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Editor
André Saddy

Conselho Editorial

André Saddy – Universidade Federal Fluminense (Brasil)


Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo - Escola de Direito do RJ da Fundação Getulio Vargas (Brasil)
Christian Alberto Cao – Universidad de Buenos Aires (Argentina)
Claudia Ribeiro Pereira Nunes – Yale University (Estados Unidos da América)
Cristiana Maria Fortini Pinto e Silva – Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)
Daniel Wunder Hachem – Universidade Federal do Paraná (Brasil)
Emerson Affonso da Costa Moura – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Brasil)
Irene Patrícia Nohara – Universidade Presbiteriana Mackenzie (Brasil)
José Eugenio Soriano García – Universidad Complutense de Madrid (Espanha)
Julián Pimiento Echeverri – Universidad Externado de Colombia (Colombia)
Orlando Vignolo Cueva – Universidad de Piura (Perú)
Pablo Schiavi – Universidad de la República / Universidad de Montevideo (Uruguai)
Reinaldo Funes Monzote – Universidad de Havana (Cuba)
Rodrigo Ferrés Rubio – Universidad Católica del Uruguay (Uruguai)

Sede: Rua Alcindo Guanabara n.º 24, sala 1405, Rio de


Janeiro, RJ, Centro da Cidade, CEP 20.031-915, Brasil


ORGANIZADORES
Enzo Bello
Cecília Bojarski Pires
Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

DIREITO À CIDADE:
ESPAÇOS DE ESPERANÇAS
NAS CIDADES DE EXCEÇÃO

Rio de Janeiro
2019
Copyright © 2019 by Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra
Avzaradel

Categoria: Direito à Cidade

Produção Editorial
Centro de Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ)

Diagramação: Centro de Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ)

Capa: Fotografia por Daniel Mendes Mesquita de Sousa


Arte visual: Luiz Eduardo da Cunha

O Centro de Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ) não se responsabiliza


pelas opiniões emitidas nesta obra pelo seu Autor.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo,
inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de
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6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações
diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados ao


Centro de Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ)

Impresso pela Bok2

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________________________
B446d
DIREITO À CIDADE : Espaços de esperanças nas cidades de exceção/Bello,
Enzo; Pires, Bojarski Cecília; Avzaradel, Saavedra Curvello Pedro (Org.). - 3
ed. – Rio de Janeiro: CEEJ, 2019.
388 p.

“III Seminário de Direito À Cidade. UFF: Niterói, Maio, 2018” – Pref.


ISBN 978-65-80262-02-1

1.Direitos fundamentais 2. Sociologia Urbana 3.Cidadania urbana I.Bello,


Enzo; Pires, Bojarski Cecília; Avzaradel, Saavedra Curvello Pedro (Org.) II.
Universidade Federal Fluminense (UFF) III. Título.
CDD 341.27


Sumário

Apresentação das autoras e dos autores ................................................11


Apresentação .........................................................................................23
Prefácio .................................................................................................27

SEGURANÇA PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO: INTERVENÇÃO


PRA QUEM? ........................................................................................29
Maria Júlia Miranda ..............................................................................29
Dani Monteiro .......................................................................................33
Luciana Boiteux ....................................................................................41

OCUPAÇÕES CULTURAIS: CONSTITUINDO OUTRA CIDADE 59


Larissa Amorim ....................................................................................59
Letícia Brito ..........................................................................................61
MULHERES E A CIDADE: ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA .............77
Rossana Brandão Tavares .....................................................................77
Raquel Ribeiro ......................................................................................85
NOVA AGENDA URBANA .............................................................107
Glauco Bienenstein .............................................................................107
Paulo Saad...........................................................................................108
Luciana Ximenes ................................................................................116
Tarcísio Motta Carvalho .....................................................................124

ASSISTÊNCIA TÉCNICA E HABITAÇÃO DE INTERESSE


SOCIAL ..............................................................................................145
Felipe Nin............................................................................................145
Regina Bienenstein .............................................................................151
Ana Cláudia Tavares ...........................................................................159
TESES E DISSERTAÇÕES ...............................................................173

A CONTRADIÇÃO EM PROCESSO: O DISCURSO E PRÁTICA


RELATIVA À HABITAÇÃO POPULAR NA GESTÃO EDUARDO
PAES NO RIO DE JANEIRO ............................................................173
Paulo Bastos ........................................................................................173


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

PLANEJAMENTO E PARTICIPAÇÃO: ESTUDO DE CASO PUR


PENDOTIBA, NITERÓI – RJ............................................................187
Cynthia Gorham ..................................................................................187

RESSUSCITA SÃO GONÇALO: A LUTA POR MORADIA NA


OCUPAÇÃO ZUMBI DOS PALMARES DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES SEM-TETO .....................................................201
Camila Barros Moraes ........................................................................201

ESTADO, TERRITÓRIO E COTIDIANO NO COMPLEXO DE


FAVELAS DA MARÉ .......................................................................211
Eblin Farage ........................................................................................211

VIDIGAL VIP S.A.: SEGREGAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO


PACIFICADA NUMA FAVELA DO RIO DE JANEIRO ................221
Nathalia Carlos....................................................................................221

O DIREITO ACHADO NA FAVELA: A DINÂMICA DO


PLURALISMO JURÍDICO NA FAVELA DO VIDIGAL ................231
Osias Pinto Peçanha ............................................................................231

GRUPOS DE TRABALHO (GTs) .....................................................241


GT I - CIDADE CIDADÃ: PRÁTICAS E POLÍTICAS NA
CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ........................................241

ESPACIALIZAÇÃO DAS NORMAS À LUZ DA ESTRADA


PARATY-CUNHA .............................................................................241
Gabriela Santa Cruz Neves Kwok ......................................................241
Isabela Santa Cruz Neves....................................................................241

TRANSOCEÂNICA E DIREITO À CIDADE: ANÁLISE DA


PARTICIPAÇÃO POPULAR NO ESTUDO DE IMPACTO DE
VIZINHANÇA ...................................................................................247
Eraldo José Brandão ...........................................................................247
Moisés de Castro Alves ......................................................................247

A APROPRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS PELO


ATIVISMO SOCIAL..........................................................................253

6
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Ana Carolina Barreto da Silva Couto .................................................253


O PROCESSO DE FAVELIZAÇÃO E O SENTIDO DA
MODERNIZAÇÃO PERIFÉRICA NO BRASIL ..............................259
Thiago Barboza da Cunha ...................................................................259
Pedro Rocha de Oliveira .....................................................................259

GESTÃO JUSAMBIENTAL DAS CIDADES: UMA CIDADE PARA


PESSOAS ...........................................................................................265
Samira dos Santos Daud .....................................................................265
Walter Gustavo Silva Lemos ..............................................................265

A OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS COMO RESISTÊNCIA À


CRISE DO CAPITALISMO: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS
JORNADAS DE JUNHO DE 2013 ....................................................273
Renata Piroli Mascarello .....................................................................273
Guilherme Chalo Nunes......................................................................273
Stephanie Mesquita Assaf ...................................................................273

DISPUTAS PELO ESPAÇO URBANO A PARTIR DO LEMA


“BÍBLIA SIM, CONSTITUIÇÃO NÃO” ..........................................281
Claudio Luiz Martins Reis Filho.........................................................281
Matheus Guimarães Silva de Souza ....................................................281
Palloma Borges Guimarães de Souza .................................................281

A TRIBUTAÇÃO COMO MEIO DE DETERMINAÇÃO DA


OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO - Análise sobre as alterações
promovidas pela Lei 6.250/17, que altera a tributação do IPTU, na
cidade do Rio de Janeiro .....................................................................287
Patricia Daniele dos Santos Pita .........................................................287
Marcos da Silva Ribeiro......................................................................287

A LUTA PELO DIREITO À CIDADE: UMA EXPERIÊNCIA


VIVIDA ATRAVÉS DO NEPFE NAS OCUPAÇÕES ZUMBI DOS
PALMARES E 06 DE ABRIL DE 2010 ............................................293
Maria Caroline da Silva Souza ...........................................................293
Mariana Cristina da Silva Andrade .....................................................293
_Toc19127654

7
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

CIDADE E GÊNERO: uma reflexão sobre os conflitos entre o


desenvolvimento urbano e uma cultura generificada..........................299
Felipe Romão de Paiva .......................................................................299

A EMANCIPAÇÃO HUMANA E AS PRÁTICAS DE CIDADANIA


NA COMUNIDADE “CIDADE DOS MENINOS”...........................305
Marcelo dos Santos Garcia Santana ....................................................305

UNIVERSIDADE COMO ALTO-FALANTE: UMA QUESTÃO DE


DAR VOZ OU DE TER OUVIDOS? - Tecnologias Sociais de
Inovação em Direito em Favelas de Niterói e São Gonçalo ...............311
Igor Peçanha Frota Vasconcellos ........................................................311
Izabela Fernandes Santos ....................................................................311
Luana de Rezende Bragança ...............................................................311
Matheus Penteado N. dos Santos ........................................................311

GT II – CIDADES, SEGURANÇA PÚBLICA E CONTROLES DE


TERRITÓRIO – RACISMO INSTITUCIONAL ...............................317

INSURGÊNCIAS NEGRAS E A NEGAÇÃO DO DIREITO A VIDA:


trajetórias políticas de mulheres frente ao genocídio da juventude negra
– do luto a luta! ...................................................................................317
Dayana Christina Ramos de Souza Juliano ........................................317

RESISTIR E LUTAR: A FAVELA COMO LOCAL DE


RESISTÊNCIA - Breve análise sobre as prisões de tráfico de drogas
no Estado do Rio de Janeiro................................................................321
Bruno Joviniano de Santana Silva ......................................................321
Caio Grande Guerra ............................................................................321
Thomaz Muylaert de Carvalho Britto .................................................321
Nilmara Palaio ....................................................................................321
Melissa Barbosa ..................................................................................321

A CIDADE SITIADA: ASPECTOS CONTROVERSOS DO


DECRETO DE INTERVENÇÃO FEDERAL NO TERRITÓRIO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO ......................................................327
Magna Corrêa de Lima Duarte ...........................................................327

8
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

FAVELAS NO RIO DE JANEIRO: ESTADO DE EXCEÇÃO E


PLURALISMO JURÍDICO ................................................................333
Igor Luiz Batista de Carvalho .............................................................333
Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa .......................................333
Luciana dos Santos Magalhães ...........................................................333
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INTERVENÇÃO FEDERAL E O NÃO CABIMENTO DOS
MANDADOS DE BUSCA E APREENSÃO COLETIVOS .............339
Manuelle Maria Lima Gaião ...............................................................339
Tatiana Ferreira Lofti ..........................................................................339

BELFORD ROXO: ANÁLISE DA PROBLEMÁTICA URBANA


NUMA JOVEM CIDADE PERIFÉRICA ..........................................345
Thais Gomes da Silva .........................................................................345

GT 3 – CIDADE, CULTURA, RESISTÊNCIA E IDENTIDADES..351


SLAM: POESIA DE RESISTÊNCIA QUE OCUPA A CIDADE.....351
Maria Clara Conde Moraes Cosati ......................................................351
Rodolfo Bastos Combat ......................................................................351
Thaiana Conrado Nogueira .................................................................351

CIDADE, MULHER E EDUCAÇÃO: O PAPEL FEMININO NA


LUTA PELA OCUPAÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS A PARTIR DA
PARTICIPAÇÃO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA (UM
ESTUDO EMPÍRICO DA OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO DE SÃO
BERNARDO DO CAMPO) ...............................................................357
Anne Nimrichter Oliveira ...................................................................357
Cecília Bojarski Pires..........................................................................357
Greyce Danielle Alves Barbosa ..........................................................357

A QUESTÃO DOS POVOS INDÍGENAS EM ÁREAS URBANAS:


REPRESENTATIVIDADE E OS DESAFIOS DECORRENTES DO
FENÔMENO MIGRATÓRIO ............................................................365
Camilla de Azevedo Pereira................................................................365
Pablo Ronaldo Gadea de Souza ..........................................................365

O OLHAR ESTÉTICO DO AFETO ..................................................371


Lia Beatriz Teixeira Torraca ...............................................................371

9
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Lúcia Capanema Alvares ....................................................................371


Raffaele De Giorgi ..............................................................................371

MULHERES E CIDADES: ESPACIALIDADES, SUBJETIVIDADES


E R-EXISTÊNCIAS PELO DIREITO À CIDADE ...........................377
Gabriela Angelo Pinto.........................................................................377

DESLOCAMENTOS E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM


NOVA FRIBURGO: A PRECARIZAÇÃO DO DIREITO À CIDADE.
O CASO DO CONJUNTO HABITACIONAL TERRA NOVA .......381
Alexsandro Magalhães Pinto ..............................................................381

O DIREITO ACHADO NA FAVELA: O DIREITO REAL DE LAJE E


SEUS DESDOBRAMENTOS FACTUAIS .......................................383
Osias Pinto Peçanha ............................................................................383

10
Apresentação das autoras e dos autores

Ana Carolina Barreto da Silva Couto: Mestranda no Programa de Pós-


graduação em Engenharia Urbana, Escola Politécnica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ana Cláudia Tavares: Doutora em Ciências Sociais pela Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mestra em Sociologia e
Direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF).
Professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos
Humanos (NEPP-DH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas em Direitos Humanos (PPDH) da UFRJ.

Anne Nimrichter Oliveira: Mestra em Direito Constitucional pela


Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF). Graduada em Direito
pela UFF.

Bruno Joviniano de Santana Silva: Mestrando no Programa de Pós-


graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Camilla de Azevedo Pereira: Graduanda em Relações Internacionais


pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Graduanda em Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense
(UFF).

Caio Grande Guerra: Mestrando no Programa de Pós-graduação em


Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Bacharelando em Sociologia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos,
Estado e Cidadania.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Camila Barros Moraes: Graduada em Serviço Social pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). Mestre em Serviço Social pelo Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF.
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora no Núcleo
de Ensino e Pesquisa sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE-UFF).

Carolina Prado Peixoto Lopes de Souza:Graduada em Direito pela


Universidade Estácio de Sá (UNESA).

Cecília Bojarski Pires: Mestra em Direito Constitucional pela


Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF). Especialista em
Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) Graduada
em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Advogada.
Membro do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais Urbanos
(NEPHU – UFF).

Cláudio Luiz Martins Reis Filho:Mestrando no Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Cynthia Gorham: Arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos e
Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU-UFF).

Dani Monteiro: Graduanda em ciências sociais pela Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Deputada Estadual no Rio de Janeiro
pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Integrante do Coletivo
Rua. Militante do movimento negro unificado e do setorial de favelas do
PSOL.

12
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Daniel Mendes Mesquita de Sousa: Arquiteto e Urbanista do Núcleo


de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro
(DPGE). Doutorando e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF). Pesquisador
vinculado ao Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos
(NEPHU-UFF).

Dayana Christina Ramos de Souza Juliano: Assistente Social


graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em
Políticas Sociais e Intersetorialidade pelo IFF/FioCruz e UNIRIO.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contratada da
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos de Niterói.

Eblin Farage: Assistente Social.Doutora em Serviço Social pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Serviço
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora
da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e
Espaços Populares (NEPFE).

Enzo Bello: Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ). Estágio de Pós-Doutorado em Direito pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Estágio de Pós-Doutorado em
Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Professor Associado 1 da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-
Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de Estudos e Projetos
Habitacionais e Urbanos (NEPHU) - UFF. Editor-chefe da Revista
Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da

13
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior


(CAPES).

Eraldo José Brandão: Doutorando em Direito pela Universidade


Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Direito pela Universidade Gama
Filho (UGF). Especialista em Gerenciamento Ambiental pela
Unigranrio. Pesquisador colaborador do Grupo de Iniciação Científica
“Transoceânica e Direito à Cidade, aprovado no edital PIBIC 2017 pela
Universidade Estácio de Sá (Orientador: Prof. Msc. Marcelo dos Santos
Garcia Santana).

Felipe Nin: Membro da Comissão de AssistênciaTécnica para Habitação


de Interesse Social do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de
Janeiro.

Felipe Romão de Paiva: Advogado. Mestre pelo Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Gabriela Angelo Pinto:Geógrafa formada pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Planejamento Urbano e Regional
pelo Instituto de Política e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Doutoranda em
Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense (UFF).

Gabriela Santa Cruz Neves Kwok:Mestranda pelo Programa de Pós-


graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense (PPGAU-UFF).

Greyce Danielle Alves Barbosa: Mestra em Direito Constitucional pela


Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF). Graduada em Direito
pela UFF.

14
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Guilherme Chalo Nunes: Mestrando em Planejamento Urbano e


Regional pelo Instituto de Política e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ). Especialista em
Política e Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IPPUR-UFRJ). Bacharel e licenciado em Geografia pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Igor Luiz Batista de Carvalho: Mestrando em Direito Público e


Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA).
Advogado.

Igor Peçanha Frota Vasconcellos: Mestrando no Programa de Pós-


graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) na Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Isabella Santa Cruz Neves: Mestranda pelo Programa de Pós-


graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense (PPGAU-UFF).

Izabela Fernandes Santos: Bacharela em Direito pela Universidade


Federal Fluminense (UFF).

Larissa Amorim: Integrante do Grupo Peneira


(http://en.peneira.org/about-us/).

Letícia Brito: Poeta. Integrante do Slam das Minas - Rio de Janeiro.

Lia Beatriz Teixeira Torraca: Mestra e doutoranda pelo Programa de


Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD-UFRJ).

15
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa: Mestra em Direito


Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).

Luana de Rezende Bragança: Bacharelanda em Direito pela


Universidade Federal Fluminense (UFF).

Lúcia Capanema Alvares:Professora Adjunta da Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Doutora em Planejamento Regional University Of Illinois At Urbana
Champaign (EUA). Mestra em Cidade e Planejamento Regional pela
Memphis State University (EUA).

Luciana Boiteux: Professora da Faculdade Nacional de Direito e do


Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).Doutora em Direito Penal pela Universidade de São
Paulo (USP).
Luciana dos Santos Magalhães:Graduanda em Direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF).

Luciana Ximenes: Integrante do Observatório das Metrópoles.


Magna Corrêa de Lima Duarte: Graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Graduada em
Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Especialista em Direito Especial da Criança e do Adolescente pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Direito da
Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professora das Universidades Candido Mendes (UCAM) e Estácio de
Sá (UNESA).

Manuelle Maria Lima Gaião: Mestranda no Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC/UFF).

16
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Marcelo dos Santos Garcia Santana: Doutorando em Direito pela


Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Direito e Teoria do
Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos/MG. Especialista
em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Professor
do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

Marcos da Silva Ribeiro: Advogado. Graduado em Direito pela


Universidade do Grande Rio (Unigranrio). Cursa Especialização em
Direito Tributário pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro (EMERJ).

Maria Caroline da Silva Souza: Bacharel em Serviço Social pela


Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE).

Maria Clara Conde Moraes Cosati: Mestranda pelo Programa de Pós-


graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC-UFF).

Mariana Cristina da Silva Andrade: Bacharel em Serviço Social pela


Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE).

Maria Júlia Miranda: Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro.


Integrante do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro.

Matheus Guimarães Silva de Souza: Mestrando no Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Matheus Penteado N. dos Santos: Bacharelando em Direito pela


Universidade Federal Fluminense (UFF).

17
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Melissa Barbosa: Bacharelanda em Sociologia pela Universidade


Federal Fluminense (UFF).

Moisés de Castro Alves: Aluno do Curso de Pós-graduação em Gestão


da Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Aluno do Curso de Graduação em Direito na Universidade Estácio de Sá
(UNESA), Campus Oscar Niemeyer, Niterói III. Aluno orientando do
Grupo de Iniciação Científica “Transoceânica e Direito à Cidade”,
aprovado no edital PIBIC 2017 pela Universidade Estácio de Sá
(Orientador: Prof. Msc. Marcelo dos Santos Garcia Santana).

Nathalia Carlos da Silva: Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas


sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE-UFF) e militante do
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Nilmara Palaio: Bacharelanda em Sociologia pela Universidade


Federal Fluminense (UFF).

Osias Pinto Peçanha: Professor de Direito Constitucional na


Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Direito pela UNESA.
Advogado.

Pablo Ronaldo Gadea de Souza: Doutorando em Direito pela


Universidade de Lisboa (Portugal). Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC-UFF).

Palloma Borges Guimarães de Souza: Mestranda no Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

18
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Patrícia Daniele dos Santos Pita: Mestranda no Programa de Pós-


graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Cursa Especialização em Direito Tributário pela
Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

Paulo Bastos: Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em Geografia pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Núcleo
de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU-UFF).

Paulo Saad: Conselheiro Titular do Sindicato dos Arquitetos e


Urbanistas do Estado do Rio de Janeiro.

Pedro Curvello Saavedra Avzaradel: Doutor em Direito pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estágio de Pós-
Doutorado em Direito Ambiental pela Universidade Paris I como parte
do Programa CAPES/COFECUB. Mestre em Sociologia e Direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(FND/UFRJ). Professor Adjunto da UFF no Curso de Direito do Polo
Universitário de Volta Redonda. Co-líder do Grupo de Estudos em Meio
Ambiente e Direito (GEMADI). Professor do Programa de Pós-
Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC-UFF).

Pedro Rocha de Oliveira: Professor da Faculdade de Filosofia da


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Raquel Ribeiro: Integrante do Coletivo Feminicidade.

Raffaele De Giorgi: Professor da Università Del Salento (Itália). Doutor


em Filosofia pela Università di Roma (Itália). Pesquisador no Institut für

19
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Rechts und Sozialphilosophie - Universität des Saarlandes, Saarbrücken,


Alemanha (1972-1979).

Regina Bienenstein: Arquiteta e urbanista formada pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade de Syracuse, EUA. Doutora em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular do
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da
Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e
Urbanos da Universidade Federal Fluminense (NEPHU/UFF).

Renata Piroli Mascarello: Doutoranda pelo Programa de Pós-


Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD-UFR). Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Caxias do Sul (PPGD-UCS). Especialista em Política e
Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IPPUR-UFRJ). Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do
Sul (UCS)..

Rodolfo Bastos Combat: Mestrando pelo Programa de Pós-graduação


em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense
(PPGDC-UFF).

Rossana Brandão Tavares: Doutora em Urbanismo pelo Programa de


Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), com período sanduíche na AgroParisTech
(França). Professora Adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo
(EAU) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Samira dos Santos Daud: Doutoranda em Direito pela Universidade


Estácio de Sá (UNESA). Mestra em Direito pela Universidade Federal

20
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

de Sergipe (UFS). Advogada, Professora do Curso de Graduação em


Direito da Universidade Estácio de Sá - Sergipe.

Stephanie Mesquita Assaf: Mestra pelo Programa de Pós-Graduação


em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGA-
UFMG). Especialista em Política e Planejamento Urbano pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ). Bacharela em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo das
Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros.

Tarcísio Motta de Carvalho: Professor de História do Colégio Pedro II


- ensino médio e fundamental. Doutor, Mestre e graduado em História
pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Vereador do Município
do Rio de Janeiro pelo PSOL - Partido Socialismo e Liberdade.

Tatiana Ferreira Lofti: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em


Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense
(PPGDC/UFF).

Thaiana Conrado Nogueira: Mestranda pelo Programa de Pós-


graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC-UFF).

Thais Gomes da Silva: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em


Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS-
UFRJ). Aluna do curso de especialização em Movimentos Sociais do
Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Humanos – NEPP-
DH/UFRJ. Assistente Social pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Favelas e Espaços Populares – NEPFE/UFF.

Thiago Barboza da Cunha: Graduando em Filosofia pela Universidade


Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

21
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Thomaz Muylaert de Carvalho Britto:Mestrando no Programa de Pós-


graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Walter Gustavo Silva Lemos: Doutorando em Direito pela


Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
Mestre em Direito Internacional pela UAA/PY (Paraguai). Professor da
FARO – Faculdade de Rondônia e da FCR - Faculdade Católica de
Rondônia. Ex-Secretário Geral Adjunto e Ex-Ouvidor Geral da
OAB/RO.

22
Apresentação

A presente obra é fruto das palestras proferidas e dos trabalhos


apresentados no III Seminário de Direito à Cidade, realizado na cidade
de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, nos dias 21 a 22 de maio de 2018,
na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Esta terceira edição foi organizada pelo NEPHU - Núcleo de
Estudos e Projetos Habitacionais Urbanos pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito Constitucional (PPGDC-UFF), peloPrograma de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFF), pelo
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS-UFF), todos da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Destaca-se o protagonismo do
corpo discente da UFF, em articulação com movimentos sociais da
região de Niterói e São Gonçalo, que compõem o Fórum de Luta pela
Moradia.
Trata-se de evento marcado por sua perenidade e pela articulação
entre Programas de Pós-Graduação e cursos de graduação da UFF com
a sociedade civil, em especial movimentos sociais e coletivos, e
representantes de instituições estatais como a Defensoria Pública,
Câmaras de Vereadores de Niterói e do Rio de Janeiro, Assembleia
Legislativa, Instituto de Terras e Cartografia (ITERJ), entre outras. As
duas primeiras edições foram realizadas na Universidade Federal
Fluminense, nos anos de 2016 e 2017, e contaram com a presença de
centenas de participantes, oriundos(as) de todas as regiões do Brasil.
A segunda edição do Seminário de Direito à Cidade gerou um
livro (impresso e digital) , que traz as publicações de resumos, artigos e
1

palestras, contribuindo para a divulgação, a atualização e a discussão

1
BELLO, Enzo; PAROLA, Giulia; TOLEDO, Bianca Rodrigues (Otgs.). Direito à
Cidade: regularização fundiária. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017. 382p. Disponível
em:
<https://www.academia.edu/34937158/Direito_À_Cidade_regularização_fundiária>
. ISBN: 9788559966176.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

acadêmica e popular. Aliás, esta é uma das principais características


desse Seminário, que se preocupa em abrir espaço de protagonismo para
a participação popular na universidade pública, reservando-se posições
paritárias entre acadêmicos(as) e militantes, e entre mulheres e homens.
A obra que ora apresentamos conta com duas partes, que trazem
textos elaborados a partir das palestras proferidas nos painéis (Segurança
Pública no Rio de Janeiro– Intervenção pra quem?; Ocupações culturais
– constituindo outra cidade; Assistência técnica e habitação de interesse
social; Mulheres e a cidade: espaços de resistência; Nova Agenda
Urbana) e de pesquisas em direito à cidade (dissertações); e dos resumos
apresentados nos Grupos de Trabalho (GTs) (Cidade Cidadã: práticas e
políticas na construção do espaço urbano; Cidade, segurança pública e
controle de territórios; Cidade, cultura, resistência e identidades; e
Assistência Técnica e Habitação de Interesse Social).
O textos ora publicados são oriundos de transcrições das palestras
e exposições, além dos trabalhos apresentados nos Grupos de trabalho
(GTs), no âmbito do III Seminário de Direito à Cidade. A partir das
transcrições, foram realizadas uma pequena adaptação para substituição
de expressões coloquiais e uma cuidadosa revisão de texto, buscando-se
manter o máximo da originalidade. Além disso, por nem sempre ser
possível identificar nominalmente os participantes da plateia que
colaboraram com a realização de questionamentos e observações,
optamos, por uma questão de padronização do material, por indetificá-
los com a palavra “plateia” acompanhada de um número. Assim, os
debates ocorridos ao final de cada mesa estão incluídos no livro.
Além disso, mantivemos a íntegra dos trabalhos apresentados nos
Grupos de trabalho (GTs).
Registramos a relevante contribuição da coletividade reunida em
torno do NEPHU, que construiu esta terceira edição com muita
dedicação, carinho e competência: Professora Regina Bienenstein
(NEPHU e PPGAU-UFF), Professor Enzo Bello (NEPHU-UFF e
PPGDC-UFF), Professor Glauco Bienenstein (NEPHU-UFF e PPGAU-
UFF), Professora Francine Helfreich (NEPHU-UFF e PPGSS-UFF), e

24
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pelos(as) pesquisadores(as) Ana Clara Maciel (NEPHU-UFF), Anderson


Nascimento (PPGDC-UFF), Anne Nimrichter (PPGDC-UFF), Bianca
Rodrigues Toledo (PPDC-UFF), Cecília Bojarski Pires (PPGDC-UFF),
Daniel Mendes Mesquita de Sousa (NEPHU-UFF e PPGAU-UFF),
Greyce Danielle Alves Barbosa (PPGDC-UFF), Larissa de Paula Couto
(PPGDC-UFF), Lucas Pontes (PPGDC-UFF), Loyua Ribeiro (PPGDC-
UFF), Luiz Eduardo da Cunha (NEPHU-UFF).
No mesmo sentido, cabe consignar o trabalho da equipe de
revisão e formatação dos textos que compõem este livro, sem a qual esta
empreitada não seria possível: Anderson Nascimento, Anna Cecília Faro
Bonan, Cariza Morandi, Cecília Bojarski Pires, Felipe Romão de Paiva,
Greyce, Laine, Larissa Alessandra Beleza, Larissa Brasilino, Larissa de
Paula Couto, Loyua Ribeiro, Lucas Pontes, Samira Daud, Tatiana Lotfi,
Walter Gustavo Lemos.
Desejamos uma ótima leitura e que os textos que compõem este
livro possam fomentar a ampliação dos debates e das pesquisas em busca
de cidades democráticas e participativas.

Niterói, 6 de maio de 2019.

Prof. Dr. Enzo Bello


Prof. Dr. Pedro Curvello Saavedra Avzaradel
Profa. Msc. Cecília Bojarski Pires

25

Prefácio

É com muita satisfação que a Faculdade de Direito da UFF recebe


mais este evento, na sua terceira edição, e algumas questões são
fundamentais. Tivemos a oportunidade de realizar neste mesmo espaço,
há um ano e meio, a Conferência da Cidade, então muitos que estão aqui
são parceiros de longa data. Ainda, em um cenário de uma política local,
procuramos nos organizar e o NEPHU foi essencial nesse sentido para
servir como um farol de ações com os docentes e discentes da UFF.
Já são muitos anos de Compur em Niterói e sobretudo esta
2

questão que está no título deste evento, a ideia de esperança como uma
postura que enfrenta a exceção e que de alguma forma remete aos títulos
do David Harvey, um teórico substantivo sobre o tema em especial, e
com base no seu último trabalho ("Cidades Rebeldes”) considero que
chegou o momento de se assumir uma postura de cidades rebeldes,
sobretudo porque temos uma frente em vários cursos, a partir de um
perfil interdisciplinar. Hoje é possível juntar Arquitetura com Direito,
com Serviço Social e várias outras áreas, e me parece que a dinâmica que
se iniciou nas décadas de 80 e 90 com a pesquisa, cada vez mais vai para
um perfil de extensão universitária, como é também para a área do
Direito, que tem feito uma extensão mais protocolar, e o Serviço Social,
que assume uma frente das parcelas mais pobres na sociedade.
Acredito que essa junção aqui proposta tem tudo para prosperar
e que temos tudo para assumir uma característica de rebeldia com a
cidade. Rebeldia, no sentido de auxílio a todos os movimentos sociais

“O Conselho Municipal de Políticas Urbanas (Compur) foi criado Lei Municipal No.
2

2.123/2004 com a finalidade de assessorar, estudar e propor diretrizes para o


desenvolvimento urbano com participação social e integração das políticas de
regularização fundiária e habitação; de saneamento ambiental; e de trânsito,
transporte e mobilidade urbana. O Compur é um órgão colegiado, composto por 18
conselheiros que se reúnem mensalmente. São publicadas, a seguir, as atas das
reuniões do Conselho”. Veja-se: http://urbanismo.niteroi.rj.gov.br/compur/


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

para ocuparem e resistirem, a construindo uma frente para que os cursos


dogmáticos ou certas parcelas dogmáticas sejam superados por uma
postura mais dinâmica. Temos que forçosamente entrar em todas as
frentes e ocupá-las.
O cenário político contemporâneo não é dos melhores, mas temos
tudo para reagir, para enfrentar o levante de uma nova direita que merece
esse enfrentamento. Então, é tudo isso que se espera: posturas
acadêmicas que avancem em propostas nas quais as parcelas mais
carentes e mais subalternizadas da sociedade sejam garantidas e tenham
apoio, e que elas consigam atuar de uma forma bem mais substantiva. É
um desejo coletivo que este debate nos ajude a criar reflexões e caminhos
nesta direção; enfim, espero que o resultado deste evento seja excelente
e que possamos tirar bom proveito nos próximos anos.

Niterói, maio de 2018.

Prof. Dr. Wilson Madeira Filho


Professor Titular e Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito (PPGSD-UFF). Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio).

28
-I-
SEGURANÇA PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO:
INTERVENÇÃO PRA QUEM?

Maria Júlia Miranda 3

Eu me chamo Maria Júlia Miranda e atualmente coordeno o


Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro. Então, o meu lugar de fala não é da Academia; o meu
lugar de fala está na experiência profissional como Defensora Pública. A
Defensoria Pública está prevista no artigo 134 da Constituição Federal
de 1988 e tem como função institucional a defesa dos vulneráveis, bem
como a promoção dos direitos humanos. O Núcleo de Terras e Habitação
é um núcleo especializado na defesa do direito coletivo à moradia, que
atua no município do Rio de Janeiro, na defesa da existência e resistência
das favelas e ocupações do Município, quando existe risco de remoções
ou na garantia da segurança da posse.
Por que a Defensoria tem atuado no contexto da intervenção
federal? A intervenção federal foi decretada através do Decreto n. 9.288,
em 16 de fevereiro de 2018, do Presidente da República, recaindo sobre
a segurança pública (polícias civil, militar e sistema penitenciário), que
passou a ser gerida por um interventor militar, Walter Braga Neto.
Diante da preocupação com a população mais vulnerável, a
Instituição realizou uma reunião aberta à sociedade civil e apresentou um
cronograma de visitas às favelas. No dia 26 de março de 2018, ocorreu
uma audiência pública promovida pelas Defensorias Públicas do Estado
e da União, quando ficou claro que não havia planejamento da
intervenção.
Na realidade, não se verifica a necessidade da intervenção, que
ocorre apenas com caráter eleitoreiro. Os números apresentados pelas

3
Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro. Integrante do Núcleo de Terras e
Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

autoridades da área de segurança pública não demonstram alteração que


justifique a intervenção. O Estado do Rio de Janeiro está no ranking dos
Estados violentos em décima primeira posição.
Como se dá o circuito de visitas nas favelas no Rio de Janeiro? É
construído com instituições da sociedade civil e tem como objetivo que
a Defensoria Pública e outros órgãos públicos, como o Ministério
Público e a Secretaria de Direitos Humanos, estejam nesses territórios
conflagrados, ouvindo diretamente da população os direitos que estão
sendo violados e o que acontece no momento das operações policiais. O
Circuito de Favelas ainda visa a educação por direitos e, para isso, a
Defensoria Pública elaborou uma cartilha mostrando o que pode e o que
não pode ser feito durante uma operação policial.
Após três visitas, a equipe da Defensoria fez uma avaliação e
chegou às seguintes conclusões: primeiro, na verdade, os moradores e
moradoras das favelas sabem quais são os seus direitos; segundo, o
grande problema é como se enfrenta esse número absurdo de violações
de direitos no momento das operações policiais; e, terceiro, os órgãos
públicos que fazem estas visitas precisam tentar dar respostas efetivas às
demandas colocadas. Foram realizadas, até o momento, 4 visitas:
Rocinha, Cidade de Deus, Favelas da Ficape, na Pavuna e Mangueirinha.
Na Cidade de Deus, atendemos uma parte da comunidade chamada
Comandante Guarani, que há dois anos tinha cerca de 15 unidades
habitacionais e hoje tem cerca de 400.
Quais são os relatos que se ouve na comunidade? Os relatos são
bastante repetitivos, mas a escuta presencial dos relatos das pessoas que
sofreram a violência, conhecer os locais onde as violações ocorreram,
onde pessoas foram executadas, gera um maior impacto.
As operações policiais ocorrem rotineiramente nas favelas. A
constatação é que nesses territórios existe uma suspensão absoluta da
Constituição Federal – não há direitos sociais, não há saúde, não há
educação, e, no momento da operação, há a suspensão dos direitos
individuais. Por exemplo, há relatos de violência física, assédio sexual,
destruição de patrimônio, invasão de domicílios e execuções que são

30
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

formalizadas em autos de resistência. Em alguns deles é possível notar


um certo sadismo, como colocar sabão sabão-em-pó na comida que está
feita e que seria consumida pela família nos próximos dias.
Na Rocinha tive uma experiência singular: uma mãe bastante
empobrecida, provavelmente com seus 22 anos e três filhos, falava da
filha que foi para a escola sem dinheiro para o lanche, e ficou sem comer,
enquanto as outras crianças lancharam, pois, naquele momento, o poder
público não estava garantindo a merenda escolar. Ela constata a ausência
do Estado, que se apresenta unicamente com a finalidade de matar. Essa
mãe tem a plena percepção de que o Estado não entra na favela para
prestar os direitos sociais, mas entra com o seu braço armado.
Há uma narrativa interessante na tese de doutorado de Alexandre
Magalhães a respeito da cronologia em torno da favela. Ele esclarece
4

que até a década de 1980 a favela é vista como um espaço provisório


passível de remoção e de eliminação. A partir da década de 1980, e com
o processo de democratização e fortalecimento dos movimentos sociais,
a favela passa a ser vista como um local a ser mantido, a ser urbanizado
e a ser integrado na cidade formal. Também nesse período, os índices de
violência urbana aumentaram no Estado do Rio de Janeiro, acima da
média nacional. Enquanto a média nacional era da proporção de 10 a 30
mortes a cada 100 mil habitantes, no Rio de Janeiro, na década de 1990,
chegou a 60 mortes a cada 100 mil habitantes.
A partir desse dado, Alexandre expõe que houve uma narrativa
construída de maneira a associar o aumento das favelas ao aumento da
violência, de modo que estes territórios passam a ser extremamente

4
Alexandre Magalhães é Professor Adjunto de Sociologia na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais
e Políticos (IESP/UERJ). Realizou pós-doutorado em Antropologia Social no
PPGAS/Museu Nacional.Pós-Doutorando PNPD/CAPES no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Sua tese de doutorado é
intitulada “Transformações no ‘problema favela’ e a reatualização da remoção de
favelas no Rio de Janeiro”.

31
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

estigmatizados: a favela é culpabilizada pelo aumento da violência


urbana. A respeito disso, Orlando Zaconne expõe que, da associação
5

entre violência e vulnerabilidade, resultou em um estouro da violência


policial nas favelas.
Logo depois do Decreto da Intervenção, o Ministro Torquatto
Jardim concedeu uma entrevista ao jornal Correio Braziliense, no dia 20
de fevereiro de 2018, em que disse que não há guerra que não seja letal,
provocando o interlocutor sobre como controlar a entrada e saída de
pessoas das favelas, com 1,1 milhão de cariocas morando em favelas, em
zonas de perigo. “Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e
quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha com 12 anos
de idade entrando numa escola pública, não vai saber o que ela vai fazer
depois da escola” . Ou seja, o que ele cristaliza nessa fala é a
6

estigmatização, materializando o racismo institucional. Está claro sua


visão: os moradores de favela, em sua maioria negras e negros, são
vistos como potencial bandidos, o que justificaria a atuação violenta da
polícia.
Fazendo um link com o direito à cidade, o Comentário nº 4 do
Comitê de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais da ONU fala da
moradia adequada enquanto um direito humano universal. Ela deve
proporcionar a segurança da estrutura da casa, a infraestrutura, acesso à
transporte, lazer, cultura e mais do que isso: não existe a possibilidade
de inserção na cidade formal se não houver alteração da concepção de
política de segurança pública. O modelo atual de confronto e de violação
dos direitos individuais tornam a favela um território de exceção, sem
reconhecer que são espaços de conquista dos trabalhadores, que jamais

5
Orlando Zaccone é Delegado de Polícia Civil no Estado do Rio de Janeiro e Doutor
Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua tese de doutorado
é intitulada “Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos
na cidade do Rio de Janeiro”.
6
Cf.
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/02/20/interna_polit
ica,660876/correio-entrevista-o-ministro-da-justica-torquato-jardim.shtml

32
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

acessaram o mercado formal de moradia e que findam por resolver em


parte o déficit habitacional.
Quando se olha a partir de uma outra lógica, percebe-se uma série
de qualidades e soluções apresentadas pelas favelas: solução de uma
parte do déficit habitacional; a existência de uma rede de solidariedade e
de projetos comunitários que substituem a lacuna do Estado. As favelas
são compostas por pessoas que ali nasceram, foram criadas, têm suas
redes familiares, de amizade, de solidariedade. A visão não-humanizada
da favela gera uma política de segurança violadora dos direitos
fundamentais. Finalizando, reafirmo que a atual política de segurança
pública implementada pelo Estado é um dos impeditivos da realização
do direito à moradia adequada previsto no artigo 6º da Constituição
Federal.

Dani Monteiro 7

Sou militante do Coletivo Rua, do movimento negro unificado e


do setorial de favelas do PSOL. Faço também graduação em Ciências
Sociais na UERJ, onde eu sou estudante cotista, de modo que essa fala
mexe com um pouquinho dos lugares por onde passei durante a minha
trajetória. Quando eu vejo o nome desta mesa “Intervenção para quem?”,
eu fico pensando em quem é o sujeito da intervenção que estamos
perguntando.
Maria Júlia Miranda trouxe o dado referente ao déficit da moradia
histórico que é associado à favela, o qual eu diria que é mais histórico
ainda. O surgimento das favelas é, por si só, o déficit de moradia, mas
também é o déficit de inclusão social de uma parcela muito grande da
população. E aí temos que pensar, retroceder um pouquinho, para
conseguir responder à pergunta “intervenção para quem?”, entendendo

7
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Deputada Estadual no Rio de Janeiro pelo PSOL. Integrante do Coletivo
Rua. Militante do movimento negro unificado e do setorial de favelas do PSOL.

33
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

que a escravidão em nosso país foi um sistema econômico, na medida


em que a mão de obra negra fazia parte dos meios de produção.
Se precisamos de uma forma para fazer esse molde de garrafa, ao
olharmos para atrás e pensarmos sobre a escravidão, temos que entender
que a mão de obra negra era quase o molde dessa garrafa, pois fazia parte
da engrenagem dos modos de produção. O país era uma colônia de
profundo extrativismo, da extração para a importação. Isto quer dizer que
houve muita mão de obra negra escravizada. O Brasil é campeão de
importação de negros sequestrados do continente africano e, não por
acaso, foi o último país a abolir a escravidão. Estamos falando de mais
de 300 anos de história baseados inclusive na estrutura da cidade, que
entendemos atualmente como tecnologia de construção de cidade, o lidar
com alvenaria, essas construções de alvenaria que vemos, o manejo dos
metais, isso tudo também é tecnologia africana, que foi, junto com a mão
de obra africana, o que edificou essa cidade do Rio de Janeiro.
Então,para pensar o direito à cidade não há como não pensar o
corpo negro neste lugar. E aí cabe pensar que lugar é este que existia
neste território. Os negros já eram quase metade da população no período
da escravidão em cidades como o Rio de Janeiro, que são cidades
profundamente urbanizadas desde a origem da colônia. O Rio de Janeiro
é uma cidade de ascendência urbana desde muitos séculos.
Nas cidades como o Rio de Janeiro havia uma população negra
que chegava a 43% da população total. Ou seja, não procede essa ideia
de que a escravidão era coisa que só os grandes donos de terra, os grandes
barões tinham mão de obra escravizada. A escravidão era uma situação
cotidiana no que hoje chamamos de país. As pessoas tinham escravas em
suas casas. Não é por acaso que hoje existe tanta dificuldade em se pensar
o direito das domésticas. As domésticas de hoje, de família, são as
mesmas mulheres negras que já trabalhavam nestas casas no período da
escravidão.
Quando há o processo de abolição também ocorre um processo
de negação desta população. Primeiro porque foi um processo muito
longo e doloroso. Só para se ter uma ideia, a lei que proíbe o tráfico

34
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

negreiro no Brasil é de 1831, sendo que o tráfico negreiro foi extinto


somente em 1871, 40 anos depois, pois era necessário pensar uma
política de reparação. Para quem? Para os donos de escravos
responsáveis por este tráfico negreiro. Pois quando se acaba com o
tráfico, se o Brasil era o maior importador de mão de obra escravizada,
existia toda uma estrutura de navios negreiros, de porto.
Então, o processo de abolição acaba se retardando pois havia dois
processos interessantes em curso: a construção de ferrovias e o aumento
dos portos adequados à nova economia brasileira cafeeira, paralelo ao
processo de imigração de mão de obra europeia para trabalhar nestas
fazendas. Abolimos a escravidão há 130 anos, mas será que nos
perguntamos o que aconteceu em 14 de maio de 1988? A mão de obra
negra não foi contratada e sim expulsa daquelas fazendas, casas de
família, estando sem direito à terra. E daí que surgem as favelas como
moradia à quase metade da população.
Há ausência de trabalho, salário, acesso à terra. Nada disso foi
dado a esta população. Pois o Brasil estava num processo de monarquia
que futuramente se transformaria numa república, em que se defendia
que não haveria negros neste novo estágio do país. Para se ter uma ideia,
como cientistas sociais, estudamos a formação do pensamento social
brasileiro, principalmente em meados do século XX, em que houve a
construção da nossa nação, das nossas leis, da nossa moral, enfim, o que
seria daquele país que era uma colônia de exploração que não reconhecia
metade da sua população.
E aí você pega essas teorias do século XX, que são teorias
eugenistas, e se constata que em 2012, há seis anos atrás, teríamos uma
população no Brasil de 97% branca, 3% indígena e que não haveriam
negros. Isto porque, dali em diante, não haveria um Estado preocupado
e engajado com política de reparação histórica para esta população,
seguido de um branqueamento da população trazida desses imigrantes,
colocando-se os negros em situação de marginalização.
Éramos brasileiros, mas não éramos brasileiros. Para se ter uma
ideia, na monarquia o voto de analfabetos com posse era permitido, pois

35
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

dizia respeito aos brancos pobres. A partir da abolição, uma coisa


“interessante” é a retirada do direito ao voto desta população analfabeta,
pois não queriam que a população negra votasse. “Ué, mas se trata de
um acontecimento há 130 anos atrás”. Sabem quando os negros passaram
a votar na totalidade? A partir da promulgação da Constituição-cidadã
em 1988. Ou seja, se hoje já pensamos em como os políticos não atendem
a população, não a ouvem, veja pela votação do golpe em 2016, ou
quando você entra no Parlamento – eu fui assessora da vereadora
Marielle Franco – você pensa: esses caras não representam os nossos
interesses. Isso porque votamos de quatro em quatro anos. Temos uma
democracia limitada, mas que impõe a estes políticos uma tarefa de, a
cada quatro anos, fazer com que a população vote neles.
Se é para subir a favela com lixa de unha, camisa e “bonézinho”,
se é a promessa de cooptar uma liderança de favela, dizendo que vai
asfaltar as ruas, que vai colocar uma família ali, tudo bem, mas existe
uma necessidade deste político convencer essa população a votar nele.
Então a favela que veio da abolição da escravidão, que veio de uma
imigração do Nordeste – a população na Rocinha é de 70% de
nordestinos -, não tinha direito, nem representação política até o período
da ditadura, quando se lançou a ideia de uma nova república. No entanto,
esta nova república não rompeu com a origem escravista, não se abortou
a ideia de discriminação negra.
A primeira política de reparação histórica voltada à valorização
da negritude é a das cotas para ingresso em universidades públicas. A
UERJ foi pioneira neste sistema em 2002 e 2003, tendo sido
implementada em 2004. Em paralelo, a lógica da segurança pública
opera para o controle e extermínio dessa população. A Polícia Militar foi
fundada no período pós-escravidão, para o controle dessa população,
pois a Polícia se prestava ao papel de fiscalizar a lei da vadiagem,
associada à lógica da interpretação de quem é traficante/usuário no
âmbito das leis das drogas, a ver pelo exemplo de Rafael Braga e Aécio
Neves, que comprovam que a lei se aplica de forma diferente.

36
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Não é pela quantidade que a segurança pública opera, no sentido


de criminalizar os territórios negros. A primeira coisa que a UPP
(Unidade de Polícia Pacificadora) faz ao expulsar o tráfico de drogas –
expulsão mentirosa, pois o tráfico se mantém em favelas com UPP – é
hastear a bandeira do Brasil, revelando-se uma tática de guerra. A
atuação do Exército é voltada ao território inimigo, em guerra. A
segurança pública agora passa a atuar com a lógica de Exército, cuja
formação não é para este fim. A intervenção foi aplicada a partir da ideia
de que o nosso Estado está em desordem pública, no sentido de que a
democracia como conhecemos não daria conta das demandas deste
Estado.
Dois ex-governadores presos (Sérgio Cabral Filho e Luiz
Fernando Pezão), um governador indiciado (Anthony Garotinho), presos
cinco entre os dez conselheiros do Tribunal de Contas do Estado
(Aloysio Neves, Domingos Brazão, José Gomes Graciosa,Marco
Antônio Alencar e José Maurício Nolasco), mas a intervenção não é no
governo, e sim para a população, que sofre com a militarização da nossa
vida.
Num Estado que foi sede de vários megaeventos, tendo investido
milhões na cidade, milhares de obras de urbanização e mobilidade que
só pioraram a realidade, tendo dificultado o acesso ao trabalho no centro.
Os BRTs, as alterações na frota de ônibus não conseguiram ajudar em
nada. E soma-se ainda um Estado em crise, mas crise para quem?
Um Estado que demandou tanto investimento não reinventou a
economia, que seguiu o neo-desenvolvimentismo de extração de barril
de petróleo, um combustível de fonte não-renovável. Soma-se a isso uma
lógica de farra de isenções fiscais concedidas pelo Estado. Instituições
como a UERJ deixam de receber dinheiro por uma aparente falta de
recursos do Estado. Isto ainda considerando uma lei orçamentária que
prevê uma parcela de 6% a ser destinada à educação, aproximadamente
R$ 27 bilhões, o que, dentro da ordem de isenção de R$ 197 bilhões,
seria o suficiente para dar conta da educação.

37
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Quando o ex-governador Pezão apresentou seu “pacote de


maldades” na ALERJ, tratava-se de um projeto de arrecadação do
Estado, seguida de perdas de direitos da população, a exemplo do
aumento das tarifas, privatização da CEDAE. Trata-se de um Estado que
seguiu a economia petrolífera, concedeu isenções, e ainda recebe a
intervenção federal como medida para a segurança pública, uma matéria
de ordem preferencial junto à sociedade. Mais do que saúde e educação,
os cidadãos do Rio de Janeiro se preocupam com segurança pública
chancelada por um governo impopular de 3% de aprovação.
Em três meses de intervenção, não houve uma operação em área
de milícia. E veja bem: não defendo as operações, mas tal raciocínio
serve para mostrar a quem interessa essa lógica da intervenção. Essas
operações que seguem nas cidades, em áreas onde há tráfico de drogas,
com a pífia desculpa de combate ao tráfico, servem para quem? Tráfico
e boca de fumo são comércio. Para um comércio funcionar, as pessoas
têm que ir até o local, saber como funciona, ou seja, até quem não mora
na favela sabe onde fica a boca de fumo; só que a polícia não sabe.
Há 30 anos a nossa política de segurança pública atua nessa forma
de caça de gato e rato, não é? A polícia entra na favela, as pessoas se
escondem, faz algumas vítimas para mostrar que está fazendo alguma
coisa e não temos uma polícia que faça a prevenção, a investigação
anterior. Por que a polícia não está pensando em como desmontar
quadrilhas? Por que não se fala sobre as rotas do tráfico? A droga não é
produzida na favela, as armas não são produzidas nas favelas, as facções
não se organizam nas favelas; elas se organizam no sistema carcerário,
ou seja, dentro de instituições do Estado, mas a lógica da segurança
pública é operar controle nessas localidades, é achar que vai combater o
tráfico dentro dessas localidades.
Será que um dia o chefe da organização criminosa estará
passeando dentro da favela e será preso? O chefe que está na favela é o
chefe do varejo, ele não é o chefe da operação, não é quem opera a
compra das armas legais e as pessoas não pensam nisso. Cada vez mais
as políticas de segurança pública não consideram nem pensam essas

38
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

questões, e oferecem para a população essa resposta imediata, que lida


com a insegurança e com o medo, que é mais do que legítimo e que
sentimos diariamente ao sairmos de casa. Ele é legítimo porque sabemos
o quanto é difícil sair de casa e o medo de não voltarmos, a insegurança
de fazer parte ou ver uma violência na nossa frente é mais do que comum
na nossa vida, mas seguimos e entendemos que a lógica da segurança
pública tem que ser mais militarização ainda que entendamos que essa
não é a solução.
Existe uma pesquisa sobre intervenção federal que indica que
76% das pessoas no Rio de Janeiro são favoráveis à intervenção federal,
mas 94% delas acham que isso não resolve nada. Ou seja, estamos
pedindo por uma lógica de segurança pública que lida com esse nosso
medo e insegurança imediata de sermos furtados, de participarmos de
uma violação do Estado, mas achamos que essa lógica não resolve?
Ou seja, precisamos pensar que lógica resolve e aí considero que
esse debate de direito à cidade junto com o debate de segurança pública
é fundamental porque não podemos pensar a segurança pública afastada
de todas as outras faixas do Estado: educação, saúde, cultura… porque é
a ausência de garantia desses direitos que aumenta os nossos índices de
violência. Quando há recursos, investimos na vida humana, podemos ter
uma segurança pública que prioriza a vida humana e não o patrimônio
privado;aí sim haverá uma segurança pública que funcione de fato para
as pessoas.
Se entrarmos nas favelas, pensamos a entrada do Estado na favela
de fato, que não seja pela sua eterna mão armada, que pensemos em
acesso a direitos como saúde e educação, tão precarizados nas favelas.
Eu moro perto de Manguinhos; a clínica da família de lá está sem médico
há mais de dois meses. O Estado nos últimos 10 anos fechou mais de 90
mil vagas no ensino médio público.
Uma clara retirada de direitos e marginalização do que é
produzido ali também, porque a cultura produzida pela periferia é e
sempre foi marginalizada. O samba hoje é aclamado, mas o samba
também já foi marginalizado. O rap e o funk seguem essa marginalização

39
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

porque as elites têm medo da nossa capacidade de organização, da nossa


capacidade de fazer a diferença, da nossa capacidade de sermos
coletivos.
Atualmente as rodas de rima das favelas reúnem jovens
diariamente. O Paquistão é uma roda que acontece toda segunda-feira de
noite em Manguinhos reúne 500 jovens. O baile da favela Nova Holanda
reúne 5 mil pessoas quase todo sábado e é a maior boate da nossa cidade,
aliás, da América Latina (o Barra Music não reunia 5 mil pessoas). E a
reunião dessas pessoas é um algo perigoso, porque não se deseja dar
condições de vida para essas pessoas, dar acesso para que elas produzam
a sua própria cultura, para que elas se vejam como agentes políticos, se
considerem capazes de transformar a realidade. Por isso segue uma
lógica de militarização para controle da população, porque o crime no
Brasil continua o de ser pobre.
Para finalizar, do gabinete da Intervenção - como o interventor
não concede entrevistas oficialmente -, um porta-voz afirmou que as
pessoas são responsáveis pela segurança pública, pela sua própria
segurança, ou seja, uma pessoa que vai a um baile funk e para do lado de
alguém com fuzil seria cúmplice. Ou seja, existe uma lógica de
segurança pública que não entende a realidade de 1/3 da população da
nossa cidade, da população do nosso Estado.
Então, precisamos trazer para a cena essa população e com
garantias de direitos, a garantia fundamental que historicamente não
tivemos, que é o acesso à democracia, de nos sentirmos pertencentes a
essa nação. Para isso ocorrer, cabe pensar de que forma a lógica do
direito à cidade traz também a lógica da democracia, da participação
política de todos e todas.

40
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Luciana Boiteux 8

Falar de espaços de resistência em “Estados de Exceção” é algo


essencial nos dias atuais, em que somos instados cotidianamente a pensar
em democracia considerando o momento de excepcionalidade
democrática pelo qual estamos passando em 2018, bem como os reflexos
dessa excepcionalidade em todas as políticas e processos sociais que
impactam de forma diferenciada a cidade do Rio de Janeiro de acordo
com o território onde as pessoas vivem.
A intervenção federal (militar) na segurança pública foi decretada
pelo Presidente Michel Temer em 16 de fevereiro de 2018, com duração
até 31 de dezembro do mesmo ano e teve como objetivo declarado “pôr
termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de
Janeiro”, na forma do Decreto n. 9288/18 aprovado pela Câmara e pelo
Senado, no dia 20 de fevereiro de 2018, por ampla maioria. Nunca antes,
pelo menos na história democrática desse país, alguém tinha tido a
ousadia de propor medida tão drástica e excepcional, o que somente pode
ser explicado pelo momento político conturbado pelo qual passava a
nossa frágil democracia, que já havia sofrido uma intervenção política
de exceção com o Golpe de 2016. Mas também não poderíamos dizer
que estávamos vivendo em um Estado plenamente democrático naquele
ano, pois um Estado que se pretenda democrático e de direito deveria
pelo menos garantir direitos básicos previstos na nossa Constituição,
arduamente conquistados (pelo menos formalmente) após mais de 20
anos de ditadura militar (1964-1984).
Falar hoje sobre democracia, intervenção militar e direito à
cidade nos demanda entender o momento político que estamos vivendo.
Em outubro de 2018 comemoramos 30 anos da Constituição Federal de
1988, uma Constituição que muitos apostaram que seria capaz de pelo

8
Professora da Faculdade Nacional de Direito e do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Direito Penal
pela Universidade de São Paulo (USP).

41
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

menos constituir um marco civilizatório. Deveria ser mais que isso, mas,
no momento, se pelo menos a Constituição atuasse como um marco
civilizatório para o aprofundamento no reconhecimento de direitos e
avanço das lutas já seria algo muito importante. Infelizmente o que
estamos vendo hoje claramente são expectativas que foram projetadas
em um texto constitucional e numa ideia, pelo menos formal, de
democracia, mas que não foram concretizadas nesses 30 anos de sua
vigência.
Inclusive por parte de movimentos sociais vimos muitas vezes
esperanças de que esse momento pós Constituição de 1988 pudesse levar
a radicais transformações, mas não só não alcançamos direitos básicos,
como percebemos hoje que facilmente uma conquista formal de
reconhecimento de direitos na lei pode retroceder em pouco tempo. E
esse momento de intervenção militar no Rio de Janeiro, pra mim, é um
retrocesso no quadro normativo constitucional de 1988, que se soma
claramente ao golpe midiático, parlamentar e judicial que depôs a
Presidenta Dilma Roussef em 2016 e levou Michel Temer, seu vice, ao
poder.
Mesmo sendo filiada a um partido que fez oposição de esquerda
aos governos petistas, e portanto, não estando sintonizada com a política
empreendida pelos governos PT nos anos em que esteve no poder, isso
também não me impede de reconhecer o retrocesso que foi o processo de
impeachment, que encobriu um golpe, e como a partir daí verificamos
retrocessos ainda mais graves, especialmente a partir da Emenda
Constitucional n. 95, que impôs um “teto de gastos” inclusive para saúde
e educação e determinou o congelamento investimentos que já não eram
nem suficientes para efetivar direitos sociais.
A ironia maior nesse momento de aprovação da Emenda
Constitucional 95 foi verificar sua propositura por um governo golpista,
“temerário”, que teve espaço e força no Congresso Nacional para tanto,
o que reflete um claro retrocesso em relação a tudo o que já estava escrito
na Constituição. Como professora de direito, numa perspectiva crítica,
de quem vem estudando já há muitos anos políticas de segurança na

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

democracia, política de drogas e suas relações com direitos individuais e


sociais, preciso dizer que pensar a intervenção federal nesse contexto é
reconhecer que vivemos um momento de absoluto retrocesso que
demanda cada vez mais espaços de discussão para que possamos
avançar. Parece que a regra virou exceção e a exceção virou a regra.
Para compreendermos essa engrenagem, interessante
analisarmos o formato jurídico da intervenção, formalmente baseada no
art. 37, inciso IV da CF/88. No decreto consta que seu objetivo é: “por
termo ao grave comprometimento da ordem pública no Estado”,
justamente para dar uma aparência formal de legalidade. Para isso, então,
escolheram o Rio de Janeiro, sem nenhuma justificativa em termos
concretos ou numéricos (não houve registro oficial de aumento da
criminalidade que o justificasse), mas como o Rio de Janeiro é uma
vitrine nacional e internacional, essa intervenção federal veio para criar
uma cortina de fumaça em ano eleitoral e distrair a população. Afinal, o
Governo Temer, já em descrédito, não conseguiria aprovar a reforma da
previdência (PEC 287/2016) e precisava de um factoide que atraísse a
atenção da população, sem que tivesse que funcionar na prática. Seu
objetivo, imagina-se, seria o de criar um discurso midiático na área da
segurança que pudesse influenciar a população em ano eleitoral e desviar
a atenção da derrota política diante da dificuldade de aprovação da
reforma da previdência.
Portanto, conforme (não) planejado, não houve plano ou projeto.
A ideia era a de criar a imagem iria combater a criminalidade que
comprometia a ordem pública,o que significou também o
aparelhamento, a destinação de verbas e a criação de um novo Ministério
da Segurança Pública, entregue a Raul Jungmann, passando o controle
operacional das polícias e da segurança pública, inclusive dos presídios
do Rio de Janeiro, às Forças Armadas.
Esse formato da intervenção demonstra sobre qual segurança
pública essas pessoas estão falando e a experiência da Defensora Maria
Julia nas favelas na importante ação que a Defensoria Pública do Rio de
Janeiro está articulando junto com movimentos sociais, rede de

43
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

advogados populares e vários movimentos articulados na resistência nos


mostra o outro lado. O que estamos vendo é isso: não está sendo pensada
uma política, porque se fosse uma política ruim seria possível criticar,
mas ao menos deveria haver uma política. O que estamos vivenciando é
uma ausência total de política, a não ser a legitimação da atuação das
Forças Armadas como polícia no Rio de Janeiro. O general estava
literalmente vestido de pijama e foi chamado às pressas para ser o
interventor militar, ele mesmo reconhece, quando perguntaram qual era
o plano ele disse que não tinha plano ainda.
Então, é um processo que devemos questionar, inclusive, o
sentido do termo “segurança pública”, uma vez que sequer existia um
plano. Estamos claramente diante de uma definição de segurança pública
que retoma a lógica da ditadura militar, talvez não com esse nome, ao
atribuir formalmente ao Exército a coordenação de uma estratégia de
militarização, que já estava presente nos territórios. A atuação do
Exército nas GLO’s (Operações de garantia da Lei e da Ordem) e o
cotidiano da Polícia Militar nas favelas acabou se tornando um modelo
imposto por um decreto de intervenção para vender uma sensação de
segurança.
Não podemos esquecer que 2018 é ano eleitoral e que 2017
também foi um ano de muitas turbulências. Portanto, o que está por trás
dessa intervenção é o reforço de uma lógica racista, bélica, militarizada,
machista também, mas acima de tudo violenta, que afirma que só
conseguimos ter “segurança” por meio da força, da arma, da guerra, que
coloca as Forças Armadas como salvadoras da pátria, no mesmo sentido
que se colocava esse debate na ditadura, não como segurança pública,
mas com a ideia de segurança do Estado, segurança contra o inimigo
interno.
Os militares em 1964 deram um golpe para prevenir um suposto
golpe comunista. Portanto, do inimigo externo, que seria o comunista,
passou-se a ter como inimigo interno os grupos políticos de resistência
que se organizaram. Assim, com o retorno à democracia (pelo menos
formalmente) deveríamos ter aderido a uma lógica de segurança pública

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

cidadã, mas que não se vê na prática em nenhum momento. Basta


olharmos para a década de 90, início dos anos 2000, quando a Lei dos
Crimes Hediondos nos levou ao maior aumento de encarceramento já
visto no Brasil. Pois foi na democracia que se aumentou o
encarceramento, especialmente a partir da política de guerra às drogas,
que com esse nome reforça a lógica da exclusão, da guerra.
O que está por trás disso? O que está por trás é exatamente uma
concepção de ordem que está prevista no decreto como “ordem pública”,
mas que é a segurança daquele 1% que ocupa o poder, daquelas classes
privilegiadas que não querem perder o controle nem dos meios de
produção, nem dos privilégios. Isso, claramente, se coloca em conflito
com a lógica formal da Constituição de garantia de direitos sociais, de
garantias de direitos políticos, de uma democracia social, de um Estado
Social e Democrático de Direito.
Democracia não é só eleição de quatro em quatro anos,
democracia não pode significar a eleição de representantes do povo sem
que o povo esteja representado no parlamento. Democracia não existe
sem direitos sociais, democracia jamais vai existir sem que as pessoas
tenham casa, sem que as pessoas tenham comida, escola, cultura, etc.
Portanto, esse é um momento também de muito incômodo para todo
mundo, já que estamos vendo não só a negativa de todos esses direitos,
mas também uma intervenção militarizada que foca exatamente nos
territórios nos quais esses direitos são e sempre foram cotidianamente
negados e que, ainda, mesmo com os poucos avanços que se conseguiu
ter, ainda não garantiu sua efetivação.
Portanto, mais do que nunca, é necessário falar de direito à
cidade, e fico muito feliz porque fiz meu mestrado em direito à cidade
na UERJ, então, de alguma maneira, quando eu fui estudar prisão e
sistema punitivo, como este impacta a cidade e os territórios,
especialmente a partir da perspectiva da intensificação da repressão e da
lógica da militarização da polícia, eu verifiquei como o serviço público
que mais chega nas favelas e comunidades é o braço repressivo do
Estado, a polícia.

45
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Como diz Zaffaroni, em oposição à lógica do Estado de Direito,


existe a lógica do Estado de Polícia, e essa tensão é inerente e constante.
O professor argentino diz que há momentos em que se tem um Estado de
Direito mais amplo, em países com maior nível de desenvolvimento, mas
que o Estado de Polícia está sempre latente. No momento atual, o que
vemos no Brasil e, mais especificamente no Rio de Janeiro, é uma
ampliação do Estado de Polícia que se baseia nessa lógica radical da
intervenção federal, que tem exatamente o sentido de dispersar nossa
atenção do que precisa ter foco, que são as conquistas sociais, os avanços
na garantia de vida da população. Então, falar de resistência hoje é falar
em insistência, porque nem conseguimos alcançar um nível mínimo de
garantia de direitos sociais e já vemos um retrocesso, especialmente no
investimento via fundo público que é direcionado à militarização e não
é aplicado para a garantia da efetivação de direitos.
Portanto, falar de segurança pública também é pensar: segurança
pública para quem? A segurança pública hoje, com esse nome inclusive,
é explorada com base no medo, porque as pessoas têm medo. Certo? E
Dani Monteiro falou muito bem. Essa ideia de segurança pública visa à
manutenção dessa lógica excludente, racista, violenta, que também não
começou hoje; que é estruturante do nosso país. Afinal, o nosso país já
começa com o genocídio indígena. Hoje vemos os reflexos do genocídio
da população de jovens negros, que moram exatamente nesses espaços
onde são identificados como inimigos, bandidos, suspeitos, e a
militarização só reforça esse papel.
Estamos aqui no momento de pensar: segurança para quem? Se a
segurança é para as elites, o remédio é mais prisão, mais polícia, mais
vigilância, inclusive privada, mais presídios, inclusive presídios privados
– esse é um desafio, não é? – estigma, racismo, machismo e homofobia.
Essa sociedade também é violenta com todos os grupos sociais
identificados como minoritários, mas que, na verdade, se pensados
conjuntamente, são majoritários. Então, sobre essa lógica de segurança
pública, temos que repensar o próprio termo. E relacionando segurança
pública com direito à cidade, devemos pensar que segurança pública é

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

exatamente o contrário do que se fala hoje, como uma segurança contra


a criminalidade ou uma segurança contra a violência urbana.
A segurança pública deve ser pensada na perspectiva da
segurança dos direitos, como diz Alessandro Baratta, da garantia dos
direitos. E isso não pode ser um discurso qualquer: “ah, lá vem aquele
povo da esquerda falando em direitos...”. Mas é sim. É falar de direitos
sociais, é falar de direitos humanos. As pessoas têm tanto medo de falar
sobre direitos humanos... vide certos políticos e candidatos da direita...
mas eles têm tanto medo desse termo “direitos humanos” justamente
porque é essa articulação, esse fortalecimento das lutas na base social,
por direitos humanos, por direitos sociais, por direitos coletivos que é
capaz de tensionar o poder. Somente essa luta será capaz de efetivar a
nossa democracia, de efetivar uma luta que estará em todos os espaços,
inclusive dos(as) estudantes de direito, será um espaço da
democratização da justiça, no espaço da Defensoria, com uma
articulação com movimentos sociais. No espaço do Poder Executivo
devemos tensionar nesses conselhos de políticas públicas, aumentar a
participação popular, levar essas reflexões para os territórios afetados,
que muitas vezes reproduzem essa lógica que se volta contra eles... São
demandas sociais urgentes.
A resistência está em repensar a política habitacional
compreendendo que não pode ser no formato de um projeto como, por
exemplo, o Minha Casa Minha Vida, se você não garante todo o direito
à cidade. Não é só você colocar as pessoas para morar num lugar do outro
lado da cidade, onde não há transporte, escola, onde as mulheres também
têm medo de transitar à noite porque também trabalham e demoram a
chegar em suas casas. É pensar que moradia, saúde, educação, transporte
e todas essas políticas urbanas são essenciais para a transformação da
nossa realidade, mas elas precisam estar articuladas no seu sentido mais
radical democrático de acessibilidade e de justiça social.
Acima de tudo, devemos falar de justiça social. Temos que
compreender que o discurso do medo é muito pesado. O discurso do
medo atinge a todos nós, certo? Especialmente na Zona Oeste da cidade

47
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

do Rio de Janeiro, hoje, quem está na Zona Oeste está falando de medo,
do medo das mulheres que têm medo de chegar em casa porque não tem
transporte, então têm medo de serem estupradas. Falar de políticas
sociais é falar de políticas que vão reconhecer as adversidades da classe
trabalhadora, daqueles que têm o direito – não é favor nenhum. Talvez
só consigamos avançar no momento em que tenhamos uma comunicação
e uma organização muito mais ampla do que temos atualmente, no
sentido de, coletivamente, aumentar a conscientização de que moradia,
saúde, educação, cultura, esportes e todas as políticas sociais não são
favores de ninguém, que ninguém dá à população. São direitos imanentes
à própria condição nossa coletiva de cidadãos e cidadãs.
Portanto, nesse momento em que estamos vivendo esse cenário,
vou terminar com essa frase da Raquel Rolnik: “mais do que nunca, em
tempos de desconstrução do Estado de Direito, ou pelo menos das
utopias que alimentaram as lutas nessa direção, falar sobre o Direito à
Cidade como um desafio teórico político é fundamental” . É essencial
9

reconhecer a importância desse debate sobre o Direito à Cidade nesse


momento de crise da democracia, nesse momento ao mesmo tempo de
muita luta, de muita resistência. Então é muito bom estar aqui com vocês.
Quero conhecer os trabalhos também para podermos avançar nessa luta
coletiva, nessa resistência, numa transformação que vai muito mais além
do que conseguimos até hoje. Portanto, acima de tudo, é tempo de
esperança, é tempo de luta e é tempo de resistência, sim, mas também de
insistência e avanços. Porque são nesses momentos de crise que
tensionaremos as estruturas para podermos ter uma sociedade
radicalmente diferente daquela que existe hoje.

Debates
Platéia (01): Qual seria então o papel das Forças Armadas para a
segurança no Brasil? A pessoa que integra as Forças Armadas fica dentro

9
ROLNIK, Raquel. Quarta capa. In: BELLO, Enzo; KELLER, Rene José. Curso de
Direito à Cidade: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

dos quartéis limpando canhões, armas, tomando puxões de orelha por


não se passar a farda, por acordar atrasado. Então qual seria o papel das
Forças Armadas, tendo em vista que o problema de insegurança é muito
grande. Não sei se eu compactuo com o que foi dito em relação à
necessidade, ou não, dessa intervenção federal pelo fato de que o Estado
do Rio de Janeiro de repente não é o mais perigoso do Brasil, tendo em
vista a questão das mortes de policiais que acontecem no Rio de Janeiro
(em número muito grande), considerando o atentado que aconteceu em
Londres ao Parlamento, quando um brasileiro foi entrevistado e
perguntaram se ele tinha medo, e ele disse “não, eu não tenho medo não,
eu sou do Rio de Janeiro, né?”. Ele já está acostumado com a questão da
violência. Qual seria, então, o papel das Forças Armadas nesse contexto?
Eu só queria deixar também o relato de uma experiência. Eu moro em
Itaboraí e passo todos os dias pela rodovia BR 101, e ali a gente sabe que
tem um número muito grande de arrastões. Eu só escutava falar, até que
semana passada eu estava passando pela BR 101 e, de repente, os carros
voltavam na contramão; e eu desesperado, com as pernas tremendo, as
pessoas buzinando e gritando “vai, vai, vai!”, meu carro não tem direção
hidráulica, e eu nervoso tentando fazer a volta, até que apareceu um carro
da Polícia Federal juntamente com veículos do Exército, liberando a
pista para que pudéssemos chegar em casa. Eu sei que essa intervenção
federal é a primeira desde a Constituição de 88, mas ao menos naquela
situação ali a intervenção federal foi boa para mim, pelo menos.
Platéia (02): A minha preocupação é principalmente com o ponto de
vista institucional. Vivemos em um ambiente de tremendo mal estar de
violação ao Direito à Cidade. Especialmente aqui, no território do Rio de
Janeiro, convivemos com essas variadas experiências que nos dão
mostras dessa onda avassaladora de retrocesso, de militarização. Ao
mesmo tempo, temos uma violação presente no Decreto 9.288, a
violação de variados preceitos constitucionais. Primeiro, porque é
desproporcional. Quando pensamos na intervenção federal, pensamos
num instituto muito grave. O que dá fundamentação ao Estado federal,
cuja marca predominante é justamente a da autonomia dos entes

49
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

federativos. A descentralização é o reconhecimento de que o princípio


da não intervenção é o princípio que deveria estar sempre presente. Não
é um instrumento jurídico de exceção para ser banalizado, sobretudo
quando observamos que o conjunto de circunstâncias não fundamenta
esse decreto. Caracteriza-se a violação de preceitos como o princípio da
proporcionalidade, o princípio da economicidade – causou surpresa, por
exemplo, o relatório do Tribunal de Contas da União questionando a
origem dos recursos e também apontando claramente os seus aspectos
inconstitucionais. O PSOL, numa petição muito bem fundamentada,
conseguiu junto ao Supremo Tribunal Federal que o ministro Ricardo
Lewandovski fosse designado relator da ADI 5.915, que questiona
variados aspectos inconstitucionais do decreto de intervenção. Ausência
de fundamentação expressa é algo grave. Deve existir uma devida
fundamentação, muito bem sustentada, muito bem arrazoada. A ADI
5.915 aponta a inobservância de preceitos formais que a Constituição
prevê nos artigos 34 a 36, especialmente o 36. Não houve, por exemplo,
a oitiva prévia do Conselho da República, dos Conselhos de Estado, além
disso houve uma composição incompleta do Conselho da República,
visto que faltava ali a eleição, até hoje, nesta legislatura. A Câmara dos
Deputados e o Senado Federal não elegeram os tais dos brasileiros natos
nomeados para preservar o estatuto oficial do Conselho da República. E,
acima de tudo, o que é mais grave, a acentuada militarização.
Especialmente quando num belo dia, numa ressaca pós carnavalesca,
amanhecemos assombrados por um decreto de intervenção realizado
após 30 anos de vigência de uma Constituição em que nutríamos
esperança que seria democrática, porque esse é o espírito da nossa
Constituição, esse decreto furtivo, sem discussão, inclusive com os
Conselhos de Estado, com o Conselho de Defesa Nacional, com o
Conselho da República... E, acima de tudo, levando em consideração
que, aqui no Estado do Rio de Janeiro, especialmente na cidade do Rio
de Janeiro, sofremos com sucessivas operações de GLO (Garantia da Lei
e da Ordem). No mesmo dia estava sendo inaugurada mais uma operação
de GLO, ainda sem os efeitos do decreto de intervenção, a GLO do

50
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Chapadão. Antes disso, em Manguinhos, Maré, Alemão, Rocinha,


convivemos com variadas etapas de GLOs em curso. Então, pensar em
intervenção federal ao mesmo tempo em que, simultaneamente, temos
várias operações de GLO em curso no Rio de Janeiro e as medidas de
execução, que não foram pensadas, que não foram gestadas, o que vai de
encontro ao princípio da eficiência e, sobretudo, os seus efeitos
imediatos. Vemos aí sinais claros de diminuição dos índices de
segurança, da nossa segurança pública, e com a gravidade de forma
debochada, de forma cruel, a ousadia da execução. Então é mais sobre
esses aspectos técnicos que nós, como professores de direito, temos a
obrigação de nos posicionarmos. E sobretudo pela característica muito
grave das nossas frágeis democracias latino-americanas, convivermos
com um decreto de intervenção que, possivelmente, será uma escalada
de forças conservadoras, de discursos de ódio e de, mais adiante,
convivermos com a banalização de decretos de estado de defesa e estado
de sítio.
Luciana Boiteux: Sobre a questão da segurança, é importante a pergunta
sobre o papel das Forças Armadas. Essa sensação de insegurança que
temos na sociedade não será resolvida nem pela polícia e nem pelas
Forças Armadas. Podemos pegar pesquisas, mas eu sei que no debate
público isso não importa nada, porque essa é a verdade. Eu, como
acadêmica, às vezes me vejo naquela situação... mas tanta gente já
pesquisou sobre isso... Ou vamos pensar, e por isso essa minha
articulação com o modelo dos seminários sobre Direito à Cidade, ou
vamos falar de políticas públicas capazes de, efetivamente, garantir
direitos, ou não vamos, estaremos sempre pensando em polícia, Exército,
Marinha e Aeronáutica. E tem mais. Há reflexões que posso passar como
a seguinte: se você tiver um policial em cada esquina – esse ideal que é
o da militarização ao extremo –, nem assim todas as pessoas estarão
seguras. Mas temos que pensar, necessariamente, além dessa lógica de
que segurança pública é a ideia de segurança contra o crime, contra a
violência urbana, porque, na verdade, não é. O que vivenciamos hoje, em
termos de números, inclusive após a intervenção, eu recomendo aqui pra

51
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

quem quiser, existe um relatório sobre a intervenção no Rio, do


Observatório da Intervenção do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/UCAM) , em que 10

os dados são alarmantes. O que ele vai mostrar é que não houve redução
dos índices de criminalidade durante a intervenção. Já houve um alto
número de mortes e não se reduziu o roubo de cargas, não se reduziu
violência, houve um aumento do número de roubos. Se as Forças
Armadas ou a polícia resolvessem, no mínimo teria que reduzir o número
de roubos. O que está acontecendo hoje, na minha avaliação, é que, como
não há planejamento, e como estão utilizando a estratégia errada, essa
intervenção está agravando a situação da segurança cidadã no Estado do
Rio de Janeiro. Porque segurança cidadã é diferente de segurança
pública. Mas eu poderia utilizar a mesma palavra para dizer o que eu
estou refletindo aqui. O papel das Forças Armadas na Constituição é
limitado ao controle das fronteiras e as Forças Armadas devem ficar no
quartel, sim, limpando arma, fazendo treinamento - vocês me perdoem,
mas esse é o papel constitucional – preparando-se para o dia em que
precisem ir para a guerra. Esse é o papel das Forças Armadas. Essa lógica
de trazer as Forças Armadas para segurança pública, isso é
antidemocrático! E há equívocos também na Constituição, por exemplo,
no erro que deve ser debatido, inclusive, com um professor de Direito
Constitucional, que é um erro também grave, inclusive Maria Júlia
poderia falar depois um pouco sobre isso, que é, por exemplo, você
considerar as Polícias Militares como auxiliares das Forças Armadas.
Isso é uma permanência arbitrária. Isso é lógica do Estado de Polícia. O
que é o Estado de Polícia e o que é o Estado de Direito? O Estado de
Direito é aquele no qual prevalecem as leis e o direito. O Estado de
Polícia é aquele em que manda quem pode e obedece quem tem juízo. É
a força, é a violência, que vão nos levar a nos estruturarmos com base na

10
OBSERVATÓRIO DA INTERVENÇÃO. Cinco Meses de Intervenção Federal:
Muito Tiroteio, Pouca Inteligência. Rio de Janeiro: UCAM. Disponível em:
<http://observatoriodaintervencao.com.br/wp-
content/uploads/2018/08/RELATORIO_04_observ-interv_FINAL_com-isp1.pdf>.

52
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

força e na violência. Se formos para esses territórios das milícias, se


formos para esses territórios onde é o tráfico de drogas que comanda, e
a polícia está ali para receber dinheiro de corrupção, e o Exército está ali
para usar armas que não são adequadas para aquele território e também
para fazer vistorias em moradores, o que é absolutamente ilegal e
inconstitucional, o que fazemos é ceder ao medo e dar de bandeja, para
uma lógica autoritária, uma perspectiva de solução que sabemos que não
dará certo. Então o papel das Forças Armadas é o de estarem preparadas
para guerra, se um dia o Brasil entrar em guerra, e mesmo na guerra
existem leis. O Direito Humanitário não autoriza as Forças Armadas de
país nenhum a atirar numa pessoa como se faz hoje aqui no Rio de
Janeiro. Então, o que existe aqui é um estado de barbárie. Temos que
radicalizar a democracia, não reduzir a democracia. Eu não entrei nos
aspectos constitucionais, é importantíssima aqui a contribuição da
Magna, porque, de fato, hoe eu sequer vejo a intervenção federal como
ato, como algo possível no Estado de Direito. É um ato de poder. É um
ato de poder dentro de um estado de exceção que estamos vivendo. E não
estou exagerando quando falo em estado de exceção. Não é só retirar a
Dilma Rousseff. É tudo que houve de retrocessos nos últimos anos no
Brasil. Então, a intervenção é claramente inconstitucional, mas eu
duvido, eu aposto que nenhum tribunal vai declarar a
inconstitucionalidade . Porque nas disputas do Judiciário está tudo já
11

acertado - e o Judiciário também é um campo de disputas. Como é que


é? É o acordão, com o Supremo, com tudo! Não é isso? Então, nesse
sentido, também não podemos ver a intervenção como um mero
mecanismo novo. Ela só vem aprofundar essa lógica das operações de
garantia da lei e da ordem, que já estavam ali configuradas inclusive nos
governos de Dilma Rouseff. E aqui eu falei que foi golpe, mas falei que
essas lógicas militarizadas e esse estado de exceção já vinham também

Até o fim da vigência da intervenção federal, em 31 de dezembro de 2018, o relator,


11

ministro Lewandowski, não apreciou o pedido de liminar, nem levou a ADI 5.915/DF
ao plenário para julgamento de mérito.

