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A REGRA E O JOGO:

IDENTIDADE,
HEGEMONIA
E GESTÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
NO CAMPO DA
CULTURA NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
IV SICCAL

[ GT4 – METODOLOGIAS DE PESQUISA PARTICIPATIVAS E PESQUISA EM MOVIMENTOS SOCIAIS ]

Henry Alexandre Durante Machado


Programa de Integração da América Latina. Universidade de São Paulo (PROLAM/USP)
Henry Alexandre Durante Machado

A regra e o jogo: identidade, hegemonia e gestão de políticas
públicas no campo da cultura no Brasil contemporâneo 761


[   R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]

Este artigo tem como objetivo pesquisar a relação entre as dinâmicas culturais de povos
e comunidades herdeiros dos saberes de tradição oral e as políticas culturais voltadas
e estes segmentos implementadas no Brasil no período correspondente entre os anos
2000 e 2015. A partir da abordagem psicopolítica da consciência e participação política
e da visão crítica sobre os discursos contemporâneos em torno da cultura, assim como
por meio de pesquisa exploratória teórica e conceitual aplicada aos referenciais teóricos
dos direitos culturais e pesquisa empírica entre os integrantes da Rede das Culturas
Populares e Tradicionais, analisaremos o impacto de tais políticas na organização e na
construção da subjetividade de indivíduos e comunidades de tradição oral. Aborda-
se, por fim, o problema dos critérios e categorias de avaliação de políticas culturais.
Palavras-chave: Cultura popular tradicional. Políticas públicas. Cultura brasileira. Identidade e
diferença. Gestão cultural. Fomento e incentivo à cultura. Hegemonia. Ideologia. Poder.

This article aims to investigate the relationship between the cultural dynamics of
peoples and communities inheriting oral knowledge and cultural policies for these
segments implemented in Brazil in the corresponding period between 2000 and 2015.
From the psychopolitical approach of consciousness and political participation and
the critical insight into contemporary discourses around culture, as well as through
theoretical and conceptual exploratory research applied to the theoretical frameworks
of cultural rights and empirical research among members of the Network of Popular and
Traditional Cultures, we will analyze the impact of such policies in the organization and
construction of subjectivity of individuals and communities of oral tradition. Finally,
we will analyze the problem of cultural policy evaluation criteria and categories
Keywords: Traditional popular culture. Public policy. Brazilian Culture. Identity and difference.
Cultural Management. Encouraging and promoting culture. Hegemony. Ideology. Power.

Este artículo tiene como objetivo investigar la relación entre las dinámicas culturales de
pueblos y comunidades herederos de los conocimientos de la tradición oral y las políticas
culturales vueltas a este segmento implementadas en Brasil en el período correspondien-
te entre el año 2000 y el año 2015. A partir del abordaje psicopolítico de la conciencia y
participación política y de la visión crítica sobre los discursos contemporáneos en torno
a la cultura, así como por medio de investigación exploratoria teórica y conceptual
aplicada a los referenciales teóricos de los derechos culturales y investigación empírica
entre los integrantes de la Red de las Culturas Populares y Tradicionales, analizaremos
el impacto de tales políticas en la organización y en la construcción de la subjetividad
de individuos y comunidades de tradición oral. Se aborda, por fin, el problema de los
criterios y de las categorias de evaluación de políticas culturales.
Palabras clave: La cultura tradicional popular. La política pública. Cultura de Brasil. Identidad y
diferencia. Gestión cultural. Fomento y promoción de la cultura. Hegemonía. Ideología. Poder.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.153959

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. esp., p. 760 – 782, set. 2019 [ EXTRAPRENSA ]
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Apresentação minada desde então por meio da interrupção


de políticas estruturantes do setor2, passando
pelo corte orçamentário, como estratégia de
Nos últimos anos, democracias latino-a- sucateamento do órgão), porém consumada
mericanas têm sofrido uma violenta ofensiva como uma das primeiras medidas do governo
imperialista articulada pelas nações centrais de extrema-direita, como símbolo do que
do capitalismo e corporações transnacionais vem se configurando como uma aliança com
(CARVALHO, 2012), a exemplo dos recentes setores conservadores que transmitem para
golpes de Estado midiático-jurídico-parla- a opinião pública a imagem da cultura como
mentares ocorridos em Honduras (2009) e o inimigo “de esquerda” a ser combatido e
Paraguai (2012) e no golpe em curso no Brasil, que têm, além desta, a pauta dos costumes
iniciado em 2016 e aprofundado em 2018. Tais como seus eixos temáticos.
ataques representam um esforço de recolo-
nização da região. Recolonização, neste caso, Tais fatores nos levam, necessaria-
significa o reposicionamento do capital na mente, assumindo a chamada perspectiva
América Latina, que traz consigo o resta- pós-colonial, a aprofundar a discussão
belecimento recolonizador da hegemonia acerca do caráter instrumental do conceito
política e econômica, mas também cultural1 de cultura moderno-colonial, analisando
no continente. seu papel na construção da narrativa da
modernidade e, por fim, procurando anali-
A partir de tal constatação, movimen- sar criticamente a utilização das categorias
tos de resistência devem, ao lado dos campos de análise “ocidentais” das políticas públicas
de ação tradicionais, incluir a cultura na luta de cultura no tocante às políticas públicas
anticapitalista e decolonial, e não só pela específicas para povos e comunidades das
profunda ligação da cultura com o processo chamadas culturas de tradição oral.
de radicalização da democracia –, mas tam-
bém porque os atuais ataques do capital no Desse modo temos que, no contexto
Brasil impactam diretamente na dinâmica da construção, implementação e gestão de
de artistas, grupos e comunidades, sobre- políticas culturais do Brasil contemporâneo,
tudo no segmento da tradição oral, embora país embora marcado pela rica diversidade
não só, haja vista a extinção do Ministério cultural, na qual coexistam na sociedade cul-
da Cultura (2019), ocorrida após tentativa turas de matrizes ocidentais e não ocidentais,
anterior frustrada devido a intensa mobi- as políticas de cultura são elaboradas histori-
lização de diversos setores da classe artís- camente a partir da influência das culturas
tica e cultural (resistência esta que foi sendo hegemônicas, em detrimento principalmente

1 Note-se que a indústria cultural representa 6,5% 2 Tomemos como exemplo a não renovação da Lei
do PIB norte-americano, de acordo com uma pesquisa do Audiovisual, a qual, juntamente com o Fundo
realizada pela International Intellectual Property Setorial do Audiovisual (FSA) tem sido apontada
Alliance em 2012, estando à frente de setores tais como fatores de êxito do setor. Fonte: Portal O Globo,
como a agricultura e a alimentação. Fonte: Revista disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/
Veja. Matéria de 20 de novembro de 2013. Disponível temer-veta-prorrogacao-de-beneficios-da-lei-do-au-
em: <http://veja.abril.com.br/entretenimento/indus- diovisual-aprovada-pelo-congresso.ghtml (Acessado
tria-cultural-injetou-us-1-tri-na-economia-dos-eua/> em 29/09/2017)

