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IDENTIDADE,
HEGEMONIA
E GESTÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
NO CAMPO DA
CULTURA NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
IV SICCAL
Este artigo tem como objetivo pesquisar a relação entre as dinâmicas culturais de povos
e comunidades herdeiros dos saberes de tradição oral e as políticas culturais voltadas
e estes segmentos implementadas no Brasil no período correspondente entre os anos
2000 e 2015. A partir da abordagem psicopolítica da consciência e participação política
e da visão crítica sobre os discursos contemporâneos em torno da cultura, assim como
por meio de pesquisa exploratória teórica e conceitual aplicada aos referenciais teóricos
dos direitos culturais e pesquisa empírica entre os integrantes da Rede das Culturas
Populares e Tradicionais, analisaremos o impacto de tais políticas na organização e na
construção da subjetividade de indivíduos e comunidades de tradição oral. Aborda-
se, por fim, o problema dos critérios e categorias de avaliação de políticas culturais.
Palavras-chave: Cultura popular tradicional. Políticas públicas. Cultura brasileira. Identidade e
diferença. Gestão cultural. Fomento e incentivo à cultura. Hegemonia. Ideologia. Poder.
This article aims to investigate the relationship between the cultural dynamics of
peoples and communities inheriting oral knowledge and cultural policies for these
segments implemented in Brazil in the corresponding period between 2000 and 2015.
From the psychopolitical approach of consciousness and political participation and
the critical insight into contemporary discourses around culture, as well as through
theoretical and conceptual exploratory research applied to the theoretical frameworks
of cultural rights and empirical research among members of the Network of Popular and
Traditional Cultures, we will analyze the impact of such policies in the organization and
construction of subjectivity of individuals and communities of oral tradition. Finally,
we will analyze the problem of cultural policy evaluation criteria and categories
Keywords: Traditional popular culture. Public policy. Brazilian Culture. Identity and difference.
Cultural Management. Encouraging and promoting culture. Hegemony. Ideology. Power.
Este artículo tiene como objetivo investigar la relación entre las dinámicas culturales de
pueblos y comunidades herederos de los conocimientos de la tradición oral y las políticas
culturales vueltas a este segmento implementadas en Brasil en el período correspondien-
te entre el año 2000 y el año 2015. A partir del abordaje psicopolítico de la conciencia y
participación política y de la visión crítica sobre los discursos contemporáneos en torno
a la cultura, así como por medio de investigación exploratoria teórica y conceptual
aplicada a los referenciales teóricos de los derechos culturales y investigación empírica
entre los integrantes de la Red de las Culturas Populares y Tradicionales, analizaremos
el impacto de tales políticas en la organización y en la construcción de la subjetividad
de individuos y comunidades de tradición oral. Se aborda, por fin, el problema de los
criterios y de las categorias de evaluación de políticas culturales.
Palabras clave: La cultura tradicional popular. La política pública. Cultura de Brasil. Identidad y
diferencia. Gestión cultural. Fomento y promoción de la cultura. Hegemonía. Ideología. Poder.
DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.153959
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1 Note-se que a indústria cultural representa 6,5% 2 Tomemos como exemplo a não renovação da Lei
do PIB norte-americano, de acordo com uma pesquisa do Audiovisual, a qual, juntamente com o Fundo
realizada pela International Intellectual Property Setorial do Audiovisual (FSA) tem sido apontada
Alliance em 2012, estando à frente de setores tais como fatores de êxito do setor. Fonte: Portal O Globo,
como a agricultura e a alimentação. Fonte: Revista disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/
Veja. Matéria de 20 de novembro de 2013. Disponível temer-veta-prorrogacao-de-beneficios-da-lei-do-au-
em: <http://veja.abril.com.br/entretenimento/indus- diovisual-aprovada-pelo-congresso.ghtml (Acessado
tria-cultural-injetou-us-1-tri-na-economia-dos-eua/> em 29/09/2017)
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das culturas de povos tradicionais, vistas neste do conceito gramsciano de hegemonia e das
panorama sob a ótica do exótico e do atraso. teorias da reprodução cultural e pesquisa
empírica entre os integrantes da Rede das
Este processo hegemônico, aplicado ao Culturas Populares e Tradicionais, analisamos
caso brasileiro, tem impactado negativamente o impacto de tais políticas, construídas no
o desenvolvimento de nossa sociedade, prin- bojo do Estado burguês - marcadas, portanto,
cipalmente na questão da cidadania cultural pela lógica do mercado e pela burocracia no
ou dos direitos culturais mais precisamente, acesso ao fomento - na organização e na
sobretudo ao favorecer um certo circuito construção da subjetividade de indivíduos e
organizado da produção cultural, o segmento comunidades de tradição oral. Aborda-se, por
hegemônico, portanto, adaptado à ideologia fim, o problema dos critérios de avaliação de
do mercado, ao processo de instrumentaliza- políticas culturais, profundamente marcados
ção das práticas sociais e conectado à lógica pela instrumentalização, refletindo-se sobre a
do pensamento único do discurso econômico adequação das categorias analíticas utilizadas
como narrativa dominante na sociedade bra- para avaliar os processos culturais.
sileira, negando portanto o reconhecimento
da diferença cultural própria das comuni- Nossas hipóteses de trabalho são:
dades tradicionais, portadoras de visões de
mundo não coincidentes com o pensamento a) sendo a cultura território de conflitos,
finalístico, capitalista, predominantes na o campo das políticas públicas de cultu-
sociedade brasileira contemporânea. ra é marcado por permanentes dispu-
tas pelo espaço público; neste cenário,
Este artigo tem como objetivo pes- a cultura popular tradicional insere-se
quisar a relação entre as dinâmicas socio- como antagonista em relação à cultu-
culturais de povos, comunidades, grupos e ra hegemônica, marcada pela ideologia
mestre(as) das culturas populares de tradi- liberal, pela burocracia, pela racionali-
ção oral, particularmente as de matriz afri- dade técnica, pela ética instrumental e
cana, e as políticas culturais implementadas visão da cultura como produto. Desta
no Brasil durante o período compreendido forma, as políticas públicas no período
entre os anos 2003 e 2016, políticas estas pesquisado, por não atenderem ao prin-
que reposicionam este segmento na agenda cípio da diferença cultural, não se ajus-
das políticas públicas, após os períodos mili- tam às dinâmicas sócio-culturais dos
tar e do advento do neoliberalismo. A partir grupos tradicionais, mas, ao contrário,
da abordagem psicopolítica da consciência e obrigam-nos a se adequar a tais meca-
participação política e da visão crítica sobre nismos. O Estado e a sociedade devem,
os discursos contemporâneos em torno da portanto, desenvolver novas categorias
cultura como produto, centrada no desen- de avaliação e novas formas de fomen-
volvimento econômico e enquanto prática to ás culturas populares tradicionais,
tecnicista e gerencial, ou seja, situada no mais adequadas à sua visão de mundo,
campo da “gestão” em detrimento da “ação” como garantia de seus direitos;
cultural, assim como por meio de pesquisa
exploratória teórica e conceitual aplicada aos b) a formação dos gestores culturais no
referenciais teóricos dos direitos culturais, Brasil contemporâneo constitui-se
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de desenvolvimento, pensado não somente tais diferenças se acentuam, pois seus hábi-
em enquanto dimensão econômica, mas sim tos os separam das relações de produção e
enquanto desenvolvimento da criação de consumo hegemônicas, sobretudo no que
suas capacidades (MEYER-BISCH, 2011). tange ao uso do tempo, do espaço, outra valo-
rização material e simbólica dos objetos, etc.
