Eram pequenas escolas rurais de um ou
do lº ciclo do Ensino Básico, os formandos dois professores, às vezes um pouco mais.
confrontaram, em grupos que se constituem e Tendo em vista favorecer uma dinâmica
refazem, referências ao que cada um conside- participativa de formação, os professores or-
rou ter provocado uma situação de pesquisa ganizaram-se em grupos - em número de três
e/ou de mudança de práticas, para concluir ou de quatro -, sediados em escolas hospe-
com os traços comuns do que é uma situação deiras já equipadas e com o correio em fun-
formadora e em que diverge de outra conside- cionamento, para onde se deslocaram profes-
rada como não-formadora. sores de outras escolas (visitantes), a fim de
o objetivo era partir das concepções de perfazerem um número razoável de elemen-
cada um para encetar um processo de discus- tos por grupo.
Desse modo, em alguns casos, o único pro- Sabíamos da existência de diferentes estágios
fessor de uma pequena escola teve consigo, de relação com a máquina e disso fizemos um ele-
durante um dia inteiro, mais quatro a cinco co- mento de gestão do trabalho de formação, de modo
legas que com que ele partilharam, sob a su- que os "mais" experientes pudessem auxiliar os
pervisão de um formador, conhecimentos e ex- menos experientes ou sem qualquer experiência.
• integração no grupo que elaborou o projeto; • autonomização progressiva (da equipe do CRE);
• auxílio na redação e na revisão final do do- • incremento de processos de colaboração/
cumento do projeto. cooperação;
Posteriormente foi constituída uma equipe • formação com os pares e com os outros;
da Esep destinada a apoiar o desenvolvimento • articulação da intervenção escolar e extra-
futuro do projeto, ou seja, garantir o acompa- escolar num território;
nhamento formativo/metodológico, que teve,
• inserção do/da desenvolvimento/autono-
por meio da implementação de um Círculo de mia das escolas num processo de desenvol-
Estudos, como principais finalidades: vimento local;
• promover a discussão/apropriação do pro-
jeto global; • ambiente para novos projetos.
Resumo
Introdução
• o contexto profissional e a formação de competên- • A co-responsabilidade dos membros do grupo ten-
cias: a análise das situações mostra a banalização do em vista os desafios que surgem no horizonte do
do trabalho em equipe na escola e em outros espa- trabalho em equipe.
ços profissionais. • o papel da regulação no desenvolvimento dos níveis
• É a partir da fragilidade da experiência do trabalho de competências do trabalho em grupo.
em grupo que se geram razões para focalizarmos e • o projeto de trabalho realizado em cooperação e o
nos preocuparmos com o trabalho em grupo nos projeto de cooperação como projeto de trabalho.
espaços profissionais, sobretudo o escolar. • Projeto de cooperação: o desafio da construção de
• Desafio da contemporaneidade em relação ao tra- representações comuns no grupo e a preservação
balho em equipe. da identidade pessoal e profissional.
Desenvolvimento • A condução não-burocrática do trabalho em grupo.
• Desenvolvimento da competência de trabalho em Conclusão
grupo: níveis de interdependência. • o entendimento da competência do trabalho em
• Papel da trocas verbais no processo de comunica- equipe no seio da cultura, da negociação e da
ção em grupo. regulação da aprendizagem.
Introdução
A busca da competência de trabalhar em aprendizagens realizadas e que aprendizagens
grupo é uma manifestação freqüente em minha interativas conquistaram. É uma incerteza!
prática de formação de professores. Este item Sei, contudo, q u e há u m a cultura escolar de
de m i n h a prática, contudo, muitas vezes tem- organização fragmentada da tarefa realizada
me deixado em alerta. E sabe por quê? pelos participantes do grupo, q u a n d o os itens
Ando meio preocupada com a banalidade do do trabalho são, mais ou menos, divididos en-
trabalho em equipe na escola e desejando saber tre os m e m b r o s do grupo, assim: uns digitam
o que bem fazer para torná-lo de qualidade. ou passam a limpo o trabalho, outros realizam
Quando penso nisso, logo passa um "filme" em o exercício e um confecciona a capa...
minha mente. Vejo-me, por exemplo, diante de Por conta dessa vulgarização do trabalho em
u m a situação de avaliação b a s t a n t e descon- equipe, de u n s t e m p o s para cá resolvi q u e o
fortável, em que leio, com incerteza, os traba- exercício de avaliação seria individual: assim
lhos realizados por meus alunos "em grupo". Não pelo m e n o s eu saberia o q u e um aluno tinha
sei se t o d o s g a n h a r a m , i g u a l m e n t e , c o m as aprendido e poderia ajudá-lo a melhorar a sua
Maria Eliana Matos de Figueiredo Lima é professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Equipe de Forma-
dores da Rede Nacional de Formadores do Programa PCN em Ação da SEF/MEC. em Pernambuco.
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
Trabalhar em equipe é uma questão de compe- uma cultura de projeto em que todos desejam
tência e pressupõe a convicção de que a coope- e sabem elaborá-lo de forma coletiva e negocia-
ração é um projeto profissional a ser desenvolvi- da. Todavia, o segundo tipo de projeto requer o
do nas situações vividas nas interações internas desenvolvimento da cooperação em um nível
das equipes que atuam na escola e nas interações mais complexo.
internas das diversas equipes de alunos organi-
zadas em sala de aula (Thurler, 2001: 17-21).
Articular representações
dos membros do grupo
Adotando a cooperação como
Saber que a cooperação é o que os partici-
projeto de vida e de trabalho pantes de um grupo querem fazer juntos é con-
A adesão ao princípio do trabalho em equi- dição importante para iniciar o desenvolvimen-
pe permite-nos descobrir que nem sempre con- to dessa competência. Articular as idéias e as
seguimos atuar de modo cooperativo ou que, representações acerca da vida de seus membros
vez por outra, agimos cooperativamente nas si- é o grande desafio do grupo. Para isso, é neces-
tuações que vivenciamos. Em outras palavras, sário ouvir as propostas de todos, descobrir os
descobrimos que trabalhar em equipe é tam- desejos menos confessos dos parceiros e bus-
bém, paradoxalmente, não trabalhar em equi- car acordos mútuos.
pe quando não valer a pena. E quando será que Essa competência, como se pode ver, ultra-
não vale a pena atuar em equipe? passa a competência comunicativa entre os
Pode-se definir uma equipe como um gru- membros do grupo. Ela supõe uma certa com-
po reunido em torno de um projeto comum, preensão do funcionamento das pessoas no
cuja realização passa por diversas formas de grupo e das diversas fases do ciclo de vida de
acordo e de cooperação. um projeto, sobretudo o seu início, que muitas
Os projetos são tão diversos quanto as situa- vezes é cheio de incertezas. Enfim, para iniciar
ções e as ações do trabalho pedagógico. Nesse o desenvolvimento dessa competência numa
horizonte, podemos distinguir dois tipos de equipe, é preciso haver no grupo uma relação
projetos de cooperação: transparente e um certo equilíbrio para com-
• Projetos que se organizam em torno de uma preender os desejos de uns e de outros.
atividade pedagógica específica na escola
ou num grupo de formadores. Exemplo: a Falar, vez por outra, do medo da perda da auto-
organização de um seminário sobre educa- nomia, da proteção de territórios pessoais, de
ção. Nesse tipo de projeto, a cooperação é, assumir podêres ou de se submeter aos podêres
então, o meio para realizar o evento, pois dos outros é uma condição importante para tra-
ninguém tem a experiência ou o desejo de balho de cooperação (Perrenoud, 2000: 84).
fazê-lo sozinho. Nesse caso, a cooperação
encerra-se no momento em que o projeto é
concluído.
• Há projetos cujo desafio é a própria coo- Adotando o desafio de dirigir
peração e não têm prazos fixos para termi- um grupo de trabalho
nar, já que o seu objetivo é instalar uma
cultura ou uma forma de "atividade profis- É importante que todos os membros de um
sional interativa" (Thurler, 1996, apud grupo sejam coletivamente responsáveis pelo
Perrenoud, 2002: 83) entre os membros do seu funcionamento, de modo que cada um exer-
grupo. Neste caso, a cooperação é mais um ça, pessoalmente, uma parte do comando e de
modo de vida e de trabalho do que uma sua condução. Isso supõe, então, que todos os
ação eventual. participantes:
Podemos, efetivamente, vivenciar esses dois • sigam os horários e as pautas de reunião;
tipos de projeto. Em ambos, participamos de • desejem tomar decisões claras;
• assumam a divisão de tarefas; • alguns emitem opiniões categóricas, outros
• sigam o planejamento da próxima reunião; se magoam;
• as reuniões terminam sem que se decida a
• realizem a avaliação do trabalho;
data e/ou o conteúdo da próxima reunião.
• promovam a regulação das interações do
grupo.
Concluindo
A condução do grupo É na equipe que o desconforto das intera-
ções e da condução do grupo é superado. É o
Essa tarefa vai supor, ao mesmo tempo.
grupo que vai enfrentar o desafio de ajudar a
• uma certa preocupação com o funciona-
regulação de suas competências e descobrir
mento do grupo - para isso será necessário
como se faz isso (Coll et al., 1999).
fazer intervenções que facilitem a comuni-
cação e a tomada de decisões eficazes e Vê-se, pois, que a competência de trabalhar
igualitárias; em equipe passa longe de uma habilidade, ela
é muito mais que isso. Ela é uma compreensão
• uma competência de observação e de in-
do que fazemos funcionar nas situações de ro-
terpretação do que ocorre no grupo, a fim
tina e nas situações inesperadas do grupo, bem
de poder entender e intervir sobre o proces-
so de comunicação ou sobre a estrutura das como na situação de releitura de nossa experi-
tarefas a realizar. ência apoiada num certo conhecimento oriun-
do das Ciências Sociais.
A conduta de um professor na função de
dirigente ou de coordenador de grupo deve ser
A competência é, ao mesmo tempo, um negócio
tomada como uma condução que "dá vida ao (no sentido da troca) e uma cultura que se ins-
grupo" e não apenas lhe concede a fala. Para que tala a partir das situações vividas pelos envolvi-
a condução seja assim alcançada, não se pode dos nas situações reais e simuladas (Vergnaud).
confundir liderança com autoridade adminis-
trativa ou burocrática. Uma atuação burocráti-
ca pode conduzir os grupos a assumir as seguin- Bibliografia
tes atitudes: BROOKS, J. G.; BROOKS, M. G. Construtivismo em sala
• todo mundo fala ao mesmo tempo, sem de aula. Porto Alegre: Artmed, 1997.
ouvir os outros; COLL, C. el a l . O construtivismo em sala de aula. São Pau-
lo: Ática, 1999.
• os participantes não sabem a razão de estar DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório
juntos; para a Unesco da Comissão Internacional sobre Edu-
• há muitas conversas paralelas; cação para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998.
PERRENOUD. P. As dez competências do ensino. Porto
• a discussão não tem foco; Alegre: Artmed, 2000.
• alguns membros monopolizam a fala e a THURLER, M. G. Quais as competências para operar em
decisão, outros permanecem calados, sem ciclos de aprendizagens plurianuais? Revista Pátio, n.
demonstrar interesse de participar e sem 17, ano V, maio/jul. 2001.
Metodologia de formação
de professores enfocando
trabalho de grupo
Ana Claudia Rocha
Centro de Estudos da Escola da Vila/SP
Resumo
A atividade a ser relatada neste simpósio o trabalho de grupo é momento de cons-
pela palestrante pretende enfocar as ações de trução de significados compartilhados para
capacitação do Programa Praticar- Programa de qualquer comunidade que deseja constituir
Formação e Atualização Profissional Permanen- uma ação parceira entre seus membros. Po-
te -, realizadas pelo Centro de Estudos da Esco- rém, nesses casos que o Programa Praticar
la da Vila em várias redes públicas de ensino, acompanhou, é uma forma de valorizar a
tematizando as suas estratégias em favor do tra- produção do professor diante de sua própria
balho coletivo: a socialização da visita à escola, realidade, por vezes pouco favorável, e de
as reuniões de grupo, o registro individual que comunicar que a intervenção docente inten-
é veiculado coletivamente, a exposição de resul- cional e refletida pode ser, de fato, cons-
tados de sucesso da própria rede na situação de truída pelos professores do sistema público
simpósio interno. de ensino.
SIMPÓSIO 5
TRANSVERSALIDADE
E INTERDISCIPLINARIDADE
DIFICULDADES, AVANÇOS
E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson
Transversalidade e
interdisciplinaridade: organizando
formas de conhecimento para o aluno
Ralph Levinson
Instituto de Educação - Universidade de Londres/Inglaterra
Resumo
t r e i n a m e n t o . O emprego de conhecimentos e
Os conceitos de transversalidade e de inter- de habilidades em um ambiente acadêmico
disciplinaridade são discutidos identificando-se não envolve a resposta às necessidades do cli-
as diferenças teóricas entre transferência e ente, a improvisação e as tomadas de decisão
cognição situada. O progresso social e tecnológico exigidas em um cenário industrial. Entretanto,
impulsiona a necessidade de uma forma de cola- se nenhum conceito ou habilidade fosse passí-
boração mais bem coordenada entre professores. O presente
vel de documento apresenta
generalização, umao solução,
todo valor do processo
com base no apoio às habilidades argumentativas educacional seria questionável.
do aluno e às necessidades de desenvolvimento
profissional afins. A interdisciplinaridade está associada à
transversalidade, se considerarmos que profes-
sores de diferentes disciplinas podem trabalhar
em conjunto para tornar viável a aprendizagem
Introdução de um conceito ou de uma habilidade, ou para
desenvolver uma atitude, um atributo ou uma
o termo transversalidade implica uma disposição e s p e c í f i c a . O fato de haver pelo
transferência de conceitos, habilidades, atitu- menos um entendimento comum entre profes-
des ou atributos de um domínio ou contexto sores sugere a possibilidade de generalização.
para outro. Há, portanto, um elemento de ge- No Reino Unido, certamente, há poucas evi-
neralização associado a essa transferência. As- dências empíricas que permitam julgar o su-
sim, o que se aprende em uma área do currícu- cesso de grupos interdisciplinares na promo-
lo poderia ser aplicado ou utilizado em outra ção da aprendizagem na faixa etária de 11 a 18
área. Por exemplo, um aluno que tenha adqui- anos. Uma vez que o ensino de conhecimentos
rido o domínio de habilidades gráficas na es- e de habilidades transferíveis seria de grande
cola deve necessariamente ser capaz de trans- valor material para quem aprende e que os pro-
ferir essas habilidades para a manipulação de fessores estariam trabalhando em conjunto
dados científicos, para a programação de ins- para trazer sua ampla gama de experiências,
trumentos analíticos ou para a interpretação de entendimentos e habilidades para a sala de
dados geográficos sobre populações humanas. aula, como poderia haver qualquer obstáculo
Contudo, a experiência e a prática mostram- no caminho de objetivos tão valiosos?
nos que essa simples transferência de uma ha-
bilidade processual não é direta. Certa feita, os
gerentes de uma grande indústria química co- Transferência ou cognição
mentaram comigo, em tom de reclamação, que
alguns de seus funcionários com curso superi- situada?
or e diploma de graduação ou pós-graduação Grande parte do trabalho sobre a transfe-
em Química Analítica não conseguiam realizar rência de habilidades e de conceitos está asso-
análises simples exigidas pela empresa. Esses ciada à teoria dos estágios de Piaget. Piaget des-
funcionários precisaram passar por um novo creveu competências e habilidades em estágios
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
as muitas questões éticas, sociais e legais que gentes e não abordavam nenhum entendi-
devem surgir. Se os alunos, como futuros cida- mento substantivo da Ciência associado à
dãos, precisam lidar com essas questões con- questão, ou apenas abordavam os fatos e
temporâneas, como e onde elas devem ser en- não os valores a eles associados.
sinadas pelas escolas?
As citações a seguir exemplificam as diferen-
tes abordagens adotadas por professores de Ci-
Descobertas empíricas
ências e de Inglês.
Um projeto de pesquisa recente (Levinson
e Turner, 2001) estudou as formas pelas quais Quando falamos da ética de qualquer coisa,
assuntos que são alvo de controvérsia científi- damos uma opinião em vez de apresentar algo
ca foram ensinados no currículo. Após um le- baseado em fatos. Quando você emite uma opi-
vantamento quantitativo em larga escala nas nião, expressa discordância. Então, toda a maté-
escolas da Inglaterra e do País de Gales, entre- ria será tratada da mesma forma que sua opi-
vistas direcionadas sobre o ensino de questões nião, sobre a qual há discordâncias pessoais.
científicas polêmicas foram realizadas com pro- Assim, o que você apresenta com base em fatos
fessores individualmente e com grupos de pro- acaba sendo tratado da mesma forma (professor
fessores de diferentes matérias, essencialmen- de Ciências, Escola A).
te de Ciências, Inglês e Humanidades. Uma sé-
rie de diferenças importantes surgiu: [...] essas aulas (sobre controvérsias cientí-
ficas) são geralmente as melhores. E isso por-
• Os professores de Inglês e de Humanidades
que as crianças ficam absolutamente elétricas,
ensinavam temas que são objeto de contro-
vivas, e isso realmente as motiva. E você precisa
vérsia científica a seus alunos pelo menos
gerenciar o debate, o que em uma sala de 20-30
com a mesma freqüência com que o faziam
alunos requer algum esforço. Mas são ossos do
os professores de Ciências.
ofício. Você então precisa dirigir o debate, por-
• Os professores de Humanidades e de Inglês que você tem a amplitude de entendimento de
sentiam-se muito mais confiantes debaten- toda a questão (professor de Inglês, Escola J).
do e discutindo questões científicas polêmi-
cas do que os professores de Ciências e em- Essas observações foram profundamente
pregavam uma gama bem mais ampla de
representativas das diferenças entre professo-
estratégias ao fazê-lo.
res de Inglês e de Ciências: os professores de
• A maioria dos professores de Ciências en- Inglês e de Humanidades apreciavam mais o
trevistados considerou o ensino de Ciências debate e o gerenciamento da sala de aula, en-
neutro em termos de valor; a maioria dos quanto os professores de Ciências mostravam-
professores de Humanidades e de Inglês se cautelosos em relação a fatos e opiniões con-
concordou com essa avaliação, mas atribuiu fusas. Questões sociais e éticas corriam o risco
alto valor a sua própria abordagem.
de ser negligenciadas porque não foram subs-
• Os professores de Ciências mostraram-se pre- tancialmente avaliadas. Os professores de Inglês
ocupados com o fato de que a abordagem de lidam com a controvérsia todo o tempo, e avan-
questões controversas em outras matérias que ços como o Projeto Genoma Humano e a
não Ciências, como, por exemplo, a clonagem clonagem forneceram material para suas dis-
de seres humanos adultos, pudesse levar o cussões.
aluno a assimilar informações incorretas.
Os professores de Ciências, Inglês e Huma-
• Apenas uma das vinte escolas visitadas abor- nidades poderão possuir conhecimento e habi-
dava formalmente o ensino de questões ci- lidades complementares: os professores de Ci-
entíficas polêmicas de forma interdisciplinar. ências possuem um conhecimento e um enten-
• Não havia técnicas de avaliação satisfatórias dimento mais completo do potencial e das pos-
para o entendimento de controvérsias cien- sibilidades da área de Ciência e Tecnologia, en-
tíficas. Essas avaliações eram muito abran- quanto os professores de Humanidades podem
conectar esse conhecimento da Ciência ao con- mente, geralmente fora do horário escolar. Mas
texto social e de valores. Mas essas conexões a avaliação é uma questão crucial: tanto pro-
raramente acontecem, como explicou uma fessores quanto alunos levarão uma matéria
vice-diretora: mais a sério se esta for formalmente avaliada e
se tiver um status elevado no currículo. A apren-
Em uma escola como a nossa, com departa- dizagem do Dia do Colapso, portanto, é avalia-
mentos rígidos, departamentos independentes, da por meio de uma dessas matérias de prestí-
com suas próprias matérias, às vezes é difícil gio elevado. Na escola que adotou esse esque-
encontrar lugar para coisas que não constam do ma, a avaliação foi feita por meio da Educação
currículo... e muitas dessas questões prestam-
Religiosa, embora não haja razão para que ava-
se a abordagens curriculares cruzadas, não é
liação não possa ser feita por meio de Ciências,
verdade? (vice-diretora, Escola E).
Inglês ou de qualquer outra matéria. Finalmen-
te, professores de diferentes matérias devem ser
Desse modo, um importante obstáculo à
parceiros iguais ao decidir o que deve ser ensi-
integração é a compartimentalização, em razão
nado no curso e como o ensino deve ocorrer.
da forma como o currículo está organizado na
Isso pode ser mais difícil do que se espera - a
Inglaterra e no País de Gales, com os alunos sen-
pesquisa sugere que os professores de Educa-
do submetidos a exames em diferentes maté-
ção Religiosa achavam que deveriam ter maior
rias. Há, portanto, pouca motivação para que a
controle sobre o material, uma vez que as ava-
integração ocorra.
liações seriam feitas por meio da matéria que
Uma forma de colaboração e de coordena- lecionam.
ção curricular que parece promissora e estava
A formação de equipes interdisciplinares,
sendo desenvolvida por uma das escolas duran-
portanto, pode trazer benefícios substanciais
te nossa pesquisa é o modelo intitulado "Dia do
para a aprendizagem, assim como pode tam-
Colapso", que apresenta as seguintes caracterís-
bém produzir um clima escolar positivo, maior
ticas:
satisfação com o trabalho entre professores e
• grupo de aprendizagem fora do calendário pontuações de desempenho mais altas do que
curricular; as escolas não-interdisciplinares (Flowers,
• planejamento entre professores de diferen- Mertens et al., 1999).
tes matérias, particularmente de Inglês, Mais pesquisas são necessárias para que se
Educação Religiosa e Ciências; possa avaliar a eficácia de abordagens interdis-
• um modelo integrado de ensino; ciplinares, mas a disposição de professores de
atravessar as fronteiras tradicionais das disci-
• avaliação por meio de uma matéria espe-
plinas, além do apoio político - inclusive uma
cífica;
maior valorização das oportunidades de avali-
• participação igualitária de todos os par- ação em um trabalho de natureza interdiscipli-
ceiros da aprendizagem na tomada de de- nar - são precondições para que esse esquema
cisões. funcione. Uma abordagem interdisciplinar tam-
Esses pontos dispensam maiores explica- bém oferece oportunidade para que conheci-
ções. Como as matérias curriculares nacionais mento e habilidades sejam re-contextualizados
são rigidamente controladas para fins de cum- de forma mais efetiva.
primento do calendário escolar, a forma mais
apropriada para reunir grupos de professores é
a ruptura do calendário r e g u l a r . O calendário Implicações
formal é suspenso por um período de tempo - o desafio identificado no presente artigo é
geralmente um dia - a fim de que professores como ensinar os aspectos sociais e éticos da
de diferentes matérias possam ensinar seus gru- Ciência em áreas aparentemente distintas. A
pos de alunos em conjunto. Para tanto, os pro- Ciência é vista como a tentativa de descrever e
fessores devem planejar o trabalho coletiva- entender a natureza, enquanto os procedimen-
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
tos éticos operam com base em regras que aju- cal ou globalmente, pessoal ou publicamente,
dam a distinguir aquilo que deve ser daquilo em assuntos como tecnologia genética, preser-
que não deve ser. Entretanto, embora a evidên- vação de florestas tropicais, mudanças climáti-
cia empírica da Ciência possa nos ajudar a to- cas e saúde mundial. Um grupo de cidadãos em
mar decisões éticas, conforme dito anterior- desenvolvimento deve entender a natureza do
mente, há procedimentos comuns de pensa- argumento nos diferentes contextos, seja cien-
mento tanto no ensino da Ciência quanto no tífico, seja ético. No argumento científico, isso
ensino da Ética e da Moral. Os argumentos ci- significa a justificativa de uma demanda decor-
entíficos dominam o cenário politico, quer lo- rente dos dados (Osborne, Erduran et al., 2001).
nos, mas, com um planejamento inter- HIRST, P.; PETERS, R. The logic of education. London:
Routledge & Kegan Paul, 1970.
disciplinar suficiente, não há motivos para
IKUENOBE, P Teaching and assessing criticai thinking
que ela não possa funcionar com professores abilities as outcomes in an informal logic course.
com a mesma turma em aulas diferentes. Os Teaching in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 19-32, 2001.
alunos adquirirão experiência para julgar JONES. M.; GOTT, R. Cognitive acceleration through science
questões polêmicas porque estarão exploran- education: alternative perspectives. International Journal
do o mesmo argumento em diferentes con- of Science Education, v. 20, n. 7, p. 755-68, 1998.
textos, assim aprendendo os limites da gene- LAVE, J. Cognition in practice: mind, Mathematics and
ralização da tomada de decisão. Novas pes- Culture in everyday life. Cambridge/RU: Cambridge
University Press, 1988.
quisas empíricas devem ser realizadas sobre
LAYTON, D. Technologys challenge to science education.
essa estrutura interdisciplinar e seu impacto
Buckingham: Open University Press, 1993.
na capacidade racional dos alunos para tomar LEO, E.; GALLOWAY, D. Conceptual links between cognitive
decisões. acceieration through science education and motivational
style: a critique of Adey and Shayer. International Journal
of Science Education*. 18, n. 1, p. 35-49, 1996.
LEVINSON, R.; MURPHY, P. et al. Science and technology
Bibliografia concepts in a design and technology project: a pilot Study.
BEARDSLEY, M. Thinking straight. New Jersey: Prentice- Research in Science and Technological Education., v. 15,
Hall Inc., 1975. n. 2, p. 235-55, 1997.
BERNSTEIN, B. Class, codes and control. London: LEVINSON, R.;TURNER, S. Valuable lessons. London: The
Routledge, 1973. Wellcome Trust, 2001.
CARRAHER. T; CARRAHER. D. et al. Mathematics in the OSBORNE, J.; ERDURAN, S. et al. Enhancing the quality
streets and in schools. In: LIGHT, R; SHELDON, S.; of argument in school science. School Science Review,
WOODHEAD, M. Learning to think. London/New York: v. 82. n. 301. 2001.
Routledge, 1991. p. 223-35. SHAYER, M. Long term effects of cognitive acceleration
CLOUGH, E.; DRIVER. R. A Study of consistency in the through science education on achievement. London:
use of students' conceptual frameworks across different Centre for the Advancement of Thinking, 1996.
task contexts. Ensino de Ciências, n. 70, p. 473-96, SOLOMON, Y. The practice of Mathematics. London:
1986. Routledge & Kegan Paul, 1989.
DONALDSON, M. Childrens minds. London: Fontana, 1978. WALKERDINE, V. The mastery of reason: cognitive
FLOWERS, N.; MERTENS, S. et al. The impact of teaming: development and the production of rationality. London:
five research-based outcomes of teaming. Middle School Routledge & Kegan Paul, 1988.
SIMPÓSIO 6
o LIVRO DIDÁTICO E A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio
Kazumi Munakata
Introdução
A parceria livro didático-professor atraves- quase sempre detinham, dedicavam-se também
sa um m o m e n t o de encontros e desencontros, ao ensino 1 . . . 1 . O professor da disciplina Portu-
uma vez que a m b o s estão em fase de transição, guês era aquele que conhecia bem a gramática e
buscando uma identidade que revele as trans- a literatura da língua, a retórica e a poética, aque-
formações teóricas e políticas ocorridas no pa- le a quem bastava, por isso, que o manual didáti-
norama n a c i o n a l . O Programa Nacional do Li- co lhe fornecesse o texto (a exposição gramatical
vro Didático, os Parâmetros Curriculares Nacio- ou os excertos literários), cabendo a ele - e a ele
nais, o PNLD em Ação e os diversos sistemas de só - comentá-lo, discuti-lo, analisá-lo e propor
questões e exercícios aos alunos.
avaliação implantados recentemente são algu-
mas dessas m u d a n ç a s políticas. Na década de 1950, as gramáticas e antolo-
No âmbito dos estudos sobre a linguagem, a gias são substituídas por um único livro que apre-
análise m e r a m e n t e estrutural cede espaço para sentava conhecimentos gramaticais, textos para
a análise da língua em contextos de usos natu- leitura, exercícios. Afirma Soares (2001a: 153):
rais e reais, postura já consolidada nos PCN, que
refletem as teorias lingüísticas mais recentes. Assim já não se remete ao professor, como anterior-
Numa reação em cadeia, os manuais didáticos mente, a responsabilidade e a tarefa de formular
transitam pelas teorias lingüísticas, t e n t a n d o exercícios e propor questões: o autor do livro didá-
atender aos critérios estabelecidos pelo PNLD e tico assume ele mesmo essa responsabilidade e
às diretrizes dos PCN. Uma breve análise pano- essa tarefa, que os próprios professores passam a
esperar dele, o que surpreende, se se recordar que
râmica do sistema educacional brasileiro, volta-
já então os professores tinham passado a ser pro-
da para o Ensino Fundamental e Médio, revela
fissionais formados em cursos específicos.
que o desencontro entre professor e livro didáti-
co não é um traço apenas do sistema educacio-
Neves (2000: 1) assevera que "a questão da
nal atual. Os artigos de Magda Soares "Que pro-
formação do professor de Ensino Fundamental e
fessores de Português queremos formar?" (2001a)
Médio nos cursos de Letras está longe de ter en-
e "o livro didático como fonte para a história da
contrado uma fixação de caminhos minimamente
leitura e da formação do professor-leitor" (2001b)
satisfatória". Ao discutir o desempenho dos cur-
guiaram-me nesse breve percurso.
sos de Letras na formação do professor, a referi-
Até a década de 1940, o ensino de Língua da autora questiona se "os alunos sabem, mini-
Portuguesa consistia na gramática da língua e mamente, o que fazer com a lingüística no ensi-
na análise de textos de autores c o n s a g r a d o s . no da língua", uma vez que a separação em Lin-
Soares (2001a: 151-52) lembra que as instâncias güística e Língua Portuguesa se evidencia dentro
de formação de professor só surgiram na déca- dos próprios cursos de Letras. Recai, pois, sobre
da de 1930; portanto os professores os cursos de formação de professores e especifi-
camente sobre o curso de Letras a responsabili-
[...] eram estudiosos autodidatas da língua e de
dade de tratar o ensino de Lingüística de forma
sua literatura, com sólida formação humanística,
que os graduandos possam perceber como sele-
que, a par de suas atividades profissionais (mé-
dicos, advogados, engenheiros e outros profissio- cionar e como orientar os conteúdos de lingua-
nais liberais) e do exercício de cargos públicos que gem para o Ensino Fundamental e Médio.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
Esta é uma necessidade cada vez mais urgen- c a m p o das possibilidades concretas de realiza-
te na formação do professor, pois os Parâmetros ção de um percurso pedagógico real no contex-
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa to sociopolítico brasileiro.
simbolizam a aplicação direta das teorias lingüís- Responder q u e sim, q u e o livro didático
ticas no ensino de língua m a t e r n a . Também tem t a m b é m a função de formar professor, se-
Marcuschi (2000: 10) alerta para a importância ria reconhecer que ainda estamos com os pés
de o professor saber o que deverá fazer com as na década de 1950, u m a vez q u e caberiam ao
orientações dadas pelos PCN em suas aulas: autor do livro didático a seleção e a prepara-
ção dos c o n t e ú d o s a serem ministrados. Porém
Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais não posso deixar de reconhecer q u e os m a n u -
orientações tratadas pelos usuários em suas sa- ais didáticos exercem funções de formação de
las de aula; seria nefasto se as indicações ali fei- professor. Gérard e Roegiers (1998: 89, apud E.
tas fossem tomadas como normas ou pílulas de Marcuschi, 2001: 141) asseguram que os ma-
uso e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso nuais escolares têm o objetivo "de contribuí-
se pretendesse identificar conteúdos unificados rem com instrumentos q u e p e r m i t a m aos pro-
para todo o território nacional, ignorando a he- fessores um melhor d e s e m p e n h o do seu papel
terogeneidade lingüística e a variação social. profissional no processo de ensino-aprendiza-
gem". Dentre os recursos empregados pelos au-
Mais uma vez, recorro aos questionamen- tores de livros didáticos que p o d e m contribuir
tos de Neves (2000: 4) para ilustrar um tópico para a formação dos professores, destaco:
recorrente nas preocupações do professor de
Português - o ensino de gramática: "o profes-
sor de Português recebe na universidade uma Indicação de referências
formação que lhe permita compreender - com
bibliográficas comentadas
todas as suas conseqüências - o q u e é língua
(1) Miranda et al, v.1-4, p. XXIX:
em funcionamento e, a partir daí, que lhe per-
mita saber o que é ensinar a língua materna
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gos-
para os alunos que lhe são entregues?"
tosuras e bobices. 4. ed. São Paulo: Scipione,
O u t r o fato q u e c o n t r i b u i p a r a esse d e s - 1994.
compasso consiste na não-aplicação (ou na pre- A partir da apresentação dos diversos tipos de
cária aplicação) das correntes lingüísticas con- textos de literatura infantil, a autora leva a uma
t e m p o r â n e a s , c o m o a Lingüística Textual, a reflexão sobre a relação texto/leitor. Aponta a
Análise do Discurso, a Sociolingüística, nos cur- importância de se partilhar experiências de lei-
rículos de formação de professores. Faz-se, no tura, enfatizando a necessidade de um espaço
e n t a n t o , necessário ressaltar q u e , por serem de "leitura-prazer" na sala de aula. [...]
estudos recentes, ainda carecem muitos deles
de propostas de aplicação ao ensino de língua Listagem de sites
materna (Soares, 2001b).
(2) Soares, v. 1-4, p. 29:
Nesse m o m e n t o , r e t o m a n d o o tema deste
Simpósio - a relação livro didático e formação Ciber-espacinho de Ângela Lago.
de professor-, pergunto-me: é t a m b é m função Livro de histórias infantis eletrônico, com ilus-
do livro didático formar professores? Numa res- trações que se movimentam nas páginas.
posta b a s t a n t e simplificada, diria q u e não e <http://www.ez-bh.com.br/-angelago>
acrescentaria que é função dos cursos de for- Doce de Letra.
mação de professores preparar seus alunos, fu- Revista de literatura infanto-juvenil. Apresen-
turos professores, para elaborar o material di- ta sites de diversos autores.
dático a ser utilizado em suas aulas. No entan- <http://www.docedeletra.com.br>
to, sei que essa resposta não se encontra ainda (acessado em setembro de 2002)
(e não sei se isso ocorrerá um dia) dentro do
Indicação de revistas para alunos e identifiquem mais vivamente o processo de va-
professores riação da língua ao longo de um tempo de que
(3) Soares, v. 1-4, p. 29: têm uma compreensão mais fácil (o tempo dos
pais, tios, avós); por isso, são palavras ainda não
REVISTAS PARA o ALUNO inteiramente desconhecidas, mas em processo
Ciência Hoje cias Crianças. Revista de divulgação de desuso; o professor pode enriquecer o exer-
científica para crianças. Rio de Janeiro: Socieda- cício mencionando palavras já em inteiro desu-
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). so, como janota, cinematógrafo, escarradeira,
Galileu. Rio de Janeiro. Globo. [...] botica, etc.
PARA o PROFESSOR
Amae Educando. Belo Horizonte: Fundação (6) Miranda et. al., v. 3, p. 261:
Amae para Educação e Cultura.
Nova Escola. São Paulo: Abril Cultural. [...] Professor, há várias outras possibilidades de
passagem da linguagem informal para a formal
no texto. Se quiser, explore-as com os alunos.
Indicação de livros, vídeos, músicas
relacionados ao tema da unidade em
estudo: Formar um professor requer a articulação de
(4) Cereja e Magalhães, v. 3, p. 15: dois c o m p o n e n t e s curriculares, como destaca
Reinaldo (2001:2), que são o conhecimento teóri-
FIQUE LIGADO! PESQUISE! co (domínio de conhecimento do objeto lingua-
Para você saber mais sobre a década de 1930 e gem) e o conhecimento de ensino e de pesquisa
a prosa da segunda fase do Modernismo bra- sobre ensino (desenvolvimento da habilidade de
sileiro, sugerimos: ensino e o conhecimento de pesquisa sobre ensi-
VÍDEOS
no-aprendizagem na área da linguagem).
Revolução de 30, de Sylvio Back; São Bernardo,
Em u m a das minhas experiências com Prá-
de Leon Hirschman; Vidas secas e Memórias do
tica de Ensino de Português, na Universidade
cárcere, de Nelson Pereira dos Santos; [...]
Federal de Pernambuco, encontrei uma clien-
LIVROS
tela heterogênea, com experiências diferentes
o Quinze, de Rachel de Queiroz (Siciliano); Vi-
das secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos no que se refere à concepção de ensino de lín-
(Record); [...] gua. De acordo com a experiência que traziam,
MÚSICA classifiquei os alunos em:
Ouça os compositores de música popular Aluno-professor, ou seja, aquele graduando
brasileira da época, como Noel Rosa, Ari Bar- que já ensina ou já ensinou e que tem o li-
roso, Ataulfo Alves, Leonel Azevedo, Heitor vro didático c o m o i n s t r u m e n t o ú n i c o d e
dos Prazeres, Ismael Silva, Orestes Barbosa, orientação metodológica. Apesar de ter es-
e os compositores que tratam de temas nor- tudado as correntes lingüísticas c o n t e m p o -
destinos, como Luís Gonzaga, Luís Vieira, râneas durante o curso de Letras, não sabe
Eleomar, Dominguinhos, além do poeta po- o que fazer com elas no dia-a-dia de suas
pular Patativa do Assaré. aulas (ou pior, não acredita que possam -
ele e as teorias lingüísticas - alterar as prá-
Emissão de recados ao professor com ticas já cristalizadas no Ensino Fundamen-
maior (exemplo 5) ou menor (exemplo tal e Médio). Tem no livro didático o com-
6) grau de informatividade: panheiro salvador, especialmente naqueles
livros de orientação apenas prescritivista.
(5) Soares, v. 3, p. 65:
Aluno-pesquisador, ou seja, aquele gradu-
a n d o com vasta experiência em pesquisa
Observação: Foram escolhidas palavras que se
científica, como Iniciação Científica, hábil
supõe que ainda sejam conhecidas pelos adul-
proferidor de comunicações em congressos
tos com que os alunos convivem, a Fim de que
e similares, m a s sem a m e n o r n o ç ã o de
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
como se portar como professor de língua. res do Ensino Fundamental e Médio num perí-
No geral, também não percebe as possíveis odo de seis horas. Dentre os resultados, inte-
relações entre as pesquisas que desenvol- ressa-me apenas registrar um deles, nesse
ve e o ensino de língua. Para este, o livro momento: a constatação, por parte dos alunos,
didático tem a função de instrumentalizar de que, na relação com o livro didático, o pro-
o professor. fessor deverá sempre ser superior a ele em co-
Aluno-aluno, ou seja, aquele graduando que nhecimento e em desempenho metodológico.
não tem experiência de ensino nem de pesqui- Como afirma Rose Marie Muraro, em Memórias
sa. Espera pela disciplina de Prática de Ensino de uma mulher impossível, "a prática é sobera-
como a grande inspiradora para a sua forma- na na medida em que o conhecimento se cons-
ção como professor. Não percebe também a trói no exercício da prática".
relação entre os estudos feitos nos semestres
antecedentes como responsáveis pela sua for-
m a ç ã o . O livro didático apenas representa um Os múltiplos olhares sobre
recurso metodológico para o ensino.
a encruzilhada diabólica dos
o maior desafio consistia em fazer esses alu-
nos perceberem o papel do professor como me- livros didáticos
diador. Como cerca de 50% da turma se enqua- É preciso reforçar a tese de que a formação
drava na categoria aluno-pesquisador, decidi, do professor é tarefa da instituição de ensino,
então, solicitar aos alunos a construção de duas quer seja nos cursos de Magistério quer seja nos
organizações didáticas especiais, apontadas cursos universitários. Deve ser, pois, com base
pelos PCN - projeto de pesquisa e módulos di- nas orientações recebidas nessas instituições
dáticos -, na tentativa de atrelar o conhecimen- que o professor poderá saber o que fazer com o
to teórico e o conhecimento sobre ensino de lín- livro ou com os livros didáticos em suas aulas.
gua, bem como inserir aqueles alunos que não O professor
tinham tal experiência no campo da pesquisa, dos selecionados e as implicações das estraté-
porque esses futuros professores necessitarão gias utilizadas nos livros didáticos. Os autores
desenvolver pesquisas em suas atividades de de livros didáticos costumam apresentar um
ensino de língua materna. Manual do professor, em que esclarecem sobre
Um traço comum existia entre as três cate- as correntes teóricas em que fundam suas
gorias de alunos: como ensinar meus alunos a obras, mas nem sempre há uma correlação en-
pesquisarem? Foram montados seis grupos tre tais teorias e as atividades propostas no li-
temáticos (Adivinhas e ensino de língua; Quem vro do aluno. Algumas vezes, parece haver uma
está falando no texto?; Era uma vez... As fábu- estratégia de marketing e não uma orientação
las e os contos de fada na sala de aula; As histó- teórico-metodológica. Listar referências biblio-
rias em quadrinhos na sala de aula; Entre a pa- gráficas atuais recheadas de autores de renome
lavra e a imagem: o filme na sala de aula e o nacional e internacional, apresentar um texto
Dicionário no ensino de línguas) envolvendo didático resumindo as referências citadas ou
alunos das três categorias. Em cada grupo fo- carimbar a capa do livro com expressões como
ram desenvolvidas as seguintes etapas: revisão "Aprovado pelo PNLD" ou "De acordo com os
da bibliografia sobre os temas (momento que PCN" não asseguram a tal obra coerência entre
contou muito com a colaboração dos alunos- pressupostos teóricos e práticas metodológicas.
pesquisadores), análise de livros didáticos para Tais inquietudes revelam, parafraseando
verificar o tratamento dado por estes aos tópi- Neves (2000), a "encruzilhada diabólica" que se
cos selecionados, elaboração de um projeto de instaurou na construção dos manuais didáticos
pesquisa com vista ao desenvolvimento do produzidos na década de 1990. Os autores de
tema no Ensino Fundamental e Médio, monta- livros didáticos, por um lado, precisam atender
gem de um módulo didático que foi ministrado às exigências do PNLD e dos PCN, os quais, por
para alunos de Letras e Pedagogia e professo- seu turno, requerem a aplicação de programas
de ensino respaldados nas contribuições das
correntes lingüísticas mais recentes. (7) Cereja e Magalhães, v. 5, p. 34:
Para ilustrar tal encruzilhada, relatarei, bre-
vemente, u m a pesquisa realizada por um gru- 1. O texto abaixo é parte da carta de uma lei-
po de professores e pesquisadores da Universi- tora que elogia a matéria publicada sobre gí-
dade Federal e Pernambuco e da Universidade rias numa revista. Leia o texto e, em seguida,
Federal da Paraíba {campus Campina Grande). reescreva-o, substituindo as gírias por pala-
Tomando por base 25 coleções destinadas ao vras e expressões da norma culta.
Ensino Fundamental, publicadas ou
reformuladas entre 1996 e 1999, o grupo deci- É massa!
diu investigar quais eram as tendências teóri- Dessa vez a Atrevida "arrepiou". Foi "da hora"
a matéria NA PONTA DA LÍNGUA, com as gí-
cas e metodológicas para a abordagem dos se-
rias "maneiras" de todos os lugares É por isso
guintes temas:
que me "amarro" cada vez mais nesta revista:
descolada, divertida, diferente e "trilegal".
Tema Por
1. Tratamento da oralidade Luiz Antônio Marcuschi Uma postura ainda pouco freqüente consis-
2. Seleção de textos Maria Auxiliadora Bezerra te na demonstração de "uma consciência siste-
3. Compreensão de textos Luiz Antônio Marcuschi mática das relações entre fala e escrita como
4. Abordagem do poema José Helder Pinheiro duas modalidades de uso da língua com fun-
5. Variedades lingüísticas Ângela Paiva Dionísio ções i g u a l m e n t e i m p o r t a n t e s n a s o c i e d a d e ,
6. Produção de textos Maria Augusta Reinaldo sendo ambas responsáveis pela formação cul-
7. Análise do discurso reportado Dóris Carneiro Cunha tural de um povo" (Marcuschi, 2001: 27).
8. Pontuação e construção de sentido Márcia Rodrigues Mendonça
o exemplo 8 ilustra tal postura:
9. Tratamento de classe de palavras Luiz Francisco Dias
10. Avaliação no Manual do professor Elizabeth Marcuschi
(8) Soares, v. 3, p. 65
Delineadas as tendências, os especialistas
3. Descubra o significado de algumas palavras
apresentaram um conjunto de reflexões e suges-
que envelheceram, palavras que você, prova-
tões visando contribuir com as tentativas de mu-
velmente, não conhece, que quase não são
dança no ensino de língua. Os resultados dessas
mais usadas:
investigações estão compilados em o livro didá-
• Pergunte a pessoas mais velhas, ou procu-
tico de português: múltiplos olhares, publicado
re no dicionário, o significado destas pala-
pela Editora Lucerna, em abril deste ano. Tomarei vras: vitrola, patinete, caneta-tinteiro,
apenas os tópicos "língua falada" e "variedades lin- aeroplano, galocha, pó-de-arroz, cristaleira,
güísticas" para ilustrar essas tendências. bibelô, ruge.
No tratamento dado à oralidade, constatou- • Compare suas "descobertas" com as de seus
se que os livros didáticos atuais não conside- colegas e discutam:
ram "de maneira tão incisiva a fala como o lu- Só as palavras deixaram de ser usadas ou
gar do erro. Há, no entanto, q u e suspeitar do as coisas que elas nomeiam também deixa-
mérito dessa postura, pois ela se deve muito ram de ser usadas? Ou essas coisas ainda
mais ao silêncio dessas obras sobre a fala do são usadas, apenas mudaram de nome?
q u e à avaliação da fala em suas condições de
uso" (Marcuschi, 2001: 24), pois o espaço des- Quanto à apresentação das variedades lin-
tinado à língua falada r a r a m e n t e supera 2% do güísticas (VL), basicamente, são duas as possi-
total de páginas. Uma tendência dos livros di- bilidades de e n c a m i n h a m e n t o metodológico: a)
dáticos é tratar a língua falada a p e n a s c o m o utilização de um texto sobre VL, a c o m p a n h a d o
uma q u e s t ã o lexical restrita ao uso de gírias e por perguntas de compreensão; e b) utilização
de expressões coloquiais, como no exemplo a de texto com VL, seguido por perguntas de com-
seguir. p r e e n s ã o , p o r a t i v i d a d e s de identificação e
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
conceitos, na maioria das vezes, ainda são vis- SOARES, M a g d a . O livro didático como fonte para a histó-
ria da leitura e da formação do professor-leitor. In: MA-
tos sob um olhar prescritivista. É preciso, pois,
RINHO, M. (Org.). Ler e navegar: espaços e percursos
que os livros didáticos saibam enfrentar, como da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001, p.
ressalta Rangel (2001: 13), "os novos objetos di- 31-76.
dáticos do ensino de língua materna: o discur-
so, os padrões de letramento, a língua oral, a
textualidade, as diferentes 'gramáticas' de uma
Obras didáticas mencionadas
mesma língua etc." Na parceria livro didático-
AZEVEDO, Dirce. Palavras e criação: Língua Portuguesa.
professor, parece-me que ambos ainda estão
São Paulo: FTD, 1996. v. 5-8.
acertando o passo na travessia entre as teorias CARVALHO, Carmen S. et al. Construindo a escrita. São
lingüísticas e o ensino de língua materna. Paulo: Ática, 1998. v. 1-4.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens.
São Paulo: Atual, 1998. v. 5-8.
Bibliografia Português: linguagens. São Paulo: Atual,
DIONÍSIO, Ângela P; BEZERRA, Maria A. ( O r g s . ) . O livro 1999. v. 3.
didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janei- MIRANDA, Cláudia et al. Vivência e construção: Língua
ro: Lucerna, 2001. Portuguesa. São Paulo: Ática, 2000. v. 3.
GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, X. Conceber e ava- SOARES, Magda. Português: uma proposta para o
liar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998. letramento. São Paulo: Moderna, 1999. v. 1-4.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
' o seu recorte histórico, que só conhece o período da ditadura militar, obscurece, por isso, o fato notório de que o grande boom dos livros
didáticos (e, portanto, da lucratividade das editoras) aconteceu com a redemocratização. com a instituição, em 1985, do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), por meio do qual o governo federal chegou a adquirir, em 1999. quase 110 milhões de exemplares.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
do entre 1548 e 1599, grande parte foi dedicada tou a passagem do termo "text book para text-
aos livros a ser adotados. Mais do que isso, ha- book, depois textbook, evolução que reflete [...] a
via uma série de recomendações sobre o modo emergência de uma categoria e de um produto
como eles seriam lidos, com a indicação de tre- específicos" (Stray, 1993: 74, nota 2). Na França,
chos que deveriam ser omitidos por conter in- de acordo com Chervel e Compère (1997), vários
conveniências (principalmente em relação à autores, hoje tornados "clássicos", dedicaram-se
doutrina cristã). Também Comenius, em Didá- a produzir obras especialmente destinadas a fins
tica magna, discutiu os prejuízos causados pela didáticos: Ester e Atália, de Racine, ou Aventuras
leitura de livros pagãos e recomendou que se de Télémaque, de Fénelon, e Discurso sobre a his-
produzissem livros especialmente a d e q u a d o s tória universal, de Bossuet, são exemplos.
ao ensino. Por sinal, ele m e s m o foi o autor de Essas considerações, longe de pretenderem
um livro que julgou a d e q u a d o aos propósitos esgotar uma possível história do livro didático,
didáticos: a obra intitulada Orbis sensualiimi servem apenas para indicar que este faz parte
pictus (o m u n d o sensível em imagens), de 1658. da vida escolar desde que a escola é escola. Nes-
Segundo Narodowski, esse livro, em que cada se sentido, ao contrário do que imagina o se-
capítulo refere-se a um assunto a ser ensinado cretário Silva, de fato "o ensino, o livro e o co-
e contém ilustração correspondente, nhecimento são elementos inseparáveis" na for-
ma escolar, e o professor carregando livro não
|...| é a matriz mediante a qual se reproduzirão é imagem estereotipada da sua deficiência a ser
os livros de textos didáticos que deverão formar compensada com muleta, mas a afirmação da
as crianças da sociedade ocidental moderna sua distinção profissional!
durante trezentos e cinqüenta anos. Certamente, o livro didático sofreu altera-
Do ponto de vista de seu conteúdo, o livro di- ções na sua forma e no m o d o de sua produção
dático expressa as temáticas estipuladas para o e edição, além de ter a c o m p a n h a d o as m u d a n -
ensino em cada nível da escolaridade. Isto sig-
ças na maneira como os c o n t e ú d o s do ensino
nifica que o livro didático é uma mensagem
eram organizados. Por exemplo, a passagem dos
construída ad hoc, pelo que tanto sua elabora-
livros de texto, com trechos de obras para lei-
ção como sua posterior utilização somente são
tura abrangendo conteúdos os mais variados,
compreensíveis no contexto do processo geral
para livros especializados por disciplina expres-
de escolarização. Em outros termos, o livro de
texto didático não possui um valor literário ou sa a constituição, a partir do final do século 19,
científico autônomo: já desde o século 17 e a das disciplinas escolares (Chervel, 1 9 9 0 ) . O li-
partir da empresa comeniana o texto se legiti- vro didático t a m b é m foi um importante supor-
ma na medida em que contribui eficientemente te da organização das práticas escolares. Quan-
para o processo de produção de conhecimentos do ele não existia, cada aluno devia trazer de
escolares. Mais ainda, o texto possui um estilo sua casa algo escrito - manuscrito ou impresso
literário e uma retórica singular ( . . . ] . O livro de - que pudesse servir de material de ensino, e
texto didático constrói uma estética que lhe é este era n e c e s s a r i a m e n t e individualizado. A
própria (Narodowski, 2001: 83-84.). adoção, entre outros materiais, do livro didáti-
co único para uma t u r m a inteira possibilitaria
Nos Estados Unidos, como mostra Stray, a o ensino simultâneo, pelo qual muitos passa-
constituição e o desenvolvimento desse gênero ram a estudar uma m e s m a matéria ao mesmo
de livro podem ser constatados pela consolida- t e m p o (Hébrard, 2000).
ção da própria terminologia que o designa: con- Como suporte da organização das práticas
sultando o catálogo da Biblioteca de Nova York escolares, o livro didático destina-se tanto ao
referente ao período de 1880 a 1920, ele consta- aluno como ao professor. 2 Os usos que um e
Segundo Gérard e Roegiers (1998). no Vietnã, os livros didáticos "são especialmente concebidos para os pais a (im de os ajudarem a
assegurar as aprendizagens escolares dos filhos" (p. 30). Pode-se também suspeitar que, no Brasil, desde que o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) passou, a partir de 1995/1996. a avaliar os livros didáticos, os avaliadores tornaram-se os destinatários prioritários.
outro fazem do livro didático são diversos, múl- colha, pelos professores, dos livros recomenda-
tiplos: nem sempre se lêem esses livros porque dos pela avaliação do PNLD:
se desconhece o seu conteúdo. Dito de m o d o
mais claro: se um professor usa um livro didá- Tendo era vista o PNLD/97, cerca de 72% das
tico, isso não significa necessariamente q u e ele escolhas docentes recaíram sobre os livros não-
seja malformado, ignorante, como fazem supor recomendados e apenas cerca de 28% sobre os
as metáforas de "muleta", "escora" etc. Não há recomendados. No PNLD/98, embora a soma
dos livros recomendados (com distinção,
a p e n a s uma maneira de ler um livro - ainda
21,88%; com ressalvas, 22,15%; ou simplesmen-
mais em se tratando de livros didáticos, para o
te recomendados, 14,64%) tenha constituído o
que é mais conveniente falar em "uso" do que
grupo mais escolhido pelos docentes, a catego-
em "leitura" (Lajolo, 1996). Esses livros são car-
ria que, isoladamente, mostrou-se a mais repre-
regados de um lado para outro; são rabiscados sentada continuou a ser a dos não-recomenda-
(embora o governo não goste disso...); raramen- dos (41,33%). No PNLD/99, por Fim, as escolhas
te são lidos de ponta a ponta ou na seqüência dos docentes, com a eliminação da categoria dos
em que seus conteúdos estão ordenados. não-recomendados, recaíram, predominante-
o estudo sistemático sobre os usos dos li- mente, sobre a dos recomendados com ressal-
vros didáticos está ainda por ser realizado, mas vas (46,74%), a dos recomendados com distin-
algumas informações ainda díspares são surpre- ção representando apenas 8,40% das escolhas
endentes. Esse é o caso da pesquisa realizada (MEC, 2001:33.).
por Araújo (2001) sobre os usos de livro didáti-
co de História em algumas escolas estaduais de o que ressalta nesses dados é, mais do que
Ensino Fundamental na cidade de São Paulo. um "descompasso", uma inversão completa en-
Nesse trabalho, um professor conta que ele uti- tre os critérios da escolha dos professores e os
liza livro didático apenas como fonte de ilus- da avaliação do P N L D . O que isso significa? A
trações. Outro relata que o emprega para fazer incompetência dos professores, incapazes de
exercícios de leitura - habilidade que, segundo o p t a r pelo m e l h o r ? o d o c u m e n t o do MEC
diz, seus alunos ainda não d o m i n a m b e m . Um (2001), embora cauteloso, insinua que sim:
terceiro esclarece que mescla trechos de vários
livros ao m e s m o tempo. Assim, uma visão de conjunto da escolha do li-
Esses exemplos revelam não a suposta defi- vro didático assim como alguns dados relativos
ciência do professor que requer, por isso, mule- ao seu uso em sala de aula apontam claramente
tas; ao contrário, mostram a extrema criatividade para a formação docente como um dos fatores
no manuseio desse material, por cuja escolha relevantes para a compreensão do referido
esses professores nem sempre foram responsá- descompasso (MEC, 2001: 33.).
veis. 3 No limite, não é impossível que a partir de
um livro considerado ruim o professor consiga o d o c u m e n t o prossegue a p r e s e n t a n d o os
desenvolver uma excelente aula. Essas questões, indicadores que apontam para a precariedade
no entanto, raramente são levadas em conta na da formação dos professores.
avaliação dos livros didáticos. Sintomático nes- Embora essa hipótese não possa ser descar-
se sentido é o "descompasso entre as expectati- tada, o que surpreende é a ausência gritante da
vas do PNLD e as dos docentes", reconhecido por possibilidade de equívocos nas avaliações rea-
um documento do próprio Ministério da Edu- lizadas pelo PNLD. Não é possível que os pró-
cação (MEC, 2001), isto é, o baixo índice de es- prios avaliadores tenham uma formação inade-
Araújo (2001) descreve uma situação muito comum em que, em razão da intensa rotatividade dos docentes em relação às unidades de
ensino, os professores têm de adotar livros que não escolheram. Além disso, essa pesquisa constatou que nem sempre há livros suficientes
para todos os alunos, o que faz com que os professores retenham os exemplares na escola, distribuindo-os e recolhendo-os a cada aula.
Convém esclarecer que a escolha e a distribuição dos livros didáticos no Estado de São Paulo são realizadas de modo autônomo, cabendo
ao PNLD apenas repassar a verba correspondente.
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
quada? Como o avaliador é avaliado? Como é ao ensino dos conteúdos de uma disciplina, mas
recrutado? A esse respeito, o Guia de livros di- é também ocasião de desenvolvimento de cer-
dáticos, em várias edições, é extremamente tas habilidades - por exemplo, de leitura. Antes
lacônico. Na edição referente ao PNLD 2000/ mesmo de os Parâmetros Curriculares Nacionais
2001 afirma-se que os avaliadores são preconizarem atitudes, transversalidades e toda
a sua parafernália neotecnicista, os professores
[...] especialistas que atuam tanto no Ensino já desenvolviam essas práticas, sem o que mi-
Fundamental como na universidade e é basea- nistrar sua própria disciplina específica ficava
da não só na experiência docente e no conheci- muitas vezes inviabilizado.
mento especializado das equipes, mas, princi- Não que a formação esteja às mil maravilhas;
palmente, naquele conjunto de princípios e cri- ao contrário: é com muita apreensão que se as-
térios já referidos (Introdução Geral). siste hoje ao incentivo à proliferação desenfrea-
da de cursos improvisados de formação docente,
Na edição do Guia do PNLD/2002, não há muitos de curta duração, apenas para fazer cum-
menção à figura do avaliador, mas há um escla- prir estatisticamente o preceito da nova Lei de
recimento de que "o Ministério adotou uma Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que exi-
nova sistemática para o processo de avaliação", ge formação superior de todos os docentes em
buscando, "por meio de parcerias com univer- todos os níveis de ensino. Não é assim que os pro-
sidades públicas, impulsionar o interesse da fessores terão oportunidade de discutir as possi-
pesquisa universitária sobre o tema, bem como bilidades de uso - e, portanto, de escolha - dos
incentivar a transferência do conhecimento e livros didáticos. No máximo haverá tentativas de
experiência acumulados" (p. 11). Que pesqui- doutrinação dos professores, pelas quais se pro-
sas são essas e como isso se manifesta na esco- curará "ensinar" como eles não sabem escolher
lha dos avaliadores não é dado a conhecer. livros e que por isso devem seguir as orientações
Em todo caso, é possível aqui reiterar que dos avaliadores do PNLD. Nesse sentido, o referi-
não há no momento, com toda a certeza, ne- do documento do MEC (2001: 36) recomenda
nhuma pesquisa em andamento que examine "programas de capacitação para a escolha e o uso
sistematicamente os usos efetivos dos livros do livro didático, destinados aos docentes e téc-
didáticos pelos professores. Isso significa que nicos dos sistemas educacionais", subentenden-
na melhor das hipóteses os avaliadores conti- do-se que docentes e técnicos são "incapazes".
nuam examinando os livros com base apenas Sugerem-se também "alterações no Guia de livros
na sua experiência e intuição - o que geralmen- didáticos, descrevendo-se mais adequadamente
te é denominado "achômetro". É também pos- as obras que dele constam e utilizando-se uma
sível que alguns avaliadores simplesmente não linguagem mais adequada ao professor e a suas
levem em conta o caráter escolar e didático des- expectativas" (p. 36), pois, os professores, supõe-
ses livros, lendo-os como se fossem obras cien- se, são incompetentes para entender a linguagem
tíficas, que devem conter os resultados das mais tão elevada dos avaliadores.
recentes pesquisas de ponta na respectiva área. Enquanto o "descompasso entre as expectati-
Do lado da formação dos professores, é pre- vas do PNLD e as dos docentes" for entendido
ciso fazer distinção entre formação inadequada como descompasso de mão única, isto é, como
e atitudes por vezes inesperadas que eles tomam incapacidade do professor em relação à sapiência
perante necessidades do dia-a-dia. Podemos não do PNLD, não haverá propostas de formação do-
concordar com o uso de um livro didático como cente que consigam levar em conta as poten-
suporte de exercícios de leitura, mas isso não sig- cialidades, a criatividade e a autonomia dos pro-
nifica que esse professor tenha tido necessaria- fessores. Estes continuarão, como sempre, sendo
mente uma formação inadequada. Não se pode vistos como um "mal necessário", "coxos por for-
esquecer de que a aula no Ensino Fundamental mação", eternamente deficientes a requerer mule-
(e freqüentemente até mesmo no Ensino Supe- tas, ao mesmo tempo que constituem item indis-
rior e na Pós-Graduação) não se presta somente pensável para ornar estatísticas eleitoreiras.
Bibliografia HÉBRARD, Jean. Três figuras de jovens leitores: alfabetiza-
ção e escolarização do ponto de vista da história cultu-
ARAÚJO, Luciana T e l l e s . O uso do livro didático no ensino ral. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história
de história: depoimentos de professores de escolas da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB/Fapesp.
estaduais de Ensino Fundamental situadas em São 2000.
Paulo/SR São Paulo. Dissertação (Mestrado em Edu- LAJOLO. Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usu-
cação). Programa de Pós-Graduação em Educação: ário. Em Aberto, n. 69, ano 16, jan./mar. 1996.
História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universida- MEC/SEF Recomendações para uma política pública de li-
de Católica de São Paulo, 2001. vros didáticos. Brasilia, 2001.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: refle- NARODOWSKI, Mariano. Infância e poder: conformação da
xões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, pedagogia moderna. Bragança Paulista: Universidade de
n. 2. 1990. São Francisco, 2001.
CHERVEL, André; COMPÈRE. Marie-Madeleine. Les SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura: ensaios.
humanités dans l'histoire de l'enseignement français. Campinas: Mercado de Letras/Associação de Leitura do
Histoire de I'Éducation, n. 74, maio 1997. Brasil, 1998.
COMENIUS, João Amos. Didática magna. Tratado da arte STRAY, Chris. "Quia nominor leo": vers une sociologie
universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação historique du manuel. Histoire de l'Éducation, n. 58, maio
Calouste Gulbenkian, 1985. 1993.
FRANCA, L e o n e l . O método pedagógico dos jesuítas: o VINCENT, Guy et al. Sur 1'histoire e Ia théorie de Ia forme
"Ratio Studiorum": introdução e tradução. Rio de Janei- Scolaire. In: VINCENT, Guy (Dir.). [.'éducation prisionnière
ro: Agir, 1952. de Ia forme Scolaire? Scolarisation et socialisation dans
GÉRARD. François-Marie; ROEGIERS, Xavier. Conceber e les sociétés industrielles. Lyon: Presses Universitaires
avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998. de Lyon, 1994.
A contextualização das práticas escolares tárias, ganhando cada vez mais status de obje-
em segmentos de tempo diferentes do nosso, to de estudo e ocupando papel de destaque na
além de nos lembrar o fato, às vezes incômo- recente história das disciplinas escolares. Hoje,
do, de que nossas práticas escolares também o estudo e a constituição da história do livro
estão condicionadas à nossa época, pode for- didático, assim como a preservação de acervos,
necer uma visão crítica e reflexiva sobre práti- tem reunido pesquisadores em torno de núcle-
cas atuais. os institucionais, sobretudo nas Faculdades de
Nesse sentido, o livro didático torna-se ma- Educação, de Letras e de Comunicação, sendo
terial de pesquisa privilegiado, quer seja como que alguns grupos de universidades diferentes
fonte documental na definição de práticas do desenvolvem projetos em parceria.
passado, quer seja como representação de tais A memória da escola e do livro didático tem
práticas. merecido também a atenção de Secretarias de
Nos últimos vinte anos, influenciado pela Estado da Educação, como atestam a inaugu-
sociologia e pela história da leitura, o livro di- ração do Museu da Escola de Minas Gerais, em
dático tem sido objeto de várias teses universi- 1994, que funciona junto do Centro de Refe-
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
rência do Professor, em Belo Horizonte, e a ex- diz sobre a cidade de Maurília em As cidades
posição histórica, da qual participo como con- invisíveis, convido-os a visitar essa escola do
sultora, intitulada "A escola e o saber: trajetória passado como quem "observa uns velhos car-
de uma relação", que procura mostrar momen- tões-postais ilustrados que mostram como esta
tos marcantes do ensino público em São Paulo havia sido" ou, ainda, a se perguntar como es-
por meio de fotos, móveis, objetos e livros di- colas tão diferentes habitaram o mesmo lugar
dáticos, inaugurada no final de outubro de 2001, (Calvino, 1990: 30).
juntamente com o Centro de Referência do Pro- De fato, impulsionada pela economia
fessor Paulista. Interessante notar que ambas as cafeeira e pelos ideais republicanos, a expan-
iniciativas ocorrem em espaços destinados à são da escola pública primária no Estado de
formação continuada do professor, voltados São Paulo, traduzida na invenção dos grupos
portanto para o presente e para o futuro, mas escolares, marcaria as três primeiras décadas
que vêem o passado como um ângulo privile- da República, fazendo surgir na paisagem ur-
giado de pesquisa e de formação. bana "templos de saber" (Souza, 1998), cujas
Para afinar a discussão, escolhi dois mo- imagens seriam difundidas em cartões-pos-
mentos constitutivos da escola pública: a orga- tais.
nização do ensino primário em São Paulo, logo A tabela a seguir, além de fornecer dados
após a Proclamação da República, e a centrali- sobre o desenvolvimento dos grupos escolares
zação do ensino secundário a partir do Colégio em São Paulo, mostra a grande ampliação de
Pedro II, no Rio de Janeiro. E, como ítalo Calvino matrículas:
' Foram dissolvidos os Grupos Escolares de São José dos Campos, Bananal e Ubatuba [Nota de rodapé original do Anuário, que acompanha esta tabela]
Fonte: Anuário do Ensino do Estado de São Paulo 1910/1911.
Segundo Rosa Fátima de Souza, a nova es- s i m u l t a n e a m e n t e ' (Faria Filho, 2000: 142) e,
cola pública como conseqüência, a progressão seriada dos
conteúdos.
[...] é uma escola para a difusão dos valores re- Quanto ao processo de aprendizagem, pro-
publicanos e comprometida com a construção cura-se difundir com entusiasmo o "método in-
e a consolidação do novo regime; é a escola da tuitivo", ancorado nas idéias de Pestalozzi e as-
República para a República. [,,.] era preciso fun- sim chamado porque dava muita importância
dar uma escola identificada com os avanços do à intuição, à
século, uma escola renovada nos métodos, nos |...| observação das coisas, dos objetos, da na-
processos de ensino, nos programas, na organi- tureza, dos fenômenos e para a necessidade da
zação didático-pedagógica; enfim, uma escola educação dos sentidos como momentos funda-
moderna em substituição à arcaica e precária mentais do processo de instrução escolar.
escola de primeiras letras existente no Império Essa etapa da observação minuciosa e orga-
(...) (Souza, 1998: 29). nizada é condição para a progressiva passagem,
pelos alunos, de um conhecimento sensível
Para coordenar as mudanças, em 1894, foi para uma elaboração mental superior, reflexi-
inaugurado na capital o novo e suntuoso pré- va, dos conhecimentos. Tal etapa inicia-se pe-
las "lições de coisas", momento em que o pro-
dio da Escola Normal Caetano de Campos, na
fessor deve criar as condições para que os alu-
então retirada e recente Praça da República,
nos possam ver, sentir, observar os objetos.
topônimo perfeito para abrigar uma instituição-
Podia-se realizar tal procedimento utilizando-
modelo encarregada de irradiar o projeto edu-
se dos objetos escolares ou dos objetos levados
cacional dos republicanos e suas inovações di-
para a escola (caneta, carteira, mesa, pedras,
dáticas. Além de cuidar da formação dos futu- madeira, tecidos...), ou realizando visitas e ex-
ros professores p r i m á r i o s , a Escola Normal cursões à circunvizinhança da escola, ou, ain-
m a n t i n h a u m a escola primária anexa, chama- da, possibilitando aos alunos o acesso a gravu-
da de Escola-Modelo, onde os normalistas dos ras diversas, que tanto poderiam estar nos pró-
últimos anos faziam estágio, e um Jardim da prios livros, de "lições de coisas" ou de outros
Infância, primeira escola pública infantil, inau- conteúdos, ou em cartazes especialmente pro-
gurada em 1896. duzidos para o trabalho com o método (Faria
I n t e r e s s a n t e salientar q u e s o m e n t e após Filho, 2000: 143).
exatos cem anos da fundação da primeira es-
cola pública infantil é que a Educação Infantil A expansão da escola pública no Estado de
foi incluída como primeira etapa da Educação São Paulo procurava, portanto, articular o pro-
Básica, na Lei de Diretrizes e Bases da Educa- grama ideológico da República com as inova-
ção Nacional (Lei nº 9.394) de 1996. ções pedagógicas em voga na Europa, dando à
A centralização do ensino primário a partir escola primária uma finalidade cívica e moral,
da Escola Normal Caetano de Campos colocou reorganizando o espaço e o tempo escolar e di-
em relevo um grupo de normalistas que lá se fundindo um novo método de ensino-aprendi-
formaram e que depois vieram a exercer cargos zagem.
públicos da administração escolar. Muitos de- Tal p o n t o de inflexão da escola p r i m á r i a
les se tornariam também autores didáticos de exigia não só móveis específicos, mas t a m b é m
sucesso, como foi o caso de Arnaldo Barreto e o uso de novos materiais didático-pedagógi-
de Mariano de Oliveira. cos, como cadernos, livros e impressos icono-
Os novos espaços escolares, cuja simetria gráficos ( m a p a s e cartazes). Se no início da
dos edifícios a p o n t a a separação entre a seção República os móveis e alguns suportes de en-
feminina e a seção masculina, generalizaram sino eram importados da Europa e dos Esta-
a aceitação do m é t o d o simultâneo como for- dos Unidos, os livros t i n h a m de ser traduzidos
ma de organização do t e m p o escolar, permi- e a d a p t a d o s p a r a nossa realidade. A c o n s e -
tindo "a ação do professor sobre vários alunos qüência imediata dessa expansão foi o desen-
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
1 ano 47.341 41.557 88.898 9.806 8.500 18.306 37.506 30.976 68.482 94.653 81.033 175.686
2ºano 35.937 33.113 69.050 5.579 4.860 10.439 11.466 9.527 20.993 52.982 47.500 100.482
3º ano 26.304 24.962 51.266 3.529 3.038 6.567 4.331 3.672 8.003 34.164 31.672 65.836
4ºano 16.733 16.622 33.355 1.792 1.582 3.374 384 406 790 18.909 18.610 37.519
Total 126.315 116.254 242.569 20.706 17.980 38.686 53.687 44.581 98.268 200.708 178.815 379.523
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
Essa situação, perpetuada durante décadas, rículo de Retórica e Poética, disciplina exigida
acabava se refletindo na tiragem dos livros de nos "preparatórios" das Faculdades de Direito
leitura que, sem dúvida, ia diminuindo à medi- até 1890, exigência que, entre nós, parece ter
da que o livro era direcionado para as classes sido responsável pelo estreitamento de laços
mais adiantadas. Em 1946, por exemplo, a Li- entre a preparação retórico-literária e os cur-
vraria Francisco Alves reeditou os Livros de lei- sos jurídicos.
tura, de Felisberto de Carvalho, amplamente o ensino da língua e da literatura nacionais
adotados nas escolas primárias, sendo que o (portuguesa e brasileira) sempre se pautou pelo
primeiro volume, indicado para o lº ano, esta- ensino das línguas clássicas, sobretudo o Latim.
va na 130ª edição, o segundo volume (para o 2º A "gramática nacional" era estudada a partir das
ano) na 107a edição, o terceiro volume (para o categorias gramaticais da língua latina e
3º ano) na 75ª edição e o quarto volume (para o explicada como uma transformação desta, en-
4º ano) na 42ª edição. quanto a literatura nacional era apresentada se-
A longevidade de cartilhas e livros de leitu- gundo os critérios fixos da Retórica e da Poética
ra para o curso primário, concebidos ou impul- clássicas, dividida por gêneros. A leitura literá-
sionados a partir da República (e alguns, como ria, base do ensino de Latim e Grego e base do
vimos, sobreviveram bravamente até a década ensino de Retórica e Poética, também se trans-
de 1990), vem nos alertar para a permanência formou em base do ensino da língua e da litera-
desses modelos na escola. A principal razão tura nacionais, erigindo os "clássicos nacionais".
dessa permanência deve-se, provavelmente, ao Inicialmente, as aulas de Português no Co-
fato de que tais modelos puderam ser légio Pedro II, restritas ao primeiro ano, dedi-
readaptados e postos a serviço de subseqüen- cavam-se apenas ao estudo de alguns tópicos
tes ideologias, métodos e organização escolar. gramaticais, especialmente dos verbos. Aos
Deixando de lado a escola primária, passe- poucos, foram absorvendo práticas de ensino e
mos agora para o segundo tópico da discussão, conteúdos das aulas de Retórica e Poética. Pri-
que focalizará algumas questões de leitura no meiro, em 1855, vieram a leitura literária e a
ensino secundário, a partir do Colégio Pedro II, recitação para auxiliar o ensino da língua. De-
no Rio de Janeiro. pois, em 1870, quando houve ampliação da car-
o ensino de Português no Brasil, como dis- ga horária da disciplina no currículo do Colé-
ciplina curricular institucional, é recente e con- gio Pedro II por causa de sua inclusão nos "exa-
temporâneo à fundação do Colégio Pedro II, em mes preparatórios", entraram no currículo de
1837, escola secundária padrão da elite brasi- Português a redação e a composição. Em 1890,
leira. A duração do curso secundário era equi- quando a Retórica e a Poética foram substituí-
valente ao período que hoje compreende as das pela História da Literatura Nacional, a gra-
quatro últimas séries do Ensino Fundamental mática histórica também foi transferida para o
mais o Ensino Médio. currículo de Português.
o estudo dos programas de ensino do Colé- A leitura literária, desde sua introdução em
gio Pedro II aponta que até 1869 as aulas de 1855, reinou absoluta nas aulas de Português,
Português eram insignificantes no currículo, no sobretudo em antologias organizadas por pro-
qual predominavam as disciplinas clássicas, fessores portugueses e, mais tarde, por profes-
principalmente o Latim. A partir de 1870, logo sores brasileiros. As seletas mais antigas se-
após a inclusão do exame de Português entre guiam os preceitos retóricos, apresentando os
os "preparatórios" - exames que davam acesso excertos divididos por gêneros, como é o caso
aos cursos superiores no Brasil (Direito, Medi- da Seleta nacional, de Caldas Aulete, e as mais
cina, Engenharia) -, verificou-se a ascensão do modernas seguiam a orientação da história li-
ensino de Português no currículo do Colégio terária, dividindo os textos cronologicamente,
Pedro II, cujo desenvolvimento, ainda que su- por séculos.
jeito a variações, foi sempre crescente. Em ambos os modelos havia a preocupação
Já a literatura nacional era ensinada no cur- de separar a prosa da poesia.
Uma das seletas escolares de maior sucesso uma (ou várias) gramática(s). Na década de
no Brasil foi a Antologia nacional, de Fausto 1950, houve a fusão entre textos e gramática
Barreto e Carlos de Laet. Sua permanência no num só compêndio, mas ainda divididos em
ensino secundário por mais de setenta anos (lª duas partes (Soares, 1996). A década seguinte
edição, 1895; última edição, 1969) é testemu- (1960) trouxe uma nova organização aos livros
nho da longa estabilidade do modelo de ensino didáticos, muito próxima da que conhecemos
que privilegiava a leitura "intensiva" (Chartier hoje, dividindo o ensino de Português por uni-
e Hébrard, 1995) dos clássicos da literatura na- dades, com leitura de texto literário, atividades
cional do século XVI ao século XIX. de interpretação e estudo de tópico gramatical,
A leitura da Antologia nacional, porém, não dando continuidade ao privilégio da língua cul-
era complemento do manual de História da Li- ta (Soares, 1996).
teratura Nacional e sim ponto de partida, nas Apenas na década de 1970 é que a leitura
aulas de Português, para a aquisição e para o dos clássicos começou a ser substituída pela
treinamento da norma culta vigente, em exer- "leitura extensiva" (Chartier e Hébrard, 1995),
cícios como leitura e recitação, ditado, estudo sintonizada com os meios de comunicação de
do vocabulário, da gramática normativa, da gra- massa e com as inovações tecnológicas.
mática histórica, exercícios ortográficos, análi- o novo modelo implantado no Brasil a par-
ses sintáticas e morfológicas, redação e compo- tir de 1971, com a Lei nº 5.692, que redirecionou
sição. as Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
A leitura literária nas aulas de Português considerava a língua vernácula um "instrumen-
procurava, portanto, oferecer "bons modelos" to de comunicação" e "em articulação com as
vernáculos (e morais) para a "boa" aquisição outras matérias", o que multiplicava as opções
da língua, além, é claro, de oferecer a seus lei- de textos para leitura em classe, tornando a lei-
tores uma certa formação literária, mas sem tura literária mais uma dessas opções.
priorizá-la. Além disso, a lei estabelecia também que
Só depois da Reforma Capanema, em 1943, o ensino da Língua Portuguesa, disciplina que
é que a História da Literatura Nacional tornou- passou a ser denominada Comunicação e Ex-
se a principal atividade das aulas de Português pressão, deveria preocupar-se, daí em dian-
das três últimas séries do curso secundário (atual te, com a "expressão da Cultura Brasileira", li-
Ensino Médio) e passou a ser exigida nos exa- bertando, portanto, do domínio clássico por-
mes vestibulares de todos os cursos superiores, tuguês a língua e a literatura ensinadas em
assinalando com isso a sua ascensão na escola. nossas escolas, facilitando e incentivando a
A dependência do Ensino Médio em relação leitura dos escritores e poetas modernistas e
ao vestibular, como testemunhamos hoje, tem dos autores vivos.
origem institucional nas reformas de ensino do Dessa maneira, o ensino de Português pas-
Estado Novo. Porém o critério literário nacio- sou a admitir, cada vez mais, um número mai-
nalista, que norteava as aulas do curso secun- or e mais variado de textos para leitura, desde
dário na década de 1940, esbarrava no modelo os tradicionais textos literários, consideravel-
tradicional de ensino da língua, engessada pela mente ampliados com a literatura contempo-
leitura dos clássicos e defendida em nome da rânea pós-1922, até todo tipo de manifestação
vernaculidade brasi-lusa, impedindo que os gráfica, incluindo textos de outras disciplinas
autores do modernismo entrassem nos livros do currículo, textos de jornais, revistas, quadri-
didáticos. nhos, propaganda etc. Não foi por acaso, por-
o ensino da gramática era supervalorizado tanto, que o chamado boom da literatura infan-
e intenso, fazendo com que os já memorizados til tenha ocorrido nessa época, pois ela viria a
textos e poemas fossem retalhados e divididos entrar na sala de aula como mais uma das op-
por extensas análises morfológicas e sintáticas. ções de leitura.
Até o final dos anos 1940, era comum nas É ainda nos anos 1970 que aparecem técni-
aulas de Português o uso de uma antologia e de cas e engrenagens que parecem substituir o pro-
SIMPÓSIO 6
o livro didático e a formação de professores
fessor na função de preparar aulas: estudo diri- e de gêneros, escamoteia um componente eco-
gido, instrução programada, exemplar do pro- nômico importante na definição dos custos do
fessor com exercícios resolvidos e respostas livro didático: os gastos com o pagamento de
impressas em caracteres vermelhos. Essa nova direitos autorais dos textos. Sem dúvida, os di-
concepção de livro didático reflete a má forma- reitos autorais de textos de jornal são muito
ção dos professores, decorrente da democrati- mais baratos do que, por exemplo, os direitos
zação do ensino e da multiplicação de agências autorais de um texto literário.
formadoras sem compromisso com a qualida- Quanto à leitura literária, sobretudo a lite-
de (Soares, 2001). ratura adulta (em oposição à literatura produ-
Quanto à leitura, literária ou não, nota-se o zida para o público infantil e juvenil),
aparecimento de uma "ficha de leitura", que acantonada no currículo do Ensino Médio des-
passa a acompanhar os textos, propondo ativi- de a Reforma Capanema (1943), vem manten-
dades de leitura e de interpretação. do seu cunho elitista, uma vez que uma parcela
Nos anos 1990, verificam-se duas tendências: significativamente menor da população tem
uma de abandono do livro didático, devido às acesso a esse nível de ensino. Suas diretrizes e
concepções baseadas na "construção" de conhe- seu currículo, ao que tudo indica, permanece-
cimentos por alunos e professores; outra de con- rão dependentes do exame vestibular. As listas
trole e avaliação dos vários níveis de ensino pe- de obras literárias destinadas a questões do ves-
los órgãos oficiais, incluindo a avaliação dos li- tibular, publicadas pelas universidades, acabam
vros didáticos do Ensino Fundamental. influenciando o currículo do Ensino Médio.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais Creio que a expansão do ensino, atualmen-
(PCN), instituídos em 1996, indicam que o en- te em curso nos centros urbanos, obrigar-nos-á
sino de Língua Portuguesa deveria preocupar- a refletir sobre o passado e a prever práticas de
se com os "textos que caracterizam os usos pú- ensino de Português capazes de transmitir e
blicos da linguagem", orais e escritos. Baseados compartilhar com públicos de diferentes clas-
nas teorias de Bakhtin, os PCN para o 3a e 4º ses sociais e de diferentes faixas etárias diferen-
ciclos (5º a 8º séries) privilegiam alguns gêne- tes tipos de textos, inclusive da literatura cano-
ros para a leitura em sala de aula: cordel, nizada, pois é no espaço da escola que a demo-
"causos", texto dramático, canção, conto, nove- cratização pode e deve começar, uma vez que:
la, romance, crônica, poema, entrevista, deba- "A leitura não é prática neutra. Ela é campo de
te, notícia, editorial, artigo, reportagem, charge, disputa, é espaço de poder" (Abreu, 1999).
tira, verbete, relatório, didático, propaganda.