53
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

em alguns mecanismos desde os governos Dilma, especialmente a Lei


Antiterrorismo (Lei federal n. 13.260/2016), que é feita para criminalizar
movimento social. Essa é a lógica das operações de garantia da lei e da
ordem, que custam fortunas. É muito dinheiro. Quem ganha dinheiro
com operação de lei e ordem? O Exército, que estava meio baqueado e
agora conseguiu comprar um pouquinho mais de armamento; as
indústrias de armamento... Não se mexe na lógica das organizações
criminosas, que estão instaladas inclusive nas Assembleias Legislativas,
no governo Temer, nas Câmaras Municipais. Então, essa lógica da
intervenção federal só favorece a lógica das organizações criminosas, da
violência, da exclusão da classe trabalhadora e dos movimentos dos
territórios vistos como violentos. Mas ao mesmo tempo existe uma
grande demanda midiática. Ficamos com medo, então, “eu quero que o
Exército esteja ali...”. Mas não vai resolver. Não vai resolver e os riscos
são ainda muito maiores. Porque, quanto mais armamento pesado sem
ter um espaço também... Poderia haver uma situação em que,
constitucionalmente, muito excepcionalmente, como disse Magna, a
intervenção esteja prevista. Mas não estamos num Estado em que, no
momento, isso seja a solução. Se fosse o caso de uma intervenção, tinha
que ser muito bem pensada, muito bem dialogada. Mas não é o caso.
Então é botar mais fogo na fogueira. Efetivamente, não temos um cenário
nada favorável nos últimos anos. Mas estarmos aqui, pensando
criticamente, já constitui um espaço de resistência necessário.
Dani Monteiro: Qual é o papel das Forças Armadas, Matheus? Eu acho
que Luciana já colocou aqui. O papel das Forças Armadas é o de agir em
caso de guerra, de invasão do território brasileiro ou de promover
invasões em territórios de outros países, mas seguimos uma lógica de
militarização, inclusive para a polícia, inclusive, até hoje a polícia é
vinculada às Forças Armadas. Para termos uma ideia, por exemplo, a
aquisição de armas e munições para a Polícia Militar só é feita com o
aval do Exército. E esse aval é no entendimento de que o Exército cuida
dos equipamentos, das armas, mas não criamos conselhos ou modos de
fiscalização dessa munição, dessas armas. O que acontece é que essa

54
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

fiscalização não é feita pelo Exército e ocorrem, ao longo desse processo,


diversos desvios. Por exemplo, as balas que executaram Marielle Franco
fazem parte do mesmo lote de balas que executaram 21 jovens na
periferia de São Paulo, em Osasco e Barueri. Então, se analisarmos o
reflexo dessa forma de gestão militarizada constatamos que não existe
um controle nada democrático e nada coletivo dos processos. O controle
fica na moral, na velha “moral e bons costumes”. E aí, para entendermos
como essa lógica de militarização não tem nada a ver com a lógica de
segurança pública, ou não deveria ter, eu vou trazer um exemplo bem
atual, que é a questão do roubo de cargas no Estado do Rio de Janeiro.
No roubo de cargas existem dois elementos que precisamos entender e
refletir a respeito. O primeiro é que as operações de roubo de cargas são
praticamente as primeiras que promovem a integração das polícias.
Embora existam vários de tipos de polícias e nem se saiba direito para
que elas servem, elas não dialogam entre si. Isso não existe, isso não é
natural. Para termos uma ideia, a primeira vez que os generais de cada
polícia se reuniram foi com o deputado Marcelo Freixo, para pensar uma
pauta da Comissão de Direitos Humanos. Não existe integração das
polícias. Mas as operações de roubo de cargas trouxeram isso como
novidade. Nessa atuação podemos destacar dois pontos: o primeiro ponto
foi essa questão da integração e dentro da atuação, em si, de um lado está
a atuação da Polícia Civil, que faz uma investigação prévia junto ao
Ministério Público e já sai com diversos mandados de prisão, em relação
a toda a estruturação da quadrilha de roubo de cargas que ela está
investigando. Desde o sujeito que porta um fuzil e atravessa a Avenida
Brasil como um louco e para um caminhão em movimento, até o sujeito
que é o comerciante, o dono desse esquema, que financia, tem uma
lojinha que vende e distribui para os ambulantes, em todo o Estado do
Rio de Janeiro. E aí essa operação funciona com basicamente 100 a 150
policiais, e praticamente não dispara nenhum tiro; a cada operação,
prende basicamente toda a quadrilha, do chefe até o sujeito da ponta.
Nessa questão do roubo de cargas, existe essa operação da Polícia Civil.
Do outro lado, tem-se a atuação do Exército e da Polícia Militar, com

55
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

cerca de 1.500 homens, que vão para as principais vias da cidade, fecham
todas elas, criam engarrafamento, caos... Eu moro do lado da Linha
Amarela e da Avenida Brasil. Às vezes, em horário de rush ocorrem
essas blitzes. E nessas blitzes não é apreendida praticamente nenhuma
carga e não são presos ladrões de carga. Ou seja, de um lado existe uma
operação midiática de 1.500 homens sem resultados consistentes e, do
outro lado, há uma operação de 100 homens que prende sem disparar
nenhuma bala. E, do lado de cá, 1.500 homens impondo uma rotina de
terror para os moradores de favelas, porque é normal que eles parem os
ônibus, os carros e as motos apontando armas para as pessoas. E não é
qualquer arma; é um 762, que é maior do que um fuzil. Eu já ouvi nessas
blitzes dos policiais que “ah, não! Intervenção federal agora a gente pode
atirar, se não parar a gente pode atirar com essa arma”. Então, existe uma
lógica de polícia que não funciona para o que ela alega que tem que
funcionar. A lógica da intervenção federal não funciona para o roubo de
cargas. A lógica de militarização, de mais polícia nas vias, não está
funcionando. E a lógica da nossa segurança pública, de modo geral, não
está funcionando porque gera um banho de sangue, para todos os lados.
No ano de 2018 ocorreram 1.124 mortos no Estado do Rio de Janeiro por
operações policiais em territórios de favela. Do outro lado da arma, tem-
se a morte de 138 policiais, sendo que a maioria deles não foram mortos
em serviço. Ou seja, existe uma lógica que deixa vulnerável também o
policial. Porque é ele que está ali também. E o último policial que foi
morto saiu do Batalhão 41º, tão famoso; o cara foi morto com um tiro na
cara saindo de um shopping. Então, que vida, que direito à vida esse
policial tem? E que direito à vida tem aquele soldado que hoje atua
nessas operações? Porque muitas vezes ele mora em favela. A menina
que mora comigo, o irmão dela foi expulso da favela em que mora porque
é soldado e agora o Exército também entra nas favelas. Então temos que
pensar sobre isso. Essa intervenção federal não soluciona nada, ela só
enxuga gelo. A lógica da intervenção federal é militarizar ainda mais a
lógica da segurança pública, na mesma lógica de se enxugar gelo. A
Maré, por exemplo, sofreu intervenção federal por 9 meses durante o

56
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

período da Copa do Mundo de 2014. Foram gastos R$ 600 milhões dos


cofres públicos; no dia seguinte em que a intervenção saiu da Maré, o
tráfico voltou e continuou ali. Para a vida das pessoas, ficou um legado
de militarização, de se ver tanques de guerra e armas de guerra nas suas
casas. E uma coisa que nunca se viu, porque durante a intervenção
federal havia um policial para cada 55 moradores da Maré, mas nunca se
teve a mesma proporção para médicos e professores na Maré. Então,
trata-se de uma lógica de que se vai resolver os problemas daquele
território com mais policiais. E aí, temos que pensar que vivemos tempos
de barbárie. Eu considero que a execução de Marielle Franco traz ainda
mais barbárie. É inadmissível que uma vereadora – independentemente
das suas posições políticas –, que, inclusive, teve 46.502 votos, seja
executada no centro da cidade numa noite de semana normal. Se
naturalizarmos isso, naturalizaremos que opiniões políticas divergentes
das nossas – e sabemos que o crime praticado contra Marielle foi uma
execução política, embora ela tenha morrido como qualquer jovem negro
morre diariamente – trarão uma barbárie, que é a execução da opinião
divergente. Não podemos aceitar isso. A defesa da democracia é a defesa
da pluralidade. É a defesa de podermos fazer aqui uma mesa como essa
e depois que falarmos vir alguém aqui e discordar de tudo que falamos,
respeitosamente. É esse Direito que queremos. Não queremos o direito
da esquerda, o direito do campo progressista. Queremos o direito de todo
mundo. Queremos o direito de se posicionar, debater e encaminhar as
coisas coletivamente entre todos. Então, considero que a nossa luta, no
mandato usávamos muito a frase que “os nossos passos vêm de longe”
porque a nossa luta nessa terra ainda é por liberdade, que hoje se
configura pela defesa da democracia, pela defesa do direito das opiniões
divergentes e pelo acesso aos direitos de todos e todas que é negado ainda
que tenhamos uma Constituição vigorando, ao menos em tese. Então
nossos passos vêm de longe porque a nossa luta nesse Brasil ainda é por
liberdade.
Maria Júlia Miranda: Agradeço o convite do Enzo Bello para fazer
parte de uma mesa feminina e feminista. Nos últimos tempos existe um

57
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

crescimento do papel das Forças Armadas de uma forma geral na política


brasileira. Isso começa no governo Dilma e se intensificou no governo
Temer. E não podemos esquecer que em 2017 foi aprovada uma lei que
amplia a competência da Justiça Militar, ou seja, um militar que participe
de uma operação como as que aconteceram no Morro do Salgueiro, em
São Gonçalo, se matar alguém não será mais julgado pela Justiça
Comum, mas pela Justiça Militar. A Defensoria Pública inclusive levou
o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As
medidas de exceção têm sido uma constante nos últimos tempos. Vários
projetos de lei, por exemplo, estão tramitando no Congresso Nacional,
que visam enquadrar manifestações políticas como atos terroristas e
vários desses projetos de lei têm como justificativa ocupações urbanas e
rurais. Mais uma vez agradeço pelo convite.

58
- II -
OCUPAÇÕES CULTURAIS: CONSTITUINDO OUTRA
CIDADE

Larissa Amorim 12

Eu faço parte da Peneira, organização que atua em vários


territórios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Estamos muito
ligados ao que está dentro, não só na capital,na cidade do Rio, mas
queremos pensar a região metropolitana toda. Em uma conexão dos
territórios envolvendo a galera que vem da Baixada Fluminense, a galera
que vem de Niterói e São Gonçalo para o Rio.
Temos um fluxo intenso e incessante de artistas e de fazedores de
cultura na nossa realização, o Sarau do Escritório, uma das nossas
atuações na Lapa há 5 anos. Fazíamos esse evento mensalmente, mas
atualmente por questões de recursos, de escassez de verbas, editais etc.
temos reduzido a quantidade de edições, mas a nossa próxima edição
ocorrerá no Festival do Poder Público; quem quiser chegar lá para nos
conhecer será super bem-vindo.
E, basicamente, pensamos aquele espaço, tipo o Sarau do
Escritório, que acontece na praça, intitulamos Praça Luana Muniz, mas
se chama Praça João Pessoa, na Lapa,na a esquina da Rua Gomes Freire
com a Avenida Mem de Sá. Aparentemente aquilo dali era só uma quina
de uma encruzilhada e, na verdade,é uma praça que entendemos como
um território a ser ocupado, sim, por cultura. A Lapa é um trecho
gigantesco basicamente ocupado por bares da Ambev etc. Nas calçadas
por toda a Lapa não há bancos para se sentar, na verdade os espaços de
convívio estão muito dentro dos bares, ou seja, você paga por eles, ou
você fica alheio entre uma mesa ou outra, e fica parado torcendo para
ninguém pedir para você sair (“ah, dá licença, sai daí!”).

12
Integrante do Grupo Peneira (http://en.peneira.org/about-us/).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Então, entendemos que o sarau era um ponto de resistência em


relação a isso. Como podemos repensar e ressignificar essa cidade pelo
viés da cultura, pelo viés da multi linguagem? O sarau reúne gente que
produz pela poesia, pela performance, pelo teatro, pela dança, pelas
disposições artísticas e queremos seguir fazendo isso porque acreditamos
muito na importância de estarmos modificando, sendo corpos que
modificam essa cidade sabendo que defendem a diversidade, a diferença
e essa multiplicidade que é o Rio, a região metropolitana. Falamos muito
nisso.
Na Peneira também executamos outras atividades. Fazemos
também o Cineflan, um Cineclube que rola em Vila Isabel e também
disputa um espaço numa praça pública, a Praça Tobias Barreto. Para
quem conhece a UERJ, ali é próximo da Mangueira. Temos a Cineflan
também como um espaço de diálogo e debate sobre a cidade, e uma
janela mesmo para a produção independente para exibição de curta-
metragens, médias, enfim a galera que está nesses corres e produzindo
pensando mesmo, querendo debater linguagem, debater temas. Estamos
de pé e cabeça para fazer diálogo, e o próprio teatro também é uma outra
via muito importante para a Peneira, e também nos últimos tempos temos
nos materializado muito na rua.
Os dois últimos espetáculos que a Peneira fez foram muito
provincianos e dialogavam se misturando com as memórias e territórios
de Japeri. Japeri é um município da Baixada Fluminense quem tem o
IDH mais baixo do Estado do Rio de Janeiro. Fizemos um processo de
imersão lá durante 3 ou 4 meses, produzindo muito e pensando naquele
território junto com a galera do grupo Código, um grupo de teatro de lá
que tem uma atuação há mais de 12 anos. Essa também é uma das formas
de se pensar em direito à cidade, pensar esse acesso de direito à memória,
enfim, como ocupamos esse espaço. Acho que é isso. É um pouco do que
estamos fazendo.

60
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Letícia Brito 13

Sou Letícia Brito. Eu organizo o visual das minas desde maio de


2017. Antes disso, eu tenho um histórico com o Slam e com o sarau 14

bastante grande. Eu organizava um sarau que surgiu na mesma época do


Sarau do Escritório, que ocorria na praça e numa pizzaria. E ocupar
também um espaço privado dentro da Lapa sem cobrar ingresso também
era uma forma de resistência na ocasião. O Slam é uma batalha de poesia,
não sei se vocês já viram essa competição que é tipo uma brincadeira,
uma competição em que há um juri que dá notas para os poemas e em
geral isso tem acontecido com formato de quilombo urbano, que
chamamos de uma ideia de se ter um espaço de resistência de ocupação
da cidade. As poesias que são faladas no Slam são muito caracterizadas
pelas identidades das pessoas que estão participando. São poesias que
falam daquelas vozes que em geral são muito silenciadas pela sociedade.
Desde mulheres, pessoas LGBT, pessoas negras.
Em 2017fizemos 3 edições do nosso Slam e mais uma final. Em
todas as edições as pessoas que ganharam foram mulheres negras e a
maioria era de mulheres negras e lésbicas. Então, temos claro que se é
um espaço que está dando voz para essas pessoas, acaba sendo um
espaço político também.
O Slam chegou no Rio de Janeiro por meio do Tagarela. Eu ajudei
a organizar o Tagarela durante 3 anos, em 2013, 2014 e 2015. Em
setembro de 2013 o Tagarela surgiu na época das manifestações
[Jornadas de Junho de 2013]. Então falávamos poesia, era através do
Slam que falávamos poesia no megafone. Foi uma estratégia de burlar a
questão dos alvarás. Como tínhamos um megafone, um megafone se

13
Poeta. Integrante do Slam das Minas - Rio de Janeiro.
14
Nota dos organizadores: O Slam ou poetry Slam começou em Chicago (EUA) na
década de 1980 e consiste uma modalidade de arte urbana envolvendo disputas entre
artistas que apresentam em público poesias, recitais, músicas, improvisos. Suas
performances são julgadas pelo público presente ou por comissões julgadoras. Na
última década os Slams têm sido muito difundidos em São Paulo e no Rio de Janeiro.

61
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

caracteriza por artista de rua, você não precisa de autorização para nada.
Então fazíamos o sarau usando o megafone. No Largo de São Francisco,
na frente do IFCS-UFRJ. O Tagarela ainda existe, mas eu não estou mais
envolvida na produção dele. Ele continua, é o primeiro Slam da cidade,
ele continua vivo.
O Slam das Minas vem numa ideia muito semelhante à do
Tagarela. Também tentamos não pedir autorização para nada. Temos
uma caixa à bateria do tamanho de uma mala, mais ou menos, e um
microfone. E isso é complicado porque acabamos fazendo, é tanta gente
que quer participar, que quer cantar, que quer falar e temos um
equipamento que não dá vazão para a potência artística das pessoas. Na
última edição foi complicado porque a mina tinha violão, caixa de som,
mesa de som e não sei o quê mais… e a minha caixinha à bateria não
dava conta do quão artista ela é, mas tudo bem.
O pessoal entende também isso. Chegamos lá e estendemos uma
bandeira, colocamos uma caixinha de som e pronto… quando você vê,
na última edição, tivemos em torno de 500 mulheres, a maioria mulheres,
também havia homens, mas generalizando havia cerca de 500 mulheres
presentes no Largo do Machado. Isso é muito potente para nós, isso é
muito impactante para nós, sabendo que o que estamos fazendo está
dando vazão para alguma coisa que infelizmente o Estado não está dando
vazão de suprir de alguma forma.
Então, se tivéssemos a simplicidade das legalizações das coisas,
de autorização, de facilidades, menos burocracia, talvez conseguíssemos
fazer eventos maiores, mas talvez possamos fazer uma espécie de Rock
in Rio de sarau. Estávamos até conversando sobre isso: como temos que
encarar uma série de autorizações numa lista que passa por Corpo de
Bombeiros, Polícia, Prefeitura, enfim, para podermos colocar esse tipo
de evento na rua. Existe a lei do artista de rua, mas entre a lei do artista
de rua e entre o Rock in Rio, não há nenhum meio termo que contemple
o formato de evento que tem variedade. Na verdade, em 2015 lançamos
aquele mapeamento do sarau que contava com mais de 133 saraus para
uma metrópole como o Rio de Janeiro.

62
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Hoje com certeza, ainda mais somando ao deslanche, existe uma


potência tremenda mais de 20 Slams, existe uma demanda real com o
olhar para este território, para se olhar para estes espaços. São muitos
territórios populares, territórios periféricos das favelas. Claro que conta
muitas vezes, uma vez você fazendo no centro do Rio de Janeiro e você
fazendo na ZonaOeste, você contará com outros tipos de empecilhos.
Claro que isso acontece, mas o ponto não é só esse, mas é como você
viabiliza também. Existe todo um gerar de economia dentro desses
eventos.
A quantidade de ambulantes e de pessoas artistas que também
estão vendendo seus itens, vendendo seus materiais, vendendo suas
aquarelas. Enfim, é uma rede, uma cadeia muito grande e isso é assim,
não temos nenhum ponto de luz. Na verdade, há uma burocracia absurda
parase conseguir algo com a Reluz. Já contamos com essa precarização
de organizar eventos sem recursos, sem falar nos riscos de segurança,
por exemplo essa história dos meninos de Maricá que foram
assassinados. Eles faziam um sarau de poesia em Maricá num espaço que
é um quilombo, sofreram uma ameaça da milícia e foram
assassinados.Isso porque a milícia entendeu que a questão da resistência
cultural que eles estavam fazendo ali era muito potente e era uma
ameaça.
Nunca recebemos nenhuma ameaça assim, pelo menos nós do
Slam das Minas, muito diretamente, mas por exemplo compartilhamos
uma página falando sobre homicídios e aí sofremos perseguição a partir
de uma outra página (“Quem não morreu de homotransfobia hoje?”). E
a página tentou, ficou nos perseguindo e fazendo ameaças, então eu pedi
orientação para uma advogada e ela me falou “tire esse cara da página,
delete tudo que ele colocou, mas mantenha o post para você saber se isso
der problema no futuro”. Então, assim acaba sendo uma espécie de
ameaça a que ficamos sujeitos.Será que esse cara vai aparecer no meu
evento junto com uma galera do MV Hélio? Será que ele é da milícia?
Nunca sabemos de onde vem a arma, então é difícil.

63
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Acho interessante vocês trazerem o assunto da segurança, porque


na mesa anterior, na fala da Dani Monteiro, ela até ressaltou uma roda
de rima que acontece em Manguinhos que na última edição reuniu 500
pessoas, num baile funk mesmo de 5 mil pessoas, de quanto isso pode
ser visto por algumas instituições formais, ou não (milícia, tráfico ou
qualquer coisa), como uma espécie de ameaça. Porque de fato o espaço
onde você dá voz para jovens que de vez em quando não têm, em regra
eles não têm, o quão potente é isso. Esse espaço ocupado cultura e
atividades como essas na cidade.
A outra relação de segurança pública que se tem, falando não
talvez em áreas ditas como periféricas, mas central, na própria relação
com o espaço, porque quando tem uma atividade cultural, no Largo do
Machado nem tanto, mas quando se tem uma atividade cultural no alto
da Prainha, por exemplo, que é uma área que não tem tanta iluminação,
que talvez não tenha segurança, eu normalmente dependendo da hora,
sozinha eu não passaria ali, mas tendo uma ocupação, tendo uma
movimentação, tanto a relação da cultura também está atrelada por um
outro lado à da segurança pública.
Fazemos o evento preferencialmente na rua, o Slam das Minas é
uma coisa ideológica mesmo do nosso coletivo e aí surgiu no Largo do
Machado, por coincidência, porque na ocasião eram 6 pessoas
organizando e uma delas morava no Largo do Machado; era onde nos
reuníamos. Então era prático deixar a caixa de som na casa dela e por
isso fizemos lá e sabíamos que era um lugar de fácil acesso, perto do
metrô. Falamos assim: “ah, vai dar certo!”.
A primeira edição ocorreu lá e quando compartilhamos a primeira
edição, tivemos a sorte de o Slam das Minas de São Paulo já ser famoso
e o do Distrito Federal também já era famoso, então a nossa primeira
edição viralizou. No evento tivemos 1200 pessoas confirmadas, isso
nunca tinha acontecido num evento meu. No geral 300 pessoas
confirmadas era bem legal, tem gente que conta com 10%, de 300, então,
30 pessoas está show. Nesse tinha 1200, eu falei: “gente, se 10%, que era

64
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

o cálculo que eu fiz, se 10% de 1200 forem, são 120 pessoas, sucesso!”.
Foram 400 pessoas e não estávamos contando com isso.
Isso é uma coisa que traz para o evento uma responsabilidade
mesmo, nos responsabilizamos não só por nós, mas pela segurança
daquelas meninas que estão ali. Por exemplo, Marielle Franco nos
chamou em outubro de 2017 para recitarmos poesia num evento de
mulheres na política e fomos. Com o assassinato de Marielle, como
ficamos nessa situação? Porque diretamente estamos de alguma forma
conectados nas nossas redes, nos nossos afetos. Marielle representava
muito para nós. Como fazer o evento depois da morte de Marielle na rua?
Não tivemos coragem. Fizemos na UERJ porque era um espaço de
resistência, era um espaço público e ao mesmo tempo nos daria alguma
segurança dentro daquele luto que ainda estávamos vivendo. E o segundo
evento fizemos no Largo do Machado, mas ainda estamos receosas de
irmos para alguns lugares.
Em 2017 recebemos um convite para fazermos um evento em
Bangú, no lugar onde a galera do Sarau do Escritório também faz, na
praça da Guilherme. E aí a ideia era fazer um Slam da visibilidade lésbica
lá em Guilherme da Silveira. O convite foi de uma menina lésbica, e aí
quando fomos conversar com a galera da praça, aí eu falei assim: "oh, é
seguro pra gente fazer um evento de visibilidade lésbica aí?”. Aí o rapaz
falou assim: "olha eu não arriscaria, porque eu não sei como a
comunidade vai reagir a um evento LGBT, um evento de lésbicas, eu
acho que é perigoso pra vocês na hora de ir embora, eu não sei". Podem
acontecer essas coisas, então temos medo desse tipo de situação. Então
não fizemos em Bangú, isso para mim é uma falta de alcance do Slam,
que podíamos estar ocupando espaço, mas esses espaços não estão livres
para ocupação. O próximo evento será no dia 9 de junho [de 2018] no
Parque Madureira dentro do evento da virada sustentável, um evento
chamado corpos visíveis. Aí vamos fazer.

65
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Debates
Larissa Amorim: Letícia mencionou a lei do artista de rua, não sei se
todo mundo conhece, a lei do artista de rua foi um ganho do movimento
de cultura que já sofria.Com a repressão do artista de rua eram tirados
das ruas pelo processo de choque de ordem do Eduardo Paes que tinha
muita higienização da cidade como um processo de ordenação. Essa lei
ainda tem algumas limitações para dar conta da manifestação artística
individual. Ela tem umas limitações como o evento não poder ultrapassar
quatro horas de duração, não pode um som com potência acima de tanto,
então isso acaba, como a Letícia trouxe, pesando na limitação do próprio
evento. Antes como ela estava acostumada, 30 pessoas talvez desse
conta, mas com 400 pessoas já começa a ser um problema. Está chegando
a um limite e o sarau já ultrapassou isso. Gostaria que você relatasse um
pouco sobre isso. Na verdade, durante um bom tempo, é isso que a
Letícia estava narrando sobre a quantidade de público, então nós super
compartilhamos essa mesma questão. Apesar de fazermos o evento numa
quinta a noite na Lapa, contávamos com uma quantidade considerável,
de dar conta disso, na verdade, e é sempre um desafio como vamos
pensar isso mesmo, uma esquina, enfim, tentamos dialogar, negociar
aquele trecho, aquele espaço com aquelas cadeiras, mesas do bar, enfim,
mas não podemos conter as pessoas do lado de fora, passando ali pela
rua. Então sempre tentamos muito, só para reforçar isso, nós super
compartilhamos isso, tentamos reforçar esse ambiente de segurança,
mesmo porque corpos na rua estão expostos o tempo inteiro.E aí sobre
essa estratégia de autorizações, na verdade durante muito tempo
tentamos seguir os trâmites, não lembro agora, publicamos uma vez um
artigo no Voz e Rio, um site que talvez não esteja mais disponível
online,constando exatamente todas as etapas burocráticas que
cumpríamos. Isso antes do último decreto ou do penúltimo, mas
tentamos, sim, seguir as normas e não conseguíamos pagar os valores
das taxas etc., então percebemos que havia uma brecha no artigo quinto
da Constituição Federal que fala sobre livres manifestações. E aí
decidimos abandonar toda aquela lista de burocracia, porque parávamos

66
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

sempre nos bombeiros, aquilo nunca caminhava, nunca ia pra frente,


então decidimos entrar como Ocupa Sarau do Escritório. Passamos a
fazer, sim, uma notificação na prefeitura como Ocupa Sarau e passamos
a ser manifestação artística, político, cultural em todas as nossas edições,
e para isso não é preciso autorização. Temos feito assim, claro que fomos
paradas duas vezes, na Lapa, especificamente com órgão presente. No
Cinefila nunca nos pararam na Praça Tobias Barreto, não passou nenhum
"não sei quem presente" para nos interromper. Mas ali no lugar de
15

disputa da Ambev, no coração da boemia do Rio de Janeiro, da grana, do


turismo, eles nos param com certa frequência. Já fomos visitados duas
vezes e com essas notificações, mas conseguimos lidar com isso,
negociar essa presença.
Letícia Brito: Essa lei do artista de rua é de autoria do vereador Reimont
do PT e ela também pede que você tenha, por exemplo, patrocinadores,
o que é um problema se você está pensando em uma parceria público-
privada. Eu acabei de participar da discussão da lei da Biblioteca Parque,
que reabriu a Biblioteca Parque, não sei se temporariamente, mas foi uma
parceria público-privada. Um espaço público praticamente terceirizado
durante esse período e isso é uma preocupação na minha cabeça. Claro
que eu não sei se vai dialogar com a de vocês, mas a ideia dessas
parcerias público-privadas acaba sempre sendo um pouco contraditória
porque fizemos o Slam das Minas lá dentro e tínhamos um espaço lindo,
um som maravilhoso, palco, toda a estrutura que normalmente
mereceríamos,mas uma das meninas é camelô e costuma ir no sarau com
um saco enorme de biscoito de polvilho. Ela vende aquilo a um real e eu
tive que pagar a passagem dela para ela ir e voltar, ajudar no aluguel dela.
Muito bem, ela foi e como nós a convidamos, ela teve um cachê para ir,
só que ela foi com o biscoito de polvilho dela, como normalmente
acontece. E ela foi abordada umas três ou quatro vezes durante o evento:

15
Nota dos organizadores: alusão feita às operações consorciadas entre poder público e
organizações privadas de comércio no Município do Rio de Janeiro, chamadas “Lapa
Presente”, “Aterro Presente”, Lagoa Presente” etc.

67
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

“Olha, não pode vender biscoito aqui não!”. E ela em nenhum momento
estava vendendo biscoito, às vezes ia gente perguntar quanto custava o
biscoito; aí é um real e comprávamos porque a abordamos, não foi ela
que abordou ninguém em nenhum momento. E aí obviamente no
momento do sarau falamos muito sobre isso, sobre racismo estrutural,
porque é racismo estrutural o que aconteceu ali com ela. E aí, nessa
sutileza, fui reclamar com a produção e falei: "olha, tem uma poeta aqui
fazendo performance, que está com o adereço dela, que é de camelô, mas
ela é uma poeta, ela é uma artista aqui dentro. Em nenhum momento ela
parou para vender, vocês abordaram ela três, quatro vezes, isso daí, eu
não conheço outra palavra, isso é um racismo pra essa situação e eu
queria ver com vocês como é que vocês vão fazer pra pedir desculpas
pra essa moça”. E aí a moça disse: “ah não, mas é que ficou uma situação
muito chata porque quem vem falar comigo são os foodtrucks que estão
ali vendendo o cachorro-quente a 10 reais, um hambúrguer a 25 reais”.
E ela vendendo um biscoito de polvilho concorre com eles. Concorre
com eles? É isso! Ela está vendendo o biscoito de polvilho a um real.
Ainda que ela estivesse vendendo, porque ela não estava, concorre com
eles. Essas coisas a ocupação gera, joga na cara da sociedade que o
racismo existe, que o privilégio existe, que precisamos aprender a
conviver, que precisamos entender como vamos fazendo essa dinâmica
de “opa! o que eu estou falando ofende alguém, então eu tenho que pedir
desculpas”. As pessoas em geral não sabem reconhecer o privilégio e
pedir desculpas. Então, eu acho que não há uma lei, uma estrutura ou
algo que favoreça o que estamos fazendo, inclusive o que estamos
fazendo é revolução, entende? Então, tudo bem, também. Se temos que
burlar um sistema por causa do nosso sonzinho, tudo bem também. Se o
megafone pode, vou comprar um megafone mais potente, vou botar
meus direitos.
Larissa Amorim: Como é que pensar a institucionalização de alguma
coisa que é contra, que é isso né, que é contra a maré mesmo, que é contra
a corrente o que a gente faz. É isso, acho que tem uma coisa que é
importante, as rodas, aí a experiência do MV Hemp e super precisamos

68
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pensar ainda, mas que é como nós já temos uma rede definida, mas como
fortalecemos mais essa rede, que se articula, enfim, consegue de fato
encontrar mais meios, instrumentalizar mesmo. Acho que nos
encontramos também desse lado, dessa galera, de estarmos pensando o
direito à cidade, de estarmos formulando sobre isso, de estarmos
pesquisando sobre isso, o que está ocorrendo no Legislativo, que está
pensando, enfim, que está buscando essas brechas do sistema mesmo.
Foi feito sim, foi pensado para excluir corpos como os nossos, mas ainda
estamos nessa disputa, e seguiremos nela porque acreditamos muito que
modificamos esses espaços; acho que todas as vezes que passamos, com
todas as dificuldades. Essa questão do ar, todas as vezes em que falamos
de direito à cidade colocamos essas ocupações, falamos de segurança,
estamos falando de mobilidade urbana também, porque não só pelo valor
da passagem, todas as confusões que ocorreram quando da CPI dos
ônibus, mas como é o custo para chegar, quando fazemos eventos na
região metropolitana então, os horários dos trens, os ramais que
encerram mais cedo.
Letícia Brito: Por exemplo, no domingo, o trem encerra às oito horas da
noite. Então, uma pessoa que mora em Nova Iguaçu não pode ir ao teatro
no centro da cidade no domingo. O trem funciona para ela trabalhar, no
dia em que ela trabalha o trem acaba às dez horas e quarenta minutos.
Então, para trabalhar serve, para assistir cultura não.
Platéia (01): Existe um levantamento de dados em que 72% dos
equipamentos culturais do Rio de Janeiro estão concentrados no eixo
Zona Sul, Centro e grande Tijuca. Se você considerar a concentração
populacional é justamente o oposto, ou seja, 80% das pessoas estão fora
dessa área. A cultura é realmente restrita, não só na concentração dos
equipamentos culturais, como na questão da mobilidade urbana.
Plateia (02): Na verdade é uma curiosidade porque eu e uns amigos
submetemos um resumo expandido justamente sobre o Slam, sobre os
Slams. Então, a minha curiosidade é mais em relação a isso, mas que é
também a qualquer manifestação cultural, porque é uma questão, uma
dúvida regional. O resto também acaba até com essa característica, o que

69
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

eu, pela pouca pesquisa que fiz, os dados são meio dispersos, são
basicamente de rede social, algumas notícias. O número de Slams em
São Paulo é maior, e aí começamos a refletir e pensar por que que isso
acontecia. E aí pensamos em algumas possibilidades. Gostaria de saber
o quê vocês pensam a respeito disso e também suas colocações para
enriquecer o debate, se a questão da disposição geográfica da cidade
influencia, pelo fato de São Paulo ser uma cidade mais plana e mais
horizontalizada. De fato, a periferia fica na região de entorno, então isso
fortaleceria ainda mais os grupos como forma de resistência de ocupação
de fato de espaços centrais, de espaços privilegiados. Então, pelo fato da
geografia do Rio de Janeiro ter esse contato intenso, isso acabaria de
alguma forma implicando em alguma diferença, e além dessa questão
geográfica, também o fato, por exemplo, do Rio ter o funk como um dos
mais famosos, hoje em dia não sei se seria exatamente, um estilo musical
exclusivamente como essa questão cultural de resistência. Então, como
o funk já é uma identidade do Rio, essas outras manifestações elas não
ganham tanto apelo quanto ganham em São Paulo. O rap mesmo, o rap
não teve uma repercussão tão grande no Rio quanto tem em São Paulo.
E às vezes não são coisas tão distantes, queria saber se procede, ou não.
Platéia (03): A minha pergunta, na verdade, é uma reflexão sobre o meu
lugar de fala de onde eu venho. Eu sou de Salvador (Bahia) e quando eu
penso em ocupação cultural em Salvador, eu não consigo acessar Slam,
por exemplo, não consigo; rap já tem algumas coisas assim, mas é muito
diferente. É muito sui generis como é lá e como é aqui. Lá em Salvador,
se eu paro para pensar, por exemplo, em cultura, em ocupação, eu paro
para pensar na festa de Iemanjá. É uma festa super tradicional e há muito
tempo sempre foi muito deixada como coisa do povão, assim que não se
misturava, e aí chegou uma juventude reivindicando aquilo ali e ao
mesmo tempo fica uma batalha entre o novo e o tradicional, entre o que
é ocupar e o que é resistir enquanto cultura ancestral mesmo. Porque
existe o pessoal que começou a ocupar de uma forma assim: “ah, vamos
reivindicar essa festa, vamos trazer essa festa pra todo mundo, vamos
fazer disso uma festa pra todos, uma festa mais segura e trazer essa

70
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

cultura ancestral pra todo mundo".E aí as pessoas começaram a fazer


pontos de cultura de uma forma que traziam eventos e ocupavam a rua
de uma forma não institucionalizada, mas ao mesmo tempo começou a
desvirtuar completamente do que era aquilo ali, o que era tradição
daquilo, com os seus andores, com as suas oferendas, que ainda existem,
mas virou outra coisa. Uma coisa que eu penso, dentro da minha pesquisa
mesmo, não é voltada a essa festa, mas eu penso no centro antigo de
Salvador enquanto território, enquanto teatro, enquanto território negro,
como trazendo ocupação cultural pensamos em ocupar aquele espaço
com cultura, mas sem uma prepotência, ou algo do tipo, "vamos trazer
isso pra cá, vamos pescar, vamos puxar a ancestralidade, vamos
demarcar isso aqui sem converter em outra coisa sabe". Sem deturpar,
sem, no fim das contas, "gourmetizar", porque é isso que acontece. A
cultura acaba, tudo acaba sendo trazido para o sistema de alguma forma
ou outra, por mais que não queiramos. Está lá, funcionará o foodtruck ali
na frente, haverá alguma outra coisa querendo transformar aquilo ali em
mercadoria. Então, para mim, esse é o grande questionamento que
devemos trazer para o debate.
Letícia Amorim: Eu acho que vocês aprimoraram demais uma coisa que
é simples. O Slam chegou em São Paulo em 2008, chegou no Rio de
Janeiro em 2013, essa diferença histórica já faz com que o número de
São Paulo seja maior por isso. Mas em 2017, no Rio de Janeiro, ele
explodiu. Então, em 2016 no Rio de Janeiro havia 4 Slams, em 2018 já
existem 20. Então, foi uma progressão geométrica. Por isso, imagino que
no próximo ano existam 40. Como hoje em São Paulo existem quase 70,
se não me engano. Quando chegou aqui no Rio, em São Paulo já havia
40. Então, acho que a progressão é a mesma, temos um lapso histórico
de tempo de onde começamos. Considero que a geografia da cidade do
Rio favorece muito mais a integração dos Slams que a de São Paulo. No
Rio nós conversamos, eu vou no Sarau do Escritório em vários lugares e
vamos em tudo. O pessoal da Baixada Fluminense me conhece enquanto
poeta, em São Paulo não. O cara da ZonaLeste não conhece o cara de
Higienópolis, entendeu? Eu do Rio conheço toda a cena cultural do Rio.

71
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Então, acho que isso favorece o Rio muito mais do que São Paulo. Eu fui
em uma festa na Bahia e fiquei muito preocupada. Eu não vou lembrar o
nome da festa, mas ela acontece em janeiro e você faz uma caminhada
grande. Isso! Lavagem do Bonfim. Linda a caminhada, aí no meio da
caminhada apareceu o ACM Neto para andar, cercado de seguranças, aí
16

havia um secto que o aplaudia, e aí daqui a pouco vem uma galera do


“Fora Temer”. Aí eu me juntei a galera do “Fora Temer”, lógico.Eu não
conhecia ninguém, e aí eu fui pro bloquinho “Fora Temer” e aquilo era
um bloco multicultural, multiétnico, achei aquilo muito lindo, mas tinha
patrocínio Ambev, toda a festa tinha patrocínio, e eu fui também no
réveillon que era público, mas para você entrar tinha que passar por uma
repressão policial bizarra. As pessoas eram revistadas de um jeito que eu
nunca vi, eles abriam as pernas das pessoas e revistavam de uma forma
íntima. Mas também havia patrocínio Schincariol, achei bizarro isso,
essa coisa da apropriação cultural também na Bahia, porque esperava que
na Bahia a coisa fosse mais resistente, nesse sentido puro, do que aqui.
Mas isso é geral, é o capital. Então, assim, para conseguirmos tirar a
apropriação cultural desse sentido do capital, temos que mudar o sistema
político, ir para o socialismo, ir para o comunismo, temos que progredir
enquanto sociedade. Mas o Slam, ele justamente atrai porque está dentro
do capital, usando o sistema que é do capital, que é a batalha, a
confecção, mas falando mal dele. Então é por isso que ele se propaga
dentro do capital, mas falando mal do capital. Isso é muito potente,
porque você está dentro do sistema, usando o sistema para falar mal do
sistema. É uma jogada que na minha opinião é a mais sensacional do
Slam, e tentamos usar a resistência. Por exemplo, na última edição do
Slam que fizemos no Largo do Machado, chamei o Baque Mulher, que é
o coletivo de Maracatu virado e é lindo, e que é puro, pura cultura. Está
embranquecido também, mas ainda é pura cultura, mas chamamos
também o coletivo no final do ano passado, o coletivo Oi Mulher, em
que elas faziam uma performance de Orixás. São todas mulheres pretas,

16
Antonio Carlos Magalhães Neto, prefeito de Salvador (2017-2020).

72
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

cada uma é uma Orixá, é a coisa mais linda. Tentamos de alguma forma
usar a cultura, não é trazer a cultura, é dar voz à cultura local, porque não
acredito nessa coisa de “vamos trazer cultura para este lugar". Este lugar
tem sua cultura própria e quando você abre o Slam, você abre a palavra,
você abre a voz. Quem vai chegar ali? Quem mora naquela comunidade.
O cara que vai falar no Slam mora ali. E na final do Slam Berger de 2017,
que é um campeonato nacional que envia o representante nacional para
a França, existe uma Copa do Mundo de Slam na França. Todo ano
enviamos um representante para a França para competir, é uma coisa
grande o Slam. Na final de 2017, a Fabiana Lima, que é da Bahia, do
Coletivo Zeferinas, foi vice-campeã nacional e a Luz Ribeiro, que é
poeta, preta, de São Paulo, não lembro do bairro que ela é, mas é da
periferia, ela ganhou e foi até a Copa do Mundo. E agora em maio,
tivemos a campeã do Brasil que foi para a França.Foi a Bel Puan, o vídeo
dela rolou no WhatsApp das pessoas. Ela é de Pernambuco, do Slam das
Minas de Pernambuco. Então, assim, estamos dando voz à periferia. Eu
acho que a ideia é a de que justamente porque o Slam parece
"gourmetizado", mas não é, é o que eu acho que está de alguma forma
burlando o sistema. Eu acho, não sei você, que pode discordar.
Platéia (03): Eu acho o Slam “massa”! Eu quis falar mesmo sobre a festa
de raiz mesmo que a galera quer resgatar, dar maior visibilidade, mas
como fazer isso sem tornar uma mercadoria?
Letícia Brito: Tem que eleger uma pessoa presidente de esquerda e
mudar o sistema capitalista.
Larissa Amorim: Acho que Letícia pode responder sobre essa questão
dos Slams, mas temos um dado muito curioso sobre isso. Daqui a algum
tempo, não agora, mas queremos retomar o mapeamento, que fizemos no
Sarau, queremos atualizá-lo, estamos nos organizando para ele estar
publicado pelo Coletivo Peneira.E aí queremos levantar de novo,
atualizar essa nossa base de dados sobre o sarau e queremos incluir os
Slams também. Entendemos que é isso, não dá para separar, são co-
irmãos; são formatos diferentes, são outras formas também de se pensar
os corpos diferentes, performances diferentes, mas estamos super

73
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

interessadas também em saber um pouco mais, a divisão dos territórios,


onde estão esses vinte ou às vezes existem muito mais do que eles. Como
as pessoas estão se organizando, em que locais, em que espaços. Hoje
estamos repensando, tentando pensar em que corpo vamos montar essa
base. Como vamos pescar essas pessoas, associando os amigos, o que é
algo que queremos tentar colocar mais para frente. Estamos tentando
reunir meios, porque estamos sempre fazendo as coisas na correria, mas
isso é algo sobre o que em breve poderemos trocar. Queremos muito
ampliar esse mapeamento. Eu lembrei que em São Paulo o Slam está
totalmente associado ao HipHop. Ele veio para São Paulo pelo ZAP, a
Zona Autônoma da Palavra do núcleo Bartolomeu de Depoimentos, um
movimento de teatro do HipHop. Todos eles são ligados ao HipHop.
Então hoje em dia em São Paulo eles consideram o Slam um sexto
elemento do HipHop, um elemento novo que está chegando. No Rio de
Janeiro não temos essa cultura HipHop formada. O Rio de Janeiro vem
no Slam numa outra linguagem, algumas pessoas são do HipHop, mas
nem todas são. Acho que isso também pode estar influenciando. Hoje
temos um mapeamento do sarau da região metropolitana do Rio, mas
estamos transformando ele de algo que chamamos de meio poética,
continuará com o recorte da região metropolitana, mas enfim, estamos
pensando outras formas. Eu não conhecia a Bahia, fui conhecer no final
desse ano e aí quando eu cheguei lá, foi curioso isso que Letícia falou,
eu esperava a Bahia super aberta… Esperava a Bahia na rua, não sei
porque eu fiquei pouco tempo lá. Mas a maioria dos eventos que eu
encontrei era de eventos abertos, fechados e pagos. Talvez pela época do
ano, talvez eu não me associei às pessoas, eu não conhecia uma galera
que talvez pudesse me ajudar a acessar umas dicas. Eu vi aquelas páginas
na internet, tem a soteropolitano. Onde está a informação? Onde está a
galera que faz arte na rua? Eu cheguei lá no Rio Vermelho e conheci a
Casa da Mãe, uma homenagem à Iemanjá, e eu participei de um sarau
que foi lindo, uma experiência linda, porque eu enviei foto para a galera
depois e falei assim: “caraca, eu estive num sarau e do escritório". E eu
senti uma conexão entre o que eles estão fazendo na Bahia e o que

74
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

estamos fazendo no Rio de Janeiro. E acho que isso é delicado, o que


fazemos para conseguir sobreviver, pagar as contas, criar meios, dar
suporte. Artistas são trabalhadores, produtores. Como ainda temos que
lidar com esse pensar dentro desse sistema? Como nos imunizamos das
lógicas certas? Como pensamos numa rede de colaboração que não
explora o outro, mas que ao mesmo entende e tem, sim, um valor em
princípio de fazer, como nos fortalecemos, nos remuneramos? Não sei,
tentamos em um aperto conseguir um cachê para o artista se for possível,
se não for falaremos abertamente que não será possível. Mas como
tentamos outras formas? Porque entendemos onde queremos chegar,
entendemos para onde a sociedade deveria estar caminhando, mas ainda
estamos em uma época de sobrevivência. Existe uma relação para nós,
em relação a essa questão da cultura popular contemporânea, pensando
em forma geral, o sarau ele está muito ligado a grandes figuras do Rio,
figuras da região central do Rio. Por exemplo, as nossas divulgações
envolvem pessoas que se conhecem, que você vê transitando pela cidade
e não sabe quem é direito. Não sabemos da história daquela pessoa e
queríamos saber. Pensamos muito sobre como nos fortalecemos, como
pensamos essa cultura, essa cultura popular, essa cultura que está nas
ruas e não é o que está escrito nos grandes livros, mas são histórias e
pessoas que falam sobre lugares, falam sobre coisas que valem a pena
serem conhecidas. Antes de toda edição, a divulgação da edição que
colocamos nas ruas, fazemos contagem e entrevistas com essas pessoas.
No "Passeio é Público"entrevistamos a Ele, que mora no cortiço; eu não
sei como eles se autodefinem, mas é algo tipo o vinagre, se não me
engano é na região central do Rio. Ela tem uma história incrível, os
meninos ainda estão redigindo, então eu não vi a história toda, mas ela
tem mais de oitenta anos de idade. Ela viu várias reformas nessa cidade.
São pessoas que têm muito a contar. Acho que tentamos pensar um
pouco, dar essa cara para o sarau, trazer uma temática que fala sobre a
cultura popular, que tenta se remeter isso. Atrás da nossa ancestralidade,
da nossa história, mas pensar o hoje, pensar o ambulante, pensar essas
figuras que compõem o que somos ali, fazendo parte dessa cidade. É um

75
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

pouco aí que tentamos construir essa beira, um pouco desse lugar. Se


alguém quiser acompanhar depois, saber mais, temos a página na
internet. Existe a página da Peneira, o Escritório tem página , o Slam tem
17

página. Lançamos um site. O "Passeio é Público" tem página , estaremos


18

lá, cheguem lá, será incrível. Lançamos um site recentemente, o


www.peneira.org. Tentamos juntar, esse tronco que é o Peneira,
tentamos enfiar tudo lá dentro, de algum jeito com alguma lógica, espero
ter feito isso bem, mas podem mandar mensagem, estamos super abertos
para dialogar, fazer, trocar. Há outras experiências queremos colocar na
rua. Queremos ser resistência, mas com muito afeto. É isso. Você estava
falando sobre evitar que sejam mercadoria do sistema, eu acho que não
tem resposta melhor no mundo mega individualista em que vivemos do
que existirem ocupações como essa, que querer trabalhar o comum, a
coletividade, trabalhar em rede e está sempre em contato. Isso aí já é anti-
sistêmico.

https://www.facebook.com/SaraudoEscritorio/
17

https://www.facebook.com/events/125063381444683/
18

76
- III -
MULHERES E A CIDADE: ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA

Rossana Brandão Tavares 19

Mulheres, espaço de resistência, um seminário que tenta buscar


um debate bastante otimista que é de construir uma análise num cenário
bastante adverso, de espaço de esperança nessa cidade de exceção.
Considero serem assuntos importantes para termos esse sentimento de
esperança, que faz nos juntarmos, que nos faz tentar construir algo além
do que estamos vivendo, mas infelizmente ainda estamos em um cenário
em que a repetição e a insistência de construção de silêncios a partir de
valores ditos universais…isso ainda é algo ao que precisamos resistir e
na construção desses espaços de resistência os interesses normativos, não
só silenciam mas estabelecem um processo de homogeneização muito
forte no discurso, numa narrativa muito forte, do espaço que leva em
consideração sobretudo o discurso dos direitos humanos na perspectiva
do universalismo com algo mais urgente nas entrelinhas do que seriam
esses demandas e interesses de mulheres que seriam questões mais
específicas.
Então,considero que vivemos em um cenário bastante fértil para
se fazer essa disputa e gosto muito de utilizar o pensamento de Henri
Lefebvre, especialmente seu texto "manifesto diferencialista”, que não
tem tradução para o português, mas foi muito importante na minha
trajetória de pesquisa do doutorado. Isso porque, quando comecei a fazer
o doutorado, percebi que de fato eu estava desde a minha militância
como feminista no início do ano 2000, quando recém formada fui

19
Doutora em Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com período sanduíche na
AgroParisTech (França). Professora Adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo
(EAU) da Universidade Federal Fluminense (UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

trabalhar na Fase, estava fazendo a secretaria executiva do Fórum


Nacional de Reforma Urbana.
Tentávamos no Fórum Nacional fazer o debate sobre gênero,
durante esse tempo todo eu fazia e construía meu modo de ser junto com
as amigas, colegas, militantes em espaços de resistência, seja na cidade,
seja na política, seja de forma dialética, construindo esse espaço de
resistência. Lá no ano de 2011 eu fui fazer meu doutorado com esse
acúmulo militante, ainda pouco desorganizado o debate de gênero na
cidade sob a perspectiva do direito à cidade e vi um deserto de
referências no Brasil.Eram mais referências do campo da política do
debate de um acúmulo no campo da política do que de fato uma
discussão no campo da cultura do urbanismo, que é minha origem de
formação.
E Henri Lefebvre foi muito importante para eu conseguir
construir um ponto de partida da pesquisa, quando eu me deparei com
esse livro, manifesto diferencialista, que assim como outros livros dele
são pequeninos, sucintos, quase poéticos, e ele tem um discurso bastante
potente.Nesse livro que escreve em 1970, Lefebvre não chega a falar
sobre perspectiva de gênero, ele não tem essa pretensão, não era uma
questão pra ele, mas em algum momento ele cita as mulheres do modo
como ele chama de grupos que são desconsiderados no plano formal e
jurídico, e que não se constituem nem na moral da sociedade e nem na
prática social, apontando que isso é um debate importante para ele, a
questão da prática social.
E como esses grupos são totalmente indiferenciados, a sociedade
tem uma diferença muito significativa em relação a eles. Eu considerei
muito sensível essa perspectiva do debate, quando ele fala da
indiferença, sobretudo quando questiona essa relação entre o
universalismo e o que ele chama de "diferencialismo" da perspectiva
diferencial, como uma forma inclusive de resistência desses grupos,
inclusive como se diferenciar de um modelo dominante. Como ele
discute mais a questão urbana, ele propõe o debate do espaço diferencial.

78
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Isso se tornou importante na minha pesquisa para propor um


conceito que eu trabalho, enfim, com um conceito propositivo que é o
espaços verificados de resistência.Essa discussão da resistência se torna
fundamental não só em termos de reflexão teórica, mas para todo mundo,
para todas as mulheres que se tornam feministas.Considero que esse é
quase um princípio, lembrando um pouco minha militância na época do
Fórum de Reforma Urbana, recordo de como esse debate era visto como
um debate não só específico, mas um espaço bastante banalizado,
normalmente quando ocorriam os encontros nacionais, isso nos idos de
2004/2005, inclusive quando o Fórum estava pujante com o surgimento
do Ministério das Cidades e tudo mais. Ele sempre acontecia paralelo a
um tema considerado mais simplificado como o tema da habitação, o
tema do saneamento etc., e quando se levava o debate para o plenário a
maioria dizia que estávamos querendo desconstruir a luta da reforma
urbana, que o debate de gênero é um debate de identidade, e aí se recorria
à teoria marxista para se poder desconstruir tudo isso.
Aí chegavam os acadêmicos com seu discurso bastante elaborado
e era muito difícil. O que conseguíamos na verdade era fazer um debate
sobre representação e aí apareciam as questões das cotas na conferência
das cidades, dos 30%, que foi uma disputa muito grande dentro do Fórum
para levar isso às conferencias. E a titularidade das mulheres nos
programas de habitação, que acabou quase se tornando um consenso,
mas na perspectiva das mulheres que estavam nesse momento
contribuindo para o Fórum Nacional de Reforma Urbana era apenas um
aspecto muito pontual das contradições que as mulheres vivem na
cidade.
Uma diferença seja na política, seja na forma como nos
posicionamos no mundo do trabalho, seja na forma como conhecemos a
cidade, temos formas diferentes de iniciar nosso cotidiano, no circuito
em que circulamos pela cidade, no nosso papel de reprodução da
vida.Então, enquanto homens, eles têm uma vida muito mais liberada
para participar de atividades políticas.

79
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Enquanto as mulheres precisam dar conta de vários outros


afazeres e percorrer outros circuitos para poderem viver a sua vida
política, do trabalho então, na vida acadêmica quando as mulheres
assumem seu posicionamento e absorvem o feminismo sobre sua
reflexão, isso de fato se torna um debate quase central mais considerado
militante para quem não entende sobre se questionar a neutralidade
científica através da perspectiva das mulheres.
Sim, é um debate pessoal, mas também é um debate importante
para nós contestarmos, protestarmos e afirmarmos as nossas diferenças.
Aqui lembro um pouco, acho que aqui a maioria do pessoal é da área do
direito, mas há arquiteta muito famosa e importante para nós, jornalista
de formação, mas que é urbanista, Jane Jacobs.Trata-se de uma
estadunidense da década de 1960 que questionou uma obra que
aconteceu em Nova Iorque, chamada Manhattan Express Way, que era
um grande viaduto que promoveu uma série de remoções, algo que de
forma muito análoga vivenciamos aqui no Rio de Janeiro.
Robert Moses era o engenheiro e promotor desses investimentos.
Ele estabeleceu um processo muito conflituoso de resistência ao discurso
nas audiências públicas que eles realizavam para legitimar a obra. Há
algumas pesquisas que trazem falas de Robert Moses e Jane Jacobs. Há
uma em que ele fala assim: “não há ninguém contra o projeto, ninguém.
Ninguém a não ser um monte de mães”. Ou seja, ele simplesmente estava
xingando Jane Jacobs de mãe, colocando-a no lugar de mãe, porque o
tempo inteiro ela questionava o horário das audiências públicas. Ele
questionava a perspectiva discursiva da narrativa dessas mulheres,
principalmente de Jane Jacobs, quando ela falava sobre o projeto e o
impacto que teria na vida das mulheres.
Essa experiência de tentativa de construção de uma outra forma
de pensar e planejar a cidade é muito ilustrativo, sobretudo para nós que
vivenciamos nos últimos anos em torno da questão da habitação.
Vejamos o caso da Vila Autódromo, o caso da Providência.São
as mulheres que estão na linha de frente, a maioria delas é de mães, se
não forem avós. E elas trazem essa perspectiva de reprodução do

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

ambiente de suas casas, dos seus lares, de como isso se torna uma luta
pessoal, o por quê isso tem a ver com as vidas delas, com o cotidiano
delas.Assim, quando as mulheres entram na política, quando as mulheres
fazem o discurso de uma candidatura, disputando a questão dos espaços
de poder, representação da habitação, elas usam suas experiências
pessoais, as suas vidas, a forma como elas vivenciam a própria cidade.
Está o tempo inteiro presente na maioria das vezes para que elas
principalmente tenham uma perspectiva, principalmente para aquelas
mulheres que têm uma perspectiva mais progressista, vamos dizer assim,
não podemos generalizar, mas a maioria delas quando tem essa
perspectiva, a vida, o cotidiano, as formas de opressão, de dominação, e
a própria resistência que elas vivenciaram até aquele momento.Isso se
torna de fato uma política fundamental que não se pode deixar de falar e
é representativo, sobretudo, na execução de Marielle Franco,
considerando o quanto a vida dela estava de acordo com agenda política
e a forma que ela se expressava colocava e construía um espaço de
resistência.Um espaço de resistência da casa dela, que da origem dela até
a forma que ela atuava politicamente no plenário, que é um plenário que
ainda existe apesar da sua execução, um ambiente muito hostil e
complicado no qual ela tentava,à sua maneira, resistir àquela
política.Tinha uma forma diversa de fazer um debate sobre cidade, no
campo da Câmara de Vereadores, isso fica mais evidente ainda, como a
presença das mulheres de fato pode desconstituir uma lógica de
dominação do território urbano, enquanto que de fato se quisermos
mudar a lógica do planejamento urbano, a lógica do urbanismo, agora
falando como arquiteta, temos que ocupar de forma muito presente esse
espaço de representação.
E quando se fala em assédio nas ruas, sobre violência, quando
falamos sobre isso, sim, é uma questão que Marielle sempre falava
comigo: “Rossana, pelo amor de Deus, você me convenceu que eu
preciso falar sobre iluminação pública, e todo mundo dizia lá vem aquela
vereadora dizer que vai resolver a segurança pública com iluminação".

81
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Discutimos muito isso: como poderíamos tornar isso cada vez


mais claro no discurso dela porque a iluminação pública, a importância
da iluminação pública é justamente um retrato da experiência da mulher,
pois o homem, de forma geral, não está preocupado se a rua está
iluminada, no limite, na cabeça de forma geral do homem, ou ele corre
ou ele vai dar uma chave de braço ou ele vai evitar aquele lugar, entrar
no carro se ele tem essa possibilidade ou ele acha que vai conseguir
resistir a esse tipo de violência; a mulher não, ela, já pela sua experiência,
a forma inclusive como ela foi ensinada a ter medo do espaço público,
ela já tem receio da paisagem noturna, sem uma iluminação pública é um
espaço nada convidativo para podermos continuar resistindo e ocupando
essa cidade.
Porque se tivéssemos a mesma cabeça dos homens, bastante
antropocêntricos, se olhássemos os dados do Instituto de Segurança
Pública não sairíamos mais de casa, usaríamos burca ou aqueles
instrumentos indianos contra estupro. Se fossemos racionalizar… mas
continuamos saindo e nos aventurando, continuamos tentando criar
nossa maneira nesses espaços de resistência, que são formas que acredito
que podemos o tempo inteiro, que não necessariamente são
interferências materiais no espaço, mas conseguimos modificar e
transformar a lógica daqueles espaços. Se os pontos de ônibus são os
lugares mais perigosos para as mulheres, não é por isso que deixamos de
ir, mas tentamos buscar formas de podermos estar ali.
Nas áreas periféricas, por exemplo a Baixada Fluminense,
quando eu trabalhava na Fase eu via isso quando chegava muito cedo
para uma atividade ou quando saía muito tarde: o ponto de ônibus era
sempre um lugar diferente dependendo da localidade ser uma área muito
residencial, um lugar em que na maioria das vezes tinha as mulheres
empregadas domésticas, diaristas indo pro Rio de Janeiro e elas levando
alguma cestinha, alguma coisinha para se alimentarem, algum espaço de
convivência e de amenidade, daquele lugar. Se não, ou elas estavam
acompanhadas, isso algumas lideranças da Baixada já me relataram, que
em algum momento elas, as filhas vão acompanhadas dos irmãos ou dos

82
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pais para poderem estar naquele ponto de ônibus. Então, aquele


movimento eu não entendia direito, depois elas me revelaram, quando vi
essas mulheres chegando no ponto de ônibus e os homens saindo, elas
me explicaram que isso acontece demais na Baixada Fluminense além
de percorrer esse espaço até o Rio de Janeiro, no trem lotado, no ônibus
lotado; existem vários subterfúgios de proteção que se não é o vagão - o
que é um debate super polêmico -, mas formas de se tentar resistir ao
assédio, aí eu conheço várias mulheres, inclusive tias do meu marido,
que me relataram isso.
Na década de1970 elas já faziam isso e ainda hoje essa é uma
prática presente, que é a prática de se usar um alfinete;as mulheres
sempre têm uma caixinha de alfinete na bolsa e botam alguns no bolso
para que, se chegar alguém, um homem, sobretudo “sarrando", a mulher
espeta o cara. Essa não é uma prática nova, mas já se perpetua há várias
décadas em função do transporte de massa da nossa sociedade. Essa é
uma forma de resistência se elas não conseguem ter voz, se elas não
conseguem ter alguém que dê voz às suas questões, aos seus interesses e
às suas demandas, as mulheres acabam encontrando uma forma de
continuarem resistindo, de continuarem vivenciando essa cidade que não
é pensada para ela se é produzida numa lógica de construção de um
espaço mercadoria, de um espaço de venda de lucro com a circulação de
produtos. E hoje nem sei se podemos falar mais isso, mas de informações
que não necessariamente as mulheres têm lugar nesse espaço.
Existem questões importantes para além do debate sobre o espaço
da nossa cidade, por exemplo como isso afeta o nosso corpo.
Recentemente foi publicado um estudo da ONU sobre a questão da água,
a inadequação do saneamento ambiental e como isso afeta muito as
mulheres. Esse relatório é bem interessante porque ele não só aborda as
mulheres, mas também as mulheres trans. Interessante conseguir fazer
um levantamento bem interessante e o quanto o fato de você viver num
lugar com uma favela, um bairro periférico sem saneamento, o quanto
isso coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade e violência.

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Dependendo do lugar em que você está na cidade, precisa sair de


casa para poder pegar água potável. Então, dependendo do horário, do
lugar e da forma como aquele espaço está estruturado, você se coloca
numa posição de vulnerabilidade, mas também o quanto você não ter
acesso a água ou não ter banheiro ou ter um banheiro precário para
famílias numerosas… isso está associado, por exemplo, a altos índices
de infecções urinárias das mulheres. Aqui lembro do relato da minha mãe
quando falou que a filha de uma amiga do Borel, que tem sete filhos.
Eles dormiam todos enfileirados na sala e o banheiro ficava na parede
oposta. A filha mais velha sempre ficava mais próxima da cama da mãe
e começou a reclamar que estava com dor; ela foi no médico e tentou
tratar a filha; o médico perguntou se ela estava bebendo pouca água e ela
disse não, mas que começou a sentir dor quando percebeu que toda vez
que acordava para ir ao banheiro, acordava os irmãozinhos e isso a
deixava estressada. Pois tinha que botar todo mundo para dormir de novo
e começou a segurar a urina para não acordar os seus irmãos. Porque
quando ela vai ao banheiro, que é muito pequeno, quando dá descarga
todo mundo acorda. Então esse é um exemplo para mostrar o quanto a
precariedade da vida urbana afeta as diversas dimensões da nossa vida.
E o quanto precisamos resistir e não deixar de tentar transformar,
ao nosso modo, a forma que a cidade tem assumido. Considero que nem
produzida essa cidade foi, pois tem sido construída de uma forma em que
não vivemos esse lugar; a cidade não é um pano de fundo, na verdade ela
deveria ser um espaço de possibilidade, um espaço de reunião, de
construção do novo, mas infelizmente temos vivido uma resistência
oposta, justamente de construir a não possibilidade, o confinamento e,
sobretudo, a opressão dos corpos femininos.
Cecília Bojarski Pires: Gostaria de pontuar e fazer um resgate de um
pedacinho da fala da Rossana, quando tratou da importância da mulher
nessa questão da luta pela moradia. Eu tive a oportunidade de fazer a
parte empírica da minha pesquisa de dissertação de mestrado na
Ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo (SP), liderada
pelo MTST, na qual 53,4% dos/das ocupantes são mulheres.Eu conversei

84
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

com várias delas e é impressionante como sempre é a mulher que leva a


família para a ocupação. Muitas vezes elas deixam o marido e vão
sozinhas para a ocupação. Há mães que vão para a ocupação porque as
filhas têm que trabalhar. Então, é muito importante isso. Essa Ocupação
é uma das maiores da América Latina. Foi uma ocupação liderada por
uma mulher que já saiu de um movimento de ocupação anterior. Ela não
tinha casa, foi ocupar e conheceu o MTST, e desenvolveu uma liderança
e continuou nessa Ocupação de São Bernardo.Uma mulher de 34 anos,
muito forte, sem estudos, que não tinha nenhum conhecimento formal.
Ela relatou para mim que antes ela não tinha orgulho de ser mulher
porque ela achava que ser mulher era só casa, fogão, marido e filho, e
que quando ela entrou na ocupação viu que podia ocupar um espaço
muito maior, que pode fazer muito mais. Então, ela até brinca que mulher
pode pilotar fogão, pode pilotar Ferrari, pode pilotar ocupação e até a
história do país. Achei muito interessante essa fala dela, e como essa
questão da moradia é um espaço para que as mulheres se desenvolvam e
para que ocupem novos espaços. Começa por aí, mas é uma luta que é
muito maior, que pode se estender. Então, isso só corrobora o que você
disse.

Raquel Ribeiro 20

Eu sou Raquel do Feminicidade. Não sei se vocês já conhecem,


mas podem conhecer. Tenho aqui um dos nossos cartazes, que colamos
por aí na cidade. O Feminicidade começou em São Paulo em 2015 como
uma ação pontual a proposta inicial não era essa.
Surgido uma aonde que tem uma proposta de conectar
voluntários de outras unidades de alguma outra onde pode estar
precisando e presta serviço só que as mulheres que trabalhavam nessa
onde vamos fazer alguma ação para 8 de março diferente tal engajando
outros voluntários e aí chegaram a proposta de coletar e história de várias

20
Integrante do Coletivo Feminicidade.

85
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

mulheres para transformar isso numa espécie de intervenção pra colocar


isso na rua e ocupar a cidade, Fizeram lá em São Paulo nesse formato
que até hoje mantêm. A gente tem um site também uma plataforma, então
as histórias que a gente coleta dessas mulheres ficam na íntegra lá nessa
plataforma e na ocupação da cidade a gente destaca alguma frase de
efeito dessa história e coloca nas ruas com uma foto da mulher.
Mas a gente não pode ficar limitado aí isso, tem que falar de
mulher direito à cidade, direitos das mulheres de uma forma geral, tem
que ser um debate constante porque acho que a Rossana trouxe muito
isso agora e a Cecília complementou sobre como isso é transversal a tudo
se você pensar moradia. Você vai ver lá a presença das mulheres, se for
se você for pensar trabalho qualquer pauta que a gente for debater a gente
ver o protagonismo das mulheres, ou na opressão ou na liderança. Enfim,
a gente continua enquanto coletivo e a gente vai se estruturando um
pouco mais, e a gente criou a nossa missão que é valorizar e dar
visibilidade a história das mulheres, desnaturalizar essas violências
contra mulher trazendo empatia com essas histórias e, principalmente,
ocupando as cidades com isso. Quando a gente começou a nossa ideia
era realmente focar na ideia da coleta dessas histórias, da violência que
as mulheres vivem na cidade e assim foi. A gente realmente chegava pra
conversar sempre perguntando sobre as vivências delas na cidade. Isso é
muito comum. Nos debates sempre surge, é um dos temas mais
transversais, que se for você for pegar até mesmo mulher mais nobre do
lado da zona sul até a mais periférica,todas elas vão ter algum relato de
violência na cidade, de assédio, de qualquer coisa do tipo, mas ao longo
do tempo a gente também viu que surgiu a necessidade de trazer outros
temas, não dá pra focar só em cidade porque as mulheres quando vão
contar a suas histórias não aparece só esse recorte, porque vem as
questões raciais, as questões de orientação sexual. Vêm as questões de
violência doméstica, então a gente foi agregando todas essas pautas,
entendendo como isso também faz parte da nossa vivência na cidade
como tudo isso vai se permeando hoje. Aí a gente faz a coleta de histórias
e a gente se preocupa em contemplar diferentes faixas etárias, cores,

86
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

orientação sexual, classe. Aí nós desenvolvemos as intervenções urbanas


e nosso principal caminho são as lambidas, os mosaicos gigantes e os
paredões de adesivos. A gente atua na parte virtual também, nas redes
sociais, na produção de textos, campanhas, informativos na troca de
histórias pelas rodas de conversa muitas vezes chama atenção pra gente
de eventos e a gente faz alguma metodologia de roda de conversa outras
esses “lambe-lambes”, porque uma coisa que a gente sempre escuta
muito das mulheres nos processos é como é libertador, porque as vezes
a gente vive um monte de coisa mas a gente não vai encaixando uma
coisa na outra e fazendo realmente uma narrativa disso aí.
Nossa metodologia a gente procura garantir essa escuta ativa, não
é uma entrevista com formato jornalístico ficar fazendo pergunta nem
nada, é uma troca mesmo, uma conversa tipo vamos lá me conta aí e vai
deixando a mulher falar a gente pega algum ponto que foi interessante e
vai trabalhando mas transcrição disso da reflexão.
Esse material isso aqui por exemplo, é no Parque das Missões
uma favela dentro de Caxias que nós temos uma parceira de lá que foi
ela que trouxe a gente para essa provocação, a gente queria convidar
vocês, esse é o nosso primeiro ano vamos fazer um evento lá do 25 de
julho que é o dia Internacional da mulher negra latino-americana e
caribenha, e a gente falou legal a gente quer ajudar, mas a gente não tem
um acúmulo de debate sobre negritude dentro do coletivo, mas também
esse é o nosso papel, coletar histórias e a gente pauta a simplicidade, a
gente está dentro do Parque das Missões em Caxias. Essas mulheres
vivenciam uma cidade, o que você não faz nem ideia do que é viver isso,
lá é um lugar de chão de terra, as casas são de madeira, a gente ficou
tentando coletar histórias delas lá mesmo, que elas falem sobre qualquer
coisa.
Lá no Parque das Missões tem mulher que passa 3h00 no
transporte coletivo pra ir trabalhar e tem moradia precária que não tem
banheiro dentro de casa. Tudo isso é um debate que a gente precisa levar
para a cidade e botar nas ruas, nas rodas de conversa, na colagem de
lambes.

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

As vezes a gente é convidado por algumas pessoas, aí a gente


toma iniciativa e vai lá, por exemplo, como teve um caso de assédio lá
naquele bar, então vamos lá fazer uma mega colagem com a cara dessas
mulheres todas e perto dessa rua onde aconteceu, mas a gente também
ocupa outros territórios, já fizemos na Lapa, no centro, em Caxias e em
São João do Meriti e tentando levar para outros lugares também o debate
dessas mulheres. é curioso também porque muitas vezes a gente leva
relatos muito misturados porque a gente tem várias histórias de mulheres
muito diferentes e aí você botar em Caxias, na estação de trem, o relato
de uma menina de Laranjeiras que é sapatão ou mulher trans que tem sua
vivência na cidade, isso a gente as vezes fica observando as pessoas
parando pra ver se é muito diferente pra eles.
Então é natural, assim como você colocar lá na zona sul da
mulher no Parque das Missões isso também gera tanto nas mulheres
como nos homens um estranhamento e também a empatia.
A gente se aventurou também a fazer um documentário sobre as
mulheres negras e sua vivência na cidade e a gente coletou todas essas
histórias. Nenhuma de nós do coletivo saca nada de arte audiovisual, mas
a gente inventou que ia fazer e chamou mais voluntárias e fizemos.
Coletamos o material riquíssimo de 11 mulheres, material muito bom,
mas o ano passado a gente só conseguiu fazer um e não tivemos recurso,
não tivemos braços para dar conta de produzir, então ficou para esse ano.
A gente passou esse final de semana vendo esse material que é
muito doido porque a gente coletou esse material exatamente um ano
atrás e uma das personagens do documentário é a Marielle, outra é a
Monica, outra é a Tainá que são duas mulheres que na época não eram
pré-candidatas. Todas elas falavam muito sobrevivência na cidade. Pra
gente está sendo muito difícil porque a Marielle fala de sobrevivência na
cidade, ela fala sobre o direito de ir e vir, sobre o medo, sobre a segurança
pública, e hoje a gente vai ter que se dar o trabalho de ter todo cuidado
possível de como lidar com esse mar de material porque a conjuntura é
outra, sabe? A gente pretende lançar esse filme inteiro ainda esse ano, no
dia 25 de julho e algumas intervenções para além dos lambes

88
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

tradicionais, como as frases das mulheres. A gente fez, por exemplo, uma
edição no transporte público. Acho que a Rossana também trouxe isso
porque não tem como falar de mulher e cidades sem falar de transporte
público. Muitas mulheres falavam do assédio dentro do ônibus, dos
transportes.
E é muito diferente também, dessa vez a gente tem muito essa
pegada da intervenção urbana. Os lambes, as vezes as pessoas olham e
ficam meio assim. Tem gente que não deixa, tem gente que olha, vai lá
e arranca porque tem uma visão até mesmo de ter muita gente que ainda
é conservador com isso, como se fosse uma depredação de patrimônio
público, apesar de que lambe não é proibido, ele tem uma brecha legal.
A polícia pode vetar a depender do conteúdo de ódio, o que não é o nosso
caso. Tem muita gente que pede também pra gente. Então, a gente está
colando no metrô e no metrô não tem nada nunca, a gente sabe que vão
tirar no dia seguinte. Isso não é um problema pra gente, não temos esse
apego, tipo, nem que ele dure 10 minutos ali. Se ele dura 10 minutos,
algumas pessoas viram aquilo pelo menos, de alguma viagem alguém
viu. Às vezes vêm 20 mulheres pedindo o adesivo, querendo colar
também, falando que vão colar dentro do ônibus que pega todo dia, botar
no trem também, porque é uma pauta que é muito cotidiana e comum a
todas as mulheres. Essas foram ações que a gente fez, tem esse adesivo
que diz que mulher não é mercadoria em três línguas, a gente fez nas
olimpíadas com esse debate também da da vinda de muitos turistas e com
essa ideia que é feita da mulher brasileira, dessa objetificação da mulher
que pode tudo ainda mais em contextos de grandes festas, de grandes
eventos, aí a gente fez esses adesivos nas três línguas muito tentando
pautar isso de que não é assim, não pode chegar em qualquer mulher na
rua, e fizemos questão também de colar nos lugares, principalmente
naqueles pontos de maior concentração de turistas.
Esse do meio (apontando para o quadro), intervenção feminista:
por mais mulheres na política, é o que a gente ta fazendo atualmente, a
gente lançou no oito de março desse ano, que a ideia é realmente a gente
trabalhar nesse ano, essa pauta de mais mulheres na política, compramos

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

esse discurso junto com alguns outros coletivos também, de influenciar


o voto em mulheres, ter mais representatividade de mulheres. Isso vem
muito inspirando com nossa vivencia com a Marielle. A gente conheceu
a Marielle antes, assim que o Feminicidade nasceu, na época ela foi nas
reuniões, ela colou lambe com a gente, ela pensou várias coisas do
Feminicidade com a gente, ai ela deu a notícia que viria a candidata e a
gente super apoiou e teve junto e aí ela eleita, a gente teve sempre as
portas do gabinete da Marielle inteiramente abertas para a gente, sempre
nos recebeu, fizemos um monte de coisas juntas, quando a gente queria
alguma atividade com ela, ela vinha junto, quando a gente não tinha
dinheiro nenhum, falamos:" Marielle a gente precisa imprimir os lambes
para fazer um ato tal que vai ter " e ela aí ia e ajudava a gente, então foi
muito, isso foi, antes da execução da Marielle e a gente pensando: cara,
é isso. Olha como faz diferença ter uma mulher no poder, pensando as
nossas pautas, pensando a pauta das mulheres, como a gente consegue
levar para dentro do mandato e também trazer ela pros lugares que a
gente quer trazer para ter essa legitimidade de parlamentar. A gente
levava ela para eventos em diversos lugares da cidade e a gente falou:
Cara, tem que ter mais de uma Marielle. Não era pra ela ser a única, né?!
E aí a gente lançou essa campanha, depois a gente até ficou assim: nossa,
se for para ser nessas condições, não dá, né?! Essas são algumas ações...
(murmurando enquanto passa slides). E foi isso que foi um bum pro
Feminicidade. É muito doído a gente pensar nisso, porque depois da
execução da Marielle, muitas pessoas vieram procurar o Feminicidade
de uma forma estrondosa que a gente nem dá conta, porque a gente
também é um coletivo muito orgânico, muito de militância, de mulheres,
ninguém recebe nada por isso, então a gente vai fazendo as coisas porque
a gente quer fazer. A gente quer fazer intervenção urbana, a gente quer
ocupar a rua e aí a gente começou a receber um milhão de convites
porque a gente realmente ocupou a cidade com a cara da Marielle e
assim, a cidade inteira. A gente junto com a galera da mandato pensou
algumas ações para esses atos,apoiamos os atos para ter material, demos
nosso jeito, fomos na gráfica que a gente costuma fazer, levamos o lambe

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

da Marielle, na hora o cara falou pra gente:" não.." e a gente falou:" cara,
a gente não tem dinheiro" e ele falou:" não tem problema". Deu dois mil
lambes pra gente, bom, é isso. esses lambes têm que estar na rua e aí a
gente levou isso e distribuiu por tudo quanto é canto. Fizemos um milhão
de colagem e a galera depois que produziu o amanhecer colocou o lambe
como um dos materiais para a galera poder baixar e fazer em diversos
pontos da cidade e a gente começou a ver, tipo, o lambe na linha amarela,
Caxias, Tijuca, todos os cantos da cidade tava na Marielle e as pessoas
começaram a vir pedir pra gente esse material. Muita gente pediu e
emoldurou, fez quadro e levou para a escola, botou na porta de não sei
aonde, na porta de casa, e pra gente foi muito bom assim, não no sentido
da visibilidade do Feminicidade, mas no sentido de como a gente ter feito
esse material, essa proximidade, a gente poder, nesse momento, por ser
um coletivo de intervenção urbana, ter um material ali pronto e
disponível naquele momento pra jogar pro mundo inteiro sobre ela e foi
muito doido quando a gente fez o material, a coleta de histórias dela, que
foi pro filme, a gente fez o lambe dela, a gente não colou o da Marielle
na rua, a gente deixou o dela só pro virtual, todos os outros a gente botou
na rua, a gente pensou: "ah, ela é uma parlamentar". Acho que ocupar a
cidade... as pessoas confundem muito as coisas, podem não entender que
isso é uma ação do coletivo e achar que a própria vereadora tá colando
um monte de lambe com a cara dela na rua e aí depois disso a gente botou
esses lambes todos para correr e isso foi um marco pra gente porque
agora a gente decidiu que a gente precisa muito se fortalecer para poder
ter cada vez mais ocupação na cidade, de mulheres, assim, para além da
Marielle, assim como a Marielle. A gente conseguiu estar em muitos
lugares, a gente quer colocar muitas Marielles na rua, trazer esse debate,
porque, como eu falei lá no inicio, a gente pautava muito de falar sobre
cidade, agora a gente acha que o principal não é isso, então agora a
mulher pode falar de qualquer vivencia dela, mas a cidade é o nosso
principal canal de comunicação, é o lugar onde as pessoas conseguem..
ér.. que a gente consegue interagir com um público que a gente não
consegue dimensionar. Isso é muito doido porque as vezes vem umas

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

pessoas assim:"ah, quantas pessoas vocês impactam? e não sei o que".


A gente não sabe dizer e nunca vamos saber porque não é a proposta
saber quantas pessoas a gente impacta. A gente não vai ter um gráfico de
Facebook e o Facebook a gente tem uma bolha, a gente tem um limite
do que a gente consegue dar conta. A rua a gente não tem esse limite de
quem tá vendo, a gente até tem um reportes… Dependendo do bairro que
você tá, você tem um reporte, mas você não faz ideia de quantas pessoas
viram, de como as pessoas reagiram com aquilo, você não faz ideia se a
pessoa... porque uma pessoa tira o lambe, se ela tem alguma questão
contra ao que ta ali no lame ou se é uma questão de ter um papel na
parede. Então são muitas coisas que acontecem, sem contar que a gente
consegue atingir homens também, que é uma coisa que no feminismo é
uma dificuldade pra gente. A gente pensa, a gente não vai trazer para
dentro do nosso espaço de confiança, mas ao mesmo tempo a gente
precisa comunicar, afetar, impactar e aí na rua o que a gente mais vê é
homem parado para ler. Tem até uma foto aqui que a gente usa... é essa
daqui. E tipo param, e ficam lendo, um por um. Alguns ficam com raiva
e falam um monte de besteira, outros não e apoiam e, acho que é um
pouco disso assim a nossa história. Eu não tenho o debate, como a
Rosana, super estruturado e teórico sobre a mulher e o direito à cidade,
mas eu acho que a gente não quer abrir mão de jeito nenhum de pensar a
cidade com as mulheres e ter a cara das mulheres na cidade e, para isso,
a gente vai ficar na guerra, na raça, coletando time daqui, dali, fazendo
nossas intervenções, colando nas ruas e também faço o convite porque o
Feminicidade é um coletivo totalmente aberto de mulheres que quiserem
chegar e construir com a gente, quiserem também... muitas vezes a gente
vê mulheres que querem também participar, mas enfim, não podem ter
uma rotina de ir para as reuniões e construir tudo, então a gente tem,
assim, uma rede de mulheres que quer tá junto pra ir nas colagens ou pra
coletar uma história lá no seu território:" po, tem a fulana e a a fulana
aqui que eu acho muito legal". Coleta essa história, manda pra gente,
enfim, então cheguem junto e é isso, obrigada!

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Debates
Greyce Barbosa: Bom, eu queria agradecer muito pelas duas palestras
que foram muito enriquecedoras para a gente, adoçando essa questão do
combate a essa naturalização da desqualificação da atuação das mulheres
no espaço da política da cidade, né, do planejamento urbano e esses
exemplos que você deu de movimentos de resistencia devem ser
seguidos, né, da atuação feminina, como na vila autódromo e na
previdência e também à Raquel sobre a importância da escuta, das
mulheres, com essa metodologia, da escuta ativa que você mencionou, o
papel de fazer a sociedade refletir mais sobre essas questões em prol de
mudanças na efetiva atuação feminina e negra, LGBT, como construção
do papel social.
Plateia (01): Posso falar daqui? Eu queria, primeiro parabenizar pelo
trabalho, muito interessante, mas eu tenho uma questão, assim, é que eu
percebo, muitas vezes, conversando com algumas mulheres, muitas
vezes mais velhas até, até da nossa própria família ou alguém conhecido,
uma certa resistencia em relação ao debate de algumas questões
relacionadas ao feminismo, a questão do direito das mulheres, da
liberdade da mulher e, como vocês coletam histórias, de diferentes
pessoas, diferentes territórios, se vocês já tiveram essa experiência de ter
contato com mulheres que tenha essa resistencia, que tenha uma visão,
as vezes, com machismo arraigado e como vocês lidam com isso, como
é essa escuta nesse momento
Raquel Ribeiro: Isso me aconteceu diversas vezes, muitas mulheres, é...
feminismo, muitas delas não, não se consideram feministas. O que a
gente faz é justamente isso, a gente não fica trazendo a questão, mas...
é... nossa certeza é: ela pode contar a história dela da forma que for,
mesmo que ela venha com várias questões conservadoras, dali você vai
ver diversas opressões que ela viveu e aí o que a gente tenta fazer é
sempre convidar e, geralmente também, a gente não vai em mulheres tão
isoladas, é mulheres que já participam de algum grupo ou alguma coisa,
mesmo que não seja de feminismo assim... mulheres empreendedoras de
Campo Grande, não tem nenhum acumulo do feminismo ali mas ai a

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

gente aproveita algum momento pra fazer uma atividade de roda de


conversa depois usando já esse espaço que elas tem, né... e aí, dentro
dessa roda de conversa a gente consegue ir trazendo algumas coisas mais
diferentes então a gente ja fez também da clínica da família do Salgueiro
com as agentes de saúde e com as mulheres que elas atendem no
Salgueiro e foi muito duro pra gente. A gente não sabia o que fazer. Eram
mulheres que não se identificavam feministas e a maioria era
companheiras ou mães de presidiários ou de pessoas que foram
assassinadas, pelo estado, mas... 90% e elas não conseguiam identificar
no discurso delas o quanto elas são violentadas com esse processo,
quanto o estado violenta elas também, não só os companheiros que foram
presos ou assassinados e aí a gente foi trazendo isso, com bastante
delicadeza, convidamos uma pessoa também, que tinha mais experiência
no assunto, a gente primeiro coletou a história e depois a gente voltou
para fazer esse debate, porque a gente voltou tão atordoado que a gente
falou:" vamos fazer uma outra atividade lá" e aí foi muito bom pra elas,
assim, várias mandaram mensagens depois, nos agradecendo, falando
que realmente elas não tinham que passar por esse tipo de violência
quando vão visitar seus companheiros nos presídios, que é super
violento, né?! e isso é, foi enriquecedor, primeiro delas contarem a
história e depois tentamos levar alguma coisa que elas pudessem, que
elas mesmas pudessem chegar a essa conclusão que elas sofrem essa
violência.
Plateia (02): É... eu tenho uma colocação para fazer, mas eu queria pegar
um gancho do que você falou agora dos presidios e tudo mais e que é
uma coisa que eu sempre reflito sobre o espaço, a mulher nos espaços,
né, se essa questão da mulher ir visitar seu companheiro, seu filho no
presídio já é uma questão super complexa pelas revistas e tudo mais
quando a gente para para pensar nas mulheres que estão nos presídios, é
ainda muito pior. pela história que existe da solidão, da mulher negra, da
questão do afeto mesmo, quantas estão lá e não tem ninguém para visitar
elas e não só isso, essa é uma pauta feminista, a questão do afeto e do
cuidado da mulher e tudo mais, mas tem uma pauta que atravessa todo

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

mundo, por exemplo, que é a saúde da mulher e quando você ta lá no


presídio, por exemplo, eu já li reportagens e coisas de mulheres que não
tem absorvente para usar e elas usam miolo de pão, usam o estofo do
colchão, então são coisas que passam pela mesma coisa da história que
você falou da cistite e tudo mais e que atravessa toda e qualquer mulher
e uma coisa que você falou sobre Marielle, e sobre como ela estava
sempre disposta a ajudar vocês e como ela tava sempre disposta a trocar
e isso foi uma coisa que eu levantei ontem no GT. A gente conversa
muito sobre construir uma cidade para mulheres, quando a gente debate
direito à cidade, a gente ta sempre debatendo a questão da ocupação
capitalista do espaço e isso, realmente, é uma questão estrutural, não tem
como não pensar isso. Mas quando a gente pensa também em identidade,
na questão da subjetividade, na questão dos afetos que atravessam as
nossas vivências, a gente para pra pensar no papel histórico das
mulheres, o papel culturalmente construído para as mulheres e que
quando a gente pauta feminismo, pauta que a mulher tem que ocupar o
espaço publico sim, que a mulher tem que ocupar todos os espaços sim,
mas é uma pauta que ta voltando por que a gente tá passando a refletir,
tipo assim, é como uma mulher vai pautar esses espaços e não só
mulheres. Mulheres, homens mas por esse ser um papel histórica e
culturalmente das mulheres, essa questão do afeto, do cuidado do outro,
que é o que a gente via com Marielle que ela tava sempre disposta a
abraçar todo mundo, a cuidar, a trazer para perto, e isso é uma
característica cultural das mulheres que eu acho que talvez seja uma
alternativa e um modo de se pautar uma nova cidade que não seja um
modo só de pensar somente estruturalmente mas de pensar de maneira
menor assim, de maneira micro, sabe, e afetando... você falou
exatamente isso. Quantas pessoas são afetadas pelo meu trabalho e eu
acho que a afetação pelo seu trabalho é justamente através do afeto,
através desse microcosmos que a gente vai trazendo uma pra perto e uma
vem e puxa a outra, que era o que a Marielle falava, é mais ou menos
isso que eu queria contribuir e parabéns, gostei muito da palestra de
vocês.

