Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
TIMONEIROS:
Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Junho de 2008
Felipe Charbel Teixeira
Timoneiros:
Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini
Ficha Catalográfica
CDD: 900
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
Aos irmãos de sempre: Alípio Carmo, Jorge Roberto, Wander Paulus e Pedro
Barbosa.
um lado, a ênfase no cálculo e medida das coisas do mundo, com destaque para a
questão dos efeitos, ou seja, os possíveis resultados das ações dos governantes e
demais agentes envolvidos nos processos de tomada de decisões em Repúblicas,
principados, reinos ou estados papais; de outro, a representação de uma
performance letrada da prudência em textos compostos segundo preceitos ético-
retóricos-poéticos convencionais. Trata-se, nesta tese, da discussão desta dupla
dimensão acerca da prudência, com ênfase no exame das histórias compostas por
Maquiavel e Guicciardini.
Palavras-chave
Retórica, Prudência, Historiografia, Renascimento, Maquiavel, Guicciardini.
Abstract
prudence. On the one hand, the emphasis on the calculation and measure of the
things of the world – the possible results of the actions of governors and the other
agents responsible for taking decisions in Republics, Principalities, Kingdoms or
Papal States. On the other hand, the representation of prudence’s literate
performance in texts composed according to the ethical and rhetorical and poetical
rules established by the tradition. This thesis discusses this double character
associated to prudence, especially through the exam of the histories composed by
Machiavelli and Guicciardini.
Keywords
Rhetoric, Prudence, Historiography, Renaissance, Machiavelli, Guicciardini.
Sumário
homens de letras.
3.1 Exílio, ócio e melancolia. 106
3.2 Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a 120
Consolatoria de Guicciardini.
3.3 O homem de letras na escala da glória. 149
Oratoria de Quintiliano.
Não existe prudência sem reconhecimento público: apenas os homens
reputados dignos e honestos por seus pares podem almejar glória e distinção. Para
que a reputação de prudente seja alcançada faz-se necessário dominar as várias
convenções ético-retóricas prescritas para o tratamento hierárquico entre iguais,
superiores e inferiores. Um homem incapaz de se expressar eloqüentemente em
cerimônias públicas ou instâncias deliberativas de uma República; inábil na forma
de tratar o príncipe ou condottiero de um regime stretto; inepto na composição de
histórias e tratados segundo o decoro letrado (regras de conveniência previstas e
aguardadas por leitores e ouvintes); um homem sem qualidades visíveis e bem
definidas jamais será apontado como prudente, mesmo que demonstre
impressionante argúcia analítica (isoladamente, ela passaria despercebida).
Abrem-se, assim, dois horizontes distintos, porém mutuamente dependentes,
em torno da tópica da prudência. De um lado, a ênfase no cálculo e medida das
coisas do mundo, com destaque para a questão dos efeitos, ou seja, os possíveis
resultados das ações dos governantes e demais agentes envolvidos nos processos
de tomada de decisões em Repúblicas, principados, reinos ou estados papais. De
outro, a representação de uma performance letrada da prudência em textos
compostos segundo preceitos ético-retóricos-poéticos definidos e examinados
12
Salústio, Tito Lívio, Lucrécio, Tácito, entre muitos outros – possui o poder de Lei,
mesmo para aqueles reverenciados pela posteridade como inovadores em certos
campos, casos de Maquiavel e Guicciardini. A prudência consiste, nesse sentido,
no dispositivo responsável por flexibilizar de algum modo essas Leis,
interpretando-as segundo os princípios da contingência, da necessidade e da
“qualidade dos tempos”; ela permite a delimitação de regras provisórias de
validação, estabelecidas segundo o critério da probabilidade e articuladas
analogicamente, mostrando-se capaz, assim, de lançar alguma luz sobre a
realidade sempre cambiante.
Em analogia recorrente, a prudência é vista como o leme que permite a
navegação com alguma segurança em mares incertos. O timoneiro competente é
precisamente aquele capacitado a agir segundo o bom juízo; a tomar decisões
adequadas após analisar e interpretar devidamente os movimentos das “coisas do
mundo”; a agir no tempo certo, prevendo com alguma segurança, através do
exame da situação presente em comparação com momentos passados – isto pela
experiência no trato público e pela leitura atenta das histórias antigas e modernas
–, os movimentos imediatos e futuros dos agentes políticos; a reconhecer os
limites de toda ação, atendo-se exclusivamente ao que é possível realizar;
finalmente, a garantir, com um mínimo de segurança, a consecução dos fins
13
“1. Não pode haver apelo à idéia de gênio como origem das energias da grande
arte.
2. Não pode haver criação sem motivo.
3. Não pode haver representação transcendente, atemporal ou imutável.
4. Não pode haver artefatos autônomos.
5. Não pode haver expressão sem uma origem e um objeto, um de e um para.
6. Não pode haver arte sem energia social
7. Não pode haver geração espontânea de energia social”.1
1
GREENBLATT, Stephen. Shakespearian Negotiations, p.12.
14
2
Cf. Idem. Ibid., p.6. “We identify energia only indirectly, by its effects: it is manifested in the
capacity of certain verbal, aural, and visual traces to produce, shape, and organize collective
physical and mental experiences”.
3
O emprego da palavra “redefinição” não deve se confundir com uma intencionalidade
transformadora. Tal redefinição corresponde a movimentos sutis, e pode ser pensada como uma
reconfiguração do conceito de prudência, ou como uma série de ajustes conceituais efetuados na
própria mobilização e emprego da categoria em ocasiões específicas, sem que gerem, contudo,
movimentos teóricos de ruptura com reflexões de autoridades como Aristóteles e Cícero acerca da
phronesis ou da prudentia.
15
4
NAJEMY, John. “Language and The Prince”, p.91. “[…] The Prince announces its intention to
establish a discourse of politics independent of rhetoric and eloquence”.
5
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.60.
6
MOULAKIS, Athanasios. Republican Realism in Renaissance Florence, p.22. “Realist
constitutionalism is used here to describe this innovating complex of ideas; a constitutionalism
avant le mot […]. What at first sight appears as a revival of classical republicanism is in fact a
departure from it, as well as a departure from medieval ecumenic order. The exemplary statesman
is not Cicero’s ideal of the vir bonus dicendi peritus, ‘the good man expert in speech’’. He is
instead the savvio, the prudent man, capable of shrewd an reasoned, informed by a worldly
experience normally associated with high social standing”.
7
KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 8. “[...] I argue that Machiavelli does not supplant
rhetoric with a more realistic view of politics but rather makes politics more deeply rhetorical than
it had been in the earlier humanist tradition”.
16
Pode-se citar, nesse sentido, a retórica típica das pratiche, reuniões dos
florentinos ilustres para aconselhamento das magistraturas da República10 que
foram registradas por redatores oficiais, um dos quais Maquiavel, entre 1498 e
1512; pode-se perceber, nos discursos dos oradores, tanto uma ênfase nas tópicas
tradicionais da retórica deliberativa, como a honestidade, a utilidade, a segurança
e a necessidade, quanto a valorização do critério dos “efeitos” – ou seja, a
tentativa de antecipar as possíveis deliberações e ações dos agentes envolvidos
nos diversos processos decisórios atrelados à vida política. Também as
chancelarias e magistraturas da República possuíam formas particulares de debate
não muito vinculadas ao tratamento humanista acerca do bom governo e da
concórdia; trata-se do que Maurizio Viroli denominou “arte do estado” – conjunto
de preceitos empíricos associados à condução da res publica ou de um stato
principesco, os quais visavam à manutenção e ampliação dos seus domínios.11
A maneira com que Maquiavel e Guicciardini compreendem os fenômenos
políticos é em grande medida devedora desses debates, sem estar diretamente
subsumida a eles. O que há de específico nesta forma de abordagem das “coisas
do mundo” – e ao mesmo tempo constitui o elemento-chave para as significativas
8
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.12.
9
Idem. Ibid., p.11.
10
Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.29.
17
ciceroniana pela forma peculiar com que tal articulação é proposta e consumada –,
a prudência adquire um novo estatuto, por estar no cerne de um olhar para os
fenômenos políticos calcado na valorização do exame das minúcias da realidade,
das condições dos tempos e das mudanças da Fortuna; em suma, um olhar mais
atento à dinâmica das coisas do mundo que a possíveis deontologias. Nesse
sentido, argumento que a ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à
efetividade analítica não opera uma separação entre retórica e política; ao
contrário, a idéia de verità effetualle, compartilhada por ambos, realça tanto a
importância do cálculo cuidadoso da dinâmica da realidade como da produção,
pelo orador e pelo homem de letras, de efeitos persuasivos sem os quais o
ajuizamento, ele próprio condicionado por preceitos ético-retóricos convencionais,
não será reconhecido como prudente. Daí ser possível atestar uma
indissociabilidade entre retórica, prudência e decoro letrado, cuja unidade
conforma uma efetiva retórica prudencial: somente um discurso copioso tanto em
suas figuras e ornato quanto no conhecimento da matéria (rerum cognitione) pode
ser capaz de produzir bons efeitos, incitando os ouvintes ou leitores à ação.
Discurso copioso que é o produto do engenho de homens prudentes,
11
Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p. 180.
18
12
SKINNER, Quentin. Maquiavel, p. 65; POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p. 238.
“There could be no clear statement of Guicciardini’s refusal to enter into that world of virtù that so
fascinated Machiavelli”.
19
13 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae”. In: Futuro Passado, pp. 47-60.
20
2.1
O homem e o corpo político.
1
Sobre a questão das representações coletivas, conferir: CHARTIER, Roger. “O mundo como
representação”. In: À beira da falésia, p.72. “Tentar superá-las [as divisões entre ‘objetividade das
estruturas’ e ‘subjetividade das representações’] exige, primeiramente, considerar os esquemas
geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras ‘instituições sociais’,
incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social [...], mas
22
dos céus, que preparavam as coisas para males futuros”3; Guicciardini, pela voz de
Bernado del Nero, afirma no Dialogo del Reggimento di Firenze que a tirania
pode surgir como resultado da “má fortuna ou das disposições dos céus”.4
Tal forma de compreender a ordem do cosmo remete à física aristotélica, e
parte da premissa de que o movimento do mundo celeste é eterno e perfeitamente
circular.5 Já o mundo sublunar se submete a alterações e transformações
contínuas, atreladas à dinâmica da esfera celeste, as quais incidem em elevada
instabilidade das “coisas do mundo” e das “coisas humanas”. Numa famosa
passagem dos Discorsi, Maquiavel ampara sua defesa da imitação das ações
virtuosas dos antigos com o seguinte argumento: “o céu, o sol, os elementos e os
homens” não mudaram de “movimento, ordem e poder, distinguindo-se do que
eram antigamente”.6 Céu, sol e os elementos são imutáveis. Já as coisas humanas
apresentam oscilações contínuas; no entanto, por estarem submetidas ao
também considerar, corolariamente, essas representações coletivas como as matrizes práticas que
constroem o próprio mundo social”.
2
PAREL, Anthony J. The Machiavellian Cosmos, p.9. “’Natural cause’ I interpret here to mean
the causality exercised by the heavens on both the ‘things of the world’ and on ‘human things’”.
3
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, pp. 132-2.
4
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 86. “ma non mi pare già che
se la mala fortuna loro o la disposizione de’ cieli ha voluto che surga uno tiranno [...]”.
5
Cf. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa, p.34; BERTI, Enrico. As razões
de Aristóteles, pp.43-74.
6
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, Proêmio, p.7.
23
7
Idem. Ibid., III, 1, p.305.
8
ROSSI, Paolo. Op. cit., p.36.
9
Cf. FARACOVI, Ornella Pompeo. “Introduzione”. In: Scritti sull’astrologia, p.9.
10
FICINO, Marsilio. Sopra lo amore, III, iii, p. 51. “É ancora nelle stelle e negli elementi una
certa amicizia, la quale l’Astrologia considera”.
24
11
Como percebe Claude-Gilbert Dubois, as imagens do “universo-imagem” e do “universo-
mensagem” predominavam no século XVI. “Para escapar do dilema”, afirma ele, “foi preciso
elaborar um terceiro grupo de metáforas: as do universo-objeto, universo-máquina, universo-
relógio, cujo campo vai determinar o surgimento de um pensamento ‘científico’; na verdade, uma
terceira via do imaginário desenvolvida com a língua dos artesãos que falam de técnicas e dos
mercadores que falam de operações e cifras”. DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da
Renascença, p.83.
12
A pressuposição de causalidade entre movimentos dos astros e as coisas do mundo foi refutada
algumas vezes nos séculos XV e XVI, especialmente em tratados filosóficos que tratavam do tema
da Fortuna. No entanto, a crença em tal relação era amplamente predominante. Acerca desta
questão, conferir: PAREL, Anthony. Op. cit., p.18.
13
Cf. Idem. Ibid., p.20. “In any case, the ultimate purpose of both Pico and Savonarola was the
same”.
14
Cf. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética, p.40.
15
Cf. FICINO, Marsílio. De vita libri tres, III, 1, pp. 249-255. Sobre esta questão, afirma Yates:
“A magia de Ficino baseia-se numa teoria do spiritus [...]. Para Ficino, ‘atrair para a terra a vida
dos céus’ só é possível se se usar o spiritus como um canal por meio do qual se difunde a
influência das estrelas”. YATES, Frances. Op. cit., pp. 81-2.
25
Guicciardini e Cerretani.
Todavia, não se deve confundir a crença no poder dos astros com a apologia
da astrologia judicial, aquela voltada para a adivinhação do futuro. O respeito às
predições e adivinhações de toda espécie eram comuns, como atesta a seguinte
passagem dos Discorsi: “Donde vem isso não sei, mas vê-se, por antigos e
modernos exemplos, que nunca ocorre nenhum acontecimento grave numa cidade
ou numa província que não tenha sido previsto por adivinhos, revelações,
prodígios ou outros sinais celestes”.19 Maquiavel situa no rol de previsões
inexplicáveis aquelas feitas por Savonarola à época da morte de Lorenzo de’
Medici – indício de que o exame astrológico do futuro era distinguido, por ele,
daquele realizado por meio de profecias e adivinhações, enigmáticos segundo
qualquer critério lógico ou natural. “A razão dessas coisas”, afirma Maquiavel,
16
FICINO, Marsilio. “Disputa contro il giudizio degli astrologi di Marsilio Ficino, fiorentino”. In:
Scritti sull’astrologia, p. 51. “Non prennunciano eventi specifici per ogni individuo, ma solo
eventi generici”.
17
TREXLER, Richard. Public Life in Renaissance, p.79. “The ritualization of behavior around
astrological points is one of the better known motifs of Florentine formal life. The baton of
command could not be given to a condottiere, troops could not leave the city, battles could not be
started, except at the right moments”.
18
Idem. “Savonarola exaggerated when he said that the Florentines believed more in astrology
than in God”.
19
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, pp. 163-4.
26
“deve ser comentada e interpretada por alguém que tenha conhecimento das coisas
naturais e sobrenaturais, que não temos”.20
Guicciardini, por sua vez, nunca deixou de se mostrar um crítico contumaz
da astrologia como forma de predição:
As coisas futuras são tão falazes e submetidas a tantos acidentes, que o mais das
vezes mesmo os mais sábios se enganam; e quem anotasse as suas opiniões,
máxime nos particulares das coisas – porque nas generalidades adivinham com
freqüência –, verificaria que há pouca diferença entre eles e os que são tidos como
menos sábios [...] (grifo meu).21
20
Idem.
21
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 23, p. 61.
22
Idem. Ibid., máxima 207, p. 141.
23
RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, pp. 58-9. “But this is an actual quarto
volume of hundreds of pages, where the whole life, past and future, the nature and actions of
Guicciardini, are examines”.
24
Ridolfi não chega a uma conclusão sobre a relação de Guicciardini com a astrologia, limitando-
se a dizer que “perhaps he too may have thought there were more things in heaven and earth than
our philosophy dreams of, and so he went on annotating and leafing his way through the
voluminous horoscope”. Idem. Ibid., p.60.
27
Acredito poder afirmar que os espíritos existem. Refiro-me ao que nós chamamos
de espíritos, isto é, àqueles seres aéreos que familiarmente falam com as pessoas,
porque vi tantas experiências que me parece não haver nenhuma dúvida disso. Mas
o que são e como, quem está persuadido de sabê-lo sabe tanto quanto quem nem
pensa nisso. Essas coisas e a previsão do futuro, como certas pessoas fazem por
arte ou por loucura, são potências ocultas da natureza, ou seja, daquela virtude
superior que tudo move: a Ele patentes, a nós secretas, e de tal maneira que as
mentes dos homens não as alcançam (grifos meus).25
25
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, maxima 211, p.143.
26
Idem. Ibid., maxima 123, p.103.
27
GUICCIARDINI, Francesco. Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli, p. 379.
“...perché si vede essere verissimo che, o per influsso de’ cieli o per altra occulta disposizione,
corrono talvolta certe età nelle quali, non solo in una provincia, ma universalmente in tutto el
mondo è più virtù o più vizio che non è stato in una altra età”.
28
Cf. CÉARD, Jean. La nature et les prodiges. L’insolite au XVIe siècle, p.87.
28
aqueles que dizem ter notícias das coisas futuras, ou por ciência ou por sopro
divino, afirmavam com as mesmas vozes o aparecimento de muitas e freqüentes
mudanças, acidentes muitos estranhos e horrendos que por muitos séculos não
tinham lugar em parte alguma do mundo.30
29
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.172. “Fu denotata questa morte come di
momento grandissimo da molti presagi: era apparita poco innanzi la cometa; erasi uditi urlare lupi;
uma donna in Santa Maria Novella infuriata aveva gridato che uno bue corna di fuoco ardeva tutta
la città; eransi azzuffati insieme alcuni lioni ed uno belíssimo era stato morto degli altri; ed
ultimamente um dì o dua innanzi alla morte sua, di notte uma saetta aveva dato nella lanterna della
cupola di Santa Liperata e fattone cadere alcune pietre grandissime, le quale caddono vesro la casa
de’ Medici”.
30
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 9. “quegli che fanno professione d’avere, o per
scienza o per afflatto divino, notizia delle cose future, affermavano com uma voce medesima
apparecchiarsi maggiori e più spesse mutazioni, accidenti più strani e più orrendi che giá per molti
secoli si fussino veduti in parte alcuna del mondo”.
31
Cf. Idem. Ibid., I, 18.
29
cheios de inteligência, que por naturais virtù prevêem as coisas futuras e têm
compaixão dos homens, avisando-os com semelhantes sinais para que eles possam
preparar suas defesas”.32 Estes eventos estranhos, portanto, não eram atribuídas
aos movimentos celestes – até mesmo por isso eram considerados alheios à ordem
natural das coisas. É o que explica, para Céard, o lugar de destaque dos prodígios
em Guicciardini, apesar de suas críticas à astrologia judicial.33
32
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, p.164.
33
CÉARD, Jean. Op. cit., p.93. “Ainsi Guichardin, pourtant très critique à l’égard de l’astrologie,
n’hésite pas, dans ses oeuvres historiques, à faire la plus large place aux pródiges”.
34
Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp.
113-24.
35
Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit., pp.101-2.
36
Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.127.
37
FICINO, Marsílio. De Vita Libri Tres, I, V, p. 121.
30
38
Idem. Ibid., I, V, p. 117.
39
Cf. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. O Problema XXX,1, p.95. “Mas esses
nos quais o calor excessivo se detém, no seu impulso, em um estado médio são certamente
melancólicos mas são mais sensatos, e se são menos bizarros, em compensação, em muitos
domínios são superiores aos outros, uns no que concerne à cultura, outros às artes, outros ainda à
gestão das cidades”.
40
Cf. POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p.3
41
Como argumenta Ernst H. Kantorowicz, a noção de “corpo político”, de origem aristotélica, se
torna popular no século XIII. “O Estado ou, nesse sentido, qualquer outro agregado político, era
compreendido como decorrente da razão natural. Era uma instituição que possuía seus fins morais
em si mesma e tinha seu próprio código de ética”, p.135. Ao mesmo tempo, é nessa época que as
noções de corpo político e corpo místico tornam-se intercambiáveis. Sobre a analogia entre corpo
físico e corpo político, afirma Kantorowicz: “Em outras palavras, o traço essencial de todas as
corporações não era o de que fossem ‘uma pluralidade de pessoas reunidas em um só corpo’ no
momento presente, mas o de que eram essa ‘pluralidade’ em sucessão, animada pelo Tempo e
mediante a ação do Tempo”. KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre
teologia política medieval, p.190.
42
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.94. “Veggo che per li umori che ora possono nella
città tu ti truovi escluso da tutto el governo [...]”.
31
43
Para Jean-Claude Zancarini, a divisão em dois humores é ampliada e complexificada por
Maquiavel em diversos momentos, revelando uma tensão no uso do léxico. Concordo com
Zancarini quanto às tensões do léxico político, mas a existência de outras divisões não anula o fato
de que, para Maquiavel, tensões naturais são aquelas entre o povo e os grandi – sendo as demais
de caráter faccioso. Cf. ZANCARINI, Jean-Claude. “Gli umori del corpo político nelle opere di
Machiavelli”, pp.61-70.
44
Cf. SKINNER, Quentin. “Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government”. In:
Visions of Politics, vol. II, p.42.
45
CICERO, Marco Túlio. De Officiis, I, xxv, 85, p.43.
46
Cf. PALMIERI, Matteo. Vita Civile, III, p.104. “Solo questa virtù è principale imperadrice
d’ogni altra virtù: conserva a ciascuno quello che è suo, a tutto il corpo della republica insieme
provedere et ministra, ciascuno membro conserva, la pace, unione et concordia della civile
multitudine [...]”.
47
SAVONAROLA, Girolamo. Trattato sul governo di Firenze, de Savonarola. “Perché essendo la
unione e pace del popolo el fine del governo [...]”, I, 2, p.40.
48
CAVALCANTI, Bartolomeo. “Orazione di Bartolomeo Cavalcanti Patrizio Fiorentino falla alla
Militare Ordinanza Fiorentina”, p.17. “Non sapete quanto vi sien grandi e suavi i frutti della civile
concordia e quanto aspri e gravi i danni della discordia?”.
32
49
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.79. “Ebbe la città in quegli tempi più volte
molti tumulti, e finalmente con un parlamento si fermò lo stato nel 93, sendo gonfaloniere di
giustizia messer Maso degli Albizzi, [...] e rimase el governo in mano di uomini da bene e savi, e
com grandíssima unione e sicurtà si continuò insino presso al 1420”.
50
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.243. “... what ought to be is not what is going to happen, but
nonetheless it requires to be affirmed”.
51
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 4, p. 22.
52
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 12, p.94.
53
Idem. Ibid., História de Florença, II, 12, p.95.
33
não devemos procurar um governo imaginário [uno governo immaginato], que seja
mais fácil de aparecer nos livros que na prática, talvez como a república de Platão.
Ao invés, deve-se considerar a natureza, a qualidade, as condições, a inclinação, e
para reduzir todas essas coisas em uma palavra, os humores da cidade e dos
cidadãos (grifos meus).55
pela observação atenta das “coisas do mundo” quanto pela leitura diligente das
histórias antigas e modernas. Por muito tempo, os florentinos defenderam que o
apego à liberdade demonstrado ao longo dos séculos advinha da fundação da
cidade no período da República romana por homens de Mário e Sila, como se vê
na Laudatio de Bruni57 – questão interpretada por um viés completamente distinto
nos Discorsi, onde Maquiavel marca o caráter “cativo” da cidade, por esta ter sido
54
Anthony Parel destaca quatro sentidos de “umori” em Maquiavel: (a) “umori” como os desejos e
apetites naturais de um grupo social; (b) “umori” como os próprios grupos sociais; (c) “umori”
como as atividades produzidas pela interação entre os grupos políticos; (d) emprego de “umori”
para classificar os regimes políticos, associado aos seus efeitos. Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit.,
pp. 104-107. Com tal distinção, Parel relata quatro usos possíveis da palavra “umori”, mas não
quatro sentidos distintos. Como sentidos, penso em apenas dois, que podem possuir inúmeros
desdobramentos: “umori” como os grupos sociais, de origem natural ou facciosa, com seus desejos
e apetites específicos e “umori” como as inclinações, costumes e tendências de uma cidade,
presentes desde a sua fundação ou adquiridos com o tempo.
55
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 146. “E però non abbiamo
a cercare di uno governo immaginato e che sia più facile a apparire in su’ libri che in pratica, come
fu forse la republica di Platone; ma considerato la natura, la qualità, le condizioni, la inclinazione,
e per strignere tutte queste cose in una parola, gli umori della città e de’ cittadini”.
56
Um exemplo do emprego de humor como uma dissensão passageira: “né mi pare che si abbi a
fare coniettura da quelle poche elezione che si sono fatte in questi princìpi, perché ancora ogni
cosa è piena di appetiti vani, di sospetti e di confusione, umori che si purgheranno in brieve
tempo”. Idem. Ibid., p.79.
57
Cf. BRUNI, Leonardo. Panegirico della città di Firenze, p.43. “Imperò che li altri populi ànno
avuto per loro autori overo fugitivi, overo usciti dalla propria patria, overo contadini, overo altro
forestieri; ma di voi [florentinos] il populo romano vincitore et signore di tutto il mondo è autore et
principio”. Como argumenta James Hankins, a associação com Roma visava à construção da idéia
34
de que Florença poderia reviver o Império Romano. HANKINS, James. “Rhetoric, history, and
ideology: the civic panegyrics of Leonardo Bruni”, p.145.
58
As “cidades edificadas por forasteiros [...] não são livres na origem”, por isso “raras são as vezes
em que realizam grandes progressos”. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 1, p.9.
59
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 36, p.141.
60
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.174. “massime sendo questa uma città
liberissima nel parlare, piena di ingegni sottilissimi ed inquietissimi...”.
61
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, pp. 122-3. “Considero più
oltre che la città nostra è ormai vecchia [...]. Quando le città sono vechhie, si riformano
difficilmente, e riformate, perdono presto la sua buona instituzione [...]”.
62
Idem. Ibid., p.147. “seguitando in questo lo exemplo de’ medici che, se bene sono piì liberi che
non siamo noi, perché, agli infermi possono dare tutte le medicine che pare loro, non gli danno
però tutte quelle che in sé sono buone e lodate, ma quelle che lo infermo secondo la complessione
sua e altri accidenti è atto a sopportare”.
35
Estas analogias não devem ser entendidas como simples “jogos poéticos”:
“o mundo”, afirma Claude-Gilbert Dubois, era “concebido como uma vasta
metáfora, em que todas as partes” se correspondiam “entre si”.66 Tratava-se de um
efetivo “saber das semelhanças”, para empregar palavras de Foucault. No todo
orgânico que é o universo segundo esta visão, homem e natureza encontram-se
intimamente conectados.67 Mesmo as palavras são vistas como detentoras de um
poder simpático – premissa da cabala, estudada por Giovanni Pico della
Mirandola, entre outros.68 Segundo Foucault, o “jogo das semelhanças” pode ser
articulado de quatro maneiras: por conveniência, emulação, analogia ou simpatia,
as quais “nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se
duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se”.69
Nesse sentido, conhecer alguma coisa implica “ajustar a infinita riqueza de uma
63
GUICCIARDINI, Francesco. Del Governo di Firenze dopo la Restaurazione de’ Medici nel
1512, p.44.
64
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, VIII, 1, p.721. “Non erano tali le infermità d'Italia,
né sí poco indebolite le forze sue, che si potessino curare con medicine leggiere; anzi, come spesso
accade ne' corpi ripieni di umori corrotti, che uno rimedio usato per provedere al disordine di una
parte ne genera de' piú perniciosi e di maggiore pericolo”.
65
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 8, p.88.
66
DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit., p.57.
67
Cf. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural, p. 90.
68
Cf. YATES, Frances. Op. cit., pp. 108-9.
69
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p.35.
36
70
Idem. Ibid., p.43.
71
TREXLER, Richard. Op. cit., p.73. “Time was a public and divine thing to which the individual
geared his own”.
72
Idem. Ibid., p.73. “All time was significant – there was no accident – but that significance lay in
world, not individual, biography”.
73
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias
históricas. In: Futuro Passado; MARRAMAO, Giacomo. Minima Temporalia, pp. 47-56.
74
Cf. TREXLER, Richard. Op. cit., p. 79.
75
Cf. KANTOROWICZ, Ernst H. Op. cit., pp. 170-176.
76
Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico, v.3, p.414.
37
77
Idem. Ibid., p.415. “Nella discussione moderna sulla Zeitauffassung ‘ciclica’, che sarebbe greco-
romana, e quella ‘lineare’, che sarebbe própria del giudaismo e cristianesimo, dobbiamo evitare le
polarrizzazioni teoretiche”.
78
Idem. Ibid., p.417. “Il Ritorno storico è dunque un ricorso che non prelude all’identità di un
ciclo con quello successivo; viceversa, l’Eterno Ritorno cosmologico, secondo le scuole
filosofiche che l’hanno sostenuto con piena coerenza (soprattutto pitagorici; e stoici, ad esclusione
della tendenza di Panezio), implica la dottrina della distruzione del mondo e della ripetizione di
esso (tal quale per la serie dei suoi eventi) nell’altro mondo che succederà a quello distrutto”.
79
Deve-se notar, contudo, que a adesão de Maquiavel à concepção polibiana da anaciclose é
apenas parcial. Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, p.176.
80
Arnaldo Momigliano argumenta que nem Heródoto, nem Tucídides e nem Políbio trabalhavam
com uma noção cíclica de história. Cf: MOMIGLIANO, Arnaldo. “El tiempo en la historiografia
antigua”, pp. 75-80.
81
DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit, p.126.
38
82
Desenvolvi a questão em: TEIXEIRA, Felipe Charbel. “O melhor governo possível: Francesco
Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 50, nº 2,
pp. 325-349.
83
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.9.
84
Carta a Maquiavel, do dia 18 de maio de 1521. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco
Vettori e a Francesco Guicciardini, p.298. “Machiavello carissimo. Quando io leggo e vostri titoli
di oratore di Republica e di frati et considero con quanti re, Duchi et Principi voi havete altre volte
negociato, mi ricordo di Lysandro, a chi doppo tante victorie et trophei fu dato la cura di
distribuire la carne a quelli medesimi soldati a chi si gloriosamente haveva comandado; et dico:
Vedi che, mutati solum e visi delli huomini et e colori extrinseci, le cose medesime tucte ritornano;
né vediamo accidente alcuno che a altri tempi nos sai stato veduto. Ma el mutare nomi et figure
alle cose fa che soli e prudenti le riconoschono: et però è buona et utile la hystoria, perché ti mecte
innanzi et ti fa riconoscere et rivedere quello che mai nos havevi conosciuto né veduto”.