Além de parecer novidade (que, como vi-
mos, não é), a apresentação de textos por gêne-
ros, sem contextualização histórica, pode gerar Bibliografia
muita confusão, uma vez que a definição de gê- ABREU. Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura.
nero é historicamente variável, quer porque es- Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/ALB/Fapesp,
1999.
teja ligada à circulação em cada época, quer
CALVINO, ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Compa-
porque dependa da intenção de cada usuário,
nhia das Letras. 1990.
sem contar que é comum haver num mesmo CHARTIER, Anne-Marie; HÉBRARD. Jean. Discursos so-
texto mais de um gênero. bre a leitura: 1880-1980. São Paulo: Ática. 1995.
Outro incômodo desse tipo de divisão é o CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: refle-
privilégio que alguns gêneros acabam tendo xões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação,
n. 2. p. 177-229, 1990.
sobre outros, como parece ser o caso dos gêne-
CORRÊA. Maria Elizabeth Peirão; NEVES. Hélia Maria
ros veiculados em jornais, cada vez mais pre-
Vendramini; MELO, Mirela Geiger de. Arquitetura esco-
sentes na escola e nos livros d i d á t i c o s . O uso lar paulista: 1890/1920. São Paulo: Fundação para o
excessivo e indiscriminado do jornal na sala de Desenvolvimento da Educação. Diretoria de Obras e
aula, além de prejudicar a formação dos alunos, Serviços, 1991.
que deveria basear-se na diversidade de textos FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no
século 19. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FI- tura (1838-1971). 2000. Tese (Doutorado). Instituto de
LHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive. 500 Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Cam-
anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Au- pinas.
têntica, 2000. SOARES, Magda. Português na escola: história de uma dis-
FERREIRA, Avany De Francisco; CORRÊA, Maria Elizabeth ciplina curricular. Revista de Educação da AEC, n. 101,
Peirão; MELLO, Mirela Geiger de. Arquitetura escolar p. 9-26, out./dez. 1996.
paulista: restauro. São Paulo: Fundação para o Desen- o livro didático como fonte para a história
volvimento da Educação, 1998. da leitura e da formação do professor-leitor. In: MARI-
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da lei- NHO, Marildes (Org.). Ler e navegar: espaços e percur-
tura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. sos da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001,
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa- p. 31-76.
betização. São Paulo: Editora da Unesp/Conped, 2000. SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implan-
RAZZINI, Márcia de Paula G r e g ó r i o . O espelho da nação: a tação da escola primária graduada no Estado de São
antologia nacional e o ensino de português e de litera- Paulo (1890-1910). São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
SIMPÓSIO 7
o DESENVOLVIMENTO DA EJA E
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA AMÉRICA LATINA
José Rivero
Graciela Messina
Formação ae professores para
a Educação de Jovens e Adultos
José Rivero*
Unesco/Peru
pessoais e político-partidários por parte das bido especialização para o trabalho com jovens
autoridades da área educacional. e adultos com as características dos participan-
Apesar dos excelentes casos de identifica- tes. Em alguns casos, impera a habilitação in-
ção com seu trabalho, especialmente no que se formal ou extracurricular de docentes não-
refere a docentes de instituições de ensino re- especializados na EJA (não nos esqueçamos de
gulares, a situação dos professores dessa mo- que a média de professores sem formação na
dalidade de ensino não escapa à grave situação América Latina é de 21,3% e que essa situação
do conjunto de docentes. As condições salari- está associada ao fato de esses professores atu-
ais sumamente deterioradas, um alto grau de arem em áreas carentes ou marginalizadas).
instabilidade funcional em vários dos países Ademais, existe uma profunda heterogeneida-
estudados, a jornada de trabalho dupla com de na formação pedagógica dos professores, que
grupos absolutamente heterogêneos de crian- resulta em uma nítida diferença entre os que
ças e jovens, durante o período da manhã, e de possuem formação e os que não a possuem. Os
jovens e adultos com pouca ou nenhuma esco- primeiros estariam mais próximos de conhecer
laridade nas instituições vespertinas ou notur- e de motivar-se com outros conteúdos mais crí-
nas, a deterioração das condições materiais de ticos e com técnicas mais participativas de en-
trabalho - geralmente em instituições de ensi- sino. Entretanto, em ambos os casos, pesa mui-
no que "sofrem" durante o dia com a freqüên- to o uso cotidiano da instrução tradicional.
cia de diferentes tipos de alunos de outras tan- Um problema que afeta a imagem e o rendi-
tas instituições de ensino - constituem parte da mento profissional é o não-reconhecimento da
dívida regional para com esses professores. atual educação de adultos como uma modalida-
de necessária e fundamental da atividade educa-
cional sob a responsabilidade do Estado. Orça-
A atual formação mentos baixos e níveis escassos de supervisão e
do professor de jovens requisitos profissionais, acrescidos à ausência de
poder de organização e pressão por parte dos usu-
e adultos ários potenciais, são apenas uma faceta do pro-
A formação recebida em universidades, em blema. Mas é importante salientar-se que a EJA
instituições superiores de formação de profes- não logrou obter credibilidade social e tampouco
sores ou em instituições de aperfeiçoamento é vista como útil ou necessária pela comunidade.
não habilita os professores para atender aos re- A organização escolarizada tradicional, por meio
quisitos especiais que caracterizam um ensino de aulas ministradas por professores sem forma-
no qual os participantes são os próprios ção especializada, tende a diminuir a demanda
educandos e não o educador. por esses serviços e a acentuar a desigualdade na
Os docentes com título pedagógico foram aprendizagem entre grupos populacionais que
formados para educar crianças - com as sérias demandam atenção prioritária e uma educação
deficiências reconhecidas em sua formação ini- de melhor qualidade.
cial - e, ao chegarem às instituições vesperti-
nas ou noturnas, tiveram de se adaptar e de or-
ganizar seu trabalho pensando em adultos Rumo a novas estratégias
quando, como mostra a realidade, a maioria dos de formação de educadores
participantes é composta de jovens.
Os critérios de formação estão fortemente de jovens e adultos
associados à teoria e à prática da escolaridade, Uma premissa básica nesse caso é que a EJA
sendo o "rendimento acadêmico-intelectual" deve concentrar-se em processos de ensino e
do educando o principal objetivo da formação. aprendizagem, os quais, por sua própria natu-
Observa-se, entretanto, uma débil e deficiente reza, demandam dedicação, disciplina e espe-
formação inicial do docente, agravada nesse cialização profissional, além de tempo suficien-
caso pela circunstância de ele não haver rece- te. Essa afirmação é particularmente importan-
te, sobretudo se considerarmos a tendência de propor-se um trabalho de formação em um
outorgar-se à educação capacidade para resol- plano duplo e segundo a realidade institu-
ver mais problemas do que esta pode efetiva- cional da EJA em cada país. Esses planos po-
mente suportar. Assim, o crescente desempre- dem ser seqüenciais ou programas que se de-
go e subemprego de seus usuários - reais ou senvolvem de forma paralela. De imediato,
potenciais - pode influenciar para que se exi- e como forma de iniciar a EJA vinculada a ne-
jam da EJA soluções ou contribuições específi- cessidades básicas circunstanciais, o objeti-
cas para a solução desse problema estrutural, vo é formar esses jovens e adultos como ato-
ou de outros graves problemas sociais, o que res com valores, atitudes, conhecimentos e
extrapola, em muito, suas possibilidades. competências que os habilitem a enfrentar
suas necessidades de aprimoramento profis-
Outras premissas a serem consideradas in-
sional, de uma maior participação no exer-
cluem: cício da cidadania e de um intercâmbio cul-
• A crescente universalização do acesso à tural que, em última análise, lhes permitam
educação básica e secundária - bem como participar da transformação de suas ativida-
as características dos jovens e adultos que des profissionais e de suas condições de vida.
dela participam - tem como conseqüência
uma heterogeneidade do alunado atendido. • Considerando-se a relação direta entre a
Esses alunos, além de pertencerem às cama- motivação para participar e a real utilida-
de de um ensino e de uma aprendizagem
das baixas ou pobres da sociedade, apresen-
centrados no aluno, é imprescindível que
tam idades, experiências de vida e interes-
sejam redefinidas as atuais estruturas e os
ses distintos. Assim, é fundamental que os
atuais procedimentos escolares, tanto da
professores estejam habilitados a encontrar
educação básica quanto da educação se-
e utilizar novas formas de ensino e aprendi-
cundária de jovens e adultos. A concepção
zagem que lhes permitam lidar com a diver- atual de instituições de ensino para adul-
sidade cultural, com as diferentes compe- tos, com horários e currículos fixos que de-
tências dos alunos e com as distintas situa- mandam a assistência diária e em períodos
ções de vida que estes enfrentarão ao con- de tempo que cobrem vários anos de esco-
cluir um grau ou ciclo escolar. laridade, teria de ser seriamente redefinida.
• Uma das principais disposições de Jomtien Hoje, o baixo impacto desse tipo de pro-
determina que os conteúdos curriculares se- grama requer sua modificação, por meio de
jam cada vez mais associados à lógica da sa- modalidades semipresenciais e com con-
tisfação das necessidades fundamentais de teúdos curriculares e materiais de auto-
aprendizagem dos participantes. No caso de aprendizagem adequados às demandas e às
jovens e adultos, esse não é um tema despro- necessidades básicas de aprendizagem,
vido de conceitos, de enfoques teóricos ou com uma melhor qualidade de vida dos
de experiências realizadas. A partir das prá- participantes.
ticas sistematizadas da "Educação Popular"
na América Latina, emerge com vigor a idéia • A tendência à descentralização impõe novos
de que as necessidades fundamentais do desafios a professores e diretores, que devem
adulto constituem um todo inter-relaciona- ser levados em conta nas propostas de for-
do. A resposta que satisfaz uma necessidade mação de professores. Uma das conseqüên-
de aprendizagem específica gera um ciclo de cias dessa mudança é que as instituições
reações que vão permitindo a manifestação educacionais começam a usufruir de um cer-
de novas necessidades que devem, igual- to grau de autonomia organizacional e ad-
mente, ser satisfeitas. Esse processo estrutu- ministrativa. Essa nova autonomia dá a dire-
ral e interdependente do processo de forma- tores e a professores mais espaço para a to-
ção de adultos permite visualizar a ação edu- mada de decisões, para a organização de pro-
cacional como um processo que transcende jetos educativos capazes de gerar e atrair re-
a EJA, operacionalizada em uma realidade cursos ou para a adoção de iniciativas de
econômica e política que desafia, contradi- ajustes curriculares. Não restam dúvidas,
toriamente, a modernidade. Isso obriga a entretanto, de que esses mesmos diretores e
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) deve cação, o que teve como conseqüência um cres-
ser vista não apenas como uma atividade suple- cimento da participação individual e coletiva,
tiva, mas como uma educação permanente in- num leque cada vez maior de atividades de
cluindo necessariamente uma formação sólida aprendizagem envolvendo pessoas de todas as
que permita o desenvolvimento de conhecimen- idades, sem a preocupação de tempo e de lugar.
tos específicos, suscetíveis de serem comprova- O desafio recor
dos em atividades concretas. Essa é uma das fessores estava colocado com muito mais
conclusões de um estudo conduzido pela acuidade e complexidade que nunca. Nos paí-
Unesco em sete países da América Latina, inclu- ses que participaram na avaliação dos indica-
indo o Brasil, publicado sob o título Alfabetismo dores de educação* cujo relatório foi publica-
funcional em sete países da América Latina. do no texto da OCDE em colaboração com a
A década de 1990 foi testemunha de um cres- Unesco - Professores para as escolas de amanhã
cimento exponencial na demanda de educação. -, os professores representam uma proporção
Indivíduos, economias e sociedades viram-se alta da força de trabalho em geral. Em média,
praticamente forçados a elevar os níveis de edu- um em cada 25 trabalhadores de todos os seto-
• Dezoito países: Argentina. Brasil, Chile. China. Egito, índia. Indonésia, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru, Filipinas. Rússia, Sri Lanka,
Tailândia, Tunísia. Uruguai e Zimbábue.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
res é professor; além disso, os professores são variados, tem autonomia e responsabilidade
em geral os trabalhadores mais qualificados: pessoal, insere-se em normas coletivas que lhe
mais de metade dos trabalhadores com ensino dão identidade profissional e num grupo que
superior trabalha em educação. desenvolve estratégias de promoção, de valori-
No entanto, a grande questão não está ape- zação e de legitimação.
nas na formação de professores, mas em como Para a função docente o processo é igual. Ou
criar condições para retê-los no sistema. deveria ser igual. Isto é, teoricamente, o pro-
Na realidade, as expectativas em relação ao fessor é um profissional quando a atuação dele
papel do professor continuam altas apesar, ou por obedece aos critérios de racionalização dos sa-
causa, de todo o desenvolvimento tecnológico. Do beres e de legitimação social, sumariamente
professor se exige que, além de ser competente, descritos acima, que definem uma profissão.
atualize seus conhecimentos em alta velocidade A formação tem, assim, uma importância
e que, para além de suas capacidades técnicas e crítica na profissionalização do professor. Ela é
pedagógicas, saiba lidar individualmente com um dos suportes da trilogia ação/formação/
alunos como pessoas, com seus valores e cultu- pesquisa e da articulação entre suas respecti-
ras próprias. Essas expectativas da sociedade em vas lógicas na busca de uma mudança qualita-
geral têm atingido níveis que se confrontam com tiva que envolva a reflexão sobre valores, nor-
a própria "profissionalidade" do professor. mas, modelos.
Analisemos rapidamente este termo relativa- A profissionalidade é tudo o que está para
mente novo - profissionalidade. A partir de que além da profissionalização, é o que está na base
momento um ofício passa a ser uma profissão? da mudança, na consciência de si e dos outros,
Estudos realizados nomeadamente em no desejo ou motivação para a função e na com-
França, mostram que passamos a ser profissio- preensão da significação do que se faz. Ela, a
nais quando deixamos de seguir regras profissionalidade, é também um dos fatores
preestabelecidas e passamos a ter estratégias mais presentes na capacidade dos governos de
que seguem determinados objetivos dentro de atrair e reter professores qualificados na pro-
uma certa ética. Ou seja, de modo abstrato e fissão, o que por sua vez influi na capacidade
bastante genérico, há pelo menos três níveis de de captar os melhores estudantes para se tor-
diferença entre ofício e profissão: uma primei- narem professores.
ra diferença no tipo de ocupação (manual e in- Vejamos um pouco essa questão da reten-
telectual ou artística); uma segunda diferença ção de professores, que afeta de maneira mui-
na natureza do saber, misterioso para o ofício e tas vezes dramática a educação e a alfabetiza-
publicamente dominado e professado para a ção de adultos.
profissão; e uma terceira ligada à legitimação Por força do direito de todos à educação, os
social, que depende da utilidade para o ofício e sistemas educativos expandiram-se mundial-
do prestígio para a profissão. Exemplos flagran- mente, o que exacerbou a necessidade de pro-
tes de profissões que seguem esses critérios são, fessores qualificados para atender o nível pri-
por exemplo, a advocacia e a medicina. mário e, sobretudo, o nível secundário, atual-
Um processo de profissionalização deve mente sob pressão em quase todas as latitudes.
transformar um ofício numa profissão, um ar- O equilíbri
tesão num profissional; mais propriamente, sores e o que lhes é oferecido em troca tem gran-
profissionalização é um processo de racionali- de impacto na força de trabalho docente e na
zação dos saberes. Um profissional é uma pes- qualidade desse trabalho. Alguns países do Nor-
soa que adquiriu competências específicas, te desenvolvido estão mesmo encarando a pos-
especializadas, com base em saberes racionais sibilidade de atrair professores qualificados de
reconhecidos, legitimados pela universidade e outros países, já que os profissionais nacionais
pelo exercício. estão pouco a pouco perdendo a motivação
o profissional responde, adapta-se à de- para esse trabalho! A constatação é que 30% do
manda, ao contexto, a problemas complexos e total do corpo docente deixam a profissão an-
tes de completar cinco anos (nos centros urba- professores pretender - condições de trabalho,
nos essa porcentagem sobe para 50%!). direitos, estatuto - na sociedade? E a grande per-
Apesar de o papel dos professores ser reco- gunta: quem pode ser um bom professor e como
nhecido na sociedade, ainda há dificuldade em encontrar essa pessoa, formá-la, preservar a sua
assumir que a qualidade tem um preço. Nem motivação e a qualidade do seu ensino?
todos podem exercer a função docente, e nenhu- Teve lugar, de 5 a 8 de setembro de 2001, em
ma associação profissional aceitaria entre seus Genebra, no Bureau Internacional da Educação
pares candidatos despreparados para a função. da Unesco, a 46ê Conferência Internacional de
Falando de desenvolvimento da EJA, essa Educação, dedicada ao tema "Educação para
questão do recrutamento e da retenção de pro- todos para aprender a viver juntos". As conclu-
fessores qualificados torna-se ainda mais críti- sões dos debates, das sessões plenárias e das
ca, já que nem sempre os recursos financeiros oficinas que se realizaram durante a Conferên-
disponíveis num determinado país permitem a cia, preparadas para os organismos governa-
implementação de uma educação verdadeira- mentais e não-governamentais, para os profes-
mente para todos, crianças, jovens e adultos. No sores e suas organizações, para a mídia e todos
entanto, à medida que cresce o papel da edu- os parceiros da sociedade civil interessados na
cação na dinâmica das sociedades modernas, qualidade e na pertinência da educação e em
ela, a educação, ocupa cada vez mais lugar, na seu potencial para levar indivíduos e socieda-
vida dos indivíduos, ao longo de toda a vida. des a aprenderem a viver juntos, foram de gran-
Deixou de existir a delimitação de tempo, ida- de relevância e oportunidade marcante - sobre-
de ou lugar, para aprendermos, para nos quali- tudo se pensarmos nos acontecimentos ocorri-
ficarmos - a competência passou a ser dos em setembro. É evidente que há urgência
evolutiva, exigindo um grau elevado de adap- cada vez maior de pormos de pé o conceito de
tabilidade. É o que se chama comumente o "aprender a viver juntos", um dos pilares da edu-
continuum educativo. A EIA constitui, assim, cação, tal como definidos pelo Relatório Inter-
uma excelente ocasião para abordar questões nacional da Unesco, publicado sob o título Edu-
ligadas ao meio ambiente e à saúde, à educa- cação, um tesouro a descobrir.
ção em matéria de população, à educação para Não há dúvida de que o direito de todos à
os valores e culturas diferentes. educação ainda tem um longo caminho a per-
o nível de participação do adulto na vida da correr, apesar da certeza generalizada que se
nação depende em larga medida do nível de es- tem hoje de que a educação é o caminho para
colaridade anterior, que produz um efeito cu- combater a pobreza e promover a participação
mulativo reconhecido por todos: quanto mais de todos nos níveis político, social e cultural.
escolarizado o indivíduo, mais vontade ele tem No entanto, o objetivo da educação para todos
de aprender. Por isso os progressos na escolari- vai além da universalização pura e simples. Em
zação de jovens, os progressos na alfabetização cada país a luta pela coesão social e contra a
de adultos e qualquer impulsao à educação bá- desigualdade, o respeito pela diversidade cul-
sica estimulam e são estimulados pelo cresci- tural e o acesso a uma sociedade do conheci-
mento da demanda de educação de adultos, nas mento, que pode ser facilitada pelas tecnologias
sociedades de hoje e de amanhã. Daí que o anal- de informação e comunicação, estão direta-
fabetismo nos países em via de desenvolvimen- mente relacionadas com a qualidade da educa-
to, o iletrismo nos países desenvolvidos e os li- ção. A própria diversidade lingüística e o fosso
mites da educação permanente constituem ver- ainda existente no âmbito do desenvolvimento
dadeiros obstáculos a políticas de promoção de científico e tecnológico dependem muito des-
eqüidade e igualdade. sa qualidade da educação.
Nesse processo, o que é que, racionalmente, Nesse contexto, as reformas são mais pro-
a sociedade pode esperar dos seus professores? cesso que p r o d u t o . O importante, paralelamen-
Que nível de exigência é preciso colocar no tra- te à definição dos conteúdos, continua sendo o
balho que fazem? Que contrapartida podem os envolvimento de todos os atores.
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
A formação de educadores:
um caminho para a
transformação da educação de
pessoas jovens e adultas
Graciela Messina
Unesco/Orealc/Chile
Para transformar a educação de adultos, do-se finalmente livre e legítima para criar sua
precisamos questionar as categorias habituais própria configuração.
que nos permitem organizar nossa prática edu- A educação de adultos tem sido caracteri-
cacional e hierarquizá-la de acordo com os es- zada pelo princípio da "compensação" e usa-
quemas conhecidos e aceitos como naturais. da como um ato de "reparação" social princi-
Atribuímos às normas contingentes a condi- palmente pela escolaridade não alcançada por
ção de leis da natureza. "Desnaturalizar" as parte da população adulta. Desde sua origem,
noções e os nomes que constituem o campo a educação de adultos tem estado vinculada
da educação seria o primeiro passo para qual- aos setores sociais mais excluídos. Educação
quer mudança. de adultos é um nome que oculta o que todos
A transformação da EJA produzirá mudan- sabemos: que seus únicos destinatários têm
ças na educação como um todo, em sua tarefa sido adultos em situação de pobreza e que, na
social e em suas relações com a vida cotidiana maioria dos casos, tem consistido em esforços
e o trabalho. Para transformar a educação de orientados pela perspectiva compensatória
adultos, precisamos, em primeiro lugar, ques- ("uma educação pobre para pobres").
tionar suas fronteiras, articular suas diversas Os sistemas educacionais foram organiza-
expressões e reintegrá-la ao conjunto de pro- dos para formar as novas gerações por meio de
cessos educacionais dos quais ela está se- uma instituição especializada, a escola, que
gregada ou separada. Essa é uma tarefa coleti- distribui a educação de acordo com a classe
va a ser levada a cabo por todos os profissio- social e com outras formas de classificação-
nais da área pensando juntos, por educadores discriminação. Nesse marco, a educação de
que estão investigando o que devem fazer. adultos tem sido a educação dos que estão
Embora a tese aqui apresentada se baseie "fora", uma tarefa definida como "supletiva" ou
na noção de que a transformação da EJA deve "compensatória", concebida para reparara fal-
ocorrer a partir dos educadores e com sua par- ta de oportunidades dos grupos que não tive-
ticipação, a tarefa situa-se num espaço de con- ram acesso à escola ou não puderam continu-
vergência entre dois campos: a chamada "edu- ar seus estudos numa instituição escolar. Em
cação de adultos" e a formação docente, am- sua aplicação, uma parte da educação de adul-
bos em processo de revisão e debate. tos cumpriu seu mandato social como "educa-
ção compensatória" e outra se desvinculou
desse mandato e se comprometeu com os se-
A educação de adultos tores sociais excluídos. A educação popular
A educação de adultos tem sido, desde deste século faz parte dessa educação de adul-
suas origens, um espaço com fronteiras per- tos que procura um outro caminho. A pedago-
manentemente redefinidas, um espaço con- gia da libertação, promulgada por Paulo Freire,
traditório, tenso, propício tanto para a pro- e a educação popular, construída a partir da
moção de novas oportunidades para grupos teoria e da prática freireanas, caracterizam-se
excluídos e para a experimentação de novas por sua explícita intencionalidade política de
práticas como para a reprodução de práticas conscientizar e promover a organização dos
escolarizadas e para a degradação e o empo- setores populares (Garcia Huidobro, 1994).
brecimento dessas práticas. Há dez anos, uma Desde a década de 1960, observamos a convi-
pesquisa publicada pela Unesco chamou, em vência de duas práticas de educação de adul-
seu título, a educação básica de adultos de "a tos: uma compensatória e outra vinculada aos
outra educação" (Messina, 1993). Esse nome setores excluídos e a suas organizações.
permanece: a "outra", sempre determinada Considerada em seu conjunto, a educação
pela educação oficial e vinculada a ela, desti- de adultos tem sido um espaço educacional
nada às novas gerações; a "outra", para abran- heterogêneo, fragmentado e sensível a mudan-
ger também a possibilidade da saída, de ser ças políticas e sociais; retrai-se em tempos de
outra e perder-se nessa singularidade, tornan- ditadura e expande-se em períodos de demo-
cracia formal, em tempos de mobilização po- Além de compensatória e seletiva, a educa-
pular. Ao mesmo tempo, tem constituído um ção de adultos tem desempenhado papel mar-
foco de atenção educacional e de atrito social ginal no conjunto das ações dos países da re-
para os setores mais vulneráveis. gião e nas reformas implementadas na década
No entanto, a educação de adultos apresen- de 1990. Desempenhou um papel marginal,
ta-se com uma configuração tão diversificada também, em projetos regionais ou internacio-
quanto a enfoques, instituições e programas nais de longo prazo implementados na Améri-
que não seria válido, na América Latina, abordá- ca Latina, como o Projeto Principal de Educa-
la como uma "educação de adultos em geral". ção para a América Latina e o Caribe - PPE
Devemos considerá-la fazendo referência a eta- (1980-2000) e a proposta da Educação para To-
pas, países, grupos de países, modalidades, dos (1990-2000).
ações do Estado ou da sociedade civil. Nesse o PPE, definido na reunião de ministros de
contexto, a primeira diferença significativa Educação realizada no México em 1979, resul-
pode ser identificada entre duas produções que tou de um grande desejo dos governos da re-
coexistem e se contrapõem na década de 1980 gião de trabalhar em conjunto. Esse projeto
e começam a se complementar na década de contemplava uma proposta de "educação para
1990: os programas do Estado e os programas todos" organizada em torno da educação bási-
da sociedade civil. ca e inserida na linha da educação permanen-
Na maioria dos países, a educação de adul- te. Desde suas origens, o PPE propôs-se a dar
tos oferecida pelo Estado tem sido não apenas uma resposta ao analfabetismo e a melhorar a
compensatória, mas também seletiva. Sua ofer- oferta da educação de adultos. Sua proposta
ta concentrou-se nos centros urbanos e os gru- original compromete-se com os setores mais
pos mais excluídos ("os pobres dos pobres") não excluídos e assume a perspectiva de "eliminar"
tiveram acesso a ela. Por sua vez, as pesquisas o analfabetismo e "ampliar os serviços" da edu-
indicam que as mulheres preferem participar de cação de adultos. Esse enfoque reduz o analfa-
programas comunitários de alfabetização ou de betismo a um sintoma e a educação de adultos
capacitação para ofícios domésticos, enquanto a uma oferta que deve ser ampliada, com base
os homens predominam na educação básica e na mesma lógica que imperou para o sistema
secundária formal e nos programas de educa- educacional formal: a expansão da cobertura.
ção profissionalizante de grande porte (Pieck, Além disso, o discurso e a prática do PPE con-
1996). Na educação básica formal de adultos, centraram-se progressivamente, nas duas últi-
participam em maior número pessoas que já mas décadas, no sistema educacional formal, na
têm alguma escolaridade ou que foram expul- escola e nos processos de ensino e aprendiza-
sas da escola recentemente. A educação secun- gem.
dária ou de segundo grau de adultos conta com Essa posição secundária desenvolveu-se de
um número maior de estudantes que a educa- tal forma que, em alguns países, a educação de
ção básica, comprovando que a escolaridade adultos descentralizou-se a ponto de dissolver
prévia condiciona a participação na educação as estruturas nacionais da modalidade (Argen-
de adultos (Messina, 1993). A educação-traba- tina, dissolução da Dinea) Em outros países, no
lho para os setores mais excluídos continuou entanto, foram mantidas estruturas fortes e
sendo terra de ninguém na década de 1990 centralizadas, com uma gestão progressiva-
(Pieck, 2000), da mesma maneira que a educa- mente descentralizada (Inea, México; Conafe;
ção pós-alfabetização esteve desconectada do outras instituições). Nesse sentido, o interesse
trabalho na década de 1980 (Schmelkes, 1988). do Estado em relação à educação de adultos é
Nesse marco, a educação de adultos apresenta- muito diferente na região. Nos países em que
se como uma modalidade na qual predominam continua funcionando como um espaço "regu-
os jovens e na qual os "adultos adultos" e os lar", a educação de adultos é um espaço "à par-
adultos mais velhos têm pouca ou nenhuma te". Em alguns países a segregação é tão acen-
participação. tuada que foi definida em lei como um "regime
SIMPÓSIO 7
o desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
sa de quem são e de que necessitam os educa- PIECK, Enrique. Función social y significado de Ia
dores como a criação de uma proposta de edu- educación comunitária. Una s o c i o l o g i a de Ia
e d u c a c i ó n no f o r m a l . México: Unicef/Colegio
cação de adultos que parta dos interesses e dos
Mexiquense, 1996.
conhecimentos das pessoas e que esteja orien-
Educación de adultos y formación para el
tada para os setores mais excluídos. Esse pro- trabajo en América Latina: incidência y posibilidades en
cesso é o inverso da definição de perfis docen- los sectores de pobreza. In: JACINTO, Claudia;
tes ou da predeterminação de conteúdos míni- GALLART, Maria Antonia. Por una segunda oportunidad:
mos para a formação. Trata-se de uma forma- Ia formación para el trabajo de los jóvenes vulnerables.
ção docente para educadores de adultos como Montevideo: Cinterfor/OIT/Rede Latino-Americana de
Educação e Trabalho, 1998.
sujeitos de direitos, cidadãos plenos e inter-
PIECK, Enrique. Educación de jóvenes y adultos vinculada
locutores do Estado na definição de políticas
al trabajo. In: Unesco/Ceaal/Crefal/lnea. La educación
educacionais, ou seja, o oposto de uma forma- de personas jóvenes y adultas en América Latina y el
ção de educadores como executores de progra- Caribe. Prioridades en el siglo XXI. Santiago de Chile,
mas num espaço "sala de aula", em lugares 2000.
escolarizados, ainda que não inseridos fisica- RIVERO, José. Educación de adultos en América Latina.
mente na escola. Essas propostas precisarão Desafios de Ia equidad y Ia modernización. Madrid: Oei,
estar articuladas com uma formação geral e 1993.
Educación y exclusión en América Latina.
comum de todos os educadores e profissionais
Reformas en tiempos de globalización. Lima: Tarea,
das Ciências Sociais e de Saúde em torno da 1999.
tarefa social inadiável e específica que a educa- SCHMELKES, Sylvia. Postalfabetización y trabajo en Amé-
ção de pessoas jovens e adultas implica. rica Latina. Pátzcuaro, México: Unesco/Orealc/Crefal,
1988.
Campesinos e indígenas en América Lati-
na: sus exigências educativas. In: UNESCO/UNICEF. La
Bibliografia educación de adultos en América Latina ante el próxi-
BLANCO, Rosa; MESSINA. Graciela. Innovación educati- mo siglo. 1994a.
va. Estado del arte sobre Ias innovaciones educativas Necesidades básicas de aprendizaje de los
en América Latina. Bogotá, Colômbia: CAB/Unesco, adultos en América Latina. In: UNESCO/UNICEF. La
2000. educación de adultos en América Latina ante el próxi-
BÜTTNER, Thomas; JUNG. Ingrid; KING, Linda (Orgs.). mo siglo. 1994b.
Hacia una pedagogia de gênero. Experiências y TORRES, Rosa Maria. La formación de los maestros. Qué
conceptos innovativos. Bonn/Colômbia: DSE/Unesco- se dice, qué se hace. Dissertação (seminário regional
lUE/Cafam, 1997. "Formas de aprender e novas formas de ensinar: de-
GALLART, Maria Antonia. La formación para el trabajo en mandas da formação inicial do professor"). Santiago de
América Latina: pasado, presente y futuro. Dissertação Chile: Unesco/Unicef/Cide, 1995.
(reunião prospectiva preparatória da VII Reunião do La profesión docente en Ia era de Ia
Comitê Regional Intergovernamental do PPE, Santia- informática y Ia lucha contra Ia pobreza: desafios para
go, ago. 2000). Buenos Aires: Cenep, 2000. Ia política educativa. Dissertação (reunião prospectiva
INFANTE, Isabel (Org.). Alfabetismo funcional en siete pa- preparatória da VII Reunião do Comitê Regional
íses de América Latina. Santiago, Chile: Unesco/Orealc, Intergovernamental do PPE, Santiago, ago. 2000).
2000. Buenos Aires, 2000.
LETELIER, Maria Eugenia. Analfabetismo femenino en Chile UNESCO/OREALC. Nuevas formas de aprender y nuevas
de los noventa. Santiago, Chile: Unesco/Orealc, 1996. formas de ensehar: demandas a Ia formación inicial del
MESSINA, Graciela. La educación básica de adultos: Ia otra docente. Santiago de Chile: Unesco/Orealc/Cide, 1996.
educación. Santiago, Chile: Unesco/Orealc, 1993. UNESCO/OREALC/CIDE. Mecanismos de articulación en-
Innovaciones en Ia educación básica de adul- tre Ia ensehanza escolar y Ia extraescolar. Santiago de
tos. sistematización de 6 experiências. Santiago, Chile: Chile, 1990.
Unesco/Orealc, 1995. UNESCO/CEAAL/CREFAL/INEA. La educación de personas
Como se forman los maestros en América jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe. Priori-
Latina. Boletín del PPE, n. 43, Unesco/Orealc, ago. 1997. dades en el siglo XXI. Santiago de Chile, 2000.
MESSINA, Graciela (Org.). Estratégia regional de UNESCO/Ministério da Educação do Chile. Marco regional
seguimiento de Confintea V. Santiago, Chile: Unesco/ de acción para Ia educación de personas jóvenes y adul-
Crefal/lnea/Ceaal, 1999. tas. Santiago de Chile, 2000.
SIMPÓSIO 8
o FUNDEF E A VALORIZAÇÃO
DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini
o Fundef foi criado para garantir uma E d u c a ç ã o . O valor referente ao Fundef é credi-
subvinculação dos recursos da educação para tado em conta específica, sempre que houver
o Ensino Fundamental, assim como para asse- arrecadação e repasse de recursos das fontes
gurar uma melhor distribuição desses recursos. que alimentam o Fundo. Ou seja, o crédito da
Com esse fundo de natureza contábil, cada es- parcela do Fundef originária do FPM acontece
tado e cada município recebem o equivalente na mesma data do repasse do FPM, o mesmo
ao número de alunos matriculados na sua rede ocorrendo com relação às outras fontes.
pública do Ensino Fundamental. Os recursos devem ser utilizados da seguin-
Além disso, é definido um valor mínimo te maneira:
nacional por a l u n o / a n o . O Fundef foi criado • Sessenta por cento, no mínimo, para remu-
pela Emenda Constitucional n 9 14/96, regula- neração dos profissionais do magistério em
mentado pela Lei nº 9.424/96 e pelo Decreto efetivo exercício no Ensino Fundamental
n 9 2.264/97 e implantado automaticamente público. Até dezembro de 2001, parte dessa
em janeiro de 1998 em todo o país. parcela também pode ser utilizada para ha-
o Fundo é composto, no âmbito de cada bilitação de professores leigos.
estado, por 15% das seguintes receitas: • Quarenta por cento, no máximo, em outras
• Fundo de Participação de Estados e Muni- ações de manutenção e desenvolvimento do
cípios (FPE e FPM). Ensino Fundamental público, como, por
exemplo, capacitação de professores, aqui-
• Imposto sobre Circulação de Mercadorias
sição de equipamentos, reforma e melhorias
e Serviços (ICMS). de escolas da rede de ensino e transporte
• Imposto sobre Produtos Industrializados, escolar.
proporcional às exportações (IPIexp).
A Lei nº 9.424/96 faculta, até dezembro de
• Ressarcimento pela desoneração de ex- 2001, a utilização de parte da parcela dos 60%
portações de que trata a Lei Complemen- dos recursos do Fundef na habilitação de pro-
tar nº 87/96 (Lei Kandir). fessores leigos. Porém é necessária a identifi-
• Complementação da União (quando neces- cação desses professores com base na Lei de
sário). Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
e na Resolução-CNE nº 03/97, que considera
Em cada estado, os recursos do Fundef são como leigos, para efeito de atuação no Ensino
distribuídos entre o governo estadual e os go- Fundamental, os professores que:
vernos municipais, de acordo com o número de • tenham apenas o Ensino Fundamental, com-
alunos do Ensino Fundamental público aten- pleto ou incompleto;
dido em cada rede de ensino (estadual ou mu- • lecionem para turmas de 1a a 4ª séries e nao
nicipal), conforme os dados constantes do Cen- possuam o Ensino Médio, modalidade Nor-
so Escolar do ano anterior. Esse censo é reali- mal (antigo Magistério);
zado a cada ano pelo Instituto Nacional de Es- • lecionem para turmas de 5ª a 8ª séries sem
tudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do MEC, que tenham concluído o Ensino Superior, em
em parceria com as Secretarias Estaduais de cursos de Licenciatura em área específica.
SIMPÓSIO 8
o Fundef e a valorização do Magistério
em Brasilia, pelo telefone (61) 410-8648, pelo fax representantes do Poder Legislativo local,
(61) 410-9283, por e-mail<fundef@mec.gov.br> para que estes, pela via da negociação ou
ou, ainda, pelo Fala Brasil (0800-616161). pela adoção de providências formais, pos-
Em caso de descumprimento dos dispositi- sam buscar a solução junto ao governante
vos legais sobre o Fundef, recomenda-se: responsável;
• procurar, primeiramente, os membros do 1
ainda, se necessário, recorrer ao Ministério
Conselho de Acompanhamento e Controle Público (Promotor de Justiça), diretamente ou
Social do Fundef, para que este solicite ao com a ajuda e intermediação do Conselho do
responsável, se necessário, a correção das Fundef, formalizando suas denúncias, enca-
irregularidades praticadas; minhando-as, também, ao respectivo Tribunal
• na seqüência, se necessário, procurar os de Contas (do estado ou dos municípios).
DEBATE
0 Fundef e a valorização
do Magistério
Oswaldo José Fernandes
Secretário Municipal de Educação, Cultura e Esportes - Jundiaí/SP
Resumo
Partiremos de dois fatos que, na atualidade, cos dados indiscutíveis se encontram realmente
constituem consenso na comunidade de pesqui- disponíveis "sobre os professores e seu papel no
sadores. De um lado, "certos professores conse- sucesso ou fracasso dos alunos" (idem: 35). Isso nos
guem fazer com que seus alunos progridam mais conduzirá a uma indagação sobre três grandes as-
do que outros" (Felouzis, 1997: 57). A esse respei- suntos:
to, existem diferenças significativas de um profes- • Como foram construídos os saberes atual-
sor a outro. Esse é o chamado "efeito-professor". mente disponíveis?
Do outro, não podemos senão constatar "a dificul- • o que sabemos hoje, exatamente, sobre a in-
dade de se estabelecerem resultados reais, fluência dos professores no sucesso dos alunos?
acumuláveis e generalizáveis, sobre a questão da • Como poderíamos chegar a saber mais e
eficácia dos professores" (idem: 28). E, de fato, pou- melhor a respeito dessa questão?
NT Interação Aptidões-Tratamentos (I.A.T.). Vários grupos de sujeitos equivalentes ou, ao contrário, diferenciados do ponto de vista das
características pessoais consideradas são expostos a condições pedagógicas diferentes para assimilar um conteúdo de aprendizagem idên-
tico. A seguir, avaliam-se os desempenhos de cada sujeito para poder identificar os tratamentos pedagógicos que melhor convém às carac-
terísticas pessoais apresentadas pelos alunos.
dagem caracterizada pelo enfoque nas cognições negação da experimentação; ausência de
e no funcionamento cognitivo dos professores, ten- marco teórico interpretativo. Acrescente-se a
do sempre a preocupação de identificar os elemen- isso o que Durand (1996) vem finalmente res-
tos de eficácia. Entretanto, esse autor salienta o saltar sobre o fato de se ignorarem as ativida-
surgimento de uma terceira atitude, de perspecti- des desenvolvidas quando da interação com
va etnográfica (idem: 32), caracterizada pelos tra- os alunos (por exemplo: atividades de plane-
balhos de Schõn. Os defensores dessa terceira ati- jamento).
tude estariam menos interessados nos problemas b. É por isso que podemos clamar, junto com
de eficácia e de avaliação. Gauthier, por uma complementaridade das
Eis por que poderemos ficar finalmente de abordagens e, até mesmo, dos esforços por
acordo com Gauthier (1997), que distingue três progredir no sentido de "um modelo
grandes abordagens nas pesquisas sobre Peda- eclético" (1997: 125).
gogia: c. Isso nos parece: um comprometimento mai-
•A abordagem processo-produto, centrada na or do que a construção de um modelo descri-
pesquisa de correlações entre comportamen- tivo exaustivo (do processo ensino-aprendi-
tos observáveis e resultados quantificáveis. zagem), pois não permite o esquecimento de
nada e integra as três grandes abordagens
• A abordagem cognitiva, centrada na análise,
identificadas; mais do que o surgimento de
em nível mais profundo, de processos não
um novo e mais poderoso paradigma de pes-
observáveis diretamente, o que privilegia um
quisa; simplesmente a elaboração de um mo-
trabalho de inferência, freqüentemente fun-
delo de trabalho suscetível de fazer aparecer
damentado na análise das produções verbais
claramente os espaços de análise prioritária
dos atores.
ou, dito de outra forma, os grandes canteiros
• A abordagem interacionista-subjetivista, de obras nos quais deveria empenhar-se a
sensível às interações entre atores e à força pesquisa para contribuir com respostas mais
de suas representações e, de forma mais pre- satisfatórias à questão da eficácia. É isso que
cisa, à importância da história de cada um. faremos no nosso terceiro ponto, após ter evo-
o que podemos deduzir a partir dessa pri- cado rapidamente alguns resultados já produ-
meira análise? zidos por esse esforço.
a. Nenhum paradigma chega a ser totalmente
satisfatório, ou seja, nenhum deles oferece
todas as chances de aportar uma resposta ver-
dadeiramente pertinente à questão da eficá- Alguns resultados
cia. Cada um, além de seu inegável interesse, interessantes produzidos
tem "sérias limitações", muito bem analisadas
por Gauthier. Fiquemos simplesmente com pelos trabalhos sobre
aquelas do paradigma que, por ora, permitiu os efeitos-professor
produzir mais saber(es): o paradigma proces-
so-produto. Gauthier (1997) identifica nele o que se sabe hoje, de maneira comprova-
sete limitações: visão redutora da eficácia (de- da? Duru-Bellat e Mingat (1994), Bressoux (1994),
sempenhos cognitivos medidos com a aplica- Felouzis (1997) e Gauthier (2001) têm apresen-
ção de testes padronizados); nenhuma expli- tado sínteses a respeito, ao mesmo tempo, dos
cação sobre a maneira pela qual o ensino pro- problemas colocados pela análise dos tais "efei-
duz seus efeitos; subestima da influência dos tos-professor" e dos resultados obtidos.
alunos no processo de aprendizagem; esque-
cimento do contexto; superestima da freqüên-
cia na apreciação da importância de um fa- Rumo a uma base de conhecimentos:
tor; impacto fraco na formação dos professo- alguns resultados
res do ensino primário; desdém com a histó- Uma coisa é certa: "os efeitos-professor fo-
ria. Bressoux (1994) acrescenta outras três: ram provados e ficou demonstrado que o seu
confusão (possível) entre causa e correlação; impacto é mais poderoso do que aquele das es-
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
colas" (Bressoux, 1994:127). Na explicação esta- cia dos exemplos; tempo concedido aos alunos
tística da variância do aproveitamento escolar para responderem; organização do curso; modali-
em turmas de seconde,2 o ganho da variância dades de estabelecimento e de manutenção da
explicada pelo estabelecimento é só de 5%, en- matéria; clima da turma; modalidade de decisões;
quanto é de cerca de 15% para a turma (e, por- taxa de comportamentos entusiastas.
tanto, para o professor) (Felouzis, 1997: 57). A o que podemos deduzir? Os alunos terão
última estimativa confirmada por Duru-Bellat e melhor desempenho escolar (de uma maneira
Mingat para o CP3: a inclusão da pertença a uma geral) se o seu professor:
turma aumenta em 19% o poder explicativo de • Efetivamente ensinou os conteúdos avalia-
um modelo estatístico. Numa pesquisa que in- dos: os alunos têm mais chances de apren-
cluiu 102 turmas do ensino primário, constatou- der e, portanto, de ter sucesso, quando o pro-
se, "para um aluno de desempenho exatamente fessor "executa" o currículo.
médio num teste inicial, um-desvio de 30 pon- • Concedeu tempo suficiente para sua disci-
tos no teste final, dependendo de o aluno ter sido plina (sendo que esse tempo varia de forma
escolarizado com o professor mais, ou com o considerável de um para outro professor).
menos, eficaz" (Bressoux, 1994: 135).
• Levou seus alunos a concederem o máximo
Mas quais são, de um lado, os fatores de tempo na tarefa (esse tempo pode variar
explicativos dessas diferenças e, de outro e de 50 a 90% para um ensino de Matemática).
conjuntamente, quais são as características dos
professores eficazes? • Destinou muito tempo a tarefas interativas.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar, para • Manifestou expectativas positivas e elevadas
evitar qualquer contra-senso, que a eficácia pe- com respeito aos seus alunos. Esse ponto foi
dagógica efetiva do professor é apenas parcial- intensamente confirmado pelos trabalhos de
mente dependente de variáveis de identificação Felouzis (1997) que, tendo distinguido dois
pessoal, tais como o sexo, o meio social de ori- grupos de professores do ensino secundário
gem, a formação pedagógica inicial ou os anos francês, os eficazes e os não-eficazes, pôde
de experiência na profissão (Bressoux, 1994: detectar nos 18 professores eficazes intensas
138). Esse resultado foi confirmado por Felouzis: expectativas positivas com respeito aos alu-
nos (visão ponderada do nível de suas capa-
as características individuais não exercem um
cidades; um tipo de relação que exclui qual-
verdadeiro efeito (1997: 26). Não existe o bom
quer desdém ou rejeição; julgamentos posi-
professor do ponto de vista da idade, do sexo, da
tivos em relação às potencialidades e às ca-
origem social ou do status (idem: 32). Isso por- pacidades para cada um progredir; práticas
que "a eficácia dos professores se constrói na pedagógicas centradas nos alunos e tenden-
interação escolar" (idem: ibidem). tes a valorizá-los; nível alto de exigência do
Portanto são as características pedagógicas que ponto de vista do trabalho e do nível de com-
c o n t a m . O mestre, não como indivíduo, mas como petência esperado, mas impondo-se sem
professor, colocando em prática um "comporta- autoritarismo). Por sua vez, os 16 professo-
mento pedagógico". Este já foi analisado sob uma res ineficazes desenvolvem concepções mui-
infinidade de pontos de vista (Durand, 1996: 12). to negativas sobre os alunos, seu fraco nível
Inúmeras têm sido as variáveis de processo estu- de competências e sua incapacidade para
dadas: instruções; perguntas; intercâmbios verbais; aprender, o que se traduz em práticas peda-
gógicas menos intensivas.
modalidade direta ou indireta do ensino; natureza
das retroações; nível de dificuldade das tarefas; taxa • Soube apresentar suas exposições de forma
de redundância das explicações; clareza e freqüên- clara.
2
NT Antepenúltima série do ensino secundário francês, equivalente ao 29 ano do Ensino Médio brasileiro.
1
NT C R : Cours Préparatoire. Última série da escola maternal francesa, antes do ensino primário, equivalente ao penúltimo ano da pré-escola
brasileira.
• Fez elogios ajustados, não muito freqüentes, cácia nunca poderá estar garantida. Em rigor:
que acompanharam os efetivos sucessos dos • As situações de ensino em sala de aula são
alunos. tais que essa atividade constitui uma tarefa
• Propôs retroinformações (feedbacks) corretivas, complexa, de múltiplas dimensões. Durand
de um modo afetivamente neutro e deixando (1996) ressalta algumas: um número elevado
ao aluno tempo suficiente para corrigir-se. de elementos interagindo; o caráter pluridi-
mensional de cada situação, a que se acres-
• Estruturou as atividades: propondo exercí-
centa o caráter heterogêneo dos alunos; a si-
cios de entrada nas seqüências; procedendo
multaneidade dos acontecimentos; a fra-
por etapas curtas, mas com ritmo permanen-
ca previsibilidade da situação; uma forte pres-
te e sem digressão, sempre sem temer a re-
são temporal. Essa complexidade é tal que
dundância; com um tempo importante de
somente uma e mesma forma de agir nem
prática dirigida coletiva, seguida de exercí-
sempre pode produzir os mesmos efeitos.
cios individuais, mas cuidando de manter os
alunos envolvidos na tarefa; por último, ter- • Há, no ensino, uma "primazia do operativo"
minando com sínteses. (Durand, 1996: 69). A ação é guiada por crité-
rios pragmáticos, e não lógicos ou formais. Ela
• Soube interrogar os alunos de maneira efi- é freqüentemente conduzida na urgência, por
caz: ao colocar numerosas perguntas; ao con- operadores com uma "racionalidade limitada"
ceder tempo entre uma e outra pergunta; ao (idem: 73), que trabalham com uma "alça de
interrogar todos os alunos, numa ordem mira prática" (idem: 34) d o m i n a n t e . O essen-
estabelecida; articulando o lugar concedido cial é, para o professor em campo, encontrar
às intervenções orais espontâneas segundo em cada caso, ou em cada categoria de casos,
o público (pois essa prática só é positiva com "respostas satisfatórias" (idem: 34), e não apli-
um público desfavorecido); e desconfiando car um modelo, a priori, que seja válido inde-
das respostas colegiais. pendentemente de qualquer contexto.
Clermont Gauthier (2001) faz uma apresen- • Justamente, os efeitos dos diversos fatores
tação do conjunto dessas qualidades e atitudes identificados variam com o contexto de sua
que tornam o professor eficaz, ordenando-as aparição (Bressoux, 1994: 106) em função,
segundo duas grandes funções (gestão da maté- dentre outros fatores, do nível da série ou ano
ria; gestão da turma), sendo que cada uma é de escolaridade considerado e das caracte-
abordada sob um triplo ponto de vista: planeja- rísticas sociais do alunado. É por isso que "en-
mento, interação e avaliação. Nesse conjunto, sinar constitui uma profissão que acontece
Bressoux (1994) vê dois fatores que surgem de num contexto demasiado complexo para que
forma constante e positiva: se permita reduzir a uma lista de competên-
• o tempo de envolvimento na tarefa; cias" (Gauthier, 2001: 214). Não se pode iso-
lar fatores que seriam geralmente eficazes de
• a estruturação do ensino.
forma independente da particularidade das
situações onde eventualmente poderão agir.
Que uso podemos fazer desses • Em situações e contextos de grande comple-
resultados? xidade, nenhum fator poderá agir isolada-
Será que temos de nos conformar com o per- mente: "esses fatores estão interligados, de
tal forma que suas combinações demons-
fil que parece assim resultar do professor eficaz?
tram ser mais importantes que o seu efeito
Será que tudo isso tem de ser feito (Gauthier,
isolado" (Bressoux, 1994: 106). São as com-
2001: 214) e será que assim estaremos assegura- binações, as constelações de fatores que po-
dos do sucesso? Acreditar nisso seria recair na dem, de preferência, produzir efeitos. Con-
trilha do cientificismo (a ciência tem resposta tudo, se levarmos em consideração que os
para tudo) e do aplicacionismo (seria suficiente processos escolares caracterizam-se por
apenas aplicar modelos científicos para ter su- múltiplos efeitos de interação (idem: 128), de
cesso). Sem dúvida, há também muitas outras onde se deduz a existência de "efeitos de
coisas a serem feitas para se ter sucesso; e a efi- composição" (Duru-Bellat e Mingat, 1994:
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
143), pode-se confirmar que toda pesquisa mente operando, isto é, as vias e os mecanismos
geral do "bom professor" será em vão. pelos quais, e graças aos quais, existe um "efei-
• Finalmente, é por isso que seria convenien- t o " . O que implica sabermos mais, de fato, "so-
te, aqui e sempre, fazer, segundo a expressão bre os fatores que influem no aproveitamento
de Clément Gauthier, um "uso prudente" escolar dos alunos" (Bressoux, 1994: 128).
(1997:217) dos resultados da p e s q u i s a . O que Duas grandes questões são, então, apresentadas:
isso quer dizer? Não se deve sucumbir nem 1. Quais são os fatores que incidem na apren-
à "mística" da todo-poderosa ciência, nem à dizagem dos alunos? E qual seria a impor-
mística simétrica do professor condenado à tância relativa da qualidade do desempe-
impotência e à hesitação pela complexidade nho do professor no sucesso escolar dos
da sua profissão; mas, sim, utilizar os resul- alunos?
tados dos trabalhos de pesquisa como ferra-
2. Quais seriam as vias e os mecanismos den-
mentas intelectuais ou como grades de
tro da importância relativa da eficácia even-
inteligibilidade para estar informado e tam-
tual dos professores?
bém para refletir sobre a sua própria prática,
tendo em vista, eventualmente, reajustar as
práticas e os meios implementados refe- No que se refere à questão dos fatores
renciando-os às finalidades perseguidas.
que incidem no desempenho escolar
"Trata-se de tentar incorporar na sua práti-
ca, em função de seu contexto e de suas prá- dos alunos
ticas profissionais, alguns saberes, savoir- Temos de considerar, junto com Jean
faire ou formas de ser, a fim de aumentar seu Cardinet, que um desempenho (do aluno) obser-
'efeito-professor' " (Gauthier, 2001: 214). vado "é uma função com muitas variáveis" (1991:
Entretanto, será que temos grades de 210). Poderíamos considerar o "valor escolar" do
inteligibilidade suficientemente pertinentes e aluno; mas, também, a sua história escolar; o con-
potentes? texto social da prova de avaliação; as interações,
presentes e passadas, com o(s) professor(es); a
capacidade do aluno em decodificar o problema
Para progredir na questão que lhe é colocado etc. Em todos os casos, torna-
se necessária uma leitura plurifatorial do sucesso
da eficácia dos professores (ou do fracasso). Isso permite entender que o de-
Temos rigorosamente que reconhecer, citan- sempenho do professor vem a ser apenas um fa-
do Bressoux, que se os efeitos-professor foram tor dentre vários outros, e que não podemos
já provados e se, assim, nossos conhecimentos supervalorizá-lo (se é que não devemos, não
apresentaram progressos, "temos ainda muito obstante, subestimá-lo). O professor não é o úni-
pouco conhecimento a respeito dos fatores que co responsável. E ele é só em parte responsável.
favorecem os desempenhos dos alunos" (1994: Dentre todos esses fatores que interagem, po-
108). Por meio de que processos mediatários os deríamos distinguir dois subconjuntos: os fatores
fatores identificados (e isolados) pelas pesqui- relativos ao educando e aqueles relativos aos con-
sas sobre os efeitos-professor chegam a produ- textos dos aprendizados. Pelo lado do educando,
zir, justamente, seus efeitos? Seria preciso não poderíamos evocar: a bagagem hereditária (com
apenas, como salientam Duru-Bellat e Mingat, todas as discussões que ela suscita); a personalida-
descrever de forma sistemática e precisa "a efe- de; as aptidões; a história, em particular a escolar;
tiva variedade das práticas", mas também "de- as atitudes, e a relação com a "coisa escolar"; os pro-
terminar [...] as práticas eficazes, ou seja, aque- jetos; a vontade; o nível de comprometimento. Pelo
las que se revelarem efetivamente ligadas à qua- lado dos contextos, podemos identificar três gran-
lidade do ensino" (1994: 139). É preciso, ainda, des séries de fatores: o contexto de vida (o meio so-
ir além dessa pesquisa de correlações (que en- cial e cultural); o contexto da aprendizagem (escola,
cerra no paradigma processo-produto) para ten- currículo, professor e "método"); o contexto da ava-
tar identificar as causalidades que estão efetiva- liação. O professor, em rigor, só viria a ser mais um
fator de contexto entre muitos outros, o que torna dem mais ser estudadas de forma simplesmente
redutora a pesquisa febril das correlações entre o apriorística e no abstrato ("competências social-
desempenho do professor e o aproveitamento es- mente definidas", Felouzis, 1997: 19). É preciso
colar dos alunos. Essa pesquisa deve situar-se num descrever e analisar os comportamentos realmen-
plano mais amplo, que tenha em conta, pelo me- te praticados quando se ensina a alunos concre-
nos, algumas dimensões principais dos processos tos: reencontramos a necessidade de descrever de
intervenientes. Só então é que, talvez, possamos maneira sistemática a efetiva variedade das prá-
responder mais facilmente à segunda pergunta. ticas. Porém não é fácil descrever o professor es-
pecialista: qual seria a importância relativa dos
conhecimentos, das competências, da experiên-
No que se refere à questão das vias cia, das rotinas (Durand, 1996: 27-32)?
reais da eficácia pedagógica: Por último, como medir a eficácia (de um
três grandes áreas de pesquisa ensino de qualidade)? Além de essa questão abrir
Seria necessário permitir-se uma visão de con- a segunda área de pesquisa (o que significa ter
junto do processo geral de ensino-aprendizagem. sucesso, para o aluno?), teríamos de reconhecer
Vários pesquisadores contemporâneos têm que a identificação de indicadores da eficácia do
proposto tais modelos. Bru (1991) propõe um ensino é problemática (Durand, 1996: 9). Assim
modelo da "interação contextualizada", o qual, como também é problemática a escolha dos
no âmbito de uma abordagem sistêmica, conce- métodos da pesquisa. Duru-Bellat e Mingat pro-
de importância igual a três subsistemas: ensino; puseram medir "a eficácia pedagógica" por meio
aprendizagem; e contexto. Gauthier (1997) pro- da preeminência dos desempenhos finais mé-
põe um modelo "eclético", fazendo da classe o dios obtidos por alunos com características in-
marco de observação privilegiada, sendo que ele telectuais e sociais médias. Mas isso iria, então,
próprio está inscrito dentro de um marco finali- diferenciar eficácia de eqüidade, que é a capaci-
zado, privilegiando duas funções de base do en- dade de igualar os resultados para alunos com
sino: a gestão da matéria e a gestão da classe. características diferentes (1994:134-35). Por sua
vez, Felouzis mede o "efeito-professor" pelo di-
Ao levantar a questão da necessidade de evitar
ferencial que existe entre a média da turma e a
formalizações redutoras que fariam esquecer a
média dos exames comuns em finais de ano,
complexidade da profissão de professor (Gauthier,
todo o resto permanecendo igual (sexo, idade,
1997:17), preferimos ressaltar que um melhor co-
origem social, escore inicial). Essas maneiras de
nhecimento dos "efeitos-professor" reside nos pro-
proceder demonstram uma certa astúcia e levam
gressos que serão atingidos em três grandes "can-
a resultados interessantes. Mas a área de pesqui-
teiros de obras", suscetíveis de nos esclarecer so-
sa não se encontra, ainda, fechada.
bre a natureza e a realidade de um "modo de agir
didático" do professor (Hadji, 1992: 158).
Área 2: as pesquisas sobre o sucesso
Três grandes áreas de pesquisa escolar dos alunos
Área 1: pesquisas sobre a qualidade do
desempenho de um professor Se o professor "faz a diferença", qual
seria ela? Como imaginá-la? Como
o que seriam um ensino e um professor de evidenciá-la?
qualidade? A resposta não é evidente. Isso de-
pende dos fins e dos objetivos a que nos propo- Gauthier, 1997:131
mos (Avanzini, 1991).
A eficácia só existe quando está vinculada a
objetivos. Mas será que a qualidade se resume em Em primeiro lugar, o que significa ter suces-
eficácia? É nisso que consiste a totalidade do pro- so? Não deveríamos falar em fracasso tão cedo
blema das competências do professor, e do pro- nem tão rapidamente, para não sermos vítimas
fessor especialista. Essas competências não po- de imagens e de hierarquias sociais polêmicas.
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Toda noção de sucesso ou de fracasso é relativa. tão escolher para explicar as diferenças na eficá-
Podemos vislumbrar uma trajetória, um lugar cia? Eis todo o problema das variáveis de coman-
ocupado, um poder adquirido, algumas compe- do e das modalidades de regulagem da ativida-
tências adquiridas: tudo isso vem a ser assunto de pedagógica. A área é extensa. Durand distin-
de apreciação. Não devemos nos deixar sucum- gue cinco níveis de regulagem (ordem; partici-
bir ao mito da trajetória ideal. Isso porque só pação; trabalho; aprendizagem; desenvolvimen-
existe sucesso ou fracasso em relação a projetos. to). Teremos de nos indagar acerca da perti-
Por último, o fracasso escolar não é uma doen- nência da escolha dos meios e dos objetivos in-
ça, é preciso fazer uma leitura "em positivo" termediários (Durand, 1996: 134).
(Charlot, 1997) das experiências escolares. Portanto, não é fácil identificar "os mecanis-
Podemos então tomar como único indica- mos pedagógicos que atuam na eficácia dos pro-
dor de sucesso os desempenhos escolares dos fessores" (Felouzis, 1997:30). Porém surge já um
alunos? Não seria necessário considerar pelo resultado essencial: essa eficácia se constrói na
menos três espaços de investigação: a ativida- interação escolar. É esse espaço de interações
de ou os comportamentos; as aprendizagens; o que deve tornar-se objeto privilegiado de pes-
desenvolvimento (Durand, 1996: 83)? Bressoux quisas, mesmo quando essas interações são
salienta que nós, com freqüência, nos conten- muito difíceis de ser identificadas.
tamos com resultados obtidos em testes de lei-
tura e de matemática, e que isso provoca uma
visão restritiva da eficácia (1994: 125). Indo na Conclusão
mesma direção, Gauthier deplora a utilização Além de resultados às vezes discordantes
única de testes padronizados centrados em pro- (Felouzis, 1997: 30), podemos considerar
cessos intelectuais (1997: 105). Pois, tal como como comprovada a existência de efeitos-pro-
escreve Cardinet, não deveríamos nos conten- fessor. Entretanto, isso não significa que pos-
tar com "desempenhos escolares brutos, exces- samos colocar à disposição dos professores
sivamente ligados ao conteúdo curricular de um modelo a ser aplicado. As mesmas manei-
cada disciplina e à mercê de seu estudo em aula" ras de agir não são obrigatoriamente eficazes
(1991: 210). E, em último caso, seria melhor ra- com todos e em todos os contextos. É difícil
ciocinar em termos de "progresso dos alunos" generalizar. Se, de um lado, é necessário, nes-
(Felouzis, 1997: 39), do que em termos de re- sa área, ajudar os professores a se livrarem de
sultados brutos. suas crenças espontâneas, cuja força e fre-
qüência se explicam (Durand, 1996: 192) pelo
caráter "não-observável e retardado no tem-
Área 3: as pesquisas sobre a "causalidade" po dos efeitos das ações que visam ao apren-
pedagógica dizado dos alunos" (ou, dito de outra forma,
Finalmente, tudo conduz a esta área, pois a pela distância que sempre existirá entre ensi-
dificuldade é a de fazer o nexo entre algumas no e aprendizagem), do outro, pela "ausência
práticas de professores (área 1) e o aproveita- de conhecimentos científicos confiáveis e
mento escolar de alunos (área 2) exaustivos para organizar essas ações" (a au-
Seria preciso poder mostrar como, em rigor, sência de um modelo científico de ação), não
os professores fazem as diferenças; como o en- se pode, justamente, dar a acreditar que os re-
sino produz seus efeitos (Gauthier, 1997: 39 e sultados dos trabalhos atuais sobre a eficácia
105). Ora, os resultados escolares obedecem, nós do ensino são suficientes para fundar práti-
já vimos, a um sistema de causalidade comple- cas de formação e de ensino t o t a l m e n t e
xo (Durand, 1996: 5). Isso porque, nós já ressal- confiáveis. Se a pesquisa tem produzido re-
tamos, não são os comportamentos pedagógi- sultados notáveis (o nosso ponto 2), ainda res-
cos isolados, mas sim alguns pattems, ou mistu- ta muito para ser compreendido (o nosso pon-
ras de práticas, que podem produzir seus efeitos to 3) no marco de paradigmas de pesquisa a
(Duru-Bellat e Mingat: 141). Quais variáveis en- serem atualizados (o nosso ponto 1).
Isso porque "a pesquisa da eficácia ou da communication. Cousset. Fribourg: Del Val/IRDR 1991. p.
competência, na base de saberes positivos veri- 199-213.
CHARLOT, B. Du rapport au savoir. Eléments pour une théorie.
ficados, constitui um objetivo legítimo e desejá-
Paris: Anthropos, 1997.
vel" (Gauthier, 1997: 248). DURAND. M. Lenseignement en milieu Scolaire. Paris: PUF,
1996.
DURU-BELLAT, M.; MINGAT, A. La variété du fonctionnement
de l'école: identification et analyse des 'effets-maítres'. In:
Bibliografia CRAHAY, M. (Ed.). Evaluation et analyse des
AVANZINI, G. Lécole, d'hier à demain. Toulouse: Éditions Eres, établissements de formation. Bruxelles: De Boeck
1991. Université, 1994. p. 131-45.
BRESSOUX, R Les recherches sur les effets-écoles et les FELOUZIS, G. Lefficacité des enseignants. Paris: PUF. 1997.
effets-maítres. Revue Française de Pédagogie. n. 108. p. GAUTHIER. Clermont. Leffet enseignant. In: RUANO-
91-137, 1994. BORBALAN, J. C. (Ed.). Éduquer et former. Auxerre:
BRU, M. Une nouvelle approche des conduites d'enseignement: Éditions Sciences Humaines. 2001. p. 201-14.
les recherches sur Ia gestion des apprentissages. In: GAUTHIER, Clermont (Ed.). Pour une théorie de Ia pédagogie.
A.F.I.R.S.E., Les nouvelles formes de Ia recherche en Bruxelles: De Boeck Université, 1997.
éducation. Matrice-Andsha, 1990. p. 253-60. HADJI, Charles. Penser et agir l'éducation. Paris: ESF Éditeur,
Les variations didactiques dans l'organisation 1992.
des conditions d'apprentissage. Toulouse: Éditions SCHÕN. D. A. The reflective practitioner. New York: Dossel
Universitaires du Sud, 1991. Bass, 1983.
CARDINET, J. Lapport socio-cognitif à Ia régulation interactive. Educating the reflective practitioner. San Fran-
In: WEISS, J. (Ed.). L'évaluation: problème de cisco: Jossey Bass, 1987.
As docentes
e sua fformação
Maria Helena Guimarães de Castro"
Inep/MEC
o esforço empreendido na direção da cação para Todos, que previa elevar a, no míni-
universalização do ensino básico para a popula- mo, 94% a cobertura da população em idade es-
ção de 7 a 14 anos, no país, obteve ótimos resul- colar até 2003.
tados no final da década. De 1991 a 1999, a taxa Garantida a entrada na escola, o problema
de escolarização líquida, que fornece a propor- passa a ser de assegurar as condições de perma-
ção real de crianças, nessa faixa etária, estudan- nência no sistema, bem como o sucesso esco-
do no Ensino Fundamental, saltou de 84% para lar. Houve uma evolução bastante positiva nos
95%. Foi um crescimento extraordinário, dado o indicadores de fluxo, principalmente nas primei-
atraso que tivemos na década anterior, com a es- ras séries do Ensino Fundamental. A promoção
colarização variando apenas de 80% a 84%. Em passou de 60% para 74%, na média do Ensino
1998, o Brasil conseguiu antecipar e superar a Fundamental, entre os anos de 1991 a 1999. Na
meta estabelecida pelo Plano Decenal de Edu- 1ª série, a repetência diminuiu de 48% para 39%,
"Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e Secretária de Ensino Superior do MEC.
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
no mesmo período, enquanto na 5ª série caiu de zonas, Maranhão, Ceará e Alagoas, que em
38% para 23%. A taxa de distorção idade/série 1998 tinham menos de 90% de crianças de 7 a
caiu de 64,1%, em 1991, para 46,6%, em 1998, e 14 anos no Ensino Fundamental, conseguiram
41,7% em 2000. A redução continua acentuada superar esse patamar em 1999. Se examinar-
nas séries iniciais, tendência que certamente mos as taxas de escolarização de 1994, verifi-
está associada à iniciativa de muitos sistemas de camos que o Nordeste superou em muito o
ensino de implantar o sistema de ciclos, elimi- patamar em que se encontrava, que era de 77%
defluxo,
nando dessa forma o problema da reprovação. O melhor escolarização líquida.
como a menor pressão
demográfica, vem influenciando uma nova Contudo, a universalização do ensino
tendência de diminuição das matrículas nas precisa avançar verticalmente, na direção do
séries de lª a 4ª (gráfico 1). Nas séries de 5ª a Ensino Médio. Na faixa etária dos 15 aos 17
8ª, delineia-se uma fase de estabilidade, evi- anos, os jovens que estão matriculados na
denciada pela menor pressão das séries ini- escola representam 84,5% do total (taxa de
ciais. atendimento escolar de 1999). Entretanto, a
grande maioria não está efetivamente cur-
sando o Ensino Médio: eles ainda estão ten-
tando completar o Ensino F u n d a m e n t a l .
Apenas 32,6% dos jovens podem ser compu-
tados nas escolas do Ensino Médio.
Mas uma outra tendência apontada pelos
últimos dados é que os alunos em atraso escolar
estão buscando cada vez mais o ensino de jovens
e adultos, diminuindo a demanda sobre o ensi-
no regular. A matrícula inicial nos cursos presen-
ciais de 1ª a 4a série apresentou um aumento de
37%, de 2000 a 2001. A matrícula nos cursos de
nível médio cresceu 15%. A Educação de Jovens
e Adultos (EJA) incorporou ao sistema perto de
Fonte: Inep/MEC
410 mil pessoas - 70% no Ensino Fundamental e
Entretanto, ainda é necessário completar a 26% no Ensino Médio - interessadas em concluir
universalização da educação básica em dois sen- seus estudos. No mesmo período, o Ensino Mé-
tidos. No plano regional, o Norte e o Nordeste dio regular cresceu apenas 2,7%.
do país permanecem com taxas inferiores à meta A maior demanda deve voltar-se, assim, para
estabelecida e são essas duas regiões que con- o Ensino Superior. Há cada vez mais Concluintes
centram cerca de 60% dos cerca de um milhão no Ensino Médio para as vagas disponibilizadas
de crianças fora da escola. Segundo os últimos pela universidade. Mesmo assim, as universida-
cálculos de escolarização, cruzados com as esti- des públicas preenchem todas as suas vagas, no
mativas populacionais do IBGE, para o ano de início do ano, mas perdem alunos no meio do
1 curso, por causa da evasão. As universidades pri-
1999, os estados de Rondônia, Acre, Maranhão
e Piauí eram os que ainda mantinham a escola- vadas, por sua vez, sequer conseguem preencher
rização abaixo dos 92%. todas as suas vagas nas matrículas iniciais, e fi-
Embora sejam os últimos a completarem a cam, assim, com vagas ociosas durante o ano.
tarefa da universalização do ensino, os estados Para cada 100 estudantes que ingressaram na
do Norte e do Nordeste vêm melhorando, ano universidade em 1994, 70 concluíram seus cur-
a ano, suas posições. Estados como Acre, Ama- sos no ano de 1999. Nas instituições federais, essa
As taxas de escolarização e de atendimento para o ano 2000 serão conhecidas apenas quando o IBGE disponibilizar os dados da
contagem populacional por idade.
relação (Concluintes por ingressantes) alcança- Base legal da formação para
va 78%, enquanto nas instituições privadas fi-
cava em 70%. a educação básica
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
Gráfico 2
cação (LDB - Lei n9 9.394/96), artigo 62, e o De-
Concluintes no Ensino Médio - Vagas no creto n8 3.276, de 6 de dezembro de 1999, a for-
Ensino Superior - Brasil - 1 9 9 1 - 2 0 0 0 mação de docentes para atuar na Educação Bási-
ca será feita em nível superior, em curso de Li-
cenciatura, de graduação plena, em universida-
des e instituições superiores de educação. A úni-
ca exceção admitida pela LDB para que se formem
professores que não em Licenciaturas Plenas para
o exercício de Magistério na educação básica, é a
que se faz em nível médio, na modalidade Nor-
mal, que passa a ser formação mínima para o exer-
cício do Magistério na Educação Infantil e nas
Fonte: Inep/MEC
quatro primeiras séries do Ensino Fundamental.
Com esse quadro, o grande compromisso é A Licenciatura curta ou de lº grau - criada
com a qualidade do ensino. É preciso diminuir a pela Lei nº 5.692/71, artigo 30, como formação
evasão e melhorar o desempenho escolar. Com mínima para o exercício do Magistério no ensi-
relação aos docentes, os desafios são principal- no de lº grau, da lª à 8ª séries - foi extinta em
mente o aprimoramento da formação inicial e conseqüência do que dispõe o artigo 62 da LDB.
continuada de professores, articulado a uma Apesar disso, ainda continua a ser ministrada em
política de apoio e incentivo ao seu desenvolvi- algumas instituições de Ensino Superior.-
mento profissional, tanto em termos das condi- A Licenciatura Plena - a ser ministrada pelos
ções de trabalho, como salário e carreira. institutos superiores de educação, segundo o
Um dos grandes sinalizadores da política artigo 79 da Resolução CNE/CP n9 1, de 30 de
nesse sentido tem sido o Fundo de Manutenção setembro de 1999 - pode ser de dois tipos: o cur-
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de so Normal Superior, para Licenciatura de profis-
Valorização do Magistério (Fundef). Os resulta- sionais em Educação Infantil e de professores
dos apontam tanto para a elevação do nível sa- para os anos iniciais do Ensino Fundamental; e
larial do Magistério quanto para o aumento de os cursos de Licenciatura, destinados à forma-
gastos em atividades de capacitação docente, ção de docentes dos anos finais do Ensino Fun-
reforma e ampliação de escolas e aquisição de damental e do Ensino Médio, organizados em
equipamentos e de material didático. habilitações polivalentes ou especializadas, por
A implantação de sistemas nacionais de ava- disciplina ou área de conhecimento. Ambos de-
liação na educação básica (Sistema Nacional de verão ter duração mínima de 3.200 horas, com-
Avaliação da Educação Básica - Saeb; Exame Na- putadas as partes teórica e prática.
cional do Ensino Médio - Enem) permite identi- Além desses, nos termos da Resolução
ficar as principais deficiências na aprendizagem CNE n 9 2/97, poderão ser desenvolvidos pro-
dos a l u n o s . O nível de escolaridade do professor gramas especiais de formação pedagógica (es-
exerce, aqui, grande influência. O ganho no ren- quemas I e II), destinados aos portadores de
dimento dos alunos manter-se-á ascendente à diploma de nível superior que desejem ensi-
medida que se elevar a escolaridade do professor nar nas séries finais do Ensino Fundamental
e seu grau de satisfação profissional. ou no Ensino Médio, em áreas de conheci-
' Ver Pareceres CNE/CES nº 630/97 e CNE/CES nº 431/98, com recomendação para se tornar plena por meio da Resolução CNE/CES nº 2,
de 19/5/1999.
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Tabela 1
Tabela 2
Número de escolas e matrículas no Ensino Médio e na habilitação Magistério
Brasil - 1 9 9 8 - 2 0 0 0
Ano Nº de escolas Matrículas
Tabela 3
Brasil-1994-1999
Os cursos de Pedagogia, por sua vez, apre- concentra grande parte dos e s t u d a n t e s . O
sentaram, em 1999, 167 mil alunos matricu- Nordeste cresceu 48%, porém manteve a mes-
lados, sendo 74 mil no Sudeste e 30 mil no ma participação de 18% nas matrículas. Pelo
Nordeste. A Região Sudeste cresceu 37%, des- lado dos Concluintes, estes foram 29 mil no
de 1994, abaixo da média do país, mas ainda ano de 1998.0 Sudeste formou 15 mil e o Nor-
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
deste, 4 mil. Em resumo, o Sudeste matricu- crescimento de docentes com nível superior.
lou cerca de 44% do total de estudantes em Na Educação Especial, com um número bem
Pedagogia, no ano de 1999, enquanto forma- menor de alunos e professores, a proporção
va 52%, no ano a n t e r i o r . O Nordeste, por sua destes com formação superior é bem maior,
vez, matriculou 18% dos estudantes, enquan- chegando a 60% nas escolas públicas; as es-
to formava 14%. colas particulares fizeram um ajuste, com
crescimento de 75% dos professores com
Perfil atual das funções grau superior, atingindo agora uma propor-
ção de 40%.
docentes segundo a A partir da LDB, iniciou-se a integração
formação das creches no sistema educacional brasilei-
Os dados preliminares do Censo Escolar ro. Os censos escolares passaram a incluir to-
de 2001 indicam um total de 2,6 milhões de dos os dados referentes a creches. Os anos de
funções docentes no país, 3 com um cresci- 1998 e 1999 foram de regularização do cadas-
mento de 4,2% em relação ao ano anterior e tro de estabelecimentos, docentes e matrícu-
de 21,6% acumulados desde 1 9 9 6 . O ensino las. A partir de 1999, os registros de matrícu-
de jovens e adultos cresceu muito nos últimos las se regularizaram, alcançando em 2001 mais
anos, sendo acompanhado do maior cresci- de um milhão de crianças atendidas. As fun-
mento registrado pelas funções docentes, en- ções docentes cresceram 30,5% nas creches e
tre todos os níveis de ensino. Desde 1996, as 16% nas pré-escolas, de 1999 a 2001. 4
matrículas da EJA
cresceram 35%, en- Tabela 4
quanto os docentes Número de funções t ocentes por nivel d e ensino e proporção no setor público
praticamente dobra- Brasil - 2 0 0 1
ram seu número. Esse Funções docentes em 2001*
crescimento de do-
centes na EJA foi Nível de ensino Proporção
Crescimento Proporção no
acompanhado de Números absolutos com formação
1996-2001 setor público
superior
maior qualidade no
grau de formação dos Total 2.582.369 18,7 80,0 53,7
próprios professores, Creche** 63.012 30,5 57,2 12,7
na medida em que se PRÉ-ESCOLA 248.470 13,2 66,4 24,7
constata um cresci- Classes de alfabetização 41.094 -45,6 61,6 9,8
m e n t o ainda maior Fundamental de 1ª a 4ª série 809.061 4,2 87,1 27,1
entre os docentes de
Fundamental de 5ª a 8ª série 770.077 25,9 83,5 74,4
nível superior (tabe-
Ensino Médio 448.328 37,2 75,0 88,8
las 4 e 5).
Educação Especial 42.628 30,1 46,4 48,5
Tanto na Educa-
Educação de Jovens e Adultos 159.699 99,9 85,0 63,7
ção Infantil, como na
Educação Especial, os Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: * dados preliminares. " 0 crescimento nos creches só pode ser mensurado
dados apontam tam- em relação ao ano de 1999. Obs: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade
bém para um grande de ensino e em mais de um estabelecimento escolor.
3
o conceito de função docente ó utilizado para contabilizar todas as situações de docentes que atuam em mais de uma área de conhecimen-
to ou em mais de um estabelecimento escolar.
As funções docentes com nível supe- Nordeste 54.410 5,9 75,9 23.960 10,7 81,1
rior são requisito necessário, pela LDB. Sudeste 66.962 40,5 58,8 38.858 31,8 65,4
Entretanto, creches e pré-escolas são Sul 22.564 32,1 64,3 11.028 36,9 58,4
compostas em sua maioria por profes- Centro-Oeste 7.833 32,8 61,2 6.089 26,7 69,3
sores de nível médio, com Magistério
c o m p l e t o . R e p r e s e n t a m m a i s de 6 0 % do Fonte: Inep/MEC - Seec, Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)
suem formação em nível superior, enquanto ficação dos docentes é necessária, as escolas
nas séries de 5 a a 8 a , os docentes com forma- particulares alteraram a proporção de 79%
ção superior representam 7 4 % . O número de para 84%, no mesmo período, enquanto nas es-
funções docentes cresceu 14%, no período de colas públicas o percentual manteve-se próxi-
1996 a 2001, enquanto o crescimento dos mo dos 73% (tabela 5).
professores de nível superior, no mesmo pe- Dentro do que recomenda a lei vigente,
ríodo, foi de 30%. as funções docentes em exercício nas séries
As escolas particulares possuem menor nú- de 1 a a 4 a precisam ter, no mínimo, Magisté-
mero de professores do que as escolas públi- rio completo. Atualmente, quase 90% das
cas, porém o ajuste foi maior no sentido do au- funções docentes estão enquadradas nesse
mento do grau de formação. Nas séries de lª a requisito. Se formos considerar apenas os
4ª, em que a proporção das funções docentes docentes com formação superior, com Ma-
com formação superior não é alta, as particu- gistério ou Licenciatura, esse percentual cai-
lares registraram alteração de 26% para 41%, ria para 24%. Em uma perspectiva mais fle-
no período de 1996 a 2001. Nas escolas públi- xível, restam pelo menos 11% de professores
cas, a proporção ainda não superou os 25%. que precisam agregar o curso Normal aos
Nas séries de 5a a 8 a , em que uma maior quali- seus currículos (tabela 7).
Tabela 7
Ensino Fundamental
Pré-Escola Ensino Médio
Grau de formação 1ªa 4ª série 5ª a8ª - série
1996 2000 1996 2000 1996 2000 1996 2000
Total de docentes 219.517 228.335 776.537 815.079 611.710 749.255 326.827 430.467
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
No máximo Fundamental completo 16,1 9,3 15,3 8,1 1,0 0,6 0,3 0,1
Médio sem Magistério 4.3 4,4 3,3 3,3 6,6 6,1 6,4 6,1
Magistério 61,4 63,2 61,1 64,0 18,7 19,2 6,9 5,3
Superior 18,2 23,1 20,3 24,6 73,7 74,1 86,4 88,4
- Sem Magistério e sem licenciatura 0,3 0,5 0,3 0,4 2,2 2,2 7,5 6,2
- Com Magistério e sem licenciatura 1,7 3,5 1,5 2,9 3,5 4,7 4,6 6,4
- Com licenciatura 16,3 19,1 18,5 21,3 68,0 67,2 74,3 75,8
Fonte: Inep/MEC - Seec. Obs.: As funções docentes contobilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino
e em mais de um estabelecimento escolar.
Nas séries de 5a a 8a, em que a determina- dade, mas esse movimento ainda não conse-
ção legal vai no sentido de que todos os profes- guiu causar impacto na proporção dos docen-
sores tenham formação superior com Licenci- tes que já possuem Licenciatura completa. Des-
atura completa, o percentual de cobertura da se modo, cerca de 25% dos docentes, com for-
legislação está ainda em 67%. No período 1996- mação média, com ou sem Magistério, preci-
2000, houve uma tendência para o crescimen- sarão se adequar à legislação, formando-se no
to dos docentes com Magistério, com ou sem nível superior. Outros 7% precisarão se adequar
curso superior. Parece estar havendo um ingres- à legislação apenas acrescentando o curso de
so de professores com Magistério na universi- Licenciatura a seus currículos.