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Raquel Ribeiro: Eu acho que qual era o diferencial da Marielle... na


verdade, ela não negava a experiência dela ser mulher, né, quando a
gente olha as outras vereadoras da casa, elas tem um modus operandi de
ser vereadora totalmente diferente da Marielle, né, por mais que estivesse
lá, porque aí tem a biografia da Marielle relacionada a ela, que é a
Veronica Costa e que a gente tentou estabelecer algum diálogo
conjuntamente com a Luciana Novaes e tudo mais por que tem aquela
questão do corpo dela que é, né, a expressão da resistência da violência
do Rio de Janeiro, nos anos 90, não sei se vocês sabem da história da
Luciana Novaes, ela foi atingida por uma bala perdida na Universidade
Estácio, lá no Rio Comprido nos anos 90 e ela se tornou vereadora do
PT, então essas são as vereadoras que nós tínhamos mais diálogo, mas a
Marielle incorporava, não só o jeito dela ser, mas uma característica
muito feminina e que a sociedade machista e patriarcal banaliza, por que
dentro dessa forma de produção capitalista do espaço urbano, de
reprodução da vida que a gente tem que ser o vencedor ou a vencedora
individual, a Marielle tinha uma forma de não, vamos acolher, vamos
construir um coletivo, vamos tentar chamar quem não está sendo
acolhido, quem tá... o Feminicidade é um pouco isso que a gente
conversava dentro do mandato, que era o discurso delas, sem recurso e
tal e era uma discussão que a gente queria continuar alimentando, de
pensar em intervenções e disputar para além do espaço institucional, o
espaço por ocupação e intervenção urbana como uma possibilidade de
pautar também a nossa agenda. Então, na verdade a Marielle não tinha
vergonha de ser o que ela era e sobretudo muito próximo das semanas
antes da execução dela ela falava que ela tava sentindo muita vontade
com o que ela era, com o que ela tinha conseguido construir, da imagem
dela, não sei se vocês ficam vendo as fotos assim,da modificação dela,
foi uma transformação muito grande, mas de como ela se sentia com
vontade de ser vereadora e da forma como ela tava se construindo e se
construindo como vereadora... isso faz toda a diferença!. Quando a
mulher se assume, independentemente, não to falando que eu acho que a
Marielle é um exemplo, mas eu acho que tem que ser copiado. Acho que

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

ela é uma inspiração, cada uma de nós nesses espaços, seja um espaço
de poder ou seja qualquer outro espaço que a gente for ocupar e que a
gente já ocupa, na verdade, a gente tem que descobrir ao nosso modo e
da forma mais coletiva possível, a forma que a gente pode fazer política.
Acho que o Feminicidade e as meninas do Feminicidade conseguiram
construir da forma delas e é tão legal e é tão legítimo quanto.
Rossana Brandão Tavares: Só uma coisa que você falou, eu trabalho
oficialmente, no cidade para criança e um jargão que a gente tem nessa
área é de que uma cidade boa para criança, é uma cidade boa para todo
mundo e aí eu acho que isso cabe também, exatamente, para a mulher e
aí eu levo para além da cidade, levo pro estado, pensar em qualquer
política pública, se ela é boa para mulher, ela é boa para todo mundo,
porque não vai ter quem fique oprimido nisso, porque a mulher dá conta
das crianças, é óbvio, ela não vai excluir a criança, ela da conta, se é boa
pra mulher vai ser boa pro homem também, que homem vai se sentir
ameaçado, sabe, na cidade se ela já ta dando conta de garantir as
seguranças das mulheres. Então acho que a gente vai meio por esse
caminho aí do cuidado. Se ela der conta das pautas das mulheres,
provavelmente ela vai estar dando conta das pautas da sociedade, de
forma geral.
Platéia (03): Eu acho que a gente podia propor uma pequena inversão
assim, tipo, se a mulher lutou tanto parar alcançar um espaço público,
que sempre foi dado ao homem, eu acho que o homem tem que lutar um
pouquinho para aprender um pouco do cuidado, aprender um pouco do
afeto, e isso é que vai construir algo melhor, eu acho, um caminho de
diferencial.
Rossana Brandão Tavares: É, o feminismo não é para excluir, né, é
para incluir.
Platéia (04): É, eu queria falar uma coisa com as medidas também. Na
Cidade, a cidade é muito opressora pra minha experiência profissional e
de vida, nas ruas, na pavimentação, nas escadas, é... eu sou oficial de
justiça e trabalho em Teresópolis e Teresópolis é região de montanha,
então você pensa que além dos núcleos favelizados de Teresópolis, para

97
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

você acessar as residências de uma forma geral você tem que subir
escada, tem que subir caminho, e por mais que todos nós, nossa equipe
lá de Teresópolis vá trabalhar sempre com calçado confortável para ter
facilidade de acessar todos os lugares, eu sempre fico doída por dentro,
pensando nas mulheres que têm que subir aquelas escadas no seu
cotidiano,com filha no colo, com bolsa, voltando, indo e voltando todo
dia do trabalho, isso é muito opressor. Quer dizer, não é só na via pública
que a calçada é irregular que a gente tem dificuldade de empurrar o
carrinho de bebê, a dificuldade delas é muito potencializada nos espaços,
né.. isso é, né, sempre foi muito opressor, pra mim. Outra coisa que eu
queria compartilhar com vocês é uma perplexidade relativa aos dados
das últimas eleições de 2016 que quase 15.000 vereadoras mulheres não
tiveram um voto sequer, nem elas votaram em si próprias, o quanto isso
é significativo, alarmante, sinalizando que os partidos só lançaram as
candidaturas dessas mulheres para atingirem a cota e a importância da
gente reverter isso, de conseguir localizar as candidaturas sérias e
valorizar o voto dessas mulheres mesmo. Adorei a fala de vocês, gente,
muito linda, parabéns.
Rossana Brandão Tavares: Isso que você falou das favelas, é... a
maioria das favelas do Rio de Janeiro e as daqui de Niteroi também, elas
surgiram de cima para baixo. Uma estratégia de sobrevivência, de
resistência também, para se esconder e aí, em algumas favelas que eu já
fui, que eu já frequentei, como militância ou porque eu fiz pesquisa a
população mais antigas, a gente consegue ver isso inclusive com os
dados do IBGE, mora no topo dos morros. então, são as idosas que
normalmente as mulheres acabam tendo uma expectativa de vida maior
que os homens, sobretudo nas favelas, então são as idosas que estão ali,
as avós, as matriarcas das famílias e que como já estão numa certa idade,
tem problema de mobilidade e aí eu conheci algumas que já estavam
assim, eu fui na casa delas, a meses sem sair da área de onde elas
moravam e quanto esse debate da mobilidade é fundamental. Se pode ter
escada rolante para acessar o Cristo Redentor, porque não pode ter,
assim, uma experiência de Medellin tem, e outras formas alternativas

98
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

para poder alcançar essas mulheres, que precisam continuar sua vida,
então isso é um debate de urbanismo assim, de inclusão, da cidade, muito
fundamental, que elas não conseguem nem viver essa cidade, elas só
ficam ali dentro daquele espaço restrito ou até não conseguem nem sair
de casa, por que dependendo, dependendo da favela, as escadas dão
direto na residência e, sobre a candidatura da Marielle, assim como a da
Talíria Petrone, dentro do partido, não existia nenhuma expectativa que
elas iam ganhar. Era como se fosse quase, não vou dizer que seria uma
cota, mas elas também tiveram resistência e elas também tiveram que
resistir para tentar de fato tentar construir uma campanha que pudesse,
de fato, se tornar uma campanha combativa e com grande possibilidade
de voto. Então, de fato, a mulher não tem o espaço dado. Se ela não quer
ser simplesmente cota, ela tem que construir uma possibilidade de
política muito diferente, normalmente, dos homens. Isso talvez eu acho
que seja uma realidade para todos os partidos.
Plateia (05): eu tenho ouvido muito o seguinte:"por que você não estuda
as pessoas ao invés das mulheres? porque a cidade não é para pessoas e
não só para mulheres?" E isso me deixa perplexa, assim, e aí eu fiquei
pensando numa professora falando e elas também e aí eu fiquei pensando
a questão da mulher ate na própria política, por que assim, muitas delas
estão para cumprir essa cota e assim, nós temos muitas mulheres na
política, mas muitas não se identificam como feministas, então elas não
incluem nas pautas questões da mulher e aí eu queria saber se vocês
acham que isso enfraquece ainda mais, assim, a luta da mulher por
representação e a outra coisa, acho que mais especificamente para a
professora,que é arquiteta, é que eu fico pensando, a gente tem aqui no
metro do Rio dos vagões que, nos horários de picos, são para as
mulheres. São DOIS vagões sendo que o metro tem muito mais vagões,
aí eu fiquei pensando:" gente, as mulheres são a maioria da população,
por que são dois vagões pra gente e um montão pro homem" e aí é
engraçado, semana passada eu tava vendo um evento que teve na UnB
sobre direito à cidade pra mulheres e aí uma professora tava comentando
justamente sobre isso e ela tava falando que uma das justificativas é que

99
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

essa seria uma medida "paliativa", mas eu fico me perguntando:


"paliativa até quando?" , entendeu, e aí eu não sei.
Rossana Brandão Tavares: É.... vou deixar a primeira para a Raquel e
eu comento a segunda. Seu debate é super polêmico, né, do vagão. Eu
acabei tratando até um pouco disso na minha tese. Tenho alguns
arrependimentos da forma como eu tratei, mas outros nem tanto por que
foi bem um período que tava surgindo essa polêmica, em função do
Feminiza São Paulo que, inclusive, foram falar com o governador para
não ter porque queriam instituir assim como foi instituído aqui pelo Jorge
Picciani em 2007, acho que 2007, então foram homens que propuseram,
então isso também tem um valor simbólico, interessante e importante
para a gente analisar e aí eu com uma amiga, a gente tem um Blog, que
a gente começou a colocar coisas ali sobre a questão do planejamento
urbano, urbanismo e gênero, por que a gente não via nada, a gente queria
meio que compartilhar. Depois se vocês quiserem acessar, o nome do
Blog é FeminismUrbana.wordpress.com e aí a gente fez uma pesquisa,
muito despretensiosa, mas a gente fez uma pesquisa para ver o que que
as pessoas achavam. primeiro a gente pedia para se identificar, se eram
mulheres, se eram mulheres trans, e tudo mais e também tinha uma
questão das mulheres trans, importante, nessa discussão, por que da
forma como o segurança e as pessoas do vagão percebem se aquela
mulher é legítima de estar naquele vagão, era todo um debate, outras
mulheres, as sapatões, que a gente fala, sapata, são identificadas, também
nesse espaço, porque as vezes tem uma forma de se vestir que ta mais
associado ao masculino e aí as mulheres, de uma forma geral, criavam
uma resistência também… de mulheres citando essa experiência e aí a
gente fez essa pesquisa e aí foi bem equilibrado assim, foi mais ou menos
uns 200 acessos e aí teve mulheres que achavam, 60%, achavam que o
vagão não era a solução, porque tinha essa coisa da segregação, uma
questão contraditória que reproduz e coloca a gente numa situação de
confirmação que, de fato, a gente precisa se proteger e se separar e que
o homem não dá conta de seus instintos, então a gente realmente tem que
ficar num espaço segregado, mas ao mesmo tempo tem uma parte

100
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

significativa que, mesmo discordando, achava que até um certo momento


era importante ter e aí eu acabei entrando em contato com uma socióloga
que ela fez uma pesquisa na Nicaragua, e ela debate dois conceitos que
é a questão dos interesses práticos e interesses estratégicos. Eu acho que
a questão do vagão é bem ilustrativo aqui no Brasil. As feministas, vamos
dizer assim, a partir da perspectiva estratégica, de fato, o vagão é um
desserviço político, ela não constrói possibilidade, ela na verdade é um
retrocesso, então toda perspectiva futura de luta do feminismo, o vagão,
de fato, ele é um exemplo do desserviço, mas se a gente for pensar, e aí
considerando o feministas e não feministas, que tem haver com sua
primeira pergunta que aí ela chama de interesses práticos, na vida
cotidiana, as mulheres estão tendo que usar alfinete ou estão tendo que
gastar mais dinheiro pegando uma van ou pegando mais de um modal de
transporte para poder evitar o vagão cheio de metrô ou de trem, e isso
acaba onerando na renda familiar das mulheres, então, na vida prática,
no cotidiano, as mulheres estão tendo que criar alternativas que as
oneram, qua atrapalham o seu cotidiano, o seu circuito de ação é mais
em "zig zag" do que os homens, por que elas precisam parar no
supermercado, precisam do posto de saúde, precisam do hospital,
precisam chegar no trabalho, enfim... então, existe uma discordância, na
maioria das vezes, mas, como ainda é uma situação complicada, os
homens ainda, o machismo ainda existe, o corpo da mulher ainda é visto
como disponível independentemente se é um corpo trans, se é um corpo
homossexual, ou se é um corpo heterosexual. As mulheres estão sendo
assediadas e violentadas. Então, de fato, o vagão não é a melhor coisa,
mas ele tem sido pelo menos um espaço de refugo, temporário e é
justamente nas cidades da america latina que tem sido uma solução,
então, no México também tem essa experiência e é muito usado, a gente
não vê as mulheres negando esse espaço então a gente precisa, eu acho,
dentro da perspectiva feminista, de luta, a gente tentar trabalhar esses
dois interesses: Os interesses práticos e os interesses estratégicos, como
a gente consegue não ficar preso somente nos interesses práticos e
conseguir construir uma perspectiva de emancipação!

101
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Plateia (06): Eu acho que essa questão do metrô tem uma questão
interessante também porque os homens estão sempre acostumados a
ocupar qualquer espaço muito facilmente, então muito deles entram lá e
simplesmente não vêem que é um vagão feminino e tão lá de boa,
entendeu, porque eles podem ocupar qualquer espaço, as vezes não é por
maldade, é porque ele pode e aí eu ja vi muito homem ser escorraçado e
sair de lá com o rabo entre as pernas, acho isso incrível, porque é pra ele
entender que a mulher tem seu espaço , então vamos respeitar ele. Acho
que esse é um ponto positivo.
Raquel Ribeiro: sobre mulheres na política, que vocês duas trouxeram
nesse debate, eu tenho tentado me atualizar cada vez mais porque a lei
mudou, né, realmente eu já sei tem um tempo, essa cota é desde 1900 e
é o que você falou, mulheres eram colocadas como laranjas só para
cumprir a cota, sem levar voto nenhum, nem elas mesmos votavam nelas,
por que não era esse o objetivo ou botavam-se mulheres que vão ter um
número escandaloso de votos para puxar outros caras, né, e geralmente
são as famosas, as celebridades, que as vezes nem tem interesses
politicos, de fato, mas em São paulo isso aconteceu muito, né, toda hora
era uma mulher melancia, mulher maça, não sei o que, que vinha
candidata e aí aqui no Rio, até a Rossana falou, a Talíria Petrone e a
Marielle Franco foram uma surpresa, o próprio partido apesar de já não
ter essa pratica, como muitos outros de botar como laranja em si, mas a
realidade em si é que esses partidos de esquerda não dão condições
favoráveis e estrutura para que as mulheres dentro dos partidos sejam
candidatas, elas sempre têm as campanhas não só prioritárias, não tem o
mesmo tempo de TV, não tem o mesmo recurso do fundo partidário e aí
fica meio que... porque tem seus quadros e os quadros que são
constituídos durante muito tempo são sempre os homens e aí as mulheres
ficam nesse dia a dia, tentando de alguma forma fazer sua candidatura, a
sua campanha e aí acontece e que foi o fenômeno Marielle é que é uma
coisa que o partido não dá conta, né?! Que as mulheres tem as questões
identitárias também e assim, quem é que, tipo assim, "nossa, vou votar
naquele homem porque sou homem branco heterossexual e ele é homem

102
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

branco heterossexual", uma galera que vota no Bolsonaro até pensa isso,
mas não é um padrão, mas agora as mulheres tem uma questão identitária
que te passa essa confiança e tem essa vivencia e isso. A Marielle colava
lambe com a gente. O partido não dá conta de saber que a Marielle tá ali
no dia a dia colando lambe, não dá conta de saber que ela foi ali na
aulinha inaugural do pré-vestibular lá dentro da favela tal, que ela foi ali
naquela roda de conversa com não sei quem e isso foi gerando redes e
bases pra ela que não dá pra gente ter.... pra gente mensurar, sem contar
também que tem a questão... o que eu ia falar? ... ah, justamente, por essa
questão das pautas identitárias os partidos quando pensam assim:" Ah,
que mulher... quando prioriza alguma mulher " geralmente é uma mulher
que tem uma classe trabalhadora com ela, uma categoria. Ah, a
enfermeira não sei o que ou a tia não sei que lá que aí já vem uma
categoria com ela, já tem militância dentro do sindicato ou mulheres que
já são as companheiras ou parentes de outros grandes figuras, né,
também temos muitas, e aí o pior é que quando a gente elege essas
mulheres que não são as que tem as pautas mais amplas que tem ou
representando categoria e tal, é muito legal mas elas ficam muito reféns
dessas pautas, as vezes não tem muito além e nem muito oportunidade,
por que aí se você é eleita por uma categoria e você é enfermeira , aí você
decide que vai pensar, sei lá, em creches. A sua categoria toda que votou
em você também vai ficar te cobrando por que acha que você tem que
dar mais atenção para aquilo, então você não pode fugir muito da pauta
e as mulheres quando entram nos espaços legislativos ou enfim, a
primeira coisa que fazem é: comissão da mulher, né, por que isso já é um
problema por que lugares de cidades quem não tem mulheres, é horrível
você ver a comissão das mulheres sendo presididas por homens, e isso
acontece muito, mas aí botam as mulheres para as comissões das
mulheres mas também o que a gente ta pautando hoje é que tem que ter
mulher na comissão da mulher, mas não tem que ter as mulheres que
estão dentro desse espaço, não tem que ser reféns de ficar só na comissão
das mulheres, elas tem que estar tudo: Tem que estar na comissão de
orçamento, tem que estar na comissão de cultura. Tem que sair dessa

103
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

caixinha de quem então tá, mulher você vai cuidar de tudo que é pauta
de mulher aqui, não vai cuidar só da pauta de mulher, porque a pauta de
mulher está em todos os espaços então a gente tem que, por isso essa
campanha a gente tá querendo muito levantar esse debate, para além do
voto de mulher, por que não é só botar mais mulher, é que mulher, né, e
que mulheres que vão pautar os interesses que a gente tem e que vão
fazer isso de forma diferente lá dentro depois de eleita e que vão ocupar
esses espaços que são majoritariamente, que são os espaços de maiores
decisões, porque a pauta das mulheres, muitas vezes, o que é aprovado
lá, que na hora de fazer um projeto de lei realmente completo e
interessante não passa, aí o que é aprovado é assim: " Ah, instituído o dia
de fulano de tal" e nem isso também porque a Marielle tentou o dia da
visibilidade lá e foi barrado, então assim, é pegar orçamento, e fazer a
revolução feminista dentro desses espaços.
Greyce Barbosa: Mais alguém? Bom, eu tenho então uma colocação,
mais especificamente para a Raquel que você tinha mencionado que o
coletivo feminista não tem assim uma pauta articulada em determinada
linha de fomento, por exemplo, mulheres negras, LGBT ou relativo a
questão do trabalho coisas nesse sentido, mas eu fiquei curiosa por conta
desse projeto do documentário que você mencionou, né, que fala
especificadamente sobre as mulheres negras e a atuação delas na
sociedade e a importância delas na cidade, como forma de
representatividade e pertencimento também e eu queria que você falasse
mais sobre isso e se você acha que essa metodologia que vocês utilizam
no coletivo dessa escuta ativa é o caminho para que as mulheres se
sintam cada vez mais presentes e pertencentes a esses espaços e cada vez
mais ocupando esses espaços, como a gente tem falado bastante da
Marielle, ontem também teve a apresentação da Dani Monteiro, do
coletivo Rua e, nesse sentido, se você acha que esse é um caminho para
que efetivamente as mulheres negras acabem por pertencer cada vez
mais e ocupar mais esses espaços e fazer a diferença.
Raquel Ribeiro: Eu acho que sim. Até a gente teve uma crise quando a
gente teve essa ideia de fazer um documentário sobre mulheres negras

104
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

que quem convidou a gente. Convidou não, a ideia a gente tinha a ideia
de fazer um documentário sobre mulheres negras e aí a Fabi, que é uma
liderança local lá de Caxias, que virou parceira nossa falou:" vamos fazer
gente" e a gente falou: " Mas Fabi, dentro do nosso coletivo não temos
mulheres negras" Eu sou mulher não branca, tenho muita certeza disso
mas não passo as mesmas situações que uma mulher negra e aí a gente
falou:" então você vai ter que abraçar isso junto com a gente e fazer do
início ao fim junto com a gente" e aí ela falou:" vou fazer junto com
vocês , obviamente, pensando e idealizando, mas eu não vou estar lá no
dia a dia da gravação, nem nada disso porque ela tem um milhão de
coisas pra fazer e mora distante e aí a gente foi por esse caminho e aí a
gente teve todo esse cuidado de, com ela, pensar junto com ela, que
mulheres a gente ia trazer. A gente não queria nem trazer só mulheres
que são muito destaques, para a gente também não cair nesse papo meio
meritocrático. Ela mesmo tenho sugerido:" vamos pegar a juíza fulana
de tal "a gente falou:" legal, é muito bom dar esses exemplos mas a gente
precisa mesclar assim, mulheres comuns no cotidiano e com mulheres
que são uma representação, uma inspiração para muita gente e ai a gente
fez esse misto e o filme agora, o impacto que ele vai ter, eu não vou
saber e ainda não sei por que ele ainda não tá pronto. O teaser a gente
recebeu muitos comentários de várias mulheres pretas, falando de como
é sempre um prazer delas poder assistir e ouvir a sua própria história,
sabe, se identificar do início ao fim porque é um cotidiano tão marcado
de você consumir e viver coisas e tudo seu... você ser muito minoria na
novela, nas revistas e ninguém falando sobre essa realidade muito
específica sobre a mulher preta e ai quando você vê um documentário
onde você só vê pessoas iguais a você, falando das mesmas coisas que
você vive, da sua realidade, que é muito gratificante. Mas, na coleta de
história normal, sem ser do filme de mulheres negras é isso que ela
também tinha perguntado, muitas mulheres são negras e as coisas que
elas estão contando perpassam o fato de ela ser negra, não trazem isso
como uma questão pelo fato de ser preta, uma ou outra que consegue ter
esse discurso na ponta da língua. Não vou dizer consciência porque

105
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

consciência é mais subjetivo mas o discurso na ponta da língua de


relacionar a sua violência na cidade e sua violência social, de forma geral
como algo ligado a questão racial, então,isso também é um lugar que a
gente tenta muito evitar, de não ficar de forma nenhuma interpretando
essas história que nos contam, a gente realmente tira dali o que a mulher
nos disse e aí, do que ela disse, nós podemos sim promover debate em
outros locais, que é o que a gente faz e, lá nesse lugar em Caxias tem a
roda poética, são todas mulheres negras , elas não tem esse mega debate
racial, não trazem isso mas sempre quando a gente vai com as próprias
falas delas a gente tenta trazer essa questão racial e ai sim vai surgindo
varias coisas, sabe?!
Greyce Barbosa: E esse Teaser está disponível na página?
Raquel Ribeiro: O Teaser tá, tá na nossa página, tá no YouTube
também. Se tudo der certo, o documentário que deve ter uma meia hora,
uns 40 minutos, estamos definido, vai sair também pro 25 de julho desse
ano. O nome do Teaser é cor, gloss e raça.
Greyce Barbosa: Então encerramos essa mesa, agradecendo a
participação da Rossana e da Raquel, foi muito interessante a fala de
vocês, faz a gente pensar muito e refletir e convido a vocês para daqui a
pouquinho participar da próxima mesa que a gente vai ter aqui, dando
sequência no evento. Obrigada!

106
- IV -
NOVA AGENDA URBANA

Glauco Bienenstein

Meu nome é Glauco, eu estou encarregado de coordenar essa


sessão agora. Na mesa nós temos três pessoas, além deste modesto
coordenador aqui, Paulo Saad, diretor do Sindicato dos arquitetos do Rio
de Janeiro; Luciana Ximenes, do Observatório das metrópoles do
IPPUR, que para quem não sabe é o Instituto de Planejamento e pesquisa
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e uma figura pública já, nosso
futuro governador e atual vereador Tarcísio Motta. Agradeço a presença
de todos. Para efeito de organização desta sessão, nós temos uma ordem,
que eu espero que os organizadores já tenham comunicado aos membros
da mesa: Paulo Saad vai falar em primeiro lugar, Luciana Ximenes vai
falar em seguida e por último, conforme eu já disse, nosso futuro
governador Tarcísio Motta. O tempo, nós vamos fazer o seguinte: nós
vamos dar no máximo vinte minutos. Quando chegar 10 minutos eu
aviso, 15 minutos eu aviso, para aqueles que quiserem terminar com 15
minutos, ótimo. Para aqueles que quiserem continuar, mais 5 minutos, e
aí quando chegar nos 20 minutos eu peço gentilmente ao colega para
encerrar e passar a palavra aos demais ou à própria platéia. Antes de
iniciar, eu vou aproveitar porque nós temos no tempo do marketing, né?
Então não posso deixar de anunciar este belíssimo e interessantíssimo
livro organizado por mim, pela professora Regina e pelo Daniel,
recomendo fortemente a leitura dele. Aliás, eu tenho mais duas cópias
além desta, que eu vou dar para os meus colegas da mesa gentilmente
aqui, mas recomendo fortemente a leitura deste livro, que o próprio nome
já diz, Universidade e luta pela moradia. Este livro tá ali, não sei o preço,
eu não estou ganhando nada com isso, mas livro é pra ser lido, então eu
faço essa recomendação aqui. Sem mais delongas, eu agradeço então.
Meu caro Paulo Saad, muito obrigado pela sua presença.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Paulo Saad 21

Muito obrigado, muito obrigado aos organizadores do Seminário,


ao Daniel pelo convite. Bom, eu vou falar sobre a Nova Agenda Urbana.
Falar sobre a NAU é falar sobre o habitat e sobre a ONU. Não só sobre
a instância da ONU, mas também sobre a Conferência que aconteceu no
ano passado. E, é preciso que a gente entenda as dimensões que estão
colocadas aí.
O Habitat é um espaço de relação multilateral e o espaço da ONU
é um espaço dos governos e dos diversos países buscando esse
relacionamento e esse compromisso multilateral, ou seja, é um espaço
diplomático. É claro que, na medida em que houve um desenvolvimento
dessa Conferência, desde Vancouver, em 1976, Istambul em 1996, e
agora em 2016 em Quito, que houve um avanço diríamos de uma camada
intermediária de negociadores, que é formada originalmente por
instâncias da sociedade civil desses países, que foi o caso de Vancouver.
Eram organizações e eu por acaso estive em Vancouver, mas não
estive em Istambul. Então, em Vancouver, havia mais organizações da
sociedade civil, a academia organizada, como, por exemplo, a UIA, as
Universidades, tanto as Universidades em todas as áreas relacionadas à
questão da habitação urbana, e que se organizavam para se encontrar
nessa ocasião, e como era muito mais permeável essa relação, os Estados
estavam construindo a primeira conferência, portanto, construindo essa
noção, então precisavam da contribuição de todos os atores, então
somou-se esse pessoal da sociedade civil, de Universidades,
organizações de profissionais e dos oficiais das instituições de vários
países.
E é importante e interessante para esses países ter essa
contribuição, porque eles tinham certamente se organizado e se reunido

21
Conselheiro Titular do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Estado do Rio de
Janeiro.

108
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

em torno dos oficiais de governo a nível federal de cada país desses. Com
isso, eles abriram essa discussão e houve uma coisa mais permeável,
então não chegou a haver Conferência paralela ou Conferência oficial.
Praticamente houve um intercâmbio, embora a Conferência principal
entre governos era praticamente levada exclusivamente pelos diplomatas
numa situação, mas havia essa inter-relação dos oficiais de governo que
iam levar para os diplomatas as discussões. Então, era uma situação
muito mais conectada com o interesse público, umas instâncias de
discussão da organização pública, de interesse público, de direitos
públicos dos diversos países.
Evoluiu-se para uma situação bem diferente, criou-se uma
camada intermediária basicamente constituída por profissionais e grupos
de interesse com seus profissionais fazendo suas formulações e
pressionando as instituições. Esses grupos de interesse são todos os
grupos de interesse hoje em dia muito diversificados, seja do ponto de
vista da formação sociológica ou de base social, seja dos grupos que
formam os interesses dos setores da questão urbana, de habitação,
mobilidade, as pessoas estão preocupadas com a questão da terra urbana,
a questão do transporte de massa, da habitação social, da atuação do
mercado imobiliário, etc.
Todos esses grupos se organizam hoje de uma forma muito forte,
pode-se dizer que existe uma clara estratificação na Conferência, como
estratificação essa que é todo o negócio, ou seja, essas ONG’S que se
formaram já de Vancouver para Istambul, acabaram se constituindo
nesses vinte anos em grupos de interesse do negócio. É claro que os
grupos de interesse pelo direito público não deixaram de se organizar,
continuam se organizando visando tentar se colocar neste novo quadro,
na medida em que surgem essas ONG’s de negócio ou até mesmo nem
se pode considerar ONG’s, mas organizações profissionais de negócio,
o quadro geral muda, não fica o mesmo quadro.
Então, a intervenção dos grupos de direito passa a ser de uma
outra forma, tentando outro tipo de enfrentamento. Então, esse é um
quadro geral, e me impressionou muito o crescimento desse segmento de

109
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

negócios, quer dizer, não tinha pensado até hoje em chegar numa
conferência da ONU e ver várias mesas que eram basicamente em torno
de direitos públicos, como por exemplo, transporte e mobilidade,
entretanto, com um setor altamente capacitado de uma empresa
multinacional vendendo VLT ou vendendo BRT.
Na habitação, também um indivíduo bem articulado, com uma
palestra de alto nível técnico e de compreensão ampla, procurando
atender as demandas e vendendo produtos. Isso é um quadro que me
surpreendeu não na sua existência, mas me surpreendeu no tamanho.
Não acredito que isso é coisa isolada não, eu acredito que nós vamos ter,
em alguma medida que eu não sei qual é, na UIA 2020, esse fenômeno,
que eu não sei de que tamanho vai ser, de que forma ele vai estar focado,
mas me parece que esse aspecto está dominando as organizações
multilaterais, e a UIA é uma organização multilateral, embora mais da
sociedade civil, mas muito vinculada à UNESCO e, portanto, à ONU,
quer dizer, muito vinculada com coligações.
Então, esse é um aspecto que tem na sua esfera superior de
negociação e de produção de documentos oficiais, um lado diplomático
aonde um país não se sobrepõe sobre o outro, praticamente todas as
propostas são incluídas, salvo algumas que são destacadas como detalhes
que são aceitos ou não aceitos, e aí entra o poder de veto. Então, não há
contradições, mas há o veto. Então, não tem consenso, sai. Então há
coisas de consenso, e muitas vezes o consenso passa por uma
generalização por textos genéricos.
Então, se você ler a nova agenda urbana, você lê um texto que
parece que tá tudo ali dentro. Tem todos os aspectos da cidade e do
movimento social, enfim, entretanto, muitos elementos importantes não
entraram ali porque não são fatores de consenso, por exemplo, a habitat
é feito dois, três anos antes do evento. É um evento de 20 em 20 anos, a
rigor você pode dizer que hoje a constituição do habitat é uma
constituição de 20 anos de uma para outra. E, claro, você começa a ter
conferência de cunho preparatórias três anos antes e vai se chegando a
documentos e tal.

110
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Essa conferência, ela teve o objetivo de, o tema vocês sabem que
é Conferência das nações unidas para o desenvolvimento sustentável das
cidades, então, na verdade, a meta urbana é esse quadro geral, então a
meta urbana é o principal e o desenvolvimento sustentável, ele pode ser
também do meio rural. No caso dessa conferência, ficou com a tarefa do
tema três no desenvolvimento sustentável da ONU, que é o tema da meta
urbana, certo? Então a meta urbana foi dividida em dez pontos: direito à
cidade, estrutura urbana sociocultural, políticas urbanas nacionais,
governança urbana, financiamento municipal, estratégias espaciais
urbanas, estratégias de desenvolvimento econômico, ecologia urbana,
serviços urbanos e habitação. Então esses foram os dez pontos e teve
grupos que se organizaram se reunindo nessas "pré-con", que eles
chamaram essas conferências preparatórias, discutindo cada um desses
temas. Na conferência oficial, se discutia vários outros assuntos.
A NAU é um desses documentos da conferência oficial. No caso
dessa Conferência ficou com a tarefa do tema 3, do movimento
sustentável da UFF que é o tema da meta Urbana. Então a meta Urbana
foi dividido em 10 pontos: direito à cidade, estrutura urbana,
sociocultural, políticas urbanas nacionais, governança urbana,
financiamento municipal, estratégias espaciais urbanas, estratégia do
poder econômico, ecologia urbana, serviço urbano e habitação.
Esses são os 10 pontos, então houve grupos que se organizaram
durante três anos se reunindo nessas prepscon que eles chamavam
conferências preparatórias, discutindo cada um desses temas e a
conferência oficial né, se discute a vários outros assuntos, a NAU é um
dos documentos da conferência oficial e havia uma discussão, que foi
chamada de discussão paralela, que na verdade não era exatamente
paralela mas era complementar, vamos dizer assim, a discussão dos
diplomatas, que era a discussão desses 10 pontos, então tinha 10 grupos
discutindo cada um desses pontos.
Eu participei de “furão", porque esses espaços que vem desde a
prepcon são só permitidos para organizações internacionais conhecidas,
aqui no Brasil nós temos algumas que funcionam, sejam filiais

111
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

internacionais, sejam daqui do nosso grupo por exemplo: Fórum


Nacional de Reforma Urbana que trabalha com Pollys, tem a
exaneigy/exanage, tem a OEPfase. Então, são grandes ONGs com
tradição, que tem espaço na discussão e participam. Nós não tínhamos
participação em nenhum desses, mas eu entrei de furão e participei da
discussão de algumas, mas essas discussões geram o que? A continuação
da discussão das prepcons sobre cada um desses temas, então por
exemplo o tema aqui para mostrar para vocês uma situação de não
consenso, por exemplo, vamos discutir a questão do direito à cidade,
direito à cidade que foi uma discussão que não teve consenso.
Então, se abriu o espaço, se buscou um consenso em cima de um
texto que ao final, um texto um pouco indeterminado, não foi uma vitória
assim importante, foi uma vitória, foi uma vitória, mas uma vitória que
poderia ter sido maior na questão. Quase que nós estávamos querendo
né, exigindo, repetindo, cobrando e argumentando a cidade como direito
coletivo, como bem comum de direito coletivo, como fosse na verdade a
cidade como uma compilação de vários direitos, que constituiriam um
conjunto agregado de direitos que seriam os direitos da cidade. No
entanto esse direito coletivo, entender esse direito da cidade como um
direito coletivo, já era muito difícil.
Países como Estados Unidos, China, Canadá surpreenderam,
Colômbia surpreendeu, não aceitavam dessa maneira, entendiam como
direito à cidade como um novo tipo de direito, que não tinha a ver com
os direitos que tinham que ser construídos esse novo tipo de direito, que
era um direito de garantia individual. Então essa discussão, claro, acabou
acontecendo de novo na prepscon. Então a cidade como bem comum, ela
surgiu né, e foi o máximo a que se conseguiu chegar, dentro da NAU tem
lá esse destaque, mas é um destaque onde se conseguiu chegar, mais do
que isso não se chegou.
A NAU na verdade, assim como dei esse exemplo do direito à
cidade, os outros temas ela também funciona como uma colcha de
retalhos, ela reúne tudo que ninguém foi contra e salva algumas coisas
que as pessoas foram contra, então essa colcha de retalhos mostra a visão

112
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

fragmentada, pontos divergentes entre si no mesmo texto, então por um


lado você vê o discurso sobre cidades justas, sustentáveis e etc, e logo
no parágrafo seguinte você vê as necessidades da cidades serem
atrativas, competitivas e tal né.
Então são efetivamente contraditórios esses pontos inconciliáveis
e depende se você trabalhar os estudos de casos. Então, começa o quadro
geral, a NAU é na verdade isso que coloquei, nós fomos na Conferência
mas já tínhamos discutido a NAU, já tinha essa ideia, queríamos
continuar ajudando as ONGs, a articular e formular, mas nós queríamos
fazer outra coisa, então queríamos fazer um documento brasileiro,
queríamos trabalhar nas conferências paralelas, aí houve além desses 10
grupos, houve uma conferência paralela das ONGs, as ONGs se
organizaram e fizeram e localizaram um chamado e Cyber Eventos ou
eventos paralelos, esses eventos paralelos estamos tentando de criar um
ambiente, mas não foi possível, mesmo nós tendo cinco ONGs no nosso
grupo com conexão, não conseguimos, porque aquilo é um acordo ali do
pessoal das ONGs.
Também havia outros elementos paralelos, que eram eventos de
negócios, dos stakeholders e dos assessores, das grandes empresas de
consultoria.Isso ainda dentro do habitat, todos eles são considerados
pacote de cyber eventos, tentamos viabilizar dois mas não conseguimos,
além dessa conferência paralela que na verdade foi o que? Uma absorção
da ONU do que aconteceu em Istambul fora da conferência, as ONGS
em Istambul estavam fora da Conferência. Então o que eles fizeram?
Internalizaram essas questões, com isso eles tiveram a possibilidade de
orientar isso né e trouxeram o pessoal para dentro. E aí houve dois
eventos, na verdade três eventos paralelos fora: um evento popular, um
evento injustamente popular que com resistência ao habitat 3 que foi
organizado pela coalizão internacional da Habitação e da Assembleia de
habitantes, que são duas grandes organizações internacionais que
discutem a questão urbana e se organizaram e fizeram na Universidade
de Quito vários eventos autogestionários, muito interessantes.

113
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Nós participamos lá disso né organizamos dois eventos, um sobre


lutas urbanas no Rio de Janeiro e outro sobre assistência técnica e
habitação de interesse social. Nos sindicatos arquitetos, junto com os
sindicatos de Engenheiros e a Federação Nacional de arquitetos, com a
FASE, com a REDE, enfim grupos que se organizaram com movimentos
sociais e CNP enfim e fizemos essa organização lá. Também houve outro
evento paralelo grande, que foi o evento de notáveis, grandes mesas,
palestras de pessoas importantes que discutiam a cidade, tipo David
Harvey, etc, que estiveram em instituições importantes de Quito, fazendo
discussões durante o período e teve por último, evento paralelo ao nível
da arquitetura urbanismo que foi organizado pelo conselho de Arquitetos
do Equador e que teve também uma série de discussões eminentemente
técnicas, discussões que não eram para vender produtos, discussões por
exemplo sobre planos de transportes, o dia inteiro várias mesas
discutindo sobre planos de transporte em vários níveis, em várias
cidades, em vários países.
Então esse era o quadro, esse foi o quadro em que nós tínhamos
que colocar o nosso documento, por que? Nós tínhamos já uma idéia
desse quadro e então resolvemos chamar uma precon aqui no Rio de
Janeiro, chamamos esse preparatório no Rio de Janeiro, tivemos 18
entidades participando discutindo, tivemos nessa carta do Rio realmente
tratar as questões que nos afligiam, porque o documento brasileiro foi
produzido e infelizmente começou em um governo e terminou em outro
governo né, porque justamente meses antes houve o golpe e com isso
ficamos.
Então é, o documento brasileiro ele tinha uma história de
organização interessante, mas por exemplo ele ficou sem espelhar por
exemplo a questão dos mega eventos, não falou por exemplo das
remoções no Rio de Janeiro. Então como é que é que você vai ter um
documento brasileiro que não discute a comercialização da cidade? Não
discute a mercantilização? Não discute as remoções das favelas e
impacto de megaeventos? Isso é um absurdo você ter isso no documento
brasileiro que não espelhe essa situação, então produzimos juntos esse

114
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

documento, então produzimos, inclusive Glauco esteve, Regina. Bom,


várias pessoas que estão aqui, algumas pessoas que estão aqui estiveram
lá com a gente e a gente produziu esse documento que chama carta do
Rio, produzimos outro que tem recomendações, críticas duras. Inclusive
a própria agenda urbana, que é um tema muito mais complexo do que
esse que eu estou colocando aqui, mas eu estou colocando os pontos
principais de uma forma de uma apresentação primeira e com isso a gente
conseguiu marcar posição lá, já temos folder 5 mil folders e fomos até
esses eventos todos né, os folders bilíngue e divulgamos essa carta do
Rio, dos nossos eventos, nesses diversos eventos paralelos que nós
marcamos a função, denunciamos a cidade do Rio de Janeiro como
cidade desigual, uma cidade discriminatória, enfim, e colocada num
plano que usava o dinheiro que os megaeventos não é não para viabilizar
a cidade, mas para viabilizar negócios e foi isso.
O quadro da NAU foi um quadro que a gente considerou uma
participação mas efetivamente no habitat o que a gente construiu. Então
para finalizar eu diria assim: a NAU é um documento que serve para
referência, para os trabalhos de ONGs e de organizações da sociedade
civil que buscam desenvolver esses temas, que busquem trabalhar nesse
nível internacional, multilateral e também no nível federal das políticas
urbanas.
Eles servem na medida em que têm algumas diretrizes, ele serve
para apadrinhar determinadas linhas de pesquisa, determinados projetos
concretos de solução para determinadas situações urbanas concretas,
então a NAU ela tem essa possibilidade, dá para se conseguir ao nível
internacional de ONGs internacionais, financiamento para o trabalho que
nós aqui queremos desenvolver, se a gente estiver alinhada essa é na
verdade acaba sendo a principal função da anal, nesses períodos de dar
pelas suas diretrizes chance de pessoas que querem trabalhar
antigamente com caso de locais utilizarem essas diretrizes para conseguir
um financiamento de seus trabalhos. Ok gente obrigado.

115
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Luciana Ximenes22

É queria agradecer o convite para estar aqui. Acredito que a mesa


anterior foi muito legal também. Para quem não me conhece, eu sou
Luciana, sou cearense me formei no Ceará e vim para cá. Estou há cinco
anos no Rio, estou tentando me situar um pouco da onde estou falando,
minha vivência no Rio. Trabalhei com regularização fundiária muito
tempo, o que me fez conhecer mais a cidade, depois entrei no mestrado
do IPPUR-UFRJ lá no Observatório das Metrópoles, pesquisando
habitação assim mais diretamente.
O Observatório tem várias frentes, isso vai guiar um pouco mais
a minha discussão. Assim vivamente e obviamente, então. Acabei de
concluir o mestrado graças a Deus! Tenho vida agora. A Paula Soares
foi ótima, ela acompanhou esse processo todo de ir às conferências,
entender como gerou esse produto. Eu o que eu vou trazer um pouco
mais é dizer o que eu vi deste ao que eu conheço e discuto a Nova Agenda
Urbana como documento. Mais do que esse processo, apesar de ter várias
críticas coisas que valem a pena ser colocadas como mérito mesmo,
desse esforço, é uma discussão contínua.
Acho que o mérito enorme é poder discutir o urbano numa escala
global. Assim, poder entender que existe diálogo entre cidades
periféricas cidades centrais e que essas políticas também são trazidas de
um lado para o outro. Acho que esse é o mérito forte da Agenda Urbana
e esses espaços, apesar de eu achar que por diversas formas a diplomacia
passou por cima de conflitos que eram essenciais. Outro mérito é discutir
o urbano e habitação social. Já é um avanço entender que dentro do rol
de questões sociais vocês têm essas apesar de ter enfrentamentos com
outras políticas.
É uma forma de embasar algumas lutas, alguns marcos
normativos que o Brasil tem assinado, a própria legislação a gente tem.
Tem é que reforçar o discurso para ser efetiva. Então, para os próprios

22
Integrante do Observatório das Metrópoles.

116
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

funcionários públicos, pesquisadores poderem embasar e legitimar as


suas ações, acho que também tem esse mérito de ajudar os conflitos,
legitimar alguns posicionamentos tanto no nosso caso para quem estão
contraponto as nossas afirmações Acho que as questões mais críticas que
eu achei em questão de habitat ou da habitat Conferência é essa busca
por conciliar questões de forma conciliatória. E acaba que o documento
não consegue expor esses conflitos todos e a gente perde essa
oportunidade enorme de ter uma discussão legal de agendas.
Temos umas dinâmicas neoliberais muitos fortes eu acho que o
Saad falou um pouco de apresentações de produto de grandes empresas
querendo discutir o urbano hoje em dia. O próprio Estado acaba sendo
muito disputado nesse contexto, e as reivindicações sociais que eu achei
no próprio documento. Fica claro que tem trechos dele que vem de um
lado tem trechos dele que vem de outro. E que ao invés de dialogar e ver
como as coisas se articulam e que acaba sendo desmembrado. E acho
que também ter essa diversidade de países produzindo esse documento
lugares de falas quem estão se articulando.
De que lugar mostra também ações de grandes corporações e de
grandes empresas também. O que a gente não pode esquecer que no
mercado imobiliário, na construção civil, nas grandes cidades brasileiras
Rio/São Paulo, a gente tem corporações internacionais, fundos
mobiliários que são recordistas que atuam internacionalmente. Vemos,
por exemplo, grandes corporações imobiliárias que em outros lugares
tem grandes canteiros de obras, grandes tecnologias, segurança
trabalhista enorme. No Brasil grande casos de trabalho é escravo. A
gente viu agora nos grandes eventos internacionais. E a ABRAINC que
é a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, a principal
força para não liberar a lista das empresas, com trabalho análogo à
escravidão.
Nos relatórios está só trabalho análogo, a escravidão não está nos
textos das cartas ABRAINC. Então a gente viu que o mercado de
construção civil que tem diálogos intraescalares. A gente pode discutir a
construção civil no Rio, São Paulo. No nordeste já são outros quinhentos,

117
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

quando os nordestinos vêm para o Rio/São Paulo trabalhar de forma


precária. E a volta pensando em escala global é uma grande oportunidade
que não foi explorada. E acho que o documento traz, coloca as margens
em não definir ações, ele é muito intencional. Faremos como se fossem
acordos de compromissos. Garantimos o direito à cidade para todos, que
na verdade nem têm, eles tiraram direito a cidade, agora é só cidade para
todos, do anal que saiu.
Por que não definimos ações, não podemos definir contradições
se você for viabilizar tudo que está ali não vão acontecer. As que nem
fosse uma de planejamento. De planejamento estratégico que foram
aplicados aqui no Rio, potencialidades e fraquezas e quando vai pensar
nas ações não vai bater. Não tem como bater aquelas situações e aí acho
que questões são mais claras para mim que a questão da dinâmica
habitacional e o direito a moradia e a disputa pelas contradições, foi o
que eu tentei pensar no documento que eu acho aí essas contradições
ganham vida, gritam no documento.
E no documento fala bastante, ele não dá esse nome, mas fica
muito claro a intenção das parcerias publico – privada como uma solução
para inovação entender o mercado privado e como uma solução para
inovações para o direito à cidade e o direito a moradia. E também ele
cobra exatamente isso dá competitividade, das inovações como um fator
positivo para alinhar esse discurso ele entra com discurso da capturar
mais valia, em vários momentos vai ter investimento mais valia ter que
captar esse recurso para investir em outros lugares. Ficou muito claro
que não entraram no documento os despejos forçados. E eu acho que já
tem um acúmulo sobre o uso que dá, para poder discutir um pouco, o que
eram contribuições do Brasil. Enorme e a gente acabou de receber um
leque de grandes eventos e isso não foi tocado apesar do nome nesse
documento falar do encruamento de posse para todos. A gente vai dá
terra para todo mundo mais não vamos discutir o que acontecer com
pessoas que saíram dessas casas.
E aí entra varias coisas como incluir como fazer coexistir essas
duas propostas eles colocam várias vezes a questão de competitividade,

118
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

da alta produtividade, da inovação, nas cidades às vezes no mesmo


parágrafo que ele coloca prevenindo a especulação imobiliária como
você discute empreendedorismo urbano, com alta produtividade,
competitividade, inovação mercado privado você vai prevenir já e outra
situação mais absurda ainda e fala na questão das PPPs, que ele não fala
esse nome, mas é o termo que mais usamos aqui nas parcerias publico
privado, na produção do espaço urbano.
E ele tenta dialogar muito com a participação da popular quando
eles falam PPPs eles falam com a participação da população lá e a
discussão que a gente tem que ter, fazer é da temporalidade dessas coisas
e do compromisso de cada questão. Se você tem uma política
habitacional ou política urbana que é promovida pelo setor publico e que
tende a atender o interesse publico e está comprometido com o nosso
normativo, nossa historia, nosso acúmulo. E aí assim você consegue
discutir a parceria popular. Você consegue discutir inclusive o desenho
dessas política. Mas manifestação de interesse, que é o novo modelo de
parceria publica privado, que é a própria empresa já modela o desenho
proponham a prefeitura ao gestor público a gente que essa proposta qual
a participação que a gente vai ter nisso.
Como alguém vai participar daquilo num contrato que já vem
moldado e assinado e já tem taxa de lucro incluindo naquilo ali. Fora a
temporalidade que é completamente distinta a temporalidade da
participação popular a é diferente da temporalidade desses contratos que
tem que ser remunerados rápidos. Ele fala também de uma coisa que na
ultima semana ficou mais forte e da ocupação de vazios em áreas
centrais. O documento fala de varias formas de incentivar isso incentivar
o uso de vazios sem discutir como os movimentos sociais poderiam ser
protagonistas dessa discussão.
Reconhecer o acúmulo que se tem nesse campo acho que todas
as contradições vêm vindas ao documento, e eu acho que é aí que a coisa
pega. Tem um tempo que é exacerbado quando ele vai falar do arranjo
financeiro, nos quatro pontos. Porque o documento é organizado em
ponto. Quatro que para mim me deram a pista de qual caminho estava

119
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

sendo proposto. Realmente mobilizar receitas recursos internos gerados


a partir da captura do beneficio da urbanização que é praticamente o
desenho das PPPs.
Convidar o setor privado aplicar a criatividade e inovação na
solução de desafios ao desenvolvimento sustentável, como nunca
estivesse sido convidado, como nunca tivesse tido esse protagonismo. E
ele fala varias vezes ao investimento ao estrangeiro direto, que outras
nações possam fazer investimento direto por estruturas financeiras, que
a gente também já foi celeiro em vários momentos. Mas eu achei
interessante como o documento frisa bastante investimento direito
estrangeiro. E tem aquela ação eles fazem uma lista que vai setor privado
corporativo, sociedade de credito, movimentos organizados eles vão
passando um leque qualquer pudesse fazer isso que estamos propondo.
Como se não houvesse diferença de quem está agindo ele reforça
varias vezes na modelagem que eles estão propondo, a captura de mais
valia. Então eu acho que a gente pode pensar o que faltou nessa discussão
pra mim fundos públicos. Pra mim claramente não aconteceu nessa
discussão, e o documento não discute quais fundos públicos poderiam
ser direcionados. Óbvio na escala mundial tem uma questão a mais como
o Estado. Que deve ser provedor de políticas de direitos básicos, direito
a habitação, a direito a cidade. E eu acho que a aqui no Brasil tem caso
que não é o único no mundo que é excepcional é do FGTS que um grande
fundo publico privado de fato. É um fundo que é tipo uma poupança dos
trabalhadores.
O que temos discutido mais recentemente é o papel do FGTS na
produção habitacional no Brasil. O quanto incentiva habitação de
interesse social é uma taxa mínima de rentabilidade do fundo o FGTS.
Tem investindo enormemente em fundos financeiro que trabalham com
imobiliárias, então o FGTS é o dono da Odebrecht ambiental é o
orçamento de interesse ambiental de anos como é que você faz esses
dialogo, é bem parecido com que parece ser a anal. É esse nome que fala?
Parece bastante com o discurso que o BNDES faz.

120
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Estamos fazendo de um lado, mas por outro também. Mas só que


sem entender que você esta produzindo habitação de interesse social
dando subsidio e você está encarecendo o preço da terra do outro lado.
Faz sentindo ou que você esta alimentando a maquina que não faz
sentido. Então nesses cincos minutinhos que restam eu acho que a gente
tem um exemplo de parcerias público privados no Rio de Janeiro na área
urbana na questão urbana. Apesar de ter poucos exemplos o Porto
Maravilha ser um exemplo meio certo que dialoga ainda com o FGTS.
Eu acho que eu pensei um pouco de mostrar que eu penso como
a agenda urbana que dialoga com o Porto Maravilha, São Paulo tem outro
cenário de operações urbanas, Belo Horizonte tem um cenário esdrúxulo
também, Fortaleza está com desejo de umas vinte operações urbanas
consorciadas em operações mais aqui no Rio você tem o Porto
Maravilha. Com um caso uma maravilha só. O Porto Maravilha o
desenho dele é bem próximo do que se propõem a nova agenda urbana
consorciada. Você faz uma agenda urbana, numa operação urbana, numa
área especifica que se propõem ser revitalizado.
E você faz essa operação urbana se alimentar financeiramente
com a valorização imobiliária daqueles terrenos. no caso do Porto
Maravilha a gente vê que esse desenho não é essa maravilha toda quem
bancou tudo foi o FGTS e tem uma divida que passa do FGTS para Caixa
econômica e que está comprando de quem apesar da Caixa operar o
FGTS. Então é uma coisa minha confusa e a gente viu seu arranjo que
na verdade na condição que agente está de país periférico e, pois marca
elemento não é o cenário lindo para nova agenda urbana coloca.
Que o Estado não vai ter ônus e nesse novo caso das nossas
cidades que é extremamente desigual. Tem processos de urbanização
diversos que tem periferias com baixa infraestrutura e periferias com
déficit de serviços públicos. as operações urbanas acabam tentando a
ficar na área que já tem expectativas de valorização por que se está
fazendo um negocio que depende da valorização imobiliária você
escolher.

121
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Vai escolher para seu negocio um lugar que tende a valorizar


então você tem um ciclo a reinvestimentos que acaba as operações
urbanas se centro em lugares que já tem tendência a valorização. Porque
já são servidas e aí você pega todo aquele dinheiro de valorização
imobiliária daquele lugar e reaplica naquele mesmo lugar não estou
dizendo que o Porto área mais estruturada da cidade. Mais com certeza
tinha um potencial enorme diferente de fazer uma parceria publico
privado na zona oeste esperando ter retorno com renda da terra que não
é o caso eu acho que aí já temos em exemplo do que não exatamente esse
desenho aqui no Brasil funcionaria principalmente na cidade como o Rio
de Janeiro.
A participação popular que é colocada na nova agenda urbana
como conciliável a parceria publico privado no Porto Maravilha ficou
muito claro que não tem participação popular. Teve uma pressão para ter
um plano de habitação de interesse social do povo, esse plano teve o
esforço de acontecer teve o fórum etc. Mas não traz muitos exemplos o
que aconteceu no plano não se materializa o que foi uma livre exigência
de FGTS e passou a ser para outras operações urbanas que o FGTS está
envolvido acho que essa questão de participação pra mim o Porto
Maravilha é um exemplar.
Também não participou desses processos decisórios como tem
uma empresa gerindo toda parte da infraestrutura do Porto por muitos
anos, também não tem como disputar políticas publicas e direito naquele
espaço. É de outras instancias não só as pessoas que moram lá também
tem processo de remoção que no Porto Maravilha é invisibilizado e
também eu já ouvi vários gestores públicos dizendo que não ouve
remoção do Porto Maravilha. E isso assim relatórios não existem
contendo remoção e se a gente for fazer uma à visita você não vai dizer
que não recorreu.
Já é demais a questão do Morro da Providência eu acompanhei
pouco assim, mas eu tentei discutir mais as ocupações nas regiões
centrais e trabalhei mais as ocupações do Porto. No trabalho que eu fiz e
se você pegar só as ocupações organizadas por movimentos sociais que

122
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

foram removidos pelo projeto do Porto Maravilha que tiveram


justificativa uma obra do Porto Maravilha. Que vai muito de encontro de
revitalizar o centro e trazer habitação. E eu acho que depois da tragédia
de São Paulo esse tema fiou muito batata quente eu trouxe aqui umas
ocupações que saíram para lembrar.
Machado de Assis que eram vários imóveis que foi removido em
2012, a Zumbi dos Palmares em 2011, Carlos Magno 2011 e a ocupação
casarão em 2011 numa das poucas que restaram lá estão em situações
difíceis de ver seu processo porque variam ocupações nós temos um
grande processo de remoção lá. Tentaram se viabilizar por meio do
mercado de identidades, que é uma linha da minha casa minha vida. Que
já é outra discussão que hoje em dia não tem uma perspectiva que volte
a ser o que já se foi. E eles estão disputando terreno com grandes
construtoras, com grandes especuladoras numa área que tinha diversos
terrenos públicos. a gente perdeu os terrenos públicos botou como
garantia da operação urbana e agora a gente tem que suprir moradia com
terreno privado o que não faz nenhum sentido na região do Porto. E aí as
pessoas que foram removidas não evaporaram, a gente tem um numero
enorme de famílias de aluguel social, a gente tem umas demanda maior
que a produção imobiliária do Rio. A gente não consegue suprir isso no
cenário atualmente, menos para varias ocupações as ofertas que com
despejo a e realocação em imóveis Minha Casa Minha Vida.
Que também foi um meio que viabilizou esse processo, toda a
gente a remove aqui, mas tem gente tem como produzir barata em outro
lugar. Então tem gente de Machado de Assis, por exemplo, a oferta foi
de ir para um Minha Casa Minha Vida lá em Senador Camará, 45 km do
lugar que eles moravam, para vários outros foi para ir a um abrigo na
Ilha do Governador, também sem garantia de ir para filha de espera com
prioridade de ser atendido. E aí vendo os valores de indenizações mais
caras que eu consegui excepcionar, levantar foi de vinte mil reais. Se
comprar um imóvel na zona portuária com vinte mil reais à gente
compraria um banheiro, três metros quadrados no máximo.

123
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Então não temos uma forma que inclui pessoas que precisam de
fato de ser entendidas de terem seu direito à moradia atendida e
garantidas e muitas pelo contrario viabiliza muito mais uma ótica de
lucro com urbanização e tão eu acho que essa discussão para onde foram
essas pessoas invisibilizadas em varias questões inclusive na agenda
urbana. Que não discute o fluxo de pessoas de pessoas que não o cabem
que eles não estão propondo não tem espaço para ela nesse tipo de
cidade, que está sendo proposta e aí entra varias questões. E essa
população foi movida para áreas que tem maiores números de violência
contra a mulher, estupro e ficam distante. e depois com BRT e faz o favor
de trazer só para trabalhar e voltar eu acho que essas são as questões que
nós a gente conseguimos abordar a agenda urbana através de um
exemplo muito claro que a gente conseguiu visualizar com muita clareza
o que está sendo proposto e agente já conheci indo e vindo o que está
sendo proposto. E fim.

Tarcísio Motta Carvalho 23

Obrigado, boa tarde. Boa tarde a todos e todas. Quero agradecer


o convite para poder estar aqui conversando sobre direito à cidade, sobre
transporte. Acho que aprendi muito com a fala do Paulo e da Luciana e
fiquei pensando como eu iniciaria a minha fala para encaixar nesse
debate. Minha formação: sou professor de História e hoje estou vereador
da cidade do Rio de Janeiro, doido para estudar e debater melhor a
questão do Porto Maravilha.
Nós, inclusive, apresentamos, a primeira iniciativa do mandato
que foi apresentar um pedido de CPI sobre o Porto, que obviamente não
alcançou as dezessete assinaturas que eram necessárias para prosperar.
Tanto o grupo do Eduardo Paes, quanto o grupo do Crivella, resolveram

23
Professor de História do Colégio Pedro II - ensino médio e fundamental. Doutor,
Mestre e graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Vereador do Município do Rio de Janeiro pelo PSOL - Partido Socialismo e
Liberdade.

124
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

que não era hora de mexer no assunto, mas acho que no início do ano
que vem a gente consegue retomar. Vou precisar muito do contato com
a Academia para que a gente possa esmiuçar os direitos e tudo aquilo
que foi negado lá, mas gostaria de falar sobre a experiência de outra CPI,
e a partir daí discutir o direito à cidade a partir da perspectiva da questão
dos transportes, uma condição absolutamente necessária para que o
cidadão possa exercer o direito à cidade. Acho que em certa medida é
um estudo de caso, quase um choque de realidade diante dessa discussão
toda do habitat, dos documentos e das questões que vocês levantam aqui.
Quando nós falamos de transporte no Rio de Janeiro, nós
estamos falando de certo grupo empresarial, certa máfia que não tem
nada de moderna e inovadora e, em certa medida, controla e tenta manter
de todas as formas possíveis o controle de um determinado setor que é
encarado como mercadoria fundamental para eles, para que possam
continuar auferindo lucros bilionários. Portanto, acho que se trata de um
debate a respeito de como esse determinado grupo de empresários, que
age como máfia há muito tempo na região metropolitana do Rio de
Janeiro, não só na cidade do Rio, mas também no interior, já expandindo
seus braços para grande parte do território nacional, como é que eles
inscrevem seus interesse no aparelho de Estado, como é que eles
enfrentam os conflitos sociais daqueles que defendem o direito ao
transporte, e aí é óbvio, quando nós repensamos isso, nós retomamos
2013, retomamos as manifestações, a questão do estopim dos vinte
centavos, onde o debate do transporte e do direito à cidade se tornou uma
das pautas fundamentais, mas como esse mesmo grupo empresarial
também enfrenta outros grupos empresariais pela disputa sobre qual deve
ser o modelo de transporte hegemônico na cidade do Rio de Janeiro e na
região metropolitana.
Para a cidade do Rio de Janeiro hoje, 72% das viagens tem
relação e são viagens de ônibus. Do ponto de vista das regiões
metropolitanas, é um índice absurdo, eles detém ainda um controle, uma
capacidade, portanto, de ganhar dinheiro com um sistema de ônibus que
é muito impressionante. É um sistema que é caro, ineficiente e que retira

125
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

cotidianamente uma parte da renda dos trabalhadores. Um estudo recente


do IPES chega a dizer que os 10% mais pobres na cidade do Rio de
Janeiro, desses 10%, 30% sequer têm gastos com transporte público,
exatamente porque estão excluídos nesse processo e, portanto, negado o
seu direito de mobilidade dentro da própria cidade.
Em certa medida, esse grupo de empresários que controla há
décadas e que tem tentáculos para dentro do aparelho de Estado, que
ficaram cada vez mais evidentes à medida que você tem desdobramentos
da operação Lava Jato, das operações Cadeia Velha e Ponto Final, eles
agem de duas formas: primeiro fazem a exploração do sistema de ônibus
no Rio de Janeiro, e em toda região metropolitana para garantir e
aumentar os lucros do próprio setor, mas ao mesmo tempo inviabilizar
qualquer medida de mobilidade urbana que possa trabalhar com a
perspectiva da integração de modais e da integração tarifária, que de fato
poderiam garantir o acesso e o direito a mobilidade. Não ha outra
explicação possível além dessa para o fato de que você até hoje não tenha
uma linha de barcas que ligue São Gonçalo ao centro da cidade do Rio
de Janeiro, que não o interesse dos empresários de ônibus para continuar
obrigando e submetendo a população a utilizar esse mesmo sistema; não
há outra explicação a não ser essa, quando você olha a malha de metrô
do Rio de Janeiro e percebe aquela tripa, aquela linha reta sem qualquer
possibilidade de rede, em que se continua aquela lógica: no Rio de
Janeiro temos que a linha 1, 3 e 4 são a mesma linha no final das contas,
na perspectiva que você tem três linhas sobre o mesmo trilho, numa
situação que se explicada para alguém de fora beira a bizarrice, mas que
revela disputas internas dentro dessas frações da classe dominante
enfrentando, inclusive, poderosos interesses de grandes empreiteiras.
O curioso é que está relação só se resolveu e se pacificou
justamente na região do Porto ou próximo da região do Porto, porque
não está completamente dentro do Porto, que é a situação do VLT
naquela região em que o consórcio unifica as grandes empreiteiras e a
máfia dos Barata ali na operação do VLT, que é outra caixa preta que a
gente precisa olhar.

126
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Entrando mais direito nesse caso, o que esse trabalho na CPI na


Câmara dos Vereadores nos ajudou a escancarar? De fato, não tem
nenhuma grande novidade, mas talvez o trabalho que nós conseguimos
fazer lá tenha aberto um pouquinho a tal da caixa preta, e o que nós
percebemos claramente não é um erro metodológico ou técnico, mas um
projeto, e é um pouquinho disso que eu vou falar para vocês. Acho que
cabe uma nota, só para que nós possamos entender, se hoje nós estamos
falando dessa experiência da CPI de ônibus na Câmara de Vereadores do
Rio de Janeiro e de um relatório que nós produzimos com mais de
trezentos e cinquenta páginas, ela tem um toque de ironia para que nós
possamos entender como é que tais interesses estão inscritos no aparelho
do Estado, como eu dizia antes. Com o desdobramento da operação
Ponto Final, que pegava e escancarava uma serie de relações desse grupo
de empresários com o grupo politico hegemônico no Estado do Rio de
Janeiro, mas no nível estadual, nós propusemos na Câmara uma CPI cujo
principal motivo era: é o mesmo grupo empresarial, é o mesmo grupo
político, os indícios são os mesmos. Logo, as praticas devem ser as
mesmas. Portanto, precisamos investigar. Antes de nós conseguirmos,
nesse caso, as dezessete assinaturas, e conseguimos de fato as dezessete
assinaturas, mas cinco minutos antes de que nós pudéssemos protocolar,
porque a décima sétima assinatura demorou, eles protocolaram um
pedido antes do nosso. Quem são eles? O presidente da comissão de
transporte na Câmara de Vereadores, vereador Alexandre Esquerdo que,
por sinal, é seguidor e afilhado político do Silas Malafaia, só para nós
entendermos como esse pensamento reacionário e fundamentalista se
articula com projetos de classe também, e nós as vezes perdemos o foco
disso e, no final das contas, foi a CPI deles que prevaleceu e não a nossa.
Isso numa tentativa de nos excluir, excluir, nesse caso, a bancada do
PSOL, que teria direito a uma suplência sem possibilidade de apresentar
requerimentos ou votar na própria CPI. Tentaram dar um golpe, mas a
grande questão é que ao nomearem os vereadores para a CPI, eles
nomearam para titular da CPI o vereador chamado Doutor Gilberto, que
dois dias depois foi preso porque integrava uma máfia que cobrava

127
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

propinas para liberar corpos no IML de Campo Grande. Assim, a gente


pode ter uma ideia do nível de operação que essas pessoas estão lidando.
E aí, com isso, como ele estava preso por causa de outra máfia, o
regimento garantiu o direito do suplente a assumir uma cadeira de titular
e só por isso eu estou podendo falar para vocês a partir dessa experiência
que aqui está, para que nós possamos entender que o poder e a forma que
essas pessoas se garantem para permanecer no poder são muito
impressionantes.
Pois bem, qual é a grande questão? Diferente do nível estadual, o
Rio de Janeiro havia passado por um processo de licitação, um edital e
uma licitação. Havia um contrato de concessão em vigor, diferente do
nível estadual onde as linhas são por permissão e aí, portanto, as linhas
operam de uma outra forma. Havia no Rio de Janeiro a perspectiva que
havia um sistema modelado, organizado e licitado e que, portanto, o
contrato em vigor seria alvo de fiscalização e controle por parte do poder
público e também, quem sabe até, de controle social. Essa ficção que não
se mostrou na realidade. Quando nós vamos chegar próximo dela o que
aconteceu no Rio de Janeiro é que a licitação, o edital e o contrato
conferiram uma fachada de legalidade a uma atividade que permaneceu,
obviamente, ilegal.
Como é que nós apresentamos essa situação? Primeiro, na própria
modelagem do sistema no Rio de Janeiro e semelhante, muito
semelhante ao que ocorreu aqui em Niterói, o Rio de Janeiro foi dividido
em quatro grandes áreas chamadas RTRs; em cinco. A RTR Central, ela
não foi licitada já que, em tese, as linhas passariam por ela, mais quatro
RTRs, cada uma delas licitada para um determinado consórcio de ônibus.
Primeiro problema dessa historia era qual era a lógica de ter a divisão em
quatro grandes áreas e com objetivo de cobrar a mesma passagem para
cada uma dessas áreas que tinham dinâmicas sociais e de mobilidade
completamente diferentes sem qualquer lógica de compensação entre
elas. Era algo que nós perguntamos para todos os técnicos que passaram
e foram responsáveis por isso e nenhum deles soube explicar. Não sei se
foi uma decisão de cima, uma decisão política, que é algo que é lógico

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

até para quem não entende muito de transporte. Uma linha que sai de
Santa Cruz e vem para o centro da cidade, ela vai custar, ela vai ter um
custo de operação muito diferente de uma linha que sai de Laranjeiras e
vai até Copacabana e tem um percurso muito menor e uma quantidade
muito maior de passageiros que sobem e descem do ônibus o tempo
inteiro; muito diferente de uma linha pendular que vai trazer os
trabalhadores de Senador Camará, os trabalhadores que saíram do Porto
e foram para lá, até o centro da cidade e são levados de volta ali.
Portanto, havia uma lógica de racionalidade no sistema que era
tentar operar dessa forma criando linhas que são claramente deficitárias
com o preço da passagem e linhas que são claramente superavitárias. O
contrato de concessão dizia que a taxa interna de retorno, ou seja, o lucro
médio deveria ser oito e meio por cento para cada um dos consórcios e
aí está a lógica da caixa preta, porque a grande questão, a ficção que está
aí sobre isso, do controle social do poder público sobre essa mercadoria
era seguinte: se estabelece um contrato, se estabelece a passagem que
tem que custear todo sistema, o valor da passagem, e no Rio de Janeiro,
é verdade, não há nenhum, ou não deveria haver, porque o houve durante
alguns anos subsídio direto de dinheiro público no custeio do sistema.
O sistema deveria ser custeado todo para passagem garantindo ao
setor, aos empresários, o lucro médio de 8,5% no final de vinte anos e a
cada momento que se percebesse o lucro está abaixo de 8,5% a passagem
deveria subir e a cada momento que se percebesse que o lucro está acima
de 8,5%, a passagem deveria descer, deveria baixar. Resguardada a
lógica das intenções anuais que teriam única e simplesmente a intenção
de fazer a reposição inflacionária dessa história.
Qual foi, então, a tática desses mesmos empresários? Apesar de
haver um contrato, de haver uma proposta comercial, de haver uma
licitação, eles passaram de 2010 até agora inflando e camuflando lucros
do sistema como se eles fossem despesas para impedir que se percebesse
que a passagem estava acima do normal e, portanto, os trabalhadores
estavam pagando um sobre lucro absurdo. As contas que nós fazemos no
relatório, da diferença da proposta comercial e a realidade do que de fato

129
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

ocorreu são da ordem 3,6 bilhões de reais, só para que a gente tenha uma
ideia de dinheiro que na verdade está inscrito nas planilhas deles como
despesas administrativas, despesas financeiras, outras despesas
correntes. São despesas quase impossíveis de se verificar, e isso as
auditorias externas comprovam o tempo inteiro, fazendo com que em
nenhum momento o município tenha exercido o seu dever de dizer: os
lucros estão acima do que deveriam, a passagem deveria ser mais barata.
O exemplo mais evidente desse escárnio sobre o qual a população
carioca, e também a população de Niterói, que também foi passado isso
pra cá, é o exemplo das garagens de ônibus. Nós temos aqui, inclusive,
o contrato xerocado nesse relatório em que a Verdan, auto viação Verdan
que opera algumas linhas de ônibus da zona sul e zona norte do Rio de
Janeiro, ela aluga uma garagem da Verdan imobiliários. O dono,
principal sócio da auto viação Verdan se chama Jacob Barata Filho e o
dono, principal sócio da Verdan imobiliária é Jacob Barata Filho. Ele
assina, está aqui na página duzentos e vinte oito o contrato, como locador
e locatário ao mesmo tempo, ele não chega nem a disfarçar, eu gosto de
mostrar.
Está aqui o contrato, a assinatura dele de um lado e de outro. Ele
assina como locador e locatário e eu fico imaginando ele tirando o
dinheiro do bolso direito, passando para o bolso esquerdo, e agradecendo
a ele mesmo pelo pagamento em dia de um aluguel de garagem de 500
mil reais por mês, meio milhão de reais por mês por uma garagem de
uma viação. Nós não estamos falando do sistema publico de transporte.
Portanto, meio milhão de reais por mês ele paga para ele mesmo. Então,
o que isso significa? Isso entra na planilha como custo do sistema que,
portanto, deve ser pago pelo preço da tarifa, e não como lucro do sistema
que de fato é, porque garagem pertence a ele mesmo, e na hora da
licitação ele apresentou como se a garagem fosse dele. Essa é a questão.
O que se significa isso? Você tem um sistema cuja caixa preta foi feita
de propósito e um poder público absolutamente omisso, pois se foi
possível, com apenas 120 dias de trabalho, descobrir coisas desse tipo,
imagina se de fato o poder público estivesse exercendo seu papel de

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

controle que deveria estar exercendo sobre isso. Se nós fomos capazes
de achar 3,6 bilhões, imaginem quanto na verdade de esses caras estão
embolsando, roubando dinheiro da vida e do trabalho do trabalhador que
é obrigado a pegar ônibus o tempo inteiro.
Além disso, o que nós tínhamos são reajustes tarifários, os tais
reajustes anuais, absolutamente abusivos. Em 2011, por exemplo, o
próprio Tribunal de Contas do Rio de Janeiro disse que o aumento da
passagem de 2,50 para 2,75 estava errado, os técnicos comprovaram
isso.Os conselheiros, por sua vez, disseram não, calma, não dá para saber
direito se está errado ou não, vamos fazer uma auditoria, e o reajuste
ficou valendo. Depois, Eduardo Paes autorizou dois aumentos, um para
climatizar a frota, outro para custear as gratuidades, que foram os
aumentos que vocês devem ter visto, caíram na justiça do Rio de Janeiro
por ação do MP.
Cada um desses aumentos foram vinte centavos a mais cobrados
de cada trabalhador durante dois ou três anos e, portanto, desse ponto de
vista o que nós estamos falando é que o direito é essencial para o cidadão,
direito fundamental para que o direito à cidade seja exercido está sendo
negado a uma parcela importante da população por conta de um pequeno
grupo de empresários que detém o controle político e que detém,
inclusive, uma forma de impedir qualquer tipo de controle social pra isso,
mas novo capítulo disso é o tal acordo de conciliação que pode levar e
elevar a passagem de ônibus do Rio de Janeiro para 4 reais nos próximos
dias. Quanto tá a passagem aqui em Niterói aliás? R$ 3,90. O curioso é
que o padrão da capital do Rio de Janeiro vira o padrão pro resto do
estado inteiro, sem nenhum tipo de lógica porque as cidades têm
dimensões e dinâmicas urbanas totalmente diferentes, mas recentemente
eu estive em Barra Mansa cuja a passagem é 4 reais, Teresópolis cuja a
passagem é 4 reais, Niterói é 3,90.
O prefeito vai dizer que é a mais barata por 10 centavos de
diferença, e o Rio de Janeiro vai para 4 reais né. Se Barra Mansa,
Teresópolis, Niterói, Rio de Janeiro têm o mesmo aumento de passagem
é porque estamos tendo algum problema na lógica de como se estipula

131
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

esse tipo de passagem, as dinâmicas, números de passageiros, índices de


passageiros por quilômetro são completamente diferentes.A verdade é
que o que acontece na região do Rio de Janeiro acaba servindo de
parâmetro pro restante do estado, fazendo com que na verdade que se pro
Rio de Janeiro uma passagem de 4 reais já é capaz de esconder lucros
dessa ordem, imagine para uma cidade pequena como Teresópolis,
imaginem esse tipo de situação. O mais novo processo foi agora e aí eu
tenho que fazer esse registro, ou seja, nas dinâmicas e contradições do
processo politico, a eleição de Crivella ao município do Rio de Janeiro
que era claramente a derrota política de um determinado grupo, que era
o grupo voltado para o Eduardo Paes, levou para prefeitura o Fernando
Mac Dowell, que era o técnico de transporte que sempre se valeu, de uma
certa medida, sempre produziu algum conhecimento sobre isso que era
um conhecimento contrário a esse tipo de esquema.
Como secretário de Transportes ele bancou durante muito tempo
o não reajuste das passagens, enquanto as coisas não ficassem mais
claras, ele morreu ontem, será enterrado hoje, eu queria fazer esse
registro, porque de fato houve um hiato em que estes empresários de
ônibus ficaram com menos poder, seja por desvendamentos da operação
Ponto Final, seja porque o Ministério Público conseguiu finalmente as
primeiras vitórias contra eles em mais de 20 anos de atuação que aí
teríamos de investigar que tipo de articulação que eles tem no Judiciário,
mas acontece que a saída e deslocamento do Fernando Mac Dowell para
uma postura quase figurativa, que não exercia nada, e a colocação de
outras pessoas na Secretaria de Transportes levaram a esse atual acordo
de conciliação que já foi assinado pelas partes e precisa apenas ser
homologado pela justiça para que se chegue aos 4 reais.
Absurdamente, o tal termo de conciliação apresenta algumas
novidades, todas elas presentes já no contrato de 2010, com necessidade
de uma auditoria nas contas, que até hoje, nunca conseguiu ser feita,
porque toda auditoria, mesmo as auditorias das empresas mais
importantes do mundo, chegam aqui e olham as contas e dizem que é
impossível mudar a opinião conclusiva dessas empresas de ônibus, a

132
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

gente não consegue verificar nada das contas delas.Aumentam a vida útil
dos ônibus, postergam pra 2020 a necessidade de climatização, e
garantem aquilo que os empresários queriam que era subir a passagem
para 4,00 reais.
Eu encerro, portanto, dizendo que não há dúvidas, que garantir o
direito à cidade neste momento significa derrotar esse tipo de máfia, que,
na verdade, impede e restringe o direito de milhões de pessoas à cidade,
ou seja, há um elemento de luta de classes fundamental nessa disputa e
nas lutas que estamos vendo aqui. Essas pessoas se inscrevem nos mais
diferentes níveis de interesse de Estado para garantir seus privilégios que
retiram do trabalhador parte da sua renda para que eles possam embolsar
isso. É um exemplo claro de que a luta política pelo direito à cidade tem
um componente fundamental que precisa ser escancarado, não é possível
fazer conciliação com uma máfia que controla um transporte durante
tanto tempo. Conciliação com eles é continuar submetendo os
trabalhadores a esse tipo de absurdo a que nós conseguimos enxergar
nesse relatório. Quem quiser, inclusive, ter acesso ao relatório, ele está
disponível em www.cpidosonibus.com.br, ou em
www.tarcisiomotta.com.br, que estará disponível online o relatório para
que possamos prosseguir nesse debate que é essencial pra pensar a vida
urbana na região metropolitana no estado do Rio de Janeiro. Obrigado.