39
tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte será em outros tempos e
algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos exteriores diferentes e várias cores,
de modo que quem não possui os olhos muito bons o toma por novo e não o
reconhece; mas quem tem a vista aguda e que se aplica a distinguir cada caso, e
considera quais são as diversidades substanciais e quais são aquelas que importam
menos, facilmente o reconhece, e com o cálculo e medida das coisas passadas pode
calcular e medir o futuro (grifos meus).86
85
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, III, 43, p.445.
86
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36. “ E così tutto quello che
è stato per el passato, parte è al presente, parte sara in altri tempi e ogni dì ritorna in essere, ma
sotto varie coperte e vari colori, in modo che chi non há l’occhio molto buono, lo piglia per nuovo
e non lo riconosce; ma chi ha la vista acuta e che sa applicare e distinguere caso da caso, e
considerare quali siano le diversità sustanziali e quali quelle che importano manco, facilmente lo
riconosce, e co’ calculi e misura delle cose passate sa calculare e misurare assai del futuro”.
87
Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi,
p.7. “Non aveva forse proprio Machiavelli insegnato, o insegnato di nuovo, che, con giro
incessante, tutto torn nel quadro immobile del mondo che non muore? Ebbene, con quel suo tono
peculiare, in cui commoione e parodia si condizionano a vicenda, a questa tesi il Guicciardini
rende omaggio”.
40
O declínio das cidades, principados e dos seus costumes era percebido como
um dado natural pelos florentinos do século XVI: “como todas as coisas humanas
estão em movimento”, diz Maquiavel nos Discorsi, “e não podem ficar paradas, é
preciso que estejam subindo ou descendo”.88 Configura-se, desse modo, um “ciclo
segundo o qual todas as repúblicas se governaram e governam”89, ciclo este que
raras vezes chega a se completar, pois as cidades, principados e Impérios tendem a
desaparecer antes de retornarem ao estado original. Neste círculo, quase sempre
imperfeito e assimétrico, alternam-se, em movimentos regulares, o bom
principado e sua forma degenerada, a tirania; os ottimati e sua forma degenerada,
o estado de poucos; o regime popular e sua forma degenerada, a licenciosidade.
88
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 6, p.32.
89
Idem. Ibid., I, 2, p.17.
41
Todas as cidades, os Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, natural
ou acidentalmente, terminam e findam alguma vez. Por isso, um cidadão que se
encontra no fim da sua pátria não deve lamentar-se tanto da desgraça desta e
chamá-la de mal-afortunada, e sim da sua própria: porque à pátria aconteceu o que
de toda maneira devia acontecer, mas a desgraça foi de quem veio nascer numa
época que devia ter tal infortúnio.92
90
Cf. BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.176.
91
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 139, p.109.
92
Idem. Ibid., pp. 131-2. Este motivo também se faz presente no Dialogo: “perché alle case e alle
nobilità interviene come alle città e alle altre cose del mondo, che invecchiano, si diminuiscono e
si spengono per vari accidenti, e in luogo di quelle che mancono bisogna che sempre surghino e si
rinnovino delle altre”, p. 80.
42
No que diz respeito à observância dos bons costumes, o que ele [Savonarola]
conseguiu realizar foi algo santíssimo e miraculoso. [...] Não se jogava mais em
público, e nas casas, apenas com temor; foram fechadas as tavernas, que eram os
lugares de reunião da juventude depravada e antro de todos os vícios; a sodomia
havia praticamente desaparecido; as mulheres, em grande parte, abandonaram as
vestes desonestas e lascivas....93
93
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.278. “Le opere fatte da lui circa l’osservanzia
de’ buoni costumi furono santissime e mirabile. [...]Non si giudicava più in publico, e nelle case
ancora com timore; stavano serrate le taverne che sogliono essere ricettaculo di tutta la gioventù
scorretta e di ogni vizio; la sodomia era spenta e mortificata assai; le donne, in gran parte lasciati
gli abiti disonesti i lascivi [...]”.
94
Segundo Diane O. Hughes, a analogia entre o corpo humano político implicava a idéia de
corrupção como um dado natural. Cf. HUGHES, Diane O. “Bodies, disease, and society”, p.110.
95
BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.177.
96
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, II, 1, p. 151. “Non essere vergogna alle città
preclare se dopo il corso di molti secoli cadevano finalmente in servitú, perché era fatale che tutte
le cose del mondo fussino sottoposte alla corruzione”.
97
GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logorgno, p.40. “Né incomincia questa corrutela oggi
nel mondo, ma è durata già molti e molti secoli, di che fanno fede li scritori antichi che tanto
detestano ed esclamano contro a’ vizi delle età loro”.
98
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos... II, Proêmio, p.178.
43
povos, e que eles sempre existiram”.100 Assim, se por um lado acreditava-se que as
ações particulares dos homens nunca se repetiam, padrões de estabilidade e
recorrência poderiam ser percebidos tanto pela experiência quanto pela leitura das
histórias antigas e modernas. Nesse sentido, a presunção de imutabilidade do
mundo celeste torna possível, mesmo levando-se em conta a instabilidade das
coisas humanas, atestar a tendência de conservação de certos aspectos
característicos do homem como tal.
Cabe notar que a idéia de natureza humana estável não implicava a
pressuposição de um mundo sempre igual a si mesmo, alheio a todo tipo de
oscilações. Muito pelo contrário: é próprio da natureza movimentar-se
ciclicamente. Do mesmo modo, pressupõe-se que os homens, não como
indivíduos singulares, mas como seres em geral, sejam possuidores de uma
substancialidade atestada na repetição de certos padrões ao longo dos tempos,
como formas de governo, costumes e constituições. Os seres humanos, diz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
99
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 1, p.47.
100
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 39, p. 121.
101
Idem. Ibid., I, 11, p.52.
102
Cf. GREENE, Thomas. “A flexibilidade do self na literatura do Renascimento”, p.50.
“’Homines non nascuntur, sed finguntur’, escreveu Erasmo – os homens não nascem, são
modelados –, uma fórmula que poderia ser tomada como o lema da revolução humanista”.
103
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 3, p.20.
44
104
Idem. Ibid., I, 42, p.131.
105
Idem. Ibid., I, 4, p.22.
106
Idem. Ibid., I, 17, p.71.
107
Idem. Ibid., I, 11, p.51.
108
Idem. Ibid., II, 2, p.189.
109
Idem. Ibid., II, 2, p.190.
45
Guerra, “com exercícios, fazem-se bons soldados; pois onde falha, a natureza é
suprida pela indústria, que nesse caso vale mais que a natureza” (grifo meu).110
Se não podem transformar a própria natureza, os homens podem controlá-la,
subjugá-la por algum tempo, até mesmo por séculos, como foi o caso dos
romanos, e isto se viabiliza pelo recurso às boas leis, à verdadeira religião, aos
costumes virtuosos, à força militar, e fundamentalmente pelo apego à verdadeira
glória e à honesta ambição.111 Tais elementos fizeram a grandeza dos romanos,
que souberam, por muito tempo, controlar a própria natureza.
A compreensão de Guicciardini acerca da natureza humana é bastante
similar àquela de Maquiavel em seus aspectos centrais, ainda que a categorização
dos seus caracteres constitutivos divirja em alguns momentos. Se Guicciardini,
diferentemente do secretário, considera os homens “por natureza inclinados ao
bem”112, isso não altera o entendimento geral de uma natureza humana fraca,
incapaz, por si só, de levar os homens ao cume da glória: “a verdade”, afirma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
é que a natureza humana é muito frágil, de modo que por qualquer mínima situação
se desvia do caminho correto [via diritta], e as coisas que promovem tais desvios,
isto é, a cupidez e as paixões, são tantas e possuem tanta força na débil natureza do
homem que, não fossem outros os remédios que não aqueles que os homens
aplicam a si mesmos, pouquíssimos não se corromperiam.113
110
MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da Guerra, I, p.22.
111
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 36. Sobre a questão da glória em Maquiavel conferir:
VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione política nel Rinascimento, pp. 418-441.
112
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.89. “Quanto alla malignità, io vi dico che per natura
tutti gli uomino sono inclinati al bene”.
113
Idem. Ibid., p.89. “Vero è che la natura umana è molto fragile, in modo che per leggiere
occasione diverte dalla via diritta, e le cose che la fanno divertite, cioè la cupidità e le passioni,
sono tante e in uno subietto debole come è la natura dello uomo hanno tanta forza, che se non fussi
altro rimedio che quello che ciascuno fussi per fare da sé medesimo, pochissimi sono che non si
corrompessino”.
46
114
GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logrogno, p.14. “...ed uma cosa che è naturale a tutti
e’ populi, quando e’ non sono bene timoneggiati, di usare insolentemente la sua liberta”.
115
Idem. Ibid., p.33. “Gli ordini detti ed introdotti di sopra son solo stabliscono la libertà e
constituiscono buono modo di governare lo stato, ma ancora proveggono in gran parte alla
remunerazione de’ cittadini che si portino ed operino bene”.
116
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, proemio.
117
Idem. Ibid., I, 27.
118
Idem. Ibid., I, 30.
119
Idem. Ibid.,I, 29.
120
Idem. Ibid., I, 42.
121
Idem. Ibid, I, 38. “gli uomini stimano più la roba che gli onori”.
122
Idem. Ibid., I, 25.
123
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXIII, p. 115.
124
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.65. “Mi pare bene, se io non mi inganno, che negli
uomini si truovi naturale el desiderio di dominare e di avere superiorità agli altri”.
125
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 218, página 147.
47
lhes mostra o perigo de perder. [...] normalmente nos homens a esperança tem
mais poder que o temor: por isso facilmente não temem o que deveriam temer, e
esperam o que não deveriam esperar” (grifos meus).127 Embora os homens sejam
inclinados ao bem, é preciso que as boas leis mantenham os homens na via
virtuosa. Diz Guicciardini na máxima 134 dos Ricordi:
Todos os homens são por natureza mais inclinados ao bem que ao mal, e desde que
outro aspecto não os conduza a direção contrária, não há ninguém que não faça
voluntariamente mais o bem que o mal; mas a natureza dos homens é tão frágil e
tão freqüentes no mundo as ocasiões que convidam ao mal que os homens deixam-
se facilmente se desviar do bem. E por isso os sábios legisladores encontraram os
prêmios e as penas: outra coisa não fizeram que manter os homens firmes na
inclinação natural deles (grifos meus).128
126
Idem. Ibid., máxima 61, p. 77.
127
Idem. Ibid., máxima 62, p.77.
128
Idem. Ibid., máxima 134, p.107.
129
Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem-ordenada: Francesco Guicciardini e a arte
do bom governo, pp. 131-161; “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método
prudencial de análise da política”. Op. cit., pp. 325-249.
48
2.2
O princípio da analogia
Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem inadvertidamente, que
quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já aconteceu;
porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram correspondência
[riscontro] nos tempos antigos.131
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
130
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Però ditemi che governo sarà questo, acciò
che, considerata la natura sua e la natura della città e di questo popolo, possiamo immaginarci che
effetti producerà”.
131
MACHIAVELLI, Niccolò. Discursos, III, 43, p. 445.
132
CICERO, M.T. De Inventione, I, 9.
133
Idem. Ibid., I, 46.
49
134
Idem. Ibid., I, 49.
135
A.D. Retórica a Herênio, IV, 59.
136
Também no De Oratore, tratado de maturidade, Cícero discute amplamente a questão da
analogia, sem recorrer, porém, à divisão apresentada no De Inventione.
137
MELANDRI, Enzo. La linea e il circolo, p.33. “Si tratta di un determinato processo di
pensiero, dotato di una sua specifica modlità, esemplificabile in una larghissima varietà di forme”.
138
Cf. Idem. Ibid., p.311.
139
Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Archeologia di un’archeologia”, p. xvii. Diz ele: “Come scrive
Melandri (792), è solo dal punto di vista della dicotomia che il principio analogico può apparire
come un tertium comparationis. Il terzo si attesta qui soltanto attraverso la deidentificazione e la
neutralizzazione dei primi due che diventano ora i poli di un campo di tensioni vettoriali. Il terzo è
questo campo, e nient’altro”.
50
140
Idem. Ibid., p. xvi. “L’analogia è il dispositivo che, in ogni antinomia e in ogni apori, esibisce
la loro inevitabilità logica e, insieme, rende possibile non tanto la loro composizione, quanto il loro
spostamento e la loro transformazione”.
141
Cf. MELANDRI, Enzo. Op. cit., p. 314. “Per il giudizio analogico è invece essenziale che le
qualità, proprietà o attributi siano intensivi, cioè suscettibili di gradazione secondo il criterio del
‘piú-o-meno’ [...]. In altre parole, ciò significa sostituire al criterio del vero-o-falso un criterio del
‘piú-o-meno-vero-o-piú-o-meno-falso”.
142
Embora afirme que Guicciardini tenha procurado em sua Storia d’Italia seguir os preceitos
ciceronianos e humanistas sobre a elaboração de um relato histórico, Felix Gilbert trata tais
preceitos como “aspectos formais” (p.274) da história, e não como condições estruturantes de um
gênero, no sentido de uma unidade ético-retórica. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini ,
p. 282.
51
É falacíssimo julgar pelos exemplos porque, se não são semelhantes em tudo e por
tudo, não servem, pois cada mínima variedade no caso pode ser causada de enorme
variação no efeito. Para sermos capazes de discernir estas variedades, quando não
são pequenas, devemos ter olhos bons e perspicazes (grifos meus).144
As coisas humanas são diversas e variáveis; por essa razão, é preciso que o
analista dos fenômenos políticos tenha “olhos bons e perspicazes”, de modo a
extrair da inquirição destes não um ensinamento geral e inequívoco, supostamente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
143
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36.
144
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 117, p.101.
52
acontece, neste caso, o mesmo que dizem os médicos dos tísicos: no princípio o mal
é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo
sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais fácil de diagnosticar, mas, com
o passar do tempo, não tendo sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais
fácil de diagnosticar e mais difícil de curar. O mesmo acontece nas coisas de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
os médicos prudentes e experientes em nada usam zelo mais exato que ao conhecer
a natureza do mal, ao perceber os traços, a qualidade e todos os acidentes, para
resolver-se, a partir destes fundamentos, qual deve ser o tratamento [reggimento] do
enfermo, de que sorte e em que tempo se deve dar a ele os remédios.
145
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
146
Idem. Ibid., XXV, p.120.
53
crer e esperar bons efeitos; sendo conduzido de outra forma e mal governado, em
que se pode crer senão na sua destruição? (grifos meus).147
147
GUICCIARDINI, Francesco. Del governo di Firenze dopo la restaurazione de’ Medici nel
1512, pp. 43-4. “prudenti ed esperti medici in nessuna cosa usare più esatta diligenzia che in
conoscere quale sai la natura del male, e capitulare um tratto le qualità e tutti li accidenti sua per
resolversi poi com questo fondamento quale abbi a essere el reggimento dello infermo [...].E come
dallo essere uno infermo bene curato da’ medici o no, si può pigliare potente argumento della
salute o morte sua, così interviene nel governo di uno stato, perché essendo retto prudentemente e
proporzionatamente, si può crederne altro che la ruína e destruzione sua?”
54
das relações entre os stati, sem prejuízo das tópicas da honestidade e da utilidade,
vistas como finalidades últimas de toda deliberação política.
148
Cabe ressaltar que o eclipse da prudência não implicou seu desaparecimento na modernidade.
Como demonstra Peter J. Diamond, a análise da racionalidade prática entre autores do iluminismo
escocês atribuía grande destaque à questão da prudência. Cf. DIAMOND, Peter J. “The
‘Enlightenment Project’ Revisited: Common Sense as Prudence in the Philosophy of Thomas
Reid”. Também as controvérsias públicas dos primórdios da República Norte-Americana
envolveram diferentes concepções da ação prudencial. Cf. HARIMAN, Robert. “Theory Without
Modernity”, p.22.
149
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio, p.1.651.
55
150
Cf. UYL, Douglas J. Den. The Virtue of Prudence, pp.1-11.
151
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, p.466. Sobre a questão da phronesis em
Gadamer, conferir: CÔRTES, Norma. “Descaminhos do método: notas sobre história e tradição
em Hans-Georg Gadamer”. In: Varia História, v. 22, nº 36, pp. 274-290.
152
Segundo Douglas J. Den Uyl, a prudência, entre os autores que, na segunda metade do século
XX, buscam sua reconsideração, “could only hold, at most, a place of prominence as a
motivational basis for virtue, but not as a virtue in its own right. That which will be called virtuous
within the modern perspective will be defined as such in terms of a corresponding duty”. UYL,
Douglas J. Den. Op. cit., p.16.
153
FINLEY, Moses I. O mundo de Ulisses, p.109.
56
phronesis à sophia. Por este critério, caberia aos governantes sábios e prudentes –
na pólis ideal da República, o filósofo-rei; na pólis orientada por esse ideal sem
consumá-lo plenamente, delineada por Platão no Político e nas Leis, os
governantes apoiados na legislação – tomar as decisões apropriadas acerca da
organização da pólis como um todo, sem perder de vista os princípios universais
do Bom e do Justo.157 A phronesis, nesse sentido, é categorizada pelo filósofo
ateniense como uma efetiva politiké epistéme, “ciência da política” – em sentido
completamente distinto do moderno, diga-se158 – responsável por zelar pela
condução apropriada dos assuntos citadinos. A conseqüência imediata de tal
assertiva é a exigência de que tanto magistrados como legisladores devam ser,
154
Idem. Ibid., p.110.
155
Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli
antichi, p.22.
156
Cf. PLATÃO. A República, IV, 428a-432e.
157
Cf. Idem. Ibid., IV, 428c-d. “Na cidade que há pouco fundamos existe, em alguns cidadãos,
uma ciência que não delibera sobre algo que nela ocorre, mas sobre a cidade como um todo,
procurando fazer ver como estabeleceria da melhor maneira as relações entre seus cidadãos e com
as outras cidades?”.
158
O sentido de ciência da política, politiké epistéme, próprio da filosofia política clássica é bem
explicitado por Leo Strauss na seguinte passagem, e em nada se aproxima da ciência política
moderna: “Political life requires various kinds of skills, and in particular that apparently highest
skill which enables a man to manage well the affair of his political community as a whole. That
skill – the art, the prudence, the practical wisdom, the specific understanding possessed by the
excellent statesman or politician – and not a ‘body of true propositions’ concerning political
matters which is transmitted by teacher to pupils, is what was originally meant by ‘political
57
ele pode realizar seus objetivos maiores, bens para si mesmo mas não
necessariamente o Bem Supremo metafisicamente fundado. Como afirma Francis
Wolff, para Aristóteles “tudo o que existe é explicável por aquilo em vista do que
ele existe”162; as ações humanas, deste modo, são compreendidas em função dos
bens almejados: “se há portanto um fim visado em tudo que fazemos”, diz o
estagirita na Ética a Nicômaco, “este fim é o bem atingível pela atividade, e se há
mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade”.163
Dado que as ações humanas direcionam-se a fins, e cada fim, segundo esta
lógica, deve ser entendido como um bem, não seria correto falar em Bem
universal, mas em “bens” próprios a cada homem e a cada circunstância,
science’”. Cf. STRAUSS, L. “On Classical Political Rationalism”. In: The rebirth of classical
political rationalism, p. 52.
159
A forma ideal de governo é instituída e examinada por Platão em A República; em O Político,
esta forma ideal é chamada de “verdadeiro governo”. Já as outras formas (monarquia, aristocracia,
democracia e suas formas degeneradas) “nem são legítimas nem verdadeiras, senão simples cópias
daquela, imitando-a no bom sentido as bem organizadas, e o contrário disso as que de nada
valem”. PLATÃO. O Político, 293e. Também no Górgias há a crítica da maneira com que a polis
fora conduzida até então. Homens de estado reputados como prudentes, phronimos, são
desqualificados por Sócrates, que afirma: “creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o
único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais presentemente a pratica”.
PLATÃO, Górgias, 521d.
160
Cf. HUTCHINSON, D.S., “Ethics”, p.201.
161
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, I, 6, 1096b.
162
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política, p. 43.
163
ARISTÓTELES. Op. cit., I, 1, 1096a.
58
tempo presente.166
164
Cf. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles, p.163. “Na realidade, há tantos sentidos
de bem quanto há de categorias do ser”.
165
ARISTÓTELES. Op. cit., 1097a.
166
BERTI, Enrico. Op. cit., p.116.
167
Cf. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.199. “De resto, à frente, Aristóteles precisa que a virtude é
responsável pela retidão do fim, o que deixaria supor que a escolha, responsável pela retidão dos
meios, enquanto tal não pode ser dita virtuosa ou viciosa”.
168
Cf. ARISTÓTELES. Op. cit., II, 1113a.
59
169
Idem. Ibid., II, 1102a.
170
Idem. Ibid., VI, 1139a.
171
Cf. BERTI, Enrico. Op. cit., p. 144.
172
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1139b.
173
Idem. Ibid., VI, 1140b.
174
Cf. HARIMAN, Robert. Op. cit., p. 5. “Prudence is the mode of reasoning about contingent
matters in order to select the best course of action.”.
175
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1140a.
176
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.109.
177
Idem. Ibid., p.147.
178
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1141a.
179
Idem. Ibid., VI, 1141a.
180
Idem.
60
possuir sabedoria prática [phronesis] quem não seja bom”.181 O conceito de bom,
neste caso, constitui um tipo de arché que orientará as escolhas racionais do
homem prudente, sem, contudo, determiná-las. Nesse sentido, Alasdair MacIntyre
defende que “a deliberação primeiramente busca um início, uma arché, tendo em
vista a construção de uma argumentação que conclui com um produto final que
Aristóteles chama de proáiresis”.182 Trata-se do assim chamado “silogismo
prático” aristotélico, no qual a primeira premissa afirma que “tal coisa deve ser
feita enquanto boa”; já na segunda premissa, “o agente afirma que as
circunstâncias são tais que oferecem a oportunidade e a ocasião para se fazer o
que deve ser feito”.183
“A phronesis”, diz Aristóteles, “é a disposição da alma relacionada com o
que é justo, nobilitante e bom para as pessoas”. No entanto, argumenta ele, “estas
são as coisas que o homem bom faz naturalmente, e não seremos mais capazes de
agir bem somente por conhecê-las, já que as várias formas de excelência moral
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
são disposições do caráter”.184 Logo, não basta saber o que é justo e nobilitante. É
preciso, acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e conduta, o
que só é possível pela ponderação de cada acidente, de cada lance fortuito a que
os homens estão sujeitos. Daí a afirmação de Aristóteles, na Política, de que “ao
falar em um homem bom queremos dizer que ele possui uma bondade única, a
bondade perfeita, mas é obviamente possível ser um bom cidadão sem possuir a
bondade característica de um homem bom”.185 Dito de outro modo: cada ação,
conquanto orientada por modelo, é única e visa ao seu próprio bem específico, não
se subsumindo, assim, a um padrão previamente estabelecido. Donde decorre que
a phronesis “é a única qualidade específica de um governante”186, aquela capaz de
distingui-lo dos seus governados pela ação no tempo oportuno (kairos) e pela
procura do “melhor possível, dadas as circunstâncias”.187 Assim, como defende
Aubenque, o prudente, o phronimos, “sendo o critério último, é seu próprio
181
Idem. Ibid., VI, 1143b.
182
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade?, p. 148.
183
Idem. Ibid., p. 155.
184
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1143b.
185
ARISTÓTELES. Política, II, 1277a.
186
Idem. Ibid., II, 1277b.
187
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.186.
61
critério”, de modo que, em Aristóteles, “não é mais o homem de bem que tem os
olhos fixos nas idéias, somos nós que fixamos os olhos no homem de bem”.188
Pierre Aubenque afirma que “os latinos não estavam pouco inspirados
quando traduziram por prudentia, que Cícero nos lembra que se trata de uma
contração de providentia, a phronesis de Aristóteles e da tradição popular”.189 Isto
porque, como sustenta o filósofo no De Officiis, uma das qualidades centrais do
homem sábio e prudente consiste na capacidade de “antever as coisas futuras e, no
momento crítico, resolver os problemas tomando a decisão oportuna”190, com base
no critério da justiça e do honestum – uma vez que, para o Cícero, “a prudência,
sem a justiça, é impotente para gerar fé”191, isto é, gerar fidúcia.
Tal capacidade de antevisão já havia sido ressaltada por ele no De
Inventione, tratado de juventude:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
A matéria honesta divide-se em reto e louvável. Reto é o que se faz com virtude e
dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e modéstia. Prudência é a
destreza que pode, com certo método, discernir o bem e o mal. Também se
denomina prudência o conhecimento de alguma arte, e ainda a memória de muitas
coisas e o trato de um grande número de negócios (grifos meus).194
188
Idem. Ibid., p.77.
189
Idem. Ibid., p.154.
190
CICERO, Marco Tulio. De Officiis, II, 33.
191
Idem. Ibid., II, 34.
192
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 160.
193
Idem. Ibid., II, 159.
194
AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153.
62
romano.195 Não que a relação entre retórica e prudência fosse negada pelo
estagirita; em Cícero, porém, ela é realçada e levada ao primeiro plano.196
Prudentes, no De Oratore, são os oradores sábios e eloqüentes, detentores de
ampla sabedoria prática e profundo conhecimento filosófico.197 Cícero vislumbra
na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a
desejável unidade entre filosofia e retórica.
Na abertura do livro II do diálogo De Oratore, Cícero afirma, em trecho
dirigido a seu irmão Quinto, que “a eloqüência alcançada por Crasso e Antônio
nunca poderia se realizar sem o conhecimento de todas as coisas que produziram a
prudência e a fluência oratória [dicendi copiam] manifesta nos dois”.198 É
importante frisar, aqui, a íntima relação entre conhecimento das coisas (cognitis
195
Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the Development of Prudential Practice at Rome”, p.39.
“…by elevating the term within the dialogue genre, providing examples of viri prudentes in
intellectual debate, associating prudentia intimately with rhetoric and politics, and doing this
within the context of writing literary dialogue as a form of political action, Cicero provided a
model of prudential practice”.
196
Cf. NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics: Republicanisms – ancient,
medieval, and modern”, p. 252. “Instead, Cicero states that the realm of so-called ‘practical
philosophy’ (philosophy touching on vita atque mores) falls more properly within the domain of
the orator than of the philosopher”.
197
Cape Jr. argumenta que, em Cícero, a prudência é removida de seu âmbito estritamente legal,
passado a constituir uma virtude essência do orador. Cf. Op. cit., Ibid., p.48.
198
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 2.
63
rebus omnibus) e prudência; tal conhecimento de nada valerá, porém, se não for
acompanhado de eloqüência.
Para além dos procedimentos calculativos da phronesis aristotélica, fica
evidente a relevância atribuída por Cícero às performances práticas do homem
prudente – logo, ao caráter de evento adquirido pela prudência, associado à
deliberação em geral e à vita negotiosa.199 Cícero define modelos de homens
prudentes a serem imitados, e argumenta que o aprendizado da prudência,
envolvendo o somatório de eloqüência e conhecimento prático, se dá pela
observação atenta e respeitosa dos grandes homens do presente e leitura sobre os
grandes homens do passado, na busca do aperfeiçoamento moral pleno.200 Daí a
afirmação de Crasso, no De Oratore: “o costume e o treinamento agudizam a
prudência e aceleram a fluência oratória”.201
Como nota Robert Cape Jr., tal sentido de prudência, ao mesmo tempo em
que alcança seu apogeu com Cícero, não sobrevive à sua morte. Em Sêneca e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
199
Cf. CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “The rich texture of prudential practice in De Oratore,
the Somnium Scipionis, and Brutus interwove the calculative procedures of prudence in rhetoric,
ethics, and politics into a living tapestry of practical performance. Wisdom was embedded in
political action; the great men of the state supported learning for its broader application to civic
life and reflected upon their own positions; political performance could be learned and taught, as
rhetoric was, by imitation”.
200
Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli
antichi, p.39. “Che gli antichi romani siano stati esempli di virtù non significa solo per Cicero che
essi abbiano costituito dei modelli a sé stessi, ma anche che la stessa virtù sia talmente radicata
nela loro cultura da non derivare né linguisticamente, né concettualmente, da odelli stranieri”.
201
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 90.
202
CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “Prudentia in later writers, particularly in Seneca and
Tacitus, became a means of accommodation to the current political regime”.
203
Cf. PIEPER, Josef. The Four Cardinal Virtues, p.6. “Prudence is the cause of the other virtues’
being virtues at all”.
64
204
Cf. Idem. Ibid., p.11. “Prudence, or rather perfected practical reason which has developed into
prudence, is distinct from ‘synderesis’ in that it applies to specific situations”.
205
Cf. Idem. Ibid., p.20. “The meaning of the virtue of prudence, however, is primarily this: that
not only the end of human action but also the means for its realization shall be in keeping with the
truth of real things”.
206
AQUINO, Tomás de. A prudência. A virtude da decisão certa, questão 47, artigo 4, p.8.
207
PIEPER, Josef. Op. cit., p.18. “But since prudence is after all an ‘intellectual virtue’, shall we
not also ascribe to its decisions ‘the certitude of truth’ (certitudo veritatis)? To this suggestions
Thomas Aquinas responds: ‘non potest certitudo prudentiae tanta esse quod omnino solicitudo
tollatur’ – the certitude of prudence cannot be so great as completely to remove all anxiety. A
profound statement, this! Man, then, when he comes to a decision, cannot ever be sufficiently
prescient nor can he wait until logic affords him absolute certainty”.
65
são inspirados por dois princípios, o intellectus ou ratio e o appetitus; por isso toda
virtude humana é condizente com um dos dois: em conseqüência, toda virtude, se é
própria do intelecto especulativo, é intellectualis, e se é própria do appetitus é
moralis: por isso a prudência é uma virtude intelectual e, ao mesmo tempo, é
acompanhada de outras virtudes morais.210
como o remédio mais efetivo contra a Fortuna, por guiar o homem nas ações
concretas fazendo-o esquecer dos bens vãos e valorizar a liberdade interior.212
No diálogo Vita Civile, composto em meados do século XV, o humanista
Matteo Palmieri fornece uma das análises mais aguças acerca da prudência:
De acordo com as virtudes cívicas, é ofício da Prudentia dirigir com razão todo o
nosso pensamento e toda a nossa ação, de acordo com fins honestos e dignos de
elogio, não querer nem fazer nenhuma coisa menos que honesta e prover cada uma
das nossas operações com razão e juízo perfeito.213
208
Idem. Ibid., p.22. “Prudence […] transforms knowledge of reality into realization of the good”.
209
Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltà letteraria del cinquecento,
p.47.