Os docentes no Ensino Médio completa. Atualmente, cerca de 76% das
funções docentes estão enquadradas nesse
o Ensino Médio incorporou 3,5 milhões
requisito. Restam pelo menos 12% de pro-
de novas matrículas, desde 1994. Em sete
fessores que precisam agregar à sua forma-
anos, cresceu o equivalente ao registrado nos
ção o curso de Licenciatura. Outros 11% de
14 anos anteriores, ou seja, 70% de cresci-
docentes ainda não possuem graduação su-
mento. Também o número de estudantes que
perior e, portanto, precisarão se adequar à
concluem esse nível de ensino cresceu. De
legislação (tabela 7). Professores com Ma-
1991 a 1994, o número de Concluintes havia
gistério estão ingressando na universidade
aumentado 40%, passando de 660 mil para
e adquirindo formação superior. A propor-
917 mil Concluintes. A partir de 1994, o siste-
ção dos docentes com nível médio e Magis-
ma promoveu um melhor fluxo escolar, al-
tério vem decrescendo, enquanto aumenta
cançando em 2000 um número duas vezes
aqueles com Magistério e formação superi-
maior de Concluintes (1.850 mil).
or. Entretanto, ainda lhes falta o curso de Li-
o Ensino Médio apresenta perto de 450 cenciatura.
mil funções docentes, pelos dados ainda
preliminares do Censo Escolar de 2001. Des-
ses, quase 90% têm formação s u p e r i o r . O nú- Os docentes
mero de funções docentes cresceu 37%, no
período de 1996 a 2001, refletindo pratica- no Ensino Superior
mente o mesmo crescimento dos professo- A expansão da matrícula no Ensino Médio,
res de nível superior (41%). No ano de 2000, que se acentuou nos últimos cinco anos, vem
de cada 100 novas funções docentes, 95 fo- provocando um aumento na demanda por va-
ram preenchidas com professores de nível gas no Ensino Superior. Em 1990, havia cerca
superior, sendo que 81 com Licenciatura. de 640 mil alunos Concluintes no nível médio e
Enquanto isso, outros 5% continuaram sen- aproximadamente 520 mil vagas no Ensino Su-
do de docentes com formação média, sem perior, o que estabelecia uma relação de prati-
Magistério. As escolas ainda estão absorven- camente 1,2 alunos por vaga. Em 1999, mais de
do professores com nível médio, principal- 1,7 milhão de estudantes concluiu o Ensino Mé-
mente em estados do Nordeste e do Centro- dio para cerca de 900 mil vagas oferecidas para
Oeste (tabela 8). o Ensino Superior, fazendo a relação aproximar-
As escolas particulares de Ensino Médio se de 1,9 alunos por vaga.
também possuem menor nú-
mero de professores do que Tabela 8
as escolas públicas, porém
Número de funções docentes no Ensino Médio por grau de formação
também aqui o ajuste foi
Brasil e Regiões - 2 0 0 0
maior no sentido do aumen-
to do grau de formação. As Ensino Médio
particulares alteraram a pro- Unidade da Formação média Formação superior
porção de docentes com ní- Federação Crescimento
Crescimento
N° absoluto (%) N° absoluto (%)
vel superior de 86% para 90%, 1996-2000 1996-2000
enquanto nas escolas públi- BRASIL 49.176 11,4 13% 380.679 88,4 35%
cas o percentual passou de
Norte 3.722 16,2 10% 19.268 83,8 45%
86% para 88%.
Nordeste 19.279 21,4 12% 70.767 78,4 34%
Dentro do que a LDB de-
Sudeste 14.037 6,5 10% 201.871 93,4 40%
termina, as funções docen-
tes em exercício no Ensino Sul 5.641 8,2 11% 62.932 91,5 19%
Médio devem ter formação Centro-Oeste 6.497 20,1 31% 25.841 79,8 34%
superior com Licenciatura Fonte: Inep/MEC - Seec. Censo Escolar 2001 (resultados preliminares}
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Nos seis anos que vão de 1994 a 2000, o Nesse universo, a proporção dos profes-
Ensino Superior incorporou um milhão de sores com pós-graduação, em cursos de
estudantes nos cursos de graduação. De 1997 Mestrado ou Doutorado, cresceu substanci-
a 2000 - o período de maior crescimento - a almente. Em 1999, 50% das funções docen-
taxa média de expansão foi de 11,5% ao ano. tes já eram ocupadas por professores com
Esse percentual é praticamente o mesmo grau de mestre ou de doutor, sendo que os
atingido pelo sistema em toda a década de professores com título de doutor represen-
1980 (11,8%). tavam 20% do total (tabela 9). Nas institui-
A rápida expansão da matrícula repercu- ções públicas federais e estaduais, a propor-
te, obviamente, no aumento do número de ção de professores titulados é bem mais alta.
professores no Ensino Superior, que também De cada dez funções docentes, pelo menos
vem se dando de forma acelerada. Em 1994, seis são de mestres ou doutores e, entre es-
contavam-se 141 mil professores em exercí- tes, pelo menos três são doutores. Nas insti-
cio em todas as instituições. Em 1999, esse tuições privadas, de cada dez funções docen-
número passou para 174 m i l . O crescimento tes, pelo menos quatro são de mestres ou
médio no período 1994-1999 foi de 4,2% ao doutores, entre os quais pelo menos um
ano, sendo que de 1998 a 1999 o crescimen- apresenta titulação no Doutorado.
to foi de 5,3%. o percentual de professores sem pós-gra-
Tabela 9
Fonte: Inep/MEC
duação apresentou uma grande queda, de lização mostrou uma pequena elevação, de
34,5% para 15%, no período de 1990 a 1999. 31,6% para 35%, no período 1990-1998, man-
Esses professores mantêm o mesmo percen- tendo-se nessa proporção em 1999. Nas insti-
tual de 15% tanto nas instituições públicas tuições públicas, os docentes com especiali-
como nas particulares. zação representam 23%, enquanto nas parti-
A categoria dos professores com especia- culares somam 45%. A proporção de profes-
sores com mestrado cresceu de 21% para 29% docente, referenciados em padrões de
e a de professores com doutorado, de 13% qualidade.
para 20% (gráfico 3). Novas tecnologias de informação nas es-
colas e como suporte a programas de edu-
cação a distância, inclusive voltados para
Gráfico 3 a formação continuada e para a capacita-
ção de professores.
Elaboração e disseminação de diretrizes
e p a r â m e t r o s curriculares nacionais,
abrangendo desde a Educação Infantil até
o Ensino Médio, passando pelo Ensino
Fundamental, pela Educação Indígena,
pela Educação de Jovens e Adultos e pela
formação de professores.
Implantação de sistemas nacionais de ava-
liação na educação básica: o Saeb e o Enem.
' A criação do Fundef, no sentido de promo-
ver maior eqüidade no financiamento do
ensino obrigatório e de assegurar condi-
Fonte: Inep/MEC ções mínimas para a remuneração mais
digna dos profissionais da educação, bem
como para sua formação.
A qualidade do ensino
A busca de qualidade e a promoção de Resultados obtidos
maior eqüidade do sistema de ensino pas-
saram a ocupar lugar de destaque na nova pel o Fundef
agenda das políticas de educação básica. A A lei que instituiu o Fundef (Lei nº 9.424,
correção do fluxo escolar foi uma das medi- de 24/12/1996) assegura a utilização de, pelo
das pelas quais se buscou combater a baixa menos, 60% (sessenta por cento) dos recur-
eficiência dos alunos e a pouca efetividade sos do Fundo para a remuneração dos pro-
do ensino. Como um dos resultados dessa fissionais do Magistério em efetivo exercício
política, o número de Concluintes do Ensino de suas atividades no Ensino Fundamental
Fundamental cresceu a uma taxa de 10% ao público.
ano, desde 1994. Por sua vez, a proporção de Estudos recentes realizados pelo MEC e pelo
estudantes em atraso escolar, que era de 60% Inep analisaram dados sobre os níveis salariais
em 1994, baixou para 42% no ano de 2000. dos docentes e chegaram a conclusões anima-
Mas outras estratégias também se interliga- doras a respeito desses níveis assim como sobre
ram nesse esforço: a formação desses docentes.
• o aprimoramento do sistema de forma- Um dos trabalhos5 analisou os dados de uma
ção inicial e continuada de professores, pesquisa amostrai, realizada pela Fipe/USP em
articulado a uma política de apoio e in- 300 redes públicas de Ensino Fundamental, com-
centivo ao seu desenvolvimento profis- preendendo a totalidade das redes estaduais e
sional. do Distrito Federal e as redes municipais perten-
• o desenvolvimento de sistemas de ava- centes às 26 capitais e mais 273 municípios.
liação de aprendizagem e do desempenho Uma das conclusões do estudo foi que:
Os reajustes foram maiores nas redes munici- cenciatura Plena. Dessa forma, a remunera-
pais em todas as regiões, o que é ainda mais sig- ção média total na região, que correspondia
nificativo, levando-se em conta que foi nessas a 49% da média nacional em 1997, ascende-
redes que aumentou substancialmente o núme- ra a 61% em 2000.
ro de docentes. Entretanto, mesmo as
redes estaduais reajustaram seus sa-
lários em níveis superiores ao da in- Tabelo 10
flação no período. Os maiores índices Remuneração média, em reais, dos professores com licenciatu-
foram concedidos aos profissionais ra do Ensino Fundamentai - 40h semanais 1 9 9 7 / 2 0 0 0
dos municípios e regiões mais pobres, Taxa de
com o que reduziu-se a distância en- Dez./1997 Jun./2000
crescimento
tre seus vencimentos e a média das
demais regiões. No Norte e no Nor- Municipal 1.079 1.299 20%
deste, em que pese transferirem re- BRASIL Estadual 965 1.266 31%
cursos aos municípios, os estados Total 1.005 1.278 27%
concederam aumentos médios em Municipal 821 985 20%
suas redes bem maiores do que os es-
Norte Estadual 780 968 24%
tabelecidos no Sul, no Sudeste e no
Centro-Oeste. Total 778 973 25%
Municipal 626 824 32%
Segundo o trabalho, a remunera- Nordeste Estadual 522 722 38%
ção média dos professores das redes Total 560 763 36%
públicas aumentou 29,5%, entre de- Municipal 1.268 1.531 21%
zembro de 1997 e junho de 2000. As Sudeste Estadual 1.125 1.554 38%
duas categorias funcionais mais repre- Total 1.165 1.545 33%
sentativas - os profissionais com for-
Municipal 955 1.168 22%
mação em nível médio na modalidade
Sul Estadual 811 954 18%
Normal e os portadores de curso supe-
rior com Licenciatura Plena - obtive- Total 855 1.030 20%
ram, nesse período, elevações salariais Municipal 750 1.002 34%
de 23% e 27%, respectivamente. A re- Centro-Oeste Estadual 924 1.186 28%
muneração média nacional dos profes- Total 880 1.141 30%
sores com nível médio completo na Fonte: DAF/MEC, Pesquiso Fipe/USP, 2000
modalidade Normal, que em dezem-
bro de 1997 era de R$578,00 para a jor-
nada de 40 horas, passou a R$710,00 em junho Analisando comparativamente a evolução da
de 2000. Já os docentes de formação superior remuneração dos docentes pertencentes às re-
com Licenciatura Plena passaram de R$1.005,00 des estaduais e municipais, verificou-se que, no
para R$1.278,00, no mesmo período e para idên- período, houve aumento médio de 33,3% nas
tica jornada. redes municipais e de 25,2% nas estaduais. Esse
Quando se analisaram os dados referen- foi um dos reflexos diretos da redistribuição dos
tes às várias regiões do país, constatou-se recursos que beneficiou intensamente os muni-
que o maior percentual de aumento da remu- cípios, justamente os que dispunham de meno-
neração ocorreu no Nordeste, onde a eleva- res possibilidades para arcar com essas eleva-
ção média foi de 59,7%, sendo de cerca de ções, antes da criação do Fundef.6
54% para os professores com modalidade No tocante aos professores com Licenciatu-
Normal e de 36% para os docentes com Li- ra Plena, as redes sediadas na Região Sudeste
0
Segundo informa o estudo, a inflação no mesmo período, medida pelo INPC/IBGE, foi da ordem de 12%.
concederam, no período de dezembro de 1997 maior da eqüidade nos salários dos professores
a junho de 2000, uma elevação salarial média no país, que é um dos objetivos declaradamente
de cerca de 33%. No Nordeste, os docentes com almejados na criação do Fundo.
essa mesma formação pertencentes às
redes estaduais foram os que obtiveram Tabela 11
os maiores aumentos, alcançando 38% Salário médio, em reais, dos professores
em média. Já dentre as redes munici- do Ensin o Fundamental, em escolas públicas - 40h semanais
pais, as maiores elevações salariais nes- Brasil-1996-1999
sa categoria a c o n t e c e r a m na Região Taxa de crescimento
1996 1997 1998 1999
Centro-Oeste, atingindo 34%, e no Nor- 1996-1999
deste, 32%. BRASIL 557 585 626 670 20%
Outro estudo7 analisou dados Norte 510 482 516 593 16%
extraídos das Pesquisas Nacionais por
Nordeste 345 354 423 451 31%
Amostra de Domicílio (PNAD), realiza-
Centro-Oeste 559 551 628 672 20%
das pelo Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística (IBGE). Chegou a con- Sudeste 709 778 845 893 26%
clusões que indicam melhorias salari- Sul 604 665 656 749 24%
ais e de formação profissional.
Fonte: Estimativas Inep/MEC-Seec a partir de dados IBGE/PNAD 1996, 1997, 1998 e 1999.
' Coelho. R i c a r d o . O Fundef e a nova orientação das políticas educacionais nos anos 90: princípios e resultados. Inep/Gabinete
da Presidência.
SIMPÓSIO 10
ARTICULAÇÃO ENTRE AS
FORMAÇÕES INICIAL E
CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário
Charles Hadji
o papel da prática
profissional na formação
inicial e contínua de
professores
Rui Canário
Universidade de Lisboa, Portugal
Resumo
Nesta intervenção procede-se a uma análise da aponta para a necessidade de construir relações
importância e do papel da prática profissional na estratégicas entre a formação e o trabalho, a partir
formação dos professores, entendendo esta como da exploração das potencialidades formativas do
um processo permanente que integra, de modo exercício profissional. O modo como é concebida
articulado, a formação inicial e a formação contí- e concretizada a componente da prática profissio-
nua. Encarando a formação como um processo de nal na formação de futuros professores pode con-
socialização profissional, defende-se a tese de que figurar-se como um elemento estruturante de po-
as escolas constituem os lugares onde os professo- líticas integradas de formação inicial e contínua,
res aprendem a sua profissão. Essa perspectiva de investigação e de intervenção nas escolas.
senciais: a primeira é a de afirmar a predominân- dor corporativo tem vindo a empobrecer, quer
cia estratégica da formação inicial que precede e em termos estratégicos, quer em termos meto-
determina as posteriores situações formativas; a dológicos, o debate sobre a formação profissio-
segunda é a de pensar a formação inicial a partir nal dos professores.
de um paradigma de racionalidade técnica, em No quadro de um paradigma de educação
que se procede a uma justaposição hierarquizada p e r m a n e n t e , a formação profissional, nomea-
de saberes científicos, mais saberes pedagógicos, damente de professores, não pode ser entendi-
mais momentos de prática (entendida como uma da como circunscrevendo-se a uma primeira e
"aplicação"). c u r t a etapa, prévia ao exercício do trabalho,
da primeira idéia decorre o caráter supleti- mas, pelo contrário, como um processo que é
vo da formação contínua à qual se atribui u m a inerente à globalidade do percurso profissional.
função corretiva quer das inevitáveis "lacunas" Tendem, portanto, a esbater-se as fronteiras que
da formação inicial, quer da, igualmente inevi- tradicionalmente separam a formação inicial da
tável, obsolescência dos conhecimentos adqui- formação contínua o que conduz à conclusão
ridos. da segunda idéia decorrem modalidades lógica de que ambas as vertentes deverão ser
de ação que limitam a eficácia da formação na asseguradas, de modo integrado, por u m a mes-
medida em que, reduzindo tendencialmente o ma instituição. Cada vez mais a tendência será
papel do professor ao de um técnico, ignoram a para que nos públicos do Ensino Superior haja
vertente "artística", inquiridora e reflexiva da uma importância crescente da fração de pes-
sua intervenção, em situações reais marcadas soas adultas que têm ou tiveram uma experi-
pela complexidade, pela incerteza e pela singu- ência profissional e que, ao longo da sua vida,
laridade. Pérez Gomez sintetiza bem os limites recorrerão às escolas do Ensino Superior como
desse paradigma de racionalidade técnica: instituições especializadas de formação.
Essas emergem como instituições deforma-
Os problemas da prática social não podem ser ção permanente ( n a s q u a i s a f o r m a ç ã o
reduzidos a problemas meramente instrumen- profissional contínua ocupa um lugar estraté-
tais, em que a tarefa profissional se resume a gico fundamental) e não como escolas de for-
uma acertada escolha e aplicação de meios e mação profissional inicial que, de forma subsi-
procedimentos. De um modo geral, na prática diária, desenvolveriam atividades de extensão
não existem problemas, mas sim situações pro-
educativa dirigidas aos profissionais em exer-
blemáticas que se apresentam freqüentemente
cício. No caso das escolas de formação de pro-
como casos únicos que não se enquadram nas
categorias genéricas identificadas pela técnica fessores, dessa situação decorrem naturalmen-
e pela teoria existentes. Por essa razão, o profis- te conseqüências importantes relativamente à
sional prático não pode tratar essas situações c o n c e p ç ã o das funções das instituições, das
como se fossem meros problemas instrumen- suas políticas, do perfil e formação do seu pes-
tais, suscetíveis de resolução através de regras soal docente, do d e s e n h o curricular dos seus
armazenadas no seu próprio conhecimento ci- cursos, da construção da sua oferta formativa.
entífico-técnico. (1992: 100)
na flecha do tempo, como fenômenos únicos e las em sistemas auto-regulados em que deixa de
dotados de irreversibilidade. Essa maneira de haver um centro único, funcionando com base
ver conduz a deixar de encarar a formação como numa cadeia de comando vertical. A passagem da
um somatório de momentos formais não-arti- lógica de "castelo" a uma lógica de "rede" (Butera,
culados (as chamadas "ações" de formação). No 1991) supõe que o exercício do trabalho deixe de
quadro de um percurso de formação, em que ser segmentado e atomizado, passando-se a va-
esta é entendida como um processo, cada pes- lorizar a polivalência e o trabalho em e q u i p e . O
soa e cada profissional torna-se o sujeito da sua trabalho coletivo faz apelo a que cada um dos
própria formação e é esse ponto de vista que membros da organização possa construir uma
nos permite deslocar o centro das atenções, em intelegibilidade global do processo de trabalho,
termos formativos, das atividades de ensino que não ocorria, nem era desejável que ocorres-
para as atividades de aprendizagem. se, no sistema da linha de montagem. Neste, cada
Reside aqui o fundamento para que possa- pessoa realiza um trabalho parcelar e só conhece
mos distinguir um processo de educação per- o âmbito restrito daquilo que faz no seu "posto
manente daquilo que é a sua caricatura, ou seja, de trabalho".
a extensão dos processos escolares ao conjunto Estamos, assim, em presença de uma evolu-
da vida (profissional). Essa escolarização ção tendencial de uma cultura de dependência e
massiva da formação profissional constitui, a de execução para uma cultura de interação e de
meu ver, um fenômeno negativo que se tem ma- resolução de problemas, o que apela a capacida-
nifestado de forma particularmente gritante no des de natureza analítico-simbólicas para
caso da formação profissional contínua de pro- equacionar problemas imprevisíveis e não ape-
fessores (Barroso e Canário, 1999). nas capacidades que permitam mobilizar as res-
Um segundo fenômeno diz respeito ao cres- postas "certas", aprendidas na formação, para dar
cimento exponencial do volume de informação resposta a situações estandardizadas. Essa evo-
disponível, o que traz como conseqüência uma lução, por um lado, torna obsoleta a concepção
rápida obsolescência dessa mesma informação. de formação para o "posto de trabalho", por ou-
Coloca-se, então, como questão central, saber tro lado, obriga a que a formação deixe de ser pen-
como transformar sistemas formativos que fun- sada exclusivamente em termos de capacitação
cionam tradicionalmente segundo uma lógica individual. Na medida em que se passa a consi-
cumulativa de informação em sistemas derar as dimensões coletivas do exercício do tra-
formativos orientados para a produção de sabe- balho, a formação orienta-se, também, para a for-
res, privilegiando os processos de tratamento e mação de equipes de trabalho que se formam em
mobilização da informação. É no quadro dessa exercício e no contexto de trabalho.
problemática que se inscreve a importância es-
tratégica atribuída à pesquisa, entendida como Construir competências
um eixo metodológico da formação. Tornam-se,
hoje, cada vez mais evidentes os limites de es- em contexto profissional
tratégias de formação baseadas em pressupos- Enquanto o processo de qualificação está
tos de acumulação de informação, precisamen- relacionado com a aquisição e a certificação de
te por causa da sua rápida desvalorização. saberes, normalmente obtidos por via escolar,
Um terceiro fenômeno consiste num proces- a competência, como escreveu Lise Demailly
so de mudança acelerada das organizações de tra- (1997: 61), refere-se a "um não-sei-quê através
b a l h o . O modelo de organização fordista, típico do qual a qualificação se torna eficiente e se
da produção em massa, por meio de processos atualiza numa situação de trabalho". Nessa
estandardizados e baseados na economia de es- perspectiva, podemos sustentar que as qualifi-
cala, tem sofrido um conjunto de mutações que cações se adquirem por um processo que pode
se orientam no sentido de substituir as relações ser cumulativo (as qualificações podem ser pos-
burocráticas e hierarquizadas por redes, no inte- tas em estoque e armazenadas), enquanto as
rior das organizações, o que tende a transformá- competências só podem ser produzidas em
contexto, a partir da experiência de trabalho. A compreensão do caráter emergente das com-
Quando se afirma que a escola é o lugar onde petências profissionais, relativamente aos contex-
os professores aprendem é, precisamente, esse tos de trabalho, pode ser reforçada a partir do con-
processo de produção de competências profissio- ceito de zelo no trabalho, evocado por Christophe
nais que está a ser referido. É no contexto de tra- Dejours (1998). Esse conceito fundamenta-se na
balho, e não na escola de formação inicial, que existência de uma distância, empiricamente ob-
se decide o essencial da aprendizagem profissio- servada pelos sociólogos do trabalho, entre traba-
nal (que é coincidente com um processo de so- lho real e trabalho prescrito, que conduz a que a
cialização profissional). Como todos sabemos, a execução estrita dos procedimentos recomenda-
sabedoria não garante a competência. Muitas dos pelas instâncias de enquadramento produza a
pessoas qualificadas não se revelam competen- paralisação dos processos de trabalho, conforme
tes, e o inverso também se verifica. Além disso, pode ser constatado nas situações em que os tra-
a experiência também nos ensina q u e n e n h u m balhadores utilizam como recurso a designada
professor é definitivamente competente ou in- "greve de zelo". Segundo Dejours, o processo de tra-
competente, independentemente dos tempos e balho só funciona se os trabalhadores fizerem a or-
dos lugares. Com efeito, as qualificações obtidas ganização de trabalho beneficiar-se com a sua in-
por via escolar correspondem à certificação de teligência individual e coletiva.
competências escolares que não são suscetíveis Esse exercício da inteligência no trabalho só
de uma transferência linear e direta para o exer- é possível não apenas à margem do cumprimen-
cício profissional, na medida em que dizem res- to estrito dos procedimentos prescritos, mas a
peito ao campo pedagógico, que goza de relati- partir de u m a atitude de infração às n o r m a s
va autonomia. Como afirma Berthelot, a defini- e s t a b e l e c i d a s . O conceito de zelo no trabalho de-
ção, a p r o d u ç ã o , o r e c o n h e c i m e n t o e a signa a" inteligência eficiente no trabalho", em que
certificação de competências são feitos pela es- é possível distinguir, por um lado, características
cola i n d e p e n d e n t e m e n t e da sua "efetividade cognitivas, como "fazer face ao imprevisto, ao iné-
prática exterior". Por isso "a idéia de u m a corres- dito, àquilo que não é ainda conhecido, nem in-
pondência e de um isomorfismo naturais e racio- tegrado na rotina", e, por outro lado, característi-
nais entre as competências escolares e as com- cas afetivas, como "ousar transgredir ou infringir,
petências socioprofissionais é um postulado que agir de forma inteligente mas clandestina ou, pelo
assenta no desconhecimento da existência de m e n o s , discreta" (Dejours, 1998: 74). É a
duas lógicas radicalmente diferentes, em presen- constatação de que a prática profissional se ali-
ça nos dois sistemas" (Berthelot, 1994: 200). menta de um conjunto de "saberes tácitos" e de
É justamente por t a m b é m considerar que as que há um "saber escondido no agir profissional"
competências são da ordem do "saber mobili- (Schon, 1996) que confere fundamento à estraté-
zar" (é possível armazenar informação, mas não gia de otimizar o potencial formativo dos contex-
competências) que Guy Le Boterf (1994) lhes tos de trabalho. Essa estratégia torna-se, então, o
nega um caráter de universalidade, i n d e p e n - eixo estruturante do percurso formativo, modifi-
d e n t e m e n t e de sujeitos e de contextos concre- cando-se de maneira profunda o papel atribuído
tos. S e g u n d o esse autor, a c o m p e t ê n c i a n ã o à formação inicial, prévia ao exercício profissio-
corresponde a um estado, nem a um saber que nal. Como escreveu Berthelot (1994: 201),
se possui, n e m a um adquirido de formação.
Apenas é compreensível, e suscetível de ser pro-
Já não se trata, para a escola, de jogar puzzle,
duzida, "em ato", do que decorre o seu caráter
produzindo peças preconcebidas e recortadas
finalizado, contextual e contingente. Essa ma- !...), mas sim de jogar xadrez, quer dizer, de pro-
neira de ver contraria a idéia de que as compe- duzir peças dotadas de regras genéricas de fun-
tências são algo de prévio ao exercício profissio- cionamento, suscetíveis de serem atualizadas de
nal. Elas aparecem, pelo contrário, como algo modo diverso, consoante a configuração do jogo
que é emergente de processos de mobilização e em que serão integradas, e de adquirir outras
confronto de saberes, em contexto profissional. regras segundo a evolução deste último.
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
As situações profissionais vividas pelos pro- sional inicial de professores, ganhará em ser en-
fessores ocorrem no quadro de sistemas coleti- tendida como uma tripla e interativa situação de
vos de ação (organizações escolares), cujas re- formação que envolve, de forma simultânea, os
gras são, ao mesmo tempo, produzidas e apren- alunos (futuros professores), os profissionais da
didas pelos atores sociais em presença. Estamos, área (professores "cooperantes") e os professores
portanto, em presença de um "jogo coletivo" da escola de formação.
suscetível de múltiplas e contigentes configura-
ções, em função da singularidade dos contextos.
É à medida que a produção de práticas profissio- Currículo e revalorização
nais, realizada em contexto, é atravessada não
da experiência profissional
apenas por fatores individuais (dimensão biográ-
fica), mas também por fatores organizacionais Assistimos, no quadro da concepção e da ges-
(dimensão contextual), que se permite pensar o tão das situações educativas, a uma revalorização
funcionamento da organização de trabalho (nes- epistemológica da experiência cuja concretização
te caso, as escolas) como um processo de apren- em termos operacionais tem como referência
dizagem coletiva do qual emergem competên- principal o conceito de alternância. A afirmação
cias individuais (configurações de saberes) e desse conceito está ligada, na sua origem, ao cam-
também competências de natureza coletiva. Es- po da formação profissional e as práticas a que
tas correspondem a um valor acrescentado que dá fundamento remetem, com freqüência, para a
"estruturado como uma linguagem [...] emerge existência de um movimento pendular de vai-e-
das articulações e das trocas fundadas nas com- vem entre dois espaços fisicamente distintos: por
petências individuais" (Le Boterf, 1994: 249). Se, um lado, a escola profissional; por outro lado, o
como defende Claude Dubar (1991: 1997), acei- contexto de exercício profissional. Essa dimensão
tarmos que a produção de práticas profissionais de desenvolvimento alternado de atividades na
remete, no essencial, a processos de socializa- situação de formação e na situação de trabalho é,
ção profissional, então, a formação consiste ba- sem dúvida, essencial. Porém, sem negar esse fato,
sicamente em reinventar formas novas de socia- deve reconhecer-se que essa concepção de
lização profissional, o que apela a instituir e a alternância é simplificadora e redutora, não ex-
desenvolver nos contextos de trabalho uma di- primindo toda a riqueza potencial do conceito.
nâmica simultaneamente formativa e de cons- Entendida como um simples vai-e-vem en-
trução identitária que torne possível essa tre dois lugares físicos, a alternância não supera
reinvenção. Ela não pode fazer-se senão na ação, a exterioridade da formação relativamente ao
de onde resulta, no caso dos professores, que a contexto de trabalho. Ela deve ser encarada,
formação passa a ser "centrada na escola" e que numa acepção muito mais ampla, como um vai-
os processos formativos passam a ser conside- e-vem entre idéias e experiências, ou seja, entre
rados como processos de intervenção nas orga- teoria e prática, tornando possível o ciclo
nizações escolares. recursivo entre aprendizagem simbólica e apren-
A articulação e mesmo coincidência entre si- dizagem experiencial de que nos fala Gérard
tuações de trabalho e situações de formação, ou Malglaive (1990) e que deve ocorrer também no
melhor, a transformação de situações de traba- interior da escola de formação inicial. É essa
lho em situações de formação passa a ser uma pre- maneira de encarar o conceito de alternância
ocupação comum quer à formação inicial, quer à que é suscetível de lhe conferir uma maior uni-
formação contínua. A componente da prática pro- versalidade (não o restringindo às formações de
fissional tende a deixar de ser encarada como um orientação profissionalizante). Ela permite, si-
momento de aplicação, para ser considerada, multaneamente, utilizar esse conceito como eixo
cada vez mais, como o elemento estruturante de estruturante de novos modos de pensar e con-
uma dinâmica formativa tributária de uma con- cretizar o currículo dos cursos de formação ini-
cepção de alternância. Nessa perspectiva, a prá- cial de professores. O objetivo de "traduzir", em
tica profissional, no quadro da formação profis- termos curriculares, a riqueza e as implicações
do conceito de alternância constitui um proble- dem nas escolas a sua profissão implica tam-
ma indeterminado, que admite uma grande di- bém, necessariamente, uma ruptura com a de-
versidade de soluções, que é, portanto, refratá- signada "pedagogia do modelo". Os contextos
rio a receitas. Permito-me apenas, e de forma de trabalho onde os futuros professores são cha-
muito sintética, enunciar três grandes orienta- mados e a observar e a intervir não têm de ser
ções que podem servir de referência para a tra- "exemplares", na medida em que na realidade
dução da revalorização da experiência em ter- também não há escolas "exemplares". Todas as
mos curriculares e que se situam numa perspec- situações (desde que a regra seja a de lidar com
tiva de superação da forma escolar. a diversidade a partir de um olhar crítico) pro-
A primeira orientação diz respeito à necessi- piciam aprendizagens e a formação deliberada
dade de construir uma outra inserção espacial das de profissionais, como sublinham Lesne e
atividades de formação, encarada numa vertente Mynvielle (1990), ganha em ser pensada a par-
dupla: por um lado, trata-se de fazer evoluir os tir da reconstrução de situações de socialização
espaços escolares tradicionais para espaços edu- profissional, o que é o contrário de uma forma-
cativos; por outro lado, está em causa a constru- ção "em laboratório".
ção de uma relação interativa entre a escola e os Uma segunda orientação consiste em orga-
restantes espaços sociais. A primeira vertente con- nizar o currículo com a preocupação de, siste-
vida a encarar a escola de formação inicial como maticamente, multiplicar as ocasiões de dar a
um meio de vida que articula diferentes graus de palavra aos alunos e à expressão de suas
formalização da ação educativa e valoriza a arti- vivências e expectativas.
culação entre modalidades de auto, eco e Como referiu Berger (1991), "a experiência
heteroformação e remete para uma concepção de usar da palavra, da leitura de textos, da retó-
ampla de currículo, que engloba tudo o que "acon- rica pela qual convencemos o outro da nossa
tece" no quadro da instituição escolar. razão" constituem alguns exemplos de ativida-
A esse alargamento do conceito de currícu- des mais significativas, para os alunos, do que
lo (tradicionalmente circunscrito às "discipli- os exercícios escolares tradicionais, baseados na
nas", a que se acrescenta a "prática pedagógi- repetição e no treino. A forma mais pertinente
ca") associa-se a segunda vertente, atrás referi- de analisar o currículo não consiste em averi-
da, que consiste num movimento de aproxima- guar o que fazem os professores, mas sim em
ção entre os espaços da escola de formação e inquirir o que fazem os alunos e em que medi-
os contextos "reais" de exercício profissional. da e de que forma lhes é "dada a palavra". dar a
Um novo tipo de relacionamento entre situa- palavra aos alunos tem como atitude comple-
ções e momentos "escolares" e situações de tra- mentar, lógica e necessária, uma atitude de es-
balho implica, no caso da formação profissio- cuta, por parte dos professores da formação ini-
nal de professores, que as escolas sejam vistas cial, quer em relação aos alunos, quer em rela-
como os lugares fundamentais de aprendiza- ção aos profissionais da área. A tendencial su-
gem profissional e não como meros lugares de peração da forma escolar apela à instituição da
"aplicação". A aceitação desse pressuposto im- possibilidade de favorecer a reversibilidade dos
plica que os contatos estreitos com os contex- papéis entre quem ensina e quem aprende. Só
tos de trabalho sejam o mais precoces possível uma atitude de escuta permite ao formador ter
e estejam presentes ao longo de todo o percur- em conta os saberes "tácitos" dos formandos,
so de formação inicial, não se circunscrevendo construídos de modo intuitivo na ação cotidia-
a uma etapa final. Só dessa forma é possível fa- na, que, como referia Donald Schon, se tradu-
vorecer um percurso iterativo entre formação e zem na situação-tipo do aluno que "sabe fazer
trabalho que permite o movimento duplo de trocos, mas não sabe somar números".
mobilização, para a ação, de saberes teóricos, Uma terceira orientação consiste em tentar
e, ao mesmo tempo, a formalização (teórica) de estruturar o currículo a partir da articulação in-
saberes adquiridos por via experiencial. terativa entre situações de informação, situações
o pressuposto de que os professores apren- de interação e situações de produção. É essa ar-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
ticulação que poderá permitir fazer o sistema atividades de formação, as atividades de investi-
de formação evoluir de uma lógica de repeti- gação e as atividades de intervenção educativa. A
ção de informações para uma lógica de produ- organização da prática profissional dos futuros
ção de saberes. Só no quadro dessa transforma- professores pode constituir um elemento de res-
ção é que o formando (no caso, o futuro profes- posta para essas dificuldades precisamente devi-
sor) deixa de ser tratado (para utilizar a termi- do à sua vocação para associar aquilo que, quase
nologia de Lesne) como objeto de formação sempre, aparece dissociado.
para adquirir o estatuto de sujeito e de agente Assim, a prática profissional é, sempre (de
de formação. Nesta última perspectiva, o futu- forma deliberada e consciente ou não), um pro-
ro professor interage com as escolas na dupla cesso deformação inicial e contínua que envol-
condição de "aprendiz" e de agente socializador ve, obviamente, os alunos da formação inicial,
dos profissionais que atuam naquela área. Ao mas também os profissionais que os recebem,
interrogar criticamente a sua prática, confron- bem como os professores da escola de forma-
tando-a com outras maneiras de pensar e de ção, para quem esta é, freqüentemente, o prin-
agir, o jovem formando contribui para mudar cipal elo de ligação à realidade naquela área.
representações e comportamentos dos profis- Torna-se, portanto, possível e desejável que a
sionais já "veteranos". Essa capacidade de ques- organização da prática profissional possa fun-
tionar criticamente as práticas de profissionais cionar como a base para construir uma política
experimentados, aprendendo com elas e contra de formação contínua ("centrada na escola"),
elas, só é possível se, dentro da escola de for- em articulação com a formação inicial.
mação inicial, os alunos forem tratados como Em segundo lugar, a prática profissional
produtores de saberes. constitui, sempre, um processo de intervenção
nas escolas da região e, se não for pensada como
tal, pode muito bem transformar-se num ele-
A prática profissional como mento de perturbação da vida das escolas. Pa-
elemento estruturante da rece aconselhável que a organização da prática
profissional se faça tendo como referentes os
escola de formação estabelecimentos de ensino, como organiza-
A pertinência e a possibilidade de a concep- ções, e não os professores "cooperantes" indi-
ção e a organização das modalidades de prática vidualmente considerados.
profissional poderem instituir-se como Por fim, a organização da prática profissio-
estruturantes não apenas do currículo dos cur- nal numa perspectiva de ruptura com a pedago-
sos de formação inicial, mas da própria escola gia do modelo de valorização dos saberes
de formação, tem o seu fundamento no fato de experienciais supõe que ela se estruture a partir
esta atividade contemplar, potencialmente, to- de um eixo metodológico de pesquisa que tenha
das as dimensões da missão cometida a essas como referencial as situações de trabalho e en-
escolas, facilitando a construção de um projeto volva a tríade já referida (professores, alunos,
educativo próprio (à semelhança do que se es- profissionais que atuam na área), na perspecti-
pera das escolas do ensino básico e secundário). va de Barbier: "o ato de trabalho transforma-se
Às escolas de formação de professores são em ato de formação desde que seja acompanha-
cometidas atribuições no domínio da formação do por uma atividade de análise, de estudo ou
inicial e contínua, bem como atividades de inves- de pesquisa sobre ele próprio" (1996: 3).
tigação e de intervenção regional (serviços à co-
munidade). Uma das dificuldades consiste em dar
cumprimento a essa missão concretizando de for- Em síntese
ma integrada e harmoniosa todos os valores pre- A revalorização da experiência na formação
vistos. E esta dificuldade decorre da dissociação profissional dos professores não pode ser con-
entre a formação inicial e a formação contínua, fundida com a defesa da aprendizagem como
por um lado, e, por outro, da dissociação entre as mero processo de continuidade, em relação à
experiência anterior. Valorizar a experiência sig- In: VINCENT, G. (Org.). Léducation prisonnière de Ia
forme Scolaire? Scolarisation et socialisation dans les
nifica, sobretudo, aprender a aprender com a
sociétés industrielles. Lyon: PUF, 1994.
experiência, o que, freqüentemente, só é possí-
BUTERA. F. La métamorphose de l'organisation. Du
vel a partir da crítica e da ruptura com essa ex- château au réseau. Paris: Les Éditions d'Organisation,
periência. Aprender com a experiência não 1991.
pode, então, ser sinônimo de imitação, mas sim CANÁRIO, R. Ensino superior e formação contínua de pro-
de uma ação em que o prático se torna um in- fessores. Aprender, n. 15, p. 11-18, 1993.
vestigador no contexto da prática. A escola, o lugar onde os professores
cursos de formação profissional inicial de pro- ESPINEY, L. Formação inicial / formação contínua de en-
fermeiros: uma experiência de articulação em contex-
fessores, bem como um ponto de entrada para
to de trabalho. In: CANÁRIO, R. (Org.). Formação e
a implantação, por parte das instituições forma- situações de trabalho. Porto: Porto Editora, 1997. p.
doras, de políticas integradas de formação ini- 169-88.
cial e contínua de professores. LE BOTERF, G. De Ia compétence: essai sur un attracteur
étrange. Paris: Les Éditions d"Organisation, 1994.
LESNE, M.; MYNVIELLE, Y. Formation et socialisation. Pa-
us: Paidela, 1990.
MALGLAIVE. G. Enseignerà des adultes. Paris: PUF. 1990.
Bibliografia PÉREZ GÓMEZ, A. O pensamento prático do professor: a
BARBIER, J.-M. La recherche de nouvelles formes de formação do professor como profissional reflexivo. In:
formation par et dans les situations de travail. Éducation NÓVOA, A. (org.). Os professores e a sua formação.
Permanente, n. 112, p. 125-45, 1992. Lisboa: D. Quixote/IIE, 1992.
BARBIER, J.-M. (Dir.). Savoirs théoriques et savoirs PRIGOGINE, I. La fin des certitudes. Paris: Odile Jacob,
d'action. Paris: PUF, 1996. 1996.
BARROSO, J.; CANÁRIO, R. Centros de Formação das REINBOLD, M. F.: BREILLOT, J.-M. Gérer Ia compétence
Associações de Escolas, das expectativas às realida- dans l'entreprise. Paris: LHarmattan, 1993.
des. Lisboa: IIE, 1999. SCHON, D. Formar professores como profissionais refle-
BERGER, G. A experiência pessoal e profissional na xivos. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e a sua
certificação de saberes: a pessoa ou a emergência de formação. Lisboa: D. Quixote/IIE. 1992.
uma sociedade global. In: Conferência Nacional No- A Ia recherche d'une nouvelle épistémologie
vos Rumos para o Ensino Tecnológico e Profissional. de Ia pratique et de ce qu'elle implique pour 1'éducation
Porto: ME/Getap, 1991. des adultes. In: BARBIER. J.-M. (Dir.). Savoirs
BERTHELOT, J. P Société post industrielle et scolarisation. théoriques et savoirs d'action. Paris: PUF, 1996.
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
Resumo
As mudanças propostas para a educação bási- Esse documento tomou como base documentação já
ca no Brasil trazem enormes desafios à formação existente no MEC: textos elaborados por colaborado-
de professores. No processo de discussão dos Parâ- res individuais, comissões de especialistas e grupos
metros Curriculares Nacionais, um ponto foi de trabalho, no âmbito das diferentes Secretarias da
consensual: se não houver um grande incentivo à estrutura do MEC, e estudos desenvolvidos pelo Inep.
carreira do Magistério e também um investimento O documen
significativo na formação de professores, dificilmen- uma sintonia entre a formação inicial de professo-
te ocorrerão as transformações que se deseja na res, os princípios prescritos pela Lei de Diretrizes e
educação básica. Bases da Educação Nacional (LDBEN), as normas ins-
No segundo semestre do ano 2000, o Conselho tituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Nacional de Educação (CNE) elaborou as Diretrizes Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para
Curriculares para a Formação Inicial de Professores o Ensino Médio, bem como as recomendações cons-
da Educação básica. Um dos subsídios para esse tra- tantes dos Parâmetros e dos Referenciais Curricula-
balho do CNE foi o documento enviado pelo MEC. res para a educação básica, elaborados pelo MEC.
sica demonstre que desenvolveu ou tenha opor- dos, de seus significados em diferentes con-
tunidade de desenvolver, de modo sólido e ple- textos e de sua articulação interdisciplinar;
no, as competências previstas para os egressos • domínio do conhecimento pedagógico;
da educação básica, tais como estabelecidas nos
• conhecimento de processos de investigação
artigos 27, 32, 35 e 36 da LDBEN, nas diretrizes,
que possibilitem o aperfeiçoamento da prá-
nos parâmetros e nos referenciais curriculares tica pedagógica;
nacionais da educação básica. Isso é condição
mínima indispensável para qualificá-lo como • gerenciamento do próprio desenvolvimen-
capaz de lecionar na Educação Infantil, no Ensi- to profissional.
no Fundamental ou no Ensino Médio. Outra diretriz importante é a afirmação de
que a escola de formação de professores para a
educação básica deve, sempre que necessário,
A pesquisa é elemento essencial na
responsabilizar-se por oferecer aos futuros pro-
formação profissional de professor fessores condições de aprendizagem dos conhe-
A pesquisa na formação de professores deve, cimentos da escolaridade básica, de acordo com
portanto, ser contemplada de modo a garantir: a LDBEN e as Diretrizes Curriculares Nacionais.
• a aprendizagem dos procedimentos neces- o desenvolvimento das competências pro-
sários para acompanhar o processo de de- fissionais de professor pressupõe que os estu-
senvolvimento e aprendizagem dos alunos e dantes dos cursos de formação docente tenham
para a produção de conhecimento pedagó- construído os conhecimentos e desenvolvido as
gico; competências previstos para a conclusão da es-
• a compreensão dos processos de produção colaridade básica. Entretanto, a realidade atual
de conhecimento nas ciências: naquelas com do sistema educacional brasileiro é marcada por
as quais interagem os conhecimentos esco- uma formação básica precária e muitas vezes in-
lares que ensina (Matemática, História); na- suficiente como base para qualquer formação
quelas que dão suporte a seu trabalho de profissional.
educador (Psicologia, Sociologia, Filosofia) e
Sendo assim, a formação de professores terá
naquelas que se dedicam a investigar os pro-
de garantir que os aspirantes a professor domi-
cessos de aprendizagem dos diferentes ob-
nem efetivamente esses conhecimentos: sempre
jetos de conhecimento (Didáticas);
que necessário, devem ser oferecidas unidades
• o conhecimento atualizado dos resultados curriculares de complementação dos conheci-
desses processos, isto é, as teorias e as infor- mentos relacionados ao uso eficaz da linguagem
mações que as pesquisas nas diferentes ci- e aos demais conteúdos.
ências produzem.
Como em qualquer campo de atuação, o co-
nhecimento profissional de professor representa
Diretrizes gerais para a o conjunto de saberes que o habilita para o exer-
formação de professores cício da docência e de todas as suas funções pro-
fissionais: os saberes produzidos nos diferentes
o documento ressalta que a formação de campos científicos e acadêmicos que subsidiam
professores para a educação básica deverá vol- o trabalho educativo; os saberes escolares que
tar-se para o desenvolvimento de competências deverá ensinar; os saberes produzidos no campo
que abranjam todas as dimensões da atuação da pesquisa didática; os saberes desenvolvidos
profissional de professor, que se referem a dife- nas escolas, pelos profissionais que nelas atuam;
rentes aspectos, como, por exemplo: os saberes pessoais construídos na experiência
• comprometimento com os valores estéticos, própria de cada futuro professor. Assim, na for-
políticos e éticos inspiradores da sociedade mação de prfessores para a educação básica de-
democrática; vem ser contemplados diferentes âmbitos do co-
• a compreensão do papel social da escola; nhecimento profissional de professor, ou seja:
• domínio dos conteúdos a serem socializa- • cultura geral e profissional;
• conhecimento sobre crianças, jovens e adul- zagem, esse crescimento foi mais significativo que
tos; em outras. Porém é possível afirmar que em to-
• conhecimento sobre a dimensão cultural, so- das elas há investigações em andamento.
cial, política e econômica da educação; Essas pesquisas ajudam a criar didáticas es-
• conteúdos das áreas de ensino; pecíficas para os diferentes objetos de ensino da
educação básica e para seus conteúdos. Assim,
• conhecimento pedagógico;
por exemplo, estudos sobre a psicogênese da lín-
• conhecimento experiencial (conhecimento gua escrita trouxeram dados para a didática na
construído "na" experiência, que não pode ser área de Língua Portuguesa, especialmente no que
construído de outra forma e de modo algum se refere à alfabetização. Do mesmo modo, na área
pode ser substituído pelo conhecimento "so- de Matemática, tem havido progressos na produ-
bre" a realidade).
ção de conhecimento sobre aprendizagem de
Outro aspecto apontado refere-se à seleção dos números, operações etc. que fundamentam uma
conteúdos das áreas de ensino que compõem a didática própria para o ensino desses conteúdos.
Educação básica e que, na formação de professo- Os professores em formação precisam conhe-
res, devem ir além daquilo que os professores irão cer tanto os conteúdos definidos nos currículos da
ensinar nas diferentes etapas da escolaridade. educação básica, pelo desenvolvimento dos quais
Polivalente ou especialista, aquilo que o pro- serão responsáveis, quanto as didáticas específi-
fessor precisa saber para ensinar não é equivalen- cas que permitirão um ensino eficaz. Em outras
te ao que seu aluno vai aprender: são conheci- palavras, a melhor estratégia é tratá-los de modo
mentos mais amplos do que os que se constróem articulado, o que significa que o estudo dos con-
até o Ensino Médio, tanto no que se refere ao ní- teúdos da Educação básica que irão ensinar deve-
vel de profundidade quanto ao tipo de saber. Por- rá ser feito a partir da perspectiva de sua didática.
tanto, sua formação deve ir além dos conteúdos Com relação à avaliação, num curso de for-
definidos para as diferentes etapas da escolarida- mação de professores, o documento destaca que
de nas quais o futuro professor atuará, incluindo ela deve ter como finalidades a orientação do tra-
conhecimentos necessariamente a eles articula- balho dos formadores, a autonomia dos futuros
dos, que compõem um campo de ampliação e professores em relação ao seu processo de apren-
aprofundamento da área. dizagem e a habilitação de profissionais com con-
Isso se justifica porque a compreensão do pro- dições de iniciar a carreira.
cesso de aprendizagem dos conteúdos pelos alu- Tomando como princípio o desenvolvimento
nos da educação básica e a transposição didática de competências profissionais, é importante colo-
adequada dependem do domínio desses conhe- car o foco da avaliação na capacidade de acionar
cimentos. Sem isso fica impossível construir si- conhecimentos e de buscar outros, necessários à
tuações didáticas que problematizem os conhe- atuação profissional, e não na quantidade de co-
cimentos prévios com os quais, a cada momento. nhecimento adquirido ao longo do curso.
crianças, jovens e adultos se aproximam dos con- Os instrumentos de avaliação da aprendiza-
teúdos escolares, desafiando-os a novas aprendi- gem devem ser diversificados, para o que é ne-
zagens que vão constituindo saberes cada vez cessário transformar formas convencionais e cri-
mais complexos e abrangentes. ar novos instrumentos. Avaliar as competências
No documento defende-se a idéia de que os profissionais dos futuros professores é verificar se
conteúdos a serem ensinados na escolaridade (e quanto) fazem uso dos conhecimentos cons-
básica devem ser tratados de modo articulado truídos e dos recursos disponíveis para resolver
com suas didáticas específicas. Nas últimas dé- situações-problema - reais ou simuladas - relacio-
cadas, cresceram os estudos e as pesquisas que nadas de alguma forma com o exercício da pro-
tomam a aprendizagem e o ensino de cada uma fissão. Sendo assim, a avaliação deve pautar-se
das diferentes áreas de conhecimento como ob- por indicadores oferecidos pela participação dos
jeto de investigação. Em algumas áreas, e para futuros professores em atividades regulares do
determinados aspectos do ensino e da aprendi- curso, pelo empenho e desempenho em ativida-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
des especialmente preparadas por solicitação dos bastante generalizada de que algumas áreas pou-
formadores, pela produção de diferentes tipos de ca relação têm com as demais áreas de conheci-
documentação, pela capacidade de atuar em si- mento ou com o tratamento de questões sociais
tuações-problema. urgentes.
A avaliação deve ser realizada mediante cri- o documento destaca que o tempo destina-
térios explícitos e compartilhados com os futu- do pela legislação à parte prática (800 horas) deve
ros professores, uma vez que o que é objeto de permear todo o curso de formação, de modo que
avaliação representa uma referência importante promova o conhecimento experiencial do profes-
para quem é avaliado, tanto para orientação dos sor. A finalidade desse tempo de prática é possi-
estudos como para identificação dos aspectos bilitar aos alunos da formação a construção da-
considerados mais relevantes para a formação em queles conhecimentos experienciais conforme
cada momento do curso. Isso permite que cada definidos anteriormente, essenciais a sua atuação
futuro professor vá investindo no seu processo de como professores.
aprendizagem, construindo um percurso pessoal Os cursos de formação de professores não
de formação. podem mais propor um espaço isolado para a ex-
Assim, é necessário, também, prever instru- periência prática, que faz com que, por exemplo,
mentos de auto-avaliação do processo de forma- o estágio se configure como algo com finalidade
ção pelos futuros professores, o que favorece a em si mesmo e se realize de modo desarticulado
tomada de consciência do percurso de aprendi- com o restante do curso. Também não é possível
zagem, a construção de estratégias pessoais de deixar ao futuro professor a tarefa de integrar e
investimento no desenvolvimento profissional, o transpor seu "saber" para o "saber fazer", sem ter
estabelecimento de metas e o exercício da auto- oportunidade de participar de uma reflexão co-
nomia em relação à própria formação. Por seu letiva e sistemática sobre esse processo.
turno, o sistema de avaliação da formação inicial Nessa perspectiva, o planejamento dos cursos
deve estar articulado a um programa de acompa- de formação deve prever situações didáticas em
nhamento e orientação do futuro professor para que os professores coloquem em uso os conheci-
a superação das eventuais dificuldades. mentos que aprendem, ao mesmo tempo que pos-
sam mobilizar outros, de diferentes naturezas e
oriundos de diferentes experiências, em diferen-
Diretrizes para a organização tes tempos e espaços curriculares, tais como:
curricular dos cursos de • no interior das áreas ou disciplinas, durante
o próprio processo de aprendizagem dos con-
formação de professores
teúdos que precisa saber;
Os cursos devem ser organizados de forma
• nos estágios a serem feitos nas escolas de edu-
que propiciem aos professores em formação
cação básica;
vivenciar experiências interdisciplinares. A cons-
trução da maioria das capacidades que se preten- • num tempo e espaço curricular específico
de que os alunos da Educação Infantil, do Ensino chamado de "supervisão", em trabalhos ori-
Fundamental e do Médio desenvolvam atravessa entados pelos diferentes formadores.
as tradicionais fronteiras disciplinares e exige um A organização dos currículos deve contemplar
trabalho integrado de diferentes professores. atividades curriculares diversificadas. Ao elaborar
A construção de competência profissional re- seu projeto curricular, a equipe de formadores tem
quer da formação a utilização da estratégia didá- como primeira ação necessária a de buscar novas
tica de resolução de situações-problema contex- formas de organização, em contraposição a formas
tualizadas, que necessitam de abordagens inter- tradicionais concentradas exclusivamente em cur-
disciplinares. Sobretudo os cursos de formação de sos de disciplinas, a partir das quais se definem
professores especialistas devem promover ações conteúdos que nem sempre são significativos para
direcionadas para o desenvolvimento de verda- a atuação profissional dos professores.
deira postura interdisciplinar, pois há uma idéia Isso não significa renunciar a todo ensino
estruturado, nem relevar a importância das dis- o documento defende ainda que a organi-
ciplinas na formação, mas considerá-las como zação dos currículos de formação deve incluir
recursos que ganham sentido em relação aos uma dimensão comum a todos os professores de
domínios profissionais visados. Os cursos com educação básica.
tempos e programas predefinidos para alcançar Um dos grandes desafios da formação de
seus objetivos são fundamentais para a apropria- professores é atender às especificidades do tra-
ção e a organização de conhecimentos. Têm, as- balho educativo com as diferentes etapas de vida
sim, papel fundamental na atualização e no dos alunos, sem nela reproduzir uma visão seg-
aprofundamento dos conhecimentos relaciona- mentada do desenvolvimento e da aprendiza-
dos com o trabalho de professor, que são chaves gem humanas. Muitos conhecimentos são igual-
de leitura necessárias à atuação contextualizada mente necessários, muitas das temáticas são
e condição para a prática reflexiva do professor. igualmente pertinentes, assim como são comuns
o desafio principal da elaboração de um pla- os pressupostos para a formação do professor.
no de formação profissional não é dar lugar a Só é possível pensar na formação de profes-
todos os tipos de disciplinas, mas conceber um sores da educação básica porque existe algo de
desenho curricular que permita construir, colo- comum a todo professor, atue ele na Educação
car em uso e avaliar as competências essenciais Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino
ao seu exercício. Médio. Portanto, há competências profissionais
Para contemplar a complexidade dessa for- que todos eles precisam desenvolver.
mação, é preciso renunciar à idéia de repartir o Ao mesmo tempo, é preciso considerar que
tempo disponível entre as disciplinas. Ao con- há desafios próprios dos professores de atuação
trário, é preciso instituir tempos e espaços cur- multidisciplinar e outros dos especialistas, tanto
riculares diferenciados, como oficinas, seminá- em função da etapa da escolaridade em que atu-
rios, grupos de trabalho supervisionado, grupos am quanto do domínio de conteúdos a ensinar.
de estudo, tutorias e eventos, entre outros capa- Finalmente, há competências ligadas à espe-
zes de promover e ao mesmo tempo exigir dos cificidade da docência em cada etapa da escola-
futuros professores atuações diferenciadas, per- ridade. Contemplá-las de modo integrado exige
cursos de aprendizagens variados, diferentes manter o princípio de que a formação deve ter
modos de organização do trabalho, possibilitan- como referência a atuação profissional, na qual a
do o exercício das diferentes competências a se- diferença se dá principalmente no que se refere à
rem desenvolvidas. As oficinas, por exemplo, ofe- dimensão da docência. É aí que as especificidades
recem ótimas possibilidades de colocar em uso se concretizam e, portanto, é ela (a docência) que
tipos de conhecimento, construindo instrumen- deverá ser tratada no curso de modo específico.
tos e materiais didáticos, vivenciando procedi- Isso pede uma organização curricular que possi-
mentos próprios de cada área de ensino. bilite, ao mesmo tempo, um aprofundamento em
o currículo de formação deve ainda prever relação aos segmentos da escolaridade e uma for-
atividades autônomas dos alunos ou a sua par- mação comum a todos os professores.
ticipação na organização delas: a constituição de o detalhamento que segue está expresso em
grupos de estudo; a realização de seminários termos de competências indicativas da defini-
"longitudinais" e interdisciplinares sobre temas ção de conteúdos, uma vez que é por meio da
educacionais e profissionais; a programação de aprendizagem deles que se dá o desenvolvimen-
exposições e debates de trabalhos realizados ou to dessas diferentes competências. Os projetos
de atividades culturais são exemplos possíveis. pedagógicos dos cursos de formação de profes-
Convém ainda destacar a importância de ati- sores não podem, portanto, deixar de definir e
vidades individuais como a produção do explicitar os conteúdos ou conhecimentos es-
memorial do professor em formação, a recupe- senciais à constituição dessas competências, de
ração de sua história de aluno, projetos de in- modo que garantam sua qualidade.
vestigação sobre temas específicos e até mesmo Para que os futuros professores tenham uma
monografias de conclusão de curso. visão ampla e não fragmentada da vida e dos pro-
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
cessos de aprendizagem dos seus alunos e do tra- analogamente, nos cursos para atuação es-
balho escolar que realizam, os cursos deverão pecializada por áreas ou disciplinas, deverá
contemplar essas diferentes dimensões da for- haver uma formação comum a todos os pro-
mação, de modo articulado e complementar. fessores especialistas;
Em decorrência, a organização curricular dos • assentada na base comum, os cursos deve-
cursos deve incluir sempre: rão oferecer formação específica de Licencia-
• espaços e tempos em que se garanta uma tura de professores para Educação Infantil,
formação c o m u m aos professores de todas anos iniciais e anos finais do Ensino Funda-
as etapas da educação básica; mental e Ensino Médio, esta, por sua vez,
especializada por áreas de conhecimento ou
• nos cursos para atuação multidisciplinar, por
disciplinas;
sua vez, uma formação c o m u m a esse tipo
de atuação, seja da Educação Infantil, seja • cursos optativos, a critério da instituição,
das séries iniciais do Ensino Fundamental; para atuação em áreas específicas.
Resumo
Com o aparecimento de novos públicos esco- de uma dicotomia entre uma formação inicial, mi-
lares e o desenvolvimento das novas tecnologias nistrada a iniciantes ou a novatos, para armá-los
de informação e de comunicação, as atividades de bem para o exercício da profissão, e uma formação
ensino desdobram-se hoje em condições transfor- continuada oferecida alguns anos depois para per-
madas, que convidam a uma reflexão sobre as mo- mitir a "reciclagem" dos professores cujas compe-
dalidades de formação de professores que sejam tências teriam se desgastado com o tempo? Defen-
as mais apropriadas a esse novo contexto. A dupla deremos uma melhor repartição do esforço de for-
necessidade de uma maior profissionalização e de mação no tempo (da vida dos profissionais). Pois
levar em conta as novas tecnologias, por exemplo, ingressamos na era da "formação acompanhante",
não parece ser absolutamente contestada. Mas ou seja, de uma formação concebida como um fa-
como a formação poderia, concretamente, levar tor contínuo de desenvolvimento profissional. Isso
em conta essas duas necessidades? Em particular, exigirá que nos situemos numa problemática de
qual poderia ser a estruturação adequada das ati- formação continuada e, portanto, de repensar a
vidades de formação na sua organização tempo- formação inicial situando-a num marco temporal
ral? Será que devemos aceitar sempre o esquema muito mais amplo.
Repensar a atividade de mais um simples aprendente.
• Dinâmica no sentido de uma série de ações
formação na sua relação que se inscrevem na duração de uma vida
orgânica com o campo profissional (formação permanente): o pro-
blema não reside em simplesmente prepa-
profissional rar para o exercício profissional, mas em
manter e inclusive desenvolver o nível de
qualificação profissional ao longo de todo o
A formação: uma atividade dinâmica período da vida ativa.
o que significa formar? Às vezes define-se a
formação como um conjunto de conhecimen-
tos e de competências que um ensino permite A formação: uma objetivação
adquirir com anterioridade ao ingresso na vida profissional
ativa. Uma definição como essa é triplamente o que especifica essa atividade dinâmica
problemática: é a sua objetivação. A formação só existe em
• Primeiramente, a formação não é do gêne- referência a um campo profissional. Formar
ro do conteúdo (uma bagagem a ser adqui- significa acompanhar alguém no seu trabalho
rida), mas do gênero da ação (ou das ativi- de construção de uma determinada compe-
dades) visando adquirir essa bagagem. tência social. Significa ajudá-lo a progredir no
• Essas atividades podem assumir a forma de domínio das competências necessárias para
um ensino; mas esta não é nem necessária, se tornar profissional numa determinada
nem a única, nem necessariamente a mais área. Significa, portanto, em primeiro lugar,
útil. Poderemos realizar atividades especí- fazer adquirir ou aperfeiçoar habilidades pro-
ficas de formação, diferentes daquelas ati- fissionais. É essa relação com a profissão (fu-
vidades tradicionais de ensino, sobretudo tura ou atual) que é essencial. Isso foi clara-
com um público constituído de adultos.
mente salientado por Guy Avanzini (1996). A
• Finalmente, se a formação antes de ingres- formação está sempre restrita a um objetivo
sar na vida ativa (formação inicial) é impor- preciso. Ela propicia uma qualificação que só
tante, inclusive essencial, seria redutor de- tem sentido dentro da perspectiva de exercer
mais esquecer a formação durante a vida a profissão para a qual essa qualificação é
profissional (formação contínua ou forma- requerida. Assim, a formação é uma ativida-
ção continuada). de conduzida tendo em vista conceder ao su-
Assim sendo, a formação é triplamente di- jeito uma competência que seja: a) precisa e
nâmica: limitada (visa-se um determinado objetivo
• Dinâmica no sentido de uma ação que se profissional); e b) predeterminada (viemos
exerce sobre um sujeito tendo em vista pro- para adquirir aquilo que é necessário para o
vocar e/ou acompanhar mudanças nas suas exercício desta profissão que se deseja exer-
maneiras de pensar e de fazer, para torná- cer, ou que já exercemos).
lo capaz de agir com eficácia em certas ca-
tegorias de situações bem definidas. A força dessa relação orgânica com o cam-
po profissional manifesta-se justamente no
• Dinâmica no sentido do processo de evo- tema da necessária profissionalização. Dese-
lução e de autotransformação do formado,
ja-se hoje "formar professores profissionais"
sendo este sócio ativo dessa construção de
(Paquay et al., 2001). Indagamo-nos acerca da
si como mais competente. Isso faz da for-
inserção profissional dos professores jovens
mação um parceria formador/formado, de
tal forma que este último não vem a ser, (Hétu et al., 1999). Os ofícios (que se originam
absolutamente, um simples aluno: ele será primeiramente de uma camaradagem e que
um novato (versus o especialista), ou um têm uma dimensão técnica predominante)
iniciante (versus o veterano), ou um apren- transformam-se em profissões quando a com-
diz (versus o profissional experiente); ja- plexidade do seu exercício exige o recurso a
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
uma base de saberes profissionais especia- sionais tendo em conta essa dimensão dinâmi-
lizados, que será a prerrogativa de um grupo ca da formação e essa relação orgânica com o
de profissionais, com uma identidade reco- campo profissional do ensino.
nhecida pelo corpo social. Assim, podemos
entender por:
Profissão: uma prática social complexa, ori- Superar os riscos
entada na direção de fins precisos, e que de contradição devidos
exige o domínio de um conjunto (em evo- r
Iza Locatelli
A avaliação em sala de aula:
o que está em jogo?
Andy Hargreaves
International Centre for Educational Change - Toronto/Canadá
A reforma liderada pela avaliação dos alu- (feedback) no processo de ensino, que decidam
nos é atualmente uma das estratégias mais como satisfazer às diversas necessidades de
favorecidas para promover padrões de ensino e aprendizagem dos alunos (Tunstall e Gipps,
aprendizagem mais elevados, um aprendizado 1996) e que aprendam como compartilhar o pro-
mais consistente e formas mais confiáveis de cesso da tomada de decisões sobre o ensino e a
prestação de contas para o público em geral aprendizagem com os colegas, pais e alunos
(Murphy e Broadfoot, 1995; Gipps, 1994; Black, (Stiggins, 1996; Gipps, 1994). Tais métodos alter-
1998). Embora avaliações prescritas pela legis- nativos também implicam repensar para que
lação e feitas em grande escala recebam uma servem a avaliação e o ensino: de que maneira
maior atenção, as avaliações em sala de aula são ambos podem vir em apoio a uma melhor apren-
as que mais importam nesse caso. São estas que dizagem e que tipos de objetivos, cobertura e
determinarão tanto a pedagogia a ser padrões curriculares a avaliação e o ensino po-
implementada em sala de aula quanto a apren- dem contribuir para melhor cumpri-los (Wiggins
dizagem dos alunos (Stiggins, 1991). Muitas re- e McTighe, 1998).
formas educacionais têm anunciado a chegada Essas mudanças na avaliação em sala de
de novas abordagens de avaliação em sala de aula colocam grandes desafios para os profes-
aula, para além das tradicionais técnicas de lá- sores. Eles são os únicos a terem contato per-
pis e papel, incluindo estratégias como a avalia- manente e conhecimento íntimo com seus alu-
ção de desempenho e a avaliação baseada em nos e com o currículo, ambos requisitos para a
portfolio (Marzano, Pickering e McTighe, 1993; elaboração de um quadro nítido da aprendiza-
Stiggins, 1995). Tais avaliações alternativas têm, gem de cada um no decorrer do tempo (Earl e
freqüentemente, o objetivo de incentivar os alu- Cousins, 1995). Ao mesmo tempo, os educado-
nos a assumir maior responsabilidade pela sua res estão ficando menos confortáveis com a sua
própria aprendizagem, de assumir a avaliação habilidade em alcançar bons julgamentos por
como parte integrante da experiência de apren- meio de métodos de testar tradicionais. Testes
dizagem e de inseri-la em atividades autênticas universais e neutros são difíceis de ser desenha-
que valorizarão e estimularão as habilidades dos dos e manuseados quando as turmas de alunos
alunos em criar e aplicar uma ampla gama de são d i v e r s i f i c a d a s . O que está sendo testado
conhecimentos, e não apenas participar em encontra-se em mudança. Na atualidade, os
ações de memorização e de desenvolvimento de alunos também devem analisar e aplicar a in-
habilidades básicas (Earl e Cousins, 1995; formação, além de se lembrar dela. As aparen-
Stiggins, 1996). tes certezas acerca do que devia ser avaliado e
As mudanças na avaliação em sala de aula como devia ser avaliado estão desmoronando,
representam mudanças importantes no e muitos professores não têm, hoje, clareza ou
paradigma da forma de pensar em relação à certeza daquilo que devem fazer enquanto lu-
aprendizagem, às escolas e ao ensino. Avaliações tam para atender bem a todos os seus alunos.
alternativas em sala de aula requerem que os pro- As atuais mudanças que ocorrem na avalia-
fessores usem o seu julgamento no que se refere ção em sala de aula apresentam oportunida-
ao nível de conhecimento das crianças, que com- des fascinantes para os professores, pois os
preendam como incorporar retroinformação confrontam com grandes dificuldades técnicas
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
e exigem intensamente o uso de sua energia habilidades necessárias para integrar, na sua
intelectual e emocional. Este capítulo analisa prática, novas técnicas de avaliação, tais como
como os professores do nosso estudo lidaram as avaliações baseadas no desempenho, com
com a reforma na avaliação, às vezes introdu- portfolio, a auto-avaliação, os videojornais e as
zindo-a, eles mesmos, em suas turmas, e exa- exibições. Stiggins escreve a respeito do "anal-
mina as condições que vieram ou não em apoio fabetismo na avaliação", que permeia as esco-
aos seus esforços. las, e sugere que:
A avaliação em sala de aula é um fenômeno
multifacetado. Muitas questões entram em jogo |...] sem uma visão muito clara do significado do
ao reformá-la, o que pode ser visto examinan- sucesso na escola e sem a capacidade de tradu-
do-se a reforma dessa avaliação à luz de dife- zir essa visão em avaliações de alta qualidade,
rentes óticas. Baseando-nos no tratamento clás- permaneceremos incapazes de ajudar eficaz-
sico da inovação educacional feita por House mente os alunos a atingirem níveis mais eleva-
(1981) e na discussão de Habermas (1984) a res- dos de aproveitamento escolar e a serem capa-
peito das diferentes dimensões da ação huma- zes de integrar tais avaliações em suas práticas
na, queremos chamar a atenção para três pers- (Stiggins, 1995: 238).
pectivas em inovação educacional - a técnica,
a cultural e a política - às quais acrescentamos As avaliações alternativas apresentam um
uma quarta: a perspectiva pós-moderna. emaranhado de questões técnicas:
• demandam muito tempo (Stiggins, 1996);
tes nos hospitais, em vez de revelações repen- e as experiências de avaliação que alguns des-
tinas e chocantes acerca de doenças terminais crevem como "autênticos" são, em diversos sen-
(Hopfl e Linstead, 1993). As avaliações alterna- tidos, problemáticos. Assim, muito pouco é
tivas poderiam encenar revelações graduais do inquestionável ou indiscutivelmente "verdadei-
insucesso escolar, assim como a medicina mo- ro" num mundo pós-moderno. Existem poucas
derna nos encena a revelação da morte. respostas "corretas" ou, inclusive, processos de
Em resumo, a perspectiva política desperta avaliação que possam ser considerados como
a atenção para os atos e para as relações de po- "os melhores". A avaliação alternativa pode ser
der incorporadas nos processos de avaliação, diversificada, de largo alcance, negociada, in-
tomem eles a forma de delegação de podêres clusiva e multifacetada, mas é exatamente por
para práticas de avaliação compartilhada, aber- isso que ela não pode ser "autêntica" no senti-
ta e negociada e de produção de relatórios de do de revelar alguma verdade imperativa.
resultados, de jogos de poder entre grupos de Na era da educação eletrônica, quando os
interesses concorrentes e suas expectativas no alunos têm o poder de colher informação ins-
campo da avaliação ou de formas mais sutis e tantânea proveniente de diversas fontes
sinistras de poder que possam impregnar e clicando num mouse, ou de fazer um download
infectar as próprias práticas de avaliação alter- de fotografias e gráficos em formato de pizza,
nativa com processos de patrulhamento em vez de os professores mesmos compilarem
comportamental e com práticas de seleção e representarem os dados, é mais difícil para
disfarçadas e "terapêuticas", as quais se tornam eles decidir o que é real e o que é falso, perce-
a antítese daquilo que a avaliação alternativa ber quando o trabalho dos alunos é efetivamen-
alega ser. te deles, determinar se as fontes das quais ex-
traíram os dados de seu trabalho são bem con-
ceituadas e decidir se essas coisas têm impor-
A perspectiva pós-moderna tância. da mesma forma, no paradigma pós-
A perspectiva pós-moderna da avaliação al- moderno, é patente que as avaliações não po-
ternativa baseia-se na visão de que, no mundo dem ser "autênticas", nesse sentido de ser sua
complexo, diverso e incerto de hoje em dia não origem indiscutível.
se pode conhecer integralmente os seres huma- Nesse sentido, enquanto um dos significa-
nos. Em salas de aula culturalmente diversas, a dos de "autêntico", segundo o dicionário
maneira como as crianças aprendem, pensam, Webster's, é "em estreita conformidade com o
sentem e acreditam é reconhecida como sendo original: reproduz de forma precisa e satis-
complexa (Ryan, 1 9 9 5 ) . O que é importante ou fatória os traços essenciais", como num retra-
real para as crianças de hoje em seu mundo da to, as avaliações alternativas são realmente
"realidade virtual" - de CDs, MTV, walkmans, menos fotografias "realistas" ou retratos "fiéis"
discmans, computadores, videogames e televi- e, sim, mais pinturas cubistas - representan-
são de múltiplos canais - também é complexo do e interpretando, em vez de reproduzir a rea-
e está em constante mutação (Castells, 1997). lidade, a partir de múltiplos ângulos e perspec-
"Os alunos mudaram", dizem os professores. tivas.
Eles já não mais parecem ser conhecíveis ou Por último, ainda segundo o Webster's, "au-
previsíveis. Muitos professores atualmente sen- têntico" também pode significar que possui
tem que têm "seres estranhos em suas turmas" "sinceridade completa, sem disfarce nem hipo-
(Green e Bigum, 1993). crisia". Entretanto, o mundo pós-moderno da
Nesse cenário complexo e mutável, nenhum simulação é aquele onde a ilusão é dissemina-
processo ou sistema de avaliação pode ser com- da e aceitável, onde calças jeans novas são des-
pletamente amplo, de incontroversa precisão botadas para parecer velhas, onde alguns pré-
ou inabalavelmente revelador da "verdade", da dios modernos recebem fachadas tradicionais,
essência da aprendizagem ou do aproveitamen- onde a música digital soa melhor do que o con-
to escolar das crianças. De fato, os significados certo ao vivo e onde rochas falsas adornam os
saguões espetaculares de hotéis em Las Vegas, mas de representação seriam reduzidas ou eli-
porque parecem mais reais do que as próprias minadas, fazendo com que o aproveitamento de
reais (Retzer, 1998). Avaliações "autênticas" si- alunos vindos de culturas visualmente orienta-
mulam a realidade tanto quanto a criam, pro- das, por exemplo, não fosse minorado quando
duzindo, por exemplo, lindas falsificações de comparado com o aproveitamento de alunos
publicações de livros, representações teatrais cujo ponto forte reside nas áreas da escrita e da
ou portfólios artísticos. Em todas essas manei- aritmética. Essa abordagem permite que o tra-
ras, será importante tratar a avaliação "autênti- balho e o aproveitamento dos alunos sejam vis-
ca" não como um clichê, mas, sim, como uma tos através de múltiplas perspectivas, bem
questão de indagação crítica (Meier, 1998). como permite que a complexidade de suas ap-
A perspectiva pós-moderna aponta tanto tidões e identidades seja reconhecida com mais
para os riscos quanto para as oportunidades na facilidade.
reforma da avaliação. Pelo lado dos riscos, as Tal abordagem pós-moderna envolve, ain-
avaliações alternativas, especialmente aquelas da, a participação dos alunos no processo de
com portfolio, podem simular mais do que es- avaliação e na determinação de como os pro-
timular o aproveitamento escolar. Os alunos e dutos da avaliação poderão ser compilados e
os professores podem ser induzidos a valorizar utilizados. Esse envolvimento dos alunos não é
a forma mais do que a essência, a imagem mais apenas um ato de cessão de podêres: ele é tam-
do que a realidade - com trabalhos em capas bém uma maneira de os professores admitirem
brilhantes, com fontes elegantes, entremeados que não podem começar a conhecer seus alu-
de gráficos e diagramas multicores, que pode- nos sem terem acesso ao auto-entendimento
riam mascarar conteúdos e análises medíocres. O portfolio
feito por
podeeles.
se transformar num dispositi-
vo que serve para conduzir e definir o aprovei-
tamento dos alunos de forma tal que eles che-
guem a prestar serviços à comunidade ou a rea- Conclusão
lizar atividades extracurriculares, não por cau- Em vista das contradições e das complexi-
sa de seu valor moral, mas porque querem ter o dades que vieram à tona com essas diferentes
curriculum vitae ou o portfolio certo. Dessa for- perspectivas, não é surpresa nenhuma que os
ma, as avaliações com portfolio e aquelas de professores, em nosso estudo, nos tenham dito
desempenho podem chegar a banalizar e mi- que a avaliação foi a parte "mais difícil" de seu
norar a essência da aprendizagem, reduzindo- trabalho. A maioria das conversas que tivemos
a a aparências superficiais e a uma "autentici- centraram-se na tentativa de ligar suas práticas
dade artificialmente elaborada" (Mestrovic, de avaliação e de produzir relatórios dos resul-
1997), num mundo sem rigor, de melhorias que tados; de tentar superar expectativas contradi-
apenas induzam a "sentir-se bem", bem como a tórias; de estabelecer um canal de comunica-
aquilo que Ritzer (1998) chama de cultura ção com os pais; de fazer com que os alunos
Disneyesca da "leveza". participem; de usar uma variedade de procedi-
mentos de avaliação alternativa; e de questio-
Em termos mais positivos, as práticas pós- nar tanto suas próprias práticas de avaliação
modernas de avaliação podem oferecer múlti- quanto as dos outros. Os professores também
plas representações da aprendizagem dos alu- se manifestaram acerca de suas sensações de
nos, de maneiras tais que resultem em dar mais desconforto e de incerteza com relação à avalia-
voz e visibilidade para suas diversas atividades ção dos alunos e à avaliação do próprio traba-
e realizações, através de meios de comunicação lho pedagógico e confessaram que essa ansie-
escritos, numéricos, orais, visuais, tecnológicos dade já existia muito antes dos episódios recen-
ou teatrais, os quais incorporariam uma mistu- tes de mudança curricular. É preciso olhar de
ra de estilos num portfolio diversificado quan- perto a maneira como essas complexidades e
to a atividades e aproveitamento. Distinções contradições se fizeram sentir no trabalho des-
hierárquicas de valor entre essas diferentes for- ses professores.
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
A avaliação dos sistemas de ensino é algo liação das escolas por si próprias. Neste caso,
recente no Brasil. Temos apenas uma década de além das avaliações nacionais, estaduais e mu-
avaliações sistemáticas, entendendo-se estas nicipais e além de avaliar sistematicamente os
como um processo amplo de tomada de deci- alunos, cada escola deve se auto-avaliar em fun-
sões no âmbito do sistema federal e dos siste- ção de seus programas, projetos, materiais pe-
mas estaduais e também municipais. A partir da dagógicos, recursos, professores, gestão, pesso-
constituição do Sistema Nacional de Avaliação al de apoio, alunos e infra-estrutura.
da Educação Básica (Saeb), começou-se a esten- A importância de a escola se auto-avaliar está
der o âmbito da avaliação para além da avalia- no fato de que, sendo o local onde as coisas acon-
ção de alunos, com a introdução de novas ques- tecem, é na escola que se dará o diálogo entre a
tões que permitiram detectar fatores associados equipe, pais, alunos e autoridades gestoras do
ao seu desempenho. Hoje, mais do que conteú- sistema. Toda a comunidade da escola deve ser
dos, são analisadas competências e habilidades, preparada para poder combinar os produtos das
o próprio currículo, os hábitos de estudo dos avaliações externas (como a realizada pelo Saeb)
alunos, as estratégias de ensino dos professores, e de suas próprias avaliações internas. Só uma
o tipo de gestão dos diretores e os recursos a eles boa e séria avaliação interna permitirá às esco-
oferecidos para melhor realizarem seu trabalho. las a construção de um diálogo efetivo com a ava-
A coleta, a análise e a disseminação desses da- liação externa. Quando isso não ocorre, a avalia-
dos compõem, hoje, uma parte expressiva da ção externa pode gerar atitudes defensivas, não
agenda de desafios compartilhada por todos os atingindo seus objetivos.
sistemas de avaliação, em seus diferentes níveis.
A avaliação intra-escolar é um processo que
Apesar desses avanços e embora se fale mui- exige tomada de consciência da importância da
to em mudanças e inovações do sistema educa- avaliação para que se estruturem processos de
cional estimuladas pela avaliação, qualquer mudanças. Envolve, ainda, descentralização e
mudança tem de ser assumida e implementada treinamento de equipes escolares.
dentro das escolas. Mudar a educação é mudar Cabe aos gestores de políticas públicas em
a escola. Se tivermos a intenção de usar a avalia- educação, agora que a avaliação já está sendo
ção para melhorar a educação, ela terá que ser institucionalizada, tomar iniciativas para que
trabalhada dentro das escolas, além do nível em grupos de escolas se reúnam, discutam seus
que vem sendo executada. problemas, formulem estratégias de avaliação,
A avaliação, segundo Nevo (1995), deve pas- utilizem a linguagem da avaliação, descubram
sar " [...] de um discurso de descrição e julgamen- suas potencialidades e façam as adequações
to para um discurso de diálogo". A avaliação do necessárias de suas ações às necessidades es-
sistema de ensino deve se basear também na ava- pecíficas de suas clientelas.
• Diretora de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Daeb/lnep). Doutora em Educação
pela PUC/RJ.