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das culturas de povos tradicionais, vistas neste do conceito gramsciano de hegemonia e das
panorama sob a ótica do exótico e do atraso. teorias da reprodução cultural e pesquisa
empírica entre os integrantes da Rede das
Este processo hegemônico, aplicado ao Culturas Populares e Tradicionais, analisamos
caso brasileiro, tem impactado negativamente o impacto de tais políticas, construídas no
o desenvolvimento de nossa sociedade, prin- bojo do Estado burguês - marcadas, portanto,
cipalmente na questão da cidadania cultural pela lógica do mercado e pela burocracia no
ou dos direitos culturais mais precisamente, acesso ao fomento - na organização e na
sobretudo ao favorecer um certo circuito construção da subjetividade de indivíduos e
organizado da produção cultural, o segmento comunidades de tradição oral. Aborda-se, por
hegemônico, portanto, adaptado à ideologia fim, o problema dos critérios de avaliação de
do mercado, ao processo de instrumentaliza- políticas culturais, profundamente marcados
ção das práticas sociais e conectado à lógica pela instrumentalização, refletindo-se sobre a
do pensamento único do discurso econômico adequação das categorias analíticas utilizadas
como narrativa dominante na sociedade bra- para avaliar os processos culturais.
sileira, negando portanto o reconhecimento
da diferença cultural própria das comuni- Nossas hipóteses de trabalho são:
dades tradicionais, portadoras de visões de
mundo não coincidentes com o pensamento a) sendo a cultura território de conflitos,
finalístico, capitalista, predominantes na o campo das políticas públicas de cultu-
sociedade brasileira contemporânea. ra é marcado por permanentes dispu-
tas pelo espaço público; neste cenário,
Este artigo tem como objetivo pes- a cultura popular tradicional insere-se
quisar a relação entre as dinâmicas socio- como antagonista em relação à cultu-
culturais de povos, comunidades, grupos e ra hegemônica, marcada pela ideologia
mestre(as) das culturas populares de tradi- liberal, pela burocracia, pela racionali-
ção oral, particularmente as de matriz afri- dade técnica, pela ética instrumental e
cana, e as políticas culturais implementadas visão da cultura como produto. Desta
no Brasil durante o período compreendido forma, as políticas públicas no período
entre os anos 2003 e 2016, políticas estas pesquisado, por não atenderem ao prin-
que reposicionam este segmento na agenda cípio da diferença cultural, não se ajus-
das políticas públicas, após os períodos mili- tam às dinâmicas sócio-culturais dos
tar e do advento do neoliberalismo. A partir grupos tradicionais, mas, ao contrário,
da abordagem psicopolítica da consciência e obrigam-nos a se adequar a tais meca-
participação política e da visão crítica sobre nismos. O Estado e a sociedade devem,
os discursos contemporâneos em torno da portanto, desenvolver novas categorias
cultura como produto, centrada no desen- de avaliação e novas formas de fomen-
volvimento econômico e enquanto prática to ás culturas populares tradicionais,
tecnicista e gerencial, ou seja, situada no mais adequadas à sua visão de mundo,
campo da “gestão” em detrimento da “ação” como garantia de seus direitos;
cultural, assim como por meio de pesquisa
exploratória teórica e conceitual aplicada aos b) a formação dos gestores culturais no
referenciais teóricos dos direitos culturais, Brasil contemporâneo constitui-se

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em habitus ou estrutura estruturante, Os dilemas apontados inserem-se,


ao amoldar-se ao incremento burocrá- assim, em um campo político de disputa entre
tico das políticas públicas para o setor, a definição de cultura em um sentido mais
favorecendo os segmentos mais adap- ampliado, enquanto elemento constitutivo da
tados ao campo simbólico da educação sociedade, e os discursos contemporâneos em
para a burocracia – sendo, portanto, torno da cultura baseados no predomínio da
o segmento mais estruturado organi- burocracia e das regras do mercado, fatores
zacionalmente da sociedade este que que contribuem para o favorecimento dos
agora busca na gestão cultural seu do- segmentos culturais hegemônicos, fazendo
mínio de “prática e consumo”. com que as atividades de produção e gestão
culturais se constituam em um campo sim-
Desta forma, a partir de 2003, aliadas bólico3 de atuação de “especialistas”.
ao incremento do acesso à Lei Rouanet,
iniciam-se iniciativas do então Ministério A importância da tomada de cons-
da Cultura no sentido da democratização, ciência desses dois universos por parte do
ampliação do acesso e do reconhecimento gestor cultural é que esta distinção pode
da diversidade cultural brasileira. Se por facilitar, ou diríamos mais diretamente que
um lado este fato é positivo, pois signi- deve orientar a definição de estratégias
fica que a cultura finalmente se insere diversificadas em termos da formulação
no debate mais amplo da sociedade, por e da implementação de políticas culturais.
outro lado as culturas populares e tradicio- A questão não é meramente técnica, mas
nais ainda têm como desafio a superação sim política, neste caso, pois contribui para
da lógica instrumental caracterizada nos o aumento da invisibilidade e da dificuldade
processos extremamente burocráticos de no acesso aos recursos públicos por grupos
acesso aos recursos, como por exemplo a e comunidades que partilham de visões de
celebração de convênios com entidades mundo e modos de produção divergentes
da sociedade civil, na forma de editais dos reducionismos caracterizadores dos
públicos regidos pela Lei nº 8.666/93, a modos economicistas e tecnicistas do tema.
qual regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal e institui normas para Este processo de dominação cultural
licitações e contratos da Administração pode impactar negativamente o desenvolvi-
Pública, além da Portaria Interministerial mento de nossa sociedade também ao termos
507/2011, então vigente. a singularidade de nossa cultura obscurecida
perante o mundo, no contexto da contempo-
O problema principal está em que tais raneidade, diante das graves questões con-
processos tendem a introduzir de forma ceituais agravadas com a agenda de cunho
abrupta em tais segmentos sociais profun- nacionalista-conservador que vem ganhando
das modificações em seus modos de agir, espaço em âmbito governamental ao redor
sentir e pensar e em suas visões de mundo do mundo, tais como a intolerância racial
e de homem, posto que muitas das vezes tais
comunidades são herdeiras de processos não
institucionalizados de manutenção e trans- 3 Utilizamos aqui a definição de campo simbólico
missão da cultura. desenvolvida por BOURDIEU.

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e religiosa, a incapacidade de ligar com as prejuízos desse processo de racionalização e


diferenças, o desencantamento do mundo, o instrumentalização para artistas e comuni-
pragmatismo e o tecnicismo. Nesse cenário, dades tradicionais são imensos, sobretudo
a cultura brasileira tradicional, estruturada no que tange às transformações impostas
sobretudo em matrizes africanas e indígenas e às culturas populares inseridas na sociedade
marcada portanto por valores não-ocidentais do consumo o qual tende a transformar seu
poderia servir de oxigênio contra a ideologia tempo antes dilatado, reduzindo-o cada vez
do discurso único, podendo oferecer possibili- mais ao tempo do espetáculo.
dades de respostas aos problemas colocados à
sociedade contemporânea e, principalmente,
à nossa própria sociedade.

De modo a evitar-se ou diminuir os Direitos culturais


efeitos da mercantilização e da espetaculari-
zação das expressões tradicionais na contem-
poraneidade, fenômenos estes que acarretam Tal situação obriga a refletir acerca dos
o reducionismo simbólico das performances direitos culturais e sua aplicação no campo
tradicionais à forma de entretenimento ou das políticas públicas, já que, de acordo com
“produto”, resultado normalmente estimulado a Declaração de Friburgo, em seu Artigo 3,
pelos órgãos fomentadores via edital, com “toda pessoa, individualmente ou em cole-
forte tendência a fragmentar seu processo de tividade, tem direito:
transmissão na forma de atividades estanques
e desconectadas das formas de fazer, pensar e a) de escolher e ter respeitada sua identi-
sentir próprios da tradição oral - geralmente dade cultural, na diversidade dos seus
na forma de oficinas no tempo imediatista da modos de expressão; este direito exer-
modernidade –, e a se considerar a cultura ce-se, especialmente, em conexão com
meramente como questão “artística” ou de as liberdades de pensamento, consci-
mercado, deveria existir uma relação pau- ência, religião, opinião e expressão;
tada pela ética entre, de um lado, os agentes
de salvaguarda do patrimônio imaterial, os b) de escolher e ter respeitada sua própria
produtores, os pesquisadores e os artistas e, cultura (...)
de outro, os mestres populares, prevendo-se,
por parte dos primeiros a postura crítica com c) de ter acesso, particularmente pelo
relação aos problemas que ora levantamos, exercício dos direitos à educação e à
além prever-se também mecanismos de devo- informação, aos patrimônios culturais
lução ou “contra-dom”4 com as comunidades que constituem expressões das dife-
que mantêm os dons estéticos como cultura rentes culturas bem como dos recursos
de resistência e que cada vez mais são refe- para as gerações presentes e futuras.
rência para pesquisas acadêmicas e proje-
tos financiados pelo poder público, já que os Considerando as distorções próprias
das políticas de fomento e incentivo cul-
tural na contemporaneidade brasileira,
4 Cf. CARVALHOI, J. J. de, 2004. somos obrigados a concordar que vivemos