210
Idem. Ibid., p.48. “La virtù umana è per S. Tommaso un abito che consente all’uomo di bene
operare: tutti gli atti umani sono ispirati da due principim l’intellectus o ratio, e l’appetitus; perciò
ogni virtù umana è perfettiva di uno di essi: di conseguenza ogni virtù, se è perfettiva
dell’intelletto speculativo, è intellectualis, mentre, se è pefettiva dell’appetitus, è moralis: perciò la
prudenza è una virtù intellettuale e, nello stesso tempo, si acompagna alle virtù morali”.
211
Cf. Idem. Ibid., p.49.
212
Cf. Idem. Ibid., p.50.
213
PALMIERI, Matteo. Vita Civile, I, 187, p.52. “Secondo virtù civile è proprio officio della
Prudentia ogni nostro pensiero et ogni nostra acione con ragione dirizare in laudbile et honesto
fine, niuna cosa meno che honesta né volere né fare, et provedere a ciascuna nostra operatione con
ragione at perfecto giudicio”.
66
honesto.216 É “ofício próprio do homem prudente saber bem aconselhar”, diz ele;217
para tanto, é preciso que esteja apto a vislumbrar e distinguir a verdade, quando
diante dela.
Segundo Palmieri, o reconhecimento da verdade pode ser obtido de quatro
formas distintas: pelo intelecto, força natural a partir da qual se revelam os
princípios universais; pela ciência, conhecimento verdadeiro das coisas certas;
pela arte com razão, que diz respeito às coisas que podem ser e não ser, ou seja, o
domínio do provável, e finalmente pela sabedoria, consideração elevada das
coisas supremas. Na medida em que o domínio da prudência diz respeito às
“coisas humanas”218, a verdade almejada pelo prudente sempre está sujeita às
contingências, ao acaso e à indeterminação; logo, diz respeito ao domínio do
provável. Sendo assim, das quatro formas de conhecer a verdade elencadas acima,
aquela que, segundo Palmieri, mais se aplica à prudência é a arte com razão –
214
Idem. Ibid., II, 41, p.68. “con arbitrio quasi divino a ogni cosa possiano cautamente provedere”.
215
Idem. Ibid., I, 190, p.52. “Con queste virtù i buoni huomini prima governono loro et le loro
cose; di poi, venutti governatori delle republiche, acrescono, consigliono e difendono quelle”.
216
Idem. Ibid., II, 31, p.65. “sapere bene consigliare di tutte le cose che sieno laudabili et utili
all’universale governo del buono et iusto vivere”.
217
Idem. Ibid., II, 33, p.66. “Sendo proprio ufico dell’humomo prudente sapere bene consigliare, et
bene consigliare non puossi se prima l’animo non discerne il vero”.
218
Idem. Ibid., II, 39, p.67. “[...] gli elevati ingegni di coloro che [...] cercono et sono in
meditationi di beni celestiali et divini sono chiamati sapienti et non prudenti, però che la prudentia
solo sé exercita intorno alle cose humane”.
67
todo conselho deve versar sobre o verossímil, o possível porém incerto, jamais
sobre o necessário, que não é passível de deliberação.219 Assim, existe
aconselhamento acerca dos meios, não sobre os fins. “Numa república”, diz
Palmieri, para exemplificar a última afirmativa, “não se aconselha a paz, mas com
que meios se faz a paz”.220 Ainda, toda prática de aconselhamento deve ser “livre,
verdadeira e aberta”. Livre é o conselho que não enfraquece a verdade em
detrimento de uma comodidade qualquer, ou que não teme retaliações ou se deixa
levar por amizades221; conselho verdadeiro é aquele adequado à virtude e às suas
partes222; aberto é o conselho provido de boas sentenças, palavras apropriadas e
ordem, sem analogias impertinentes ou falar dúbio.223
Vê-se, assim, que para Matteo Palmieri toda deliberação é
fundamentalmente retórica (a “arte com razão”), e que a produção de bons efeitos
– alcance dos resultados visados pela argumentação, ou a edificação de um
consenso a partir de posições contrárias – dependerá fundamentalmente da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
219
Idem. Ibid., II, 42-45, p.68. “Ogni consiglio debbe essere di cose possibili [...]. Qualunche
consiglio è rimosso dalle cose di che siàno certi [...]”.
220
Idem. Ibid., II, 46, p.69. “Niuno consiglio è mai del fine, ma in che modo et con che mezi al
fine si possa venire [...]; nella republica non si consiglia dalla pace, ma con che mezi s’abbia la
pace”.
221
Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69. “La libertà prima si domanda da sé, poi di fuori; in sé, si vuole
guardare che particulare commodità non impedisca il vero, fuori di sé, che timore d’odio o
speranza d’amicitia o terrore di potentia non ti tiri al contrario di quello di che tu consigli”.
222
Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69.
223
Cf. Iem. Ibid., II, 50, p.69. “Aperto sarà quello consiglio che con buone sententie, parole
apropriate et chiare fia narrato col proprio suo ordine, sanza similitudini impertinenti o parlari
dubbii, perubati o torti”.
224
SANTORO, Mario. Op. Cit., p.54. “la nozione pontaniana di ‘prudenza’ assume un significato
nuovo, implica nuovi problemi e nuovi temi, riflette una nuova interpretazione dell’esistenza”.
68
225
Idem. Ibid., p.55. “Sostituita alla cognizione del reale prospettato come un repertorio di cose da
seguire o da fuggire (per cui la responsabilità delle scelte e dei resultati spetta tutta all’uomo) la
cognizione di una realtà estremamente complessa, fluida, mobile e variabile, che condiziona in
modo massiccio e pressante l’azione dell’uomo”.
226
Cf. Idem. Ibid., p.58.
227
Cf. Idem. Ibid., p.63.
69
2.4
Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens”.
228
Cf. Idem. Ibid., p.64. “[...]la concreta possibilità de trarre dalla storia una lezione politica
realistica e attuale”.
70
experiência bastante amplo que, todavia, se mostrava cada vez mais difícil de
mobilizar, por ser incapaz de fornecer, por si só e de forma evidente, as respostas
necessárias às indagações sobre os rumos imprevistos das “coisas do mundo”.230
Como nota Jean-Louis Fournel, pode-se perceber, a partir do exame dos
chamados “escritos de governo” maquiavelianos do período republicano (1494-
1512) – ofícios, legações, cartas da Chancelaria, etc. –, uma grande atenção ao
problema da passagem do tempo e da rapidez com que certas transformações
inesperadas se impunham, sem que seus vestígios pudessem ser rastreados
adequadamente.231 A reflexão sobre o presente adquire centralidade: este se torna
em grande medida incompreensível, segundo os critérios usuais defendidos e
praticados em assembléias e magistraturas da República, isto porque a experiência
e as histórias antigas deixam de constituir repositórios evidentes em si mesmos de
ações e condutas para o presente, e o futuro já não é compreendido como algo
plenamente mensurável.232 Não que o recurso à experiência e às histórias seja
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
229
Para uma discussão sobre a propriedade do emprego da categoria de “humanismo cívico”,
conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 13-31.
230
Emprego estas categorias em acordo com o sentido proposto por Reinhart Koselleck em
“Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas”. In: Futuro
Passado. Não se trata de uma contração do espaço de experiências atrelado a um alargamento do
horizonte de expectativas, e sim de um espaço de experiências quase hipertrofiado, porém incapaz
de lidar plenamente com o problema da aceleração temporal – questão decisiva para a
compreensão da idéia de prudência em Maquiavel e Guicciardini –, e um horizonte de expectativas
obscuro, incerto, sem um critério delimitador capaz de fornecer respostas especulativas à questão
do devir.
231
Cf. FOURNEL, Jean-Louis. “Temps de l’histoire et temps de l’ecriture dans les scritti di
governo de Machiavel”, p.80.
232
Cf. Idem. Ibid., pp. 80-81. “Enfin, le présent a acquis une radicalité qui le rend tout à la fois
impératif et incompréhensible, porteur d’un passé proche qui engage et d’un possible futur qui
impose une réaction circonstanciée (puisque l’enjeu de cette dernière n’est plus ni le salut
71
por pouca prudência, os honrava”233; “essa injúria, cometida com pouca prudência,
foi recebida com grande ódio pelo povo”234; “valendo-se, em detrimento alheio, do
poder a eles concedido pela coletividade [salute comune], fazem-se, ou por pouca
prudência ou por demasiada ambição, autores de novos tumultos”.235 Quando
Maquiavel e Guicciardini analisam as decisões e ações de príncipes, magistrados e
condottieri italianos, especialmente dos seus contemporâneos, raras são as vezes
em que exaltam condutas adequadas.
As dificuldades encontradas pelos escritores do século XVI florentino para
compreender os desenlaces da calamità italiana incidiram no reexame de certos
critérios tradicionais sobre o melhor ordenamento da República, suas leis,
costumes e hábitos militares – há, nesse sentido, um aguçamento e, por que não
dizer, radicalização da “crise das relações entre a linguagem e a realidade
histórica”, para empregar palavras de Cesare Vasoli que demarcam um dos
“aspectos fundamentais da cultura filosófica” do século XV.236 A validade de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
individuel ni la survie du monde chrétien mais la sauvegarde d’une république singulière, d’un
Etat particulier, bref de la patrie”.
233
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, I, 39, p.74.
234
Idem. Ibid., II, 7, p.86.
235
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1. “[...] e convertendo in detrimento altrui la
potestà conceduta loro per la salute comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione,
autori di nuove turbazioni”.
236
VASOLI, Cesare. “L’Humanisme Rhetorique em Italie au XVeme Siècle”, p.45. « ‘Crise’ des
relations entre la langage et la réalité historique contemporaire, qui constitue un des aspects
fondamentaux de la culture philosophique de cee temps ».
237
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
238
Idem.
72
239
Cf. HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, pp. 40.
240
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.68.
241
AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153.
242
Idem.
243
Idem. Ibid., III, 7, p.157.
244
CICERO, Marco Túlio. De Inventione, II, 169.
245
Idem. Ibid., II, 159.
73
Dito desta forma, o útil revela-se atrelado ao honesto – dado confirmado pela
crítica de Cícero a Aristóteles, o qual defendia ser o gênero deliberativo inclinado
somente à utilidade.248
Tendo em vista a centralidade da Retórica a Herênio e do De Inventione –
considerados, juntamente com os tratados ciceronianos De Oratore e De Officiis,
além da Institutio Oratoria de Quintiliano, os textos-chave da formação ético-
retórica renascentista, efetivos modelos de memorização, reflexão e imitação249 –
tanto para a formação ético-retórica dos florentinos em fins do século XV como
para a constituição do que Richard Lanham denominou “ideal retórico da vida”250,
o tratamento conferido ao gênero deliberativo nestes tratados deve ser levado em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
246
Idem. Ibid., II, 169.
247
Idem. Ibid., II, 168.
248
Idem. Ibid., II, 156.
249
Cf. WARD, John O. “Renaissance Commentators on Ciceronian Rhetoric”, p.128. “[...]
equally, we might expect the Ad Herennium and its commentaries to have remained the main
didactic text during the Renaissance”. Conferir também: MOSS, Ann. Les recueils de lieux
communs, pp. 97-120.
250
Cf. LANHAM, Richard. The Motives of Eloquence. Literary Rhetoric in the Renaissance, p.3.
251
Cf. PETTIT, Philip. Republicanism. A Theory of Freedom and Government, pp. 31-35;
SKINNER, Quentin. “The republican ideal of political liberty”, pp. 293-309.
74
Com efeito, não haverá quem prescreva o abandono da virtude, mas que se diga,
então, que o caso não é tal que permita pôr à prova uma excepcional virtude, ou
que a virtude reside, antes, em coisas opostas às que foram exibidas; também, se
assim pudermos, o que o adversário chamar justiça demonstraremos que é
covardia, fraqueza e torpe liberalidade; o que tiver denominado prudência, diremos
que é um saber inepto, verboso e molesto; o que disser que é modéstia, diremos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
252
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.88. “Roman authorities on the art of rhetoric amply discuss
the delicate issue of possible conflicts between honor and expediency, or between what is
praiseworthy and what is advantageous”.
253
Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p. 218.
254
AD. Retórica a Herênio, III, 6, p.157. Conferir também: CICERO, Marco Tulio. De Inventione,
II, 165.
255
Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, pp. 146-7.
256
Afirma Skinner, sobre O Príncipe: “É que o livro de Maquiavel é um texto em que a técnica da
redescrição retórica é não apenas utilizada de maneira sensacional, como é também
especificamente usada como um meio de depreciar e solapar as chamadas virtudes ‘principescas’
da clemência e da liberalidade”. Ibid., p.229.
257
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, p.75.
258
Idem. Ibid., XVII, p.79.
75
Eu disse e escrevi outras vezes que os Medici perderam o stato em 1527 por tê-lo
governado com liberdade em muitas coisas, e que duvidava que o povo perdesse a
liberdade se a tivessem praticado com mais força em muitas outras. A razão destas
duas conclusões é que o stato dos Medici, que era detestável para a cidade como
um todo, querendo manter-se, devia ter formado uma base de amigos partidários,
isto é, de homens que por um lado tirassem muitas vantagens do stato, por outro se
considerassem perdidos a ponto de não poderem continuar em Florença se os
259
BERLIN, Isaiah. “A originalidade de Maquiavel”, p.314.
76
porque seus fins são mais honestos que os dos grandes” (grifo meu).262 Ainda
assim, ele reflete sobre a melhor maneira de manter o controle sobre um
principado civil apoiado mais nos grandes que no povo: “mas quem se tornar
príncipe pelo favor dos grandes e contra o povo deverá, antes de qualquer outra
coisa, procurar conquistá-lo, o que também será fácil, se lhe der proteção”.263
Nesse sentido, pode-se dizer que a análise efetiva sempre tem em vista o
princípio da utilidade: ou o que é útil num governo stretto – que mesmo se
opondo muitas vezes ao honesto não deve perdê-lo de vista – ou o que é útil num
governo popular, quando então útil e honesto se complementam. Diante deste
quadro, a discussão sobre a possibilidade de retidão dos meios e fins primeiros e o
grau de adesão destes ao fim último revela-se bastante complexa. Torna-se
forçoso o estabelecimento de gradações e hierarquizações entre valores como o
honesto, o útil, o seguro, a conveniência, etc., que torne possível a ordenação das
situações específicas segundo critérios regulatórios gerais. O recurso ao De
Inventione pode trazer alguma luz à discussão de tais critérios. Diz Cícero:
260
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 21, p.61.
261
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, IX, p.43.
262
Idem. Ibid., p.44.
263
Idem. Ibid., p.45.
77
264
CICERO, Maro Tulio. De Inventione, II, 158.
265
Idem. Ibid., II, 173.
266
Sobre esta questão, afirma Maurizio Viroli: “This ordering can, however, be altered and, if
security is really at stake, the orator can put security before honour, particularly if honour,
momentarily lost, can later be recovered by courage and diligence”. VIROLI, Maurizio. Op. cit.,
p.88.
267
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 174.
268
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VIII, p.41.
78
Bernardo del Nero fala das “razões e usos dos estados”, associadas à preservação
de um domínio pela força.269 “Porém, quando falei em matar ou manter os pisanos
prisioneiros, não falei porventura como cristão, mas falei segundo as razões e
práticas dos estados [la ragioni e uso degli stati]”.270 O que está em jogo, nesta
passagem, é a segurança dos florentinos, e a necessidade de fortalecer os próprios
domínios – tratar-se-ia, neste caso, de uma “crueldade bem empregada”, para falar
como o secretário.
Algumas vezes, pode ocorrer de as circunstâncias particulares incidirem em
mudanças tão notáveis e inesperadas que a hierarquização das necessidades deixa,
momentaneamente, de ter validade. Tais mudanças dizem respeito às
contingências da realidade, e são tratadas por Cícero como um princípio de
indeterminação associado às pessoas e às coisas: “a affectio é uma mudança
repentina, espiritual ou física, devida a alguma causa, como a alegria, o desejo, o
temor, a pena, a enfermidade, a debilidade, e outras do mesmo gênero”.271 A
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
269
Cf. STOLLEI, M. “L’idée de la raisón d’etat de Friedrich Meinecke et la recherche actuelle”.
In: ZARKA, Y., Philosophie politique et raison d’etát, p.23, sustenta que “l’occurence de
l’expression chez Guicciardini (vers 1523) n’est pas une curiosite fortuite que l’on pourrait
bégliger”.
270
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.231. “Però quando io ho detto di ammazzare o tenere
prigioneri e’ pisani, non ho forse parlato cristianamente, ma ho parlato secondo la ragione e uso
degli stati”.
271
CÍCERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 36.
272
Idem. Ibid., II, 176.
79
273
Idem. Ibid., II, 169.
274
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Noi vogliamo disputare se la mutazione dello
stato è stata utile alla città o no; e secondo questo fonamento che io ho fatto, a volere bene
risolversene, bisogna considerare gli effetti di quello governo che è mutato e le condizione sue, e
da altro canto considerare quali saranno gli effetti e le condizioni di questo che voi avete
introdotto”.
275
Conferir, nesse sentido, a fala de Soderini no Dialogo: “la virtù è onorata [...], si debbe cercare
ogni altro vivere; perché nessuno governo può essere vituperoso e più pernizioso che quello ha
cerca di spegnere la virtù e impedisce a chi vi vive drenti, venire, io non dico a grandezza, ma a
grado alcuno di gloria, mediante la nobilità dello igegno e la generosità dello animo”. Idem. Ibid.,
p.63.
80
a outras virtudes pré-fixadas, as quais podem ou não ser úteis na condução dos
assuntos públicos. Nesse sentido, pode-se dizer que o conceito de prudência em
Maquiavel e Guicciardini aproxima-se em alguma medida da concepção
aristotélica da phronesis, sem que, contudo, se possa tomá-los como sinônimos.
De acordo com Pierre Aubenque, “a phronesis” em Aristóteles “designa, de
fato, a virtude da parte calculativa ou opinativa da alma”.277 Cabe a ela, com
correção de critérios, separar o bom do mau, definir o que é acertado em
determinada circunstância particular, orientar a deliberação, reconhecer a virtude e
fazer agir – a virtude, em Aristóteles, consiste em justo meio determinado pela
reta regra da deliberação prudente.278 Sendo assim, a phronesis, virtude intelectual,
embora não se confunda com as virtudes morais, está intimamente associada a
elas. Não há, portanto, uma tensão entre meios e fins; embora Aristóteles nunca
almeje “deduzir o particular do universal”279, ele atesta a validade dos princípios
normativos acerca das condutas humanas gerais a partir de critérios definidos pelo
próprio phronimos, o homem prudente.280 Nesse sentido, as idéias de justo meio,
moderação e eqüidade conformam critérios capazes de coordenar a correção dos
276
BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo, p.139.
277
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.23.
278
CF. Idem. Ibid., p.61. “enquanto a virtude moral é uma disposição (prática) que concerne à
escolha, a prudência é uma disposição prática que concerne à regra da escolha”.
279
Idem. Ibid., p.75.
81
meios e a adequação dos fins segundo a reta regra. Conquanto a “norma” seja
encontrada entre os valores caros aos homens, e não em Idéias transcendentes, e
muito embora ela dependa da deliberação de homens prudentes que são eles
próprios os critérios de si mesmos, há uma “universalidade de valor” a que
Aristóteles não renuncia.281 Tampouco o fazem Maquiavel e Guicciardini; há,
porém, uma problematização decisiva, que diz respeito não à definição dos
valores últimos, mas às possibilidades de realização destes.
Para o secretário, a antiqua virtus, o modelo republicano romano e seus
valores, constituem tal universalidade de valor.282 Para Guicciardini, esta se define
em referência ao período de predomínio das grandes famílias florentinas e dos
valores ciceronianos do bom governo – o modelo otimatti que teve em Maso
degli’Albizzi seu ponto máximo. Porém, a calamità instaurada a partir de 1494,
com a alegada corrupção dos costumes e a imprudência dos governantes, conferiu
a tais valores certa intangibilidade. A problematização da universalidade dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
280
Cf. Idem. Ibid., p.77.
281
Cf. Idem. Ibid., pp. 83-84.
282
Cf. GARVER, Eugene. “After Virtù”, p.75.
283
KOSELLECK, Reinhart. “História dos conceitos e história social”. In: Futuro Passado, p.109.
82
284
Idem. Ibid., p. 117. “A tensão dinâmica entre realidade e conceito aparece, portanto, tanto no
nível da língua-fonte como no da linguagem científica”.
285
KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 21. “At the same time, he alters the meaning of
prudence from the humanists’ practical reason, informed by moral considerations to the
calculating, potentially amoral faculty of judgment appropriate to the man of virtù”.
286
Virtudes presumidas: liberale, donatore, pietoso, fedele, feroce, animoso, umano, casto, intero,
facile, grave, religioso. Vícios presumidos: misero, rapace, crudele, fedifrago (traiçoeiro),
83
circunstância tal, dar moldes a ela para, então, pensar na decisão prudente a se
tomar, visando à produção de bons efeitos, em acordo com um bem definido em
função das situações particulares em jogo. Um exemplo desta prática está no
tratamento conferido à liberalidade em O Príncipe:
Logo, não podendo um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e
sem danos, de forma que seja divulgada, deverá, se for prudente, não se preocupar
effeminato, pusillanime, superbo, lascivo, astuto, duro, leggieri, incrédulo. Sobre esta questão,
afirma Najemy: “Machiavelli’s approach depends on the difference between the way the terms in
his list are normally or generally used and the way in which he, having carefully considered them,
can invert – not their meanings in conventional usage, for virtues remain virtues, and vices are still
vices – but their relationship to the problem of how princes ought to act in order to preserve their
power”. NAJEMY, John. Between Friends, p.192.
287
Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.65. “Ele endossa a idéia convencional de que virtù é o
nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um príncipe aliar-se com a Fortuna e
conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o sentido do termo de toda e qualquer conexão
necessária com as virtudes cardeais e principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica
que define um príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo
aquilo que for ditado pela necessidade – independente do fato de ser a ação eventualmente iníqua
ou virtuosa – para alcançar seus mais altos objetivos”.
288
Sobre esta questão, afirma Pierre Aubenque: “Enfim, é preciso notar que as duas fórmulas se
encontram no livro VI, onde a phronêsis é descrita tanto como capacidade de aplicar o universal ao
particular, como a capacidade de escolha judiciosa dos meios. [...] Não há, portanto, nenhuma
‘contradição’ entre as duas descrições da ação dadas por Aristóteles. Pois, uma vez reconhecido o
particular, se o universal a ele se aplica necessariamente, é preciso inicialmente reconhecer o
particular: o que se deduz silogisticamente é a propriedade do particular de ser desejável, mas não
a existência do particular. Não é difícil saber que é preciso ser corajoso, nem decidir que o que foi
reconhecido como corajoso deve ser cumprido”. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.227.
84
com a fama de miserável, porque com o tempo será considerado cada vez mais
liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe bastam.289
289
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, pp.75-6.
290
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.238.
291
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máximas 98 e 99.
85
292
GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “Acting according to
principles guarantees the rectitude of actions in an ethics of principles; successfully attaining some
result justifies the rectitude of actions in an ethics of consequences”.
293
MOULAKIS, Athanasious. Republican Realism in Renaissance Florence, p.4. “One could say
that the development of an autonomous craft of politics isbefore it is transmuted into an
instrumentum regni, an attempt at intellectual hygiene: it seeks to prevent the contamination of the
logic of politics by specious ideological mystifications”.
294
Cf. Idem. Ibid., p.22.
295
Nas décadas de 1920 e 1930, num momento de reordenamento das forças político-militares e
ascensão dos fascismos na Europa, diversos filósofos europeus se voltam para os escritos
maquiavelianos, especialmente O Príncipe. Benedetto Croce (1866-1952), em seus Elementi di
política (1925), defende a hipótese de que Maquiavel teria descoberto a autonomia da política em
relação à ética. É também de Croce a tese que atribui ao secretário a paternidade da idéia de razão
de estado – entendida como ciência independente da religião e moral cristã. Friedrich Meinecke
(1862-1954), com base no argumento croceano, publica em 1924 seu famoso estudo sobre A idéia
de razão de estado na idade moderna, responsável pela “canonização” do argumento da separação
entre política e moral em Maquiavel. Meinecke afirma, ainda, que Maquiavel teria fundado a
moderna concepção de Estado, hipótese seguida por Ernst Cassirer (1874-1945), para quem o
escritor florentino foi responsável pela instauração de uma ciência política de validade geral,
alicerçada numa concepção estática da história. Em sua refutação da hipótese da separação entre
ética e política, Isaiah Berlin atesta a existência, em Maquiavel, de “dois mundos, o da moralidade
pessoal e o da organização pública. Há dois códigos éticos, ambos supremos; não são suas regiões
‘autônomas’, uma da ‘ética’, outra da ‘política’, mas duas alternativas (para ele) exaustivas entre
dois sistemas conflitantes de valor”. Berlin defende que, para o secretário, “nem todos os valores
são compatíveis uns com os outros”, o que faria de Maquiavel, “a despeito de si mesmo”, “um dos
criadores do pluralismo”. Cf. BERLIN, Isaiah. Op. cit., pp. 327-8; 347-8.
296
Cf. GARVER, Eugene. “After Virtì”, p.75. “The rhetorical virtue of appropriateness and
decorum and the ethical virtue of doing what is right in the right circumstances are assimilated”.
86
percebe Eugene Garver, “nada assegura que uma ação prudencial seja correta; a
correção e o sucesso de uma ação prudencial estão sempre abertos ao debate e à
refutação pelo fracasso prático”.297 Precisamente por isso a prudência não se
configura apenas como um instrumento da razão calculativa; por estar associada à
qualidade elementar de toda deliberação, condição de possibilidade para a
produção de consensos argumentativos numa República e de bons conselhos no
âmbito de um principado ou regime stretto, ela é fundamentalmente retórica,
estando sujeita aos preceitos convencionais de reconhecimento que lhe atribuem
validade prática.
em O Príncipe,
deve sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos
que foram excelentes. Mesmo não alcançando sua virtù, deve pelo menos mostrar
algum indício dela e fazer como os arqueiros prudentes que, julgando muito
distantes os alvos que pretendem alcançar e conhecendo bem o grau de exatidão do
seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para
atingir tal altura com flecha, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar
ao objetivo (grifos meus).298
297
GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “[…] nothing assures that a
prudential action will be correct; the rightness and the success of a prudential action are always
open to debate and to refutation by practical failure”.
298
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23.
87
Sei que vão dizer que seria muito louvável que um príncipe, dentre todas as
qualidades acima, possuísse as consideradas boas. Não sendo isto porém
inteiramente possível, devido às próprias condições humanas que não o permitem,
necessita ser suficientemente prudente para evitar a infâmia daqueles vícios que lhe
tirariam o estado e guardar-se, na medida do possível, daqueles que lhe fariam
perdê-lo.299
a se querer ajuizar entre governo e governo, não devemos considerar tanto de que
espécie são, mas seus efeitos, e dizer que é o melhor governo ou menos daninho
[cattivo] aquele que produz melhores efeitos, ou menos daninhos.301
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
299
Idem. Ibid., XV, p.74.
300
Idem. Ibid., XXI, p.108.
301
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.33. “dico che a volere fare giudicio tra governo e
governo, non debbiamo considerare tanto di che speie siano, quanto gli effetti loro, e dire quello
essere migliore governo o manco cattivo, che fa migliori e manco cattivi effetti”.
302
Idem. Ibid., p.60.
88
ainda que assim pareça, de modo que, se puderem, não alterando a conduta habitual,
reservem algo para o caso de acontecer o contrário, pois as coisas muitas vezes têm
êxito fora da opinião comum e a nossa experiência mostra ser prudente agir
assim.307
303
GUICCIARDINI, Francesco. Oratio Consolatoria, p. 115.
304
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36.
305
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
306
Sobre a relação entre juízo e sentidos, conferir: ADVERSE, Helton. Aparência, retórica e juízo
na filosofia política de Maquiavel. Belo Horizonte, Tese de Doutorado, UFMG.
307
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 81, pp.86-87.
89
308
Cf. PERELMN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação. A Nova
Retórica, pp.45-50. “O acordo consigo mesmo é apenas um caso particular de acordo com os
outros”, p.46.
309
AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p.235.
310
Idem. Ibid., IV, 25, p.237.
90
“Sendo meu intento escrever algo útil para quem quer me ler”, diz
Maquiavel em famosíssima passagem de O Príncipe, “parece-me mais
conveniente procurar a verdade efetiva (ou efeitual) da coisa [verità effetualle
della cosa] do que uma imaginação sobre ela”.311 A verità effetualle remete à
noção de bom efeito.312 Como tal, ela revela um duplo caráter: diz respeito à ênfase
analítica nos resultados produzidos por certas ações (em detrimento de sua
adequação a preceitos tácitos, pretensamente universais) e também à performance
retórica consumada pelo discurso diante de uma platéia específica de leitores ou
ouvintes deliberando, publica ou intimamente, sobre casos concretos. De tal modo,
a veritá effetualle deve ser compreendida como aquela adequada ao
convencimento de um auditório de homens prudentes, por meio de argumentação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
311
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XV, p.73.
312
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.82.
313
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p.29.
314
Idem. Ibid., p.65. “Although the pratiche were not, during the republican period, a
constitutionally established institution, they served the important purpose of giving the policy-
making boards a means of testing the citizens’ reactions to some of their proposals and of allowing
the citizens to air their opinions”.
91
republicanas.
Na pratica de 23 de maio de 1505, Giovanbattista Ridolfi traça um retrato do
Marquês de Mântua, definindo-o como um homem dependente e servil; logo,
passível de condução e manipulação.316 Piero Guicciardini (pai de Francesco), o
orador seguinte, concorda com o juízo de Ridolfi: “circa lo homo, il medesimo
che Giovambaptista Ridolphi”.317
Na prática de 29 de Junho de 1505, Ridolfi dá novamente mostras de seu
bom juízo, ao mudar, com sua intervenção, os rumos do debate. Diante da questão
“um acordo com Siena e com Luca pode ajudar Florença a recuperar Pisa?”, os
primeiros oradores, Giovanvictorio Soderini, Matteo Nicolini e Piero Popoleschi
argumentam pela utilidade da retomada da Pisa, o que seria digno e honroso para
Florença; defendem, assim, a aliança com Luca e Siena. Fora a discordância de
Guglielmo de’ Pazi, que afirma não haver “nem honra nem utilidade” na amizade
com as referidas cidades318, os oradores subseqüentes reiteram os benefícios do
acordo. Até que, em seu discurso, Ridolfi argumenta que ninguém, até então,
315
Cf. BAUSI, Francesco. “Machiavelli nelle consulte e pratiche della Repubblica Fiorentina”.
316
Pratica, 23 de maio de 1505. Consulte e Pratiche, p.5.