Ninguém, na realidade, aprende a avaliar dis- refa buscar o equilíbrio e a harmonia entre o
cutindo conceitos de avaliação. É preciso experi- desenvolvimento humano sob a égide da res-
mentar, tentar, criar estratégias, envolver a equi- ponsabilidade com a vida em sociedade. Edu-
pe, tendo como horizonte melhorar a qualidade camos ou devemos educar para a vida coletiva.
da educação e diminuir índices negativos, sejam Devemos, portanto, avaliar, também, as com-
de desempenho, evasão ou repetência. Normal- petências sociais e não apenas os conhecimen-
mente, deve-se selecionar alguma questão e tos operacionais.
envidar esforços para praticar a avaliação interna Se educamos para a vida social, imensa é a
sobre essa questão. Não é difícil organizar uma tarefa de lidar, por exemplo, com a competência
base de dados por escola, base esta que deverá comunicativa que não se esgota no ensino das
conter os índices de matrícula, evasão, desempe- regras e normas da Língua Portuguesa. Para que
nho, repetência, projetos implementados, currí- os estudantes ascendam à cultura e obtenham
culo praticado e tudo que for julgado pela equipe sua própria autonomia, toda a educação deve
como insumo necessário à avaliação da escola. converter-se num processo comunicativo, pois
Envolver professores, pais e alunos na tare- é com e através da linguagem que os estudantes
fa de avaliação intra-escolar não é fácil, mas não constróem e desenvolvem seus conhecimentos
é impossível. Quando se descobre onde estão num diálogo consigo próprios, com o "outro" e
os "nós", é mais fácil desatá-los e criar laços. com o mundo, seja este "outro" o professor, a fa-
À medida que as escolas começarem a efe- mília, a televisão, a internet, os colegas.
tuar suas próprias avaliações, haverá maior faci- É através da linguagem que os alunos dão
lidade em obter subsídios a partir das avaliações significado a sua própria experiência e dão sen-
externas, de tal forma que o processo avaliativo tido às experiências dos outros. A linguagem está
cumpra sua função: mudar o que precisa ser na base da formação do universo conceituai do
mudado, aperfeiçoar o que precisa ser aperfei- homem e dá suporte à função cognitiva, permi-
çoado, construir o que precisa ser construído. tindo ao sujeito abstrair o mundo, conceituar
A avaliação, portanto, deve servir de base para sobre ele, simbolizá-lo, transformá-lo e
o diálogo e não para dar origem a descrições comunicá-lo. A linguagem, entendida como
assertivas e unilaterais. Escolas habilitadas à ava- mediação necessária, não é instrumento apenas
liação interna entenderão que avaliar é um pro- de comunicação ou de transmissão de informa-
cesso contínuo, coletivo e não uma atividade iso- ção, mas é ação que transforma, lugar de confli-
lada. Desta forma, se envolvidas em sua própria to, de confronto ideológico.
avaliação, as escolas terão condições de se con- Na avaliação da competência comunicati-
frontar com diferentes perspectivas e conclusões. va, isto é, na análise das possibilidades que tem
No âmbito da avaliação específica dos alunos, um estudante para compreender, interpretar,
tarefa a que as escolas se dedicam com mais vi- organizar, negociar e produzir atos de signifi-
gor, é preciso levar em conta a mudança de cação, por meio de distintas formas de lingua-
enfoque nos processos avaliativos. Já não basta a gem, destacam-se a leitura e a escrita. A leitura
avaliação dos conteúdos aprendidos mas torna- e a produção de textos não se fazem apenas na
se cada vez mais necessário avaliar as competên- escola, mas não há dúvida de que este é um lo-
cias e habilidades desenvolvidas pelos alunos. cal privilegiado para que crianças, adolescen-
o objetivo primordial do processo de edu- tes e jovens se apropriem das ferramentas ne-
cação deve ser o de desenvolver nos alunos es- cessárias para serem sujeitos ativos na compre-
tratégias para aprender a pensar e para saber o ensão e na produção de textos.
que fazer com a imensa quantidade de infor- o desenvolvimento desses processos, den-
mações recebidas na sociedade contemporâ- tro da ótica da competência comunicativa, é
nea. Já não cabe mais à escola ensinar ao aluno resultado de um processo histórico de sociali-
diferentes conteúdos, em geral desvinculados zação e depende das oportunidades que se ofe-
das práticas sociais, políticas, econômicas e reçam na escola, e fora dela, de ler/viver textos
c u l t u r a i s . O serviço educacional tem como ta- com compreensão e de produzir textos em fun-
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
ção da construção de novos saberes que vão se o texto é apenas tinta sobre papel, num segundo
fazendo através da vida em si e da vida na esco- momento, aquele vazio é preenchido com uma
la. Se a função primeira da linguagem não é a troca entre o que é dito e o que se pensa sobre o
informação e se tomamos o texto como unida- que é dito. Não há homogeneidade entre o que
de significativa constituída pela interação, não diz o texto e o que o texto diz ao leitor. A partir
há por que considerar um sentido literal e seus do reconhecimento dessa heterogeneidade, o
efeitos: há múltiplos sentidos, há polissemia. leitor consegue interpretar o texto reconhecen-
Embora a escola não seja o único centro de do que quem fala através do texto é alguém di-
produção de saberes, é ela que dá ao estudante ferente de si próprio.
os instrumentos necessários que lhe irão per- As competências de leitura dos alunos expres-
mitir ser um sujeito ativo na construção de co- sam-se por meio do reconhecimento explícito das
nhecimentos. Esses instrumentos envolvem informações contidas no texto até o desvelamento
muito mais do que a memorização de regras de suas estratégias de sentido das condições prag-
descontextualizadas. O ensino e a avaliação em máticas que geraram sua produção.
Língua Portuguesa envolvem processos concre- Em relação às competências na área de Ma-
tos de comunicação que solicitam do sujeito o temática, já há alguns anos a escola vem mu-
exercício de determinadas habilidades. dando a postura antes adotada. Não mais a
Isso não significa desconhecer a importân- Matemática da memorização e da resolução de
cia do conhecimento sobre a língua mas é pre- séries intermináveis de exercícios para fixar
ciso que este não se faça sem uma consciência determinados conhecimentos, mas uma outra
das condições pragmáticas da enunciação em vertente que visa à contextualização do objeto
contextos particulares e específicos. de estudo. A educação matemática hoje está ou
o processo de interpretação textual supõe deve estar voltada para a vida.
uma série de operações que o leitor executa o conhecimento matemático caracteriza-se
sobre o t e x t o . O leitor dialoga com palavras, por dois componentes inseparáveis: conceitos
ilustrações, gráficos etc. e constrói efeitos de e procedimentos, e deve ser construído a partir
sentido em que se mesclam os saberes do leitor de situações que permitam aos estudantes
e os saberes do texto. Sempre o leitor estará se construir significados.
confrontando com seus conhecimentos e as cir- o conhecimento conceituai caracteriza-se
cunstâncias da enunciação. "Quando se diz por um conjunto de fatos, conceitos, estrutu-
algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade ras e teorias. Já o conhecimento dos procedi-
para outro alguém também de algum lugar da mentos caracteriza-se por habilidades, estraté-
sociedade e isso faz parte da significação" gias e métodos que permitem aos alunos ma-
(Orlandi, 1987:26). nifestar as relações e conexões existentes entre
Para que ocorra o processo de compreen- esses fatos, conceitos e estruturas.
são, o aluno precisará utilizar conhecimentos No que toca à avaliação, é importante tra-
prévios, representações sobre diferentes expe- balhar com as situações que dão sentido aos
riências vividas ou percebidas e saberes cons- conceitos matemáticos, entendendo-se que o
truídos nas relações com outros sujeitos e com sentido não está nem nas situações nem nas
o mundo. Através desses intercâmbios é que o representações simbólicas e, sim, na relação do
leitor irá construindo hipóteses de leitura so- sujeito com as situações e os significados. As-
bre o que estará dizendo o texto. sim, a avaliação em Matemática deve estar
As hipóteses de leitura de cada um são mui- centrada na resolução de situações problemas.
to amplas. No entanto, vão se estreitando à me- Estas, por sua vez, devem exigir do estudan-
dida que o leitor avança com a leitura. Vão sen- te diversos níveis de raciocínio, tentando fazer
do descartadas certas hipóteses e outras vão sen- emergir diferentes competências. Em cada si-
do c o n s t r u í d a s . O leitor constrói o sentido do tuação- problema devem estar subjacentes dis-
texto num jogo de ensaios e erros, de generali- tintas estruturas matemáticas. Assim, pode-se
zações e abstrações. Se num primeiro momento avaliar os alunos em vários níveis referenciados
à Aritmética, à Estatística, à Geometria etc. Em bre este tema.
muitos momentos, pode-se levar o aluno a ape- Currículo, avaliação e formação de profes-
nas realizar operações; em outros, a identificar sores baseados em novas competências pode-
representações, a estabelecer equivalências e rão servir à transformação de nossas escolas.
relações matemáticas simples ou complexas, a Mudar a educação é mudar a escola e essa mu-
buscar estratégias que relacionam vários con- dança só ocorre com participação, compromis-
ceitos e fatos, operações. so e competência de todos os envolvidos no
A resolução de problemas está presente em processo educacional.
nossa vida o tempo todo: resolvemos problemas Somente assim, com a participação ativa
pessoais, problemas sociais, problemas cientí- das próprias escolas no processo avaliativo será
ficos, e só se aprende a resolver problemas, re- possível o diálogo com os dados coletados pe-
solvendo-os. Todo o ensino de Matemática deve los sistemas de avaliação, instituindo-se um
pois centrar-se na resolução de problemas. espaço promissor e comprometido com mu-
A avaliação escolar no contexto de utiliza- danças para uma educação de qualidade.
ção de novas competências deveria, portanto,
ser trabalhada em duas vertentes: a avaliação
intra-escolar envolvendo as ações e relações
realizadas e estabelecidas no âmbito da escola
e a avaliação centrada na análise das compe- Bibliografia
tências e habilidades desenvolvidas pelos alu-
BAKHTIN. Filosofia da linguagem. Porto Alegre: Artmed,
nos no transcurso de sua trajetória escolar.
1988.
Se a escola começar a se auto-avaliar e a ava- NEVO, D. Diálogos em avaliação. daeb/lnep (mimeo.).
liar as competências e habilidades de seus alu- ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campi-
nos, serão ampliadas as possibilidades de diá- nas: Pontes, 1987.
logo entre ela e os sistemas de avaliação, po- PARDO, C. Estudo de qualificação por níveis de desempe-
dendo cada escola reconhecer seus avanços e nho. daeb/lnep/MEC (mimeo.).
PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente
suas dificuldades em relação às demais, tornan-
e formação. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
do-se não apenas objeto de avaliações externas Não mexam na minha avaliação: para uma
mas sujeito destas, reconhecendo-se como úni- abordagem sistêmica de mudanças pedagógicas. In:
ca e singular. A avaliação assim entendida, sem ESTRELA; NÓVOA (Orgs.). Avaliação em educação:
dúvida, contribuirá para que os diagnósticos novas perspectivas. Porto: Porto Editora, 1993.
feitos nos ajudem a tomar decisões em prol de RICOUER, P. O conflito das interpretações. Imago Editora,
uma escola de qualidade. Melhorar a avaliação 1978.
das escolas é melhorar a educação. Sob este as- SACRISTÁN. J. O currículo e a diversidade cultural. In: SIL-
VA; MOREIRA (Orgs.). Territórios contestados: o currí-
pecto, cabe lembrar o papel dos cursos de for-
culo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Ja-
mação de professores, que precisam incluir ur- neiro: Vozes, 1999.
gentemente em seus currículos discussões so- SILVA, E. O ato de ler. São Paulo: Cortez, 1987.
SIMPÓSIO 12
FORMAÇÃO CONTINUADA
DO PROFESSOR
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho
Quero, antes de mais nada, agradecer ao instituições culturais e escolas particulares que
convite do MEC para participar deste im- colaboram com a ampliação cultural e didáti-
portante evento. Para quem conhece e par- ca dos educadores.
ticipa da difícil trajetória da Educação In- o projeto inicial tinha como principais ob-
fantil rumo aos caminhos da educação, fa- jetivos a criação de um espaço de reflexão dos
zer parte deste evento é motivo de regozi- educadores com vista a mudanças paulatinas na
jo. Parece que a complexidade de educar prática e o apoio para o desenvolvimento de um
crianças pequenas e a importância dos pri-
projeto coletivo na instituição. A formação teve
meiros anos da infância começam a ter
como base uma proposta de trabalho com as
mais espaço e reconhecimento. Vou discor-
rer brevemente sobre nossa experiência em crianças, a partir da qual foram delineadas di-
formação continuada, esperando contri- ferentes estratégias de capacitação de todos os
buir com os colegas que se interessam pelo envolvidos: educadores, gerentes e pessoal de
assunto e têm sob sua responsabilidade a a p o i o . O processo de formação foi presencial,
formação continuada de educadores. aconteceu nas entidades, com toda a equipe
compartilhando momentos comuns e específi-
cos. Considerando que a formação envolvia
Breve histórico mudanças e ressignificações em relação a ensi-
o Crecheplan, hoje Instituto Avisa Lá, por no, aprendizagem, visão de criança e tantas
iniciativa do Instituto C&A de Desenvolvimen- outras, optou-se por um processo de dois anos,
to Social, iniciou em janeiro de 1994 um pro- com extensão para os coordenadores pedagó-
jeto de formação continuada em entidades so- gicos no terceiro ano. A carga horária total de
ciais nas cidades de São Paulo e Osasco. Essas cada categoria profissional nos dois anos foi de
entidades possuíam, então, 254 trabalhadores 352 horas para gerentes e coordenadores, 33
- 144 educadores, 88 profissionais de apoio, horas para pessoal de apoio, 154 a 190 horas
22 gerentes e coordenadores - e atendiam para educadores. Trabalham, em cada institui-
2.100 crianças e adolescentes em 12 creches e ção, quatro formadores do Avisa Lá, dois na área
6 centros de juventude. A necessidade de um de educação, um na área de saúde e um em
trabalho de formação partiu das próprias en- gerenciamento.
tidades, preocupadas em melhorar o desem- Todo o trabalho foi documentado por meio
penho de seus profissionais e, conseqüente- de diagnóstico inicial, avaliações periódicas, re-
mente, em oferecer um bom atendimento às latórios de campo, projetos de trabalho, produ-
c r i a n ç a s . O projeto tornou-se um programa na ções das crianças e dos educadores. Parte do
nossa instituição. Tem sido, desde essa épo- material foi publicada no livro Por um triz e na
ca, uma parceria entre empresas finan- revista Avisa lá, ou editada em vídeos para for-
ciadoras, o Instituto Avisa Lá - que desenvol- m a ç ã o . O projeto inicial gerou também três te-
ve a formação -, entidades que atendem dire- ses de mestrado. Com a experiência acumula-
tamente as crianças e participam da formação, da, elaboramos para os educadores um currí-
culo com as competências nas diferentes áreas, quisas em educação é condição fundamental
que ainda é material de uso interno. Nossa equi- para que a ação pedagógica seja coerente e efe-
pe passou por grandes aprendizados, de um iní- tiva. Delia Lerner, em seu texto sobre capaci-
cio de trabalho seguindo uma linha mais tradi- tação de professores em língua escrita, discor-
cional, transmissiva, para uma atuação cada vez re com muita propriedade sobre a dificuldade
mais c e n t r a d a na resolução de problemas de se considerar a educação como ciência, que
advindos da prática dos educadores. Buscamos tanto quanto outras áreas produz conhecimen-
cada vez mais a coerência entre o modelo de tos que deveriam entrar no cotidiano escolar.
ensino e aprendizagem preconizado para as cri-
anças e o modelo da formação. A partir dessa Parece essencial, então, criar consciência de que
primeira experiência fomos construindo uma a educação também é objeto da ciência de que
metodologia de formação continuada que tem se produzem cotidianamente conhecimentos
sido desenvolvida em diferentes instituições de que, se entrassem na escola, permitiriam melho-
Educação Infantil, em programas de ação com- rar substancialmente a situação educativa. É
plementar à escola e, mais recentemente, em necessário, além disso, fazer conhecer, da ma-
escolas de Ensino Fundamental. neira mais aceitável que seja possível, quais são
as práticas escolares que deveriam mudar para
adequar-se aos conhecimentos que hoje temos
Concepção do programa sobre a aprendizagem e o ensino da leitura e da
escrita, assim como mostrar os efeitos nocivos
de formação continuada dos métodos e procedimentos tradicionais que
se tornam tão "tranqüilizadores" para a comu-
Baseado em um projeto pedagógico nidade e tornar públicas as vantagens das estra-
tégias didáticas que realmente contribuem para
para as crianças
a formação de usuários autônomos da língua
Uma importante decisão foi t o m a d a no iní- escrita (Lerner, 1993).
cio do programa de formação q u a n d o a equipe
responsável optou por eleger os conteúdos da o acesso à pesquisa e à produção de conheci-
capacitação a partir de um projeto pedagógico mento, que poderiam contribuir para uma me-
para as crianças. Embora não fosse um currícu- lhoria substancial da prática educacional, tem
lo pronto e acabado, as linhas mestras estavam sido difícil nas escolas. Nas instituições de Edu-
c l a r a m e n t e d e l i n e a d a s . 1 Assim, e m vez d e cação Infantil, onde não há consenso sobre a sua
centrarmos em temas gerais como desenvolvi- função educacional, a possibilidade da entrada de
m e n t o infantil, história da educação, teorias de novos conhecimentos torna-se ainda mais remo-
aprendizagem e t c , c o n t e ú d o s mais apropria- ta. Do nosso ponto de vista, resumindo, podemos
dos a uma formação inicial, d e m o s um enfoque dizer que hoje em dia projetos pedagógicos teo-
maior à construção de conhecimentos pela cri- ricamente bem fundamentados têm como base
ança e à ação didática do educador no proces- as seguintes premissas: construção de conheci-
so. Os conhecimentos de caráter mais geral en- mentos pela criança; integração entre cuidados e
traram como t e m a s transversais ao longo de educação; apropriação dos saberes socialmente
todo o projeto. valorizados pela sua comunidade e pela socieda-
A opção por u m a visão construtivista dos de como um todo; contato o mais direto possível
processos de desenvolvimento e aprendizagem com as reais produções culturais; proximidade
foi outro fator decisivo para dar unidade e con- das práticas educacionais com as sociais; impor-
sistência à proposta. A relação entre o projeto tância da intervenção especializada do educador
pedagógico e as mais atualizadas teorias e pes- no processo de aprendizagem das crianças; con-
1
A proposta que adotamos para o trabalho com as crianças acabou referendada anos mais tarde pelo Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil (RECNEI), MEC.
sonância entre conteúdos mais tradicionais com em conhecimentos e necessita saber intervir
questões sociais e culturais, locais e gerais; exer- para que as crianças avancem. Nesse sentido, é
cício da cidadania. fundamental o conhecimento das didáticas es-
pecíficas, além de um contato sistemático com
Reflexão "na" e "sobre" a ação produções culturais que possibilitem variedade
de conteúdos. Privilegia-se na formação o pro-
Compartilhamos das concepções que en-
fissional ativo, autor e transformador de sua pró-
tendem que a formação continuada depende
pria prática. Com isso possibilita-se maior con-
substancialmente das questões que emergem
fiança e o desenvolvimento de sua auto-estima
da atuação direta do educador com as crianças.
como profissional competente.
Os educadores estão em um real contexto de
aprendizagem onde "se aprende a fazer fazen-
do: errando acertando, tendo problemas a re- Contexto de formação coletiva
solver, discutindo, construindo hipóteses, ob- A formação em serviço, mais do que a inicial,
servando, revendo, argumentado, tomando de- depende de questões institucionais, de modifica-
cisões, pesquisando" (Crecheplan, 1998). ções estruturais que possibilitem a construção
o processo de refletir sobre a prática, procu- coletiva e o desenvolvimento de um projeto com-
rar compreendê-la e analisá-la em busca de aper- partilhado entre todos os profissionais da insti-
feiçoamento, esteve desde o início do nosso pro- tuição. Questões de gerenciamento, estruturação
grama atrelado ao trabalho desenvolvido junto às da rotina, possibilidade de horas para reuniões,
crianças. Partindo dos problemas reais enfrenta- suficiência de materiais necessários à formação
dos pelos educadores, foi possível, por um lado, constituem elementos importantes que podem
valorizar sua experiência e, por outro, garantir limitar o trabalho. Além dos educadores, pessoal
maior participação e uma atitude investigativa de apoio, coordenadores e diretores passaram
como base para novas aprendizagens. Os conhe- juntos pelo processo de formação.
cimentos teóricos eram trazidos pela formação É importante enfatizar que esse processo
como instrumentos valiosos de ressigniflcação da possibilita um intercâmbio de idéias entre os di-
prática. Considerando essa concepção, o progra- ferentes atores, envolvendo tanto o desenvolvi-
ma privilegiou as estratégias centradas em troca mento de procedimentos para aprendizagem
de experiências, supervisão da prática, observa- coletiva como as reflexões individuais. Construir
ção de sala, desenvolvimento de projetos de tra- um projeto compartilhado implica tomada de
balho, análise de situações-problemas, parcerias decisões em conjunto, esforço Colaborativo en-
com educadores mais experientes. tre os parceiros e hábito de ouvir e de fazer críti-
cas construtivas. Além do trabalho com a equi-
Saber fazer - desenvolvimento de pe interna feito em cada unidade, os encontros
competências de formação, as reuniões com as coordenações
e com o pessoal de apoio eram feitas intercreches
Ao longo do processo de formação, foi-se (três instituições juntas).
delineando a importância do desenvolvimento
das diferentes competências que os educadores
deveriam construir para desempenhar bem sua
função. A aprendizagem de conteúdos por si só Estratégias formativas
não significa uma prática eficiente. É fundamen- Ao longo do processo de formação, foram
tal aliar os conteúdos ao saber fazer. É a capaci- desenvolvidas diferentes estratégias formativas.
dade de resolver problemas que surgem na ação Algumas delas estão presentes desde a primeira
que pode transformar a prática. Para desempe- capacitação, outras foram sendo reformuladas e
nhar a contento a função de ajudar as crianças a novas estratégias foram incorporadas.
construírem significados a partir dos conteúdos Levantamento das práticas em curso. Por
disponíveis para as aprendizagens, o educador meio de entrevistas, questionários, filma-
precisa conhecer como elas pensam e constró- gens, fotos e análise das produções das cri-
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
anças é feito um levantamento das princi- lidade formativa é uma das mais interessan-
pais práticas em uso, seguido de análise da tes porque alia a atuação direta de um pro-
equipe formadora. A partir daí estruturam- fessor experiente com a prática reflexiva
se os projetos de trabalho com os conteú- conjunta de três profissionais. Durante oito
dos da formação. encontros, o chamado "professor de apoio"
Desenvolvimento de projetos de trabalho. (formador da nossa equipe) desenvolve um
Esta estratégia incorporada bem recentemen- projeto de trabalho com as crianças de uma
te vem comprovando sua eficácia principal- das salas (ao todo, passam por essa modali-
mente para que a formação mantenha o foco dade quatro grupos de crianças em dois
e possa avaliar melhor as aprendizagens de anos). Esse projeto é elaborado com ajuda
todos os envolvidos, crianças e adultos. Tra- do educador da turma, que desenvolve ati-
ta-se do desenvolvimento de pequenos pro- vidades complementares quando o educa-
jetos de trabalho que são elaborados por to- dor de apoio não está. A atuação direta com
dos os envolvidos no processo: educadores, as crianças é quinzenal, durante duas ho-
coordenadores das entidades, profissionais de ras. Após esse momento, há uma reunião de
apoio. Esses projetos têm duração de quatro uma hora com o educador da sala e com o
a seis meses. Por exemplo, se os educadores coordenador pedagógico da instituição.
vão desenvolver projetos de linguagem oral Produção de documentação de caráter
com as crianças, é a partir desses projetos que formativo. É incentivada a produção de
o formador estrutura o seu t r a b a l h o . O pró- materiais a partir da capacitação, tais como:
prio formador também escreve e desenvolve reflexões, registros, projetos com as crian-
seu projeto de formação. Assim, em dois anos, ças, sugestões de atividades, planos anuais,
temos projetos de diferentes áreas que possi- estudos específicos etc. A sistematização e
bilitam aprendizagens diversas. É importan- socialização permitem que os profissionais
te ressaltar que, embora a ênfase dos projetos se reconheçam como produtores de conhe-
esteja em uma área, usam-se conhecimentos cimento.
diversificados em cada trabalho, assim como
Fruição cultural. Ampliamos e facilitamos
os conteúdos atitudinais e procedimentais são
as possibilidades de acesso a bens culturais
partes inerentes de toda a ação.
durante o processo de capacitação: idas a
Análise teórica de situações práticas. Nes- museus, teatros, rodas de leitura, sessões de
se modelo de formação, a teoria tem lugar cinema, música, contato permanente com
para servir de confronto, afirmação e eluci- livros, jornais e demais publicações e aces-
dação das questões c o t i d i a n a s . O trabalho so a redes de informação e cultura.
com conteúdos e com textos serve para au- Incentivo a mudanças na organização da ins-
xiliar problemas didáticos concretos e sub- tituição. Como decorrência da capacitação,
sidiar a análise de diferentes pontos de vis- são necessárias mudanças na rotina das cri-
ta e estratégias. Portanto, a teoria se reveste anças e dos adultos, na organização do espa-
de significância e pode possibilitar uma ço físico, na oferta, disposição e uso de mate-
apropriação original e criativa por parte do riais pedagógicos, livros, brinquedos, TV,
educador. vídeo, nas relações com os pais e a comuni-
Supervisão da prática. Análise de registros dade. O projeto trabalha transversalmente os
dos educadores, observação em sala e aná- conteúdos procedimentais, atitudinais e
lise conjunta das atividades possibilitam conceituais que possibilitam a reorganização.
desenvolver a capacidade de observação e Formação de formadores. Projetos de
reflexão sobre as reais situações de ensino e capacitação em serviço precisam envolver
aprendizagem que o educador propõe para toda a unidade, a equipe dirigente, os pro-
as crianças. Permite também que o forma- fissionais de apoio, pois só isto vai possibi-
dor investigue com maior proximidade a litar a permanência da formação na organi-
real participação das crianças na constru- zação institucional. A instrumentalização
ção de conhecimentos. do diretor para a criação e implantação do
Atuação de professor de apoio. Essa moda- projeto pedagógico e a capacitação de co-
ordenadores vai permitir a continuidade do ao bom resultado esteja vinculado à dificuldade
projeto na instituição. Portanto, ao longo do ou mesmo à impossibilidade de o educador re-
projeto é dada ênfase na atuação da equipe ver sua prática, o que se constituiria em falta de
dirigente; no terceiro ano há um tempo de- motivação interna, de um real desejo de trans-
dicado aos coordenadores pedagógicos. formação. Algumas representações sobre o pa-
Aplicação de avaliações. A partir do diagnós- pel da educação, a concepção de criança, o pa-
tico inicial, as avaliações devem garantir o pel do professor podem ser tão fortes e arraiga-
acompanhamento do trabalho do ponto de das que inviabilizam a transformação. Em outras
vista da produção das crianças, das compe- situações, a equipe dirigente não assume efeti-
tências desenvolvidas pelos profissionais, do vamente os compromissos, tendo uma atuação
grau de coerência entre a prática e o projeto frouxa que acaba desmotivado a equipe. Em
pedagógico, das mudanças nas relações en-
ambos os casos, nossos formadores têm apresen-
tre escola, pais e comunidade.
tado dificuldade para reverter a situação.
Relato de experiências. Saber explicar o que faz, Sentimos também falta de maior apoio de pes-
como e por quê é para educadores um desafio quisas nacionais sobre a formação continuada, já
de sistematização e explicitação de sua práti- que são poucos os estudos que se dedicam à cons-
ca. Ao se organizarem para apresentar seus pro- trução de conhecimentos pelos educadores. Esse
jetos a profissionais de outras instituições, os tipo de formação em que a tematização da prática
educadores desenvolvem diferentes compe-
é o eixo principal, carece ainda de mais estudos e
tências, entre as quais a de saber comunicar-
de pesquisas, o que, conseqüentemente, traz limi-
se profissionalmente. Fazem parte da forma-
ção seminários, mostras e exposições. tações. Temos lançado mão da literatura existente
em Portugal, França, Argentina, entre outros paí-
ses, que muito tem subsidiado nossa atuação, mas,
Conclusões evidentemente, teríamos muito benefício com es-
tudos voltados para a nossa realidade.
A permanência do programa na nossa insti-
tuição atesta, em certa medida, sua aceitação
tanto por parte dos financiadores como das
entidades que participam da formação. Até o
momento, atuamos diretamente em 60 creches Bibliografia
e 22 centros de juventude. Cerca de 85% das
ALARCÃO, I. Escola reflexiva. Porto Alegre: Artmed, 2001.
entidades participantes mudam substancial- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
mente sua prática com as crianças, apresentan- Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a
do uma qualidade efetiva no trabalho. A apren- Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.
dizagem das crianças passa a ser o foco da ação Referenciais para a Formação de Professo-
de toda a instituição. Os educadores têm sua res. Brasilia, DF: SEF/MEC, 1999.
auto-estima fortalecida, tornam-se mais com- CRECHEPLAN, Instituto Avisa Lá. Currículo para Forma-
ção Continuada na Educação Infantil. São Paulo, 1998.
petentes; muitos voltam a estudar, seguindo
LERNER, D. Capacitação em serviço e mudança na pro-
carreira na educação. A motivação para o tra-
posta didática, encontro de especialistas. Bogotá:
balho se desenvolve em um crescendo que pros- CERLAL, 1993.
segue mesmo após o término do projeto. Con- PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para en-
tinuamos mantendo contato com a maioria, sinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.
incorporando os profissionais em outros pro- SCARPA, L. 'Era assim, agora não..": uma proposta de for-
jetos, acompanhando o crescimento constante mação de professores. São Paulo: Casa do Psicólogo,
das equipes. 1998.
ZABALA, P. A prática educativa: como ensinar. Porto Ale-
Como todo trabalho que envolve educação, gre: Artmed, 1998.
em algumas entidades (15%) não temos resulta- ZEICHENER, K. A formação reflexiva: idéias e práticas. Lis-
dos tão brilhantes. Talvez o limite mais cerceador boa: Educa, 1993.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação I n f a n t i l
Resumo
Em decorrência da nova identidade que a Edu- 2. possibilite que o educador tome a sua prática
cação Infantil vem procurando construir, especial- como objeto de reflexão, tornando-a peça fun-
mente após alguns avanços legais, uma série de damental na construção do seu conhecimen-
exigências e desafios se impõem no que se refere à to, do conhecimento das crianças e da propos-
formação, colocando os profissionais em uma po- ta pedagógica;
sição bastante diferenciada daquela ocupada até 3. produza condições para que o educador ori-
alguns anos atrás, ou ainda dominante em várias ente suas ações pelo princípio da promoção do
instituições. No país, existem experiências diver- desenvolvimento e do respeito à diversidade
sificadas, apontando para uma rica pluralidade de social e cultural;
concepções e projetos de formação. A experiência 4. possibilite espaços de socialização, de troca e
do Centro de Investigações sobre Desenvolvimen- de encontro;
to Humano e Educação Infantil da Universidade de 5. forneça instrumental e conhecimentos que
São Paulo (Cindeci/USP) em formação de educa- permitam ao educador criar e produzir, ligan-
dores tem-nos mostrado que a qualidade na ela- do-o ao mundo;
boração e execução de um programa ou política de 6. crie condições para a vivência da curiosida-
formação se estabelece, principalmente, quando se de criativa e para sua inserção na cultura ci-
tem como princípio a formação de uma pessoa ci- entífica;
dadã e não apenas a de um profissional. É a con- 7. insira o educador em um caldo cultural que
cepção de pessoa, intrinsecamente articulada a favoreça sua apropriação da cultura mundial e
nossa concepção de desenvolvimento, que vem do seu grupo social;
norteando nosso modo de pensar e de agir sobre 8. dê oportunidades para a construção de uma
formação, entendendo-a como processo que: identidade e de um autoconceito positivos,
1. busque fazer com que o educador construa promovendo o seu desenvolvimento como pes-
uma visão ética e política de sua prática; soa e como profissional engajado socialmente.
Educação Infantil:
algumas reflexões sobre a formação
continuada em serviço*
Aricélia Ribeiro do Nascimento4
Pensando por onde iniciaria este texto, mos fortes, conseguiremos chegar à vitória. E
flagrei-me consultando o dicionário, onde li: quem falou que os vitoriosos vivem só alegrias,
"infantil: ingênuo, tolo". Nossa, que susto! Será não é mesmo?
que a trilha da formação continuada em servi- o patinho feio da formação em serviço está
ço do professor de Educação Infantil tem sido trocando as penugens por belas penas! E sabem
permeada pela ingenuidade, pela tolice? por quê? Porque as professoras estão lutando
Ufa, que bom!!! Tudo não passou de um sus- para construir espaços de fazeres educativos. Um
to do século passado. É possível identificar si- lugar ideal para um bom ninho, um cantinho
nais de construção de uma nova era na forma- protegido não do mundo, mas no qual a exclu-
ção continuada. Dificuldades muitas mas, so- são não tenha vez.
• Para a elaboração deste texto muito me valeu a experiência vivida e os cadernos produzidos pelo Programa de Formação Continuada - PCN
em Ação. da Secretaria de Educação Fundamental do MEC.
• * Técnica da Coedi/SEF/MEC, formadora nacional do Programa PCN em Ação. da SEF/MEC, e mestranda da Universidade de Brasília.
Mas ainda nos deparamos com propostas de frágeis estes ficarão. Dessa forma, terão poucas
formação cerceadoras do vôo de nossas crianças- possibilidades de partilhar e compartilhar expe-
passarinhos. Procurar compreender melhor o riências e, conseqüentemente, terão práticas
universo de formação continuada faz-se neces- pedagógicas pouco enriquecidas.
sário, bem como repensar as propostas de forma- Possibilitar aos professores de Educação In-
ção. Escolhi esse recorte na intenção de expor al- fantil a organização da formação continuada de
gumas idéias, dúvidas, reflexões e ansiedades. maneira sistematizada, em seu próprio locus de
A caminhada dos professores quase sempre atuação profissional, com a perspectiva de valo-
é rica, variada e recheada de "causos" e, na maio- rizar os saberes que esses professores construí-
ria das vezes, eles procuram compreender os ram ao longo de sua docência, seria um bom
muitos desafios com os quais lidam no dia-a-dia começo.
da instituição. Assim, procuram as propostas de Mas, para tanto, a organização do trabalho
formação continuada na perspectiva de encon- pedagógico da formação continuada necessita de
trar respostas para muitas de suas questões. um pensar mais atualizado, pois, de alguma ma-
Em um breve olhar para as minhas primeiras neira, a vivência dos professores nesses espaços
experiências docentes, vejo que não fugi à regra, reflete-se na forma como eles organizam os am-
pois comparo o início de minha prática pedagó- bientes educativos das instituições em que tra-
gica a um dicionário onde todas as palavrinhas balham. Se, por um lado, em sua docência, o pro-
estão sempre em fila. Após ouvir um número sig- fessor convive com rotinas que põe em ação de
nificativo de professoras de Educação Infantil, forma relativamente consciente, mas sem avaliar
constatei que não foi tão diferente o lidar delas a sua repercussão, logo, sem escolhê-las e
com o mundo das metodologias e das didáticas controlá-las verdadeiramente — pois esta é a par-
no início de suas carreiras. Será o legado da for- te de reprodução, de tradição coletiva —, por ou-
mação inicial em Magistério? Fica a questão. tro lado, em outros momentos da prática, são a
Imagino que em virtude dessas semelhanças expressão do hábito, o ato mecânico de repetidas
na formação, mesmo em épocas tão distintas, é rotinas realizadas constantemente sob o não-con-
possível perceber, a partir da década de 1980, no trole da consciência que se cristalizam. Nesse sen-
cenário educacional brasileiro, maior procura tido, repensar a organização do trabalho pedagó-
dos professores em relação a propostas de for- gico é uma tarefa para ser refletida e vivida nos
mação continuada, na perspectiva de encontrar espaços onde efetivamente ela é implementada.
respostas para melhor lidar com sua prática pe- Tenho tido o privilégio de ouvir alguns pro-
dagógica. Porém, na mesma proporção, verifica- fessores da Educação Infantil que sinalizam a
se que, nem por isso, ao voltar para sua institui- ênfase no desenvolvimento de práticas pedagó-
ção, conseguem traduzir esperanças e sugestões gicas reflexivas como um dos caminhos que,
em estratégias metodológicas propiciadoras de gradativamente, descaracterizariam a matriz da
sucesso às crianças. formação inicial, para a maioria deles fortemente
Essas observações cotidianas levaram-me a marcada por uma concepção epistemológica da
supor que alguns aspectos da formação conti- prática voltada para a técnica, para o instrumen-
nuada precisam ser revisitados, mesmo timida- tal, na qual os saberes dos professores eram pou-
mente; pretendo, portanto, neste texto, realizar co considerados.
uma reflexão preliminar sobre desses aspectos. E como ajudá-los? Retirando-os de seus es-
Iniciando a reflexão, chamo para nossa paços de atuação profissional para falar de suas
rodinha, como um primeiro aspecto, o locus de práticas? Com uma certa freqüência, esta tem sido
organização do trabalho pedagógico nas propos- uma estratégia e, em conseqüência, os professo-
tas de formação continuada em serviço como um res de Educação Infantil, sem a intencionalidade
dos patinhos feios de nossa história. Será inten- do erro, vão subutilizando valiosos tempos edu-
cionalmente? Não creio. Temos tido pouca sen- cativos com a aplicação de exercícios que pouco
sibilidade para perceber que, quanto mais se fi- ou quase nada levam as crianças a pensar.
zer presente o isolamento dos professores, mais Mas temos muitos professores inquietos. É
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
como se soubessem que precisam mudar o rumo compreensão, a interpretação e a intervenção so-
dessa prosa na rodinha dos educadores de Edu- bre a realidade, como cita Imbernón (2000: 48). E,
cação Infantil. Cobram-se, sabem que precisam além disso, a formação continuada deve ocupar o
mudar. Dessa inquietude origina-se um segun- seu espaço na participação efetiva da construção
do aspecto da formação continuada: a necessi- da qualidade da educação, para o que faz-se ne-
dade de sensibizar os professores para que pos- cessário conceber, como afirma Alarcão (2001:53),
sam, também, a partir do estudo de suas práti- que a desburocratização e a humanização das so-
cas no dia-a-dia, promover mudanças mais sig- ciedades emergentes pressupõem novos conheci-
nificativas. mentos e novas formas de conhecer, investigar,
Há que perguntar: como trabalhar na pers- aprender, ensinar e desaprender para empreender,
pectiva da sensibilização? Quem sabe - se os pro- construir e desenvolver.
fessores tivessem espaço para refletir uns com Uma parcela considerável desses novos conhe-
os outros, diante de cada atividade trabalhada, cimentos tranforma-se em desafios diários para os
diante da reação das crianças, da observação di- professores e os leva na direção da construção de
ária do movimento do currículo vivido na insti- planejamentos mais sensíveis às aprendizagens
tuição, do olhar duvidoso sobre seus fazeres - dos meninos e das meninas com quem trabalham.
analisando, questionando os erros e acertos. No entanto, as propostas de formação continuada
Nessa perspectiva, os professores de Educa- consideram ainda muito pouco o processo de
ção Infantil precisariam firmar, ainda mais, um teorização preexistente em cada professor.
namoro com a reflexão dos seus fazeres educa- Para que a formação continuada sensibilize
tivos. Assim, terão maiores possibilidades de os professores na lógica do olhar sobre suas prá-
avançar de um lugar individual de "pensar edu- ticas, ela deve reforçar a construção de atitudes
cação" para uma compreensão mais ampla das reflexivas também por meio da ênfase no desen-
interações das relações de conteúdo, de contex- volvimento da leitura e da escrita desses profes-
to e de aprendizagem. sores. Suponho que muito nos auxiliaria e seria
Entendemos que a reflexão requer imersão um passo significativo para enfrentarmos com
consciente do homem no mundo da sua experi- êxito mais esse desafio, apresentado como o ter-
ência, mundo este impregnado de conotações, ceiro aspecto para o repensar da formação con-
valores, intercâmbios simbólicos, correspondên- tinuada em serviço, a concepção de Nóvoa (1997:
cias afetivas, interesses sociais e cenários políti- 83), ao referir-se ao professor como um sujeito
cos. Mas faz-se necessário provocar nos profes- que se permite ser surpreendido pelos fazeres,
sores o desejo pelo desenvolvimento da obser- saberes e atitudes, que pensa sobre a complexi-
vação, pelo desenvolvimento da pesquisa de suas dade e, simultaneamente, procura compreender
práticas, pelo estudo de suas situações didáticas. a razão por que foi surpreendido. Mas não satis-
Mesmo percebendo os professores de Edu- feito, parte em busca de formular o problema
cação Infantil em uma busca maior pelo conhe- suscitado pela situação na perspectiva de inves-
cimento na perspectiva de constituírem uma tigar sobre o modo de pensar do sujeito, seja ele
postura investigativa e reflexiva diante do desa- criança adolescente ou adulto.
fio de não simplesmente estar professor, mas de Estamos diante do desafio de promover uma
ser professor e de admitir que carecem formar- formação continuada na qual os professores de
se diariamente, percebemos que falta a eles uma Educação Infantil desenhem, pintem, bordem,
maior compreensão na direção da complexida- escrevam um novo quadro de seus fazeres edu-
de e da provisoriedade do conhecimento para cativos, aprendendo a "brigar" contra o como-
assumirem a manivela da engenhosa máquina dismo da cópia, da memorização, dos exercícios
do saber como um espaço no qual também po- mimeografados, dos cadernos de planejamento
dem e devem construir saberes. descontextualizados.
A formação continuada do professor de Edu- A formação continuada propiciando reflexões,
cação Infantil precisa de maior reflexão prático-te- mesmo angustiantes, irá cutucar os pensamen-
órica sobre a própria prática mediante a análise, a tos dos professores, deixando-os a matutar, e eles
buscarão profissionalmente um novo lugar da Faz-se necessário, para tanto, questionar as
praxis, da leitura e da escrita. Mesmo acanhada- propostas de formação nas quais os professores
mente, perceberão o sentido da ação coletiva, o ficam sujeitos a programações assistemáticas,
sentimento e a importância de pertencer a um pontuais e externas. Neste alinhavo apresenta-
grupo, a magia do registrar e o significado da par- se a necessidade de constituir o professor como
ticipação efetiva e consciente no processo de for- um sujeito reflexivo. Diante do exposto, acredi-
mação de sua identidade profissional, forjada e to ser este um quarto aspecto relevante para uma
lapidada no cotidiano educativo e na literatura. formação continuada sensível ao sujeito-profes-
Revisitando fragmentos de minha história sor que se organiza, se forma, se constrói e se
profissional como professora formadora em di- constitui, também, no espaço institucional, com
versos grupos de professores e de minha prática toda a complexidade multifacetada do humano.
pedagógica como docente de crianças e adoles- Preocupações vividas por mim freqüente-
centes, percebo, na criação e na negociação de- mente levaram-me a pensar: como se caracteri-
mocrática de ações que proporcionem a organi- za e se constitui um sujeito reflexivo? Na tentati-
zação intencional e sistematizada da formação va de responder a esta questão, elaborei outros
em uma perspectiva prático-reflexiva, um tercei- questionamentos:
ro aspecto que possibilitaria o avanço da forma- • Seria um ator que se inquieta em buscar
ção continuada. Dessa maneira os professores compreender as questões que compõem o
seriam motivados a ver o processo de aprendi- cenário formativo, o seu cotidiano?
zagem como trabalho prático de modificação, de • A constituição de um professor reflexivo no
mudança, de reconstrução continuada, sem fim cotidiano da formação continuada teria de
(Schon, 2000: 227). Para tanto, reafirmo que o comportar as dúvidas e as reflexões de sua
investimento no desenvolvimento da competên- prática?
cia leitora e escritora do professor seria um pro- • Um professor reflexivo observa a organiza-
cedimento bem promissor. ção de seu trabalho pedagógico?
Nessa intencionalidade, o agir e o pensar pre- • As dificuldades por parte dos professores em
cisam estar interligados, permeados pelo apro- estabelecerem articulação entre a teoria e a
fundamento teórico, articulados com a prática prática deveriam compor o seu cenário de
do "chão" da sala de aula, um dos ambientes investigação?
organizacionais de formação, a meu ver, privile-
• o professor deve se preocupar em criar es-
giado para o exercício diário da reflexão na ação,
tratégias problematizadoras?
partindo do pressuposto de que deve haver uma
significativa e substancial relação entre a forma- • É preciso refletir sobre procedimentos nos
ção do professor, os seus fazeres pedagógicos e quais os professores registrem o seu próprio
os resultados educativos efetivamente observa- processo e percurso formativo?
dos junto às crianças. • o professor precisa produzir projeto peda-
É importante promover uma formação con- gógico próprio?
tinuada, de acordo com Imbernón (2000: 49), Visitando a literatura com a intenção de am-
que valorize a descoberta, a organização dos pliar a compreensão, mesmo que ainda superfi-
conhecimentos, a fundamentação teórica, a re- cial, de algumas das questões apresentadas no
visão e a construção de teorias, com a intencio- parágrafo anterior, lendo Imbernón (2000:50) foi
nalidade de remover o sentido pedagógico co- possível perceber que um sujeito se constitui
mum, recompor o equilíbrio entre os esquemas como profissional reflexivo se for orientado para
práticos predominantes e os esquemas teóricos o desenvolvimento de capacidades de proces-
que os sustentam, imprimimindo uma nova samento da informação, análise e reflexão críti-
matriz na qual o olhar e o registro reflexivo so- ca, diagnóstico, decisão racional, avaliação de
bre a prática ocupem lugar central, com vista à processos e reformulação de projetos. Também
tomada de decisões pedagógicas mais conscien- seria constituído na multiplicidade de suas fun-
tes, criativas e menos espontaneístas. ções e inquietudes, como define Freire (apud
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Alarcão, 2001: 17), vivenciando um processo de encaminharia soluções, auxiliaria nas dificulda-
formação permeado pela dor, pelo prazer, por des de problemas individuais e coletivos e en-
sensações de vitórias, derrotas, dúvidas, alegrias volveria os sujeitos em um processo vivo de pro-
e também disciplina. dução e de reconstrução de conhecimento.
Nesse sentido, a constituição do professor Assumir uma prática reflexiva na formação
reflexivo passaria pela compreensão de que ele continuada, a meu ver, indica a necessidade de
é "um profissional da ação cuja atividade impli- reestruturação da organização do trabalho pe-
ca um conjunto de atos que envolvem seres hu- dagógico, organização que carece, como cita
manos. Como tal, a racionalidade que impregna Nóvoa (1997:23-31), de saberes e de saber-fazer
a sua ação é uma racionalidade dialógica, inte- pedagógico. Precisa de saberes teóricos e tam-
rativa e reflexiva" (Alarcão, 2001: 23). bém de colocar em prática esses saberes para
Parece-me que neste viés precisaríamos cons- construir um "saber fazer" teorizado, o que, em
truir, coletivamente, durante a formação continua- linhas gerais, significaria um conjunto de sabe-
da, procedimentos de registros individuais e cole- res relacionados com a organização: do trabalho
tivos. Estes teriam a função de acompanhar e ava- individual e em grupo, da organização espaço-
liar o processo educativo dos professores e em es- temporal, do conhecimento, dos procedimentos,
pecial seriam referenciais dinâmicos para a dos instrumentos, das tecnologias, das metodo-
autoformação. A meu ver, estamos diante do quin- logias, da construção de novas estratégias, do
to aspecto para o qual as propostas de formação incentivo às interações e às relações.
continuada deveriam dedicar mais esforços. Considero que, para o desenvolvimento do
o desenvolvimento do registro reflexivo registro reflexivo, precisamos abrir espaço para
como um procedimento formativo está direta- a formação de um professor reflexivo, o qual se
mente relacionado à organização do trabalho utiliza do próprio registro de maneira reflexiva,
pedagógico, que deve possibilitar o exercício do para pensar e ampliar o seu processo educativo.
"pensar" para que o "vir a ser" se torne realidade Nesse sentido, percebe-se nas propostas de for-
no "hoje" da prática docente. Tal atitude não é mação continuada pouco espaço para o pensar,
tarefa fácil. Ao contrário, exige muitos rompi- pois este está relacionado ao perguntar, ao in-
mentos, a começar por desinstalar a certeza de quietar, ao buscar, à incerteza. Não há conheci-
que a formação se encerra ao término de um mento que não esteja, de alguma maneira, amea-
curso. Compreender que o conhecimento não çado pelo e r r o . O conhecimento, sob a forma de
está pronto requer criar lugar para a proviso- palavra, de idéia, de teoria, é fruto de uma re-
riedade, assumir atitudes de investigação como construção, e reconstrução comporta a inter-
necessárias ao profissional professor. pretação, o que introduz o risco do erro na sub-
Se considerássemos esses aspectos na orga- jetividade do conhecedor, de sua visão do mun-
nização de propostas de formação continuada, do e de seus princípios de conhecimento.
estaríamos organizando um novo espaço no qual É necessário refletir que, em tempos recentes,
os professores não apenas estivessem mas que ora se concebia a prática como uma aplicação da
pudessem vivê-lo de forma a movimentar-se re- teoria, como uma conseqüência, ora, ao contrá-
petidamente entre a reflexão-na-ação e a refle- rio, como inspiradora da teoria. Porém, como afir-
xão-sobre-a-ação (Schon, 2000: 227). ma Foucault (2000: 70), "nenhuma teoria pode se
Dessa forma, os outros aspectos até aqui desenvolver sem encontrar uma espécie de muro
apresentados neste texto se articulam a este e é preciso a prática para atravessar o muro." Acres-
quinto aspecto. Concebo a organização do tra- cento: para tanto é preciso que a formação crie con-
balho pedagógico como uma estrutura na qual dições para transpor esse muro.
cotidianamente se exercite a reflexão dos faze- Ainda na mesma obra, o autor nos faz refletir
res educativos e se concretize essa reflexão no sobre a relação entre a teoria e uma caixa de fer-
registro escrito, supondo que este viabilizaria a ramentas: se esta não servir, não funcionar, de
análise do percurso formativo, ajudaria na iden- nada serve a teoria para sua utilização, assim
tificação de problemas, reafirmaria objetivos, como, se não há pessoas para fazer uso da teoria,
esta não tem nenhuma validade. Continuando, formativo pelos professores, na perspectiva de
Proust (apud Foucault, 2000:71) acrescenta: "tra- retomadas reflexivas com vista ao avanço de sua
tem meus livros como óculos dirigidos para fora formação. É caminho para o exercício do pen-
e, se eles não lhes servirem, consigam outros, en- sar, da busca de soluções, de auto-avaliação, de
contrem vocês mesmos seu instrumento, que é elaboração de perguntas.
forçosamente um instrumento de combate." o desafio em aceitar a formação continua-
Nesse olhar, o registro reflexivo, se utilizado da em serviço como uma proposta de aprendi-
para o acompanhamento e a avaliação do pro- zagens reflexivas que considere os aspectos
cesso formativo dos professores em espaços de abordados neste texto parece-me que exige
formação continuada em serviço, pode vir a ser abrir espaço político-pedagógico, assumindo
uma possibilidade de promover um processo que é um trabalho que leva tempo. Tempo para
dinâmico no qual, de fato, os professores pos- viver os choques iniciais de confusão e misté-
sam perceber o sentido da prática reflexiva nos rio, tempo para desaprender expectativas ini-
espaços formativos. ciais e começar a maestria de uma prática do
Formar professores reflexivos decerto não é ensino prático, tempo para viver os ciclos de
tarefa rápida, de curto prazo, e provavelmente aprendizagem, tempo para aprender a ver o
as dificuldades de produção de registro reflexi- processo de aprendizagem como um processo
vo dos professores existirão, mas insisto que seja formativo e autoformativo que requer mudan-
por falta de oportunidade de eles vivenciarem, ça e reconstrução continuada.
nos espaços de formação continuada, formas de Na tentativa de bordar um ponto não final,
organização das propostas metodológicas que para esse texto, mas de continuidade, diria que
desenvolvam atitudes para a produção de regis- a qualidade da construção de propostas de for-
tros reflexivos. mação continuada para o profissional da Edu-
Esse teria de ser um exercício contínuo, dia cação Infantil, que o provoquem a olhar com
após dia, encontro após encontro; teria de ser os olhos da diversidade, da reflexão, do belo,
concebido como uma construção; não pode- por ser multifacetada a realidade, será possí-
ria desmerecer o momento de formação de vel se garantirmos espaços para o pensar re-
cada professor; teria de promover o avanço flexivo, se não formatarmos os espaços de for-
para que o professor saísse da preocupação mação com um único referencial de criação,
centrada exclusivamente na simples anotação pois, assim, estaremos mutilando seres por
da fala do outro para a descoberta das suas natureza pensantes.
competências como produtor de escrita, para
que percebesse as funções formativas que o
registro reflexivo ocupa no processo de forma-
ção profissional. Bibliografia
Propor a experiência do registro reflexivo ANDRÉ, Marli (Org.). Pedagogia das diferenças na sala de
como uma prática na formação continuada em aula. Campinas: Papirus, 1999.
ALARCÃO, Isabel. Escola reflexiva e nova racionalidade.
serviço é permitir o ensinar e o aprender simul-
Porto Alegre: Artmed, 2001.
taneamente, é estabelecer uma curiosa relação BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
de alguém consigo mesmo. Larrosa (2000: 140) Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a
afirma: "a experiência da leitura, quando está Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.
envolvida com o ensinar e o aprender, implica a Referenciais para a Formação de Professo-
relação de cada um consigo mesmo e com os res. Brasília, DF: SEF/MEC, 1999.
outros". Para produzir registro reflexivo o profes- CUNHA, Maria Isabel da; VEIGA, llma Passos Alencastro
(Orgs.). Desmistificando a profissionalização do magis-
sor teria de vivenciar um processo semelhante
tério. Campinas: Papirus, 1999.
de envolvimento com a beleza da aprendizagem
FREITAS, Luiz Carlos de. Critica da organização do trabalho
da leitura e da escrita na formação continuada. pedagógico e da didática. 3. ed. Campinas: Papirus, 2000.
o exercício cotidiano do registro reflexivo FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e trad. de
precisa ser construído como procedimento Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissio- estratégias? quais competências? 2. ed. Porto Alegre:
nal: formar-se para a mudança e a incerteza. São Artmed. 2001.
Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões da Nossa Avaliação: da excelência à regulação das
Época, v. 77.) aprendizagens entre duas lógicas. Trad. de Patrícia
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2001.
mascaradas. Trad. de Alfredo Veiga Neto. 4.ed. Belo Ho- Construir as competências desde a escola.
rizonte: Autêntica, 2001. Porto Alegre: Artmed, 1999.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do PIMENTEL. Maria da G l ó r i a . O professor em construção. 7.
futuro. Trad. de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne ed. Campinas: Papirus, 2001.
Sawaya; rev. téc. de Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. RESENDE, Lúcia Maria Gonçalves de. Relações de poder
São Paulo/Brasília: Cortez/Unesco, 2000. no cotidiano escolar. Campinas: Papirus, 1995.
NÓVOA, Antônio (Org.). Vida de professores. 2. ed. Lisboa: RESENDE, Lúcia Maria Gonçalves de; VEIGA, lima Passos
Porto Editora, 1995. Alencastro. Escola: espaço do projeto político-pedagógi-
(Coord.). Os professores e sua formação. 3. co. 4. ed. Campinas: Papirus. 2001.
ed. Lisboa: Porto Editora, 1997. SCHON, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo
PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão design para o ensino e a aprendizagem. Trad. de Roberto
docente e formação: perspectivas sociológicas. Trad. de Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2000.
Helena Faria, Helena Tapada, Maria João Carvalho, Ma- VEIGA, lima Passos Alencastro (Org.). Caminhos da
ria Nóvoa. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. profissionalização do magistério. Campinas: Papirus, 1998.
Pedagogia diferenciada das intenções à ação. VENTURELLI, Paulo. Introdução à arte de ser menino.
Porto Alegre: Artmed, 2000. Curitiba: Nova Didática, 2000. (Coleção Vivendo a Lite-
Formando professores profissionais: quais ratura)
" Apresentação feita no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação - Formação de Professores, realizado em Brasilia no período de 15
a 19 de outubro de 2001.
Os elementos para a elaboração desta apresentação baseiam-se no relatório final sobre a problemática regional da "educação de jovens e
adultos vinculada ao trabalho", documento elaborado no marco do "Acompanhamento Latino-Americano da Confintea" (v. Pieck. 2000).
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
tências necessárias para a incorporação produ- mente a população em ofícios geralmente mar-
tiva, para a eliminação da exclusão social, para ginais e com perfis de conclusão igualmente
ajudar a melhorar as condições de vida e para baixos. Uma capacitação técnica desvinculada
permitir que os indivíduos ocupem seu lugar na da promoção humana e do melhoramento da
vida da sociedade. qualidade de vida se transforma numa oferta
Nesse sentido, precisamos oferecer progra- educacional assistencialista e de contenção so-
mas que resgatem as esferas do trabalho coti- cial; ao contrário, uma estratégia de formação
diano das pessoas e o vinculem a atividades associada à Educação básica e devidamente
econômicas estratégicas que possibilitem a enfocada constitui um elemento importante da
transcendência das modestas inserções eco- empregabilidade.
nômicas e sua inserção com outros tipos de Mais uma vez, a capacitação isolada certa-
apoios. Isso nos leva, necessariamente, a mente não cria empregos. São necessários me-
questionar e a redefinir os conceitos de traba- canismos laterais de apoio e articulações ins-
lho, emprego e empregabilidade nesses seto- titucionais para que melhores possibilidades
res. No cenário dos setores de pobreza, a no- sejam geradas para a incorporação produtiva
ção de emprego perde força e se sujeita ao con- da população de baixa renda. A capacitação
ceito de trabalho, entendido como as ativida- precisa, também, estar orientada para o forta-
des produtivas das pessoas na vastidão que as lecimento de atividades econômicas vincula-
caracteriza e sem limitá-las ao vínculo que elas das ao setor informal, às atividades tradicio-
tenham com o mercado formal de trabalho. É nais das pessoas, às características próprias de
na esfera do cotidiano que residem os conteú- áreas rurais. Sabemos que a capacitação não
dos relevantes para uma EDJAT. A empre- pode estar desligada dos processos, pois ela
gabilidade nos setores de pobreza acaba por está estreitamente vinculada a eles. É impos-
traduzir-se na possibilidade de acesso aos es- sível separar a capacitação dos espaços nos
paços do trabalho, na geração de condições quais ela pretende incidir. São eles que defi-
(formação de competências, apoios orga- nem suas características e configuram as ba-
nizativos e financeiros etc.) que viabilizem o ses para se medir seu impacto.
exercício de uma atividade produtiva.
da exclusão social, evitando que as oportunida- SILVEIRA, Sara. La educación para el trabajo: un nuevo
paradigma. Dissertação (Seminário-Workshop do Gru-
des de uma melhor formação fiquem restritas
po do Rio: A educação como instrumento para a supe-
àqueles que contam com melhores condições de ração da pobreza e do desemprego). Cidade do Pana-
vida. Nesse sentido, os programas de EDJAT têm má, ago. 1998.
a dupla missão de: a) ajudar as pessoas a passar STROMQUIST, Nelly. Women's education in development:
da favela ao computador; e b) contribuir no sen- from welfare to empowerment. Convergence, v. XXI, n.
tido de que a população possa sobreviver. Em 4, 1998.
outras palavras, trata-se, por um lado, de não UNESCO. La educación de adultos en un mundo en vias de
polarización. França, 1997.
excluir as populações pobres do acesso a novas
WEINBERG, Pedro daniel. Educación de adultos y trabajo
competências e de proporcionar oportunidades
productivo. In: UNESCO/UNICEF La educación de adul-
de incorporação ao mercado formal de trabalho, tos en América Latina ante el próximo siglo. Santiago
ou de formação superior, a quem deseje. Por de Chile, 1994.
SIMPÓSIO 14
DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
EM NIVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares
' Membro do Conselho Nacional de Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, Secretária de Educação de
Recife/PE. Professora da Universidade Federal de Pernambuco (aposentada).
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior
mente dos períodos dedicados ao planeja- o artigo 62, por sua vez, elimina as Licencia-
mento, à avaliação e ao desenvolvimento turas curtas como possibilidade e nível de for-
profissional; mação aceitável pelos sistemas de ensino, pre-
VI - colaborar com as atividades de articula- vendo q u e esta aconteça em nível superior, em
ção da escola com as famílias e a comunidade. cursos de Licenciatura Plena.
Contudo, ao admitir, no mesmo dispositivo,
É t a m b é m do m e s m o artigo, como se verifi- sem estabelecer nenhuma excepcionalidade, que
ca nos demais incisos, a rigorosa vinculação que a modalidade Normal em nível médio é a forma-
a citada lei estabelece entre a liberdade de en- ção mínima exigida para o exercício da docência
sinar e o zelo pela aprendizagem do aluno. Ao na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensi-
fazê-lo, exige, no nível do plano de trabalho, o no Fundamental, contradiz, nas diposições per-
c u m p r i m e n t o dos acordos firmados coletiva- manentes do texto, segundo alguns estudiosos, o
mente na proposta pedagógica e a colaboração que está disposto no § 4º do artigo 87.
dos docentes nas atividades de articulação com
Assim, enquanto o artigo 62 da LDBEN dis-
a comunidade. Na verdade, o texto legal sinali-
põe que a formação de docentes para atuar na
za para a importância do e n t o r n o que dá signi-
Educação básica far-se-á em "nível superior, em
ficado à autonomia escolar e determina as res-
curso de Licenciatura, de graduação plena, em
ponsabilidades dos docentes, sem descuidar do
universidades e institutos superiores da educa-
projeto institucional dos estabelecimentos de
ção, admitida como formação mínima para o
ensino.
exercício do magistério na educação infantil e nas
Q u a n t o ao artigo 61, antes de mais nada, quatro primeiras séries do ensino fundamental,
há de se convir q u e retoma, no território da for- a oferecida em nível médio, na modalidade Nor-
m a ç ã o de professores, a concepção de educa- mal", o mesmo texto, no § 4 9 do artigo 87, das dis-
ção declarada no artigo lº da LDBEN. Seu pro- posições transitórias, determina que até o fim da
pósito é ajustar os cursos às finalidades e m o - década da educação "somente serão admitidos
dalidades de cada uma das etapas da Educa- professores habilitados em nível superior ou for-
ção básica, bem como à faixa etária, aos pro- mados por treinamento em serviço".
cessos próprios de aprendizagem e ao m o d o
Em conseqüência disso, várias instituições,
particular de inserção no m u n d o social dos(as)
apoiadas n u m a interpretação que desconsidera
respectivos(as) alunos(as), t o m a n d o c o m o re-
a substituição, na lei, da confusa habilitação de
ferência dos programas de formação inicial e
Magistério até então vigente por um respeitá-
c o n t i n u a d a o disposto nos artigos 22, 26, 27,
vel curso, m e s m o q u e na trajetória de um pro-
29, 32, 35, 36 e 39.
cesso de formação cuja perspectiva é a Licenci-
atura Plena, pronunciaram-se sobre a extinção
Art. 61. A formação de profissionais da educa- imediata do curso Normal em nível médio. Com
ção, de modo a atender os objetivos dos diferen- isso, assumiram a postura que nega a definição
tes níveis e modalidades de ensino e as caracte- da matéria no artigo 62 e s u b o r d i n a r a m , por
rísticas de cada fase do desenvolvimento do inteiro, o estabelecido nas disposições perma-
educando, terá como fundamentos:
nentes da Lei à desejabilidade expressa em suas
I - a associação entre teorias e práticas, in-
disposições transitórias.
clusive mediante a capacitação em serviço;
II - aproveitamento da formação e de expe- Coube ao Conselho Nacional, por meio do
riências anteriores em instituições de ensi- Parecer n 9 1/00 e da Resolução n 9 2/99, salva-
no e outras atividades. guardar o disposto no artigo 62, incorporando
essa alternativa de curso sem descuidar da im-
Além disso, tal dispositivo reafirma a impor- portância dos níveis mais elevados de formação.
tância da relação entre teoria e prática e torna Assim, reafirmados os níveis e as perspecti-
possível o a p r o v e i t a m e n t o de experiências e vas de formação docente previstos, nos termos
aprendizagens vivenciadas ao longo da vida e da legislação vigente, cabe analisar quais são as
em diferentes situações. repercussões dessa discussão, seja na definição
de políticas mais gerais de d e s e n v o l v i m e n t o Educação disponibiliza recomendações para a
profissional dos docentes, seja no patamar de organização do ensino, mediante a divulgação
aprendizagem alcançado até então pelos estu- dos P a r â m e t r o s Curriculares Nacionais, e o
dantes, nos diversos sistemas de e n s i n o . Na Conselho Nacional de Educação estabelece Di-
verdade, as taxas de reprovação, a b a n d o n o e retrizes Curriculares Nacionais com caráter
distorção série/idade continuam preocupantes. mandatório para cada uma das etapas da Edu-
Acrescidas da m a n u t e n ç ã o das desigualdades cação básica, bem c o m o para a formação de
regionais nos termos do atendimento escolar, professores, convém refletir sobre a organiza-
terminam por evidenciar, entre outros, os limi- ção curricular dos cursos de formação de do-
tes das análises e das políticas de valorização centes à luz desse novo paradigma.
dos profissionais da educação, fixadas apenas Se nos ativermos às Diretrizes para Forma-
na problemática da formação. ção de Professores seja em nível médio na mo-
No contexto desse debate, o artigo 67 da dalidade Normal, seja em nível superior, em
LDBEN extrapola os limites acima menciona- Licenciatura Plena, o b s e r v a - s e , nesse p a r a -
dos e aborda a política de valorização dos do- digma, que ambas trazem no seu bojo grandes
centes sob u m a nova ótica, a m p l i a n d o , c o m desafios. Sua inspiração nos valores q u e d ã o
certeza, o leque de possibilidades de que venha sustentação à convivência social nas socieda-
a provocar impactos nos sistemas de ensino. des democráticas é traduzida, em primeiro lu-
gar, no respeito à diferença e ao direito à igual-
Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a va- dade assegurados no conjunto das ações que
lorização dos profissionais da educação, assegu- viabilizam a política de educação escolar.
rando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos Além disso, essas diretrizes estabelecem o
e dos planos de carreira do magistério público: foco nas competências básicas necessárias ao
I - ingresso exclusivamente por concurso exercício da docência; privilegiam o domínio
público de provas e títulos; dos conteúdos próprios de cada uma das eta-
II - aperfeiçoamento profissional continua- pas da Educação básica e o seu tratamento nos
do, inclusive com licenciamento periódico diversos contextos de atuação dos professores;
remunerado para esse fim;
propiciam, nos níveis em que cada curso é ofe-
III - piso salarial profissional;
recido, o conhecimento a respeito dos alunos e
IV - progressão funcional baseada na
dos respectivos processos de aprendizagem;
titulação ou habilitação, e na avaliação do
possibilitam o acesso aos mecanismos de pro-
desempenho;
dução do conhecimento e à tecnologia; incen-
V - período reservado a estudos, planeja-
mento e avaliação, incluído na carga horá- tivam, na sociedade da comunicação e da in-
ria de trabalho; formação, a construção solidária da autonomia
VI - condições adequadas de trabalho. intelectual e a busca do desenvolvimento pro-
Parágrafo único. A experiência docente é fissional p e r m a n e n t e .
pré-requisito para o exercício profissional Na verdade, a perspectiva é instaurar o diá-
de quaisquer outras funções de magistério, logo entre todos os que participam do projeto
nos termos das normas de cada sistema de educativo das instituições de ensino, eliminan-
ensino. do as fronteiras q u e isolam os professores e
c o m p a r t i m e n t a l i z a m o trabalho pedagógico,
Na verdade, o artigo acima mencionado alar- r e i n v e n t a n d o a sala d e a u l a c o m o e s p a ç o
ga significativamente a compreensão do que seja constitutivo da identidade cidadã dos alunos e
uma política de valorização do magistério e, mais dos profissionais da educação. Isto é o que se
do que uma preocupação que se esgota em pro- p r e t e n d e , por exemplo, com a definição das
postas de formação inicial e continuada, inclui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Forma-
condições de trabalho, salário e carreira. ção de Professores em nível médio, na modali-
Por fim, na medida em que o Ministério da dade Normal.
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nivel médio e superior
Formação de professores -
o grande desafio
Sylvia Figueiredo Gouvêa
Conselho Nacional de Educação
ALFABETIZAÇAO NO CONTEXTO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz
Ana Teberosky
José Rivero
Alfabetização no contexto
das políticas públicas
Telma Weisz
PROFA/MEC
No Brasil, recém se descobriu que a repetência A LDB anterior, de 1971, quando eliminou
reiterada gera um fantástico desperdício de di- a separação entre primário e ginásio, acaban-
nheiro público. No entanto, desde que dispomos do com o exame de admissão e tornando obri-
de estatísticas1 temos a seguinte situação: gatório o ensino até a 8 a série, produziu uma
política de garantia de
acesso - o que foi essen-
Taxa de reprovação ao final da 1- série do Ensino Fundamental2
cial - mas não de sucesso.
1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 , 1994 1995 1996 Ela garantiu a todas as cri-
anças a entrada na escola,
56,6% 51% 52% 49% 48% 48% 48% 49% 46% 46% 41%
mas não a progressão. Não
Fonte: IBGE - Inep garantiu que elas chega-
Esses dados estão e sempre estiveram dis- riam ao fim da escolaridade obrigatória de oito
poníveis. No entanto, só muito recentemente anos nem que aprenderiam o que precisavam
começou-se a considerá-los, a reconhecer o ab- aprender na escola.
surdo neles expresso e a pensar concretamente o mecanismo pelo qual era possível dar aces-
em buscar caminhos para mudar essa situação. so sem garantir o sucesso era a crença na repro-
Considerando que nenhum país do mundo, vação como único dispositivo capaz de garantir
mesmo aqueles mais pobres que o Brasil, tem índi- a qualidade da educação. A idéia, muito popular
ces de fracasso escolar no lª ano de escolaridade ainda hoje, como se pode notar quando se lêem
como os nossos, as questões que se colocam são: os jornais dirigidos à classe média, é que a ame-
1. Como foi possível aceitar esses índices pas- aça da reprovação é a única forma de obrigar os
sivamente por quase cinqüenta anos? alunos a estudar. Que sem ela ninguém vai
2. Que explicações se construíram para o fe- aprender nada e a qualidade da educação vai fi-
nômeno? car péssima. Aliás, da mesma forma que em 1971,
3. o que se fez - do ponto de vista das políti- com a LDB anterior, dizia-se que, sem o exame
cas públicas - para mudar essa situação? de admissão, deixando qualquer um entrar em
massa no ginásio, ia cair a qualidade.
Vamos tentar responder a uma questão de
cada vez, se é que isso é possível. Vemos hoje muita gente, inclusive jornalis-
Para refletir sobre a primeira: "Como foi tas que prestam serviços educacionais à classe
possível aceitar esses índices passivamente por média, a discorrer com saudade sobre a mara-
quase cinqüenta anos?", torna-se necessário vilhosa escola pública dos tempos de antanho,
pensar o funcionamento do sistema escolar bra- esquecidos do fato de que para entrar em um
sileiro anterior à Lei de Diretrizes e Bases da ginásio público de boa qualidade como, por
Educação Nacional atual. exemplo, aquele no qual eu estudei, era neces-
' As estatísticas do IBGE são anteriores a 1956. mas os dados parecem mais seguros a partir desse ano.
7
Não temos estudos que permitam afirmar com segurança, mas o ganho de 11 pontos percentuais que aparece entre 1988 e 1996 poderia ser
atribuído à introdução dos ciclos em vários estados. Por exemplo, no estado de São Paulo, a simples introdução do Ciclo Básico, em 1984,
diminuiu em 10% a retenção, que passou a acontecer apenas ao fim de dois anos.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
3
Projeto desenvolvido no município de Batalha. Alagoas. Alguma informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129
(mar./abr. 2000) da revista Nova Escola, Editora Abril.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
o que encontramos aponta para a enorme É de situações como essa que estamos
dificuldade que têm os professores de verificar partindo ao buscar saídas para a cultura da
o que os alunos já sabem e o que eles não sa- repetência, com a ambição de criar uma edu-
bem. Se considerarmos os alunos que produ- cação menos exclusora. E nossa falta de cla-
zem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na reza sobre a questão vem, também, de longa
lª série, no início do ano - 414 alunos, 33% dos data. Darcy Ribeiro costumava dizer que atri-
alunos da lª série - e que poderiam perfeita- buir nossos extraordinários índices de fracas-
mente acompanhar uma 2- série pois podem ler so escolar a uma hipotética incompetência da
e escrever, ainda que com precariedade, verifi- escola era uma rematada tolice. Que a nossa
camos que esses alunos foram retidos porque escola era não só competente como eficiente
os professores não tiveram condições de avali- pois preparava 50% da população para acei-
ar adequadamente e acabaram utilizando indi- tar a exclusão social e atribuí-la à sua própria
cadores como "letra bonita" ou "caderno bem incapacidade.
feito" para decidir o destino escolar de seus alu- Na mesma época em que os dados acima
nos. Quando o professor trabalha com este tipo foram colhidos, começou a ser desenvolvido
de indicador, até avanços na aprendizagem aca- um programa do MEC chamado PCN em
bam prejudicando o aluno. Por exemplo, quan- Ação, que tinha dois objetivos:
do o aluno aprende a ler, é comum que ele co- 1. Oferecer - principalmente às Secretarias
mece a "errar" na cópia. Isto é, deixa de copiar Municipais de Educação - uma referência
letra por letra e começa a ler e a escrever gran- metodológica para a formação de profes-
des blocos de palavras, em geral unidades de sores em serviço.
sentido, o que faz com que cometa erros de or- 2. Ajudar a compreender os marcos teóricos
tografia ou escreva palavras grudadas. Isto, que dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
é na verdade indicador de progresso, acaba sen-
À medida que o Programa era desenvolvi-
do interpretado como regressão, pois o profes-
do em dois mil municípios, foi ficando clara
sor não tem clara a diferença entre copiar e es-
- principalmente para os próprios professo-
crever. Constatação reforçada por outro dado
res - a dificuldade que eles tinham com a al-
interessante: a presença de 51 alunos não-lei-
fabetização. Começou-se então a produzir um
tores (7%) na 2ª série. Estes alunos foram pro-
programa específico de formação de profes-
movidos porque eram bons copistas e isso pa-
sores alfabetizadores, com duração de um
rece ter impedido o professor de perceber que
ano, que ficou conhecido como PROFA. Es-
não sabiam ler e escrever.
pera-se que este Programa - que está, neste
Os números da última coluna da tabela aci- momento, sendo desenvolvido em 1.188 mu-
ma, que não são tão diferentes do que acontece nicípios de 22 estados, atingindo 75.436 pro-
no resto do país, mostram o impacto da cultura fessores - ajude a desmontar a armadilha que
da repetência: 49% dos alunos estão na 1a série, tem tornado a escola pública brasileira uma
28% estão na 2ª série, 17% na 3a série e apenas fábrica de analfabetos. Um instrumento po-
6% conseguiram chegar à 4ª série. deroso na perpetuação da miséria.
A alfabetização e a formação
de professores nas diferentes
etapas educacionais
Ana Teberosky
Universidade de Barcelona/Espanha
vem essa abordagem integral com atividades lido, juntamente com leituras e releituras
como: a) leituras em voz alta de narrativas e repetidas de forma independente por par-
comentários orais sobre essas leituras; b) es- te da criança;
crita de palavras de um vocabulário estabele- • escrita de palavras, pequenos enunciados
cido como vocabulário-chave extraído dessas e textos, após a leitura;
leituras; c) identificação dessas palavras e co- • reconhecimento de palavras;
mentários sobre a relação letra/som em algu-
mas palavras aprendidas. Alguns estudos in- • jogos de palavras e reconhecimento de re-
lações entre letras e sons.
cluem também: d) atividades de consciência
metalingüística de forma indireta, com tarefas
como a recitação oral de poemas, rimas e No primeiro grau
aliteração e atividades diretas como o "canti- Seguindo a linha da pré-escola, as propostas
nho da escrita"; e e) reescrita das narrações li- para o primeiro grau incluem leituras de livros
das. Outros estudos enfatizam aspectos soci- familiares e não-familiares, escrita de palavras e
ais, como, por exemplo, as relações com a fa- textos, instrução sobre a relação letra/som e re-
mília e o empréstimo de livros nos fins de se- conhecimento de palavras. A seleção de livros e
mana, bem como a releitura desses livros na a utilização de diversos textos, e não de um úni-
escola e em casa. co texto, são muito enfatizadas. Os programas
Entre os objetivos dessas intervenções, caracterizam-se por tentar integrar os diferen-
Hiebert e Taylor (2000) e Teberosky (2001) tes aspectos da alfabetização: leitura e escrita,
mencionam o desenvolvimento de concei- linguagem oral, metacognição e automatismos,
tos sobre a palavra impressa, experiência consciência fonológica e escrita etc.
com a linguagem escrita, experiências com Os objetivos consistem em garantir os pa-
livros e sua manipulação, aprendizagem dos drões da relação entre letras e sons, a denomi-
nomes das letras, desenvolvimento da cons- nação das letras, o desenvolvimento de estra-
ciência fonológica, reconhecimento e escri- tégias adequadas ao sistema de escrita, o re-
ta de palavras. conhecimento de palavras e o desenvolvimen-
to de estratégias de compreensão.
No segundo grau
Nesse período, enfatiza-se, principalmente,
o desenvolvimento de automatismos de reco-
nhecimento de palavras, mas não no sentido
estreito da ênfase fonológica, com exclusão do
significado, e sim num sentido amplo, sem pre-
judicar a leitura e a compreensão de textos.
Os objetivos dessa etapa concentram-se
em promover o reconhecimento de palavras,
a fluidez e a automatização, e também a com-
preensão dos textos.
desconhecem a função das divisões, dos gê- FERREIRO, E.; PONTECORVO, C: RIBEIRO MOREIRA,
neros e das referências; por essa razão, preci- N.; GARCIA HIDALGO. I. Caperucita Roja aprende a
escribir. Barcelona: Gedisa, 1996.
sam de uma assistência maior (do professor e
FILLMORE. L. W.; SNOW, o What teachers need to know
do texto) para poderem construir uma repre- about language. In: <www.cal.org./ericcll/teachers.pdf>.
sentação das informações que leram. HIEBERT, E. The national literacy strategy from an
international perspective". Journal of Research in
Reading, n. 23, p. 308-13, 2000.
Conclusão HIEBERT, E.; TAYLOR, B. Beginning reading instruction:
Os requisitos culturais, educacionais e so- research on early interventions. In: KAMIL, M.;
MOSENTAHL. P; PEARSON, P; BARR. R. Handbook
ciais impostos à escola são cada vez maiores,
of reading research. Mahwah. N.J.: Lawrence Erlbaum,
a população escolar apresenta uma diversida-
2000. v. 3.
de crescente e as autoridades educacionais HALLIdaY, M. A. K. La lengua y el orden natural. In:
continuamente sugerem reformas que pres- CULLER. J.; DERRIDA. J.; FISCH, S.; JAMESON, F
sionam os professores no sentido de dar uma (WAA). A lingüística da escrita. Madrid: Visor, 1989.
instrução adequada aos alunos. Para que pos- p. 145-64. [Versão original em inglês. 1987].
sam oferecer essa instrução adequada, os pro- HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. Writings science.
fessores precisam ter uma formação sempre Literacy and discursive power. Pittsburg: Pittsburg
University Press, 1993.
atualizada e constante. Nesta apresentação,
KAMAWAR, D.; OLSON, D. R. Children's representational
defendemos a noção de que a preparação theory of language: the problem of opaque contexts.
deve ser tanto teórica como prática, tanto de Cognitive Development, n. 14, p. 531-48, 1999.
informação sobre o conteúdo quanto da for- MORRISON, K. Fixação do texto: a institucionalização do
mação psicológica necessária para fundamen- conhecimento em formas históricas e filosóficas da
tar decisões pedagógicas. argumentação. In: BOTTÉRO, J. et al. (Comp.). Cultu-
ra, pensamento, escrita. Barcelona: Gedisa, 1995.
REICHLER-BÉGUELIN. M.-J. Conscience du locuteur et
savoir du linguiste. In: RICARDA LIVER, H. von;
WERLEN, I.; WUNDERLI, P (Eds.). Sprachtheorie und
Bibliografia Theorie der Sprachwissenschaft. Tübingen: Guner
DARLING-HAMMOND, L. Developing professional Narr Verlag. 1993.
development schools: early lessons, chalenge, and RICHMOND, J. What do we mean by knowledge about
promise. In: DARLING-HAMMOND. L. (Ed.). language? In: CARTER, R. (Ed.). Knowledge about
Professional development schools. Schools for language and the curriculum. London: Hodder &
developing a profession. New York: Teachers College Stoughton, 1990.
Press, 1994. TEBEROSKY, A. Proposta constructivista per aprendre a
DURANTI, A. Antropologia lingüística. Madrid: Cambridge llegir i a escriure. Barcelona: Vicens Vives, 2001.
University Press. 2000 [Versão original em inglês. 1997]. WELLMAN, H.; GELMAN, S. A. Knowledge acquisition in
FELDMAN, C. F. Intentionality and interpretation. In: foundational domains. In: DAMON, W. (Ed. in Chief);
ZELAZO. P; ASTINGTON, J . ; OLSON, D. (Ed.). KUHN, D.; SIEGLER, R. S.(Volume Eds.). Child
Developing theories of intention. Mahwah, N. J.: Psychology: cognition, perception and language. New
Lawrence Erlbaum. 1999. p. 317-28. York: John Willey & Sons, 1998. p. 523-73.
As diferentes faces
do analfabetismo
José Rivero*
Unesco/Peru
' Luis Oscar Londono (1990) apresenta uma concepção atualizada do analfabetismo funcional: "o analfabetismo funcional deve ser entendido
a partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a partir da modernização e 'tecnologização' da sociedade, que exigem o domínio mais
completo possivel das habilidades, das atitudes, do gosto pela leitura, pela escrita e pela Matemática e, acima de tudo, o desenvolvimento de
processos de pensamento associados à sua aprendizagem: a lógica, a gramática, a argumentação, o diálogo, a crítica, o método. Em
segundo lugar, dado o caráter excludente e de discriminação do modelo vigente em quase todos os países da América Latina, precisamos
entender o analfabetismo funcional a partir de uma perspectiva de transformação, de busca de modelos alternativos de economia, de cultura.
de educação e de sociedade".