Retomando a abordagem de Garcia (Idem, ibidem, p. 57-9)
Canclini quanto á relação entre a cultura
hegemônica e as culturas populares, em seu O papel que as culturas populares ou
postulado, “o consumo como lugar de obje- subalternas exercem na construção da hege-
tivação dos desejos”, o autor aponta que ade- monia se constitui em relevante tema a ser
mais de termos necessidades culturalmente analisado do ponto de vista das mudanças
elaboradas, “atuamos seguindo desejos sem sociais e da participação política, sobretudo
objeto, impulsos que não apontam à posse em virtude da importância que o consumo e
de coisas precisas ou relacionadas com pes- os meios de comunicação exercem na forma-
soas fixas. O desejo é errático, insaciável, ção das identidades culturais na contempo-
inabarcável pelas instituições que buscam raneidade. Garcia Canclini observa que “nas
contê-lo”. O desejo, mais que materialmente, sociedades complexas, a hegemonia se esta-
se relaciona com o sentido simbólico dos belece mediante uma relação dialética entre
rituais que acompanham atividades nos a homogeneidade e a diferenciação social”.
alimentarmos, por exemplo. Em seu modo de vista, por mais que se insista
na ideia da massificação, a sociedade sempre
Para Canclini (Opus cit.), certos setores necessitará criar mecanismos de diferen-
populares menos integrados à economia têm ciação, já que “a unificação transnacional
dificultada sua participação no sistema hege- das culturas homologa algumas práticas,
mônico, mantendo como cultura de resis- ou aspectos delas, mas também confronta
tência modos de produção e consumo não culturas antes desconectadas e torna possí-
capitalistas ou próprios do capitalismo incom- vel, especialmente no consumo, a produção
pleto. Segundo o autor, é uma característica de novas diferenças” (p. 60).
constitutiva do capitalismo a incapacidade de
inclusão de toda a população. Portanto, esses A existência de diferenças torna-se,
setores “satisfazem minimamente suas neces- portanto, fator estratégico para a efetiva-
sidades e produzem sua cultura mediante ção da hegemonia. Ao contrário da domi-
uma elaboração própria de suas condições nação – que favorece à homogeneização,
imediatas de vida”, tais como a produção para “submetendo as pretensões de pluralidade
o autoconsumo, praticamente sem excedentes ao denominador comum da obediência” –
para vender ou a sobrevivência por meio de a hegemonia estimula a diferenciação e a
subempregos, embora isto não os desvincule mantém sob o controle de um poder unifi-
do sistema hegemônico, como pretendem as cador. Nas palavras de Canclini, “quando a
correntes sociológicas que os definem como diversidade de interesses se desenvolve em
“marginais”, pois sua existência é, antes de estilos de vida conflitantes, sem pactos de
tudo, o resultado do desenvolvimento desi- reciprocidade, gera conflitos desintegradores
gual do capitalismo. Segundo o autor, quando da unidade social; mas essas mesmas dife-
se trata de grupos indígenas ou mestiços, renças, reconhecidas pelo poder hegemônico
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e coordenadas por ele, podem coexistir e autônomas com relação à ordem hegemô-
inclusive colaborar para que a hegemonia nica, embora a dominação exercida no
seja legitimada através do consenso”. processo de formação das nações latino-a-
mericanas nos séculos XIX e XX tenha con-
Baseando-se em Bordieu, Canclini seguido reduzir sobremaneira o contingente
aponta que, para efetivar-se em uma socie- destes segmentos autônomos e integrar os
dade desigual, a hegemonia articula os restantes ao contingente migratório euro-
interesses díspares, obtendo o consenso peu, formando um capital cultural comum
quando se cumprem quatro condições: baseado na língua, na alfabetização e sistema
“a) que o âmbito social definido pela classe de educação voltado para a capacitação para
hegemônica – a produção, a circulação e o mercado de trabalho, para a integração ao
o consumo seja aceito pela classe subal- consumo e para a participação nas estruturas
terna como campo de luta; b) que a lógica nacionais do poder, hierarquia e represen-
desta luta seja a apropriação diferencial, tação sócio-política e, do ponto de vista do
distinta para cada classe, do que a sociedade modo de organização da vida cotidiana,
produz como capital material e simbólico; na religiosidade católica e no liberalismo
c) que os setores subalternos partam (...) com capitalista. Desta forma as classes hegemô-
um capital econômico e simbólico (sobre- nicas buscam perpetuar-se na continuidade
tudo escolar) que de entrada os coloque em deste capital cultural garantida pela reprodu-
desvantagem; e d) que este handicap seja ção das estruturas sociais e na apropriação
ocultado”. (Ibidem, p. 61) desigual deste capital, reproduzindo assim
também as diferenças (Ibidem, p. 62-3).