Debates
Plateia (01): Sou Cynthia, assessora parlamentar no mandato do
vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL), me justifiquei pela ausência
dele, ele está envolvido numa atividade dos professores, queria perguntar
quanto custa uma passagem no município do Rio de Janeiro? R$ 3,60.
Então, é muito curioso que em Niterói já estamos, a mais de um, desde,
a mais de um ano, desde de fevereiro do ano passado, com esses 3,90, e
recentemente teve um relatório da FGV, que é parceira da prefeitura,
sempre, da prefeitura de Niterói, e nós solicitamos desde de fevereiro
que esse relatório fosse entregue a nós, que a gente possa verificar; e este
relatório exauria que o custo da passagem seria 3,85 e 3,95 e por isso

133
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

optamos pelo valor intermediário e desde de fevereiro não tivemos


acesso a relatório. Lembrando que a aérea, de Niterói, é cerca de 1/5 da
cidade do Rio de Janeiro; e temos Barata, Jacob Barata, que é um dos
donos da nossa querida “Pendotiba” daqui em Niterói, era mais uma
parte de complemento, e ouso dizer que a situação de Niterói é até mais
grave, e totalmente encapada pela prefeitura, com esse relatório que
estamos ansiosos, para poder chegar essa validação da FGV.
Plateia (02): Sou o Rodolfo e fiquei curioso a respeito da colocação que
o Paulo fez, a respeito dessas conferências internacionais, que em
determinados países, o direito da cidade é construído teoricamente, ou
tratado, como direito individual e não coletivo; minha dúvida é como
isso é construído, elaborado, não sei é uma elaboração, mas se é teórica,
normativa, ou meramente de elaboração de políticas públicas, mas como
eles justificavam que o direito da cidade é um direito individual e não
coletivo, pois eu tenho, dificuldade, como o direito da cidade é
individual, sendo que é inerente a algo coletivo a coletividade.
Glauco Bienenstein: Obrigado Rodolfo, me pareceu que a Cíntia fez
uma complementação, e o Rodolfo uma pergunta, eu vou passar então
pra quem ele fez uma pergunta, não excluindo possibilidade dos demais
membros da mesa comentarem, então por favor Paulo pode falar.
Paulo Saad: O que dá para entender sobre esta questão é que eles tentam
aproximar o direito da cidade, ao nível a direito a saúde, no nível direito
educação, que são entendidos para muitos Países como direitos
individuais, ou seja, é um direito público, mas exercido, como o direito
a vida. Essa noção de direito, essa é a, eu não conheço o detalhamento
dessa formulação, mas essa postura, desses países que entendem esse
novo direito, esses que propõe esse direito no âmbito individual, embora
no direito público, embora no direito universal, eles entendem como um
novo direito, como se cada indivíduo tivesse direito de morar na cidade,
como detalham isso já é outros 500. Mas assim como ele entende como
direito coletivo, passa ser, passa o Estado a ter a responsabilidade muito
bem definidas, ou seja, exigir imediata postura do Estado, para como
organizar esse direito coletivo, e quanto esse direito reforça a compilação

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

de outro direito, fica muito mais difícil organizar, para quem não está
cuidando dos demais direitos, que estão associados ao direito da cidade.
Então existe na verdade, uma disputa política de visões diferentes, mas
claro que é algo, que as empresas e os empresários, que querem assaltar
o dinheiro público, dinheiro, grana para grande circulação, não interessa
nenhum direito e organização de direito já constituídos, como direito
agregado, assim menos privatização, menos absorção das empresas
privadas. Então a discussão se dá entre os recursos públicos, interesses
públicos e da drenagem disso para o direito individual que pode ser
atendido dependendo, se o indivíduo, merece ou não, aí o direito será
relativizado, como dos pobres, como se abrangesse que a culpa do pobre
é de ser pobre, mas assim é o direito individual é colocado nessa
discussão.
Platéia (02): É porque ontem discutimos a respeito de manifestações
culturais, como forma de resistência e ocupação dos espaços públicos, e
é em dado momento, discutiu-se a respeito da mercantilização, de
movimentos culturais, como forma de cooptação do mercado, de forma
para mascará uma ideia de ocupação e resistência, mas que na verdade
era algo puramente de interesse do capital, é essa ideia de que a cultura
cria e o mercado se apropria, é, e aí e discutiu-se alguns exemplos a
respeito, mas a Luciana (palestrante)falou a respeito e o Tarcísio, por ser
vereador, ao mesmo tempo, particularmente a situação financeira, do
Estado do Rio, é extremamente, delicada, então, de que forma, pode-se
compatibilizar isso, porque isso, essas operações urbanas, necessitam
investimentos privados, ou PPPs, para que sejam viabilizadas, de que
forma pode-se compatibilizar essa relação público privada, de forma é,
de fato, permitir que sejam feita as obras, ou todas as viabilizações
urbanas necessárias, mas sem que isso seja uma forma de cooptação de
direitos particulares, quais seriam os meios e instrumentos efetivos, para
que teriam capacidade de efetivar o direito da cidade de forma
democrática e não meramente mercadológico.
Luciana Ximenes: Eu acho que a operação urbana, é um instrumento
que está desenhado nas nossas normativas, ela existe no estatuto da

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DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

cidade, com vários bônus e alguns ônus né, mas eu, particularmente,
tenho pouca esperança que a operação Urbana, aconteça sem que seja
muito mais para atender o capital privado, do que para atender o
interesse público, acho que existem muitas formas de produzir, acho que
existem muitas outras formas de produzir no espaço urbano, sem que seja
da forma da operação urbana. Acho que a operação urbana, surgiu
substanciada num contexto específico, e acho que antes disso a gente já
fazia isso na cidade com outros arranjos e estruturas, que nunca deixaram
de acontecer, mas acho que a operação urbana abre a possibilidade de
dar pouca clareza, pouca participação, do controle social que tá
acontecendo lá dentro, mas para os que aceitam que a operação urbana,
pode ser um instrumento, para como melhorar talvez o instrumento, tem
vários caminhos que podem ser adotados, a gente já tem várias
experiências de participação popular muito forte no Brasil, e talvez
discutir um pouco mais para ver como as operações entram no orçamento
municipal né; principalmente Municipal, porque agora, as operações
podem intermunicipais, e aí abriria outro leque de discussão, mas as
remoções poderiam ser facilmente discutidas, com as normas mínimas,
você pode fazer a operação urbana desde que a população possa sair
dessa área, por exemplo, desde que você promova uma habitação como
parte da operação... vários arremedos que dariam pra fazer, mas eu acho
temos pouca esperança que esse instrumento seja o mais útil, acho que
temos outros instrumentos, como IPTU progressivo, esses mais
discutidos depois do caso de São Paulo, ou outros instrumentos urbanos
que poderiam ser aplicados, que na operação urbano melhorasse a
qualidade do ambiente construído, mas do que grandes obras, acho que
temos o caminho assim.
Tarcísio Motta Carvalho: Acho que a Luciana respondeu bem, só que
o que eu lembrava enquanto você falava dessa questão e, inclusive,
puxando o gancho com a questão da cultura, e eu não sei se na mesa
ontem falaram disso, o próprio caso do Porto Maravilha é um caso
emblemático desse ponto de vista, ou seja, você introduziu e obrigou
dentro da operação urbana a colocar equipamentos culturais, como MAR

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

e o Museu do Amanhã e deixou o Instituto Pretos Novos absolutamente


sem grana nenhuma, sem qualquer possibilidade e aí já era algo
importante com relação a identidade da própria região, construída na
região, que na verdade foi apropriada. Quem visitou, por exemplo,
aquele contêiner que ficava ali no início da Barão de Tefé que abrigava
a operação urbana consorciada, tinha toda uma preocupação de se
apropriar do discurso de que aquilo seria uma área negra, uma área da
pequena África, que seria uma área de entrada de africanos. Na hora que
foi aplicar isso, os equipamentos culturais são o MAR e o Museu do
Amanhã que guardam pouquíssima relação, e deixou o Instituto Pretos
Novos à mingua. Conversa com o atual presidente da SEMDUR, ele
disse exatamente isso, que nós gastamos todo o dinheiro por conta da
obrigação da operação urbano consorcial, pois havia uma obrigação de
que parte do dinheiro fosse investido em cultura local. O que a prefeitura
fez é que obrigou com que se investisse tudo isso no MAR e no Museu
do Amanhã, e em tese não tem mais dinheiro para aplicar em cultura
nesse tipo de atividade que seria importante para a identidade local, dos
moradores. Além disso, respondendo aos interesses da Fundação
Roberto Marinho. Ou seja, em quais partes da lógica de que a cultura
como espetáculo ou a cultura como direito, e aí tem outro debate sobre
essa questão do direito à cultura. Se tivéssemos ali sendo aplicado na
construção de pontos de cultura, até mesmo do ponto de vista econômico
das finanças combalidas do estado, você teria gerado emprego, renda,
impostos, muito diferentes e com outra dinâmica, do que aquela barata
branca do Museu do Amanhã, ali do Porto. É estranho “Ah, professor de
História ta falando contra o museu!!”. Eu não estou falando contra o
museu, eu estou falando quais eram as opções políticas do ponto de vista
que você tinha para promover cultura, que tipo de cultura, com que
relação com o território, com que dinheiro naquele local. Esse tipo é a
cidade da música na Barra, é o Museu da Imagem e do Som em
Copacabana. Está claro, né, são grandes elefantes brancos que
absorveram o dinheiro, que não geraram emprego e renda e não geraram
direito a cultura, numa lógica de cidade onde a cultura é espetáculo. Eu

137
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

acho que é um pouco essa história absurda ali da região do Porto


Maravilha que é um exemplo bom disso que tá sendo falado, que é um
pouco isso.
Paulo Saad: Então, queria só comentar o seguinte, é, a operação urbana,
quer dizer, eu queria comentar a operação urbana de Santa Tereza. O que
é? Santa Tereza é um bairro residencial, que obviamente, como todo
bairro residencial, de morro e tal, é um bairro de todas as classes, tem
desde de cortiços habitados ocupados por ocupações coletivas, é até
prédios antigos, de pequenos apartamentos que também são de pessoas,
de renda de classe média baixa, que pagou suas contas, mas que tem
dificuldade, tem as favelas, que são várias, e enfim, que tinha um serviço
de bonde, de transporte, enfim que tinha 15 bondes funcionando e que
era um equipamento que já pago, de manutenção simples, e de custo de
combustível e etc. Energia elétrica, também muito barato né, e
democrático, e um ente que funcionava sem grandes problemas, por que
tem uma via determinada, que tem poucos problemas para resolver, que
já está lá muito tempo, com uma rede área aí, e etc. e então isso
funcionava muito bem, claro com os ônibus que tinha uma parcela
pequena, e aí a operação urbano foi, primeiro, transformar o bairro, em
um bairro turístico, né, em que você, não desfaz a legislação urbanista,
você simplesmente não aplica ela, excepcionalidades todas, aí você paga
numa rua residencial. Um restaurante de 300 lugares, e você acaba com
a vida das pessoas ali, de todas as pessoas, pois temos ali uma
comunidade, representada ali por uma comunidade que fica próxima,
tem as casas, os casarões, e os apartamentos e todas divididas, pois essa
operação não é o estado que faz, é o povo, que pega o casarão divide e
vai morar lá, porque o casarão é mais viável, e tal, agora... mas
precisamente chega o pessoal turístico, o pessoal de meios de
hospedagem, de restaurante e bares, que aí as pessoas não tem mais vida,
que não condição de ..., e aí que acontece, esses caras não se contentam
em si, eles querem acabar com o bonde, porque? Porque eles querem um
instrumento, que seja de turismo propriamente dito, para poder fazer com
que esse possa ser divulgado, além do seu restaurante, do seu meio de

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

hospedagem, você tem um meio turístico de transportar as pessoas e com


isso você monta a legislação urbanística, sistema de transporte, e porque
a quem foram pedir ajuda?, foram pedir ajuda ao Barata, por quê? Porque
já que não podiam tirar o bonde, Porque seria um negócio absurdo,
imagina tirar o bonde e aí eles foram minguando os bondes, 5 bondes, 3
bondes, 2 bondes, 1 bonde e ficou 6 anos sem bonde e os caras que
tinham 4 linhas, uma firme, uma boa, outra mais ou menos, agora tem 3
linhas, eficientes, todas do Barata, e de uma concorrente, que era de outro
cara, que essa faliu, e tem outros 5 bondes turísticos a mais que é só para
turista, que custa 20 reais a passagem, que de uma hora pra outra você
pega, você monta, porque é uma coisa articulada, então é uma operação
urbana, quer dizer você permite, puxadinhos para aumentar a capacidade
dos restaurantes e dos meios de hospedagem, você permite, que com a
lei de reconversão, que o cara possa aumentar a taxa de ocupação, e isso
cria-se, isso é um tipo de operação urbana, que não é declarada como tal,
mas costura uma série de interesse, visando o objetivo de privatizar,
privatizar o bairro. Quer dizer, privatizar o interesse público, destina-se,
quer dizer o direito público passa a ter menor importância e os direitos
privados passam a ter maior importância e principalmente, eles querem
conquistar corações e mentes, eles dizem que isso que é bom, os direitos
públicos, estão sendo atendidos pelos direitos privados, eles dizem que
não se satisfazem em ganhar dinheiro, explorar, não, eles fazem questão
de tentar convencer o povo de que essa é a fórmula correta, do interesse
privado, como resolvendo o direito público.
Platéia (03): Uma pergunta, para todos, apesar de o Tarcísio ser
vereador, (Interrupção com pessoas falando ao mesmo tempo e inaudível
)... mas a minha questão é quero saber, o que vocês tão achando, do
urbano metropolitano que está sendo proposto pela prefeitura, e assim,
porque assim, queria também perguntar, e também queria comentar
quanto as agências, é porque o que vejo, eu estou acompanhando desde
de 2014, esse plano, e o que vejo, é que reproduz bem o discurso das
agências, todas essas contradições, inclusive essas questões que também
são metropolitanas, apesar do Tarcísio, tá focando muito no Rio de

139
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Janeiro, mas hoje tá se tendo um plano metropolitano, plano


metropolitano para saneamento, plano metropolitano para transporte, e
ela se coloca, toda essa questão dos povos em movimento, que vocês
estão comentando, gerando a questão da mobilidade, e tudo, e todas
viabilidades, quanto se fala de recurso, e quanto se fala de PPT, que
também está no estatuto da metrópole, que também só se fala de PPT,
nem outro recurso além do PPT, então assim todos esses, instrumentos
também colocados, assim só para vocês falarem um pouco, dessa questão
da agência e a questão metropolitana.
Luciana Ximenes: Então, se a senhora já teve a oportunidade de ver a
nova linha do urbano, ele cita muito pouco a metrópole, mas não se é
uma coisa muito brasileira, mas acho que isso é uma oportunidade
perdida, pois pouco se discutiu a metrópole, que a sede do rio, cidade do
rio de janeiro, tem vários ônus, que vão para a baixada, e para outros
municípios, que não conseguem dá conta sem discutir a metrópole, mas
da forma que está sendo feita, tem várias questões, o plano
metropolitano, é uma discussão boa, e pouco transparente, a gente tem
pouco noção do que tá ali dentro, ela se sobrepõe muitas vezes a esfera
municipal, que a gente tem ganho pontos importantes na esfera
municipal que são desconsiderados, vários planos setoriais são
desconsiderados, e tem a questão do peso, que o município do rio terá
numa esfera metropolitana, assim, porque a forma que ela está sendo
feita, a governança, dessa instância né, ela vai acabar sendo muito
centrada no rio de janeiro, ou não vai andar, a gente fica meio assim né,
ou não anda, ou se anda fica, “ eu que resolvo, dá as cartas né”. Eu tenho
várias questões, acho que é uma oportunidade importante de se discutir,
mas acho que a gente tá com dificuldade de tomar conta disso.
Paulo Saad: Eu não acredito em nenhuma iniciativa desse governo
estadual, primeiro como iniciativa correta né, quer dizer, eu não acredito,
porque os interesses que norteiam as vezes fica parecendo que você pode
ter uma ilha, técnica e tal, e aí você tem como se esforçar e você ver que
não consegue ver o sentido definido pelo projeto, que não tem
representação, tem um representante, na verdade o conselho

140
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

representativo, tem um representante do conselho construtivo, no


conselho deliberativo, pode ser qualquer representante do conselho
construtivo, esse único do conselho construtivo, é considerado a
participação popular no deliberativo, então, por isso aí mostra bem, que
essas pessoas, que tão fazendo isso, a 30 anos no rio de janeiro, certo?
São os mesmos de sempre, então esses mesmos de sempre estão
conectados com quem? Com o Picciani, com Barata, com todas as
baratas que você pode imaginar, e fazem parte disso, e aí você começar
a fuçar, você ver que não tem participação popular, você começa…
então, isso vai apenas viabilizar, os interesses que se tão em jogo, que se
interessem pelos investimentos a nível metropolitano, por exemplo,
porto seco? Isso é um interesse a nível metropolitano? Ah sim, porque
só nesses casos que se justificam? Então você vai ver o cara participar e
ser atendido, é assim, essa lógica, temos que esquecer, essa lógica não
dá certo, a não ser para soluções pontuais, que interessem econômicos
estejam colocados, eventualmente nesse período; não é essa forma de se
fazer a compatibilização do saneamento do transporte, de drenagem, de
macrodrenagem... não vai ser assim que se vai resolver, vai ter algumas
diretrizes e tal, mas vai está ali, lateralmente gente, não dá para acreditar
no governo pesão, como constituição, ético, profissional, para construir
uma proposta, que seja uma proposta de fato, que seja universal, que
envolva os interesses, os direitos públicos, que as correlações entre os
municípios sejam colocadas claramente né? Não existe isso gente... O
município do Rio de Janeiro, não irá abrir mão da sua capacidade de
influência, e aí, fica uma saia justa, e não se acredita a possibilidade de
você ter um governo federal bancando isso, entretanto, esse governo
federal, estivesse a corporação conectada com os movimentos sociais,
com as necessidades, que as organizações pudessem participar, e
construir uma proposta com algumas linhas principais de ação né? E
concebesse que esse dinheiro viesse para ela, você ia começar que essa
política poderia dá certo, mas isso tá longe ainda, muito longe.
Tarcísio Motta Carvalho: Eu praticamente não tenho nada para
acrescentar aqui, é isso. Isso me lembra bastante uma historinha que a

141
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

gente conta sobre as audiências pública da linha 4 do metrô que


ocorreram ali na Gávea. As audiências públicas ocorreram, teve uma
audiência pública muito sintomática em que o secretário de transportes
Júlio Lopes chegou atrasado, obviamente porque estava engarrafado. Vai
se discutir metrô, o secretário de transporte chegou atrasado porque
estava engarrafado, já devia ser suficiente para dizer o que devia ser feito
e que todas as associações de moradores, todas as entidades da sociedade
civil disseram que estava errado esse projeto do metrô, e que no final o
secretário falou que muito bem, ouvimos tudo, mas vamos fazer do jeito
que a gente quer, porque é do jeito que a gente quer. Então, o que
acontece? Existe uma lógica, na defesa nossa, que inclusive tem a ver
com o projeto da Nova República, da existência dos planos estratégicos,
dos planos setoriais, isso acontece em todas as áreas. Tem o plano
municipal de educação e lá vão ter metas estratégicas para daqui a 10
anos. Os governos ignoram isso e fazem o que querem porque na prática
é o momento da correlação de forças da inscrição do interesse de classe
com o aparelho do Estado é que vai definir o que vai acontecer. Então, é
o tipo de coisa que nós até temos que dar alguma atenção, fazer a crítica,
fazer a denúncia, estar participando na medida do possível, mas é sem
grandes esperanças que dali sairá uma solução porque é obvio que a
situação do Rio de Janeiro precisa ser pensada como metrópole e não
como cidades isoladas seja no saneamento, seja na saúde, seja no
transporte, seja até na educação, na integração entre as redes, uma série
de elementos que não dá mais para não pensar como metrópole. O
problema é qual é a orientação política desse processo, e não estamos
falando de esquerda ou direita, estamos falando, não é nem republicano,
a gente não tá no nível, a gente tá no nível de máfias que operam, máfias
que operam, e elas estão operando porque temos uma fachada de
legalidade para atividades que são essas, ou seja, se abre mão. Então,
tudo bem, temos que fazer a mobilidade metropolitana, vamos fazer a
autoridade metropolitana. Ela de fato não vai ter autoridade, ela vai ser
um órgão, para constar que se cumpriu algum tipo de pressão, algum tipo
de legislação que está colocada. A nossa tarefa é conseguir entender

142
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

aonde estão os nexos para que possamos de fato fazer a disputa aonde
ela importa, para alterar a correlação de forças nesse processo, e isso é a
dificuldade. O problema é que é isso, eu não estou muito otimista, mas a
gente ta aí para fazer esse debate e tentar convencer essas pessoas de que
ou a gente derrota as máfias, ou a gente...
Platéia (03): vão continuar existindo né? E agora tem o golpe da
conferência né, que agora ele criou por decreto a conferência
metropolitana, que vai ser sábado...
Tarcísio Motta Carvalho: olha aí, nem eu estava sabendo...
Plateia (03): e vai colocar isso em vigor, então assim, eu concordo com
tudo que vocês falaram, que ainda existe.
Tarcísio Motta Carvalho: Só que a gente não foi capaz de se mobilizar
o suficiente, para alterar a correlação de forças, nem mesmo na
conferência, porque na verdade se a gente altera, e a conferência faz uma
coisa toda, e aí ia ser fato escanteado e não ia ser colocado em prática,
mas pelo menos teríamos alguma coisa para o que lutar, é difícil...
Paulo Saad: Queria dizer o seguinte, que está organizando essa
conferência, organizou as duas últimas estaduais, sendo que nenhuma
das duas, sequer nomeou, sequer nomeou, o conselho das cidades
estadual, e muito menos deu posse, e muito menos qualquer união... são
as mesmas pessoas, que fizeram duas conferências estaduais da cidade
que nomearam que elegeram os conselhos da cidade, e esse conselho
sequer foi nomeado, não saiu nem no diário oficial, nem viu ou tomou
posse, ou seja, essas pessoas não tem menor credibilidade. A questão
técnica tem fragilidade grave, porque é... os dados, são dados que não
tem tempo para ser os dados que deveriam ser, então se trabalha com que
se tem, porque na verdade, existem prazos que eles estão tendo que
atender, e por mais esforço que os técnicos, mais conscientes tentam ter
para poder viabilizar um texto que seja interessante, que seja importante
para se levar para essa conferência, tem todo um vício, vícios... de duas
conferências, recentes, em que foi eleito, e depois teve outro … e quer
dizer, qual o intento? Não interessa isso, isso não vai valer, faz para não
valer, faz apenas para criar um verniz de participação popular, mas isso

143
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

não vai acontecer, esse governo, quem tá aí? Eu estou servidor público
estadual desde de 1976, e acompanho esse processo desde de então,
aquele tempo na ditadura Faria lima, então estes caras estão no poder
com as mesmas pessoas, as mesmas pessoas, as mesmas pessoas estão
no centro do poder técnico, de planejamento, do estado, e nunca fizeram
absolutamente nada, muito pelo contrário, os sistemas de planejamento
foram esvaziados, com desvios e desmontes do Estado foi patrocinado
por estas pessoas, presta atenção... então não existe, como você acreditar
que essas pessoas que desmontaram todo o respaldo técnico, quando
estávamos começando a construir a partir das equipes técnicas, a relação
com a sociedade, saindo da ditadura, os caras falaram “vamos acabar
com negócio”. Ou seja, então hoje as equipes técnicas, são mínimas, e
esses caras, vão querer fazer planejamento com quem? Se eles mesmos
patrocinaram o desmonte, ou seja, não tem a menor credibilidade, isso aí
é um faz de conta... mais um faz de conta das prefeituras.

144
-V-
ASSISTÊNCIA TÉCNICA E HABITAÇÃO DE INTERESSE
SOCIAL

Felipe Nin 24

Boa tarde a todos e todas, eu sou o Felipe, formado aqui na UFF


também, fui aluno da Regina, sou mestrando e faço parte da coordenação
da União por Moradia Popular do Rio de Janeiro – UMP-RJ, que é um
movimento por moradia que está presente nacionalmente em 23 estados
e no Rio de Janeiro desde 1994. Mas enfim, vou falar aqui hoje do lugar
de membro da Comissão de Assessoria Técnica de Habitação de
Interesse Social - CATHIS do Conselho de Arquitetura e Urbanismo -
CAU-RJ, faço parte de uma das três chapas que compõem a gestão atual
do Conselho e essa questão da assessoria técnica foi uma das nossas
bandeiras. Então a gente conseguiu, a partir do início de nossa gestão,
em janeiro deste ano, pleitear a criação dessa comissão temporária, onde
a gente tem o objetivo de reconhecer esse campo de atuação profissional
de arquitetos e urbanistas e consolidar essa prática como uma forma de
democratizar o acesso ao serviço do arquiteto e urbanista que, como o
direito e outras profissões, é um acesso totalmente elitizado na nossa
sociedade.
Em primeiro lugar eu queria fazer, uma manifestação de
solidariedade em relação às vítimas da tragédia que aconteceu em São
Paulo na ocupação do edifício que pertence a SPU, que acabou sofrendo
um incêndio e desmoronando. Esse é um tema que está saindo da pauta
do noticiário. Foi falado muita besteira a esse respeito e é importante,
que agora que a gente está nesse lugar, dessa comissão do Conselho de
Arquitetura e Urbanismo, reconhecer justamente a necessidade de se
implementar políticas que façam a requalificação desses imóveis, de

24
Membro da Comissão de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social do
Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

reconhecer a importância desses movimentos de moradia, o quanto que


esses movimentos têm qualificado o debate sobre a política habitacional.
Então a gente viu várias manifestações, várias pessoas falando no sentido
de criminalizar a atuação dos movimentos. Então a gente faz questão de
primeiro prestar solidariedade e depois de reconhecer a importância
desses movimentos para a questão das políticas habitacionais.
Em cima disso a gente está participando da organização de um
evento que está para acontecer no dia 28, na semana que vem, em
parceria com a Defensoria Pública que é justamente em relação a
projetos de lei que estão tramitando na Câmara dos Deputados que
criminalizam os movimentos de moradia e os movimentos de luta pela
reforma agrária. Esse projeto insere as ocupações urbanas e rurais na lei
do terrorismo, que foi aquela assinada no governo Dilma no contexto das
Olimpíadas.
E aí agora, mais recentemente, já em decorrência dessa situação
que aconteceu em São Paulo, o Crivella também baixou um decreto que
visa reassentar famílias que estejam em ocupações de edifícios, segundo
o próprio decreto, ditos abandonados; justamente na linha da repercussão
que esse caso de São Paulo trouxe nacionalmente. Então são duas
consequências que estão se agravando ainda mais em um contexto de
disputa eleitoral. A gente sabe que existe um discurso de ódio à
criminalização desses movimentos.
Dito isso, o que a gente tem discutido dentro da Comissão de
Assessoria Técnica do CAU, no âmbito do planejamento, para se pensar
a assessoria técnica?
Bom, em primeiro lugar, o objetivo do CAU não é produzir a
assessoria técnica, não é patrocinar a assessoria técnica e, sim,
reconhecer esse campo de atuação profissional e promove-lo para que
ele possa se consolidar como um campo de atividade de fato. Hoje a
gente vê que a maioria das pessoas que atuam nessa área, atua por
engajamento político-pessoal, faz um trabalho que é apaixonado, mas
que muitas vezes é precário, sem condições de exercer de uma maneira
mais qualificada a profissão e, que também acabam prestando um serviço

146
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

de qualidade, mas que muitas vezes não atende a complexidade dos casos
em que o profissional está inserido. Então um dos principais objetivos é
justamente esse: consolidar esse campo para que de fato a gente tenha
escritórios, política pública voltada para habitação de interesse social
com assistência técnica e consolidar isso com uma política de Estado.
A arquitetura no geral atua interdisciplinarmente, mas a
assessoria técnica mais ainda, pois é um campo que a gente sempre está
em contato com profissionais do direito, serviço social, engenharia,
enfim, as mais diversas profissões, e não seria possível pensar em uma
política sem estar em diálogo com essas outras profissões e,
principalmente, com a sociedade que é quem está demandando esse
serviço.
Uma das primeiras propostas que a gente está promovendo é a
criação de um fórum permanente de assessoria técnica dentro do âmbito
do conselho de arquitetura e urbanismo. Então, aproveito para fazer o
convite ao nosso primeiro encontro do Fórum, que será no dia 18 de
junho às 14h, que é voltado para profissionais de diversos campos que
são interessados, que se aproximam do campo de assessoria técnica,
também de arquitetura e urbanismo, mas como falei, quem trabalha com
regularização fundiária, quem trabalha com comunidades em situação
precária, de violência, também são campos próximos a essa área, e a
gente deseja que esteja junto com a gente pensando de que forma se pode
promover a assessoria técnica em habitação de interesse social.
Nesse dia do Fórum a gente estará apresentando o projeto de lei
que foi escrito pela vereadora Marielle Franco, que é um PL do âmbito
municipal da prefeitura do Rio de Janeiro, que é um detalhamento da lei
de assessoria técnica que existe em âmbito federal. Ela ainda não foi
aprovada, ela ainda está em tramitação na Câmara e tem limitações
porque como é um projeto que está sendo proposto pelo legislativo não
tem o poder de implementar uma política. Então ainda iremos carecer de
um engajamento do Executivo para vermos essa lei ser executada,
efetivada, mas ele é muito importante porque já avança no sentido da

147
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

gente pensar a assessoria técnica enquanto uma política pública


municipal.
Nesse Fórum também, a gente lançará um edital para projetos
propostos por comunidades, por escritórios, por organizações não
governamentais que queiram apresentar projetos pilotos de práticas de
assessoria técnica. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo tem
orçamento previsto de 2% da arrecadação do Conselho para promover
esse tipo de atuação profissional. A gente está iniciando a gestão nesse
momento, então estamos enfrentando os obstáculos burocráticos e
regimentais para a implementação da Comissão e etc. O edital sairá no
meio do ano e é para projetos que sejam executados até o final deste ano.
É uma ideia também para que até o final deste ano a gente consiga
amadurecer uma proposta com edital de 2019 e lançar logo no início do
ano, mas a princípio esse edital que a gente lançará no Fórum (18)
pretende patrocinar algo em torno de 5 propostas, entorno de 30 mil reais,
que a partir da experiência prática nos deem elementos para a gente
pensar uma implementação de uma política pública, no desenho de uma
política pública. Então a missão do CAU não é promover esse tipo de
patrocínio, promover a prática da assessoria técnica, mas a gente acredita
que nesse primeiro momento, patrocinar algumas iniciativas piloto pode
ser interessante para que já no próximo edital a gente possa avançar,
principalmente, propor o desenho de uma política que possa ser
implementada pelos municípios e etc.
Entrando mais objetivamente em alguns eixos de atuação do que
seria essa assessoria técnica para a habitação de interesse social. Existem
mais ou menos quatro eixos que a gente pode enxergar como os
principais dessa atuação.
Um seria a assessoria técnica para produção habitacional com
autogestão. Os movimentos de moradia conseguiram avançar bastante
nesse debate através do modelo do programa Minha Casa Minha Vida -
Entidades, que é um programa habitacional que foi desenhado para
promover a construção civil, foi desenhado pelas construtoras. Os
movimentos de moradia conseguiram, através da pressão, criar uma

148
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

modalidade desse programa que é a produção da habitação com


autogestão. Então você tem as associações de moradores, as associações
de comunidades ou os próprios movimentos que estão habilitados pelo
ministério das cidades e têm acesso ao mesmo financiamento, que é dado
para as construtoras, mas para produzir habitação sem fins lucrativos e
de maneira auto gestionada.
Acho que a gente está num momento de fazer uma revisão e uma
crítica desse período que foi o Minha Casa Minha Vida, que hoje está
em crise se vai ou não continuar. De todos os problemas, que foram
muitos, poucas coisas boas a gente pode dizer que significou um avanço
em termos de política de habitação que é o Minha Casa Minha Vida -
Entidades cujas experiências possibilitaram produzir moradias com uma
qualidade arquitetônica melhor, com áreas maiores e, principalmente,
colocando as pessoas que são os beneficiários dessa política no
protagonismo do processo. Então não são mais sujeitos passivos de
serem atendidos por um programa habitacional, mas eles estão ali
dizendo qual é a moradia que querem, quais são as áreas que privilegiam
em termos de gastos de recursos, etc.
O Rio de Janeiro é a capital que teve menos experiências do
Minha Casa Minha Vida - Entidades, mas mesmo assim a gente acha que
houve algum acúmulo o interessante para a gente pensar no modelo desse
programa voltado para prefeituras, para o governo do Estado, já que o
governo federal a gente não sabe até onde a gente vai poder contar para
dar continuidade a esse programa.
Outro eixo de atuação na área de assessoria técnica seria a de
melhorias habitacionais. Então, parcela significativa do déficit
habitacional é de moradias que são inadequadas, então não é
necessariamente uma carência de uma unidade, mas são moradias que
estão precárias, têm problemas de ventilação, de iluminação, de
acessibilidade, de saneamento e que com algum recurso de melhoria, de
regularização fundiária, aquela moradia poderia se tornar uma moradia
digna. É importante destacar que a gente vê o governo do Crivella ou o
próprio governo Temer falando em programas como Cimento Social,

149
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Cartão Reforma, sem que isso esteja, necessariamente, atrelado a um


acompanhamento técnico de um profissional da área. Isso é muito
complicado, porque você, na verdade, está de alguma maneira
incentivando o exercício ilegal da profissão e, muitas vezes,
incentivando a consolidação de áreas que estão em áreas de risco, que
são áreas que não estão em uma situação adequada.
Então a gente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo tem
acompanhado com certa preocupação isso, mas que, claro defendendo
programas que incentivem as melhorias habitacionais com
acompanhamento técnico e que esses recursos prevejam a contratação de
profissionais que possam trabalhar dignamente e que também estejam
associadas a uma política de reforma agrária, de regularização fundiária.
Porque é complexo de incentivar a melhoria de unidades habitacionais
em locais onde elas não poderiam estar, tais como áreas de risco e etc.
Outro campo da assessoria técnica seria estudos e contra laudos
para comunidades que estão ameaçadas de remoção ou ameaçadas por
algum projeto muitas vezes do próprio poder público. A Regina tem um
caso que acompanhou, que foi exemplar que foi o da Vila Autódromo.
A Defensoria Pública sempre tem essa demanda de um suporte técnico
que ajude a embasar processos de comunidades que estão sendo
removidas; de ocupações, uma série de situações que demanda a atuação
de um profissional da arquitetura e urbanismo para fazer uma contra
argumentação, de, muitas vezes, um laudo técnico que uma comunidade
tem que ser removida. Então esse seria outro campo da assessoria
técnica.
Dentro dessas três, como falei, a regularização fundiária é um
campo que está, de alguma maneira, entrelaçada com essas outras. Então
se a gente pensar em melhoria técnica, melhoria habitacional, também
tem de pensar no encaminhamento dessas unidades para regularização
fundiária. E a mesma coisa, muitas vezes, essas comunidades, não é o
caso necessariamente da Vila Autódromo, que tinha já, inclusive, uma
concessão do terreno, mas muitas comunidades que são ameaçadas de
remoção estão em áreas que poderiam já ser regularizadas.

150
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Bom, o outro eixo de propostas que a gente espera receber são as


ações e iniciativas de mobilização e assessoria técnica. Como é um
campo que ainda é desconhecido de grande parte dos profissionais a
gente carece de subsidiar informações não só aos profissionais, mas as
próprias comunidades que têm direito ao acesso desse serviço
profissional, como a produção de oficinas, de vídeos, de debates,
publicação de livros, poderiam ser objetos desse edital.
Enfim, já concluindo a minha fala, importante a gente fazer esse
debate aqui na universidade. Eu tive como experiência na graduação, a
maioria dos profissionais de arquitetura, é uma área que é marginalizada,
que não desperta grande interesse, mas a gente vê, na verdade, mesmo
com uma perspectiva de mercado, a assessoria técnica poderia estar
oferecendo um campo de atuação profissional. Há um levantamento que
em torno de 80% das pessoas que fazem uma construção ou uma
reforma, não procuram, não usam da assessoria de um profissional da
arquitetura. Então, na verdade, a gente poderia ter grande parte dos
profissionais da arquitetura trabalhando para uma margem de mais de
80% da população que não está utilizando esse serviço, e isso significa
ampliar o mercado de trabalho. E é isso gente, um prazer estar aqui e
depois a gente pode continuar no debate.

Regina Bienenstein 25

Apesar deste seminário ser uma iniciativa do NEPHU, não


participei diretamente da organização. Então, gostaria de agradecer aos
organizadores, o professor Enzo Bello o arquiteto urbanista e

25
Arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Syracuse, EUA. Doutora
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Professora
titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da
Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da
Universidade Federal Fluminense (NEPHU/UFF).

151
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

doutorando Daniel Sousa, por me convidarem para compor esta mesa.


Esse é o tema com que tenho trabalhado há trinta e cinco anos, a partir
de minha posição como professora da Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Na verdade, comecei a
trabalhar com assessoria técnica por demanda de uma comunidade que
estava sendo ameaçada de remoção total – isto ainda no início da década
de 1980 - e que buscou numa universidade pública, a UFF, apoio técnico
para não ser removida. E aí tudo começou.
A partir dessa solicitação de assessoria técnica, eu e a professora
Maria Elisa Meira, já falecida, aceitamos o desafio de, com os nossos
alunos, desenvolver os estudos e projetos técnicos necessários para a
defesa contra a remoção. Foi o início do que seria o Núcleo de Estudos
e Projetos Habitacionais e Urbanos – NEPHU –, a que temos nos
dedicado ao longo desses trinta e cinco anos.
Isto significa que, ao longo desse período, pouca coisa mudou em
termos do panorama do tratamento da questão da habitação de interesse
social. Na década de 1980, apesar já termos passado pela fase crítica das
remoções, ocorrida nas décadas de 1960 e 1970, ainda aconteciam
ameaças de remoção que, aliás, foram retomadas nos últimos anos na
cidade do Rio de Janeiro, especialmente pelo prefeito Eduardo Paes, e
depois passaram a ser adotadas em muitos municípios.
A partir dessa primeira experiência começamos a receber pedidos
de assessoria, tanto de comunidades que lutavam contra despejos,
ameaças de expulsão do local que habitavam, como daquelas que
estavam completamente esquecidas pelo poder público e lutavam por
condições adequadas de moradia.
A partir daí foi criado o NEPHU, que é este núcleo de apoio à
pesquisa, à extensão e ao ensino da UFF, ligado à Pró-Reitoria de
Extensão. É dessa perspectiva que eu falarei, de uma perspectiva de
assessoria técnica a partir de uma universidade pública. Ao longo desse
período temos perseguido dois objetivos principais. Um, o de fortalecer
movimentos insurgentes, aqueles que lutam pela transformação da
realidade de segregação, de disparidade, de falta de serviço, de perda de

152
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

direito da população trabalhadora das nossas cidades. E o outro, o de


formar profissionais críticos voltados para a solução desses problemas, e
não apenas repetir as fórmulas do mercado.
Então, vemos a assistência técnica como uma necessidade ou
como um elemento, uma ferramenta para contribuir para mudar a
realidade de nossa cidade, hoje fruto de uma urbanização seletiva e
segregadora, e de uma sociedade patrimonialista e plena de práticas
clientelistas. Esses são dois pontos fundamentais. Estar em uma
sociedade patrimonialista dificulta tratar do nó da questão da moradia,
que é o acesso à terra. Estar em uma sociedade que ainda usa de práticas
clientelistas significa lidar com um cotidiano em que, de um lado, temos
movimentos insurgentes e de outro, movimentos cooptados, dificultando
o avanço das lutas por direitos .
Por outro lado, as ações de assistência técnica atendem àqueles
territórios populares que, na verdade, são produzidos pelas pessoas no
seu cotidiano, frente à falta de uma renda que permita o acesso à moradia
no mercado imobiliário formal e, por outro lado, frente ao descaso do
poder público.
Avalio que um dos problemas da implementação de uma política
de assessoria técnica séria, que realmente atenda as demandas mais
profundas do direito à moradia da população trabalhadora é o completo
descaso do Estado. Quando menciono o Estado, na verdade, estou me
referindo às pessoas que o ocupam e às que têm, historicamente, ocupado
este Estado, e que o colocam a serviço da elite e seus interesses privados,
no lugar volta-lo para as necessidades da sociedade, especialmente a sua
parcela mais fragilizada, .
A assessoria acontece como resposta a demandas coletivas ou
individuais. No NEPHU atendemos somente a demandas coletivas, isto
é voltada para o conjunto dos moradores de assentamentos. Não
atendemos demanda individual por dois motivos: acreditamos que
demandas individualizadas terão pouco poder de repercutir aquelas
benfeitorias para a sociedade; elas terão pouco poder de transformar o
processo de produção dessa cidade. Demandas coletivas são mais

153
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

abrangentes e carregam dentro delas a luta por direitos coletivos, por


direito à moradia.
Trabalhamos nessa perspectiva e também trabalhamos com uma
assessoria, cuja ação deve ser transformadora. Reconhecemos que essa
não é a única forma de encarar a assessoria. O CAU - Conselho de
Arquitetura e Urbanismo tem uma preocupação também com a abertura
de mercado de trabalho para arquitetos e engenheiros. Diante de nossa
experiência na universidade, esta não é a nossa preocupação. A nossa
preocupação principal é a assessoria como um instrumento de
transformação da realidade.
O exercício da assessoria como experiência de extensão
universitária facilita também a formação de equipe interdisciplinares,
agregando várias áreas do conhecimento. Tratar da cidade e da moradia
exige advogados, assistentes sociais, arquitetos, engenheiros, entre
outros profissionais. Assim temos trabalhado com equipes formadas por
professores, pesquisadores técnicos e estudantes de graduação e de pós-
graduação.
Hoje passamos por um cenário de progressiva retirada de direitos
e de avanço da proposta de privatização de todos os serviços públicos,
inclusive, a universidade. Esta situação se reflete com, entre outros
aspectos, a redução do número de bolsas para os estudantes. Mas, por
outro lado, temos descoberto nos nossos alunos uma vontade muito
grande de tratar do tema. Assim, nossa equipe hoje inclui, além de
bolsistas de extensão, alunos e pesquisadores voluntários. Um exemplo
desta realidade é o coordenador desta mesa. 26

Outra dificuldade que também temos enfrentado é o desafio, até


mesmo antes da questão da assistência técnica,do direito à moradia como
política pública. O que temos no lugar de uma política habitacional são
ações pontuais e, frequentemente, inócuas. Por exemplo, a proposta do

26
Luiz Eduardo Cunha estudou na UFRJ, foi nosso bolsista, se formou e voltou ao
Nephu. Passou a fazer parte da equipe como voluntário. É também arquiteto do IBGE,
mas atua no NEPHU, fazendo pesquisa, extensão e ensino, participando da orientação
dos bolsistas de graduação, na área de habitação.

154
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, de pintar as fachadas da


Rocinha.Pode contribuir para deixar mais bonita a vista para quem passa
de carro, mas certamente não vai tratar da habitação,
Na verdade, a habitação não está na pauta de prioridades da
maioria dos municípios brasileiros. Uma pesquisa realizada entre os anos
de 2007 e 2011, em onze municípios da região leste fluminense, mostrou
que, por força da demanda do Ministério das Cidades, todos eles tinham
um órgão que tratava da habitação, haviam criado conselho de habitação
e fundo municipal de habitação, mas nenhum deles tinha um efetiva
política habitacional. Em nenhum deles, o fundo tinha recursos. Em
todos eles, as equipes eram extremamente frágeis, compostas por
profissionais com cargos comissionados, com alta rotatividade, que não
deixavam registrado a trajetória da política pública voltada para o
tratamento da questão.
Neste cenário, será muito difícil implementar a Lei de Assistência
Técnica, enquanto política pública.Enquanto a habitação e o direito à
terra não estiverem incluídos como políticas públicas, não acredito que
consigamos ultrapassar assessorias técnicas pontuais individuais, que
beneficiem casas isoladas, sem verdadeiramente significar alguma
alteração no cenário urbano atual.
Então, nosso trabalho no NEPHU-UFF está voltado para mudar
esta situação. Primeiro, despertar o interesse do profissional para se
capacitar melhor, para poder, inclusive, nesse esforço de avançar com
essa luta por direitos, se capacitar melhor para outro tipo de atuação.Em
primeiro lugar, aceitar e colocar o morador como protagonista. Muito se
fala em protagonismo do morador, mas essa não é tarefa fácil. Ela
significa abrir mão do poder, abrir mão do pequeno poder de dizer: “eu
detenho conhecimento técnico, logo eu sei mais do que você e então me
escute”. É abrir mão disso e começar a escutar com cuidado as soluções,
os apontamentos, as informações e o conhecimento que a população tem
que adquiriu no seu cotidiano de vida. Importante ter claro que não
conheceremos aquele lugar de moradia tão bem quanto conhecem as
pessoas que lá residem. Não importa as visitas de campo e os diálogos

155
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

que façamos, não teremos esse conhecimento. No caso da definição de


espaços de moradia, é necessário também ter ferramentas que viabilizem
a participação dos moradores nos processos de projeto arquitetônico ou
redesenho urbanístico.
A democratização desses processos tem ficado progressivamente
mais difícil, a partir do panorama em que o exercício do planejamento
está voltado para a cidade mercadoria e mais recentemente com os cortes
de direitos realizados. Num cenário em que o planejamento está voltado
para tornar a cidade “boa para os negócios”, tratar da questão da
habitação de interesse social pode significar atrapalhar esse projeto.
Temos exemplos muito vivos desse processo. Acompanhamos a política
urbana em Niterói, como membro do Conselho de Política Urbana
(Compur) e podemos observar que a disputa de interesse é muito forte.
Niterói é uma cidade com grandes disparidades sociais, econômicas e
ambientais, e seu planejamento tem sido feito por meio do lançamento
de grandes projetos urbanos como, por exemplo, a Operação Urbana
Consorciada (OUC) para a sua área central proposta inspirada na OUC
“Porto Maravilha”, que a partir do consenso a respeito das condições de
deterioração da região, coloca como “janela de oportunidades” a
intensificação da ocupação do solo e a privatização da gestão do espaço
público, o que certamente causa a valorização fundiária e a expulsão
branca das camadas populares aí residentes ou que aí têm seus pequenos
negócios. As propostas são respaldadas por discursos de que as práticas
do executivo municipal estão referenciadas no que há “de mais
atualizado”, em termos de preceitos de urbanismo. Conceitos como
“cidade compacta” são defendidos, respaldando propostas de
densificação do uso do solo em novas fronteiras para o capital
imobiliário, mas onde ainda não há interesse o espraiamento da ocupação
é permitido. Esta é uma luta desigual, onde movimento popular precisa
ser permanentemente fortalecido com argumentação técnica que possa
desvelar o processo político em curso.
Outro complicador na implantação de uma política de assessoria
é, justamente, o fato de que nem sempre a demanda do movimento

156
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

popular coincide com as diretrizes da política pública. A assessoria à


Vila Autódromo é um bom exemplo desta situação. Imaginemos que
temos uma política de assessoria implantada e paga pelo município.
Neste caso, podemos assumir que quem paga tem o poder de definir o
que será feito. Como então movimentos insurgentes, como o da Vila
Autódromo , caberão neste tipo de política de assessoria técnica? Isso é
27

algo para refletirmos. Como movimentos que se contrapõem à proposta


colocada pelo Poder Público poderão ter acesso à assessoria técnica
gratuita? Se Vila Autódromo dependesse de uma assessoria contratada
pela Prefeitura, com certeza, sequer as vinte e uma famílias que lá estão
teriam permanecido. Um dos motivos para não terem sido todos
removidos foi a parceria e a assessoria de duas universidades públicas, a
UFRJ, com o IPPUR, e a UFF, com o NEPHU. Por esta razão, e ainda
porque tinham o apoio da Defensoria Pública, conseguiram lá se manter.
Alguns profissionais avaliam que a permanência de vinte famílias
na área de Vila Autódromo não significaria uma vitória. Discordo, pois
considero que vinte famílias de trabalhadores de baixa renda
continuarem com suas moradias numa região ocupada pela elite,
mantendo uma área especial de interesse social maior até do que a
parcela necessária para abrigar suas moradias, é sim uma vitória. Aquele
território estava destinado ao capital imobiliário. Na verdade, esse
movimento de resistência e insurgência teve na assessoria técnica
independente, e que pôde permanecer por longo tempo, um reforço
importante.

O bairro popular Vila Autódromo começou a ser ameaçada de remoção total na década
27

de 1990, quando assumiu a prefeitura Cesar Maia. Na década de 2010, tal ameaça se
intensificou, com a justificativa da realização dos megaeventos, especialmente as
Olimpíadas. Foi nessa época que suas lideranças solicitaram ao
ETTERN/IPPUR/UFRJ que desenvolvesse uma proposta alternativa à apresentada do
então prefeito Eduardo Paes. Nessa empreitada, os pesquisadores do ETTERN
procuraram o NEPHU para, em parceria com os moradores, os dois grupos de
pesquisa desenvolvessem o que passou a ser chamado de Plano Popular da Vila
Autódromo.

157
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

No caso de escritórios contratados para desenvolver projetos,


como por exemplo, no caso do Programa Favela Bairro, existe um
contrato finito no tempo, o que significa que ou faz o serviço naquele
tempo ou não faz, porque depois de esgotar o prazo estabelecido em
contrato será preciso negociar aditivos. Trata-se de uma assessoria com
um limite temporal claro, que corresponde à remuneração e ao tempo
que foi destinado para seu desenvolvimento, e muitas vezes não é
suficiente para desenvolver um verdadeiro diálogo com os moradores.
A questão dos prazos limitados da assessoria apareceu também
em outros projetos do Nephu-UFF. Em início de 2007, iniciamos uma
parceria com uma comunidade em São Gonçalo viabilizada por convênio
com a Prefeitura daquele município. Esse é um caso emblemático, que
demonstra, com clareza, a forma como a questão do direito à moradia é
tratada. O Executivo Municipal deu suporte financeiro para a execução
dos estudos e projetos necessários para a urbanização e regularização
fundiária do assentamento popular Vila Esperança. Terminados os
estudos e projetos e entregues os resultados à Associação dos Moradores
e à Prefeitura, verificamos que a mesma não havia previsto recursos para
a execução das obras no orçamento do ano seguinte. Apoiamos a equipe
municipal e conseguimos o montante necessário. Apesar disso,a
Prefeitura de São Gonçalo não executou as obras e devolve, passados
dois anos, o dinheiro ao Ministério das Cidades.Até hoje a comunidade
continua lutando, e o NEPHU continua acompanhando e revendo
periodicamente aquele projeto. Esta é uma situação que pode parecer
extraordinária, mas os tempos de realização de obras de urbanização e,
especialmente de processos de regularização fundiária podem chegar a
décadas.
Temos refletido e debatido muito sobre qual seria a saída. Avalio
ser necessário começar a luta por assistência técnica, integrando
diferentes profissionais, já que o tema da cidade e da habitação não é um
território exclusivo dos arquitetos e engenheiros. Este debate, hoje, está
praticamente restrito ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).
Temos que unir diferentes conselhos profissionais e começar uma luta

158
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pela assistência técnica jurídica e social ampla. Uma ideia seria ter um
espaço com perfil da Defensoria Pública, isto é, uma instituição do
Estado, paga pelo Estado, mas com autonomia de ação. Com isso,
poderia estar ao lado das comunidades, mesmo aquelas que lutam contra
a remoção enquanto política pública. Esta poderia ser uma saída.
Necessário aprofundar o debate e abrir o leque de áreas de conhecimento
que precisam estar envolvidas na questão da assessoria, na questão do
direito à moradia.
Para concluir, considero muito importante, termos espaços como
este, de discussão e de reforço, pois essa é uma luta coletiva. Essa
experiência que desenvolvemos há trinta e cinco anos, da qual aqui
apresentei uma pequena amostra, aponta algumas das dificuldades,
problemas e entraves,baseado no que temos enfrentado, para o exercício
de uma assessoria técnica que signifique, realmente, uma ação
transformadora, através do reforço à luta cotidiana do trabalhador pelo
direito à cidade, à moradia e à terra. Obrigada!

Ana Cláudia Tavares 28

Acho que fui convidada aqui, pela experiência, participando


junto com a professora Mariana Trota que integra hoje a coordenação do
NAJUP Luísa Mahin, que é também uma experiência de extensão, um
núcleo de assessoria universitária, a partir da universidade, mas com
enfoque na assessoria jurídica popular. O núcleo funciona na Faculdade
de Direito da UFRJ e tem uma atuação desde 2012, começa a sua atuação
especial atendendo, também, uma demanda de remoção, então tem muita
similaridade. Tanto na concepção de assessoria que a Regina apontou

28
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Mestra em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense
(PPGSD-UFF). Professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos
Humanos (NEPP-DH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Professora
do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH)
da UFRJ.

159
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

algumas questões quanto nesse trajeto. De ser formado e ser demandado


a partir de comunidades que estão sofrendo na época de 2012 o processo
de remoção pelo Eduardo Paes, que várias comunidades sofreram. Então,
a comunidade Estradinha é uma comunidade que existe ainda em
Botafogo, então em especial na zona sul havia um projeto de acabar e
com o discurso do risco. Esse discurso que é quase, já que não há outra
possibilidade de reassentar, houve uma conquista dos movimentos de
luta por moradia que conseguiu inserir na Lei Orgânica uma vedação à
remoção, a não ser, a única possibilidade de remoção, então, seria o risco,
e aí houve uma série de laudos produzidos na questão do risco sobre
comunidades inteiras com o objetivo de remover no contexto anterior
aos megaeventos: a Copa e as Olimpíadas na cidade do Rio de Janeiro.
Então a gente tem essa...acho que essa perspectiva muito próxima nesse
sentido.
O NAJUPele é formado inicialmente por estudantes, então tem
um outro elemento que eu acho que é importante destacar, que é esse
protagonismo estudantil. Então, eu e a Mariana começamos a ingressar
a partir dos próprios estudantes que convidaram a gente, mas que já
tinham uma articulação prévia, então é um núcleo que tem esse perfil e
que tem agregado...agrega realmente um conjunto de estudantes que
monta as oficinas, que tem um trabalho muito importante e quase todo
voluntário, né? Realmente, essa uma realidade das universidades como
um todo. As bolsas são cada vez mais escassas, então, a gente conta com
esse compromisso de estudantes que têm um engajamento, que têm um
perfil voltado...que buscam um questionamento, uma formação mais
crítica, questionando uma formação tradicional e uma forma de perceber
os “serviços legais”, os “serviços jurídicos” que a gente chamaria de uma
perspectiva tradicional dos escritórios modelos das universidades
públicas...das faculdades de direito nas universidades públicas. Aquela
perspectiva de assistência, que a gente chamaria do “assistencialismo”.
De uma assistência a demandas individuais, priorizando o ingresso de
ações judiciais, então o núcleo...os núcleos né? O NAJUP Luísa Mahin
é um exemplo, mas existem outros núcleos de assessoria universitária,

160
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

de assessoria jurídica universitária, eles têm essa perspectiva, eles partem


de uma perspectiva contraposta à ideia de uma assistência, de uma
assistência que tem esse caráter individualizado, do saber, do competente
estar concentrado no advogado, no estudante de direito que detém aquele
conhecimento. Então, uma relação que se opõe a essa forma de perceber
assistência, e aí, enfim, a gente começa a trabalhar em uma demanda da
regularização de enfrentamento. Digamos assim, é um processo na
Estradinha, nessa tentativa de remoção e articulação com o coletivo
técnico de arquitetos e engenheiros que é essencial para produzir o contra
laudo. Então, essa perspectiva que vocês já trazem, né?
Então, é um trabalho que desde o início é interdisciplinar, um
outro elemento que a gente percebe como fundamental, na assessoria
jurídica popular, contraposta à perspectiva de assistência técnica, é esse
diálogo entre os saberes diversos da academia e entre o saber popular,
saber das comunidades e o nosso saber acadêmico. E a partir desse
conhecimento, a gente vai acumulando o nosso próprio conhecimento.
Então acho que a gente tem essa proximidade na compreensão da própria
assessoria jurídica, na própria assessoria popular, digamos assim, que eu
vou trazer um pouco para o campo do Direito que é um campo que é
marcado por uma relação hierarquizada, uma relação de autoridade.
Então a relação advogado-cliente é uma relação que em geral ela se dá
de o advogado ter todo o conhecimento e o cliente vai, faz o relato do
caso, o advogado “vou resolver o seu caso” e é isso. Gera, inclusive
muitas vezes uma expectativa dos assessorados de que o advogado está
ali para resolver, de que ele não faz parte da resolução do caso.
E aí, nas demandas coletivas, em especial quando tem movimento
social também organizado, a gente problematiza essa relação a partir de
um diálogo e da necessidade que a própria população, os próprios
assessorados trazem, de realizar as suas ações políticas. Então é uma
assessoria, que trabalha também com essa perspectiva da insurgência,
dos movimentos e do protagonismo dos assessorados.
Então, a gente acaba tendo muita inspiração, um dos pilares dessa
perspectiva que é uma das perspectivas que a gente trabalha, que é da

161
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

educação popular do Paulo Freire, de uma ideia de um diálogo entre os


saberes, uma comunicação e não de uma perspectiva de extensão, de
levar o conhecimento, como se as pessoas não tivessem já um
conhecimento, um saber para trocar nessa relação. Então, enfim, são
algumas das características que eu queria levantar para a gente pensar,
realmente, a assistência técnica, não em uma perspectiva assistencialista,
não em uma perspectiva de levar um serviço a uma comunidade que
necessita, carente desse serviço, mas uma perspectiva de diálogo e de
transformação. De compromisso, também, com a transformação dessa
realidade.
O autor Celso Campilongo que trabalha com um texto de
assistência jurídica e advocacia popular, na verdade, é uma perspectiva
que é compartilhada. Acho que eu falei um pouco disso, antes da
universidade também faço parte de uma rede de advogados...Rede
Nacional de Advogados e Advogadas Populares e do Centro de
Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, que trabalha também nessa
perspectiva com a advocacia popular. E um dos desafios que eu acho que
a universidade traz para a gente, um espaço para, de certa forma, um
espaço para essa atuação, é justamente essa continuidade, porque, muitas
vezes esses projetos, embora na advocacia popular a gente trabalha
também com essa perspectiva de continuidade, mas, de fato, a
universidade oferece uma estrutura que, muitas vezes a rede ou essa
advocacia não tem.
E aí a gente trabalha, no caso da Estradinha que foi o primeiro
caso que a gente trabalhou nessa demanda contra a remoção, pela
regularização fundiária. Houve uma parceria com a Defensora Pública
também. Então a gente trabalha muito em articulação e parceria com a
Defensoria Pública, em especial o NUTH, Núcleo de Terras e Habitação.
Então, enfim, têm várias ações, tem ação em Rio das Pedras também,
têm várias ações a partir da própria demanda da Defensoria, e desse
diálogo com as demandas da Defensoria, e das populações que chegam
muitas vezes procurando essa assessoria da Defensoria Pública.

162
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Então, são algumas diferenças pela perspectiva mais da


assistência. Nessa atuação, então, a gente observa, essa demora que foi
o depoimento que foi trazido: a dificuldade de regularização, a demora
nos processos de regularização. Atualmente, acho que um outro desafio
só que eu queria pontuar aqui, para nós que o caso da Estradinha revelou,
é uma atuação em comunidades, em favelas em situação de violência.
Então, há vários momentos em que essa ação, essa assessoria é
interrompida pela própria comunidade, digamos assim, entender que no
momento não é bom para que a gente entre, enfim, que eles estão vivendo
situações, enfim, após a instalação das UPP’s lá em especial. Então, às
vezes a dificuldade do acompanhamento do trabalho não é nem da
universidade, mas é nessa relação e com a violência, também, urbana, os
processos internos nas próprias comunidades.
Atualmente o NAJUP vem acompanhando a ocupação Solano
Trindade, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia em Caxias. A
partir da demanda do movimento a gente começou a fazer também, em
parceria com a Mariana Criola, o acompanhamento do processo judicial
e um dos grandes desafios também esse tempo, né? Acho que essa
morosidade. São situações né… a situação Vito Gianotti, que a gente
acompanha mais pela Mariana Criola. Existe uma morosidade nos
procedimentos de regularização. Muitas vezes são imóveis públicos que
deveriam ser prioridade nos processos de habitação de interesse social,
mas de fato há vários bloqueios e varias dificuldades e, enquanto isso, há
ações no Judiciário visando a reintegração em paralelo, o que já
demonstra uma certa dificuldade, já que enquanto a regularização está
acontecendo a ação está ali. Então, no caso da Solano Trindade em
Duque de Caxias, desde 2014 que tem as negociações e até agora não
tem uma resposta positiva e também em todos esses casos há uma
parceria com grupos de arquitetos das universidades que fazem a
assessoria a partir da arquitetura também.
No caso, não sei se me resta muito tempo, mas tem algumas
questões que a gente costuma trabalhar também. Então a gente costuma
trabalhar nessa perspectiva do diálogo, buscando nessa relação com os

163
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

movimentos e com os assessorados perceber e dialogar as demandas que


são apresentadas e muitas vezes demandas de formação, de
conhecimento. Então a gente busca trabalhar com diversas metodologias.
Já trabalhamos com o teatro do oprimido como uma das inspirações para
trabalhar os direitos por uma linguagem que não seja aquela linguagem
jurídica que assusta, que afasta, que parece feita propositalmente para
excluir os não iniciados. Então a gente busca trabalhar com essa
perspectiva e já fizemos assim oficinas sobre direito à cidade, direito à
moradia, buscando dialogar a partir dos conhecimentos que os próprios
assessorados têm sobre os seus direitos e sobre como esses direitos estão
sendo assegurados nas legislações, na Constituição, na legislação
internacional. Enfim, existe desde o reconhecimento do direito à moradia
na Constituição no artigo 6º e antes mesmo do artigo 6º já havia um
reconhecimento implícito, antes da Emenda Constitucional nº 26 que
incluiu o direito à moradia expressamente. Então há todo um arcabouço
jurídico legal que subsidia e pode ser utilizado para legitimar a própria
luta, a própria reivindicação do direito à moradia, da luta pela habitação
e pela moradia adequada. Então a gente busca dialogar esses
conhecimentos procurando pensar essas oficinas a partir das demandas
que vão sendo apresentadas em cada situação.
Acho que é importante trabalharmos a partir desses marcos do
direito à moradia, tanto da constituição, quanto dos documentos
internacionais que asseguram o direito à moradia adequada, o direito à
cidade que esta previsto no Estatuto das Cidades. Então são todos esses
documentos legais que apontam para a legitimidade mesmo dessas lutas.
A gente não fica restrito a estes documentos né? A gente acredita que
essa luta ela transcende uma luta por inserir nos documentos legais uma
determinada afirmação de direitos. É importante, e a própria teoria crítica
dos direitos humanos e o direito à cidade encara que estes direitos são
direitos humanos e fundamentais, mas a sua simples enunciação não vai
fazer, na pratica, que estes direitos saiam do papel e milagrosamente se
transformem em uma realidade.

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Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

O que acontece é que para esses direitos se concretizarem, para a


habitação virar uma política, é preciso muita luta e tem-se que trabalhar
na perspectiva de reconhecer e fortalecer de fato esses movimentos e a
luta pela moradia e pela habitação adequada, enfim, por uma assistência
técnica que respeite estes conhecimentos e dialogue de fato com as
perspectivas, que estimule a participação social, que é outro elemento
que está reconhecido no Estatuto das Cidades que explicita o direito de
participar das decisões que vão afetar seu próprio destino e é um direito
normalmente desrespeitado. Então é uma série de medidas.
Não vou entrar em detalhes, vamos deixar para o debate se existir
alguma dúvida, mas acho que vale a pena só pontuar uma preocupação
para além das preocupações do GT do Crivella que acho que é uma
preocupação que o Felipe ressaltou e que já aponta qual é a política que
vem sendo pensada para esses setores. Existe um novo marco legal
também da regularização fundiária urbana e rural, que é a Lei Federal nº
13.465 de 2017 que foi fruto da conversão da Medida Provisória nº 459
que aponta desafios nos âmbitos rural e urbano da regularização
fundiária, para a gente pensar no que tem por trás. Quer dizer, uma
medida, uma lei que foi aprovada neste contexto de golpe, num contexto
de retrocesso de direitos sociais, que representa, então, um
aprofundamento da mercantilização e tentativa de privatização, de
legalização de processos de grilagem de terras, e acredito que ela traz
desafios para a gente se apropriar deste instrumento.
Há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela
Procuradoria Geral da República questionando justamente a
inconstitucionalidade dessa Lei, mas é uma lei que altera várias
legislações, inclusive parte do Estatuto da Cidade, sem nenhuma
discussão, a partir de uma Medida Provisória sem nenhum debate, então
é mais um elemento que eu colocaria como um desafio para a gente
pensar as possibilidades e os desafios dessa assessoria técnica jurídica
nos processos de habitação.

165
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Debates
Platéia (01): Não é bem uma pergunta, é mais uma reflexão direcionada
a todo mundo. Na perspectiva dos movimentos sociais, seria uma
proposta, uma forma de dar mais força, ver o que que se pode fazer para
dar mais fôlego para a luta pela questão fundiária, o que se pode fazer
com os movimentos que estão cooptados, tentar puxar essa luta de uma
forma mais forte como já aconteceu no passado. Para quem não me
conhece, eu trabalho com a Regina ha muitos anos e pra vocês terem uma
ideia a gente pegou uma época logo após a abertura política e fazíamos
assembleias com as pessoas da luta apela regularização fundiária e hoje
isso não existe. Hoje se você conseguir juntar dez pessoas de uma
comunidade já é muita coisa. Lógico que quando você tem momentos de
conflito, como foi com Vila Autódromo, é evidente que isso muda a
situação, até porque naquele momento a luta brota naturalmente diante
do conflito armado mesmo pelo poder. Enfim, é mais tentando pensar
sobre isso mesmo. Em que a gente poderia pensar para retomar isso.
Porque não adianta querer fazer sem eles, mas como é que a gente
poderia tentar aflorar a luta que está aí e precisa ser colocada através de
organização mesmo. Eu estou pensando em organização de base, até por
conta de tudo que a gente está passando atualmente.
Ana Clara Tavares: É difícil, né? Acho que a agente tem um desafio
que não é da assistência, é um desafio que transcende a assistência
técnica jurídica. São desafios dos movimentos, né? A gente como
participantes desses movimentos e também como militantes políticos
temos esse desafio da mobilização, da organização do enfrentamento a
esses projetos. A partir da assessoria a gente tenta contribuir nesses
processos de mobilização, mas nós temos algumas limitações. Acredito
que os movimentos sociais têm maiores condições e até legitimidade
para fazer esse trabalho de base mesmo, de juntar, de organizar. No geral
a agente chega quando já atem algum nível de organização inclusive para
procurar a assessoria, né? Então eu acho que é uma questão pra gente.
Não tem uma resposta. Sei que o processo que a gente vive de repressão,
de níveis de violência, acho que a agente não pode deixar de falar dessa

166
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

intervenção federal militar, né, que é um desafio também para a própria


a mobilização popular muitas vezes, né? Tem esses processos de
cooptação e tem esses processos de uma violência, de uma repressão
muito grande. A gente chegou a níveis extremos do assassinato de uma
vereadora eleita e que já está há dois meses sem resposta. Então são
processos que ajudam a explicar esse fluxo de organização. Mas tem
resistência. A gente aposta na resistência e no fortalecimento das
resistências onde quer que elas existam. E é isso aí que eu tentaria
apontar para a gente pensar.
Regina Bienenstein: Eu acho que primeiro nós não somos movimentos,
e assim temos pouco controle com o que acontece com o movimento. Eu
acho que o que a gente pode colocar é que estamos abertos para acolher
movimentos, independente e que haja uma parte que está cooptada, mas
se você tem uma parte que está querendo seguir com a luta, estamos
prontos. Acho que Eloísa está falando isso porque nós tivemos uma
época áurea em Niterói de luta pela terra. Tinha um conflito fundiário
muito grande envolvendo cinco mil famílias que conseguiram uma luta
forte ainda no final da década de 70/80 e conseguiram conquistar a
desapropriação e esse movimento hoje ele está aplacado. Por outro lado,
está surgindo, porque o movimento acho que ele não acaba, né? Ele é
cíclico mesmo, faz parte da natureza do movimento social. Por outro
lado, você que hoje esse movimento que lutava institucionalizado em
termos de federação ele está todo cooptado, mas você vê surgirem outras
forças das áreas populares que começaram a procurar de novo a
Universidade. Porque a gente só trabalha com um mínimo de
organização, porque se não a gente perde o trabalho, e também se formos
procurados. Então hoje a agente está acolhendo o que passou a se chamar
de Fórum de Luta pela Moradia de Niterói e São Gonçalo. A gente está
com um projeto grande de extensão e pesquisa que envolve direito,
arquitetura e urbanismo, comunicação, serviço social, e estamos
incentivando uma outra forma de fazer assessoria. A gente não está
fazendo projetos, mas estamos discutido o direito à cidade, como ele
pode acontecer, quais são os caminhos, qual é a legislação, e começamos

167
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

a ser demandados pelo conhecimento que agente tem. Então nós estamos
montando o curso de extensão que vaia misturar estudantes, a
comunidade, morador, lideranças, todo mundo, e vamos discutir esses
temas que podem subsidiar a luta. Eu acho que só de você oferecer um
espaço que é seguro e onde os problemas podem ser discutidos com
tranquilidade já é um passo. Agora, este problema da violência, ele afeta.
A gente teve, por exemplo, uma comunidade daqui de Niterói que estava
participando ativamente e que de repente sumiu. Sumiu por que? A gente
não sabia, mas hoje a gente sabe que o tráfico chegou lá e falou “nada
mais de participar daquela coisa”. Então isso também ocorre, e eu acho
que, em termos de Universidade, o papel é esse, de mostrar que nós
estamos lá para discutir, para apoiar os movimentos pelos direitos e
somos parceiros.
E aí eu acho que a dinâmica social-política vai dano conta dessa
transformação. Quando eles tão perto a gente tem mais poder de reforçar
a luta deles também. Se você pensar que eles começaram a ser
ameaçados de expulsão com ações de despejo no final da década de 70.
Se organizaram, lutaram e conseguiram a desapropriação da terra em
1985/86, por aí, 87, e de lá pra cá continuam lutando. Gente, não dá! E
por outro nado não surgiu nenhuma ameaça nova, quer dizer, agora com
o plano diretor vai surgir e a gente já tá avisando. Mas enquanto não
surge, porque cansa, as pessoas cansam, as pessoas envelhecem, a vida
das pessoas muda, nem sempre elas conseguem formas novas lideranças.
E, fora isso, a inoperância completa. O Poder Público ultimamente, o que
você vê de atuação ou é mandando pintar a fachada ou é ação de despejo,
de remoção. Ou então deixa construir “Minha Casa Minha Vida” e aí
você diz assim “vamos planejar o uso e a ocupação do solo para você
pelo menos reservar terrenos próximos da infraestrutura que sejam
favoráveis à ocupação”, aí eles “ ah não, quando chegar a hora de
construir a gente vai no mercado e compra” e aí vaia comprar o que? Os
piores locais. E, na verdade, vai fazer um favor ao proprietário da terra
que não pode ser utilizada porque não da para ocupar. Vai fazer o favor
de comprar e ocupar. A gente tem o caso do conjunto do “Minha Casa

168
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Minha Vida” aqui em Niterói que é o Zilda Arns que é o exemplo


emblemático disso. Um terreno por onde corre toda a água da drenagem
que está descalçando a fundação. Então dois prédios caíram enquanto
um estava sendo construído e hoje está tudo rachada. É essa a política
que vem sendo executada. É lógico que a gente sabe que essa luta é
árdua. Sempre que a gente faz a primeira assembleia a gente diz assim:
“preparem-se, a luta é árdua, é longa, tem que persistir”, mas nem sempre
dá e é isso.
Felipe Nin: Considero essa questão como bastante complicada,
especialmente aqui no contexto do Rio de Janeiro, né? Em uma das
reuniões que a gente teve no CAU com o pessoal lá de São Paulo falando
das oficinas que eles fizeram em todo o interior e tal – e em São Paulo a
gente tem um cenário muito diferente de atuação dos escritórios de
assessoria técnica – e aí quando a gente colocou isso, em como a gente
pode pensar em um programa, uma política com o cenário que a gente
tem no Rio de Janeiro, de milícias, da disputa por terra que é muito
violenta, de mobilização dos movimentos populares que, para atuar nas
áreas populares, necessariamente tem que fazer esse enfrentamento ou
com tráfico ou com milícia. O cenário também dos megaeventos, da
Copa do Mundo, que foi quando menos Minha Casa Minha Vida de
entidades e quando mais se produziu Minha Casa Minha Vida de
construtora. Então essa disputa com o Poder Público que oferece a chave
na mão é muito desleal com quem está tocando a luta, que como a Regina
estava falando, é árdua, é demorada. Então eu acho que esse é o grande
desafio dos movimentos populares no Rio de Janeiro. Conseguir fazer a
mobilização. Por outro lado, eu acho que existe um cenário bem
contraditório, porque a gente tem hoje um candidato a presidente que é
uma liderança de um movimento de moradia e que a grande potência da
candidatura dele está justamente no fato dele representar o Movimento
Sem Teto. Então a gente tem essa pauta colocada diariamente no cenário
nacional e aí eu acho que existe uma tarefa nossa da academia, dos
conselheiros profissionais, da gente botar a cabeça para funcionar e
pensar um pouco nesse momento que a gente está passando agora que eu

169
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

acho que é um momento de golpe, de uma ruptura institucional, de uma


crise institucional, que ataca não só os governos do PT, mas o que foi
todo esse período democrático. Acho que hoje você fazer qualquer coisa
pautada na Constituição não representa muita coisa, a Constituição é
violentada diariamente e eu acho que, dentro desse campo da habitação
de interesse social, a gente tem uma atarefa de tentar elaborar o que disso
tudo a gente pode tirar como o que a agente quer. Tirar aquilo que a gente
conseguiu acumular e produziu parar chegarmos a alguma proposta que
avance nessa direção e eu acho que nesse momento eu não acredito maias
tanto nas perspectivas políticas do Governo Federal, mas eu acho que
talvez no âmbito estadual, também pela tragédia que foi nos últimos
anos, acho que a perspectiva de ter alguma melhora é maior. Não
sabemos, mas a esperança é a última que morre, né? Mas eu acho que a
gente tem essa missão, essa tarefa de conseguir. Por exemplo, o Minha
Casa Minha Vida Entidades, que foi 1% do Minha Casa Minha Vida, ele
tem mil problemas, mas dentro do que ele proporcionou de coisas
interessantes, no que a gente pode se agarrar e falar “disso aqui a gente
não abre mão”. Acho que uma coisa que foi fundamental no o Minha
Casa Minha Vida Entidades foi legitimar a produção auto gestionária.
Você ter as pessoas que são os beneficiários finais daquela política
opinando e tendo poder de decisão sobre como a coisa vai ser feita. Aí
eu acho que a gente pensar, como você falou, em participação, acho que
essa foi uma grande bandeira e a gente viu como, na maioria dos casos,
a participação é completamente esvaziada, nos planos diretores, por
exemplo, ela é muito mais para criar consensos do que para ser
efetivamente um espaço de participação e decisão. Aí quando a gente vê
os movimentos se organizando e querendo participar para valer, eles são
criminalizados, eles são alijados do processo, então eu acho que os
movimentos pela moradia, eles estão dando uma demonstração do que é
a participação de fato e eu acho que ela trouxe um elemento novo para o
debate que hoje a agente não pode maias ignorar. Por maias que no Rio
de Janeiro a gente tenha tido outras experiências, eu acho que de alguma
maneira a gente acumulou e podemos falar que a autogestão é um

170
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

caminho importante para pensar em política de habitação daqui para a


frente. Mas é isso, essa questão desse cenário da violência é muito
complicada. Esse fim de semana eu estava em uma reunião da União, e
você falou dessa coisa do Crivella de pintar as fachadas ali na Rocinha,
aí me contaram uma história que eu não tinha percebido. Ali no São
Carlos, perto da Prefeitura do Rio, tem a Faculdade São Carlos e uma
ruela que é toda pintada de uma cor só, todas as casas são verde claro.
Aí me falaram que aquilo foi o seguinte: a casa de uma das figuras da
liderança do tráfico era verde clara e aquilo era uma forma de se
reconhecer aí ele mandou pintar todas da mesma cor. E aí essa coisa de,
de repente, vir projetos para pintar a fachada de casas tem a ver com isso,
porque se você na favela, onde é difícil você criar maneiras de se
reconhecer naquele local pra quem é de fora, então pinta as casas
coloridas. Aí não deu outra. Na rocinha esses dias a polícia invadiu a
sede de uma ONG porque tinha a informação de que o bandido tinha ase
escondido numa casa azul e aí se você tem as casas coloridas você passa
ater como reconhecer. Então a gente vê, na verdade, a melhoria
habitacional sendo usada como uma estratégia de vigilância e aí a gente
vê qual é o tipo de política que está sendo feita por esses governantes. O
que a gente precisa é encarar esse debate com seriedade. Esse grupo de
trabalho do Crivella é um absurdo. No momento que a gente deveria ter
o Poder Público se comprometendo de fato a afazer uma política com
urgência para levantar os prédios abandonados, tentar acelerar as
negociações, levantar demandas de grupos organizados para requalificar
os imóveis, fazer um esforço nesse sentido. O esforço, ele é justamente
o que sempre foi feito, que é de fazer mais remoções, de criminalizar e
de ceder esses imóveis a gente sabe pra quem.

171

- VI -
TESES E DISSERTAÇÕES

A CONTRADIÇÃO EM PROCESSO: O DISCURSO E PRÁTICA


RELATIVA À HABITAÇÃO POPULAR NA GESTÃO
EDUARDO PAES NO RIO DE JANEIRO

Paulo Bastos 29

Bom dia à todos, eu gostaria de agradecer a organização do


evento pelo convite, professor Enzo, professora Regina do NEPHU. Eu
fico super feliz de estar falando aqui da minha tese com vocês, do que a
gente alcançou, e na presença da minha orientadora professora Regina,
então, se eu falar alguma coisa errada ela vai puxar a minha orelha .
É como a nossa colega falou, o meu trabalho foi sobre as
contradições na política habitacional de Eduardo Paes. Eu sou geógrafo,
e, durante um ano, um ano e meio, eu trabalhei no Programa Morar
Carioca, na comunidade de Para Pedro, Vila São Jorge, no bairro de
Colégio, no Rio de Janeiro. Eu trabalhava com a comunidade, com a
população.
O programa Morar Carioca, eu vou falar um pouco dele mais à
frente, mas naquele momento já era uma grande expectativa entre as
populações, e eu vivenciei isso muito de perto. Momentos como por
exemplo, quando você reúne 4 mil pessoas numa quadra de futebol às
seis horas da tarde, pra falar sobre o programa e falar sobre o projeto -
um projeto que tinha, evidentemente, uma grande inspiração do “Favela-
bairro” -, se mostrava muito próximo do “Favela-bairro”, trazendo
algumas, algumas questões que tinham sido acumuladas pelos

29
Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado
em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do
Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU-UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

urbanistas, no geral, na cidade do Rio de Janeiro, e naquele momento


sim, gerava uma grande expectativa entre os moradores.
E eu trabalhei junto com o s moradores no levantamento das
expectativas, sistematizando isso pro escritório de arquitetura que eu
trabalhava na época, prestava serviço pra um escritório. Todo esse
contexto me fez mergulhar, fez eu querer pesquisar mais sobre o Morar
Carioca, porque a gente vai ver que em um momento o Morar Carioca
desaparece da agenda política, de uma hora para outra. Isso tudo me
estimulou a tentar a seleção do Programa de Arquitetura e Urbanismo.
Fui aceito, comecei a trabalhar com a professora Regina, não só como
orientadora, mas também no NEPHU. Então, esse é o contexto que me
levou ao Programa de Arquitetura e Urbanismo.
Bom, o trabalho. É, a gente partiu da premissa que a gestão
Eduardo Paes , ela tava inserida no contexto maior de privatização das
cidades, modelo neoliberal, com dois campos de força. Um do professor
Vainer, da cidade, cidade...mercadoria, e outro de Boltanski e Chiapello,
a cidade de projetos. Ambas decorrem do mesmo fato.
A ideia de que a partir do anos 80 as cidades experimentam um
acirramento do modelo neoliberal, que vai impactar diretamente nos seus
espaços, privatizando, por exemplo, os espaços públicos, trabalhando
numa perspectiva de projeto, trabalhando numa perspectiva exclusivista
de espaços, foi nessas duas ideias centrais aí que eu dei campo teórico
mais básico pro meu trabalho, pegando outros autores como Fernanda
Sanches, como Harvey, todos que trabalham nessa questão do
neoliberalismo nos territórios das cidades, e que a nosso ver, tornam
ainda mais inadequadas as condições pra grande maioria da população -
aquela parte da população que não tem acesso aos melhores
equipamentos, né, não tem acesso às grandes revitalizações, né, às
grandes mudanças no cenário.
É, o Eduardo Paes, ele goza de um, ele não é o primeiro prefeito
nessa linha, nós lembramos de César Maia, de cara, né, que se apresenta
como gestor, se apresenta como um gerente apolítico, um administrador.
Os jovens há mais tempo, que estão nessa pegada mais de urbanismo,

174
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

lembram bem como foi “vendido” o “Favela-bairro”, mas o Eduardo


Paes tem uma coisa que o diferencia demais de César Maia, as
circunstâncias. Primeiro uma circunstância política.
O alinhamento político entre o governo municipal, estadual e
federal, né? Tanto Lula, quanto Cabral, quanto Paes, formam uma frente
política na cidade do Rio de Janeiro - também, na cidade do Rio de
Janeiro - e a coisa funciona. É bom eu lembrar que César Maia sofreu
oposições políticas na época. O projeto, por exemplo, do Museu do
Amanhã, já vinha sido tentado com César Maia, na revitalização da Praça
Mauá. E Maia não consegue realizar, na época era o projeto na Praça
Mauá. Não consegue por questões políticas também, pressão política,
que Eduardo Paes não vai sofrer, muito pelo contrário.
A segunda circunstância é óbvia. É a circunstância econômica -
os megaeventos. Eduardo Paes recebeu uma cidade com muito dinheiro.
Um grande investimento federal,um grande investimento estadual e um
grande investimento privado. Menos privado do que federal, na verdade.
Uma conta que até hoje não bateu: nós não temos até hoje, dia 21 de
maio de 2018, e a gente ainda não tem a conta fechada das Olimpíadas.
Alguns autores, jornalistas, falam na casa de mais de 30 bilhões de reais
pra realizar os jogos olímpicos.
E, é claro, Eduardo Paes vai pegar isso e vai transformar numa
legitimação muito grande da grande mídia, setores da grande mídia,
vamos fazer justiça, não toda a grande mídia, mas, setores da grande
mídia que vão, efetivamente, apoiar o projeto de “Cidade Olímpica” e o
tal do “legado olímpico”, que pra nós, estudantes da cidade, se constitui
muito mais num “legado olímpico” pra grande parte da população.
Em 2010 Eduardo Paes lança o seu “preciso”, o seu maior
projeto/programa, para as favelas do Rio de Janeiro, que seria o “Morar
Carioca”. O programa “Morar Carioca” estaria dentro a agenda, segundo
a Prefeitura, segundo documentos oficiais da Prefeitura, estaria dentro
da agenda de “legado comum” para a cidade do Rio de Janeiro, e
prometia, até o ano de 2020, a organização completa de todas as favelas
da cidade do Rio de Janeiro, ao custo de 8 bilhões de reais.