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na verdade uma era de “expectativas de Do ponto de vista das comunidades


direitos”5, sobretudo no que diz respeito às tradicionais, as políticas culturais não têm
questões das culturas populares. Isto talvez se constituído, portanto, nem mesmo em
ocorra porque os direitos culturais básicos, tempos de mera expectativa de direitos,
descritos no Artigo 15 de Declaração Sobre mas sim em imposição da cultura hegemônica
os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aos herdeiros das tradições performáticas,
de 1976: direito de participar da vida cul- sobretudo indígenas e afro-brasileiras, já que,
tural, direito de participar das conquistas como demonstram as estatísticas, têm sido
científicas e tecnológicas e o direito moral e formuladas e implementadas, salvas raras
material à propriedade intelectual, se com- e incipientes exceções, de forma unilateral,
preendidos meramente enquanto dimensão como caminho de mão única preparado para
individual e pela via do mercado tenderão que somente um segmento possa percorrê-lo
a impor ao conceito de cultura a concepção tranquilamente: aquele que domina os
de se tratar das áreas já consagradas, assim mecanismos hegemônicos de obtenção dos
como a ser o campo simbólico de atuação de recursos públicos via os mecanismos buro-
especialistas, já que nem de longe o signifi- cráticos das políticas públicas de fomento à
cado dos direitos culturais é de simples com- cultura. Sob a ótica neoliberal, assim deve se
preensão para os governos e a sociedade em constituir o papel do Estado – como criador
geral, pois para o seu pleno exercício não das condições para que se efetive os direitos
podem ser considerados isoladamente (para culturais do segmento social em questão,
poder participar da vida cultural é neces- e não para que todos os segmentos tenham
sário participar das conquistas científicas e seus direitos contemplados.
tecnológicas, as quais dependem também do
respeito à propriedade intelectual), além de Cabe, portanto, considerarmos as
que são essencialmente contraditórios, ou culturas populares no plano da política
seja, cada direito garantido a um segmento e da ética, garantindo a centralidade dos
social pode gerar automaticamente a perda direitos culturais, de modo a atingirmos um
de direitos de outro. novo paradigma no qual a cultura seja um
direito universal e a diversidade não seja
Vejamos a complexidade que envolve considerada, como em tempos anteriores,
o próprio direito de participar da vida cultu- obstáculo ao progresso e à modernidade.
ral e sua relação com a diversidade cultural.
Participar da vida cultural pode significar, No momento atual do pensamento
como nota Teixeira Coelho (2011), simples- em políticas culturais, já há quem considere
mente que possuímos não só o direito de que a diversidade cultural tem importân-
participar da “nossa” vida cultural quanto cia similar à diversidade biológica, pois,
da vida cultural do “outro”, e isso não é uma enquanto esta é responsável pela adap-
questão simples. tação às condições adversas à sobrevi-
vência da vida no planeta, a diversidade
cultural – desde que focada nos direitos
humanos –, mais precisamente nos direitos
5 Norberto Bobbio, citado por Teixeira Coelho.
Revista Observatório Itaú Cultural, n. 11, (jan./
culturais, representa possibilidade de inser-
abr.2011), p. 6. ção dos indivíduos em um novo paradigma

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de desenvolvimento, pensado não somente tais diferenças se acentuam, pois seus hábi-
em enquanto dimensão econômica, mas sim tos os separam das relações de produção e
enquanto desenvolvimento da criação de consumo hegemônicas, sobretudo no que
suas capacidades (MEYER-BISCH, 2011). tange ao uso do tempo, do espaço, outra valo-
rização material e simbólica dos objetos, etc.
Retomando a abordagem de Garcia (Idem, ibidem, p. 57-9)
Canclini quanto á relação entre a cultura
hegemônica e as culturas populares, em seu O papel que as culturas populares ou
postulado, “o consumo como lugar de obje- subalternas exercem na construção da hege-
tivação dos desejos”, o autor aponta que ade- monia se constitui em relevante tema a ser
mais de termos necessidades culturalmente analisado do ponto de vista das mudanças
elaboradas, “atuamos seguindo desejos sem sociais e da participação política, sobretudo
objeto, impulsos que não apontam à posse em virtude da importância que o consumo e
de coisas precisas ou relacionadas com pes- os meios de comunicação exercem na forma-
soas fixas. O desejo é errático, insaciável, ção das identidades culturais na contempo-
inabarcável pelas instituições que buscam raneidade. Garcia Canclini observa que “nas
contê-lo”. O desejo, mais que materialmente, sociedades complexas, a hegemonia se esta-
se relaciona com o sentido simbólico dos belece mediante uma relação dialética entre
rituais que acompanham atividades nos a homogeneidade e a diferenciação social”.
alimentarmos, por exemplo. Em seu modo de vista, por mais que se insista
na ideia da massificação, a sociedade sempre
Para Canclini (Opus cit.), certos setores necessitará criar mecanismos de diferen-
populares menos integrados à economia têm ciação, já que “a unificação transnacional
dificultada sua participação no sistema hege- das culturas homologa algumas práticas,
mônico, mantendo como cultura de resis- ou aspectos delas, mas também confronta
tência modos de produção e consumo não culturas antes desconectadas e torna possí-
capitalistas ou próprios do capitalismo incom- vel, especialmente no consumo, a produção
pleto. Segundo o autor, é uma característica de novas diferenças” (p. 60).
constitutiva do capitalismo a incapacidade de
inclusão de toda a população. Portanto, esses A existência de diferenças torna-se,
setores “satisfazem minimamente suas neces- portanto, fator estratégico para a efetiva-
sidades e produzem sua cultura mediante ção da hegemonia. Ao contrário da domi-
uma elaboração própria de suas condições nação – que favorece à homogeneização,
imediatas de vida”, tais como a produção para “submetendo as pretensões de pluralidade
o autoconsumo, praticamente sem excedentes ao denominador comum da obediência” –
para vender ou a sobrevivência por meio de a hegemonia estimula a diferenciação e a
subempregos, embora isto não os desvincule mantém sob o controle de um poder unifi-
do sistema hegemônico, como pretendem as cador. Nas palavras de Canclini, “quando a
correntes sociológicas que os definem como diversidade de interesses se desenvolve em
“marginais”, pois sua existência é, antes de estilos de vida conflitantes, sem pactos de
tudo, o resultado do desenvolvimento desi- reciprocidade, gera conflitos desintegradores
gual do capitalismo. Segundo o autor, quando da unidade social; mas essas mesmas dife-
se trata de grupos indígenas ou mestiços, renças, reconhecidas pelo poder hegemônico