Ressalva deve ser feita ao caso
latino-americano, adverte o autor, no qual Para sustentar sua tese acerca do for-
esta hegemonia se efetiva de forma apenas mação das representações e práticas dos
parcial, devido à diversidade de capitais cul- sujeitos, Canclini se refere ao conceito de
turais resultante da formação multiétnica habitus, de Bordieu, pois quando um comercial
regional, tornando impossível subordinar ou uma mensagem política se dirige a seus
inteiramente os diferentes segmentos a um receptores se insere, a seu ver, neste sistema.
capital simbólico comum, tese que de certa Neste sentido, de acordo com Canclini, todos
forma é compartilhada por Muniz Sodré ao atuamos a partir de esquemas básicos de per-
referir-se ao que denomina de “hegemonia cepção, pensamento e ação que, construídos
precária” no Brasil, resultado da incapaci- sobre a base das estruturas sociais, dirigem
dade dos sistemas democráticos em atender e predispõem nossas práticas individuais,
às demandas sociais, aliada aos conflitos de para que correspondam à ordem coletiva,
sentido intensificados com a construção de garantindo a coerência de cada sujeito com
espaços de livre expressão. Mesmo com o o desenvolvimento global, mais que qualquer
poder da comunicação, esta tarefa é dificul- condicionamento exercido por campanhas
tada pela inexistência de classes hegemôni- publicitárias ou políticas, já que através do
cas capazes de impor ao sistema inteiro sua habitus “se programa o consumo dos gru-
própria matriz de significações, o que torna pos, ou seja, o que vão ‘sentir’ como neces-
possível a subsistência de línguas, estilos de sário ante distintas situações”. Como vimos,
vida e formas de organização relativamente a sociedade organiza a distribuição desigual
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Segundo Bordieu (2009:191), o habitus camadas opera como um prisma por meio do
pode ser definido como um “sistema das qual as últimas experiências são filtradas e
disposições socialmente constituídas que, os subsequentes estratos de disposições são
enquanto estruturas estruturantes, cons- sobrepostos (daí o peso desproporcionado
tituem o princípio gerador e unificador dos esquemas implantados na infância”.
do conjunto das práticas e das ideologias O habitus, portanto, é “aquilo que confere
características de um grupo de agentes”. às práticas sua relativa autonomia no que
Bordieu propõe que o habitus é sistema diz respeito às determinações externas do
de disposições duráveis e transponíveis, presente imediato. Esta autonomia é a do pas-
que, “´integrando todas as experiências pas- sado, ordenado e atuante que, funcionando
sadas, funciona em cada momento como como capital acumulado, produz história na
uma matriz de percepções, apreciações e base da história e, assim, assegura que a per-
ações e possibilita o cumprimento de tarefas manência no interior da mudança faça do
infinitamente diferenciadas graças à trans- agente individual um mundo no interior do
ferência analógica de esquemas` adquiri- mundo” (Idem, ibidem, p. 66-7).
dos em uma prática anterior” (BORDIEU,
opus cit., 1972, apud WACQUANT, L. Uma de nossas hipóteses de trabalho,
Ibidem, p. 66). apresentada anteriormente, é a de que a
formação dos gestores culturais no Brasil
Portanto, enquanto “história individual contemporâneo constitui-se em habitus ou
e grupal sedimentada no corpo”, “estrutura estrutura estruturante, ao amoldar-se ao
social tornada estrutura mental”, o habitus caráter burocrático das políticas públicas para
bourdieuano “resume não uma aptidão o setor, favorecendo os segmentos mais adap-
natural, mas social, que é, por esta mesma tados ao campo simbólico da educação para
razão, variável através do tempo, do lugar e, a burocracia – sendo, portanto, o segmento
sobretudo, das distribuições de poder”, sendo mais estruturado organizacionalmente da
“transferível” de forma coerente a vários sociedade este que agora busca na gestão
domínios de prática e consumo, tais como cultural seu domínio de “prática e consumo”.