175
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

O programa começa. O programa, efetivamente, ele traz toda a


… como eu falei, né, o acúmulo do “Favela Bairro” e uma parceria com
o IEB, ao lançar o “Morar Carioca”, que são selecionados doze
escritórios de arquitetura, não só no Rio de Janeiro, mas também, um de
São Paulo, um de Salvador, se eu não me engano. Esses escritórios são
localizados, em grande parte, na zona norte da cidade, já deixando de
fora a área que mais merece afeição do poder público, que é a zona oeste
da cidade do Rio de Janeiro, que, inclusive, documentos oficiais apontam
que a zona oeste tem um olhar maior, mas a grande concentração dos
escritórios está na zona norte, na zona sul também, e centro da cidade,
mas, mais concentrado na zona norte, lugar onde eu me aproximei, no
bairro de Colégio, perto de Irajá.
O programa também incorpora questões que estão dentro do
estatuto da cidade, como a participação da população. É contratada uma
organização não-governamental, o IBASE, quem acompanha esse
trabalho é o IBASE, pra fazer os grupos focais dentro das comunidades
e levantar as expectativas da comunidade. Os escritórios são contratados,
ao custo de 17 milhões de reais, esses dados são levantados na
Procuradoria, nós tivemos muito cuidado em entrevistar todos os
escritórios, portanto, o que eu vou falar a partir de agora é da minha
pesquisa, então esses escritórios são contratados e começam a trabalhar,
começam a fazer o levantamento, começam a trabalhar no projeto
técnico, e a coisa tá indo. De uma hora pra outra, e segundo funcionários
da própria prefeitura do Rio de Janeiro, isso não teve um consenso nem
dentro da própria Prefeitura, o “Morar Carioca” sai da agenda.
Os trabalhos param. Os escritórios entregam esses projetos, e
nenhuma obra vai adiante, e quem diz isso são os próprios escritórios.
Ou seja, você movimentou toda uma população, a expectativa de uma
população, você gasta dinheiro público com a contratação dos
escritórios, porque quando eu falo 17 milhões, a professora Regina
lembra bem disso, eu falava assim “sinto até vergonha de falar em 17
milhões, foram pro ralo né”, fico até com vergonha porque dentro de um
universo, de um montante de recursos públicos mal utilizados, você falar

176
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

em 17 milhões de reais é pouca coisa. Mas não é. É porque a gente está


naturalizando. Tá naturalizando o uso indevido dos recursos públicos.
Mas 17 milhões foram gastos.
Paralelo a isso, o que é que tá acontecendo na cidade do Rio de
Janeiro? Uma das políticas mais contundentes da história de remoções
de comunidades. Você tem Curicica, tem Vila Autódromo, que nós, do
NEPHU, tivemos muito orgulho em participar dessa frente de apoio à
essas comunidades - comunidades que eram retiradas como a
Providência, como casas da Providência, mesmo sem a anuência dos
moradores. Vários documentos mostram isso, várias entrevistas mostram
isso, informais e não-formais, e, essas obras vão sendo tocadas ao ponto
de ser falar em “remoções democráticas”. Tanto na assembleias, tanto na
Câmara dos vereadores, com o então líder de governo, Edilson Pires,
como no material lançado pelo IED, na época em que se lançou o “Morar
Carioca” - agora, as remoções forçadas estavam pra trás, a partir de agora
você tem “remoções democráticas” - é difícil a gente tentar explicar isso
para os nossos alunos, para as nossas alunas, para os nossos amigos. E
em contradição com a lei orgânica, né, que proíbe! Pois é, mas assim
você vai dando um jeito, aqui, acolá, né, então o programa “Morar
Carioca”, depois da entrega dos projetos, ele deixa de existir. Aí você me
fala assim, se você for da área“Não, Paulo! Se você vai na secretaria de
obras do município, tem lá um monte de obra detalhada do ‘Morar
Carioca’”. Eu tentei até botar na minha tese, mas a Regina não deixou
porque era muita tabela, era muita obra do “Morar Carioca”. Eu não sei
trabalhar com tabela. Eu sou um geógrafo, eu não sou um arquiteto, eu
fiz doutorado em arquitetura, mas eu não sei essas coisas bonitas que
arquiteto faz, até o Luiz teve que me ajudar, senão a tese não saía. E aí,
tem mais, todas as obras escritas, quanto foi gasto no “Morar Carioca” -
mas como assim, o “Morar Carioca” acabou? Os escritórios falaram que
nada aconteceu? E aí o que é que a gente pode averiguar com a nossa
pesquisa? Todas as obras da Prefeitura viraram o “Morar Carioca”.
Qualquer obra: fazia asfalto na rua - “Morar Carioca”; o poste caía,
levantava o poste - “Morar Carioca”. E é exatamente isso, todas as obras

177
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

da Secretaria e Urbanismo viraram o “Morar Carioca” - quando, na


verdade, a gente não pode perder o foco de que o “Morar Carioca” era
um programa habitacional e urbanístico, não era asfaltar rua.
Apesar de ter sido lançado em 2010, só em 2012 o programa foi
implantado, saiu a lei que regulava o programa só em 2012. E aí, quando
a gente pega os dados da Procuradoria do Município, da Controladoria
do Município, desculpa, você vê lá um monte de gastos, realmente com
o “Morar Carioca”, além do que a Prefeitura apresenta. Aí tem lá: dívidas
antigas do “Favela Bairro”, que o prefeito colocou na conta do “Morar
Carioca” também; a gente pega contrapartidas financeiras do “Minha
casa, Minha vida”, que se a Prefeitura não pagasse, o “Minha casa,
Minha vida” não poderia ser instalado na cidade do Rio de Janeiro, então
tá lá dentro do “Morar Carioca” também, contrapartidas financeiras para
o “Minha casa, Minha vida”; e, finalmente, obras de urbanização do
“Morar Carioca”.
Quando a gente tira os valores do “Minha casa, Minha vida”,
mais as despesas a pagar do “Favela Bairro”, dá uma diferença de quase
um bilhão de reais entre o que a Prefeitura disse que gastou com o “Morar
Carioca”, e o que ela realmente gastou, na verdade são 995 milhões de
reais de diferença. A Prefeitura diz que gastou 2 bilhões, com esses
números que ela apresenta, com essas obras, com esse valor do “Minha
casa, Minha vida”, com esse valor do “Favela bairro”, mas quando a
gente isola esses números, a gente percebe uma diferença de quase 1
bilhão de reais. Então, assim, obra de saneamento mesmo, obra de
urbanização mesmo, estão lá na casa de um bilhão e alguma coisa, com
essas obras que ficaram no varejo pela cidade. Mas, se a gente fosse fazer
um cálculo, quer dizer, a gente tá em 2018, a Prefeitura falou que gastou
2 bilhões, até 2020, faltam dois anos, é muito improvável que todas as
favelas do Rio estejam urbanizadas até 2020.
Se a prefeitura, naquele momento, onde o orçamento era quase
infinito, a gordura era quase infinita, imagina agora em um período de
recessão e de crise. Conforme a gente foi trabalhando, né, na montagem
dessa pesquisa, que é a coluna vertebral do meu trabalho, a gente foi

178
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

percebendo algumas coisas que nos deram indicações que precisavam


ser aprofundadas. Uma delas, - e aí abriram-se alguns subcapítulos que
são interessantes a gente dividir com vocês e colaborar com essa
conversa, - primeira delas, óbvio, é a relação muito próxima - tem que
tomar cuidado com as palavras né, tem muita gente de Direito, mas muito
próxima de Eduardo Paes com empresas como a Odebrecht, a OAS, a
Carioca Engenharia, tá me faltando umazinha, daqui a pouco eu lembro,
a Camargo Corrêa. Então eu fui, eu peguei, o que é que eu fiz, eu peguei
os registros dessas empresas, e os contratos delas com a Prefeitura, cruzei
com o que? Com os valores que cada uma dessas empresas colocou nas
campanhas de Eduardo Paes, e aí é fácil de a gente entender porque o
Porto Maravilha, depois de uma grande quantidade de dinheiro público
gasto, foi parar na mão da OAS, da Camargo Corrêa, da Odebrecht e da
Carioca.
Se eu chamo de “próxima”, é porque eu não posso fazer o ato
leviano de dizer que que havia, sei lá, corrupção envolvida nisso. Mas se
a gente pega agora, o histórico dessas empresas, o método como essas
empresas se relacionavam com o poder público, alguma coisa tá errada.
Tem um texto muito bom, do Belisario, eu esqueci o primeiro nome dele,
mas ele escreveu uma matéria muito interessante na Folha de São Paulo,
alguns dias antes dos jogos olímpicos, que ele escrevia “Um jogo para
poucos”, e ele demonstrava como as obras olímpicas, elas foram loteadas
por esse conjunto de empresas, e esteve dentro da gestão Paes desde o
início do seu primeiro mandato. E aí não tinha como a gente não se
aprofundar nisso, apesar disso não ter sido o mote central do nosso
trabalho, a coisa ficou muito evidente. A segunda parte que eu tive
também que me aprofundar foi sobre os megaeventos, tem muita gente
boa escrevendo sobre megaeventos no Programa de Arquitetura e
Urbanismo, muitas pessoas, muito melhores do que eu, pra falar de
megaeventos, inclusive eu cito até aqui a colega Bruna Guterman, que
tem um trabalho ótimo sobre megaeventos, mas o meu objetivo era
mostrar como os megaeventos apoiaram a política de remoções
“democráticas” - sendo bem irônico, porque é impossível não ser irônico

179
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

- , e como os jogos olímpicos tiraram o foco da habitação popular. Quer


dizer, em algum momento, a leitura, eu acho que é essa pra trazer pra
vocês, em algum momento o “Morar Carioca”, ele sai da agenda, né,
quando o dinheiro é todo deslocado pras obras e intervenções dos jogos
olímpicos, por exemplo.
E, finalmente, pra terminar o nosso trabalho, e chegando aqui ao
fim da minha conversa, né - tá mais ou menos na hora, né, é isso, né
(apontando para o relógio e indagando a representante da mesa, Anne, a
qual afirma que sim com a cabeça), enfim...é...a gente começou, a gente
percebeu que todo esse movimento, ele não é naturalmente assim,
colocado e aceito por toda a sociedade. Existia um importante núcleo de
resistência a essa política privatista. Como eu falei aqui, eu me sinto
muito orgulhoso de participar do NEPHU, né, que foi um núcleo que
compreende a importância da universidade pública próxima aos
movimentos sociais. A população de Vila Autódromo, pô, brilhante;
pessoal da UFRJ, do ETR (?) né, (...); a população de vila Mangueira; a
atuação do NUTH, que em grandes momentos até se confundia como
militante, alguns momentos - eu sei que é perigoso falar isso, - é o
trabalho deles enquanto defensores, mas é impossível negar o
envolvimento daqueles profissionais de forma brilhante com a
comunidade, em vários momentos.
Exemplo grande disso é a comunidade da Mangueira - esqueci o
nome dela, não é a Chapéu Mangueira, a Chapéu Mangueira é na zona
sul, (..) é Metrô, comunidade do Metrô, que num primeiro momento, sem
ajuda do NUTH, a primeira parte da população removida foi mandada
pra Cosmos, Cosmos! Né, nada contra Cosmos, eu vim de lá agora, eu
dou aula em Santa Cruz, brilhante a população de lá, merece todo o nosso
respeito, mas a população do Metrô-Mangueira tinha construído as suas
bases alí, numa região central, e foi enviada, “democraticamente”,
naturalmente, pra Cosmos. E aí, quando o NUTH entra em campo,
consegue-se, através de uma grande pressão, remover a população pra
Mangueira, pro “Minha casa, minha vida” atrás da Mangueira.

180
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Então assim, a gente fechou o nosso trabalho, né, nós fechamos


o nosso trabalho - um trabalho de tese nunca é um trabalho individual,
por mais solitário que ele seja, naturalmente, por isso que eu falo no
plural, - nós fechamos o nosso trabalho com esse indicativo, da
importância dos movimentos populares, da importância dos órgãos
públicos que têm o dever de assistir essa população. Enquanto moradia
e habitação, o que a gente “teve” Eduardo Paes foi “Minha casa, minha
vida”- era um programa do governo federal. Não houve, repito, à guisa
de urgência, uma obra no programa “Morar Carioca” - apesar de você
ver na Secretaria vários comentários sobre o “Morar Carioca”, mas,
repito, todos os escritórios foram entrevistados, e todos foram unânimes
em afirmar que nenhuma obra deles foi colocada em prática.
Pra nós, a cidade, após a gestão Paes, é uma cidade ainda mais
exclusivista, uma cidade que apresenta ainda maiores dificuldades pra
população mais pobre, é uma cidade construída somente pra uma parte
da população, a gente observa o momento profícuo pra reprodução do
capital na cidade, e….espero realmente que a gente possa no futuro ter
melhores opções pra resolver esse problema que se estende há mais de
um século. É isso, obrigado.

Debates
Plateia (01): Há possibilidade dessa utopia de urbanizar todas as
unidades? Eu acho utopia, porque é uma coisa que eu sempre sonhei
desde criança (...) porque eu passei, eu tenho 67 anos, nasci no centro da
cidade, fui criado no subúrbio, então, eu vi ali, a zona da Mangueira-
verde, Leopoldina, alguns barracos, né, quando eu era criança, (...) a
avenida Brasil naquela época era subúrbio, nos anos 60, final dos anos
50, início dos 60, não havia barraco, quase que na própria avenida Brasil,
entendeu?! E isso é uma coisa que me preocupa, porque há uns 2 ou 3
anos atrás eu fui com a (? 25:37) lá na Igreja Nossa Senhora da Penha.
Aí eu tirei uma foto lá de cima, de cima pra baixo, né, aí tem um Cruzeiro
ali, tudo pra lá, favelado. A “favelização”, né? Eu tomei um susto (...)
porque é coisa norma, pessoal pobre (...) a pobreza ...isso daí é evidente.

181
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Então a minha preocupação é essa. você falou que ele queria até 2020,
então vamos botar até 2040, seria possível a urbanização? Com tudo o
que eu estou falando né, com tudo, inclusive com igreja, com tudo...com
policiamento, com ruas, usando inclusive a mão-de-obra das
comunidades, eu acho que seria importante isso também. Há essa
possibilidade? Até 2040, botando mais 20 anos pra frente …?
Paulo Bastos: Depende do que a gente chama de urbanizar, né? Antes
de tudo, assim, o que que é urbanizar, né? Eu acho que é oferecer
melhores condições, né? Eu penso que é um desafio hercúleo, postas as
condições políticas e econômicas do país, é um desafio hercúleo. Mas eu
acredito que é uma utopia saudável de se ter. É uma utopia saudável a
gente não pode naturalizar a expressão de degradação que a favela é. Eu
não posso naturalizar isso, sabe? A população ali tem que ser ouvida, a
população tem que ser trazida por projetos, a população tem que ser
trazida pros programas, a população tem que ter melhores canais de fala.
Não sei se isso vai garantir a urbanização ou não, mas assim, eu penso,
realmente, que a gente não pode fechar os olhos à isso, sabe? Não pode
deixar passar. E eu tenho absoluta certeza que a cada dia que se passa,
essa utopia vai ficando ainda mais difícil de ser alcançada. Eu acho que
a gente tem que encarar o problema, tem que chamar a população pra
realmente fazer parte disso. É bom lembrar que as maiores críticas ao
“Favela Bairro’ forma em relação à isso, né, o “Favela Bairro” também
se esqueceu da população, esqueceu que a população tinha que ser
ouvida (...). Eu penso que a gente não pode perder isso de vista, não,
sabe, eu fui criado próximo ao Morro dos Macacos, e até hoje eu moro
lá, né. Então, assim, eu sonho com o dia que aquilo vai estar muito bom,
eu não posso esquecer esse meu sonho. Sabe? Como é que isso vai se dar
eu não sei. Primeiro eu penso que nós temos capacidade técnica, nós,
técnicos, temos capacidade, somos bons. Arquitetos, advogados (..) Isso
é bom, a gente é bom, a gente sabe o problema, né? Segundo, eu tenho
absoluta certeza que tem uma população lá dentro que pode ser
estimulada. Eu tenho certeza absoluta que tem uma população lá dentro
que já faz trabalho, que tem que se ouvida, que tem que ser trazido o

182
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

holofote pra essas pessoas. Como fazer? Aí a gente tem que sentar e
planejar, mas planejar de forma séria. Eu não posso, por exemplo, abrir
um programa, um concurso, chamar dois escritórios e criar uma
expectativa na população, porque isso só afasta a população, aí eu
concordo com você. Programas como o “Morar Carioca”, por exemplo,
atrapalham muito mais do que ajudam, porque, eu estive lá, naquela noite
de terça-feira, onde tinham 4 mil pessoas, e eu tinha quatro vereadores
falando que tinham trazido o “Morar Carioca” pra aquela comunidade,
que aquela comunidade iria se tornar (...) lembro que existem fotos disso,
existem fotos no meu trabalho, que está disponível na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, (...) tem fotos disso, 4 mil pessoas numa noite
de terça-feira, com o secretário municipal de obras, com o coordenador
do escritório que eu trabalhava, com o dono, né, não é coordenador, com
o dono. O dono falando “(...) não, nós chegamos aqui, nós vamos fazer
uma obra bacana…” mostrou lá um monte de mapas, mostrou lá um
monte de projetos, e …?! (...) Isso desestimula. Eu acho que enquanto a
gente continuar … eu acho que essa sua pergunta é o que move todos
nós, me move bastante, e deve mover você também … enquanto a gente
tentar fazer mais ou menos, a gente vai piorando o quadro. Eu não quero
naturalizar a favela, como essa favela que a gente vê, degradada. Mas
assim, eu acho que enquanto a gente não agir de forma contundente, a
gente vai se afastar de qualquer solução. Essa é a minha opinião.
Plateia (01): É muito grave quando vemos, por exemplo, o estado de
abandono na cidade do Rio de Janeiro, é o órgão responsável, né, por
toda concepção de planejamento estratégico e de desenvolvimento da
cidade, e...quer dizer, esse abandono, essa falta aí, de pensar políticas
públicas em afinidade com os preceitos das conferências, né,
internacionais, as conferências, pensar aí, na ausência de uma
aproximação maior das universidades com as comunidades, né, nós
também temos essa responsabilidade institucional, pela questão do
retrocesso, que foi, que é, o abandono de políticas de regularização
fundiária, de destinação da posse, de acesso, de regulação da
propriedade, enfim, todo o exercício da função social da propriedade

183
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

urbana. Então, o momento que a gente vive é um momento muito grave,


né, então, se a gente pensar aí na dimensão grave, né, que a gente vê nas
cidades brasileiras, o projeto vai ser, na melhor das hipóteses, de médio
prazo, porque, quando a gente vê , é...especialmente né, nas cidades, aqui
- é, eu sou do Rio de Janeiro, estou aqui em Niterói - principalmente não
só a questão urbanística, como a questão institucional também é
preocupante, né (...) É um retrocesso que a gente tá vivendo?
Paulo Bastos: Eu tenho vários colegas no Instituto Pereira Passo,
colegas que estudaram comigo na faculdade de geografia da UERJ, lá
em … muito tempo atrás. E...é uma equipe competentíssima, a produção
cartográfica do IPP é algo brilhante, talvez uma das melhores produções
cartográficas do Brasil. O IPP esteve à frente de produção cartográfica,
no brasil, durante muitos anos. Um instituto belíssimo, com um trabalho
belíssimo. Às vezes tem até coordenações, e gerências já - posso até não
concordar politicamente - mas eu não posso deixar de fazer essa fala, da
beleza, da riqueza, do IPP na cidade do Rio de Janeiro. Então se a gente
utilizasse, né, esse material que foi trabalhado durante tantos anos, se a
gente utilizasse ele da forma adequada, (...) se o poder público tivesse
interesse em colocar ele, a gente não teria, por exemplo, ter que ter
respostas heróicas de movimentos, por exemplo, hoje, a favor da
habitação no Brasil. Né? Se a gente tivesse realmente querendo resolver
isso, se a gente realmente quisesse … eu me lembro que a primeira
missão, que eu cheguei no NEPHU - vou contar uma coisa engraçada
aqui pra vocês, ela está ali, me olhando… - a primeira coisa que ela me
pediu, meu primeiro dia de trabalho no NEPHU, Regina me fala assim
“Vamos começar o mapeamento de imóveis não utilizados no centro de
Niterói”.
Eu peguei uma câmera, peguei um “talãozinho", um papelzinho, um
caderninho, e saí andando pelo centro de Niterói. Rapidamente eu
mapeei mais de cem imóveis vazios. Cem! Isso sem me aprofundar na
pesquisa, que agora está sendo feita por dois bolsistas. Mais de cem
unidades vazias que poderiam ser utilizadas, por exemplo, para habitação
popular. E são utilizadas? Não!

184
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Vamos pegar um outro exemplo. O Quilombo das Guerreiras, na região


do porto do Rio de Janeiro. Aquela população foi retirada um anos antes
da olimpíada. Foi retirada de forma contundente, com direito a guarda-
municipal tirando a população que morava ali, porque o prédio ia ter um
outro uso. O prédio continua? Vazio, deteriorado. A população do
Quilombo das Guerreiras? Espalhada, em outras ocupações, alguns,
moradores de rua, alguns e abrigos...é isso a resposta? É essa a resposta?
Não pode ser essa resposta, infelizmente não pode. E é por isso que hoje
a gente vê um protagonismo que eu considero muito acertado, dos
movimentos que lutam pela moradia popular, pela habitação popular.
Porque, simplesmente nós não colocamos o estatuto ...ele está no papel,
né?, a gente não coloca ele na prática. E a gente quer que as pessoas
façam o que? A gente tem um milhão de famílias, de pessoas hoje, em
situações de déficit habitacional na cidade do Rio de Janeiro. E por aí
vai, ONU, né...documentos da ONU quando a Ermínia Maricato foi
conselheira da ONU, ela apontava isso também, … quer dizer,
documento a gente tem, a gente sabe o problema. Não age por uma
questão política, por uma questão econômica. Quando você deixa
prédios apodrecerem pra garantir a especulação imobiliária numa
determinada área, por exemplo…a gente tem que fazer acontecer.
Plateia (02): Não é bem uma pergunta, é só uma reflexão que eu fiz
quando você estava falando do “Minha casa, minha vida”, é...você
contou que o pessoal foi removido da Mangueira pra Cosmos, e...eu
fiquei pensando, porque eu já morei numa unidade do “Minha casa,
minha vida” e ela ficava em um bairro chamado Engenho da Rainha, lá
na zona ….
Paulo Bastos: Clarice, a gente tem que lembrar que a moradia não é só
habitação. Isso é algo que a gente fica repetindo, e que é importante a
gente sempre dividir com as pessoas. Habitação vai além da moradia.
Habitação é escola, é transporte, são postos de geração de trabalho e
renda. Não dá para pensar em só botar o cara ali e deixar o cara ali. O
que aconteceu com os condomínios em Cidade Alta e Cidade de Deus?
Ao longo do tempo foram largados. Eu tenho muito medo que algumas

185
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

unidades do Minha Casa, Minha Vida, ao longo dos anos, experimentem


uma degradação muito grande. Eu tenho muito medo, porque assim, você
bota lá o prédio, bota a pessoa lá dentro, e está tudo ok. Isso que você
falou tem muito a ver, eu acho, que com um preconceito muito grande,
que é achar que a pessoa que mora em uma favela, ela não tem
identidade, que ela pode ir para qualquer lugar, porque a gente escutava
falar, quando teve lá a população de Vila Autódromo, “mas você vai
morar em um condomínio!” “Você vai sair daqui!” Eu via agentes
públicos falando isso, “eu não sei porque que eles brigam tanto!”. “Eles
vão ganhar um prédio, vão morar em um condomínio, como é que podem
estar tristes de sair da favela?” E é claro, está implícito nisso um
preconceito enorme de que o favelado não tem história, não tem
identidade, não cria as mesmas relações com território que nós criamos,
de classe média. Afinal, só classe média pode criar relação com território,
pobre não pode criar relação. Afinal de contas, é favela, por que o cara
ta ali na favela? Coloca ele em um condomínio, no Minha Casa, Minha
Vida; tá reclamando a toa. Bota lá, tranca lá dentro, e esquece. E
esquece, esquece que ele existe, e quando der os problemas posteriores
lá em Cosmos, der problema com a escola, der problema com geração de
renda, é outro problema, aí tudo bem. É assim que a gente age, e o
Estado, muitas vezes, oficializa de que se trata de uma população sem
direitos. Entendeu? E o nosso trabalho enquanto urbanistas e pensadores
da cidade é afirmar, justamente, o contrário, que todas as pessoas têm
direito sobre a cidade, que a cidade não é só de alguns. É de todos e de
todas.

186
PLANEJAMENTO E PARTICIPAÇÃO: ESTUDO DE CASO
PUR PENDOTIBA, NITERÓI – RJ

Cynthia Gorham 30

1. Introdução

Esta apresentação foi baseada na dissertação de mestrado em


Arquitetura e Urbanismo denominada “PLANEJAMENTO E
PARTICIPAÇÃO: ESTUDO DE CASO PUR PENDOTIBA, NITERÓI,
RJ” apresentada e aprovada no Programa de Pós-graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU
UFF em março de 2018. A dissertação foca as escalas de planejamento
e a participação popular nas respectivas ações de planejamento na gestão
de 2013-16, destacadamente o PUR Pendotiba. Nesta apresentação será
destacada a questão da participação popular. Como assessora
parlamentar, uma das minhas funções era gravar as audiências das
políticas públicas e as reuniões do Conselho de Política Urbana, o
COMPUR. A grande quantidade de material gravado, um registro
importante, permitiu uma visão panorâmica de como acontece a política
nesta gestão Rodrigo Neves, e é a primeira gestão de 2013 até 2016 que
é tratada.

2. Panorama da ocupação em Niteroi e sua expansão urbana

30
Arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora Associada do Núcleo de
Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU-UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

O crescimento de Niterói ocorre de forma mais intensa a partir


dos anos 50. Na década de 60, as construções aumentavam mais nos
bairros das Praias da Baía que no Centro, até aproximadamente 1976, se
reduzindo com a crise econômica do Milagre nos anos 80. Dois episódios
se destacam por provocarem consequências em toda cidade e que vão se
refletir na ocupação de Pendotiba, que é objeto desse estudo. O primeiro
foi a construção da Ponte Rio-Niterói que, inaugurada em 1974,
provocou grande afluxo populacional em direção a Niterói. A expansão
da cidade se intensificou principalmente em direção à Região Oceânica
e Pendotiba com investimentos em loteamentos unifamiliares. Niterói
oferecia um mercado imobiliário com preços mais razoáveis que o Rio,
o que justificou o considerável aumento populacional – cerca de 25% em
10 anos , passando de aproximadamente 320 mil para quase 400 mil
31

habitantes. De 1971 para 1975 a população que habitava os morros e


periferias cresceu de 6.196 habitantes distribuídos em 44 favelas para
26.890 habitantes em 50 favelas (CODESAN apud MIZUBUTI, 1986,
32

p. 79) e, segundo os arquivos da Fundação Leão XIII , os dados de 1975


33

para 1977, informavam que a população em favelas quintuplicou


(MIZUBUTI, 1986, p. 79).
O segundo evento ocorreu no ano seguinte, quando a fusão do
estado da Guanabara com o estado do Rio, deslocou a capital de Niterói
para o Rio, provocando um vazio institucional e administrativo na área
central, que modifica rapidamente seu perfil. Há assim um deslocamento
de comércio e residências para bairros como Icaraí e Ingá. Nesses
bairros, por sua vez, a verticalização e o adensamento, aumentando o
custo e reduzindo a qualidade de vida e com a intensificação de
problemas destacadamente como a mobilidade, seguida pela redução da

Dados compilados de Sousa (2016, p. 113).


31

CODESAN - Companhia de Desenvolvimento de Niterói, fundada em 1975.


32

A Fundação Leão XIII foi criada em 1947 por decreto presidencial, com a proposta de recuperar
33

os favelados e “conter a infiltração comunista” (MIZUBUTI, 1986). O Partido Comunista


Brasileiro foi fundado em Niterói em 1922 e gozava à época da criação da Fundação de grande
apoio popular.

188
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

segurança, provoca a evasão de moradores das classes média, por


menores preços, e também da alta, ambas em busca de maior
tranquilidade e qualidade de vida. Paralelamente, trabalhadores
envolvidos com a construção da Ponte e do Metrô do Rio (inaugurado
em 79) ocupavam o Largo da Batalha, em Pendotiba, e seu entorno.
Resumindo, há um aumento de população, com o acesso favorecido com
a Ponte, e um novo fluxo que passa a ocupar as regiões Oceânica e
Pendotiba, enquanto o Centro é esvaziado com a fusão e novos centros
de comércio se fazem em Icaraí e entorno.

3. Breve contexto das políticas públicas em Niterói

O primeiro Plano Diretor para Niterói foi elaborado em 1976,


mas não foi implementado. Em 1989, o prefeito Jorge Roberto Silveira
(PDT-1989/92), deu início ao processo de discussão participativa e
democrática do Plano Diretor de Niterói, uma exigência da recente
Constituição para as cidades com mais de 20 mil habitantes. E, em
dezembro de 1992, foi aprovada a Lei nº 1.157, o Plano Diretor,
marcando o início da transformação das orientações da política urbana
para Niterói. O Plano dividia o município em cinco regiões, a saber:
Praias da Baía, Oceânica, Norte, Pendotiba e Leste.
Vale destacar que além da incorporação de instrumentos de
democratização do acesso à terra, por outro lado se iniciavam ações que
integram ao city marketing (SÁNCHEZ, 2010), com construção de
ícones arquitetônicos, como o MAC, dando origem à posterior
construção do Caminho Niemeyer.
A coalizão de forças políticas entre os dois partidos dominantes,
PDT e PT em Niterói a partir dos anos 90, com o primeiro mandato de
Jorge Roberto Silveira (1989/92) à frente de diversas gestões, pode
explicitar um padrão de ações consoantes com as políticas hegemônicas
nacionais para as áreas urbanas a partir da década de 80, identificadas
com um ideário neoliberal.

189
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Em 2002, já na 3ª gestão de Jorge Roberto, demonstrando a


continuidade dos princípios voltados à priorização do capital imobiliário,
com o qual era comprometido, ao invés de promover a revisão do Plano
Diretor que findava seus dez anos de validade, realizou a revisão do
Plano Urbanístico Regional das Praias da Baía – o primeiro fora
realizado de 1995 – ampliando os gabaritos, e o novo PUR da Região
Oceânica. Posteriormente, em 2004, o Plano Diretor foi adequado ao
Estatuto da Cidade (2001), e introduzidos os instrumentos que
garantiriam a função social da propriedade e a criação do Fundo
Municipal de Habitação. Em 2005, foi realizado o PUR da Região Norte.
Fica assim adiada a revisão do Plano Diretor e relegada a um futuro a
realização dos planos urbanísticos para as Regiões de Pendotiba e Leste.

4. Perspectiva da gestão Rodrigo Neves (2013-2016)

Em 2013, o prefeito Rodrigo Neves, candidato do Partido dos


Trabalhadores, embora houvesse essas lacunas no planejamento urbano
(revisão do PD e PUR Pendotiba e Região Leste), priorizou o
atendimento a demandas de parcerias público-privadas com empreiteiras
de escala nacional , apoiando a aprovação da requalificação do Centro
34

através de uma Operação Urbana Consorciada, a OUC Centro. A opção


por “revitalizar” um Centro empobrecido, mas que não perdera sua
vitalidade, foi o começo de uma gestão marcada por projetos pontuais,
fragmentados, desvinculados de uma visão de “planejamento” mais
amplo e integrado. Assim, suas principais iniciativas foram: a OUC
Centro (2013); o Plano Estratégico para 20 anos (2013); o início do
processo de Revisão do Plano Diretor (2014); o Corredor Transoceânica
(2014) e, finalmente, o Plano Urbanístico Regional para Pendotiba -
PUR Pendotiba (2015).
Ao longo de 2013 foi discutida e aprovada a OUC Centro,
realizado o planejamento estratégico para 20 anos, o Niterói Que

34
Decreto nº 11.373/2013. Disponível em: <https://goo.gl/j89sBV>.

190
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Queremos, com integral realização e apoio privados. Em seguida, se deu


o início ao estudo da Transoceânica – um corredor viário restrito à RO,
apesar do caos da mobilidade em toda a cidade. Ainda que iniciasse os
estudos para a revisão do Plano Diretor, este foi novamente postergado
pela súbita determinação pela elaboração do PUR para Pendotiba.
Se a opção da gestão ao priorizar o Centro de Niterói, com a
OUC, dizia respeito à submissão a outros capitais nacionais, interessados
em investir naquela frente marítima, essa escolha excluía o setor
imobiliário local, que previa a inviabilidade de investimento na área.
Assim, a determinação - e urgência - em elaborar o PUR Pendotiba,
sugeria como que o pagamento de uma ‘dívida’ decorrente da escolha
dos novos parceiros empresários onde foram preteridos os velhos aliados
locais.

5. Motivações para a elaboração do PUR Pendotiba

Aos empreiteiros locais interessava, por outro lado, desde 2012,


quando foi solicitado pela ADEMI - Associação de Dirigentes de
Empresas do Mercado Imobiliário, o estabelecimento de regulação para
construções de edifícios em Pendotiba. A legislação vigente para as áreas
da cidade sem plano urbanístico próprio era de 1999, o Programa de
Arrendamento Residencial, PAR, e permitia a construção de edifícios de
4 andares e restritos ao interesse popular. O objetivo desses empreiteiros,
entre outros interesses, era elevar o patamar de renda para um novo
público alvo, potenciais proprietários de novos empreendimentos, acima
dos seis salários mínimos. Essa lei foi modificada em 2007, se
transformando no PAR’, ou Lei Godofredo, alterando parâmetros
edilícios, ampliando a área das unidades e o número de pavimentos de 4
para 7 e, pior, com uma má redação em seu texto e uma “falta de vírgula”,
abre as portas da Região ao capital imobiliário.
Através desta brecha na redação, que não mais restringe a
habitações populares, a Região, que era ocupada no entorno da área
central pela classe mais baixa, e em condomínios fechados das classes

191
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

média e alta que se localizavam na periferia, sofreu o início de um


processo de verticalização, aumentando sua população, em uma área sem
infraestrutura de saneamento e tampouco de mobilidade.
Ruth Aono descreve, em sua dissertação de mestrado, com
perplexidade e indignação a ação desvirtuada do gestor público que se
utilizou da legalidade para distorcer sua responsabilidade “em promover
políticas públicas na solução dos problemas inerentes [...] do modelo
econômico que explora a desigualdade” e, de forma permissiva, legislou
“para, nas entrelinhas, alterar os objetivos de produção de habitação para
a faixa de renda em que se concentra o déficit habitacional” (AONO,
2012, p. 179), ou seja, abaixo de seis salários mínimos, para favorecer
setores da construção civil na cidade. O que se verificava, eram
apartamentos sendo vendidos, extraoficialmente, sem a inclusão do valor
das garagens no financiamento, que eram compradas à parte, de modo a
adequar a compra à faixa exigida pela Caixa Econômica Federal.
O aumento do número de empreendimentos provocou e
mobilizou os antigos moradores da Região a procurarem a Prefeitura e
pressionar para a execução de um Plano Urbanístico local, na ilusão de
que suas demandas seriam contempladas. Embora o Executivo tivesse o
recurso de suspender temporariamente os licenciamentos, negava,
alegando não poder agir de forma discricionária! Ou seja, não poderia
favorecer uns, a população, em oposição a “punir” seus aliados.
Outro possível componente para a pressão na elaboração do PUR
Pendotiba foram ações públicas movidas pelo Ministério Público
Estadual (MPRJ), desde fins de 2013 contra o Município, exigindo a
elaboração da Revisão do Plano Diretor, do Plano Urbanístico para
Pendotiba e para a Região Leste, nesta ordem. Diversas vezes nas
audiências públicas do PUR Pendotiba quando a população reivindicava
a priorização da Revisão do Plano Diretor, o Executivo respondia estar
obedecendo à demanda do MP. Na realidade era apenas meia verdade,
afinal a ação exigindo o Plano Diretor era a primeira das três.

192
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

6. O PUR Pendotiba

Para cumprimento da gestão democrática a Constituição Federal


de 1988, a Constituição Estadual do Rio de Janeiro/1989, e a Lei
Orgânica do Município de Niterói/1990, preconizam a utilização das
audiências públicas, entre outros instrumentos. É o Estatuto da Cidade , 35

o marco regulatório que sugere explicitamente as ‘audiências públicas’


como instrumento objetivo para garantir a gestão democrática. Embora
a participação social seja uma questão presente nas pautas públicas
voltadas à questão urbana e ao planejamento desde a década de 60, pouco
tem avançado.
Nesta pesquisa as audiências públicas, Executivas e Legislativas,
foram o meio utilizado para aferição da participação social para o PUR
Pendotiba, sua elaboração e aprovação ao longo de 2015. Foram
realizadas ao todo oito audiências, duas Executivas e seis Legislativas.
Na análise das audiências, foram considerados os aspectos ligados: (i) à
divulgação, às datas e horários propostos; (ii) às características das
apresentações do Plano à população e a linguagem utilizada e (iii) ao
formato estabelecido que definia quem participava da mesa e o tempo de
manifestação dos presentes.
O processo público que envolveu o diagnóstico foi composto pela
realização de reuniões, oficinas e audiências com o objetivo de checar e
complementar, ao menos teoricamente, com a opinião dos moradores.
A divulgação se restringiu às exigências mínimas. Ou seja,
publicar em Diário Oficial com antecedência exigida, divulgar em mídia
impressa, etc. O espaço virtual das redes sociais, sem ônus, nunca foi
utilizado. Quem de fato divulgou as audiências foram ativistas,
moradores e bancadas de vereadores de oposição ao governo.
Nas primeiras reuniões promovidas pelo Executivo, anteriores às
previstas oficinas de complementação aos diagnósticos, foram
convocados – separadamente - alguns grupos de moradores escolhidos.

35
Lei nº 10.257/2001, artigos 2, inciso XIII e 43, inciso II.

193
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Esse método, se por um lado facilitava a comunicação, por serem poucas


pessoas, por outro dificultava o questionamento mais amplo e a
apresentação do contraditório. Roberto Lobato Corrêa (1993), relembra
que essa setorização corresponde à fragmentação do uso do espaço onde,
frente a presença do dissenso, interessa, por parte dos agentes
dominantes, ter reduzidas suas arestas e buscar captar consensos,
revalidando suas próprias propostas.
O pouco tempo permitido para a expressão da população, além
das reuniões e oficinas terem sido programadas para o período de festas,
férias escolares e carnaval (dezembro a fevereiro de 2015),
demonstravam que o calendário escolhido não era o mais apropriado à
participação. Para compensar a baixa participação, o presidente de uma
associação de moradores de um loteamento de classe média local, o
Jardim América (Amaja), apresentou um documento de nove páginas
onde descrevia algumas das características da Região que considerava
importantes a serem observada. Explicitava a importância da
manutenção do modus vivendi daquela população; alertava para as
deficiências crônicas de infraestrutura e para o problema fundiário das
comunidades vizinhas como os principais anseios da população. Com as
duas audiências seguintes a atitude do Executivo não mudou. Além da
linguagem técnica, de difícil compreensão e assimilação e o tempo de
fala desproporcional entre governo e população, os técnicos não eram
claros o suficiente sobre o conteúdo dos diagnósticos. Mesmo assim
foram severamente criticados por sua superficialidade e inconsistência,
pela ausência de dados importantes, ou não atualizados, e foi
insistentemente demandado para que os diagnósticos fossem refeitos. A
falta de visita a campo era outra reclamação dos moradores. Foi também
realizada consulta pública online por um mês, mas a metodologia
utilizada não foi disponibilizada. A falta de transparência impedia sua
confiabilidade. Processos semelhantes em outras cidades, com todas suas
críticas, apresentavam as perguntas e respostas possibilitando seu
controle.

194
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Foi realizada uma reunião do Conselho Municipal de Política


Urbana – Compur - onde foram intensivamente discutidas com técnicos
e moradores as diretrizes do Plano. No entanto, o Projeto de Lei nº
109/2015 foi encaminhado à Câmara, em regime de urgência, sem que
houvesse devolutiva ou apresentação do PL à população. O conteúdo das
diretrizes discutidas não se expressava nos artigos da lei. O regime de
urgência demonstrava o descompromisso do Executivo no envolvimento
da população nos processos decisórios, transformando-os em mero rito
exigido pela lei (BIENENSTEIN, R. et al., 2017).
A falta de divulgação convocando para as audiências foi
recorrente em ambas as fases Executiva e Legislativa. A Prefeitura se
justificava dizendo que obedecia aos trâmites. Certa vez, por ocasião da
4ª audiência em 29/10/2015 , o subsecretário afirmou que havia sim um
36

esforço em divulgar, mas que este nem sempre era percebido! Ora, em
se tratando de publicidade, se o público alvo não percebe a divulgação
isso é indício de que não houve divulgação eficiente ou esta foi malfeita.

7. O Projeto de Lei - Fase Legislativa: o processo de discussão

Nas audiências legislativas, mesmo a quantidade de pessoas


presentes sendo pouco expressiva frente ao total de moradores/usuários 37

locais, a presença foi relevante em termos de qualidade do conteúdo


apresentado, em grau de questionamento.
A principal demanda da população era por uma legislação
adequada às características do bairro de modo a coibir os
empreendimentos verticais que avançavam impactando sobre as áreas
verdes, a falta de saneamento básico e o crescente problema da

36
Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/pauloeduardogomes.psol/photos/?tab=album&album_id=1017
404978315762>
37
Considera-se como usuários, as diversas pessoas que embora não moradores de Pendotiba, são
comerciantes ou trafegam diariamente cortando o bairro, provenientes dos municípios vizinhos.
Este aspecto em particular, da mobilidade pela vizinhança, será destacado adiante.

195
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

mobilidade. E, principalmente, manter as qualidades ambientais e


paisagísticas do bairro que lhe conferiam uma identidade própria.
O foco principal do Projeto de Lei, por sua vez, era a crítica ao
espraiamento urbano, alegando a invasão de áreas verdes, o uso intenso
e excessivo do automóvel apontando como solução a defesa da cidade
compacta e seus ‘inquestionáveis’ benefícios. As justificativas eram os
malefícios causados pelas pessoas afastadas umas das outras, a
insegurança provocada por esta distância, e o resgate do ‘senso de
vizinhança’.
Assim, a solução apontada era o adensamento e a verticalização
ao longo das principais vias projetando um crescimento de 10 mil
pessoas apostando em planos futuros de saneamento e de mobilidade. A
área a ser mais adensada, com até 10 pavimentos tipo, era o Largo da
Batalha, habitado pelos mais pobres. Com esta proposta estariam sujeitos
a processo de gentrificação, ou seja, a valorização da terra promoveria a
inviabilidade de sua permanência. Isso sem discutir os efeitos dessa
“solução” para a mobilidade, considerando a localização de Pendotiba
como passagem para moradores dos municípios vizinhos acessarem o
Centro de Niterói, Ponte, etc. Não havia intenção de respeitar o modus
vivendi e nem corrigir os efeitos ‘danosos’ da ocupação espraiada. Não
foi proposto, por exemplo, uma opção de transporte público de alta
capacidade que mantivesse as características locais, e que promovesse
eficiência na mobilidade, diminuindo a quantidade de veículos das vias.
A proposta era a substituição do habitar pelo habitat, com a
introdução do pensamento “urbanístico”, entre aspas, qualificando o
pseudo conceito caricatural, como define Lefebvre (1999), que reduz,
restringe o viver do ser humano. “O habitat foi instaurado pelo alto:
aplicação de um espaço global homogêneo e quantitativo obrigando o
“vivido” a encerrar-se em caixas, gaiolas, ou “máquinas de habitar””
(LEFEBVRE, 1999, p. 78-79).
O modelo de cidade proposto para Pendotiba não incluía a classe
de trabalhadores. Como a intenção final era elevar a renda do bairro, e
atrair uma população externa mais rica, os vizinhos mais pobres não

196
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

combinariam com esse modo de vida. Esse era o pensamento


hegemônico. O custo de vida se elevaria e a vizinhança popular, que não
poderia pagar pelos respectivos equipamentos e serviços mais caros,
seria compulsória e paulatinamente obrigada a se retirar para a periferia
mais distante.
Harvey faz uma correlação sobre o desenvolvimento dos
subúrbios ‘monótonos e tranquilos’ que parecem encontrar “seu antídoto
em um movimento de “novo urbanismo” que mobiliza o comércio da
comunidade e os estilos de vida para satisfazer os sonhos urbanos”. E
afirma que:

A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria,


assim como a própria cidade, num mundo onde o
consumismo, [...] turismo e a indústria da cultura e do
conhecimento se tornaram os principais aspectos da
economia política urbana. Este é um mundo no qual a ética
neoliberal de intenso individualismo possessivo e a
correlata renúncia política a formas de ação coletiva
tornaram-se padrão para a socialização humana.
(HARVEY, 2012, p. 81)

Os moradores que participaram das atividades públicas não


identificavam no Projeto de Lei o atendimento às suas propostas.
Participantes nas audiências da academia e ativistas percebiam a lei
como hermética, seu texto não facilitava sua análise por parte da
sociedade e sem definição clara sobre muitos aspectos, deixando para o
futuro técnico, responsável pelos licenciamentos, a interpretação da lei
de acordo com seu juízo de valor.

8. Considerações finais

O formato adotado nas audiências públicas não atendia aos


anseios da população. ‘Em nome da democracia’, eram disponibilizados
apenas 3 minutos para que cada integrante da população pudesse se

197
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

manifestar. A participação popular era apenas um quesito a ser


preenchido, para dar prestação de contas junto ao Ministério Público,
caso houvesse alguma denúncia. As autoridades e seus técnicos, tinham
uma postura de hierarquia vertical do conhecimento onde achavam que
o saber técnico valia mais que o popular, além de estarem
permanentemente em uma postura defensiva. A função da ‘audiência’
não era ouvir os anseios da população, mas comunicar, ou convencê-la,
de um projeto que seria implementado, de qualquer maneira, sem
margem para flexibilização.
Onde a comunhão entre o Executivo e o Legislativo é total, a
participação popular é só o ‘molho’, o interstício, a dissimulação. A
gestão participativa é moda, é ‘bonita’ e vende. Apenas. Princípios da
gestão democrática como transparência, incentivo à participação
popular, a integração da gestão entre o poder público local e a população,
não foram observados.
Aquele foi o processo participativo possível naquela conjuntura
e com aquela correlação de forças, com o afinco e persistência dos
cidadãos, colocando suas demandas e aspirações, e que tal determinação
se sobreponha à derrota dessa batalha. No entanto deixou rastros onde a
participação em Pendotiba nas audiências públicas em 2017 da revisão
do Plano Diretor, foram ilustrativas do sucesso dessa gestão em
desestimular a população a participar.
Nenhuma das exigências judiciais foi cumprida. O diagnóstico
não foi aprofundado e o Projeto de Lei não foi submetido ao Compur.
Nenhuma demanda da população foi atendida. A prefeitura recorreu de
todas as decisões do MPRJ, e a Justiça liberou a tramitação do projeto.
O trâmite na Câmara continuou sem alterações até sua votação final.
Todas as tentativas de oposição a sua concretização, em prol das escolhas
dos moradores, falharam.
A direção para alguma mudança de curso verdadeira deverá partir
de baixo para cima da pirâmide econômico social, de dentro para fora
dos movimentos, da maioria da população para a minoria mais poderosa.
Nesta árdua tarefa, a informação, o esclarecimento, a conscientização, os

198
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

debates e o colocar os pingos nos "i"s assumem um papel relevante. O


valor, direto e indireto, que a sociedade niteroiense pagou, e ainda paga,
foi muito alto, para o exercício de ‘democracia’ limitada a interesses
particulares. Quem ganha com isso é o sistema subliminar e quase
invisível que aposta na retração da população na participação e no
controle social. Assim foi pretensão refletir e desvelar sobre as relações
de poder considerando processos de decisão em que a representatividade
da democracia parece comprometida com princípios um tanto
questionáveis.

9. Referências bibliográficas

AONO, Ruth. Quo Vadis Niterói: Entre o discurso e a prática da política


socioambiental. Dissertação (Mestrado em Urbanismo). Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
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BIENENSTEIN, Regina. Redesenho Urbanístico e Participação
Social em Processos de Regularização Fundiária. Tese (Doutorado).
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Cynthia; CAPUTO, Cláudia. Desafios da participação e controle
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LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Ed. Gallimard, 1970. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

199
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

MIZUBUTI, Satie. O movimento associativo de bairro em Niterói


(RJ). Tese (Doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
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SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado
mundial. 2ª ed. Chapecó: Argos, 2010.
SOUSA, Daniel Mendes Mesquita de. Limites e possibilidades das
operações Urbanas Consorciadas: Notas sobre o Caso da área Central
de Niterói (RJ). Dissertação (Mestrado em Urbanismo) Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, RJ. 2016.

200
RESSUSCITA SÃO GONÇALO: A LUTA POR MORADIA NA
OCUPAÇÃO ZUMBI DOS PALMARES DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES SEM-TETO

Camila Barros Moraes 1

Falando da minha dissertação, a minha pesquisa ela surgiu


através de um projeto de extensão que eu participo que é vinculado ao
núcleo de pesquisa, que é o NEPFE (Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Favelas e Espaços Populares), e vinculado ao NEPFE a gente tem
um projeto de extensão com movimentos sociais, questão urbana e
direito à cidade. A partir desse projeto de extensão, eu tive acesso à
primeira ocupação do MTST, uma das primeiras ocupações do MTST
que deu certo aqui no Rio de Janeiro, que foi lá em São Gonçalo. Até
então, a minha pesquisa dentro da graduação sempre foi voltada pra
questão racial, e aí a questão racial dentro da Universidade, discutir cotas
pra Universidades na graduação e tava seguindo nessa pesquisa para o
mestrado, só que eu moro em São Gonçalo, nasci em São Gonçalo, moro
em São Gonçalo até hoje e me deparei com uma ocupação em São
Gonçalo do MTST que reuniu em menos de dez dias cerca de mil
famílias, em Santa Luzia, lá no Jardim Catarina.
Eu que moro em São Gonçalo, isso é uma coisa que eu nunca
imaginei que fosse possível de acontecer. Quem conhece São Gonçalo
sabe que a cultura política de São Gonçalo é ligada ao clientelismo, ao
patrimonialismo, ao coronelismo até hoje. Então, aquilo foi uma coisa
que me impactou: ver uma ocupação liderada por um movimento social
nacional na minha cidade, que não tem essa cultura de movimentos

1
Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em
Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Desenvolvimento Regional da UFF. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora no
Núcleo de Ensino e Pesquisa sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE-UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

sociais, da participação das massas, principalmente, da população mais


pobre na luta política.
E eu falei: gente, não tenho mais como não discutir isso na minha
dissertação. Não vou ficar em paz se eu não falar disso. E dois meses
antes de qualificar eu mudei todo o meu projeto. Louca né?! Mas aí
mudei, e a primeira coisa que me impactou nessa ocupação, como eu já
tinha essa trajetória de discutir a questão racial, foi a quantidade de
pessoas negras na Ocupação. E, paralelo a isso, porque ninguém falava
disso, porque assim, você não precisa ser intelectual pra perceber que a
maioria daquelas pessoas ali são negras, é só você não ser cego, saber
enxergar, que você vai ver que a maioria daquelas pessoas naquele
território, a maioria das pessoas que estão lutando por moradia, a
população mais pobre além de ter uma classe, ela tem uma cor. Então, a
partir desse processo eu construí o meu objeto pra dissertação, que foi a
segregação socioespacial da população negra e suas implicações na luta
por moradia.
A partir das pesquisas, do levantamento bibliográfico,
articulando a questão racial com a questão urbana, a minha hipótese de
início era que essa segregação socioespacial da população negra
implicava diretamente na luta por moradia, especialmente na Ocupação
Zumbi dos Palmares, em São Gonçalo. Há alguns dados que a gente
conseguiu colher, porque foi uma pesquisa coletiva que a gente fez a
partir do núcleo. A gente aplicou 446 questionários na Ocupação Zumbi
dos Palmares. Como já foi falado, a gente entende que a moradia não é
só um teto, então a gente pra entender qual era o perfil daquelas famílias
que estavam na Ocupação, a gente aplicou um questionário que tinha
dados relacionados à questão de gênero, questão racial, a questão do
acesso à saúde, educação, mobilidade urbana e a partir desses dados, eu
fiz o recorte racial e o resultado desse dado foi a minha pesquisa da
dissertação.
No primeiro capítulo, eu trago a discussão de raça, racismo e
democracia racial. Então, vou trazer aí a história da democracia racial no
Brasil, de como foi construído o conceito de raça, hierarquização de raça,

202
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

e como foi construído o conceito de racismo e como que ele impera no


Brasil. Aí eu trago alguns dados que demonstram se de fato existe uma
democracia racial no Brasil, e aí dados variados, esses dados
relacionados ao Brasil. Dados relacionados à educação, moradia... o que
demonstra a partir dos dados que a população negra é a população mais
subalternizada que a gente tem. Em todos os dados estatísticos e em
todos os índices, é a população que não está nas universidades ou está
precariamente nas universidades públicas, é a população que menos tem
condição de moradia, é a população que tem altas taxas de analfabetismo,
é a população que tem menos condição de renda, trabalho, etc. Então eu
trago esses dados gerais do Brasil.
No capítulo dois, o meu objetivo foi articular a questão urbana
com a questão racial. E aí, os autores da geografia foram muito
importantes pra mim, essencialmente o professor Andrelino Campos, de
trazer esse debate do desenvolvimento desigual combinado e articulado
com o debate do desenvolvimento geográfico desigual, que traz o
Harvey, tanto os autores da geografia clássica quanto os mais recentes,
como Harvey e Lefebvre, foram importantes para esse meu capítulo que
faz essa articulação entre a questão urbana e a questão racial.
E aí no capítulo três, eu trago como foi de fato a luta do MTST
em São Gonçalo. E aí eu vou trazer um pouco da experiência da gente
enquanto projeto de extensão e o que eu trouxe pro meu trabalho. Então,
o MTST ocupou um terreno, realizando um trabalho de base em São
Gonçalo, porque entendeu que São Gonçalo era um município que tinha
um déficit habitacional absurdo e políticas habitacionais que não dão
conta de nenhuma forma desse déficit, então ocuparam um terreno de
60m² lá em São Gonçalo. E aí, as pessoas foram chegando nesse terreno,
em menos de dez dias a gente conseguiu mil famílias lá nesse terreno em
Santa Luzia, e nosso trabalho quanto projeto de extensão, em principio,
foi fazer o cadastro dessas pessoas.
Fizemos o cadastro dessas pessoas que estavam ali na ocupação
e depois a gente criou esse questionário que foi um diário de estudo com
vários dados, para entender qual foi o perfil dessas famílias que estavam

203
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

ali na ocupação. Corridos dez dias de Ocupação, e aí depois de muita luta


fizeram ato de uma prefeitura, articulação com o governo federal com a
prefeitura de São Gonçalo, e eu que moro em São Gonçalo fiquei com
vergonha porque a prefeitura de São Gonçalo eles não estavam
acostumados com isso, eles não sabiam dialogar com movimento social.
Eu lembro que teve um episódio que o movimento foi até a prefeitura
pra dialogar com a então subsecretária de habitação que teoricamente
deveria entender de habitação, e ela pediu pra eles voltarem num outro
momento porque ela tinha que pegar a legislação pra olhar porque ela
não entendia como funcionava o programa Minha Casa Minha Vida,
muito menos o programa Minha Casa Minha Vida na modalidade
entidades, que é a modalidade que o MTST utiliza nas suas vitórias por
moradia.
Enfim, eles conseguiram um acordo depois de muita luta com o
governo federal e a prefeitura de são Gonçalo pra construção de mil
unidades habitacionais pelo programa minha casa minha vida entidades.
E aí depois disso, de muita repressão porque veio a polícia e tacou fogo
no terror, etc, eles saíram do terreno. E aí o que é que faz com essas
famílias pra continuar mobilizando pra que de fato essas moradias sejam
construídas. Essas famílias foram divididas em três núcleos de base, que
ficava no Jardim Catarina, Santa Luzia e na favela do cano furado. Então
foi nesses três lugares que a gente ia pra poder aplicar esses
questionários. Ficamos por volta de três meses indo nesses territórios pra
fazer a aplicação desses questionários. Paralelo a isso, a gente passava
também nas assembleias do MTST que aconteciam mensalmente, porque
a luta do MTST vai além da moradia, é uma luta que articula a classe
trabalhadora no viés anticapitalista, então pra além da luta por moradia,
essas assembleias faziam construções políticas daquela conjuntura que a
gente tava vivendo. Então a gente participava dessas assembleias e ia
nesses territórios para aplicação desses questionários.
O resultado desse questionário desses trabalhadores da ocupação
Zumbi dos Palmares foi o que traça o perfil: maioria de mulheres 79%
são mulheres, 83% são negros e aí essa identificação da raça foi

204
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

interessante porque a gente coloca 83%, mas nosso questionário era uma
pergunta aberta, não era aquela classificação do IBGE, então a gente tem
uma variação de cores, desde moreninho, mulato, cor de jambo. Por um
viés estatístico, eu achei melhor classificar em negros e brancos, negros
incluindo aí pretos e pardos e essas variações todas. O que percebemos
é a dificuldade da autodeclaração. Então essa porcentagem
provavelmente é muito maior. Isso implica na gente pensar a importância
da gente colocar a pauta da questão racial dentro dos movimentos sociais
porque a maioria daquela população é negra e sofre racismo e por vezes
ela não consegue nem identificar esse racismo porque elas não se
entendem enquanto negras.
Então uma das questões que eu boto como desafio na minha
dissertação é a gente trazer esse debate da questão racial pra dentro dos
movimentos sociais também e de fazer essa discussão com essas pessoas
que sofrem cotidianamente com o racismo. Então voltando, 50% dessas
mulheres são solteiras, que interromperam os estudos porque precisavam
trabalhar ou por causa do nascimento dos filhos, e relacionado à saúde,
83% não tem plano de saúde particular ou empresarial e 89% necessitam
do SUS pra ter acesso à saúde. A gente apresentou esses dados no
primeiro encontro estadual de acampamentos do MTST do Rio de
Janeiro.
O MTST tem um jornal que é o formigueiro, que eles apresentam
a população, e a gente do NEPFE construiu junto com eles apresentando
esses dados de forma acessível pra que as pessoas pudessem entender.
Porque também eu particularmente acho complicado a gente entrar no
território, colher dados e não dar retorno nenhum. Então nosso objetivo
foi construir esse jornal junto com o movimento e dar esse retorno aos
trabalhadores, até para eles entenderem que a demanda que eles colocam
não é individual, mas sim coletiva. Como a mobilidade urbana, a gente
colocou que tem trabalhadores que levam mais de duas horas pra ir e
voltar do trabalho todos os dias. A dificuldade do acesso à saúde, do
acesso à creche porque as mulheres quando dizem que teve que parar de
trabalhar pra cuidar dos filhos, isso significa que a gente não tem creche,

205
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

que o Estado não dá conta de acolher essas crianças para que as mulheres
consigam dar conta de suas condições de trabalho, etc.
Quem quiser colher mais esses dados, é só procurar a minha
dissertação, que tem esse recorte racial da Ocupação Zumbi dos palmares
e da ocupação 6 de abril, que aconteceu em São Gonçalo, inclusive a
gente tem uma outra ocupação do MTST que está acontecendo
atualmente em Niteroi, que ela é um reflexo da ocupação 6 de abril e da
Zumbi dos palmares, que até hoje a gente não viu nenhum tijolo. Então
essa ocupação que tá acontecendo hoje é um reflexo da falta de
compromisso tanto dos governos municipais como do governo federal
que acabou com o Minha Casa Minha Vida na modalidade entidades.
Então é isso, quem quiser saber mais, a gente conversa.

Debates
Plateia (01): Então, não é uma pergunta, é mais uma contribuição
mesmo, um comentário. A Cynthia falou da preocupação de uma
Universidade que tá pra além dos muros, que a gente tenha uma
experiência na universidade que esteja comprometida com a cidade. E
eu acho que tem muito a ver com a fala da Camila nesse sentido né, eu
faço parte do mesmo Núcleo de pesquisa que a Camila e essa experiência
no MTST é uma experiência que dá frutos numa dissertação da Camila,
mas que é um trabalho que a gente tem uma preocupação de voltar pra
população e eu acho que a gente tem sido muito feliz com as experiências
de extensão. Acho que a gente tem conseguido construir praticas dentro
da universidade que estejam a serviço da comunidade e a gente começar
a refletir sobre os lugares que a gente vive. A Camila fala de uma cidade
em que ela vive que não tem experiência nenhuma política, como a
cidade que ela teve contato com o MTST e o quanto a extensão é
importante nesse sentido. Da gente não pensar no espaço só como
pesquisador, mas da gente pensar no espaço como uma experiência em
que a gente ta refletindo sobre o nosso lugar de vida. Acho que a pesquisa
e a extensão, muito no núcleo que eu faço parte é muito forte na vida dos
alunos, eu começo a pensar no lugar que eu tô na cidade depois da

206
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pesquisa e da extensão. Então eu acho que NEPHU também é um espaço


que possibilita esse tipo de experiência e eu acho que eu vi muito isso na
fala da Camila e eu acho que tem muito a ver com isso que você falou
sobre que tipo de experiência na universidade que a gente constrói, pra
pensar uma cidade diferente.
Plateia (02): No NEPHU agora estamos com um novo projeto inclusive
junto com NEPFE, o Direito e a Comunicação, que é justamente
trabalhar junto com as comunidades que chegam ao NEPHU. São
pequenas sementinhas que são colocadas e realmente está havendo uma
procura cada vez maior da população. E isso é muito grave, porque a
gente vê o quanto precisar ser ampliado. O que a gente vê em Pendotiba
é um desastre, porque a gente vê que em 2017 quando aconteceu várias
audiências preparatórias ainda do diagnóstico para a revisão do plano
diretor, aquela população desapareceu. Porque havia toda uma
construção do poder público no sentido de não atender aquelas pessoas.
Aquelas pessoas tinham se esforçado, construído documentos,
participado, tinha sido um esforço pra aquela população e na hora em
que elas veem todo seu esforço levado a nada porque não tem uma
flexibilização, é negado total. Aquela população desaparece, ela não quer
participar de novo. Então a gente vê o quanto que isso se alastra. Então
assim, o trabalho que a gente vem fazendo junto com o NEPHU, é um
trabalho de formiguinha mesmo, porque é você ir ali de comunidade em
comunidade, as pessoas não aparecem. É difícil, mas é se manter na luta
Não pode desistir não.
Camila Barros Moraes: Hoje a gente tá numa conjuntura em que a
gente tem muitas limitações porque a principal ferramenta, falando
institucionalmente, a principal ferramenta que o MTST tinha na
construção das moradias era o programa Minha Casa Minha Vida
entidades, e o programa praticamente acabou, então é uma das principais
limitações que a gente tem falando institucionalmente. Era a principal
ferramenta que a gente tinha e a gente não tem mais. Uma outra limitação
que a gente tem hoje é a própria conjuntura política e a dificuldade no
trabalho de base porque o MTST ele sobrevive por conta da sua base,

207
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

que são os trabalhadores mais pobres, porque com essa conjuntura que
hoje tá desse jeito e amanhã a gente não sabe o que vai acontecer, com
esse avanço do conservadorismo, a gente tem cada vez mais dificuldade
em estabelecer uma base hegemônica no movimento. Acho que são as
principais dificuldades do MTST.
Plateia (03): Sobre a questão de Pendotiba, eu acho que vale como a
gente como técnico dar uma boa solução técnica para aquele espaço
urbano, sem que você negue voz a população. Você falou do
espraiamento, o espraiamento vem sendo criticado desde a década de 60,
você tem bons autores discutindo sobre a questão urbana na cidade e
sobre como as cidades espraiadas causam um problema de subutilização
da infraestrutura urbana e isso sai caro e todo mundo vai pagar porque
alguém quer morar muito longe e a água vai ter que chegar lá, o
transporte, há também um uso excessivo do carro porque a pessoa mora
longe a gente não tem bons transportes públicos, e aí a gente tem todo
um foco de usar o carro. Acho que uma das questões é como você
consegue mostrar pra população que de repente não é a melhor solução
sem que você esteja negando a ela a voz porque também não funciona
fingir que ta sendo participativo e ouvir a pessoa e ela falar que não
gostou e você fingir que nada acontece, que é o que acontece em 90%
dos processos participativos do país, que você faz uma audiência publica,
finge que foi participativo e faz aquilo que já queria ter sido feito mesmo.
Plateia (04): Eu acho que essa questão do espraiamento é uma coisa
muita interessante e eu acho que como arquiteta eu sempre parti do
principio que o cliente tem sempre razão. E a gente vive numa sociedade
capitalista que o dinheiro rege. Então o custo da infraestrutura passa a
ser determinante ao invés do desejo da população de morar de uma
determinada maneira. Então eu acho que a questão da infraestrutura de
saneamento é uma coisa mais grave que não tem muita saída, mas a
mobilidade tem saída. No caso de Pendotiba, por exemplo, que é entre
dois morros, você poderia ter ali um transporte de alta capacidade e
algum sistema que possibilitasse as pessoas não precisarem ir até o Largo
da Batalha pra descer pra Niterói. Há soluções sim só que não interessa

208
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

porque o espraiamento não interessa pro mercado imobiliário, porque


são poucas pessoas morando num espaço muito grande. Então o capital
imobiliário, a ele interessa. Então a gente tem que ter muito cuidado
nessa questão do custo porque tem um uso capcioso disso. Na realidade,
o que tá se querendo é construir o maior número de unidades na menor
área possível. São duas medidas usadas, ele usa uma coisa com outro
fim, então eu não sei se a gente tem que ter uma cidade em que tudo tem
que ser igual, afinal nós somos diferentes. Aqui temos três pessoas, cada
uma vai ter um gosto diferente. Eu não quero morar numa cidade igual,
as pessoas são diferentes, cada uma escolheu diferente. As pessoas foram
pra Pendotiba por uma determinada circunstancia e agora sou eu quem
vou dizer que tá morando errado? Eu acho que é uma pretensão que eu
acho que não é técnica, mas o mercado imobiliário coloca como técnica
como quer que tudo seja feito daquela determinada maneira.

209

ESTADO, TERRITÓRIO E COTIDIANO NO COMPLEXO DE
FAVELAS DA MARÉ

Eblin Farage 39

O trabalho desenvolvido pela pesquisa de doutorado teve como


eixo central o estudo e a análise de diferentes condicionantes que
produzem o território da favela atrelados a um processo de
apassivamento dos moradores. O objeto da pesquisa: a constituição do
território da favela como parte do processo de desenvolvimento desigual
e combinado do capitalismo, a intervenção do Estado através de políticas
públicas e as contradições do cotidiano desmistificando a aparente
“ausência” do Estado e as interpretações homogenizadores , 40

estigmatizadas e estereotipadas sobre o território e seus moradores.


Outra hipótese que norteou a pesquisa, é que as representações

39
Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense (UFF).Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e
Espaços Populares (NEPFE).
40
Por décadas as favelas foram consideradas de forma homogênea em especial no que
tange a sua conformação espacial, definida quase sempre como espaços íngremes, de
residências precárias e ausência de serviços públicos. A despeito da representação
construída e da pretensa homogeneidade, as favelas cariocas se caracterizam por sua
complexidade e diversidade, tanto internamente, como no complexo de favelas da
Maré como entre as diferentes favelas do Rio de Janeiro. Sua singularidade se dá pela
diferenciação em investimentos públicos, pela conformação espacial, pela
composição dos moradores (com origem distinta), pelas diferentes formas de
trabalho, consumo, lazer etc. Até 1950 o poder público, pela ausência de pesquisas
sobre as favelas, caracterizou esses territórios de forma homogênea, o que se reflete
na definição de favela do Censo do IBGE de 1950. Apesar de ser ter avançado nas
pesquisas e compreensões sobre esses territórios, ainda hoje o poder público continua
a definir as favelas pela negatividade e com base na homogeneização dos territórios
como demonstra a definição do Censo IBGE 2010.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

estigmatizadas construídas pelos moradores dos outros territórios da


cidade e, pelos agentes do Estado sobre a favela produzem uma ação de
baixa qualidade no que tange as políticas públicas enfatizando o
apartamento social entre os diferentes territórios da cidade.
Representações que são construídas a partir de uma visão limitada e
parcial que se tem sobre a vida cotidiana nas favelas, em que a violência
e o caos se sobrepõem à realidade do trabalho, da mobilização coletiva e
da organização comunitária dos trabalhadores residentes na favela.
Partilhando da análise de que a cidade é fruto da lógica do
desenvolvimento capitalista desigual e combinado e que a sociedade é
dividida em classes, tendo na propriedade privada o centro da
manutenção do poder e da segregação social, compreende-se como
importante para explicar a lógica cotidiana construída na favela o estudo
das diferentes dimensões da vida cotidiana.
Para Silva e Barbosa (2005), as favelas são vistas como espaço
da ausência, da precariedade e da falta de recursos. Nesse sentido
passam a ser consideradas uma “cidade” à parte da cidade formal. Um
espaço que se constitui com regras próprias, no qual o Estado não pode
intervir. Considerada pelo senso comum como espaço da prostituição, da
vagabundagem, da malandragem e da desordem, seus moradores acabam
sendo colocados em uma posição de não-sujeitos e não-cidadãos . 41

Essa imagem construída histórica e culturalmente sobre as


favelas cariocas, contribui para a reprodução de estigmas e estereótipos
que acabam por afastar seus moradores das oportunidades, serviços e
direitos que a cidade oferece aos seus habitantes. Como afirma Paulo
Lins, no prefácio do livro “Favela- alegria e dor na cidade”, de Silva e
Barbosa (2005), “A favela sofre, ainda, os mesmos males e preconceitos
presentes desde a época de seu aparecimento no jogo político de uma
sociedade outrora escravista e, agora, racista e egoísta”
Buscar compreender alguns aspectos da vida cotidiana na favela

41
Entendendo como Cidadão o ser da cidade, da polis, que pode usufruir de todos os
espaços, serviços e direitos.

212
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

se colocou como central no presente trabalho, como forma de superar


visões homogeneizadoras sobre esses territórios e sobre seus moradores.
O aprofundamento do cotidiano da favela representa a tentativa de dar
visibilidade às contradições e ao movimento presente nas relações
sociais aí desenvolvidas. A busca pelo desvelamento das relações sociais
e dos sentidos produzidos na vida da favela nos aproxima do universo de
representações e dimensões dos segmentos da classe trabalhadora aí
residente.
Entende-se que as favelas, historicamente consideradas e por
vezes estudadas, como se fossem, homogêneas - apesar de expressarem
as múltiplas determinações do desenvolvimento capitalista, - guardam
singularidades, características da particularidade da formação de cada
território na cidade do Rio de Janeiro.
Buscou-se com o estudo sobre as formas de organização do
cotidiano da favela da Maré, compreender as relações sociais que aí se
expressam, tendo como referência a forma de organização da cidade a
partir do processo de desenvolvimento capitalista desigual e combinado
(HARVEY, 2004). Nesta perspectiva o estudo busca as conexões
existentes entre o desenvolvimento capitalista e sua materialização no
espaço intra-urbano, considerando a heterogeneidade da constituição do
42

território e de sua população.


Assim como Lefebvre (1983), o cotidiano é compreendido como
o espaço de interação entre as determinações das relações sociais e os
sentidos atribuídos pelos sujeitos reais à vida, materializando-se em um
movimento de contradições.

42
Segundo Valladares (2005), a favela foi considerada pela primeira vez em sua
heterogeneidade, a partir do estudo desenvolvido pela Sociedade de Análises Gráficas
e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), realizado no final
da década de 1950 e publicada pelo jornal O Estado de São Paulo em 1960, intitulado
“Aspectos humanos da favela carioca”. Até essa década todas as ocupações
irregulares eram consideradas exatamente iguais e com as mesmas necessidades,
desconsiderando os distintos processos de ocupação dos territórios da cidade e as
especificidades da população.

213
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

O cotidiano dos segmentos da classe trabalhadora residentes na


favela se materializa em um território, considerado não apenas como
espaço geográfico e físico, mas, sobretudo como espaço de múltiplas
determinações em que diferentes sujeitos constroem e reconstroem seu
cotidiano. O território é compreendido como locos da intervenção
estatal, da ação dos grupos criminosos armados e da ação de diferentes
instituições assistencialistas e populistas que contribuem na construção
das relações sociais locais, assim como produto da ação de seus
moradores. Entende-se o território da favela como local de moradia de
segmentos da classe trabalhadora histórica e socialmente subalternizado.
Segundo Haesbaert (2006, p. 16), o território é analisado em uma
perspectiva “intrinsecamente integradora, que vê a territorialização
como o processo de domínio (político-econômico) e\ou de apropriação
(simbólico-cultural) do espaço pelos grupos humanos”. Nesse sentido o
território é ao mesmo tempo produto e produtor das relações sociais,
expressando contradições, disputas, tensões e resistências.
O território da favela é compreendido não como expressão
natural da organização social, mas como produto do desenvolvimento
desigual e combinado do capital, sendo ao mesmo tempo expressão das
relações produtivas desiguais e também produto das relações sociais
locais.
Para o desvelamento das múltiplas dimensões do território se fez
necessário analisar a multiplicidade de grupos e sentidos produzidos
nesse espaço. Busca-se identificar a diversidade presente na dinâmica
cotidiana dos segmentos humanos, dos grupos e das instituições que
constituem a favela a partir da identificação de elementos que forjam e
são forjados no cotidiano dos moradores.
Identificou-se no espaço da favela a constituição de ações
públicas que se caracterizam por sua baixa qualidade, relegando aos
moradores desse território a condição de cidadãos de segunda categoria,
marginalizados e criminalizados pelo imaginário homogeneizado
construído sobre o cotidiano. O estudo do cotidiano da favela contribui
para a compreensão da materialização das relações sociais e para

214
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

visibilizar as expressões da questão social presentes como forma de


contribuir para a negação da homogeneização que coloca todos os
moradores de favela na condição de criminosos ou de potencialmente
criminosos.
Forja-se um determinado olhar sobre os moradores da favela, que
permeia a forma como o poder público intervém nesse território e
também a forma como os sujeitos dos demais territórios da cidade
percebem a favela. A visão construída sobre os moradores das favelas
acaba, por vezes, sendo internalizada pelos próprios moradores, que
incorporam estigmas e estereótipos, não se considerando sujeitos de
direitos.
No caminho dessa reflexão a compreensão sobre o Estado e sua
função na conformação urbana é central para analisar a conformação da
cidade em distintos territórios. O Estado e seus aparelhos privados de
hegemonia vão conformando o território e o espaço da favela. Segundo
Corrêa (1995, p. 6), o espaço deve ser compreendido “como forma
espacial em suas conexões com a estrutura social, processos e funções
urbanos”, sendo ainda considerado como um “paradigma de consenso e
de conflito”.
Para Gramsci o Estado em seu sentido ampliado é formado pela
“sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção” (GRAMSCI, 2001, v. 2, p. 244-245). Nesse caminho de
reflexão busca-se identificar e desvelar as distintas formas construídas
pelo Estado e pelos aparelhos privados de hegemonia para manutenção
de um determinado ordenamento passivizado dos trabalhadores no
território da favela.
A intervenção estatal no território da favela se efetiva como mais
uma forma de subalternização dos moradores desse território em relação
aos trabalhadores e moradores de outros territórios da cidade. Reforçam-
se estigmas e estereótipos histórica e socialmente construídos, que
contribuem para a estratificação social e “justificam” uma intervenção
diferenciada do poder público. Os moradores da favela passam a ser
considerados pela forma como o poder público direciona as políticas

215
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

públicas nesse espaço, como cidadãos de segunda categoria, para os


quais são designadas políticas sociais focalizadas, fragmentadas e
assistencialistas de baixa qualidade e eficácia.
No processo de conformação da cidade o Estado exerce
importante função no atendimento dos interesses do desenvolvimento
produtivo capitalista, segundo exigências da industrialização e da
urbanização e quando necessário, atendendo a algumas das demandas
dos trabalhadores, necessárias a sua manutenção como força de trabalho
e consumidores por exigência da dinâmica capitalista.
Nesse processo se constituem territórios distintos na cidade e a
intervenção do Estado se dá a partir do processo político hegemônico,
priorizando os interesses da classe que domina economicamente a partir
do exercício da coerção e do consenso na conformação da classe
trabalhadora. Nesse processo as favelas se impõem ao espaço urbano
carioca como o espaço de moradia da classe trabalhadora exigindo do
Estado intervenções públicas que ao mesmo em tempo que buscam o
apassivamento e também garantem alguns direitos, impulsionados pela
organização dos trabalhadores.
No território das favelas a regulação não se dá da mesma forma
como nos demais territórios da cidade, aparentando uma ausência do
Estado, o que é refutado nessa tese, por considerar, que assim como a
Maré, nas favelas cariocas, o poder público de faz presente com
equipamentos como escolas, postos de saúde, segurança pública etc.
Ressalta-se que a ação dos agentes do Estado e dos moradores dos
demais territórios da cidade baseia-se em visões estereotipadas e
estigmatizadoras reproduzidas pela mídia, quando só mostram as favelas
nos momentos de conflito armado, de morte e fechamento de vias
expressas, reproduzindo preconceitos, medo e agravando o
distanciamento social.
O cotidiano da favela é revelador da aparente “ausência” do
Estado como regulador do território. Os espaços públicos da favela são
apropriados privadamente. Várias são as situações que retratam a
privatização dos espaços da favela. A título de ilustração dessa relação

216
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pode ser citada a ocupação do coreto da Praça Pública da comunidade da


Nova Holanda por uma igreja evangélica, a partir da autorização do
responsável pelo tráfico de drogas local. A referida igreja colocou bancos
de igreja no coreto e um portão para impedir a sua utilização fora dos
horários dos cultos. Outro exemplo é a pintura de passagens bíblicas no
muro da Escola Municipal Nova Holanda, determinada pelo então
responsável do tráfico de drogas na comunidade, com a anuência das
igrejas evangélicas.
Muitas outras situações ilustram a relação entre a esfera pública
e privada estabelecida no cotidiano da favela, como a ocupação das ruas
por sucatas de carros que foram roubados e depenados; a ocupação das
calçadas públicas por lojas e camelôs; o fechamento cotidiano de ruas
por brinquedos infantis privados; o fechamento de ruas para a realização
de baile funk; a ocupação do território por grupos juvenis fortemente
armados, etc.
Como exemplo do efeito não regulador do Estado, temos além do
domínio territorial por outros grupos, situações vinculadas diretamente
aos direitos sociais, que acabam por ser negados. Neste âmbito podemos
destacar como ilustrativo da negação de direitos o fato do horário das
escolas públicas da Maré ser reduzido em relação ao horário estipulado
pela Secretaria de Educação do município. Também é revelador dessa
lógica a não abertura das escolas no horário noturno, dificultando o
ensino médio e o ensino de jovens e adultos, assim como a retirada dos
equipamentos públicos de assistência social das favelas sob a
justificativa de falta de segurança do território.
Entendemos que a intervenção de baixa qualidade do Estado,
assim como o não cumprimento de sua função reguladora, acaba
possibilitando o surgimento de grupos que buscam organizar o espaço a
partir de uma lógica particular e privatista, contribuindo na conformação
do cotidiano nesse território.
Tendo em vista a complexidade das relações sociais que
produzem os diferentes territórios da cidade, negando o discurso da
cidade partida e da ausência do Estado no território da favela, se faz

217
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

necessário afirmar o que entende-se por favela. Nesta tese o conceito


norteador para a análise são os elementos apresentados pelo
Observatório de Favelas na caracterização da favela, afirmando esse
43

espaço pelo que é e expressa na conformação urbana.

1. Considerando o perfil sociopolítico, a favela é um


território onde a incompletude de políticas e de ações do
Estado se fazem historicamente recorrentes [...] sem
garantias de efetivação de direitos sociais, fato que vem
implicando a baixa expectativa desses mesmos direitos por
parte de seus moradores.
2. Considerando o perfil socioeconômico, a favela é
um território onde os investimentos do mercado formal são
precários, principalmente o imobiliário, o financeiro e o de
serviços [...]. Há, portanto, distâncias socioeconômicas
consideráveis quando se trata da qualificação do
tempo\espaço particular às favelas e o das condições
presentes na cidade como um todo.
3. Considerando o perfil sócio-urbanístico, a favela é
um território de edificações predominantemente
caracterizadas pela autoconstrução. Sem obediência aos
padrões urbanos normativos do estado [...]. A favela
significa uma morada urbana que resume as condições
desiguais da urbanização brasileira e, ao mesmo tempo, a
luta de cidadãos pelo legítimo direito de habitar a cidade.
4. Considerando o perfil sociocultural, a favela é um
território de expressiva presença de negros (pardos e
pretos) e descendentes de indígenas, de acordo com região
brasileira, configurando identidades plurais no plano da
existência material e simbólica [...]. Superando os

43
Organização não governamental, criada em 2001, com sede na Maré e atuação
nacional. Caracteriza-se por ser “uma organização social de pesquisa, consultoria e
ação pública dedicada à produção do conhecimento e de proposições políticas sobre
as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório busca afirmar uma agenda de
Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito
das políticas públicas”. (Disponível em www.observatoriodefavelas.org.br, acessado
em 19 de fevereiro de 2012).

218
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

estigmas de territórios violentos e miseráveis, a favela se


apresenta com a riqueza da sua pluralidade de
convivências de sujeitos sociais em suas diferenças
culturais, simbólicas e humanas. (SILVA, BARBOSA,
BITETI E FERNANDES, 2009, p. 96-97).

Considerando esses elementos a pesquisa desenvolveu seu


trajeto, buscando analisar a conformação do espaço urbano da cidade do
Rio de Janeiro, tendo como foco de análise a complexa conformação
histórica, social, econômica, política e cultural do Complexo de Favelas
da Maré, formado por 16 comunidades, com população aproximada de
130 mil habitantes, sendo considerado um dos maiores complexos de
favelas do Rio de Janeiro e do Brasil.
Buscou compreender a constituição do espaço urbano a partir das
exigências do desenvolvimento industrial e a conformação das classes
em distintos territórios, entendendo a favela como espaço de moradia de
segmentos da classe trabalhadora que mesmo com direitos limitados
criam e recriam o cotidiano na cidade.

Bibliografia

CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Editora


Ática, 1995.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volumes 1 a 6. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001.
HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Editora Loyola,
2004.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do "fim dos
territórios" a multiterritorialização. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 2006
LEFEBVRE, Henri. La presencia y la ausencia: contribución a la teoria
de las representaciones. Cidade do México: Fondo de Cultura
Econômica, 1983.
SILVA, Jailson de Souza; BARBOSA, Jorge Luiz. Favela: alegria e dor

219
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

na cidade. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, X Brasil, 2005.


VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de
origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

220
VIDIGAL VIP S.A.: SEGREGAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO
PACIFICADA NUMA FAVELA DO RIO DE JANEIRO

Nathalia Carlos 44

Bom, gente, boa tarde a todas e todos. Queria parabenizar à


organização do seminário, enfim, a pessoa do Enzo, principalmente a
professora Regina, que é uma grande referência pra nós. Enfim,
agradecer à oportunidade de vir aqui dividir. Eu acho que dissertação e
tese são processos assim muito solitários, né, então quando a gente tem
a oportunidade de dividir então é uma honra ter a oportunidade da
interlocução com vocês. Quero agradecer muito já de pronto a atenção.
E aí, eu queria começar rendendo homenagem a um grande
mestre que, infelizmente, no domingo, deixou de estar entre nós, que é o
professor Andrelino Campos, um dos maiores geógrafos desse país. E,
pra mim, assim, um intelectual que foi determinante na minha formação.
Quando eu li o livro do Andrelino, “Do Quilombo à Favela”, lá em 2010,
mudou toda a direção na minha vida e nos meus estudos. E, depois, tive
a honra de conhecê-lo pessoalmente através do NEPFE, que é o núcleo
que eu faço parte. Então, eu não poderia deixar de mencionar essa grande
perda e de dizer que, com certeza, nesses debates, nesse Seminário, toda
a riqueza que vem sendo debatida aqui, o Andrelino se faz presente como
o intelectual que pensava muito a questão urbana e das favelas.
Bom, e aí, assim, me apresentando, pra localizar um pouco meu
local de fala sobre esse tema. Eu já vinha estudando as favelas e a questão
urbana desde a graduação em Serviço Social, aqui na UFF. E aí, eu fui
trabalhar no Rio e nessas de procurar um lugar para morar no Rio, eu fui
parar na favela do Vidigal, que eu mal conhecia. Na verdade, eu nunca
tinha pisado, conheci no dia que me mudei. Eu já tava pretendendo
continuar os estudos sobre favela através do mestrado, quando ingressei

44
Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares
(NEPFE-UFF) e militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

no mestrado, aqui também na UFF, no Serviço Social, eu pensava em


outro objeto, mas com o cotidiano do Vidigal eu fui muito atravessada
por aquele cotidiano e comecei então a me debruçar e compreender o
processo de transformação acelerada, que está em curso naquela favela.
E aí, então, eu vou tentar trazer aqui, compartilhar com vocês
alguns elementos que eu recolhi nesses estudos e, enfim, espero que eu
consiga dividir com vocês, porque são muitos elementos que a gente vai
encontrando na pesquisa.
Bom, gente, eu iniciei tendo como um ponto de partida a
perspectiva de compreender a produção do espaço urbano e de como ela
é um elemento balizar, fundamental para a reprodução do capitalismo.
Então, gente, eu parto dessa compreensão para pensar que a urbanização
sendo esse elemento balizar do capitalismo, ela também se atualiza
conforme o capitalismo vai em suas distintas etapas.
Bom, como a gente vive uma etapa, uma conjuntura de crise no
capitalismo,a questão urbana e a urbanização vão vir atender à essa
conjuntura. Então, respaldada enfim por diversos autores, mas
principalmente pelo David Harvey, eu vou partir da compreensão de que
na atual etapa, que é uma conjuntura de crise no capitalismo, a questão
urbana é utilizada para administrar essa crise. Então, a forma de gerir o
urbano, vai ser uma forma de gerir a crise.
Isso é, do meu ponto de vista uma chave importante de
compreensão para quando chegar lá, no Vidigal, a gente compreender
que o que acontece no Vidigal não é um fenômeno isolado, mas que
encontra paralelo em várias partes do mundo, porque são fenômenos
globais.Óbvio, com particularidades que dizem respeito à formação
social de cada país, de cada cidade, de cada território. Mas que, no
entanto, são processos globais, que tem a ver com aquilo que a professora
Nafone costuma chamar de “dinâmica espacial de reestruturação
produtiva”.
Bom, e aí também respaldado na professora Nafone, no grupo
que ela coordena no GESP, eu trago pra minha pesquisa a noção de
urbano como negócio que vai me chamar atenção pro novo papel que a

222
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

produção do espaço, da cidade e do urbano têm na reprodução do capital


na atualidade. Essa perspectiva ela vai nos dizer que mais do que a cidade
oferecer as condições pra reprodução do capital, hoje, a própria
construção/reconstrução da cidade é fundamental como uma forma de
força produtiva mesmo do capital. Em outras palavras, o que eles estão
chamando a nossa atenção é que a cidade não é mais apenas um lugar
onde é construída a indústria, a estrutura de circulação de mercadorias,
mas também que a própria construção civil, o mercado imobiliário e a
indústria de turismo são hoje muito determinantes na atual fase do
capitalismo.
Então ela chama atenção, ela, enfim, e outros autores com a
Raquel Rolnik para essa relação muito imbricada entre a questão urbana
e a atual etapa de financeirização do capital, como essa etapa de
financeirização acirra os processos urbanos e também,obviamente, por
se tratar das contradições dessa sociedade, ela também faz aí emergir luta
de classes.
O colega que estava na mesa anterior mencionou o MTST, que é
um movimento que eu construo, Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra, é um movimento, hoje, o maior movimento social do Brasil, um
dos maiores da América Latina. Eu tenho chamado atenção que é isso,
né, se o capital avança sobre as cidades, também avançam as lutas sociais
para criar esse embate, essa resistência.
Bom, e aí assim, tentando não ficar muito nessa perspectiva
teórica mais ampla, eu queria chamar atenção para esses dois elementos:
o mercado imobiliário e a indústria de turismo.São hoje dois filões,
digamos assim, do capitalismo, fundamentais, inclusive, para dar conta
do sistema de financeirização. Porque o mercado imobiliário é altamente
financeirizado, então, ele é altamente funcional à essa etapa que a gente
vive. Então, a produção do espaço, como produto imobiliário ela torna-
se um poderoso setor da economia que, inclusive, reforça a tendência da
apropriação do espaço como mercadoria e avigora o elemento basilar do
capitalismo que é a propriedade privada.