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e coordenadas por ele, podem coexistir e autônomas com relação à ordem hegemô-
inclusive colaborar para que a hegemonia nica, embora a dominação exercida no
seja legitimada através do consenso”. processo de formação das nações latino-a-
mericanas nos séculos XIX e XX tenha con-
Baseando-se em Bordieu, Canclini seguido reduzir sobremaneira o contingente
aponta que, para efetivar-se em uma socie- destes segmentos autônomos e integrar os
dade desigual, a hegemonia articula os restantes ao contingente migratório euro-
interesses díspares, obtendo o consenso peu, formando um capital cultural comum
quando se cumprem quatro condições: baseado na língua, na alfabetização e sistema
“a) que o âmbito social definido pela classe de educação voltado para a capacitação para
hegemônica – a produção, a circulação e o mercado de trabalho, para a integração ao
o consumo seja aceito pela classe subal- consumo e para a participação nas estruturas
terna como campo de luta; b) que a lógica nacionais do poder, hierarquia e represen-
desta luta seja a apropriação diferencial, tação sócio-política e, do ponto de vista do
distinta para cada classe, do que a sociedade modo de organização da vida cotidiana,
produz como capital material e simbólico; na religiosidade católica e no liberalismo
c) que os setores subalternos partam (...) com capitalista. Desta forma as classes hegemô-
um capital econômico e simbólico (sobre- nicas buscam perpetuar-se na continuidade
tudo escolar) que de entrada os coloque em deste capital cultural garantida pela reprodu-
desvantagem; e d) que este handicap seja ção das estruturas sociais e na apropriação
ocultado”. (Ibidem, p. 61) desigual deste capital, reproduzindo assim
também as diferenças (Ibidem, p. 62-3).
Ressalva deve ser feita ao caso
latino-americano, adverte o autor, no qual Para sustentar sua tese acerca do for-
esta hegemonia se efetiva de forma apenas mação das representações e práticas dos
parcial, devido à diversidade de capitais cul- sujeitos, Canclini se refere ao conceito de
turais resultante da formação multiétnica habitus, de Bordieu, pois quando um comercial
regional, tornando impossível subordinar ou uma mensagem política se dirige a seus
inteiramente os diferentes segmentos a um receptores se insere, a seu ver, neste sistema.
capital simbólico comum, tese que de certa Neste sentido, de acordo com Canclini, todos
forma é compartilhada por Muniz Sodré ao atuamos a partir de esquemas básicos de per-
referir-se ao que denomina de “hegemonia cepção, pensamento e ação que, construídos
precária” no Brasil, resultado da incapaci- sobre a base das estruturas sociais, dirigem
dade dos sistemas democráticos em atender e predispõem nossas práticas individuais,
às demandas sociais, aliada aos conflitos de para que correspondam à ordem coletiva,
sentido intensificados com a construção de garantindo a coerência de cada sujeito com
espaços de livre expressão. Mesmo com o o desenvolvimento global, mais que qualquer
poder da comunicação, esta tarefa é dificul- condicionamento exercido por campanhas
tada pela inexistência de classes hegemôni- publicitárias ou políticas, já que através do
cas capazes de impor ao sistema inteiro sua habitus “se programa o consumo dos gru-
própria matriz de significações, o que torna pos, ou seja, o que vão ‘sentir’ como neces-
possível a subsistência de línguas, estilos de sário ante distintas situações”. Como vimos,
vida e formas de organização relativamente a sociedade organiza a distribuição desigual

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dos bens materiais e simbólicos, assim como estruturalismo construtivista), ao dedicar-se


organiza nos grupos e indivíduos a relação às categorias de campo, habitus e campo
subjetiva com estes – as aspirações, a cons- simbólico, critica tanto os que detratam a
ciência do que cada um pode se apropriar. sociologia dos fenômenos simbólicos – por
Eis a estruturação da vida cotidiana em que supostamente não ter nada a ver com o sis-
se enraíza e hegemonia: “nem tanto um con- tema de poder –, quanto os que compreendem
junto de ideias alienadas sobre a dependência que os sistemas simbólicos não possuem uma
ou a inferioridade dos setores populares como realidade própria e acaba – pela limitação que
em uma interiorização muda da desigualdade ambas as tendências concedem à experiência
social, sob a forma de disposições inconscien- e à vontade do agente social – por privilegiar
tes, inscritas no próprio corpo, no ordena- as funções sociais cumpridas pelos sistemas
mento do tempo e do espaço, na consciência simbólicos, “as quais, tendem, no limite, a
do possível e do inalcançável” (p. 65-6). se transformarem em funções políticas na
medida em que a função lógica de ordenação
do mundo subordina-se às funções social-
mente diferenciadas de diferenciação social e
de legitimação das diferenças”. Como também
Habitus e hegemonia ressalta Miceli, “a valorização da dimensão
simbólica ou ideológica dos processos sociais
liga-se seja a uma ênfase quanto às determi-
Se, por um lado, as correntes teóri- nações específicas do sistema de dominação
cas que consideram a cultura enquanto (como nos casos de Weber e Gramsci), seja
instrumento de comunicação e conheci- a um privilegiamento excessivo dos modos
mento, compreendendo os sistemas sim- pelos quais o agente ordena a realidade que
bólicos como a arte, a linguagem e os mitos o envolve”. Bordieu, nessa linha, a exemplo
como produzidos em contexto de estruturas de Gramsci, o qual tende a recusar o materia-
estruturadas, a corrente estruturalista, de lismo “mecânico” ou “fatalista”, opta por um
tradição marxista, compreende os siste- caminho que procura escapar aos esquemas
mas simbólicos enquanto instrumento de rígidos de explicação, tal como o economicista,
poder, ou seja, estruturas estruturantes, pretendendo retificar a teoria do consenso,
que contribuem para a reprodução e trans- revelando teoricamente as condições mate-
formação da estrutura social. riais e institucionais “que presidem à criação
e à transformação de aparelhos de produção
Na introdução que escreve à 6ª edição simbólica cujos bens deixam de ser vistos
de A economia das trocas simbólicas, de Pierre como mero instrumentos de comunicação
Bordieu, Sérgio Miceli enfatiza que a mais e/ou de conhecimento”6.
grave limitação da primeira tendência reside
no fato de relegar as funções econômicas
e políticas dos sistemas simbólicos, enfati-
zando a análise interna dos bens e mensa-
gens de natureza simbólica. Piere Bordieu,
6 MICELI, S. A força do sentido. In.: BORDIEU, P. A eco-
por sua vez, (que se auto define enquanto nomia das trocas simbólicas, 6.ed. São Paulo: Perspectiva,
adepto do construtivismo estruturalista ou 2009:VII-XII.

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públicas no campo da cultura no Brasil contemporâneo 770


Segundo Bordieu (2009:191), o habitus camadas opera como um prisma por meio do
pode ser definido como um “sistema das qual as últimas experiências são filtradas e
disposições socialmente constituídas que, os subsequentes estratos de disposições são
enquanto estruturas estruturantes, cons- sobrepostos (daí o peso desproporcionado
tituem o princípio gerador e unificador dos esquemas implantados na infância”.
do conjunto das práticas e das ideologias O habitus, portanto, é “aquilo que confere
características de um grupo de agentes”. às práticas sua relativa autonomia no que
Bordieu propõe que o habitus é sistema diz respeito às determinações externas do
de disposições duráveis e transponíveis, presente imediato. Esta autonomia é a do pas-
que, “´integrando todas as experiências pas- sado, ordenado e atuante que, funcionando
sadas, funciona em cada momento como como capital acumulado, produz história na
uma matriz de percepções, apreciações e base da história e, assim, assegura que a per-
ações e possibilita o cumprimento de tarefas manência no interior da mudança faça do
infinitamente diferenciadas graças à trans- agente individual um mundo no interior do
ferência analógica de esquemas` adquiri- mundo” (Idem, ibidem, p. 66-7).
dos em uma prática anterior” (BORDIEU,
opus cit., 1972, apud WACQUANT, L. Uma de nossas hipóteses de trabalho,
Ibidem, p. 66). apresentada anteriormente, é a de que a
formação dos gestores culturais no Brasil
Portanto, enquanto “história individual contemporâneo constitui-se em habitus ou
e grupal sedimentada no corpo”, “estrutura estrutura estruturante, ao amoldar-se ao
social tornada estrutura mental”, o habitus caráter burocrático das políticas públicas para
bourdieuano “resume não uma aptidão o setor, favorecendo os segmentos mais adap-
natural, mas social, que é, por esta mesma tados ao campo simbólico da educação para
razão, variável através do tempo, do lugar e, a burocracia – sendo, portanto, o segmento
sobretudo, das distribuições de poder”, sendo mais estruturado organizacionalmente da
“transferível” de forma coerente a vários sociedade este que agora busca na gestão
domínios de prática e consumo, tais como cultural seu domínio de “prática e consumo”.
a música, desporto, alimentação, escolhas Tal hipótese baseia-se sobretudo nos estudos
políticas e matrimoniais, fundamentando do habitus bordieuano, a exemplo da refe-
os estilos de vida entre indivíduos “no inte- rência de Wacquant ao estudo de Lehmann
rior e entre indivíduos da mesma classe”. É (2002), o qual “traçou o modo como as dis-
ainda durável mas não “estático ou eterno”, posições musicais inculcadas pelo treino ins-
sendo que as disposições são socialmente trumental se combinam com disposições de
montadas e “podem ser corroídas, contraria- classe herdadas da família para determinar
das e mesmo desmanteladas pela exposição a trajetória e as estratégias profissionais dos
a novas forças externas”, como a propósito músicos no interior do espaço hierárquico da
de situações de migração. Contudo, como orquestra sinfônica” (Ibidem, p. 70).
nota Wacquant, o habitus bourdieuano é
dotado de “inércia incorporada”, na medida Nesse sentido, no campo das políticas
em que “tende a produzir práticas moldadas públicas para a cultura, interessa ao seg-
depois das estruturas sociais que os gera- mento da sociedade dominante economi-
ram e na medida em que cada uma de suas camente defender a estratégia do discurso