a música, desporto, alimentação, escolhas Tal hipótese baseia-se sobretudo nos estudos
políticas e matrimoniais, fundamentando do habitus bordieuano, a exemplo da refe-
os estilos de vida entre indivíduos “no inte- rência de Wacquant ao estudo de Lehmann
rior e entre indivíduos da mesma classe”. É (2002), o qual “traçou o modo como as dis-
ainda durável mas não “estático ou eterno”, posições musicais inculcadas pelo treino ins-
sendo que as disposições são socialmente trumental se combinam com disposições de
montadas e “podem ser corroídas, contraria- classe herdadas da família para determinar
das e mesmo desmanteladas pela exposição a trajetória e as estratégias profissionais dos
a novas forças externas”, como a propósito músicos no interior do espaço hierárquico da
de situações de migração. Contudo, como orquestra sinfônica” (Ibidem, p. 70).
nota Wacquant, o habitus bourdieuano é
dotado de “inércia incorporada”, na medida Nesse sentido, no campo das políticas
em que “tende a produzir práticas moldadas públicas para a cultura, interessa ao seg-
depois das estruturas sociais que os gera- mento da sociedade dominante economi-
ram e na medida em que cada uma de suas camente defender a estratégia do discurso
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“A menção aos costumes recoloca a dis- invariabilidade sequer dos costumes, ape-
cussão na trilha do que afinal, é ou não é nas pode apontar para a permanência de
cultura em situação de política e de aço cul- ideias empedradas e emparedadas (assim
tural, daquilo que pode prioritariamente é a ideologia) a respeito de uma dada rea-
receber a atenção de uma política cultural lidade social ou para o desejo de distorcer
voltada para o desenvolvimento humano, essa realidade com o objetivo de alcançar
e subsidiariamente, para o desenvolvi- um poder (político efetivo ou simbólico)
mento sustentável, termos nos quais hoje e mantê-lo. Cultura popular hoje, no Brasil,
se costuma colocar essa questão. A partir é acima de tudo a televisão, algo que em
da segunda metade do século 20 intensi- princípio, supostamente, os defensores da
ficou-se uma tendência anti-intelectua- política cultural popular tradicional não
lista que se apresenta sob o disfarce de pretenderiam apoiar, sobretudo porque a
um antielitismo e se materializa entre cultura da televisão é também a cultura do
outras coisas, na defesa da tese de que não mercado ao qual se pensa que a popular
apenas haveria em cultura outros fenô- se opõe” (p. 26).
menos a merecer atenção além daque-
les configurados nas obras culturais de A discussão proposta por Teixeira
prestígio (literatura, artes visuais, música Coelho em torno da relação entre os con-
erudita, etc) como se apresenta também ceitos de cultura popular e cultura popular
na insistência em que essas obras seriam tradicional, embora traga contribuições e
mesmo menos respeitáveis ou válidas que questionamentos importantes, talvez tenha
as outras que lhe seriam opostas (a cultura sido superada pelas políticas públicas para
dita de rua, o folclore e, a grande novidade, o setor de audiovisual implementadas pelo
a cultura de massa) Ministério da Cultura por meio principal-
mente da Agência Nacional de Cinema –
Aprofundando ainda mais as críticas ANCINE, destacando-se aí a própria criação
as críticas às políticas culturais que ampliem do Fundo Setorial do Audiovisual e os diver-
o conceito de cultura às culturas populares, sos programas criados a partir de 2008,
o autor argumenta que: abrangendo a produção de conteúdo para
televisão e incentivando, por meio destes,
“No que se refere ao lugar de destaque a diversidade cultural e regional brasileiras
aberto à cultura popular, seria interessante com vistas a alcançar o grande público.