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
mais amplamente usados por pessoas que não Duas situações merecem uma análise mais
possuem códigos escritos, os conceitos de "al- detalhada:
fabetização", "alfabetismo" e "analfabetismo" • Esses dados foram extraídos de censos na-
começam a ser relativizados. É mais adequado cionais de países nos quais basta que uma
falar em "alfabetismos" e "analfabetismos" para pessoa responda que sabe ler e escrever
expressar as diferentes formas de expressão e para ser registrada como alfabetizada.
os distintos níveis que exigem, bem como a Além disso, não se sabe que qualidade de
multiplicidade de sentidos que podem adqui- alfabetização ou que nível da capacidade
rir em diferentes culturas. Seguindo essa linha de ler e escrever é registrado. Por isso, os
de raciocínio, todos somos, de alguma manei- níveis de analfabetismo podem ser mais
significativos e preocupantes que os indi-
ra, "analfabetos" em relação a alguns tipos de
cados nos dados estatísticos oficiais.
informação e de c o n h e c i m e n t o . O desenvolvi-
mento tecnológico e a expansão ilimitada da • o problema do analfabetismo caracteriza-
informação disponível ou o uso generalizado de do como "funcional" não é registrado ape-
meios eletrônicos, como computadores, acres- nas em países com taxas mais altas de anal-
centam novas matizes à idéia do alfabetismo. fabetismo absoluto, mas também nos que
registram taxas elevadas de escolarização
(na Argentina, no Chile, na Costa Rica e no
0 analfabetismo em números Uruguai, a proporção de adultos com es-
colaridade básica incompleta situa-se na
dados da Unesco para 1995 indicam que faixa de 40%).
nossa região tem 43 milhões de pessoas em
condição de analfabetismo absoluto - nenhum
acesso ou domínio de códigos de leitura e es- A necessidade de promover
crita - e que a idade média das pessoas analfa-
betas aumentou de 43 anos em 1980 para 45 políticas públicas e de
anos em 1995. A América Latina é a única re- superar preconceitos
gião do hemisfério sul que registra uma queda
no número total de analfabetos nos últimos institucionais e ideológicos
quinze anos; em 1980, esse número era de 44 Em que pesem os avanços registrados no
milhões de pessoas analfabetas (Unesco, 1995). reconhecimento e na análise desses fatores, são
o caso mais dramático em matéria de anal- esporádicas as iniciativas empreendidas para
fabetismo é o do Haiti, que apresenta taxa de enfrentar o analfabetismo como um problema
alfabetização inferior a 50%. A Guatemala e a que envolve múltiplos atores e soluções, que
Nicarágua ainda não chegam a ter uma taxa de não está centrado exclusivamente nas pessoas
70% de a l f a b e t i z a ç ã o . O Brasil, embora apre- adultas e exige políticas públicas concretas.
sente taxas de alfabetização entre 70 e 90%, Há muitos obstáculos a serem superados,
ainda tem 20 milhões de analfabetos absolu- um dos quais merece particular atenção. Re-
tos, situados, principalmente, em áreas caren- firo-me à clara tendência, observada em nú-
tes da Região Nordeste. Áreas indígenas de cleos tecnocráticos influentes em administra-
países como Bolívia, Equador, Peru, México e ções centrais do setor público educacional e
Guatemala continuam apresentando conside- em organismos internacionais de financia-
ráveis percentuais de analfabetismo feminino. mento, de minimizar e até ignorar o proble-
De acordo com projeções da mesma fonte, ma do analfabetismo em suas prioridades
os seguintes países entrarão no século 21 com para ação. Essa atitude pode ser observada,
taxas superiores a 10% de analfabetismo: Jamaica inclusive, em países com importantes bolsões
(13,6%), Brasil (14,6%), Bolívia (14,4%), Repúbli- de analfabetismo absoluto.
ca Dominicana (16%), Honduras (24,4%), El Sal- As razões apresentadas para sustentar es-
vador (25,9%), Nicarágua (32,8%), Guatemala sas decisões são a considerável ampliação da
(42,1%) e Haiti (50,6%). cobertura escolar, o fato de que uma propor-
ção considerável do volume total de analfabe- dispensável para a sobrevivência e a competên-
tos absolutos corresponde a uma população em cia social e c i d a d ã . O jovem e o adulto bem al-
faixa etária acima dos 35 anos, com idades que fabetizados terão, como indicado acima, maior
dificultam processos de aprendizagem, e o ar- possibilidade de optar por um posto de traba-
gumento de que o desenvolvimento dos países lho, de melhorar sua qualificação como produ-
deve estar assentado nos setores mais moder- tores, de participar ativamente na solução de
nos da sociedade. Sem declarar explicitamen- problemas sociais e de exercer seu direito à par-
te, estão aplicando a teoria do "custo-benefício" ticipação política.
exigida pelo mercado e sugerindo que esse pro- Por último, uma importante razão coloca-
blema pode ser resolvido pela simples amplia- da por Jacques Hallak: os especialistas e
ção da matrícula escolar. planejadores freqüentemente ignoram que
Os que assumem essa postura esquecem-se quanto maior a proporção de adultos alfabeti-
de vários elementos importantes. zados, mais fácil será ampliar a educação pri-
Em primeiro lugar, esquecem-se de que o mária, e vice-versa. "Em termos puramente
problema do analfabetismo tem raízes estrutu- econômicos, é provavelmente menos dispen-
rais e históricas e envolve relações complexas - dioso, em termos de tempo e recursos, com-
como as relações étnico-culturais, que exigem partilhar as prioridades entre programas de
tratamento cuidadoso e necessário. A vigência educação primária e de adultos, desde que
e a gravidade do problema expressam-se no fato atendam às mesmas famílias da população"
de que, apesar dos avanços registrados na am- (Hallak, 1991).
pliação educacional, o volume total de analfa- Não se pode, portanto, reduzir o problema
betos se manteve, nos últimos 20 anos, no pa- do analfabetismo a índices, variáveis e proje-
tamar de cerca de 43 milhões de pessoas e de ções estatísticas ou abordá-lo com base em cri-
que - como efeito da crescente pobreza e misé- térios estritamente econômicos ou "de eficácia".
ria na região - essa cifra tende a manter-se nos Precisamos reconhecer que ele constitui uma
mesmos níveis e até a crescer na ausência de parte importante da dívida social interna que
uma ação decidida e integral que abranja tam- nossas sociedades têm obrigação de conside-
bém a alfabetização das crianças. rar e assumir.
Outro elemento-chave a ser considerado é No entanto, como veremos, será necessário,
que o analfabetismo de adultos repercute dire- também, definir claramente as idéias vigentes
tamente na baixa escolaridade, num menor ren- sobre o analfabetismo e a alfabetização e, fun-
dimento e no analfabetismo de crianças. As cri- damentalmente, evitar os sucessivos erros de
anças em situação de pobreza exigem espaços e estratégia que têm caracterizado a abordagem
climas familiares nos quais seus próprios pais do problema na região.
sejam seu principal estímulo para freqüentar a
escola. Não é por acaso que a maior persistência
de mães de família em programas de alfabetiza- 0 alfabetismo funcional:
ção se deve ao fato de que um bom número de-
resultados de
las deseja alfabetizar-se e educar-se para poder
ajudar seus filhos em suas tarefas escolares. uma pesquisa regional
Um terceiro contra-argumento está relacio- A preocupação com o analfabetismo fun-
nado à necessidade de visualizarmos a alfabe- cional tornou-se patente na América Latina
tização e educação básica de jovens e adultos nos últimos anos. Várias recomendações de
como um extraordinário investimento econô- reuniões ministeriais mencionam o problema.
mico e cívico, e não como um problema de es- Na Declaração Presidencial da Reunião de Cú-
cassez de recursos, pois, em que pese a moder- pula das Américas II, o problema do analfabe-
nização registrada nas sociedades latino-ame- tismo foi reduzido ao nível funcional. No en-
ricanas ou em grande parte delas, o domínio da tanto, além da plena vigência, assinalada na
leitura e da escrita continua sendo um fator in- declaração, do analfabetismo absoluto, que
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
contradiz o otimismo dos mandatários, a au- ciadas aos níveis de alfabetismo foram a esco-
sência de estudos sobre as características do laridade e o posicionamento no trabalho.
chamado analfabetismo "funcional" dificulta A escolaridade determina fortemente os ní-
sua abordagem. veis e afeta significativamente os resultados em
A Unesco desenvolveu uma primeira pes- todos os domínios. Nos sete países, os que ti-
quisa regional sobre alfabetismo funcional nham seis ou sete anos de escolaridade ainda
em sete países da região. 2 o objetivo da pes- se situam, numa proporção de 50% ou mais, no
quisa foi dimensionar e analisar esse fenô- primeiro e no segundo níveis.
meno por meio de abordagens quantitativas Isso significa que, para uma pessoa se situ-
e q u a l i t a t i v a s , e s t a b e l e c e n d o , em bases ar no terceiro nível - com algum domínio do
empíricas, um perfil da população quanto a alfabetismo -, ela deveria ter cerca de oito anos
suas habilidades de leitura e relacionando de escolarização e mais anos ainda em alguns
essas habilidades com determinadas compe- países da amostra. Quanto ao quarto nível de
tências sociais e profissionais supostamente competência em todos os domínios, que
exigidas nos centros urbanos onde foi desen- corresponde a uma inserção alta no trabalho,
v o l v i d a . O estudo aplicou instrumentos que verificou-se que, na maioria dos países, as pes-
envolveram os campos da economia, da pro- soas precisavam ter onze, doze ou mais anos de
dução e da vida cotidiana e se propôs a indi- escolaridade.
car níveis de escolaridade necessários para Um dos resultados mais importantes da
se alcançarem os domínios que possibilitem pesquisa foi a constatação efetiva de que po-
uma alfabetização efetiva. demos distinguir, na população adulta dos
Com os instrumentos de leitura/escrita e países envolvidos, níveis estatisticamente di-
Matemática, a pesquisa procurou, fundamental- ferentes de habilidades nos domínios da pro-
mente, avaliar níveis de desempenho nas habi- sa, dos documentos e da Matemática. Isso é
lidades relacionadas a diferentes domínios.3 projetado para toda a população adulta. Por
Os resultados preliminares indicam que, essa razão, a clássica diferenciação estatísti-
embora os itens do teste preliminar fossem con- ca entre pessoas alfabetizadas e analfabetas
siderados relativamente "fáceis", apenas um não é suficiente. De acordo com a pesquisa,
percentual flutuante de 39% (no caso do Méxi- todos nós temos algum grau de alfabetismo,
co) a 72,3% (no caso da Argentina)4 da popula- segundo nosso grau de escolaridade, a qua-
ção pesquisada conseguiu apresentar respostas lidade de nossas aprendizagens e o uso que
corretas para os itens necessários.5 fazemos de nossas habilidades, principal-
Nesses resultados, as variáveis mais asso- mente no trabalho.
' A pesquisa foi coordenada pela pesquisadora Isabel Infante e abrangeu os seguintes sete países: Argentina. Brasil (Estado de São Paulo),
Colômbia, Chile. México, Paraguai e Venezuela. As amostras selecionadas, em número não inferior a mil pessoas, foram representativas da
população adulta de zonas urbanas na faixa etária de 15 a 54 anos (no Paraguai, a pesquisa limitou-se à faixa etária dos 15 aos 34 anos).
3
o instrumento de leitura/escrita procurou medir algumas das habilidades que as pessoas adultas devem ter para lidar com textos escritos em
diferentes formatos, com diferente organização e diferentes graus de complexidade lingüística. Eles consistiram em textos curtos sobre
sinais de um ataque de coração, notícias de jornais sobre indígenas e o meio ambiente e anúncios em jornais para diferentes empregos em
restaurantes. Na área da Matemática, a pesquisa incluiu operações de numeração, adição, subtração, multiplicação, proporções, adição e
divisão seqüenciada (cálculo de médias), quadro de distâncias aproximadas em quilômetros, leitura de textos esquemáticos, como tabelas
gráficas e niveis de habilidades na compreensão de textos com informações numéricas (depósitos bancários, ingredientes para receitas
culinárias).
' No Brasil, 67% da amostra conseguiram apresentar respostas corretas para os itens exigidos. No Chile. 70%; na Colômbia, 55%; na Venezuela,
43%; e no Paraguai, 49,7%.
5
Em seu relatório preliminar sobre a pesquisa. Isabel Infante assinala as seguintes possíveis explicações para esses fracos resultados:
- os que responderam não tinham familiaridade com provas escritas ou fazia muito tempo que não se submetiam a uma prova;
- as pessoas deviam seguir instruções, e essa "talvez seja a primeira das habilidades exigidas";
- para muitos, os formatos podem ter sido novos;
- possivelmente, medo de provas dessa natureza.
Em direção a políticas públicas reconhecidas na década de 1970. A bem-suce-
dida campanha nacional cubana mobilizou ou-
que incluam estratégias tros intentos nacionais e não levou em consi-
integrais de alfabetização deração a impossibilidade de "modelos"
replicáveis sem contextos originários seme-
A alfabetização dos mais pobres continuará
lhantes. Vários esforços de alfabetização con-
sendo uma tarefa p r i o r i t á r i a . O analfabetismo
seguiram mobilizar vontades e criar condições
não constitui apenas expressão da pobreza, mas
para maior conscientização das desigualdades
também impedimento para a sua superação e
nacionais e a necessidade de maior integração
para o acompanhamento e estímulo da própria
nacional. A prioridade de alfabetização na re-
educação dos filhos. Além disso, apesar da alen-
gião está orientada para a necessidade de ações
tadora queda nos índices de analfabetismo ab-
localizadas no Nordeste do Brasil, em países
soluto, os efeitos da crescente pobreza na re-
como Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua,
gião serão decisivos para o aumento desses ín-
República Dominicana e El Salvador e também
dices em determinadas áreas das populações
nas populações indígenas femininas da Bolívia,
nacionais.
do Equador, do Peru e do México.
Ainda prevalece alguma imprecisão em tor-
no da noção de analfabetos e de pessoas alfa-
betizadas. A noção de analfabeto está exclusi- A necessidade de uma melhor
vamente associada à falta de escolaridade. Li-
mita-se à aprendizagem formal de um alfabe-
compreensão da alfabetização
to que possibilite a leitura e a escrita. Precisa- Nas sociedades onde coexistem a oralidade
mos insistir no sentido de que a alfabetização que perdura como experiência cultural inicial
seja vista como um processo mais longo e com- e uma "oralidade secundária" alentada pelo rá-
plexo, que envolve a aprendizagem de diferen- dio, pelo cinema, pela televisão, pelo vídeo e
tes níveis de domínio da linguagem escrita e pelo computador, não se pode limitar a alfa-
de outros códigos, e que se perceba que as no- betização à escrita alfabética. No entanto, essa
ções de "alfabetismo" e "alfabetização" não têm cultura alfabética continua sendo insubs-
idade. Por isso, quando se fala de analfabetos, tituível para que se tenha acesso aos códigos
não devemos pensar apenas em alguém sem da modernidade, incluindo a comunicação ele-
competências básicas de leitura, mas em al- trônica.
guém que não possui as competências e des- A compreensão do significado da alfabeti-
trezas básicas para sua inserção social e no zação progrediu consideravelmente com as
mercado de trabalho e para assumir tarefas sig- idéias propostas por Paulo Freire desde as dé-
nificativas, capazes de melhorar sua qualida- cadas de 1960 e 1970, que a associavam a um
de de vida. processo pelo qual os analfabetos tomam cons-
A alfabetização teve que enfrentar, como ciência de sua situação pessoal e aprendem a
primeiro obstáculo, o fato de ter sido assumida criar ou a utilizar meios para melhorá-la. Para
como problema que podia ser abordado por Freire, a aprendizagem da leitura, das contas e
meio de campanhas nacionais, que foram se da escrita está associada a etapas que dão aces-
esgotando por si p r ó p r i a s . O caráter estrutural so a direitos políticos, econômicos e culturais,
do analfabetismo coincidente com a pobreza e afetando ou modificando a forma pela qual o
a miséria dos analfabetos e a necessidade de poder é compartilhado na sociedade. A influ-
associar a alfabetização a conquistas econômi- ência de Freire ultrapassou muito as fronteiras
cas e político-sociais só foram regionalmente latino-americanas. 6
fl
A figura e a obra de Freire receberam homenagem póstuma mundial em ato especial realizado na Confitea V, na presença de representantes
de todos os continentes, que reconheceram o valor de suas ações e as repercussões de sua obra em seus paises.
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
Resumo
o Programa de Formação do Programa Esco- Ias e profissionais se encontrarem semanalmente
la que Vale (PEQV) - parceria entre a Fundação Vale para planejar suas ações, a inserção da comunidade
do Rio Doce e o Centro de Educação e Documen- nas diferentes etapas dos projetos, a utilização de al-
tação para a Ação Comunitária (Cedac), organiza- guns recursos tecnológicos como ferramentas para a
ção não-governamental ligada à educação - ini- aprendizagem, o desenvolvimento de projetos liga-
ciou seu trabalho em junho de 1999, em seis cida- dos à gestão escolar por parte dos diretores, a forma-
des brasileiras, com professores de escolas muni- ção de supervisores, a necessidade de estabelecer par-
cipais de 1ª a 4ª séries. Inicialmente privilegiou o ceria entre os diferentes interlocutores participantes
trabalho de formação de professores e teve como (técnicos da Secretaria de Educação, diretores,
eixo a realização de projetos didáticos em sala de supervisores, professores, outros funcionários da es-
aula, centrados na área de Língua Portuguesa. cola, alunos, pais e comunidade escolar em geral). A
Essa escolha deve-se ao fato de acreditarmos que implantação paulatina dessas ações fez com que
tal modalidade organizativa garante o sentido das muitas questões gerenciais, de concepção, de atitu-
aprendizagens dos alunos e, ao mesmo tempo, resga- des fossem revistas para que os projetos pudessem
ta o sentido do ensino por parte dos professores. ser desenvolvidos.
Colocar em prática os projetos em sala de aula Esta palestra tem como objetivo central a apre-
fez com que o paradigma vigente nas escolas envol- sentação desse histórico do PEQV sob a ótica da
vidas fosse, pouco a pouco, sendo revisto. Esse pro- mudança de paradigma vigente e da formação de
cesso de revisão de algumas práticas já institucio- equipes reflexivas que se comprometam e se respon-
nalizadas partiu da análise e reflexão de ações sabilizem por essas transformações, necessárias
implementadas pelo PEQV: a necessidade de esco- para reinventar o papel do professor e da escola.
Contexto de formação: trabalho com Basta observar as aulas dadas ou olhar o que está
projetos didáticos de leitura e escrita exposto nas paredes, por exemplo, pois tudo isso
revela o que as professoras ensinam e o que as
o contexto da formação de professores cria-
crianças aprendem e, portanto, qual a concep-
do pelo programa consiste no trabalho com pro-
jetos didáticos de leitura e escrita e na supervi- ção de criança e o que esta escola pensa e faz a
são permanente do desenvolvimento desses respeito da aprendizagem delas, ou seja, qual o
projetos pelos professores. seu projeto pedagógico.
Sabemos que até há pouco tempo, pouquís-
Projetos de leitura e escrita. Ao iniciar o tra-
balho, os professores recebem um "cardápio" simos profissionais de educação sabiam qual o
com diversos projetos didáticos de leitura e projeto pedagógico da sua instituição que, quan-
escrita e escolhem um deles para ser desen- do o tinha, desempenhava função puramente
volvido em classe. Todos obedecem a uma b u r o c r á t i c a . O que víamos, então, era os profis-
estrutura básica, com sugestões didáticas que sionais trabalharem, sem saber explicar o que
devem ser detalhadas e transformadas em faziam, por que optaram por trabalhar daquela
seqüências de atividades específicas junto maneira e não de outra, e a única explicação
com cada grupo de professores. O que garan- possível para sustentar sua prática estaria pau-
te a transformação do "cardápio" inicial no tada na tradição: "Faço assim porque sempre fi-
que acontece em aula é o planejamento se- zemos desta forma".
manal realizado pelos professores e super- Quando a política nacional de educação pas-
visores. Nesse percurso, os professores apro- sou a exigir que as escolas apresentassem seus
fundam diversos conteúdos de leitura e escri- projetos pedagógicos registrados, as instituições
ta com seus alunos. Os alunos aprendem de
entraram em desespero, porque não sabiam nem
forma contextualizada, sabendo o que, para
como nem para que fazer tal tarefa. Muitas escre-
que e para quem estão escrevendo. Os pro-
fessores aprofundam conhecimentos, já que, veram o projeto, mas sem atribuir sentido ao do-
para a realização do projeto, é preciso plane- cumento e sem fazer uso dele para a reflexão con-
jar, prever, dividir responsabilidades, adqui- t í n u a . O projeto pedagógico, então, passou a ser
rir conhecimentos específicos relativos ao mais uma tarefa burocratizada e realizada pelo
tema em questão, desenvolver capacidades e diretor da escola, mas não se transformou em
procedimentos determinados, usar recursos referencial a ser consultado cotidianamente pe-
tecnológicos, aprender a trabalhar em grupo, los membros da equipe, seja para recuperar seus
de acordo com as normas, os valores e as ati- princípios ou para reformulá-los de acordo com
tudes esperados, organizar o tempo, dividir e as reflexões realizadas a partir das práticas e es-
redimensionar as tarefas e avaliar os resulta- tudos realizados pelos funcionários da escola.
dos em função do plano inicial. Tudo isso fa- Atualmente, diversas frentes de formação
vorece ao sujeito que se comprometa com sua
têm contribuído para que a instituição escolar
própria aprendizagem, pois essa é muito mais
pare, pense e reflita sobre seu projeto pedagógi-
produtiva quando o grupo que realiza tal pro-
co: PCN em Ação, PROFA e programas diversos
jeto conta com a participação de cada um para
alcançar a meta comum. contratados pelas prefeituras locais.
Sabemos que a formação é importante, por-
que auxilia os profissionais a tomarem consci-
ência do conhecimento didático e faz com que
Para que o projeto pedagógico
as ações relacionadas ao ensino e à aprendiza-
da escola e por que o projeto gem ganhem sentido. Por meio da formação, é
possível que os profissionais parem para pensar
pedagógico na escola
no porquê, no para que e no como fazer. Ao dis-
o projeto pedagógico de uma escola torna- cutir as práticas realizadas na escola, é possível
se visível no próprio acontecer cotidiano da es- avaliar qual a concepção de ensino, de aprendi-
cola. Ao entrarmos em uma escola, já é possí- zagem e de criança que a escola assume; con-
vel antecipar qual o seu projeto pedagógico. frontar essa realidade com as intenções da esco-
la será um fértil caminho para que ela reflita so- Reflexão sobre o trabalho
bre o seu próprio projeto pedagógico. com professores
o PEQV faz um recorte na formação: traba-
o trabalho com projetos. O que é projeto? A
lha somente com os conteúdos de Língua Por- primeira questão apontada pelos professores
tuguesa. Essa opção está relacionada à impor- dizia respeito ao próprio trabalho com proje-
tância social e política dessa área. Um outro pon- tos, pois, afinal, até então desenvolviam pro-
to é que sabemos que, para trabalhar com uma jetos predeterminados pela supervisão, dire-
área de conhecimento com um grau relativo de ção ou secretaria e eram realizados em prazo
aprofundamento, é necessário tempo. curto de tempo, sem produto final, com eta-
Ao optarmos em trabalhar com projetos di- pas fixas, sem a possibilidade de reavaliar o
dáticos de língua, é inevitável o confronto entre planejamento e também sem pensar na toma-
diferentes concepções, assim como o questiona- da de decisões por parte dos alunos. Assim, o
mento da gestão de sala de aula, da rotina da primeiro choque referia-se a essa maneira di-
escola, da relação entre família e escola, comu- ferente de trabalhar com a Língua Portugue-
nidade e escola, além da concepção de criança. sa, onde há uma seqüência lógica que privile-
As transformações ocorridas até o momento ain- gia as situações de aprendizagem com um
da são pequenas e podem ser efetivas dentro das sentido social. Essa prática confrontou-se
com a proposta vigente na qual o trabalho
escolas, mas para isso é preciso que estas saibam
com temas geradores aspirava a uma falsa in-
como manter o grau de reflexão e discussão que
terdisciplinaridade e apresentava uma lista de
já vem sendo conseguido pelos seus profissio-
conteúdos sem fim, além da proposta de tra-
nais. A questão fundamental é como balhar, a cada dia, com um conteúdo, sem
institucionalizar essa reflexão dentro da escola, importar o sentido de por que fazer aquilo e
porque só assim os profissionais terão como pre- para que fazer daquela forma, tanto para os
ocupação cotidiana o que querem para seus alu- alunos quanto para os professores.
nos. Tudo isso passa pela reinvenção do papel A realização de projetos sugere problemas
do professor, do supervisor, do diretor, da rela- concretos e o formador atua em função das
ção que a escola estabelece com os pais e com a questões que emergem desse processo de
comunidade. Sabemos hoje que a reflexão per- implementação. O importante para os profes-
manente é fonte de conhecimento importante sores é compreender o que eles têm de ensi-
para o professor e isso não está necessariamen- nar e por que ensinar. Se é isso que faz senti-
te nas mãos de especialistas, mas, sim, na for- do para os professores, torna-se necessário,
mação contínua desse profissional, que faz par- então, conciliar duas classes de propósitos: a
te de uma escola com identidade e tem, como dos que ensinam e a dos que aprendem.
um dos princípios de seu projeto pedagógico, a Para que planejar? Um outro ponto que
formação de uma equipe reflexiva e autora de avaliamos nestes quatro semestres de tra-
suas práticas. balho com os professores refere-se à neces-
sidade do planejamento. Inicialmente, al-
guns grupos de profissionais pouco plane-
0 projeto pedagógico javam: ou porque não tinham prática de pla-
nejamento e/ou porque pouco se encontra-
e o papel do professor, vam para discutir sobre o próprio trabalho
do supervisor e do diretor e/ou o próprio espaço físico da escola não
favorecia esses encontros. Outros grupos
o programa de formação trabalha com esses conseguiam produzir e compartilhar mais
três profissionais. Vou especificar o trabalho com as idéias entre os participantes. Iniciamos
cada um deles, mas não descreverei o processo trabalhando com grupos da própria escola
de trabalho, e, sim, as principais questões e pouquíssimas experiências agrupavam
desencadeadas pelo programa de formação - no duas escolas numa mesma reunião. Perce-
sentido da reflexão da prática educativa que te- bemos rapidamente que propiciar maior
nha relação com o projeto educativo da escola. interação entre escolas seria o melhor, por-
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
que poderia haver troca de experiências, tiveram de discutir e decidir entre 13 propos-
além da observação de como se posicio- tas por apenas um projeto por série. Essa reu-
navam, como organizavam o material. Tudo nião foi bastante difícil, porque os professores
isso fez com que todos no grupo tentassem não estavam acostumados a negociar entre si
imitar uns aos outros, trocassem materiais, e nem a argumentar sobre suas escolhas. Fi-
endereços; enfim, começaram a ver que ha- cou evidente que não sabiam como exercer
via outras formas de se relacionar com o essas ações. Esta foi, então, a primeira questão
saber e a organização. Ou seja, o fato de ve- do semestre: o professor é o responsável tam-
rem outros colegas de outras escolas expli- bém pelo que desenvolve em sala de aula e tem
citava que cada instituição poderia ter a sua de ter poder de voz e decisão, pois estará à fren-
própria forma de organização e construção te das crianças cotidianamente. Tudo isso pode
de saberes, que muitas vezes é necessário parecer óbvio, mas, dependendo do projeto pe-
sair do próprio universo para ampliar expe- dagógico da escola, o poder de decisão nunca
riências e referenciais para, posteriormen- passa pelo educador.
te, poder voltar para a sua própria institui- Tematização da prática. A análise de vídeo
ção e refletir sobre seus pressupostos. de sala de aula foi uma das estratégias utili-
Formação de uma equipe colaborativa. De zadas na formação. Pudemos observar que
forma geral, os professores tinham pouca ou os professores já conseguem ver a si mesmos
nenhuma prática de trabalho reflexivo feito nos encaminhamentos que deram certo,
coletivamente, sofriam muito no planeja- como também entender os equívocos e falar
mento individual a ser compartilhado pos- sobre i s s o . O grande avanço aqui é o fato de
teriormente. Mudamos o pedido e autoriza- poderem se expor, conseguirem ouvir uns
mos que planejassem em duplas e, depois, aos outros e saberem que isso não é pura gen-
as duplas compartilhavam com o grupo todo tileza, mas, sim, a própria construção de co-
para chegar a um planejamento comum. As nhecimento do grupo sobre pedagogia.
discussões sobre a elaboração desses plane- A questão da discussão sobre o confronto
jamentos procuravam antecipar quais difi- entre o que se planeja e o que se realiza em sala
culdades/desafios os alunos enfrentariam de aula também desestabilizou não só os pro-
em determinadas situações, assim como fessores, como também os supervisores, já que,
quais intervenções os professores poderiam até então, as observações de sala de aula e a
fazer para atingir as aprendizagens dos alu- análise das produções das crianças não eram
nos. Essas discussões eram coletivas e base- vistas como ferramentas importantíssimas
adas na prática já vivenciada. para refletir sobre como se faz e por que se faz.
Neste semestre, a estratégia de colocar Um outro mito que veio abaixo é que não bas-
juntos os diferentes grupos de escolas e exi- ta um planejamento burocrático, mas, sim, que
gir de maneira mais enfática a realização de este precisa estar vinculado a avaliações peri-
planejamentos por parte dos professores fez ódicas de como cada criança aprende. Ou seja,
com que, inicialmente, houvesse muitas re- uma escola que tem como projeto pedagógico
sistências, porque até então estavam habi- a concepção de que a avaliação está centrada
tuados ao planejamento realizado pelo no percurso, e não apenas no resultado final,
supervisor ou ditado pelo livro didático. Co- está preocupada não só com o planejamento,
locar-se como autor de sua prática foi uma mas também como esse planejamento ganha
grande novidade para todos e avaliar que sentido no cotidiano da sala de aula.
suas decisões, no momento do planejamen- Um outro ponto importante foi a utiliza-
to, poderiam ou não favorecer a aprendiza- ção da análise de produção das crianças
gem dos alunos foi um grande marco no per- como instrumento de investigação sobre
curso de formação desses professores. como as crianças aprendem e pensam.
o que se aprende quando se escolhe. A partir Essa supervisão constitui um dos grandes
do 2º semestre, os projetos escolhidos foram diferenciais que o PEQV oferece para que os
restritos a um por série. Para isso se efetivar, os problemas advindos da prática em sala de aula
professores das quatro escolas se juntaram e sejam nomeados, interpretados e transforma-
dos. Nessa interlocução, o professor é ajudado flexão coletiva, ou seja, eram escolas que
tanto do ponto de vista da implementação da não valorizavam a formação. Isso se refletia
prática, quanto da compreensão da teoria que na representação que o supervisor tinha de
a sustenta. A configuração de um espaço de seu papel: aquele que deve fornecer o tra-
troca e de aprendizagem dessa natureza é mui- balho pronto para os professores, se possí-
to comum em diversas profissões e em muitas vel até com as matrizes de atividades já
escolas que oferecem ensino de qualidade. prontas: aquele que entende como obser-
Para quase todos os profissionais, o seu desen- vação de sala aquela passada rápida para
volvimento conta com a possibilidade de diá- verificar a lista de presença, se o professor
logo entre pares, pois isso estimula a troca de está sentado ou em pé, se o professor está
s a b e r e s . O fato de configurar uma arquitetura dando a aula correspondente à lista de con-
de funcionamento do programa apoiada na teúdos elaborados pelo supervisor, que sim-
idéia de que a possibilidade de troca, a refle- plesmente copiou o que a Secretaria indi-
xão compartilhada e o acesso à informação cou como um possível currículo.
devam ser pilares do processo tem feito com Atualmente, alguns supervisores ainda
que as respostas e o nível de compreensão dos oscilam entre esse paradigma de escola e
professores envolvidos nessa experiência se- outro, em construção, que é aquele em que
jam surpreendentemente rápidos. a escola tem tempo para planejar e refletir
Construção de autonomia. Todo programa sobre a coerência do trabalho pedagógico e
de formação precisa refletir sobre o encerra- que, por conta disso, cria um contexto de for-
mento de suas atividades no município e mação e desenvolvimento profissional. Os
também sobre como poderá multiplicar pela supervisores estão em plena reinvenção do
rede as suas ações. Para conseguir atingir es- seu papel e atuação dentro das escolas, es-
ses pontos, é importante que a clientela for- tão sendo cobrados sistematicamente pelos
mada conquiste sua autonomia em relação professores assim como pelos diretores. Al-
aos formadores e passe a criar a própria rede guns já conseguiram montar uma rotina mais
de comunicação e formação na cidade. próxima da necessidade real de formação de
No caso do PEQV, pudemos perceber que, seus profissionais. Estão iniciando filmagens
nos municípios em que houve maior integra- em salas de aula, transferindo para outras
ção entre Secretaria e PEQV, essa passagem se áreas alguns procedimentos vistos no desen-
efetivará com maior consistência, porque ine- volvimento do trabalho com o projeto em
vitavelmente refletirá na mudança de algumas língua; outros estão fazendo registros e co-
práticas vigentes dentro das secretarias: defi- locando questões para além das descrições
nir de quadros fixos para supervisores, garan- e percebendo que algumas questões, antes
tir hora-atividade, saber priorizar o que se vistas como problema de um determinado
quer com relação ao ensino e à aprendizagem, professor, são, na realidade, de mais profes-
saber priorizar onde investir recursos pró- sores e que, portanto, a melhor estratégia é
prios, saber que uma política municipal não promover uma reunião geral com os profes-
é equivalente a querer homogeneizar todas as sores e com uma pauta de reunião em que se
escolas - afinal todos nós queremos o fortale- discuta o assunto a partir das observações em
cimento da escola como "uma organização- sala de aula. Alguns supervisores estão en-
aprendiz que tem que ser alvo de uma forma- contrando dificuldades em desenvolver o tra-
ção adaptada para ela e suas características balho nestes moldes, porque os diretores es-
próprias e do conjunto de seus professores". tão se sentindo ameaçados e exigindo que os
supervisores saiam do PEQV, uma vez que
este implica mudanças que inicialmente
Reflexão sobre o trabalho desenvolvido desestabilizam e fazem com que todos pre-
com supervisores cisem rever suas propostas, assim como a
Redefinição de função e tempo para o tra- própria escola.
balho. Em relação aos supervisores, até en- Um exemplo de atuação de supervisores
tão a maioria das escolas ignorava a neces- e professores de uma escola que está em fase
sidade da prática de planejamento e de re- de transição e não aceita mais alguns padrões
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
Priscila Monteiro
Leitura na alfabetização -
velhos e novos problemas
Isabel Cristina Alves da Silva Frade*
Ceale/UFMG
" Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Ceale/FAE/UFMG.
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
Como conseqüência, percebe-se uma am- turais vividas no bairro ou no espaço domésti-
pliação dos tipos de suporte, como jornal, li- co. Essa constatação levou a professora a criar
vro, cartaz, folheto, revista, embalagens, e dos um projeto de estudo, envolvendo outros alu-
gêneros que são lidos: textos narrativos nos de outra escola, que passaram a enviar
jornalísticos e literários, publicitários, embalagens para troca.
epistolares, informativos, instrucionais, entre Em um curso de formação de professores,
vários outros. Nesse conjunto de novos supor- listamos alguns tipos de textos existentes na
tes, permanece o livro didático, hoje estrate- zona rural e conseguimos encontrar muito
gicamente denominado "livro de alfabetiza- mais textos do que se imaginava circular na-
ção", em contraponto a uma idéia de cartilha, quele ambiente: a Bíblia, folhetos religiosos
que se pretende combater simbolicamente, já utilizados nas missas ou em outras celebra-
que o problema não é o nome, mas o conteú- ções, calendários da Folhinha Mariano, instru-
do existente no suporte "livro didático" ou ções sobre uso de produtos agrícolas, embala-
mesmo o uso que se faz dele. gens de alimentos e de produtos usados na-
quele contexto, contas de água e luz, informa-
tivos dos movimentos rurais e de sindicatos,
Onde e como se lê e quem le? cartas, entre outros. Também nesse caso, cres-
Uma observação sobre os espaços de lei- ce a responsabilidade dos professores em fa-
tura revela sua concretização em espaços va- zer dessa circulação um objeto de curiosidade
riados, mediante esforço dos professores para e investigação.
criar um "ambiente lingüístico/alfabetizador". Nas regiões urbanas, vem se diversifican-
Esse ambiente comporta sala de aula, corre- do o trabalho com leitura mediante a visita a
dores, pátios escolares, bibliotecas, escritos do livrarias, bancas e a eventos como feiras de li-
bairro e da cidade, ou seja: onde quer que os vros, demonstrando que, para a compreensão
textos existam, também existem espaços de de determinados aspectos da leitura, também
leitura. Parece óbvio dizer que os espaços de contribui o conhecimento sobre as instituições
leitura acompanham a presença dos escritos envolvidas na fabricação, distribuição e divul-
na sociedade. Entretanto, não basta que exis- gação dos impressos e sobre determinadas so-
tam materiais escritos em diversos lugares, se ciabilidades criadas em torno dos livros, como
esses materiais não se tornam observáveis a de falar sobre eles e a de saber que existem
como objeto de interesse e façam sentido para autores e ilustradores, entre outros. Essa pers-
os alunos. pectiva é reforçada por Chartier (1996), quan-
Nesse caso, faz diferença o trabalho do pro- do apresenta uma série de atividades de dis-
fessor: como esse profissional trabalha com a cussão sobre o funcionamento do mundo da
tarefa de criar um motivo para que os apren- escrita no espaço urbano, doméstico e esco-
dizes olhem com outros olhos coisas (supor- lar. Uma parte das propostas de intervenção
tes/textos) aparentemente "naturais", que fa- envolve a descoberta e a identificação de su-
zem parte do cotidiano da escola e da socie- portes, a convivência com eles e a compreen-
dade, da zona urbana e mesmo da zona rural? são do modo como os textos circulam, como
o relato de uma professora sobre o desconhe- são armazenados e classificados, atividades
cimento do suporte "embalagem" por crianças que podem ser desenvolvidas paralelamente
de uma favela do interior de Minas é ao trabalho de construção do sentido dos tex-
elucidativo dessa tarefa: as crianças não ti- tos e da decodificação. Essas são práticas que
nham acesso a embalagens porque seu contex- trabalham não só a leitura em si, mas também
to era "pobre" em estímulos ou porque nunca o que a antecede e o que pode prolongá-la.
tinham parado para observá-las? Uma pesqui- Houve e há também uma crescente amplia-
sa nos locais de moradia evidenciou que essas ção das situações pelas quais a leitura ganha
embalagens chegavam às casas dos alunos, significado na própria escola. Josette Jolibert,
mas não eram evidenciadas nas práticas cul- autora que enfrenta a dimensão didática do
trabalho com leitura e escrita de forma mais ficcional, no imaginário, no nonsense, no
explícita e é, por isso, muito utilizada por pro- humor. São os livros de literatura, os qua-
fessores, apresenta, em seu livro Formando cri- drinhos, que têm o potencial de trabalhar
anças leitoras (1994: 31), um tipo de classifi- com r e p r e s e n t a ç õ e s , c o m s e n t i m e n t o s e
cação para esses usos escolares, tais como os com a d i m e n s ã o estética.
de ler: Aspecto interdisciplinar: material q u e pos-
• para responder à necessidade de viver com os sibilita o trabalho com diversos aspectos da
outros na sala de aula e na escola; formação e n ã o a p e n a s com a leitura.
• para se comunicar com o exterior; Produção coletiva: materiais p r o d u z i d o s
• para descobrir informações das quais neces- por professores, por alunos e por turmas,
sita; que passam a ser lidos, socializados e con-
• para fazer (brincar, construir, levar a termo sultados por outras t u r m a s .
um projeto ou empreendimento); Por m o t i v o s p e d a g ó g i c o s , m a i s d o q u e
• para alimentar e estimular o imaginário; lingüísticos ou de alfabetização, verifica-se,
• para documentar-se no quadro de uma pes-
nos últimos anos, u m a certa tendência de uti-
quisa em andamento.
lização de materiais de leitura de uso mais prá-
tico e / o u informativo, na sala de aula. Isso
A i n t r o d u ç ã o de novos usos escolares da
p o d e contribuir para u m a ampliação dos usos,
leitura t a m b é m é decorrente de outros tipos
mas pode t a m b é m fazer com que certos tex-
de preocupação, q u e extrapolam seus aspec-
tos, antes mais presentes e valorizados na es-
tos específicos. Os professores têm se preocu-
cola (como as poesias, as narrativas), percam
pado em introduzir materiais que r e s p o n d a m
e s p a ç o . O fato d e serem t a m b é m utilizados
a alguns desafios inerentes às inovações peda-
materiais produzidos no interior da escola co-
gógicas, com foco na interdisciplinaridade, em
loca em dúvida se têm sido bem considerados
novas metodologias - como a de trabalho com
d e t e r m i n a d o s aspectos editoriais que se con-
projetos - , e m c o n t e ú d o s p r ó p r i o s d a c o n -
figuram nos impressos e constituem elemen-
t e m p o r a n e i d a d e , r e s p o n d e n d o a u m a neces-
tos i m p o r t a n t e s p a r a os sentidos e para sua
sidade de contextualização das aprendizagens.
apreciação estética.
Com essas inovações, os materiais de leitura
são reordenados no âmbito das necessidades Por outro ângulo, q u a n d o se consideram as
pedagógicas gerais. Algumas dessas necessida- práticas de leitura realizadas a partir de dife-
des t a m b é m vão interferir nas práticas cultu- rentes suportes e gêneros, cabe perguntar: as
rais de leitura na escola. Essas preocupações leituras são as m e s m a s para todos? Com q u e
têm se baseado nos seguintes focos: concepção de leitura se trabalha? Nesse aspec-
to, constata-se que a p r o d u ç ã o de sentidos na
Funcionalidade: materiais de leitura q u e
a p r e s e n t a m valor funcional, com ênfase leitura extrapola o próprio texto, uma vez que
nos aspectos práticos e em necessidades não é necessário lê-los para ter acesso a deter-
pedagógicas e de leituras mais emergentes, m i n a d a s c a m a d a s de sentido. Q u a n d o os pro-
a partir da utilização de m a n u a i s de jogos fessores alfabetizadores introduzem diferentes
e de instruções para trabalhos, de listas, re- suportes n e m s e m p r e o foco a ser privilegiado
ceitas, cartazes, obras de referência etc. é o c o n t e ú d o textual. Muitas vezes, o uso pe-
dagógico é o de classificar materiais de leitu-
Atualidade: materiais de leitura, c o m o jor-
nais e revistas, q u e focalizem aspectos da ra, identificando sua materialidade, como ob-
o r d e m do dia e q u e p o s s a m , ao m e s m o jetos, seus usos sociais, suas semelhanças e di-
tempo, informar e m a n t e r a escola e os alu- ferenças talvez p a r a antecipar, assim, o seu
nos em ligações mais estreitas com deter- conteúdo. Essa pode ser considerada uma nova
minados a c o n t e c i m e n t o s sociais. forma de leitura, introduzida em sala de aula
de alfabetização.
Foco na ficção, no humor e no imaginário:
material de leitura que possibilita a saída E a leitura dos textos, p r o p r i a m e n t e dita,
do real e do e m e r g e n t e , c o m foco no como vem se dando? Uma primeira m u d a n ç a
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
nesse aspecto é a de que não se espera que as pidez e coordenação entre a recepção do texto
crianças saibam ler para que tenham acesso (às vezes fixo, às vezes em movimento) e da
aos conteúdos dos textos. Os professores as- imagem em movimento.
sumem, eles mesmos, o papel de leitores, me- Apesar da ampliação de usos e de supor-
diando o aspecto da decodificação para que os tes, novas linguagens devem suscitar, em pro-
alunos tenham acesso aos diferentes aspectos fessores e alunos, intervenções pedagógicas
da significação. Os textos também são lidos por específicas. É crescente, nos textos oferecidos
alunos que "já sabem ler" (da mesma turma ou à leitura, a introdução de apelos gráficos e vi-
de outras turmas, ou ciclos e séries), alteran- suais que alteram os movimentos dos olhos e
do papéis e posições de quem pode ler para o os sentidos do texto, assim como a presença
outro. de uma certa esquematização na apresentação
Verifica-se grande crescimento no uso da das informações. De forma especial, destaca-
modalidade oral e coletiva da leitura, em se um outro desafio que precisa tornar-se ob-
contrapartida a uma prática de leitura silencio- jeto de reflexões: a iconização e/ou a introdu-
sa e individual, priorizada em outras situações ção de imagens. Não se pode dizer, a partir
e momentos da história da escola, porque não dessa constatação, que a aprendizagem de ou-
se faz mais leitura oral para verificação de com- tros códigos não altere as formas de recepção.
petências, ou seja, para avaliar leitura, mas A imagem não possibilita apenas a entrada
como uma prática que visa a favorecer e de- plástica nos livros de leitura, sobretudo como
mocratizar o acesso a conteúdos e gêneros, um substitutivo para quem "ainda não sabe
logo nas primeiras oportunidades, sem que se ler", mas constitui, junto com o texto, signifi-
estabeleça a velha lógica dos pré-requisitos - cados especiais para qualquer leitor.
no caso, a decodificação. Essa lógica de pré-
requisitos excluiu, por muito tempo, os alunos
do acesso a textos plenos de sentidos e a usos
As necessidades
mais elaborados da leitura. Isso não quer di- de decodificação
zer que a ênfase nas modalidades individual e
silenciosa deixe de ser buscada e de ser um dos
e da sistematização:
principais objetivos da leitura. o ler para aprender a ler
Verifica-se, então, que se ampliam os espa-
0 que falta pesquisar ços de leitura, os tipos de suportes, os usos so-
ciais dos textos, assim como são ressignificadas
e tratar as modalidades coletiva/individual, oral e si-
Nos últimos anos, vêm-se alterando as prá- lenciosa de leitura na escola, entre outros as-
ticas culturais de leitura e modos de ler, sina- pectos ainda não explorados.
lizando para novos desafios de letramento, No discurso teórico, é comum a idéia de
pouco enfrentados nas práticas de alfabetiza- que se aprende a ler lendo e se aprende a es-
ção. Magda Soares (1998: 47) considera crever escrevendo. Entretanto, a afirmação de
letramento "estado ou condição de quem não que devemos ler "para valer" na escola e o re-
apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exer- forço da perspectiva de que os textos para ser
ce as práticas sociais que usam a escrita". Se as lidos estão por todo lado, desde que saibamos
ações de cultivar e exercer práticas sociais de procurá-los, resolvem os problemas do "ler
leitura são também vinculadas ao movimento para aprender a ler". Estaríamos falando das
de transformação dos textos e das formas de mesmas coisas? Qual o sentido que os profes-
ler, novos desafios se colocam. Ler em telas de sores e as pesquisas vêm dando às necessida-
computadores ou de televisão, por exemplo, des pedagógicas de ensinar a decodificação e
envolve outros movimentos de leitura. A lei- às necessidades de o leitor aceder a ela para se
tura de legendas de filmes, de games e de tornar cada vez mais autônomo em relação à
videoquê exige, entre outras habilidades, ra- leitura de outrem?
Alguns aspectos metodológicos e técnicos não havia recebido os livros. Para ela, o livro
envolvidos no ato de ler têm ficado esqueci- didático teria sido um dos primeiros livros aos
dos, em função do trabalho com determinados quais os alunos teriam acesso e de que teriam
aspectos da compreensão e do letramento. As- posse, sendo fundamental a oportunidade de
sim, precisamos fazer diversas perguntas: Qual recebê-lo.
o significado da decodificação após certas No entanto, ao avaliar o livro a que sua tur-
apropriações construtivistas que se negaram a ma não tivera acesso, apareceram outros ques-
enfrentar aspectos metodológicos desse apren- tionamentos. Para essa professora de lª série,
dizado? Por que a necessidade de decodifi- o livro didático utilizado pela outra professo-
cação e de abordagem didática dessa faceta do ra - que "foi mais rápida e pegou os livros" - é
ato de ler não tem sido claramente tratada nas melhor que o do ano anterior porque é inte-
discussões teóricas e em pesquisas acadêmi- grado e interdisciplinar, mas não atende à cli-
cas, no momento atual? Talvez, se estivéssemos entela, pois se destina a crianças que já sabem
enfrentando esse tipo de demanda do proces- ler textos longos. É bom, mas não dá para se-
so de alfabetização e, conseqüentemente, dos gui-lo. É usado para tirar algumas atividades e
professores, não estaríamos negando uma ne- mais para consulta. Segundo seu depoimento,
cessidade legítima e constitutiva do ato de en- "o livro didático não atende às necessidades
sinar e aprender a ler: a decodificação. Deve- dos alunos, apesar de ser bom. Para os alunos
ríamos, no momento atual, acrescentar mais daqui trabalharem nele, tem que ser para as
polêmicas às discussões entre métodos analí- séries subseqüentes". Ela se utiliza de
ticos e sintéticos presentes, no Brasil, desde o parlendas e de músicas para alfabetizar, por-
final do século 19, e não negar a relevância que avalia que o livro didático que sua escola
desses processos de ensino para a construção recebeu não traz essa abordagem relativa a
de uma história da alfabetização e das práti- músicas. Complementa suas aulas com ativi-
cas pedagógicas. dades xerocopiadas de outros livros, literatu-
Deveríamos perguntar hoje: como garan- ra, jornal, revista, letras de macarrão, jogos,
tir o trabalho com a decodificação e com o sen- enfim, segundo ela, "todas as bugigangas que
tido, sem cair na ausência de sentido do tra- um professor tem que produzir". Além disso,
balho escolar, respeitando os resultados de essa professora baseia suas atividades numa
novas pesquisas sobre o aprendizado da leitu- apostila elaborada de acordo com um método
ra? Ao analisar as práticas de muitos professo- musical para alfabetização, por uma professo-
res, mesmo daqueles bem informados sobre ra de Belo Horizonte, há mais de vinte anos.
novas descobertas em alfabetização, encontra- É interessante observar pelo menos duas
mos necessidades mais perenes, que não po- questões a respeito desse episódio. A primeira
dem ser compreendidas como contra-sensos, é o reconhecimento, pela professora, de algu-
mas como forma de conhecimento pedagógi- mas qualidades do livro que viera para a outra
co que pode nos auxiliar na compreensão dos turma. Essa professora é uma profissional que
processos de ensino. Em recente pesquisa so- sabe avaliar a qualidade de um livro de leitura
bre escolha de livros de alfabetização, em duas (ou de alfabetização?). No entanto, quando se
escolas públicas, apareceram dados que de- trata de ensinar a ler/decodificar, precisa va-
monstram alguns desses "paradoxos" de leitu- ler-se de determinada metodologia e de avali-
ra na alfabetização. ar "negativamente" livros que vêm com textos
Uma escola de periferia de uma capital não longos para crianças que ainda não domina-
tinha recebido livros de alfabetização para to- ram a decodificação. Triste também é consta-
das as turmas, em 2001. Constatou-se, então, tar que, apesar de uma séria política de livro
que nem mesmo o objeto livro didático fazia didático no Brasil, ainda existem alunos sem
parte do processo de alfabetização para deter- livro.
minados a l u n o s . O interessante é que a pro- Essa escola não adota postura muito alter-
fessora sentia-se indignada, porque sua turma nativa para a alfabetização e algumas profes-
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
soras chegaram a entender, mediante a análi- so diferenciado. Até 1987, já havia experimen-
se de alguns livros enviados por editoras, que tado diferentes formas de ensinar a leitura,
não havia mais cartilhas no PNLD, desmo- com diversos processos, entre eles o global, o
bilizando-se para a escolha, que ficou a cargo musical, o silábico e os ecléticos. Passou tam-
de alguém que, na falta de "cartilha", escolheu bém por um processo de inovação com um
um livro de alfabetização para 2001. Antes al- rompimento da idéia de métodos rígidos para
gum livro do que nenhum. ensinar a leitura. As professoras mantêm de-
Seriam essas professoras conservadoras? o terminadas posições, quando destacam a im-
que procuram num livro de alfabetização para portância de respeitar o processo de constru-
seus alunos? ção do aluno e a necessidade de que as tare-
Uma segunda escola pesquisada, que já ha- fas escolares tenham significado. Não dizem
via vivenciado significativas inovações nos que seus alunos têm problemas de compre-
anos 1980, optando naquela época por banir a ensão dos textos, quando as professoras são
cartilha em favor de textos de uso social, en- as leitoras. Em contrapartida, deparam-se
contra-se, em 2001, em outro processo. Apa- com a necessidade de ensinar a decodificação
receu, no discurso das professoras, o mesmo para muitos alunos, o que significa questio-
argumento da necessidade de textos de leitu- nar a idéia de que "se aprende a ler lendo". Ar-
ra mais curtos. Explicitando melhor os senti- gumentam justamente sobre a necessidade de
dos de tais comentários, algumas professoras que os alunos criem coragem de ler, tenham
alegaram que, se é para o professor ler para os disponibilidade para ler e não se cansem com
alunos, é melhor que peguem bons livros de o esforço.
literatura ou que os textos venham como ane- As alfabetizadoras precisam negociar pon-
xos no livro, para que os alunos não tenham tos de convergência entre o sentido e a
que enfrentá-los sozinhos, no começo. Uma decodificação. Poderíamos dizer, então, que se
delas mencionou que alguns de seus alunos lhe aprende a ler lendo, mas isso não é válido
disseram: "Adoro quando você lê, porque as- igualmente para todos?
sim eu entendo" (referindo-se às dificuldades Anne-MarieChartieretal. (1996) dedicam,
de enfrentamento de um texto longo, que faz em seu livro, uma parte para atividades mais
os alunos perderem o sentido devido à dificul- amplas com os textos, incluindo-se aí as
dade de decodificar). sociabilidades inerentes ao mundo da leitura.
Destaco, a seguir, alguns argumentos em Apresentam também formas de leitura que
torno do tamanho dos textos: "Os textos têm buscam destacar mais o sentido que a
que ser pequenos senão os alunos se cansam, decodificação. No entanto, não negam as
vão apenas até a metade"; "Os textos menores dificuldades que os aprendizes possam
funcionam melhor, todos lêem e dão conta"; apresentar no esforço de juntar decodificação
"Textos menores, porque textos grandes abor- e compreensão. Exemplificam os problemas de
recem e queremos que os alunos iniciem len- compreensão, destacando que, enquanto os
do, porque é preciso que criem coragem de ler, aprendizes concentram-se na decodificação,
para que mantenham a disponibilidade de ler". podem perder o sentido do conteúdo do texto
Foram destacados também os gêneros de ou mesmo esquecer o que leram antes. Leitura
um texto e evidenciou-se que alguns gêneros com compreensão envolve memorização, e
facilitam a leitura, como pequenas trovas, facilita-se a compreensão se a leitura é feita
parlendas e poesias, que agradam pelo ritmo, com maior rapidez e q u a n d o se podem
entonação e musicalidade. "Os alunos gostam antecipar conhecimentos em relação ao
e favorece a pontuação, que ajuda na compre- conteúdo e ao gênero textual.
ensão. No texto maior, o aluno, em período ini- A partir dessa breve argumentação teóri-
cial, passa de uma frase para outra, sem per- ca, poderíamos entender a preocupação das
ceber o significado." professoras das duas escolas como legítima?
Nota-se, nessa segunda escola, um proces- Ou continuaríamos a enquadrar suas necessi-
dades pedagógicas e funcionais como Trata-se não apenas de ensinar determinados
conservadorismo no ensino da leitura para conteúdos, mas de fazer da escola um espaço
principiantes? de sentido, onde se estuda para conhecer e não
Os professores estariam indo na contramão para "passar de ano", em que a convivência
das discussões teóricas, quando fazem esse com grupos da mesma idade é um critério tão
tipo de demanda ou consideração, ou estari- importante como o da aquisição de determi-
am demonstrando um conhecimento pedagó- nadas habilidades.
gico que precisa ser mais bem compreendido Recentemente as escolas vêm buscando
por nós, formadores e pesquisadores? inovações em suas metodologias, num senti-
Cabe ainda perguntar: o que fizemos nes- do mais amplo. Se era para romper com a ló-
tes últimos vinte anos para dialogar com as ne- gica transmissiva e de pré-requisitos, os alu-
cessidades metodológicas dos professores nos agora iriam para a frente e aprenderiam
alfabetizadores, em relação ao ensino da lei- o que fosse possível, em todos os sentidos.
tura? Ao tentar garantir o trabalho com senti- Assim, alguns problemas de aprendizagem,
do e funcionalidade, jogamos fora o bebê e a entre eles o da leitura, que antes ficavam re-
água do banho? presados no universo de alguns professores -
sobretudo daqueles que sempre enfrentaram
diretamente o processo de aquisição inicial,
Algumas políticas de
passaram a ser de todos. Alunos com proble-
organização da escola mas de aquisição do código estão em todos
e a leitura: novos problemas os ciclos e a aposta de que "se aprende a ler
lendo" provou não funcionar para muitos de-
ou velhos dilemas? l e s . O depoimento de uma coordenadora de
Na década de 1980, tivemos o embrião de escola pública evidencia claramente essa
uma nova forma de organizar a alfabetização, constatação: "Só agora é que a escola vem
com a introdução dos ciclos básicos em vários tomando conhecimento de que a alfabetiza-
estados, como Rio Grande do Sul (especial- ção dos alunos de outros ciclos não aconte-
mente no município de Porto Alegre), Rio de cerá naturalmente e que vai ser necessário
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa deman- priorizar a alfabetização nessas salas".
da vinha de professores inovadores, com seus Em recente curso de formação, uma pro-
questionamentos sobre os tempos de apren- fessora relatou-me que, trabalhando com o ci-
dizagem e a rigidez do sistema de ensino. clo intermediário e enfrentando problemas de
Quando reduzidos a meros discursos, os ciclos alfabetização de vários alunos de mais de 11
não foram implantados, de fato, em muitas anos de idade, teve uma idéia: usar com aque-
escolas. Quando levados a termo, com uma le grupo um pré-livro antigo, com pequenas
política de formação consistente, o saldo de historietas em seqüência narrativa. Destacava,
possibilidades dos ciclos para o ensino da lei- em seu trabalho, a decoração e o reconheci-
tura foi grande. Não basta criar estratégias par- mento do texto, assim como a garantia de
ticulares para resolução do problema de inclu- suspense para o "conto" a seguir. No momen-
são dos ciclos em cada classe ou estabeleci- to do relato, apareciam resultados inesperados,
mento, se também não se quebra a ossatura da com uma metodologia e conteúdos tão "anti-
escola no período da alfabetização inicial. gos": muitos alunos passaram a reconhecer e
Anos depois, precisamente em meados da a ler palavras e a se sentir incluídos, de fato.
década de 1990, a implantação de ciclos con- Outra professora relatou-me como vinha dan-
tínuos fez deslocar o problema da alfabetiza- do certo a abordagem com um método silábi-
ção para a questão do direito à permanência co, em situação individual, para alunos com
na escola. Assim, ampliaram-se as discussões dificuldade de aprendizagem. Não se trata de
pedagógicas para outras esferas, sendo uma desenterrar "fantasmas" ou de ressuscitar uma
das mais importantes a da formação humana. discussão restrita quanto aos métodos de en-
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
sino da leitura, mas de começar a enfrentar Contudo, com o advento de tantas pesqui-
discussões negadas ou não priorizadas, nos sas sobre os processos de construção do senti-
últimos tempos. É preciso reconhecer que de- do na leitura, não é mais possível empregar
terminados aspectos técnicos do trabalho com apenas as estratégias de antes. Se alguns pro-
a aquisição do código podem ser reapro- fessores se reapropriam de estratégias ditas
priados no contexto de novos suportes, de no- tradicionais de forma menos sistemática e es-
vos conteúdos, temas e gêneros, enfim, num pontânea, mesmo negando-as, e obtêm suces-
contexto de novos modos de ler. so no ensino da leitura, é preciso que outros
as tomem sistematicamente, abordando ques-
tões do sistema sem se sentirem intimidados
Reflexões finais e entendendo a especificidade de um conhe-
Alguns resultados de hoje nos obrigam a cimento pedagógico para ensinar leitura para
uma reflexão. Os alunos de muitas escolas ino- "iniciantes", seja com crianças, com adolescen-
vadoras presenciam atos de leitura, têm aces- tes ou com adultos.
so a vários gêneros, com níveis de complexi- Pode-se interpretar, mediante texto de
dade compatíveis com seus interesses e pro- Magda Soares (1990), que as propostas socio-
cessos cognitivos, mas falta ainda para muitos interacionistas não são incompatíveis com
a autonomia de leitura. Os resultados para a condutas metodológicas específicas para alfa-
auto-estima não são os esperados. Os alunos betizar. Afinal, o conceito de letramento com-
sabem que não sabem ler, apesar de toda a porta o conceito de alfabetização, também
valorização em outros aspectos. Também os definido pela mesma autora (1998: 47) como
professores que trabalham em ciclos posterio- "ação de ensinar/aprender a ler e a escrever".
res sabem que não sabem alfabetizar. Ou seja,
há também um conhecimento metodológico
sobre o ensino da leitura, entre eles o da
decodificação, que precisa ser enfrentado com Bibliografia
e por quem entende de alfabetização. Os ma- CHARTIER, Anne-Marie et al. Ler e escrever: entrando no
teriais e conteúdos temáticos podem ser apro- mundo da escrita. Porto Alegre: Artmed, 1996.
priados a diversas idades de formação, mas CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e
algumas condutas metodológicas de sistema- bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.
tização precisam ser recuperadas, sem radica-
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Mudança e resis-
lismos.
tência à mudança na escola pública: análise de uma
A história da utilização dos métodos de al- experiência de alfabetização "construtivista". 1993.
fabetização no Brasil, desde o final do século Tese (Mestrado). Faculdade de Educação, Universida-
19, demonstra-nos que a pretensão do novo/ de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
JOLIBERT, Josette et al. Formando crianças leitoras. Por-
moderno contra o tradicional marca diferen-
to Alegre: Artmed, 1994.
ças nos campos teórico e prático e intenta eli-
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa-
minar, a cada disputa, um tipo de conhecimen- betização (São Paulo, 1876/1994). São Paulo: Unesp/
to pedagógico anterior, muitas vezes pertinen- Comped, 2000.
te para determinadas situações. No entanto, SOARES, Magda. Alfabetização: em busca de um méto-
percebe-se até hoje, no plano prático, a busca do? Educação em Revista, n. 12, p. 44-50, dez. 1990.
pela conservação de saberes que funcionam Letramento: um tema em três gêneros. Belo
pedagògicamente. Horizonte: Autêntica, 1998.
Leitura na alfabetização
Priscila Monteiro
Programa Crer para Ver/Fundação Abrinq/São Paulo
Resumo
Não podemos falar de leitura na alfabetização entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. É
sem nos remetermos à importância da leitura de possibilitar que uma seja a continuidade da outra,
mundo que cada um de nós tem, que se encontra permitindo, assim, que a leitura da palavra seja a
encharcada do nosso contexto sociocultural, mar- leitura da "palavramundo".
cando nosso corpo e revelando, assim, a forma Outro aspecto importante da leitura é o apren-
como aprendemos e apreendemos o mundo. dizado daquele que se exercita como leitor, a dialo-
É na relação dialética entre a leitura de mundo e a gar com o texto. É por meio do exercício desse diálo-
leitura da palavra que construo e reconstruo significa- go que se descobre a inter-relação existente entre
dos. É na gostosura das brincadeiras e dos encontros texto e contexto. Relação essa que, quando negada,
marcados entre esses dois tipos de "leituras" que me leva-nos a uma leitura não-crítíca. Porém, quando
"experiencio" no aprendizado de ler a palavra escrita. reconhecida, possibilita o aprendizado de tecer per-
Isso porque: o que é ler, senão construir signi- guntas sobre o que se lê. É muito mais interessante
ficados? aprender a fazer perguntas sobre o texto lido do que
Se acreditamos que leitura é construção de sig- responder às perguntas do professor. Não é a habili-
nificados, o desafio que temos, então, em sala de tação à leitura que torna o aluno um leitor crítico; é
aula, é o de ensinar a ler sem realizar a dicotomia necessário o intercâmbio de idéias e de significados.
colar precisa se organizar para pensar nas suas Ler não é decifrar. Ler é construir signifi-
necessidades e possíveis soluções para elas. cados. Não é a habilitação à leitura que trans-
Por isso, os projetos apoiados pelo Crer forma uma pessoa num leitor crítico. É neces-
para Ver, espalhados por todo o Brasil, dão um sário o intercâmbio de idéias e de significados.
panorama da escola pública brasileira. A leitura supõe um processo ativo de cons-
De acordo com essa característica, o Pro- trução de significados, um processo comple-
grama Crer para Ver tem como objetivos: ofe- xo de coordenação de informações de distin-
recer à sociedade oportunidades concretas de tas naturezas, de reorganizações e ressig-
participação em ações que levem à sua pró- nificações de saberes em jogo, em que o tex-
pria transformação, contribuindo para uma to, o leitor e o contexto contribuem para a
escola de qualidade; apoiar a iniciativa e a compreensão.
criatividade da comunidade escolar, assim É por meio desse diálogo que se descobre
como sua capacidade de diagnosticar os pró- a inter-relação existente entre texto e contex-
prios problemas e apontar, ela mesma, as so- to. Relação esta, que, negada, nos leva a uma
luções; financiar e apoiar tecnicamente pro- leitura não-crítica. Porém, quando reconhe-
jetos que contribuam para melhorar as rela- cida, possibilita o aprendizado de tecer per-
ções de aprendizagem na Educação Infantil e guntas sobre o que se lê. É muito mais inte-
no Ensino Fundamental das escolas da rede ressante aprender a fazer perguntas sobre o
pública, que sejam referências positivas para texto lido do que responder às perguntas do
a criação de políticas educacionais de boa professor. Fazer perguntas quer dizer signifi-
qualidade; sistematizar, avaliar e divulgar ex- car o que se lê - no que este texto me toca,
periências educacionais bem-sucedidas. por que eu gosto ou não gosto dele, ao que
É importante ressaltar que a metodologia ele me remete, por que eu quero compartilhá-
de cada projeto não é imposta pelo Progra- lo com os outros -, pois a mágica da leitura
ma Crer para Ver, mas discutida com cada não está no livro nem no leitor. Está justa-
proponente. mente na significação, no diálogo único que
cada um estabelece com o livro.
2
Para saber mais sobre os projetos apoiados, consulte o site do Programa - <www.fundabrinq.org.br/crerparaver>
SIMPÓSIO 18
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro
Rosaura Soligo
o conceito de letramento e
suas implicações pedagógicas
Vera Masagão Ribeiro
Ação Educativa/São Paulo
Resumo
é a de Jack Goody, antropólogo americano, q u e
A exposição tem como objetivo geral discu- elaborou uma teoria segundo a qual a escrita
tir o conceito de letramento e suas implicações seria um elemento-chave p a r a diferenciar as
pedagógicas. Para isso, discute-se, em primeiro sociedades ditas primitivas ou tradicionais das
lugar, o surgimento do conceito de letramento. sociedades m o d e r n a s ou históricas (Goody e
evidenciando a natureza interdisciplinar do cam- Watt, 1968). Argumentava esse autor q u e o re-
po teórico em que é desenvolvido. Nesse campo, gistro do legado cultural por meio da escrita
o letramento se configura como um fenômeno
permitiu q u e as s o c i e d a d e s desenvolvessem
cultural complexo, com diversas implicações psi-
sua consciência histórica, a autoconsciência,
cológicas e sociais. Em segundo lugar, defende-
o p e n s a m e n t o crítico e científico, além da
se que a apropriação desse conceito pelo campo
pedagógico encerra grandes potencialidades, à a u t o n o m i z a ç ã o das instituições.
medida que favorece o cotejo entre práticas es- Um autor mais conhecido entre nós, brasi-
colares e práticas socioculturais, provocando o leiros, que t a m b é m assumiu essa perspectiva
desenvolvimento curricular no sentido de con- no â m b i t o da Psicologia, foi Vygotsky. Com
ferir maior relevância às aprendizagens escola- b a s e e m e s t u d o s r e a l i z a d o s p o r Luria com
res. Defende-se, por último, a posição de que o c a m p o n e s e s analfabetos, esse autor postulou
conceito de letramento pode ser o eixo condutor q u e a aquisição da escrita promovia o desen-
do desenvolvimento curricular de toda a Educa-
volvimento psicológico dos indivíduos, espe-
ção Básica e que, portanto, as problemáticas nele
cialmente no que se refere ao raciocínio lógi-
envolvidas não dizem respeito apenas a alfabeti-
zadores e professores de Português. co-científico (Vygotsky e Luria, 1993). Influen-
ciados pelo materialismo dialético, tanto
Vygotsky q u a n t o Luria reconheciam t a m b é m
o conceito de l e t r a m e n t o foi desenvolvi- a coletivização do trabalho, no contexto da re-
do n u m c a m p o teórico p a r a o qual contribuí- volução soviética, c o m o fator de desenvolvi-
ram diversas disciplinas das ciências h u m a - m e n t o cognitivo. Mesmo assim, não deixaram
nas: a Sociologia, a História, a Antropologia, de conferir um papel crucial à escolarização e
a Psicologia, a Lingüística e os Estudos Lite- à aquisição da escrita, o que se c o a d u n a com
rários. Mais r e c e n t e m e n t e , no Brasil, vem sen- sua teoria sobre o papel dos instrumentos sim-
do t a m b é m a p r o p r i a d o pelo c a m p o p e d a g ó - bólicos no desenvolvimento da psique h u m a -
gico, no qual g a n h a novas conotações, passan- na. No âmbito dos estudos da linguagem, n ã o
do a ser referência p r i n c i p a l m e n t e para a re- faltaram t a m b é m estudos que trataram de de-
flexão s o b r e p r á t i c a s de alfabetização e de finir as características da linguagem escrita em
ensino de língua. contraposição à linguagem oral, agregando ar-
A tese central q u e animou esse campo teó- g u m e n t o s para os que postulavam o poder do
rico na década de 1960 foi a de que a dissemi- registro escrito de m o l d a r o p e n s a m e n t o e a
n a ç ã o da linguagem escrita na sociedade e sua c o m u n i c a ç ã o (Ong, 1993).
aquisição por parte dos indivíduos tinham um Esse tipo de otimismo em relação ao valor
impacto crucial no desenvolvimento social e da escrita impulsionou diversas c a m p a n h a s de
psicológico. Uma posição clássica nessa linha alfabetização de adultos em todo o m u n d o e
SIMPÓSIO 18
Letramento
sempre esteve presente nos discursos em prol oralidade e escrita e um crescente interesse
da universalização da educação elementar. En- pelo tema dos gêneros t e x t u a i s . O conceito de
tretanto, não tardaram a surgir questionamen- gênero aparece como mais apropriado para a
tos a essa posição, baseados em estudos his- análise das diferentes práticas sociais nas quais
tóricos, antropológicos, psicológicos e a linguagem escrita participa, implicando mo-
lingüísticos mais rigorosos. Demonstrou-se, dos específicos de se posicionar na situação
por exemplo, com base em análises históricas discursiva. Evidencia-se, por exemplo, que cer-
de dados estatísticos, que as relações entre ní- tos gêneros orais, tais como essa exposição que
veis de alfabetização e desenvolvimento eco- faço agora, têm muitos elementos em comum
nômico ou decréscimo de taxas de natalidade com o gênero ensaístico escrito, enquanto uma
ou criminalidade, para citar alguns exemplos carta pessoal guarda muitas das característi-
de indicadores sociais, não eram nada linea- cas de uma conversa entre amigos.
res e dependiam sempre de outros fatores so- David Olson (1997) sintetiza bastante bem
ciais (Graff, 1994). No campo da Psicologia, essa mudança de perspectiva verificada nos es-
Scribner e Cole (1981) demostraram que o tipo tudos sobre o letramento, expressando a posi-
de habilidade cognitiva que até então se atri- ção de que não importa tanto o que a escrita
buíra ao aprendizado da escrita era, de fato, faz com as pessoas, mas, sim, o que as pessoas
resultado da escolarização de tipo ocidental. O inglês fazem
Brian Street
com a(1993) elaborou uma das
escrita.
mais contundentes críticas a essa visão de Mas que implicações esse desenvolvimen-
letramento, segundo a qual a escrita encerra- to teórico em torno do conceito de letramento
ria em si o poder de transformar as pessoas e pode ter para as práticas pedagógicas? Antes
as sociedades. Ele denominou essa perspecti- de tentar responder diretamente a essa per-
va sobre o letramento de modelo autônomo e, gunta, vale a pena fazer uma retomada sinté-
em contraposição, propôs o modelo ideológi- tica das múltiplas dimensões que o conceito
co, que compreende o letramento como fenô- abarca. Para isso, é útil adotarmos a análise
meno cultural complexo, cujos efeitos estão proposta por Magda Soares (1998), que distin-
relacionados aos contextos sociais em que se gue basicamente duas dimensões do
realiza. letramento: a individual e a social. A dimen-
são individual diz respeito à posse individual
Desse modelo emerge o interesse pela di- de capacidades relacionadas à leitura e à es-
versidade das práticas culturais relacionadas crita, que incluem não só a habilidade de
à escrita: passa-se então a falar em "letra- decodificação de palavras, mas um amplo con-
mentos". Além de Scribner, Cole e de Street, junto de habilidades de compreensão e inter-
que estudaram o letramento em sociedades pretação, como, por exemplo, estabelecer re-
tradicionais, Shirley Heath (1996) realizou pes- lações entre idéias, fazer inferências, reconhe-
quisas interessantes em segmentos da socie- cer linguagem figurada, combinar informação
dade americana, demonstrando que, ao lado textual com informação extratextual etc. Tais
das práticas escolares - normalmente tomadas habilidades podem ainda ser aplicadas a uma
como padrão único para a análise do fenôme- ampla gama de textos. A dimensão social do
no do letramento -, existiam outras modalida- letramento diz respeito às práticas sociais que
des de uso social da escrita, às quais estavam envolvem a escrita e a leitura em contextos
associadas outras habilidades cognitivas, ou- d e t e r m i n a d o s . O que está em jogo, nesse âm-
tros modos de relação entre os participantes bito, são os objetivos práticos de quem utiliza
da interlocução e desses com o texto, outras a leitura e a escrita, as interações que se esta-
representações e atitudes por parte dos leito- belecem entre os participantes da situação
res e escritores. discursiva, as demandas que os contextos so-
ciais colocam, as representações e os valores
Outro resultado das críticas ao modelo au-
associados à leitura e a escrita que um deter-
tônomo de compreensão do letramento foi a
minado grupo cultural assume e dissemina.
relativização da dicotomia rígida entre
As pesquisas na área vêm enfocando uma letramento, que não podiam contar com o
ou outra dessas dimensões e ainda, dentro de ambiente familiar para sua socialização na
uma delas, uma infinidade de aspectos espe- cultura da escrita.
cíficos. Quando se trata de estabelecer parâ- Ao evidenciarem que não é a aprendizagem
metros para a prática alfabetizadora, entre- da linguagem escrita em si que transforma as
tanto, é fundamental buscar as conexões en- pessoas, mas, sim, os usos que elas fazem des-
tre essas duas dimensões, pois o fazer peda- se instrumento, os estudos sobre o letramento
gógico consiste exatamente na orientação sis- abrem novas perspectivas para a reflexão crí-
temática do desenvolvimento de indivíduos tica sobre o papel da escola e também para o
no sentido de sua inserção num contexto desenvolvimento de práticas pedagógicas que
sociocultural específico. No caso da educação respondam com mais eficiência às demandas
escolar própria das sociedades letradas, esse sociais relativas ao letramento. Esses estudos
projeto consiste prioritariamente na capaci- convidam a escola a refletir sobre os gêneros
tação dos indivíduos para transitar, com al- textuais que circulam no meio social, sobre os
gum nível de autonomia, nesse contexto ca- diversos usos sociais da leitura e da escrita e
racterizado pelo uso intenso e diversificado também sobre as habilidades cognitivas, ati-
da linguagem escrita. tudes e valores neles implicados. Convidam,
Este é, sem dúvida, o aspecto crucial das ainda, a uma a análise das inter-relações entre
implicações pedagógicas do conceito de oralidade e escrita e entre o letramento e ou-
letramento: ele nos convida a refletir sobre o tras esferas da cultura.
grau de autonomia que as práticas escolares A preocupação de que a escola trabalhe com
têm podido promover por meio da alfabetiza- maior diversidade de gêneros textuais já apare-
ção inicial e, posteriormente, por meio do en- ce plasmada nas orientações curriculares e nos
sino das disciplinas curriculares. Tradicional- critérios de avaliação dos livros didáticos que se
mente, a educação escolar concentrou-se no implantaram recentemente em nosso país (MEC,
desenvolvimento de um conjunto delimitado 1997). Essa orientação é especialmente valiosa
de habilidades de leitura e escrita: na alfabeti- para alunos oriundos de ambientes familiares
zação inicial, o foco eram os mecanismos de pouco letrados, que podem encontrar na escola
codificação e decodificação de letras, sílabas oportunidade única de se familiarizarem com
e p a l a v r a s . O professor de Português seguia suportes de escrita, tais como, por exemplo, re-
com o treino da ortografia, fluência da leitura vistas, jornais, sites de internet, livros outros além
em voz alta e, finalmente, compreensão e in- dos didáticos, com toda a diversidade de gêne-
terpretação de textos principalmente narrati- ros que neles figuram.
vos e literários. Os professores das demais dis- Com relação à diversidade de usos sociais
ciplinas, por sua vez, apesar de fazerem uso da escrita, às habilidades cognitivas e aos con-
intenso de textos didáticos para ensinar e ava- teúdos culturais a eles associados, há ainda um
liar os conteúdos, não focalizavam os proces- campo enorme de pesquisa e experimentação
sos de leitura propriamente ditos. a ser explorado pelos educadores. Em estudo
Esse tipo de prática escolar não produziu sobre o letramento realizado com a população
os resultados esperados em um grande núme- paulistana, identificamos quatro domínios
ro de alunos: eles não adquiriam o hábito da atitudinais relacionados ao uso da leitura e da
leitura, não se tornavam leitores e escritores escrita no cotidiano de pessoas jovens e adul-
autônomos, não conseguiam utilizar, com efi- tas: a expressão da subjetividade, o planeja-
ciência, a leitura como meio de aprender os mento e controle, a busca de informação e a
demais conteúdos escolares nem a escrita a p r e n d i z a g e m . O domínio da subjetividade diz
para demonstrar as aprendizagens realizadas. respeito à leitura e escrita de cartas, diários,
Essa crise do ensino da leitura ficou mais pa- livros religiosos ou de auto-ajuda, atividades
tente à medida que chegavam à escola alunos nas quais o que está em jogo é expressar a pró-
o r i u n d o s de famílias com baixo grau de pria experiência e evocar sentimentos ou fé.
SIMPÓSIO 18
Letramento
Trata-se de usos que mesmo pessoas com bai- e oralizar o texto com certa fluência, o aluno
xo grau de escolarização realizam em alguma está pronto para utilizar esse instrumento para
medida em seu cotidiano. Já a utilização da lin- aprender os conteúdos das ciências e encontrar
guagem escrita para planejar e controlar pro- informações em quaisquer tipos de texto. Ora,
cedimentos é a dominante no universo do tra- o estudo mencionado acima e outros que foca-
balho e das organizações sociais. Podem ser lizam a temática (Kleiman, 1989) mostram
tomados como exemplos desse domínio des- quantas habilidades cognitivas específicas e
de o ato de fazer uma lista de compras até es- disposições detêm aqueles que normalmente se
tratégias mais complexas de controle de pro- servem da escrita para aprender ou informar-
cessos coletivos, tais como a contabilidade de se, conservando o interesse por aprender e se
uma empresa, o plano de um curso etc. informar após o período da escolarização. É pre-
Esses são usos da escrita que muitas pes- ciso que todos os professores estejam consci-
soas fazem, lidando com textos de complexi- entes de que a capacidade de ler para buscar
dade variável, dependendo do grau de exigên- informação e aprender com autonomia é nor-
cia das atividades, da maior ou menor neces- malmente resultado de um investimento edu-
sidade de planejamento e possibilidade de cativo alongado, que pode durar toda a Educa-
controle das atividades pelo próprio indivíduo. ção Básica ou ainda a educação superior, quan-
Finalmente, a utilização da linguagem escrita do se requer um maior grau de aprofundamen-
para se informar, tanto para orientar a ação to e especialização.
imediata como para atualizar-se e formar opi- Uma proposta pedagógica que certamen-
nião sobre assuntos públicos, é prática restri- te abre um amplo leque de possibilidades de
ta a pessoas com níveis mais altos de escolari- aproximar as práticas escolares dos usos da
zação, assim como o ler para aprender, para escrita mais relevantes s o c i a l m e n t e é a
adquirir novos corpos de conhecimento. Pu- metodologia dos projetos. Envolvidos numa
demos observar que esses usos da linguagem proposta dessa natureza, alunos e professo-
escrita exigem atitude específica do leitor di- res são incitados a estabelecer um projeto de
ante do texto: postura analítica, disponibilida- construção de conhecimento ou intervenção,
de para examiná-lo e retomá-lo na busca de definir produtos esperados e um plano para
informações e relações específicas, interesse chegar a e l e s . O livro Leitura e interdiscipli-
pelo cotejo objetivo entre as idéias expressas naridade, de Angela Kleiman e Silvia Morais
no texto e os conhecimentos prévios do leitor. (1999), ilustra o potencial dessa metodo-
Essa tipologia parece útil para analisarmos logia, focalizando especialmente a leitura de
até que ponto a escola oferece as oportunida- textos jornalísticos como base de exploração
des para as pessoas se desenvolverem em cada das relações entre as disciplinas, entre dife-
um desses domínios. Quais são as oportunida- rentes textos escolares e não-escolares que
des de expressão de subjetividade e, principal- devem compor o universo de um leitor au-
mente, quais são as oportunidades dadas aos tônomo e criativo, com maiores possibilida-
estudantes de planejar e controlar algo nos es- des de utilizar suas aprendizagens para além
paços escolares? Certamente, serão muito limi- dos muros da escola. As autoras destacam a
tadas se a aprendizagem dos conteúdos é pra- presença, nas revistas e jornais, de diversos
ticada, dominantemente, como uma atividade recursos comunicativos e fontes de informa-
repetitiva, controlada pelo livro didático ou pelo ção, que ampliam o universo de relações pos-
professor. Mesmo a leitura realizada para apren- síveis e dão lugar a experiências com muitos
der ou informar não é suficientemente tratada modos de ler e escrever.
do ponto de vista pedagógico, embora sejam Um último aspecto que os estudos sobre
essas duas funções da leitura as dominantes no o letramento destacam e que as práticas pe-
contexto escolar. Professores das diversas dis- dagógicas podem tratar de modo mais produ-
ciplinas quase sempre partem do princípio de tivo é o da relação entre a oralidade e a escri-
que, tendo aprendido a decodificar as palavras ta. Muitos alunos jovens e adultos, ao
reavaliarem a sua passagem pelo Ensino Fun- Bibliografia
damental, destacam ganhos relativos à capa-
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secreta-
cidade de comunicação oral entre os princi- ria de Educação Fundamental. Parâmetros Curricula-
pais benefícios que a escola lhes trouxe, por- res Nacionais. Brasilia, DF, 1997. 10 v.
que, mesmo sem intervenção mais sistemáti- GOODY, Jack; WATT, lan. The consequences of literacy.
ca sobre o desenvolvimento da oralidade, a In: GOODY. Jack (Org). Literacy in tradicional societies.
escola promove ocasiões de fala em contex- Cambridge: Cambridge University, 1968.
tos públicos ou de trabalho coletivo, quase GRAFF, Harvey. Os labirintos da alfabetização: reflexões
sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto
sempre permeados por referências a textos
Alegre: Artmed, 1994.
escritos, que certamente ampliam os recur-
HEATH, Shirley. Ways with words: language, life, and work
sos expressivos dos alunos. Esse desenvolvi- in communities and classrooms. Cambridge: Cambridge
mento da oralidade, por sua vez, apoia o University, 1996.
aprendizado da leitura e da escrita, possibili- KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas:
tando a partilha do trabalho de compreensão Pontes, 1989.
e interpretação da palavra escrita, principal- KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisci-
mente por meio do comentário oral. plinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
LURIA, A. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos
Não circunscrito aos problemas da alfabe- culturais e sociais. São Paulo: ícone, 1990.
tização ou do ensino de línguas, portanto, o OLSON, david. O mundo no papel. São Paulo: Ática, 1997.
processo de letramento, ou seja, de apropria- ONG, W. Oralidad y escritura: tecnologias de Ia palabra.
ção da linguagem escrita como ferramenta de México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
pensamento e comunicação, pode ser tomado RIBEIRO, Vera. Alfabetismo e atitudes. São Paulo/Campi-
como o vetor principal do currículo de toda a nas: Ação Educativa/Papirus, 1999.