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reducionista da cultura como mercadoria Somando-se a tal fenômeno, a par-


ou a prevalência do fomento às artes con- tir da própria leitura de Bordieu, assim
sagradas em detrimento da política para um como também amparando-se no exemplo
conjunto ampliado da produção cultural, que de países nos quais o incentivo à cultura
inclua a cultura popular tradicional, assim é tido enquanto uma questão individual,
como dificultar seu acesso a ponto de este como no caso dos EUA, onde não existe
dever estar condicionado a uma formação um ministério da cultura, certas correntes
“profissional” ou “capacitação”. Neste sistema de pensamento no campo da gestão cul-
operam, cada qual com seu papel, uma certa tural parecem questionar o sentido que
categoria de intelectuais ou formadores de tais políticas podem ter em nosso país, em
opinião, próxima do que Gramsci categori- face dos riscos de a institucionalização
zava de intelectuais orgânicos, como vere- neste campo vir a atender interesses por
mos mais adiante, além do próprio Estado, parte do Estado mais próximos ao controle,
como instrumento da ideologia das classes ao autoritarismo do que propriamente à ação
economicamente dominantes e, mais recen- cultural entendida como meio para criar as
temente, produtores culturais que agora condições necessárias ao desenvolvimento
descobriram esse novo filão do mercado, dos direitos e da liberdade culturais.
o da educação profissional.
Cabe aqui, portanto, levantarmos
Por meio do estabelecimento de con- algumas questões as quais julgamos cruciais
sensos, esta ideologia tecnicista e finalística acerca das relações entre as políticas públi-
consegue seduzir mesmo uma parte dos cas e as culturas populares tradicionais:
membros de comunidades tradicionais, quer a) justifica-se a existência de políticas espe-
seja de forma indireta, por meio de ONGs ou cificas neste campo?; b) caso se justifiquem,
outros intermediários incumbidos de “tradu- como garantir a participação dos detentores
zir” as formas de manutenção e transmissão destes saberes tradicionais na construção de
da cultura na forma fragmentária e pelas tais políticas de forma que não reproduzam
categorias racionalizantes do projeto, desta as estratégias hegemônicas e possam repre-
feita convertido em instrumento hegemônico sentar possibilidade de mudança social?
de perpetuação do poder, quer seja pela parti-
cipação direta em instâncias de construção e Teixeira Coelho, a esse respeito, pro-
pactuação de políticas públicas de cultura, tais põe uma abordagem conceitual tendo como
como as conferências nacionais de cultura inspiração a leitura que Pierre Bordieu faz
ocorridas no período, estruturadas a partir de da cultura, aparentemente preferindo sua
temas e eixos definidos a priori – estruturas acepção restrita “ao domínio que, para sim-
estruturadas para manutenção do status quo, plificar excessivamente, é aquele das artes
muitas vezes a partir das próprias estruturas e das letras”7, distinguindo-a do habitus.
governamentais – colaborando para a elabo- Amparado nesta leitura da obra de Bordieu,
ração de políticas que nada ou muito pouco o autor conclui que:
têm a ver com as dinâmicas antes mantidas
e transmitidas na vivência pela oralidade, de
geração em geração, como cultura de resis- 7 BORDIEU, P. Le sens pratique. Paris: Éditions
tência e mesmo como identidade antagônica. Minuit, 1980.

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“A menção aos costumes recoloca a dis- invariabilidade sequer dos costumes, ape-
cussão na trilha do que afinal, é ou não é nas pode apontar para a permanência de
cultura em situação de política e de aço cul- ideias empedradas e emparedadas (assim
tural, daquilo que pode prioritariamente é a ideologia) a respeito de uma dada rea-
receber a atenção de uma política cultural lidade social ou para o desejo de distorcer
voltada para o desenvolvimento humano, essa realidade com o objetivo de alcançar
e subsidiariamente, para o desenvolvi- um poder (político efetivo ou simbólico)
mento sustentável, termos nos quais hoje e mantê-lo. Cultura popular hoje, no Brasil,
se costuma colocar essa questão. A partir é acima de tudo a televisão, algo que em
da segunda metade do século 20 intensi- princípio, supostamente, os defensores da
ficou-se uma tendência anti-intelectua- política cultural popular tradicional não
lista que se apresenta sob o disfarce de pretenderiam apoiar, sobretudo porque a
um antielitismo e se materializa entre cultura da televisão é também a cultura do
outras coisas, na defesa da tese de que não mercado ao qual se pensa que a popular
apenas haveria em cultura outros fenô- se opõe” (p. 26).
menos a merecer atenção além daque-
les configurados nas obras culturais de A discussão proposta por Teixeira
prestígio (literatura, artes visuais, música Coelho em torno da relação entre os con-
erudita, etc) como se apresenta também ceitos de cultura popular e cultura popular
na insistência em que essas obras seriam tradicional, embora traga contribuições e
mesmo menos respeitáveis ou válidas que questionamentos importantes, talvez tenha
as outras que lhe seriam opostas (a cultura sido superada pelas políticas públicas para
dita de rua, o folclore e, a grande novidade, o setor de audiovisual implementadas pelo
a cultura de massa) Ministério da Cultura por meio principal-
mente da Agência Nacional de Cinema –
Aprofundando ainda mais as críticas ANCINE, destacando-se aí a própria criação
as críticas às políticas culturais que ampliem do Fundo Setorial do Audiovisual e os diver-
o conceito de cultura às culturas populares, sos programas criados a partir de 2008,
o autor argumenta que: abrangendo a produção de conteúdo para
televisão e incentivando, por meio destes,
“No que se refere ao lugar de destaque a diversidade cultural e regional brasileiras
aberto à cultura popular, seria interessante com vistas a alcançar o grande público.
verificar se a noção de que é mais estável,
mais duradoura (e portanto mais antiga, Entretanto, no rastro da discussão
mais ‘histórica´) que as outras já estava levantada por Teixeira Coelho, podemos
presente nos estudos culturais desde seus identificar as marcas das correntes teóricas
primeiros instantes ou se neles se introdu- que ainda acreditam ser a cultura e a arte
ziu a posteriori em virtude de construções território de especialistas e sobretudo que
teóricas mais abrangentes que requeriam a este território é ocupado por alguns poucos
afirmação dessa qualidade embora contra e nobres segmentos.
as evidências disponíveis. Seja como for, a
insistência nessa tese no início do século Ao lado desta questão a qual ainda
21, quando não é mais possível defender a é bastante proeminente no campo das