verificar se a noção de que é mais estável,
mais duradoura (e portanto mais antiga, Entretanto, no rastro da discussão
mais ‘histórica´) que as outras já estava levantada por Teixeira Coelho, podemos
presente nos estudos culturais desde seus identificar as marcas das correntes teóricas
primeiros instantes ou se neles se introdu- que ainda acreditam ser a cultura e a arte
ziu a posteriori em virtude de construções território de especialistas e sobretudo que
teóricas mais abrangentes que requeriam a este território é ocupado por alguns poucos
afirmação dessa qualidade embora contra e nobres segmentos.
as evidências disponíveis. Seja como for, a
insistência nessa tese no início do século Ao lado desta questão a qual ainda
21, quando não é mais possível defender a é bastante proeminente no campo das
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políticas culturais, com relação às cultu- tal modo as relações sociais que sua natureza
ras populares os problemas até aqui iden- passa a ser expressa através de objetos de troca.
tificados colaboram para a modificação A este fenômeno, Marx denominou de feti-
artificialmente construída, implicando em chismo da mercadoria (Marx, K. O Capital,
reducionismos simbólicos presentes nos capítulo 1, seção 4).
discursos e práticas no campo da gestão
cultural brasileira na contemporaneidade. Outro reducionismo marcante neste
campo está expresso no discurso do social
A fim de melhor compreendermos na cultura. Tal reducionismo traduz-se,
esta questão, devemos estabelecer uma dis- em última instância, em uma certa visão
tinção entre o conceito de cultura enquanto “positiva” da cultura, encobrindo sua dimen-
elemento constitutivo da sociedade, ou seja, são de conflito, ou agon, constituindo-se em
a dimensão antropológica, como apontada um processo de domesticação da cultura e da
por Isaura Botelho (2001), pela qual a política arte. Tal é a capacidade alienadora na con-
cultural insere-se na lógica do bem comum, temporaneidade, que certos conceitos são
e o conceito de cultura resultante das estra- incorporados ao vocabulário das políticas
tégias hegemônicas, a dimensão socioló- públicas adquirindo significado diametral-
gica, onde o campo da cultura é entendido mente oposto ao sentido original. Exemplo
como o campo das “artes”, sendo resultado disto é o uso que exagerado e a-crítico do
da ação de especialistas, e seu acesso é con- termo “protagonismo juvenil”, muito em voga
dicionado à linguagem do projeto sujeito a nos projetos culturais, notadamente a partir
regras de demonstração de “verdade” cien- da valorosa experiência dos pontos de cul-
tífica, reflexo do pensamento único instru- tura. Protagonismo, do grego protagonistès,
mentalizante e economicista, voltado para o de protos, primeiro e agonistès, combatente,
favorecimento de segmentos cultura afeitos lutador – em seu sentido original e nas nar-
à lógica da burocracia, portanto. Sob este rativas míticas identificaria o primeiro que
último ponto de vista, o conceito de cultura é se levanta contra uma dada situação. Não é
ainda afetado por reducionismos simbólicos raro, entretanto, sob o título de protagonismo
que operam em favor do mercado cultural, juvenil encontrar-se ações de domesticação
o segmento hegemônico da produção neste de identidades realizadas em lugares eco-
campo. Dentre estes reducionismos, desta- nomicamente carentes e riquíssimos cultu-
camos negativamente o discurso da cultura ralmente, configurados na postura bovina
enquanto mercadoria - visão subjacente às dos jovens apaziguados pela “incontestável”
estratégias do campo do marketing cultural. contribuição da música erudita para a sua for-
mação artística e pessoal, sem se questionar
Nesta perspectiva, é patente, portanto, sobre o porquê do inverso não ocorrer com
a atribuição de sentido utilitarista à cultura, a mesma naturalidade quando se trata das
no processo de reificação (do latim res: “coisa”). tradições de matriz africana, ainda mais se
O conceito de reificação ou “coisificação” – forem elas de cunho mágico-religioso, como
transformação de uma ideia abstrata em mer- o candomblé, por exemplo.