317
Idem.
318
Pratica, 29 de Junho de 1505. “Sì che non ci vedendo né honore né utilità [...]. Delle gabelle che
domandono di più Luchesi, cioè di levare la legge fatta per loro conto, non li parendo honorevole
né con dignità o utile della città, se rimetteva alli altri”, p.22.
92
havia levado em conta a mudança dos tempos e a variação das coisas analisadas.319
Seria preciso, segundo ele, obter inicialmente o consenso dos espanhóis, os quais,
bem armados, poderiam a qualquer momento desfazer todo tipo de acordo
traçado: “é necessário entender-se bem com os espanhóis, os quais são vizinhos e
poderosíssimos”.320 Ridolfi prega a proximidade com os espanhóis, e em relação a
Siena e Luca defende o benefício do tempo, ou seja, o adiamento da decisão. Os
oradores seguintes tomam seu partido, chegando-se assim a um consenso sobre a
questão.
A prática de 29 de Junho de 1505 indica exatamente o percurso da produção
de um consenso, tornado possível pela intervenção de um homem reputado sábio e
prudente, atento às sutis variações da realidade que haviam passado despercebidas
aos demais oradores. Seria necessário realizar uma análise mais profunda das
pratiche, com o intuito de buscar ligações mais efetivas entre a forma de
argumentação própria a Maquiavel e Guicciardini e as discussões travadas nas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
319
Ibid., p.23. “[...] però li pareva fussi da havere altri respecti che non si hebbe alhora nel
consigliare, sendo mutati li tempi et variate le cose da quello essere”.
320
Idem. “Però iudicava più ad proposito et più necessario intendersi bene con li Spagnioli, quali
sono vicini et potentissimi, che con altri”.
321
Cf. FOURNEL, Jean-Louis. Op. cit., p.93. “L’insistence sur la celerità est ainsi une constant
des scritti di governo”.
93
As coisas desta sorte não têm regola certa ou curso determinado; antes, possuem
variações diárias, segundo o andamento do mundo, e as decisões que se tem que
tomar tem por fundamento quase sempre a conjuntura, e de um pequeno
movimento dependem com muita freqüência as coisas da maior importância, e dos
princípios pouco notados nascem muito efeitos gravíssimos. Por isso é necessário
que o governante seja muito prudente, dedicando atenção aos mínimos accidenti, e
322
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.20.
323
CICERO, Marco Túlio. De Inventione, I, 44.
324
Idem. “El dilema es un razonamiento en el que el contrario es refutado sea cual sea la
proposición que haya admitido. Por ejemplo: ‘si es um malvado, por qué lo tratas? Si es honesto,
por qué lo acusas?
En la enumeración, se mencionan diferentes hipótesis de manera tal que se refutan todas excepto
una cuya validez queda necesariamente demostrada. [...].
Una inferencia simples deriva de una deducción necessaria, como en este ejemplo: “si cuando
decís que cometí esos actos yo estaba en ultramar, hay que concluir que no solo no hice lo que
decís sio que ni siquiera pude hacerlo”.
94
pese bem tudo aquilo que pode acontecer, esforçando-se em evitar de início e
excluir, na medida do possível, o poder do acaso e da Fortuna.326
325
Idem. Ibid., I, 46.
326
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.96. “Perché le cose di questa sorte non hanno regola
certa né corso determinato, anzi hanno ogni dì variazione secondo gli andamenti del mondo, e le
deliberazioni che se ne hanno a fare, si hanno quasi sempre a fondare in su le conietture, e da uno
piccolo moto dependono el più delle volte importanze di grandissime cose, e da princìpi che a pena
paiano considerabili nascono spesso effetti ponderosissimi. Però è necessario che chi governa gli
stati sia bene prudente, vigili attentissimamente ogni minimo accidente, e pesato bene tutto quello
che ne possi succedere, si ingegni sopra tutto di ovviare a’ princìpi ed escludere quanto si può la
potestà del caso e della fortuna”.
327
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, III, 5, pp. 168-9.
328
PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: As excelências do
governador, p.52.
95
percebe Skinner), era a de “estabelecer dessa maneira o caráter da pessoa, com isso
colocando sua platéia num estado de espírito receptivo”.333
A experiência é tão decisiva que Guicciardini chega a considerá-la mais
importante que a prudência natural, inata: “que ninguém confie tanto na prudência
natural ao ponto de persuadir-se de que esta basta sem a experiência como
acessório, porque todos os que lidaram com negócios, ainda que prudentíssimos,
puderam verificar que com a experiência se chega a fazer muitas coisas, o que não
é possível apenas com o talento natural”.334
Ao mesmo tempo, o bom conhecimento das histórias antigas e modernas
revela-se decisivo, por proporcionar o acesso a exemplos abundantes,
fundamentais na retórica deliberativa. Lê-se na Retórica a Herênio que
329
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, p.129.
330
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p.3.
331
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.16. “[...] Bernardo del
Nero, cittadino già vecchissimo e molto savio”.
332
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium, narratio, epilogus. Studi sulla teoria retorica
greca e romana delle parti del discorso, p.3. “L’oratore cioè si serviva dell’esordio non solo per
anticipare l’argomento da trattare, ma anche per rendere benevolo l’ascoltatore [...]”.
333
SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p.177.
334
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 10, p.55.
96
Vê-se por essa passagem que o exemplo possui uma vasta aplicação, estando
articulado tanto à sustentação “lógica” de um argumento quanto à produção de um
efeito de presença, capaz de incidir com propriedade na produção de bons efeitos
retóricos.
A retórica da exemplaridade, assim como o princípio da analogia, orienta
tanto o uso das histórias antigas e modernas quanto a mobilização da
experiência.336 “Um homem prudente”, diz Maquiavel em O Príncipe, “deve
sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos que
foram excelentes”.337 Por esta razão “deve o príncipe ler as histórias e refletir sobre
as ações dos homens excelentes”.338 Aqueles que lêem com zelo as histórias
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
335
AD. Retórica a Herênio, IV, 62, p.297.
336
Cf. HAMPTON, Timothy. Writing From History, pp.1-30.
337
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23.
338
Idem. Ibid., XIV, p.71.
339
Cf. GUICCIARDINI, Dialogo, p.35. “E dove mi ingannassi io, potrete facilmente supplicare
voi, perché avendo voi letto moltssime istorie di varie nazioni antiche e moderne, sono certo le
avete anche considerate e fattovene uno abito, che con esso non vi sarà difficile el fare giudizio del
futuro”.
340
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, I, proêmio, pp. 6-7.
97
que, neste tipo de coisa, jamais alegaria a experiência se esta não viesse
acompanhada de razão”.343 Também a discrezione, discernimento, desempenha um
papel decisivo na articulação entre experiência e leitura das histórias, como a
disposição responsável pela percepção da “variedade das circunstâncias” da
realidade e por saber medi-las e considerá-las com propriedade. Trata-se de
atributo do tipo discreto, necessariamente prudente (em oposição ao homem
vulgar).344
341
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 110, página 97.
342
Cf. BARBUTO, Gennaro Maria. La politica dopo la tempesta. Ordine e crisi nel pensiero di
Francesco Guicciardini, p.36.
343
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo..., p.45. “Io sono uno di quegli che in queste cose non
allegherei mai la esperianza, se io non a vedessi accompagnata dalla ragione”.
98
2.5
Uma retórica prudencial
344
Cf. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho, p.94.
345
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.30.
346
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 6.
347
Idem. Ibid., I, 215.
348
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 214.
99
349
Idem. Ibid., I, 50-54.
350
Cf. CAVE, Terence. The cornucopian text. Problems of Writing in the French Renaissance,
p.6. “According to this theory (a commonplace since the ancient Greek debates on rhetoric), true
copia – as opposed to vitiosa abundantia or loquacitas – is assured where res inform or guarantee
verba”.
351
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 6.
352
Cf. ALBERTE, Antonio. “Recepción de los criterios retóricos ciceronianos en Quintiliano”, pp.
159-183.
353
Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhetorique en Italie au XVeme siecle », p.54.
354
Cf. Idem. Ibid., p.64.
355
Cf. Idem. Ibid., p.77.
356
Cf. GALAND-HALLYN, Perrine. “La rhetorique en Italie a la fin du Quattrocento (1475-
1500) », p.138.
357
Cf. CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I,1.
100
vasta experiência e ampla leitura das histórias, e também pelo bom juízo natural
(prudência natural) e discrição (discrezione), sem os quais mesmo os homens mais
experientes e eruditos não conseguirão ir além de análises superficiais das “coisas
do mundo”. A deliberação, entendida retoricamente, envolve a participação – ou
sua presunção, no caso da deliberação consigo mesmo –, de outros homens num
ragionamento, um debate onde terá lugar a argumentação in utramque partem,
(argumentos contrários), ou então a busca de consenso via cooperação, ou mesmo
as duas coisas – dos argumentos contrários à busca do consenso, como no De
Oratore.
“O ofício do orador”, lê-se na Retórica a Herênio, “é poder discorrer sobre
as coisas que o costume e as leis instituíram para o uso civil, mantendo o
assentimento dos ouvintes até onde for possível”.358 O orador sempre fala para
alguém, buscando a produção de efeitos particulares num auditório específico.
Sem a capacidade de convencimento, sem saber lidar com um auditório, de nada
valerá ao prudente a excelência calculativa do bom juízo, isto porque a deliberação
entre homens reputados prudentes é ela mesma condição primordial para o
reconhecimento da prudência de um sujeito particular. Sem a retórica, a prudência
é inefetiva, por não adquirir um caráter público. Analogamente, a retórica sem
358
AD. Retórica a Herênio, I, 2, p.55.
101
prudência é vazia, rasa, incapaz de ir ao cerne das questões. Assim, embora não se
confundam, retórica e prudência perfazem uma unidade necessária, sem a qual
ambas não se sustentam. A prudência não se resume a uma atividade intelectual:
ela possui uma dimensão performativa presente mesmo na deliberação consigo
mesmo.
Em Maquiavel e Guicciardini, as práticas letradas não podem ser
compreendidas apropriadamente sem que se leve em consideração a
indissociabilidade entre prudência e retórica.
Nos escritos de ambos, as referências à prudência implicam quase sempre as
noções de bom juízo – “confiando na vossa prudência, criarei coragem para dizer o
que penso” (Arte da Guerra)359 –, celeridade decisória e desembaraço na ação,
como na Storia d’Italia:
não se deve confundir – como poucos observadores das propriedades, dos nomes e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
da substância das coisas afirmam – a timidez com a prudência; nem se deve reputar
como sábios aqueles que, tomando por certo todos os perigos, agem como se todos
fossem acontecer. Não se pode chamar de sábio ou prudente àqueles que temem ao
futuro mais que se deve.360
359
MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da guerra, III, p.98.
360
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, III, 4, p.284. “e perciò non doversi confondere,
come molti poco consideratori della proprietà de’ nome e della sostanza delle cose affermano, la
timidità con la prudenza, né riputare savi coloro che, presupponendo per certi tutti i pericoli che
sono dubbi e però temendo di tutti, regolano, come se tutti avessino certamente a succedere, la loro
102
deliberazioni. Anzi non potersi in maniera alcuna chiamare prudenti o savi coloro che temono del
futuro piú che non si debbe”.
361
Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance concepts of the commonplaces, pp. 72-73. “After the
topoi have been sighted and their treasury of invention explored, there remains one further element
of the commonplace to be defined and that is its place as a ‘speech-within-a-speech’. This concept
of the locus communis as an oratio marks its full development in amplifying virtue or vice, in
adorning and embellishing the speech, and in moving the audience to virtuous action. The
commonplace, whether it be considered as an argument, a thesis, or an oration, is a rhetorical
device brought into the main speech from outside the cause being pleaded”.
362
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39.
363
HANSEN, João Adolfo. Op. cit., p.45.
103
De início, deve-se observar que o gênero deliberativo, que também pode ser
chamado de suasório, deve ser definido com utilidade e decoro. Contudo, quando
com utilidade dizemos, com decoro também queremos seja interpretado, eis que
nada útil pode ser dito que da mesma forma decoroso não seja (grifo meu).365
da mesma forma que na vida, também nos discursos o mais difícil é ver o que
convém. [...] O orador deve mirar o conveniente não só nas idéias, mas também nas
palavras. É que as pessoas em diferentes circunstâncias, de classes distintas, com
prestígio pessoal diferente, de diferentes idades, e os diferentes lugares, momentos e
ouvintes não devem ser tratados com o mesmo tipo de palavras ou idéias. Há que se
ter em conta todas as partes do discurso, da mesma forma que na vida, o que é
conveniente: e o conveniente depende do tema que se trate e das pessoas, tanto as
que falam como as que escutam (grifos meus).367
364
ERASMO, Desiderio. “Brevíssima e Muito Resumida Fórmula de Elaboração Epistolar”,
p.120.
365
Idem. Ibid., p.123.
366
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.38.
367
CICERO, Marco Tulio. Orator / El Orador, I, 71.
104
letradas como uma forma de prudência em si, e não apenas como produtos
materiais da prudência de determinados homens.372 “Assim como Salutati”, afirma
a autora, “Giovanni Pontano afirmou que o decoro literário ou retórico pode
educar o leitor na virtude da prudência, tanto porque provê exemplos temáticos de
ações prudentes do passado como porque as habilidades de julgamento e
discernimento envolvidas na composição e interpretação de uma obra literária são
similares àquelas envolvidas na reflexão prática sobre nossas ações”.373
Deste modo, pode-se dizer que eram definidos como prudentes não apenas
os homens honestos que participavam com dignidade da vida pública de suas
cidades, os conselheiros de príncipes e das magistraturas republicanas, mas
também os homens de letras – especialmente os que procuravam registrar, em seus
textos, o difícil percurso do cálculo prudencial e da conversação sobre as coisas do
368
Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.72.
369
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão, I, p.42.
370
Idem.
371
Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p.56.
372
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39.
373
Idem. Ibid., p.40. “Like Salutati, Giovanni Pontano claimed that literary or rhetorical decorum
can educate the reader in the virtue of prudence, both because it can provide thematic examples of
prudent actions in the past and because the skills of judgment and discrimination involved in the
composition and interpretation of a literary work are similar to those involved in practical
reasoning about our actions”.
105
não é outra coisa senão uma forma de falar que permanece depois de se ter falado, e
quase uma imagem, ou antes, a vida das palavras [...]. Mas certamente aquilo que
convém ao escrever, convém igualmente ao falar; e é belíssimo o falar que é similar
aos belos escritos.374
374
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. cit., I, p.47.
3.
Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardini
como homens de letras.
3.1
Exílio, ócio e melancolia
1
Cf. VITI, Paolo. Leonardo Bruni e Firenze. Studi sulle lettere pubbliche e private, p.342.
2
Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VI, 1139a – 1140a.
107
3
Cf. CÍCERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 224.
4
Idem. Ibid., I, 222.
5
Idem. Ibid., II, 22.
6
Idem. Ibid., II, 24.
7
SENECA. De Otio. In: Moral Essays, 28, 1.
108
de um estóico. “O sumo bem”, diz Sêneca, “é uma alma que despreza os azares da
sorte e se compraz na virtude”.16
Trata-se, como observa Pierre Hadot, de uma efetiva escolha de vida,
associada não só ao estoicismo como também às mais diversas tendências
filosóficas do período helênico, do fim da República e início da época imperial17:
o amor à sabedoria e à filosofia, condições para que o homem sinta-se em casa
mesmo no exílio. Não existe propriamente, tanto em Cícero quanto em Sêneca,
uma oposição efetiva entre ócio e negócio: embora sejam percebidos como
domínios diferentes da vida, eles devem se completar na busca pelo equilíbrio da
alma e pelo aperfeiçoamento moral. Somente aos optimos viros é facultado o otio
onorato e verdadeiro, atributo do homem livre e condição de cultivo das belas
virtudes.
8
Cf. Idem. Ibid., 30, 3.
9
Cf. Idem. Ibid., 30, 4.
10
Cf. Idem. Ibid., 31,2.
11
Sobre os exílios de Sêneca, conferir: VEYNE, Paul. Seneca, the Life of a Stoic, pp. 1-30.
12
SENECA. Consolação a Hélvia. In: Cartas consolatórias, VI, 1.
13
Idem. Ibid., VIII, 2.
14
Idem. Ibid., VIII, 5.
15
SENECA. Carta XIII. In: As relações humanas, p. 97.
16
SENECA. De vita beata, IV, 2.
17
Cf. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga, p.154.
109
18
Cf. TATEO, Francesco. L’ozio segreto di Petrarca, p.19. Diz o autor: “Ciò dipende dal senso
polemico dell’ozio petrarchesco, che è il luogo della riflessione e quindi anche l’occasione di
meditare sulla propria situazione di uomo costretto ad aspirare a quel luogo come unica condizione
di sopravvivenza”.
19
Cf. HERSANT. Yves. “L’acédie et ses enfants”. In: CLAIRE, Jean. Mélancolie. Génie et folie
en Occident, p.54.
20
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Stanzas. Word and Phantasm in Western Culture, p.5.
21
Cf. PETRARCA, Francesco. On Religious Leisure / De Otio Religioso, I, 7, p.65. “The way is
sweet; the end blessed. Taking time to see, to ménage leisure, to realize, and to climb, not only
with minimal effort to eternal rest, a goal which itself is highly desirable, but also through worldly
joy to eternal blessings, will grant you the reward of immense grace”.
22
TATEO, Francesco. op cit., p.113.
110
23
Citado por: TATEO, Francesco. op. cit., pp.118-9.
24
Cf. VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione politica nel Rinascimento. Da Petrarca a
Machiavelli, p.117.
25
Cf. TATEO, Francesco. op. cit., p.100.
26
Idem. Ibid., p.104.
27
Cf. Idem. Ibid., p.112. “perciò l’ozio non può confondersi con l’inerzia perché risiede
nell’esercizio della più alta virtù, che non è azione in senso politico, né ‘opera’ in senso religioso,
ma contemplazione di Dio e conoscenza delle cose”.
28
Citado em: TATEO, Francesco. op. cit., p.111.
29
Cf. ALCIDES, Sérgio. “Sob o signo da iconologia: uma exploração do livro Saturno e a
melancolia, de R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl”, p.165. “A suave melancolia descrita por
Panofsky a propósito de ‘S. Jerônimo em seu estúdio” é um ideal estranho a Saturno e a
melancolia. O prazeroso isolamento do estudioso ‘com seus pensamentos, seus animais, seu Deus’
nada tem a ver com o ideal humanista que apontava para a contínua superação dos limites
impostos pela natureza do entendimento humano. A diferença entre ‘S.Paulo’ e Melancolia I é de
grau, segundo a escala de Agrippa; mas o que distingue o ‘S. Jerônimo’ de Melancolia I não é o
temperamento nem o grau, e sim o próprio espírito: na linguagem de Klibansky, Panofsky e Saxl, é
111
a diferença entre o erudito medieval que pretendia ‘unir-se a Deus’ e o gênio humanista que
aspirava a ‘competir com Deus’”.
30
SALUTATI, Coluccio. Invettiva contro Antonio Loschi da Vicenza, p.37. “Ma poiché in questo
mondo corruttibile tanta grandeza è senza dubbio impossibile [...]”.
31
Cf. VAROTTI, Carlo. op.cit., p.143. “Da una parte Coluccio condanna dunque con argomenti
tipici della tradizione cristiana l’aspirazione alla gloria, dall’altra pone il desiderio di gloria degli
antichi romani tra i fattori ineliminabili della loro natura, al punto che esso fu tra le componento
fondamentali dei loro moris e consuetudines”.
32
Cf. GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.85. “Salutati, though he had admitted, in keeping
with medieval tradition that contemplation is to be rated more highly than action, had projected the
beatific vision into heaven. On earth, he had insisted, man is destined for action”.
112
33
Sobre a relação entre vida contemplativa e vida ativa entre os humanistas do Quattrocento,
conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 83-130.
34
Cf. HANKINS, James. “Rhetoric, history and ideology: the civic panegyrics of Leonardo
Bruni”. In: HANKINS, James. (org.). Renaissance Civic Humanism, p.153.
35
Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp.342-3.
36
BRUNI, Leonardo. Dialogo a Pier Paolo Vergerio, p. 49. “Ed è assurdo parlare seco stessi e
molte questioni esaminare tra quattro pareti e in solitudine, e pois nelle radunanze degli upmini
tacere come se nulla si sappia”.
113
37
Cf. VITI, Paolo. op. cit., p.347. “Ma nel suo epistolario privato, a prima vista – ed, anzi, ad una
diffusa verifica di queste lettere – ci troviamo di fronti ad un Bruni che fra le due ‘vite’, quella
‘negotiosa’ e quella ‘otiosa’, per quanto in teoria, come si è visto, amedue tanto, e parimenti,
celebrate, ci appare esclusivamente proteso a condannare quei fastidiosi affari politici ad
amministrativi che lo tormentano e lo tengono lontano dal più affascinate mondo della solitaria
riflessione culturale e dell’operosità letteraria, ed a rimpiangere ed esaltare questo mondo col suo
sereno raccoglimento negli studi”.
38
Sobre as cartas familiares de Cícero, conferir: MARCHETTI, Sandra Citroni. Amicizia e potere
nelle lettere di Cicerone e nelle elegie ovidiane dall’esilio, pp. 3-99.
39
Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp. 353-4. “...molte sono le lettere in cui il Bruni, in occasioni diverse e
con vari personaggi, di fronte alla dicotomia ‘vita otiosa’ – ‘vita negotiosa’ mostra apertamente la
114
sua preferenza per la prima, e quindi una profonda attrattiva per un’esistenza appartata, tutta dedita
agli studi...”.
40
Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANSKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp.
113-24.
41
Ibid., p. 254.
42
FICINO, Marsílio. De vita libri tres, I, V, p.117.
115
gênio não era uma mera reminiscência cultural, mas uma realidade experimentada
muito antes de sua formulação humana e literária”.46 Trata-se da tentativa de se
emancipar dos limites ordinários da vida, sem que isto todavia fosse percebido
como algo plenamente possível47; mesmo homens como Leon Battista Alberti
aturdiam-se com a incapacidade de dominar completamente os resultados de suas
ações, como é possível perceber no diálogo Fatum et Fortuna. A nostalgia de um
ócio idealizado, como nas cartas familiares de Bruni, pode ser lida nessa ótica:
tratam-se, aqui, de diversas formas de conceber um hiato entre o desejo de possuir
pleno controle das próprias ações e a constatação da impossibilidade da
autonomia, questão que, conforme discutirei adiante, será decisiva em Maquiavel
e Guicciardini. De fato, como nota Giorgio Agamben ao analisar a questão da
perda em Ficino, próprio da melancolia é fazer com que um objeto inapreensível –
como o ócio de Bruni – seja dado a ler como uma perda imaginária.48
43
Idem.
44
Ibid., p. 119.
45
Idem.
46
Cf. PANOFSKY; SAXL; KLIBANSKY, op. cit., p.246.
47
Cf. Ibid., p.249. “Así, de la situación intelectual del humanismo – es decir, de la conciencia de
libertad experimentada como una sensación de tragedia – surgió la idea de un genio que
reclamaba, cada vez con mayor apremio, emanciparse en su vida y obras de los criterios de la
moralidad ‘normal’ y de las reglas comunes del arte”.
48
Cf. AGAMBEN, Giorgio. op. cit, p.25. “The imaginary loss that so obsessively occupies the
melancholic tendency has no real object, because its funeral strategy is directed to the impossible
capture of the phantasm”.
116
associação entre melancolia e perda, pensada por Freud séculos depois em termos
bastante distintos, se faz presente em muitos dos humanistas, e não
necessariamente no sentido da perda amorosa – tanto o otio onorato de Cícero e
Sêneca quanto o otium modestum et suave de Petrarca são concebidos, no
Quattrocento e no Cinquecento, como objetos inalcançáveis.
Já nos primeiros decênios do século XVI, período da chamada calamità
italiana, superpõem-se à recorrente nostalgia de um equilíbrio inalcançável entre
ócio e negócio análises sobre a destruição da autonomia política e
recrudescimento dos poderes do acaso, da contingência e do inesperado,
associados à Fortuna. A perda, para alguns, deixa de ser intuída como nostalgia
de um desejo “metafísico” de unidade plena com o divino e passa a ser encarada
como embate contínuo contra forças imprevisíveis da realidade.
49
Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.111.
50
Cf. Idem. Ibid., p.116. “Knowledge, then, can never be the acquisition of ‘new’ insights; it can
only be the remembering of what was once known but has been forgotten”.
51
Idem. Ibid., p.119.
52
Cf. Idem. Ibid., p. 127. “Not only is the state of lack associated with melancholia, an extreme
state brought on by love, but – again as in the case of Socrates – those who are ‘melancholy by
117
de partida para uma possível associação entre sua visão negativa do ócio, a
melancolia e a experiência do exílio. Nas margens do autógrafo do opúsculo Dello
ordinare lo stato di Firenze alle armi, o ex-secretário redige três palavras que
ficarão associadas por séculos à sua desventura: Post res perditas.53 De acordo
com Roberto Ridolfi, “amargo era o vexame, pungente a injustiça, depois de ter
servido à República com tamanho zelo e fidelidade, angustiada a visão do futuro,
insuportáveis os primeiros tempos de ócio para aquele homem de muitas
tarefas”.54 Se para Petrarca, Bruni e Ficino, o ócio, em suas diversas acepções,
representava a condição de possibilidade para a busca infinda de algo
simultaneamente perdido e inalcançável, em Maquiavel ele se revela um obstáculo
intransponível à verdadeira glória, aquela obtida no serviço da República. Trata-se
de uma perda irreparável, da impossibilidade de perseguir os objetivos
considerados por ele como dignos e honrosos.
A questão da vita otiosa, pouco tematizada pelo secretário nos opúsculos,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
cartas e legações oficiais anteriores a 1512, adquire algum destaque nos escritos
posteriores ao exílio compulsório. Nos Discorsi, os ociosos são comparados aos
ímpios, covardes, inúteis, aos destruidores de religiões, inimigos das virtudes, à
corrupção de toda espécie, enfim.55 Ócio torna-se sinônimo de indolência,
efeminação, recusa das agruras da atividade militar, ambição desmedida por
riquezas e luxos e afastamento da verdadeira glória; ociosos são, por exemplo, os
gentiluomini pouco afeitos ao trabalho árduo e à virtù, indivíduos perigosos em
qualquer República por sua falta de apego ao bem comum.56 Ócio ambicioso,
associado por Maquiavel ao homem corrompido de seu tempo; juntamente com os
parcos conhecimento das histórias antigas e com a fraqueza oriunda dos valores
cristãos, o ócio forma a tríade decisiva que leva à corrupção dos costumes e
nature’ (and not just as a contingent or accidental effect of love) are said to be more prone to
falling in love”.
53
Cf. RODOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p.157.
54
Idem.
55
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44. “São, ao contrário, infames e detestáveis os
homens que destroem religiões, dissipam reinos e repúblicas, inimigos das virtù, das letras e de
qualquer outra arte que confira utilidade e honra à espécie humana; tais são os ímpios, os
violentos, os ignorantes, os incapazes, os ociosos, os covardes”. (grifo meu).
56
Idem. Ibid., I, 55, p.161. “E, para esclarecer o que é chamado de gentil-homem, digo que gentis-
homens são chamados os que vivem ociosos das rendas de suas grandes posses, sem cuidado
algum com o cultivo ou com qualquer outro trabalho necessário à subsistência. Esses são
perniciosos em todas as repúblicas e em todas as províncias, porém mais perniciosos são aqueles
que, além de terem as fortunas de que falamos, comandam em castelos e têm súditos que lhes
obedecem” (grifos meus).
118
57
Idem. Ibid., I, proêmio, p.6. “E creio que isto provém não tanto da fraqueza à qual a atual
religião conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio fez a muitas regiões e cidades
cristãs [...]” (grifo meu).
58
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XIV, p.72.
119
59
Cf. GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-fashioning. From More to Shakespeare, p.13.
120
3.2
Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a Consolatoria
de Guicciardini.
60
Como percebe Maria Luisa Doglio, as cartas privadas eram, para Maquiavel, não apenas
instrumentos de comunicação, mas também lugares específicos para construir uma imagem-de-si.
Cf. DOGLIO, Maria Luisa. “Varietà e scrittura epistolare: le lettere del Machiavelli”, p. 336.
121
das diferenças de extração familiar: não se poderia imaginar que Vettori, filho de
uma das mais importantes famílias florentina, e Maquiavel, membro de um clã
respeitável, porém apartado das grandes glórias, pudessem estabelecer entre si
relações absolutamente livre de protocolos, em acordo com a noção moderna de
intimidade.62 As cartas trocadas por ambos refratam a todo o momento esta
hierarquia, como se pode atestar pelo emprego específico de certos preceitos
concernentes ao tratamento com superiores, iguais ou inferiores, conforme
definidos em tratados destinados ao gênero epistolar.
Embora a chamada “nova epistolografia” do humanismo italiano tenha
flexibilizado as preceptivas medievais da ars dictaminis, recuperando o
entendimento ciceroniano da carta familiar como amicorum mutuus sermo,
diálogo entre amigos ausentes63, a atinência a ditames e modelos das autoridades
antigas e humanistas não fora de modo algum abandonado.64 Como afirma
Erasmo, em tratado sobre epistolografia datado do início do século XVI, escrever
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
uma carta equivalia a “sussurrar num canto com um amigo” sobre matérias as
mais diversas.65 O remetente deveria, inclusive, construir cuidadosamente seu
despojamento: “com efeito”, diz Erasmo, “o estilo epistolar deve ser simples e
mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido estudado”, de modo a
parecer “não trabalhado e quase improvisado e sem preparação”.66 Esta sentença
erasmiana pode ser tomada pelo analista contemporâneo das correspondências
renascentistas como um “sinal amarelo” em relação às possíveis familiaridades
entre o gênero epistolar quinhentista e a correspondência privada moderna:
enformando o aparente descuido de um diálogo entre amigos distantes, existe um
conjunto de silêncios eloqüentes, marcas da diligência negligente trabalhada com
61
Sobre esta missão, conferir: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 119-29.
62
Como nota Maurizio Viroli, Maquiavel costumava se dizer pobre, o que não significa dizer que
sua família não tivesse alguns bens e reputação estabelecida em Florença. O pai de Maquiavel,
Bernardo, ainda que fosse um advogado de poucos recursos, era respeitado nos círculos eruditos
da cidade de Florença, tendo sido representado inclusive como um dos personagens de um diálogo
do humanista e chanceler da República Bartolomeo della Scala. Nesse sentido, diz o autor: “Ao
definir-se como pobre, Maquiavel se colocava entre os que não pertenciam a grandes famílias e
estavam, portanto, excluídos de serem eleitos aos cargos públicos ou de alcançar fortuna nos
negócios”. Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau. História de Maquiavel, p.20.