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políticas culturais, com relação às cultu- tal modo as relações sociais que sua natureza
ras populares os problemas até aqui iden- passa a ser expressa através de objetos de troca.
tificados colaboram para a modificação A este fenômeno, Marx denominou de feti-
artificialmente construída, implicando em chismo da mercadoria (Marx, K. O Capital,
reducionismos simbólicos presentes nos capítulo 1, seção 4).
discursos e práticas no campo da gestão
cultural brasileira na contemporaneidade. Outro reducionismo marcante neste
campo está expresso no discurso do social
A fim de melhor compreendermos na cultura. Tal reducionismo traduz-se,
esta questão, devemos estabelecer uma dis- em última instância, em uma certa visão
tinção entre o conceito de cultura enquanto “positiva” da cultura, encobrindo sua dimen-
elemento constitutivo da sociedade, ou seja, são de conflito, ou agon, constituindo-se em
a dimensão antropológica, como apontada um processo de domesticação da cultura e da
por Isaura Botelho (2001), pela qual a política arte. Tal é a capacidade alienadora na con-
cultural insere-se na lógica do bem comum, temporaneidade, que certos conceitos são
e o conceito de cultura resultante das estra- incorporados ao vocabulário das políticas
tégias hegemônicas, a dimensão socioló- públicas adquirindo significado diametral-
gica, onde o campo da cultura é entendido mente oposto ao sentido original. Exemplo
como o campo das “artes”, sendo resultado disto é o uso que exagerado e a-crítico do
da ação de especialistas, e seu acesso é con- termo “protagonismo juvenil”, muito em voga
dicionado à linguagem do projeto sujeito a nos projetos culturais, notadamente a partir
regras de demonstração de “verdade” cien- da valorosa experiência dos pontos de cul-
tífica, reflexo do pensamento único instru- tura. Protagonismo, do grego protagonistès,
mentalizante e economicista, voltado para o de protos, primeiro e agonistès, combatente,
favorecimento de segmentos cultura afeitos lutador – em seu sentido original e nas nar-
à lógica da burocracia, portanto. Sob este rativas míticas identificaria o primeiro que
último ponto de vista, o conceito de cultura é se levanta contra uma dada situação. Não é
ainda afetado por reducionismos simbólicos raro, entretanto, sob o título de protagonismo
que operam em favor do mercado cultural, juvenil encontrar-se ações de domesticação
o segmento hegemônico da produção neste de identidades realizadas em lugares eco-
campo. Dentre estes reducionismos, desta- nomicamente carentes e riquíssimos cultu-
camos negativamente o discurso da cultura ralmente, configurados na postura bovina
enquanto mercadoria - visão subjacente às dos jovens apaziguados pela “incontestável”
estratégias do campo do marketing cultural. contribuição da música erudita para a sua for-
mação artística e pessoal, sem se questionar
Nesta perspectiva, é patente, portanto, sobre o porquê do inverso não ocorrer com
a atribuição de sentido utilitarista à cultura, a mesma naturalidade quando se trata das
no processo de reificação (do latim res: “coisa”). tradições de matriz africana, ainda mais se
O conceito de reificação ou “coisificação” – forem elas de cunho mágico-religioso, como
transformação de uma ideia abstrata em mer- o candomblé, por exemplo.
cadoria –, como definido pela teoria marxista,
implica no processo de alienação próprio do Deve-se o fenômeno do social na cultura
modo de produção capitalista, ao objetificar de ao fato de que em termos de responsabilidade

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social uma importante dimensão da cultura de Figueiredo, coordenador do Núcleo de


deve ser ignorada: a cultura como conflito. Economia Criativa da ESPM-RJ publicado
Em tempos nos quais os rumos da cultura e da no jornal Brasil Econômico em 21/11/2011:
arte são definidos a partir de sua relação com “Existem outros exemplos da música, da
a imagem que a empresa patrocinadora deseja literatura, do teatro e dos demais campos
difundir, somente a positividade da cultura da economia criativa capazes de nos evi-
interessa, porém na história do pensamento denciar a força criativa das pessoas que
sobre a cultura no Brasil, a tentativa de se vivem nas favelas, porém quero enfati-
abrandar a violência presente nos processos zar que se o Rio deseja ser reconhecido
de nossa conformação cultural deram origem como cidade criativa, é crucial que integre
a teorias sociais já ultrapassadas, embora a o seu espaço urbano e, consequentemente,
ausência da crítica vivida no ambiente aca- as pessoas que nele vivem, de maneira que
dêmico atual sempre possa reavivar nossa cada uma possa expressar a sua cultura”.
herança patriarcal e arcaica.
Quando analisamos esta questão
Passemos a outro reducionismo, a cul- também à luz da economia da cultura,
tura enquanto mera dimensão econômica. temos a impressão de que se opera uma
Embora a economia criativa seja um campo gritante distorção ou inversão de valores
ainda em construção, podemos incluí-la na no tocante ao conceito de cultura, marca
discussão acerca da diferença entre a visão do economicismo a que a área tem sido
de cultura enquanto elemento constitutivo submetida desde meados do século XX até
da sociedade versus a visão reducionista de os dias atuais. Neste sentido, nota-se nos
cultura, consubstanciada na formulação de discursos a ideia de que sem os números tra-
políticas de financiamento, afirmativas da zidos à luz pelos instrumentos da economia,
predominância do marketing cultural via a cultura não teria como demonstrar seu peso
leis de incentivo. e sua importância na “mesa de negociações”,
perante outros setores da administração
O exemplo da economia criativa nos pública, já que, conforme Reis (2007, p. 8-9):
parece emblemático, portanto. No discurso
de seus principais propagadores, quer sejam “Ao restituir à cultura seu valor econô-
pesquisadores, produtores ou órgãos públi- mico, a economia da cultura lhe garante
cos, a economia criativa é vista como forte um lugar de peso na mesa de negociações
aliada da cultura. multilaterais, nos debates sobre aloca-
ção de orçamentos públicos e promove
O que pretendemos destacar, entre- o envolvimento do setor corporativo
tanto, é o sentido reducionista do conceito nas questões culturais – não apenas
de cultura empregado nos discursos de pes- como marketing ou responsabilidade
quisadores e órgãos dedicados ao desen- social, mas como estratégia de negócios.
volvimento de políticas e ações nesta área. Em um mundo que se guia por avaliações
De forte aliada da cultura, repetidas vezes e mensurações, a economia devolve à
nos deparamos com o termo economia cultura sua voz ativa e complementar
da cultura sendo utilizado como sinônimo à aura estética, simbólica e social, que
de cultura, como no artigo de João Luiz transcende essa discussão”

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Este discurso se constitui, sem som- tempo que adverte que esta característica
bra de dúvidas, em visão reducionista da está se perdendo com a modernidade e, em
importância da cultura na sociedade. decorrência, a capacidade de dar conselhos,
ou a sabedoria, subjacente à arte de narrar,
Por fim, talvez não um reducionismo, também se aproxima da extinção.
mas um imperativo para o acesso às políti-
cas públicas no campo da cultura é a figura A cultura, ao contrário, entendida como
do projeto. sendo constitutiva da sociedade, é elemento
definidor da própria humanidade. É a cultura
Na lógica da política pública brasileira que dá forma às atividades humanas, tais
contemporânea, regida por princípios consti- como “o trabalho, a religião, a culinária, o ves-
tucionais tais como transparência, impessoa- tuário, o mobiliário, as formas de habitação,
lidade, isonomia, etc, o principal instrumento os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de
para celebração de contratos de repasse de relacionar-se com os mais velhos e os mais
recursos públicos é o projeto, que geralmente jovens, com os animais e com a terra, os uten-
deve ser apresentado quando da existência sílios, as técnicas (...)”8, conceito antropológico
de um edital, uma chamada pública. Tais de cultura que, se parece não gozar de pres-
procedimentos são regidos, em geral, pela tígio entre os formuladores de políticas para
mesma legislação, que normatiza os convê- culturais com foco nas “artes”, pode por outro
nios e contratos em áreas tão distintas quanto lado abrir possibilidades para a construção de
a construção civil e grande parte da atividade políticas públicas mais abrangentes, envol-
cultural, quais sejam, a Lei 8.666 (licitações), vendo o segmento da cultura popular tradi-
somada a outras Portarias federais e leis esta- cional, menos afeito aos usuais e excludentes
duais ou municipais, conforme o caso. mecanismos de fomento e incentivo à cultura.