cadoria –, como definido pela teoria marxista,
implica no processo de alienação próprio do Deve-se o fenômeno do social na cultura
modo de produção capitalista, ao objetificar de ao fato de que em termos de responsabilidade
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Este discurso se constitui, sem som- tempo que adverte que esta característica
bra de dúvidas, em visão reducionista da está se perdendo com a modernidade e, em
importância da cultura na sociedade. decorrência, a capacidade de dar conselhos,
ou a sabedoria, subjacente à arte de narrar,
Por fim, talvez não um reducionismo, também se aproxima da extinção.
mas um imperativo para o acesso às políti-
cas públicas no campo da cultura é a figura A cultura, ao contrário, entendida como
do projeto. sendo constitutiva da sociedade, é elemento
definidor da própria humanidade. É a cultura
Na lógica da política pública brasileira que dá forma às atividades humanas, tais
contemporânea, regida por princípios consti- como “o trabalho, a religião, a culinária, o ves-
tucionais tais como transparência, impessoa- tuário, o mobiliário, as formas de habitação,
lidade, isonomia, etc, o principal instrumento os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de
para celebração de contratos de repasse de relacionar-se com os mais velhos e os mais
recursos públicos é o projeto, que geralmente jovens, com os animais e com a terra, os uten-
deve ser apresentado quando da existência sílios, as técnicas (...)”8, conceito antropológico
de um edital, uma chamada pública. Tais de cultura que, se parece não gozar de pres-
procedimentos são regidos, em geral, pela tígio entre os formuladores de políticas para
mesma legislação, que normatiza os convê- culturais com foco nas “artes”, pode por outro
nios e contratos em áreas tão distintas quanto lado abrir possibilidades para a construção de
a construção civil e grande parte da atividade políticas públicas mais abrangentes, envol-
cultural, quais sejam, a Lei 8.666 (licitações), vendo o segmento da cultura popular tradi-
somada a outras Portarias federais e leis esta- cional, menos afeito aos usuais e excludentes
duais ou municipais, conforme o caso. mecanismos de fomento e incentivo à cultura.
Ocorre que, somada à Lei 8.313 Com relação a isto, lembramos da dis-
(Lei Rouanet), tal legislação impõe à área tinção conceitual entre as dimensões antro-
cultural, e sobretudo no tocante à cultura pológica e sociológica da cultura defendida
popular tradicional, uma lógica que se choca por Isaura Botelho (2001), onde a cultura
com a lógica tradicional de manutenção e compreendida sob a dimensão antropoló-
transmissão dos modos de fazer próprios gica é aquela em que “a cultura se produz
da oralidade, marcada principalmente pela através da interação social dos indivíduos,
vivência e pela profunda ligação com a que elaboram seus modos de pensar e sen-
ancestralidade, características que repre- tir, constroem seus valores, manejam suas
sentam uma diferença sensível frente à identidades e diferenças e estabelecem suas
dinâmica imposta pela lógica do projeto. rotinas”. (BOTELHO, Opus cit., p. 3)
Com relação a este problema, podemos nos
lembrar do conceito de “experiência” desen- A dimensão sociológica, por sua vez:
volvido por Benjamin (2008). “não se constitui no plano cotidiano do
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indivíduo, mas sim em âmbito especia- para o setor, o reconhecimento pelo Estado
lizado: é uma produção elaborada com a dos diferentes sujeitos culturais fará com
intenção explícita de construir determi- que as políticas públicas tenham de cami-
nados sentidos e de alcançar algum tipo nhar no sentido não só do financiamento,
de público, através de meios específicos de mas sim do acesso pleno a políticas públicas
expressão”. (Idem, ibidem, p. 4) integradas, pois, de acordo com Botelho:
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[ Quadro 1]
Cultura hegemônica judaico-cristã Culturas populares não ocidentais
Racionalidade Jogo
Comunicação da experiência
Informação
(conselho/sabedoria)
Fragmentada Integral
Produto Herança
Finalística Processual
Finalística Vivencial
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Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. esp., p. 760 – 782, set. 2019 [ EXTRAPRENSA ]