223
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

No entanto, esses ganhos que o mercado imobiliário pretende


conquistar eles dependem de infraestruturas urbanas que são
construídas, tocadas pelo Estado. Então, esse é um outro elemento que
eu destacaria que é o papel do Estado.Para que o capital imobiliário
financeiro possa explorar, dominar a cidade, é fundamental que o Estado
esteja a serviço dessa dominação. Então, o Estado ele também se coloca
como um braço dessa dominação. Tanto quando ele constrói essa
infraestrutura em determinado lugar para valorizar o terreno daquela
grande especuladora imobiliária, ou mesmo quando ele constrói, por
exemplo, como a UPP, que vai fazer com que o espaço sofra uma
valorização, que eu pretendo problematizar, que atende aos interesses do
mercado imobiliário e da indústria de turismo.
Então, eu acho que vale retomar também o que já foi colocado
aqui pela mesa. Mas pra gente pensar essa relação da atual etapa do
capital com as questões urbanas, como o “Minha Casa, Minha Vida” foi
uma política pública, óbvio, uma das maiores políticas habitacionais do
país, a gente não está aqui para negar o quanto essa política pública
representou avanços. No entanto, o quanto ela foi contraditória e serviu
para atender aos interesses, não só do mercado imobiliário, mas também
do setor de construção civil. Que foram, como bem colocado aqui, os
maiores beneficiários dessa política pública. Assim, como o Programa
de Aceleração do Crescimento.
São esses programas que a gente conhece muito bem foram
implementados no Brasil, mas que encontram paralelo em outros lugares
do mundo porque essa é a tônica. Esse tipo de programa não é pra
resolver o problema da moradia, ou o problema de infraestrutura pesada,
mas sim pra atender os interesses do capital e administrar sua crise
estrutural.
Bom, e aí eu falava um pouco sobre o mercado imobiliário, mas
a indústria de turismo a gente não pode perder de vista que ela é também
fundamental nessa perspectiva da cidade como um negócio. Porque ela
é, através dela, na verdade, é articulada a financeirização e a produção
imobiliária. A atividade econômica do turismo urbano é uma nova

224
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

fronteira de mercantilização e consumo do espaço. E esse é um elemento


que ganha destaque quando a gente analisa a favela do Vidigal. Também
pretendo problematizar um pouco isso. Se der tempo, né? Eu vou
jogando pra frente.
Bom, destacado esses dois atores, digamos assim, fundamentais,
que é o mercado imobiliário e a indústria de turismo e destacado o papel
de Estado a serviço desses processos, eu avançaria pra gente pensar,
então, como esses processos estão se dando no Rio de Janeiro, já mirando
aí nessa materialização na favela do Vidigal.
Eu não sei quantos aqui conhecem a favela do Vidigal. Ninguém
conhece? Já foram ou conhecem pela televisão? Já foram, né, pois é,
porque o Vidigal é um espaço turístico, hoje, na cidade do Rio de Janeiro.
Óbvio, não estou dizendo que todos foram por turismo, mas ele é muito
conhecido, muito veiculado, aparece com frequência na televisão.
É isso que eu, uma das hipóteses que, assim, eu busquei sustentar
no meu trabalho, é que o Vidigal, por se tratar de uma favela, é periferia.
Porque, afinal de contas, o desenvolvimento da cidade é desigual e
combinado, então, a gente sempre vai ter centro e periferia. E aí o Vidigal
dentro da Zona Sul é periferia, fundamental pra que toda a Zonal Sul,
toda sua estrutura, todo seu IDH funcione.
No entanto, o Vidigal guarda uma centralidade na cidade porque
ele está incrustado, na cidade, na região com maior IDH, na região mais
valorizada imobiliariamente e turisticamente. Pra quem não sabe o
Vidigal fica num morro na beira do mar, perto do Leblon, antes de São
Conrado, próximo à Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, Ipanema. Ou seja,
aquela região que detém a maior estrutura urbana do Rio de Janeiro, mas
que também é a área mais valorizada e sobre o território onde sobrecaem
os interesses do capital.
Então, o Rio de Janeiro, a gente sabe, passou por um ciclo de
reestruturação urbana, digamos assim, que criou uma série de estratégias
de valorização imobiliária e também de atrativos turísticos. O período
anterior foi um período de declínio, e nesse período de declínio, a questão
da segurança pública ela foi determinante. Então, sobretudo pro turismo,

225
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

a baixa, o declínio foi muito pautado pela construção do medo, da


sensação de falta de segurança. Que, óbvio, tem materialidade, mas
também é muito construída pela mídia. Afinal o medo vende, o medo
vende segurança, vende condomínios fechados que oferecem segurança,
o medo vende.
Para conseguir reverter o ciclo de declínio do turismo e
imobiliário daquela região, o Estado precisava construir uma
infraestrutura. Eu diria, nesse sentido, que a UPP foi o braço de reverter
o ciclo de declínio e criar um novo ciclo de expansão do capital na
cidade. Que é esse modelo de expansão que a gente já sabe, tá
conhecendo bem, que é esse modelo de cidade empresa, de
empresariamento urbano, que requer a criação de novas estratégias de
aproveitamento do espaço, de criação de novos usos. Então, criar novos
usos pra determinadas áreas é fundamental para esse giro do capital.
Então, a gente precisa que o Vidigal deixe de ser aquele território que
marca a segregação socioespacial, mas que também, sobretudo, a
segregação racial que marca a formação dessa cidade. Mas a gente
precisa tirar aquelas pessoas dali, e fazer daquela área uma área pro
capital explorar.
E aí, falando um pouco desse lugar, e de como o Vidigal se torna
atrativo, eu trago aqui alguns dados do Índice Fipe Zap, que eu usei na
minha dissertação, que é bastante ilustrativo no que concerne ao mercado
imobiliário ali na Zona Sul. Então, o metro quadrado no Rio de Janeiro
à época, 2015, estava em 10 mil, na média. No Leblon, 13 mil, sendo que
na Delfim Moreira, que é a orla do Leblon, 38 mil e em Ipanema o metro
quadrado estava 12 mil, sendo que, na orla, na Vieira Souto, estava 36
mil. E aí, se a gente pensar que o Vidigal é na extensão desses dois
bairros, sobretudo, mas também dessas duas orlas, o metro quadrado no
Vidigal estava também batendo os dez mil, nove mil e tanto e, em algum
momento, chegou a dez mil. Então, na minha pesquisa, eu mostro, no
Vidigal - que é uma favela, por mais que tentem transformar em outro
lugar, é uma favela e resiste - a gente já tem casas, mansões na ordem de
12 bilhões, milhões.

226
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Então, para o que eu estou querendo chamar atenção com isso?


A cidade não tem mais pra onde crescer, né, gente? Esgotou a fronteira
urbana. Então, como o David Harvey já apontava, o território onde os
pobres estão ele se torna uma nova fronteira do capital. Então, você
remove esses processos, esses processos não são novos, eu diria que
novas são as estratégias, eu diria, como é o caso da UPP. Mas a remoção,
como a professora Regina já apontou aqui, é um processo. Na verdade,
a remoção é um paradigma que marca história no Rio de Janeiro, ela vai
se atualizando, se revigorando.
E eu defendo que na atual conjuntura ela vem revestida de novos
argumentos, novas estratégias. Mas é um paradigma que conseguiu
remover muitas favelas da Zona Sul na década de 60 e na década de 60
e 70, e que agora, no governo do Eduardo Paes, bateu novo recorde. O
tempo tá acabando, eu queria acelerar, mas vale dizer que uma tentativa
concreta de remover o Vidigal, houve uma tentativa de concretizá-la
remover o Vidigal em 77 e com assessoria, toda assessoria que foi
pautada aqui em importância, mas sobretudo com a luta organizada dos
moradores que, inclusive, diante dos tratores fizeram um braço, uma
corrente pra impedir a derrubada, com as crianças vestidas com as
camisas das escolas e mulheres e homens atrás conseguiram impedir.
Só que, hoje, não são mais tratores, hoje, a derrubada e a remoção
vem revestida de desenvolvimento local, de progresso, de interação,
então, tem muito esse discurso de que os novos visitantes, os novos
moradores trazem uma interação com toda aquela população.Uma
interação que não é real. Na minha pesquisa, eu consigo constatar para
além daquilo que a gente constata morando e conhecendo o cotidiano do
Vidigal. Mas é isso, sim, a relação do morador com os novos moradores
e os novos investidores que estão chegando é muito subalternizada, é
aquela relação bem arcaica.
Então, eu, por exemplo, tinha trazido aqui um trecho de um
investidor, de um empresário, que, na verdade, é anunciado em uma
entrevista, um empresário rico do Rio de Janeiro resolveu montar uma
casa no Vidigal, não pra morar, mas ele fala que pra receber uns amigos

227
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

dele de São Paulo quando vierem pra cá. E aí, no final, ele fala que fez
questão de contratar os moradores da comunidade pra trabalharem na
obra. Então, essa relação subalternizada e essa forma de segregar ali
dentro ela é muito forte.
Eu vou ter que agora escolher o que que eu vou falar pra não
estourar muito o tempo.
Bom, e aí, assim, uma das coisas que eu acho que vale à pena
destacar é que durante muito tempo a gente reproduziu a ideia de que a
UPP é o fator que começou a determinar essa expulsão dos moradores,
esse processo que tem sido apontado como um processo de gentrificação,
vem sendo abordado pelo conceito de gentrificação. Eu acho que,
realmente, que são bem semelhantes aos processos que vêm sendo
abordados pelo conceito de gentrificação.
Eu defendo que não, que a UPP é somente o braço armado de um
processo que é muito maior, muito mais complexo, muito mais amplo,
que vai desde não só a especulação imobiliária, que por si só é um agente
de ex-possessão que vai provocar a remoção discreta, indireta, mas muito
acelerada. Mas também, porque junto com o mercado imobiliário entra
a indústria de turismo que vai territorializar aquele lugar, então, vai
também encarecer o custo de vida. Entra também, na verdade, na
contramão daquilo que Milton Santos chamava de circuito inferior do
mercador urbano, que é muito comum nas favelas. Aqueles comerciantes
locais, enfim, aquelas infraestruturas que são criadas ali de serviços.
Com a UPP, entram as Casas Bahia, em detrimento ao pequeno
comerciante de imóveis. Com a UPP, sai a distribuição da internet que
era tocada por uma figura super conhecida no Vidigal, uma agência de
internet bem do local, por uma grande empresa que explora todas as
favelas que tiveram UPP. Com a UPP, vem a proposta de privatização
da água no Vidigal. Com a UPP, vem o relógio que não mede o consumo
de luz, que a cobrança de luz não é pelo consumo, mas é uma cobrança
lá absurda, que inviabiliza o orçamento das famílias.
E, além disso, encerrando mesmo depois no debate a gente pode
tentar trazer outros elementos, essa territorialização do capital, que vai

228
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

produzir a mercantilização e a segregação ela tem umas violências


simbólicas para além da substituição das armas do tráfico para a UPP,
altamente armada. Que, na minha perspectiva, é estranhamente
altamente violenta, a gente não deixa em nenhum momento de conviver
com armas.
Me chamou atenção na pesquisa alguns símbolos dessa
territorialização, como, por exemplo, além do embranquecimento do
lugar. Porque, por exemplo, hoje a gente vê embranquecimento em todos
os sentidos. Não só que os novos moradores são mais brancos e os
visitantes. Mas também quando a gente vê que o funk, o pagode, que
rolavam na rua foi proibido, mas, no entanto, em uma casa de show lá
você paga 200 reais pra entrar, e toca o quê? Funk. Então, aí você vê uma
imagem dessa festa, a maioria das pessoas são brancas, mas tem um
menino negro varrendo o chão.
Então, esses processos de territorialização são muito simbólicos.
Eu lembro que me incomodou muito uma vez que eu estava esperando o
Moto Taxi e aí o menino me falou “ah,você está indo pro Alto Vidigal?”
Aí eu falei “Alto Vidigal?” Porque pra galera de lá o lugar é conhecido
como Arvrão, como topo do marro. Tem o pé do morro e o Arvrão. Mas,
aí chega a galera que frequenta o Alto Leblon, e começa a chamar de
Alto Vidigal, e Baixo Vidigal. O que na minha perspectiva é uma
violência simbólica, que vai, que reflete esse processo de apropriação e
de expropriação do valor de uso daquele lugar, que foi construído por
aquelas pessoas que construíram a história daquele lugar.
Bom, é, eu teria algumas outras coisas pra destacar, mas também
não quero ser desrespeitosa aqui com o tempo que foi determinado.
Agradeço aí a atenção de todos, e fico aberta para provocações,
questionamentos. Obrigada.

229

O DIREITO ACHADO NA FAVELA: A DINÂMICA DO
PLURALISMO JURÍDICO NA FAVELA DO VIDIGAL

Osias Pinto Peçanha 45

Boa tarde a todos, cumprimento aqui a mesa, à colega que fez


exposição da dissertação dela. Parabenizo toda organização do evento.
Bom, não foi combinado, eu vim conhecer a colega aqui. Ela
também fez uma dissertação sobre o Vidigal, e a minha dissertação eu
defendi em março passado, sob a orientação do professor Enzo, Enzo
Bello. Também é falando, pelo menos utilizando o Vidigal como cenário,
mas por que eu utilizo o Vidigal como cenário?
Eu sou nascido e criado no Vidigal e ainda moro no Vidigal. Sou
advogado, sou professor de Direito Constitucional e moro lá ainda.
Então, o meu lugar, o lugar de onde eu falo é exatamente de onde eu
pesquisei. O meu tema “O Direito achado na Favela – A dinâmica do
Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal.” Direito achado na favela
com inspiração numa linha de pesquisa da UNB, que é o Direito achado
na Rua. Eles têm uma ampla linha de pesquisa lá e eu lendo um dos livros
deles, até por indicação do meu orientador, me inspirei no tema, no
Direito achado na favela. Para discutir o quê? Pesquisar o quê? Pesquisar
as práticas legais existentes em micro sociedades, em grupos étnicos
sociais e práticas legais não necessariamente aquelas impostas pelo
Estado. Ou seja, práticas jurídicas não oriundas da lei, impostas pelo
Estado. Ou até mesmo utilizando a lei, mas de forma diferente daquela
que o Estado impõe.
Então, em outras palavras, o Direito nascido da relação social, o
Direito nascido do fato social. Uma coisa é o Direito ser produzido em
laboratório, ser escrito e ser apresentado para a sociedade. Outra coisa é

45
Professor de Direito Constitucional na Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre
em Direito pela UNESA. Advogado.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

o Direito nascer do fato social, a coisa está acontecendo e dali nasceu o


Direito. Então, a minha linha de pesquisa é desenvolvido nesse ponto.
Minha dissertação, defendida em março, sob a orientação do
professor Enzo Bello, também possui o Vidigal como cenário. Por que
utilizo o Vidigal como cenário? Sou nascido no Vidigal e ainda moro no
Vidigal. Sou advogado, professor de direito constitucional e resido lá. O
lugar de onde eu falo é onde desenvolvi minhas pesquisas.
Meu tema é o Direito achado na Favela e a dinâmica do
pluralismo jurídico na Favela do Vidigal. O Direito achado na Favela,
inspirado em uma linha de pesquisa da UnB sobre o Direito achado na
Rua, busca pesquisar as práticas legais existentes em micro sociedades e
grupos étnico-raciais e não necessariamente advindas ou impostas pelo
Estado. Em outras palavras, práticas jurídicas não oriundas da lei
imposta pelo Estado ou, ainda que advinda da lei, utiliza-a de maneira
diferente daquela que o Estado impõe. Trata-se do direito nascido das
relações e fatos sociais. Uma coisa é o direito ser produzido em um
laboratório e apresentado à sociedade. Outra coisa é o direito nascer do
fato social.
O trabalho desenvolvido em minha dissertação inicia-se com a
introdução, onde explico a escolha do tema, da minha vida e relação com
o Vidigal. A primeira parte versa sobre a história do Vidigal, surgimento,
resistência, tentativas de remoções até os dias de hoje. O referencial
teórico utilizado foram autores que defendem a ideia do pluralismo
jurídico, como Boaventura de Sousa Santos, Antonio Carlos Wolkmer,
Antonio Manuel Hespanha, Enzo Bello com relação ao pensamento
decolonial, pluralismo latino-americano, Novo Constitucionalismo Sul-
Americano. Por fim, trago exemplos de sociedades que utilizam ou
praticam o pluralismo e, ainda, que têm o pluralismo jurídico em sua
constituição, como a Colômbia, Venezuela, Bolívia. É claro em
exemplos de etnias que possuem práticas jurídicas próprias, mesmo
dentro do Estado brasileiro, referendadas e aceitas pelo Estado brasileiro,
bem como quilombolas. Posteriormente, trabalho os exemplos de
constituições que adotam práticas que denotam o pluralismo jurídico.

232
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Boaventura de Sousa Santos defende o direito de Pasárgada,


desenvolvido em pesquisa realizada na Favela do Jacarezinho, na década
de 70, onde, a partir do fato social, ele desenvolve a teoria do pluralismo
jurídico. Então, esse é o fundamento teórico de minha pesquisa,
conjuntamente com os estudos de Antonio Carlos Wolkmer, que também
defende as juridicidades insurgentes, ou seja, que a partir de fatos sociais
surgem novas práticas jurídicas. Também utilizo pesquisas sobre o
Direito achado na Rua, iniciado com estudos de Roberto Lyra Filho
(leitura obrigatória aos estudantes de direito) e José Geraldo Sousa
Junior, este tendo participado de minha banca de defesa de dissertação.
A noção de direito a partir do fato social não implica em negar o
direito advindo do Estado, mas em reconhecer que não existe apenas o
direito emanado do Estado. Trata-se do Estado se aproximar dos fatos
sociais para produção jurídica. Isso é o pluralismo jurídico. É ver que
existem outros paradigmas, não só aqueles calcados em políticas
capitalistas, baseadas no patrimonialismo. Não falo da política partidária,
mas da política jurídico-social dominada pelo homem, branco, patriarcal,
capitalista. Por isso, fui buscar essas outras práticas em micro sistemas e
micro sociedades. Por isso uso como cenário o Vidigal, onde nasci, vivi
e moro, onde conheço relativamente, portanto. A pesquisa se desenvolve
a partir da Favela do Vidigal e das relações entre os moradores.
Por incrível que pareça, quando falo sobre esse tema em sala de
aula, é comum eu escutar “Ah, é claro que existem práticas jurídicas no
Morro do Vidigal. Elas são produzidas pelo traficante”; “É o direito do
tráfico”. Não é disso que estamos falando. Estamos falando das relações
sociais. Favela não possui somente traficantes e bandidos. Aliás, é menos
de 1%. Hoje, segundo estatísticas da prefeitura do Estado do Rio de
Janeiro, o Vidigal possui cerca de 13 mil habitantes. Desses habitantes,
se tiver 50 bandidos lá é muito.
Quando fui pesquisar na associação de moradores, que possui um
núcleo de mediações de conflitos (que funciona muito pouco, diga-se de
passagem), na maioria das vezes, os conflitos envolvem questões
fundiárias, disputa por terrenos e em decorrência de construções que

233
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

tiram a vista do vizinho, conflitos em decorrência da distância entre as


residências, a questão da construção em volta de um terreno que gera um
empasse com relação às janelas. É a associação de moradores que
enfrenta esses conflitos. São conflitos envolvendo o Direito de Laje, que
o Estado agora se apropriou (a partir do artigo 1.510, “a”, do Código
Civil), que é o quê? Eu sou o proprietário da minha residência, tenho
uma laje, vendo minha laje para alguém que queira construir. Essa pessoa
que compra a laje poderá construir em cima daquela laje. Esse é o direito
de laje.
A partir de uma emenda provisória, o Estado pegou um direito
achado na favela, uma prática da favela, e trouxe para a legislação oficial.
E os desdobramentos do direito achado na favela? Ou melhor, e os
desdobramentos do direito de laje? Por quê? Aí eu fui pesquisar, já
depois de minha dissertação, e o que eu encontrei? O cidadão tem a casa,
tem a laje. Ele vende a laje para o outro construir, mas ele reserva para
ele a outra laje. Ou seja, ele está vendendo a laje dele, mas não está
vendendo o espaço a cima dele onde ainda será construído. Isso já está
gerando conflitos na favela e, pelo menos no caso do Vidigal, a
associação de moradores ainda não sabe como resolver.
Então, quando falo do direito achado na favela, não estou falando
do direito do bandido, que usa os métodos que já ouvimos falar por aí e
que existem. Estamos falando do cidadão de bem, que paga impostos,
que contribui, que trabalha, que estuda, que assiste Netflix, que anda na
rua. São conflitos existentes, como existem também em outros lugares.
Como são resolvidos esses conflitos? Uma pesquisa no juizado
especial criminal lá da zona Sul (que não fui eu quem fez a pesquisa),
segundo esses pesquisadores, foi constatado que não há nenhum conflito
entre moradores das favelas todas da zona Sul do Rio no juizado especial
criminal. Se formos seguir essa pesquisa, podemos concluir que não há
conflitos de natureza criminal entre os moradores de favela, já que não
há demanda criminal nesse juizado, já que essas demandas de briga de
vizinhos, agressões... não tem! Essas questões, envolvendo pessoas
comuns, não tem registrado lá, por quê? Porque os próprios moradores

234
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

resolvem esses conflitos. Esses conflitos são levados para o próprio


núcleo de mediação, que é formado pelos moradores do Vidigal e quem
lidera é uma pessoa (que, se não me engano, mora no Leblon e é
psicóloga). Quando necessário, então, convoca-se esse núcleo de
mediação que vai lá, chama as pessoas para resolver aquela demanda.
Quando se chama o núcleo de mediação, os próprios membros da
associação de moradores (da qual eu também não faço parte) reúne as
pessoas (eles têm lá já algumas pessoas próprias para isso) e vão até o
local. Não conseguindo resolver no local, convidam as pessoas a
comparecerem à associação de moradores e tentam, ali, fazer uma
composição do conflito. Há, portanto, conflitos que são resolvidos pelo
próprio núcleo de mediação, mas que não entram em nossa estatística,
pois não temos pesquisas, ainda, de como são resolvidos esses conflitos
(aqui há um ótimo tema para pesquisas acadêmicas). Esse ponto não foi
desenvolvido em minha pesquisa, mas sim o fato de que existem práticas
em micro sociedades (e aqui eu incluo tribos indígenas, grupos
quilombolas e favelas) que sequer chegam ao conhecimento do Estado
ou, quando chegam (como no caso do direito de laje), são apropriadas
pelo Estado que as positiva de uma forma que acaba inviabilizando a
utilização desse direito na forma como está ali na própria favela (já que,
no caso do direito de laje, para exercê-lo, precisa ter matrícula
individualizada e, na favela, em sua grande maioria, as pessoas não têm
nem matrícula, muito menos individualizada). Então, se fossemos seguir
essa risca, não poderia ser utilizada. O positivado no Código Civil pegou
mais ou menos o que é praticado lá, positivou, mas não colocou a
realidade, ainda que traga várias hipóteses.
Então, a pesquisa passa por esses conflitos e desdobramentos e
eu inicio a pesquisa falando do próprio Vidigal, como surgiu, que se trata
de um terreno que, no século XVIII, foi entregue a um policial que
comandava a segurança no Rio de Janeiro. Com a vinda da Família Real
esse policial era muito atuante (nada diferente de alguns da polícia
militar hoje em dia) e, como benefício, ele recebeu aquela região, aquela
área, como proprietário. Aquela área, posteriormente, foi loteada e

235
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

vendida pela imobiliária Vidigal (o nome do policial era Vidigal).


Alguns compraram, outros invadiram. A minha família, por exemplo,
comprou, minha avó comprou no início do século passado. A partir daí
surge a favela do Vidigal, que já sofreu tentativas de remoções na década
de 50, 60 e 70.
Em 78, há uma decisão de um juiz (tenho até o fragmento de sua
decisão aqui) onde diz que causa estranheza o súbito interesse da
prefeitura pela segurança dos moradores (já que a tentativa de remoção
é em decorrência de risco de desabamento). Isso porque a favela estava
lá há 20 anos e, de repente, a prefeitura se preocupou que iria cair tudo e
tal. Aí, tem todo o desenrolar, movimentações, os moradores se
organizam, conseguem ganhar apoio da classe artística, conseguem o
apoio da igreja católica, da pastoral da terra. Finalmente, conseguem um
grupo de advogados para defender a favela que, em determinado
momento, descobre um projeto para construir no Vidigal um condomínio
de casas de luxo, de alto valor aquisitivo. Então a súbita preocupação
com o desabamento era exatamente para quê? Para o desenvolvimento
imobiliário especulativo turístico para a classe alta! O local poderia
desabar com os pobres, com os ricos não iria desabar! Então, com isso,
o Vidigal consegue uma sentença e, a partir dessa sentença, começa a
pressionar o Poder Público para ganhar os títulos de propriedade (que
não ganhou até hoje). Existe, portanto, o direito ao título de posse
daquela região com prazo de duração e que, ainda que tenha um prazo
longo, aponta que a ameaça de remoção não está totalmente afastada.
Concluo minha pesquisa e explanação agradecendo a atenção de vocês e
estamos abertos a questionamentos.

Debates
Plateia (01): Meu nome é Igor, sou mestrando da Estácio também. Morei
durante muitos anos na cidade de Deus, até os 22 anos de idade. A minha
pesquisa é sobre esse contexto de pacificação, porém, com enfoque no
direito penal e processo penal, que é a área que atuo, pois sou advogado
criminalista. Determinado aspecto da sua fala me chamou a atenção, que

236
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

foi essa apropriação de determinada prática social pelo Estado, essa


questão do direito de laje que você falou, a positivação de um fato social,
uma prática social. Na sua concepção, o que você acha que causou isso,
essa apropriação? Tendo em vista que outras práticas sociais não vieram
a ser positivadas.
Plateia (02): Desculpe, posso interromper? É que eu estava pensando
nessa mesma situação. O senhor utilizou a palavra “apropriação”.
Acredito que não tenha sido por mero acaso a utilização. O uso foi
porque o significado mudou? Talvez porque o direito de laje
representasse uma coisa para os moradores ali do Vidigal e, quando foi
para o espaço jurídico, ele tomou novos significados e implicações?
Osias Peçanha: Começando pela pergunta dela. Quando utilizo a
palavra “apropriação”, é no sentido de que, na nossa cultura jurídica
positivista, estudamos que direito é aquilo que o Estado diz. Resumindo
rapidamente, o que é o direito? Direito é o que o Estado fala que é, é o
que está escrito na lei, etc. Então, quando utilizo o termo “apropriação”,
é no sentido de que o Estado pegou uma prática que viu no meio social
e trouxe para sua positivação. Trata-se de uma apropriação não no
sentido negativo, ou ruim, mas no sentido de tomar posse de uma prática
e positiva-la, legislar aquela prática, trazendo para o Código Civil (no
caso do direito de laje). Não é um sentido negativo. Não é ruim. O que
defendo é que seja feito mais vezes e não necessariamente positivado,
mas reconhecendo e legitimando a existência daquela prática não
necessariamente positivando-a no Código Civil. Com relação ao que
teria causado aquela positivação, já li e pensei muito sobre isso. Poderia
ser uma tentativa de arrecadar sobre uma prática da qual o Estado não
participa ou não participava. Como no artigo 1.510 do Código Civil diz
que tem que ter matrícula individualizada e a nova construção também
precisa ser registrada, há uma tentativa aqui de criar uma nova fonte de
receita (que também não é ilegítima). Trata-se do Estado chegar até uma
prática que até então ele não alcançava e, a partir daí, ele ter uma nova
fonte de receita. É importante observar que essa prática da favela não é
uma prática exclusiva da favela. É uma prática que já vem sendo

237
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

observada em bairros não necessariamente de favelas. Então, daí essa


observância de que tal prática já existe em outros lugares e que se trata
do interesse do Poder Público em participar dessa relação. Portanto, creio
que seja nesses dois sentidos.
Lucas Pontes Ferreira: Agradeço aos componentes da mesa e fecho
essa mesa com uma observação sobre os trabalhos que ouvi aqui e ao
longo do seminário. A questão do pluralismo jurídico é um conceito
básico, que tem como referencial teórico Boaventura de Sousa Santos
devido a um estudo empírico realizado na favela da Rocinha na década
de 1960. Pluralismo por quê? Ele encontrou ali duas práticas de
resolução de conflitos que não se confundem com aquelas do direito
estatal e que é hoje algo ainda comum em determinadas favelas devido
as milícias, por exemplo, onde ali mesmo se resolvem os conflitos sem
que precise chegar ao Estado, através das comunidades de bairro, dos
centros comunitários, de uma ordem verticalizada do próprio
comandante ou chefe da milícia (ou da UPP também), se resolvendo lá e
não chegando ao âmbito estatal. Aqui identifico duas formas de
resolução de conflitos e daí o pluralismo jurídico. Quanto à questão do
direito achado na rua (ou o direito achado no rio, como exposto por um
trabalho apresentado aqui com essa perspectiva), que vem de estudos de
Roberto Lyra Filho (também exposto aqui por Osias), na verdade, a
grossas linhas, trata-se de um direito representado pelo olhar das
subjetividades. E foi isso que encontramos aqui durante todo esse
seminário: falas de mulheres e a perspectiva do olhar da mulher;
trabalhos relacionados a questão de rua; apresentações de pessoas que
estão na prática e não por acadêmicos retidos em suas salas de estudo. É
basicamente por isso que o espaço aqui se diferencia de eventos
acadêmicos tradicionais, pois busca ouvir as pessoas e o marco maior
que é justamente esse: o respeito a subjetividades, através de seus olhares
e do que vivenciam, através da forma com que se dá essa relação até
mesmo no âmbito do Estado, de forma que não fiquem presas a uma
figura do poder público ou a uma representatividade e, assim, construir
uma cidadania. Cidadania é construída através de luzes que um passa

238
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

para o outro, por meio de seu olhar, dos caminhos que cada um perpassa.
Então essa é a mensagem que o seminário deixa para cada um de nós e
que possamos ser essas luzes de esperança, de respeito e que possamos
caminhar nessa perspectiva, fazendo com que tenhamos de fato um
Estado construído por todos. Agradeço a todos!

239

- VII -
GRUPOS DE TRABALHO (GTs)

GT I - CIDADE CIDADÃ: PRÁTICAS E POLÍTICAS NA


CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

ESPACIALIZAÇÃO DAS NORMAS À LUZ DA ESTRADA


PARATY-CUNHA

Gabriela Santa Cruz Neves Kwok 46

Isabela Santa Cruz Neves 47

Palavras-chave: meio ambiente; urbanismo; legislação; Paraty

Este artigo tem como objetivo geral abordar os conflitos


ambientais e urbanos na região da estrada Paraty-Cunha: a constante
disputa entre a manutenção do meio ambiente intocado e o avanço da
cidade de Paraty sobre o território. O objetivo específico é pesquisar a
relação natureza-legislação no contexto dos conflitos ambientais e
normativos existentes na região à luz dessa estrada. A intenção é
verificar se as leis existentes foram eficientes ou não para impedir a
expansão da cidade em relação à Unidade de Proteção Integral do Parque
Nacional da Serra da Bocaina.
A hipótese sobre a origem dos conflitos é a de ausência de
planejamento governamental frente aos interesses de setores privados na
construção de espaços que não possuíam qualquer tipo de controle por
parte do poder público. Este tema é relevante no sentido em que a região

46
Mestranda, PPGAU - UFF. gabriela.scn@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/3262208193792811
47
Mestranda, PPGAU - UFF. isabela.scn@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/7532127404574838


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

possui uma diversidade ecológica que está sendo ameaçada pela


expansão da cidade ao longo da estrada Paraty-Cunha.
O resultado esperado visa entender como a estrada Paraty-Cunha
foi capaz de estimular o crescimento da cidade de Paraty, e o surgimento
de conflitos ambientais quando da criação do Parque Nacional da Serra
da Bocaina. Além disso, como resposta à pesquisa, pretende-se
confirmar se o poder público foi conivente e se manteve parcial quanto
a aplicação das leis locais em relação aos conflitos que surgiram com o
crescimento da cidade.
Para tratar do tema é importante ressaltar as leis que fazem parte
deste contexto, devendo-se mencionar primeiramente a Indicação
Legislativa nº 484/1998 que trata da criação da estrada Paraty-Cunha:

Art. 1º - Fica criada a Estrada - Parque Estadual Paraty -


Cunha, situada no Município de Paraty, cruzando a Serra
do Carrasquinho e atravessando o Parque Nacional da
Serra da Bocaina.
Parágrafo Único - Define-se, por esta Lei, como categoria
de unidade de conservação denominada Estrada-Parque
aquela que tem por objetivo de manejo "manter parte ou
toda uma estrada ou rodovia e sua paisagem em estado
natural ou seminatural, proporcionando usos recreativos e
educativos.” O tamanho da área está relacionado à
topografia e características da rede viária objeto de
proteção.

Outra Lei objeto de estudo é a Lei nº 6371/2012, que informa


“sobre a adoção de regras de restrição de acesso a unidades de
conservação estaduais e de trânsito em estradas-parque, como medida de
prevenção de impactos ambientais negativos decorrentes de afluxo
populacional não planejado”. 48

48
Lei nº 6371, de 27 de Dezembro de 2012. Disponível em:
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/b24a2da5a077847c032564f4005d4bf2/
db59b6488550bd2383257af60056f7c7?OpenDocument

242
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

A rodovia Paraty-Cunha por muito tempo foi a única saída


terrestre da cidade de Paraty, e apenas na década e 1970, com a
construção da estrada Rio- Santos (BR-101), a cidade se conectou com
o restante dos municípios fluminenses. A abertura da estrada Paraty-
Cunha tem a ver com o traçado da antiga Estrada Real do Caminho do
Ouro, por volta de 1704, que ligava as auríferas mineiras até a cidade do
Rio de Janeiro.
A cidade de Paraty foi escolhida como local para implantação do
porto principalmente devido à sua localização geográfica. A existência
de água potável, bem como os bons ares essenciais à subsistência de uma
futura população local, ao reabastecimento das embarcações de
passagem, à proximidade a terrenos propícios ao cultivo, entre outros
fatores, também foram decisivos nesta escolha.
Em 1870, devido a abertura de um novo caminho ferroviário
entre São Paulo e Rio de Janeiro através do Vale da Paraíba, a antiga
estrada perdeu a sua função afetando de forma intensa a atividade
econômica de Paraty. Além disso, com a abolição da escravatura em
1888, houve a decadência do comércio e da cidade, causando um êxodo
populacional e isolando Paraty por décadas.
Enquanto abriam-se estradas pelo resto do país, continuava-se
chegando a Paraty como na época colonial: de barco, vindo de Angra dos
Reis. A partir de 1954, com a abertura de uma estrada “carroçável" para
Cunha, na direção do antigo caminho colonial da Serra, processou-se
lentamente o ressurgimento econômico do município, tanto pela
recuperação das lavouras, como pelo crescimento de turistas vindos
principalmente de São Paulo.
Dessa forma, percebe-se que o caminho é um antigo anseio dos
moradores da região que facilita a ligação das cidades de Cunha,
Guaratinguetá e vizinhança ao litoral e ao município de Paraty.
Este isolamento geográfico foi o que provocou a preservação da
arquitetura local, bem como dos usos e costumes locais. Mas, com a
abertura da BR- 101 (Rio-Santos) em 1973, Paraty recebeu um novo
movimento. Como nas fases anteriores (do ouro e do café), um novo

243
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

ciclo dominou a cidade: o turismo, responsável pela exploração de ilhas


e praias locais.
Após a construção da rodovia, as cidades da região chamada
“Costa Verde” receberam migrantes em grande quantidade, que
49

iniciaram uma completa transformação nos padrões culturais e sociais


das comunidades antes isoladas em suas próprias tradições.
A ausência de planejamento governamental frente a um impacto
tão grande coincidiu com os interesses dos setores envolvidos na
construção de uma nova realidade sem controle e planejamento à
proporção dos impactos urbanos, ambientais e sócio- culturais
provocados por esta ampla abertura da cidade através do acesso direto
pela rodovia.
Bem verdade que após a construção da Rodovia Rio-Santos
ocorreu uma exagerada especulação imobiliária e a consequente
valorização das terras à beira mar, com conflitos violentos pela posse da
terra e expulsão dos caiçaras de suas posses, que foram obrigados a viver
nas periferias e ao longo da Rodovia.
Com essa modificação da região, foi recomendada a implantação
de um Parque Nacional na área, no confronto da Rodovia Paraty-Cunha
com a paisagem como solução mais adequada para harmonização entre
a civilização e a natureza na região. Dessa forma, em 1971, através do
Decreto nº 68.172, foi criado o Parque Nacional Serra da Boicana, que
compreende uma área aproximada de 134 mil hectares e uma
expressiva biodiversidade.
Sobre as ações governamentais de âmbito nacional, estadual e
municipal como, por exemplo, a transformação do município em
estância turística, tombamento de áreas rurais e urbana, criação de
inúmeras unidades de conservação, a construção de estradas como a via
Rio-Santos na década de 1970 e a pavimentação da estrada Paraty-

A chamada região da “Costa Verde” é formada pelos municípios de Angra dos Reis,
49

Paraty, Mangaratiba, Itaguaí e Rio Claro. Tem essa denominação pois é uma região
onde a Serra do Mar encontra o Oceano Atlântico e ambos se confundem de forma
única. (Secretaria de Estado de Turismo - SETUR)

244
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Cunha, deve-se atentar para as suas consequências.


Obras de melhorias na estrada tiveram início em 2013 e foram
finalizadas apenas em agosto de 2016 devido a diversos embargos, com
a reabertura da estrada devidamente pavimentada, permitindo a
passagem de carros, porém, apenas em horários específicos.
No processo administrativo nº 01500-000329/2013, o IPHAN se
manifestou contra atos praticados no procedimento de licenciamento
para pavimentação de aproximadamente 9,4 Km da rodovia RJ-165,
informa a suspensão temporária e paralisação imediata de eventuais
obras na estrada até a realização de Audiência Pública, com data
agendada na época para o dia 1º de março de 2013, na sede da
Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro.
Ficou demonstrado que em 1986 iniciaram-se intervenções na
Estrada Paraty-Cunha sem qualquer estudo ambiental e/ou
licenciamento ambiental exigido por lei. O IBAMA, quando retomou o
processo de licenciamento, verificou que o EIA/RIMA apresentados
estavam defasados, além de abordar de forma superficial a questão do
Sítio Arqueológico Ruínas do Registro do Caminho do Ouro e
mencionar brevemente o trecho da estrada inserido no Parque.
Bem verdade que a Constituição Federal no artigo 225, §1º, IV
impõe para a instalação de obra potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de Impacto
Ambiental. E, por ser um empreendimento rodoviário as Resoluções
CONAMA nº 1/1986 e 237/2007 também exigem a apresentação de
EIA/RIMA.
Na oportunidade a direção do Parque Nacional da Serra da
Bocaina apresentou a Autorização Ambiental no. 02/2018 através do
processo no. 02645.000017/2016-82 que autoriza tanto a Prefeitura de
Paraty, quanto a Prefeitura de Cunha, assim como ao próprio DER – RJ
para realizarem a manutenção e a limpeza da referida Rodovia no trecho
sob competência Federal dentro do Parque.
Dessa forma, percebe-se que o fator importante nessa pesquisa é
a identificação dos grupos de interesses existentes quando o assunto

245
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

tratado refere-se à Unidade de Proteção Integral e as políticas de


desenvolvimento da cidade (expansão imobiliária, turismo e
infraestrutura), além da região possuir uma diversidade ecológica que
está sendo ameaçada pela expansão da cidade ao longo da estrada Paraty-
Cunha e pela suposta ineficácia nas normas. Nesse processo de
transformação da cidade e o seu entorno é necessário esclarecer o que
provocou e ainda vem provocando mudanças e conflitos que refletem
tanto na população quanto na questão da preservação ambiental e
urbanística da cidade.

246
TRANSOCEÂNICA E DIREITO À CIDADE: ANÁLISE DA
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO ESTUDO DE IMPACTO DE
VIZINHANÇA

Eraldo José Brandão 50

Moisés de Castro Alves 51

Palavras-Chave: Direito à Cidade; Transoceânica; Estudo de Impacto


de Vizinhança; participação popular.

O presente resumo tem por finalidade apresentar os resultados


obtidos pelo Grupo de Iniciação Científica denominado “Transoceânica
e Direito à Cidade”, aprovado no edital PIBIC 2017 e financiado pela
Universidade Estácio de Sá.
Sob a nomenclatura TransOceânica, o projeto aguardado há mais
de 40 anos é considerado o maior plano de mobilidade urbana de Niterói,
RJ. Com extensão de 9,3 km, passando por 11 bairros da Região
Oceânica, a nova via teve como premissa de projeto a redução em até
uma hora no tempo estimado para percorrer o trajeto entre esta região e
o Centro da cidade, unindo através de um túnel a Região Oceânica de

50
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho, Especialista em Gerenciamento
Ambiental pela Unigranrio, Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá.
Pesquisador colaborador do Grupo de Iniciação Científica “Transoceânica e Direito
à Cidade, aprovado no edital PIBIC 2017 pela Universidade Estácio de Sá
(Orientador: Prof. Msc. Marcelo dos Santos Garcia Santana). E-mail:
eraldo.brandao@estacio.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0075889412232339.
51
Aluno do Curso de Pós-graduação em Gestão da Administração Pública na
Universidade Federal Fluminense. Aluno do Curso de Graduação em Direito na
Universidade Estácio de Sá, Campus Oscar Niemeyer, Niterói III. Aluno orientando
do Grupo de Iniciação Científica “Transoceânica e Direito à Cidade”, aprovado no
edital PIBIC 2017 pela Universidade Estácio de Sá (Orientador: Prof. Msc. Marcelo
dos Santos Garcia Santana). E-mail: moisescastroalves@yahoo.com.br. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7449559948337838.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Niterói e o bairro de Charitas. Estima-se que aproximadamente 80 mil


passageiros usem dessa travessia diariamente. O investimento total da
obra ultrapassou R$ 300 milhões (R$ 310.894.585,00) . A construção da
52

via em análise, em um primeiro momento, apresenta uma proposta de


política de mobilidade urbana que aponta em direção à efetivação do
Direito à Cidade, definido como o direito à apropriação coletiva do
espaço da cidade, como lugar de encontro, troca e realização, garantindo
a todos a qualidade de vida urbana e suas benesses (LEFEBVRE, 2014,
p. 21).
A pesquisa teve por objetivo geral entender os espaços de
participação popular no processo de tomada de decisões acerca do
projeto TransOceânica, através da análise do Estudo de Impacto de
Vizinhança. Os objetivos específicos da pesquisa foram definidos da
seguinte forma: (i) analisar a base legal do Estudo de Impacto de
Vizinhança; (ii) demonstrar as características do EIV como instrumento
de participação popular; (iii) avaliar, por meio do estudo de caso, os
procedimentos de efetivação do EIV como instrumento de participação
popular.
Assumindo um perfil jurídico-sociológico, a pesquisa teve
caráter interdisciplinar, de natureza jurídico-sociológica, e característica
principal a busca por pesquisa empírica. Portanto, a pesquisa adotou
como técnicas: revisão bibliográfica, análise documental, observação
não participante e estudo de caso (YIN, 2001). Trata-se categoricamente
a pesquisa de um estudo de caso, uma vez que o direito à cidade é, em
si, um fenômeno amplo e complexo. Por tal razão, prefere-se realizar o
estudo a partir do caso da Transoceânica, para que se verifique, por
dentro do contexto local, como o direito à cidade se manifesta.
A pesquisa bibliográfica compôs uma das fases na construção do
objeto, na busca da problematização a partir de bases teóricas e
referenciais publicados, com vistas à produção de um trabalho

52
Informações disponíveis no sítio da Prefeitura de Niterói.
<http://www.niteroi.rj.gov.br>. Acesso em 15.mai.2017.

248
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pertinente. O referido material está disponível em livros publicados e


documentos disponíveis em órgãos públicos e entidades privadas no
Município de Niterói, e relativamente são de fácil acesso. A partir das
leituras, foram produzidos fichamentos, nas modalidades
citação/transcrição e ficha-resumo.
Partindo-se da premissa segundo a qual metodologia e teoria são
indissociáveis, adotou-se como referencial principal na pesquisa a teoria
crítica, a partir dos autores que discutem o direito à cidade,
representantes atuais do pensamento marxista (Henri Lefebvre e David
Harvey), além de outros referenciais de apoio. Na mesma esteira, o
referencial teórico-metodológico do marxismo se colocou como
caminho para o atingimento dos objetivos propostos, considerando o
método materialista-dialético como projeto universalizável quanto à
produção do conhecimento científico (FALBO, 2011, p. 200).
Inicialmente, dedicaram-se esforços na compreensão do que é o
Estudo de Impacto de Vizinhança pelo viés legal, conjugado como forma
de efetivação de uma cidadania ativa. Após, buscou-se no acervo da
Prefeitura de Niterói os documentos referentes ao empreendimento em
estudo. Por fim, fez-se uma análise dos documentos obtidos, buscando
identificar os instrumentos de participação popular nos processos de
decisão.
A partir desta perspectiva, após uma necessária e preliminar fase
de leituras dos referenciais teórico-metodológicos, a pesquisa atingiu
resultados relevantes do ponto de vista social, jurídico e político.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é um instrumento que
tem a finalidade de promover a mediação de interesses entre os
empreendedores urbanos, os gestores públicos e os cidadãos, com o
objetivo de garantir cidades sustentáveis (ROCCO, 2009, p. 32).
Considerando que a cidadania é um princípio fundamental, o cidadão é
um elemento ativo da democracia brasileira, devendo, através de
instrumentos como o EIV, tomar decisões diretamente sobre o seu meio
social. A Constituição da República, de 1988, preconiza que a política
de desenvolvimento urbano será executada pelo Poder Público municipal

249
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

conforme diretrizes gerais previstas em lei, sendo esta a Lei n.º


10.257/01, conhecida como Estatuto das Cidades, que estabelece em seu
art. 36 que “lei municipal definirá os empreendimentos e atividades
privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de
estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou
autorizações de construção, ampliação ou funcionamento”. Nesse passo,
ao incumbir ao Município o estabelecimento dos casos que será
necessário o EIV, parte-se da ideia de que desse modo é possível extrair
a realidade fática e jurídica de determinada localidade. O EIV deve,
ainda, contemplar os aspectos positivos e negativos do empreendimento,
apresentando um rol mínimo de questões a serem analisadas e os
documentos produzidos devem ser públicos e estar disponíveis a
qualquer interessado. A Lei n.º 2.051/03 do município de Niterói lista
em seu art. 1º os empreendimentos e as atividades públicas ou privadas
que dependerão de elaboração de Estudo Prévio de Impacto de
Vizinhança (EIV) e do respectivo Relatório de Impacto de Vizinhança
(RIV).
A aplicação do Estudo de Impacto de Vizinhança deve levar em
conta impactos ambientais, paisagísticos, econômicos e sociais. A
definição das medidas mitigadoras ou compensatórias dos impactos
causados pelo empreendimento ou atividade deve obedecer a critérios
claros, a fim de que realmente atendam aos interesses daqueles que estão
sofrendo os efeitos dos impactos.
Neste cenário, as audiências públicas são fundamentais para que
a população, além de avaliar a conveniência e a oportunidade da
implementação do empreendimento ou atividade potencialmente
causador de significativo impacto na ordem urbanística, considere as
propostas relacionadas às medidas mitigadoras e compensatórias,
sopesando-as com as reais necessidades daquela comunidade.
A audiência Pública no âmbito das discussões do EIV, portanto,
é um dos mecanismos de controle e participação social na Administração
Pública que franqueia ao particular a possibilidade de influência nas
decisões dos gestores públicos, garantindo o exercício da cidadania pela

250
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

manifestação democrática. Mostra-se um instrumento para exercício do


controle prévio sobre o desenvolvimento local, com ênfase na qualidade
de vida urbana e garantia da ordem urbanística (Idem, p. 40).
O art. 1º da Lei n.º 2051/03 de Niterói prevê, em seu inciso XVIII,
a realização de EIV para túneis, viadutos, garagens subterrâneas, vias
expressas rodoviárias e metroviárias. Portanto, o EIV é obrigatório para
a construção em estudo.
O EIV do empreendimento TransOceânica foi elaborado pela
Masterplan Consultoria de Projetos e Meio Ambiente e entregue à
Secretaria Municipal de Urbanismo e Mobilidade de Niterói, no dia
17/08/2016, conforme Portaria 02/2016 da mesma secretaria. Sob o olhar
procedimental, verificou-se que o EIV apresentou todas as questões tidas
como mínimas pela legislação municipal e solicitadas na Instrução
Técnica da Secretaria Municipal de Urbanismo e Mobilidade. A obra
teve início no dia 07/07/2015, ou seja, o EIV foi entregue mais de um
ano após o início da obra, em flagrante desrespeito ao caráter prévio do
Estudo. Ainda assim, o Estudo foi discutido em audiência pública que,
contudo, não foi dada a devida publicidade das atas uma vez que o
endereço eletrônico para acesso aos documentos está sempre
indisponível.
Em verdade, o EIV do empreendimento em questão mostrou-se
apenas como um elemento que busca garantir uma pretensa legitimidade
dos atos praticados pela Administração Pública. A sua elaboração atende
apenas a formalidade prevista em lei, deixando a margem uma efetiva
participação popular nos processos decisórios. Revelou-se elemento
formal para cumprimento aos requisitos legais, sem legitimidade
democrática real sobre as decisões do Poder Público, diante da carência
de discussões prévias com a sociedade envolvida sobre os aspectos da
construção, principalmente quanto a possibilidade de escolha de
alternativas de projeto. Contudo, o fato de não ter alcançado seu objetivo
no caso em análise, não torna o instrumento dispensável.

251

A APROPRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS
PELO ATIVISMO SOCIAL

Ana Carolina Barreto da Silva Couto 53

Palavras-chave: direito à cidade; ativismo social; agentes; espaço


urbano; espaço público.

Em um contexto urbano capitalista, pode-se identificar os agentes


produtores do espaço urbano, percebendo a pequena influência popular
neste processo, em especial de grupos marginalizados. Desta forma,
identifica-se no ativismo urbano o caminho para que o cidadão, de forma
individual ou coletiva, se posicione entre os agentes com o objetivo de
garantia do Direito à Cidade e desenvolvimento de um novo modelo de
urbanização. Pretende-se, portanto, alterar a interação do cidadão com os
espaços públicos, produzindo a apropriação dos espaços e fortalecimento
dos laços sociais e democráticos que são desenvolvidos neles. Assim
como, promover a inclusão de classes sociais excluídas no processo de
urbanização a fim de mitigar as marcas de desigualdades no território.
Atualmente, pode-se perceber o abandono dos espaços públicos, como é
o caso do sucateamento de praças e a perda do papel social da rua, e por
consequência ocorre também o enfraquecimento do processo
democrático desenvolvido nesses espaços. Objetive-se neste artigo
discutir alguns conceitos que suportam a discussão da produção do
espaço urbano, a importância da apropriação dos espaços públicos para
a garantia do Direito à Cidade e apresentação de alguns movimentos
urbanos que tem atuado neste sentido.

53
Mestranda do Programa de Engenharia Urbana, Escola Politécnica da UFRJ.
anacarol@poli.ufrj.br - http://lattes.cnpq.br/7360696802284014


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

1. Agentes e a produção dos espaços públicos

O espaço urbano espacializa as questões presentes nas esferas


política, econômica e social, revelando conflitos e demandas, poder de
influência e desigualdades. Não é possível discutir a respeito dos espaços
públicos, sem discutir as dinâmicas econômicas, políticas e culturais que
produzem a cidade.
Desta forma, mostra-se necessário entender os agentes
modeladores do espaço urbano, seu papel nesse processo e a cidade
produto dessas relações. Bahiana (1978) identifica seis agentes
relevantes: o morador, o proprietário do solo, a indústria imobiliária, a
indústria da construção civil, os proprietários industriais e o Estado.
Ao apresentar estes agentes, Corrêa (2017) identifica a ação do
proprietário do solo no estorno próximo da área urbana e que encontra
meios de valorizar a terra, iniciando um processo especulativo antes
mesmo do loteamento de solo. Os proprietários dos meios de produção
controlam glebas em busca de mananciais ou áreas que futuramente
sejam de interesse para construção, criando vazios urbanos sem
perspectiva de uso próximo. Estes dois agentes juntamente com os
grupos ligados a promoção imobiliária; compram, especulam, financiam,
administram e produzem a cidade controlando o espaço, definindo
vetores de crescimento urbano para onde mais os interessem.
Os moradores tem pouca influência sobre onde moram, vivendo
onde a especulação os permite, na cidade formal, ou empurrados para a
cidade informal. O Estado tem papel duplo neste contexto, atua como
produtor de espaço, produzindo infraestrutura e imóveis e ainda, tem
papel de árbitro, sendo responsável pela solução de conflitos sofrendo
grande influência em suas decisões dos interesses e forças dos demais
agentes. Por esta razão Souza e Rodrigues (2004) consideram a ação do
Estado a resultante dos vetores influência dos agentes modeladores.
O espaço urbano se mostra um produto das relações capitalistas,
onde a acumulação de capital desencadeia um processo de especulação

254
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

imobiliária ocasionando a segregação de classes sociais, e o surgimento


de fronteiras invisíveis dentro da cidade. Produzindo áreas onde a falta é
a regra, onde a informalidade é maioria, onde a desigualdade se apresenta
de maneira clara, onde os direitos universais são privilégio.
Ao nos tornarmos apáticos às perdas de direitos e agravamento
de desigualdades somos “tolerantes à involução democrática” (BORJA,
2011). A garantia e conquista de direitos são alcançadas no espaço
público, uma vez que é nele que se reivindica verdadeiramente a
cidadania, não o título oferecido pelo Estado.

2. O Direito à Cidade

Direito à Cidade, termo cunhado por Henri Lefebvre em seu livro


com mesmo titulo lançado na década de 1960 vem sendo usado por
diversos autores como Harvey, Santos e Souza que partem do direito à
cidade para desenvolver discussões que serão úteis à análise pretendida
aqui. Harvey (2014) em sua obra define o direito à cidade como sendo:

[...] muito mais do que um direito individual ou grupal aos


recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e
reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais
profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo
do que individual, uma vez que reinventar a cidade
depende inevitavelmente do exercício de um poder
coletivo sobre o processo de urbanização. (HARVEY,
2014, p. 28)

Harvey defende que todos os agentes têm além do direito de


produzir a cidade, tem também o direito de ser parte da decisão do tipo
de urbanismo a ser realizado, assim como onde e como o processo de
urbanização se dará. Desta forma o direito à cidade é entendido não
apenas ao espaço construído, mas a construção e recriação da cidade de
forma política e coletiva.

255
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Os ativistas urbanos encontraram seu lugar nos espaços


abandonados pelo poder público, nas vias por onde muitos passam, mas
poucos ficam, e quase ninguém realmente enxerga. Estes passaram a se
apropriar dos espaços públicos, mostrando que as vias são das pessoas,
que os muros cinza podem expressar arte, que as praças podem ser
música.

3. Ativismo urbano e a apropriação dos espaços públicos

Souza e Rodrigues (2004) entendem a ação do Estado capitalista


como a resultante de um conjunto de vetores que representam os
interesses dos agentes produtores do espaço. Desta forma, o Estado não
seria, em essência, o caminho para a redução das desigualdades. O
Estado só produziria mecanismo de distribuição de renda, e conquistas
igualitárias uma vez que a população se colocar como um agente, e
passar a representar mais um vetor de influência sobre as ações do
Estado. Um caminho apontado para isto seria através da produção,
ocupação e apropriação dos Espaços Públicos.
Neste contexto, os mesmos autores definem o ativismo social
como a união de dois principais grupos, o ativismo reivindicatório, que
nasce da mobilização de um determinado grupo em prol da busca por
soluções para uma questão específica. Nestes casos, é comum que o
grupo se desmobilize com a apresentação de uma solução paliativa. Já
os movimentos sociais têm uma luta mais profunda, nascido da evolução
do outro modelo de ativismo passa a contestar a ordem social vigente,
buscando por mudanças estruturais na sociedade.
Movimentos como o operário que questionava a estrutura de
classes da sociedade capitalista, movimentos contra o racismo
institucionalizado nos Estados Unidos e na África do Sul, movimentos
feministas, movimentos dos sem terra a favor da reforma agrária,
movimento dos trabalhadores sem teto e reforma urbana, são muitos os
movimentos sociais que tiveram e têm grande papel na conquista de
direitos e buscam por igualdade. Mas é perceptível que para que haja

256
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

força, estes movimentos precisam ter um objetivo amplo, que agregue


um grande número de pessoas por identificação com o problema.
Outro movimento novo e de grande potencial é o movimento Hip
Hop. Originário da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos vem se
espalhando pelo mundo, tendo um maior efeito em regiões
metropolitanas. Apresentando forte ligação com a área de origem, sejam
as favelas ou os guetos, o Hip Hop é usado como meio de manifestação
da indignação dos excluídos e marginalizados. Ocupa-se os espaços
públicos, clamando por um novo modelo de cidade. Ele expressa a voz
dos segredados, daqueles que são expulsos pelos modelos tradicionais de
planejamento urbano. Ele mostra que o sistema não esta funcionando.
Ainda, identificam-se coletivos que se utilizam do urbanismo
tático realizando intervenções pontuais efêmeras de curto e médio prazo,
num modelo nômade. Estes coletivos são construídos de forma
colaborativa e pouco estruturada, muitas vezes os grupos de unem em
prol de uma intervenção e se desmobilizam ao completa-la. No entendo
encontram formas de manter um fluxo constante de ações de forma que
os coletivos sejam permanentes, mesmo que os integrantes não. Seguem
uma lógica de rede, majoritariamente apresentam uma estrutura
horizontalizada, com as ações sendo organizadas através de conexões e
não de lideranças. Estes coletivos entendem a cidade como uma
plataforma aberta e que os espaços podem constantemente passar a
agregar novos significados (MAZIVIERO e ALMEIDA, 2017).

Referências Bibliográficas

BAHIANA, Luís Cavalcanti da Cunha. Agentes modeladores e uso do


solo urbano. In: Anais da associação dos geógrafos brasileiros. Rio
de Janeiro, n. 18, 1978, p. 53-62.
BORJA, Jordi. Espacio público y derecho a la ciudad. Viento Sur.
Madri, n. 116, p. 39-49, Maio, 2011.
CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre agentes sociais, escala e produção do
espaço: um texto para discussão. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri;

257
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria da Encarnação Beltrão. A


produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios.
São Paulo: Contexto, 2017.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução
urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LEVEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5ª ed. São Paulo: Centauro,
2008.
MAZIVIERO, Maria Carolina; ALMEIDA, Eneida de. Urbanismo
insurgente: ações recentes de coletivos urbanos ressignificando o espaço
público na cidade de São Paulo. In: XVII ENAPUR. São Paulo: 2017.
SANTOS, Milton. O espaço do Cidadão. 7ª ed. São Paulo: Ed. USP,
2014.
SOUZA, Marcelo Lopes de; RODRIGUES, Glauco Bruce.
Planejamento urbano e ativismo social. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

258
O PROCESSO DE FAVELIZAÇÃO E O SENTIDO DA
MODERNIZAÇÃO PERIFÉRICA NO BRASIL

Thiago Barboza da Cunha 54

Pedro Rocha de Oliveira 55

Palavras-chave: favelização; modernização; Francisco de Oliveira.

O presente trabalho tem como objetivo relacionar a reflexão


sobre o processo de favelização no Brasil a partir de meados do século
XX, com a reflexão sobre o sentido da modernização periférica realizada
por Francisco de Oliveira em seu livro “Crítica à razão dualista”
(OLIVEIRA, 2003). Para tanto, partiremos de uma análise sobre o
processo de modernização capitalista brasileiro, o que envolve mudanças
de caráter econômico, social, político e cultural, e que têm lugar a partir
da segunda metade do século XIX.
Para isso, é necessário a análise de textos pontuais sobre o
assunto, como por exemplo, o texto de Lilian Fessler Vaz (1994)
chamado “Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos – a
modernização da moradia no Rio de Janeiro”; nesse texto a autora
discute a relação entre habitação e modernização na cidade do Rio de
Janeiro. A autora entende a modernização em termos do nascimento de
uma cidade industrial a partir de uma cidade comercial, da substituição
do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, bem como da proclamação
da República em 1889, que coloca o Rio como capital de um país
supostamente alinhado com os desenvolvimentos políticos do mundo
moderno e o aumento da população urbana, que é acompanhado por um
aumento da oferta de modernos serviços públicos.

54
Graduando em filosofia pela UNIRIO; thiago7barboza@gmail.com;
http://lattes.cnpq.br/5945209036177550
55
Professor da faculdade de filosofia na UNIRIO; oliveira.rocha.pedro@gmail.com;
http://lattes.cnpq.br/1121255042657241


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Ao mesmo tempo, Vaz salienta que, paradoxalmente, o processo


de modernização agravou ainda mais a exclusão e a segregação que já
existia no Brasil imperial. Quando substitui o trabalho escravo pelo
assalariado, por exemplo, a modernização capitalista mantém esses
trabalhadores à margem da nova sociedade moderna. Os novos
trabalhadores assalariados são tão mal pagos que não constituem uma
nova população de consumidores modernos, dessa forma, precisam
manter em funcionamento uma série de procedimentos econômicos pré-
modernos, entre os quais, a moradia. Ao invés de criar propriamente um
mercado de habitação e estimular a construção civil, o assalariamento no
final do século XIX e início do século XX possibilita apenas o
surgimento de espaços precários de habitação, remendadas a partir de
construções antigas e deterioradas, bem como relações de favor e
coabitação.
Outra importante autora que também trabalha a questão da
habitação popular nos países dependentes do mundo capitalista, é
Ermínia Maricato (1982), que em seu livro “A produção capitalista da
casa e da cidade no Brasil industrial”, diz que uma das alternativas
encontradas é a autoconstrução de residências pela classe trabalhadora,
i.e, o processo de construção da casa, não importando se a casa é
construída pelo futuro morador, ou por vizinhos, ou também com auxílio
de algum profissional; Maricato diz que nos grandes centros industriais,
a autoconstrução ganha importância fundamental, uma vez que a
adaptação das classes populares à modernização das moradias é
inviabilizada pela dinâmica inerente da modernização - tendo em vista
também, a migração da população do campo para a cidade em
decorrência do aumento do salário mínimo nos centros urbanos, como
destaca Francisco de Oliveira . 56

56
“Uma segunda objeção retira seu argumento do fato de que comparado ao rendimento
auferido no campo (sob qualquer forma, salário, renda da terra, produto das ‘roças’
familiares etc.) o salário mínimo das cidades era sem dúvida superior, o que, dada a
extração rural dos novos contingentes que afluíam às cidades, tornou-se um elemento

260
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Maricato frisa que devido aos baixos salários - que não suprem
todas as necessidades de subsistência da classe trabalhadora em meio
urbano - não há alternativa para a massa de trabalhadores que migra do
campo para a cidade, senão, a autoconstrução - pois ao contrário da
cultura na zona rural de construir casas através de mutirões - essa massa
trabalhadora que migra do campo para a cidade, se torna uma massa
assalariada e integrada na economia urbana industrial capitalista, ou seja,
autoconstrução é uma necessidade material, porém não é a única, a
autora também salienta que meios de consumo coletivos passam a fazer
parte da necessidade da reprodução da força de trabalho dessa população
trabalhadora.
Maricato faz uma comparação com os países capitalistas centrais,
cujo custo da habitação - seja ela do mercado imobiliário privado, seja
pelo Estado que financia e produz habitações acessíveis para os
trabalhadores - é coberta pelo salário do trabalhador, e com os países
dependentes, em que os salários não cobrem os custos da habitação no
mercado imobiliário privado, logo, segundo Maricato, essa população de
trabalhadores usa os únicos recursos que possuem para atender as suas
necessidades de habitação, i.e, através dessa herança do tradicional
hábito rural do mutirão – que Francisco de Oliveira chama de
“sobrevivência de práticas de ‘economia natural’” – é que nasce a
autoconstrução.
Maricato diz que a autoconstrução é um exemplo para
compreender a tese de Francisco de Oliveira, em que consiste na
integração de setores atrasados da sociedade no processo de acumulação
do capital, que tem seu eixo na grande indústria; nossa autora continua
citando Oliveira, que diz que a expansão do capitalismo acontece
imprimindo relações novas no arcaico, bem como reproduzindo relações
arcaicas no novo, senso assim, introduzindo novas relações no arcaico,

favorável aos anseios de integração das novas populações operárias e trabalhadoras


em geral, debilitando a formação de consciência de classe entre elas.” OLIVEIRA,
2003.

261
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

liberando força de trabalho suficiente para suportar a acumulação


industrial urbana.
No entendo, Maricato afirma que a autoconstrução, na verdade,
se estende para a produção do espaço urbano, ou seja, não se limita
apenas à construção de casas/moradia, mas sim, de construção de igrejas,
escolas, creches, centros comunitários, etc., i.e, a autoconstrução se
estende para todo o espaço de residência da classe trabalhadora.
Maricato diz que durante a fase de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, o Estado ignora a reprodução da força de trabalho
para investir em outros segmentos da economia, onde o capital se faz de
modo seguro e rápido, ou seja, o Estado funciona como uma espécie de
instrumento do capital privado, ou como um investidor capitalista; então,
tendo em vista essa dinâmica no comportamento do Estado, o BNH –
Banco Nacional da Habitação – afastou investimentos na habitação
popular, para investir em habitações de alto e médio custo, ou seja,
Maricato diz que o BNH é um captador de recursos, que mobiliza
principalmente a indústria da construção civil, e a indústria de materiais
de construção.
Com efeito, a solução para a habitação encontrada pelos
trabalhadores é a autoconstrução, e nossa autora diz que na cidade de São
Paulo, onde a renda média é baixa, o número de moradores proprietários
é dos mais altos, conclui-se então, que a única solução encontrada pelos
trabalhadores que não possuem condições materiais para arcar com
aluguel, ou financiar uma casa, é através da autoconstrução, e é somente
através da autoconstrução que esse índice de proprietários em áreas de
menor renda pode ser elevado – em comparação com outras áreas; nossa
autora também diz que a habitação é o segundo maior gasto no
orçamento da família brasileira – atrás apenas da alimentação – o que só
ratifica a autoconstrução como principal meio para a habitação popular.
Porém, Francisco de Oliveira também comenta sobre essa
solução encontrada pela classe trabalhadora; no final da segunda parte
de seu livro “crítica à razão dualista”, Oliveira diz que esse tipo de
produção de habitação se produz por trabalho não pago – o que Oliveira

262
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

chama por supertrabalho -, e que mesmo não sendo desapropriado pelo


setor privado da produção, essa habitação, na realidade contribui para
aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, ou seja, tendo em
vista que a moradia faz parte do custo de reprodução da força de trabalho
– assim como a alimentação, por exemplo – a autoconstrução então, faz
o custo da reprodução da força de trabalho diminuir, deprimindo os
salários.
Então, essa atividade que Oliveira descreve como “práticas de
sobrevivência de ‘economia natural’, combina com o processo de
expansão capitalista; Oliveira diz que essa desigualdade entre o modo de
acumulação global, e a massa de trabalhadores à margem da
modernização, é uma desigualdade combinada, ou seja, essa
desigualdade é produto de uma “base capitalística de acumulação
razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a conversão
da economia pós-anos 1930” (OLIVEIRA, 2003, p. 60). E essa
combinação de desigualdades não é original, segundo Oliveira, pois em
qualquer cambio de sistemas, essa desigualdade é uma presença
constante.
Talvez a única originalidade seja o que já foi citado acima quando
Oliveira diz que a expansão do capitalismo acontece introduzindo
relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, e
que a introdução dessas novas relações no arcaico, libera força de
trabalho para suportar a acumulação industrial-urbana – essa adaptação
de relações novas com relações arcaicas, podemos entender pela
autoconstrução descrita pela Maricato, onde uma prática da cultura rural
(mutirão) é apropriada pelos trabalhadores nas cidades, ou seja, uma
relação arcaica, é introduzida em um contexto moderno/urbano.

Bibliografia

MARICATO, Ermínia. A produção capitalista da casa (e da cidade)


no Brasil industrial. 2 ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1982.

263
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O Ornitorrinco.


São Paulo: Boitempo, 2003.
VAZ, Lilian Fessler. Dos cortiços às favelas e aos edifícios de
apartamentos – a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Análise
Social, vol. XXIX (127), 1994 (3º), 581-597.

264
GESTÃO JUSAMBIENTAL DAS CIDADES: UMA CIDADE
PARA PESSOAS

Samira dos Santos Daud 57

Walter Gustavo Silva Lemos 58

Palavras-chave: Cidades; Meio Ambiente; Gestão Jusambiental;


Ecodesenvolvimento.

1. Objetivos

Este trabalho objetiva identificar alguns meios pelos quais a


gestão jus ambiental das cidades pode influir na qualidade de vida das
pessoas, diante da atual conjuntura das relações entre o ser humano com
o meio ambiente, no processo de crescimento rápido e vertiginoso da
população mundial nas zonas urbanas. Buscar-se-á analisar como a
gestão jus ambiental pode influir nas políticas públicas de planejamento
territorial urbano, a partir dos valores do ecodesenvolvimento.

2. Metodologia

O presente estudo foi desenvolvido mediante pesquisa


bibliográfica. Como procedimento metodológico, realizou-se um

57
Doutoranda em Direito pela UNESA/RJ, Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS), Advogada, graduada em Direito pela Universidade
Tiradentes (UNIT, 1998); Professora do Curso de Graduação em Direito da
Universidade Estácio de Sá (SE). Email: profsamiradaud@gmail.com, CV:
http://lattes.cnpq.br/2651480713139228.
58
Doutorando em Direito pela UNESA/RJ. Mestre em História pela PUC/RS e Mestre
em D. Internacional pela UAA/PY. Professor da FARO – Faculdade de Rondônia e
da FCR - Faculdade Católica de Rondônia. Ex-Secretário Geral Adjunto e Ex-
Ouvidor Geral da OAB/RO. Email: wgustavolemos@hotmail.com, CV:
http://lattes.cnpq.br/1470744404621370


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

levantamento bibliográfico em livros, artigos científicos, revistas


jurídicas e dissertações, tanto em meio impresso como em meio digital,
a partir das temáticas: direito à cidade, gestão jusambiental e
ecodesenvolvimento.

3. Abordagem teórica

O acelerado processo mundial de urbanização, especialmente a


partir da Revolução Industrial, tem provocado o aumento progressivo da
demanda por políticas mais aperfeiçoada para a implementação de
programas e planos para a elevação dos níveis de proteção ambiental,
qualidade de vida da população, desenvolvimento e organização das
cidades, exigindo dos gestores capacitação e optimização dos processos
de gestão urbana, assim como procedimentos integrados e integradores
de outras atividades.
Em virtude do crescimento da crise ambiental no Brasil a cada
dia, com a devastação desenfreada de matas e florestas, a crise hídrica, o
acúmulo de lixo, a dizimação da fauna, a poluição atmosférica, da terra
e das águas, a desertificação, a alteração climática que contribui para
inundações ou estiagens anormais, dentre outros inúmeros problemas daí
decorrentes, como executar políticas de proteção ambiental sem oferecer
à população envolvida os serviços e infraestrutura básicos?
Como efetivar uma política fundada no ecodesenvolvimento em
Municípios que sequer tem infraestrutura e serviços básicos?
Inúmeros são os desafios a serem enfrentados pela gestão
pública, sendo fundamental o papel do direito para a construção de
espaços urbanos fundados em valores e princípios democráticos e
cidadãos, uma vez que é nas cidades o local de exercício da cidadania e
implementação de direitos fundamentais, dentre eles o direito
fundamental ao saneamento básico, à água, à moradia, dentre outros.
(BELLO, 2013).

266
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

O comportamento ético do homem na sua relação com a natureza


tem muita influência nas diretrizes da política urbana, de modo a
assegurar o direito fundamental à cidade ambientalmente desenvolvida.
A ética e os princípios do ecodesenvolvimento são vetores que
buscam a consagração entre homem e natureza, na origem e no destino
comum, devendo trazer novos significados, portanto, novos paradigmas.
Para isso é necessário que o ecodesenvolvimento seja concebido como
uma ideia ética, que deve ser inserida na sociedade, a fim de que seja
colocado em prática o respeito do ser humano para com o meio ambiente
que o cerca, incluindo, além dos recursos naturais, todos os seres vivos
que constituem a fauna, a flora e todos os ecossistemas do planeta. Uma
vez que constitucionalmente o Município tem a incumbência de
promover as políticas públicas urbanas, aliado à necessidade de se
realizar uma administração urbana de forma inclusiva, não mais se
admite um trabalho de forma isolada, pois a dinâmica local das cidades
e os anseios da população exigem a coordenação de esforços conjuntos
de vários setores da sociedade, aqui compreendido sob a forma de
sistema , de modo a democratizar o processo de tomada de decisões do
59

poder público sobre a gestão das cidades.


Com efeito, faz-se necessário ouvir diversos setores de diversas
especialidades dentro dos sistemas do Município, dentre eles, o jurídico,
arquitetônico, econômico, social, político e ambiental. No entanto, estes
sistemas têm regras próprias, o que dificulta o diálogo e a união das
forças em prol do atendimento ao bem comum. Já que as decisões de
cada sistema são baseadas em regras individuais, o que geralmente
encontra incompatibilidades dentro das esferas de poder.
Segundo Hardt (2000), a gestão urbana compartilhada e
interinstitucional, é uma tendência como novo conceito em gestão
pública e política a ser implementada, haja vista o caráter jurídico-

59
A ideia de sistemas aqui utilizada é no sentido único de demonstrar a
interconectividades dos elementos de uma cidade, tais como o elemento social,
econômico, jurídico, ambiental, dentre outros.

267
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

ambiental das cidades, preconizado no art. 225 da Constituição Federal,


onde todo e qualquer ato gerencial deve englobar não somente as
consequências presentes, mas também os possíveis reflexos futuros. Daí
a ideia de que as políticas ambientais têm que incluir as comunidades
locais, garantindo a sustentabilidade ambiental, econômica e social por
meio da redução da pobreza e fomento à justiça social e a equidade,
através dos princípios do ecodesenvolvimento, quais sejam: a) satisfação
das necessidades básicas; b) solidariedade com as futuras gerações; c)
participação com a população envolvida; d) preservação dos recursos
naturais e do meio ambiente; e) elaboração de sistema social visando
garantir o emprego a segurança social e o multiculturalismo; f) fomento
à educação (Sachs 1986, p.5).
A gestão jus ambiental urbana se coloca numa situação de
equilibrar as necessidades dos habitantes do espaço urbano com a
proteção ao meio ambiente, no âmbito do poder local, equilibrando-se o
fornecimento de infraestruturas e serviços urbanos com o
desenvolvimento econômico e proteção ambiental. No entanto, percebe-
se que, em nível local, sequer existem serviços públicos e infraestruturas
básicos para atender minimamente à população, quanto mais falar em
garantir a proteção ambiental.
Segundo Boff (2014), a sustentabilidade exige certa equidade
social, isto é, uma distribuição mais ou menos homogênea dos custos e
dos benefícios do desenvolvimento. O preço de nossa sobrevivência é a
mudança radical na forma de habitar a Terra. A proposta de um
ecodesenvolvimento ou de uma bioeconomia como nos é apresentada
por Ladislau Dowbor e Igance Sachs, entre outros, nos animam a
caminhar nessa direção.
As análises de Dowbor e de Sachs combinam economia,
ecologia, justiça e inclusão social, nascendo um conceito de
sustentabilidade possível, dentro dos constrangimentos impostos pela
predominância do modo de produção industrialista, consumista,
individualista, predador e poluidor do capitalismo. Ambos estão
convencidos de que não se alcançará uma sustentabilidade aceitável se

268
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

não houver uma sensível diminuição das desigualdades sociais, a


incorporação da cidadania como participação popular no jogo
democrático, respeito às diferenças culturais e a introdução de valores
éticos de respeito a toda a vida e um cuidado permanente do meio
ambiente. Preenchidos estes quesitos, dão-se as condições de um
ecodesenvolvimento sustentável.
No entanto, para que haja efetividade das políticas públicas a
serem implementadas é necessário que existam meios dentro do Direito
que permitam aos administradores decidirem segundo as necessidades
locais e o próprio Direito. Como inserir no Direito problemas sociais que
reflitam nas ações estatais sem desnaturar o próprio Direito? (Boechat,
2016, p.114)
Considerando-se o Direito como um sistema autopoiético, ou
seja, aquele que, a partir de suas próprias estruturas, se reproduz e se
desenvolve, sem jamais poder suprimir a si próprio, transformando a
realidade ao mesmo tempo que transforma a si mesmo, no labor pré-
determinado de suas estruturas internas, não há nenhuma determinação
estrutural que provenha de fora. Somente o direito pode dizer o que é
direito. (LUHMANN, 1980).
É a partir de suas próprias estruturas que o direito faz o
acoplamento estrutural com outros sistemas filtrando e absorvendo
aquilo que é necessário para suas estruturas desenvolverem a
autopoiesis. Nesse sentido, Luhmann afirma que o direito tem a força de
reconhecer, produzir e resolver conflitos através da complexidade do
sistema jurídico. Sob esse prisma, o direito é um sistema normativamente
fechado e cognitivamente aberto.

4. Conclusões

Assim, considerando-se a norma insculpida no art. 2º do Estatuto


da Cidade, positivando o posicionamento de que as políticas públicas
devem pautar-se nos pilares do ecodesenvolvimento, por meio da função
social da cidade e da propriedade urbana, não encontramos óbices para

269
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

que as políticas públicas e as decisões judiciais, em matéria urbanística-


ambiental, sejam no sentido de compreender e acatar a dinâmica,
mutações e conexões nas cidades, em especial no seu aspecto local, haja
vista que deve produzir diretrizes para o desenvolvimento futuro.
Ao aplicar o conceito do sistema autopoiético ao direito,
Luhmann consegue reduzir a complexidade social, permitindo que o
direito mude a sociedade e se altere ao mesmo tempo, bem como
permitindo a construção de um sistema jurídico dinâmico mais adequado
à hipercomplexidade da sociedade atual.
Segundo a Carta da Terra (MMA, 1992), devemos “assegurar que
as comunidades em todos os níveis garantam os direitos humanos e as
liberdades fundamentais e proporcionem a cada um a oportunidade de
realizar seu pleno potencial”, além de “promover a justiça econômica e
social, propiciando a todos a consecução de uma subsistência
significativa e segura, que seja ecologicamente responsável”. Estes
fragmentos da Carta da Terra estão relacionados às questões sociais, ou
seja, referem-se à distribuição de renda mais equânime, aumento da
participação dos diferentes segmentos da sociedade na tomada de
decisões, equidade entre sexos, grupos étnicos, sociais e religiosos,
universalização do saneamento básico e do acesso à informação e aos
serviços de saúde e educação, entre outros (IBGE, 2004).
Dessa forma, a gestão jusambiental das cidades, deverá pautar-se
no ecodesenvolvimento e seus três pilares da sustentabilidade: Social,
Ambiental e Econômico, tudo em um só lugar, transformando-se, assim,
as cidades para pessoas.

5. Referências bibliográficas

BELLO, Enzo. A cidadania na luta política dos movimentos sociais


urbanos. Caxias do Sul: EDUCS, 2013.
BOECHAT, Wagner S.F. Lembgruber. Gestão jusambiental de
cidades: possibilidades de o direito influir no meio ambiente artificial.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

270
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

BOFF, Leonardo. O sentido de uma bioeconomia ou de um


ecodesenvolvimento. Carta Maior. 07/10/2014. Acesso em 30/04/2018.
Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-sentido-
de-uma-bioeconomia-ou-de-um-ecodesenvolvimento/31942>.
HARDT, Carlos. Subsídios à gestão da qualidade da paisagem
urbana: aplicação a Curitiba- Paraná. Tese de doutorado em Engenharia
Florestal, UFPR. 2000.
IBGE (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA). Vocabulário Básico de Recursos Naturais e Meio
Ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2004. 332 p.
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de
Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1980.
MMA (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE). Carta da Terra, 1992.
Disponível em: <www.mma.gov.br>. Acesso em: julho 2009.
SACHS, Ignacy. Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. Rio
de Janeiro: Garamond, 2002.
SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Terra dos
Homens. São Paulo: Editora Vértice, 1986.

271

A OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS COMO
RESISTÊNCIA À CRISE DO CAPITALISMO: UMA ANÁLISE
A PARTIR DAS JORNADAS DE JUNHO DE 2013

Renata Piroli Mascarello 60

Guilherme Chalo Nunes 61

Stephanie Mesquita Assaf 62

Palavras-chave: Acumulação por espoliação. Crise do


capitalismo. Jornadas de Junho. Movimentos sociais.