Ocorre que, somada à Lei 8.313 Com relação a isto, lembramos da dis-
(Lei Rouanet), tal legislação impõe à área tinção conceitual entre as dimensões antro-
cultural, e sobretudo no tocante à cultura pológica e sociológica da cultura defendida
popular tradicional, uma lógica que se choca por Isaura Botelho (2001), onde a cultura
com a lógica tradicional de manutenção e compreendida sob a dimensão antropoló-
transmissão dos modos de fazer próprios gica é aquela em que “a cultura se produz
da oralidade, marcada principalmente pela através da interação social dos indivíduos,
vivência e pela profunda ligação com a que elaboram seus modos de pensar e sen-
ancestralidade, características que repre- tir, constroem seus valores, manejam suas
sentam uma diferença sensível frente à identidades e diferenças e estabelecem suas
dinâmica imposta pela lógica do projeto. rotinas”. (BOTELHO, Opus cit., p. 3)
Com relação a este problema, podemos nos
lembrar do conceito de “experiência” desen- A dimensão sociológica, por sua vez:
volvido por Benjamin (2008). “não se constitui no plano cotidiano do

Benjamin (Opus cit.), ao analisar a


figura do narrador, ressalta seu papel vital 8 CHAUÍ, M. Cidadania cultural. São Paulo: Fundação
de comunicar experiências, ao mesmo Perseu Abramo, 2006:113-14.

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indivíduo, mas sim em âmbito especia- para o setor, o reconhecimento pelo Estado
lizado: é uma produção elaborada com a dos diferentes sujeitos culturais fará com
intenção explícita de construir determi- que as políticas públicas tenham de cami-
nados sentidos e de alcançar algum tipo nhar no sentido não só do financiamento,
de público, através de meios específicos de mas sim do acesso pleno a políticas públicas
expressão”. (Idem, ibidem, p. 4) integradas, pois, de acordo com Botelho:

A importância da tomada de cons- “A premissa aqui é a de que a tônica do


ciência desses dois universos por parte do setor é um recuo na formulação de políticas
gestor cultural é que esta distinção pode públicas globais, no sentido pleno do termo,
facilitar, ou diríamos mais diretamente que embora se fale muito em política cultural.
deve orientar, a definição de estratégias Hoje é o financiamento de projetos, toma-
diversificadas, em termos da formulação dos isoladamente, que assumiu o primeiro
e da implementação de políticas culturais. plano do debate – através das diversas leis
A questão não é meramente técnica, mas sim de benefício fiscal existentes no país –, o que
política, neste caso, pois trata-se de exclusão requer uma avaliação criteriosa”9.
do acesso ao financiamento à cultura por
parte representativa da identidade cultural
brasileira, a cultura popular tradicional.

Na lógica do pensamento hegemô- Novos paradigmas de


nico, a política cultural tem sido reduzida avaliação das políticas
à dimensão do financiamento e o finan- culturais e perspectivas
ciamento à cultura tem estado atrelado a
processos extremamente burocráticos de
captação e prestação de contas, criando Se podemos na sociedade contemporâ-
obstáculos a participação de comunida- nea brasileira testemunhar a inserção cres-
des tradicionais marcadas pela lógica não cente das culturas de tradição oral na lógica do
capitalista e por visões de mundo dife- capital é porque o Estado como instrumento
rentes daquelas dos grupos já adaptados da hegemonia, ao inserir este segmento na
ao mercado. agenda das políticas públicas sem os neces-
sários acompanhamento e visão crítica sobre
O Estado, importante instrumento de o impacto de políticas públicas burocratizan-
implantação da ideologia das classes domi- tes e instrumentalizadoras em comunidades
nantes, por meio de políticas restritivas de tradicionais. Tal fato se deve, em parte, por
financiamento por um lado impedem ou que no atual estágio de desenvolvimento do
dificultam a participação de grupos popu- capitalismo, a civilização capitalista como
lares ou, por outro lado, faz com que tais apontada por Comparato (2013) ou a ação
grupos se adaptem a lógicas utilitaristas, direta do capital apontada por Oliveira (2014),
finalísticas, de mercado.

Do ponto de vista das identidades cul- 9 BOTELHO, I. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA,


turais e sua relação com as políticas públicas 15 (2) 2001:2

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o direcionamento e a velocidade com que social” e “resultados esperados”, entre outras


comunidades herdeiras de culturas de matri- imposições as quais na verdade preten-
zes não ocidentais são arrastadas para a lógica dem domesticar a arte e a cultura, além de
fragmentária e racionalizante do projeto se institucionalizar a infância e a juventude,
naturalizam e se intensificam, posto que são circunscrevendo-as a territórios de tutela,
construídas artificialmente, e parecem supe- sob a imagem da empresa cumpridora de
rar, por vezes, o tempo da maturação crítica seu papel na sociedade.
quanto aos ônus advindos deste processo de
simbiose da cultura e da forma mercadoria do Neste contexto, uma categoria ainda
Estado, como apontada por Mascaro (2013). como desenvolvimento, altamente em voga no
processo reducionista da cultura enquanto
A partir do diagnóstico acerca do pro- mera dimensão econômica, dado o viés eco-
cesso de formação do Estado capitalista bur- nomicista e gerencial das políticas públicas
guês, uma estratégia anti-capitalista no setor na cultura, passa a ser considerada apenas
das políticas públicas culturais deveria dedi- em vista de sua capacidade de gerar retorno
car-se à proposição de políticas de contra-ten- financeiro, negligenciando-se outras dimen-
dência, necessárias quando um determinado sões possíveis de desenvolvimento, já que o
setor da sociedade se torna muito superior conceito de desenvolvimento adotado pelas
aos outros em sua capacidade de se beneficiar Nações Unidas (PNUD) consiste na amplia-
da riqueza nacional por meio das políticas ção da “liberdade e a formação de capacida-
públicas, em contraposição ao laissez-faire des humanas” para que as pessoas possam
característico da ideologia de mercado. decidir o que fazer e o que querem ser, ou
seja, a melhora nas condições de vida em
Por este motivo, e a partir do reconhe- todas as dimensões de acordo com o exercício
cimento da sujeição da cultura às mesmas de liberdades fundamentais e a “aquisição
regras instrumentalizantes das ditas ciên- de capacidades para assumir e apropriar-se
cias, sobretudo por meio da adoção acrítica do processo de dirigir os próprios destinos de
da linguagem do projeto aplicada indiscri- uma comunidade”. Para que isto ocorra, os
minadamente, da lógica do mercado e dos direitos culturais se constituem em dimen-
processos burocratizantes, acreditamos que são fundamental, sobretudo e direito de par-
seja importante a reflexão em torno das cate- ticipação na vida cultural, compreendida
gorias de avaliação das políticas culturais, como um sistema cultura que se relaciona,
a fim de identificar os valores nelas implíci- interage e atua em conjunto com outros sis-
tos, os quais permeiam articuladamente as temas (Idem, ibidem).
práticas sociais no campo da cultura, tornan-
do-se ideologia, no sentido althusseriano do Para Martinell Sempere (2011), a vida
termo. Dessa forma, portanto, por meio de cultural traz mais-valias e valores intan-
valores nunca antes relacionados às artes, gíveis agregados aos diferentes sistemas
a sociedade contemporânea impõe a projetos que compõem uma sociedade. Alguns des-
em arte e cultura contribuírem para a solu- ses valores intangíveis apontados pelo
ção de problemas sociais tais como a redu- autor, os quais julgamos ser relevantes
ção da violência ou a retirada da juventude para projetos e políticas públicas no campo
do domínio das drogas, a título de “impacto das culturas populares tradicionais e que