SCRIBNER, Silvia; COLE, Michael. The Psychology of
Educação Básica. A leitura direcionada para a
literacy. Cambrigde: Harvard University Press, 1981.
exploração das relações intertextuais presta-se
SOARES, Magda. Letramento: como definir, como avaliar,
como base comum para o tratamento interdis- como medir. In: SOARES, Magda. Letramento: um tema
ciplinar dos temas, para o desenvolvimento de em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
projetos de ensino e aprendizagem que favo- STREET, Brian V. Alfabetizacion y cultura. Boletin Proyecto
reçam a formação dos alunos não só como lei- Principal de Educación en América Latina y el Caribe,
tores e escritores autônomos, mas também n. 32, p. 39-46, 1993.
como sujeitos criativos e aptos a formularem VYGOTSKY, L; LURIA, A. Studies on the history of behavior:
ape, primitive and child. Hillsdale, Nova Jersey: Lawrence
e realizarem seus projetos de vida.
Erbaum Associates, 1993.
SIMPÓSIO 18
Letramento
Este texto é um fragmento do documento Apresentação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, desenvolvido, em todo o
país, pelo Ministério da Educação, em parceria com Secretarias de Educação e Universidades, a partir de 2001.
' Embora o termo "alfabetização" tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de "processo de ensino e
aprendizagem do sistema alfabético de escrita", ou s e j a . O processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.
2
A referência é apenas ao Ocidente: Europa e Américas do Norte e do Sul.
o método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a íotalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que
ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e l e t r a s . O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o aluno
aprendesse primeiro as letras ou sílabas e o som delas para depois chegar à palavra ou frase.
gem, que já se anunciava no teste ABC, de Lou- diferentes classes sociais. Portanto, já não se
renço Filho - um conjunto de atividades para pode mais ensinar como antes.
verificar e, principalmente, medir a "maturida-
de" que a ciência de então s u p u n h a necessária [...] as mudanças necessárias para enfrentar so-
à alfabetização bem sucedida -, teve muita in- bre bases novas a alfabetização inicial não se
fluência no Brasil. Nos anos 1970, foi largamen- resolvem com um novo método de ensino, nem
te difundida a idéia de que, no início da escola- com novos testes de prontidão, nem com novos
ridade, toda criança deveria passar pelos exer- materiais didáticos. É preciso mudar os pontos
por onde nós fazemos passar o eixo central das
cícios conhecidos c o m o "prontidão" (do inglês,
nossas discussões. Temos uma imagem
readiness) para a alfabetização. Seria uma es-
empobrecida da língua escrita: é preciso
pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-
reintroduzir, quando consideramos a alfabetiza-
felizmente, era inócua.
ção, a escrita como sistema de representação da
o terceiro período começa em meados dos linguagem. Temos uma imagem empobrecida da
anos 1970, sendo marcado por uma m u d a n ç a criança que aprende: a reduzimos a um par de
de p a r a d i g m a . O desenvolvimento da investi- olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega
g a ç ã o n e s s a á r e a m u d o u r a d i c a l m e n t e seu um instrumento para marcar e um aparelho
enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar fonador que emite sons. Atrás disso há um su-
correlações que explicassem o déficit dos que jeito cognoscente, alguém que pensa, que cons-
não conseguiam aprender, começou-se a ten- trói interpretações, que age sobre o real para
tar compreender como aprendem os que con- fazê-lo seu. (Ferreiro e Teberosky, 1985)
seguem aprender a ler e a escrever sem dificul-
dade e, principalmente, o que pensam a respei-
to da escrita os que ainda não se alfabetizaram.
A alfabetização
Um trabalho de investigação que desenca- e o fracasso escolar
deou intensas mudanças na maneira de os edu- Infelizmente, não é injusto afirmar que, ao
cadores brasileiros compreenderem a alfabeti- longo da história, a escola brasileira tem fracas-
zação foi o coordenado por Emília Ferreiro e Ana sado em sua tarefa de garantir o direito de to-
Teberosky (1985). A partir dessa investigação, foi dos os alunos à alfabetização. Em um primeiro
necessário rever as c o n c e p ç õ e s nas quais se momento, porque o acesso à escola não estava
apoia a alfabetização. Isso tem demandado uma a s s e g u r a d o a todos; depois, p o r q u e , m e s m o
transformação radical nas práticas de ensino da com a democratização do acesso, a escola não
leitura e da escrita no início da escolarização, ou conseguiu - e ainda não consegue - ensinar efe-
seja, na didática da alfabetização. Já não é mais tivamente todos os alunos a ler e escrever, es-
possível conceber a escrita exclusivamente como pecialmente q u a n d o provêm de grupos sociais
um código de transcrição gráfica de sons, já não não letrados.
é mais possível desconsiderar os saberes que as
Desde a época em que as estatísticas estão
crianças constróem antes de aprender formal-
disponíveis, é possível constatar que aproxima-
mente a ler, já não é mais possível fechar os olhos
damente metade das crianças que entra na lª
para as conseqüências provocadas pela diferen-
série do Ensino Fundamental é reprovada no
ça de oportunidades que marca as crianças de
final do ano, como indica a tabela abaixo.
1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997* 1998*
41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 58% 65% 68,7%
Fonte: IBGE - Inep. ' Nos anos de 1997 e 1998 algumas secretários de Educação passaram a adolor o sistema de ciclos, previsto no Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
SIMPÓSIO 18
Letramento
o fato é que, há muito tempo, os índices de sobre os alunos que fracassam, bem como na
fracasso escolar na alfabetização são inaceitá- sua relação com eles: freqüentemente, essas
veis e as medidas tomadas no âmbito dos siste- representações expressam-se em falta de con-
mas públicos não têm contribuído para trans- fiança nas reais potencialidades que eles têm
formar esse quadro de forma significativa. A para as aprendizagens de um modo geral. Se é
tabela anterior parece indicar que é completa- verdade que esses alunos chegam à escola sem
mente falsa a crença de que "antigamente to- muita intimidade com os usos sociais da escri-
dos aprendiam na escola". Desde 1956, com es- ta e com os textos escritos, também é verdade
tatísticas mais precisas a respeito dos índices que eles trazem um repertório de saberes que
de promoção e retenção na escola pública bra- as crianças e jovens de classe média e alta não
sileira, constata-se que os alunos reprovados possuem, saberes que não são valorizados e
(ou "retidos", como se preferiu chamar anos nem validados do ponto de vista pedagógico.
depois) já representavam mais da metade do Todo aluno tem direito a uma educação escolar
total - e isso sem contar o grande número de que, pautada no princípio da eqüidade, garan-
crianças brasileiras que nem freqüentava a es- ta o conhecimento necessário para que desen-
cola. volva suas diferentes capacidades - uma edu-
A falta de explicações para as causas do fra- cação que não acentue as diferenças provocadas
casso da escola em alfabetizar todos os alunos pela desigualdade de oportunidades sociais e
fez com que essa responsabilidade, direta ou culturais, que não as tome, sob nenhum pretex-
indiretamente, fosse a eles atribuída (à sua su- to, como diferenças relacionadas às suas possi-
posta incapacidade de aprender e e/ou às suas bilidades de aprendizagem. Não se pode espe-
perversas condições de vida). Apesar de todas rar que os alunos iniciem a escolaridade saben-
as razões sociais e políticas para não se deposi- do coisas que nunca tiveram a chance de apren-
tar a responsabilidade pelo fracasso apenas no der: quando eles não sabem o que se espera, é
aluno, as teorias do déficit cognitivo e/ou da preciso ensiná-los.
"carência cultural" acabaram por consolidar a
crença de que a possibilidade de os indivíduos Por que é tão difícil
aprenderem teria direta relação com a sua con-
dição econômica, social e cultural. alfabetizar todos os alunos?
Em oposição a uma concepção de escola A análise de quem são os alunos que a esco-
"conteudista", ou seja, preocupada, acima de la não tem conseguido alfabetizar ao longo dos
tudo, com a transmissão de conteúdos escola- anos (em geral, 50%) indica que não se trata de
res, foi se configurando uma concepção - e vá- uma metade qualquer, aritmeticamente neutra:
rias experiências - de uma escola transforma- essa metade é formada, majoritariamente, pe-
dora, progressista. Mas, infelizmente, nem as- los mais pobres. E por que seria mais difícil al-
sim se conseguiu garantir a todos os alunos o fabetizar esses alunos?
direito de desenvolver diferentes capacidades Como se sabe, até vinte anos atrás, profes-
na escola, o que, evidentemente, pressupõe sores, especialistas e pesquisadores se empe-
aprender a ler e a escrever. nhavam em tentar compreender o que havia de
Com isso, consolidou-se progressivamente errado com esses alunos, em descobrir por que
uma cultura escolar da repetência, da reprova- eles não aprendiam. A compreensão dos pro-
ção, que acabou por ser aceita como um fenô- cessos pelos quais se aprende a ler e a escrever,
meno n a t u r a l . O país foi se acostumando com possível somente a partir das últimas duas dé-
o fato de cerca de metade de suas crianças não cadas, foi fundamental para que se deixasse de
se alfabetizar ao término do primeiro ano de olhar para as crianças das classes populares
escolaridade no Ensino Fundamental. como se não pertencessem à raça humana. Sim,
Essa cultura teve uma enorme influência no porque até então um dos raros consensos entre
universo de representações que os educadores os estudiosos brasileiros acerca dessa questão
foram construindo sobre o fracasso escolar e era: o que servia para ensinar as crianças de
classe média e alta não servia para as crianças Depois de uma longa trajetória de reflexão
pobres. Acreditava-se que os processos de a respeito dessas questões, finalmente é possí-
aprendizagem das diferentes classes sociais se- vel compreender a natureza da relação entre
riam decididamente diferentes, e isso explica- fala e escrita, desvendando o mistério que o
ria desempenhos tão díspares. funcionamento da escrita representa para to-
No entanto, a descrição psicogenética do dos os analfabetos, quando se alfabetizam, no
processo de alfabetização mostrou que o pro- sentido estrito da palavra.
cesso pelo qual se aprende a ler e escrever é o E por que, então, os alunos pobres custam
mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de mais a conquistar a condição de alfabetizados,
diferentes classes sociais - inclusive, tanto para se nada deixam a desejar do ponto de vista da
crianças como para adultos. A aparente diferen- capacidade intelectual? o que têm a menos que
ça é conseqüência da diferença no repertório os demais? Em geral, esses alunos começam tar-
de conhecimentos prévios, que faz que os alu- diamente a pensar sobre a escrita e desenvol-
nos pobres cheguem à escola geralmente em vem procedimentos de análise desse objeto de
fase menos avançada do processo, o que lhes conhecimento muito depois das crianças de
dificulta a assimilação de certas informações. classe média e alta.
Se antes se acreditava que o fundamental São as situações de uso da leitura e da es-
para alfabetizar os alunos era o treino de deter- crita e o valor que se dá a essas práticas sociais
minadas habilidades - memória, coordenação que configuram um ambiente alfabetizador, um
motora, discriminação visual e auditiva, noção contexto de letramento e um espaço de refle-
de lateralidade -, a recente pesquisa sobre a xão sobre como funcionam as coisas no mundo
aprendizagem da leitura e da escrita mostrou da escrita: os materiais em que se lê, as situa-
que a alfabetização (como tantas outras apren- ções em que se escreve e se lê, a forma como os
dizagens) é fruto de um processo de constru- adultos lêem e escrevem, a direção da escrita e
ção de hipóteses; que esse não é um conteúdo da leitura em nossa língua (da esquerda para a
simples - ao contrário, é extremamente com- direita), como se escrevem os nomes das pes-
plexo - e demanda procedimentos de análise soas queridas, quantas e quais letras se colocam
também complexos por parte de quem apren- para escrever, por que há mais letras do que
de; que, por trás da mão que escreve e do olho parece necessário nos textos escritos, o que está
que vê, existe um ser humano que pensa e, por escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê
isso, se alfabetiza. essa escrita, e assim por diante.
Hoje sabemos que, no processo de alfabeti- Enquanto as crianças de classe média e alta
zação, as crianças e adultos - independente- passam a primeira infância aprendendo coisas
mente da classe social a que pertencem e da desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e
proposta de ensino do professor - formulam avós, as crianças pobres estão aprendendo o
hipóteses muito curiosas, mas também muito que seria impensável a uma criança pequena de
lógicas. Progridem de idéias bastante primiti- classe média e alta: cozinhar para os irmãos
vas pautadas no desconhecimento da relação menores, dar banho sem derrubá-los, acordar
entre fala e escrita para idéias surpreendentes de madrugada para ir trabalhar na roça ou na
sobre como seria essa relação: alguns preocu- rua, vender objetos nos semáforos. As primei-
pados com a quantidade de letras, outros com ras ocupam seu tempo desenvolvendo proce-
a qualidade das letras, outros em conflito com dimentos que as farão se alfabetizar muito cedo;
a coordenação entre quantas e quais letras se as últimas, por sua vez, estão desenvolvendo
usam para escrever.4 procedimentos que permitem sua sobrevivên-
4
Quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eram
portadores de "dificuldade de aprendizagem". Os índices desses "distúrbios" chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôde
compreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo,
oscilando de 1% a 3%, segundo os mesmos especialistas (Cadernos Idéias, n. 2 e 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993, respectivamente).
SIMPÓSIO 18
Letramento
cia como crianças pobres que s ã o . O repertório construção conceituai, por ser de simples assi-
de saberes é outro, é outra a bagagem de vida, milação, depende da memorização de informa-
como se dizia há algum tempo. ções: nomes em geral (das letras, por exemplo),
Em outras palavras, as crianças pobres não informações e instruções simples (como, "em
aprendem a ler e a escrever aos seis ou sete anos português, escrevemos da esquerda para a di-
pela mesma razão que as outras não aprendem reita"), respostas a adivinhações, números de
a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir telefone, endereços.
o roçado, desviar-se dos carros na rua, porque o grande equívoco, no qual a concepção tra-
a vida exige delas coisas muito diferentes e lhes dicional de ensino e aprendizagem se apoiou
oferece oportunidades de aprendizagem mui- nas últimas décadas, consiste em acreditar que
to diferentes. os conteúdos escolares de modo geral são
Quando a escola não valoriza os saberes que aprendidos por memorização. Não são, hoje
os alunos pobres trazem, fruto de sua experi- sabemos.
ência anterior, faz que eles se sintam entrando Para aprender a ser solidário, a trabalhar em
em novo mundo, estranho e hostil. Por não po- grupo, a respeitar o outro, a preservar o meio
derem corresponder ao que os professores es- ambiente, a gostar de ler e escrever é preciso
peram deles e percebendo que frustram as ex- vivenciar situações em que essas ações repre-
pectativas da escola, é de se esperar que aca- sentam valores. Não adianta memorizar infor-
bem se sentindo incapazes. Respeitar e, de fato, mações, como a de que é preciso ser solidário,
considerar as diferenças, valorizar os saberes respeitar os outros, dar importância à leitura e
que os alunos possuem e criar um contexto es- à escrita- Isso pouco representa, pois a consci-
colar favorável à aprendizagem não são apenas ência de quais atitudes são necessárias e ade-
valores de natureza ética: são a base de um tra- quadas não garante que elas existam.
balho pedagógico comprometido com o suces- Para aprender a interpretar textos, redigir
so das aprendizagens de todos. textos e refletir sobre eles e sobre a escrita con-
vencional, não basta memorizar definições e
Uma cultura escolar centrada seqüências de passos a serem desenvolvidos. É
preciso exercitar essas atividades com freqüên-
no direito de aprender cia para chegar a realizá-las com habilidade e
Nas duas últimas décadas, a pesquisa a res- desenvoltura. Procedimentos - quaisquer pro-
peito dos processos de aprendizagem da leitu- cedimentos - são aprendidos com o uso.
ra e da escrita vem comprovando que a estraté- Para aprender conceitos e princípios com-
gia necessária para um indivíduo se alfabetizar plexos - como é o caso do sistema alfabético de
não é a memorização, mas a reflexão sobre a escrita -, ou seja, para se alfabetizar, não basta
escrita. Essa constatação pôs em xeque uma memorizar infinitas famílias silábicas. Propor
antiga crença, na qual a escola apoiava suas prá- que se aprenda a ler e escrever dessa forma sig-
ticas de ensino, e desencadeou uma revolução nifica tratar um conteúdo de alto nível de com-
conceituai, uma mudança de paradigma. Esta- plexidade como se fosse uma informação sim-
mos agora passando por esse momento, com as ples, que supostamente poderia ser assimilada
vantagens e os prejuízos que caracterizam um com facilidade apenas pela memorização.
período de transição, de transformação de idéi- A compreensão das regras de geração do sis-
as e de práticas cristalizadas ao longo de mui- tema de escrita em português depende de um
tos anos. processo sistemático de reflexão a respeito de
Mas, se não é por um processo de memo- suas características e de seu funcionamento.
rização, como funciona o aprendizado da lei- Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo pre-
tura e da escrita? cisa aprender a refletir sobre a escrita (um pro-
Em primeiro lugar, é preciso considerar que cedimento complexo, que requer exercício),
alguns conteúdos escolares são, de fato, apren- além de compreender o funcionamento do sis-
didos por memorização. Tudo o que não requer tema alfabético da escrita (um conteúdo tam-
bém complexo, cujo aprendizado requer a cons- gua. Não basta ensinar aos alunos as caracte-
trução de interpretações sucessivas, que se su- rísticas e o funcionamento da escrita, pois, em-
peram umas às outras). bora fundamental, esse tipo de conhecimento,
Portanto, a afirmação de que se aprende a por si só, não os habilita para o uso da lingua-
ler e escrever lendo e escrevendo textos não gem em diferentes situações comunicativas. E
quer dizer que se trata de um processo simples, não basta colocá-los na condição de protago-
como o enunciado pode enganosamente suge- nistas das mais variadas situações de uso da lin-
rir. Aprender a ler e escrever lendo e escreven- guagem, pois o conhecimento sobre as carac-
do requer um conjunto de procedimentos de terísticas e o funcionamento da escrita não de-
análise e de reflexão sobre a escrita - um objeto corre naturalmente desse processo. Em outras
de conhecimento que, por suas características palavras, isso significa dizer que é preciso pla-
e seu funcionamento, exige alto nível de elabo- nejar o trabalho pedagógico de alfabetização,
ração intelectual por parte do aprendiz, seja ele articulando as atividades de uso significativo da
criança ou adulto. linguagem com as atividades de reflexão sobre
Para poder ler textos quando ainda não se a escrita. Isso significa dizer que a alfabetiza-
sabe ler convencionalmente, é preciso utilizar ção - tomada como aprendizagem inicial da lei-
o conhecimento de que se dispõe sobre o valor tura e escrita - deve ocorrer em contextos de
sonoro convencional das letras e ter informa- letramento que potencializem o domínio da lin-
ções parciais acerca do conteúdo do texto, po- guagem.
dendo assim fazer suposições a respeito do que É a resposta ao desafio de promover, ao
pode estar escrito. Em outras palavras, é preci- mesmo tempo, um processo de alfabetização
so utilizar simultaneamente estratégias de lei- e de letramento que pode conferir eficácia ao
tura que implicam decodificação, seleção, an- ensino nas séries iniciais, instaurando uma
tecipação, inferència e verificação e, em alguns cultura escolar centrada no direito à apren-
casos, ajustar o conteúdo que se sabe de cor ao dizagem.
que está escrito. Para assegurar aos alunos seu direito de
Para poder escrever textos, quando ainda aprender a ler e escrever, é indispensável que
não se sabe escrever, é preciso escolher quantas os professores tenham assegurado seu direito
e quais letras utilizar e, se a proposta for escre- de aprender a ensiná-los. Cabe às instituições
ver junto com um colega que faz outras opções formadoras a responsabilidade de preparar
de uso das letras, refletir a respeito de escolhas todo professor que alfabetiza crianças, jovens e
diferentes para as mesmas necessidades. adultos para:
Para poder interpretar a própria escrita (ler • encarar os alunos como pessoas que preci-
o que escreveu), quando ainda não se sabe ler e sam ter sucesso em suas aprendizagens para
escrever, é preciso justificar as escolhas feitas, se desenvolverem pessoalmente e para te-
para si mesmo e para os outros, com todas as rem uma imagem positiva de si mesmos,
explicações que isso demanda: por que sobram orientando-se por esse pressuposto;
letras, por que elas parecem estar fora de ordem, • desenvolver um trabalho de alfabetização
por que parece estar escrito errado conforme adequado às necessidades de aprendizagem
seu próprio critério etc. dos alunos, acreditando que todos são ca-
Como se pode ver, nada há de fácil ao se al- pazes de aprender;
fabetizar lendo e escrevendo textos, como tam- • reconhecer-se como modelo de referência
bém nada há de fácil (aliás, é seguramente mui- para os alunos: como leitor, como usuário
to mais difícil) ao se alfabetizar memorizando da escrita e como parceiro durante as ativi-
sílabas: em ambos os casos, trata-se de uma dades;
aprendizagem complexa. • utilizar o conhecimento disponível sobre os
o desafio consiste em organizar as propos- processos de aprendizagem dos quais de-
tas didáticas de alfabetização a partir do que pende a alfabetização, para planejar as ati-
hoje se sabe sobre as formas de aprender a lín- vidades de leitura e escrita;
SIMPÓSIO 18
letramento
habilidades. Em decorrência dessa postura, vos conteúdos com conceitos, idéias e conhe-
são favorecidas as atividades interativas e cimentos que o aluno já adquiriu em experi-
interdisciplinares. ências anteriores. Leva o aluno a reformular
Esses procedimentos situam a aprendiza- idéias anteriores, substituindo-as por uma vi-
gem significativa como aquela em que concei- são nova e diferente, e assim a adquirir as ha-
tos mais inclusivos, ou seja, com maior poder bilidades necessárias à constituição das com-
de generalização e aplicação, funcionam como petências básicas, que serão gradativamente
base prévia à qual vêm se articular e agregar os consolidadas de acordo com o grau de matu-
conceitos novos, a partir de intensas operações ridade e que são essenciais para uma educa-
cognitivas do próprio aprendiz mediadas pelo ção integral de qualidade.
outro. Nesse processo há uma profunda Tendo como horizonte essa concepção de
interação entre os conhecimentos novos e os educação e de aprendizagem, para que o pro-
prévios, por meio de uma adesão total do su- fessor escolha com segurança o livro didático,
jeito à atividade de incorporação desses novos que poderá ser um auxiliar efetivo do seu tra-
conceitos, e é essa participação individual que balho, o ideal seria que ele desenvolvesse uma
torna a aprendizagem realmente significativa. ampla reflexão sobre o próprio objeto de aná-
Para que seja assim, o processo exige um en- lise, em consonância com suas concepções de
volvimento real do educador no empreendi- língua e de aprendizagem. Inúmeras são as
mento pedagógico, pois é nessa interação hu- questões que podem orientar essa reflexão, no
mana, nessa mediação qualificada e solidária, que se refere, por exemplo, ao livro de Língua
que os limites dos conhecimentos prévios re- Portuguesa.
ais são revelados e pode ser determinado o ho- Uma ordem preliminar de indagações di-
rizonte em que o desenvolvimento é possível ria respeito à própria validade do instrumen-
com maior apoio e participação do professor, to: o livro didático (LD) é necessário? Poderia
ou seja, o que Vygotsky (1930) chama de zona ser dispensado? Por que, quando, em que cir-
proximal de desenvolvimento. cunstâncias? Por que não poderia ser dispen-
Essa nova atitude pedagógica está em fran- sado? Como o LD tem sido escolhido na práti-
ca oposição aos procedimentos tradicionais, ca? Como o LD é usado na prática? Qual a sua
behavioristas, que privilegiam a memorização relação com os programas de ensino? Ele fun-
de itens isolados, arbitrários, pouco inclusivos, ciona como "o" programa de ensino propria-
com menor poder de generalização e baixa pos- mente? Qual a relação entre LD, em geral, e
sibilidade de articulação com conhecimentos projeto pedagógico do professor e da escola?
anteriores. Tais práticas, que a reflexão atual Tais reflexões, evidentemente, exigem do
procura afastar de forma definitiva do cotidia- professor desnaturalização da rotina e ampla
no escolar, enfatizam o adestramento, a visão de suas próprias potencialidades e com-
automatização e exigem do professor uma ati- petências, bem como das condições de traba-
tude de treinador, caçador de erros, cobrador, lho em que atua.
repressor, vigia, punidor, e não propriamente Quanto ao conhecimento da proposta pe-
de educador. Nesse universo, a interação fica- dagógica do LD, seria importante analisar: o
ria excluída em nome da hierarquia e da LD apresenta um projeto pedagógico claro,
assimetria entre professor e aluno. Compreen- explicitado, organizado? Quais são as informa-
de-se hoje que tal método não assegura a du- ções de apoio ao professor? Elas contribuem
rabilidade, a solidez e a utilidade dos conheci- para o processo educacional? Há sugestão de
mentos, de forma que esses se tornam voláteis estratégias de trabalho por aula, por semana,
e desaparecem logo depois da "prova", pois não por unidade ou por mês e semestre? São
têm raízes nem aplicabilidade ou significação exeqüíveis? Quais os fundamentos psico-
real no repertório cognitivo do estudante. pedagógicos e lingüísticos implícitos no LD?
Em contraposição, a aprendizagem signi- Qual a visão da escola refletida no LD? A pro-
ficativa acontece com a combinação dos no- posta pedagógica é crítica e flexível ou acrítica
e imobilizante? teórica? Há variedade de exercícios? Como é a
No que diz respeito à área de conhecimen- seleção e ordenação dos assuntos? Quais são
to específica - Língua Portuguesa -, há aspec- as capacidades cognitivas enfatizadas? Qual a
tos extremamente relevantes que devem ser relevância dos tópicos em relação às dificul-
observados no LD: Quais as concepções de lín- dades reais dos alunos? Como se dá a contex-
gua, de linguagem, de aprendizagem implíci- tualização quanto à função estilística dos ele-
tas no LD? o LD contempla as diversas verten- mentos enfocados? Há progressão e articula-
tes da língua: expressão oral, leitura informa- ção entre os exercícios e as explicações? Há
tiva, literária e história literária; a produção relação com a escrita real do aluno? o livro
escrita em todas as suas habilidades; a siste- propõe atividades complementares de enri-
matização gramatical? quecimento? Há coerência entre os objetivos
Expressão oral: Estão previstas atividades estabelecidos na proposta do autor e as ativi-
de expressão oral? o LD considera as diferen- dades realmente apresentadas no livro?
ças entre modalidade oral e escrita da língua? o professor deve levar em conta também a
As atividades estabelecidas prevêem o desen- qualidade material do LD: A durabilidade de
volvimento do discurso oral de forma plena ou material do LD é satisfatória? A programação
apenas da leitura em voz alta e da declamação? visual é interessante, atraente e adequada aos
Leitura: Quais as concepções de leitura objetivos? o tipo de letra está de acordo com o
subjacentes à proposta do LD? Qual o tipo de nível de leitura do aluno? A ilustração tem qua-
leitura privilegiado? Qual a variedade e a quan- lidade estética? É apropriada? Relaciona-se de
tidade de textos versus gênero versus temas forma ideal com os textos? Pode ser utilizada
versus autores? Os textos são integrais? Qual é como uma introdução à linguagem visual? o
a qualidade dos textos? São adequados às ha- livro é consumível ou não-consumível?
bilidades de leitura dos alunos e ao interesse? Essa listagem preliminar de questões de-
Há valorização da literatura brasileira? Quais monstra como a análise do LD depende de co-
são os temas enfatizados? Eles configuram uma nhecimentos, valores, representações, concei-
ideologia predominante? Qual? A proposta de tos e atitudes do professor diante do seu obje-
interpretação de textos é coerente? Há coerên- to de ensino, diante do ato de ensinar e do que
cia nos princípios teóricos focalizados? Há va- entende por aprender. Ou seja, depende de sua
riedade ou conduzem à rotina e à reprodução formação como profissional, de sua clareza em
mecânica? Há oportunidade de reflexão e in- relação aos objetivos que estabelece para a sua
terpretação ou a ênfase está na decodificação? prática em sala de aula e da amplitude de sua
Os exercícios auxiliam o desenvolvimento reflexão a respeito dos diversos aspectos de sua
cognitivo e afetivo? Há estímulo à leitura de própria ação como professor.
outros textos? Vamos focalizar mais detidamente a ques-
Produção de textos: A produção de textos tão do desenvolvimento da produção de tex-
é vista como um processo? As várias etapas da tos. Durante muito tempo, a escola enfatizou,
produção são contempladas: enriquecimento no ensino da escrita, o produto, a redação, a
de informações, motivação, planejamento, or- primeira versão do texto. As práticas didáticas
ganização das idéias, idealização do tradicionais ignoravam a natureza recursiva es-
interlocutor, estabelecimento de objetivos, sencial da escrita (cheia de idas e vindas) e
elaboração, análise, revisão, reescritura? Há consideravam a redação do aluno o momento
critérios de avaliação? Há variedade de propos- em que ele demonstrava seus conhecimentos
tas e de objetivos? de língua e de organização de texto
Reflexão sobre a lingua: Qual a relação da internalizados nas aulas e nas tarefas voltadas
gramática com o texto? Qual a concepção de para a leitura e para as noções gramaticais. A
língua e de aprendizagem subjacente aos exer- partir de um tema, geralmente escolhido pelo
cícios? Quais os conceitos enfatizados? A vari- professor, o aluno deveria demonstrar sua
ação lingüística é considerada? Há coerência competência na produção de textos corretos,
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
sem que, para o desenvolvimento dessa habi- da pela palavra, mas também com a experiên-
lidade, tivesse compartilhado uma reflexão cia de vida do indivíduo.
direcionada para os aspectos discursivos ou Escrever é um processo complexo inserido
recebido orientações mais específicas sobre o em práticas sociais que elegeram, no decorrer
ato de escrever. Esse texto, em sua primeira ou, da história coletiva, formas relativamente es-
no máximo, segunda versão, serviria natural- táveis de ação pela linguagem, a que chama-
mente para o processo de avaliação. mos gêneros. Por meio dos gêneros disponí-
o livro didático de Língua Portuguesa cris- veis na sociedade, o redator pode agir: expres-
talizou essa tradição, localizando a produção sar, imaginar, informar, expor, relatar, narrar,
de textos como simples adendo, exercício fi- persuadir, descrever, dialogar, dissertar, argu-
nal, encerramento da unidade de ensino. Caso mentar, contratar, atestar, declarar, convidar,
o professor acompanhasse rigorosamente as solicitar, registrar etc.
propostas do LD, todo o processo de desenvol- Empreender uma ação de escrita envolve:
vimento da escrita ficaria reduzido ao mínimo, motivação, interesse e necessidade; a configu-
e muitas das habilidades necessárias para a ração do destinatário e o estabelecimento dos
constituição da competência na produção de objetivos do texto; o uso intenso da memória;
textos seriam ignoradas. múltiplas e infinitas escolhas e decisões base-
o resultado disso foi que a pesquisa de de- adas no conhecimento acerca do tema, da lín-
sempenho na escrita, nas décadas de 1970 e gua e das estruturas textuais e discursivas pos-
1980, explorou as possibilidades de constituir síveis; diversas releituras avaliativas para
um inventário de problemas a partir da análi- reformulação e reescrita, até que o produtor
se de textos produzidos em situação de exa- do texto se sinta satisfeito na comparação en-
me, teste, concurso. Compreendeu-se, com o tre seus objetivos iniciais e o resultado obtido.
avanço dos estudos dos resultados dos candi- o redator estabelece inicialmente um base
datos aos exames vestibulares, que aquela prá- de orientação: Qual é o assunto em linhas ge-
tica tradicional de ensino de redação estava rais? Qual o gênero mais adequado aos objeti-
sendo insuficiente e que a escrita exigia novas vos? Quem provavelmente vai ler? Que nível de
perspectivas de trabalho. linguagem deve ser utilizado? Que grau de sub-
Hoje, a questão que se coloca retrocede às jetividade ou de impessoalidade deve ser atin-
origens da construção da autoria no percurso gido? Quais as condições práticas de produção:
escolar do aprendiz. As novas investigações tempo, apresentação, formato?
procuram compreender como e por que ele Cada redator desenvolve, na sua história
chega a produzir um texto empírico com de- pessoal de consolidação da habilidade de es-
terminadas características insatisfatórias e crever, determinado percurso de trabalho, que
como seria possível transformar práticas esté- é diferente de pessoa para pessoa. Não há um
reis em um trabalho interativo e produtivo. único caminho a ser percorrido e é necessário
Nesse sentido, compreender a natureza da es- conhecer seus próprios procedimentos: fazer
crita foi o passo inicial. anotações soltas, independentes; fazer uma
Uma primeira aproximação revela que o lista de palavras-chaves; anotar tudo o que vem
aprendiz apresenta uma dificuldade básica de à mente, desordenadamente, para depois cor-
adaptação do gênero/modelo à situação de tar e ordenar; elaborar um resumo das idéias
ação (Bronckart, 1999), em vista de o "texto para depois acrescentar detalhes, exemplos,
escolar" ter sido assimilado como um formu- idéias secundárias; construir um primeiro pa-
lário a ser preenchido, o que impedia o exercí- rágrafo para desbloquear e depois ir desenvol-
cio da a u t o r i a . O texto somente se constrói e vendo as idéias ali expostas; escrever a idéia
tem sentido inscrito em uma prática social, em principal e as secundárias em frases isoladas
que o envolvimento do redator se realiza em para depois interligá-las; elaborar inicialmen-
vários níveis, pois lida com a capacidade sim- te uma espécie de sumário ou esquema geral
bólica e com a habilidade de interação media- do texto; organizar mentalmente os grandes
blocos do texto, escrevê-lo e reestruturá-lo sucesso da realização dessas decisões no texto
várias vezes. quanto:
Qualquer que seja o procedimento utiliza- ao leitor: Inseri-lo no texto ou tratá-lo de
do, ou o conjunto de procedimentos conjuga- forma neutra e distanciada. A opção esco-
dos entre si, para que o autor fique satisfeito lhida foi mantida durante todo o texto? o
com o seu próprio texto, o trabalho de ajuste é leitor que se tem em mente é atendido du-
imprescindível. Nesse momento, que é o mais rante todo o texto?
produtivo em termos de aprendizagem do fun- ao gênero de texto: Que plano de escrita
cionamento do texto, a colaboração de um lei- utilizar para a s i t u a ç ã o . O formato é ade-
tor próximo com o qual seja possível trocar quado à situação? As exigências referentes
idéias é fundamental (Garcez, 1998). As trans- ao gênero foram respeitadas ou há ambi-
formações percebidas como necessárias pelo güidades e inconsistências?
autor ou sugeridas pelo leitor/colaborador às informações: o que informar e o que
podem levar a: enfatizar as idéias principais; considerar pressuposto. As informações
reordenar as informações; substituir idéias fornecidas são suficientes ou o texto ficou
inadequadas; eliminar idéias desnecessárias; muito denso, exigindo muito do leitor? A
alcançar maior exatidão para as idéias; acres- introdução de informações novas é bem
centar exemplos, conceitos, citações, argu- realizada? Há informações irrelevantes que
mentos; eliminar incoerências; estabelecer podem ser dispensadas? Há excesso de in-
hierarquia entre as idéias; criar vínculos entre formação? Há informações incompletas ou
uma idéia e outra. confusas? As informações factuais estão
corretas?
Para efetivar esses aperfeiçoamentos, ge-
ralmente é preciso: acrescentar palavras ou fra- à linguagem: Formal ou informal. A lingua-
ses; eliminar palavras ou frases; substituir pa- gem está adequada à situação? A opção es-
lavras ou frases; transformar períodos, unin- colhida tornou o texto harmonioso ou há
oscilações súbitas e inadequadas? Os efei-
do-os por meio de conectivos ou separando-
tos de sentido construídos são satisfatórios?
os por meio de pontuação; acrescentar transi-
ções entre os parágrafos; mudar elementos de à impessoalidade on subjetividade: o
lugar, reagrupando-os de forma diferente; cor- posicionamento adotado como predomi-
rigir problemas gramaticais, entre outras nante mantém-se ou essa opção não ficou
transformações. consistente no texto?
Nessa etapa do processo de escrita, há uma ao vocabulário: As escolhas estão adequa-
adesão total do sujeito à atividade, uma inten- das ou há repetições enfadonhas e pobre-
sa participação do autor. Essa atitude permite za vocabular? Algum termo pode ser subs-
a interação entre situações novas de inter- tituído por expressão mais exata? Há
locução e os conhecimentos prévios em rela- clichês, frases-feitas, excesso de adjetivos,
ção à lingua, ao tema, ao gênero e à prática expressões coloquiais inadequadas, jargão
profissional?
social e torna a aprendizagem realmente sig-
nificativa. É o momento também de um envol- às estruturas sintáticas e gramaticais: o
vimento real do educador no empreendimen- texto está correto quanto às exigências da
to pedagógico, já que é a interação humana, a língua padrão? As transições entre as idéias
mediação qualificada e solidária, que cria a estão corretas e claras? Os conectivos são
oportunidade para que os limites dos conhe- adequados às relações entre as idéias? A di-
cimentos prévios reais sejam revelados e se visão de parágrafos corresponde às unida-
possa determinar o horizonte em que o desen- des de idéias?
volvimento é possível com maior participação ao objetivo e à situação: Está de acordo
do professor. Uma leitura compartilhada com o objetivo estabelecido inicialmente?
(Garcez, 2001) com o professor levará o apren- As idéias principais estão evidentes?
diz a analisar as decisões tomadas e o nível de Como é evidente, produzir um texto envol-
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
A temática desta mesa nos sugere abordar Diante desse interesse, seria razoável supor
as implicações decorrentes da escolha e do uso que os tempos mudaram, mas isso não é bem
do livro didático na formação do professor. Ao verdade, quando se observa que esse interesse
final do percurso que tracei para a reflexão so- tem endereço bastante conhecido e forma bem
bre esse tema, percebi que ele foi de muitas direcionada, as políticas de melhoria das con-
perguntas e de poucas respostas; talvez uma dições de existência (seu conteúdo e seu uso
resposta apenas, se é que podemos considerá- "eficaz" na escola), de renovação de determina-
la a s s i m . O próprio título já é uma interroga- do olhar sobre o livro didático: "como deve ser",
ção: Livro didático: uma possibilidade de for- o que fazer para aperfeiçoar um manual esco-
mação do professor? lar específico, que seleciona e organiza, de ma-
neira progressiva, os conteúdos e as atividades
que os alunos realizam no dia-a-dia da sala de
0 lugar do livro didático no aula; de um manual que, normalmente, se di-
cenário da cultura brasileira vide em dois, o do aluno e o do professor.
Ao observar essa tendência histórica com
Um novo momento para a história do li-
que se olha para o livro didático, no Brasil, Mag-
vro didático no Brasil parece ter começado.
da Soares (1996) chama a atenção para a ausên-
Basta observar o quanto ele tem se tornado
cia de um olhar distanciado da pesquisa sobre
alvo das atenções em conferências, seminá-
o livro didático, um olhar que reflita sobre as
rios, pesquisas, políticas governamentais,
suas condições sócio-históricas, saindo do "de-
ações do mercado editorial, da mídia etc. Este
ver ser" para "o que tem sido" esse livro na his-
seminário é um exemplo. Mas essa atenção
tória da educação e da cultura brasileiras. Uma
não parece capaz de atribuir ao livro didático
pesquisa dessa natureza poderia, quem sabe,
os mesmos significados e valores que são atri-
aprofundar a desconfiança de que o livro didá-
buídos a outros livros e aos sujeitos que deles
tico teria um prestígio compatível ao prestígio
se ocupam. Ou seja, o livro didático não goza
atribuído à escola, às funções, aos papéis e às
de prestígio nem no âmbito das práticas de
representações a ela atribuídos no campo do
leitura a que se destina, nem no âmbito da
letramento. Nesse sentido, a escola despres-
pesquisa. Batista (2000: 529-30) define com
tigiaria os próprios objetos e práticas que pro-
perspicácia esse desprestígio:
duz, como ocorre com a escolarização da lite-
ratura, da "ciência" etc.
Não são poucos, portanto, os indicadores do
desprestígio social dos livros didáticos. Livro Provavelmente, em função desse interesse
"menor" dentre os "maiores", de "autores" e não visivelmente pragmático do foco com que se
de "escritores", objeto de interesse de "colecio- toma o livro didático, nesse momento pode-se
nadores" mas não de "bibliófilos", manipulado observar uma tendência a não problematizar a
por "usuários" mas não por "leitores", o pres- sua forma de existência, a sua concepção; ao
suposto parece ser o de que seu desprestígio, contrário, busca-se solução para os problemas
por contaminação, desprestigia também aque- da "vida cotidiana" desse objeto, como se ela
les que dele se ocupam, os pesquisadores ne- fosse naturalmente dada e necessária. Que ra-
les incluídos. zões políticas, ideológicas e pedagógicas esta-
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
riam por detrás desse movimento histórico em ações transformadoras do livro didático e da sua
que - diferentemente de um outro anterior - inserção na história das disciplinas escolares e
bastante se escreve e se fala, com convicção, da das políticas educacionais. Enquanto elas não
necessidade do livro didático, ou seja, de um existem, continuamos ousando algumas postu-
livro didático com características bem especí- ras e perspectivas, a exemplo das posições con-
ficas? tra ou a favor do uso do livro didático.
Quem não se lembra da "ousadia" daqueles
que imaginavam uma escola sem livro didáti- Contra ou a favor do livro
co, com um professor mais autônomo nas suas
ações pedagógicas? Mesmo nesse momento, didático. Por quê?
parece que pouco se escreveu a favor do livro Posicionar-se contra o uso de um manual
didático e, provavelmente, nada se escreveu didático na escola foi e será por algum tempo
contra ele. Encontram-se, sim, análises sobre a uma ousadia. Uma das explicações - como já
ideologia e o preconceito do livro didático ou dito antes - para essa ousadia é o investimento
sobre os conteúdos específicos a cada área de ainda tímido das pesquisas das universidades
ensino (Faria, 1991; Molina, 1987; Nosella, com o livro didático, a não ser para destinar a
1988). No entanto, foram significativas as expe- ele críticas severas. Se a pesquisa ainda é pou-
riências que ensaiaram essa "liberdade" e "au- co significativa, o que falar da própria produ-
tonomia". Que fim e que sentidos teriam tido ção de livros ou textos didáticos para o profes-
essas experiências? Teríamos mesmo superado sor e para o aluno? A escrita acadêmica legíti-
essa polêmica ou existiriam razões ainda pou- ma, que rende tributos para o acadêmico, é a
co compreendidas para o seu esfriamento ou da pesquisa, aquela que ele produz para os seus
até mesmo "esquecimento"? Teria o professor pares, principalmente se for publicada no mer-
superado essa polêmica (para ele, dificuldade) cado editorial estrangeiro (Soares, 2000).
ou ele estaria lançando mão de novas estraté- Assim, temos que nos reportar a um antigo
gias de relação com esse objeto, deixando cada (e ainda muito importante) refrão para justifi-
vez mais de utilizá-lo, a exemplo do que aqui car por que é ousadia ser contra o livro didáti-
relatou o pesquisador Jean Hébrard sobre o li- co. Do ponto de vista do professor, as suas con-
vro didático na França? o que sabemos sobre dições de exercício da profissão: para sobrevi-
os usos do livro didático na sala de aula é mui- ver, ele se ocupa quase que estritamente da ta-
to pouco. refa de ministrar aulas, ou seja, não pode pla-
Enfim, a pergunta maior entre todas que nejar as suas aulas, escolher e produzir o seu
aqui vêm se apresentando poderia ser assim material. As escolas não disponibilizam, ade-
resumida: como transformar o livro didático em quadamente, materiais didáticos de que o pro-
objeto de estudo para melhor compreensão da fessor possa lançar mão, de forma ágil, dentro
história das práticas escolares, compreensão de uma condição de trabalho "sem planejamen-
esta que possa se reverter em ações para a to prévio", "improvisado". Não há livros, jornais,
reinvenção do aprendizado da leitura e da es- revistas, internet, vídeos, etc. e, quando há, eles
crita por meio de um novo livro didático? não se encontram organizados de forma a per-
Para compreender as condições de existên- mitir o seu uso no cotidiano da sala de a u l a . O
cia desse objeto escolar, seria importante: a) livro didático torna-se, então, o material mais
conhecer as características desse livro e como visível e garantido, porque ou está na mochila
ele se insere no conjunto dos objetos pedagó- do aluno, ou no armário/estante da sala de aula.
gicos e das práticas escolares de ensino-apren- Dessa forma, a ausência de planejamento, a
dizagem; b) conhecer a história de construção "improvisação" não seria também o resultado
do modo de ser desse livro, particularmente no dessas condições precárias de organização e
que diz respeito aos sujeitos a quem se destina disponibilização dos espaços e dos materiais
(professor e aluno). Essas e outras pesquisas indispensáveis para o trabalho na "sala de aula"?
poderiam, cerfamente, sustentar discussões e Do ponto de vista do aluno, como ousar di-
zer "não" ao livro didático, quando se reconhe- políticas de compra e distribuição de livros -
ce, por explicações sociológicas, políticas, an- didáticos ou não - sobre o processo de leitura,
tropológicas, o significado da posse de livros, sobre os usos que se fazem deles?
ainda que de um livro desprestigiado e doado? Ainda assim, neste momento, acredito que
(Ou também desprestigiado porque é doado?) as dificuldades de relação com o livro no Brasil
A grande maioria de alunos só conta com esse - particularmente quando se trata do poder
livro didático como material de leitura. Esse li- aquisitivo da grande maioria de professores e
vro, por sua vez, extrapola o seu espaço escolar alunos - não permitem ousar romper com uma
e ganha função específica nas práticas de leitu- lógica das políticas de leitura e de acesso ao li-
ra fora da escola, na família. vro, neste caso, de acesso a um livro didático.
A questão do valor do livro didático em es- Paradoxalmente, um livro que teria uma função
colas e em grupos sociais distintos - tanto para específica de organizar e sistematizar determi-
o professor quanto para o aluno - é muito im- nados conteúdos de uma disciplina escolar
portante para se pensar a política do livro di- pode se transformar em símbolo e instrumen-
dático no Brasil. Que efeitos tem uma política to de outras práticas de leitura fora da escola.
governamental de doação de livros, e de quais Contudo, mesmo se essas apropriações ou
livros? Que relações os estudantes, as famílias reinvenções dos modos de ler livro didático sus-
dos estudantes e os professores mantêm com pendem, de certa forma, nossas descrenças em
os livros distribuídos gratuitamente pelo gover- relação a efeitos positivos, é necessário reco-
no? Seriam diferentes, se comprassem os livros? nhecer que os problemas que a sua história nos
Se os retirassem emprestados na biblioteca pú- tem apresentado são g r a v e s . O professor
blica, na biblioteca da escola? Como se compor- Levinson, ontem, apresentou-nos alguns deles.
tam as famílias e os estudantes que compram O mais evid
os seus livros? Por que se atribui - se é que se no mercado editorial, que, apoiado pelas polí-
atribui - tanto valor à posse de livros? Seria re- ticas de produção e distribuição do livro didá-
sultado das políticas precárias de socialização tico, pelas precárias condições de formação do
do livro por meio das bibliotecas, dos emprés- professor e do exercício da profissão docente,
timos? o que significaria para os grupos tornou-se o responsável mais visível pelo perfil
desfavorecidos socioeconomicamente, ou seja, desqualificado do livro escolar.
pais e filhos desses grupos, entrarem em uma Nesse sentido, a avaliação do livro didático,
livraria para comprar o seu material escolar, os conforme o Programa Nacional do Livro Didá-
seus livros, assim como o fazem os outros gru- tico (PNLD), tem um papel fundamental ao atu-
pos? Ou também o contrário: seria possível re- ar diretamente na modificação do perfil desses
criar formas mais coletivas de uso de livros, de manuais. Penso que, neste momento, as conse-
leitura, também nesses grupos de elite econô- qüências dessa avaliação recaem preferencial-
mica e intelectual que fazem do livro um obje- mente sobre os editores, que tentam adequar
to de posse, um fetiche? Em pesquisa sobre os os seus livros às orientações teórico-metodo-
usos da escrita no cotidiano de camadas popu- lógicas indicadas por instituições de ensino e
lares, pude observar famílias queimando livros pesquisa. No entanto, a influência dessas avalia-
escolares ou porque, segundo elas, não tinham ções na escola, no processo de seleção dos li-
espaços para guardá-los, ou porque não tinham vros, ainda vai levar algum tempo, por questões
tido e não teriam mais utilidade, diante do "fra- de implementação de todo o processo de avalia-
casso" escolar dos filhos. ção e de escolha. Já sabemos de algumas difi-
Em síntese, as políticas públicas de distri- culdades de finalização do processo de avalia-
buição do livro didático têm um efeito simbó- ção, na distribuição do manual de resenhas, na
lico e precisam ser mais bem analisadas, se qui- distribuição dos livros, na organização do tra-
sermos desfazer alguns nós historicamente ata- balho de seleção nas escolas etc.
dos em torno das práticas sociais de leitura e Imaginando, então, um momento em que o
escrita em nosso país. Que efeitos teriam essas processo de avaliação (do ponto de vista das
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
ações das equipes avaliadoras: MEC e universi- 1. Um livro didático tende a selecionar uma
dades) esteja consolidado, o foco de atenção perspectiva teórico-metodológica, enquan-
passa a ser o professor e a escola onde se dá a to que a prática de sala de aula permite (ou
e s c o l h a . O professor estaria preparado para ava- até mesmo exige) a diversidade; a prática de
liar um manual didático? É importante lembrar ensino na sala de aula envolve uma história
que os critérios e as estratégias de escolha dos (sujeitos e ações, num determinado mo-
professores estarão marcados pela sua forma- mento, com determinadas expectativas,
ção inicial e capacitação em serviço. Já existem objetivos e conhecimentos), enquanto o li-
vro é um material previamente definido,
dados disponíveis de pesquisas sobre escolha e
endereçado a um perfil projetado de aluno
uso do livro didático que apontam a dificulda-
e de professor. Portanto, não pode ser o úni-
de de professores em adotar livros que exigem
co material a ser "seguido".
um conhecimento de que eles não dispõem. 1
2. o livro didático não é o material e nem o
Disso se pode concluir que o conhecimen-
conteúdo de ensino-aprendizagem, nem os
to sobre livro o didático, a sua história, as suas
representa na sua amplitude: os livros, os
condições de produção, os seus conteúdos de-
jornais, as revistas, os filmes, os cd-roms que
veriam fazer parte da formação desse profes- os alunos devem e podem ler, ver, ouvir não
sor. No entanto, sabemos (embora não tenha podem estar dentro dos livros didáticos,
feito uma pesquisa e nem tenha levantado pes- assim como não estão as bibliotecas, as li-
quisas existentes sobre o assunto) que, mesmo vrarias, as ruas, as editoras etc. Os livros di-
nos cursos de Pedagogia, esses manuais têm dáticos podem representar apenas parte do
presença tímida. Nos cursos de licenciatura, a conteúdo e dos procedimentos que envol-
ausência do livro didático é conseqüência da vem o ensino-aprendizagem de uma disci-
própria concepção de que a licenciatura é uma plina.
complementação dos bacharelados. 3. Mesmo no espaço em que um livro didáti-
Assim, deixam-se para o final do curso os co pode operar, ainda existem restrições sig-
conteúdos de natureza pedagógica, que têm re- nificativas, pela própria diversidade de con-
lação com a escola, com o ensino-aprendizagem. cepções que o objeto de ensino em uma dis-
Assim também, mesmo que se queira abordar a ciplina pode apresentar, além dos proble-
questão do livro didático, ela só pode se apre- mas já cristalizados na história do livro di-
sentar no interior de um conjunto de todos es- dático, o maior deles relacionado às orien-
ses c o n t e ú d o s . O mais provável é que o livro di- tações dadas pelos próprios editores e à
dático ganhe existência, de fato, no momento em competência ou ao perfil de autores que es-
que o aluno for para o estágio e esbarrar inevita- crevem livros didáticos no Brasil.
velmente com esse objeto. Por isso, além dos Magda Soares (1996: 63) destaca o processo
processos de avaliação e mudanças do livro, é de "desprestígio do lugar da autoria de livros di-
importante o processo de avaliação e de mudan- dáticos" no Brasil, em função da democratiza-
ças nos cursos de licenciatura e nos processos ção do ensino que amplia "enormemente o
de capacitação em serviço dos professores. mercado para o livro didático":
É nesse espaço que se poderia pensar tam-
bém em reconfiguração do conceito ou da con- Como conseqüência dessa ampliação, altera-se
cepção do livro didático. Ao livro didático ain- o valor social e cultural atribuído aos livros di-
da se atribui uma função centralizadora, dáticos, afastando-se por isso da autoria deles
monopolizadora do trabalho em sala de aula, o os intelectuais de alta qualificação científica e
que exige cobrar dele conteúdos, procedimen- educacional, principalmente responsáveis por
tos e materiais que a sua própria natureza não sua produção na primeira metade do século.
permite assumir. Exemplos: Cresce, entretanto, o número de autores didáti-
o MEC/Ceale está finalizando uma pesquisa sobre o processo de escolha do livro didático em escolas brasileiras.
cos, quase sempre professores dos níveis em que Nesse sentido, o problema do conteúdo do
ensinam. livro didático não se encontra apenas no mer-
cado editorial, nos seus autores, mas também
Além das questões que envolvem a produ- nas condições históricas do seu l e i t o r . O pro-
ção do livro didático, outros fatores comprome- fessor, como leitor e usuário do livro didático,
tedores da sua qualidade e do seu uso na escola define, de certa forma, os conteúdos e as estra-
geram dúvidas, sim, sobre a sua utilidade pe- tégias editoriais de produção desse livro. É prin-
dagógica e cultural. Um desses fatores são as cipalmente por ele e para ele que os editores/
condições de formação do professor e de exer- autores formulam uma imagem de leitor, com-
cício da sua profissão. Ou seja, muitas vezes, patível com seus conhecimentos, expectativas
vemos um professor com uma competência e condições de exercício da profissão.
maior do que a do próprio livro submetendo o que adiantariam, então, propostas inova-
seus alunos ao livro didático, porque é o recur- doras, materiais sofisticados nos livros didáti-
so mais rápido e eficiente que ele tem para que cos, se o professor (ou a escola) não apresentar
a sua aula aconteça. Ele só toma conhecimento as disposições esperadas - entendendo-se dis-
do conteúdo e da atividade que propôs ao alu- posições como o conhecimento desejável para
no no momento de "corrigir" os exercícios. a disciplina em que atua e as condições de exer-
cício da sua profissão (carga horária, número
de alunos, salário, infra-estrutura, materiais
0 livro didático é também etc.) - para utilizá-lo?
uma possibilidade para a Dessa forma, somente uma mudança nas
formação do professor condições de formação e de exercício da pro-
fissão docente pode propiciar uma melhoria na
Concluindo, no seu sentido mais amplo (o concepção e no conteúdo do livro didático, já
que se produz para a escola), o livro didático que esses livros, a produção editorial, os pro-
também tem, historicamente, se constituído em cessos de escolha e seus usos refletem com bas-
instrumento para a formação do professor. Es- tante evidência o estado da educação e da pro-
ses impressos têm papel significativo nessa for- fissão docente no Brasil.
mação, se considerarmos que é principalmen-
te por meio deles que o professor exerce e, mui-
tas vezes, aprende a sua profissão. Contudo,
nem sempre se pode garantir a qualidade des- Bibliografia
sa formação. BATISTA. Um objeto variável e inevitável: textos, impressos
Nesse sentido, mais do que os seus conteú- e livros didáticos. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, história
dos, é importante pensar como esses materiais e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000.
a que podemos chamar manuais didáticos es- BONAZZI. M.: ECO, U. Mentiras que parecem verdades. São
Paulo: Summus, 1980.
tão organizados e são utilizados na prática de
FARIA, A. L. de. Ideologia no livro didático. São Paulo:
sala de aula. Atualmente, as demandas e pro-
Cortez. 1991.
postas políticas têm se pautado preferencial- MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor x livro didá-
mente pelos guias curriculares e pelo livro di- tico. Campinas: Papirus, 1987.
dático, ou seja, por uma definição mais clara dos NOSELLA, Maria de Lourdes. As mais belas mentiras: a
conteúdos e procedimentos didáticos que de- ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo:
vem reger a prática de ensino na sala de aula. Moraes, s. d.
São importantes, sim, essas ações, mas elas po- SOARES, Magda. Trabalho apresentado na XXIII Reunião
da Anped. Caxambu/MG, set./2000.
dem perder o seu alcance, quando tendem a ser
Um olhar sobre o livro didático. Presença
vistas como redutoras de todo o conjunto das Pedagógica, n. 12, p. 53-63, Belo Horizonte, nov./dez.
questões que cercam o universo pedagógico. 1996.
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
Resumo
Neste trabalho, pretendemos discutir o tema do brasileira, dando especial ênfase ao conceito de au-
livro didático de Português - e, eventualmente, de toria. Nessa segunda parte, nosso objetivo é, de um
qualquer outra disciplina escolar, - a partir de pres- lado, ampliar o campo de análise do livro didático
supostos teóricos da análise do discurso. Em virtu- para além de sua dimensão propriamente didático-
de das muitas correntes de pensamento que se pedagógica e, de outro, relacionar alguns pressupos-
estruturaram em torno do rótulo "análise do discur- tos da análise do discurso com a prática pedagógica
so", esclarecemos que será adotada aqui a linha fran- e o papel do professor como elaborador de aulas e,
cesa de estudo, caracterizada, grosso modo, pela ar- supostamente, responsável pela escolha e uso do li-
ticulação do discurso com a história e a ideologia. vro didático (daí a ênfase no conceito de autoria).
Inicialmente, faremos um rápido levantamen- Nas conclusões, tal como sugerido no título do
to de alguns estudos sobre livro didático para sali- trabalho, indicaremos algumas implicações do de-
entar que, seja qual for a especificidade de seus bate para a formação do professor. Nosso foco re-
subtemas- produção, circulação, avaliação, escolha, cairá sobre questões do tipo: o que significa, em
uso -, em grande parte deles é apontada ou persiste termos discursivos, adotar um livro didático? Como
a polêmica questão sobre se é válido ou não adotar os sentidos se constróem e circulam no livro didá-
o livro didático nas aulas de Língua Portuguesa. tico e por meio dele? o que há de singular na práti-
Em seguida, exporemos alguns conceitos bási- ca pedagógica/discursiva de cada professor, ainda
cos da análise do discurso, a partir dos quais é pos- que ele adote um livro didático? Há lugar para a
sível pensar o livro didático e sua inserção na escola autoria no livro didático?
lacunas de cada um e as críticas que merecem, à gares específicos numa dada sociedade; ao con-
luz do debate internacional, do funcionamento trário, ambos são encarados como "executores
do sistema educacional brasileiro e do LD no de tarefas" preconcebidas e padronizadas.1
contexto da alfabetização e da leitura em geral. Para concluir esta parte, reafirmamos que
Por fim, as autoras apresentam as conclu- são múltiplos os enfoques a partir dos quais se
sões, salientando que a pesquisa sobre LD no vem estudando e pesquisando o LD. Mas, a des-
Brasil tem longa tradição e veio apresentar mai- peito dessa diversidade, de um modo ou de ou-
or importância nos últimos cinco a dez anos. Elas tro, os autores sempre colocam, para si e para
ainda ressaltam, ao lado da quantidade, a quali- seus leitores, questões relativas à adoção ou não
dade, a profundidade e a heterogeneidade dos do LD e ao que se poderia fazer diante de suas
trabalhos empreendidos, dos quais tentaram fa- limitações e problemas (Mudar ou melhorar o
zer uma síntese, agrupando conhecimentos LD? Aboli-lo? Preparar melhor o professor? dar-
dispersos e buscando "inserir cada peça dessa lhe outras condições de vida e trabalho?).
produção no imenso painel que representa a No caso deste ensaio, por já termos feito um
questão do LD no Brasil, com vista à elaboração outro estudo em que discutimos a adoção ou não
de um quadro básico para a formação e infor- do LD e possíveis critérios de análise, avaliação
mação do leitor". e escolha (Suassuna, 1994), vamos propor um
Mais recentemente, o LD passou a ser estuda- deslocamento no eixo do debate e nos interro-
do na perspectiva teórica da análise do discurso. gar sobre outros aspectos pertinentes ao tema.
Na coletânea Interpretação, autoria e legitimação
cio livro didático: língua materna e língua estran-
geira, busca-se compreender o LD e seus usos
Análise do discurso
como parte e momento do discurso escolar. e livro didático:
Destacamos, na obra, o trabalho de Coracini
autoria e subjetividade
(1999a), que considera o LD um lugar de estabi-
lização de sentidos - na medida em que ele mas- Pensamos que, embora já existam estudos
cara a constitutividade heterogênea e polifônica sobre o LD embasados em conceitos e pressu-
do sujeito do discurso - e de homogeneização postos teóricos da análise do discurso (AD),
do discurso - na medida em que veicula verda- como já mostramos no item 1, não seria demais
des tidas como absolutas e inquestionáveis, res- propor mais este. A AD tem-se mostrado um
paldadas que são pela Ciência. campo de conhecimento bastante produtivo no
Outra autora que se refere, nesses termos, ao que diz respeito à investigação sobre o ensino-
LD é Souza (1999), para quem esse tipo de ma- aprendizagem de línguas.
terial constitui elo importante na corrente do Em termos muito gerais, pode-se dizer que a
discurso da competência, pois funciona como AD tem como objeto de estudo específico o dis-
espaço de um saber definido, pronto, acabado, curso como efeito de sentidos entre locutores. A
correto e, por isso, fonte última e, às vezes, úni- língua seria, na verdade, o lugar material em que
ca de referência. se realizam esses efeitos de sentido (Gregolin,
Citamos, ainda, dessa mesma coletânea, o 1995). Assim, diante do texto, tomado como for-
artigo de Carmagnani (1999), que tematiza as mulação do discurso, o analista deve-se perguntar
concepções de professor e aluno no LD e o ensi- não apenas o que texto diz e como diz, mas tam-
no de redação em língua materna e língua es- bém por que o texto diz o que diz (idem, ibidem).
trangeira. Diz Carmagnani que o professor e o É ainda em Gregolin (1995:20) que podemos ler o
aluno não são vistos como sujeitos situados po- que significa empreender AD: "(significa] tentar
lítica e ideologicamente, como ocupantes de lu- entender e explicar como se constrói o sentido de
Silva e outros (1997) compartilham da mesma opinião e se referem à monofonizaçao do discurso do aparelho escolar, cujo tom único é dado
pelo material didático.
um texto e como esse texto se articula com a his- zeres. Há, portanto, uma relação intrínseca en-
tória e a sociedade que o produziu". tre autoria e locutor (como falante responsável
A AD coloca-se diferentemente em relação à pelo que diz) e a singularidade (forma peculiar
Lingüística tradicional não apenas por articular pela qual o autor se faz presente no texto).
os campos da língua e da ideologia, mas tam- Possenti indaga em seu trabalho: Como co-
bém porque parte de uma outra concepção de locar a questão da autoria nas redações de ves-
sujeito (Possenti, 1995): não se trata mais do su- tibular?' Se antes se considerava bom um texto
jeito idealizado, consciente, fonte dos sentidos, gramaticalmente correto, pois as categorias de
mas de um sujeito dividido, heterogêneo, cons- julgamento eram claramente estabelecidas nas
tituído pelo outro (e aqui se vê claramente a in- gramáticas normativas, agora se trata de ir adi-
fluência da psicanálise na AD). ante: um texto só pode ser avaliado em termos
A questão que nos interessa de perto neste discursivos, mais exatamente,"[...] a questão da
artigo é exatamente a do sujeito (da autoria, mais qualidade do texto passa necessariamente pela
precisamente), no seguinte sentido: consideran- questão da subjetividade e de sua inserção num
do que o processo de ensino-aprendizagem de quadro histórico - ou seja, num discurso - que
Língua Portuguesa é um discurso, que lugar (po- lhe dê sentido" (Possenti, 2000: 3).
sição discursiva) cabe ao professor que escolhe/ Trata-se, pois, para Possenti, de singularida-
adota/usa o LD na aula? Seria o professor um de e de tomada de posição do sujeito. Isso por-
autor (sujeito do discurso)?2 que o sujeito sempre enuncia a partir de posições
Para empreender a discussão, vamos tomar historicamente dadas, num aparelho discursivo
como referência um trabalho ainda inédito em institucionalizado e prévio. Assim, assumindo
que Possenti (2000) coloca questão parecida ao uma posição histórico-ideológica, o sujeito, em-
tratar de textos de vestibulandos. bora heterogêneo, cindido, pode ser ele mesmo,
o autor inicia seu artigo afirmando que es- ou seja, diferente de outro que esteja numa mes-
crever (bem) é mais uma questão de como do ma posição d i s c u r s i v a . O que vai distingui-los,
que uma questão de o quê. Segundo ele, houve conforme Possenti, é exatamente o como.
um tempo em que a escola valorizava mais o Prosseguindo em sua argumentação, o autor
conteúdo das redações, seja pela necessidade tenta mostrar como seria possível identificar a
de tornar o aluno sujeito de um discurso críti- presença do autor num texto, ou mesmo distin-
co, seja porque, a partir de um pressuposto bá- guir textos com e sem autoria. Para tanto, ele faz
sico da Teoria da Informação, sem mensagem algumas afirmações:
não haveria t e x t o . O autor defende, todavia, 1. Não basta que o texto satisfaça exigências
que, do mesmo modo como ler não é exatamen- de ordem gramatical.
te captar o conteúdo de um texto e, sim, 2. Não basta que o texto satisfaça exigências
desmontá-lo para ver como ele se constrói, para de ordem textual.
verificar a relação entre seu modo de ser 3. As verdadeiras marcas de autoria são da or-
construído e os efeitos de sentido que ele pro- dem do discurso, e não do texto ou da gra-
duz, escrever seria, mais do que expor uma mática.
mensagem, articular informações, idéias, dis-
Isso posto, Possenti estrutura sua tese: pode-
cursos; trabalhar sobre e a partir de outros tex-
se dizer que alguém se torna autor quando as-
tos ou de textos de um outro.
sume, fundamentalmente, duas atitudes:
A autoria residiria exatamente nessa opera- a) dá voz a outros enunciadores, incorpora ao
ção de construção do dizer a partir de outros di- seu texto discursos correntes;
Souza (1999) também aborda essas questões, mas de um ângulo diferente. Ela mostra que a autoria do LD está associada, predominante-
mente. ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida. Souza ainda situa o autor
como um "intérprete de conteúdos complexos", responsável pela configuração do conhecimento a partir da seleção do conteúdo a ser
veiculado na escola.
3
Pensamos que a indagação é cabível também na discussão sobre os textos escolares em geral.
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático - Implicações para a formação do professor
A expressão "operação de caça" é de Michel de Certeau (1994), que a empregou para descrever o processo de leitura.
' Cf. também Silva et al. (1997: 81): "Tal independência [a do professor em relação ao LD] só será conquistada pelo professor se este desenvol-
ver suas próprias habilidades de leitura. É preciso gostar de ler - seja pelo prazer pessoal ou pelo comprometimento com a sua opção de
trabalho - e criar um repertório significativo, que dê respaldo à necessidade prática do cotidiano escolar, incluindo obras literárias, os
chamados paradidáticos, ensaios críticos e outros subsídios que o façam refletir sobre o exercício de sua atividade".
SIMPÓSIO 20
POR UMA PROPOSTA
CURRICULAR PARA
o 2º SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires
questões políticas e sociais que dependem da aprendizagem dos alunos de EJA, sejam valo-
leitura crítica e interpretação de índices di- rizados os conceitos e categorias da Geografia
vulgados pelos meios de comunicação. já apropriados por eles, estabelecendo um elo
De modo geral, um currículo de Matemá- com as noções dos diferentes espaços conhe-
tica para jovens e adultos deve procurar con- cidos em seu cotidiano. A partir de sua reali-
tribuir para a valorização da pluralidade dade, gradativamente e dialogando sobre os
sociocultural e criar condições para que o alu- conhecimentos que obtiveram de modo infor-
no se torne ativo na transformação de seu am- mal com os saberes geográficos já adquiridos
biente, participando mais ativamente no na escola, que esses alunos possam estabele-
mundo do trabalho, da política e da cultura. cer ligações entre esse cotidiano e os diferen-
tes espaços geográficos - local, regional, nacio-
A Geografia na Educação de nal e internacional.
Esses conhecimentos geográficos que os
Jovens e Adultos alunos da EJA já detêm irão contribuir para a
No ensino de Geografia para EJA, é impor- sistematização e ampliação dos conceitos e
tante que o aluno observe, interprete e compre- noções necessários para ajudá-los a fazer a
enda as transformações socioespaciais ocorri- leitura e a análise do lugar em que vivem, a
das em diferentes lugares e épocas e estabeleça relacionar e a comparar o espaço local, o es-
comparações entre semelhanças e diferenças paço brasileiro e o espaço mundial, ajustan-
relativas às transformações socioespaciais do do a escola às demandas sociais atuais.
município, do estado e do país onde mora. Segundo os PCN, a Geografia estuda as re-
Ele deve participar ativamente do procedi- lações entre o processo histórico que regula a
mento metodológico da construção de conhe- formação das sociedades humanas e o funcio-
cimentos geográficos, valendo-se da cartogra- namento da natureza, por meio da leitura do
fia como forma de representação e expressão espaço geográfico e da paisagem. As percep-
dos fenômenos socioespaciais; da construção, ções, as vivências e a memória dos indivíduos
leitura e interpretação de gráficos e tabelas; da e dos grupos sociais são, portanto, elementos
produção de textos e da utilização de outros importantes na leitura da espacialidade da so-
recursos que possibilitem registrar seu pensa- ciedade, tendo em vista a construção de pro-
mento e seus conhecimentos geográficos. Não jetos individuais e coletivos que transformam
significa que, ao finalizar o Ensino Fundamen- os diferentes espaços em diferentes épocas,
tal, ele terá se tornado um geógrafo, mas, de incorporando o movimento e a velocidade, os
acordo como os PCN, deve ser conduzido a ritmos e a simultaneidade, o objetivo e o sub-
examinar um tema, a analisar e a refletir sobre jetivo, o econômico e o social, o cultural e o
a realidade, utilizando diferentes recursos e individual.
métodos da Geografia e valendo-se do modo
de pensar próprio dessa disciplina.
Para concretizar esse processo de trabalho
As Ciências Naturais
com o aluno, é fundamental que seja elabora- na Educação de Jovens
do um projeto para estabelecer os objetivos e
e Adultos
conteúdos a serem tratados, as diferentes dis-
cussões sobre os temas escolhidos, as formas, o ensino de Ciências Naturais vem pas-
as possibilidades e os meios de trabalhá-los. É sando por profundas transformações nas úl-
necessário que o professor estude e reflita co- timas décadas. Tradicionalmente priorizam-
letivamente, com áreas afins ou mesmo indi- se a descrição dos fenômenos naturais e a
vidualmente, para escolher o objeto de estudo transmissão de definições, regras, nomencla-
que deve interessar os alunos da EJA e ampliar turas e fórmulas, muitas vezes sem se estabe-
o conhecimento deles sobre a realidade. lecerem vínculos com a realidade do estudan-
É fundamental que, no desenvolvimento da te, o que dificulta a aprendizagem. As discus-
soes acumuladas sobre o ensino de Ciências e contrapõem as observações de fenômenos,
apontam para um ensino mais atualizado e estabelecendo relações entre informações. As-
dinâmico, mais contextualizado, onde são sim, podem tornar-se indivíduos mais consci-
priorizados temas relevantes para o aluno, li- entes de suas opiniões, mais flexíveis para
gados ao meio ambiente, à saúde e à trans- alterá-las e mais tolerantes com opiniões di-
formação científico-tecnológica do mundo e ferentes das suas. Essas atitudes colaboram
à compreensão do que é Ciência e Tecnologia. para que o aluno cuide melhor de si e de seus
Busca-se a promoção da aprendizagem familiares, permanecendo atento à prevenção
significativa tal que ela se integre efetivamen- de doenças, às questões ambientais, e se utili-
te à estrutura de conhecimentos dos alunos e ze das tecnologias existentes na sociedade de
não aquela realizada exclusivamente por forma também mais consciente.
memorização, cuja função é ser útil na hora
da prova. A aprendizagem significativa é uma A História na Educação de
teoria da Psicologia desenvolvida com base
em diversos estudos teóricos e práticos. Ela Jovens e Adultos
afirma que toda aprendizagem real tem por Geralmente os alunos da EJA de 5ª a 8ª
base conhecimentos anteriores, que são mo- séries, como também acontece com os ado-
dificados, ampliados ou renegados mediante lescentes e alunos de cursos noturnos do
•a aquisição de novas informações e de novas Ensino Fundamental regular, trazem uma
reflexões sobre um determinado conteúdo. concepção prévia de que a História estuda
No caso de Ciências Naturais, esses conteú- o passado.
dos são temas ou problemas relativos aos fe- Isso é fruto, entre outras razões, do fato
nômenos naturais e às transformações pro- de que na maioria das escolas brasileiras
movidas pela ação humana na natureza. ainda se ensina essa disciplina de forma
A mesma tendência vem sendo conferida bastante tradicional, fundamentada numa
no campo da EJA, com novas propostas, de visão de tempo linear, e também verbalista,
modo que a área de Ciências possa colaborar com base em aulas expositivas sobre temas
com a melhoria da qualidade de vida do es- desvinculados de p r o b l e m á t i c a s da vida
tudante e a ampliação da compreensão do real, nas quais o professor entende ser seu
mundo de que participa, profundamente mar- papel apenas fornecer conhecimentos aos
cado pela Ciência e pela Tecnologia. estudantes.
É preciso selecionar temas e problemas re- Outra idéia comum entre alunos da EJA e
levantes para o grupo de alunos, de modo que de outras faixas etárias é a de que obras e do-
eles sejam motivados a refletir sobre as suas c u m e n t o s históricos são como verdades
próprias concepções. Essas concepções po- i n q u e s t i o n á v e i s . O educador deve estar aten-
dem ter diferentes origens: na cultura popu- to a isso e planejar momentos em que essas
lar, na religião ou no misticismo, nos meios concepções prévias sejam questionadas. Tam-
de comunicação e ainda na história de vida bém deve considerar que tanto os textos quan-
do indivíduo, sua profissão, sua família etc. to os diferentes tipos de fontes constituem ver-
São explicações muitas vezes arraigadas e sões da realidade. Dois exemplos de ativida-
preconceituosas, chegando a constituir obs- des, para ilustrar essas idéias: comparar tex-
táculo à aprendizagem científica. tos didáticos que tenham visões diferentes so-
Os estudos, as discussões e a atuação do bre um mesmo tema; comparar matérias de
professor devem ajudar os alunos a perceber e diversos jornais escritos que tratem de assun-
a modificar suas explicações. Portanto, é es- to atual de interesse dos estudantes e relacio-
sencial oferecer oportunidades para que de- nar o tema a outros momentos históricos.
senvolvam o hábito de refletir sobre o que ex- Como apontam os Parâmetros Curricula-
pressam oralmente ou por escrito. Sob a con- res Nacionais de História, o conhecimento
dução do professor, os alunos questionam-se histórico é "um campo de pesquisa e produ-
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2- segmento na EJA
ção de saber em permanente debate que está nísticos, principalmente entre aquelas pessoas
longe de apontar para um consenso". Assu- que vivem nos grandes centros urbanos do Bra-
mir essa postura diante do conhecimento é sil e do mundo, regiões em que o consumismo,
também perceber que, no espaço escolar, "o o imediatismo e o "presentismo" têm marcado
conhecimento é uma reelaboração de mui- as relações sociais.
tos saberes, constituindo o que se chama de Como atualmente a maioria dos alunos da
saber histórico escolar", elaborado no "diá- EJA têm mais idéias e percepções sobre o mun-
logo entre muitos interlocutores e muitas do atual, o professor deve aproveitar essa ca-
fontes", sendo "permanentemente recons- racterística para aprofundar suas capacidades
truído a partir de objetivos sociais, didáticos de refletir sobre as mudanças e as permanên-
e pedagógicos". cias nos temas e sociedades em estudo. Desen-
Além de questionar as visões tradicionais da volvendo essa capacidade de comparar e a ha-
História e do ensino dessa disciplina nas esco- bilidade de opinar sobre determinado tema his-
las, é fundamental que os professores da EJA tórico, estaremos contribuindo decisivamente
busquem entender a realidade do mundo atual para o incentivo à participação de alunos e pro-
juntamente com seus estudantes e também que fessores na vida política, social, cultural e eco-
os incentivem a se tornarem cidadãos ativos nas nômica de suas comunidades. Assim agindo, o
suas comunidades. Nesse processo, é importan- professor estará valorizando o estudo sobre a
tíssimo buscar o resgate dos valores huma- variedade das experiências humanas.
SIMPÓSIO 21
A EJA COMO DIREITO:
DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS E PROPOSTA
POLITICO-PEDAGOGICA
Carlos Roberto Jamil Cury
Guilherme Costa
Muitos brasileiros, provavelmente, foram ele na idade própria. Trata-se do artigo 208 da
um dia à escola. A esperança de concluir um Constituição Federal. Se n ã o oferecido pelo
curso os animava. Contudo, fatores adversos fi- poder público e não atendido o cidadão em sua
zeram com que não pudessem terminar a sua demanda, outra lei importante, a das Diretri-
escolarização. Para uns, foi a necessidade do zes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
trabalho precoce, para outros foi a falta de con- explicita o que já está contido na Constituição.
dições materiais e para muitos a própria escola O Ensino F u n
não foi capaz de retê-los estudando. E muitos subjetivo. Como tal, exigido o direito pelo ci-
brasileiros sequer p u d e r a m entrar na escola. dadão, o p o d e r público responsável t e m de
Para atender a estes, agora há a alternativa da atender a essa demanda sob pena de se ver
Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um acossado por ações civil e penal. Estamos, pois,
recomeço desse importante instrumento de ci- diante de um direito claramente protegido e
dadania: a educação escolar. a s s e g u r a d o . O Ensino Médio também é gratui-
A ausência da educação escolar representa to nas escolas do Governo e, se exigido, essa
uma grande lacuna para o indivíduo e u m a per- exigência deve ser atendida, porque essa etapa
da enorme para a cidadania. A Educação de Jo- do ensino é a coroação da Educação Básica que
vens e Adultos representa um novo começo sob todo brasileiro deve ter.
uma alternativa legal, que vem a c o m p a n h a d a A escola não chegou a todos os brasileiros.
de garantias legais. A lei buscou reparar esse Essa realidade possui uma longa história. Ela
vazio e cabe ao indivíduo exigir seu direito à começa com o desapreço que nossos coloniza-
educação escolar. dores ibéricos tinham para com a leitura e a
A EJA não é um presente e nem um favor, escrita a ser dada aos habitantes deste país. Para
tal como antes a própria legislação ou a prática eles, não fazia sentido propiciar educação es-
das políticas educacionais viam-na. Desde a colar a um país agrário, enorme, com a qual
Constituição de 1988, ela se tornou um direito poderia pleitear a sua independência política.
de todos os que não tiveram acesso à escolari- Além disso, sendo um país escravocrata, nega-
dade e de todos os que tiveram esse acesso, mas va-se a quem não fosse branco o direito de sen-
não puderam completá-lo. tar em bancos escolares.
Esse direito está inscrito em duas tábuas: na Essa realidade tem a ver com um país que,
tábua da dignidade de cada um e na tábua da desde o seu início, foi bastante injusto com os
lei. A primeira é a necessidade sentida em re- que, com seu trabalho, construíram as riquezas
parar ou completar essa lacuna. É a tábua da da nação e não viram distribuídas essas rique-
vivência dos que sabem da importância da lei- zas acumuladas, de modo que todos pudessem
tura e da escrita e sentem a falta desse direito ter acesso aos bens sociais e necessários a uma
que, muitas vezes, vêem efetivado nos outros. participação política consciente. Até hoje esse
A segunda é a tábua da lei brasileira: a Consti- padrão de desigualdade estende-se à educação
tuição Federal. Lá está dito e escrito que o En- escolar. E a existência da Educação de Jovens e
sino Fundamental obrigatório e gratuito é um Adultos visa reparar essa situação, que é, em si
direito do cidadão e dever do Estado, valendo mesma, intolerável do ponto de vista da cida-
isso t a m b é m para os que não tiveram acesso a dania.