63
Cf. FUMAROLI, Marc. “Genèse de l’épistolographie classique”, p.887.
64
Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros, p.24.
65
Cf. Idem. Ibid., p.25.
66
ERASMO, Desiderio. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar, p.112.
122
afinco, as quais não devem ser confundidas, como Erasmo mesmo advertia, com a
simples espontaneidade.67
Como afirma Richard Trexler, não havia “sinceridade sem forma e forma
sem sinceridade”, uma vez que as convenções marcavam a condição de
possibilidade da conversa civil e urbana entre homens públicos.68 Assim, muitos
dentre os humanistas dedicados à discussão do gênero epistolar, como Aeneas
Sylvius, Francesco Negri, Poliziano, Pietro Aretino, Erasmo e Justo Lípsio,
conquanto destacassem a diversidade de estilos e matérias no gênero epistolar – a
“infinidade das formas possíveis”, segundo definição de Erasmo69 –, prescreviam
um conjunto de regras visando marcadamente à afirmação do decoro letrado e
prudência do remetente. Justo Lípsio, em seu A arte de escrever cartas (1590),
resume a cinco os preceitos do sermo humilis epistolar quanto ao “modo de estilo
e de elocução adequado à carta”. Se, “quanto à matéria, é totalmente um assunto
de moderada prudência”70, no que diz respeito ao estilo o remetente deve
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
67
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.890. “Elle est d’autant plus souhaitable pour Erasme qu’il doit
combattre un autre adversaire que les Artes dictaminis, et leur légalisme excessif ; c’est un certain
spontanéisme qui abandonnerait l’art de la lettre privée, genre sans valeur littéraire, à une
négligence sans diligence”.
68
TREXLER, Richard. Public life in Renaissance Florence, p.132.
69
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.889.
70
LÍPSIO, Justo. A arte de escrever cartas, p.141.
71
Idem. Ibid., p.142.
72
Idem.
123
Quanto à pessoa, esta tem enfoque dúplice: com respeito a ti mesmo e a quem tu
escreves. Já o assunto, em qualquer caso, é simples: qualquer coisa deve concordar
com o conteúdo, e as vestes da sentença e frases devem ser adequadas às estruturas
do assunto.74
O decoro envolve sempre uma relação entre duas partes, pautada por
critérios de conveniência; assim, como afirma Marc Fumaroli, próprio do decoro é
que a posição social e a posição institucional determinem inteiramente o ritual de
trocas epistolares, marcando tanto o estilo quanto a matéria do discurso.75
Atualizam-se dessa maneira na correspondência diversos “níveis hierárquicos de
conveniência discursiva e extra-discursiva”, pautados pela harmonia do discurso e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
73
Idem. Ibid., p.143.
74
Idem. Ibid., pp.146-7.
75
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., pp.887-8. “Il s’agissait d’un decorum officiel, mettant en
rapport deux personnages dont le range social, la position institutionelle, determinait entièrement
le rituel de l’échange”.
76
Cf. HANSEN, João Adolfo. “Introdução. Cartas de Antonio Vieira (1626-1697)”, p.37.
77
NAJEMY, John. Between Friends, p.23.
124
de sua inventio epistolar. Empregada na escolha do que falar e de como falar, ela
ajuda a marcar uma posição verossímil sobre sua nova realidade, a vita otiosa
desonrada, sendo construída retoricamente como condição associada à perda da
vida pública e dependência em relação a outros homens e à Fortuna. Ela se
associa, portanto, à constatação de um hiato entre o desejo de autonomia e a
consciência da impossibilidade de controlar o próprio destino, em acordo com os
desdobramentos pensados por Ficino acerca do desejo por uma unidade
inalcançável e a perda decorrente de tal incompletude – no caso de Maquiavel,
não apenas a perda do cargo, mas a constatação do caráter inexeqüível de seu
ideal de República. Trata-se, aqui, não da identificação e diagnóstico de uma
compleição e temperamento correspondentes ao homem Maquiavel, mas da
análise da maneira particular com que este se vale de imagens amplamente
difundidas associadas à melancolia, como a incompletude, o abatimento, as
variações de humores, o sofrimento amoroso, etc.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
78
Cf. SCHIESARI, Juliana. op. cit., p. 236.
79
Cf. LYONS, Bridget Gellert. Voices of Melancholy, p.11.
80
Cf. CICERO, Marco Tulio. Da Amizade, IV, 15. “Entretanto, quando me vem à mente a
amizade que nos unia, tal é a minha satisfação que julgo ter sido venturoso, uma vez que convivi
com Cipião. Com ele dividi preocupações políticas e da vida privada; com ele atravessei tempos
125
que não implica dizer que eles não se tratassem em boa parte do tempo como
iguais, especialmente em duas situações: em assuntos de amor e luxúria, onde a
discussão era caracterizada pela agudeza das sentenças, bom-humor e leveza, e na
análise prudente das “coisas do mundo”, invariavelmente construída em estilo
grave.
Nas referidas situações de tensão, contudo, o desnível social se expunha em
toda a sua força, acrescido das recusas silenciosas de cada um de adotar o papel
que o outro lhe tentava atribuir. Em diversas ocasiões, Maquiavel tenta convencer
o embaixador a intervir em seu favor junto aos Medici, para que pudesse sair do
ostracismo, mas Vettori parece não lhe dar ouvidos nessas horas: freqüentemente
responde com evasivas, promessas incertas e longas digressões sobre a falta de
autonomia do homem diante dos caprichos da Fortuna. Nessas horas, o
argumento do humanista Leon Battista Alberti de que, no rio do destino, as
grandes famílias tendiam a naufragar mais facilmente que as “embarcações
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
contradictions, whose cumulative effect conveys the impression if a good deal of doubt and
hesitation in the face of certain dilemmas”, p.3.
83
Cf. ALBERTI, Leon Battista. “O Destino e a Fortuna”. In: BIGNOTTO, Newton. Origens do
republicanismo moderno, p.298.
127
84
Sobre a vida e obra de Vettori, conferir: JONES, Rosemary Devonshire. Francesco Vettori.
Florentine Citizen and Medici Servant.
85
Carta de 16 de Janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco Vettori e a
Francesco Guicciardini, p.281. “Poi, pensando intra me medesimo che questo mondo non è altro
che amore, o, per dir più chiaro, foia, mi ritenni”.
86
Carta de 15 de Dezembro de 1514. Ibid., p. 269. Trecho em latim, que é traduzido desta
maneira: “Mi pare di essere in buona grazia presso il papa e gli altri Medici, cui pure non chiedo
nulla. Per mantenermi, spendo il salario che la legge mi attribuisce, e a fine mese non me ne
avanza nulla”.
128
redigido pelo amigo, argumenta que ainda não pudera mostrá-lo às autoridades
competentes.87
Impaciente, Maquiavel não consegue aguardar a resposta de Vettori a seu
documento (resposta esta que o embaixador expedira no dia 15, ou seja, apenas
cinco dias após Maquiavel ter-lhe remetido o pequeno texto). Inicia uma carta
complementar, datada de 20 de dezembro de 1514, com as seguintes palavras:
“Magnífico embaixador. Como vós tivésseis me incitado, se eu vos aborreci com
meu escrito, diga: seja eu o culpado, que o requeri”.88 Trata-se de tópica muito
comum, não só em cartas familiares como também em dedicatórias e proêmios de
escritos dos mais diversos gêneros – o próprio Maquiavel se valerá dela nos
Discorsi. Em seguida, reitera os pontos de vista defendidos na carta anterior,
especialmente a crítica ao princípio da neutralidade, como se pretendesse
complementar e melhor fundamentar a argumentação anterior. Contudo, ao
receber, ainda naquele dia, a resposta de Vettori – logo após ter-lhe enviado a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
Eu vos agradeço novamente por todas as ações e por todos os pensamentos que
tenhais tido por amor a mim. Não vos prometo recompensas, porque já não creio
que possa fazer bem nem a mim nem aos outros. E se a fortuna tivesse desejado
que os Medici, ou em assuntos internos de Florença ou em política externa, ou em
assuntos deles, particulares ou públicos, tivessem me recomendado, eu estaria
contente. Todavia, eu ainda não me encontro completamente privado de
esperanças. E se isto tivesse acontecido e então eu não soubesse me manter, eu me
lamentaria; mas o que há de ser, será. E a cada dia reconheço que é verdade o que
disseste, sobre o que escreve Pontano: quando a fortuna nos leva a uma
87
Cf. Idem. “L’altra che mi risponde a’ quesiti vi feci, hebbi hieri. Anchora non l’ho monstra a
ninsignor de’ Medici, el quali mi commisse ve li facessi: creddo che satisfaràm perché satisfà
anchora a me: quando l’haró monstra, vi risponderò quello mi dirà”.
129
Creia em mim – diz Vettori –, somos conduzidos pelo destino. Li nos últimos dias
o livro de Pontano, Sulla fortuna, recentemente publicado (...). Pontano demonstra
claramente que nada podem o ânimo, a prudência, a força ou qualquer outra
virtude, se faltar a fortuna. (Vettori).91
Ao acatar tal posição, Maquiavel muda seu ponto de vista usual acerca das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
88
Carta do dia 20 de dezembro de 1514. Ibid., p.272 (primeira carta). “Magnifico oratore. Poiché
voi mi havete messo in zurlo, se io vi straccheró con lo scrivere, dite: habbimi il danno, ché gli
scrissi”.
89
Carta do dia 20 de dezembro de 1514 (segunda carta). Ibid., pp. 277-8: “Io vi ringrazio di nuovo
di tutte l’opere et di tutti i pensieri che voi havete hauti per mio amore. Non ve ne prometto
ricompenso, perché non credo mai più potere far bene né a me né ad altri. Et se la fortuna havesse
voluto che i Medici, o in cosa di Firenze o di fuora, o in cose loro particolari o pubbliche, mi
havessino una volta comandato, io sarei contento. Pure io non mi diffido ancora affatto. Et quando
questo fussi, et io non mi sapessi mantenere, io mi dorrei di me; ma quello che ha ad esse, fia. Et
conosco ogni dì, che gli è vero quello che voi dite, che scrive il Pontano: et quando la fortuna ci
vuole cacciare, la ci mette innanzi o presente utilità o presente timore, o l’uno et l’altro insieme; le
quali due cose credo che sieno le maggiori nimiche habbia quell’opinione che sieno le maggiori
nimiche habbia quell’opinione che nelle mie lettere io ho difesa”.
90
Esta carta de Vettori é escrita parte em língua vulgar e parte em latim. O trecho em que fala do
livro de Pontano é todo ele escrito em latim, talvez para diferenciar este tipo de reflexão dos outros
tópicos abordados na carta. De todo modo, ele faz referência, logo no início, a uma carta que
recebera de Maquiavel, toda ela redigida em latim. Juntamente com tal carta latina, datada de
1514, Maquiavel envia uma longa carta política, solicitada por Vettori, em que discute os possíveis
posicionamentos do papa diante da conjuntura política do momento, especificamente o
posicionamento em favor de Espanha ou França. Vale notar que a carta latina é dirigida
diretamente ao embaixador, como se explicasse a ele as circunstâncias de envio, e outros pequenos
detalhes. Já a carta política é toda ela redigida em língua vulgar. Sobre a questão da escrita em
latim e em língua vulgar no Cinquecento, conferir: TROVATO, Paolo. Storia della língua italiana,
pp. 19-35.
91
Carta do dia 15 de dezembro de 1514. MAQUIAVEL, Nicolau. op. cit., p.271. Tradução do
trecho feita a partir da tradução italiana de Giorgio Inglese “Ma, credimi, siamo trasportati dal
destino. Ho letto nei giorni scorsi il libro del Pontano, Sulla fortuna, recentemente stampato (...).
Pontano dimostra chiaramente che niente può l’animo, o la prudenzam o la forza, o qualunque
virtù, se manca la fortuna”.
130
92
Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltá letteraria del cinquecento,
p.33. Diz o autor: “Ma ora il problema si presentava con una insospettata gravità e attualità: la
presenza del fortuito, dell’imprevisto, dell’irrazionale, con la sperimentazione di quegli eventi
straordinari, acquistava dimensioni così ampie, un peso così determinante che un’ indagine sulla
‘fortuna’ finiva per risolversi in un’ indagine sulla stessa realtà della condizione umana”.
93
Carta do dia 13 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.99. “la sorte há fatto
ogni cosa per farmi questa ingiuria”.
131
após ser eleito papa (Leão X), mandou libertar todos os presos da cidade como
parte dos festejos comemorativos e demonstração de magnanimidade.
Já nesta primeira carta, Maquiavel inicia o movimento, recorrente nos dois
anos seguintes, de tentar se fazer ver junto à cúria romana. Embora soubesse da
gravidade de sua situação – um fiel servidor de Soderini, de família não muito
bem reputada, jamais seria visto com bons olhos pelos Medici –, Maquiavel
solicita a Vettori que o mantenha vivo junto à memória do papa.94 Em sua
resposta, Vettori desculpa-se por não haver intercedido quando teve notícias das
torturas sofridas por seu amigo: “dói-me não vos poder ter ajudado, como
merecíeis pela fé em mim depositada”.95 Em seguida procura alentar aquele a
quem costuma chamar na salutatio de suas cartas de compare mio charo –
enquanto Maquiavel refere-se a Vettori como Magnifico viro Francisco Victorio
oratori florentino apud Summum Ponteficem –, ao dizer que, tão logo a situação
se acalme, Maquiavel poderá ir a Roma visitá-lo, e assim estar diante do papa e de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
tantas outras figuras de destaque. Em sua análise desta carta, John Najemy
argumenta que Vettori constrói uma idéia de compaixão, como se o embaixador
quisesse se desculpar e se justificar por nada ter feito no sentido de ajudar o
secretário quando este se encontrava em apuros.96 De fato, logo no início de sua
carta, Vettori se identifica com as dores e sofrimentos do amigo, empregando
inclusive a palavra “tortura”, evitada por Maquiavel.97 Como afirma Najemy, “em
uma curiosa reversão, praticamente parece que Vettori era quem estava em
necessidade, almejando consolação”.98 Vettori expressa seu amor por aquele a
quem toma para si como protegido, convidando-o para passar alguns dias em
94
Cf. Ibid., pp. 99-100. “Tenemi, se è possibile, in memoria di Nostro Signore, che, se possibile
fosse, mi cominciasse a adoperare, o lui o suoi, a qualche cosa, perché io crederrei fare honore a
voi et utile a me”.
95
Carta do dia 15 de março de 1513. Ibid., p. 102. “Duolmi non vi havere potuto aiutare, chome
meritava la fede havevi in me”.
96
Cf. NAJEMY, John. op. cit., pp. 96-7.
97
Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 102. “Compare mio
charo. Da otto mesi in qua io ho avuto e maggiori dolori che io havessi mai in tempo di mia vita, e
di quelli anchora che voi non sapete; nondimeno non ho avuto il maggiore, che quando intexi voi
essere preso, perché subito iudicai che sanza errore o causa havessi havere tortura, chome è
riuscito”.
98
Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.97. “In a curious reversal, it almost seems that Vettori was the
one in need of and seeking consolation”.
132
Roma, tão logo a situação se torne favorável a ambos, de modo que Maquiavel
pudesse restabelecer seus antigos contatos e solicitar favores aos Medici.99
Em sua resposta, datada de 18 de março de 1513, Maquiavel demonstra
alegria diante do convite: “Magnífico embaixador. Vossa tão amorosa carta me
fez esquecer todos os afãs passados; e, conquanto estivesse mais que certo do
amor que tendes por mim, esta carta me foi gratíssima”.100 Logo na abertura,
Maquiavel constrói a condição de protegido, a que retomará constantemente, para
desconforto de Vettori. Por reconhecer no embaixador a figura de um benfeitor, o
secretário vislumbra nesta relação um possível caminho para inserir-se novamente
na vita negotiosa.
Olhando adiante, Maquiavel consegue mirar para o seu passado recente com
algum distanciamento, a ponto de recomendar a Vettori que extraísse lições das
vicissitudes por ele enfrentadas: “quanto a virar o rosto para a Fortuna, quero que
tenhais destes meus afãs este prazer, que eu o suportei tão francamente, que estou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
contente comigo, e que pareço ser mais do que acreditei ser”.101 Maquiavel quer
se mostrar à altura de um recomeço, marcando a própria altivez e capacidade de
superação, como se dissesse ao embaixador estar pronto para esquecer as
desventuras, sem ressentimento algum. Parece-me que a idéia chave, neste trecho,
é a de “virar o rosto para a Fortuna”, não se deixar abater, mostrar-se vigoroso
mesmo diante de um grande tropeço, certamente percebido por ele como injustiça
dos céus. Tal postura diante da Fortuna será bastante recorrente nas cartas
seguintes de Maquiavel, como um ideal regulatório de comportamento diante do
imponderável: o chamado a uma virtù fundada na força e na virilidade, capaz,
senão de controlar a deusa plenamente, ao menos de amenizar os efeitos das suas
ações, precisamente porque, além de não se deixar abater diante da deusa,
Maquiavel procuraria dali em diante desafiá-la, mostrando-se merecedor de seus
favores – como percebe Hanna Pitkin, embora a personificação da Fortuna como
99
É o que fica evidente na seguinte passagem da carta: “Scriverrovi, quando harò l’animo posato,
se ci ho a stare, di che dubito, perchè credo saranno huomini d’altra qualità non sono io che ci
vorranno stare, e io harò patientia a tutto”. Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL,
Nicolau. Lettere..., p.102.
100
Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 76. “Magnifico oratore. La vostra lettera tanto
amorevole mi há fatto sdimenticare tutti gli affani passati; et, benché io fussi più che certo
dell’amore che mi portate, questa lettera mi è suta gratissima”.
101
Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 104. “Et quanto a volgere il viso alla Fortuna, voglio
che habbiate di questi miei affani questo piacere, che gli ho portati tanto francamente, che io stesso
me ne voglio bene, et parmi essere da più che non credetti”.
133
Eu sou daqueles que, ainda que vos exortasse a virar o rosto à fortuna, entretanto
persuado mais propriamente os outros que a mim mesmo, porque na fortuna
102
Cf. PITKIN, Hanna Fenichel. Fortune is a woman, p. 144. “Specifically, although the
prsonification of fortune as female is very old, Machiavelli appears to be the first to use that
metaphor as a way of suggesting the sexual conquest of fortune, introducing into the realm of
politics and history concerns about manliness, effeminacy, and sexual prowess”.
103
Carta de 18 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 104. “et se parrà a questi
patroni nostri non mi lasciare in terra, io l’harò caro, et crederrò portarmi in modo che gli haranno
ancora loro cagione di haverlo per bene; quando e’ non paia, io mi viverò come io ci venni, che
nacqui povero, et imparai prima a stentare che a godere”.
104
Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.98.
134
políticos, como única ligação com um ideal de vida que se perdia. Diz Maquiavel
em famoso trecho da carta de 9 de abril de 1513:
Sem dúvida, se vos pudesse falar, não poderia evitar preencher vossa cabeça com
fantasias [castellucci], porque a Fortuna fez com que, não sabendo discorrer
[ragionare] nem da arte da seda e da arte da lã, nem dos lucros e perdas, me
conviesse discorrer sobre o stato [e’ mi conviene ragionare dello stato], e necessito
ou calar-me ou discorrer [ragionare] sobre isto.109
105
Carta de 30 de março de 1513. Ibid., p. 107.”Io sono di quelli che, anchora che vi chonfortassi a
volgere il viso alla fortuna, nondimeno lo so meglo persuadere a altri che a me medesimo, perché
nella prospera fortuna non mi lievo, ma nell’ adversa mi avilisco e d’ ogni chosa dubito; e se vi
parlassi crederrei farvi chapace dubitare con ragione”.
106
Refiro-me às divergências entre Vettori e Maquiavel na missão de 1508. Cf. NAJEMY, John.
op. cit., p. 81.
107
Cf. Carta de 30 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 107. “E chosì m’ho
acconcio questo Grillo nel cervello; e, chome vi ho decto qualche altra volta, io non voglo andare
più discorrendo con ragione, perché spesso mi son trovato ingannato...”.
108
Cf. Ibid., p. 108. “Si che, Niccolò mio, vedete quello fa la buona sorte, della quale chi manca,
chome fo io, bisogna facci poche imprese, o per meglio dire nessuna...”.
109
Carta de 9 de abril de 1513. Ibid., p.110. “Pure, se io vi potessi parlare, non potre’ fare che io
non vi empiessi il capo di castellucci, perché la Fortuna ha fatto ché, non sapendo ragionare né
dell’arte della seta et dell’arte della lana, né de’ guadagni né delle perdite, e’ mi conviene
ragionare dello stato, et mi bisogna o botarmi di stare cheto, o ragionare di questo”.
135
Diante dos reveses de sua Fortuna, procurará desafiá-la com sua capacidade de
ragionamento, precisamente aquela aptidão de discorrer sobre os assuntos da
política abdicada por Vettori há muito. Maquiavel recusa a acomodação do
embaixador, até mesmo porque, diante das poucas possibilidades que se lhe
abriam, as possíveis perdas não pareciam de fato tão grandes. Abrir mão de sua
arte implicaria o abandono do seu maior atributo natural, a prudência, de que
tanto se vangloriara em sua carreira como secretário da República.
Se por um lado o apego ao ragionamento pode ser lido como uma tentativa
de tornar-se novamente visível, os príncipes virtuosos – no sentido já discutido
anteriormente de uma qualidade de flexibilização moral que leva o príncipe a não
operar com regras fixas e definidas de antemão110 – esboçados em seu tratado
podem ser descrito como homens capazes, por aptidão própria, de superar
inúmeras adversidades. Esperava-se destes homens, fundamentalmente, que eles
pudessem enfrentar a deusa caprichosa, domando-a com virilidade, impondo-se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
110
Para esta discussão, voltar ao capítulo 1, item 4.
111
Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento Italiano: o caso de
Maquiavel”. In: Modernas Tradições, p.185.
112
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXV, p.122.
136
De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei
desmatar em meu bosque (...). Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com
os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e
observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas (...). Depois de
comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um
moleiro e dois padeiros. Com eles me acanalho [m’ingaglioffo] o restante do dia
jogando cricca e trique-traque, e depois vêm mil discussões e infinitos desaforos
com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa
gritaria se ouve nada menos que em San Cassiano. Assim, em meio a esses piolhos,
113
Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau, p.180. Diz o autor: “Para tentar descrever como
se sentia, inventou um verbo – m’ingaglioffo –, que significava ‘acanalhar-se, afundar na
vulgaridade, aturdir-se’. Entrega-se a essas atividades para desafogar a raiva que sente por dentro,
pela sua condição atual”.
114
Carta de 10 de Dezembro de 1513, p.194. “Con chesti io m’ingaglioffo per tutto dì giucando a
criccha, a trische-tach et poi, dove nascono mille contese et infiniti dispetti di parole injuriose, et il
più delle volte si combatte un quattrino et siamo sentiti nondimanco gridare da San Casciano. Così
137
extraio meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que
ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter
feito isso.
Quando a noite vem, volto para casa e entro em meu escritório e, na entrada, tiro a
roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas.
Vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde,
recebido amavelmente, me nutro do alimento que é só meu e para o qual nasci;
onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
suas ações, e eles, por bondade, me respondem. Não sinto, por quatro horas, tédio
algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com
a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz
ciência sem reter o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser
essencial e compus De Principatibus [...].116
rinvolto entra questi pidocchi traggo el cervello di muffa, et sfogo questa maignità di questa mia
sorte, sendo contento mi calpesti per questa via, per vedere se la se ne vergognassi”.
115
Sobre o colóquio com os antigos, afirma Giulio Ferroni: “Si deve però notare che, anche se
carico di una cosí immediata risultanza pratica e política, quel colloquio con gli antichi si insrisce
in uno spazio ‘a parte’, che sembra sganciato da ogni legame con la vita quotidiana, il mondo
basso che ha reso la veste ‘piena di fango et di loto’, ma la stessa urgenza della realtà esterna, la
stessa dimensione dell’essere pratico, la stessa aleatorità della vita, la stessa sospensione ed
incerteza, la stessa minacciosa varietà che regola l’accadere umano, il regno della fortuna, la scena
del vivere (che è anche la scena della politica”. FERRONI, Giulio. “La struttura epistolare come
contradizione”, p.267.
116
Emprego aqui a tradução presente em: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 175-6.
117
Sobre esta questão, conferir: NAJEMY, John. op. cit., pp. 176-214.
138
associada, por ele, à dignidade do ócio filosófico, mas à desonra de uma vida
apartada das glórias públicas. Escrever um espelho de príncipes é obra para
homens de letras; orientar um príncipe, tarefa para conselheiros prudentes.
Maquiavel acaba se colocando entre os dois extremos, ao compor um discurso em
acordo com as normas literárias vigentes que pudesse ser capaz de aconselhar
efetivamente, não segundo os ditames da filosofia moral antiga ou humanista, mas
em acordo com as lições extraídas do próprio movimento das coisas, dos efeitos
produzidos por elas, da experiência na condução e deliberação acerca dos assuntos
concernentes à res publica, da leitura cuidadosa das histórias antigas e modernas;
um discurso que pudesse ser um produto singular da prudência de alguém apto a
discorrer com clareza e precisão sobre a arte do estado; finamente, um discurso
que pudesse ser persuasivo ao ponto de reverter ânimos contrários e retirá-lo do
ócio forçado.
Não há propriamente na carta de 10 de dezembro de 1513 a fixação de um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
et del danno d’altrui prende piacere e do dano dos outros tem seu prazer.
et benché fosson quelle acute et fiere, e embora sua flecha fosse afiada e brutal,
ch’uno adamante non hare’ lor retto, que nem mesmo um diamante a ela
resistisse
non di manco trovâr sì forte obbiecto ainda agora encontrou um objeto tão forte
che stimò poco tutto il lor potere. e não tomou satisfação do seu poder
Onde che quel si sdegno et furor carco, Donde para fazer pesar seu desdém e furor,
per dimostrar(e) la sua alta excellenza, e para demonstrar a sua grande excelência,
mutò pharetra, mutò strale, er arco; mudou de aljava, flecha e arco;
et trassene uno con tanta violenza, e deixou-se voar com tanta violência
ch’anchor(a) delle ferite mi rammarco, que ainda me entristeço por essa ferida
et confesso et conosco sua potenza e confesso e conheço sua potência
118
Carta de 31 de janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.283. Diz Maquiavel:
“Et sono, quelle che mi ha messo, sì forte catene, che io sono al tutto disperato della libertà né
posso pensare via come io habbia a scatenarmi; et quando pure la sorte o altro aggiramento
humano mi aprisse qualche cammino ad uscirmene, et per avventura non vorrei entrarvi, tanto mi
paiono hor dolci, hor leggieri, hor gravi quelle catene, et fanno un mescolo di sorte, che io giudico
non potere vivere contento senza quella qualità di vita”.
119
A frase de Frank Kermode acerca dos versos de Romeu por Rosalina, na abertura de Romeu e
Julieta, aplica-se bem ao soneto de Maquiavel: “Rhyming whenever he feels like it, the rhymes
140
being more or less as conventional as his suffering, Romeo brings the scene to an end with an
account of the unseducible Rosaline”. KERMODE, Frank. Shakespeare’s language, p.54.
120
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere... p.284: “Chi vedesse le nostre lettere, honorando
compare, et vedesse le diversità di quelle, si maraviglierebbe assai, perché gli parrebbe hora che
noi fussimo huomini gravi, tutti vòlti a cose grandi, et che ne’ petti nostri non potesse cascare
alcuno pensiere che non havesse in sé honestà et grandezza. Però dipoi, volttando carta, gli
parrebbe quelli noi medesimi essere leggieri, inconstanti, lascivi, vòlti a cose vane”.
121
Existe a possibilidade de que tenham trocado cartas nestes seis anos, e estas tenham sido
perdidas. Trata-se, porém, de hipótese pouco provável, por duas razões: em primeiro lugar,
Maquiavel costumava guardar todas as cartas que Vettori lhe enviava. Em segundo lugar, a carta
de 1521 enviada por Maquiavel a Vettori, que parece retomar o diálogo epistolar interrompido seis
anos antes, apresenta um tom bastante formal; Vettori é chamado de “signor gonfaloniere”, e
Maquiavel assina como “obligatissimus Niccolò Machiavegli”. Sobre a preservação das cartas de
Vettori por Maquiavel, afirma John NAJEMY: “In sum, the evidence from the Apografo makes it
seem likely that Machiavelli did keep a nearly complete file of the letters that he and Vettori wrote
to each other over these years”. op. cit., p.13.
122
Sobre o epistolário Maquiavel-Guicciardini, conferir: MASI, Giorgio. “Saper ‘ragionare di
questo mondo’. Il carteggio fra Machiavelli e Guicciardini”.
141
123
Não se pode garantir que Maquiavel e Guicciardini não trocaram cartas em período anterior.
Sabe-se que Maquiavel possuía relações com o irmão de Francesco Guicciardini, Luigi. De todo
modo, o diálogo é intensificado neste período.
124
Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem ordenada..., pp. 10-24.
125
Sobre o gênero diálogo, conferir: MARSH, David. The Quattrocento Dialogue.
126
Como afirma Newton Bignotto, “a escolha da forma dialogal é exigência de um pensamento
que não hesita em enfrentar suas contradições”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo,
p.134.
127
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 14. “se bene per la autorità
che hanno e’ Medici in Firenze, e per la potenza grandissima del pontefice paia perduta la libertà
di quella, nondimeno per gli accidenti che tuttodì portono seco le cose umane, può a ogn’ora
142
nascere, che così come in uno tratto dallo stato populare la venne allo stato di uno, possi ancora
con la medesima facilità ritornare dallo stato di uno alla sua prima libertà”.
128
Conferir o item 1 do capítulo 1.
129
“Non mi è parso in beneficio vostro da perdere tempo o abbandonare la fortuna, mentre si
mostra favorevole”.
130
Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., p. 215.
131
Apud. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.49.
132
Cf. SANTORO, Mario. op. cit., p.156.
143
133
Idem. Ibid., p.160. “Da questi esempli (e da tanti altri che si pottrebbero addurre) appare
evidente la direzione naturalistica della nozione di ‘fortuna’: questa cioè si prospetta soprattutto
come complesso di circostanze, di eventi, di accadimenti, oltre che come instinti e passioni
operanti nell’interno dell’uomo, che condizionano, al di là di ogni riparo, di ogni difesa, in modo
imprevedibile e spesso irrazionale, l’agire dell’individuo”.
134
Cf. CADONI, Giorgio. Un governo immaginato. L’universo politico di Francesco Guicciardini,
pp.9-38.