60
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
de Caxias do Sul. Especialista em Política e Planejamento Urbano pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.
E-mail: renata.mascarello@hotmail.co.uk. Currículo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8788316Z8.
61
Mestrando em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Política e
Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Especialista em Política e Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Bacharel e licenciado em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. E-mail: guilhermechalo@gmail. Currículo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4328439U2.
62
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
de Minas Gerais. Especialista em Política e Planejamento Urbano pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Bacharela em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo das
Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros. E-mail:
stephanie.assaf@gmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3127860158911675.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

1. Introdução

Com o advento de uma profunda crise financeira mundial (2008),


cortes no orçamento público passaram a compor a agenda nacional e de
diversos estados do país, agravando o cenário de desemprego e
ameaçando setores como o da educação, assistência social, previdência
e cultura. Ao mesmo tempo, valores imensuráveis foram investidos na
realização de megaeventos esportivos ou estão sendo objeto de
investigação em supostos esquemas de corrupção, fatos que ilustram
uma crise de representatividade e desconfiança em políticos, partidos e
na própria democracia.
Nesse cenário de instabilidades política e financeira, o Brasil
vivenciou nos últimos anos experiências de mobilização popular que se
caracterizam por práticas ativas de cidadania insurgente. Motivadas por
outros eventos ocorridos pelo mundo, as Jornadas de Junho (2013)
representaram um marco na história recente, trazendo abordagens,
sujeitos e demandas diferentes daquelas que estávamos acostumados a
ver nas ruas. Esse ciclo de protestos ocorridos no Brasil, porém, não
foram um fato isolado.
Os Estados Unidos (Occupy Wall Street, 2012), a Espanha
(Marcha dos Indignados, 2012) e a Islândia (Revolução dos Panelaços,
2009) foram alguns países acometidos por protestos muito semelhantes
aos brasileiros. Em todos os casos, redes sociais, autogestão e ausência
ou pouca interferência de partidos políticos marcaram essas novas
formas de mobilização, melhor recepcionada entre os jovens. Somado a
tudo isso, os impactos da crise do capitalismo e a crítica, mais ou menos
presente, ao processo de privatização de direitos é um elo determinante
de ligação entre esses eventos.
Entretanto, para compreender a ação social e seu vínculo com a
estrutura econômica global, é preciso voltar ainda mais no tempo. Como
dito, as manifestações ocorridas no Brasil e no mundo nos últimos anos
detêm de atores, ações e demandas estranhas às teorias tradicionais dos
movimentos sociais; mas isso não quer dizer sejam inéditas. A França de

274
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Maio de 1968 já apresentava protestos protagonizados por jovens


desobedientes e contrários à ordem vigente de exploração do trabalho.
Não por acaso, foi na década de 1970 que o capitalismo começou a
exteriorizar seus primeiros sintomas de crise de sobreacumulação.
Esse recorte temporal mostra que as estratégias de luta se repetem
e o problema persiste – ou até s aprofunda. Salvo alguns espasmos de
fomento a políticas de inclusão social e econômica, vivemos uma crise
financeira há, pelo menos, cinquenta anos e que está se tornado mais
forte no Brasil. Por isso é necessário analisar as formas de resistência, de
modo a entender suas características e estratégias, assim como seus
limites em face de um modelo socioeconômico tão criativo como o que
está e vigor. Acima de tudo, é fundamental fazer uma cartografia desses
protestos para aprender com seus erros e acertos, objetivando o fim da
espoliação dos nossos direitos, das coisas públicas e das nossas vidas.

2. Objeto e objetivos

O principal objeto deste trabalho são as formas de organização


social no contexto de capitalismo em crise. Com base nisso, o objetivo
geral é estudar os atores e as práticas que fizeram das Jornadas de Junho
um marco no âmbito da ação social, relacionando-a com outras
manifestações ocorridas pelo mundo na tentativa de apontar elementos
em comum, especialmente no tocante ao contexto de resistência à
ofensiva capitalista. Para tanto, tem-se como objetivos específicos: (a)
descrever elementos e sujeitos presentes nas Jornadas de Junho de 2013
no Brasil; (b) traçar um paralelo dos protestos brasileiros com os
ocorridos pelo mundo nos últimos dez anos; (c) relacionar essas
manifestações com os fatos, protagonistas e contexto referentes aos atos
de Maio de 1968 na França; por fim, (d) apontar as causas e mecanismos
do capitalismo em crise, além de mencionar seus impactos para a
sociedade.

275
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

3. Metodologia

Para executar os objetivos indicados, utilizou-se o materialismo


histórico e dialético e algumas de suas categorias subjacentes, a saber:
totalidade, dialética e a noção de que o método adotado não busca
simplesmente descrever ou explicar, mas transformar a realidade. As
técnicas utilizadas são pesquisa documental e pesquisa bibliográfica.
Isso significa que a descrição da realidade (pesquisa documental e
bibliográfica) abre caminho para a reflexão teórica (pesquisa
bibliográfica), esta que é feita com base no rigor conceitual associado às
contradições e confirmações expostas pela materialidade da vida social.
Esse exercício considera que o estudo de caso está inserido em um
contexto global e que diversas forças atuam no seu entorno, ao mesmo
tempo em que faz dele base para verificar conceitos na perspectiva
brasileira e da história recente. Tudo isso, reitera-se, visando a uma
crítica radical da teoria e da realidade para compreender fenômenos que
precisam ser, na medida do possível, combatidos.

4. Referencial teórico

Em 1968, os jovens franceses se depararam com as pressões para


o aumento da produtividade e a necessidade de qualificar a força de
trabalho, requisitos oriundos do desenvolvimento do capitalismo
fordista. As universidades foram majoritariamente ocupadas por futuros
trabalhadores que, desde o início, do movimento defendiam a recusa de
uma universidade ao serviço do capital, a defesa dos interesses dos
trabalhadores no interior da universidade e a aliança entre intelectuais e
classe operária (BERNARDO, 2008, p. 22-23).
Embora o estopim tenha vindo do meio estudantil, Maio de 1968
contou com diversos atores, cada um com uma visão de mundo e uma
atuação muito particular, quais sejam: a juventude estudantil, os
operários fabris e os artistas (BADIOU, 2012, p. 30-32). Outro elemento
similar a Maio de 1968 foi a forma de atuação, isto é, a ocupação de um

276
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

espaço simbólico: para os estudantes, foi a universidade; para os


operários, foram as grandes fábricas; para os artistas, foi o teatro
(BADIOU, 2012, p. 33).
Esse movimento também apresentou conflito entre as novas e as
tradicionais formas de organização social. Nas palavras de Badiou
(2012, p. 33), houve um verdadeiro confronto entre o que chama de
esquerdismo político (majoritariamente representado pelo trotskismo e
pelo maoísmo) e esquerdismo cultural (em geral anarquista). Esse tipo
de confronto se faz nítido quando pensamos que as greves operárias
(1967) iniciaram de forma independente das instituições laborais oficiais
e que parte delas, as “greves selvagens”, faziam um esforço para se
distinguir das jornadas sindicais tradicionais (1968), estruturadas em
torno de grandes fábricas e estimuladas pelos sindicatos (BADIOU,
2012, p. 31-32).
O autor também demonstra algumas divergências no tocante aos
desdobramentos daquela mobilização: se, por um lado, representou a
realização de novas eleições – cujo resultado “foi a Câmara mais
reacionária que já se viu!” –, por outro, reprimiu qualquer demonstração
de novidades e rupturas (BADIOU, 2012, p. 36). Esse aspecto facilmente
se articula com a crise de representação, considerando que o projeto
partidário de ascensão ao poder por meio de disputas eleitorais está
nitidamente gasto (BADIOU, 2012, p. 40) e, portanto, é praticamente
impossível que a população se sinta representada.
A partir da narrativa exposta por Badiou, pode-se elencar quatro
fatores semelhantes às Jornadas de Junho de 2013, a saber: (a)
diversidade de sujeitos; (b) ocupação de espaços como forma de atuação;
(c) conflito entre os “novos” e os “velhos” coletivos; e (d) contexto de
crise política/de representação e crise financeira/de sobreacumulação.
Somos contemporâneos de um momento histórico e de formas de luta
que não acabaram.
Desde 2013, as organizações sociais têm unificado diversas
pessoas com perfis, identidades e até com pensamento político distintos;
a ocupação de espaços e órgão públicos é uma ferramenta de

277
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

manifestação; há constante conflito e dificuldade de diálogo entre os


jovens manifestantes e aqueles mais vinculados a coletivos tradicionais;
e há uma constante descrença na política, somada às consequências da
crise financeira.
Sujeitos, táticas e instrumentos se articulam em espaços públicos
num exercício real de cidadania insurgente, executando práticas capazes
de perturbarem histórias estabelecidas, sem necessariamente buscar
reconhecimento formal de direitos – até porque não se pode falar em
formalizar um direito de resistência à ofensiva capitalista. A insurgência
desses novos sujeitos, declarada ou não, é buscar um mundo livre da lei
do lucro, do interesse privado e da crescente mercantilização de tudo.

5. Resultados e conclusões

Em face da agenda política de austeridade, adotada


especialmente nos últimos dois anos, pelos órgãos de governo no Brasil,
fica nítido que a crise do capitalismo se refletiu em um dos momentos
mais conturbados de nossa história. Tal crise reverberou (e reverbera)
em diversos aspectos que passam desde o presente e frágil momento
econômico e social, assim como por uma intensa desintegração das
instâncias democráticas, o que foi articulado previamente ao
impeachment da última presidenta eleita democraticamente, em 2016.
Assim como visto após Maio de 1968, contamos com diversos
representantes de instâncias variadas do poder altamente conservadores.
Tal quadro dificilmente será contornado apenas por vias de
políticas públicas e/ou investimentos privados. De forma concomitante,
há uma emergência teórica e prática no âmbito da organização social e
da resistência, o que na incidência do conflito, da quebra desse consenso,
se torna uma via possível para que esse cenário de intensa fragmentação
social e declínio político se reverta.

278
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

6. Referências bibliográficas

ALONSO, Angela.. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do


debate. Lua Nova (Impresso), v. 76, p. 49-86, 2009.
ALONSO, Angela; MISCHE, Ann. June demonstrations in Brazil:
repertoires of contention and government´s response to protest. From
Contention to Social Change: Rethinking the Consequences of Social
Movements and Cycles of Protests - ESA Research Network on Social
Movements Midterm Conference. Universidad Complutense de
Madrid, Spain. 19-20 February 2015.
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012.
BERNARDO, João. Estudantes e Trabalhadores no Maio de 68. Lutas
Sociais, São Paulo, n. 19/20, p.22-31, jun. 2008.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos
sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e
praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
HARVEY, David. O novo imperialismo. 8.ed. São Paulo: Loyola,
2014.
HARVEY, David; MARICATO, Ermínia; ŽIŽEK, Slavoj; DAVIS,
Mike et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que
tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013.

279

DISPUTAS PELO ESPAÇO URBANO A PARTIR DO LEMA
“BÍBLIA SIM, CONSTITUIÇÃO NÃO”

Claudio Luiz Martins Reis Filho 63

Matheus Guimarães Silva de Souza 64

Palloma Borges Guimarães de Souza 65

Palavras-chave: cidadania; democracia; movimentos cristãos; pixações.

O objetivo deste trabalho é compreender a disputa pelo espaço


urbano a partir dos questionamentos de integrantes da Igreja Pentecostal
Geração Jesus Cristo. O líder dessa igreja, pastor Tupirani da Hora
Lores, foi preso por praticar e incitar a discriminação religiosa e, após
ficar em liberdade, semanas depois resolveu escrever um livro intitulado
“Sequestrado pela democracia”. Em março de 2018, o STF rejeitou o
pedido da defesa de trancamento da ação penal, por maioria de votos e
vencido o relator, argumentando a necessidade do Estado de pacificar a
sociedade ao evitar uma “guerra de religiões” . 66

A mencionada Igreja e seu líder já estão presentes nos noticiários


há algum tempo e sempre com questões envolvendo temas um tanto

63
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da
Universidade Federal Fluminense. Email: claudiolreis@yahoo.com.br. Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6115915110325543
64
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da
Universidade Federal Fluminense. Email para contato: matheusguimaraes@id.uff.br.
Link para currículo na plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/9903592158843864
65
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Email para contato: pallomaborges@id.uff.br. Link para currículo na plataforma
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3233919278041806
66
O Ministro Edson Fachin, relator do caso, votou no sentido de prover o recurso
compreendendo que a conduta de Tupirani, em que pese ser repudiável, não pode ser
considerada típica pois se insere no embate entre as religiões e que se relaciona com
o exercício da liberdade religiosa.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

quanto sensíveis. Em março de 2009 o grupo religioso divulgou na


internet um vídeo em que faz ofensas às religiões afro-brasileiras, às
polícias Civil e Militar e à imprensa. Em função disso ocorreram as
primeiras prisões no país por crime de intolerância religiosa, sendo
detidos o pastor Tupirani e mais três fiéis. Em 12 de agosto de 2017
foram responsáveis por um ato xenófobo contra muçulmanos no
Arpoador, na cidade do Rio de Janeiro. Mesmo tendo sido preso, o pastor
não cessou as suas atividades. Na verdade, a condenação lhe rendeu a
possibilidade de sustentar o status de “primeiro pastor preso pela
ditadura democrática no Brasil” e, assim, conseguiu ainda mais
67

seguidores e visibilidade . 68

O movimento iniciado por ele e seus seguidores possui um slogan


bastante intrigante: “Bíblia sim, Constituição não”. Essa mensagem está
sendo pixada em muros, postes, calçadas, passarelas, túneis, praças,
rampas de acesso para deficientes e monumentos públicos em vários
espaços urbanos do Estado do Rio de Janeiro, incluindo municípios
distantes do centro como a cidade de Itaboraí. As pixações vem causando
insatisfação e até mesmo revolta, em boa parte dos cidadãos cariocas e
fluminenses muito mais em virtude da poluição visual que a atividade

Na página eletrônica da instituição pode ser encontrada inúmeras mensagens em áudio


67

e vídeo do líder deste movimento, sendo consideradas também como fontes de


pesquisa essas pregações veiculadas pelos próprios agentes de modo a se evitar ruídos
entre as ideias expostas por essa subjetividade coletiva e eventuais referências à
organização. Disponível em http://ogritodameianoite.webs.com/. Consultado em:
05/05/2018.
Recentemente, em abril de 2018, a instituição se envolveu em uma nova confusão,
68

dessa vez com a Guarda Municipal do Rio de Janeiro na porta da delegacia de


Copacabana e doze pessoas ficaram feridas. Os guardas municipais abordaram
Tupirani e seu grupo na rua e os acusaram de terem pichado alguns locais públicos.
Ao chegarem em frente à delegacia houve um tumulto e câmeras flagraram a
violência empregada pelos guardas que foram afastados e estão sobre investigação,
podendo responder pelos crimes de dano e de lesão corporal. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/pastor-tupirani-da-hora-foi-o-
primeiro-preso-por-intolerancia-religiosa-no-pais.ghtml. Consultado em 05/05/2018.

282
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

gera na cidade, do que propriamente a mensagem de rejeição à


constituição brasileira.
Buscaremos, portanto, avaliar a incongruência e a dicotomia
existente entre o conteúdo das ideias manifestadas pelos membros da
Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo e o mecanismo utilizado para
essas manifestações no espaço público através do pixo. Para tanto (i)
traçaremos um breve panorama histórico e ideológico da Igreja e seu
líder; (ii) abordaremos o pixo enquanto forma de manifestação visual,
apropriação do espaço urbano e confrontamento com o ordenamento
estabelecido; (iii) o direito à liberdade religiosa e suas limitações; e,
finalmente, (iv) apresentaremos nossas conclusões acerca da
legitimidade do movimento e de seus pixos dentro do contexto de disputa
do espaço urbano e do direito à cidade, assim como as contradições
existentes entre as ideias e a ação empregada.
Para tanto empregaremos a análise de fontes bibliográficas afetas
aos assuntos objeto da discussão aqui abordada, matérias jornalísticas
relacionadas às atividades da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo e
as filmagens dos cultos onde o líder dessa instituição explica o porquê
do lema “Bíblia sim, Constituição não”.
A igreja e seus membros não mobilizam um número grandioso
de pessoas. Trata-se de um movimento religioso insipiente e controverso
que vem se utilizando do pixo, uma forma de manifestação usualmente
praticada por pessoas pertencentes a estratos marginalizados e
invisibilizados da sociedade, como forma de exposição de ideias e ganho
de uma voz no espaço urbano. Eduardo Zambetti, no texto narrado na
abertura do filme “PixoAção 2” dirigido por Bruno de Jesus Rodrigues
(Loucuras), faz uma síntese do que significa o pixo enquanto
manifestação simbólica para aqueles que dele se utilizam (ZAMBETTI,
2014):

Pixo, de maneira “subliminar”, tende a ser ruído que


revela. Tintas que rasgam as amarras visuais urbanas numa
apropriação do espaço. Partem do indivíduo por trás das
letras, formas e frases, e conectam o coletivo. Assim, se

283
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção
fosse possível concentrar em uma única ideia este mundo
plural do pixo, esta seria: este muro, este prédio, esta
propriedade não é sua. Não reconhecemos essa cerca. A
cidade não tem dono e tal tinta depositada nas ruas traduz
a inversão da alma urbana através do ícone “meu” no
espaço “nosso”. Se na estrutura jurídica e nas pautas dos
telejornais o pixo é imposto como atividade criminosa
seria prudente um esclarecimento vindo da fala e da
postura dos donos dos traços, cores e tintas negando a
imagem de figuras do crime e assumindo a postura de
revolucionários munidos de sua indecifrável estética do
caos.

Hegemonicamente a pixação é observada sempre como


manifestação vinculada a criminalidade, contravenção e como um fator
de desordem urbana. Fora desse espectro hegemônico o pixo ganha
tonalidades que rompem com os limites da esfera criminal para incluir
aspectos políticos, sociais, identitários, comunicacionais, estéticos,
artísticos e culturais (FURTADO, ZANELLA, 2012).
A Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo adota um discurso
altamente questionável sob diversos aspectos. No que diz respeito
especificamente as práticas de pixo, se utilizam deste para ao realizar
uma interpretação bíblica que enfrenta e repudia o ordenamento jurídico
brasileiro. No que diz respeito as suas práticas cotidianas, emprega
reiteradamente um discurso de ódio e de intolerância religiosa,
contraditoriamente avesso aos padrões civilizados de convivência
estabelecidos por nossa sociedade Ocidental judaico-cristã.
Ocorre que o conteúdo das mensagens propaladas pela Igreja
induz o rompimento com a cidade e seu aparato institucional, tendo vista
o menosprezo pelas manifestações sociais, inclusive por aquelas que
defendem temas de interesse religioso e político-partidário. Nesse
sentido, é possível conceber que o lema “Bíblia sim, Constituição não”
disputa um lugar de fala na sociedade e, simultaneamente, pretende
renunciar a qualquer vínculo jurídico-normativo com o espaço ao seu

284
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

redor, rejeitando as leis, pelo fato do grupo não possuir um sentimento


de pertencimento à realidade que o circunscreve.
É possível concluir, assim, que o discurso extremado pregado
pelo pastor Tupirani e seus fiéis afronta, de fato, boa parte das conquistas
atingidas pelo país ao longo da histórica no campo democrático, que
prega o estabelecimento de uma nova forma de governar, diferente da
tirania, e que se coaduna com a salvaguarda das liberdades civis
(ARENDT, 2011, p. 190-191). No Brasil, a Carta Maior estabelece a
liberdade de consciência, crença, culto e inúmeros outros direitos e
garantias que viabilizam e promovem o livre exercício dos cultos
religiosos. Não haveria, a priori, dissonância entre a Constituição e a
Bíblia, tendo em vista que aquela protege as convicções religiosas e esta
orienta os seus adeptos a respeitarem as leis e autoridades terrenas . Sem 69

embargo, o lema em questão faz uma clara alusão a uma


incompatibilidade entre esses dois “livros” , sugerindo um rompimento
70

com a ordem constitucional.


Diante desse cenário, é possível constatar que, a radicalização
política nos últimos anos, permitiu que a igreja de Tupirani ganhasse
maior visibilidade. A utilização do pixo como ferramenta acaba sendo
uma forma que os membros da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo
aumentarem sua visibilidade e sua voz. A cena política conturbada
favorece a retórica extremista, geralmente com a promessa
de retomada de modos de vida que, de acordo com o discurso desses
grupos, estão próximos de um declínio, a não ser que um novo
movimento impeça, ou ao menos atenue essa decadência.

Existem várias passagens da Bíblia Cristã que retratam este tema. Uma é bastante
69

conhecida quando Jesus, em um discurso sobre o pagamento de tributos ao imperador,


responde para os seus questionadores: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus”. A epístola de Paulo aos Romanos, em seu capítulo 13 também aborda
o tema, destacando a necessidade de respeito às autoridades que foram constituídas,
não pelos homens, mas por Deus.
Os integrantes dessa igreja objeto do trabalho denominam a constituição como sendo
70

um livro.

285
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Trata-se, portanto, de um movimento religioso de cunho


reacionário, autoritário e extremista, que usou a pixação como meio para
a transmissão de seus pensamentos e manifestação de sua ideologia no
espaço público, curiosamente um mecanismo de manifestação visual e
de apropriação do espaço urbano utilizado, via de regra, sob uma
bandeira vinculada à anarquia, a um modo de vida libertário e a um
ideário avesso a qualquer tipo de repressão à liberdade de expressão e as
liberdades individuais e coletivas de uma maneira geral.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Tradução de Denise Bottmann.


São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FURTADO, Janaína R.; ZANELLA, Andréa Vieira. Graffiti e Pichação:
Relações estéticas e intervenções urbanas. Visualidades, v. 7, n. 1, abr.
2012, p. 138-155. Disponível em:
<https://revistas.ufg.emnuvens.com.br/VISUAL/article/view/18123/10
812>. Acesso em: 13 de maio de 2018
ZAMBETTI. Texto da abertura do filme “PixoAção 2”, 2014.

286
A TRIBUTAÇÃO COMO MEIO DE DETERMINAÇÃO DA
OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO - Análise sobre as alterações
promovidas pela Lei 6.250/17, que altera a tributação do IPTU, na
cidade do Rio de Janeiro

Patricia Daniele dos Santos Pita 71

Marcos da Silva Ribeiro 72

Palavras-Chave: Direito Tributário; Direito à Cidade; Tributação e


comportamento; IPTU.

O objeto do trabalho a ser desenvolvido é observar a construção


do espaço urbano por meio da tributação, mais precisamente pelas
determinações da Lei n. 6.250 , promulgada em 2017, pelo prefeito
73

Marcelo Crivella, que promoveu uma série de alterações na cobrança do


IPTU, na cidade do Rio de Janeiro.
Dentre as medidas controversas, a que mais se destaca é a
alteração na chamada Planta Genérica de Valores (PGV), que modificou
o valor venal do imóvel, base por meio da qual se calcula o valor do
IPTU a ser pago, gerando um incremento substancial no montante a ser
pago pelo contribuinte carioca.
O Imposto Predial e Territorial Urbano, cuja matriz normativa se
encontra no art. 156, I da Constituição da República e nos arts. 32 e ss.

71
Mestranda em Direito Constitucional pelo PPGDC da Universidade Federal
Fluminense e cursa especialização em Direito Tributário pela Escola de Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro. http://lattes.cnpq.br/2850579128132845 Telefone: 021
99600-8783 Email: pdpita@gmail.com.
72
Advogado, graduado pela Universidade do Grande Rio e cursa especialização em
Direito Tributário pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
http://lattes.cnpq.br/0325736621037175 Telefone: 021 98112-7024 Email:
marcosribeiro.mr@hotmail.com.
73
Rio de Janeiro. Lei n. 6.250/17, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial do
Município do Rio de Janeiro, RJ, 29 de setembro de 2017, p.3.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

do Código Tributário Nacional, é importante tributo municipal, que, a


depender do caso, pode assumir feições meramente fiscais ou
extrafiscais.
Sobre o potencial do IPTU enquanto marco que delimita – ou
reforça - segregação socioespacial no espaço urbano, é de bom alvitre
enfrentar o tema sob a perspectiva do efeito indutor da norma tributária.
Ciente de que o tributo apresenta diversas funções, como
distribuição de riquezas, intervenção na ordem econômica e social, não
pode se perder de vista que, a partir da incidência da norma tributária, as
consequências daí decorrentes extrapolam o mero dever de pagar o
tributo, isto porque, além da óbvia função arrecadadora, destaca-se a
função alocativa ou indutora.
Calcado na premissa de que a incidência tributária não é neutra
sobre a economia, a partir do momento que se concebe que a tributação
está ligada a comportamentos do particular – como ser proprietário,
possuidor ou titular do domínio útil de imóvel territorial e predial urbano
-, a função indutora resta mais evidente.
A função indutora da norma tributária, traço da extrafiscalidade,
almeja colocar ou induzir o particular a se posicionar em situação na qual
o Estado possa atingir seu desiderato de manutenção do bem comum.
É neste sentido que deve ser conjugada a perspectiva tributária,
relativa à extrafiscalidade do IPTU, com o direito à moradia, que, desde
o advento da Emenda Constitucional 26 de 2000, é direito social, que,
enquanto segunda dimensão dos direitos fundamentais, proclama por
uma atuação estatal positiva.
No caso específico da Lei 6.250/17, segundo a peça de
informações fornecida pela Prefeitura do Rio de Janeiro, na
Representação de Inconstitucionalidade n. 0059752-05.2017.8.19.0000
(BRASIL) (movida contra a lei em apreço), tais alterações legislativas
visavam consolidar uma defasagem de 20 anos sem alteração da Planta
Genérica de Valores na legislação da matéria e, portanto, corrigir um
acumulado déficit arrecadatório, promovendo justiça fiscal por meio do
equilíbrio das contas municipais.

288
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Entretanto, tais medidas revelam e consolidam, por sua vez, uma


tendência profunda no perfil da ocupação do espaço urbano no Rio de
Janeiro, pois por meio da tributação é possível definir e verificar como
são desenvolvidas as políticas urbanas de acesso à cidade, como é
traçado o perfil da ocupação do solo e, no limite, quem pode ocupar
determinado espaço, tendo em vista exclusivamente a capacidade
financeira do cidadão.
Nosso objetivo será, assim, expor como se consolidou a alteração
no valor venal do imóvel residencial, na cidade do Rio de Janeiro, em
quais regiões houve uma supervalorização desses valores, qual o impacto
que ela provoca na vida do morador e como a supervalorização abrupta
se relaciona com um projeto de cidade excludente, que provoca o
deslocamento de populações, cujo poder aquisitivo é desproporcional ao
patrimônio tributado em direção a outros sítios de menor potencial
econômico.
Vale ressaltar que a lei alterou tanto valores de imóveis
residenciais, quanto de imóveis comerciais, mas nos reportamos apenas
aos imóveis residenciais, pois queremos focar na questão de moradia,
acesso e ocupação do espaço urbano pela população diretamente
interessada. Dessa forma, ainda que reconheçamos ser possível
estabelecer comparações e análises da maneira que se efetuou a alteração
entre os imóveis residenciais e comerciais, tal intento seria amplo e digno
de uma comparação isolada.
Os eixos trabalhados visam observar a tendência do Poder
Público, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, em desenhar o espaço
urbano a partir de escolhas mercadológicas, que satisfazem um projeto
de cidade desenhado pela economia liberal.
Neste sentido, posiciona-se o professor Enzo Bello, em defesa de
sua tese de Doutorado:

existe uma correspondência entre os modelos formulados


pelas políticas de urbanização e as práticas de cidadania
desenvolvidas em seu âmbito. No período contemporâneo,
preconiza-se um ideal globalizado de cidade que expressa

289
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção
elementos da tradição da política liberal, voltada à
promoção da impessoalidade e homogeneidade no espaço
público, pautada por políticas de urbanização de conotação
empresarial (SASSEN, 1998, passim). Assim, embora haja
o reconhecimento de uma importante e renovada gama de
direitos de cidadania, estes persistem negligenciados na
prática pelo poder público, que, paralelamente, instituem
normatividades legitimadoras de posturas de exclusões e
desigualdades sociais. (BELLO, 2011, p. 4).

Dessa forma, nossa proposta é promover uma análise crítica à


atual legislação do IPTU da cidade do Rio de Janeiro (Lei 6.250/17), de
modo a demarcar como tal ato normativo corrobora com o contexto
segregador que, historicamente, tem sido traço marcante no Rio de
Janeiro.
Especialmente no que tange à alteração de parte do critério
quantitativo da regra matriz de incidência tributária – neste caso, da base
de cálculo -, é seguro dizer que o efeito prático daí decorrente, qual seja,
a majoração da carga tributária releva que as mudanças levadas a efeito
pelo legislativo municipal aprofundam a agenda de cidade excludente.
O efeito prático da norma em estudo repercute também na
violação de princípios constitucionais, como a capacidade contributiva,
plasmada no art. 145, parágrafo 1º da Constituição da República, que
positiva, em relação à tributação, arquétipos importantes para se atingir
o desiderato de tributação justa, ao levar em consideração o mínimo
existencial, a vedação de confisco e a exigência de isonomia.
Aliomar Baleeiro entende que “a capacidade contributiva do
indivíduo significa sua idoneidade econômica para suportar, sem
sacrifício do indispensável à vida compatível com a dignidade da pessoa
humana, uma fração qualquer do custo total dos serviços públicos”
(BALEEIRO, 1987, p. 259). Aspectos efetivamente comprometidos pela
lei tributária em apreço.
Por fim, a relevância fundamental desse trabalho é promover o
estudo crítico da norma implementada pela Prefeitura do Rio de Janeiro

290
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

(Lei 6.250/17), de modo a obter dimensão do seu real impacto e de como


ela está alocada dentro de um contexto histórico, social e econômico, que
prioriza a desigualdade social e exclusão de minorias do acesso à cidade.

Referências bibliográficas

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças.


14.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
BELLO, Enzo. Teoria dialética da cidadania: política e direito na
atuação dos movimentos sociais urbanos de ocupação na cidade do Rio
de Janeiro. Tese (Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Direito. Rio de Janeiro, 2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Representação de Inconstitucionalidade n. 0059752-
05.2017.8.19.0000. Relator: Desembargadora Elisabete Filizzola.
Disponível em:
http://www4.tjrj.jus.br/portalDeServicos/montarProcesso?txtNumero=2
017.007.00276&codTipProc=2&codCNJ=0059752-
05.2017.8.19.0000&indExibCodProc=N&USER=. Acesso em: 08 maio
de 2018.
RIO DE JANEIRO. Lei n. 6.250/17, de 28 de setembro de 2017. Diário
Oficial do Município do Rio de Janeiro, RJ, 29 de setembro de 2017, p.3
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 7. ed. – São Paulo:
Saraiva, 2017.
______. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica.
Rio de Janeiro: Forense, 2005.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário.
18. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

291

A LUTA PELO DIREITO À CIDADE: UMA EXPERIÊNCIA
VIVIDA ATRAVÉS DO NEPFE NAS OCUPAÇÕES ZUMBI DOS
PALMARES E 06 DE ABRIL DE 2010

Maria Caroline da Silva Souza 74

Mariana Cristina da Silva Andrade 75

Palavras-chaves: Direito à Cidade; Movimentos Sociais; MTST;


NEPFE; Serviço Social.

O presente resumo é resultado dos Trabalhos de Conclusão de


Curso “Breves reflexões sobre o Direito à Cidade: a luta do MTST no
Rio de Janeiro” e “Serviço Social e Extensão Universitária: a
experiência do NEPFE em parceria com o MTST”elaborados a partir da
experiência no projeto de extensão: “Questão urbana, movimentos
sociais e Serviço Social: a luta pelo direito à cidade” executado
peloNúcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares
(NEPFE), vinculado a Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense, junto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Este relato tem como objetivo trazer considerações sobre o direito
à cidade, em um contexto de capitalismo tardio e desenvolvimento
desigual e combinado; desmitificar a luta do MTST e relatar a
experiência empreendida pelo NEPFE.
No ano de 2014 o MTST retorna ao Rio de Janeiro com a
ocupação Zumbi dos Palmares em São Gonçalo, a partir disto o NEPFE

74
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares
(NEPFE). E-mail: carolinedassouza@hotmail.com.Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8567511748228206
75
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares
(NEPFE).E-mail: marianacsandrade@live.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8172643033390261


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

passa a assessorar o movimento via extensão universitária. Esta


assessoria ocorre por diferentes ações realizadas junto ao MTST, nos
períodos de e pós-ocupação. Este projeto tem como objetivo contribuir
para o enraizamento do movimento na região metropolitana do Rio de
Janeiro; reiterar o papel social da universidade pública e possibilitar a
inserção de docentes e discentes no processo de organização de um
segmento da classe trabalhadora na luta por direitos.
Diante dessa participação, criou-se a necessidade de entender o
motivo de ocupar um determinado lugar e quais os resultados que essa
ocupação traz para a população. Portanto, foi necessário o estudo da
constituição do capital e sua trajetória, pontuando seus impactos na
formação social/política brasileira até os dias atuais, bem como o
surgimento de uma sociedade desigual. Em vista da segregação e
exploração ao qual parte da população está submetida, intensifica-se a
organização e luta dos movimentos sociais em busca de seus direitos.
A metodologia do presente trabalho baseia-se no estudo sobre o
direito à cidade, com base na teoria social crítica; revisão bibliográfica
de autores de referência na temática, utilizando de teorias compatíveis
com a luta dos movimentos sociais em busca de uma sociedade que
disponha de uma estrutura de qualidade para todos e o cessamento da
segregação espacial. Consulta a estudos, relatórios, leis, decretos e
legislações; resgate dos materiais do MTST; sistematização e análise das
experiências vivenciadas no projeto de extensão.
Prado Jr. (1966) analisa que a forma em que o Brasil se adapta ao
capitalismo é lenta, tendo em vista que o processo de modificação do
trabalho escravo para o trabalho livre também ocorre de forma lenta.
Ianni (1989) aponta que o desenvolvimento desigual e combinado no
Brasil se configura como “uma formação social na qual sobressaem
ritmos irregulares e espasmódicos, desencontrados e contraditórios.”.
Desde os primórdios, a sociedade brasileira é marcada por aspectos da
questão social, segundo Ianni (1989) a questão “reflete disparidades
econômicas, políticas e culturais, envolvendo classes sociais, grupos
raciais e formações regionais”, mostrando sempre a relação entre

294
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

sociedade civil e o poder estatal. Dessa forma percebemos o movimento


desigual e combinado no Brasil, onde a desigualdade entre classes
cresce, a partir do momento em que o Estado utiliza-se de estratégias
ilusórias, passando a imagem de melhoria para a sociedade através do
desenvolvimento industrial, buscando enriquecer cada vez mais à custa
da força de trabalho da classe trabalhadora. A combinação do desigual,
também se evidencia no desenvolvimento das diferentes regiões do país
e também no interior das cidades, formando territórios desenvolvidos e
outros pauperizados.
É através do crescimento das desigualdades sociais que os
movimentos sociais ganham força durante a década de 70 que em busca
da redemocratização do país se fortalecem e ganham as ruas em busca
de eleições diretas. A partir de muita luta conquista-se a Constituição
Federal de 1988, conhecida por ser uma constituinte com participação
efetiva popular que garantia direitos nunca discutidos antes por nenhuma
outra constituição.
Harvey (2012) evidencia que embora a CF/88 traga leis que
garantam a regularização fundiária e o direito à moradia, com o passar
dos anos podemos perceber que o ordenamento territorial ainda é tímido
e, portanto, o direito à cidade vem com o ideal de legalizar a cidade
informal, porém esse direito é um direito que vai além do acesso a
urbanização. Segundo Harvey (2012) o direito à cidade não é o direito
ao que existe na cidade, mas sim o direito de transformar a cidade em
algo diferente. Para ele é a liberdade do próprio indivíduo mudar de
acordo com a transformação da cidade. Lefebvre (2008) elucida que
somente a classe operária é capaz de por fim a segregação contra ela
mesma, somente a mesma é capaz de uma revolução urbana.
Apesar do direito à moradia estar expresso no artigo 6 da
Constituição Federal de 1988, como um dos direitos sociais referentes a
toda a população, ele é negado para uma grande parcela da população
brasileira. Em virtude do grande déficit habitacional existente surge no
final da década de 1990, especificamente em 1997 na luta por moradia e
pela Reforma Urbana o MTST.Sua ação concentra-se em ocupações de

295
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

terrenos vazios a fim de pressionar o Estado a construir


empreendimentos habitacionais . Estas ações propõem-se a dar um novo
76

significado ao espaço urbano. O MTST deixa exposto que as suas


ocupações não têm o intuito de produzir novas favelas, diferente das
favelas que são, em geral, produto de ocupações não organizadas; as
ocupações gestadas por movimentos sociais constroem interessantes
experiências, sob uma nova lógica de organização do território urbano.
(BOULOS, 2014).
Tendo como objeto de estudo o Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto, a partir da experiência do NEPFE, buscamos compreender
seus desafios ao longo dos anos, a fim de entender através de sua
organicidade suas transformações na luta pelo direito à cidade e pela
reforma urbana.
Após compreender sobre a historicidade e organicidade do
movimento, vemos que com a política neoliberal e com a retirada dos
direitos da classe trabalhadora por parte do governo é necessário que se
crie estratégias, seja através de ocupações, fechamento de rodovias
importantes, dentre outras. O fato é que precisamos lutar afim de garantir
nossos direitos já conquistados.
Além de contribuir para o enraizamento e fortalecimento do
MTST na região metropolitana do Rio de Janeiro e toda a sua relevância
para os usuários por ele atendidos, o projeto de extensão“Questão
urbana, movimentos sociais e Serviço Social: a luta pelo direito à
cidade” tem grande importância para a formação profissional em Serviço
Social por possibilitar aos discentes a aplicabilidade dos conhecimentos
adquiridos dentro da universidade e desenvolvimento de competências e
habilidades necessárias ao fazer profissional. Para a universidade,
projetos deste porte resgatam a sua função social de compromisso com
os interesses da classe trabalhadora.

76
Como expresso no artigo 23 da Constituição de 1988: "É competência comum da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] IX – promover
programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de
saneamento básico;"

296
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Referências

ANDRADE, Mariana. “Breves reflexões sobre o Direito à Cidade: a


luta do MTST no Rio de Janeiro”. Trabalho de Conclusão de Curso
(Bacharelado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social.
Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, 2017.
BOULOS, Guilherme Castro. Por que ocupamos?. São Paulo: Editora
Tecci, Câmara Brasileira do Livro, 2012.
BRASIL. Constituição Federal do Brasil. 1988.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29,
p.73-89, jul./dez. 2012
IANNI, Octávio. A Questão Social. Ci. & Tróp., Recife, v.17 n.2, p.
189-202, jul/dez, 1989.
PRADO JUNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1966.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008.
SOUZA, Maria Caroline da S. Serviço Social e Extensão
Universitária: a experiência do NEPFE em parceria com o MTST.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Serviço Social) –
Escola de Serviço Social. Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio
de Janeiro, 2018.

297

CIDADE E GÊNERO: uma reflexão sobre os conflitos entre o
desenvolvimento urbano e uma cultura generificada

Felipe Romão de Paiva 77

Palavras-Chave: cidade; capitalismo; sexualidade; gênero.

O presente trabalho tem como objetivo discutir as tensões sociais


decorrentes direta e indiretamente do desenvolvimento urbano, em
especial aqueles marcados pelo gênero, numa perspectiva interseccional
que também envolve raça e classe. A metodologia adotada é a da
pesquisa interdisciplinar, com orientação epistemológica na teoria crítica
entre os ramos do Direito, Sociologia e Antropologia. Proponho uma
pesquisa de natureza qualitativa, instrumentalizando em termos de
estratégias e técnicas de pesquisa os raciocínios indutivo e dedutivo, por
meio de revisão bibliográfica e análise documental ilustrativos da
regulação social marcada pelo gênero.
Para tanto, considero como plano de fundo a relação entre cidade
e capitalismo, associando à ideia da globalização como fenômeno
resultante de um projeto de hegemonia mundial; a questão da
classificação das pessoas com base na raça, extermínio de culturas, como
estratégias de discriminação de locais e sujeitos, para posterior
dominação. Quijano explica a globalização como a culminação de um
processo que começou com a constituição da América e do capitalismo
colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder
mundial, que tem como premissas constituintes a classificação social da
população mundial de acordo com a ideia de raça, e que, ao longo do

77
Advogado e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional na
Universidade Federal Fluminense. Contato: feliperpaiva@hotmail.com, Link para
Currículo Lattes:
https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=BC20D72F26075192
1710E0BDE5BD0010#


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

tempo, foi aprimorado, numa lógica não-linear, com outras vertentes


como classe e gênero, numa ordem interseccional em que tais fatores se
conjugam impondo uma matriz hierárquica entre os sujeitos que pode ser
conceituada como colonialidade. A sociedade, assim, passa a se
configurar nos moldes da Modernidade, aqui utilizada como algo que
pretende instituir um padrão de poder mundial capaz de controlar as
relações sociais por meio de suas estruturas sob a hegemonia de uma
instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento
deste mesmo padrão de poder. Adoto, para os fins deste trabalho, a
ideologia burguesa como a principal representação da Modernidade,
materializada especificamente na urbanização e na sexualidade.
O surgimento das cidades é um elemento denotativo do processo
de globalização, seja pela origem contextualizada no âmbito da formação
e do desenvolvimento da sociedade capitalista, especialmente na época
das revoluções industriais; seja pela constatação de que, para a
implementação de uma hegemonia mundial, as localidades devem ser
mitigadas em prol de um sistema harmônico de vida.A urbanização do
capital pressupõe a capacidade do poder da classe capitalista de dominar
o processo urbano, não somente sobre os aparatos estatais, como também
sobre toda a população: sua forma de vida assim como sua capacidade
de trabalho, seus valores culturais e políticos, assim como suas
concepções de mundo. Portanto, a urbanização capitalista tende
perpetuamente a destruir a cidade como bem comum social, político e
vital (HARVEY 2008).
Esta breve abordagem a respeito da segregação espacial urbana
nos revela uma conexão com a história do confinamento da família na
intimidade do lar, que, “por sua vez, tem a ver com a história da morte
do espaço da rua como lugar de trocas cotidianas, espaços de
socialização” (FOUCAULT, 1998, p. 51). Extraio daí as conformações
culturais a respeito de sexo/gênero, que se manifestam de inúmeras
formas no modus operandi de uma sociedade capitalista, exemplificadas
em casos denotativos de uma cultura generificada, isto é, uma cultura em
que há a designação de papéis de gêneros distintos a homens e mulheres.

300
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Ou seja, “a sexualidade é este processo social que cria, organiza,


expressa e direciona o desejo, criando os seres sociais que conhecemos
como homens e mulheres, do mesmo modo como suas relações criam a
sociedade... A expropriação organizada da sexualidade de alguns para o
uso de outros define o sexo, mulher” (MACKINNON, Catherine apud
HARAWAY, 2004). Os discursos não somente disciplinam, dirigem e
utilizam os sujeitos, como também os constitui ativamente, e que tal se
dá pelo exercício da regulação através da norma.“Assim, um sentido
importante da regulação é que as pessoas são reguladas pelo gênero e
que esse tipo de regulação opera como uma condição de inteligibilidade
cultural para qualquer pessoa” (BUTLER, 2014, p. 249-274). Eis a
essência do que Michel Foucault descreve como bio-poder:

Sem a menor dúvida, este buo-poder foi elemento


indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só
pode ser garantido à custa da inserção controlada dos
corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de população aos processos
econômicos. Mas o capitalismo exigiu mais do que isso;
foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu esforço
quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe
necessários métodos de poder capazes de majorar as
forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las
mais difíceis de sujeitar, se o desenvolvimento dos grandes
aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu
a manutenção das relações de produção, os rudimentos de
anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII
como técnicas de poder presentes em todos os níveis do
corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a
família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina
individual ou a administração das coletividades), agiram
no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das
forças que estão em ação em tais processos e os sustentam;
operaram também como fatores de segregação e de
hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas
tanto de uns como de outros, garantindo relações de
dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da

301
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção
acumulação dos homens à do capital, a articulação do
crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro foram, em
parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com
suas formas e procedimentos múltiplos. (FOUCAULT,
1998, p. 133)

O tratamento médico estendido a pacientes intersexuais é um dos


exemplos desta cultura em que o gênero é um marcador de diferenciação.
Em razão da dificuldade de se designar um sexo aos pacientes
intersexuais logo após o nascimento, a “Declaração de Nascido Vivo” é
impedida de ser expedida, mesmo considerando este um documento
essencial para o registro civil aos olhos do Estado, que, por sua vez,
“distribui aos profissionais de saúde a responsabilidade de determinar o
diagnóstico e o sexo do bebê”. Somente assim poderá ter um registro,
um prenome, produzir outros documentos, tomar as vacinas no posto, ser
socializado na gramática de gênero coerente ao seu sexo designado,
enfim, começar uma vida de fato. Neste sentido, o bem-estar pode ser
lido como o efeito de uma qualidade de vida generificada em normas,
saberes, práticas, moralidades desta totalidade binária” (PIRES, 2017, p.
8-9).
A violência doméstica é outro exemplo de uma cultura
generificada, principalmente ao considerar “a mulher – afastada da
produção e do contato com os assuntos do mundo exterior – acabou
virando “a rainha do lar”, uma especialista em domesticidade”
(FOUCAULT, 1998, p. 50). Isto é, o confinamento da família na
intimidade do lar reproduz uma relação desigual entre seus membros, de
modo que a lógica do espaço da rua como um ambiente de socialização
deixa de existir em prol de uma família, que, por sua vez, não se relaciona
de forma harmoniosa. A mesma lógica que confina a família dentro do
lar é a mesma comungada em espaços públicos. Isto é, se a violência
comumente investida contra as mulheres parte de um ambiente
doméstico, não é razoável supor que o espaço público não estaria
imbricado em tal premissa desigual da mesma forma. Isto porque “existe

302
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

um tipo particular de violência, baseado nas assimetrias de poder


imbricadas em determinadas relações sociais, aquelas que são marcadas
pelo gênero e que não se restringem à violência familiar” (Ibidem, p.
170), “não se manifesta apenas nas esferas da vida doméstica, tampouco
nas posições ocupadas por homens e mulheres no núcleo familiar”
(Ibidem, p. 176). Contra esta ideologia há uma abordagem pública
feminista sobre conflitos e violência na relação entre homens e mulheres
como resultante de uma estrutura de dominação, e que repercute
inclusive no processo de urbanização. Eis a lógica do bio-poder,
categoria foucaultiana elementar para a compreensão do que pretendo
neste trabalho: relacionar a urbanização ao gênero.
O processo capitalista de urbanização destruiu a cidade como
corpo político operativo sobre o qual poderia construir uma alternativa
anticapitalista civilizada. As violências que se reproduzem influenciadas
por vários fatores devem ser problematizadas, cada qual ao seu modo, a
fim de diagnosticar o elemento mitigador de culturas e identidades
locais. No caso das violências de gênero, tentei demonstrar como é
possível associá-las a um padrão burguês de sociabilidade que tem
inúmeras repercussões, dentre as quais a imposição de uma cultura
generificada que subordina homens e mulheres aos papeis pré-instituídos
de gênero. Tal subordinação decorre da dicotomia masculino-feminino,
cuja articulação desigual faz parte de uma prática social mais ampla que
cria, por sua vez, corpos generificados – mulheres femininas e homens
masculinos - por meio de regulações tendentes a manter o status quo,
que, por si, subsume homens e mulheres em posições desiguais em
sociedade, dando azo a vários episódios de tensões, conflitos e violência.
Organizar ações que visam a eliminar a violência de gênero implica
esboçar outros modos de conceber a sociedade-família, e também de
cidade.

303
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Referências bibliográficas

BELLO, Enzo. A cidadania na luta política dos movimentos sociais


urbanos. Caxias do Sul, RS: Educs, 2013
BUTLER, Judith. Regulações de Gênero. Cadernos Pagu, Campinas, nº
42, 2014, p. 249-274.
DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e Gênero:
novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, vol. 23, nº 66, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber,
tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1998.
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política
sexual de uma palavra”. CadernosPagu, 22, Campinas, Unicamp, 2004.
HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, nº 53,
sept./oct., p. 23-40, 2008. Disponível em:
<https://newleftreview.org/II/53/david-harvey-the-right-to-the-city>.
Versão em português: HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à
cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
PIRES, Bárbara. Gestão de corpos, regulação de integridades: uma
reflexão sobre direitos e intersexualidade. No prelo, 2017.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina. In: LANDER, Edgardo (comp.). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais: perspectivaslatino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2000, p. 107-130. Disponível em:
<http://www.antropologias.org/rpc/files/downloads/2010/08/Edgardo-
Lander-org-A-Colonialidadedo-Saber-eurocentrismo-e-ciências-
sociais-perspectivas-latinoamericanas-LIVRO.pdf>>.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2004.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação
do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.

304
A EMANCIPAÇÃO HUMANA E AS PRÁTICAS DE
CIDADANIA NA COMUNIDADE “CIDADE DOS MENINOS”

Marcelo dos Santos Garcia Santana 78

Palavras-Chave: Direito à Cidade; Cidade dos Meninos; emancipação


humana; cidadania ativa; novos direitos.

Este resumo estabelece um panorama sócio histórico do conflito


fundiário da Cidade dos Meninos, comunidade que surgiu na década de
1940 no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, sistematizando
os pressupostos teóricos que legitimam discursivamente as práticas
cidadãs, que são capazes de direcionar um movimento de
autolegitimação e produção de novos direitos urbanos de cidadania.
O recorte na história de surgimento e ocupação do local, desde a
criação do abrigo Cristo Redentor, até a construção da fábrica de HCH
(hexaclorociclohexano) e o encerramento de suas atividades, denuncia o
surgimento de um passivo socioambiental sem precedentes na história
do Estado. Atualmente a comunidade encontra-se alijada de qualquer
tipo de prestação estatal e aberta a constantes novas ocupações, sendo
um exemplo da dinâmica da luta por direitos humanos no Brasil. O
conflito socioambiental é travado em uma área categoricamente de
expansão urbana, que se revela de extremo interesse imobiliário, capaz
de pôr em evidência a necessidade de desocupação do local para
atendimento de interesses do capital.
A narrativa que se desenvolveu pelo poder público a partir da
constatação de contaminação da área habitada por essas famílias é a de
que deveria ser integralmente desocupada (BULCÃO, 2013), com o

78
Mestre em Direito e Teoria do Direito pela Universidade Presidente Antônio
Carlos/MG, Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ,
Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá/RJ.E-mail:
marcelo.santana@estacio.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8778362780841489.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

objetivo de descontaminação e preservação da saúde das pessoas que ali


habitam. Desde então, o que se pôde perceber nas visitas já realizadas à
comunidade, é que um número não determinado de famílias receberam
indenizações decorrentes de decisões judiciais e adquiriram imóveis em
outros bairros do município. Trata-se categoricamente de área de
expansão urbana e não se sabe exatamente qual, ou quais seriam os
interesses do poder público no processo de desocupação.
O que se verifica atualmente é que, tanto as famílias que vivem
na Cidade dos Meninos desde a sua fundação, quanto as que
recentemente ocuparam o local, sofrem todo tipo de pressão dos poderes
públicos local, regional e federal, sendo objeto de cotidianas operações
de desocupação forçada. Verifica-se, pois, um conflito fundiário de
natureza socioambiental, onde a intranquilidade, incerteza e falta de
esperança são, em uma primeira análise, o quadro desenhado na Cidade
dos Meninos.
O processo de formação da comunidade da Cidade dos Meninos
seguiu o modelo de cidades periféricas (SANTOS, 1993, p. 76), típico
da industrialização neoliberal que se propagou, e ainda se propaga, no
Brasil. A polarização na distribuição da riqueza e do poder desenharam
os municípios da Baixada Fluminense. Tal exigência capitalista se deu
pela necessidade de destinação dos excedentes de produção, na medida
em que a ligação entre a capital e as novas cidades formadas na periferia
viabilizam possibilidades de reinvestimento desses excedentes.
A exigência, hoje, permanece. A absorção do excedente de
produção por meio da transformação urbana implica em uma grande
recorrência de reestruturação urbanística por meio de uma “destruição
criativa” que, nas palavras de David Harvey, se reflete em uma dimensão
de classe, sendo a mais afetada a dos pobres, desprivilegiados e
marginalizados do poder político (HARVEY, 2014, p. 50). Os cantos
habitados pelos trabalhadores, na lógica de produção capitalista, não são
erradicados pela destruição criativa, mas sim transferidos.
A proposta de ocupação e resistência pela comunidade da Cidade
dos Meninos pretende desafiar toda a lógica da sociedade caxiense.

306
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Tratados como óbice à expansão imobiliária e sendo uma comunidade


composta, basicamente, por trabalhadores de baixíssima renda, a
comunidade pretende resistir a ideologias capitalistas de reforma urbana.
E é exatamente essa classe operária (nunca deixou de ser uma luta de
classes), grupos ou frações de classes sociais, que são capazes de
iniciativas revolucionárias. “Com essas forças sociais e políticas, a
cidade renovada se tornará a obra” (Ibidem, p. 122).
A Cidade dos Meninos, considerando todos fatores sociais e
ambientais que se projetam sobre a construção histórica daquela
comunidade, vive hoje no centro de uma das questões mais polêmicas a
serem enfrentadas pelo Estado. O impasse, ao que tudo indica, está longe
de ser resolvido de forma que as pessoas que ali vivem possam gozar de
condições ideais de identidade urbana, cidadania e pertença, a partir de
políticas urbanas coerentes. Pelo que se verifica, a questão vem sendo
enfrentada por meio de uma ótica neoliberal individualista, o que
inviabiliza a ideia de se criar uma cidade que funciona a partir de um
corpo coletivo político.
O ideal de construção coletiva do espaço público, através da
adoção de políticas públicas que incentivem e viabilizem a participação
da comunidade nas decisões políticas que envolvem os problemas por
elas enfrentados, parece compor aquilo que se possa entender como o
cerne do direito humano à cidade.
A Cidade dos Meninos, em uma percepção inicial, está longe
disso. Aquela comunidade tenta buscar, através de um precário
movimento de organização, superar o isolamento a que sempre foi
submetida, objetivando reconfigurar a cidade de modo que ela passe a
apresentar uma imagem social diferente daquela que foi dada pelos
poderes do capital.
A pressão exercida pelo poder público sobre os moradores da
Cidade dos Meninos com vistas à desocupação da área é motivada pelo
interesse de expansão urbana e imobiliária, utilizando, para tanto, o
discurso de proteção de direitos humanos dos próprios moradores.

307
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Os direitos humanos, apesar de possuírem “intencionalidade


crítica”, não são por si só críticos, já que podem servir à libertação ou à
opressão (GÁNDARA CARBALLIDO, 2014, p. 94). A complexidade
social e o pluralismo não são contemplados na concepção liberal de
direitos humanos (Ibidem, p. 93), a partir de uma ideologia que subjaz e
ao mesmo tempo preconiza práticas de desculturação, reculturação e
imposição de novo padrão global de controle do trabalho (BELLO, 2015,
p. 53-54).
Nesse sentido, a importância da ressignificação do conceito de
direitos humanos surge como pressuposto para análise das ações
implementadas pelos movimentos sociais naquela comunidade.
Portanto, o objetivo de fazer com que os direitos humanos sejam
instrumentos de efetivação do atributo da dignidade e de consequente
libertação política, passa pela proposta de ressignificação desses direitos
a partir da realidade (econômica, política, social, cultural, etc.) daqueles
que se encontram sob sua tutela formal.
Repensar os direitos humanos pressupõe reconhece-los como
produto histórico, conquistados por meio da luta de povos em busca de
libertação e compreender que a consagração normativa desses direitos
79

não pode esvaziar sua carga utópica. Construir uma teoria crítica de
direitos humanos que vá além do patamar reivindicativo, mas que
mergulhe em uma nova dimensão política, possibilitando a construção
de novas práticas sociais, econômicas, políticas e culturais, antagonistas
das injustiças promovidas pela ordem global.
Em termos de resultados preliminares, se pôde compreender com
a leitura de documentos e notícias divulgadas, que as famílias que vivem
na Cidade dos Meninos desde a sua fundação e as que recentemente
ocuparam o local sofrem todo tipo de pressão dos poderes públicos local,

A palavra “libertação” é aqui utilizada em consonância à uma simbologia; readequação


79

linguística decorrente do pensamento descolonial. Sobre o assunto, recomendo a


leitura de BELLO, 2015, p. 49-61.

308
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

regional e federal, sendo objeto de cotidianas operações de desocupação


forçada.
Com base na pesquisa exploratória e da observação não
participante, constatou-se que toda a ação do Estado em relação à questão
social na Cidade dos Meninos é absolutamente dissociada daquilo que se
entende pelo direito humano à cidade. Na verdade, ao que tudo indica, o
interesse econômico, com a expansão urbana a partir de grandes
construções e investimento imobiliário, parecer ser o mote das
desocupações.
Objetivando compreender inquietações, queixas e reivindicações
dos moradores do local, com a análise dos processos de participação
cidadã direta na dinâmica de luta por direitos, abordando categorias
como “cidadania ampliada”, “emancipação humana” e modelo
“estadocêntrico” de normatização e legitimação de ações, a pesquisa
buscará no campo, através de observação não participante, identificar os
novos direitos urbanos de cidadania que surgem naquela dinâmica de
luta por direitos humanos.
Com a pesquisa de campo, que se encontra em fase inicial,
pretende-se responder as seguintes indagações: (i) se os sujeitos da
Cidade dos Meninos desenvolveram algum nível de organização política,
ainda assim seria possível dar continuidade ao processo de resistência
pela ocupação, de forma a viabilizar a construção da cidade de acordo
com os modos de ser, fazer e viver daquela comunidade? (ii) Para tanto,
quais seriam suas queixas e exigências? (iii) O projeto de desocupação
da área pelo poder público, que se opõe ao aparente interesse de luta por
direitos por parte dos moradores, visa atingir quais objetivos primários e
secundários? (iv) Como se dá o processo de criação de novos direitos a
partir das práticas cidadãs?
A característica empírica da pesquisa, com seu viés social, lhe
atribui determinado grau de ineditismo. O tema é relevante a partir da
consciência de que a evolução do conhecimento da categoria do direito
à cidade é extremamente importante para a organização da sociedade, na
implementação de práticas cidadãs capazes de criar um ambiente de

309
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

participação democrática e de construção coletiva do que efetivamente


pode ser a cidade. Em termos metodológicos, a pesquisa é
interdisciplinar e tem natureza qualitativa, assume um perfil jurídico-
sociológico e tem por característica a busca por pesquisa empírica.

Referências bibliográficas

BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o novo modelo de cidadania


do novo constitucionalismo latino-americano. RECHTD – Revista de
Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, São
Leopoldo, Núm. 7, 2015, p. 53-54.
BULCÃO, Luís. “Famílias começam a ser removidas após 48 anos de
contaminação no RJ”. G1, 10/05/2013. Disponível em
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/05/familias-comecam-
ser-removidas-apos-48-anos-de-contaminacao-no-rj.html. Acesso em
02/01/2017.
GÁNDARA CARBALLIDO, Manuel Eugénio. Repensando os direitos
humanos a partir das lutas. RCJ – Revista Culturas Jurídicas, Niterói,
Vol. 1, Núm. 2, 2014.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução
urbana. Tradução: Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

310
UNIVERSIDADE COMO ALTO-FALANTE: UMA QUESTÃO
DE DAR VOZ OU DE TER OUVIDOS? - Tecnologias Sociais de
Inovação em Direito em Favelas de Niterói e São Gonçalo

Igor Peçanha Frota Vasconcellos 80

Izabela Fernandes Santos 81

Luana de Rezende Bragança 82

Matheus Penteado N. dos Santos 83

Palavras- Chave: tecnologia social; favela; exclusão; universidade;


esperança.

O presente trabalho busca discutir o papel das chamadas


tecnologias sociais na luta contra a exclusão da cidade, enfatizando o
papel que a universidade pode exercer de potencializar práticas sociais
cotidianas e autônomas que oferecem respostas aos problemas sociais
decorrentes do processo de segregação social crônico e culturalmente
estabelecido que vivenciamos principalmente nas capitais brasileiras
Brasil. Tal discussão apresentará como suporte empírico o processo de
formação da Associação Esportiva e Cultural das Comunidades de
Niterói e São Gonçalo (AECCO) que desde 2015 já realizou três Copa
das Comunidades, todas na cidade de Niterói, o que foi objeto de
pesquisa da dissertação de mestrado de um dos autores e contou com a
participação como pesquisadora do NUPIJ - Núcleo de Pesquisa em
Práticas e Instituições Jurídicas.

80
Mestrando no Programa de Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense
- UFF; igorp@id.uff.br; http://lattes.cnpq.br/2044161073265234
81
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF;
izabelafs@id.uff.br; http://lattes.cnpq.br/0926143726886981
82
Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF;
luanabraganca@yahoo.com.br; http://lattes.cnpq.br/2390102122224983
83
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF;
m.penteadons@gmail.com ;http://lattes.cnpq.br/6307341758559474


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Nesse sentido, cumpre salientar, em primeiro lugar, que se


compreende para fins deste trabalho tecnologias sociais como “produtos,
técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com
a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação
social.”, definição esta produzida e consignada pela Rede de Tecnologias
Sociais (DAGNINO, 2009; RTS).
Assim, as tecnologias sociais são experiências nas quais os
problemas sociais são identificados enquanto tais pelos próprios grupos
humanos envolvidos bem como é o saber local (nativo/popular) que
produz prioritariamente as respostas para aqueles (DE JESUS &
COSTA, 2013; DAGNINO, 2009), invertendo a lógica da extensão
tradicional como há muito já criticava Paulo Freire (1979) em seu
seminal “Extensão ou Comunicação”.
A tecnologia social ora discutida foi conhecida e observada a
partir de um relação estabelecida pelo grupo de pesquisa
supramencionado, NUPIJ (ver TARDELLI, 2017), grupo de pesquisa da
Faculdade de Direito da UFF com a associação de moradores do Morro
do Palácio que iniciou por uma demanda dos moradores e teve como uma
primeira etapa pesquisa censitária realizada por jovens da própria favela,
gerando como consequências imediatas a realização de duas COPECAS
(Copa + ECA) em razão da demanda por lazer diagnosticada pelo censo
e da conjuntura da Copa do Mundo que se aproximava. Tal parceria
desembocou no processo de participação direta na formalização da
AECCO e na participação direta na organização da Copa das
Comunidades 2016.
A associação surgiu a partir de um descontentamento das
“lideranças” esportivas de favelas de Niterói e São Gonçalo com a
dificuldade estrutural de participar da Taça das Favelas, campeonato
organizado pela CUFA (Central Única das Favelas). por questões
relacionadas a deslocamento, condições financeiras e organização do
campeonato. E ainda mais importante, a percepção de que em razão da
divisão das comunidades pelas facções que comandam o tráfico eles não

312
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

jogavam com seus vizinhos, apenas quando iam para capital sob a
proteção do “espaço neutro” da CUFA.
Como resposta a esse problema autonomamente percebido
lideranças de 13 favelas da região (Niterói, São Gonçalo e Itaboraí)
criaram a Liga das Comunidades, realizando a I Copa das Comunidades
no campo do batalhão da PMERJ em Niterói - local escolhido
cirurgicamente pelo receio existente entre juntar times de favelas
dominadas por facções diferentes.
Destarte, considerando a cidade como uma:

construção coletiva do compartilhar de percepções,


concepções e experiências de mundo. Resultado da ação
de vínculos das relações sociais com a natureza, a cidade é
um espaço de encontro e constituição das diferenças. Nesta
perspectiva podemos afirmar que a cidade é uma criação
humana territorialmente impressa. É a sociedade,
ganhando conteúdo e forma, em uma dimensão concreto-
simbólica particular (BARBOSA & SILVA, 2013).

E, portanto, o conceito de direito à cidade, normativamente


previsto na Constituição Federal de 1988 na condição de direito
fundamental, caracterizando-se enquanto um direito síntese, vez que se
encontra intrinsecamente relacionado à implementação de outros direitos
fundamentais de caráter individual e social no âmbito da cidade, como
moradia, transporte coletivo, saneamento, saúde e trabalho. Isto é, o
direito à cidade é também uma materialização do direito a uma sociedade
menos desigual com dignidade e igualdade.
Assim, a criatividade, engajamento e protagonismo desses atores
sociais opõe-se aos estigmas sociais da criminalidade e mecanismos
juridicamente irregulares associados a favela, a exemplo do que fala
Maricato (2000) que são na verdade produtos de uma exclusão operada
pela cidade através de diversos dispositivos (FOUCAULT, 2000), como
destacam as pesquisas de GONÇALVES, MACHADO DA SILVA,
VALLADARES, ZALUAR & ALVITO entre outros.

313
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Deste modo, em consonância com o percebido na pesquisa


empírica o foco na percepção dos moradores dessas localidades
unicamente como hipossuficientes jurídicos, sujeitos passivos é
historicamente confrontado com diversas descrições de movimentos
realizados pelos ditos favelados ou favelizados, desde de mutirões para
resolver “problemas particulares” até a União dos Trabalhadores
Favelados criada na década de 1950 (PESTANA, 2016), além de
diversos outros movimentos destacados nas pesquisas supracitadas.
Sob essa perspectiva, cabe considerar a possibilidade de se
considerar a Universidade Pública como espaço fundamental na
realização de políticas sociais voltadas à comunidade a fim de promover
a efetivação do direito à cidade. O contexto sociopolítico no qual a
Academia se insere, muitas vezes, é altamente propício ao
desenvolvimento de atividades de extensão que integrem os corpos
discente e docente à comunidade em suas adjacências, de modo que se
torne possível a disseminação de conhecimento e informação capazes de
trazer aos cidadãos a esperança de uma sociedade mais justa. A
universidade deve estar inserida permanentemente na comunidade,
realizando a troca de experiências, assimilando, revendo valores e
prioridades que permitam que a população se identifique como sujeito
de sua própria história, proporcionando consequentes mudanças das
condições de vidas, superando, assim, problemas sociais encontrados na
própria comunidade (LIMA, 2003).
Seja através do Tamoios Coletivo de Assessoria Popular -
TaCAP (LUZ & VASCONCELLOS, 2015) o qual formalizou a Liga das
Comunidades que tornou-se AECCO, cuidando de todo o processo de
discussão, elaboração e registro do estatuto, seja pela participação do
NUPIJ, composto de juristas e antropólogos, na concepção do viés
cultural da AECCO e na organização de um financiamento coletivo que
viabilizou a realização da Copa das Comunidades 2016 em um clube no
bairro de Piratininga com maior infra-estrutura, o papel da universidade
é enfatizado, a um só tempo, como o de consolidar como prática a
abertura cognitiva dos juristas em formação para o mundo empírico

314
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

(LOBÃO, 2014 e 2015) e, principalmente, nessa prática em constante


(re) elaboração, contribuindo para amplificar vozes, escutas os quais, ao
se encontrarem, conseguem, com ajudas múltiplas, encontrar
ressonância (reconhecimento) em diversos mundos, dentre eles, o
jurídico-estatal.
A guisa de conclusão, nada mais inovador do que retornar a um
clássico, poderíamos pensar em que medida enfatizar esse papel da
universidade serve para, dento de um contexto de exclusão e de uma
sociedade hierarquizada (KANT DE LIMA, 2010) com práticas jurídicas
informadas por uma sensibilidade jurídica tutelar (LOBÃO, 2010;
MOTTA, 2009), pensarmos os direitos de cidadania e o direito à cidade
não só a partir de uma consideração entre igualdade material ou formal,
mas sim a partir de uma diferenciação entre emancipação política e
emancipação humana (MARX, 2010).

315

GT II – CIDADES, SEGURANÇA PÚBLICA E CONTROLES DE
TERRITÓRIO – RACISMO INSTITUCIONAL

INSURGÊNCIAS NEGRAS E A NEGAÇÃO DO DIREITO A


VIDA: trajetórias políticas de mulheres frente ao genocídio da
juventude negra – do luto a luta!

Dayana Christina Ramos de Souza Juliano 84

Palavras-Chave: Racismo; Juventude negra; Mulheres e Movimentos


sociais.

Apresentamos a referida proposta de artigo baseada na


perspectiva de analisar o genocídio da juventude negra, de forma
articulada com os processos de engajamento e militância política
vivenciado por mulheres a partir da perda de familiares. Com o
desenvolvimento deste artigo pretendemos compreender a morte
sistemática de jovens negros através de indicadores estatísticos e dados
oficiais, bem como através de relatos de experiências de mulheres que
ressignificaram o processo de luto, através da mobilização e inserção em
espaços de lutas sociais e defesa de direitos humanos.
Temos por objetivo geral compreender o genocídio da juventude
negra, a partir do engajamento político de mulheres em lutas sociais, e a
interface com o Serviço Social.
Por objetivos específicos, tomamos: 1-Entender as
particularidades do genocídio da juventude negra brasileira; 2-
Visibilizar o engajamento político de mulheres em lutas sociais frente ao

84
Assistente Social graduada pela UFF em 2008, Especialista em Políticas Sociais e
Intersetorialidade pelo IFF/FioCruz e UNIRIO em 2018, Mestranda do Programa de
Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ. Contratada da Secretaria de Assistência
Social e Direitos Humanos de Niterói. Email: dayana.seso@gmail.com; Link de
acesso a plataforma Lattes: http//lattes.cnpq.br/4398657846663854


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

genocídio da juventude negra; e 3- Fomentar a reflexão / ação do Serviço


Social frente ao genocídio da juventude negra.
Os esforços de aprofundamentos teóricos e metodológicos deste
ensaio está ligado a linha de pesquisa “Lutas Sociais, Estado, Políticas
sociais e Serviço Social” do programa de pós graduação em Serviço
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O aludido objeto de
estudo foi elaborado como projeto de pesquisa, sendo apresentado e
aceito pela comissão de seleção do referido programa de pós-graduação,
e há de ser desenvolvido no decorrer do curso de Mestrado em Serviço
Social nos anos de 2018 e 2019.
O Estado, as relações sociais, e sua estrutura, determinadas a
partir do capitalismo, racismo e patriarcado, são alvo de peculiar atenção
nesta proposta, não apenas na perspectiva de compreender o genocídio
da juventude negra, mas também para abranger as formas de resistência
a essa violência letal, essas respostas vão além do luto e extrapolam o
campo privado da vida, tomando o espaço público de forma coletiva e
organizada, registrando assim a pertinência da interface com o Serviço
Social, permeando sua inserção e atuação diante deste cenário de
negação do Direito a Vida.
Contrariando as investidas da dita “democracia racial brasileira”,
os indicadores sociais não deixam lacunas para análises e avaliações que
descartem o racismo como elemento determinante nas condições de vida
de jovens negros, expondo que o racismo é um elemento fundamental
para compreender a questão social no Brasil e suas relações sociais,
estruturalmente assimétricas e desiguais.
O risco da letalidade para a juventude negra está presente no
cotidiano e na dinâmica da realidade brasileira, esse cenário de violência
extrema que traz no seu bojo a violação do direito humano primordial
que é o direito a vida, pode ser quantitativamente traduzido através de
indicadores oficiais e dados estatísticos como o Atlas da violência,
produzido pelo IPEA; o Mapa da Violência no Brasil, organizado pela
FLACSO; ou ainda pelo relatório da Anistia Internacional Brasil, estes
documentos sinalizam que os jovens negros, principalmente, os que

318
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

moram em favelas e periferias são desproporcionalmente afetados pela


violência urbana, pois são a principal vítima da violência homicida no
Brasil.
Os efeitos do racismo na sociabilidade brasileira devem ser
investigados sem perder-se de vista o Estado com as políticas sociais
estabelecidas a partir da doutrina neoliberal e a lógica do Capital, pois
como aponta Florestan Fernandes (1978) em seus estudos, a luta de
classes no Brasil sempre foi sinônimo de luta de raças. Este sociólogo,
aponta que o passado – nem tão remoto – de escravidão/colonização
deixou marcas profundas na formação social brasileira, e que essas
marcas se apresentam, configurando e reconfigurando o capitalismo
tardio brasileiro, expressando-se em uma realidade e dinâmica social
extremante racializadas.
O Serviço Social é uma profissão inserida na divisão social e
técnica do trabalho, que lida através de políticas, programas e projetos
públicos e sociais com as múltiplas expressões da questão social. Essa
profissão tem compromisso ético e político com a defesa intransigente
dos direitos humanos, e nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais,
indivíduos e famílias estão no cerne de sua atuação profissional como
público alvo, e por isso essa categoria se configura como um campo
privilegiado para atuar frente as demandas dessa sociabilidade desigual
e racializada.
Tendo em tela o genocídio da juventude negra brasileira, ainda
nos cabe a noção de Necropolítica de Achille Mbembe, filósofo
camaronês. A noção de necropolítica possibilita uma análise crítica dos
fenômenos de violência e mortes sistemáticas, que estão no âmbito das
ações do Estado e de acordo com a égide do capitalismo e doutrina
neoliberal, onde o seu desmonte no que diz respeito ao esvaziamento no
campo das políticas sociais, realiza o declínio e retirada de direitos
sociais, aguça a violência e suas expressões, bem como privilegia a
política de segurança pública tendo como base de suas ações a
criminalização da pobreza, com ações midiatizadas bradadas como
‘guerra as drogas’ o que nos direciona ao entendimento de que a regra

319
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

na periferia brasileira do capitalismo é a tortura, a barbárie e o


autoritarismo, em aliança com a mais explícita violência racial.
Nesse sentido, registramos a relevância de aprofundamentos e a
necessidade de alianças estratégias para o enfrentamento do genocídio
da juventude negra, na perspectiva do Serviço Social, este tipo de
violência se apresenta como a sistematização mais cruel e evidente da
violência racial no Brasil. Entendemos que o cenário de letalidade de
jovens negros não pode ser entendido de forma aleatória e isolada, pois
este é o resultado de uma violência histórica motivada, pelo racismo,
aqui compreendido como uma questão estrutural das desigualdades
sociais no Brasil.
É importante registrar que a partir do lugar de luto, famílias
vitimadas pelas mortes violentas de jovens negros – em especial as
mulheres - tem ocupado reconhecido espaço nas mobilizações e
engajamento social em defesa dos direitos humanos. Reconhecemos e
enaltecemos as formas de resistência e rebeldia daquelas que perderam
membros de suas famílias nessa violência atroz contra pobres jovens
negros pobres, pois como as mesmas pronunciam em uma das suas
atividades de ativismo político e social: “Nossos mortos tem voz!”.

320
RESISTIR E LUTAR: A FAVELA COMO LOCAL DE
RESISTÊNCIA - Breve análise sobre as prisões de tráfico de
drogas no Estado do Rio de Janeiro

Bruno Joviniano de Santana Silva85


Caio Grande Guerra86
Thomaz Muylaert de Carvalho Britto87
Nilmara Palaio88
Melissa Barbosa89

Palavras-Chave: Direito Penal; Resistência; Direitos Humanos

Vislumbra-se, no corrente trabalho, o desenvolvimento de um


estudo atinente à correlação entre o lugar enquanto sujeito nas cidades e
as suas consequências penais. Objetiva-se, além disso, o alcance de uma
compreensão acerca do racismo institucional na sua forma de
reverberação criminal. Em outras palavras, delimita-se o objeto da

85
Mestrando em Direito Constitucional pelo PPGDC da Universidade Federal
Fluminense.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4202570Y6.email:brun
ojssilva@yahoo.com.br.
86
Mestrando em Direito Constitucional pelo PPGDC da Universidade Federal
Fluminense e bacharelando em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense.
Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Estado e Cidadania.
http://lattes.cnpq.br/7653784295977326. Email:caio.guerra@terra.com.br.
87
Mestrando em Direito Constitucional pelo PPGDC da Universidade Federal
Fluminense. http://lattes.cnpq.br/1510386971909726. Email:
thomazbritto@hotmail.com.
88
Bacharelanda em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense.
http://lattes.cnpq.br/2098234067062346 Email: nilmara.calazans00@gmail.com
89
Bacharelanda em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense.
http://lattes.cnpq.br/9429920700836928. Email:melbarbosa01@gmail.com


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

perscrutação em análise a partir da desconstrução do preconceito


arraigado socialmente.
Mediante a aludida desconstrução, permitir-se-á um
entendimento colaborativo a respeito das condenações criminais
tocantes ao tráfico de drogas no Estado do Rio de Janeiro. Nesse viés, o
Estado em comento foi selecionado como nodal desta pesquisa, uma vez
que, segundo os dados colacionados abaixo, há uma dissonância entre o
mesmo e os demais Estados brasileiros no tema.
Na cidade do Rio de Janeiro, em 41% das prisões por tráfico de
drogas, o acusado também responde por associação ao tráfico (importa
salientar que a média nacional é de 12%)esses dados foram levantados
pelo jornal Folha de S.Paulo no Banco Nacional de Mandados de Prisão
do Conselho Nacional de Justiça. 90

Os dados selecionados pelo Jornal Folha de São Paulo denotam,


a princípio, um vínculo entre o local de moradia – as favelas – e a
condenação por tráfico de drogas. A informação sob exame leva a
múltiplos questionamentos, dentre os quais se argui se há, no âmbito
judicial em tela, o respeito aos direitos e garantias fundamentais
constantes da Constituição da República Federativa de 1988.
Almeja-se, para além de uma investigação concentrada no estudo
meramente unívoco no que tange às condenações por tráfico de drogas,
a observação do movimento de favelização urbana como espaço de
resistência, legitimando a diversas identidades existentes no espaço
urbano e contribuindo para uma abordagem dinâmica das demandas dos
grupos sociais.
Nesse sentido, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
analisou 3.745 casos de tráfico, no período de 2014 a 2015, e foi
constatado que em 75% dos dados analisados, somaram-se os dois
delitos, a prisão por tráfico de drogas e a associação ao tráfico. Isso se 91

90
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/04/morar-em-favela-do-rio-e-
agravante-em-condenacao-por-trafico-de-drogas.shtml. Acessado: 02/05/2018

322
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

deve, principalmente, ao fato de que muitas instituições, no Estado do


Rio de Janeiro, consideram que quem mora em favela é automaticamente
ligado à facção que a comanda, o que, hipoteticamente,evidencia um
preconceito institucionalizado dentro das estruturas Estatais.
No entanto o racismo permeia todas as áreas da vida, segundo a
ONU o Brasil não é chamado de democracia racial, pois órgãos e Estado
caracterizados em um racismo institucional onde há hierarquias raciais
aceitas culturalmente, na qual negros são os mais assassinados com
menor nível de instrução, menor salário e menor acesso a saúde, levando-
os a moradias e ocupações improvisadas.
Nesse sentido, Carolina Haber diz que: 92

Em 65,85% das vezes que o local é citado como ponto de


venda de drogas, há menção à ocorrência em favelas,
morros ou comunidades. Outro argumento usado pelos
magistrados, em 36,56% das sentenças pesquisadas, foi o
fato de o réu portar rádio transmissor ou armas .
93

Diante disso, o presente trabalho enfoca o processo de


favelização urbana, sob a ótica de agrupamentos sociais dinâmicos, isto
é, não apenas um local de dor, privações, violência e hipossuficiências,
mas, sobretudo, de memória coletiva de resistência. A análise destas
comunidades passa, além dos estereótipos disseminados no imaginário
coletivo, isto é, uma visão de que as comunidades representariam uma

92
Possui graduação (2002), mestrado (2007) e doutorado (2011) em Direito pela
Universidade de São Paulo. Foi professora de direito penal na Universidade Federal
do Rio de Janeiro e de direito penal e criminologia na Faculdade de Direito da
Fundação Getúlio Vargas-RJ. Atualmente, é diretora de estudos e pesquisa de acesso
à justiça na Defensoria Pública do Rio de Janeiro e vice-presidente do Conselho
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. É autora do livro "Avaliação legislativa e
direito penal: uma reconciliação entre o direito e a política criminal". Fonte:
https://www.escavador.com/sobre/735016/carolina-dzimidas-haber
Acessado:02/05/2018
93
https://www.conjur.com.br/2018-abr-27/morar-favela-aumenta-chance-acusacao-
associacao-trafico Acessado: 02/05/18

323
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

mazela social, reduto de vulnerabilidades, desmandos, injustiças e total


disritmia sistêmica.
Portanto, busca-se explorar, a faceta de resistência desses
ajuntamentos que, em sua quase totalidade, são formados por grupos
sociais vulneráveis, que historicamente, de maneira estrutural, como será
observado nos casos trazidos no recorte feito, lhes foi sistematicamente
negado o mínimo existencial, alijando-se da sociedade liberal de direitos
e garantias fundamentais, empurrando-os para um processo de exclusão,
marginalização e de criminalização.

Bibliografia

ADORNO, S. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal. Estudos


históricos, n. 18, 1996.
ADORNO, S.; PASINATO, W. Violência e impunidade penal: da
criminalidade detectada àcriminalidade investigada. Dilemas – revista
de estudos de conflito e controle social, v. 3, p. 51-84,jan./mar. 2010.
BARROS, G. S. Filtragem racial: a cor na seleção do suspeito. Revista
brasileira de segurança pública, ano 2, n. 3, p. 134-155, jul./ago. 2008.
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Centro Feminista de
Estudos e Assessoria (Cfemea). Guia de enfrentamento do racismo
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<http://www.geledes.org.br/geledes/o-que-fazemos/publicacoes-de-
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HASENBALG, C. A. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal,1979. p. 83.
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ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD). Características da vitimização e do acesso à justiça no
Brasil.Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA.
Boletim de políticas sociais– acompanhamento e análise, 2007.

324
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

MISSE, M. O inquérito policial no Brasil: resultados gerais de uma


pesquisa. Dilemas – revista de estudos de conflito e controle social, v.
3, p. 35-50, jan./fev./mar. 2010. Livro BAPI_4.indb 25 10/1/2013
2:14:20 PM26Boletim de Análise Político-Institucional
OLIVEIRA JÚNIOR, A. Segurança pública: confiança e percepção
social das polícias. In: SCHIAVINATTO, F. (Org.). Sistema de
indicadores de percepção social (SIPS) – segurança pública. Brasília:
Ipea, 2011.
PAES, V. F. Do inquérito ao processo: análise comparativa das relações
entre polícia e ministério público no Brasil e na França. Dilemas –
revista de estudos de conflito e controle social, v. 3, p. 111-141,
jan./fev./mar. 2010.
PAIXÃO, A. L. A distribuição de segurança pública e a organização
policial. Revista da OAB, p. 167-185, 1985.

325

A CIDADE SITIADA: ASPECTOS CONTROVERSOS DO
DECRETO DE INTERVENÇÃO FEDERAL NO TERRITÓRIO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Magna Corrêa de Lima Duarte 94

Palavras-Chave: Intervenção; militarização; garantia de lei e ordem;


segurança pública.