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
Isso tem a ver também com um determi- é condição prévia a muitas outras coisas de nos-
nado tipo de escola, que nem sempre conse- sa sociedade: ler livros, entender cartazes, es-
guiu acolher e entender os diferentes perfis de crever cartas, sentar-se ao computador, nave-
alunos que a procuram. Somos todos iguais e gar na rede mundial de computadores, votar
diferentes ao mesmo tempo. Às vezes, a escola com consciência, assinar o nome em registros,
confundiu igualdade com uniformidade e di- ler um manual de instruções, participar mais
ferença com inferioridade (para muitos) e su- conscientemente de associações, partidos e
perioridade (para poucos). Por isso mesmo, desenvolver o poeta ou o músico ou o artista
houve leis que proibiram o acesso de negros e que reside em cada um. Estes últimos aspectos,
de índios à escola, que só incentivavam as es- uma vez reparada a falta social de que tantos
colas da cidade, deixando de lado as escolas foram vítimas, devem ser encarados como o
da roça. Não se pode deixar de dizer que hou- caminho mais qualificado para se falar em Edu-
ve muito preconceito com relação às mulhe- cação de Jovens e Adultos. Trata-se do desen-
res, que deveriam ficar em casa e, por isso, não volvimento das capacidades de cada um e do
necessitavam de leitura e de escrita. Durante usufruto prazeroso delas.
longos anos, quem não sabia escrever seu pró- Ao entrar em um curso de Educação de Jo-
prio nome não podia votar. vens e Adultos, o estudante não estará apenas
Hoje, todos sabem da importância da esco- sendo alfabetizado. Isso é muito pouco para o
la. Para uns, é a empresa que está exigindo es- conteúdo do direito à educação. Além da alfa-
colaridade cada vez mais elevada. Afinal, em um betização, etapa propedêutica, o aluno deve ter
mundo tornado próximo, não se pode deixar de acesso aos conhecimentos que todo o indivíduo
contar com as novas formas de comunicação e que freqüenta a escola na idade convencional
as habilidades que se exigem para a própria está recebendo. Conhecer o mundo em que vive,
manipulação de aparelhos complexos. para poder agir sobre ele com consciência, críti-
Para outros, trata-se de um sentimento in- ca e efetividade, sobretudo em nosso tempo, não
dividual, mas bastante agudo: se alguém não pode dispensar a escolaridade plena. Conteúdos
tiver completado estudos mais elevados estará importantes de Aritmética e de Matemática vão
correndo risco com o seu emprego. muito além das quatro operações. A Geografia,
Entretanto, a qualificação para o trabalho é a História do Brasil e do mundo são conhecimen-
incompleta se não vier a c o m p a n h a d a tos significativos para um posicionamento ante
concomitantemente das exigências da cidada- a sociedade e o mundo de que participamos.
n i a . O sentimento de participação e o dever de Expressar-se na língua portuguesa com precisão
não estar sujeito a podêres estranhos implicam e sem medo de cometer erros na fala ou na es-
a necessidade peremptória da educação esco- crita é outro fator significativo, inclusive para as
lar. Ela não só abre o caminho para ser votado, relações pessoais ou corporativas. O mesmo se
como também abre mais espaços para tomadas deve dizer de conhecimentos importantes pró-
de decisão coletivas e para a ampliação dos es- prios das Ciências Naturais e Exatas, que expli-
paços de participação. Além disso, ela é uma cam as coisas materiais, a fórmula de um remé-
fonte indispensável para que o cidadão possa dio, a composição de uma bebida e o som de uma
usufruir aspectos múltiplos da cultura, como a corda de viola. Além disso, ser cidadão do Brasil
estética e o lazer. e do mundo é poder se aproximar de outros po-
vos e de outras culturas. Nada melhor do que co-
De qualquer modo, é certo que há um "es-
meçar a aprender uma língua estrangeira. No fu-
pírito do tempo" que implica a consciência do
tebol, quem chuta com os dois pés pode fazer
acesso aos conhecimentos da escola como uma
mais e melhores jogadas e, em casa, quem bate
chave importante para ler o mundo e a socie-
bolo com as mãos não se aperta, quando a ener-
dade em que vivemos e neles atuar crítica e
gia elétrica desliga a batedeira. Assim também é
dignamente.
com quem fala o português e começa a apren-
Por isso a Educação de Jovens e Adultos é
der outra língua.
um direito tão importante. Ela é tão valiosa que
Isso é tão importante que a Constituição adequada aos conteúdos estudados, poderão
brasileira e, depois, a Lei de Diretrizes e Bases atribuir créditos a ela, desde que submetida a
da Educação Nacional reconheceram que todos uma avaliação.
os brasileiros, de qualquer idade ou de qualquer Assim, não convém que adolescentes e
outra situação, são titulares desse direito. Por adultos convivam nas mesmas salas. É por isso
isso, não devem abrir mão dele. Por isso, o cur- que meninos ou meninas com menos de 14
so que será ministrado não pode ser uma "cai- anos completos não podem freqüentar a Edu-
xa-preta". Antes do curso, todos devem saber cação de Jovens e Adultos, na etapa do Ensino
qual será a sua duração, quais conhecimentos Fundamental, e é também por isso que nenhum
lhes serão passados, quais os tipos de avaliação jovem com menos de 17 anos completos pode
a que se submeterão e que tipo de certificado estudar em salas de Educação de Jovens e Adul-
de conclusão obterão ao seu final. Isso signifi- tos, na etapa do Ensino Médio.
ca que o ensino da Educação de Jovens e Adul- No caso de um curso presencial e com ava-
tos deve ser de qualidade. E, para ser de quali- liação em processo ter sido autorizado e reco-
dade, é preciso também contar com a idonei- nhecido pelo Conselho de Educação, ele po-
dade da instituição que oferece o curso. Essa derá avaliar os estudantes e, ao final do curso,
idoneidade implicar possuir um registro míni- emitir o certificado de conclusão do Ensino
mo: a aprovação certa e determinada do Con- Médio ou do Ensino Fundamental. Mas quem
selho de Educação com os respectivos prazos estuda em curso presencial e é avaliado duran-
de validade. te toda a sua duração fará todo seu trajeto nes-
Durante muitos anos, a Educação de Jovens sa escola e ela mesma poderá certificá-lo. Mas,
e Adultos não se chamava assim. Ela já se cha- atenção! Essa escola tem de ser autorizada e
mou Madureza, Suplência, Supletivo, Alfabeti- reconhecida pelos podêres públicos, em espe-
zação, entre outros nomes. Por não representar cial pelos Conselhos e Secretarias de Educação.
um direito, esse ensino nem sempre foi assu- Esses cursos devem apresentar as datas de va-
mido por profissionais. Era muitas vezes aten- lidade dessa autorização e desse reconheci-
dido por pessoas de boa vontade, voluntários mento.
ou mesmo por docentes que aplicavam para É verdade que alguém pode preferir estudar
adultos os mesmos métodos com que ensina- em casa, sozinho ou com outros, tendo um cur-
vam crianças e adolescentes. so a distância, por correio, rádio ou televisão
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- como s u p o r t e . O autodidatismo não é proibi-
cional não quis deixar esse campo em aberto. do. Neste caso, se essa pessoa quiser obter um
Por ser a Educação de Jovens e de Adultos uma certificado de conclusão, ela deverá prestar os
modalidade da Educação Básica, por ser ela um chamados exames supletivos, "abatendo" ma-
direito, por poder emitir um certificado de con- téria por matéria. Não podemos fechar as pos-
clusão com validade nacional, é preciso que sibilidades e as alternativas de as pessoas estu-
seus professores sejam formados adequada- darem e prestarem exames oficiais, mas é pre-
mente e apresentem o diploma de licenciado e, ciso verificar se tais exames são mesmo ofici-
de preferência, um currículo adequado a essa ais, se estão autorizados, a fim de que certos
m o d a l i d a d e . O Parecer n° 11/2000 da Câmara grupos pouco éticos não usem essa possibili-
de Educação Básica do Conselho Nacional de dade para finalidades extorsivas.
Educação, ao regulamentar a Educação de Jo- Tanto num caso como no outro, o que se
vens e de Adultos, insiste nesta tecla de acen- avalia são os componentes curriculares nacio-
tuar o perfil diferenciado desses alunos. Eles nais válidos para o Ensino Fundamental ou
devem ser tratados como tais e não como ex- M é d i o . O que muda para a EJA é o modo de en-
tensão de crianças e de adolescentes. Muitos carar e de propor esses conteúdos.
desses professores são até mais jovens do que Cabe aos Conselhos de Educação dizer o
seus alunos. Por isso, devem acolher a experi- tempo de duração dos cursos da EJA e a sua or-
ência vivida dos estudantes e, quando esta for ganização funcional, mas é importante obser-
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
var as orientações tanto do Parecer CEB/CNE ar a ser praticada por meio de livros, filmes,
n° 11/2000 quanto da Resolução CEB/CNE n° novas leituras, acesso à rede mundial de com-
1/2000. Ambos ajudam na compreensão e no putadores (Internet) e, por que não?, em novos
significado maior da EJA. cursos.
Os certificados são a expressão oficial de que Esse desafio de reentrada na vida escolar é
o estudante conseguiu transformar um direito o reconhecimento de um direito desde sempre
num exercício de cidadania, que deve continu- havido, que, agora, poderá ser posto a serviço
ar a vigorar na família, no trabalho, na política de um cidadão mais ativo, tendo em vista uma
e no lazer e deve significar que a Educação de sociedade brasileira que venha a ser mais igual
Jovens e Adultos não pára. Ela poderá continu- e mais justa.
Sinopse do programa
de Educação de Jovens e Adultos
de Mato Grosso
Guilherme Costa
Seduc/MT
1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
• afirma que a EJA é modalidade e parte piciar às escolas tempo adequado para conhecê-
constitutiva da Educação Básica e não mais lo, opinar sobre ele, adequar-se a ele e propiciar
um subsistema de ensino (como prescrevia à Seduc tempo para que possa disseminá-lo ade-
a legislação anterior); quadamente e desencadear ações prévias de for-
• requer contextualização curricular e mação.
metodológica, bem como formação especí-
fica dos professores;
0 terceiro objetivo é propiciar
• lista três funções para a EJA: reparadora,
equalizadora e qualificadora; aos jovens e adultos uma
• determina que a EJA obedeça aos princípios educação de qualidade
de eqüidade, diferença e proporção.
Com o objetivo de melhorar a qualidade do
Para adequar-se à nova norma federal, o ensino, a Resolução n° 180 elevou substancialmen-
CEE/MT fez emanar a Resolução n° 180/2000, te a carga horária mínima dos cursos presenciais
que, entre outras medidas, obriga a Seduc a cri- com avaliação no processo para seis fases anuais
ar o programa de EJA. Para elaborar esse progra- de 800 horas cada, no Ensino Fundamental, e três
ma, a Seduc nomeou um grupo de trabalho fases anuais de 800 horas cada, no Ensino Médio.
interinstitucional (Portaria n° 204/2000 Seduc/ Um sistema flexível de avaliação por competên-
GS/MT) e contratou uma assessoria externa - cias, com possibilidades de reclassificação dos
Professora Maria Clara Di Pierro, da Ação Edu- educandos a qualquer momento, deve propiciar
cativa. A plena vigência do programa foi adiada aos jovens e adultos percorrer trajetórias mais ou
para 2002 pela Resolução n° 272, de modo a pro- menos aceleradas nesses cursos.
Nos últimos anos, a Educação de Jovens e integrada no conjunto das políticas da Educa-
Adultos passou a fazer parte das agendas edu- ção Básica, a qual deve contemplar tanto a ex-
cacionais. De forma crescente e significativa, os pansão do atendimento aos jovens e aos adul-
municípios começaram a comprometer-se com tos pouco ou não escolarizados quanto a quali-
esse segmento, dividindo a tarefa que antes era dade da oferta.
quase que exclusivamente dos estados, sobre- Um dos grandes instrumentos disponíveis
tudo nas Regiões Norte e Nordeste. Todos os aos sistemas, visando à construção de uma
esforços devem convergir para a institucio- identidade própria de EJA, refere-se à formu-
nalização da EJA como política pública nos sis- lação de propostas político-pedagógicas - con-
temas de ensino, para que seja definitivamente templada nas Diretrizes Curriculares Nacionais
dos seus aspectos, como a saúde, a sexua- ridades serão estabelecidos tendo por base
lidade, a família, o meio ambiente, o tra- esse levantamento, crucial para que a escola
balho, a ciência e a tecnologia, a cultura e possa cumprir seu papel social.
as linguagens; Definidos os objetivos pela equipe escolar,
• as áreas de conhecimento de Língua Por- os quais representarão onde a escola quer che-
tuguesa e Língua Materna (para a popu- gar, elabora-se o plano estratégico das ações,
lação indígena), Língua Estrangeira Mo- que irá desenvolver para alcançar os objetivos
derna, Matemática, Ciências, História, propostos, no qual serão explicitados todos os
Geografia, Arte, Educação Física. passos necessários, como: planejamento
5. As escolas utilizarão a parte diversificada curricular, disciplinas, carga horária, duração
de suas propostas curriculares para enri- e organização do curso, matrícula, freqüência,
quecer e complementar a base nacional aproveitamento de estudos, estrutura e funcio-
comum, com a introdução de projetos e namento do curso, composição do corpo do-
atividades de interesse de suas comuni- cente, documentos comprobatórios de esco-
dades.
larização, entre outros.
Além desse conjunto de princípios, objeti- o processo de avaliação deverá estar des-
vos e orientações legais, nos quais toda ação crito tanto no que diz respeito à avaliação da
educativa deve estar embasada, apresentarei aprendizagem dos alunos e a forma de expres-
alguns elementos constitutivos de uma pro- são dos resultados, como à avaliação do desen-
posta politico-pedagógica, de uma forma am- volvimento da proposta politico-pedagógica.
pla, lembrando que todo curso para jovens e
A proposta politico-pedagógica é o resul-
adultos oferecido pelos sistemas deve passar
tado de um processo contínuo de reflexão so-
por autorização dos respectivos Conselhos de
bre a prática pedagógica, sua concepção e fi-
Educação - municipal ou estadual -, respeitan-
losofia, em que a equipe escolar propõe, reali-
do a autonomia conferida pela legislação, para
za, acompanha, avalia e registra as ações que
que os estudos dos alunos sejam regularizados.
irá desenvolver para atingir objetivos coletiva-
As orientações devem ser buscadas nos órgãos
competentes, responsáveis pela normatização mente definidos, de acordo com a realidade na
em cada estado ou município. qual a escola está inserida.
Assim, a proposta politico-pedagógica deve
A proposta politico-pedagógica, como ex-
ser a expressão do conjunto de atores do uni-
pressão das intencionalidades da escola, deve
partir de uma fundamentação teórica, na qual verso escolar, congregando professores, alu-
serão explicitadas a concepção pedagógica que nos, funcionários e comunidade em torno de
norteia o processo de aprendizagem, a filoso- objetivos e metas comuns.
fia que permeia o trabalho escolar, bem como No processo de construção da proposta po-
os princípios políticos, tendo em vista a for- litico-pedagógica, a equipe escolar discute e
mação do cidadão. expõe valores coletivos, define prioridades, de-
A partir da fundamentação elaborada co- limita resultados desejados, reflete sobre sua
letivamente, inicia-se o processo de constru- realidade, dá sentido às ações contidas no pla-
ção de uma identidade para a escola, em con- nejamento e incorpora a auto-avaliação.
sonância com as expectativas dos alunos. Para A vivência de uma proposta politico-peda-
tanto, é imprescindível elaborar um diagnós- gógica propicia que a equipe escolar produza
tico da escola e da realidade em que ela está seu conhecimento pedagógico, construindo-o
inserida, contextualizando a situação socio- e reconstruindo-o cotidianamente, com base
econômica e cultural dos alunos e da comu- em estudos teóricos na área da educação e em
nidade, o desempenho escolar, relativizando outras áreas, na troca de experiências entre os
a função social da escola em relação àquela pares e com outros agentes da comunidade, in-
realidade. cluídos os alunos, os quais devem ser a primei-
Os objetivos gerais e específicos e as prio- ra fonte de pesquisa.
Bibliografia n° 1/2000.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Lei de Diretri- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
zes e Bases da Educação Nacional - LDBEN. Lei n9 Fundamental. Diretrizes Curriculares Nacionais para
9.394/95. de 20 de dezembro de 1996. Educação Fundamental. Brasilia, 1998.
Diretrizes Curriculares Nacionais para Edu- Proposta Curricular para o 2a segmento de
cação de Jovens e Adultos. Parecer n° 11 e Resolução EJA. Brasília, 2001.
SIMPÓSIO 22
ALFABETIZACAO
DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman
" Os resultados apresentados neste trabalho fazem parte do projeto Letramento do professor: implicações para a prática pedagógica, financi-
ado pela agência de fomento à pesquisa, CNPq.
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
ta-se o texto para aprender a perceber o todo, é a função referencial. Os textos escritos que
um tema, uma idéia principal. Impõe-se um lhes são conhecidos servem para registrar fa-
mesmo texto ao grupo para desenvolver o gosto tos e eventos que acontecem, para fazer refe-
individual pela leitura, a relação estética e de rência ao mundo real. Os textos conhecidos são
prazer, íntima e privada. Procura-se fazer com os formulários e papéis que registram informa-
que o aluno responda somente ao que está pre- ções vitais (certidão de nascimento, por exem-
visto na leitura do professor ou do autor do livro plo), os bilhetes que a escola manda para casa
didático e exige-se um leitor crítico e partici- registrando fatos acontecidos ou por aconte-
pativo. Trata-se de uma pedagogia da contradi- cer; os anúncios de emprego nas bancas de jor-
ção, marcada por um conjunto de atividades de nal. A leitura não tem como função importan-
"fazer de conta": o aluno escreve bilhetes que te a de capacitá-los para adquirir novos conhe-
ninguém lera, textos de opinião sem ter forma- cimentos, nem a de legitimar esses conheci-
do uma opinião; responde às perguntas na se- mentos. Isto é, a concepção de texto e de es-
ção de "interpretação livre", já cerceado, sem li- crita desse aluno não prevê algumas importan-
berdade e muitas vezes sem leitura. Ele "lê" sem tes funções da leitura, justamente aquelas que
entendimento, interpreta sem ter lido e realiza lhe permitiriam continuar aprendendo e, com
atividades sem nenhuma função na sua realida- isso, se desenvolver e ajudar o desenvolvimen-
de sociocultural (cf. Foucambert, 1994). to de seu grupo (ver Kleiman, 2000).
Por isso, consideramos importante, para for- Ensinar a ler, nesse contexto, implica ajudar o
mar e desenvolver leitores, partir de uma con- aluno a transformar essa visão mais utilitária da
cepção de leitura como prática social, com leitura, enriquecendo-a de modo a incluir seu po-
múltiplas funções, relacionada aos contextos de tencial para a aprendizagem independente e con-
ação. Uma dessa funções pode ser a facilitação tinuada. Isso envolve partir das necessidades dos
da aprendizagem, não para um dia longe, no alunos, mesmo que estas sejam de caráter
futuro, se converter num leitor e aprendiz in- instrumentalizador e pragmático. É pela prática de
dependente, mas para aprender dia a dia, mes- leitura que se pode alcançar a paulatina transfor-
mo quando ainda estiver soletrando a escrita, mação da concepção do adulto não-escolarizado
durante todo o processo, aquilo que vale a pena numa concepção com funções sociais ampliadas,
aprender. que possibilite a aprendizagem independente. É
Na perspectiva da leitura como prática por meio da prática de leitura que podem ser cria-
facilitadora da aprendizagem, o objetivo da ati- das novas necessidades de leitura.
vidade didática de leitura é aprender alguma Um caso específico que ilustra essa dife-
coisa nova. Não se justifica a atividade de ler rença deu-se numa aula de mulheres analfa-
para aprender a l e r . O objeto da aprendizagem betas num ano de eleição, em uma das tur-
é configurado pelas necessidades e caracterís- mas acompanhadas num projeto a longo pra-
ticas do grupo. Embora as atividades possam ser zo desenvolvido em uma pequena cidade do
diferentes, a prática tem o mesmo objetivo, ou interior do Estado de São Paulo (ver Kleiman
seja, o de aprender a usar a língua escrita para e Signorini, 2000). Nessa turma, as alunas
fazer novos sentidos do mundo, para se desen- queriam votar mas, como não sabiam ler a cé-
volver a si mesmo e para contribuir com o de- dula, pediram à professora que lhes ensinas-
senvolvimento do grupo. se a reconhecer os nomes dos vários candi-
Na educação básica de jovens e adultos, a datos. Transcrevo, a seguir, o trecho pertinen-
concepção de leitura (e de produção da escri- te (Kleiman, 2000: 228):
ta) que deve imperar para facilitar a aprendiza-
gem do aluno é a concepção da atividade como A leitura da cédula sem uma reflexão consciente
prática social. sobre o voto é, para os sujeitos já aculturados pela
As práticas de leitura no cotidiano dos escrita, uma paródia do ato de cidadania que o ato
adultos não-escolarizados sugerem que, para de votar representa. Essas alunas, no entanto, não
eles, a função predominante na língua escrita solicitaram ser preparadas para votar nesse senti-
do mais amplo, mas apenas naquele sentido por suas comunidades de origem. E, q u a n d o ensi-
elas delimitado, ou seja, o de reconhecer o nome namos a leitura apenas para desenvolver a com-
dos candidatos. A alfabetizadora então levou as petência, o aluno deve, por si próprio, construir
cédulas e realizou uma série de atividades de uma função para a atividade.
decodificação dos nomes e números que consta- Finalizando, gostaria de apontar que uma
vam na cédula, a fim de atender às necessidades constante na alfabetização de jovens e adultos
de leitura que haviam sido delimitadas pelo gru- é, a meu ver, o desejo e a necessidade do aluno
po. Porém, durante essa atividade, surgiu o inte-
de se apossar da escrita e daquilo que ela re-
resse, motivado pelas intervenções de professora
presenta na sociedade tecnológica (ver Street,
e alunas, de conhecer melhor as pessoas a quem
1994). Esse desejo fica evidente nos esforços
as palavras aprendidas nomeavam e, então, pe-
que o adulto sem escrita realiza e na variedade
quenos artigos sobre os candidatos - biográficos
de estratégias que ele cria a fim de funcionar
e programáticos - foram lidos.
na sociedade letrada, às vezes escondendo sua
A moral dessa história seria, segundo a au- condição de não-escolarizado; fica evidente na
tora, que "se a alfabetizadora tivesse t e n t a d o sua volta à escola; um retorno em geral associa-
começar pela ampliação da concepção de voto do à sobrevivência, à promoção no trabalho, ao
dessas mulheres, propondo primeiro a leitura convívio s o c i a l . O incentivo para a leitura, por-
q u e permitisse c o n h e c e r os c a n d i d a t o s para tanto, precede a e n t r a d a do aluno na escola.
depois ler a cédula, provavelmente nem a pri- Perde-se pela circularidade de um método de
meira nem a segunda atividade teriam sido re- ensino que só se preocupa com o objetivo final
alizadas com sucesso". - a competência - e que fracassa na criação de
atividades didáticas que permitam o
Ou seja, a decisão dessa alfabetizadora, de
engajamento na prática social para se chegar à
partir da função para a leitura tal qual delimi-
competência individual que permitiria a intro-
tada pelas mulheres, caracteriza a leitura como
dução dos alunos nas práticas socioculturais da
prática social, a leitura para a aprendizagem. A
sociedade letrada.
leitura criou a necessidade de mais leitura.
Engajar o aluno na prática social da leitura
significa, portanto, reverter a direção da ativi-
dade, c o m e ç a n d o pela necessidade e pela fun-
ção que atende a essa necessidade, m e s m o que Bibliografia
aquela seja limitada. Q u a n d o houver u m a fun-
FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre:
ção para a leitura, as capacidades necessárias
Artmed, 1994 [Ed. francesa, 1989].
para ler independentemente deixarão de ser um
KLEIMAN, A. B. O processo de aculturação pela escrita:
problema. Os problemas se originam, muitas ensino da forma ou aprendizagem da função?. In:
vezes, na circularidade da atividade, que come- KLEIMAN. A. B.; SIGNORINI. I. ( O r g s . ) . O ensino e a
ça e acaba focalizando os aspectos formais do formação do professor de alfabetização de adultos. Porto
texto. É incoerente pensar que as razões para Alegre: Artmed, 2000.
ler, as funções da leitura tal qual percebidas KLEIMAN, A. B.: SIGNORINI. I. ( O r g s . ) . O ensino e a for-
pelos grupos de tradição mais letrada, serão mação do professor de alfabetização de adultos. Porto
Alegre: Artmed, 2000.
encontradas pelos alunos membros de comu-
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São
nidades de tradição mais oral. Não é, de forma
Paulo: Cortez, 2001.
alguma, evidente q u e seja necessário saber ler STREET, B. V. Literacy in theory and practice. Cambridge:
para funcionar no cotidiano desses alunos, nas Cambridge University Press, 1994.
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
Este texto foi originalmente elaborado no âmbito da assessoria junto ao Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário - Conse-
lhos Comunitários de Educação, Cultura e Ação Social) e faz parte do documento: Alfabetização e escolarização de jovens e adultos:
diretrizes (São Paulo, 2001).
' o termo "educador" será utilizado no feminino já que a maior parte do corpo docente do programa é formado por mulheres; o mesmo critério
será aplicado ao termo 'coordenador".
doras. Logo de início, é importante privilegiar Traçando o perfil
momentos para que se possa conhecê-las, ten-
do como eixo central a concepção educativa das educadoras
que carregam e as representações de aluno que Quando a equipe de educadoras já estiver
possuem e que são formadas: selecionada é importante que as coordenadoras
• pelos conhecimentos adquiridos em seu pedagógicas possam lançar mão de alguns ins-
processo de formação inicial (nos cursos de trumentos para coletar e organizar algumas in-
habilitação para o Magistério); formações básicas sobre elas. Traçar um diagnós-
• pela experiência como educadora; tico do grupo com o qual irá trabalhar auxilia a
• por sua trajetória e experiência como definição de estratégias e de temas importantes
aprendiz, em seu próprio processo de es- para as reuniões de formação.
colarização; A seguir, sugerimos uma lista de informações
• por sua representação de como se dá o pro- que podem ser levantadas com as educadoras:
cesso de aprendizagem de pessoas jovens nome completo; data de nascimento; raça e/ou
e adultas e suas necessidades de aprendi- etnia; endereço; cidade e estado de nascimento;
zagem; tempo de moradia na cidade; escolaridade; es-
tado civil; número de filhos e suas idades; se ti-
• por outras experiências como cidadãs e
veram experiências anteriores como educadoras
suas histórias de vida.
e especificamente com EJA; se lêem regularmen-
Os momentos para levantar essas informa- te jornais, revistas, livros (especificar); se fre-
ções podem ser os mais variados, sendo al- qüentam regularmente livraria, cinema, teatro,
guns deles dependentes do próprio plano de museus etc; se assistem à televisão, quais os pro-
formação. É possível coletar informações no gramas preferidos; o que fazem nos momentos
momento em que são selecionadas ou incor- de lazer, se participam de alguma atividade cul-
poradas ao programa, por meio de entrevis- tural de sua comunidade; quais são os materiais
tas e questionários. Mas apenas esse levanta- utilizados para preparar as atividades pedagógi-
mento não basta. A cada reflexão ou aprendi- cas que serão desenvolvidas com os alunos;
zagem que se deseja promover no processo de como planejam e avaliam as atividades pedagó-
formação, é importante que as educadoras gicas desenvolvidas com os alunos.
possam expor e refletir sobre suas concep-
Tais informações podem ser coletadas por
ções, representações e ações pedagógicas e,
meio de questionários, de entrevistas individu-
caso seja necessário, problematizá-las, bus-
ais ou em pequenos grupos e registradas em re-
cando informações e conhecimentos que as
latórios ou quadros. Essas informações organi-
transformem.
zadas e analisadas são importantes indicadores
sobre as necessidades de formação das educa-
Como conhecer melhor doras e proporcionam conhecimentos sobre seu
cotidiano. São um importante subsídio para que
as educadoras? as coordenadoras pedagógicas conheçam me-
Quanto mais as coordenadoras pedagógi- lhor quem são os profissionais com os quais es-
cas, pessoas responsáveis pelo acompanhamen- tarão trabalhando e também para que possam
to pedagógico, conhecerem as educadoras com elaborar uma proposta de trabalho a ser desen-
as quais trabalham, melhores serão suas con- volvida sistematicamente com as educadoras.
dições de realizar um bom trabalho de forma-
ção e promover aprendizagens significativas.
Esse é um conhecimento que deverá ser Reuniões pedagógicas:
construído informalmente, no convívio cotidia-
no, e formalmente nos momentos de visitas, reflexão antes e sobre a ação
reuniões pedagógicas e capacitações das quais Será principalmente nas reuniões pedagógi-
participam. cas que as educadoras terão a oportunidade de
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
falar a respeito dos alunos, de seus interesses, da gógica. Aqui, necessariamente, a educadora
prática de sala de aula, do planejamento, da ava- precisa de um interlocutor, de alguém com
liação, de suas dúvidas e até de suas vidas. Além quem possa discutir e debater as razões que
disso, é o momento no qual elas explicam o a levam a agir desse ou daquele modo, ao
modo como realizam atividades, analisam os realizar uma atividade em sala de a u l a . O
resultados que obtiveram e apresentam a pro- interlocutor, a coordenadora ou o colega de
dução de seus alunos, trocam experiências e re- trabalho, fazem perguntas sobre a descrição
fletem sobre elas, planejam novas atividades e oral ou escrita que a educadora elaborou.
Para que a educadora responda com tranqüi-
estudam os temas e conhecimentos de que ne-
lidade a essas questões é preciso confiança e
cessitam para inovar e transformar sua ação.
clareza sobre o que se pretende. Não se trata
Para promover a reflexão sobre a ação da edu- de modo algum de uma investigação visan-
cadora é possível seguir algumas estratégias: do à censura da ação que ocorreu em sala.
Esse momento, quando pensado para forma-
Descrição ou relato da experiência. Esta é ção e aprendizagem, ensina a educadora a
uma etapa na qual a educadora descreve buscar em si mesma as justificativas para o
sua prática em sala de aula, relatando como que faz, articulando sua prática às teorias e
a atividade que planejou foi desenvolvida, às experiências que a informam, isto é, leva-
que resultados obteve, o que deu certo e o a a percebê-la como algo que é muito mais
que não deu, de quais estratégias lançou do que o mero fazer por fazer.
mão. É o momento em que ela pode perce-
ber as regularidades que dirigem sua pró- Confrontação. É nesse momento que a for-
pria prática (por exemplo, estratégias e eta- madora e os pares podem questionar, in-
pas que utiliza sempre para dar início às dagar e problematizar aspectos desencade-
atividades, o modo como introduz textos ados na atividade que se mostram contra-
escritos, conversas coletivas que introdu- ditórios aos objetivos e às opções meto-
zem novas aprendizagens etc); as contra- dológicas descritas pela educadora. A
dições entre o que planejou e o que desen- problematização deve levar à busca de no-
cadeou em sala de aula; e, ainda, selecio- vos conhecimentos e informações que fo-
nar o que foi relevante e deve ser descrito mentem a reconstrução da prática da edu-
e o que não foi. Além de atividades, pode- cadora. É essa estratégia que motiva e pro-
se descrever o desempenho do grupo de porciona estudo, leitura e debates no gru-
alunos ante a atividade ou o desempenho po de educadoras.
de parte do grupo ou de um dos alunos. A Reconstrução. Por fim, a partir de estudos,
descrição pode ser feita oralmente ou por leituras, seminários e debates chega-se ao
escrito: muitas educadoras descrevem sua momento de reorientar o fazer. Todas essas
prática em forma de diários. As descrições perguntas devem ser respondidas a partir
da prática em sala de aula podem ser das conclusões a que se chegou coletiva-
dirigidas à própria educadora, que tem a mente. Nesse momento, elaboram-se mo-
oportunidade, nesse momento, de obser- dos de atuar, firmam-se acordos, definem-
var de um outro ponto de vista a ação que se metas que devem ser utilizadas coletiva-
desencadeou. Mas, com seu consentimen- mente, observadas e avaliadas pelo grupo.
to, pode ser um material utilizado em reu-
niões pedagógicas e em encontros indivi-
duais com a coordenadora pedagógica. Tor- 0 que se espera
na-se, então, material de reflexão coletiva
e para elaborá-la é preciso prever o que o da educadora?
leitor ou ouvinte precisa saber para com- Às educadoras cabe o papel de diagnosti-
preender o que se quer comunicar. car, planejar, avaliar e criar situações de
Estudo e informação. Essa estratégia deve aprendizagem que problematizem e interfi-
resultar na identificação das teorias e con- ram no processo de construção do conheci-
cepções que se expressam na prática peda- mento de seus alunos. Esse processo dinâmi-
co de produção e de acesso ao conhecimen- Considerações finais
to, em que educadora e aluno são agentes e 9
não meros espectadores, só será possível no A formação da educadora deve ter como
momento em que tiverem clareza quanto aos principal objetivo o de melhorar a qualidade
objetivos a serem perseguidos, às opções da sua intervenção educativa e pedagógica.
metodológicas e orientações didáticas que Para que isso ocorra, é fundamental que se pri-
deverão seguir para mediar a apreensão do vilegiem momentos e espaços específicos para
conhecimento, organizando-o e viabilizando- uma formação contínua e sistemática: por
o por meio de atividades. meio de reuniões de estudo, de troca de expe-
Nesse sentido, o papel das coordenadoras riências; possibilitando a participação em se-
pedagógicas junto das educadoras seria o de minários e cursos; buscando materiais de pes-
garantir o acesso ao conhecimento científico quisa; adquirindo livros; acompanhando o tra-
e de relacioná-lo à prática cotidiana. balho com jovens e adultos, pelo planejamen-
Deveríamos reconhecer a importância dos to, pelo registro e por visitas à sala de aula. Para
elementos contidos nas suas práticas muitas educadoras de jovens e adultos o regis-
educativas cotidianas, tentando perceber seus tro escrito pode vir a ser a primeira possibili-
limites e dificuldades, articulando-os com um dade e/ou necessidade de exercitar o uso da
saber teórico que vem sendo construído ao e s c r i t a . O exercício da escrita deve ser consi-
longo dos anos, nas diversas áreas do conhe- derado e privilegiado como um dos principais
cimento. aspectos da formação, pois a prática da escri-
ta exige planejamento, reflexão e organização
o espaço e as condições para que a forma-
de idéias de forma coerente.
ção ocorra devem possibilitar que as educado-
ras construam sua própria prática. Para isso, é o processo e o resultado do trabalho de sis-
necessário definirmos outros objetivos para a tematização da prática devem ser discutidos e
formação, como: capacitá-las para que sejam refletidos pelo grupo de educadoras e coorde-
seres autônomos, capazes de interagir e de res- nadoras com o intuito de perceber e identifi-
ponder às necessidades impostas pelo mundo car os avanços e as dificuldades, na perspecti-
moderno. va de traçar estratégias para atendê-las em
suas necessidades de formação.
Na atuação da educadora devem estar re-
fletidos os seguintes princípios que dizem res- Um outro aspecto a ser destacado é o in-
peito aos alunos: vestimento no acompanhamento do trabalho
• A consideração do aluno como sujeito ati- específico das educadoras, por meio de super-
vo da aprendizagem. visão realizada pelas coordenadoras pedagó-
gicas. Esse trabalho pode contribuir para uma
• o diagnóstico de quais são seus conheci-
mentos prévios. maior segurança delas na integração e na arti-
culação das atividades desenvolvidas com os
• A promoção de situações nas quais os alu-
alunos. Além disso, é fundamental que todo
nos interajam entre si e consigo mesmos.
profissional tenha espaços para discutir dúvi-
• A consideração das práticas cotidianas dos das, trocar experiências e pesquisar, ou seja,
jovens e adultos, consolidando as aprendiza- para que continue aprendendo e aperfeiçoan-
gens escolares a partir dessas experiências.
do seu fazer.
• o respeito às diversidades de personalida-
É importante, ainda, que as coordenado-
des e de culturas.
ras pedagógicas estejam sempre atentas e pró-
• A valorização da autonomia de seus alu- ximas das educadoras, avaliando o que não
nos.
está bom no relacionamento pessoal, no tra-
• A promoção da autoconfiança dos alunos balho cotidiano da sala de aula e procurando,
diante de seus saberes, valores e atitudes. durante as reuniões, discutir e buscar, com o
• o incentivo à cooperação e à solidarieda- grupo, alternativas para mudanças que alterem
de entre os alunos. o que não está funcionando bem.
•
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
As relações entre as educadoras, os alunos gógicos que de fato contribuem para o desen-
e outras pessoas envolvidas no trabalho devem volvimento de um trabalho de qualidade.
ser objeto de reflexão cotidianamente. Esse Por último, a formação das educadoras deve
momento de avaliação é importante para que articular a prática e a teoria a todo momento,
possam entender o que lhes é mais fácil, quais pois o que queremos alcançar é um maior co-
suas dificuldades e também para buscar co- nhecimento da realidade e de formas para in-
nhecer melhor seus alunos. É nesse momento tervir nesse contexto, melhorando a qualidade
que se pode organizar e pensar tudo o que já da prática das educadoras junto dos alunos.
sabem e vivenciam no dia-a-dia. Esse espaço
ajuda na organização de idéias e na elabora-
ção do planejamento.
Nesse sentido, as educadoras devem estar Bibliografia
constantemente avaliando sua prática pedagó- CONTERÁS, J. Condiciones y contrariedades dei
gica, buscando aprofundar teoricamente as- profesional reflexivo al intelectual critico. La autonomia
pectos ligados à educação de jovens e adultos: del profesorado. Madrid: Morata, 1997. p. 98-142.
quem são eles; como pensam; como dimen- PIMENTA, S. G. Formação e docente: identidade e sabe-
sionam seu tempo; quais seus interesses; como res da docência. In: PIMENTA, S. G. (Org). Sabores
pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez,
percebem o mundo a sua volta; quais suas ne-
1999. p. 15-34.
cessidades; como constróem conhecimento;
RIBEIRO. Vera Maria Masagão (Coord.). Educação de Jo-
etc. Se não sabemos quem são nossos alunos, vens e Adultos: proposta curricular para o primeiro
o que eles já sabem e quais são as nossas ques- segmento do Ensino Fundamental. São Paulo: Ação
tões em relação a esses aspectos, é muito difí- Educativa/MEC, 1997.
cil pensar em objetivos e metodologias que SESC - DEPARTAMENTO NACIONAL. Projeto Sesc-Ler:
possibilitem desenvolver um trabalho mais diretrizes para a orientação pedagógica. [Documento
elaborado por Ação Educativa, Monica Moreira de Oli-
seguro e competente. Somente quando conse-
veira Braga Cukierkorn] Rio de Janeiro: Sesc, 1999.
guimos explicitar nossas perguntas sobre a
VÓVIO, C. L. (Coord.). Viver e aprender: guia do educa-
prática pedagógica, num processo reflexivo, é dor - livros 1, 2, 3 e 4. São Paulo/Brasília: Ação Edu-
que podemos pensar sobre os recursos peda- cativa/MEC, 1999.
SIMPÓSIO 23
CONCEPÇÃO DOS LIVROS
DIDÁTICOS: MODELO ATUAL
E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto
Esta exposição toma por base um conjunto apresento dados coletados por nosso grupo de
de ações realizadas pelo Grupo Formar - Ciên- pesquisa durante cursos de extensão realizados
cias (Estudos e Pesquisas sobre Formação de recentemente, com aproximadamente 180 pro-
Professores da Área de Ciências), da Faculdade fessores de Ciências do Ensino Fundamental,
de Educação da Unicamp, e também minhas em várias cidades da região de Campinas (SP).
experiências docentes como professor de Físi- Um dos temas desenvolvidos nos cursos
ca do Ensino Médio e professor da área de Di- abrangia o livro didático e seu papel no ensino
dática e Prática de Ensino de Ciências na uni- de Ciências. Quando perguntados sobre os usos
versidade. que fazem do livro didático em suas atividades
As reflexões serão norteadas por três aspec- docentes, os participantes apresentaram respos-
tos principais: a) o papel atribuído ao livro di- tas que podem ser aglutinadas em três grandes
dático e seu uso no contexto escolar; b) os cri- grupos. Os professores fazem uso simultâneo de
térios de análise, de avaliação e de escolha de várias coleções didáticas, de editoras ou auto-
livros didáticos adotados por equipes de espe- res distintos, para elaborar o planejamento anu-
cialistas do MEC, por pesquisadores da univer- al de suas aulas e para a preparação delas ao lon-
sidade e por professores de Ciências da rede go do ano letivo. Também comentam que o li-
pública; c) as representações epistemológicas vro didático é utilizado como apoio às ativida-
e pedagógicas sobre livro didático presentes no des de ensino-aprendizagem, seja na sala de
ideário de professores, pesquisadores e currí- aula, seja extra-escola, visando à leitura de tex-
culos oficiais. tos, à realização de exercícios e outras ativida-
Cabe destacar, ainda, que não se pode de- des e ainda como fonte de imagens (fotos, de-
bruçar sobre o tema do Simpósio, particulari- senhos, mapas, gráficos etc.) para os estudos es-
zando para os livros didáticos de Ciências no colares. Por fim, salientam que o livro didático
Ensino Fundamental, sem externar explícita ou é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para
implicitamente concepções de ciência, de am- o professor complementar seus conhecimentos,
biente, de educação, de sociedade, das relações quanto para os alunos, em especial na realiza-
entre ciência-tecnologia-sociedade, entre tan- ção das chamadas "pesquisas" bibliográficas.
tas outras concepções de base pertinentes ao Durante os mesmos cursos, os professores
campo da educação em Ciências, as quais de- eram instigados a estabelecer critérios para ana-
terminam a própria concepção de livro didáti- lisar e avaliar coleções didáticas e, a partir dis-
co e de seu papel educacional. so, apresentar suas concepções sobre um "bom"
Iniciando pelas concepções e práticas de livro didático. Em linhas gerais, eles indicam os
professores sobre o livro didático de Ciências, seguintes critérios ou características de uma boa
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
critérios de cunho teórico-metodológico e bas- De nossa parte, tomando por base estudos
tante inerentes e peculiares ao ensino de Ciên- e pesquisas acadêmicas realizadas em diversas
cias, estabelecidos por especialistas do próprio universidades brasileiras de diferentes regiões
MEC em 1994 e, posteriormente, reafirmados geográficas, podemos dizer que as coleções di-
pelos PCN - Ciências, não continuaram a cons- dáticas de Ciências da década de 1970 lograram
tituir o eixo principal e norteador dos critérios relativo êxito na sua aproximação com as dire-
para avaliação de coleções didáticas de Ciên- trizes curriculares oficiais daquela época. Toda-
cias nos demais documentos do MEC? via, nos anos 1980, após os processos de
Se isso tivesse ocorrido desde o Guia de Ava- reformulação curricular em vários estados e
liação de 1997 e subseqüentes, talvez algumas municípios e, mais recentemente, com a edi-
coleções já tivessem sofrido mudanças não ape- ção dos PCN, essa aproximação não mais se
nas em aspectos periféricos, como projeto grá- evidencia. Nos últimos dez a quinze anos, as
fico e correções conceituais, mas também nos coleções didáticas de Ciências não conseguiram
elementos essenciais do ensino-aprendizagem acompanhar os novos princípios educacionais
de Ciências. Poderíamos ter, assim, mais ele- difundidos pelos estudos e pesquisas acadêmi-
mentos para avaliar a viabilidade de investir em cas e pelos currículos oficiais. Pode-se dizer,
um projeto de reformulação do modelo atual de então, que os atuais livros didáticos de Ciências
livro didático e de melhoria da sua qualidade, correspondem a uma versão "livre" das diretri-
em vez de vislumbrarmos tão-somente os ca- zes e dos programas curriculares oficiais em vi-
minhos que iremos apontar na última parte gência. Em linhas gerais, as atuais coleções ain-
deste trabalho. da mantêm uma estrutura programática e teó-
Quanto às representações pedagógicas e rico-metodológica mais próxima das orienta-
epistemológicas do livro didático de Ciências, ções curriculares veiculadas nos anos 1960 e
pode-se dizer que os professores mantêm forte 1970. A pretensão de que as coleções colabo-
expectativa - ou crença - de que as coleções rem na difusão das atuais orientações e currí-
correspondem a uma expressão fiel das propos- culos oficiais, contribuindo para que o profes-
tas e das diretrizes curriculares e do conheci- sor consiga perceber como essas diretrizes po-
mento científico. Todavia, por julgar que isso é dem tomar forma na prática escolar, de modo
de difícil consecução, atenuam suas pretensões, algum é conseguida pelos livros didáticos hoje
acreditando que ao menos as coleções são ver- presentes no mercado, mesmo entre aqueles
sões adaptadas das propostas curriculares e do que são recomendados pelos Guias do MEC.
conhecimento científico. Autores de livro didá- Quanto ao conhecimento científico propa-
tico e editoras, por sua vez, difundem até como lado nos livros didáticos de Ciências, não se
estratégia mercadológica que os livros são fiéis nota qualquer mudança substancial nas duas ou
representantes tanto do conhecimento cientí- três últimas décadas. As coleções enfatizam
fico como das diretrizes curriculares oficiais. Do sempre o produto final da atividade científica,
ponto de vista do conhecimento científico, os apresentando-o como dogmático, imutável e
autores indicam que o livro apresenta informa- desprovido de suas determinações históricas,
ções científicas atuais e corretas, as quais so- político-econômicas, ideológicas e socio-
frem pequenas adaptações em vista de uma di- culturais. Realçam sempre um único processo
vulgação de caráter didático. Quanto a acom- de produção científica - o método empírico-
panhar fidedignamente os programas curricu- indutivo -, em detrimento de se mostrar a di-
lares oficiais, autores e editoras reforçam que versidade de métodos e ocorrências na constru-
os respectivos livros atendem aos avanços da ção histórica do conhecimento científico, como
psicologia educacional, da metodologia do en- formulações teóricas sem evidências empíricas,
sino e às diretrizes curriculares oficiais. Estam- ensaio-e-erro, acaso, compilação de resultados
pam invariavelmente em suas capas expressões de pesquisas, entre outras formas. Pode-se di-
como "de acordo com os PCN", ou "edição zer, então, que o conhecimento trazido pelos
reformulada para atender à avaliação do MEC". livros didáticos de Ciências situa-se entre uma
versão "adaptada" do produto final da ativida- consultas bibliográficas; etc). Contudo, consi-
de científica e uma versão "livre" dos métodos derando a baixa qualidade das coleções didáti-
de produção do conhecimento científico. cas da atualidade mesmo esse uso alternativo
Em suma, o livro didático não corresponde não pode ser estimulado.
a uma versão fiel das diretrizes e programas cur- Com a difusão de princípios educacionais
riculares oficiais, nem a uma versão fiel do co- como flexibilidade curricular, abordagem
nhecimento científico. Não é utilizado por pro- temática interdisciplinar, vínculo com o cotidi-
fessores e alunos na forma intentada pelos au- ano (real) do aluno e com seu entorno sócio-
tores e editoras, como guia ou manual relativa- histórico, atendimento à diversidade cultural de
mente rígido e padronizado das atividades de cada local ou região, atualidade de informações,
ensino-aprendizagem. Acaba por se configurar, estímulo à curiosidade, à criatividade, à reso-
na prática escolar, como um material de con- lução de problemas, entre outros, fica cada vez
sulta e apoio pedagógico à semelhança dos li- mais difícil conceber um livro didático adequa-
vros paradidáticos e de outros tantos materiais do a todos esses princípios.
de ensino. Introduz ou reforça equívocos, este- Penso, assim, em pelo menos dois cami-
reótipos e mitificações com respeito às concep- nhos. A curto prazo, uma vez que as atuais co-
ções de ciência, ambiente, saúde, ser humano, leções permanecerão em circulação por algum
tecnologia, entre outras concepções de base tempo e pela dificuldade em se produzir novos
intrínsecas ao ensino de Ciências Naturais. materiais em questão de dois ou três anos, pro-
Ora, com tudo isso, podemos nos interro- põe-se manter esse uso alternativo do livro di-
gar: para quê livro didático com esse modelo e dático com seu modelo atual, investindo na
qualidade atuais? Indo mais a fundo, será que é ampla divulgação dos estudos de avaliação do
possível elaborar alguma coleção didática que livro didático e em cursos de formação de pro-
seja coerente com o conhecimento científico e fessores em exercício para discussão das defi-
seus métodos de produção e também com as ciências e limites das coleções didáticas atuais
diretrizes e orientações curriculares de cada e estímulo à produção coletiva de modos alter-
época? Não seria mais prudente abandonar o nativos de uso.
modelo em vigência de livro didático ou, pelo A médio prazo, várias ações podem ser em-
menos, abandonar o investimento de recursos preendidas. Uma primeira consiste em inves-
públicos na sua aquisição e distribuição ampla tir na produção de livros paradidáticos, com
pelas escolas públicas brasileiras, e investir em abordagem temática única para cada volume
outros caminhos, em outros materiais e recur- de uma coleção ou série, com melhor qualida-
sos para apoiar o trabalho pedagógico de pro- de gráfica e maior diversidade de textos/lin-
fessores e alunos? guagem, ilustrações e atividades. A abordagem
Essas indagações e incertezas remetem-nos de cada tema focalizaria com maior particula-
à segunda parte do tema deste Simpósio, qual ridade conhecimentos do campo das Ciências
seja, refletir sobre as perspectivas futuras para Naturais, porém de maneira multidimensional,
o livro didático. de forma a articular essa área com as demais
De início deve-se reforçar que nas escolas áreas do conhecimento humano relacionadas
públicas já se consagram mudanças na forma ao tema em questão. Esses livros paradidáticos
de utilização do livro didático. Cada vez mais o poderiam constituir livros didáticos "modula-
professor deixa de usar o livro como manual e res", de maneira que o professor pudesse ir
passa a utilizá-lo como material bibliográfico de compondo seu compêndio didático ao longo
apoio a seu trabalho (leitura, preparação de do ano, a partir da sua realidade escolar, da sua
aulas etc.) ou material de apoio às atividades vivência profissional e das vivências de seus
dos alunos (confronto de definições e assuntos alunos, do contexto sociocultural deles e das
em duas ou mais coleções; fonte de exercícios ocorrências do processo de ensino-aprendiza-
e atividades; textos para leitura complementar; gem ao longo do ano letivo nos últimos anos -
fonte de ilustrações e imagens; material para as quais nos fazem constantemente avaliar os
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
quantidade suficiente para atender a bibliote- BATISTA, Antônio A. G. Recomendações para uma política
pública de livros didáticos. Brasília: SEF/MEC, 2001.
cas de salas-ambiente e bibliotecas escolares.
BRASIL. Ministério da Educação. FAE. Definição de critéri-
Finalizando, devemos esclarecer que todos os para avaliação dos livros didáticos: Português. Ma-
esses novos documentos e ações não garantem temática. Estudos Sociais e Ciências - 1' a 4' séries.
por si só a melhoria do ensino. Muitas dessas Brasília, 1994.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação dáticos para o ensino de Ciências no Brasil. Tese (Dou-
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais - 1 a , torado). Faculdade de Educação/Unicamp. 1993.
2º, 3º e 4º ciclos. Brasília, 1997/1998. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. As propostas curriculares
Guia de livros didáticos - 1ª a 4ª séries - oficiais. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1996.
PNLD 2000/2001. Brasília: SEF/MEC/FNDE/Ceale/ (Textos FCC, 10).
Cenpec, 2000. MEGID NETO, Jorge. Tendências da pesquisa acadêmi-
Guia de livros didáticos - 5a a 8a séries - ca sobre o ensino de Ciências no nível fundamental.
PNLD 2002. Brasília: SEF/FNDE/Cenpec, 2001. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Unicamp,
FRACALANZA, H i l á r i o . O que sabemos sobre os livros di- 1999.
como um processo de redução das desigualdades. a escola como paradigma do conhecimento. Nes-
A demanda por qualificação resulta das necessi- se sentido, fazem parte do capital cultural histo-
dades do modelo de sociedade. Do ponto de vis- ricamente estabelecido.
ta do sistema, a escolarização se faz necessária Além da função informativa, a escolarização
para que o indivíduo seja mais produtivo, para cumpre uma função que apenas tem sido objeto
que saiba seguir instruções e movimentar-se no de investigação, que é a função formativa, en-
espaço urbano-industrial, para que possa consu- tendida como o desenvolvimento de habilidades
mir produtos e respeitar ou assumir os valores cognitivas articuladas às formas do saber escri-
hegemônicos. Do ponto de vista do trabalhador, to (isto é, aquele que se constitui em função de
como indivíduo, a escolarização impõe-se como uma tradição de escrita, aí incluídas a Matemá-
condição de possibilidade de inserção no merca- tica, as Ciências, a Literatura, a Informática, a
do de trabalho e, em tendo emprego, de partici- imprensa, as leis).
pação - ainda que mínima - do mercado de con- Nesse sentido mais genérico, a escolarização
sumo. Se a escolarização não garante o emprego supõe o letramento do sujeito - entendido como
de ninguém, nenhuma ou pouca escolarização é o estado ou a condição de quem interage com
um impedimento ao trabalho. diferentes discursos, saberes e comportamentos
Em outras palavras: a instituição escolar na articulados em função da cultura escrita. Quan-
sociedade urbano-industrial tem a dupla função to maior o letramento, maior será, entre outras
de atuar como instrumento de reprodução da coisas, a freqüência de manipulação de textos
estrutura social, contribuindo para a manuten- escritos variados, a de realização de leitura au-
ção de diferenças e de privilégios, e de inserir no tônoma (sem intervenção ou apoio de outra pes-
mercado de trabalho e de consumo os diferen- soa), a interação com discursos menos contex-
tes sujeitos, conforme sua condição de classe. tualizados ou mais auto-referidos, a convivên-
A educação regular cumpre, nesse quadro, cia com domínios de raciocínio abstrato, a pro-
quatro funções complementares. dução de textos para registro, comunicação ou
Em primeiro lugar, está a. função informati- planejamento, enfim, maior será a capacidade e
va, que supõe que todo indivíduo deve conhe- a oportunidade do sujeito de realizar tarefas que
cer o conjunto de informações que permite sua lhe exijam monitoração, inferências diversas e
participação apropriada na sociedade. Desde ajustamento constante.
essa perspectiva, a escola expressaria o "consen- Além das funções informativa e formativa,
so" histórico (segundo a visão hegemônica) dos a escolarização tem, complementarmente e de
saberes que, idealmente, devem ser de conheci- modo articulado a elas, uma função valorativa,
mento comum, como a noção moderna de uni- pela qual se estabelece e se reafirma o conjun-
verso, os conceitos de corpo e de vida, a repre- to de valores que informam o conceito hege-
sentação de mundo, os fatos históricos represen- mônico de sociedade, tais como o sentido de
tativos da sociedade, a língua considerada pa- liberdade, de respeito, de autoridade, de supe-
drão, entre outros. Esses saberes se organizam rioridade, de propriedade. Essa função, apesar
nas disciplinas escolares - Português, Matemá- de menos explícita do que as anteriores, está
tica, História, Biologia, Geografia-, as quais têm fortemente imbricada na organização escolar e
relativa autonomia nos processos de produção na razão de ser da escola. É em função dela que
de conhecimento extra-escolar. se organiza o calendário escolar, que a escola
Apesar de os saberes escolares não terem, se relaciona com a comunidade e com as ins-
muitas vezes, aplicação prática para a maioria tâncias oficiais, que se estabelecem os critérios
dos cidadãos, o fato é que seu domínio contri- de seleção e avaliação.
bui para sustentar privilégios ou permitir ascen- Ao lado da função valorativa e intrinsecamen-
são social. Eles compõem o ideal social de pes- te ligada a ela, está a função normativa, à qual
soa culta e estão presentes em concursos e tes- compete implementar o processo de socialização
tes, além de serem constantemente reproduzi- das crianças, estabelecendo o lugar e o compor-
dos de diferentes maneiras pela mídia, que toma tamento de cada uma no meio imediato e na so-
ciedade como um todo. A dinâmica das aulas, a • a atribuição de uma natureza teleológica a
repartição do espaço físico escolar, os sistemas de produção discursiva, cujo fim é definido pela
avaliação e promoção, as categorias de punições cumulação de um volume de conhecimentos;
e censura, tudo isso concorre para a construção • sua acumulação progressiva por meio de for-
de um modelo disciplinar e de relação com o co- mas de desenvolvimento cumulativo;
nhecimento e de comportamentos esperados. • a construção do tempo escolar como um es-
João Wanderley Geraldi observa que se pode com- paço de tempo útil, delimitado pela conse-
preender a escolarização como uma aplicação cução de um objetivo e pela transmissão de
paradigmática das modernas técnicas de gover- uma determinada porção de conhecimento;
no, cujas estratégias, mais do que silenciar e cons- • a redução da dispersão e da heterogeneida-
tranger, agem pela liberdade, sintonizando dese- de das formas de interlocução presentes na
jos e capacidades aos objetivos políticos da orga- situação imediata de uso da linguagem em
nização e construindo o autogoverno como for- sala de aula, favorecendo a manutenção dos
ma de realização da liberdade. dois pólos de produção discursiva, realizada
Deve-se destacar que tanto os valores como mediante a unificação do corpo de alunos;
os comportamentos esperados, diferentemen- • a objetivação e a avaliação das relações dos
te do que ocorre com os saberes enciclopédi- alunos com os conhecimentos a serem acu-
cos, raramente estão explicitados nos progra- mulados;
mas e currículos. Eles compõem o currículo
• a manutenção da finalidade corretiva da
oculto e se manifestam nas práticas pedagógi-
interlocução entre professor e alunos, e a
cas (formas de ensinar, relação professor-alu-
conseqüente unificação de grupos e sua dis-
no, processos de avaliação), na organização do tinção de outros grupos, de acordo com a
sistema escolar, no exercício da autoridade e distância maior ou menor que os separa des-
nas ações de garantia da disciplina, na come- ses saberes;
moração das datas cívicas.
• o desenvolvimento de estratégias para ate-
nuar a contradição existente entre, de um
lado, a situação imediata de interlocução e a
0 livro didático na escola necessidade de unificação dos alunos num
de massa único pólo e, de outro, a finalidade corretiva
da interlocução, que cria uma permanente
Livro didático poderia ser, em princípio, todo instabilidade na produção do discurso;
livro que se organiza em função do processo pe-
dagógico, visando a apresentar um conteúdo re- • o reforço da autoridade do professor e seu
domínio na interlocução;
lativo a uma área de conhecimento escolar. En-
tretanto, o modelo atual de livro didático obri- • a distribuição da realização do trabalho de
ga-nos a fazer uma interpretação mais restrita produção do discurso em instâncias que al-
desse tipo de livro, diferenciando-o de outras ternam e em que se alternam diferentes
produções pedagógicas, inclusive as que supõem agentes na sua produção.
seu uso do espaço da aula. A semelhança entre esse conjunto de condi-
Para compreender apropriadamente o que é ções do discurso escolar e o modelo atual do li-
e como funciona o livro didático, é necessário vro didático é imediata. Ele supõe o princípio da
perceber como se estrutura a educação escolar, acumulação progressiva, a repartição do tempo
que tem na "aula" seu paradigma. Em trabalho (as unidades) em atividades bem definidas, a
no qual se investiga a definição do objeto de en- ação normativa rotineira. Mas é na redução da
sino na aula de Língua Portuguesa, Antônio dispersão e da heterogeneidade das normas de
Augusto Batista, em seu livro Aula de Português interlocução que o modelo do livro didático mais
(1996), identifica um conjunto de condições que se impõe: ele determina as falas e os comporta-
a cultura escolar estabelece para que um saber mentos possíveis, instituindo uma voz fixa e
possa ser transmitido em sala de aula: norteadora de todas as ações; apresenta-se como
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
Há trinta anos, quando o uso do livro didá- lização, o "siga o modelo", as centenas de exer-
tico começava a se intensificar, ele era consi- cícios similares de adestramento em que ape-
derado um dos maiores problemas da educa- nas os números eram trocados, o predomínio
ção. Responsável por simplificar o conhecimen- de alguns assuntos (números e álgebra) sobre
to, era visto por especialistas como uma espé- outros (geometria, grandezas e medida, estatís-
cie de muleta para os professores que se aco- tica, probabilidade e raciocínio combinatório)
modavam no exercício de sua profissão. Em eram motivos de severas críticas dos educado-
suas páginas eram divulgados erros conceituais res matemáticos.
graves, reforçavam-se discriminações, precon- Nas duas últimas décadas, essa visão se
ceitos e visões ideológicas comprometidas. Na modificou, sobretudo pelo fato de o livro didá-
área de História, por exemplo, recorria-se às tico ter assumido papel crucial no processo de
páginas de um livro didático toda vez que al- ensino e aprendizagem e de a própria educa-
gum historiador precisava ilustrar o "atraso" do ção formal ter-se transformado, para muitos, no
senso comum em relação aos novos estudos de grande trampolim para as melhorias das con-
sua disciplina. Em Matemática, a mecanização, dições sociais do indivíduo e, mesmo, para o
a decoreba, os problemas-tipo sem contextua- desenvolvimento nacional.
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
A crescente importância dos livros didáti- zer; isso sem contar com a diversidade de abor-
cos aconteceu ainda pelo fato de este ser, para dagens existentes em cada disciplina do currí-
muitos brasileiros, a única fonte de leitura e culo escolar.
informação sobre assuntos específicos nas áre- Independentemente da metodologia, os li-
as de Matemática, Português, História, Ciências vros didáticos ganharam também em dinamis-
e Geografia. Graças ao seu alcance (representa mo, ao incorporarem recursos diversificados. Os
70% do que se publica no país e atinge um pú- livros de História, por exemplo, abandonaram
blico de 44 milhões de pessoas), tornou-se tam- a antiga concepção de documento histórico e
bém o principal instrumento de consolidação passaram a utilizar, como fonte do conhecimen-
dos currículos escolares. to, textos literários, objetos do uso cotidiano,
Nesse cenário, os olhares de especialistas letras de música, imagens, etc. Os de Matemá-
acabaram por se voltar para o livro didático, tica buscam apresentar os problemas
com a preocupação de produzir um livro de contextualizados, estimulam a investigação, o
melhor qualidade. Exemplo disso é a política fazer pensar, a compreensão dos conceitos e dos
estabelecida pelo atual governo. Enquanto os procedimentos, as aplicações, o desencadear
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) in- conceitos e procedimentos pela resolução de
centivam novas abordagens, a política de problemas, o uso da história e dos recursos
avaliação do livro didático obriga autores e edi- tecnológicos. Isso confere ao professor maiores
tores a publicarem livros sem erros conceituais, opções para o trabalho em sala de aula, e ao alu-
sem preconceitos, sem discriminações, sem no uma gama maior de conhecimento e estímu-
simplificações de conteúdo e com metodologia los para a aprendizagem.
adequada. Quanto aos recursos didáticos, estes sim
Isso está levando à profissionalização da mudaram radicalmente. As antigas atividades
produção do livro didático. Antes escrito por um padronizadas foram sendo substituídas por ati-
único autor experiente, mas nem sempre espe- vidades reflexivas, redações de textos, sugestões
cialista na área, e publicado por editoras de de pesquisas e de trabalhos em grupo. A inter-
pequeno porte, o livro didático passou a ser fei- disciplinaridade e a contextualização passaram
to por equipes de especialistas da área e a ser a pautar todos os conteúdos. Agora, torna-se
produzido por grandes empresas editoriais. indispensável aproximar o conhecimento da
As mudanças podem ser verificadas ao se realidade vivida pelos alunos e integrar as áre-
compararem os atuais livros didáticos com os as do saber, em um projeto educacional mais
de trinta anos atrás. Em época de ditadura, os amplo.
conteúdos dos livros didáticos de trinta anos De todas as mudanças verificadas nos últi-
atrás refletiam uma visão "oficial" da socieda- mos trinta anos a respeito do livro didático, esta
de. Pouco críticos, reproduziam um conheci- que se testemunha atualmente é, sem dúvida,
mento enciclopédico, que facilitava os métodos a de maior envergadura. Aliada à não menos
de memorização dos conteúdos escolares. importante mudança que se pretende atual-
Com o processo de abertura política, na dé- mente na formação do professor da Educação
cada de 1980, os livros passaram a apresentar Básica, num futuro próximo, ela pode implicar
um conteúdo mais crítico. mesmo uma mudança do paradigma de educa-
Nos anos 1990, a valorização desse material ção b r a s i l e i r a . O certo é que agora se pretende
didático por educadores e técnicos responsá- formar um sujeito capaz de agir com rapidez
veis pelas políticas educacionais foi crucial para num mundo em constante modificação e em
o surgimento de outras m u d a n ç a s . O incentivo rápido processo de globalização, com intensa
à novas abordagens provocou a diversificação circulação de pessoas, informações e mercado-
do livro didático. Hoje, os professores têm à dis- rias.
posição coleções em que se aplicam as mais Prever quais as mudanças para os próximos
variadas metodologias, algumas com aborda- anos é sempre tarefa ingrata. Entretanto, a im-
gens mais críticas e que privilegiam o saber fa- portância que o livro didático ganhou dentro do
ensino parece ser, durante os próximos anos, exemplo, foram responsáveis por enterrar de
irreversível. Ele deve continuar a ser no Brasil vez o questionário tradicional e as atividades
um dos principais recursos didáticos para pro- padronizadas, mas ainda não conseguiram
fessores e alunos, apesar da crescente entrada impor um modelo que se possa dizer aceito
de novas opções, como a Internet, o CD-ROM e por grande parte dos educadores. A própria
os livros paradidáticos. experimentação desse material em sala de
Quanto às mudanças verificadas na natu- aula pelos professores mantém em aberto es-
reza dos livros didáticos durante os últimos ses caminhos. Mas, independentemente dos
anos, essas ainda continuam em franco de- rumos que irão ser tomados, os próximos
senvolvimento. Os modelos iniciados nos anos devem testemunhar a consolidação des-
anos 1990 ainda não se consolidaram total- se livro didático diversificado e dinâmico que
mente. Os princípios construtivistas, por os anos 1990 viram surgir.
SIMPÓSIO 24
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA PERSPECTIVA da EDUCAÇÃO
INCLUSIVA
Álvaro Marchesi
Resumo
o objetivo de estabelecer escolas inclusivas tor- Acreditamos e proclamamos que:
nou-se uma das principais aspirações de todos os que • todas as crianças de ambos os gêneros têm
defendem a eqüidade na educação. As escolas para um direito fundamental à educação e devem
todos, sem exclusões, nas quais convivem e apren- ter a oportunidade de alcançar e manter um
dem alunos de diferentes condições sociais, culturas, nível aceitável de conhecimentos;
capacidades e interesses, desde os mais capazes até • cada criança tem características, interesses
os que apresentam alguma deficiência, é um modelo e necessidades de aprendizagem próprios;
ideal que motiva muitas pessoas comprometidas com • os sistemas educacionais devem ser conce-
a mudança educacional. bidos e os programas aplicados de modo que
Avançar no sentido de se estabelecerem esco- levem em consideração toda a gama dessas
las inclusivas não é uma tarefa simples. Precisamos diferentes características e necessidades;
estar conscientes de que existem resistências, con- • as pessoas com necessidades educacionais
tradições e dilemas importantes que dificultam ou especiais devem ter acesso a escolas regu-
mesmo impedem o desenvolvimento de políticas lares, que deverão integrá-las numa peda-
eficazes em prol da inclusão. No entanto, o fator mais gogia centrada na criança e capaz de satis-
importante para o progresso de uma educação para fazer suas necessidades;
todos, sem exclusões, é adotar uma atitude positiva • as escolas regulares que baseiam sua didática
em relação a esse tipo de ensino, que se fundamen- nessa orientação integradora representam o
ta na justiça, na igualdade e na solidariedade. meio mais eficaz para se combater atitudes
Essa proposta foi explicitamente discriminatórias, criar comunidades receptivas,
delineada na Declaração Final da Conferência construir uma sociedade integradora e garantir
Mundial sobre Necessidades Educacionais Es- uma educação para todos; além disso, elas ofe-
peciais realizada em Salamanca, Espanha, no recem uma educação eficaz à maioria das cri-
período de 7 a 10 de junho de 1994 (Unesco e anças, promovem a eficiência da educação e, em
Ministério da Educação e Ciência, 1995). Essa última análise, melhoram a relação custo-bene-
conferência contou com a participação de re- fício de todo o sistema educacional.
presentantes de 88 países e de 25 organizações
internacionais atuantes na área da educação. Nestas páginas, abordaremos os principais dile-
Um de seus compromissos foi formulado nos mas e contradições enfrentados pelas escolas inclusi-
seguintes termos: vas e as condições que possibilitam sua consolidação.
É fácil ver como se pode acomodar o que é comum de propor adaptações curriculares específicas di-
-mediante a formulação de um currículo comum, ante de suas limitações, devem abrir caminho
a criação de escolas completamente inclusivas e a para propostas mais amplas e globais de trans-
disponibilização de experiências idênticas de formação da escola, para se lograr uma maior
aprendizagem para todas as crianças. É fácil, tam- i g u a l d a d e . O objetivo principal não é fazer com
bém, ver que os caminhos mais óbvios para lidar que alunos diferentes tenham acesso ao currí-
com a diferença baseiam-se em estratégias opos- culo estabelecido para a maioria dos alunos, mas
tas: a formulação de currículos alternativos, a cri- reformular o currículo visando a garantir uma
ação de tipos diferentes de escolas para diferen-
maior igualdade entre todos eles e respeito por
tes alunos e a disponibilização de diferentes ex-
suas características próprias. A maior importân-
periências de aprendizagem para grupos ou indi-
víduos diferentes. No entanto, como se pode har- cia que se atribui às mudanças gerais da escola
monizar precisamente esses enfoques tão diferen- estende-se à necessidade de se coordenarem
tes de modo que os currículos sejam comuns e programas sociais e econômicos que reduzam as
múltiplos, as escolas sejam inclusivas e seletivas e desigualdades iniciais e ao reconhecimento da
as aulas proporcionem experiências de aprendi- participação dos pais no processo educacional
zagem que sejam iguais para todos e, ao mesmo de seus filhos.
tempo, diferentes para cada um? (Clark, Dyson, Seis fatores são particularmente importantes:
Millward e Skidmore, 1997: 171). a modificação dos valores culturais da sociedade;
a transformação do currículo; a importância da
Esse dilema não pode ser facilmente resol- cultura e da organização das escolas; a colabora-
vido e também não nos podemos aprofundar ção de novos setores sociais; o desenvolvimento
nas alternativas que podem ser sugeridas para profissional dos professores; e a revisão da ins-
os distintos elementos que constituem um cur- trução na sala de aula.
rículo: objetivos gerais, áreas curriculares, con-
teúdos, critérios de avaliação e metodologia. No
entanto, podemos destacar três estratégias que A modificação dos valores
podem nos ajudar a encontrar um equilíbrio da sociedade
entre o comum e o diversificado. Os valores e as atitudes dos cidadãos consti-
• As adaptações dos conteúdos se concreti- tuem um fator importante que condiciona as
zam no fato de os principais conhecimen- possibilidades de mudança. A prioridade da
tos serem apresentados com um nível dife- competência em relação à solidariedade, a mai-
rente de profundidade. or importância atribuída às realizações acadê-
• o trabalho cooperativo entre os alunos e a micas do que ao desenvolvimento social e da
possibilidade de os alunos mais capazes se- personalidade e o conceito de que a presença de
rem tutores dos demais são métodos de en- alunos com maiores dificuldades prejudica o
sino habituais. progresso dos mais capazes são crenças, muitas
• Os professores de apoio trabalham conjun- vezes implícitas, que afetam o alcance e a pro-
tamente com o professor regular na aten- fundidade das reformas educacionais. Os valo-
ção a todos os alunos. res cívicos majoritários podem contribuir pode-
rosamente no sentido de que a integração esco-
lar seja posteriormente estendida à integração
As condições das escolas social e do mercado de trabalho.
inclusivas
Os estudos sobre as mudanças educacionais A transformação do currículo
necessárias para se estabelecerem escolas inclu- Para favorecer a educação comum de todos
sivas coincidem em uma proposta: as iniciativas os alunos, é necessário que um currículo comum
mais individuais, orientadas no sentido de com- para todos eles seja adotado e que posteriormen-
pensar desigualdades iniciais entre os alunos ou te seja ajustado ao contexto social e cultural de
cada instituição educacional e às diferentes ne- mudança que potencializa a cooperação entre os
cessidades de seus alunos. Uma vez estabeleci- professores e que defende a flexibilidade organi-
do esse currículo comum, cabe à comunidade zacional e a identificação conjunta de soluções para
educacional e a sua equipe de professores refle- os problemas colocados pelos alunos. Essa flexibili-
tir novamente sobre o currículo, visando adaptá- dade organizacional possibilita a incorporação de
lo à população específica de estudantes que está novos colaboradores à tarefa educacional, amplian-
sendo escolarizada em cada instituição. do, assim, as possibilidades dos alunos.
Um currículo aberto à diversidade dos alunos
não é apenas um currículo que oferece a cada alu- A incorporação de novos colaboradores
no o que ele precisa de acordo com suas possibi-
As escolas, que estão enfrentando desafios ex-
lidades. É um currículo proposto para todos os
traordinários, como o de integrar alunos com ne-
alunos no sentido de que todos aprendam quem
cessidades educacionais associadas a deficiên-
são os outros, e deve incluir, em seu conjunto e
cias, não poderão alcançar os objetivos aqui pro-
em cada um de seus elementos, a sensibilidade
postos por conta própria, senão em casos excep-
necessária às diferenças existentes na escola. A
cionais. Mesmo que os recursos a elas disponibi-
educação para a diversidade deve estar presente
lizados sejam adequados, as dificuldades com que
em todo o currículo e em todo o ambiente esco-
se deparam são extremamente importantes. Uma
lar. A diversidade dos alunos é uma fonte de enri-
educação de qualidade para todos exige a parti-
quecimento mútuo e de intercâmbio de experi-
cipação, na escola, de associações e pessoas dis-
ências que lhes permite conhecer outras manei-
postas a colaborar no sentido de estabelecer re-
ras de ser e viver e desenvolver atitudes de res-
lações com instituições externas à escola. A par-
peito e tolerância, além de uma ampla compre-
ticipação de pais, ex-alunos, voluntários, organi-
ensão da relatividade de seus valores e costumes.
zações não-governamentais e outros grupos sem
As pessoas desenvolvem melhor seus conheci-
fins lucrativos pode ampliar a oferta educacional
mentos e sua identidade em contato com outros
para todos os alunos e enriquecer as experiências
grupos que têm concepções e valores diferentes.
dos que têm problemas mais acentuados de
aprendizagem. Além disso, acordos ou convênios
A modificação da cultura e da com governos municipais, centros de lazer, em-
organização da escola presas, oficinas etc. podem lhes oferecer novas
possibilidades de aprendizagem.
A cultura da instituição educacional consti-
tui a base principal sobre a qual se apoiará o de-
senvolvimento do currículo. Os valores, as nor-
mas, os modelos de aprendizagem, as atitudes dos 0 desenvolvimento profissional
professores, as relações interpessoais existentes, dos docentes
as expectativas mútuas, a participação de pais e A formação dos professores é imprescindível
alunos e a comunicação desenvolvida na institui- para se fazer frente adequadamente às deman-
ção, entre todos os membros da comunidade edu- das educacionais dos alunos. Precisamos reforçar
cacional, são os elementos que determinam o tipo essa posição e indicar claramente que não se pode
de projeto que a instituição irá elaborar e a orien- avançar no sentido de estabelecer escolas inclu-
tação que será seguida na aplicação do currículo. sivas se todos os professores, e não apenas aque-
A reforma da educação e o avanço no sentido les especializados na educação especial, nao al-
de se estabelecerem escolas mais inclusivas pres- cançarem um nível suficiente de competência
supõem, ao mesmo tempo, uma transformação da para ensinar a todos os alunos. Além disso, a for-
cultura das escolas, uma mudança no sentido de mação tem estreita relação com a atitude assu-
uma cultura educacional que valoriza a igualdade mida em relação à diversidade dos alunos. Sen-
entre todos os alunos, o respeito pelas diferenças, a tindo-se pouco competente para facilitar a apren-
participação dos pais e a incorporação ativa dos alu- dizagem dos alunos com necessidades educacio-
nos ao processo de aprendizagem. Trata-se de uma nais especiais, o professor tenderá a desenvolver
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha cau- instinto, de modo que a necessidade consiste nes-
sa... Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, te caso em não poder fazer ou suportar de outra
lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas forma" (Aristóteles, Metafísica, V, 5, 1014 b 35).
finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um De um lado, é preciso fazer a defesa da igual-
simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, ten-
dade como princípio de cidadania. Mas isso não
do ao colo, em vez de broche, um botão de
é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensí-
madrepérola... Era isso no corpo; não era outra cousa
vel e imediatamente perceptível.
no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça
natural... Saímos à varanda, dali à chácara, e foi en- o pensamento "único" ou empirista não apre-
tão que notei uma circunstância. Eugênia coxeava cia a abstração, preferindo o manifesto, o visível, o
um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar- p a l p á v e l . O empírico é necessário e é até "porta"
lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha res- de entrada para uma realidade mais ampla. Essa
pondeu sem titubear: realidade mais ampla para o gênero humano é o
— Não, senhor, sou coxa de nascença. reconhecimento da igualdade básica de todos os
Mandei-me a todos os diabos; chamei desastra- seres humanos, fundamento da dignidade da pes-
do, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade soa humana. É dessa fonte, sem cujo reconheci-
de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. mento e respeito se dão as entradas para todas as
Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas formas de racismo e correlatos, que se nutrem os
direito, perfeitamente s ã o . . . O pior é que era coxa. artigos lº e 5º da Constituição Federal Brasileira,
Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma além do seu artigo 205, referente à educação. E a
compostura tão senhoril; e coxa. Esse contraste fa- igualdade não se obtém a não ser por meio de exer-
ria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso cício teórico, abstrativo e que dê acesso ao caráter
escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se
universal e igualitário de todos e de cada um.
bonita?... (Machado de Assis, 1992: 553-54)
Contudo, a negação ou o esquecimento de
Além de processos de conversão em direito posi- categorias gerais, universais, erroneamente con-
tivo, de generalização e de internacionalização [... sideradas totalitárias, acabam por colocar, em
manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha seu lugar, o micro, a subjetividade, o privado.
de tendência, que se pode chamar de especificação; Estes últimos, por sua vez, desconectados daque-
ela consiste na passagem gradual, porém cada vez la fonte igualitária, introduzem sérios problemas
mais acentuada, para ulterior determinação dos su- para a conceituação e mesmo para as políticas
jeitos titulares de direito. [...] Essa especificação ocor- públicas. Não há universal sem abstração.
reu com relação ao gênero, seja às várias fases da As causas diferencialistas causam problemas
vida, seja à diferença entre estado normal e estados sérios quando elas não evidenciam como sua base
excepcionais na existência humana. [...] Com rela-
o direito à igualdade. A defesa das diferenças, hoje
ção aos estados normais e excepcionais, fêz-se valer
tornada atual, não subsiste se levada adiante em
a exigência de reconhecer direitos especiais aos do-
prejuízo ou sob a negação da igualdade.
entes, aos deficientes, aos doentes mentais etc.
(Bobbio, 1992: 62-63) Riscos sérios de:
• identificar desigualdade e diferença;
Todos somos portadores de necessidades:
• descolar a eqüidade da igualdade;
manifestas ou não, especiais ou não.
Aristóteles conceitua a noção de necessida- • propiciar a emersão de um fundamentalismo
de: "Aquilo a que estamos forçados se diz que é diferencialista;
necessário quando uma força qualquer nos obri- • cultura do fragmento e essencialização da di-
ga a fazer ou a sofrer alguma coisa que é contra o ferença: classificação infinda...;
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
1
o principio da fraternidade simboliza a igualdade universal dos "irmãos" (fratei) e o do pluralismo (plus = mais que um) já sinaliza a diferença.
Pode-se ler aqui uma relação dialética entre "o todo e as partes" no interior de uma sociedade democrática.
2
Ver a esse respeito o Programa Nacional dos Direitos Humanos no Decreto n9 1.904, de 1996.
'' As Leis n" 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e n° 9.459, de 13 de maio de 1997, regulam os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de
cor. Já a Lei n° 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceitos
de raça, cor. religião, etnia ou procedência nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer n a t u r e z a . O
Decreto n" 40, de 15 de fevereiro de 1991, reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativo n° 26. de 22 de junho de 1994. visa à
eliminação de todas as formas de discriminação das mulheres.
* Pelo inciso LXXI, concede-se o mandato de injunção quando a efetivação de um desses direitos se torne inviável por falta de norma regula-
dora. Isso coloca na mão dos sujeitos um instrumento jurídico importante na defesa de seus direitos individuais e coletivos
dade da pessoa humana, há outros direitos especi- socialista por excelência aquela que, liberando,
ficados no capítulo dos "Direitos sociais" e listados iguala e iguala quando elimina uma discriminação;
no artigo 7 º . O inciso XX desse artigo reconhece di- uma liberdade que não somente é compatível com
reitos específicos das mulheres no mercado de tra- a igualdade, mas que é condição dela" (1987:23).
balho, o inciso XXX proíbe diferença de salários por Todas as formas impeditivas da igualdade, to-
"motivos de sexo, idade, cor ou estado civil" e o madas pelo ângulo da uniformidade, ignoram o
inciso XXXI proíbe a discriminação de salário e de valor das diferenças ou as condenam aos estreitos
critérios de admissão para alguém que seja "porta- espaços do privado, terminam em regimes auto-
dor de deficiência". Este último inciso reserva ritários, ditatoriais ou mesmo totalitários. Porém
"percentual dos cargos e dos empregos públicos" a excessiva consideração das diferenças pode re-
para portadores de deficiência. O trabalho de me- dundar no oposto de sua valorização, isto é, como
nores é proibido antes dos 16 anos, a fim de que o não-enriquecimento do ser social do homem.
possam cumprir a escolaridade obrigatória.5 Algo que se pode verificar em sociedades toma-
A Lei n9 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases das por fundamentalismos ou crispações identitá-
da Educação Nacional, também reafirma o prin- rias de qualquer espécie nas quais, como diz
cípio do direito à diferença complementar e recí- Rouanet (1994), domina a ontologização da dife-
proco ao conjunto dos direitos comuns inerentes rença. É o mesmo autor que defende o que cha-
à igualdade. Assim, seu artigo 3º reafirma vários ma "universalismo concreto": "A utopia iluminista
princípios constitucionais, entre os quais o é a de uma ética fundada na razão, voltada para a
pluralismo. A lei introduz a referência à "tolerân- felicidade, capaz de julgar e criticar o existente, e
cia" como princípio da educação, tanto quanto "a tendo como telos uma comunidade argumen-
gestão democrática" como princípio inerente ao tativa sem fronteiras, em que a igualdade não sig-
ensino p ú b l i c o . O artigo 49 reconhece a necessi- nifique nivelamento e em que a universalidade
dade de atendimento diferenciado "aos edu- não leve à dissolução do particular" (1994:162).
candos com necessidades especiais" e adequação A democracia supõe tanto a igualdade para o
às condições peculiares de jovens e adultos que que é igual ou que deve ser igual, quanto a con-
queiram se escolarizar. Tal especificidade é repos- sideração positiva da diferença como reveladora
ta nos artigos 37 e 38. da profunda riqueza de que se revestem todos
Essa tomada axiológica se justifica porque por os seres humanos, desde que tal diferença se ex-
meio dela se reconhecem a complexidade do real presse na matriz igualitária do ser humano.6 Re-
e seu caráter matizado. A identificação histórica de tomando Aristóteles, pode-se dizer que o ente é
várias culturas presentes no país não significa um a síntese aberta entre o ser e o modo de ser. É
amálgama entre elas ou o esquecimento no modo este o entendimento que se pode ter do texto
como elas se encontraram em distintas circunstân- constitucional e da lei de educação.
cias históricas ou mesmo tomar partido de uma
delas em detrimento de outras. daí a condenação
ao racismo e ao preconceito existentes no Brasil.
A relação entre condenação a práticas discri-
Bibliografia
minatórias e a afirmação de direitos foi posta em ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
evidência por Bobbio (1987). Para ele, a valorização Rio de Janeiro: Aguillar, 1992. Obra Completa, v. I.
BOBBIO, Norberto. Reformismo, socialismo e igualdade. A/o-
afirmativa da pluralidade ganha substância cada vez
vos Estudos, n. 19, São Paulo: Cebrap, dez. 1987.
que ela serve para pôr abaixo uma discriminação A era dos direitos. 1992.
baseada em qualquer modalidade de preconceito. ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da moral iluminista. In:
É nesse sentido que ele aponta para uma dialética NOVAES, Adauto. (Org.). Ética. São Paulo: Cia. das Le-
entre liberdade e igualdade: "Considero liberdade tras, 1994.
5
o artigo abre exceção para aprendizes que tenham completado 14 anos. O racismo e todos os seus correlatos nascem do não-reconhecimento da igualdade e da d
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
A formação de professores
para a Educação Especial na
Universidade Federal de
Santa Maria/RS, na perspectiva
da educação inclusiva
Soraia Napoleão Freitas
Universidade Federal de Santa Maria/RS
A Universidade Federal de Santa Maria Maria, em março de 1962. Esse curso, sem dúvi-
(UFSM) vem formando recursos humanos para a da, criou uma nova perspectiva para a Educação
Educação Especial desde 1962, na gestão de seu Especial, na medida em que a Universidade, pela
fundador, o professor José Mariano da Rocha Fi- seqüência de cursos que continuou a oferecer,
lho. A origem da Educação Especial foi no Insti- constitui uma referência para a cidade, para o es-
tuto da Fala, que tinha como diretor o professor tado e mesmo para o país.
Reinaldo Coser. No Instituto da Fala desenvolvi- Em 1974 foi criada a habilitação em Deficien-
am-se atividades de ensino, pesquisa e extensão tes da Audiocomunicação no curso de Pedagogia.
nas áreas da audição, fala e linguagem. Em 1976, após aprovação do Conselho de Ensino,
Sensível à necessidade de atendimento edu- Pesquisa e Extensão da UFSM, foi implantada, no
cacional a um considerável número de crianças curso de Pedagogia, a habilitação específica para
com surdez, sem possibilidade de recuperação clí- a Formação de Professores de Excepcionais Defi-
nica, o professor e médico otorrinolaringologista cientes Mentais. No ano de 1977, o curso de For-
Reinaldo Fernando Coser percebeu que a perspec- mação de Professores para Deficientes Mentais
tiva de integrar a criança deficiente auditiva na es- passou a constituir um curso em separado, como
cola exigia a habilitação de professores. Iniciou Licenciatura Curta. Nos anos seguintes, o curso
então, com muito rigor e persistência, a formação de Educação Especial passou por nova reestrutu-
de professores para a Educação Especial. ração, para transformar-se em Licenciatura Ple-
o primeiro episódio dessa história de quaren- na, sendo reconhecido como tal pelo Parecer do
ta anos foi possibilitar a duas pessoas a realiza- Conselho Federal de Educação (CFE) n9 1.308/80,
ção de um curso no Instituto de Educação de Sur- e homologado esse reconhecimento pela Porta-
dos*(INES), no Rio de Janeiro, a única instituição ria do MEC nº 141/81.
que oferecia oportunidade de formação na área. O curso durou
Em três anos
1982, e uma das
o Centro professoras
de Educação encaminhou
não retornou para Santa Maria, fixando-se no Rio ao CFE proposta de reestruturação dos cursos de
de Janeiro. Esse processo de formação de recur- Pedagogia e de Formação de Professores em Edu-
sos humanos era dispendioso e demorado e ha- cação Especial: propunha-se um curso que reunis-
via necessidade urgente de integrar a criança sur- se a habilitação em Deficientes da Audioco-
da na escola regular. Em decorrência do elevado municação, do curso de Pedagogia, e o curso de
custo, a alternativa encontrada para formar pro- Formação de Professores em Deficientes Mentais.
fessores foi a criação de cursos de extensão uni- Houve aprovação de tal solicitação pelo Parecer do
versitária. Um acordo com o Departamento de CFE nº 65/82. A partir do ano de 1984, o ingresso
Educação Especial da Secretaria Estadual de Edu- dos alunos passou a ser no curso de Educação Es-
cação possibilitou que o primeiro curso para a pecial - Licenciatura Plena, nas habilitações Defi-
formação de professores de deficientes auditivos cientes Mentais (DM) ou Deficientes da Audioco-
fosse realizado na Universidade Federal de Santa municação (da), sendo oferecidas 40 vagas no con-
curso vestibular, assim distribuídas: 20 vagas para
a habilitação em Audiocomunicação e 20 vagas ciedade. O curso oferece dez vagas, das quais seis para
para a habilitação em Deficientes Mentais. Deficientes Mentais e quatro para Deficientes da
o curso de Educação Especial, com as duas Audiocomunicação, com ingresso anual. Ainda em
habilitações - da e DM -, tem para cada habili- nível de pós-graduação, o Programa de Pós-Gradua-
tação os seguintes objetivos específicos: ção em Educação (PPGE) oferece curso de Mestrado,
• Formar profissional, no plano biopsicossocial, nas linhas de pesquisa de Formação de Professores e
capaz de atuar na Educação Especial de defi- Práticas Educativas nas Instituições, um núcleo
cientes da audiocomunicação ou de deficien- temático denominado Educação de Pessoas em Cir-
tes mentais. cunstâncias Especiais, cujos estudos são orientados
• Desenvolver atividades cognitivas, psicomotoras para a produção e a aplicação de conhecimentos que
e afetivas para o desempenho das atividades pro- provocam a inserção social de pessoas impossibili-
fissionais inerentes ao seu campo de atuação, tadas da realização de interações comuns para a cons-
segundo diretrizes do sistema de ensino. trução de conhecimentos.
• Aplicar metodologia científica na realização As décadas de 1970 a 1990, no Brasil, foram o
das atividades de planejar, executar e ava- período em que a Universidade Federal de Santa
liar o processo ensino-aprendizagem. Maria se estruturou e elaborou os cursos de For-
mação de Professores em Educação Especial.
• Investigar, cientificamente, novas estratégias
Sendo necessário entender o pensamento e a
de ensino aplicáveis ao seu campo de atuação.
prática educacional relacionados com a realidade
• Participar, de forma integrada, dos programas social, onde nascem e se desenvolvem; não poden-
de Educação Especial no sistema de ensino, do ignorar que a realidade é condicionada pelas
na família e na comunidade (Guia Acadêmi- relações econômicas e políticas nacionais e inter-
co. Pró-Reitoria de Graduação/UFSM/1998). nacionais, às quais se refere e também sobre as
A formação de recursos humanos para a Edu- quais influi, ocasionando transformações, essas
cação Especial desenvolveu-se acompanhada articulações ou relações do fenômeno educacio-
pela prestação de serviços de extensão à comuni- nal com condições internas e externas explicam a
dade. Em 1980, foi criado o Serviço de Atendimen- sua constituição, os seus limites e as direções de
to Complementar ao Deficiente Auditivo sua transformação. A educação influi sobre essa
(SACDA), em convênio com a Legião Brasileira de realidade, podendo direcionar transformações.
Assistência (LBA). O SACDA servia de local de es- Em síntese, a Educação Especial na Univer-
tágio aos alunos dos cursos de Educação Especial, sidade Federal de Santa Maria se efetiva em mo-
Fonoaudiologia e Pedagogia. No ano de 1983, as mentos distintos. Privilegiou-se a formação de
atividades do SACDA foram reformuladas e am- recursos humanos como objeto de envolvimen-
pliadas e o serviço recebeu nova denomina- to curricular regular, separando-se, para efeito
ção: Centro de Atendimento Complementar em de análise, quatro momentos distintos:
Educação Especial (CACEE), fundamentando suas Momento 1: Curso de Pedagogia - Habilita-
atividades de cunho complementar no modelo ção em Formação de Profissionais para Ex-
médico-psicológico. Em 1993, o Departamento de cepcionais - Deficientes Mentais (1975 a
Educação Especial implantou no CACEE uma 1976) - 3.135 horas (2.280 horas no Núcleo
nova metodologia de trabalho baseada em outro Comum + 855 horas na Habilitação DM).
paradigma teórico: o modelo pedagógico, com Momento 2: Curso de Formação de Profes-
ênfase definida em ensino, pesquisa e extensão. sores para Educação Especial - Deficientes
Foi, então, criado o Núcleo de Ensino, Pesquisa e Mentais - Licenciatura Curta (5 semestres)
Extensão em Educação Especial (Nepes). (1977 a 1980)-2.010 horas.
Em nível de pós-graduação, o curso de especiali- Momento 3: Curso de Formação de Profes-
zação, criado em 1993, tem como objetivo possibili- sores de Educação Especial -Licenciatura
tar a compreensão das potencialidades, das limita- Plena - Habilitação em Deficientes Mentais
ções e das diferenças dos portadores de necessida- (1981 a 1983)-2.550 horas.
des especiais, propondo ações interativas com a so- Momento 4: Curso de Educação Especial - Li-
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
cenciatura Plena - Habilitação em Deficientes tos relacionados entre si, que são: desenvolvimen-
Mentais - Habilitação em Deficientes da to, aprendizagem e ensino. Deste ponto de vista, o
Audiocomunicação (1984 à atualidade) - 8 se- currículo entendido como Projeto Curricular pode
mestres, com carga horária distribuída entre efetivamente contribuir para a formação e o aper-
disciplinas obrigatórias (3.525 horas) e disci- feiçoamento dos professores. Projeto Curricular é,
plinas optativas (90 horas), totalizando 3.615 sobretudo, um projeto de ação educativa que enri-
horas (carga horária total do curso na Habili- quece o processo de desenvolvimento de todos os
tação Deficientes Mentais).
alunos em todos os níveis de ensino, pois o traba-
Procuramos verificar como se deu a forma- lho do professor, se por um lado tem o aspecto inte-
ção docente, estabelecendo agrupamentos de dis- lectual, por outro lado não se limita a e l e . O traba-
ciplinas e tendo como preocupação captar: a con- lho intelectual do professor exige deste uma atitu-
cepção de deficiência possivelmente envolvida; de prática de transformação estrutural da organi-
se houve preocupação em proporcionar visão ge- zação escolar, que tem uma íntima relação com a
ral do ser humano, inserido num contexto social sociedade da qual ele participa.
por meio de disciplinas filosóficas, históricas e Sob esse ponto de vista, entendemos que o
sociológicas; como se desenvolveu a preocupa- trabalho do professor não se limita a uma ativi-
ção com a especificidade do ser humano, sujeito dade livre e descompromissada, mas, sim, é um
da ação pedagógica, isto é, por meio de discipli- evento de grande responsabilidade social daque-
nas e metodologias gerais e específicas. les que o exercem para com o conjunto da popu-
Os momentos analisados são reveladores da lação. Portanto, a Educação Especial, como uma
forma de pensar a formação de professores e a modalidade de ensino no contexto da educação
concepção de aluno. geral, tem o compromisso de dar a todos a opor-
Nas quatro grades curriculares analisadas, tunidade de acesso e de permanência na escola.
percebemos, pelo número de horas e pelo con- Acreditamos que a formação do professor
teúdo das ementas de cada disciplina, qual foi para trabalhar com alunos portadores de defici-
a "visão" de excepcionalidade veiculada, como ência mental deva enfocar o princípio ético, que
também constatamos qual o enfoque prio- consiste em não considerar apenas os "meus in-
rizado, ou seja, o deficiente mental como um teresses" ou os "teus interesses", mas os interes-
sujeito incompleto e a educação como uma ses de todo e qualquer aluno. A verdadeira igual-
possibilidade de reabilitação desse sujeito. dade de oportunidades exige a certeza da
Diante dessas evidências, reforça-se nossa inexistência de privilégios, em que uma desvan-
constatação de que o aluno da Educação Espe- tagem inicial possa ser compensada por um tra-
cial é visto ainda como defeituoso, doente e que tamento diferencial. Com essa perspectiva edu-
a intervenção educacional pontuou-se pelo diag- cacional é imprescindível ao professor o exercí-
nóstico e pelo emprego de técnicas. A nosso ver, cio investigativo, que compreende seu compro-
o alunado da Educação Especial permanece, ain- misso com pesquisas que possam contribuir para
da, centrado na idéia do defeito, da diferença. o desenvolvimento de conhecimentos na área, da
A formação de professores oscilou entre a sua realidade, bem como um intercâmbio com
ênfase específica e a ênfase metodológica, aspectos políticos, administrativos e pedagógicos.
priorizando ora uma, ora outra, em função dos As políticas públicas e, portanto, a educa-
condicionantes sociopolíticos, das concepções ção, deverão levar em conta fatores que visem
teóricas e da prática docente. proporcionar a tais indivíduos uma vida plena-
A análise dos grupos de disciplinas nos mo- mente feliz, isto é, possibilitar-lhe o gozo de
mentos considerados revela que para algumas seus direitos e deveres de cidadão.
delas se percebe um movimento no sentido da Entretanto, devemos evitar o reducionismo,
adequação de conteúdo ao momento histórico. não colocando a deficiência quer somente como
Para a implementação de uma ação pedagógi- patologia individual, quer como dominação social,
ca eficiente e de qualidade, a tendência atual da Edu- mas como resultado dos dois pólos, isto é, da situ-
cação Especial destaca como essenciais três elemen- ação de cada um (limites e potencialidades), den-
tro de uma sociedade que solicita modos de ser, mentar, na formação de professores e especialistas
aspirações, modelos necessários a uma certa or- no planejamento, na gestão e na supervisão da edu-
ganização social. cação, em nível de pós-graduação.
o nosso desafio em educação é, respeitando Tendo a Universidade Federal de Santa Maria sido
as individualidades do aluno, com suas potencia- pioneira na interiorização do atendimento por meio
lidades e limitações, possibilitar-lhe os conheci- das atividades de extensão e ensino e tendo persistido
mentos necessários para viver integralmente na- nesse trabalho ao longo de quarenta anos, julgamo-
quela sociedade, modificando-a nas "brechas" pos- nos habilitados para realizar a formação de recursos
síveis de melhoria das condições de vida. Não é humanos para a Educação Especial consoante as di-
reproduzir indivíduos para o contexto, adaptando- retrizes políticas formuladas para a área. Também - e
os, sufocando-os, mas permitir-lhes o desenvolvi- avançando as atividades de extensão e ensino -, a pro-
mento pleno para viver e ser mais, ser além de có- dução e a divulgação de conhecimentos têm sido per-
pias, e isto vale para todos os educandos. seguidas por meio de projetos e pesquisas que envol-
daí a importância de não ignorar o contexto, vem discentes e docentes da instituição.
com suas limitações e avanços. Em cada momen- Neste momento, parece-nos importante que a
to histórico, em função das condições econômi- atual formulação curricular que o curso de Educa-
co-sociais e político-culturais, "a sociedade pro- ção Especial apresenta, com pequenas adequa-
duz a escola de que necessita e a transforma den- ções, possa permanecer como reserva institucional
tro das possibilidades concretas e dos limites im- para referenciar o currículo de formação de pro-
postos pelo avanço real da totalidade dentro da fessores de forma que atenda às demandas pro-
qual ela se organiza no tempo" (Xavier, 1997:229). postas na política educacional do país.
Estão sendo realizados estudos para refor-
mulação curricular dos cursos de graduação e de
especialização em Educação Especial. Tais
Bibliografia
reformulações visam à sua adequação às Dire- BRASIL Lei n9 9.394, de 20 de dezembro de 1966. Diretrizes e
Bases da Educação Nacional.
trizes Nacionais para a Educação Especial na
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Plano
Educação Básica e ao Plano Nacional de Educa-
Nacional de Educação.
ção (Lei nº 10.172/2001). Diretrizes Nacionais para a Educação Especial
A formação de recursos humanos com capa- na Educação Básica.
cidade de oferecer atendimento aos educandos BREZINSKI, iria. Pedagogia, pedagogos e formação de profes-
especiais, a implantação e a ampliação de aten- sores. São Paulo: Papirus, 1996.
dimentos a alunos com necessidades especiais BUENO, J. Geraldo Silveira. A produção social da identidade do
anormal. História social da infância no Brasil. São Paulo:
são metas do Plano Nacional de Educação para
Cortez, 1997.
os próximos dez anos.
CANdaU, Vera M. F. Formação continuada de professores: ten-
A formação de professores e alunos que apresen- dências atuais. São Carlos: EDUFSCar, 1996.
tam necessidades educativas especiais deverá ocor- CARVALHO, Rosita E. A nova LDB e a educação especial. Rio de
rer nos âmbitos da: formação inicial de todos os pro- Janeiro: WVA, 1997.
fessores; formação de professores de Educação Es- COELHO, I. M. A formação do educador: dever do Estado, tarefa
pecial; e formação de professor dos professores. Na da universidade. Formação do educador. São Paulo: Unesp,
1996. v. 1.
formação inicial em nível médio ou superior, o pro-
COSER, Reinaldo Fernando. Comentários. Boletim do Instituto
fessor deverá construir conhecimentos que lhe dêem
da Fala, v. 3. UFSM, 1971.
possibilidade de identificar e reconhecer a existên- FREITAS, S. N. A formação de professores em Educação Especi-
cia de necessidades educacionais e também buscar al na Universidade Federal de Santa Maria. Tese (Doutorado
e implementar ações e apoios pedagógicos em clas- em Educação). UFSM/Unicamp, Santa Maria, 1998.
ses comuns da Educação Básica. Para o atendimen- MARQUEZAN, Reinoldo; TOALDO, Marilene Machado. Formação
to orientado a uma categoria específica de necessi- de recursos humanos para Educação Especial na Universida-
dades, a formação do professor deverá se processar de Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS, 1986. v. 2.
XAVIER, Maria Elizabeth; RIBEIRO, Maria L; NORONHA,
na formação para a Educação Infantil e as séries ini-
Olinda M. História da educação - a escola no Brasil. São
ciais do Ensino Fundamental ou, de forma comple- Paulo: FTD, 1994.
SIMPÓSIO 25
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS
DE ENSINO E FORMAÇÃO
DOCENTE
João Barroso
Jean Hebrard
Miriam Schlickmann
da formação de professores
à formação das escolas
João Barroso
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Lisboa/Portugal
Resumo
As transformações em curso na formação de necessário que se estabeleçam novas relações de
professores são determinadas, fundamentalmente, força que lhe sejam favoráveis, mas também que os
por três ordens de razões: mudança nos processos atores desenvolvam novas capacidades cognitivas e
de trabalho de alunos e professores; mudança nas relacionais, e que se estabeleçam novas formas de
organizações e modos de gestão; mudança nos mo- governo. Por isso, como insistem Crozier e Friedberg
delos de formação contínua, em geral. (1977), qualquer processo de mudança deverá re-
No primeiro caso, a mudança do público escolar sultar de uma ação convergente sobre os homens e
resultante do alargamento da base de recrutamento as estruturas.
dos alunos e a perda da eficácia dos mecanismos de No terceiro caso, a formação contínua de adul-
seleção tornaram caducas uma organização pedagó- tos valoriza cada vez mais as modalidades que favo-
gica e uma prática de ensino que se baseava numa recem a capacidade de os atores, nas organizações,
cultura de homogeneidade, cujo objetivo era "ensi- "produzirem" o seu próprio conhecimento, quer seja
nar a muitos como se fossem um só" (Barroso, 1995a). pelos "métodos autobiográficos" e outras formas de
Hoje em dia, para atender à heterogeneidade dos alu- "formação experiencial", quer pela "aprendizagem
nos, promover a igualdade de oportunidades e a jus- autodirigida" e outras formas de "autoformação".
tiça é preciso reinventar a organização escolar e alte- Assiste-se, assim, a um processo sincrônico e recí-
rar os processos de trabalho de alunos e professores. proco de "destaylorização" das organizações e de
A escola torna-se um lugar de vida, uma "cidade polí- "destaylorização" das formações. Como notam Nelly
tica" (Ballion, 1998). Os alunos deixam de ser vistos Bousquet e Colette Grandgérard (1990:79), "nas or-
como consumidores de conhecimentos transmitidos ganizações do trabalho transformadas, o processo
pelos professores, tornando-se co-produtores dos de mudança, de modernização, torna-se em si mes-
saberes necessários ao seu crescimento e desenvol- mo um processo de formação, pondo Fim a uma con-
vimento. Os professores tornam-se, cada vez mais, cepção demasiado estreita e tradicionalmente es-
gestores de situações educativas. O professor já não é colar de formação, que se limitaria às situações for-
o que transmite conhecimentos aos alunos, mas o que mais de aquisição de conhecimentos".
cria as condições necessárias para que estes apren- É no contexto dessas três mudanças que se si-
dam. Ele é, portanto, um organizador e um tua a minha intervenção, subordinada ao tema "da
disponibilizador de recursos, em conjunto com os formação de professores à formação das escolas".
colegas ou outros técnicos de educação e em Com ela pretendo pôr em evidência o isomorfismo
interação com outras instituições educativas. que deve existir entre "práticas de ensino", "mode-
No segundo caso, as mudanças vão no sentido los de formação" e "modos de gestão".
de reconhecer as organizações como construções Numa primeira parte, irei analisar o paralelismo
sociais e os seus membros como atores estratégicos existente entre a evolução dos modos de organiza-
capazes de cálculo e escolha. A atividade de traba- ção e dos modos de formação.
lho deixa de ser vista unicamente como um lugar de Numa segunda parte, aplicando às escolas o
execução (Moisan, 1993) e passa a ser vista como conceito de "organizações aprendentes", irei subli-
um "sistema concreto de ação" (Crozier e Friedberg, nhar a necessidade de incluir as práticas de forma-
1977; Friedberg, 1995). Nesse sentido, para que a ção na própria organização do trabalho dos profes-
mudança possa ocorrer numa organização não só é sores e nas funções da gestão escolar.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
tirar lições dos seus êxitos e dos seus erros do aprendizagem em equipe, autonomia, novos
passado, empreender certas experiências e em- estilos de liderança".
penhar-se numa inovação permanente. No É nessa perspectiva que se radicam, por
mundo acadêmico, como no mundo do traba- exemplo, várias formas de organização do tra-
lho, a aprendizagem organizacional, ou (o que balho que começam a ser divulgadas como "as
não é bem a mesma coisa) a "organização apta à equipes autogeridas", "os círculos de qualida-
aprendizagem", tornou-se uma idéia corrente de" etc.
(Schon, 1990: 220).
Outro exemplo da importância que o "sa-
ber" tem na concepção de novas formas
Para isso, como diz o mesmo autor (recor-
organizacionais nas empresas e na sua gestão é
dando os contributos que a perspectiva
dado por Handy (1989) e pelo seu modelo de
"sociotécnica" trouxe a este conceito de "orga-
"organização do triplo I".
nização apta à aprendizagem"), é preciso que
Segundo esse autor, a nova fórmula do su-
se desenvolvam processos de participação co-
cesso e da eficácia das companhias do futuro
letiva pelos quais grupos de indivíduos, em es-
reside na capacidade de os trabalhadores usa-
pecial assalariados, desenvolvam novos esque-
rem a sua /indigência para analisar a /nforma-
mas de trabalho, novas perspectivas de carrei-
ção adequada, com o fim de gerar /déias para
ra, capazes de melhor articular a sua vida fami-
novos produtos e novos serviços. Inteligência,
liar e a sua vida profissional. Desse ponto de
Informação e Idéias constituem assim, para
vista, afirma Schon, "são os indivíduos, os as-
Handy, o primado do capital intelectual nas
salariados e os seus superiores hierárquicos,
novas organizações.
que podem e devem aprender a reconcei-
tualizar o seu trabalho, e são os gestores de alto Como sublinha Burnes, ao comentar essa
nível que devem aprender a criar os contextos "fórmula" de Handy, nessas organizações será
adequados" (1990: 220). necessário dedicar mais tempo e esforço à
aprendizagem e ao estudo, em todos os níveis:
Nesse sentido podemos dizer com Koenig
"as novas organizações serão sociedades dinâ-
(1994) que as organizações aprendem por meio
micas e interativas onde a informação está aber-
de um "fenômeno coletivo de aquisição e ela-
ta a todos, sendo recebida e fornecida livremen-
boração de competências que, de um modo
te. Na organização do 'triplo V espera-se que
mais ou menos profundo e perdurável, modifi-
toda a gente seja capaz de pensar e aprender
ca não só a gestão como as próprias situações
tão bem como fazer" (Burnes, 1992: 77).
em que ela se desenrola".
Para que as organizações aprendam é pre-
ciso desenvolver diversas atividades de traba- A "destaylorização"
lho coletivo que passam, no dizer de Garvin
(1993), por: resolução sistemática dos proble-
das formações
mas; experimentação com novos enfoques; Como se vê, a evolução recente nas teorias
aprender com a sua própria experiência e his- das organizações, bem como nos princípios e
tória passada; aprender com as melhores expe- práticas de gestão, constituem um contexto fa-
riências e práticas dos outros; transferir rápida vorável à busca de novos modelos e práticas de
e eficientemente o conhecimento para toda a formação.
organização. Assiste-se assim, cada vez mais, a uma in-
Mas, como assinala Bolívar (2000), "as orga- tegração entre o campo da formação e o campo
nizações de aprendizagem não surgem do nada. da organização, o que leva a uma articulação (ou
São fruto de um conjunto de atitudes, compro- mesmo simbiose) das situações de formação
missos, processos e estratégias que têm de ser com as situações de trabalho.
cultivados. Por isso é preciso construir um am- Uma das perspectivas que mais tem favore-
biente que favoreça as aprendizagens em con- cido essa integração é a que encara a formação
junto: tempo para reflexão, visão partilhada, como um investimento produtivo, integrada na
decisão política e na estratégia geral da empre- autodirigida" e outras formas de "autoformação'.
sa (Jobert, 1987). Assiste-se, assim, a um processo sincrônico
Como assinala Le Boterf (1988), os planos e recíproco de "destaylorização" das organiza-
de formação tendem a articular-se estreitamen- ções e de "destaylorização" das formações.
te com o plano estratégico da empresa e orien- C o m o n o t a m Nelly B o u s q u e t e C o l e t t e
tam-se para a resolução de problemas e reali- Grandgérard (1990: 79):
zação de projetos.
Nesse sentido torna-se necessário identifi- Nas organizações do trabalho transformadas, o
car nas empresas as "situações-problemas" que processo de mudança, de modernização, torna-
são suscetíveis de tratamento educativo. se em si mesmo um processo de formação, pon-
Viallet (1987) identifica as seguintes: proble- do fim a uma concepção demasiado estreita e
mas ligados à gestão de topo; problemas pró- tradicionalmente escolar de formação, que se
prios das unidades de trabalho; o estado das limitaria às situações formais de aquisição de
conhecimentos. A formação é entendida como
equipes; o profissionalismo do pessoal; o ser-
uma dinâmica global que faz apelo a conteúdos
viço prestado ao consumidor; o futuro profis-
formalizados organizados em situações clássi-
sional dos assalariados.
cas de aprendizagem ou em situações de traba-
Mas, para esse autor, o objetivo dessa for- lho, mas também a conteúdos mais difusos li-
mação centrada na resolução de problemas não gados à evolução das tarefas, a uma maior dele-
é o de propor um sistema novo que venha subs- gação da responsabilidade, à associação à vida
tituir o anterior, mas, pelo contrário, "está ori- da empresa etc.
entada para a procura de soluções pelos pró-
prios atores, cada um com a sua forma de inte-
ligência, e que por contributos sucintos estão A formação de professores
em condição de reparar os defeitos dos siste- Como é evidente, todas essas transforma-
mas em que vivem" (Viallet, 1987: 153). ções no domínio da formação contínua de adul-
A modalidade de formação que é desenvol- tos e nas suas organizações de trabalho tiveram
vida, nesse contexto, é aquilo que alguns auto- naturais conseqüências na formação de profes-
res c h a m a m de "formação-ação". Essa modali- sores:
dade de formação "apresenta-se como um pro- • Por um lado, reforça-se a idéia de que os
cesso de resolução de problemas que associa os modelos de formação de professores têm de
atores que são afetados por eles" (Jobert, 1987: estar orientados para a m u d a n ç a dos com-
27) e que integra, simultaneamente, as dimen- p o r t a m e n t o s e das práticas, o que exige um
sões formação, investigação e ação (Boterf, trabalho simultâneo sobre a pessoa do pro-
1988). fessor, sobre o seu universo simbólico e so-
Essas e outras práticas de formação que se bre as suas representações, mas t a m b é m
desenvolvem no interior das próprias organi- s o b r e os s e u s c o n t e x t o s de t r a b a l h o e o
zações (ainda que não confinadas aos seus es- m o d o como se apropria deles (perspectiva
paços e aos saberes) constituem um claro exem- crítico - reflexiva).
plo da e m e r g ê n c i a de novos p a r a d i g m a s no • Por outro lado, as escolas são consideradas
campo da educação de adultos em geral, que como lugares de formação por excelência,
tem claros pontos de contato com o que se ob- o que está na origem dos modelos de "for-
servou no estudo das organizações e na gestão. m a ç ã o c e n t r a d a na escola" (perspectiva
experiencial).
É nesse contexto que na formação contínua
de adultos se valoriza cada vez mais as modali- Essa evolução da formação de professores
dades que favorecem a capacidade de os atores, inverte a posição tradicional como era vista a
nas organizações, "produzirem" o seu próprio co- relação entre a formação de professores e a mu-
nhecimento, quer seja pelos "métodos autobio- dança das escolas.
gráficos" e o u t r a s f o r m a s de " f o r m a ç ã o Já não se trata de, primeiro, formar profes-
experiencial", quer por meio da "aprendizagem sores, para que depois eles possam aplicar o que
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
A formação de professores
polivalentes do Ensino Fundamental
no Brasil e na França:
balanço, perspectivas
Jean Hebrard
Ministério da Educação Nacional/EHESS/Paris/França
Resumo
A formação dos professores deve hoje fazer concernem à evolução da educação em âm-
frente a missões complexas e freqüentemente con- bito mundial. É nessa perspectiva que tenta-
traditórias. No entanto, ela é o instrumento decisi- rei comparar aqui as grandes evoluções das
vo para o sucesso das evoluções em curso. Tentar políticas de formação em dois países que co-
definir as suas restrições implica situá-la nos con- nheço bem, mas que são, evidentemente,
textos políticos de onde ela nasceu. A partir dessa muito diferentes, pelo seu tamanho, pelas
análise, torna-se possível revisar as suas grandes
suas organizações políticas e administrativas,
problemáticas nas etapas anteriores da evolução
pelas suas histórias, pelos desafios aos quais
de nossos sistemas educativos. Dentro dessa pers-
pectiva, a comparação entre o Brasil e a França é se vêem confrontados: o Brasil e a França.
particularmente esclarecedora. Limitar-me-ei a evocar apenas alguns dos
problemas que me parecem ser comuns: as ra-
zões da emergência de uma exigência crescen-
As políticas de recrutamento e de forma- te de formação, as dificuldades que esses paí-
ção dos professores das escolas de Ensino ses encontram para articular formação acadê-
Fundamental têm evoluído muito na maioria mica e formação profissional, as contradições
dos países nestes últimos anos. A Declaração que nascem das delicadas relações entre forma-
de Jomtiem, no final da década de 1980, tem ção inicial, formação continuada e pesquisa em
contribuído para essa evolução, que afetou a educação. No entanto, é importante, em primei-
maioria dos países s i g n a t á r i o s . O mesmo ro lugar, situar bem os contextos nos quais es-
aconteceu com aqueles países agrupados na sas problemáticas estão enraizadas.
OCDE, os quais aceitam as avaliações e as di-
retrizes desse organismo i n t e r n a c i o n a l . O re-
latório que a Comissão Jacques Delors reme-
teu à Unesco em 1996 reforçou essas orienta-
0 contexto político e social
ções. Certamente, essas profundas modifica- das novas exigências
ções produziram-se em países cujos passados,
de formação no Brasil
em matéria de educação, eram muito diferen-
tes. Assim sendo, cada um encontrou-se dian- e na França
te de tarefas específicas. Entretanto, não se- Desde a última guerra mundial, os nossos
ria inútil tentar fazer um comparativo dessas dois países têm conhecido, quase que no mes-
evoluções, ainda que estas possuam um gran- mo momento, períodos de forte crescimento
de contraste, pois, por trás das políticas apa- econômico que foram acompanhados por uma
rentemente diferentes, inclusive opostas, si- intensificação do êxodo rural e do desenvolvi-
tuam-se problemas freqüentemente simila- mento rápido dos empregos urbanos (cresci-
res, bem como tendências de fundo que mento do setor terciário). Ora, os nossos dois
países tinham herdado do século XIX sistemas tamente satisfizeram os meios católicos, mas não
educativos duais, pouco adaptados à formação permitiram que o ensino público, único suscetí-
desses novos atores da vida econômica: um en- vel de alfabetizar milhões de crianças das famí-
sino primário (universalizado na França, por lias mais desfavorecidas, encontrasse, no Brasil,
muito tempo lacunar no Brasil) destinado à al- a imagem que deveria ter sido a sua. É interes-
fabetização limitada da maior parte da popula- sante ressaltar que, entre o regime de Vargas e o
ção, um ensino secundário e superior (para os regime militar, no momento em que tudo, de
quais a França serviu amplamente de modelo, novo, voltaria a tornar-se possível, os meios mais
particularmente como pioneira da école influentes do Brasil (em particular, os intelectu-
nouvelle - escola nova - nos anos 1920-1930) ais) tenham escolhido apoiar um sistema dual
destinado à formação das elites recrutadas no (público/privado) mais do que um sistema pú-
meio das classes burguesas urbanas. blico universalizado. A partir daí, e até um perí-
No melhor dos casos, o pólo secundário 1 só odo muito recente, a qualidade do ensino públi-
escolarizava entre 2 e 3% da população, mas, co não foi um problema prioritário no Brasil, na
em geral, o fazia visando à excelência. A forma- medida em que as classes em ascensão social
ção dos seus professores colocava poucos pro- (que cresciam com o nascimento de uma classe
blemas, na medida em que dizia respeito a po- média muito ativa) tinham à sua disposição um
pulações culturalmente homogêneas. Forma- ensino privado de qualidade que havia tomado
dores universitários (responsáveis pela prepa- o lugar do sistema secundário público no mo-
ração para as licenciaturas de ensino), profes- mento em que este tinha começado a crescer e,
sores e alunos do secundário possuíam as mes- portanto, a perder seu caráter elitista.
mas origens culturais, dedicavam-se às mesmas Na França, a lei da obrigatoriedade escolar
leituras, compartilhavam as mesmas discus- de 1882 foi, muito cedo, respeitada. daí resul-
sões. A licenciatura para o ensino, uma forma- tou um sistema público certamente ignorado
ção acadêmica de prestígio, era suficiente para pelas elites, mas muito presente no espaço pú-
legitimar os professores desse nível. blico e dotado de uma imagem muito poderosa.
Porém o pólo primário, por sua vez, conhe- As escolas normais transformaram-se em cen-
ceu, nos nossos dois países, sortes muito tros de formação, respeitados na medida em que
díspares. No Brasil, foi considerado, durante as primeiras constituíam um instrumento de
muito tempo, como algo acessório e abandona- ascensão social das camadas populares (um fi-
do à boa vontade das autoridades municipais ou lho de camponês podia, pela escola normal, che-
à dos estados da f e d e r a ç ã o . O resultado foi a gar a ser professor do ensino primário; seu filho
constatação de situações totalmente díspares tinha grandes possibilidades de incorporar-se ao
que nenhuma organização federal, até estes úl- sistema secundário para nele tornar-se profes-
timos anos, veio a c o r r i g i r . O status dos profes- sor; e, com isso, seu neto podia ascender a car-
sores, seu nível de recrutamento e sua formação reiras que antes tinham acesso reservado, tais
permaneceram, durante muito tempo, anárqui- como Direito ou Medicina). Todavia, não é certo
cos. Apenas os estados mais ricos souberam que essas escolas normais tenham preservado
criar, graças a escolas normais estreitamente sempre a qualidade da formação. Sabemos que,
integradas na vida política e cultural, um na França, apenas a metade dos professores do
movimento de confiança na escola pública que ensino primário foi formada nas escolas nor-
poderia ter permitido ao Brasil avançar mais ra- mais, a outra metade entrou na profissão certa-
pidamente rumo a soluções eficazes. No mo- mente com um nível de qualificação equivalen-
mento decisivo, as arbitragens do regime de Ge- te (o brevet, ou seja, diploma de fim do Ensino
túlio Vargas em favor da liberdade de ensino cer- Fundamental até 1945 e, depois, com o
1
Na França, o ensino secundário recrutava seus alunos desde os 7 ou 8 anos de idade naquilo que se denominava petits lycées, permitindo,
assim, que as famílias burguesas evitassem as escolas comuns, as quais faziam parte da rede do ensino primário.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
baccaleuréat), porém sem a menor formação. urbano (desde 1954, mais de 50% das comunas
É depois da última guerra mundial e com o possuem mais de 2.000 habitantes). É, portan-
crescimento econômico que caracteriza esse to, nessa interface entre mundo rural e mundo
período que profundas transformações sociais urbano que as necessidades por educação se
vêm afetar os nossos dois países e contribuem tornam as mais sensíveis: o nível primário
para modificar profundamente nossos sistemas mune-se de uma prolongação (o curso comple-
e d u c a t i v o s . O nascimento das classes sociais mentar), que conduz os alunos até o nível do
"médias", produzidas pelo crescimento do setor cours moyen (séries finais do Ensino Fundamen-
terciário das economias, e o aumento do papel tal). Essa profunda evolução que, na França,
dos executivos nas empresas criam novos reque- constitui o verdadeiro motor da democratiza-
rimentos de ensino. No Brasil, o regime militar ção do ensino, se faz com os professores
escolhe a rede de escolas privadas para oferecer polivalentes das escolas primárias e sem a mí-
às famílias preocupadas com a ascensão social o nima formação. Nesse período, o crescimento
instrumento que lhes permitirá promover a for- demográfico é tão forte que ele interdita toda
mação de seus filhos no nível exigido pelo rápi- ação voluntarista de formação: a duras penas
do crescimento de uma economia urbana em encontram-se os professores necessários para
pleno desenvolvimento. Assim, com esse instru- serem instalados na frente dos alunos, e não é
mento, as famílias encontrarão aquilo que pro- raro encontrar um recém-egresso do ensino se-
curam prioritariamente: nem tanto pedagogias cundário, três meses após os exames de final de
renovadas, mas um ambiente social preservado, curso (com 17 ou 18 anos de idade), ensinando
que, a seus olhos, é mais a criação do contexto uma turma do ensino primário. Aliás, é duran-
do qual seus filhos têm necessidade para ter su- te esse período que se inventa uma nova fun-
cesso na escola e para se incorporarem às ma- ção no sistema educativo: o orientador peda-
neiras de viver das elites. É interessante salien- gógico, um professor do primário, experimen-
tar que as classes médias, tanto no Brasil quanto tado, que é encarregado de fazer o acompanha-
na França, sempre acharam que as formas mais mento dos professores recentemente nomea-
clássicas de ensino (ou seja, aquelas que são her- dos, sem formação.
dadas do antigo ensino secundário elitista) são A partir da V República (1958), desenha-se
as mais eficazes. A formação de professores sur- uma nova p o l í t i c a . O general De Gaulle está
ge, nas escolas privadas, como um problema se- convencido de que a escola pública pode for-
cundário com respeito à preservação de uma necer os quadros médios de que o país necessi-
homogeneidade social percebida como o prin- ta. Ele opta, então, por transformar a rede de
cipal instrumento da educação. De forma para- cursos complementares (assistida por mestres
lela, o ensino público, abandonado pelas classes polivalentes do ensino primário) numa verda-
médias, torna-se, progressivamente, na opinião deira rede de ensino secundário (assistida por
delas, um ensino de menor valor e para o qual professores especializados egressos do secun-
não é necessário aumentar a despesa pública.: dário).' Essa reforma, que seria progressiva-
Na França, durante o mesmo período, o mente implantada, terminaria após sua morte,
crescimento econômico produz uma primeira em 1975. Ela é conhecida sob a denominação
transformação. Desde então, de país eminen- "reforma do colegial único". Visava reconstruir
temente rural, a França se transforma num país um sistema público obrigatório unificado (dos
• Essa análise tem de ser mais elaborada. Em função dos estados e dos municípios, constata-se que o ensino público pôde ser, durante esse
período, mais ou menos preservado, oferecendo assim, durante estes últimos anos, as bases mais ou menos sólidas para a sua renovação.
3
É interessante ressaltar que essa transformação se produz tendo, como pano de fundo, uma luta sindical tão forte que e inscreve na Guerra Fria:
os sindicatos do ensino primário francês são majoritariamente reformistas (ligados à social-democracia, representada na França pelo Partido
Socialista), os sindicatos do ensino secundário são, pelo contrário, majoritariamente revolucionários (e, portanto, muito ligados ao Partido
Comunista). A reforma gaulista vem então em apoio dos sindicatos comunistas e produz, em permanência, a minoração dos sindicatos reforma-
dos (essa política há de lembrar a posição muito especifica da diplomacia da gestão de De Gaulle durante a Guerra Fria).
6 aos 16 anos), que incluía duas etapas: uma de sua disciplina (principalmente na Matemá-
escola primária (dos 6 aos 11 anos) e um cole- tica, em Ciências, na Lingüística, na Literatu-
gial (de 11 aos 16 a n o s ) . O sistema dual, herda- ra). Paralelamente, esse movimento se vê for-
do do século XIX, foi aparentemente suprimi- talecido pela implantação de uma formação
do. Com efeito, durante o mesmo período, o sis- continuada da qual muito se espera, em parti-
tema de ensino católico privado se viu cular, para os professores do colegial. De fato,
grandemente fortalecido (os salários são res- se as escolas normais se renovam, o mesmo não
ponsabilidade do Estado, com a condição de acontece com os setores universitários que for-
que a escola respeite o currículo público), ofe- mam em licenciaturas, docentes para os quais
recendo, assim, às famílias uma alternativa ao a Pedagogia continua sendo uma disciplina pri-
ensino público, de forma semelhante ao que mária e que estão convencidos de que um pro-
aconteceu com as escolas privadas no Brasil. fessor especializado deve, acima de tudo, co-
Além disso, a segregação geográfica que preva- nhecer bem o que e n s i n a . O Ministério da Edu-
lece no novo urbanismo contribui rapidamen- cação francês, então, decide não atrapalhar es-
te para distinguir, de um lado, as escolas e colé- sas sensibilidades e apoiar a formação conti-
gios dos bairros burgueses dos centros das ci- nuada mais do que a formação inicial universi-
dades e, do outro, as escolas e os colégios mui- tária, e cria, nos colégios, a competência peda-
to populares nas novas periferias urbanas, onde gógica necessária para a acolhida de novos pú-
as moradias de baixo custo (tanto imóveis bai- blicos oriundos dos meios populares.
xos e alongados, quanto edifícios altos) concen- Num segundo momento, quando a esquer-
tram as populações de imigrantes que, por sua da socialista assume a direção do governo, a
vez, vêm reforçar o crescimento. partir de 1981, uma série de importantes refor-
É por ocasião dessa importante transforma- mas conduz à necessidade de repensar a forma-
ção que todo o sistema de formação francês é ção. A nova política educativa encontra sua ex-
repensado. Num primeiro momento (de 1969 a pressão legislativa na lei de orientação de 1989,
1981), quando a direita permanece no poder que prevê uma formação longa, de massas, e
após os acontecimentos de 1968 e a saída do exige que nenhuma criança saia do sistema edu-
general De Gaulle, as escolas normais são com- cativo, após 16 anos de escolaridade, sem ao
pletamente reformadas. Até então, elas visavam menos uma qualificação de nível V (qualifica-
propiciar a alunos oriundos dos meios popula- ção profissional), e que pelo menos 80% de cada
res a formação acadêmica à qual não poderiam geração tenha acesso ao nível IV (que conduz
ter pretendido (elas preparavam, essencialmen- ao diploma de ensino secundário geral ou ao
te, para a obtenção do diploma de estudos se- diploma do ensino secundário profissional). A
cundários). A formação profissional estava li- lei também prevê um reajuste dos salários dos
mitada à descoberta dos instrumentos simples professores (todos os professores do primário
do ofício: livros escolares, técnicas da discipli- e do secundário - escola maternal, escola de En-
na. A partir de 1969, tais escolas centram-se sino Fundamental, colegial, liceu - serão recru-
apenas na formação profissional. É preciso in- tados ao nível de licenciatura - três anos de for-
ventar novas didáticas e novas pedagogias. A mação universitária - e receberão uma forma-
época era propícia. A educação é um dos temas ção profissional durante dois anos nos Institu-
mais trabalhados pelos movimentos que nas- tos de Formação dos Mestres - IUFM). Por últi-
ceram por todo o mundo durante os anos 1960. mo, a lei prevê um importante dispositivo de
É o papel dos novos professores da escola nor- avaliação nacional que engloba toda a escola-
mal e, também, dos departamentos de ciências ridade obrigatória, bem como uma profunda
da educação criados nas universidades (mais transformação da estrutura curricular (ciclos de
centrados na formação de adultos e, portanto, três anos), cujo objetivo é o de eliminar as
na formação de formadores). É também o pa- repetências e comprometer os professores
pel, na universidade, de alguns pesquisadores, numa pedagogia mais diferenciada. O domínio
em minoria, que optam por explorar a didática da linguagem oral e da escrita transforma-se no
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
âmago de todos os aprendizados. Por último, tar a uma formação longa para todos os alu-
realiza-se um esforço muito grande para alon- nos - demandam uma vontade política tão for-
gar a duração da Educação Infantil (que perma- te que se arrisca a tropeçar, com a dispersão
nece sendo não-obrigatória): 4 desde o final dos dos meios e dos esforços, num sistema de es-
anos 1980, a totalidade dos alunos de 4 e 5 anos cola fundamental mais desbaratado, na medi-
se encontram escolarizados; no final dos anos da em que é crescentemente municipalizado.
1990, são todas as crianças com 3 anos de ida- Os Cefam(s), criados experimentalmente em
de que são acolhidas e, hoje, metade das crian- alguns estados em 1983, e que vão estender-se
ças de 2 anos de idade toma o caminho da es- progressivamente ao longo de toda a década,
cola. As necessidades de formação explodem. tentam responder a todas as exigências ao mes-
mo inicialmente
O IUFM, tempo. Lamentavelmente, as escolhas
encarregado apenas da fei-
formação inicial e, depois, a partir de 1999, da tas anteriormente conduzem à coexistência de
formação inicial e continuada, tem de inventar realidades escolares totalmente heterogêneas.
novos dispositivos de formação. Para a forma- O Brasil do i
ção inicial, os Institutos caracterizam-se pela de diversos sistemas escolares que coabitam em
sucessão de um primeiro ano que visa dotar espaços diferentes (oposição norte/sul) ou, às
cada estudante com uma "alfabetização profis- vezes, nos mesmos espaços (em particular, as
sional" séria, ou seja, com uma capacidade de megalópoles) e que incluem tanto o ensino pri-
ler com folga toda a literatura profissional e de vado quanto o ensino público. Satisfazer ao
escrever os principais tipos de textos necessá- mesmo tempo todas as necessidades, com as
rios para o exercício da profissão. É no fim des- restrições dos financiamentos disponíveis, num
se primeiro ano que um concurso irá selecio- momento em que a inflação interdita as ações
nar os estudantes do segundo ano, que se trans- de longo prazo, leva numerosos estados a orga-
formam em funcionários públicos estagiários. nizar seus próprios dispositivos, ao mesmo
tempo
O segundo ano queé buscam,
dedicadofora do Brasil,
a perfazer a os financia-
polivalência dos jovens mestres e, por meio de mentos necessários (FMI, Banco Mundial etc).
uma série de estágios, dos quais diversos com a Segundo o estado federado concernente, é um
efetiva responsabilidade pelo ofício, a iniciá-los ou outro objetivo que é prioritariamente visa-
nas práticas da ocupação, em contato com os do: valorização do antigo Magistério, utilização
"professores-formadores" (professores experi- de fundações que assumem a responsabilidade
entes, parcialmente desobrigados da turma). por programas de formação continuada, cria-
Por sua vez, a formação continuada, que é efe- ção de institutos estaduais, desenvolvimento de
tivada ao mesmo tempo pelos inspetores das institutos universitários especializados etc.
circunscrições e pelo IUFM, visa essencialmen- Paralelamente, assiste-se, na opinião públi-
te a fazer ingressar todos os professores na nova ca, a uma forte valorização da escola pública
pedagogia definida pela lei de orientação. (graças, em particular, aos movimentos
É só no final dos anos 1980 que o Brasil, associativos, sindicais ou políticos, sejam eles
como conseqüência de importantes mudanças de origem católica ou marxista). Entretanto, o
políticas que o país conhece e da promulgação projeto de reunificação de ambos os sistemas
de sua nova Constituição (1988), se encontra (privado e público) é raramente levantado, e as
realmente diante das opções políticas comple- classes médias, sempre crescentes, continuam
xas com as quais os países da Europa (em parti- a pensar que é preferível um sistema dual.
cular, a França) já se haviam confrontado. As Quando ele é formulado, o compromisso em
duas exigências - de universalizar a alfabetiza- favor das escolas públicas (mesmo naqueles
ção de base e de fazer passar a totalidade do sis- estados onde são os municípios que realmente
tema educativo de uma alfabetização elemen- mantiveram esse setor) continua sendo um ob-
* Na França, a escolaridade obrigatória começa aos 6 anos de idade (primeiro ano da escola elementar), e não à idade de 7. como no Brasil.
jetivo em atenção às classes mais desfavoreci- um observador estrangeiro como eu, a necessi-
das, mais do que uma opção pessoal de educa- dade de formação, que tinha crescido de manei-
ção para seus próprios filhos. ra importante durante a primeira parte do decê-
Assim sendo, a exigência de formação defi- nio, mas que permanecia pulverizada entre a
ne-se de maneira bastante complexa. Ela pode multiplicidade de parceiros que estavam a car-
visar à melhoria das competências profissionais go dela e sujeita à boa vontade das
dos professores em exercício, já possuidores de municipalidades ou dos estados, aparece, cada
uma boa formação inicial (em geral, o Magisté- vez mais, como uma necessidade absoluta. Ela
rio) e dos quais se espera que sejam os media- dispõe dos instrumentos (os PCN) que tornam
dores entre o Ensino Fundamental tradicional e possível sua organização clara, visando objeti-
um ensino modernizado suscetível de favorecer vos explícitos. O debate nacional que cresceu em
uma escolarização longa e aberta para o gina- torno dos Parâmetros Curriculares permitiu, de
sial. Pode-se visar também à formação inicial de fato, que os múltiplos participantes que intervêm
jovens professores que irão, imediatamente de- na formação chegassem a um consenso (certa-
pois, desempenhar esse papel. Pode-se, ainda, mente, não foi fácil) e que pudessem, depois,
tentar propiciar aos professores menos forma- apoiar-se num texto amplamente aprovado para
dos (professores leigos) a base mínima a que eles pensar, de uma maneira mais uniforme do que
deveriam ter tido direito. Mas, ao mesmo tem- no passado, o que podia ser a formação/ A faça-
po, tem-se de recrutar professores para abrir es- nha efetuada nesse caso pelo governo federal foi
colas naqueles lugares em que nunca existiram a de criar uma representação suficientemente
(ou de onde há muito desapareceram), sabendo clara e poderosa dos objetivos da educação, para
que terão poucas probabilidades de receber um que ela pudesse ser aceita, sem reserva, pelos
salário equivalente ao salário mínimo. É claro estados e municípios e também por instituições
que o Plano Decenal de Educação para Todos, tais como as universidades e ONGs. A muni-
que responde, em 1993, ao engajamento do Bra- cipalização do Ensino Fundamental, que se ace-
sil à Conferência de Jomtiem, está especialmen- lerou durante esses mesmos anos, seguiu no
te atento a todas essas dimensões da formação; mesmo sentido, criando uma ligação direta, nova
dispõe, porém, de poucos meios de incorporar no Brasil, entre os municípios e o governo fede-
os municípios ou, até, os estados federados que ral que, acima das disparidades nacionais, ori-
demonstram as maiores necessidades dentro enta-se no sentido de uma maior unificação da
dessa difícil dinâmica. É certo que o esforço fei- política educacional brasileira e, portanto, faci-
to no âmbito do governo federal, nos anos se- lita o processo de formação.
guintes (LDB de 1996), para traçar mais especi-
Certamente, a complexidade da iniciativa
ficamente as grandes orientações (graças, em
brasileira ainda subsiste. À imensa iniciativa de
particular, aos PCN), para controlar de maneira
elevar o nível dos professores com menos for-
mais firme as alocações financeiras para os mu-
mação vem se acrescentar a iniciativa igual-
nicípios mais pobres e criar os meios para um
mente importante de reorientação das práti-
reajuste dos salários dos professores (graças ao
cas educativas capazes de fazer do sistema
Fundef), bem como para exigir uma progressiva
educacional público brasileiro um sistema de
homogeneização do recrutamento e da forma-
formação de massas, que conduza cada crian-
ção (ao nível superior), torna possível o que não
ça ao nível de uma alfabetização do tipo se-
era, na primeira metade da década dos 1990. Para
cundário (autonomia no uso da escrita, utili-
Na França, foi preciso esperar até o ano de 2001 para que parâmetros curriculares fossem elaborados no modelo brasileiro. Até
aí, a França produzia apenas "programas" que definiam os conteúdos de conhecimento a serem adquiridos, sem fornecer nenhu-
ma orientação acerca da organização dos aprendizados. Tendo tido a oportunidade de participar, na qualidade de especialista
internacional, da iniciativa brasileira, a experiência que obtive pôde ser reinvestida de forma muito útil na iniciativa francesa. Nas
negociações que se desenvolvem atualmente em torno desses programas, é possivel já enxergar que se reproduzem, na França,
os efeitos muito positivos que se produziram no Brasil, em particular, na área da formação inicial e continuada.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
zação da escrita para construir conhecimen- meio de aulas magistrais, das disciplinas de re-
tos). Pode-se ver também, dentro desse imen- ferência da educação: Sociologia, Psicologia, His-
so esforço de formação, as premissas de uma tória da Educação...). Inversamente, pode-se
nova valorização do Ensino Fundamental pú- propor, nas faculdades de educação ou nos
blico, suscetível de reincorporar uma parte das IUFM, um treinamento profissional que, em ou-
classes médias que dele se afastaram para, as- tra época, caracterizava as escolas normais. Pa-
sim, aceitar novamente correr o risco e ter in- rece ser necessário hoje redefinir de maneira
teresse por ele. mais precisa o que se entende por formação aca-
Dentro dessa nova exigência de formação dêmica e por formação profissional.
que caracteriza o atual estado dos sistemas edu- No que se refere aos professores polivalentes
cativos de nossos dois países, quais são os prin- do Ensino Fundamental, é possível imaginar a
cipais obstáculos que nos corresponde superar? formação como um processo que deve obriga-
toriamente comportar diversos e s t á g i o s . O pri-
meiro deles concerne à formação antes da es-
A articulação entre pecialização. Todos concordam hoje que ela
a formação acadêmica e a deve ser de nível universitário e conduzir o es-
tudante ao nível de uma licenciatura. De que,
formação profissional então, se trata? É importante que esse estágio
Com certeza, esse é o problema mais impor- seja visto como uma formação que permita ao
tante de toda formação inicial. Ele acontece na estudante dispor, numa área dada do saber, da
maioria dos países que recorrem a um recruta- capacidade de ler e escrever de maneira autô-
mento de professores de nível universitário. noma, ou seja, da capacidade de poder consti-
Devemos lembrar que essa evolução foi, em tuir práticas de leitura e de escritura suscetíveis
grande medida, ligada às críticas feitas às anti- de permitir a análise das produções de uma área
gas escolas normais: estas só produziam pro- do saber. Em geral, os universitários são exce-
fessores adaptados a metodologias rígidas, de- lentes acompanhantes para a aquisição dessa
finidas pelo uso restritivo de livros escolares competência, pois ela corresponde a uma de
simples demais para permitir a todos os alunos, suas principais atividades: a inquietude cientí-
sem exceção, ingressar numa alfabetização de fica na sua área e a elaboração de sínteses dos
êxito. Ao situar o recrutamento e a formação no conhecimentos disponíveis.
nível universitário, esperou-se propiciar a cada
o problema que aqui se coloca com os pro-
professor o domínio de sua competência pro-
fessores polivalentes do Ensino Fundamental é
fissional, isto é, a possibilidade de adaptar, de
aquele da transferência dessas competências
forma permanente, seus savoir-faire aos públi-
para a totalidade das áreas do conhecimento
cos que lhe fossem confiados. Ora, é amplamen-
relativas à escola primária. Por exemplo, será
te sabido que os professores que trabalham na
preciso propiciar licenciaturas polivalentes es-
universidade vêem sua carreira evoluir em fun-
pecíficas para os professores do Ensino Funda-
ção de suas competências de pesquisa e que
mental? Trata-se, de fato, de um falso proble-
eles têm a tendência natural para reproduzir
ma. A licenciatura permite adquirir atitudes
pesquisadores. A pergunta que se coloca então,
intelectuais mais do que uma especialização. A
em todos os nossos países, é a seguinte: será
área na qual se exercem essas atitudes deve ser
que, no caso, as competências de pesquisa são
suficientemente específica para que o estudan-
capazes de oferecer a um professor a possibili-
te tenha a possibilidade de assimilar as princi-
dade de dominar seu arcabouço profissional?
pais problemáticas, mas será preciso que, na
Por trás desse debate, em si muito acadêmi- maioria dos casos, ele espere pela pós-gradua-
co, escondem-se de fato práticas de formação ex- ção para adquirir um conhecimento realmente
tremamente diversificadas. Não é forçosamente científico de uma parte dessa área. A licencia-
entre os agentes universitários que se desenvol- tura universitária deve ser hoje concebida como
vem as ações mais acadêmicas (transmissão, por um mecanismo de aquisição de uma "alfabeti-
zação generalista" que se exerceu numa deter- sor a possibilidade de adaptar sua ocupação às
minada área do saber, mas que pode transferir- rápidas evoluções das missões que lhe são con-
se para outras á r e a s . O ideal seria que o estu- fiadas. Uma grande parte da formação continu-
dante licenciado pudesse ser um bom leitor de ada deve hoje ser confiada à escrita (seja ela
qualquer texto de divulgação, de qualquer cam- impressa ou informatizada).
po científico (por exemplo, páginas especia- o terceiro estágio de uma formação é o
lizadas dos grandes jornais e revistas). de acesso às práticas profissionais (formação
A partir daí, o segundo estágio da forma- inicial) ou de modificação das práticas pro-
ção, aquele de uma "alfabetização profissio- fissionais (formação continuada). Hoje sabe-
nal", articula-se diretamente com o primeiro. mos melhor que as atitudes profissionais de
Os institutos de formação, quaisquer que se- base só podem ser aprendidas no exercício
jam eles, têm de, como missão primeira, en- da profissão. Não há nenhum curso teórico
sinar aos seus estudantes em formação inicial que possa ensinar a um jovem professor a
a capacidade de ler qualquer documento pro- maneira de construir uma relação de autori-
fissional e de elaborar sínteses de qualquer dade com os seus alunos. Tal relação envol-
campo do conhecimento ligado à vida profis- ve milhares de ajustes, ao longo de uma hora
sional. Portanto, corresponde a esses institu- de aula, que constituem um mesmo número
tos selecionar as noções e os conceitos cuja de respostas a análises quase instantâneas de
aquisição é necessária para ingressar nessa s i t u a ç õ e s em evolução p e r m a n e n t e . A
literatura e, também, de estruturar as gran- ergonomia tenta atualmente abordar essa
des problemáticas que se situam no centro questão para múltiplas profissões, reconhe-
dos principais debates que aí se produzem. cendo, ao mesmo tempo, que, se se conse-
Esse é um trabalho muito específico, que tam- gue descrever esses processos especialistas,
bém pode envolver tanto os campos de co- ainda se está muito longe de saber como é
nhecimento a serem transmitidos (Lingüísti- que podemos transmiti-los de outra forma
ca, Matemática, História, Ciências, Literatu- que não seja pela repetição de tentativas, de
ra), quanto os processos de transmissão (psi- acertos e de erros. Sabe-se também que um
cologia, sociologia, didática dos aprendizados professor sem experiência raramente é capaz
e t c ) . O objetivo é de tornar o professor sus- de "ver", durante um estágio junto de um
cetível de trabalhar permanentemente com a mestre mais antigo, quais são os atos que
literatura profissional que se desenvolve na produzem os efeitos pretendidos. A prática
sua área, ou seja, torná-lo particularmente ca- profissional é um processo tão complexo que
paz de descobrir, apenas pela simples leitura supõe muitos anos de experiência antes de
da literatura profissional, as novas maneiras poder ser um pouco objetivada.
de pensar seu trabalho e, inclusive, de inven-
o que se tenta transmitir com maior fre-
tar práticas inovadoras.
qüência hoje em dia, tanto na formação inicial
É interessante constatar como os professores quanto na formação profissional, são os proce-
recrutados sem nível universitário, isto é, sem a dimentos mais estáveis da vida profissional,
primeira etapa de alfabetização, seja na França ou aqueles que, em geral, constituem os marcos do
no Brasil, raramente atingem essa autonomia ante trabalho. É assim que, nos IUFM franceses,
a literatura profissional e ficam, em grande me- grande parte da formação profissional consiste
dida, dependentes de modelos de transmissão de em ensinar aos estudantes do segundo ano a
conhecimentos que não resultam da cultura es- arte de escrever uma "preparação", isto é, o pre-
crita. Eles têm necessidade de ver fazer e de ouvir visível desenrolar de uma seqüência de apren-
dizer. Eles não sabem identificar, a partir de uma dizagem. É interessante observar que os profes-
leitura, aquelas ações profissionais que, de outro sores que ensinam esse savoir-faire são, em ge-
modo, poderiam efetuar. ral, professores especialistas numa disciplina
Essa dupla alfabetização (geral e profissio- (um matemático ensina a arte de fazer prepa-
nal) é a única capaz de oferecer a cada profes- rações de Matemática), enquanto o estudante
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
permanece sendo p o l i v a l e n t e . O resultado mais lisar os efeitos desse novo dispositivo sobre os
freqüente são profundas defasagens entre a alunos e para estabelecer as etapas sucessivas.
tecnicidade pretendida pelo professor e as com- Esses procedimentos de formação também
petências disponíveis no estudante. Ainda as- supõem, por um lado, mestres capazes de as-
sim, esses marcos de trabalho são justamente similar rapidamente a literatura profissional
aqueles mais facilmente acessíveis na literatu- disponível sobre o tema explorado e, por ou-
ra profissional (nas revistas, nos manuais etc). tro, mestres que não se sintam perturbados
Pode-se, contudo, pressupor que, se um profes- pelas ações elementares do ofício. Podemos
sor adquiriu a capacidade de conceber instru- ver, então, que tais procedimentos têm mais
mentos desse tipo, ele será capaz de utilizar chances de ter êxito na formação continuada
melhor aqueles que achará em outro lugar, já do que na formação inicial.
elaborados. Esse é, portanto, um aspecto não- Em suma, é claro que a formação chamada "te-
desprezível da formação inicial. Ele deve ser órica" e a formação prática são hoje duas vias de
também um aspecto importante da formação trabalho que evoluem em paralelo. Seria talvez in-
continuada, quando surgem outros instrumen- teressante extrair disso todas as conseqüências, em
tos que não aqueles que constituem a cultura particular na medida em que nos interessarmos na
tradicional da profissão. formação dos formadores. Os "alfabetistas" respon-
Em geral, deposita-se confiança nos está- sáveis pela formação teórica não farão nunca o tra-
gios para efetivar a transmissão daquilo que al- balho dos práticos aguerridos (mestres-formado-
guns chamam de a "pedagogia invisível", ou res). Porém é crucial que eles sejam excelentes es-
seja, o conjunto de práticas da profissão que pecialistas da literatura profissional e que esta os
dizem respeito diretamente à perícia no ofício. remeta a realidades concretas nas quais terão ex-
Ora, devido à sua própria invisibilidade, essas periência. Com os universitários, a pesquisa per-
práticas não são transmissíveis nem nos está- mite freqüentemente obter uma experiência dire-
gios, nem em cursos teóricos. Os estágios em ta da vida das escolas e das turmas. Por sua vez, os
geral asseguram a formação num mínimo pro- mestres-formadores devem aprender a "falar" as
fissional vital, ou seja, algumas atitudes mais práticas invisíveis da profissão, de maneira a tor-
previsíveis da profissão. Eles são, certamente, nar possível compartilhar as experiências direta-
uma contribuição essencial, mas muito insu- mente vividas nas aulas. É essencial que eles per-
ficiente. Sabemos hoje que a formação para a maneçam, para uma parte importante do seu tra-
especialização depende do acompanhamento balho, como professores responsáveis de uma tur-
profissional em início de carreira e foge, por- ma. Essa é, para eles, a única forma de criar as con-
tanto, com maior freqüência, aos institutos de dições desse intercâmbio sobre a qualificação para
formação inicial. Alguns centros universitários a profissão.
especializados e algumas ONGs, no Brasil, fi- Uma das evoluções mais recentes das fun-
xaram-se como objetivo o de explorar essas no- ções do professor é aquela que consiste em
vas vias de formação. Na França, elas depen- confiar a ele menos a condução da seqüência
dem daquilo que se chama "dinâmica na cir- didática (que, com certeza, no futuro será
cunscrição" {animation en circonscription) e confiada a uma máquina) do que a interação
são colocadas sob a responsabilidade do ins- com o aluno singular ao longo de sua tarefa.
petor da circunscrição e da sua equipe de for- A qualidade da interação (análise do erro, re-
madores (em geral, dois a três mestres-forma- tomada da aprendizagem, explicitação das di-
dores). As práticas mais freqüentes consistem ficuldades, diálogo didático) certamente se
em colocar um grupo de professores diante de tornará o ponto mais crucial da formação, se
um dispositivo didático inovador. A primeira é que se deseja ter profissionais capazes de
fase é, portanto, uma fase de concepção de uma verdadeira diferenciação em sua ação.
preparos; posteriormente, numa segunda eta- Por enquanto, não sabemos como é que se
pa, a prática consiste em contatar esses mes- adquire esse tipo de qualificação num proces-
mos professores de maneira regular, para ana- so de formação.
A articulação entre a a pesquisa seja a melhor via de acesso para a
9
qualificação esperada. A França, de maneira to-
formação inicial, a formação talmente experimental, está em via de explorar
a possibilidade de fazer evoluir o status de mes-
continuada e a pesquisa em tre-formador1 para responder a essas exigências.
educação A Universidade de Clermont-Ferrand inaugurou
9
um sistema de formação de mestres-formado-
A articulação entre a formação inicial e a
res, no nível do Diplome d'Enseignement
formação continuada é a segunda das dificul-
Supérieur Spécialisé (DESS),* que os inicia na
dades com as quais os nossos sistemas educa-
análise ergonômica das práticas profissionais.
tivos se confrontam hoje. Ela se coloca com tan-
o interesse da formação continuada, quan-
ta força que, para uma parcela do pessoal, a for-
do se visam aspectos mais complexos da
mação continuada pode ser a primeira forma-
profissionalização, tem possibilitado levar ao
ção de que participa. É o caso de muitos pro-
desenvolvimento de certas experiências de for-
fessores leigos no Brasil; é também o caso da-
mação inicial particularmente originais. É o
queles professores que entraram na profissão
caso, na França, de formações atualmente de-
na condição de suplentes, na França.'1
senvolvidas na Guiana Francesa (um departa-
Evidentemente, a formação continuada tor-
mento da França onde o recrutamento perma-
nou-se atualmente um excelente dispositivo de
nece deficitário), que visam colocar num mes-
formação profissional. Com efeito, ela se apoia
mo cargo duas pessoas não-formadas. Cada um
numa primeira experiência da profissão e per-
dos membros dessa "dobradinha" passa, de for-
mite ao jovem professor basear-se na sua baga-
ma alternada, de uma situação de professor en-
gem profissional para analisá-la e melhorá-la.
carregado de turma à situação de estudante do
Entretanto, tal formação supõe a existência de
centro de f o r m a ç ã o . O ritmo das alternâncias
formadores de altíssima qualidade e
é, em geral, de três meses em cada uma das si-
freqüentemente exclui professores de índole
tuações. A duração total da formação (para um
universitária, que têm pouca experiência com a
recrutamento após dois anos de estudos uni-
vida em sala de aula. É claro que o formador-
versitários) é de três anos. Esse sistema parece
modelo deve ser, nesse caso, um professor mu-
ser muito apreciado pelos estudantes. No en-
nido de boa experiência profissional no âmbito
tanto, para os formadores, a tentação de só se
da escola de Ensino Fundamental (se é que ele
empenharem no terceiro estágio da formação e
forma professores para esse nível) e que, além
de menosprezarem a alfabetização geral e pro-
disso, tenha adquirido uma formação nas prin-
fissional é forte. Se a inserção no trabalho se
cipais didáticas bem como nas áreas de conhe-
processa com maior rapidez, não é certo que,
cimento de referência da educação. Dentro des-
no longo prazo, as bases assim adquiridas per-
sa perspectiva, utilizam-se freqüentemente an-
mitam ao professor ter acesso à autonomia pro-
tigos professores que adquiriram formação em
fissional que atualmente todos procuram.
nível de pós-doutorado. Todavia, não é certo que
a
É o que se observa com muita freqüência no departamento da Guiana Francesa.
7
Na França, um Instituteur-Maitre-Formateur - IMF (NT Professor de pré-escola ou de escola primária que ensina nos centros de formação de
professores) é um professor com pelo menos seis anos de experiência na profissão e que tem o diploma Certificat d'Aptitude aux Fonctions
dlnstituteur-Maitre-Formateur- CAFIMF [Certificado de Aptidão para as Funções de (MF). Esse certificado ó obtido após a defesa de uma
monografia profissional e de uma prova de análise e de conselho da atividade de um professor estagiário. Os IMF são, em parte, liberados
das atividades docentes para trabalhar nos centros de formação, mas mantêm pelo menos dois terços de sua carga normal, Eles podem se
tornar Conselheiros Pedagógicos de uma Circunscrição - CPC Nesse caso. eles estão capacitados a se tornarem adjuntos de um Inspetor
da Educação Nacional - IEN, que é encarregado de uma circunscrição. Uma circunscrição é um conjunto de escolas colocadas sob a
autoridade do IEN, que é responsável pela avaliação dos professores e pela sua formação. Em geral, um inspetor trabalha com 280 a 300
professores. Ele dispõe de uma equipe de circunscrição composta por uma secretária, e dois conselheiros.
8
o DESS é um diploma universitário de 3o Cycle (análogo ao Diplome d'Êtudes Approfondies - sigla DEA, em francês), mas que tem uma
objetivação profissional e. portanto, não permite, como o DEA, preparar uma tese de doutorado.
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
moraram 15 anos. Durante esse período, ti- dadania. Em segundo lugar, pretendeu-se
veram uma participação destacada na lide- comprometer o Estado com o adequado pro-
rança das reformas. vimento desse direito, mediante vinculação
Ao longo da década de 1980 e da primei- de parcela das receitas públicas para o finan-
ra metade dos 1990, alguns sistemas estadu- ciamento da educação pública. As reformas
ais e municipais de ensino se destacaram por educacionais terão, portanto, como objetivo
iniciativas inovadoras de gestão e de organi- prioritário assegurar a universalização do
zação pedagógica, transformando-se em pre- atendimento escolar.
cursores e em referência nacional para as re- o cumprimento dessa meta, no entanto,
formas que seriam desencadeadas a partir de seria postergado pela desarticulação entre as
1995, quando teve início o segundo ciclo. Os três esferas de governo, problema que só co-
estados e municípios continuariam a desem- meçaria a ser resolvido com a aprovação da
penhar um papel central, mas a liderança das Emenda nº 14 e a criação do Fundef. Portan-
reformas foi assumida pelo Ministério da to, grande parte das energias que poderiam
Educação. ter sido canalizadas para fazer as reformas
Essa nova safra de reformas institucionais, avançar foram consumidas pelos impasses
consubstanciadas por meio da Emenda Cons- gerados pela quase interminável disputa tra-
titucional nº 14, da criação do Fundef (Lei nº vada em torno do controle de recursos da
9.424/96) e da LDB (Lei 9.394/96), incorpo- e d u c a ç ã o . O próprio processo de descen-
rou as lições, as experiências e as inovações tralização, que havia tido forte impulso no
trazidas pelas iniciativas pioneiras de alguns início dos anos 1980, acabaria bloqueado até
estados e municípios. A nova Lei de Diretri- meados dos anos 1 9 9 0 . O Fundef, como sabe-
zes e Bases da Educação Nacional, sobretu- mos, deu novo alento à municipalização do
do, beneficiou-se largamente das mudanças Ensino Fundamental.
que vinham sendo implementadas pelos sis- A descentralização está associada a outro
temas estaduais e municipais de ensino. A fle- componente fundamental dessa primeira ge-
xibilidade e o estímulo a formas inovadoras ração de reformas, que é a reorganização dos
de organização e gestão dos sistemas de en- sistemas de ensino. Ao chegar a este ponto,
sino, que constituem as características bási- pretendo confrontar mais diretamente o tema
cas da LDB, refletem tendências que já esta- desta sessão que, de acordo com a minha in-
vam presentes desde a década de 1980. terpretação, problematiza a relação entre a
Podemos afirmar, portanto, que a LDB ins- "organização dos sistemas de ensino e a for-
tituiu e legitimou princípios que já haviam mação docente".
sido incorporados à organização dos sistemas Se observarmos o que aconteceu na déca-
de ensino. Todavia, é preciso reconhecer que da de 1990, vamos verificar que profundas
foi a partir da LDB e do Fundef que aconte- mudanças estruturais e organizacionais foram
ceu um verdadeiro surto de mudanças e ino- promovidas pelos sistemas de ensino. E, até
vações em todo o p a í s . O panorama atual é, onde consigo enxergar, essas mudanças tive-
portanto, muito diferente daquele observado ram pequena, para não dizer nenhuma, reper-
há cinco anos. Essas mudanças na organiza- cussão nos programas de formação docente,
ção dos sistemas de ensino, conforme preten- seja ela inicial ou continuada. Não quero di-
do argumentar, têm profundas conseqüências zer com isso que tenha havido ou que haja
- ou, pelo menos, deveriam ter - para a for- descaso em relação ao problema da formação
mação de professores. de professores. Ao contrário, essa tem sido
No que consistiu essa primeira geração de uma preocupação permanente.
reformas educacionais pós-redemocratização No entanto, é muito mais fácil para qual-
do país? Em primeiro lugar, prevalece a ênfa- quer gestor educacional reorganizar o siste-
se na constitucionalização do direito de to- ma de ensino do que promover mudanças na
dos à educação como um direito básico de ci- área de formação, sobretudo a formação ini-
cial, a cargo de instituições externas aos sis- uma estratégia inteligente que trabalha os
temas de ensino e com elevado grau de auto- PCN dentro de um programa estruturado de
nomia, como é o caso das universidades. Não capacitação docente. Creio que os resultados
é surpresa, portanto, constatar que tem havi- dessa experiência são bastante encorajadores,
do um descompasso entre as m u d a n ç a s sobretudo por comprovar a viabilidade de
organizacionais e curriculares e a formação parcerias entre os sistemas estaduais e muni-
docente. cipais de ensino e as instituições formadoras.
Insisto, mais uma vez, que essa tem sido Esse trabalho também tem sido facilitado pela
uma preocupação central nos últimos anos. qualidade das propostas e dos materiais de-
Todavia, tem sido muito mais difícil avançar senvolvidos pelo Ministério da Educação.
na área de formação de professores do que nas Todavia, é preciso ainda muito esforço
demais reformas. É bem verdade que tem ha- para que se estabeleça uma fina sintonia en-
vido certa coerência nos passos que têm sido tre as mudanças organizacionais promovidas
dados, pois a definição das diretrizes e dos pelos sistemas de ensino, as diretrizes e os
parâmetros curriculares nacionais para as três parâmetros curriculares e as atividades de
etapas da Educação Básica precedeu, como capacitação d o c e n t e . O Censo Escolar apre-
não poderia deixar de ser, a elaboração das di- senta um retrato, ainda que superficial, da di-
retrizes curriculares para formação inicial de versidade existente hoje na organização dos
professores. Essas diretrizes delineiam um sistemas de ensino.
perfil profissional requerido pela nova pro- Em 2000, cerca de 38% dos alunos do En-
posta organizacional e curricular da Educa- sino Fundamental estavam matriculados em
ção Básica. escolas que implantaram o sistema de ciclos
No entanto, não podemos esperar até que ou mais de uma forma de organização, en-
as instituições formadoras implementem as quanto 62% permaneciam no sistema tradi-
novas diretrizes curriculares definidas pelo cional seriado. A organização do Ensino Fun-
Parecer CNE/CP nº 9/2001 e comecem a for- damental em ciclos é mais comum na Região
mar professores com um novo perfil. Numa Sudeste, onde cerca de 57% dos alunos já par-
previsão bastante otimista, esses profissionais ticipam desse modelo, enquanto 28% seguem
deverão começar a sair das Faculdades de no sistema seriado e 15% em escolas que com-
Educação em 2005. Portanto, o novo modelo binam mais de uma forma de o r g a n i z a ç ã o . O
de formação inicial deverá demorar para pro- sistema de ciclos também avançou em alguns
duzir impacto nos sistemas de ensino. estados de outras regiões, como Ceará, Rio
Devemos pensar, assim, em políticas de Grande do Norte, Amapá, Mato Grosso e Mato
formação continuada que dêem conta de ca- Grosso do Sul.
pacitar em serviço os professores que estão Paralelamente à implantação de ciclos, al-
na ativa. São esses profissionais que estão guns sistemas de ensino decidiram ampliar o
sendo pressionados a desenvolver a nova pro- Ensino Fundamental para nove anos, anteci-
posta curricular para as diferentes etapas da pando-se à diretrizes do Plano Nacional de
Educação B á s i c a . O programa Parâmetros em Educação. Essa medida tem sido incentivada,
Ação é um exemplo das alternativas que de- obviamente, pelo critério de distribuição de
vemos explorar e expandir. Creio que não des- recursos do Fundef. A ampliação para nove
merece essa iniciativa reconhecer que ela veio anos e a redução da idade de ingresso para 6
como resposta à percepção de que os Parâme- anos permitem a esses sistemas de ensino au-
tros Curriculares Nacionais não estavam sen- mentar o número de matrículas e, com isso,
do apropriados e incorporados pelos sistemas receber mais recursos.
de ensino porque muitos professores não es- A organização do Ensino Fundamental em
tavam capacitados para desenvolver a nova ciclos aparece associada a diferentes propos-
proposta curricular. tas pedagógicas nos sistemas de ensino que
Para remediar esse problema, criou-se implantaram essa medida. Em São Paulo, por
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
Luis Huerta
Formação de professores e inclusão
digital: a experiência do Prolnfo
Cláudio Francisco de Souza Salles
Seed/MEC
Implantado a partir de 1997, o Programa Nacio- dades, em programas e cursos que favoreçam
nal de Informática na Educação (Prolnfo) deu iní- aos interesses locais.
cio ao processo de universalização do uso das no- o sucesso desse programa depende funda-
vas tecnologias de informática e telecomunicações mentalmente da capacitação dos recursos huma-
nos sistemas escolares públicos e à introdução de nos envolvidos com sua operacionalização. Ca-
inovações pedagógicas e gerenciais nas escolas. pacitar para o trabalho com novas tecnologias de
Seu objetivo principal é promover o desenvol- informática e telecomunicações não significa ape-
vimento e o uso pedagógico das novas tecnologias nas preparar o indivíduo para um novo trabalho
de informática e telecomunicações e também docente. Significa, de fato, prepará-lo para o in-
utilizá-las como ferramentas para alavancar um gresso em uma nova cultura, apoiada em tecno-
processo de inovação em todos os sentidos, den- logia que suporta e integra processos de interação
tro do ambiente escolar, visando: e comunicação.
• melhorar a qualidade do processo de ensino- A capacitação de professores para o uso das
aprendizagem; novas tecnologias de informação e comunicação
• propiciar uma educação voltada para o pro- implica redimensionar o papel que o professor
gresso científico e tecnológico; deverá desempenhar na formação do cidadão do
• preparar o aluno para o exercício da cidada- século XXI. É, de fato, um desafio à pedagogia tra-
nia numa sociedade desenvolvida, dicional, porque significa introduzir mudanças no
processo de ensino-aprendizagem e, ainda, nos
• valorizar o professor.
modos de estruturação e funcionamento da es-
Partindo desses pressupostos, a importância cola e de suas relações com a comunidade.
do programa para o desenvolvimento da informa-
Os professores destinados à formação dos
tização da escola pública destaca-se principal-
multiplicadores serão selecionados em função de
mente quanto aos aspectos de:
sua qualificação profissional em informática e
• apoio aos estados na informatização de suas
educação. Os demais - multiplicadores e aqueles
redes de ensino;
que atuarão em salas de aula - deverão ter um
• oportunização de acesso e familiarização dos perfil que os leve a ser:
alunos do Ensino Fundamental e Médio da • autônomos, cooperativos, criativos e críti-
rede pública com as novas tecnologias de cos;
informática, numa dinâmica educacional que
poderá favorecer o surgimento de novas ha- • comprometidos com a aprendizagem per-
bilidades e competências; manente;
• valorização e atualização de milhares de pro- • mais envolvidos com uma nova ecologia
fessores com a aprendizagem de novos conhe- cognitiva do que com preocupações de or-
cimentos e técnicas para a melhoria de sua dem meramente didática;
prática pedagógica e para o desenvolvimento • engajados no processo de formação do in-
de projetos e atividades com seus alunos, ou, divíduo para lidar com a incerteza e a com
ainda, para o aperfeiçoamento dos modelos a complexidade na tomada de decisões e
de gestão escolar, que podem ser construídos com a responsabilidade daí decorrente;
de acordo com a realidade de cada contexto; • capazes de manter uma relação prazerosa
• utilização dos equipamentos pelas comuni- com a prática da intercomunicação.
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital
Resumo
A globalização i n c o r p o r a à reflexão tam-
A Internet está se tornando uma das principais bém os países de m e n o r desenvolvimento.
matérias na formação de professores. As reformas Ainda hoje, as respostas às necessidades edu-
curriculares incluem sugestões freqüentes para que cacionais incluem a busca de novas tec-
os professores incluam recursos da Internet em nologias q u e c e r t a m e n t e se e n c o n t r a m mais
seus planos de ensino. De certa forma, a Internet ao alcance das e c o n o m i a s desenvolvidas, en-
na sala de aula é um passo para a remoção de algu- q u a n t o o m u n d o mais atrasado deve e n c o n -
mas barreiras entre o sistema de educação formal trar u m a forma de i n c o r p o r a r - s e . As frontei-
e o ambiente educacional externo. A influência do
ras e c o n ô m i c a s a b e r t a s dos p a í s e s n ã o - d e -
ambiente na formação de hábitos e de interesses
senvolvidos f a z e m - n o s sensíveis à s m u d a n -
nos alunos é consideravelmente forte, e as escolas
ças ou o r i e n t a ç õ e s d i t a d a s pelo virtual d o -
estão atrasadas nessa tarefa. Em nossos países, as
m í n i o global exercido pelo m u n d o d e s e n v o l -
novas tecnologias de comunicação poderiam ser a
vido. S a b e m o s hoje q u e a g l o b a l i z a ç ã o e a
pedra angular para a massificação de mudanças
educacionais e para superar a atual escassez de re- tecnologia de Internet não aproximam, ao
cursos humanos. Entretanto, novos esforços deve- c o n t r á r i o , p o d e m d i s t a n c i a r a s diferenças n a
rão ser empreendidos, a fim de que a Internet seja r e n d a dos p a í s e s m a i s p o b r e s em relação à
validada como uma ferramenta de comunicação dos p a í s e s mais ricos.
que vá além da abordagem "enciclopédica" que se Todavia, t a m b é m existem o p o r t u n i d a d e s
faz da Rede. Um dos principais problemas é como provenientes da globalização e estas devem ser
aproveitar a independência e a liberdade promo- consideradas com alguma hierarquização, de-
vidas pela Internet, considerando-se o fato de que vendo-se centralizar esforços nas de maior re-
as novas tecnologias de aprendizagem eletrônica
torno. Para a educação, a Internet é uma dessas
colocam em xeque conceitos clássicos de aprendi-
oportunidades.
zagem e ensino.