135
SANTORO, Mario. op. cit., pp. 319-20. “[...] ma, come abbiamo osservato, la fortuna qui ha
l’accezione convenzionale di ‘buona sorte, circostanze e ocasioni favorevoli”.
136
Cf. Idem. Ibid., p.320. “Nel decennio 1516-1526, nel corso di un’intensa attività politica [...] il
Guicciardini sperimentò di persona la massiccia presenza del fortuito, dell’imprevedibile,
144
dell’irrazionale, in una realtà che si rivelava, con le sue continue variazioni e complicazioni,
estremamente sfuggente e rischiosa”.
137
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. Displaced persons. The literature of exile from Cicero to Boethius,
p.22.
138
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.91. “Io non mi maraviglio, Francesco, benché io
ti cognosca di animo fermo e virile, che tu ti truovi ripieno di grandissimo dispiacere...”.
139
Ibid., p.93. “Ma quando io veggo che tu sei percosso si può dire nel tuo proprio, ed in quello
che depende dalla patria tua, non posso credere che el dispiacere tuo non sia infinito”.
140
Ibid., p.91. “né è solo la roba in che tu patisci, mas di più la grandezza, la degnità, e quello che
io credo che ti pesi sopra tutte le cose, l’onore”.
145
dignidade, sem grandes feitos, inferior em sua cidade a qualquer cidadão pequeno
(grifos meus).141
141
Ibid., p.94. “in modo che da uno estremo eccesivo di onori, di riputazione, di faccende
grandissime e di notizia universale in che tu eri, ti truovi precipitato subito in uno altro estremo di
uno vivere ozioso, abietto, privatissimo, sanza degnità, sanza faccende, inferiore nella tua città a
ogni piccolo cittadino”.
142
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., p. 21.
143
Cf. ISER, Wolfgang. O ato da leitura, vol. 1, p.73. Embora a categoria de leitor implícito seja
proposta por Iser para pensar o texto ficcional, ela se aplica também a textos não-ficcionais, desde
que estes possuam em alguma medida um caráter convencional, como é o caso de textos regrados
segundo preceitos retóricos. Diz Iser: “o leitor implícito não tem existência real; pois ele
materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condição de
recepção, a seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em substrato
empírico, mas sim na estrutura do texto”.
144
Refiro-me aqui à categoria proposta por João Adolfo Hansen de uma “primeira legibilidade
normativa”. Cf. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho, p.23.
145
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.95. “sono certissimo che quelo che ti duole insino
al cuore, quello che ti cava l’anima, è el vedere che sanza alcuno fondamento di verità, sanza
alcuna cagione, fu sparsa voce sì universale che tu abbi in questa guerra rubato e’ danari publici,
che tu abbia in questa per avarizia o per malignità permesso che e’ soldati faccino tanti danni in
questo contado, che tu sia di animo tirannico ed inimico della libertà della città”.
146
Cf. Ibid., p.96. “Ma poi che io non posso fare questo, mi sforzerò almanco con le parole darti
quella medicina o quello lenitivo che io saprò (...). E’ dispiaceri che tu hai sanza dubbio
grandissimi, e potentissime le ragione che ti fanno risentire (...)”.
146
encontrar a consolação de que necessita, uma vez que, para os estóicos, o “sumo
bem” consiste na vida virtuosa e no crescimento interior:
não só julgo digno de nota – diz o “amigo fictício” –, como considero admiráveis e
beatos aqueles que se encontram dispostos [a levar esta vida], de modo que com
estas contemplações se afastem tanto das coisas do mundo, que não sintam e se
afetem pelos seus acidentes.147
O que a Fortuna dá ou tira não deve ser considerado como relevante, pois a
deusa procura seduzir os homens pela oferta de bens efêmeros, e não pelos valores
verdadeiros, aqueles encontrados tão somente na atitude contemplativa.148 Trata-
se de um tipo de ensinamento muito aludido e considerado nos diversos tratados
humanistas do Quattrocento e do Cinquecento, quase sempre em referência a
Sêneca. Em De Vita Beata, este define felicidade a partir da idéia de virtus, ao
equiparar a vida feliz ao estado de perfeito equilíbrio entre corpo e alma:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
uma vida feliz é a que está em conformidade com sua natureza e isso só pode
acontecer se, antes de mais nada, a alma está sã e em perfeito estado de saúde; em
segundo lugar, se é corajosa e veemente, e, mais ainda, muito bela e paciente,
pronta para tudo o que vier, cuidadosa, sem ansiedade, com o seu corpo e tudo o
que lhe diz respeito.149
147
Ibid., p.97. “ed io non solo giudico degni di laude, ma ammirabili e beati quelli che si truovono
disposti in modo che con queste contemplazioni si spicchino tante dalle cose del mondo che non
sentino e non curino gli accidenti suoi”.
148
Cf. Idem. “Così chi procedendo filosoficamente si ricordassi che questi beni della fortuna sono
di nessuno momento, e da essere stimati da’ savi come cosa vilissima, e’ quali chi perde, perde più
presto una soma inutile e travagliosa, che cosa di alcuno valore, e che la felicità ed el sommo bene
consiste solo nella virtù e ne’ beni dello animo (...)”.
149
SÊNECA. De Vita Beata (Sobre a Vida Feliz), III,3, p.27.
150
Cf. Ibid., VIII, 6, p.41. “Por isso, você pode declarar, sem hesitação, que o sumo bem é a
concórdia da alma; pois as virtudes deverão estar onde residirem a harmonia e a unidade; os vícios,
com as dissensões”.
147
Pois – e essa é a maior das escravidões – ela começa a precisar da fortuna; daí
resulta uma vida ansiosa, suspeitosa, temerosa, assustada com os acontecimentos,
preocupada com as vicissitudes da vida.153
151
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “perché io non ti cognosco sì imprudente né
sì poco consideratore delle cose del mondo”.
152
SÊNECA. op. cit., IV, 5, p.31.
153
Ibid., XV, 3, p.57.
154
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “Ma ho anche perscutato chi dalla
fragilità umana è impedito a levarsi tanto alto, e chi in ogni avversità che gli sopravenga si ricorda
e senta di essere uomo”.
148
sem querer imitar certos médicos que rapidamente dão ao paciente aqueles
remédios de que por si não necessitam, falarei de maneira mais baixa [più
bassamente] e mais de acordo com a natureza dos homens e do mundo.155
155
Idem. “e però non volendo imitare certi medici che spesso danno allo infermo quelle medicine
che per sé non piglierennono, parlerò teco più bassamente e più secondo la natura degli uomini e
del mondo”.
156
Ibid., p.102. “Non ti ricordi tu di essere nato uomo, sottoposto alle cose del mondo, a’ morsi
della fortuna come gli altri uomini?”
157
SHAKESPEARE, William. As You Like It, I, 2, 5-8.
149
3.3
O homem de letras na escala da glória
158
Cf. VIALA, Alain. Naissance de l’écrivain, p.7. “C’est au milieu du XIXe siècle que la
littérature s’est imposée comme valeur éminente : cette thèse formulée par Jean-Paul Sartre a été,
ensuite, reprise, et confirmée à quelques nuances près”. Até o século XVII não havia propriamente
um “campo literário” autônomo. É com a criação, na França do século XVII, das primeiras
academias, com o recrudescimento do comércio de obras, com o surgimento dos direitos do autor,
com a renovação de gêneros como a tragédia e a comédia, em suma, com a possibilidade de que
alguns homens se dedicassem fundamentalmente à escrita, que a literatura se afirmará, ainda que
de forma embrionária, como um valor cultural em si mesma.
159
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, pp. 323-4.
160
Cf. FUMAROLI, Marc. L’âge de l’éloquence, p.24. “Les mots ‘Lettres’, ‘Littératture’ au XVIIe
siècle, que nous tirons sans scrupule à nous, sont en fait des traductions du latin humaniste Litterae
humaniores, Literatura, res literaria et sont chargés du même sens : connaissance érudite de ces
fondements de la sagesse et du savoir que sont les textes légués par l’Antiquité [...]”.
161
Idem. Ibid., p.25. “Les Belles-Lettres elles-mêmes, avant d’être ‘création littèraire’, sont
d’abord un commerce assidu et intime avec les poètes et orateurs de l’Antiquité”.
162
Cf. PÉCORA, Alcir. op. cit., pp. 11-16.
163
Cf. COSTA LIMA, Luiz. “A questão dos gêneros”. In: Teoria da Literatura em suas fontes, p.
260.
164
Cf. LECLERC, F. “Théoriciens français et italiens: une ‘politique’ des genres”, p.96.
165
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 324.
150
166
FUMAROLI, Marc. op. cit., p.22. “Une des catégories essentielles de la rhétorique est
l’imitatio : c’est par référence à une gamme de styles illustrée par les modèles exemplaires de
l’Antiquité que procède l’invention de l’écrivain ou de l’orateur du XVIIe ; une autre de ses
catégories esta la convenientia, l’adaptation du discours à toutes les variables du problème concret
auquel il répond : c’est par référence à cette valeur à la fois esthétique et morale que l’homme de
Cour se conduit et converse”.
167
Sobre o domínio e importância das convenções, afirma Paul Zumthor, “dans la littérature des
civilisations traditionnelles, les genres, quel qu’ils soient, présentent un haut degré de
conventionnalité, nécessaire au fonctionnement de la communication”. ZUMTHOR, Paul.
“Perspectives Générales”. In: La notion de genre à la Renaissance, p.8.
168
KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the
distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the
Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but
also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation
that leads to action. The Renaissance humanists thus go beyond their classical mentors in
conceiving of literature not only as the cause and effect of prudence and right action (i.e., the
writer is presumed to be prudent and to inspire prudence in others), but as a form of prudence
itself”.
151
literário”, indaga-se Horácio na Ars Poetica, “por que saudar em mim um poeta?
Por que a falsa modéstia de preferir a ignorância ao estudo?”.171
As cidades italianas do Renascimento foram fartas em uomini litterati
reputadíssimos, como Petrarca, Dante, Bocaccio, Coluccio Salutati, Leonardo
Bruni, Pontano, Castiglione, Boiardo, Ariosto, Bembo, Pietro Aretino, entre
outros. “A prática das letras”, defende Marina Beer em estudo sobre a cultura
literária do Renascimento italiano, “e das letras vulgares em particular não é nada
além de uma das atividades destinadas a tornar virtuoso e talvez produtivo o
‘ócio’ nobiliário”.172 Alguns dos lugares privilegiados para as práticas letradas
eram as instáveis cortes principescas, como a de Guidobaldo de Montefeltro em
Urbino, descrita por Castiglione em O Cortesão.173 As cortes constituíam não só
ambientes propícios, mas efetivas condições de possibilidade para a produção de
169
Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In: Civitas Mundi, p.223.
“Anzi, con un’espressione assai icastica, definiva la storia come una ‘poetica soluta’, sciolta dal
ritmo e dal verso, che aveva in comune con la poesia la ‘repetitio’ delle cose antiche e vetuste, che,
come la poesia, si serviva dei generi retorici ‘dimostrativo’ e ‘deliberativo’”.
170
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., pp.13-14. “Horace, in his Ars Poetica, while emphasizing
both authorial purpose and the importance of the audience or reader as receptor, crystallized the
generally held ancient understanding of generic convention, characterizing genre by both metre
(medium) and content (object). Here he followed a Roman precedent: for Varro, style and content
could not be divorced”.
171
HORÁCIO. Ars Poetica, p.57.
172
BEER, Marina. L’ozio onorato. Saggi sulla cultura letteratia italiana del Rinascimento, p.14.
173
Cf. FANTONI, Marcello. Il potere dello spazio. Principe e ciità nell’ Italia dei secoli XV-XVII.
152
tais registros letrados, uma vez que seus “autores” vinculavam-se diretamente aos
príncipes por meio de uma economia das mercês. Como percebe Norbert Elias,
O caso florentino mostrava-se mais complexo que a média italiana, uma vez
que a cidade, entre os anos de 1494 e 1512, experimentou um tipo de governo
republicano bastante incomum naqueles dias.175 Por outro lado, mesmo com o
retorno dos Medici a Florença em 1512 algumas instituições e magistraturas
republicanas foram preservadas. Assim, não se pode dizer que escritos como a
Arte da Guerra e os Discorsi de Maquiavel, produtos das discussões sobre os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
174
ELIAS, Norbet. A sociedade de corte, p. 299, nota 34.
175
Cf. ALBERTINI, Rudolph von. Firenze dalla Repubblica al Principato. Storia e Coscienza
Politica. “Ci si riallaccia qui alla tradizione dei comuni, dove cittadino, nel senso vero della parola,
era chi aveva diritto di sedere in consiglio e di eleggere le lagistrature”, p.10.
176
Cf. GILBERT, Felix. “Bernardo Rucellai e gli Orti Oricellari. Studio sull’origine del pensiero
politico moderno”, pp.18-30.
177
Cf. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo, p.127. “O que devemos levar em conta é
que ele não desconhece a tensão entre o republicanismo aristocrático, que continua a defender, e
sua trajetória política na esfera do poder papal. Suas convicções teóricas vão de encontro à sua
visão da política italiana e ele procura desesperadamente um meio de colocar as coisas no mesmo
patamar”.
153
178
Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.61.
179
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 7, p. 53.
180
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1.
181
Cf. BROWN, Alison. “Introduction”. In: Dialogue on the Government of Florence, p.x.
182
Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p.3.
154
183
NAJEMY, John. op. cit., p. 109.
184
PÉCORA, Alcir. op. cit., p. 97.
185
No proêmio, Guicciardini propõe-se a realizar a “sincera e fiel narração daquilo que, uma vez,
fora ragionato por alguns dos nossos cidadãos muito graves e sábios” (grifos meus)”. Cabe dizer
que tal noção de fidelidade, recorrente em tratados retóricos clássicos e renascentistas, não remete
à idéia de uma reprodução exata das palavras proferidas, mas à verossimilhança de uma narração
de acordo com certos critérios retórico-poéticos – tal qual Tucídides, que nos discursos de sua
Guerra do Peloponeso (I, XXII) se atém “o mais próximo possível do sentido geral das palavras”.
Trata-se de um lugar-comum retórico amplamente empregado em exórdios de diálogos – como no
Cortesão de Castiglione ou na Arte da Guerra de Maquiavel –, cuja finalidade consiste em afirmar
a autoridade de quem fala e tornar verossímil a argumentação e a narração, através da amplificação
das virtudes ou dos vícios dos personagens envolvidos. Cícero, seguindo Aristóteles, sustenta no
De Inventione (I, 44) que toda argumentação pode ser caracterizada ou como provável ou como
necessária. Necessário é o argumento silogisticamente irrefutável; provável é o argumento
construído a partir da opinião comum, do hábito, ou da analogia com a realidade. Na mesma linha,
lemos na Retória a Herênio (I, 16) que “a narração será verossímil se falarmos como o costume, a
opinião e a natureza ditam, se nos ativermos à duração do tempo, à dignidade dos personagens, aos
motivos das decisões e às oportunidades do lugar (...). Se a matéria for verdadeira, ainda assim,
todos esses preceitos devem ser observados ao narrar, pois é comum acontecer de a verdade não
conseguir obter fé quando são negligenciados”. Obter fé, aqui, implica afirmar a honestidade e
gravidade da matéria nas diversas partes do discurso, especialmente no exórdio e na narração. Tais
elementos são mobilizados por Guicciardini na passagem do proêmio em que se refere à “sincera e
fiel narração” do ragionamento travado entre os quatro grandes homens. Trata-se, assim, da
reprodução verossímil dos efeitos de tal conversação, o sentido do que por eles fora discutido, a
saber, a delineação de um “governo honesto, bem ordenado, a que se possa verdadeiramente
chamar de livre” (Dialogo, p.15). Verossímil porque homens reputados pela opinião comum como
honestos – virtuosos e cientes dos seus deveres, conforme definição da Retórica a Herênio (III,3) –
emitem bons juízos sobre a realidade, demonstram agudeza e celeridade de raciocínio e, sobretudo,
almejam primordialmente o bem comum e a saúde da República.
155
186
PÉCORA, Alcir. op. cit., p.71.
187
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.13. “[...] non si può dire se
non che meriti di essere laudato chi applica l’animo e consuma ancora quache parte del tempo
nella contemplazione di sì onesta e sì degna materia; sanza che sempre se ne può cavare documenti
acccommodati e utili a molte parte del vivere nstro”.
188
Ainda que a narrativa remeta à restauração republicana de 1494, o horizonte analítico de
Guicciardini consistia primordialmente no exame da situação política florentina na década de
1520. Se bem que a ruína dos Medici fosse então considerada pouco provável, fazia-se necessário,
segundo o autor, manter vivo o pathos republicano, já que os muitos accidenti ocorridos a cada dia
poderiam fazer com que subitamente a liberdade pudesse voltar a imperar na cidade. E dessa vez,
diferentemente do que se dera em 1494, os florentinos deveriam estar preparados para enfrentar as
variações das “coisas do mundo”. Conquanto não vislumbre razões que o levem a crer na ruína dos
Medici em um curto espaço de tempo, Guicciardini afirma que “não se pode esperar de uma
família a perpetuidade que se pode esperar de uma República”. Ainda assim, faz questão de se
prevenir, no proêmio, de possíveis acusações, ao deixar clara a sua fidelidade aos Medici e
também seu amor republicano. Trata-se de ambigüidade notada por diversos intérpretes, como
Vittorio de Caprariis e John Pocock. Segundo Vittorio de Caprariis, tal conflito reflete-se na
própria estrutura do Dialogo: no texto, a “esperança do cidadão”, correspondente ao livro II,
choca-se com a observação aguda do “estado das coisas” – livro I. John Pocock, refutando
Caprariis, defende que a diferença de perspectiva entre as duas partes do Dialogo consiste numa
tensão entre “valor” e “história”. Como atesta Nicolai Rubinstein, a perspectiva de uma mutazione
di stato não era totalmente improvável no contexto de redação do Dialogo. Seguindo tal linha
argumentativa, pode-se aferir que Guicciardini se propunha, no texto, a pensar uma efetiva
reforma da cidade, a ser implementada tão logo os Medici perdessem o poder – o que poderia levar
alguns meses ou muitos anos, mas em algum momento ocorreria, pois, como diz o próprio
Guicciardini em trecho já citado do Dialogo, “não se pode esperar de uma família a perpetuidade
que se pode esperar de uma República”. Cf. CAPRARIIS, Vittorio. Francesco Guicciardini dalla
política alla storia; POCOCK, John. Machiavellian Moment, p.243; RUBINSTEIN, Nicolai.
“Guicciardini politico”. In: Francesco Guicciardini 1483-1983. Nel V centenario della nascita, p.
176.
189
GUICCIARDINI, Francesco. op. cit., p.17. “Alle quali obrigazione non pare che si convenga
nutrire pensieri contrari allo stato della casa loro; perché dallo scrivere mio, massime fatto per mio
piacere e recreazione né con intenzione di publicarlo, non si può né debbe inferirne che i abbia
anio alieno dalla grandezza loro, né che la loro autorità mi dispiacia”.
156
Nos Discorsi, outro escrito que dificilmente pode ser enquadrado na noção
de escrita cortesã, Maquiavel define o lugar do homem de letras numa escala da
glória, em acordo com os ensinamentos de Salústio:
Embora os uomini litterati não possam ser igualados em sua glória aos
fundadores de religiões e repúblicas ou aos grandes generais, Maquiavel lhes
190
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 1.
191
SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae, III, 1-2, p.5.
192
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44.
157
ócio é visto como a mais abjeta das situações, e mesmo a atividade literária não
pode instituir consolo algum.
193
Cf. VAROTTI, Carlo. op. cit., p. 411. “Alle origini del repubblicanesimo fiorentino Bruni
aveva attribuito alla libertà e all’equalità cittadina il merito di stimolare la cupido gloriae, facendo
158
começou a escrever sua História da Itália”.196 Isso foi em 1538. Dois anos depois,
Guicciardini morre, deixando incompleta a obra. Em seu testamento, pediu para
que seus escritos fossem queimados. Não foi atendido.
della politia il luogo in cui principalmente la grandezza individuale può esprimersi, divenire una
forma di eccellenza ‘vista’, sottoposta alo sguardo ammirato della comunità”.
194
GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, pp. 280-81. “Becase Guicciardini had been
inspired by the belief in man’s power to control events and in his own talent to menage his affairs,
the shock caused by the events of 1527 was profound”.
195
Cf. RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, p.216.
196
GILBERT, Felix. op. cit., p. 281.
159
197
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Opere, v. 3. Carta de 17 de dezembro de 1517, p.498. “Io ho letto
a questi dì Orlando Furioso dello Ariosto, e veramente el poema è bello tutto, et in molti luoghi à
mirabile. Se si truova costì, raccomandatemi a lui, e ditegli che io mi dolgo solo che, avendo
ricordato tanti poeti, che m’abbi lasciato indreto come un cazo, e ch’egli ha fatto a me quello in sul
suo Orlando, che io non farò a lui in sul mio Asino”.
198
Carta a Francesco Guicciardini de 21 de outubro de 1525. Cabe destacar que Maquiavel jamais
escreveu tragédias, o que constitui matéria de discussões infindáveis entre seus intérpretes. Sobre
esta questão, afirma Ridolfi: “Tragédias jamais as escreveu, talvez nem cogitou, a não ser essa em
que agora estava trabalhando ao se voltar para questões históricas”. RIDOLFI, Roberto. Biografia
de Nicolau Maquiavel, p.251. Conferir também: MARTINEZ, Ronald L. “Tragic Machiavelli”,
p.119. Afirma o autor que, “signing himself historian, comedian, and tragedian, Machiavelli
foresaw all too well how the history of Italy was shaping itself into a tragic plot”.
199
RIDOLFI, Roberto. op. cit., p.191.
200
MAQUIAVEL, Niolau. Mandragola. In:____ Tutte le opere storiche, politiche e letterarie, p.
728. “E, se quesa materia non è degna, / per esser pur leggieri, / d’un uom, che voglia parer saggio
e grave, / scusatelo con questo, che s’ingegna / con questi van’ pensieri / fare el suo tristo tempo
più suave, / perché altrove non have / dove voltare el viso / che gli è stato interciso / mostrar con
altre imprese altra virtùe, / non sendo premio alle fatiche sue”.
160
201
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p.62.
161
202
Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 212-3.
4.
Ars historica como arte da prudência.
4.1
Uma construção de fatos e palavras.
1
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna, p.55. Segundo Santo
Mazzarino, esta atitude crítica era, ao mesmo tempo, profundamente religiosa. Cf. MAZZARINO,
Santo. Il pensiero storico classico, vol. 1, p.207.
2
Cf. HARTOG, François. O espelho de Heródoto, p.22; CANFORA, Luciano. La storiografia
greca, pp. 26-43.
163
3
FORNARA, Charles. The Nature of History in Ancient Greece and Rome, p.3, nota 8.
4
Cf. Idem. Ibid., p.1.
5
Cf. ARISTÓTELES. Poética, IX, p.28.
6
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I, 1, p.3. Emprego aqui a tradução de Jacyntho
Lins Brandão. In: HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho, p.57.
7
Emprego o vocábulo “palavra”, aqui, para caracterizar aquilo que Jacques Derrida chamou de
privilégio da phoné, em sua relação direta com o logos: “Tal como mais ou menos implicitamente
determinada, a essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’
como logos, tem relação com o ‘sentido’; daquilo que o produz, que o recebe, que o diz, que o
‘reúne’. [...] Entre o ser e a alma, as coisas e as afeções [affection], haveria uma relação de
tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização
convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação
natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada”. DERRIDA, Jacques. Gramatologia,
p.13.
164
Quanto aos feitos realizados na guerra, decidi escrever não recolhendo informações
junto de qualquer um, nem como me pareciam ser, mas os que eu próprio
presenciei, tendo ainda checado cada um deles, com a maior exatidão possível,
junto de outros. Com muito trabalho eles se descobriam, porque os presentes a cada
um dos feitos não diziam as mesmas coisas sobre os mesmos, mas de acordo com a
simpatia ou lembrança que tinham.12
8
PARRY, Adam Milman. Logos and ergon in Thucydides, p.103.
9
Cf. MAZZARINO, Santo. Op. cit., p. 250.
10
PARRY, Adam Milman. Op. cit., pp. 15-16. “To understand its development properly, we must
take account of three strands of thought in Greek literature of this period. These strands are often
intertwined, and they do not appear with equal consistency throughout the period in question. Yet
they can legitimately be considered as distinct attitudes toward a similar problem. One is a literary
strand: that is, it appears first in the poets. Its tendency is to regard logos and ergon, or equivalents
thereof, as differing but positive constituents of human experience. The second is popular. It
appears first in Solon, then in the earliest comic writers. There is reason to think that it was
common coin in the Vth century. It is simple and ethical, placing value on ergon as unquestioned
reality, and condemning logos as something purely delusive. The third is philosophical, appearing
first in Parmenides and – though less clearly – in Heraclitus. It regards logos as true reality, and
puts in the category of the delusive appearances of the sensible world”.
11
Idem. Ibid., p.103.
12
TUCÍDIDES. Op. cit., I, 22, p. 81.
165
13
Cf. GUMBRECHT, Hans-Urich. Production of Presence. What Meaning Cannot Convey, 2004,
p. xiii. “The word ‘presence’ does not refer (at least does not mainly refer) to a temporal but to a
spatial relationship to the world and its objects. Something that is ‘present’ is supposed to be
tangible for human hands […]”.
14
Cf. TUCÍDIDES. Op. cit., I, 20, p.79.
15
A premissa da utilidade geral da história, sua compreensão como “aquisição para sempre”, é a
estabilidade da natureza humana e a recorrência de certos padrões perceptíveis nos
acontecimentos.
16
CANFORA, Luciano. Op. cit., p.17. Discordo de Canfora, porém, quando este diz que “con
l’esaltazione della vista, la storiografia rivela tutta la sua deboezza conoscitiva”. Não se trata de
uma debilidade, e sim, para falar como Hartog, de um regime de historicidade fundado em uma
concepção distinta de verdade.
17
Como percebe Luiz Costa Lima, a partir da análise heideggeriana da questão, “alétheia,
portanto, continha um duplo movimento, que não era sucessivo e não se esgotava ao atingir o
segundo estágio: ocultar e desvelar. Essa alternância lhe será constitutiva. Acrescente-se para o
caso particular da escrita da história: a reconstituição de uma cena passada desvela e ao mesmo
tempo oculta, sem que isso dependa de alguma intenção de fraude de quem a empreende”. COSTA
LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 111.
18
COLLINGWOOD, R. G. A idéia de história, p.42.
166
remédio contra a ação do tempo. “A natureza”, diz Políbio no livro XII das
Histórias,
forneceu-nos dois instrumentos por meio dos quais sabemos muitas coisas e
podemos averiguar outras. Refiro-me à visão e à audição; a vista é muito mais
fidedigna, segundo o dito de Heráclito: os olhos são testemunhos mais exatos que
os ouvidos.19
Isto porque, como diz Candolo a Gigés no livro I das Histórias de Heródoto, “os
ouvidos são menos crédulos que os olhos”.20
Políbio, prosseguindo seu exame dos dois “instrumentos” – visão e audição
–, cita o caso de Timeu, que teria escolhido para suas investigações o método
“mais agradável, porém menos válido”, abrindo mão do testemunho ocular e
valendo-se da audição, campo que comporta também a leitura.21 Neste último
caso, é preciso que o historiador tenha o cuidado de “buscar uma cidade que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
19
POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.521.
20
HERODOTO. Histórias, I, 8, p.32.
21
Cf. POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.521.
22
Cf. Idem. Ibid., XII, 27, p.522.
23
O que se relaciona diretamente àquilo que Santo Mazzarino considera uma singularidade de
Heródoto: sua tentativa de compreender também o ponto de vista persa. Cf. MAZZARINO, Santo.
Op. cit., p.164.
24
POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.522.
25
Idem.
167
26
CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22. Posição similar é defendida por: HORNBLOWER, Simon.
“Narratology and Narrative Techniques in Thucydides”. In; HORNBLOWER, Simon. Greek
Historiography, p.165.
27
Cf. CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22.
28
TUCÍDIDES. Op. cit., 22, p.81.
29
POLIBIO. Op. cit., I, 35, p.112.
30
COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p. 39.
168
parece-me que o ofício de quem escreve as coisas acontecidas [res gestas scribere]
seja árduo: primeiramente porque se deve adequar as palavras aos fatos; depois
porque diante das críticas feitas, a maioria pensa que as palavras foram ditas por
malevolência e ódio; quando se faz menção da grande virtude e da glória dos
valorosos, aceita de bom grado aquilo que julga capaz de fazer, enquanto considera
inventado ou falso o que supera suas possibilidades.31
31
SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae,, 3, 2, p.5.
32
Cf. WALBANK, Frank W. “Polybius and the past”. In: Polybius, Rome and the Hellenistic
World. Essays and Reflections, p. 179.
33
Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.107.
34
Cf. FRYDE, E. B. Humanism and Renaissance Historiography, p.24.
169
práticas com o legado grego, aquilo que ele considera a especificidade da história:
ser uma construção de palavras e coisas devidamente ornada pela voz do orador,
condição para que o registro dos acontecimentos passados possa revelar alguma
utilidade pública. Diz Antonio que “a história [historia] não era mais que a
confecção de anais [annalium confectio]”36, e mesmo os gregos antes de Heródoto
e Tucídides haviam escrito como Catão, Fábio Pictor e Pisão – famosos, segundo
ele, tanto por suas valiosas notas sobre acontecimentos passados como pela crueza
e ausência de adornos em seus relatos.37 “Muitos seguiram essa forma de
redação”, prossegue ele, “que, sem ornamento algum, deixou apenas os
monumentos relativos aos tempos, aos homens, aos lugares, aos
acontecimentos”.38 Tais registros, porém, por sua rudeza e falta de elegância, não
são vistos como adequados à produção de ensinamentos gerais, capazes de
orientar as ações dos homens. Era preciso, segundo Antonio, que, a exemplo dos
gregos, os romanos dispusessem e ornassem suas histórias segundo as regras da
arte retórica, para que tais registros fossem capazes de produzir nos ouvintes e
leitores os efeitos desejados.
35
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36. Emprego a tradução de Jacyntho Lins Brandão. In:
HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho, p.181.
36
Idem. Ibid., II, 52, p.145.
37
Idem.
38
Idem.
170
Antonio define dois modelos que, segundo ele, deveriam ser emulados pelos
romanos interessados em compor histórias. São ele Heródoto e Tucídides:
39
Idem. Ibid., II, 55-57, p.147.
40
Idem. Ibid., II, 54, p.147.
41
FORNARA, Charles William. Op. cit., p.136.