Tema atual e de relevância institucional, a excepcionalidade do


instituto jurídico da Intervenção Federal - com expressa previsão no art.
34 da CRFB/88- suscita dúvidas relativas ao teor de constitucionalidade
do Decreto 9.288/18, sua pertinência em face da presente conjuntura de
crise institucional, marcada pelo esgarçamento de preceitos
fundamentais do Estado Democrático de Direito e da relativização de
categorias analíticas como estado de exceção e legalidade constitucional.
Há necessidade de aprofundamento e disseminação dos debates
acadêmicos sobre o Decreto de Intervenção Federal em curso no ano de
2018 no território do Estado do Rio de Janeiro, sobretudo em face da
presunção de inconstitucionalidade relativa aos seus principais
dispositivos e do risco de desestabilização dos princípios clássicos do
Estado Federal. Mais gravemente, reconhecendo a ofensa aos princípios
da ordem social e da segurança jurídica, a presente proposta de pesquisa
tem por objeto central a problematização das graves implicações
institucionais do Decreto 9.288/18, em perspectiva interdisciplinar e à
luz dos preceitos fundantes do Estado de Direito. Especialmente em face
do rol demasiado de atribuições conferidas à persona do interventor
militar, sem sintonia com os preceitos clássicos da teoria do Federalismo

94
Graduada em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), Direito (UERJ) e História (UFRJ).
Especialista em Direito Especial da Criança e do Adolescente (UERJ). Mestra em
Direito da Cidade pela UERJ. Professora das Universidades Candido Mendes e
Estácio de Sá.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Democrático, desfigurando o instituto da intervenção federal e


aproximando-a de um ato de natureza militar, conferindo competências
de poderes civis de governador a um interventor das Forças Armadas.
O conteúdo ideológico do decreto permite a observação da
centralidade da figura do General do Exército destacado para o exercício
do controle operacional de todos os órgãos de segurança pública do
Estado do Rio de Janeiro. Semelhante aspecto representa uma total
inversão do princípio de rigorosa submissão da autoridade militar à
autoridade civil, antevisto secularmente no Bill of Rights de 1689, na
Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 e na Constituição dos EUA
de 1787, documentos que representam a base essencial do
Constitucionalismo moderno, inspiradores das democracias continentais
européias e americanas.
O Decreto de Intervenção Federal em comento, de inspiração
marcadamente militarista, reflete a acentuada tendência de militarização
da segurança pública e da onipresença do aparato repressivo do Estado
no cotidiano das cidades, especialmente no particular território da cidade
do Rio de Janeiro, trecho mais afetado pela banalização das Op.
GLO,regulamentada pelo Decreto 3.897/01, que disciplina o emprego
das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem,
conforme previsão do art. 142 da CRFB/88.
O citado Decreto representa um perigoso precedente em face do
atropelo de dispositivos constitucionais e por respaldar a tendência de
militarização da segurança pública, a pretexto da salvaguarda da ordem
pública, em radical distanciamento do espírito da constituição
democrática de 1988, fundada na unidade do pacto federativo, na
salvaguarda da autonomia dos entes e da estrita soberania da sociedade
civil organizada. Reflete, sobretudo, a inspiração nitidamente autocrática
e a primazia da força militar sobre a racionalidade inspiradora da
concepção de Estado de Direito e Governo Civil, conquistas
civilizatórias. A afetação dos princípios da eficiência,
proporcionalidade, da necessidade e excepcionalidade resultam
evidentes em confronto com os dados disponibilizados no site do

328
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Ministério da Defesa e do 11 Anuário de Segurança Pública (2017) que


apontam o Estado do Rio de Janeiro como o ente federativo recordista
em Op.GLOs. O Decreto Presidencial de 28/07/2017, prorrogado pelo
Decreto de 29/12/2017, é a regulamentação mais recente da GLO no Rio
de Janeiro, em apoio às ações da Força Nacional de Segurança Pública
(Decreto 5.289/04), até o final do ano de 2018.
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) protocolou no STF a
ADI 5.915, com pedido de medida cautelar para suspensão da eficácia
do Decreto 9.288/18, sendo designado como relator o ministro Ricardo
Lewandovski. O teor da petição inicial sustenta o conjunto de vícios
essenciais,formais e materiais, contaminadores do Decreto, a saber:
ausência de justificativa e fundamentação motivadas do Decreto;
ausência de prévia oitiva dos Conselhos de Estado: Conselho da
República (art. 89; Lei 8.041/90) e do Conselho de Defesa Nacional (art.
91; Lei 8.183/91); a incompleta composição do Conselho da República;
a não especificação das medidas de execução, enfim, a inobservância do
conjunto de pressupostos formais e materiais intrínsecos à Intervenção
Federal, tal como preconizado no art. 36 da CRFB/88.
Além da desconsideração dos pressupostos formais, acrescente-
se, ainda, as ponderações arroladas pelo Tribunal de Contas da União
(TCU) em face da ausência de informações mais exaustivas sobre a
origem, fonte e natureza dos recursos tecnológicos, estruturais e
humanos do Estado do Rio de Janeiro necessários para viabilizar a
execução das medidas.
Na esfera metodológica, o aprofundamento do estudo estará
amparado na seleção de bibliografia específica sobre a matéria e na
análise e acompanhamento dos Relatórios das diversas
Comissões Parlamentares e Observatórios da sociedade civil
encarregados do monitoramento das medidas adotadas.O exame de
fontes documentais terá por alicerce os atos constitutivos e relatórios das
diversas Comissões Parlamentares formalizadas no âmbito das Casas
Legislativas.

329
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

O Ato da Mesa n. 217/18 criou o Observatório Legislativo da


Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro,
o OLERJ é considerado um "fórum de coleta e análise de dados e da
realização de estudos, avaliações e pesquisas, bem como de
transparência de resultados da participação e controle social das ações
referentes à intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio
de Janeiro”.O Requerimento n. 37/2018, do Senado Federal, estabeleceu
a criação da Comissão Temporária Externa para o acompanhamento da
execução e desdobramentos da Intervenção Federal.
A Comissão de Representação de Acompanhamento da
Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro reúne 18
vereadores encarregados de atuação conjunta com o OLERJ. A exemplo
das diversas iniciativas das Casas Legislativas, o Tribunal de Contas da
União determinou através de Comunicado da Presidência e de Portaria -
TCU548/2017- a atuação da Secretaria Geral de Controle Externo
(SEGECEX), fundamentada com o objetivo de zelo pela legalidade e
eficácia dos gastos públicos advindos do Decreto de Intervenção Federal
em face do uso concorrente de recursos federais e estaduais. O TCU é
incisivo ao ressaltar que "o caráter excepcional da ação interventiva, os
atos administrativos pelo interventor sujeitam -se a todas as normas e
princípios regentes da Administração Pública, sendo incabíveis a
realização de atos para além da esfera de legalidade constitucional, não
justificando descuidos ou liberalidades orçamentárias que ignoram o
primado da responsabilidade fiscal.
A exemplo das demais entidades, o Observatório Jurídico da
Intervenção Federal foi instalado pela OAB- Seccional RJ- com o
objetivo de fiscalizar e monitorar a implementação das medidas de
execução do Decreto de Intervenção Federal. A mobilização da
sociedade civil organizada está manifesta na criação do Observatório da
Intervenção, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
(CESEC), destinado ao acompanhamento e divulgação "dos
desdobramentos, impactos e violações de direitos decorrentes da
Intervenção Federal no Rio de Janeiro", aglutinando um amplo feixe de

330
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

pesquisadores e entidades como a Defensoria Pública, Anistia


Internacional, Redes da Maré, Observatório de Favelas, Instituto de
Estudos da Religião (ISER), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE), Laboratório de Análise da Violência
(LAV/UERJ), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, entre
outras instituições congêneres.
Do ponto de vista teórico, o apelo aos estudos clássicos sobre os
preceitos teóricos do Federalismo é imprescindível, como também o
reconhecimento da importância da obra de Stephen Graham –Cidades
Sitiadas- para a compreensão do fenômeno de militarização das cidades
na cena mundial contemporânea, adequando-a às especificidades
regionais e locais do território do Rio de Janeiro, assombrado pelo
primeiro decreto de intervenção federal na vigência da CRFB/88 e por
sucessivas operações de GLO, cada vez mais banalizadas e infrutíferas
na ‘pacificação de territórios’.
Difusão da lógica armamentista, militarização das forças de
segurança pública, difusão do vocabulário de guerra, crescimento das
empresas de segurança privada,aumento da parafernália tecnológica e
dos mecanismos de controle e vigilância da cidadania, truculência
policial e violação recorrente de direitos em territórios conflagrados
compõem o cenário desconfortável do novo urbanismo militar, em
flagrante oposição a moderna concepção de cidade sustentável,
conforme preconizada nas Conferências Habitat. O direito à fruição e ao
gozo do espaço público, em territórios conflagrados e objeto de disputas
entre facções, aliado à escalada de medidas de exceção na vigência da
Constituição Democrática refletem o paradoxo de negação do direito à
cidade, nada fraterna, inclusiva e democrática.

Referências

AGAMBEN, Giorgio.Estado de Exceção. Homo sacer II.São Paulo:


Boitempo, 2004.

331
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

GRAHAM, Stephen. Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. São


Paulo: Boitempo, 2016.
LEWANDOVSKI, Ronaldo. Pressupostos Formais e Materiais da
Intervenção Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
MADISON,James; JAY, John; HAMILTON, Alexander. O
Federalista. São Paulo: Saraiva, 2004.
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Estado de exceção,
desobediência civil e desinstituição: por uma leitura democrático-radical
do poder constituinte. Direito & Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 4,
2016, p. 43-95. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/19953>.
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um entrave para a democracia brasileira. Revista de Sociologia e
Política. vol.18, n.35, p.119-130, 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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SANTOS, Boaventura de Souza. A democracia brasileira na
encruzilhada.Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br>.
TELLES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo
Democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

332
FAVELAS NO RIO DE JANEIRO: ESTADO DE EXCEÇÃO E
PLURALISMO JURÍDICO

Igor Luiz Batista de Carvalho 95

Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa 96

Luciana dos Santos Magalhães 97

Palavras-Chave: Favelas; Rio de Janeiro; Estado de Exceção;


Pluralismo Jurídico.

O trabalho tem como objetivo compreender o Estado de exceção


instaurado em favelas do Estado do Rio de Janeiro. Para tanto,
demonstramos a origem e consequências das tensões e dos conflitos
ocasionados, bem como a implementação de técnicas de controle social
empregada nessas localidades.
Diante disso, questionamos: (i) O que é Estado de exceção? (ii)
como a relação estabelecida entre o Estado e favelas influencia na
efetivação do direito à cidade? (iii) o direito produzido em favelas, sob a
ótica do pluralismo jurídico, corrobora à construção do conceito de
cidadania no âmbito jurídico brasileiro? (iv) quais são as características
recorrentes da atuação do Estado em favelas e suas consequências?
O tema delimita-se à área jurídica, porém utilizamos outros
conhecimentos oriundos das Ciências Humanas e Sociais, em especial
da Sociologia, História e Antropologia, a fim de evidenciar os contornos
da realidade das favelas e a atuação do Estado naquele contexto. O
estudo se pauta na ótica do pluralismo jurídico, estabelecendo um
diálogo com autores como Boaventura de Sousa Santos, Alex

95
Mestrando em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá
(PPGD-UNESA).
96
Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC-
UFF).
97
Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Magalhães, Antônio Carlos Wolkmer. Contudo, com relação à análise


do Estado de exceção, utilizamos instrumentais teóricos advindos de
autores como Giorgio Agamben, Pierre Bourdieu e Michel Foucault.
Quanto à metodologia, empregamos o método dialético. Isso
porque restringe-se o objeto, identificando seus aspectos históricos,
jurídicos e sociais de forma a fundamentar seu conteúdo. Nesse sentido,
utilizou-se do seguinte percurso: colocação do problema; construção de
um modelo teórico; dedução de consequências particulares; tese das
hipóteses e introdução das conclusões na teoria.
O recorte a ser explorado se justifica por versar sobre o controle
social implementado no Estado do Rio de Janeiro ao longo dos anos.
Mostra-se pertinente realizar pesquisas nessa temática por ser imbuída
de relevância social – vez que aborda um valor indispensável para a
humanidade –, pois dá visibilidade a um contexto de comunidades que
são silenciadas, marginalizadas e estereotipadas. Também auxilia à
compreensão de micro estratégias de poder exercidas num contexto de
intenso controle social efetivados por diversos órgãos repressivos do
Estado. O estudo poderá trazer reflexões acerca da possibilidade de
quebra paradigmática com relação às práticas estatais exercidas em
favelas.
O pluralismo jurídico, mostra-se essencial para compreender essa
temática. Isso porque demonstra que as favelas também são produtoras
de direito, ainda que não advindo oficialmente do Estado. Assim,
averiguamos aspectos histórico-normativo-sociais inerentes à realidade
de favelas e o posicionamento Estatal com relação a eles. O pluralismo
jurídico propõe uma quebra paradigmática em razão da inadequação da
concepção unitária e centralizadora do direito. Para tanto, busca uma
aproximação com os diversos contextos sociais, reconhecendo a
existência de mais de uma realidade social. Dessa forma, rompe-se com
a máxima da modernidade que preconiza que o que vem a ser legal/ilegal
é o que o Estado assim o estabelece. Isso porque, de acordo com
Wolkmer (2001, p. XVI), leva-se em conta critérios mais importantes,
quais sejam: “a multiplicidade de manifestações ou práticas normativas

334
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou


consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser as
necessidades existenciais, materiais e culturais”. Como consequência, as
complexidades sociais e suas características próprias passam a compor o
mundo jurídico ao qual estamos imersos, independentemente de serem
oficializadas pelo Estado (DELLAGNEZZE, 2015).
No que concerne às favelas, nota-se a existência, de maneira
marginalizada, de um direito que funciona paralelamente àquele que
98

emana do Estado. Isso porque existe um conjunto de normas de conduta


instaurado na lógica interna da vivência dos que habitam nessas
localidades. Essas normas são de conhecimento geral das favelas, são
particulares (cada comunidade possui seu complexo normativo), e,
naqueles contextos, devem ser respeitadas. Contudo, tendo em vista que
esse pluralismo é disfuncional à visão hegemônica de direito (a qual,
através de técnicas de velamentos discursivos, serve como propagador
de concepções ideológicas), toda forma de construção e modulação de
subjetividades, que não aquela reconhecida pelos órgãos estatais, deve
ser combatida, silenciada e marginalizada.
Haja vista que a verdadeira dominação se dá por intermédio da
assunção (por parte do dominado), num contexto dialético entre
dominante e dominado, do caráter hierarquizante do poder exercido
(BOURDIEU, 1989), o apagamento de mecanismos replicantes de
subjetividades marginalizadas se torna essencial. Não basta, como
outrora, o domínio do corpo dos favelados; deve-se buscar a alma
(FOUCAULT, 2014). Neste contexto, observado com a ascensão das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP´s), pequenos detalhes do
cotidiano das favelas foi sendo controlado, porém sem que se
apresentasse qualquer balizamento objetivo ou até mesmo padrões e, por
vezes, até contraditórios entre si.

98
A esse complexo normativo dá-se o nome de “direito da favela” (MAGALHÃES,
2010, p. 122).

335
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Através dessas microilegalidades, instaurou-se uma nova forma


de exceção, todavia não mais aquela exercida pela violência física, mas
sim uma modalidade mais complexa, com vistas a, controlando todos os
aspectos da vida dos moradores de favelas, modificarem hábitos e serem
reconhecidos como legítimos dominantes.
A concepção de pluralidade jurídica não é adotada pelo Estado
brasileiro e este, ainda que se diga pluralista , é incapaz de abarcar
99

múltiplas identidades socioculturais ou mesmo dialogar ou aproximar-se


de diferentes e complexas realidades. Como consequência, de acordo
com Santos (1999, p. 2):

Recorrendo a uma categoria da economia política, pode


dizer-se que se trata de uma troca desigual de juridicidade
que reflete e reproduz, a nível sócio-jurídico, as relações
de desigualdade entre as classes cujos interesses se
espelham num e noutro direito.

Magalhães (2010) entende que a emersão do Direito da favela,


por tratar-se de sociedades periféricas, está intimamente associado aos
problemas estruturais do Estado intervencionista. Por isso, há a
necessidade de reconhecer que a existência de diferentes realidades
sociais resultam sistemas jurídicos distintos, dotados de eficácia,
coexistentes em um mesmo espaço-temporal. Nessa perspectiva, esses
sistemas não se excluem e devem contemplar-se mutuamente.
É possível perceber que a marginalização de práticas, hábitos
culturais e formas alternativas de direito dentro das favelas é uma
estratégia de poder, com o objetivo de moldar a subjetividade daquelas
pessoas a um padrão pré-estabelecido, bem como minar qualquer
tentativa de resistência. Assim, disciplinados e padronizados, tornam-se
corpos dóceis.

99
Preâmbulo da Constituição Federal de 1988:

336
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ed.


São Paulo: Boitempo, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio
de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A, 1989.
DELLAGNEZZE, René. O pluralismo jurídico. In: Âmbito Jurídico,
Rio Grande, XVIII, n. 138, jul 2015. Disponível em:
<http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16159>
. Acesso em 10.05.2018.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 42ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
MAGALHÃES, Alex Ferreira. O direito das favelas. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2013.
_____. O Direito da Favela no contexto pós-Programa Favela
Bairro: uma recolocação do debate a respeito do 'Direito de Pasárgada'.
Tese de Doutorado em Planejamento Urbano e Regional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico social de
Pasárgada. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (Orgs.).
Sociologia e Direito: textos básicos para a disciplina da sociologia
jurídica. São Paulo: Pioneira, 1999.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de
uma nova cultura no Direito. 4ª ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

337

INTERVENÇÃO FEDERAL E O NÃO CABIMENTO DOS
MANDADOS DE BUSCA E APREENSÃO COLETIVOS

Manuelle Maria Lima Gaião 100

Tatiana Ferreira Lofti 101

Palavras-Chave: Intervenção Federal. Mandados de Busca e Apreensão


Coletivos; Rio de Janeiro.

Aos 16 de fevereiro de 2018 foi publicado o Decreto 9.288, de


autoria da Presidência da República, cujo conteúdo determinou
intervenção federal nos serviços de segurança pública do Estado do Rio
Janeiro. A publicação do decreto ocorreu posteriormente à veiculação,
pela imprensa brasileira, de episódios de violência ocorridos durante o
carnaval carioca de 2018, os quais fomentaram o discurso sobre a crise
de insegurança na cidade do Rio de Janeiro.
O escopo do mencionado decreto foi o de instituir, no Estado do
Rio de Janeiro, intervenção federal para “pôr termo a grave
comprometimento da ordem pública” (art. 1ª, §2). Logo nos primeiros
dias de vigência do decreto interventivo, causou repercussão na
comunidade jurídica a declaração feita pelo então Ministro da Defesa
Raul Jungmann sobre a eventual adoção, como instrumento auxiliar à
intervenção federal, de mandados de busca e apreensão coletivos nas
regiões onde as operações de segurança viessem a ser implementadas.
Os mandados de busca e apreensão coletivos caracterizam-se
pela imprecisão. São expedidos contra sujeitos indeterminados e
direcionam-se a perímetros urbanos variáveis: logradouros inteiros,
quarteirões, conjuntos habitacionais, núcleos favelizados etc. Em posse

100
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF).
101
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

de tais mandados, os agentes de segurança estão autorizados a ingressar


em quaisquer domicílios que se encontrem dentro do perímetro ali
previsto.
O emprego de mandados de busca e apreensão coletivos não é
novidade no Estado do Rio de Janeiro. Argumentando que “em tempos
excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de
restabelecer a ordem pública", aos 21 de novembro de 2016, a magistrada
Angélica dos Santos Costa (TJRJ) autorizou buscas e apreensões
coletivas a fim de facilitar operações policiais contra o tráfico de drogas
no bairro carioca Cidade de Deus. Em outro episódio, datado em agosto
de 2017, a DCOD (Delegacia de Combate às Drogas) requereu pedido
de busca e apreensão domiciliar generalizada contra as comunidades do
Jacarezinho, Bandeira 2 e Conjunto Habitacional Morar Carioca de
Triagem, e teve seu pedido deferido. Apesar do reconhecimento da
ilegalidade de ambas as ordens judiciais em segunda instância, os
mandados de busca e apreensão coletivos continuam a ser aventados
como instrumentos auxiliares nas políticas de segurança pública. A
intervenção federal na área da segurança pública do Estado do Rio de
Janeiro veio adicionar grãos de sal à discussão.
O presente texto tem por objetivo enfrentar a legalidade dos
mandados de busca e apreensão coletivos na vigência do estado de
intervenção. A metodologia empregada consistiu em pesquisa
documental e análise bibliográfica. Procedemos à leitura do texto do
Decreto 9.288 de 16 de fevereiro de 2018 bem como de precedentes
jurisprudenciais sobre o tema específico das buscas e apreensões
coletivas. Através de pesquisa bibliográfica sobre o instituto da
intervenção federal, sindicamos sua abrangência e consequências.
Serviram de abordagem teórica as doutrinas do “Estado de Exceção”, de
Giorgio Agamben, a “Teoria da Soberania” de Carl Schmitt e o “Direito
Penal do Inimigo”, de Günther Jakobs.
Os mandados de busca a apreensão, quando expedidos sem
observância dos requisitos do art. 243 do Código de Processo Penal
(CPP), configuram afronta às garantias fundamentais da intimidade e

340
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

inviolabilidade do domicílio consignadas na Constituição da República


de 1988 (CR/88) e vão de encontro ao art. 11 da Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). De acordo com
o inc. I do art. 243 do CPP, os mandados devem indicar, o mais
precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome
do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o
nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem. A
ausência de elementos minimamente precisos no corpo de tais mandados
os tornam “cheques em branco”, autorizando devassas.
Os inquéritos policiais que formalizem pedidos de busca e
apreensão devem relatar fatos específicos e individualizar os
investigados. Não bastam meras suspeitas; exigem-se fundadas razões
(art. 240, §1º). As expressões “combate ao crime”, “guerra ao tráfico” e
outras abstrações genéricas maculam a fundamentação das decisões
judiciais que deferem tais mandados, incentivando a prática de atos
discriminatórios e violando a isonomia constitucional, justamente por
“supor que há uma “categoria de sujeitos “naturalmente” perigosos e/ou
suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde
moram” . 102

Concluída a pesquisa, é possível afirmar que sequer sob o estado


de intervenção federal tais mandados devem ser autorizados. A
intervenção é uma medida democrática que subverte a regra do pacto
federativo, acarretando o “afastamento temporário da atuação autônoma
da entidade federativa sobre a qual a mesma se projeta” (MORAES,
2005, p. 229). A suspensão da autonomia do ente federativo é decretada
para salvaguardar os direitos fundamentais, a democracia e o Estado de
Direito. O que se suspende é o pacto federativo, e não o Estado
Democrático de Direito. Ensina Walber de Moura Agra que não há,

102
Nota Técnica Conjunta nº 01/2018 expedida pela Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão (PFDC) e a pela Câmara Criminal do Ministério Público Federal (2CCR).
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/temas-de-
atuacao/direitos-humanos/atuacao-do-mpf/nota-tecnica-conjunta-pfdc-e-2a-ccr-1-
2018. Acesso em 05 de maio de 2018.

341
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

“como no estado de sítio e no estado de defesa, uma flexibilização dos


direitos fundamentais ou uma excepcionalidade dos direitos e garantias
constitucionais” (2007, p. 301).
No Estado Democrático de Direito, a estrutura das garantias
fundamentais é oponível inclusive ao interventor. Seus poderes
encontram-se previstos no art. 3º do decreto interventivo e, em virtude
da excepcionalidade do instituto da intervenção, devem ser interpretados
de forma restritiva e literal. No caput do mencionado dispositivo
observa-se que houve mera reprodução dos poderes do Governador,
previstos no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o que
reforça o entendimento de que o interventor não estaria autorizado a
sobrestar direitos e garantias individuais.
Admitir que conceitos imprecisos como “segurança pública”,
“interesse público” e “garantia da ordem pública” sirvam de fundamento
para a restrição aos direitos individuais implica em converter o Estado
Interventivo em Estado de Exceção. Expressões retóricas, maiorias
circunstanciais e até mesmo argumentos de fundo econômico não podem
embasar a relativização da inviolabilidade do domicílio, que é uma
garantia constitucional concreta.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti.


São Paulo: Boitempo, 2004.
AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2007.
JAKOBS, Günther; MELIA, Manuel Cancio. Derecho Penal del
Inimigo. 2ª Ed.Madrid: Civitas Ediciones, 2006.
MORAES, Humberto Peña de. Do Processo interventivo, no contorno
do Estado Federal: Reforma do Judiciário – Emenda Constitucional
45/2004. São Paulo: Método, 2005.
ROTHENBURG. Walter Claudius. Intervenção Federal Irregular na
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:

342
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/21/intervencao-federal-
irregular-na-seguranca-publica-no-rio-de-janeiro/ Acesso em 05 de maio
de 2018.
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e Golpes na
América Latina:Breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo:
Ed. Alameda, 2016.

343

BELFORD ROXO: ANÁLISE DA PROBLEMÁTICA URBANA
NUMA JOVEM CIDADE PERIFÉRICA

Thais Gomes da Silva 103

Palavras- Chave: urbanização; Baixada Fluminense; Belford Roxo.

De acordo com Virginia Fontes , a história da Baixada


104

Fluminense vai além do que delimitam suas fronteiras administrativas.


Ela nasceu e segue marcada pela sua conexão com o Rio de Janeiro, mas
não somente: ela é produto do desenvolvimento capitalista no Brasil.
Nessa perspectiva, no presente texto nos propomos a
compreender o que ocorreu especificamente na constituição da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, onde constatamos um processo de
urbanização marcado por uma fragmentação territorial que delimitou a
construção de espaços para ricos e espaços para pobres e que
consequentemente produziu o que Abreu (2013) chamou de “explosão
demográfica da Baixada Fluminense”, entendendo a relação dessa região
com a capital do Rio de Janeiro como uma expressão concreta do modelo
núcleo-periferia. Tendo a partir de tudo isso o objetivo de compreender
as manifestações da desigualdade no município de Belford Roxo,
resgatando sua história política, concomitantemente à seu processo de
urbanização, e analisando alguns de seus indicadores sociais.
Tomamos como ponto de partida que a desigualdade no
capitalismo tem raiz no modo como essa sociedade produz não só as

103
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UFRJ, Aluna do
curso de especialização em Movimentos Sociais do Núcleo de Estudos em Políticas
Públicas em Direitos Humanos – NEPP-DH/ UFRJ e Assistente Social pesquisadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Favelas e Espaços Populares – NEPFE/ UFF.
104
A autora faz uma análise da Baixada Fluminense, como expressão do modelo núcleo-
periferia no prefácio do livro: “Escavando o passado da cidade: História política da
cidade de Duque de Caxias”, de Marlúcia Santos Souza, 2014.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

mercadorias, mas como produz também as relações sociais desiguais, e


considerando que na realidade brasileira o desenvolvimento do
capitalismo aconteceu pela coexistência de aspectos modernos e
arcaicos, partiremos da lei do desenvolvimento desigual e combinado 105

que, nesse caso, nos ajudará a explicar não só como se dá o modelo de


urbanização das cidades brasileiras, mas como isso ocorreu
especificamente na constituição da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, onde Abreu (2013, p.17) apontou a existência de um “núcleo
hipertrofiado, concentrador da maioria de renda e recurso urbanísticos
possíveis cercados por estratos urbanos periféricos cada vez mais
carentes de serviços e infraestrutura”. Ajudará a explicar também como
se forjam as relações sociais que, no caso das periferias urbanas, são
marcadas por mediações ultrapassadas, reforçadas pela lógica do favor e
do medo, como o que Maricato (2015) aponta como legado do
patrimonialismo, e que são “características específicas desse capitalismo
‘sui generis’ que subordina toda a sociedade mais se alimenta de relações
não capitalistas” (MARICATO, 2015, p. 79).
A partir da década de 1950, o Rio de Janeiro experimentou uma
“explosão metropolitana”, resultado de uma migração campo-cidade de
proporção absurda. Abreu (2013) nos mostra que metade dos
trabalhadores que chegavam à cidade – mais de 600 mil pessoas
aproximadamente – tinham como destino a periferia intermediária , 106

“especialmente nos municípios da Baixada Fluminense e nos bairros

105
“A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla
aplicação no processo histórico. Tem um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma fusão
de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere às distintas
proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta desses
fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico”. (NOVACK, 2008, p. 17-
18).
106
Para fins metodológicos, Maurício de Abreu dividiu a Região Metropolitana do Rio
de Janeiro em quatro faixas de limites imprecisos: núcleo, periferia imediata,
periferia intermediária e periferia distante. Segundo o autor, periferia intermediária
é aquela através da qual a metrópole se expande. Para ver mais: Abreu (2013).

346
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

cariocas que lhes são fronteiriços, que apresentaram os maiores


incrementos populacionais da Área Metropolitana”. (p.121).
Esse processo explica, por exemplo, a urbanização mais que
precária da região que corresponde à Baixada Fluminense, onde um
território que era basicamente rural passa a experimentar um crescimento
desordenado num período em que a cidade do Rio de Janeiro além de
não dar conta mais do intenso fluxo migratório produzido pela
industrialização, havia se tornado uma cidade muito cara, onde o centro
e suas proximidades, se restringiam à espaço das elites. O que
consequentemente operou na Baixada Fluminense, um retalhamento e
comercialização das fazendas que entram em decadência na região, sem
legislação formal, ou mínimas condições estruturais.
Num dado momento, acreditou-se que os problemas da Baixada
fossem ser resolvidos com uma maior fragmentação territorial, e que a
riqueza não era distribuída devido ao território ser divido em cidades
muito grandes. O que motivou na década de 1940 a primeira onda
emancipacionista, que resulta nas cidades de Duque de Caxias, em 1943,
seguido de Nilópolis e São João de Meriti, ambos em 1947. Mais tarde
na década de 90, uma outra onda de emancipações explode na Baixada,
precisamente o município de Nova Iguaçu, que resulta nas cidades de
Belford Roxo (1990), Queimados (1990), Japeri (1991) e Mesquita
(2001).
Dessa vez as emancipações não só estão imbricadas com os
interesses políticos locais, mas tem também conexão direta com as
mudanças engendradas com a promulgação da Constituição Federal de
1988, que tornava o município agora um ente federativo e autônomo e
trazia um novo elemento como o Fundo de Participação dos Municípios,
sem falar na ideia de um que menor território, possibilitaria uma gestão
mais democrática e com a participação popular. No entanto, “a
inexperiência inicial daqueles que alimentavam a utopia de construir
uma cidade mais democrática obrigou muitos ativistas a refletir sobre as
limitações e a consequente adaptação que deveria ser feita nas propostas”
(MARICATO, 2015, p. 34).

347
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Nesse sentido, Rodrigues (2006) aponta que o FPM será um dos


principais motivadores para a onda de emancipações pós Constituição de
88, atraindo o interesse das elites locais, que nem de longe tinham algum
comprometimento com uma cidade mais democrática, e que nos faz
constatar que o território da Baixada Fluminense “foi desenhado a partir
do interesse dos grupos dominantes locais subordinados aos núcleos
centrais de poder e dos interesses dos grupos que detinham o controle do
aparelho burocrático e político do poder central” (SOUZA, 2014, p. 19).
Ambas as experiências de emancipação continham grandes
equívocos, pois se a Região Metropolitana organizou as elites num
espaço, e os trabalhadores no outro, dentro da Baixada Fluminense,
mesmo que em proporção distinta, ocorria o mesmo. E mais, essas elites
não só se organizaram nos melhores espaços, como deram a linha
política na região. As famílias que fragmentaram as fazendas e as
lotearam no processo de ocupação da Baixada, fragmentaram também as
cidades no final do século XX, e fizeram dos novos municípios, currais
vigorosos que os mantém no poder político e econômico da região.
O município de Belford Roxo é fruto desse último período de
fragmentações territoriais, que em certa medida, nasceu de uma pauta
reivindicatória de setores populares e tem raiz nos avanços conquistados
no período de redemocratização do país, e na Constituição Federal de
1988, mas que em tempo foi apropriado pelas elites locais. E ao invés de
fazer dos pequenos territórios locais de participação popular,
democratização e melhor administração e distribuição de recursos, fez
das prefeituras uma extensão de negócios familiares.
A partir de uma exaustiva pesquisa sobre os indicadores sociais
e a história política da cidade de Belford Roxo contatamos que as
mediações ultrapassadas, encorparam todos os mandatos políticos que se
seguiram desde de a emancipação da cidade: clientelismo, favor,
violência (uns mais outros menos), e acima de tudo, o uso da máquina
pública como negócio particular. O que consequentemente desencadeou
numa cidade pobre em recursos, com cargos públicos concedidos à
familiares e entes próximos dos políticos locais, e um serviço público

348
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

escasso e precário onde prevalece a prática de “plano sem obra, e obra


sem plano”, nos termos de Maricato (2015).
A população majoritariamente negra e feminina, tem
rendimentos salariais baixíssimos. O número de analfabetos é
escandaloso, 5% da população. E aproximadamente 60 mil famílias se
enquadram no que o Ministério das Cidades classifica como “sem-teto”.
Os espaços de cultura e lazer praticamente inexistem, e o transporte,
precário e caro, cobre praticamente só os dias comuns ao trabalho. A
cobertura privada da política de assistência é maior que a pública. E são
as instituições religiosas, que compõem o maior número de entidades
sem fins lucrativos no município.
Vale dizer que esses dados, apesar de reveladores em alguns
aspectos, ainda não apresentam a totalidade da situação degradante que
vive a cidade, e que um maior detalhamento do município não foi
possível graças a alguns entraves burocráticos da própria prefeitura.
Poucas secretarias no período dessa pesquisa contavam com páginas na
internet, e com exceção da secretaria de assistência social e de
saneamento, nenhuma outra disponibiliza um plano de gestão. Na
tentativa de conseguir informações presenciais, o que se constatou, é que
as secretarias não disponibilizam o plano, porque os planos não existiam.
Não só as supracitadas, mas muitas outras questões surgiram no
corpo desse trabalho, e elas não se encerram aqui, e nem nos atiram a
proposição de uma “receita”, que possa resolver os problemas urbanos
de Belford Roxo, ou de qualquer outra periferia urbana no Brasil. Mas
elas nos remetem a pensar esses lugares nas suas especificidades, e nos
colocam o desafio, de traçar estratégias para difundir nos espaços mais
precarizados da cidade, a importância de nos organizarmos de maneira
democrática e popular, para a construção de uma cidade democrática e
popular. Já que só a organização dos trabalhadores torna possível a
construção de uma cidade dos/para os trabalhadores.

349
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Referências

ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro.


4 ed. Rio de Janeiro: IPP, 2013.
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo:
Expressão Popular, 2015.
NOVACK, George. O desenvolvimento desigual e combinado na
história. São Paulo: Sundermann, 2008.
RODRIGUES, Adrianno Oliveira. De Maxambomba à Nova Iguaçú
(1833-90s): economia e território em processo. Dissertação (Mestrado
em Planejamento Urbano Regional). Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2006.
SOUZA, Marlúcia Santos de. Escavando o passado da cidade:
história política da Cidade de Duque de Caxias. Duque de Caxias, RJ:
APPH-CLIO, 2014.

350
GT 3 – CIDADE, CULTURA, RESISTÊNCIA E IDENTIDADES

SLAM: POESIA DE RESISTÊNCIA QUE OCUPA A CIDADE

Maria Clara Conde Moraes Cosati107


Rodolfo Bastos Combat108
Thaiana Conrado Nogueira109

Palavras-Chave: poesia; arte; luta; resistência; ocupação.

Slam é um termo em inglês que não encontra correspondência na


língua portuguesa. Carrega consigo um sentido onomatopeico, barulho
incômodo de uma porta que bate com o vento forte. E um dos objetivos
do movimento poetry slam é justamente esse: incomodar.
Surgido no contexto de clubes de jazz em Chicago
(POETS.ORG, 2018), no estado norte americano de Illinois, na década
de 1980, iniciou-se o que se crê ter sido o primeiro campeonato de
poesias ao microfone, julgado pelo público, que dava notas a cada poeta,
e decidido através do confronto indireto entre os participantes.
Em que pese a origem do slam remontar à contracultura norte
americana, a versão brasileira abre espaço para artistas periféricos,
invisibilizados, silenciados. As regras são basicamente as mesmas: cada
participante tem três minutos para defender um poema autoral, fazendo
uso apenas da própria voz e corpo, sem roupagem teatral, objeto cênico
ou instrumento musical. Os textos recitados nas batalhas retratam dramas
cotidianos, recorrentes, como a homofobia, o racismo, o machismo, o
preconceito, a violência do Estado, entre tantas outras situações de
opressão vivenciadas diariamente. Roberta Estrela D'Alva, uma das
precursoras do movimento no Brasil, sintetiza os aspectos mais

107
Mestranda do PPGDC-UFF. E-mail: mariaclaracosati@gmail.com.
108
Mestrando do PPGDC-UFF.
109
Mestranda do PPGDC-UFF.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

relevantes do poetry slam em entrevista (CATARINA, 2018) na


plataforma YouTube, transcrita abaixo:

Existem mais de quinhentas comunidades no mundo


inteiro e agora a gente “tá” em um momento de franca
expansão no Brasil. Eu e o Núcleo Bartolomeu de
Depoimentos trouxemos essa modalidade para o Brasil no
ZAP, que é a Zona Autônoma da Palavra. A gente tem
visto que essas rodas de poesia, as batalhas, essas ágoras
livres, da livre expressão e do livre pensamento, estão
sendo muito importantes hoje em dia no momento político
que a gente vive, onde há muita divergência de
pensamento, muita diferença e, até mesmo, muita
consonância. Eu acho que os espaços da política partidária
estão muito saturados e esses [os slams] são espaços onde
dá pra exercer política e cidadania de uma maneira poética,
de uma maneira diversa, de uma maneira que a gente ouve
a opinião que não é exatamente a nossa. [...] É uma
ferramenta para que as pessoas voltem a prestar atenção de
novo na poesia e umas nas outras também. E também que
a poesia perca essa ideia de que ela é de um ou de outro,
da academia. Ela é de todos.

No país, existem cerca de 80 iniciativas e São Paulo concentra a


maior quantidade de slams, segundo dados coletados nos perfis da Brasil
Poetry Slam (2018) e do SLAM BR- Campeonato Brasileiro de Poesia
Falada (2018), na rede social Facebook. Um dos mais famosos e
difundidos é o Slam Resistência, que se reúne na primeira segunda-feira
de cada mês na praça Roosevelt, entre as ruas da Consolação e Augusta,
no centro de São Paulo. Com o lema “Sabotagem sem Massagem na
Mensagem”, um dos criadores do Resistência, Del Chaves, defende a
desobediência civil e a ocupação do espaço público, em uma perspectiva
que ele convencionou chamar de “vandalismo lírico”.

Ano passado, nossa primeira edição foi em março e


reunimos 700 pessoas. Quando foi 8h40min da noite, dois
guardas chegaram para nos abordar dentro da lei da

352
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Perturbação da Ordem, uma lei muito usada no período da


ditadura militar, e da lei do “Psiu”. Só que ainda não era
22h. Estávamos com a lei do artista de rua, que nos
ampara, e mostramos para eles. É uma praça pública e
temos o direito de estar ali. Então, eles ameaçaram chamar
a tropa de choque. Continuamos o evento. Quando chegou
perto das 22h, a GCM [Guarda Civil Metropolitana] fez
uma fila com 24 guardas de cara feia, três viaturas com
“giroflex” ligado, “aí” ele falou que ia chamar a tropa de
choque e disse que eles não viriam para conversar (REDE
BRASIL ATUAL, 2018).

O relato de Del Chaves demonstra a latente disputa pela cidade,


pelo espaço urbano pretensamente público, mas que carece de um caráter
plural e democrático. A tentativa de higienização e exclusão étnico-racial
e social de praças, avenidas, parques e outros pontos centrais é
sintomática, como estratégia de mascarar a profunda desigualdade
econômica e social, desconsiderando e negando opiniões divergentes,
silenciando vozes e demandas legítimas, empurrando para as periferias
quem busca retomar o centro do debate. O espaço público, dessa forma,
não se mostra tão público assim.
Apesar do protagonismo de São Paulo, a iniciativa de
democratizar o espaço público vem sendo difundida também no Rio de
Janeiro. O Slam das Minas, por exemplo, é uma das maiores
comunidades slam do estado, já contando com quase cinco mil inscritos
na rede social Facebook. A proposta é desenvolver um ambiente para dar
voz às mulheres, permitindo que se expressem em um contexto no qual
há predominância masculina.
Nessa perspectiva, nota-se que os slams têm maior número em
São Paulo do que em cidades como o Rio de Janeiro. Uma possível
explicação para este fato pode estar ligada à disposição geográfica de seu
território. Enquanto a cidade de São Paulo possui configuração mais
horizontal e sua organização se dá de forma que a periferia fica afastada
dos bairros nobres, o Rio de Janeiro é conhecido por concentrar, nos

353
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

mesmos bairros, membros da elite e moradores de comunidades. A


popularidade do funk também pode ser um motivo.
Tendo em vista a supramencionada disputa pelo espaço urbano,
é necessário pontuar que o ideário jurídico liberal tradicional propugna e
difunde uma perspectiva meramente legalista e estática de interpretação
e sistematização do Direito. Segundo essa orientação, o Direito à Cidade,
uma vez positivado no ordenamento jurídico, está garantido e
naturalmente produzirá seus efeitos benéficos para toda a coletividade
na qual foi inserido, sem qualquer desdobramento colateral significativo.
No entanto, o panorama profundamente complexo das sociedades
modernas demonstra justamente o oposto. A mera referência ao Direito
à Cidade não é capaz de ensejar transformações sociais, políticas e
econômicas efetivas e reais, uma vez que não detém uma
intencionalidade crítica ínsita e autônoma. O discurso de tal direito,
assim como qualquer outro, pode ser útil aos avanços pretendidos ou
simplesmente legitimar e perpetuar cenários de opressão e subordinação
de uma determinada ideologia dominante, travestido de um poderoso
instrumento de transformação.
Faz-se mister, portanto, confrontar a estrutura teórica tradicional
dos direitos, que maquia interesses hegemônicos e mascara um sistema
profundamente injusto de relações sociais, políticas, econômicas,
culturais e ideológicas, a partir do qual inúmeros grupos tidos como
“minorias”, a exemplo das mulheres, dos negros, dos homossexuais,
entre tantos outros, permanecem em condições de subordinação.
Nesse sentido, o Direito à Cidade deve ser analisado sob o prisma
emancipatório do confronto, da disputa pelo poder, como resultado de
longos e elaborados processos decisórios que verdadeiramente incluam
todos os atores atingidos, sem qualquer tipo de distinção. Não pode ser
tido como um projeto finalizado, mas em constante e permanente
construção, destruição e reconstrução, como forma de configurar uma
nova ordem que substitua a injusta que vige atualmente. Com isso, o
diálogo com as práticas sociais que visam transformar a realizar é o lugar

354
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

onde a democracia adquire a sua razão de ser e existir enquanto regime


de governo moderno e inclusivo.
Deve-se ter em mente que o Direito à Cidade somente pode ser
usufruído e concretizado mediante a participação daqueles que se dão
conta das condições indignas a que estão submetidos (CARBALLIDO,
2015, p. 103), organizam-se e mobilizam-se para suplantá-las,
transformando a realidade e fazendo com que suas reivindicações sirvam
de inspiração a outros atores que estão em inseridos em contextos de luta.
Os direitos, dessa forma, não são provenientes de uma concessão
graciosa daqueles que compõem as instâncias de poder, seja o Estado ou
qualquer outra “instância superior”. Muito pelo contrário, a consecução
dos direitos deve seguir uma dinâmica de baixo para cima, do particular
para o geral, do grupal para o coletivo público, dos setores
empobrecidos, discriminados e menos favorecidos para a população em
geral.
Esta dinâmica torna-se coerente, segundo Manuel E. Gándara
Carballido (2015, p. 103), uma vez que somente aqueles que estão
indignados com a sua realidade podem reconhecer as injustiças do
sistema consolidado e iniciar processos de transformação. São os setores
afetados que estão aptos a questionar as relações de poder, identificando
a desordem estabelecida e desnaturalizando o que se tem pretendido
normalizar, com o intuito de mudar a história por outra possível, mais
humana e justa.

Referências

CARBALLIDO, Manuel Eugenio Gándara. Repensando os direitos


humanos a partir das lutas. Revista Culturas Jurídicas, Vol. 1, Núm. 2,
2014, p. 75-105, mar. 2015. Disponível em:
<http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/88>.
Acesso em: 08 de maio de 2018.
CATARINA, Sesc em Santa. Canal do YouTube. O que é Poetry Slam?
Com Roberta Estrela D'Alva - Top Dicas Sesc #48. Transcrito por

355
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Rodolfo Bastos Combat. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=bojuwnv6yd0> Acesso em: 08 de
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Facebook. Disponível em: <
https://www.facebook.com/POETRYSLAMBRASIL/> Acesso em: 08
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<https://www.poets.org/poetsorg/text/brief-guide-slam-poetry> Acesso
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REDE BRASIL ATUAL. Slam Resistência: a poesia e a voz de quem
sempre sofreu calado.Rede Brasil Atual. Disponível em:
<http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/138/slam-resistencia-a-
poesia-e-a-voz-de-quem-sempre-sofreu-calado> Acesso em: 08 de maio
de 2018.
SLAM, Brasil Poetry. Perfil de Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/brasilpoetryslam/> Acesso em: 08 de maio
de 2018.

356
CIDADE, MULHER E EDUCAÇÃO: O PAPEL FEMININO NA
LUTA PELA OCUPAÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS A PARTIR
DA PARTICIPAÇÃO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA (UM
ESTUDO EMPÍRICO DA OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO DE
SÃO BERNARDO DO CAMPO)

Anne Nimrichter Oliveira 110

Cecília Bojarski Pires 111

Greyce Danielle Alves Barbosa 112

Palavras- Chave: cidade; ocupações; mulher; resistência; participação.

O presente trabalho tem por intuito discorrer sobre a temática da


cidade, correlacionando-a com algumas categorias sociais, a saber, a
mulher e o Humanismo Dialético (LYRA FILHO, 1982, p. 3) – no ponto
de vista do qual o Direito não se restringe ao âmbito normativo -, no que
tange à ocupação de espaços urbanos como forma de resistência. A
cidade é um dos maiores símbolos das aflições que permeiam nosso
tempo, bem como transmite os conflitos contemporâneos estabelecidos
entre dinâmicas impostas pelo sistema-mundo e dinâmicas locais.
Nosso objetivo é, conjugando realidade e abordagem teórica,
tecer a correlação de significância e relevância do papel das mulheres no
ambiente da cidade, com a possibilidade do indivíduo superar os
condicionamentos aos quais está submetido, através do processo de

110
Mestra no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).
111
Mestra no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).
112
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional
da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

conscientização, o qual resulta de sua participação ativa, de seu


engajamento (LYRA FILHO, 1982, p.13).
Para tanto, concentraremos nosso estudo em uma ocupação
urbana na luta por moradia: a Ocupação Povo Sem Medo de São
Bernardo do Campo (ABC paulista) , coordenada pelo Movimento dos
113

Trabalhadores Sem-Teto (MTST), no período de setembro de 2017 a


abril de 2018. A escolha por tal Ocupação se deu por ser ela, além de
recente, ser uma das maiores ocupações urbanas da América Latina,
tendo sido liderada por uma mulher de 34 anos de idade e contar com
53,4% de acampadas mulheres . 114

Para isso, utilizaremos entrevistas semiestruturadas realizadas


com acampados da Ocupação nos períodos de 01 a 10 de novembro de
2017, e de 23 a 25 de fevereiro de 2018. Serão utilizados também
materiais documentais (impressos produzidos pelo MTST, cartilhas,
fotografias e filmagens), além de material próprio construído a partir da
oitiva de relatos e da observação não participante da dinâmica da
Ocupação, e do comportamento dos diversos atores envolvidos no
processo.

113
Povo Sem Medo é o nome dado às diversas ocupações urbanas coordenadas pelo
MTST em todo o Brasil, dentre elas a que se desenvolveu em São Bernardo do
Campo, região metropolitana de São Paulo (ABC paulista), no período de setembro
de 2017 a abril de 2018. Tal ocupação teve início na madrugada do dia 01 para o dia
02 de setembro de 2017 e ocupou um terreno de 70 mil m² - sem função social há 40
anos e com uma dívida de IPTU em R$ 50.000,00 -, de propriedade da Construtora
MZM. A plataforma Povo Sem Medo surgiu no âmbito da Frente Nacional de
Mobilização Povo Sem Medo, fundada em outubro de 2015, e pode ser definida, de
acordo com informações veiculadas em seu próprio site, como uma “frente unitária
de movimentos sociais que tem como maior objetivo a realização de amplas
mobilizações populares”. Dentre os movimentos sociais que a integram, está o
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
114
De acordo com uma pesquisa realizada com as famílias da Ocupação de São Bernardo
do Campo, de setembro a outubro de 2017, pelo Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

358
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

A relevância na discussão dessa temática se deve ao fato de que


a cidade pode ser considerada como locus primordial dos acontecimentos
sociais, sejam eles classificados como positivos ou negativos, e,
exatamente por isso, existe o interesse em buscar uma significação dessa
relação a partir de um processo não-material de ocupação da cidade, por
meio da educação, em especial, pelas mulheres - símbolo de resistência.
De maneira geral, é possível afirmar que a Ocupação possui um
perfil heterogêneo: homens, mulheres, LGBTs, jovens, adultos, idosos e
crianças sem domicílio, ou seja, não apenas pessoas que moram nas ruas
e se encontram em situação de absoluta miséria, mas também as que
vivem na informalidade, de favor em casa de parentes, sob a constante
insegurança de remoções e despejos ou, ainda, em moradias precárias e
sem acesso aos serviços mais elementares e fundamentais para uma
sobrevivência digna.
A maneira que a Ocupação de São Bernardo do Campo se
desenvolve, independentemente das diferenças existentes entre aqueles
que a compõem, é no sentido de promover o sentimento de
“pertencimento” e fomentar um “vínculo de solidariedade coletiva”
(BOULOS, 2017, p. 79).
Na prática, é possível observar o que é dito, por exemplo,
considerando que a Ocupação era dividida em 19 “Grupos de Pessoas”,
chamados de “G”, que possuíam coordenadores que foram escolhidos
dentre e pelos próprios acampados, e ficavam responsáveis pela
organização das famílias que a eles estavam vinculadas, e pelo repasse
das informações e das decisões que eram tomadas nas reuniões diárias
que aconteciam entre tais coordenadores e a liderança da Ocupação.
Sendo assim, há um constante diálogo entre os próprios acampados e
entre os acampados e as lideranças, fato que faz com que todos
participem das decisões que são tomadas.
Todas as pessoas tinham que colaborar para manter o
funcionamento e organização da Ocupação. No entanto, os ocupantes
podiam participar das tarefas que mais lhe fossem caras, filiando-se às
diversas “brigadas”, como a de preparo de alimentos, vigilância,

359
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

comunicação, limpeza, entre outras. Não havia, portanto, imposição de


tarefas, mas todos tinham o dever de cooperar com a realização dos
afazeres, essa é uma exigência do MTST.
Nesse sentido, considerando que pelo menos metade dos
acampados da Ocupação eram mulheres, principalmente negras,
impossível ignorar as importantes conseqüências que a abertura de tal
espaço para tais mulheres pode significar.
Das mulheres por nós entrevistadas e observadas, a grande
maioria, não sabia, até estar ali, o que era uma Ocupação e o que isso
significava; tampouco tinham noção de que o acesso à moradia é um
direito de todos, inclusive delas, sujeitos invisibilizados e consideramos
inferiores pela sociedade. Invariavelmente, no entanto, todas as
acampadas as quais tivemos acesso foram fundamentais quando da
tomada de decisão para estar na Ocupação. Foi pela insistência das
mulheres que famílias inteiras passaram a viver na Ocupação. Também
é comum ver o caso de mulheres que são solteiras, e que deixam seus
filhos na casa de algum parente e passam a viver na Ocupação, ou ainda
que levam seus filhos para com elas viver nos barracos de lona. Mulheres
idosas, que já possuem sua moradia, passam a participar da Ocupação
para que seus filhos e filhas, que estão na busca pela moradia, possam
trabalhar.
Uma vez na Ocupação, tais mulheres dizem passar a ter
consciência de seus direitos e transformam a luta por moradia em uma
luta maior. Esse é o caso, por exemplo, de uma mulher negra, de 29 anos,
mãe de 3 filhos, cujo marido “está sempre na rua e nem sempre
aparece” . Após ter que passar 15 dias na rua com seus filhos, ela foi
115

acolhida na Ocupação e 1 mês depois disse “estar no céu” e ter aprendido


que para ter seu direito é preciso, ela mesma, lutar. Na ocasião, sugeriu
para uma das lideranças que nos acompanhava, que fosse feito no terreno

115
Trata-se de declaração de ocupante da Ocupação Povo Sem Medo quando da
realização de pesquisa empírica para construção da dissertação de mestrado de Cecília
Bojarski Pires (2019). Será preservado o sigilo da fonte.

360
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

da Ocupação um espaço específico para que as mães que trabalham


deixassem seus filhos, e se ofereceu para ficar responsável por cuidar das
crianças, uma vez que se encontrava em situação de desemprego, e
queria ajudar.
Além disso, é possível perceber que as mulheres, ao passarem a
fazer parte da Ocupação, percebem que a elas cabe um espaço que
ultrapassa os limites do ambiente doméstico. De acordo com a líder, ao
entrar para o MTST, após conseguir sua casa a partir da luta
desenvolvida em uma ocupação anterior, nasceu o orgulho de ser mulher,
pois foi possível perceber que existem outros espaços a serem ocupados
pela mulher que vão além do fogão e da criação dos filhos. Segundo ela,
a mulher pode “pilotar um fogão, uma Ferrari, uma ocupação e a
história” . 116

De acordo com outra ocupante , também negra, estar na


117

Ocupação trouxe esperança para sua vida, pois uma vez ali dentro, ela
pode perceber que mais do que uma moradia, é preciso lutar por justiça
social e por igualdade. Assim, o ambiente da Ocupação, que reúne
pessoas que são historicamente discriminadas e que se desenvolve em
uma dinâmica de não discriminação, colabora para o processo de
aceitação e de empoderamento da mulher negra.
Neste sentido, cumpre enfatizar, conforme sinalizado por Helio
Gallardo (2014, p. 109), que, para que se estabeleça uma cultura de
direitos humanos, impõe-se transformar não só as concepções
educativas, mas também suas práticas, de modo a conceber como
espaços educativos não só aqueles institucionalmente formatados para
tal, ou seja, escolas e universidades, mas também o da família, dos
bairros, das igrejas, da atividade econômica, do Estado – em síntese: das

116
Trata-se de declaração de liderança da Ocupação Povo Sem Medo quando da
realização de pesquisa empírica para construção da dissertação de mestrado de Cecília
Bojarski Pires (2019) Será preservado o sigilo da fonte.
117
Trata-se de declaração de ocupante da Ocupação Povo Sem Medo quando da
realização de pesquisa empírica para construção da dissertação de mestrado de Cecília
Bojarski Pires (2019) Será preservado o sigilo da fonte.

361
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

instituições sociais em geral. Em seu entendimento, todos estes espaços


possuem o potencial de fomentar a autonomia dos sujeitos
(GALLARDO, 2014, p. 109). Neste sentido, proclama: “Que toda
relação humana seja uma aula para gratificar a criatividade e a vida!”
(GALLARDO, 2014, p. 110).
Por tudo exposto, é possível concluir, ainda que parcialmente,
que a dinâmica desenvolvida na Ocupação urbana por moradia de São
Bernardo do Campo, ao se pautar em bases que buscam “ampliar as
relações sociais”, na luta cotidiana e pela “sensibilidade sociocultural e
popular” (SANCHEZ RUBIO, 2017, p. 32), permite que os sem-teto
engajados no processo rompam com o conceito de “humilhação social”,
desenvolvido por José Moura Gonçalves Filho. (BOULOS, 2017, p. 78).
Especificamente em relação à mulher, notadamente a mulher
negra, a Ocupação urbana na luta pela moradia, tema que afeta a própria
existência familiar, acaba tendo um peso ainda maior.
As mulheres, principalmente as mulheres negras, sofrem uma
invisibilização e um preconceito ainda maior do que o que sofrem os
homens. O acesso à moradia, por ser uma questão que afeta a própria
existência familiar - em uma sociedade patriarcal, como é a sociedade
brasileira -, acaba sendo um tema mais afeito a realidade da mulher,
sobretudo da mulher negra, que por ser historicamente discriminada, é
mais atingida pela sua falta. Nesse sentido, a luta pela moradia é, muitas
das vezes, a primeira oportunidade que tais mulheres possuem de ocupar
um novo espaço na sociedade. Quando tal luta se desenvolve da forma
como ocorreu na Ocupação de São Bernardo do Campo, o papel
desempenhado por essa mulher tende a transcender a busca pelo direito
à moradia, e se transforma na assunção de um papel de protagonismo nas
mais diversas esferas da vida. Assim, a mulher antes invisibilizada, toma
consciência de sua capacidade de mudar sua própria realidade e de sua
família e passa a ocupar outros espaços de poder. A luta se inicia pela
moradia, mas passa a ser por representatividade.

362
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Referências

BOULOS, Guilherme Castro. Estudo dobre a variação de sintomas


depressivos relacionados à participação coletiva em ocupações de
sem-teto em São Paulo. 2017. Dissertação (Mestrado em Psiquiatria) –
Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
Disponível em: http://www.teses.uso.br/teses/disponiveis/5/ 5142/tde-
06062017-084608/Acesso em: 2018-05-10.
CARTA CAPITAL. Ocupação São Bernardo: retrato do país na era
Temer.Carta Capital On-Line, 05/12/2017. Disponível em:
<https://https://www.cartacapital.com. br/blogs/brasil-
debate/ocupacao´sao-bernardo-retrato-do-pais-na-era-temer> Acesso
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GALLARDO, Helio. Teoria Crítica: Matriz e possibilidade de direitos
humanos. São Paulo: Ed. UNESP, 2014.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Disponível em:
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POVO SEM MEDO, Frente Nacional de Mobilização. Disponível em:
<http://www.povosemmedo.org/.> Acesso em: 09/05/2018.
SÁNCHEZ RUBIO, David. Por uma recuperação das dimensões
instituintes da democracia e dos direitos humanos. In:Revista Culturas
Jurídicas, Vol. 4, Núm. 7, jan./abr. 2017. Disponível em:
<http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/370/
142>. Acesso em 29.01.2018.
SOUZA, M. A. A. Cidade: lugar e geografia da existência. In:5°
Simpósio Nacional de Geografia Urbana: Conferência de Abertura.
Salvador, 1997.

363

A QUESTÃO DOS POVOS INDÍGENAS EM ÁREAS URBANAS:
REPRESENTATIVIDADE E OS DESAFIOS DECORRENTES
DO FENÔMENO MIGRATÓRIO

Camilla de Azevedo Pereira 118

Pablo Ronaldo Gadea de Souza 119

Palavras-Chave: Direito indígena; cidadania indígena; migração; povos


indígenas em áreas urbanas; subjetividades coletivas.

O presente trabalho busca desenvolver a questão dos povos


indígenas nas áreas urbanas e sua migração, visto que, embora a maioria
dos povos indígenas em toda a América Latina continue a viver em áreas
rurais, tais coletividades estão migrando cada vez mais para as áreas
urbanas, seja voluntária ou involuntariamente, resultando em um
fenômeno migratório com importantes consequências sociais e culturais.
No caso do Brasil, por exemplo, de acordo com a definição do
termo em 2012 pelo IBGE, a população indígena urbana, é um fato
social consolidado. Isso é algo que se faz perceptível ao olhar os três
últimos censos demográficos (1990, 2000 e 2010). Entre 1991 e 2000, a
população indígena residente em áreas urbanas no Brasil cresceu 440%,
enquanto na década seguinte diminuiu em 18% (IBGE, 2011a;
TEIXEIRA; MAINBOURG, 2014).
Apesar desta diminuição, justificada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística por causa da introdução da questão da etnia, o
que haveria inibido a questão afirmativa frente à etnia indígena, os
números ainda são bastante expressivos. Dessa forma, este fenômeno

118
Graduanda em Relações Internacionais pela PUC-Rio e Graduanda em Segurança
Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
119
Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
Constitucional da Universidade Federal Fluminense.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

reflete a tendência crescente para a urbanização global, segundo a qual a


maioria da população mundial viverá em breve em cidades.
Entre os fatores que contribuem para a migração urbana dos
povos indígenas encontram-se a perda de seus territórios ancestrais, a
pobreza, os desastres naturais, a falta de oportunidades de emprego, a
deterioração de seus meios tradicionais de vida, a falta de alternativas
econômicas viáveis, aliados a uma perspectiva de melhores
oportunidades nas cidades. Por esta razão, há uma dificuldade no que
tange a elaboração de políticas públicas específicas e diferenciadas
voltadas para este grupo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1960).
Ao mesmo tempo, devido ao seu poder político limitado
institucionalmente, muitas vezes não podem usar o sistema político para
melhorar sua situação. Além de somarem somente 0,4% da população
brasileira, segundo dados do IBGE, e contando com a ausência de uma
representação efetiva no Congresso, os povos indígenas tentam ganhar
voz articulando-se em entidades de classe, e, ainda sim, tem o ingresso
no âmbito político dificultado (DEUTSCHE WELLE, 2014).
No Brasil, o único membro de um povo indígena a ocupar um
cargo político de projeção nacional foi o Cacique Xavante Mário Juruna,
ex-deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro, entre 1983 e 1987,
responsável pela criação da Comissão Permanente dos Índios na Câmara
dos Deputados.
Por causa da predominância de ruralistas e partidos mais
conservadores no Congresso, as demandas destes povos dificilmente são
ouvidas, cabendo a estes recorrer às ações federais que são de atribuição
do poder Executivo.
Ademais, de acordo com a publicação do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), “Perfil dos Candidatos às Eleições 2014: sub-
representação de negros, indígenas e mulheres: desafio à democracia”,
uma das principais razões para a desigualdade no acesso a cargos
eleitorais é o racismo, além de falta de apoio financeiro e tempo reduzido
na mídia.

366
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Logo, somente uma profunda reforma no sistema político, que


desfaça todas as estruturas de poder tradicionais, herança do período
colonial, que ainda predominam neste espaço, será capaz de reverter este
panorama.
Com isso, os povos indígenas encontram-se vulneráveis a uma
sorte de fatores sociais e econômicos que afetam a efetivação dos seus
direitos humanos. Eles tendem a não ter acesso à educação, a viver em
terras vulneráveis a desastres, saneamento inadequado ou falta do
mesmo, e acesso deficiente aos serviços de saúde pública, contribuindo
para a redução da produtividade e da renda entre os povos indígenas.
Como esses debates cruciais, que perpassam a questão dos
direitos dos indígenas no espaço urbano, estão sendo travados no
Congresso, a participação dos mesmos neste local é imprescindível,
ainda que na prática isso não aconteça, cabendo à “bancada ruralista”
legislar sobre um tema que desconhece e que não possui a menor
sensibilidade para fazê-lo.
Sobre a matéria há a Proposta de Emenda Constitucional
320/2013, de autoria do deputado Nilmário Miranda (PT-MG), que
sugere a criação de quatro vagas especiais para deputados, destinadas à
população indígena, seguindo o exemplo de alguns países latino-
americanos, como Colômbia, Venezuela e Bolívia, que preveem
constitucionalmente uma porcentagem de cadeiras do Legislativo a
serem destinadas aos membros dos povos originários que se encontram
no território de seus respectivos países.
Além de todas essas questões, os povos indígenas em áreas
urbanas podem sofrer discriminação e ter dificuldades em manter sua
língua, sua identidade e sua cultura, bem como educar as gerações
futuras, que podem ter como resultado, uma perda de sua herança e
valores tradicionais.
Esse apagamento dos valores indígenas é produto de todo um
paradigma colonial, no qual estes grupos eram subjugados e vistos como
inferiores, levando a construção de uma imagem do índio deturpada da
realidade.

367
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

A invisibilização dessa identidade culmina na precariedade da


produção de dados que sejam capazes de fornecer maiores informações
sobre os mesmos e de suas respectivas necessidades na vivência urbana.
Assim, há uma dificuldade, por parte das diversas camadas da
sociedade civil, em pressionar o segmento político em favor desses
povos, uma vez que toda essa situação é pouco divulgada nas grandes
mídias, resultado de um perigoso processo de apagamento histórico
dessas identidades.

Referências

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ASSIES, Willem; VAN DER HAAR, Gemma; HOEKEMA, André J.
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en América Latina. El Colegio de Michoacán AC, 1999.
BELLO, M. et al. La equidad y la exclusión de los pueblos indígenas y
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2002.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Processo de Assimilação dos
Terêna. Edição Museu Nacional, Série Livros I, Rio de Janeiro, 1960.
DEUTSCHE WELLE. Demandas indígenas perdem espaço na política.
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relacionan con lo urbano los indígenas amazónicos peruanos en el siglo
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IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo
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369

O OLHAR ESTÉTICO DO AFETO

Lia Beatriz Teixeira Torraca 120

Lúcia Capanema Alvares 121

Raffaele De Giorgi 122

Palavras-chave: violência; estética; afeto; comunicação; Rio de Janeiro.

Propomos através deste texto algumas reflexões que integram a


tese da primeira autora, orientada pelo coautor, Professor Raffaele De
Giorgi, e acompanhada pela coautora, Professa Lúcia Capanema
Alvares; com previsão de defesa para agosto de 2019. A hipótese deste
trabalho de pesquisa foi formulada a partir de uma forma específica de
violência que distingue o Rio de Janeiro de outras cidades, como observa
Zuenir Ventura, em seu livro Cidade Partida (VENTURA, 1994), ou
como constata o olhar estrangeiro de Misha Glenny, ao acessar a
estrutura de poder de um “dono do morro” (GLENNY, 2016, p. 52-53).
O Rio de Janeiro é uma cidade identificada pela beleza e marcada
por sua violência. Uma violência impressa na estética da cidade como
circularidade de um sistema social, cuja ordem é fixada sob uma
dinâmica comunicativa de ameaça constante e recíproca. Uma cidade
demarcada entre territórios lícitos e territórios proibidos, dividida pelas
fronteiras de uma violência que é comunicada nos silêncios, no medo,
nas desigualdades. Uma violência normalizada e integrada à paisagem
da cidade.
A ordem é fixada sob uma dinâmica comunicativa de ameaça
constante e recíproca, uma percepção disseminada pela mídia e pelo
estado através do discurso do terror, e assimilada pela sociedade, que
passa a exigir mais proteção e segurança, legitimando medidas de

120
Mestre e doutoranda no PPGD-UFRJ.
121
Professora Doutora Urbanismo UFF.
122
Professor Doutor Università Del Salento, Itália.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

contenção e controle que retroalimentam uma dinâmica circular de


violência. Segundo o filósofo e professor de psiquiatria, Paul
Watzlawick, “o comportamento de cada uma das partes envolvidas
determina e é determinado pelo comportamento da outra”
(WATZLAWICK, 1991; p. 93), projetando uma dinâmica circular que
leva a visões do mundo muito diferentes. Visões que acreditamos possam
ser alteradas por intermédio da estética.
Entender a violência por intermédio da estética é perceber como
a violência ganha formas, como é comunicada, como é significada. A
cidade conhecida mundialmente como maravilhosa acabou se
estruturando ao redor da violência, construindo uma divisão entre
espaços de inclusão e espaços marginalizados, aparentando se organizar
em função da violência. O Rio de Janeiro acabou dividido entre morro e
asfalto, a partir das desigualdades entre os dois espaços. Uma segregação
que reflete própria circularidade de violência, entre o racismo
escamoteado, a aporofobia (CORTINA, 2017) despercebida, e outras
formas de uma violência que acabou normalizada.
A realidade social carioca expõe como o problema da violência
se afasta de uma “solução” possível a cada “solução” apresentada,
justamente por insistirmos em formular unidimensionalmente “a
solução”, restrita à contenção seletiva daqueles que são considerados
criminosos – conforme sua imagem foi construída – o que gera ainda
mais marginalização, mais exclusão, mais desigualdade e, portanto, mais
violência. Ao deslocar o enfoque, buscando novas perspectivas de
analisar a violência, podemos articular a questão de outra maneira,
tomando como ponto de partida o fato que a violência é uma
circularidade que se retroalimenta e se autorregenera.
A estrutura arquitetônica da cidade está fundada em torno de uma
violência visível, uma violência que assumiu a forma de uma estrutura
circular. Os incluídos (do asfalto) percebem a violência dos excluídos
(do morro), os excluídos (do morro) percebem a violência dos incluídos
(do asfalto). Porém, tanto a população do morro quanto a do asfalto não
percebem que constroem ameaças recíprocas. Esta violência está

372
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

impressa no panorama da cidade, na forma de uma dinâmica circular. O


morro está circundado pela violência do asfalto e o asfalto está
circundado pela violência do morro, e as medidas de contenção desta
violência acabam por retroalimentar e potencializar a violência em
ambos os espaços. Até mesmo a paz se apresenta como face da violência
da cidade, porque o que é percebido como segurança é representado pela
imagem da polícia – uma imagem de violência. Os emblemas que os
policiais carregam são os símbolos da guerra, confirmando que a “paz é
a continuação da guerra por outros meios”, conforme alertara Hannah
Arendt (ARENDT, 2004).
Observar a violência a partir da estética traz uma perspectiva
diferente sobre a questão da violência no Rio de Janeiro. A cidade é a
violência que se percebe, como também a violência que mesmo visível
não é mais percebida, absorvida como violência normalizada. Se estética
é uma questão de percepção, é também uma questão daquilo que se
constrói como realidade (LUHMANN, 2005; WATZLAWICK, 1991).
Aquilo que se constrói como violência – uma realidade violenta.
Considerando que a estética é uma questão de percepção
(LUHMANN, 2005; ADORNO, 1970; MERLEAU-PONTY, 2015), que
é possível uma variedade de percepções – e realidades, que é possível
alterar a autopercepção e a percepção em relação ao outro, e que a
realidade violenta do Rio de Janeiro está aprisionada em uma
circularidade de violência, acreditamos que esta violência possa ser
enfrentada por intermédio da estética, por uma mudança na forma de
perceber o outro, a própria divisão, o conflito, a violência.Para observar
esta dinâmica de violência propomos o olhar estético do afeto, um
instrumento ainda em desenvolvimento pela primeira autora.Um
instrumento que pretende ampliar as possibilidades de percepção e torna
visível a estrutura circular de violência, trazendo possibilidades de
rompê-la através do afeto.
O primeiro aspecto considerado na construção do olhar estético
sobre a violência é que “temos muito mais percepção e somos muito mais
influenciados pelas nossas percepções do que pensamos”

373
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

(WATZLAWICK, 1991, p. 43).Esta influência é decisiva na


determinação do nosso comportamento. O segundo aspecto relevante na
criação deste instrumento de observação é o entendimento que “não
existe uma realidade absoluta, mas apenas concepções da realidade
subjetivas e muitas vezes contraditórias”, demonstrado na tese do
Professor Watzlawick (1991, p. 127). Considerando esses dois aspectos,
encontramos no mundo da fotografia um medium de observar a
circularidade da violência, característica do Rio de Janeiro.
As fotos, segundo a filósofa Susan Sontag, não só captam a
realidade, mas compõem uma interpretação do mundo (2004; posição
84), refletem uma “emoção sentimental e um sentimento implicitamente
mágico: são tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade”
(SONTAG, 2004; posições 221 a 226). O ver e o ver-se, como ressalta o
Professor de Sociologia da FFLCH – USP, José de Souza Martins,
encontram-se radicalmente inscritos na realidade das relações sociais
(MARTINS, 2017, p. 71).
Além da fotografia ser um meio de ver a realidade – sob
determinada perspectiva (fotografar), é uma forma de comunicação
através da imagem fotografada com o espectador do registro fotográfico.
Fotografar é uma maneira de construir a realidade. A fotografia é um
aparato de poder que não pode ser reduzido meramente aos seus
componentes: a câmera, o fotógrafo, o ambiente fotografado, o objeto, a
pessoa ou o espectador, como ressalta Ariela Azoulay (AZOULAY,
2008, p. 81). Uma dimensão que amplifica as possibilidades deste olhar
captado pela câmera. Neste sentido, a câmera popular, aquela que
registra o cotidiano, consegue “desbanalizar o banal” do repetitivo, numa
espécie de negação, o que faz com que a fotografia se insira “num certo
imaginário e numa certa vontade social” (MARTINS, 2017, p. 53). O ver
a violência é olhar o cotidiano; “sem a imagem a cotidianidade seria
impossível”, afirma Martins, “mesmo quando não temos uma fotografia
para cada situação, o imaginário, cria a imagem em nós e para nós” (p.
43).
Este ver fotográfico é a captura do real, é a experiência do real.

374
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

É a busca de sentido em face do espelho, e “o único modo de fazer da


fotografia um espelho é atravessar o espelho”, cuja “inspiração do
negativo propõe a visualidade do avesso”, afirma Martins (MARTINS,
2017, p. 55). A reversão fotográfica amplia nossas formas de
percepção.Segundo o autor, que propõe uma sociologia da fotografia de
da imagem, a reversão fotográfica é o “atravessar o espelho, é buscar no
avesso e no absurdo do contrário o sentido do que não tem sentido, crivar
de indagações as possíveis revelações do negativo e do positivo” (p. 55),
que se revela no contrato civil da fotografia proposto por Ariella
Azoulay. A comunicação do real como espetáculo nos afeta e se reflete
na potência do nosso agir, conforme podemos constatar através de um
dos postulados sobre afeto formulados por Spinoza (SPINOZA, 2017, p.
99).
Para romper a circularidade da violência é necessário romper com
a forma de ver a violência. O olhar estético do afeto seria o instrumento
que possibilita outras formas de percepção, seja da violência, seja do
outro, dos territórios de afeto identificados como territórios de violência.
É a reterritorialização (DELEUZE e GUATTARI) através do afeto
(SPINOZA). Spinoza demonstra que podemos ser afetados pelos corpos
exteriores de muitas maneiras por um mesmo objeto, e este pode afetar
duas pessoas de maneiras diferentes, por exemplo; como também
considera a existência de “tantas espécies de alegria, de tristeza e de
desejo e, consequentemente, tantas espécies de cada um dos afetos que
desses são compostos (tal como a flutuação de ânimo) ou derivados (tais
como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc.), quantas são as espécies
de objetos pelos quais somos afetados” (2017; p. 65-67, 91, 136, 175-
176, 183).
O olhar estético do afeto carrega radicalmente a possibilidade de
ir além da observação, conforme indica a raiz da palavra afeto, afficere,
que significa fazer algo, agir sobre algo, aproximando-se sentido de
alteridade. Spinoza demonstra que o homem é afetado pela imagem
(2017; p. 47,111-116) e pelo imaginado e imaginário, o que fundamenta
nossa proposta.

375

MULHERES E CIDADES: ESPACIALIDADES,
SUBJETIVIDADES E R-EXISTÊNCIAS PELO DIREITO À
CIDADE

Gabriela Angelo Pinto 123

Palavras-Chave: Direito à Cidade; Mulheres, Espaço; Favelas

O debate do direito à cidade na perspectiva de gênero tem


possibilitado a identificação de uma nova gramática política das lutas
sociais urbanas no Brasil. Partindo deste pressuposto desenvolvemos
uma pesquisa de tese ainda em andamento que tem se configurado na
tentativa de realização de uma crítica a inscrição e organização espacial
do patriarcado na cidade do Rio do Janeiro e na análise das lutas políticas
pelo direito à cidade na perspectiva de gênero. Um dos objetivos da
pesquisa é analisar e compreender as experiências, insurgências e lutas
das mulheres do conjunto de favelas da Maré pelo direito à cidade e as
violências vivenciadas por elas no espaço público. Nossa hipótese de
pesquisa é que outros horizontes de sentidos têm sido inaugurados
através de suas formas de organização e insurgências ampliando o
sentido de justiça territorial nas cidades.
Assim, compreendemos que a luta pela implementação do direito
à cidade envolve um sistema complexo de combate a hierarquias que se
retroalimentam, são heterarquias na reprodução do urbano. A violência
sofrida pelas mulheres no espaço urbano é uma marca que transcende a
realidade brasileira. Diante disso elas precisam ser compreendidas
enquanto um padrão de dominação, exploração e opressão inscritas na
construção do sistema-mundo
moderno/colonial/patriarcal/racista/capitalista. Porém, é necessário não
apenas avaliar as especificidades de cada lugar, mas também identificar

123
Geógrafa pela UERJ, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e
Doutoranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF.


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

a pluralidade das identidades das mulheres, pois o patriarcado (que


impõe um papel subalterno as mulheres) se articula com o racismo, com
o sexismo e com outras formas de opressão, dominação e exploração.
Nestes processos em curso precisamos reconhecer as disputas, as
semelhanças, as diferenças, particularidades e singularidades das
mulheres na construção e implementação de uma plataforma política de
direito à cidade que pode criar um campo de possibilidades de
reinvenção de novas utopias urbanas do devir urbano.
A pesquisa de tese pretende focar como objeto de investigação as
mulheres moradoras do conjunto de favelas da Maré, organizadas no
âmbito do projeto “Casa das Mulheres da Maré”, tendo como questão
central suas r-existências e experiências de lutas no âmbito do direito à
cidade a partir de suas percepções e vivências de violência no espaço
público diante da inscrição espacial do patriarcado. Buscaremos
identificar as suas respectivas formas de lutas, organização e
insurgências. Assim, nossa metodologia teórica buscará investigar a
questão dos sujeitos na geografia em suas múltiplas dimensões – em
particular as relações de gênero, raça, classe e origem geográfica.
O universo da nossa pesquisa se limitará à análise da realidade da
favela da Maré, identificando a partir das ações na Casa das Mulheres da
Maré as suas experiências de luta, vivências de enfrentamento a
violência no espaço público, seus processos de organização e seus
ativismos políticos na favela da Maré, localizada na cidade do Rio de
Janeiro.
A escolha metodológica de pesquisa tem se constituído a partir
do acompanhamento e participação nas ações desenvolvidas no âmbito
da Casa das Mulheres da Maré desde 2016. Onde continuamente a
percepção das mulheres investigadas e a vivência da pesquisadora
enquanto mulher ex-moradora de favela moldam a estrutura e a
interpretação das narrativas produzidas através do trabalho de campo.
Assim a metodologia das escrevivências tem se estabelecido como uma
importante ferramenta para percepção de leituras, territorialidades e

378
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

geograficidades de mulheres da Maré e sobre seus dilemas e conflitos


em torna-se mulher no espaço urbano.

379

DESLOCAMENTOS E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM
NOVA FRIBURGO: A PRECARIZAÇÃO DO DIREITO À
CIDADE. O CASO DO CONJUNTO HABITACIONAL TERRA
NOVA

Alexsandro Magalhães Pinto1

Palavras-chave: Deslocamentos; Segregação Socioespacial; Marxismo;


Ecologia Política e Terra Nova.

Os desastres (não) naturais ocorridos na Região Serrana do


Estado do Rio de Janeiro no ano de 2011 desabrigaram centenas de
famílias, isso sem contar a quantidade de mortos vitimados na ocasião.
Algumas iniciativas foram tomadas para mediar o “novo” problema
surgido. No caso específico de Nova Friburgo, os governos federal,
estadual e municipal, através da união pública e privada no âmbito do
Minha Casa, Minha Vida, realizaram a construção de habitações que
começaram a ser entregues aos desabrigados de 2011 somente em
meados de 2014. O deslocamento de habitantes de regiões distintas da
cidade para um único lugar determinado efetivou uma série de
problemáticas abordadas neste trabalho sob uma perspectiva marxista da
produção capitalista do espaço, aliada à Ecologia Política. Trata-se de
algumas impressões a partir de pesquisa incipiente sobre o Conjunto
Habitacional Terra Nova, possibilitadas através de observação
participante no trabalho de uma equipe de Estratégia de Saúde da Família
(ESF).

1
Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense.



O DIREITO ACHADO NA FAVELA: O DIREITO REAL DE
LAJE E SEUS DESDOBRAMENTOS FACTUAIS

Osias Pinto Peçanha 1

Palavras-chave: direito; laje; resistência; ocupação; moradia.

Nos conflitos de interesse entre os moradores da favela do


Vidigal, o tema mais discutido envolve o direito de moradia.
Desenvolvo na presente proposta de pesquisa a ideia da
existência de uma dinâmica do pluralismo jurídico na favela a partir de
uma análise sócio-jurídica do denominado direito real de laje e seus
desdobramentos factuais, tais como, (a) a venda da laje em que o
proprietário da construção base reserva para si os direitos sobre a nova
laje que será construída pelo titular do direito real de laje; (b) a venda da
construção base com reserva pa si dos direitos sobre a laje da construção
base vendida.
É notório que o tema do Pluralismo Jurídico é reconhecidamente
dos mais esquecidos ou desconsiderados pela doutrina constitucional
tradicional na contemporaneidade. Neste enfoque, é relevante indagar
sob quais fundamentos defender a existência de um Direito não-oficial
nascido da relação social entre moradores da favela.
A questão do Pluralismo Jurídico leva a perquirir: (i) se existe um
Direito não-oficial; (ii) o Direito é um saber local? No Brasil, seria
possível reconhecer o Pluralismo Jurídico?; (iv) as tensões sociais na
favela podem ser resolvidas por um Direito não estatal? (v) há
legitimidade nos atores que participam da administração dos conflitos
entre os moradores da favela?

1
Mestre em Direito. Professor de Direito Constitucional e Internacional na
Universidade Estácio de Sá. Advogado. lattes:
http://lattes.cnpq.br/6853145677258197


DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

Desde a colonização, a ocupação do espaço no Brasil seguiu uma


lógica da exploração econômica, o que levou à adoção de uma política
voltada a privilegiar aqueles que detivessem poder econômico, excluindo
da distribuição e ocupação do solo inicialmente o escravo liberto,
posteriormente, o trabalhador. É uma relação de exploração na qual a
mercadoria é o espaço urbano.
Tarcyla Ribeiro Fidalgo leciona que “(...) Deste modo, a solução
encontrada foi o endurecimento da legislação fundiária por meio da
criação da Lei de Terras, em 1850, e de outras leis que a regulamentaram
com a imposição da compra e venda como a única forma de aquisição da
terra no país” (2013, p. 53).
No Brasil, país que durante séculos foi essencialmente agrícola
(SANTOS, 2009, p. 19), a cidade surge como uma aproximação do
campo com o novo poder que estava se estabelecendo na colônia. Além
da fundação do Rio de Janeiro em 1567, e de alguns ensaios de
organização na Bahia, o Brasil pouco se desenvolveu no sentido de
formação das cidades. Somente a partir do século XVIII é que a
urbanização brasileira ensaia um desenvolvimento. Nesse primeiro
movimento de urbanização, a casa da cidade substitui a moradia do
campo, permitindo que o fazendeiro, ou senhor de engenho, permaneça
próximo ao poder e só vá ao campo nos períodos de corte e da moenda
da cana (SANTOS, 2009, p. 21).
A favela, então, surge de um processo de segregação
socioespacial (MAGALHÃES, 2013, p. 17), onde se fez necessário
desde o seu surgimento, dada a existência de conflitos de interesses
internos – moradores em face de moradores – bem como de conflitos de
interesses dos moradores em face da Administração Pública –
demolições, remoções, incursões policiais etc. –, a criação e implantação
de regulação, tanto uma autorregulação como regulação através das
normas oficiais do Estado.
Nesse sentido, “(...) nestas sociedades a identificação do direito
com o direito estatal, inscrita na matriz político-jurídica do Estado liberal
e reproduzida teoricamente pela dogmática jurídica desde o séc. XIX,

384
Enzo Bello, Cecília Bojarski Pires, Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

não corresponde às realidades sócio-jurídicas destes países” (Boaventura


de Sousa Santos 2014, p. 44).
A afirmação de Boaventura parece ir ao encontro da lição de
António Manuel Hespanha (2013, p. 31), segundo o qual, “(...) numa
sociedade política desigual, a tendência é para que a regulação seja feita
de acordo com os interesses dos mais poderosos.” Daí, além da
segregação socioespacial identificada por Alex Magalhães, há também
uma segregação sociojurídica, definida esta como uma imposição de um
direito não relacionado com as necessidades e particularidades
apresentadas por aquela parcela da sociedade que tais regras têm a
pretensão de regular.
Para Wolkmer (2001, p. 233), há uma crise de paradigmas no
direito estatal e essa crise leva ao surgimento de novos paradigmas e
fontes do direito, distintos daqueles impostos pelo sistema oficial. Com
isso, novas proposições epistemológicas baseadas na experiência, na
realidade social e nas práticas cotidianas surgem e vão paulatinamente
impondo uma rediscussão do direito.
Não é preciso muito esforço para identificar tensão na disputa por
espaço quando se trata de ocupação da cidade. Na cidade do Rio de
Janeiro a luta por espaço é antiga e intensa, e gera inúmeros conflitos
sociais. Atualmente, em pleno século XXI a cidade enfrenta questões
relacionadas à distribuição de espaço, existindo disputas tanto no que diz
respeito ao espaço para moradia como disputas por espaço para
exploração econômica; reivindica-se da cidade espaço para o lazer e
espaço para o exercício da política; busca-se espaço para o trabalho e
espaço para o ócio.
A meu ver, não há ilegitimidade no desejo por espaço da cidade,
ilegítima é a intensão de possuir, em detrimento de outrem, todo o espaço
disponível da cidade. David Harvey (2014, p. 20), discorrendo sobre o
direito a reivindicar espaço na cidade esclarece que “os financistas e
empreiteiros podem reivindicá-lo, e têm todo o direito de fazê-lo. Mas

385
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

os sem-teto e os sans-papiers também o podem”. Todavia, muito se


2

discute no Rio de Janeiro, há tempos, o direito de determinadas classes


sociais ocuparem as áreas consideradas nobres na cidade.

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Direito. Tese. Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Warat.
Brasília, DF: 2008.
SOUZA JR., José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: concepção e
prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico – Fundamentos de uma
nova cultura no Direito. 3ª ed. São Paulo, SP: Editora Alfa Ômega, 2001.

2
A expressão “sem papéis”, em francês “sans papiers”, refere-se a estrangeiros sem
documentos.

386
DIREITO À CIDADE: espaços de esperanças nas cidades de exceção

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