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também contribuem para o desenvolvi- Articulada à categoria desenvolvi-


mento são: acrescenta conteúdos a um mento, a categoria planejamento também
grande número de aprendizagens; reforça se coloca como imperativo na prática e
e equilibra as identidades culturais positi- enquanto expectativa na elaboração de
vas; favorece o sentido de pertencimento projetos culturais, independentemente
a uma comunidade; contribui para a coe- se se trata de culturas ligadas à tradi-
são social; facilita a participação política; ção oral, onde é cabível se questionar se
constrói cidadania; bem-estar, felicidade, o desenvolvimento esperado é o mesmo
ócio criativo; permite ampliar as relações desenvolvimento linear e progressivo da
sociais e a participação coletiva e comu- modernidade e se o planejamento esperado
nitária; compartilha a memória coletiva nas ações de manutenção e transmissão
e o imaginário; contribui para imaginar e das culturas populares e tradicionais tem
criar futuros; facilita o uso e o desfrutar do sido da mesma natureza do planejamento
espaço público; melhora a marca de classe esperado em áreas tais como a administra-
de uma comunidade; participa na visibili- tiva ou a econômica.
dade e comunicação de um país, cidade ou
região e atrai visitantes e turistas. A aplicação nas ações de fomento
às culturas de tradição oral de categorias
Apesar das contribuições da cultura importadas de universos de conhecimento
ao desenvolvimento, as quais devem ser afeitos ao segmento hegemônico econo-
incluídas intencionalmente na elabora- micamente na sociedade tem em casos
ção de projetos e programas neste setor, específicos gerado na prática cotidiana
não como impactos diretos, mas como de comunidades tradicionais, por um
mais-valias culturais, nem todas as políti- lado, conflitos inter geracionais, dadas
cas culturais devem ser planejadas com esta as conflitantes formas de entender a
finalidade. Martinell Sempere (Opus cit.) transmissão de saberes ancestrais, mui-
ressalta que a vida cultural contém far- tas vezes dependentes de longa iniciação
tamente elementos como o “gratuito”, religiosa e o tempo tecnológico do projeto
“inútil”, “prazer estético”, “conflito e tensão”, (BOUTNET, 2002), além de criminalização
“a mudança”, enfim. A gestão cultural lida, por dificuldades inerentes aos complexos
em suma, com o intangível e com a dimen- procedimentos de prestação de contas,
são do prazer e do desejo. Há, portanto, aasim como, de outro lado, tem gerado
atividades culturais e artísticas que têm expectativas supervalorizadas e respecti-
valor por si mesmas. Sua simples existência vas frustações nos gestores quanto à real
significa uma contribuição à vida cultural. possibilidade de planejamento de ações cul-
turais, daí advindo expressões entre gesto-
A necessária ampliação do conceito res culturais, tais como: “o que foi planejado
de cultura, de forma a incluir os diferen- não deu certo” ou “planeja-se uma coisa,
tes modos de pensar e sentir presentes em acontece outra” (ORTIZ, 2008:122-28) o
nossa sociedade é um processo interligado que nos permitem colocar aqui a pergunta:
à construção de novas categorias de ava- são as culturas de tradição oral possíveis
liação de projetos no âmbito das políticas de ser “geridas” sob o ponto de vista das
públicas para o setor. práticas de gestão cultural?

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públicas no campo da cultura no Brasil contemporâneo 779


Neste sentido, acreditamos que a cul- interesses e capacidades do segmento social


tura dominante, considerada aqui aquela que a representa e é por ela representado.
herdeira dos processos narrativos de cons-
trução da “verdade” (SODRÉ, 2005), tende, A cultura de povos tradicionais, mesmo
pelos processos extremamente tecnicistas na contemporaneidade, mantém caracte-
apresentados, a impor à totalidade dos seg- rísticas próprias de sua visão de mundo não
mentos culturais a lógica racionalizante e ocidental, não capitalista, não finalístico, ele-
finalística característica da forma jurídica mentos muito mais ligados ao jogo do que a
do Estado, moldado historicamente aos regra, como podemos observar neste quadro:

[ Quadro 1]
Cultura hegemônica judaico-cristã Culturas populares não ocidentais

Racionalidade Jogo

Planejamento (metas/objetivos) Improviso, demanda

Noção de desenvolvimento Visão cíclica (focado na


progressivo ancestralidade)

Tempo linear e homogêneo Tempo mítico

Obtenção/avaliação de resultados Resultados intangíveis

Aferição da verdade Preservação do segredo

Transmissão pela oralidade


Projeto
(narrativa)

Comunicação da experiência
Informação
(conselho/sabedoria)

Fragmentada Integral

Produto Herança

Finalística Processual

Finalística Vivencial

Valor de troca (capital) Relação com o sagrado

Considerações finais constatamos que o problema do fomento às


culturas populares e tradicionais insere no
campo da luta de classes antagônicas.
A partir das hipóteses levantadas ini-
cialmente e da análise sobre a relação entre as No estágio atual de desenvolvimento
formas jurídica e mercadoria características do Estado capitalista burguês, a civilização
do processo de desenvolvimento do Estado capitalista na qual o capitalismo é cognitivo,
capitalista burguês, processo histórico por ou seja, xxx e nesse contexto, a cultura popu-
meio do qual as políticas públicas vão cada lar tradicional é reduzida simbolicamente
vez mais ajustando-se às práticas e capacida- à forma de mercadoria, transformando-se
des da classe hegemônica economicamente, como resultado das exigências dos editais

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públicos e da linguagem tecnológica do pro- dos cursos de gestão cultural oferecidos em


jeto em produto, número crescente, notadamente como meros
cursos de formatação de projetos, cuja falta de
Isto se deve, também, pelo fato de a crítica termina por reforçar o quadro hege-
razão instrumental norteadora das ações mônico atual.
públicas no contexto do Estado capitalista
burguês lidarem com a cultura como processo Retomando Gramsci e sua aborda-
finalístico, donde a expectativa a ser atendida gem sobre os intelectuais orgânicos e tra-
é que o resultado do fomento público se apre- dicionais, cabe uma crítica também quanto
sente na forma de produto, já que este Estado ao papel dos intelectuais na hegemonia,
norteado pela razão instrumental tem difi- já que é grande o impacto social das críticas
culdade em lidar com processos, como são os advindas dos defensores da ideia de cultura
complexos processos das culturas de tradição entendida como mercado quanto ao papel
oral, portadoras de visões de mundo antagô- do Estado neste campo, inclusive quanto à
nicas aos valores civilizatórios capitalistas. democratização representada pela criação de
programas e ações como os pontos de cultura,
em oposição ao quadro hegemônico as conferências e conselhos de política cul-
marcado pelo reducionismo constituído no tural e a política de editais públicos.
financiamento a projetos do segmento ligado
à produção dita “artística”, mais organizado Da mesma forma com que deve cami-
socialmente para a adequação e superação nhar junto a pulverização das formas de
das barreiras burocráticas que visam em fomento. No limite, a política deve se amoldar
última instância impedir o acesso ao fomento à sociedade, e não o Estado deve enquadrar
público por comunidades indígenas, de o conjunto dos segmentos socioculturais na
matriz africana, sertanejas, entre tantas mesma lógica atual economicista clássica que
outras que mantêm seus sistemas produti- dominou a segunda metade do século XX.
vos não ocidentais e visão de homem e de
mundo como cultura de resistência.

Paralelamente, outro fator determi-


nante neste campo certamente é a questão
do racismo, já que no Estado capitalista bur- [ HENRY ALEXANDRE DURANTE MACHADO ]
guês o racismo é estrutural e estruturante das Bacharel em Biblioteconomia e Documentação
relações sociais e neste contexto as culturas (ECA-USP), com Especialização em Gestão de
de matrizes africanas e indígenas foram his- Projetos Culturais (Celacc-USP) e Gestão Cultural
toricamente e ainda são tidas como fatores (Universidade de Girona, Espanha). Mestre em
impeditivos do desenvolvimento nacional. Ciências pelo Programa de Mudança Social e
Participação Política (PROMUSPP) da Escola de
Outro tema que identificamos ser de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
fundamental importância ao longo da pes- de São Paulo - EACH-USP (2015). Doutorando pelo
quisa é o questionamento acerca da formação Programa de Integração da América Latina (PROLAM)
“profissional” do gestor cultural, cabendo uma da Escola de Comunicações e Artes - ECA-USP.
análise inclusive a respeito dos programas E-mail: henrydurante@gmail.com

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