42
O uso do vocábulo “fato”, aqui, deve ser tomado em sentido amplo, como acontecimento, ou
“coisas acontecidas”.
171
através dos pares res x oratione, verba x sententia. Reagrupando-os pelo critério
da semelhança, não do antagonismo, é possível chegar a novos pares, a saber: res,
sententia x verba, oratione. O valor de Tucídides, segundo Antonio, estaria
exatamente no entrelaçamento destas oposições, de modo a tornar indistinguíveis
ars dicendi e rerum cognitione como aspectos separados do discurso; articulados,
torna-se difícil assinalar se é a res que dá brilho à oratione de Tucídides ou se é a
verba a iluminar seus pensamentos [sententiis]. Nesse sentido, pode-se dizer que o
valor da história ornada – a única, para Cícero, digna desse nome – repousa na
supressão retórica da oposição entre res e verba, não pelo recurso à autópsia, que
sequer é mencionada por Antonio, e sim pela prescrição de uma unidade
discursiva entre verba e rerum cognitione, que somente a figura do orador pleno –
simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – pode alcançar.
Assim, se em Tucídides existe a presunção de que o phronimos é
potencialmente o melhor historiador, por ser capaz de observar e compreender
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
Com efeito, quem ignora que a primeira lei da história é não ousar dizer algo falso?
Em seguida, não ousar dizer algo que não seja verdadeiro? Que não haja, ao se
escrever, qualquer suspeita de complacência? Nem o menor rancor?.45
43
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 62, p.151.
44
Idem.
172
trata-se pois de um discurso que autoriza a verdade desses feitos. O seu recurso
fundamental para tanto é a representação que os coloca diante dos olhos do leitor,
por meio de uma composição assentada na vivacidade do que se narra, de tal modo
que se imagina testemunhado pela vista, no exato presente da leitura.48
45
Idem.
46
NARDUCCI, Emanuele. Cicerone e l’eloquenza romana, p.65.
47
Digo que são aspectos complementares porque também em Tucídides a construção do ethos é
retórica, uma vez que o que dá fé não é apenas o testemunho ocular em si, mas também a
prudência de quem testemunha, a qual é atestada pelos ouvintes e leitores que precisam reconhecê-
lo como tal. No entanto – e aí reside a diferença fundamental –, Tucídides não tematiza esta
construção do ethos como elemento decisivo da história, enquanto Cícero, na medida em que
subordina a ars historica ao sistema retórico, implicitamente atribui um lugar próprio à
delimitação do ethos.
48
PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: SCHWARTZ, Stuart B.;
PÉCORA, Alcir (org.). As excelências do governador, p.49.
49
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium Narratio Epilogus. Studi sulla teoria retorica
greca e romana delle parti del discorso, p.3.
173
seu opúsculo Como se deve escrever a história que “do mesmo modo que
admitimos que o historiador deve ter como objetivos a franqueza e a verdade,
assim também o primeiro e único objetivo de sua linguagem é explicar claramente
os fatos e fazê-los aparecer em plena luz”56, argumenta que “será necessário
algum sopro poético para inflar as velas com bons ventos e elevar a nau sobre a
50
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63, p.151.
51
COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p.98.
52
Idem. Ibid., p. 100.
53
Cf. NARDUCCI, Emanuele. Op. cit., p. 23.
54
Cícero vislumbra na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a
desejável unidade entre filosofia e retórica. Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the
Development of Prudential Practice at Rome”. In: HARIMAN, Robert (org.). Prudence. Classical
Virtue, Postmodern Practice, p.39; NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics:
Republicanisms – ancient, medieval, and modern”. In: HANKINS, James (org.). Renaissance
Civic Humanism, p.252.
55
Docere, delectare, movere: de acordo com os tratados clássicos, estas seriam as três finalidades
da retórica, sendo a primeira associada ao gênero de estilo simples, a segunda ao gênero nobre e a
terceira ao gênero médio. A história, por ser compreendida como subgênero epidítico com alguma
proximidade do gênero deliberativo, não deveria se fixar exclusivamente em um dos três gêneros
de estilo. No que diz respeito à narração, o gênero simples deveria ser privilegiado. Já no exórdio e
nas digressões, o gênero médio seria o mais apropriado, visando ao deleite e à captação da
benevolência do auditório ou dos leitores. Na peroração, responsável por mover os homens à ação,
o gênero de estilo conveniente seria o nobre. Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.7.
“Nell’orator poi la dottrina, pur presentata sempre come caratteristica di Antonio, subisce
un’evouzione nella conessione tra queste qualità o compiti dell’oratore e i tre stili del discorso, per
cui al docere corrisponderebbe lo stilo piano, ao delectare il medio, al movere l’elevato”.
56
LUCIANO. Como se deve escrever a história. In: HARTOG, François. A história de Homero a
Santo Agostinho, 44, p. 225. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.
174
crista das ondas”.57 Daí sua preocupação com a disposição e com o adornamento
do discurso:
incidindo em relato pleno, decoroso, útil e honesto. Daí que o lugar da história no
sistema retórico seja, senão esmiuçado, ao menos aludido nos tratados clássicos de
arte retórica, especialmente nas sessões destinadas ao exame do gênero epidítico.
Voltado para a produção de lições edificantes, úteis e honestas, onde,
através do encômio ou vitupério de homens e cidades, ficassem claros o caminho
da virtude e os perigos do vício, o gênero epidítico englobava uma série de
subgêneros: o panegírico, a laudatio funebris, a biografia exemplar, a crônica, a
história, entre muitos outros. Como argumenta Lucia Calboli Montefusco, “no
gênero epidítico o uso da narratio se justifica mais razoavelmente”, em
comparação com seu emprego no gênero deliberativo.59 Daí que, no De
Inventione, a história seja tratada na seção destinada à narrativa, sendo definida
como a exposição de gesta res, ab aetatis nostrae memoria remota – coisas
acontecidas em tempos distantes, segundo nossa memória.60 Ela vem incluída,
juntamente com a fabula – “narração própria da tragédia e da poesia, distante da
verdade e da verossimilhança” – e o argumentum – “narração própria da comédia,
57
Idem. Ibid., 45, 227.
58
Idem. Ibid., 51, p. 231.
59
MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p. 36.
60
CICERO, Marco Tulio. De Inventione. Madrid: Gredos, 1997, I, 19.
175
61
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.46.
62
Esta mesma divisão se faz presente na Retórica a Herênio e em Quintiliano. Cf. Idem. Ibid., pp.
45-6.
63
CICERO, Marco Tulio. De Partitione Oratória, XXI, 71.
64
Idem.
65
Idem. Ibid., XXI, 72.
66
CICERO, Marco Tulio. Orator, 42, p. 47.
67
PERELMAN, Chaïm; TYTECA, Lucie Olbrechts. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica,
pp. 54-5.
176
a inteligência dos fatos requer a ordem dos tempos e a descrição dos lugares. Pede
também, já que em fatos importantes e dignos de memória se espera que haja
primeiro deliberações, depois execução e em seguida resultados, que sobre as
deliberações seja indicada qual é aquela que o autor aprova; sobre os feitos, que se
declare não só o que se fez ou se disse, mas também de qual modo; e, quando se
fala do resultado, que se desenvolvam todas as causas que se devem ao acaso, à
sabedoria ou à temeridade – e não se fale só dos feitos dos próprios homens, mas,
com relação aos que se distinguem pela reputação e pelo nome, também da vida e
do caráter de cada um. Quanto à economia da linguagem [verborum autem ratio],
68
Idem. Ibid., pp. 55-6.
69
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the
distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the
Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but
also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation
that leads to action”.
70
AD. Retórica a Herênio, II, 47, p.143.
71
Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance Concepts of the Commonplaces, p.101.
177
Heródoto pôs mãos à obra para impedir que todas as marcas da atividade dos
homens se apagassem (tornando-se akléa), deixando muito rapidamente de serem
72
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63-64, p.151.
73
Cf. COSTA LIMA. Op. cit., pp.100-104.
178
contadas. Tucídides, por seu lado, escolhendo ‘escrever’ uma guerra que ele sabia
dever ser ‘a maior’ de todas, apresenta sua narrativa como ‘ktêma para sempre’,
isto é, patrimônio para sempre. Do kléos ao ktêma, o deslocamento é sensível. [...]
Daí em diante não se trata mais de preservar do esquecimento as ações valorosas,
mas de transmitir às gerações futuras um instrumento de inteligibilidade de seu
próprio presente.75
Uma das principais críticas de Cícero aos primeiros narratores latinos das
coisas acontecidas dizia respeito à dificuldade de se extrair lições edificantes de
relatos pouco ornados, rústicos e meramente descritivos. Nesse sentido, Salústio,
profundo conhecedor dos oradores gregos, pode ser considerado como o primeiro
dentre os romanos a compor uma obra histórica em consonância com os preceitos
ciceronianos, embora fosse inimigo político do filósofo – o que, como percebe
Santo Mazzarino, não o impediu de atribuir a Cícero um papel de destaque na luta
contra Catilina.78 Sua Conjuração de Catilina, claramente inspirada em motivos
tucidideanos, pode ser considerada uma tentativa de construir um legado romano
para sempre apoiado em dois pilares: a antiga virtus do período anterior à Segunda
Guerra Púnica, associada a homens que “com estas duas atitudes, a audácia na
guerra e a eqüidade nos momentos de paz, governavam a si mesmos e à
república”,79 e os exemplos de virtude no mar de corrupção da Roma de Salústio,
74
LUCIANO. Op. cit., 42, p.225.
75
HARTOG, François. Op. cit., p.28.
76
Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.41.
77
Idem. Ibid., p.54.
78
Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico clássico, vol. 3, p.17.
79
SALUSTIO. Op. cit., 9,3, p.13.
179
os homens mais prudentes eram os mais ocupados nos negócios políticos, ninguém
exercitava a mente sem o corpo, os melhores preferiam agir a falar [...]. Tanto na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
paz como na guerra os bons costumes eram cultivados: a concórdia era máxima,
mínima a avidez.82
80
Idem. Ibid., 53, 6, p.81.
81
Cf. Idem. Ibid., 54, p.83.
82
Idem. Ibid., 8-9, p.13.
83
Idem. Ibid., 1, 4, p.3.
180
monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para teu estado [rei publicae] o que
imitar; daí evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização.84
84
TITO LIVIO. Ab Urbe Condita, Proêmio, 10, p.207. In: HARTOG, François. A história de
Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.
85
Cf. DUPONT, Florence. L’invention de la littérature, p.36.
86
Cf. AD. Retória a Herênio, IV, 62, p.297.
181
4.2
A concepção humanista da ars historica.
Salutati fixa com clareza o status da história na cultura de que ele mesmo é um dos
representantes máximos; a saber, sanciona a função predominantemente ético-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
política, o caráter peculiar de ars dicendi (que tem por instrumento essencial o
exemplum) e a finalidade francamente persuasiva [...]. Não espanta que o opus
oratorium mais digno, mais eficaz e melhor adequado a estas finalidades seja
justamente a grande narrativa histórica, imitada dos modelos clássicos máximos.89
87
Cf. STRUEVER, Nancy. The language of History in the Renaissance, p.72.
88
Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In. Civitas Mundi, p. 215.
“[…] la storia sia il solo vero ammaestramento etico-politico, la forma di discorso più persuasiva
che permette il migliore orientamento nell’intricata selva del mondo umano, dove tutto semra
posto sotto il segno del possibile e del probabile e valgono a poco le sottigliezze astratte dei logici,
le predicazioni dei moralisti e – si direbbe – le dottrine sempre troppo universali dei filosofi”.
89
Idem. Ibid., p. 216. “[…] il Salutati fissi già con chiarezza lo status della storia nella cultura di
cui egli stesso è uno dei massimi rappresentanti; e, cioè, ne sanzioni la preminente funzione etico-
plitica, il carattere peculiare di ars dicendi (che ha per strumento essenziale l’exemplum) e la
finalità schiettamente persuasiva [...]. Né stupisce che l’opus oratorium più degno, più efficace e
megli rispondente a simili finalità diventi appunto la grande narrazione storica, imitata dai massimi
modelli classici [...]”.
90
Cf. Idem. Ibid., p. 219.
182
“uma posição similar não existia nas cidades-estado republicanas”, pelo menos
não antes da contratação de Andrea Navagero em 1516 para escrever uma história
de Veneza.95 Ainda que as Histórias não tenham sido encomendadas diretamente
pela Signoria, Bruni, após a publicação do primeiro dos doze livros, passou a ter
isenção de impostos para melhor se dedicar à sua composição, tornando-se uma
espécie de historiador oficial da cidade.96 Em seu funeral, Bruni, autor de
panegíricos, vidas, diálogos, cartas familiares, tradutor de Platão, Aristóteles,
91
Cf. Idem. Ibid., pp. 219-220.“Ora, il Trapezunzio non ha alcun dubbio che il discorso storico sia
sempre ed essenzialmente oratorio (anche se contraddistinto del particolare carattere della sua
narrazione che deve essere ‘clara’ e ‘brevis’)”.
92
Cf. TRINKAUS, Charles. “A Humanist’s Image of Humanism: the Inaugural Orations of
Bartolommeo della Fonte”, p. 117. “Summarizing what he had covered I this present oration he
again indicates history as subordinate to rhetoric”.
93
Cf. WILCOX, Donald. The Development of Florentine Humanist Historiography in the
Fifteenth Century, p. 17.
94
Idem. Ibid., p. 19. “Cortesi himself insists o the vlue of ‘delectationem’ and ‘utilitatem’, which
can only be assured by a clear and well-expressed arrangement of the great variety of events that a
history must include in its narrative”
95
GILBERT, Felix. “Le ‘Storie Fiorentine’ di Machiavelli. Saggio interpretativo”. In: Machiavelli
e il suo tempo, p.291. “I governi principeschi italiani avevano nominato storici pubblici fin dagli
inizi del Quattrocento. Ma una simile posizione non esisteva nelle città-stato rpubblicane. La prima
nomina di questo tipo fu quella di Andrea Navagero, che nel 1516 fu stipendiato dal governo
veneziano per comporre una storia di Venezia”.
96
HANKINS, James. “Introduction”. In: History of the Florentine People, vol. 1, p.xi.
183
97
Cf. WILCOX, Donald J. Op. cit., p.8. “Poggio Bracciolini, who would eventually succeed Bruni
both as chancellor and as historian of Florence, composed a funeral oration for Bruni in which the
Historiae are singled out among Bruni’s achievements: ‘But’, [diz Poggio], ‘what must receive the
highest praise from all ages is the history of Florentine affairs which he wrote in twelve books
[..]’”.
98
GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.41. “Leonardo Bruni’s ideal was to use humanae litterae
and studia hmanitatis as means for the education of the complete man”.
99
Cf. KRISTELLER, Paul Oskar. Renaissance Thought and its Sources, p.244. “The fourteenth
century witnessed a rise of grammar and rhetoric, especially in Italy, and this is reflected in the
new scheme of the studia humanitatis which we encounter in the course of the fifteenth century.
This scheme, as we saw before, includes grammar, rhetoric, poetry, history, and moral
philosophy”.
100
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.125. “History becomes the history of publicly-shared
experience on the one hand”.
101
Como nota Donald Wilcox, “[...] at least outside humanist circles, Bruni’s history was valued as
an illustration of how liberty is to be achieved and maintained”. WILCOX, Donald. Op. cit., p.16.
102
Cf. Idem. Ibid., p.4.
103
Apud MATUCCI, Andrea. Machiavelli nella storiografia fiorentina, p.3. Diz Villani: “non
perch’io mi senta sifficiente a tanta opera fare, ma per dare materia a’nostri successori di nonn-
essere negligenti di fare memorie delle notevoli cose che averranno per gli tempi apresso noi”.
184
104
Cf. GREEN, Louis. Chronicle into History, p.3.
105
Sobre esta questão, afirma Donald Wilcox: “Bruni’s statement of theme differs from the
opening sections of all these chronicles and vernacular histories in two major respects. First, in no
case do the chroniclers present a clear statement of the scope of their subject. […] The second
difference between the preface of Bruni and those of the chroniclers illustrates even more plainly
his departure from tradition. The chroniclers’ statements of scope are not only confused but
basically nonselective, including everything in any way connected with the general topic of their
work, whether that is a city or a family. The rigor with which Bruni applies his principle of
selectivity separates him strikingly from the group of vernacular historians”. WILCOX, David.
Op. cit., p.34.
106
COCHRANE, Eric. Historians and Historiography in the Italian Renaissance, p.11.
“Chronicles were not yet history, at least not according to the new definition of history that was to
arise from the work of Bruni and his successors”.
107
Cf. GREEN, Louis. Op. cit., p.5. “Instead of so dismissing history, a chronicler such as
Giovanni Villani saw it as material through which the will of God revealed itself. It could be made
to demonstrate the consistency between the working of the human world and the principle of
divine justice”.
185
Deliberei por muito tempo e muitas vezes tive que mudar de idéia antes de decidir
escrever sobre os feitos do povo florentino, suas lutas na cidade e fora dela, seus
celebrados êxitos na guerra e na paz. O que me atraiu foi a grandeza das ações
realizados por este povo: primeiramente, suas muitas lutas internas, em seguida
suas admiráveis empresas contra seus vizinhos imediatos, e finalmente, no nosso
tempo, a luta contra o todo poderoso Duque de Milão e o agressivo rei Ladislau.
[...] Por terem parecido a mim dignos de registro e lembrança, acreditei que o
conhecimento destes fatos serviria tanto a fins públicos como privados. Pois se
pensarmos que homens de idade avançada são mais sábios porque viram mais da
vida, quão maior é o conhecimento que a história nos pode proporcionar se for lida
com cuidado! Pois na história as ações e decisões de muitas eras podem ser
108
Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.208. “The humanists believed that
writers of histories ought to follow the same principle which the humanists applied to all their
literary efforts: the principle of ‘imitation’”.
109
Cf. FUBINI, Riccardo. “Note sugli ‘Historiarum Florentini Populi Libri XII di Leonardo
Bruni”. In: Storiografia dell’umanesimo in Italia da Leonardo Bruni ad Annio da Viterbo, pp. 97-
8. “Le Historiae del Bruni nascono da esigenze complesse: l’intento di ricostruire la storia
cittadina, concepito di seguito e a sviluppo del panegirico della Laudatio Florentinae urbis, mal si
lascia distinguere da quello di ripristinare il modello della storiografia antica greco-latina, come
parte in senso lato di un programma culturale, in virtù del quale egli veniva in pari tempo
traducendo (o ritraducendo) e divulgando opere di storici, oratori e filosofi greci [...]”.
110
BRUNI, Leonardo History of the Florentine People, p.5.
111
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.164. “Conversely, the prudent man who wishes to be
considered wise also observes the same decorum and bows to the times: ‘prudentis viri esse parere
tempore’”.
186
articulada como efetivo juízo prudencial, orientado pelo exame das circunstâncias
conjunturais. Bruni, tradutor da Política e da Ética aristotélica, vê na prudentia a
disposição responsável pela orientação da escolha segundo as virtudes morais,
resultando em ações apropriadas, que são objetos de elogios, ou em situações
contrárias à prudência, passíveis de vitupérios. Os discursos diretos, nesse sentido,
constroem não apenas paralelismos argumentativos como também conformam
exemplos vívidos de tipos de virtudes cívicas, como percebe Nancy Struever.113
A Historia populi florentini de Poggio Braciolini, mesmo com um alcance
temporal menor – cem anos, de 1350 a 1450, contra os quase mil e quinhentos
anos abrangidos por Leonardo Bruni114 –, apresenta pontos de vista bastante
similares àqueles sustentados pelo humanista aretino115, embora, como note
Donald Wilcox, Poggio dedique mais atenção às guerras externas que às
vicissitudes internas.116 No proêmio, Poggio afirma a utilidade da história, e diz
que somente homens excelentes e de grande engenho podem escrevê-la
112
BRUNI, Leonardo. Op. cit., p.3.
113
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.135. “Bruni most frequently uses speeches to present
recurring types of civic virtue”.
114
Cf. Idem. Ibid., p.166.
115
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.131. “the historical ideas in Poggio’s Historia are quite
similar to Bruni’s”.
116
Cf. Idem.
187
117
BRACCIOLINI, Poggio. Historia populi florentini, prohemio. “per idustria eingegnio
deglhuomini excellenti estata trouata lahistoria”.
118
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.143. “His attention to the conduct of tyrants in the Historia is
clear evidence that he wishes his history to have didactic and moral value for them as well as for
citizens of a republic – an attention which represents a definite expansion in scope over the
Historiae Florentini populi. […] Rather, he superimposes upon an historical narrative constructed
in terms of a casual complex similar to Bruni’s a moral judgment of a type that Bruni regularly
avoids”.
119
Ao mesmo tempo, como argumenta Gian Mario Anselmi, Poggio, diferentemente de Bruni,
atribui importância destacada ao poder da Fortuna e do acaso. Cf. ANSELMI, Gian Mario.
Ricerche sul Machiavelli storico, p.71.
120
VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 229. “Ma la cultura umanistica ha consegnato al futuro anche
un’altra concezione della storia, fondata sull’idea del valore critico della conoscenza del passato,
del suo rapporto con il mutare dei linguaggi, delle istituzioni e delle culture, della sua capacità
d’intendere e interpretare i ‘documenti’ e i segni di ogni genere che tramandano la memoria
dell’umanità, e di servirsene per comprendere e discutere anche il presente”.
121
Idem. Ibid., p. 230. “Ma il Valla sa pure, e lo afferma senza esitazioni, che la storia offre
all’uomo un sapere ‘civile’ e un insegnamento di ‘prudentia’ assai suepriore di quello recato dalla
filosofia”.
188
que têm poder de decisão.125 Estas tópicas, porém, não devem ser tomadas como
fins em si mesmas, na medida em que possibilitam um melhor conhecimento da
matéria – de modo a trazer para a análise elementos diversos, capazes de incidir
na produção de lições úteis e honestas pelos ouvintes e leitores.126 A ênfase
atribuída a tópicas atreladas à discussão da acuidade do relato histórico não se
choca com as prescrições do De Oratore; tal destaque revela, todavia, um
interesse cada vez maior pela questão dos efeitos, pela análise prudente das
122
SABIA, Liliana Monti. Pontano e la storia. Dal De bello Neapolitano all’ Actius, pp. 2-3.
“Cominceremo subito coll’osservare che la normativa dell’Actius sul modo di scrivere la storia,
salvo alcuni spunti personali, si rivela facilmente come una rielaborazione, ampiamente articolata
e filtrata attraverso il proprio gusto e la propria sensibilità artistica, di precetti risalenti agli autori
classici, in particolare a Cicerone, a Quintiliano, a Luciano, precetti ch’erano di dominio comune
nella coscienza culturale dell’Umanesimo, tant’è vero che giá altri, come Guarino Veronese, o
Giorgio da Trabisonda, li avevano fatti oggetto dei loro scritti assai prima del Pontano stesso”.
123
Apud. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p. 9.
124
Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.11.
125
Cf. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p.12. “Alle cause che provocano un’azione politica o una
guerra sono legati i consilia, le sententiae, le voluntates di coloro che hanno poteri decisionali,
teorizza l’Actius, citando l’esempio di Livio e Sallustio, per mostrare come sia opportuno
presentare attraverso i discorsi le opinioni di protagonisti in contrasto tra loro”.
126
Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 224. “Il Pontano – è stato già più volte rilevato – insiste sul
nesso tra causa ed effetto di cui lo storico deve essere ‘memor certusque ... ac versus expositor’,
così comme deve conoscere i fini perseguiti dagli ‘actores’, le loro decisioni (‘consilia’) ed i loro
risultati. [...] Comunque, il suo modello della narrazione storica consisteva nella presentazione di
una serie di fatti e di azioni tra loro strettamente connesse, da ricostruire nella loro genesi e nel
loro sviluppo che lo storico deve adornare con la sua capacità oratoria, proporre come exempla e
utilizzare per il fine preminente dell’insegnamento etico e politico”.
189
127
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.27. “A more balanced understanding of the humanists
emerged only in the early years of the twentieth century in what has become a classic work on
historiography: Eduard Fueter’s Geschichte der neueren Historiographie. Fueter points out the
humanists’ secularism and independence from authority, their use of history to embellish cultural
190
ideals, their superior narrative and stylistic techniques, and, finally, the extent to which they made
critical use of sources”.
128
Cf. Idem.
129
Idem. Ibid., pp. 28-29.
130
Idem. Ibid., p.30.
131
STRUEVER, Nancy. Op. cit., p. 144. “The basic assumption of this study is that the new
awareness of language of the Italian Humanists necessarily involves a new awareness of history”.
132
FRYDE, E. B. Op. cit., p.3. “My way of attempting to do this Will be to focus attention on
certain significant changes in historiography that took place in Italy in the fourteenth and fifteenth
centuries. Historiography, strictly speaking, means only the actual writing of history. But I shall be
also concerned with the awakening in that period of a more acute sense of historical change”.
191
133
Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhétorique en Italie au XVeme siècle”, p.45 ; “Modelli
teorici della storiografa umanistica”. In : Op. Cit., p. 213.
Op. cit., pp. 211-213.
134
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 237; MATUCCI, Andrea. Op. cit., p.219
135
Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.199. “[…] riconoscere la portata innovatrice di un
discorso che, come quello machiavelliano, assume la realtà come oggettività da verificare, la
natura come materia, la storia quale intreccio continuo fra le iniziative dei soggetti e i processi,
oggettivi nella loro naturalità, ad essi esterni”.
136
GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292.
137
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.57. “Bruni’s treatment of human motivation tends to bring
out the psychological element of his historical vision; in his assessment of individual character, on
the other hand, the political nature of his historical writing emerges most sharply”.
138
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., pp. 290-291.
139
Cf. Idem. Ibid., p. 301. “Guicciardini’s History of Italy is the last great work of history in the
classical pattern, but is also the first great work of modern historiography”.
140
Cf. MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 246. “È dalle Cose fiorentine in poi, dunque, che si parla di
Guicciardini come del fondatore della ‘scienza storica moderna’: di colui, cioè, che ha dato rigre
scientifico, e procedimenti extra-letterati, a quel lavoro preparatorio che, di soliro invisibile, è
sempre il primo passo verso il finale risultato letterario di un’opera storiografica”.
192
Penso que este tipo de abordagem, embora possua inegável valor, não
considera de forma apropriada o caráter convencional das Istorie Fiorentine e da
Storia d’Italia. Mesmo autores que, como Felix Gilbert, Gian Mario Anselmi e
Guglielmo Barucci, atribuíram importância significativa ao exame dos preceitos
retóricos propostos pelas “autoridades” antigas e humanistas sobre a ars historica
para a compreensão das histórias renascentistas acabaram por vezes tratando tais
preceitos como aspectos puramente formais, “convenções literárias” em grande
medida descoladas de um conteúdo inovador, pensado como concretização de
intenções de ruptura manifestas ou sub-reptícias, especialmente no que diz
respeito às Istorie Fiorentine de Maquiavel e à Storia d’Italia.141 Nesse sentido,
defendo que, embora certas tensões com as tradições clássica e humanista possam
ser delineadas nestes escritos, eles não devem ser tratados como tentativas de
renovação do gênero histórico. Muito pelo contrário: proponho uma interpretação
das histórias compostas por Maquiavel e Guicciardini que, ao explicitar e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
141
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 274. “But if in its formal aspects the History of Italy
corresponds to humanist prescriptions, these are not the features which the reader considers as
determining the character of the book. Rather it is a work which bears the imprint of the author’s
personality and mind, and as such it is a reflection of the Florentine political tradition and of the
political experiences of the age”.
193
4.3
Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias.
142
Cf. RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, pp. 191-201.
143
Carta de Nicolau Maquiavel a Francesco del Nero, 10 de setembro de 1520. “Sai condotto per
anni ecc. con salario ecc. con obligo che debba e sia tenuo scrivere gli annali o vero le istorie delle
cose fatte da lo stato e città di Firenze, da quello tempo gli parrà più conveniente, et in quella
lingua o latina o toscana che a lui parà”.
144
RIDOLFI, Roberto. Op. cit., p.210.
194
são anunciados por sinais dos céus, e as cenas de batalhas são dolorosamente
relatadas”.145 Porém, prossegue Gilbert,
E conclui: “o modelo humanista era, para Maquiavel, uma estrutura onde ele
expunha, quase que arbitrariamente, sua mensagem política”.147
Há, em Gilbert, a presunção de dois domínios distintos atuando
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
145
GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p. 237. “He framed his history according to the
accepted humanist standards. […] Machiavelli divided his work into a number of books, and each
began with general reflections on a topic to which the events described in the following chapter
referred. The narrative is studded with a large number of carefully wrought speeches. Important
events are announced by signs from the heavens, and battle scenes are painstakingly related”.
146
Idem. Ibid., p.237. “But there are indications that Machiavelli considered the humanist
prescripts as a literary convention rather than as an appropriate form for the writing of history.
After he described the battle of Anghiari in the ornate manner required by humanist historical
theory, he commented that in this long and famous struggle only one man was killed and he did
not die from enemy action but from falling from his horse and landing on his head. With this
remark he satirized the elaborate battle pieces of the humanist historians”.
147
Idem. Ibid., p. 238. “The humanist pattern was for Machiavelli a framework onto which he
hung, almost arbitrarily, his political message”.
148
Cf. MANSFIELD, Harvey. Machiavelli’s Virtue, p. 131. “Besides the uncertainty as to whether
his work is history or political science, and in addition to the concentration on politics, Machiavelli
shares with humanist historians the device of inventing speeches”.
149
Trata-se de questão das mais debatidas entre os estudiosos de Maquiavel, a saber, o caráter da
mobilização e circulação de muitas das hipóteses defendidas nos Discorsi nas Istorie. Cf. SASSO,
Gennaro. Niccolò Machiavelli, vol II. La storiografia, p.47. “Ed è così importante che non a torto
195
proêmio geral das Istorie sobre Lenardo Bruni e Poggio Bracciolini, que analisarei
adiante, constituem uma crítica ao conteúdo das histórias humanistas, embora
Maquiavel, nas palavras de Wilcox, imite a “elegância formal” dos seus
predecessores.150
Penso que tais considerações, embora não deixem de ressaltar a
proximidade das Istorie em relação aos modelos antigos e humanistas da ars
historica, comportam alguns equívocos. O primeiro diz respeito à já referida
pressuposição da separação entre forma e conteúdo; o texto das Istorie, nesse
sentido, seria o marco de uma tensão irresoluta entre análise política efetiva e
rigidez retórica formal, hibridismo que só não teria sido implodido por Maquiavel
pelo fato de que ele fora contratado pelos Medici e, por essa razão, precisaria, em
alguma medida, prestar contas com a tradição, o que teria feito pela imitação da
forma humanista, não sem deixar registros de sua lucidez analítica, especialmente
nos proêmios dos oito livros. “A história de Maquiavel”, afirma Andrea Matucci,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
potrebbe essere indicata come la questione stessa, per eccelenza, delle Istorie Fiorentine, – quella
che concerne il significato, non solo storico, di quest’opera, ma altresì teorico-politico: il
sigificato, insomma, che, variamente intrecciat con il primo, costituirà l’oggetto specifico della
ricerca che sta per prendere il suo avvio”.
150
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., pp. 20-21. “Machiavelli goes on, however, to criticize the
content of both histories of Florence, noting that Poggio and Bruni tended to neglect domestic
affairs in their accounts of the wars and foreign relations of the city.
Machiavelli’s determination to imitate the formal elegance rather than the factual accuracy of his
predecessors cannot be wholly explained by his preferences for vernacular sources”.
151
MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 192. “La storia di Machiavelli, infatti, accetta la retorica solo
nel suo primitivo senso ‘orale’ di forza di persuasione; evita ogni coinvolgimento emotivo con i
personaggi e le loro vicendi/ organizza la sua materia in modo da farne risaltare sempre il
significato politico, così da potere facilmente passare dalla ‘narrazione’ al ‘discorso’, e costringere
il lettore a un continuo confronto fra i fatti e le idee”.
196
Quando deliberei escrever as coisas feitas pelo povo florentino, dentro e fora de
Florença, minha intenção era começar a narração pelo ano 1434 da era cristã,
quando a família dos Medici, graças aos méritos de Cosimo e de Giovanni, seu pai,
ganhou mais autoridade que qualquer outra em Florença.154
152
ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p. 96. “Machiavelli tenta di instaurare un discorso scientifico,
che restituisca alla storia nella sua oggettività anche le lotte sociali. I limiti in proposito del suo
discorso sono i limiti sotoricamente determinati dai tempo (le nuove classi si erano appena
affacciate alla storia): resta l’indubbia frattura operata rispetto a tutta la precedente tradizione
storiografica”.
153
Cf. SASSO, Gennaro. Op. cit., p.11, nota 10. “Che il Proemio si riferisca in realtà ai primi
quattro libri, si deduce agevolmente da quel che si legge nelle sue linee conclusive [...]. Sembra in
effetti evidente che, mentre i primi quattro libri sono anteriori alla stesura del Proemio, che può
perciò descriverli con precisione e indicarne i termini cronologici, i restanti appartengono al
futuro; e, a parte l’ambiguità che si coglie nell’espressione ‘questi nostri presenti tempi’,
Machiavelli evita, non a caso, di specificare quanti libri gli ocorrano per pervenire al traguardo”.
197
Em seguida ele expõe os motivos que o teriam levado a desistir dessa idéia:
154
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, p.7.
198
que for necessário ao entendimento das de dentro; depois, passado o ano de 1434,
escreverei com particularidades ambas as partes (grifos meus).155
Este trecho é um dos mais citados nas análises críticas das Istorie de
Maquiavel, não somente pelas menções explícitas aos humanistas Leonardo Bruni
e Poggio Bracciolini, como também pela reafirmação de algo que Maquiavel já
defendera nos Discorsi: a importância da análise cuidadosa das lutas internas e
facções de um povo para uma compreensão apropriada das suas instituições,
costumes e hábitos político-militares. Para a maior parte dos analistas, como Felix
Gilbert, Gian Mario Anselmi, Andrea Matucci, Eric Cochrane, entre outros, o
proêmio geral deve ser interpretado como uma crítica direta à “historiografia
humanista”. Embora seja evidente que Maquiavel apresente uma crítica em
relação às abordagens de Bruni e Poggio, creio ser preciso tomar alguns cuidados
na interpretação desta passagem, para que ela não seja tratada como um manifesto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
155
Idem. Ibid., pp. 7-10.
199
156
HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, p.40. “By the middle of the fourteenth
century, when the Florentine republic began to emerge as an imperialist state in its own right
aspiring to Tuscan hegemony, the terms libertas and libertà were often coupled with the concepts
imperium and signoria, denoting dominion over internal or external subjects”.
157
Cf. Idem. Ibid., p.72. “When Machiavelli in his Discourses on Livy (c. 1514-18) lays down the
basic tenet of Roman and Florentine republicanism, he draws on and summarizes this more than
century-long tradition: ‘a city that lives free has two ends – one to acquire, the other to maintain
itself free”.
158
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 29, p. 95. Adaptação da tradução. No original: “avendo
una città che vive libera duoi fini, l’uno lo acquistare, l’altro il mantenersi libera”.
200
159
Como nota J. Patrick Coby, “Modes and orders (modi ed ordini) is Machiavelli’s preferred
phrase for describing the principles and operations of government”. COBY, J. Patrick.
Machiavelli’s Romans. Liberty and Greatness in the Discourses on Livy, p. 195.
201
daquela mobilizada por Bruni e Poggio. Se, para estes, a prudência consistia na
decisão correta segundo as virtudes morais e a justiça, Maquiavel associa a
prudência ao bom juízo efetivo – seja ele de um conselheiro de príncipe, de um
embaixador em missão oficial, de um orador atuando nas instâncias deliberativas
da República ou de um magistrado ocupando cargo oficial – daqueles capazes de
interpretar apropriadamente os movimentos da realidade.
Numa passagem do livro IX de suas Histórias que trata do movimento dos
Ciompi, Leonardo Bruni refere-se ao nobre Piero de Filippo degli Albizzi como
“homem famoso por sua prudência”; já a Michele de Lando, homem de baixa
extração que por seus méritos se torna gonfaloniero, Bruni não atribui esta
qualidade.161 Maquiavel, em sua análise do mesmo movimento, confere a um
plebeu não identificado as seguintes palavras, num discurso do livro III das
Istorie: “confesso que essa decisão é audaz e perigosa, mas, quando se é premido
pela necessidade, a audácia é considerada prudência” (grifo meu).162 Já a Piero
degli Albizzi ele atribui uma deliberação desastrosa, responsável pela eleição de
Salvestro de’Medici, “nascido de nobilíssima família do povo”, para o cargo de
160
Sobre esta questão, conferir o capítulo 1, item 1.
161
BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p.19.
162
MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., III, 13, p. 186.
202
163
Cf. Idem. Ibid., III, 9, pp. 173-174. “Corria então o ano de 1378, e o mês era abril; messer Lapo
não achava bom diferir a ação, afirmando que nada prejudica tanto o tempo quanto o tempo,
sobretudo para eles, já que na próxima Senhoria Salvestro de’Medici facilmente seria
gonfaloneiro, e, como sabiam, ele era contrário à facção deles. Piero degli Albizzi, por outro lado,
achava bom diferir, porque julgava que precisavam de forças, que não seria possível reuni-las sem
chamar a atenção, e, se fossem descobertos, correriam sério perigo. [...] Tomaram, portanto, essa
decisão, ainda que messer Lapo concordasse de má vontade, considerando nocivo diferir a ação,
pois nunca será inteiramente conveniente o momento de executar uma ação, de modo que quem
espera todas as conveniências ou não tenta coisa alguma, ou, se a tenta, na maioria das vezes o faz
para a própria desvantagem. Advertiram o Colégio, mas não conseguiram impedir que Salvestro se
tornasse gonfaloneiro, porque, quando os Oito descobriram a manobra, impediram que fosse feita
nova votação. Com isso, para gonfaloneiro foi sorteado o nome de Salvestro, filho de messer
Alamanno de’Medici.
164
Idem. Ibid., 16, p.193.
165
BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p. 11. Posição similar é defendida por Guicciardini em suas
juvenis Istorie Fiorentine, onde o governo dos Ciompi responsável por “muitas coisas brutas”. Cf.
GUICCIARDINI, Francesco. Istorie Fiorentine, p.78.
203
Note-se que Políbio, assim como Maquiavel, entrelaça utilidade e deleite: somente
pela exposição das particularidades a narrativa histórica pode produzir um efeito
retórico de presença como os defendidos por Cícero e Luciano; apenas um relato
bem construído, detalhado, ornado, capaz de prender a atenção – em suma, o
produto do engenho aguçado de um homem de letras prudente, capaz de dominar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
166
POLÍBIO. Histórias, I, 4.
167
MAQUIAVEL, Nicolau. Discorsi, I, proêmio, pp. 6-7.
204
168
Cf. FUBINI, Riccardo. “Machiavelli, i Medici e la storia di Firenze nel Quattrocento”. In: Op.
cit., p. 204. “Pur nell’ambizione di una storiografia ad elevate pretese letterarie, e soprattuto
inquadrata nella storia generale d’Italia così come era stata suggerita dai suoi modelli umanistici,
Machiavelli aderisce in pari tempo alle prospettive comunali e private di autori quali Villani,
205
das histórias, aquele efetivo, sem revelar, contudo, um viés utilitário tão explícito,
uma vez que os modelos a serem imitados são raros e pouco se destacam em
cenários marcados pela corrupção dos costumes e estranhamento da antiga virtù.
Nesse sentido, pode-se dizer que a opção pelo tratamento das lutas internas nas
Istorie revela-se o produto da leitura diligente realizada por Maquiavel das
crônicas e histórias dos séculos anteriores; ao mesmo tempo, ela visa à produção
de efeitos persuasivos capazes de deleitar seus ouvintes e em seguida movê-los, se
não a imitar bons modelos, em função da quase ausência desses, a emular o modo
de ragionamento exposto nas Istorie. Aqui há uma diferença importante em
relação aos Discorsi, onde os padrões de referência são os romanos do período
republicano, ápice da antiga virtus. Nas Istorie, os exemplos são florentinos: os
modelos para a imitação, se existem, encontram-se perdidos em meio à
degradação geral.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
Com base no que foi dito, pode-se atestar a indissociabilidade entre ars
dicendi e rerum cognitione nas Istorie. O deslocamento do foco analítico operado
por Maquiavel é retórico em todos os seus momentos, estando diretamente
atrelado à reconfiguração do conceito de prudência operada em seus escritos. A
história, assim, deixa de ser concebida como um monumento, passando a
constituir uma forma de performance letrada do bom juízo, evento cuja
atualização por ouvintes e leitores dependerá fundamentalmente da observação e
imitação não das ações, mas do modo cuidadoso de inferência. Isto não implica
atestar um distanciamento da convencionalidade ético-retórica: os fins últimos das
Istorie são o útil e o honesto. Porém, diz ele sobre seu tempo, “nos príncipes não
há apetite de glória verdadeira, e nas repúblicas não há nenhuma ordenação que
mereça louvor”.169 Os homens, argumenta o secretário, sequer são capazes de ler
diligentemente as histórias antigas. Por esse viés, as Istorie, focadas na corrupção
dos tempos, nos erros dos homens, nas condutas impróprias e imprudentes, na
incapacidade decisória, não apenas ensinam pelo viés da negatividade como
oferecem o próprio mecanismo do ajuizamento prudente. As Istorie, nesse
sentido, ensinam a pensar; suas lições são pouco tangíveis, mas nem por isso
Cavalcanti, Giovanni di Carlo”. Conferir também: PHILLIPS, Mark. The Memoir of Marco
Parenti. A Life in Medici Florence, pp. 217-240.
169
MAQUIAVEL. Op. cit., II, 1, p. 77.
206
170
AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p. 235.
171
Idem. Ibid., 25, pp. 235-237.
172
MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., II, 22, p. 112.
173
Idem. Ibid., II, 32, p. 128.
174
Idem. Ibid., II, 37, p. 146.
207
4.4
Guicciardini e os limites da prudência.
175
Cf. RIDOLFI, Roberto. Studi Guicciardiniani, p.18.
176
Cf. BARUCCI, Guglielmo. I segni e la storia. Modelli tacitiani nella Storia d’Italia del
Guicciardini, p.15. “La Storia d’Italia, prima opera storiografica del Guicciardini concepita per la
pubblicazione, è infatti decisamente impostata sul principio ciceroniano dell’opus oratorium
maxime e sulle sue esigenze di decorum riflesse nel profilo classicheggiante costituito
dall’atenzione agli eventi militari, la scansione annalistica, il largo impiego di orazioni,
suggerendo così un impianto tipicamente, ma anche genericamente, liviano”.
177
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292. “The conventional method which historians used to
describe a personality (and which Guicciardini used in his first Florentine History), was to view
208
the individual in relation to the recognized scheme of virtues and vices so that the moral qualities
of the individual in question would be clearly discernible to the reader”.
178
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36.
179
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 14, p. 98. “Ma è senza dubbio molto pericoloso
il governarsi con gli esempli se non concorrono, non solo in generale ma in tutti i particolari, le
medesime ragione, se le cose non sono regolate con la medesima prudenzia, e se, oltre a tutti gli
antro fondamenti, non v’ha la parte sua la medesima fortuna”.
180
Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento italiano”, p.200. “Mas a
História da Itália de Guicciardini radicalizara de tal modo as exigências da análise empírica que
acabou por negar o império da repetição (e com ele o da virtù) para afirmar aquele da fortuna (e
com ele o da discrezione).
209
políticos.181 Tal capacidade, contudo, não foi suficiente para impedir sua ruína:
cercado pela corrupção dos costumes e dos valores, rodeados por condottieri e
príncipes ineptos, não há muito que o prudente possa fazer – o que se relaciona
diretamente à maneira com que Guicciardini concebe a dinâmica das “coisas do
mundo”, especialmente a ênfase atribuída ao papel da Fortuna, que se torna, na
Storia d’Italia, uma força praticamente incontrolável que a tudo arrasta: “é
grandíssimo (como todos sabem) em todas as ações humanas o poder da
fortuna”.182
Assim, embora afirme na abertura da Storia que “do conhecimento de tais
fatos, tão graves e variados, todos poderão adquirir muitos ensinamentos salutares,
para si e para o bem público”, o máximo de generalização que tais “ensinamentos
salutares” comportam é a afirmação de que “por exemplos inumeráveis, ficará
evidente toda a instabilidade que se impõe às coisas humanas”. Nas palavras de
Felix Gilbert, “na História da Itália de Guicciardini praticamente inexistem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
exemplos que possam ser imitados”183, o que o escritor florentino afirma logo no
proêmio:
quão perniciosos são, quase sempre a si mesmos mas sempre ao povo, os maus
conselhos proferidos por aqueles que governam, quando, por erros vãos ou cupidez
imediata, vislumbram apenas o que está diante dos olhos, não se recordando das
freqüentes variações da Fortuna; e valendo-se, em detrimento alheio, do poder a
eles concedido pela coletividade, fazem-se, ou por pouca prudência ou por
demasiada ambição, autores de novos tumultos.184
181
GUICCIARDINI, Franceco. Op. cit., I, 2, pp. 11-12. “[...] e, tra gli altri, è manifesto cge il re di
Napoli, benché in publico il dolore conceputo dissimulasse, significò alla reina sua moglie con
lacrime, dalle quali era solito astenersi eziandio nella morte de’figliuoli, essere creato uno
pontefice che sarebbe perniciosissimo a Italia e a tutta la republica cristiana: pronostico veramente
non indegno della prudenza di Ferdinando” (grifo meu).
182
Idem. Ibid., II, 9, p. 193. “Ma è grandissima (come ognuno sa) in tutte l’azioni umane la potestà
della fortuna”.
183
GILBERT, Felix. Op. cit., p. 282. “The humanists believed that history taught by example. In
Guicciardini’s History of Italy there are hardly any examples which ought to be imitated”.
184
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 1, p. 5. “[...] quanto siano perniciosi, quasi sempre a se
stessi ma sempre a’popoli, i consigli male misurati di coloro che dominano, quando, avendo
solamente innanzi agli occhio o errori vani o le cupidità presenti, non si ricordano delle spesse
variazioni della fortuna, e convertendo in detrimento altrui la potestà conceduta loro per la salute
comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione, autori di nuove turbazioni”.
210
nada é certamente mais necessário nas deliberações árduas, nenhuma coisa de outra
parte mais perigosa, que solicitar conselho; tampouco existe dúvida de que o
conselho é menos necessário aos homens prudentes que aos imprudentes; e não
obstante, que os sábios obtêm muito mais utilidade ao se aconselharem. Pois quem
é dono de prudência tão perfeita que sempre considere e conheça as coisas por si
mesmo? E nas razões contrárias discirna sempre a melhor parte? E que certeza tem
aquele que demanda o conselho de ser fielmente aconselhado? Porque quem dá o
conselho, se não for muito fiel ou devotado a quem o demanda, não somente
movido por interesses notáveis mas pensando em sua pequena comodidade e
satisfação ligeira, dirige seu conselho ao fim que mais lhe convém, ou de que pode
se beneficiar; e sendo esses fins no mais das vezes desconhecidos de quem pede os
conselhos, este não notará, se não for prudente, a infidelidade do conselho.187
185
Idem. “cose accadute alla memoria nostra in Italia”.
186
Cf. PHILLIPS, Mark. Francesco Guicciardini: the Historian’s Craft, p. 121. “Guicciardini’s
clear perception that what happened was the more tragic because it was not inevitable”.
187
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 16, pp. 108-9. “Niuna cosa è certamente piú necessaria
nelle deliberazioni ardue, niuna da altra parte più pericolosa, che’l domandare consiglio; né è
211
dubbio che manco è necessario agli uomini prudenti il consiglio che afli imprudenti; e nondimento,
che molto più utilità riportano i savi del consigliarsi. Perché chi è quello di prudenza tanto perfetta
che consideri sempre e conosca ogni cosa da se stesso? E nelle ragioni contrarie discerna sempre la
migliore parte? Ma che certezza ha chi domanda il consiglio d’essere fedelmente consigliato?
Perché chi dà il consiglio, sen non è molto fedele o affezionato a chi’l domanda, non solo mosso
da notabile interesse mas per ogni suo piccolo comodo, per ogni leggiera sidisfazione, dirizza
spesso il consiglio a quel fine che più gli torna a proposito o di che piú si compiace; e essendo
questi fini il piú delle volte incogniti a chi cerca d’essere consigliato, non s’accorge, se non è
prudente, della infedeltà del consiglio”.
188
Cf. LUGNANI, Emanuella Scarano. Guicciardini e la crisi del Rinascimento, p.86. “In realtà
all’approdo definitivo alla storiografia spingono in maniera determinante soprattuto le esperienze
politiche sucessive al 1530”.
212
Porque em Alexandre sexto (assim foi chamado o novo pontífice) havia solércia e
sagacidade singulares, excelente consiglio, maravilhosa eficácia na persuasão, e em
todas as questões graves solicitude e destreza incríveis; mas estas virtù eram
acompanhadas em grande medida por vícios: costumes muito obscenos, nem
sinceridade nem vergonha nem verdade nem fé nem religião, avareza insaciável,
ambição imoderada, crueldade mais que bárbara e ardente cupidez ao exaltar de
qualquer maneira seus filhos, que eram muitos.192
189
HADDOCK, B. A. Uma introdução ao pensamento histórico, p.27.
190
Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi,
p.3. “Che, più di quello machiavelliano, questo ‘sistema’ di pensiero, così sapientemente fondato
sulla prudenza critica, sulla ‘misura’ politica, sulla ‘discrezione’ storiografica, sia fatto per piacere
a culture perplesse e in crisi, stanche di valore assoluti e, nel nome del libero esperimento, poco
disposte, ormai, a intraprendere la via che conduce al ‘fondamento’, si può comprendere”.
191
GAETA, Franco. “Il percorso storiografico di F. Guicciardini”, p. 159. “Nella Storia d’Italia la
tragedia italiana è narrata all’insegna della potenza della fortuna e della fallacia degli uomini”.
192
Idem. Ibid., I, 2, p.12. “Perché in Alessandro sesto (cosí volle essere chiamato il nuovo
pontefice) fu solerzia e sagacità singolare, consiglio eccellente, efficacia a persuadere
maravigliosa, e a tutte le faccende gravi sollecitudine e destrezza incredibile; ma erano queste virtù
avanzate di grande intervallo da’ vizi: costumi oscenissimi, non sincerità non vergogna non verità
non fede non religione, avarizia insaziabile, ambizione immoderata, crudeltà più che barbara e
ardentissima cupidità di esaltare in qualunche modo i figliuoli i quali erano molti”.
213
193
Cf. PHILLIPS, Mark. Op. cit., p.130. “But Guicciardini’s historical understanding is distilled
from his sense of the particulars, especially of personalities. Psychology and self-interest guide the
flow of events in the Storia”; GILBERT, Felix. Op. cit., p. 290. “more intensive psychological
explanations of human motivations”.
194
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., XVI, 12, p. 1666. “Lione [...] fu uomo di somma
liberalità; se però si conviene questo nome a quello spendere eccessivo che passa ogni misura. In
costui, assunto al pontificato, apparí tanta magnificenza e splendore e animo veramente regale che
e’sarebbe stato maraviglioso ezidiando in uno che fusse per lunga successione disceso di re o di
imperadori”.
195
Idem. “A questa tanta facilità era aggiunta uma profondissima simulazione, con la quale
aggirava ognuno nel principio del suo pontificato, e lo fece parere principe ottimo”.
214
seria o maior pontífice e de que faria coisas que jamais alguém havia feito
antes”.200 Este juízo, porém, não veio a se confirmar, simplesmente porque as
habilidades decisórias e a prudência de Leão X superavam e muito as de Clemente
VII: “em Leão havia mais habilidade que bondade”.201 Já Clemente,
196
Idem. “non dico di bontà apostólica, perché ne’ nostri corrotti costumi è laudata la bontà del
pontefice quando non trapassa la malignità degli altri uomini; ma era riputato clemente, cupido di
beneficiare ognuno e alienissimo da tutte le cose che potessino offendere alcuno”.
197
Idem, Ibid., XVI, 12, p. 1667. “Credettesi per molti, nel primo tempo del pontificato, che
e’fussi castissimo; ma si scoperse poi dedito eccessivamente, e ogni dí piú senza vergogna, in
quegli piaceri che con onestà non si possono nominare”.
198
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 44, p. 71. Sobre esta questão, afirma Newton
Bignotto: “a tendência dos homens de julgar pelas aparências, mesmo quando elas encontram forte
apoio na realidade, se mostra falha exatamente por não recompor a complexidade do real e por
conter a pressuposição de que é possível analisar a história a partir de proposições universais e
abstratas”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo. Um perfil de Francesco
Guicciardini, p. 63.
199
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, XVI, 12, p. 1667. “Perché essendo Giulio di
natura grave, diligente, assiduo alle faccende, alieno da’piaceri, ordinato e assegnato in ogni cosa”.
200
Idem. Ibid., XVI, 12, p. 1668. “dove entro con tanta espettazione che fu fatto giudizio
universale che avesse a essere maggiore pontefice e a fare cose maggiori che mai avesse fatte
alcuni di coloro che avevano insino a quel dí seduto in quella sedia”.
201
Idem. “Perché in Lione fu di grande lunga piú sufficienza che bontà”.
215
lhe eram naturais, manteve-se quase sempre incerto e ambíguo quando era
conduzido à efetivação do que havia há muito previsto, considerado e praticamente
resolvido.202
202
Idem. “E ancora che avesse lo intelletto capacissimo e notizia maravigliosa di tutte le cose del
mondo, nondimeno non corrispondeva nella risoluzione ed esecuzione; perché, impedito non
solamente dalla timidità dell’animo, che in lui non era piccola, e dalla cupidità di non spendere ma
eziandio da una certa irresoluzione e perplessità che gli era naturale, stesse quasi sempre sospeso e
ambiguo quando era condotto alla determinazione di quelle cose le quali aveva da lontano molte
volte previste, considerate e quali risolute”.
5.
Considerações Finais.
decisórios: nesse sentido, as lições que os leitores devem extrair destas histórias
dizem respeito menos à delimitação de modelos gerais de conduta, táticos ou
morais, que à definição de um modo particular de ragionamento que deve incidir
em ações imitativas, segundo o “verdadeiro conhecimento das histórias”, como
definido por Maquiavel, ou na prudência crítica, um tanto resignada, com que
Guicciardini procura compreender as complexidades de um tempo de crise e
corrupção.
Se, como afirmei anteriormente, Maquiavel e Guicciardini seriam
protagonistas em uma história da prudência, isto se deveria, também, à
constatação dos limites do modo prudencial de ajuizamento, decorrentes menos
das incertezas quanto a efetividade do procedimento empregado que da
constatação de mudanças tão severas na realidade que as ferramentas cognitivas
disponíveis, de caráter ético-retórico, embora adaptadas às condições do tempo, a
“navegação” num mar agitado pelos ventos, tornam-se incapazes de compreender
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB
1
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “História dos Conceitos e História Social”. In: Futuro Passado,
p.110.
6.
Referências Bibliográficas
6.1
Fontes Impressas.
FICINO, Marsílio. Three Books on Life / De vita libri tres. Edição bilíngue.
New York: The Renaissance Society of America, 1989.
_________ Scritti sull’astrologia. Milano: Rizzoli, 2000.
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Roma: Garzanti Editore, 1988.
_______ Consolatoria, acusatoria, defensoria. Autodifesa di un politico. Bari:
Laterza, 1993.
_________Dialogo del reggimento di Firenze. Torino: Bollati Boringhieri, 1994.
________ Ricordi / Reflexões. Tradução de Sergio Mauro. São Paulo: Hucitec,
Istituto Italiano di Cultura e Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1995. (Edição
bilíngüe).
________ Storie Fiorentine. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1998.
________ “Del modo di ordinare il governo popolare (Discorso di Logrogno)”.
In: BARBUTO, G. (org.). La liberta moderata. Torino: La Rosa Editrice,
2000.
_________ Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli. Torino:
Einaudi, 2000.
HERODOTO. História. São Paulo: Ediouro, sd.
HORACIO. Arte Poética / Ars Poetica. In: A poética clássica. São Paulo:
Cultrix, 2005.
221
6.2
Bibliografia Complementar:
UFMG, 2001.
__________ Republicanismo e Realismo. Um perfil de Francesco
Guicciardini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BLACK, Robert. “Education and the emergence of a literate society”. In:
NAJEMY, John (org.). Italy in the Age of the Renaissance. Oxford:
Oxford University Press, 1994.
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: Editora UnB,
1997 (1976).
BONDANELLA, Peter H. Francesco Guicciardini. Boston: Twayne Publishers,
1976.
________ Machiavelli and the Art of Renaissance History. Detroit: Wayne
State University Press, 1973.
BRISCOE, J. “The First Decade”. In: DOREY, T. A. (org.). Livy. London and
Toronto: Routledge & Keagan Paul: University of Toronto Press, 1971.
BROWN, Alison. “De-masking Renaissance republicanism”. In: HANKINS, J.
(org.). Renaissance Civic Humanism. Cambridge: Cambridge University
Press, 2000.
__________ “Rethinking the Renaissance in the aftermath of Italy’s crisis”. In:
NAJEMY, John (org.). Italy in the Age of the Renaissance. Oxford:
Oxford University Press, 1994.
225
GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini. New York and London: W.W.
Norton & Company, 1984 (1965).
________ Machiavelli e il suo tempo. Bologna: Il Mulino, 1977.
GODMAN, Peter. From Poliziano to Machiavelli. Florentine Humanism in the
High Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1998.
GRAFTON, Anthony. “Humanism and political theory”. In: BURNS, J. (org.).
The Cambridge History of Political Thought, 1450-1700. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991.
GRAZIA, Sebastian de. Maquiavel no inferno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
GREEN, Louis. Chronicle into History. An Essay on the Interpretation of
History in Florentine Fourteenth-Century Chronicles. Cambridge:
Cambridge University Press, 1972.
GREENBLATT, Stephen. Shakesperean Negotiations. Berkeley and Los
Angeles: University of California Press, 1988.
__________ Renaissance Self-fashioning. From More to Shakespeare.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1980.
GREENE, Thomas. “A flexibilidade do self na literatura do Renascimento”. Trad.
Gustavo Naves Franco e Felipe Charbel Teixeira. In: História &
Perspectivas, nº 32-33, 2005, pp.39-67.
229
HANKINS, James. (org.). “Rhetoric, history, and ideology: the civic panegyrics
of Leonardo Bruni”. In: HANKINS, James (org.). Renaissance Civic
Humanism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
HARIMAN, Robert. “Theory Without Modernity”. In: HARIMAN, Robert (org.).
Prudence. Classical Virtue, Postmodern Practice. Pennsylvania: The
Pennsylvania State University Press, 2003.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999.
HERSANT, Yves. “L’acédie et ses enfants”. In : CLAIRE, Jean (org.).
Mélancolie. Génie et folie en Occident. Paris : Gallimard, 2005
HORNBLOWER, Simon (org.). Greek Historiography. Oxford: Clarendon
Press, 1994.
HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004.
HUGHES, Diane Owen. “Bodies, disease, and society”. In: NAJEMY, John
(org.). Italy in the Age of the Renaissance. Oxford: Oxford University
Press, 2004.
HUTCHINSON, D. S. “Ethics”. In: BARNES, J. (org.). The Cambridge
Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
230
The rise of modern philosophy. The tensions between the new and
traditional philosophies from Machiavelli to Leibniz. Oxford: Clarendon
Press, 1993.
PARRY, Adam Milman. Logos and ergon in Thucydides. Salem: Ayer
Company, 1988.
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
________ “A história como colheita rústica de excelências”. In: SCHWARTZ,
Stuart B.; PÉCORA, Alcir (org.). As excelências do governador. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da
Argumentação. A Nova Retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
PÉREZ MARTÍNEZ, Ángel. El buen juicio en el Quijote. Un studio desde la
idea de la prudencia en los siglos de oro. Valencia: Pre-Textos, 2005.
PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford:
Clarendon, 1997.
PHILLIPS, Mark. “Machiavelli, Guicciardini, and the Tradition of Vernacular
Historiography in Florence”. In: The American Historical Review, 84, 1,
1979.
235
VEYNE, Paul. Seneca. The Life of a Stoic. New York and London: Routledge,
2003.
VIALA, Alain. Naissance de l’écrivain. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.
VINCIERI, Paolo. Natura umana e dominio. Machiavelli, Hobbes, Spinoza.
Ravenna: Longo Editore, 2003.
VIROLI, Maurizio. From Politics to Reason of State. The acquisition and
transformation of the language of politics 1250-1600. Cambridge:
Cambridge University Press, 1992.
_________O sorriso de Nicolau. São Paulo: Estação Liberdade, 2002 (1998).
_________ Machiavelli. Oxford: Oxford University Press, 1998.
VITI, Paolo. Leonardo Bruni e Firenze. Studi sulle lettere pubbliche e private.
Roma: Bulzoni, 1992.
VIVANTI, Corrado. “Machiavelli e l’informazione diplomatica nel primo
cinquecento”. In: PONTREMOLI, Alessandro (org.). La lingua e le lingue
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB