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Felipe Charbel Teixeira

TIMONEIROS:
Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Social da Cultura do Departamento de
História da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutor em
História.

Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin

Rio de Janeiro
Junho de 2008
Felipe Charbel Teixeira

Timoneiros:
Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História Social da Cultura do Departamento de História da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410551/CB

do título de Doutor em História.


Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº Marcelo Gantus Jasmin


Orientador
Departamento de História - PUC-Rio

Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo


Departamento de História – PUC-Rio

Profº Bernardo Medeiros Ferreira da Silva


Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Profª Andréa Viana Daher


Departamento de História - UFRJ

Profª Monica Grin Monteiro de Barros


Departamento de História – UFRJ

Profº Nizar Messari


Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio

Rio de Janeiro, 02 de junho de 2008.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
Universidade, do autor e do orientador.

Felipe Charbel Teixeira

Bacharel em História pela Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (UERJ), mestre em História Social da
Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), onde defendeu a dissertação A
República bem ordenada: Francesco Guicciardini e a
arte do bom governo. Autor de artigos publicados em
periódicos nacionais, como: “O melhor governo
possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial
de análise da política”. In: Dados, vol. 50, nº 2, 2007;
“Individualismo de fronteira em Romeu e Julieta e
Noite de Reis”. In: ArtCultura, nº 15, 2007; “Narrativa
e fronteira cultural”. Fênix, vol. 2, nº 2, 2005. Atuou
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nos anos de 2005 e 2006 como professor substituto no


Departamento de História da UFRJ.

Ficha Catalográfica

Teixeira, Felipe Charbel

Timoneiros: retórica, prudência e história em


Maquiavel e Guicciardini / Felipe Charbel Teixeira ;
orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2008.
240 f. ; 30 cm Ficha Catalográfica

Tese (Doutorado em História)–Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História social da cultura.


3. Retórica. 4. Prudência. 5. Historiografia. 6.
Renascimento. 7. Maquiavel. 8. Guicciardini. I.
Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
História. III. Título.

CDD: 900
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Para Carla, pela compreensão e presença.

Para meus pais, José Antonio e Nádia,


pelo apoio incondicional, e também para
minhas irmãs Daniela e Helena Karyme.
Agradecimentos

Ao professor Marcelo Gantus Jasmin, por todo o apoio e incentivo, pelas


sugestões sempre valiosas e pertinentes e especialmente pela amizade ao longo de
seis anos de mestrado e doutorado.

À professora Andrea Daher, pelo diálogo sempre estimulante, argúcia analítica e


grande amizade e incentivo nos últimos anos.

Ao professor Ricardo Benzaquen de Araújo, com quem tanto aprendi em diversos


cursos; registro minha admiração intelectual.
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Ao professor Bernardo Medeiros Ferreira da Silva e à professora Monica Grin,


pelos comentários e sugestões valiosas na argüição.

Aos professores e professoras que constroem na Pós-graduação em História da


PUC-Rio um rico ambiente de debates: além dos já referidos, cito Antonio
Edmílson Martins Rodrigues, Luiz Costa Lima, Ilmar Rohloff de Mattos, Maria
Elisa Sá Mader, João Masao Kamita, Luiz Resnik, Margarida de Souza Neves,
Berenice Cavalcante e demais.

Ao professor Manoel Salgado, que aprendi a admirar desde os tempos de


graduação, e às professoras Norma Côrtes e Maria Aparecida Motta, pela
enriquecedora convivência no PROCULT nos anos de 2005 e 2006.

Aos meus queridos amigos dos anos de mestrado e doutorado, parceiros de


debates, conversas e trocas intelectuais das mais estimulantes, sem os quais teria
sido impossível chegar até aqui com uma certa dose de saudosismo: Danrlei de
Freitas Azevedo, Sérgio Xavier, Gustavo Naves Franco, Marcelo Rangel,
Leonardo Padilha, Renata Schittino, Affonso Celso Thomaz Pereira, Maria
Eugênia Bertarelli, Luiza Rauter, Fabrina Magalhães Pinto, Janaína Oliveira,
Bernardo Buarque de Hollanda, Luiza Laranjeira, Fefa, além de Alexander
Martins Vianna e Luiz Cristiano Andrade, pelas agradáveis discussões sobre
temas ligados ao Renascimento, no ano de 2005.

Aos irmãos de sempre: Alípio Carmo, Jorge Roberto, Wander Paulus e Pedro
Barbosa.

Aos funcionários e funcionárias do departamento de História da PUC-Rio, sempre


solícitos, pacientes e bem-humorados: Cláudio, Cleuza, Anair e especialmente
Edna Timbó.
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À CAPES, pela bolsa de estudos concedida.


Resumo

Teixeira, Felipe Charbel; Jasmin, Marcelo Gantus. Timoneiros: retórica,


prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Rio de Janeiro, 2008,
240 p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O conceito de prudência possui centralidade em Maquiavel e Guicciardini,


sendo empregado para qualificar o bom juízo, a celeridade decisória e a aguçada
capacidade de avaliar as transformações da realidade. Os prudentes, além de
reunirem em si as qualidades citadas, devem ser capazes de articular os produtos
do cálculo cuidadoso da realidade na forma de textos ou orações regrados segundo
preceitos definidos em tratados clássicos de arte retórica. Abrem-se, assim, dois
horizontes distintos, porém mutuamente dependentes, em torno da prudência. De
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um lado, a ênfase no cálculo e medida das coisas do mundo, com destaque para a
questão dos efeitos, ou seja, os possíveis resultados das ações dos governantes e
demais agentes envolvidos nos processos de tomada de decisões em Repúblicas,
principados, reinos ou estados papais; de outro, a representação de uma
performance letrada da prudência em textos compostos segundo preceitos ético-
retóricos-poéticos convencionais. Trata-se, nesta tese, da discussão desta dupla
dimensão acerca da prudência, com ênfase no exame das histórias compostas por
Maquiavel e Guicciardini.

Palavras-chave
Retórica, Prudência, Historiografia, Renascimento, Maquiavel, Guicciardini.
Abstract

Teixeira, Felipe Charbel; Jasmin, Marcelo Gantus. Helmsmen: rhetoric,


prudence, and history in Machiavelli and Guicciardini. Rio de Janeiro,
2008, 240 p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The concept of prudence is vital for the appropriate understanding of


Machiavelli and Guicciardini’s texts, being used in order to qualify the good
judgment, the ability to make fast decisions and the acute comprehension of the
transformations of reality. The prudent men must also be capable of articulating
the products of the careful analysis of the reality’s movements in texts composed
according to the precepts established in classical treatises of rhetoric. Thus one
institutes two distinct, however mutually dependent, horizons concerning
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prudence. On the one hand, the emphasis on the calculation and measure of the
things of the world – the possible results of the actions of governors and the other
agents responsible for taking decisions in Republics, Principalities, Kingdoms or
Papal States. On the other hand, the representation of prudence’s literate
performance in texts composed according to the ethical and rhetorical and poetical
rules established by the tradition. This thesis discusses this double character
associated to prudence, especially through the exam of the histories composed by
Machiavelli and Guicciardini.

Keywords
Rhetoric, Prudence, Historiography, Renaissance, Machiavelli, Guicciardini.
Sumário

1. Introdução: navegando num mar agitado pelos ventos. 11

2. A prudência em Maquiavel e Guicciardini. 21


2.1 O homem e o corpo político. 21
2.2 O princípio da analogia. 48
2.3 Breve excurso: da phronesis à prudentia. 54
2.4 Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens”. 69
2.5 Uma retórica prudencial. 98

3. Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardini como 106


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homens de letras.
3.1 Exílio, ócio e melancolia. 106
3.2 Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a 120
Consolatoria de Guicciardini.
3.3 O homem de letras na escala da glória. 149

4. Ars historica como arte da prudência. 162


4.1 Uma construção de fatos e palavras. 162
4.2 A concepção humanista da ars historica. 181
4.3 Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias. 193
4.4 Guicciardini e os limites da prudência. 207

5. Considerações finais. 216

6. Referências Bibliográficas. 219


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Eu estivera ao leme na noite


escura, a lanterna ardendo fraca
sobre minha cabeça.

(Franz Kafka. O Timoneiro).


1.
Introdução: navegando num mar agitado pelos ventos.

O conceito de prudência possui centralidade nos escritos políticos e


históricos de Maquiavel e Guicciardini, sendo empregado para qualificar o bom
juízo, a celeridade decisória e a aguçada capacidade de avaliar as transformações e
sutilezas da realidade – ou coisas do mundo, como diziam os florentinos do século
XVI. Atentos à dinâmica entre diversidades substanciais, aspectos estáveis ou
recorrentes das coisas humanas em tempos diversos, e acidentes, eventos fortuitos
e casuais associados à Providência ou à Fortuna, os prudentes, além de reunirem
em si as qualidades citadas, devem ser capazes de articular os produtos do cálculo
cuidadoso da realidade na forma de textos ou orações de retórica deliberativa e/ou
epidítica, regrados segundo preceitos definidos em tratados como a Retórica a
Herênio, os textos ciceronianos De Inventione e De Oratore, além da Institutio
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Oratoria de Quintiliano.
Não existe prudência sem reconhecimento público: apenas os homens
reputados dignos e honestos por seus pares podem almejar glória e distinção. Para
que a reputação de prudente seja alcançada faz-se necessário dominar as várias
convenções ético-retóricas prescritas para o tratamento hierárquico entre iguais,
superiores e inferiores. Um homem incapaz de se expressar eloqüentemente em
cerimônias públicas ou instâncias deliberativas de uma República; inábil na forma
de tratar o príncipe ou condottiero de um regime stretto; inepto na composição de
histórias e tratados segundo o decoro letrado (regras de conveniência previstas e
aguardadas por leitores e ouvintes); um homem sem qualidades visíveis e bem
definidas jamais será apontado como prudente, mesmo que demonstre
impressionante argúcia analítica (isoladamente, ela passaria despercebida).
Abrem-se, assim, dois horizontes distintos, porém mutuamente dependentes,
em torno da tópica da prudência. De um lado, a ênfase no cálculo e medida das
coisas do mundo, com destaque para a questão dos efeitos, ou seja, os possíveis
resultados das ações dos governantes e demais agentes envolvidos nos processos
de tomada de decisões em Repúblicas, principados, reinos ou estados papais. De
outro, a representação de uma performance letrada da prudência em textos
compostos segundo preceitos ético-retóricos-poéticos definidos e examinados
12

pelas autoridades antigas e humanistas: dramatizações (nos diálogos, e


parcialmente nas histórias) de processos orais de deliberação pública – caso do
Dialogo de Reggimento di Firenze de Guicciardini, da Arte da Guerra e da Vita di
Castruccio Castracani de Maquiavel, e das obras históricas compostas por ambos
–, ou exposições de argumentos na forma de tratados, comentários ou máximas,
como O Príncipe e os Discorsi, redigidos pelo secretário, e o Discorso di
Logrogno, as Considerazioni e os Ricordi de Guicciardini. Estas duas dimensões
são indissociáveis; porém, para efeito analítico, será preciso muitas vezes tratá-las
isoladamente, sem perder de vista sua articulação necessária.
O conhecimento prudencial assenta-se em critérios de uma racionalidade
não-cartesiana, onde a experiência e o poder da tradição são enormemente
valorizados, e a palavra das autoridades – sejam elas as Escrituras, livros de
cabala, os astros (cujas vozes se revelam nos mapas astrológicos) ou autores
venerados da Antiguidade, como Aristóteles, Cícero, Sêneca, Quintiliano,
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Salústio, Tito Lívio, Lucrécio, Tácito, entre muitos outros – possui o poder de Lei,
mesmo para aqueles reverenciados pela posteridade como inovadores em certos
campos, casos de Maquiavel e Guicciardini. A prudência consiste, nesse sentido,
no dispositivo responsável por flexibilizar de algum modo essas Leis,
interpretando-as segundo os princípios da contingência, da necessidade e da
“qualidade dos tempos”; ela permite a delimitação de regras provisórias de
validação, estabelecidas segundo o critério da probabilidade e articuladas
analogicamente, mostrando-se capaz, assim, de lançar alguma luz sobre a
realidade sempre cambiante.
Em analogia recorrente, a prudência é vista como o leme que permite a
navegação com alguma segurança em mares incertos. O timoneiro competente é
precisamente aquele capacitado a agir segundo o bom juízo; a tomar decisões
adequadas após analisar e interpretar devidamente os movimentos das “coisas do
mundo”; a agir no tempo certo, prevendo com alguma segurança, através do
exame da situação presente em comparação com momentos passados – isto pela
experiência no trato público e pela leitura atenta das histórias antigas e modernas
–, os movimentos imediatos e futuros dos agentes políticos; a reconhecer os
limites de toda ação, atendo-se exclusivamente ao que é possível realizar;
finalmente, a garantir, com um mínimo de segurança, a consecução dos fins
13

últimos desejados e adequados à saúde da res publica – fins honestos, como


argumentarei.
No primeiro capítulo, procuro situar a produção letrada de Maquiavel e
Guicciardini em relação a um corpo de idéias comuns aos florentinos do século
XVI acerca da cosmologia, teoria dos humores, experiência do tempo e natureza
humana – aspectos de um sistema de representações coletivas distinto do
moderno. Enfatizo, nesse sentido, o tratamento de questões como: a singularidade
de uma forma de experiência temporal irredutível a metáforas geométricas como
“tempo circular” ou “tempo linear”; a associação entre a idéia de “diversidades
substanciais” e os princípios de estabilidade da natureza humana e recorrência
circular-assimétrica de padrões gerais, como costumes e formas de governo; a
teoria hipocrático-galênica dos humores, aplicada ao exame do corpo político; a
centralidade do princípio da analogia para o cálculo prudencial e urdidura de
juízos fundamentados no recurso à experiência e às “histórias antigas e
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modernas”, entre outros aspectos.


Desnecessário dizer que não se trata de uma dedução do “particular dos
textos” do “geral da cultura” – o texto não é pensado como entidade alheia às
práticas culturais, tampouco a cultura é concebida estaticamente, como se fosse
sempre igual a si mesma –, mas da tentativa de compreender alguns mecanismos
de circulação e “negociação” de “energia social” nos textos políticos e históricos
de Maquiavel e Guicciardini, o que implica, entre outras coisas, partir das
seguintes premissas, elencadas por Stephen Greenblatt em Shakesperean
Negotiations:

“1. Não pode haver apelo à idéia de gênio como origem das energias da grande
arte.
2. Não pode haver criação sem motivo.
3. Não pode haver representação transcendente, atemporal ou imutável.
4. Não pode haver artefatos autônomos.
5. Não pode haver expressão sem uma origem e um objeto, um de e um para.
6. Não pode haver arte sem energia social
7. Não pode haver geração espontânea de energia social”.1

1
GREENBLATT, Stephen. Shakespearian Negotiations, p.12.
14

Como argumenta Greenblatt, a “energia social”2 circula no contínuo


comércio simbólico de valores culturais. Ao analisar o conceito de prudência em
Maquiavel e Guicciardini procuro destrinchar diversos fios, elementos peculiares
aos seus escritos que não dizem respeito a “visões de mundo” rigidamente
conformadas, mas a processos dinâmicos onde interagem práticas ético-retóricas e
valores culturais arraigados entre os florentinos acerca do tempo, do cosmo, do
corpo humano e político e da natureza de homens e cidades, não só
compartilhados em determinado “contexto intelectual” como também suscetíveis
a “negociações” de toda espécie: releituras, adequações, interpretações, etc. Como
pretendo mostrar, as apropriações das mais diversas referências clássicas e
humanistas, assim como as maneiras particulares com que Maquiavel e
Guicciardini lidavam com muitas das concepções circulantes entre os florentinos
do Cinquecento sobre o homem, o tempo e a natureza – especialmente a relação
entre diversidades substanciais e acidentes –, alicerçam uma redefinição3 do
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conceito de prudência calcada tanto na valorização da argúcia do olhar para a


dinâmica complexa das coisas do mundo quanto no deslocamento da prudência do
quadro convencional das virtudes cardeais, especialmente no que diz respeito à
sua subsunção à justiça – sem que por isso ela deixe de ser considerada uma
virtude.
Em seguida, após analisar brevemente o princípio da analogia como modo
particular de inferência do juízo prudencial – compreendida como disposição
calculadora da “alma racional”, para falar como Aristóteles, a prudência opera
com dados contingentes da realidade, mobilizando-os analogicamente numa busca
incessante de semelhanças entre elementos díspares do mundo –, discuto algumas
dentre as mais importantes tradições interpretativas sobre a prudência, com
destaque para a filosofia prática aristotélica, para a discussão da indissociabilidade
entre prudência e retórica em Cícero, para o tratamento tomista e para as reflexões
dos humanistas Matteo Palmieri e Giovanni Pontano sobre a questão. A maneira

2
Cf. Idem. Ibid., p.6. “We identify energia only indirectly, by its effects: it is manifested in the
capacity of certain verbal, aural, and visual traces to produce, shape, and organize collective
physical and mental experiences”.
3
O emprego da palavra “redefinição” não deve se confundir com uma intencionalidade
transformadora. Tal redefinição corresponde a movimentos sutis, e pode ser pensada como uma
reconfiguração do conceito de prudência, ou como uma série de ajustes conceituais efetuados na
própria mobilização e emprego da categoria em ocasiões específicas, sem que gerem, contudo,
movimentos teóricos de ruptura com reflexões de autoridades como Aristóteles e Cícero acerca da
phronesis ou da prudentia.
15

com que Maquiavel e Guicciardini concebiam a prudência é ao mesmo tempo


devedora de aspectos significativos dessas reflexões, especialmente a aristotélica,
e inovadora em sua ênfase no exame dos efeitos das ações e na antecipação das
possíveis deliberações dos agentes envolvidos nos processos decisórios de
Repúblicas, principados, monarquias e estados papais. Não que estes elementos da
prudência fossem estranhos aos tratadistas gregos e latinos; a redefinição do
conceito não constitui, nesse sentido, uma ruptura com as práticas ético-retóricas
antigas e humanistas. Por meio da análise da mobilização, nos textos políticos e
históricos de Maquiavel e Guicciardini, de certos lugares-comuns da retórica
deliberativa – como as tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da
necessidade –, argumento que a ênfase do secretário na verità effetualle della cosa
não representa, como defende John Najemy, uma “intenção de estabelecer um
discurso da política independente da retórica e da eloqüência”.4 Tampouco
compartilho da posição de Athanasios Moulakis de que as recorrentes assertivas
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do personagem Bernardo del Nero no Dialogo del Reggimento di Firenze de


Guicciardini, prescrevendo a atinência do analista político aos “efeitos” e à
“natureza das coisas”, no lugar da investigação de “um governo immaginato, que
seja mais fácil de aparecer nos livros que na prática”,5 sejam indícios de um
“constitucionalismo realista avant le mot”, efetiva ruptura com o “republicanismo
clássico” decorrente da descaracterização do vir bonus dicendi peritus.6 Defendo,
em concordância com Victoria Kahn, que Maquiavel – assim como Guicciardini,
acrescentaria – “não suplanta a retórica com uma visão mais realista da política;
ao contrário, faz a política mais profundamente retórica do que havia sido até
então”.7 Nesse sentido, a reconfiguração do conceito de prudência corresponderia
a uma mudança de foco analítico cujo sentido fundamental seria não o de operar

4
NAJEMY, John. “Language and The Prince”, p.91. “[…] The Prince announces its intention to
establish a discourse of politics independent of rhetoric and eloquence”.
5
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.60.
6
MOULAKIS, Athanasios. Republican Realism in Renaissance Florence, p.22. “Realist
constitutionalism is used here to describe this innovating complex of ideas; a constitutionalism
avant le mot […]. What at first sight appears as a revival of classical republicanism is in fact a
departure from it, as well as a departure from medieval ecumenic order. The exemplary statesman
is not Cicero’s ideal of the vir bonus dicendi peritus, ‘the good man expert in speech’’. He is
instead the savvio, the prudent man, capable of shrewd an reasoned, informed by a worldly
experience normally associated with high social standing”.
7
KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 8. “[...] I argue that Machiavelli does not supplant
rhetoric with a more realistic view of politics but rather makes politics more deeply rhetorical than
it had been in the earlier humanist tradition”.
16

uma crítica destrutiva do humanismo, e sim a tentativa de aperfeiçoar seus


mecanismos cognitivos segundo o critério da adaptação às condições dos tempos.
Como percebe Alcir Pécora, “o exame de procedimentos previstos e
aplicados pelas convenções letradas”8 estabelecidas nos tratados antigos de
retórica – como mobilização de lugares-comuns, medidas dispositivas e figuras da
elocução – torna possível demarcar “determinações convencionais e históricas
constitutivas dos sentidos verossímeis”9 de textos complexos, anteriores ao
período Romântico. Defendo que o exame da mobilização de certos lugares-
comuns da retórica deliberativa e epidítica permite a delimitação de um certo
caráter convencional dos escritos de Maquiavel e Guicciardini, condição
essencial para que se possa estabelecer, segundo o critério do verossímil histórico,
traços de tensões com as tradições clássica e humanista, pensados não como
produtos de rupturas intencionais, e sim como resultados da convergência de
diversos debates e referências citadinas.
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Pode-se citar, nesse sentido, a retórica típica das pratiche, reuniões dos
florentinos ilustres para aconselhamento das magistraturas da República10 que
foram registradas por redatores oficiais, um dos quais Maquiavel, entre 1498 e
1512; pode-se perceber, nos discursos dos oradores, tanto uma ênfase nas tópicas
tradicionais da retórica deliberativa, como a honestidade, a utilidade, a segurança
e a necessidade, quanto a valorização do critério dos “efeitos” – ou seja, a
tentativa de antecipar as possíveis deliberações e ações dos agentes envolvidos
nos diversos processos decisórios atrelados à vida política. Também as
chancelarias e magistraturas da República possuíam formas particulares de debate
não muito vinculadas ao tratamento humanista acerca do bom governo e da
concórdia; trata-se do que Maurizio Viroli denominou “arte do estado” – conjunto
de preceitos empíricos associados à condução da res publica ou de um stato
principesco, os quais visavam à manutenção e ampliação dos seus domínios.11
A maneira com que Maquiavel e Guicciardini compreendem os fenômenos
políticos é em grande medida devedora desses debates, sem estar diretamente
subsumida a eles. O que há de específico nesta forma de abordagem das “coisas
do mundo” – e ao mesmo tempo constitui o elemento-chave para as significativas

8
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.12.
9
Idem. Ibid., p.11.
10
Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.29.
17

divergências existentes entre os dois acerca de questões como a imitação dos


romanos, a concórdia e as possibilidades de reabilitação da antiga virtus – é a
singularidade que a categoria de prudência adquire nos escritos políticos e
históricos de Maquiavel e Guicciardini. Não se trata mais da phronesis aristotélica
ou da prudentia de Cícero e dos humanistas, e sim de uma prudenzia distanciada
do quadro das virtudes cardeais e dos imperativos éticos que a atrelavam à justiça
e às demais virtudes morais. Nesse sentido, a redefinição da prudência está
diretamente associada às mudanças no tratamento da virtù – em Maquiavel pela
vinculação do conceito ao critério da necessidade; em Guicciardini como efeito da
pouca importância atribuída à virtù, como notam, respectivamente, Quentin
Skinner e John Pocock.12
Concebida como disposição calculativa retoricamente vinculada ao decoro
letrado dos gêneros discursivos e à produção de efeitos persuasivos – o que, se
não chega a constituir novidade, diferencia-se de reflexões como a aristotélica e a
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ciceroniana pela forma peculiar com que tal articulação é proposta e consumada –,
a prudência adquire um novo estatuto, por estar no cerne de um olhar para os
fenômenos políticos calcado na valorização do exame das minúcias da realidade,
das condições dos tempos e das mudanças da Fortuna; em suma, um olhar mais
atento à dinâmica das coisas do mundo que a possíveis deontologias. Nesse
sentido, argumento que a ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à
efetividade analítica não opera uma separação entre retórica e política; ao
contrário, a idéia de verità effetualle, compartilhada por ambos, realça tanto a
importância do cálculo cuidadoso da dinâmica da realidade como da produção,
pelo orador e pelo homem de letras, de efeitos persuasivos sem os quais o
ajuizamento, ele próprio condicionado por preceitos ético-retóricos convencionais,
não será reconhecido como prudente. Daí ser possível atestar uma
indissociabilidade entre retórica, prudência e decoro letrado, cuja unidade
conforma uma efetiva retórica prudencial: somente um discurso copioso tanto em
suas figuras e ornato quanto no conhecimento da matéria (rerum cognitione) pode
ser capaz de produzir bons efeitos, incitando os ouvintes ou leitores à ação.
Discurso copioso que é o produto do engenho de homens prudentes,

11
Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p. 180.
18

simultaneamente dedicados à vita negotiosa e às práticas letradas – ou, no caso de


Maquiavel e Guicciardini, forçosamente apartados da vita negotiosa. Daí a
discussão, no segundo capítulo, do lento e descontínuo processo de formação de
uma representação letrada – a imagem de homem de letras (litterati) –, nos
escritos post res perditas de ambos.
Tanto Maquiavel quanto Guicicardini construíram importantes trajetórias
públicas, atuando como agentes da vida florentina e italiana nos primeiros
decênios do Cinquecento. Maquiavel foi segundo chanceler da República e
secretário dos Dez entre 1498 e 1512, quando precisou abandonar seus cargos e a
cidade por força do retorno dos Medici. Guicciardini iniciou sua atuação pouco
antes da queda da República, como embaixador florentino junto à corte de
Fernando de Aragão, rei de Espanha, tendo servido aos Medici como governador
de importantes províncias e lugar-tenente papal até 1527, ano do saque de Roma e
prisão do papa Clemente VII, seu protetor. Embora tenham ocasionalmente se
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dedicado à escrita em momentos de otium inter negotium, em conformidade com a


noção ciceroniana de “ócio com dignidade” – pode-se mencionar os versos
maquiavelianos da primeira Decenal (elaborada entre 1504 e 1506), além de
opúsculos diversos redigidos pelo secretário durante missões oficiais, e no caso de
Guicciardini importantes registros como o Discorso di Logrogno (1512), o
Dialogo del Reggimento di Firenze (1521-1524), as primeiras versões do Ricordi,
além de alguns textos inacabados, sem contar as juvenis Storie Fiorentine,
compostas antes de 1512 –, a situação de exílio forçado e afastamento
compulsório dos negócios públicos foi decisiva para que viessem a conceber para
si mesmos um lugar como homem de letras, se não tão digno e glorioso em
comparação com a participação ativa na condução dos assuntos citadinos,
certamente não destituído de importância.
Argumento que a construção de tal representação letrada – que jamais chega
a se afirmar plenamente como um entendimento estável acerca da relação entre
ócio e negócio, destituído de tensões e ambigüidades –, permite a Maquiavel e
Guicciardini se manterem atrelados às discussões políticas de seu tempo de modo
honroso, isto porque na composição de tratados, comentários, diálogos, vidas e

12
SKINNER, Quentin. Maquiavel, p. 65; POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p. 238.
“There could be no clear statement of Guicciardini’s refusal to enter into that world of virtù that so
fascinated Machiavelli”.
19

histórias, subgêneros da retórica deliberativa e epidítica, eles apresentam o


produto de cálculo cuidadoso e medido das coisas do mundo – com base nos
critérios da experiência, da leitura atenta das histórias, da ragione e da discrezione
–, segundo preceitos ético-retóricos que não apenas “enformam” o que será dito,
mas que efetivamente participam de todos os momentos do cálculo prudencial.
Nesse sentido, as produções letradas de Maquiavel e Guicciardini podem ser
compreendidas como performances prudenciais do bom juízo, cuja utilidade
pública, condição decisiva para o reconhecimento da prudência de tais escritos, se
revela de várias formas: na exposição do percurso de um ragionamento, pela
dramatização do diálogo entre homens reputados prudentes; pelo tratamento
sistemático de uma matéria visando o aconselhamento; pelo comentário de
auctores da Antiguidade ou mesmo de obras contemporâneas; finalmente pela
delimitação de lições prudenciais a partir da memória dos acontecimentos
(memoria rerum gestarum) – através do registro das histórias antigas e modernas
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ou do acúmulo de experiência –, regrada como ars historica.


O terceiro capítulo privilegia exatamente a análise da ars historica de
Maquiavel e Guicciardini. Por ars historica, ou simplesmente história, entenda-se
um tipo de relato regrado segundo os preceitos associados aos gêneros retóricos
epidítico e deliberativo, definidos no livro II do diálogo ciceroniano De Oratore e
retomados por tratadistas como Bartolommeo della Fonte, Giovanni Pontano e
Paolo Cortesi no século XV. Os usos que faço do vocábulo “história” não devem
se confundir em momento algum com seu sentido moderno – a história como
singular coletivo, evento e representação de si mesma.13 Trata-se, ao contrário, de
uma concepção retórica do relato histórico, cujas duas finalidades básicas seriam
a de deleitar a audiência ou os leitores – produzindo efeitos de presença por meio
de narrativa copiosa em figuras e idéias, breve, ritmada e repleta de discursos
diretos in utramque partem, representações letradas do debate na res publica – e
de movê-los à ação, o que poderia ser obtido através da amplificação de virtudes e
vícios, conformando modelos para a imitação ou para o repúdio. Nesse sentido, se
a história, entre os humanistas, era concebida como uma forma de arte da
prudência – arte no sentido de uma técnica, tekhnè –, monumento cívico de
afirmação pública da concórdia e da liberdade, em Maquiavel e Guicciardini ela

13 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae”. In: Futuro Passado, pp. 47-60.
20

também será um tipo de arte da prudência, com outros contornos, porém: a


história deixa de possuir um caráter monumental e adquire – ou recupera, segundo
o critério maquiaveliano do verdadeiro conhecimento das histórias, ou seja, da
leitura diligente das histórias antigas com vistas à modelagem de ações imitativas
no presente – um aspecto de evento. Nesse sentido, as Istorie Fiorentine e a Storia
d’Italia mais ensinam a ajuizar que propriamente oferecem lições generalizantes
de conduta; embora máximas, sentenças e lugares-comuns circulem livremente
nestes textos, eles atuam como alicerces dos ajuizamentos sobre as
particularidades das coisas do mundo, e não como extratos universais de validade
indistinta, aplicáveis nas mais diversas circunstâncias. Elas ensinam a navegar
“num mar agitado pelos ventos”, indicam os modos e condutas que o timoneiro
deve seguir, traçam percursos possíveis; porém, não são capazes de oferecer
segurança no trajeto, sempre suscetível às mais diversas variações e
contingências. Assim, embora seja o fio condutor das Istorie Fiorentine de
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Maquiavel e da Storia d’Italia de Guicciardini, a prudência é nelas apresentada e


tematizada em seus limites, por oferecer como lição não um estável produto final
do bom juízo, mas o incerto e efêmero percurso do seu próprio ragionamento.
2.
A prudência em Maquiavel e Guicciardini.

A sentence is but a cheveril glove


to a good wit
(Shakespeare. Twelfth Night)

2.1
O homem e o corpo político.

Cosmologia, teoria dos humores, experiência do tempo e natureza humana:


algumas considerações sobre o sistema de representações coletivas dos
florentinos na primeira metade do século XVI e sua centralidade para a
compreensão dos sentidos verossímeis, segundo o critério da particularidade
histórica, dos textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini.
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A retórica prudencial de Maquiavel e Guicciardini possui uma lógica


peculiar que só pode ser compreendida em sua particularidade história se pensada
em função de um sistema de representações coletivas de caráter não-cartesiano,
estruturado por uma forma de conhecimento que atribui importância substantiva
às similitudes, analogias e relações simpáticas entre as coisas do mundo, e
condicionado por uma cosmologia específica alicerçada na distinção entre uma
esfera celeste, sempre igual a si mesma, e uma esfera sublunar, suscetível a ciclos
e transformações condicionados pelo movimento dos astros.1 Em As Palavras e as
Coisas, Michel Foucault chamou de epistéme do século XVI a esta forma
específica de compreensão da realidade, distinta, em quase todos os seus aspetos
centrais, da que se afirmará na modernidade.
Em The Machiavellian Cosmos, Anthony J. Parel examina os escritos de
Maquiavel pelos seguintes vieses: o papel dos astros nas coisas humanas e a
importância da teoria dos humores, de origem hipocrático-galênica, para a
compreensão da idéia de “corpo político” no autor florentino. Segundo Parel, estes

1
Sobre a questão das representações coletivas, conferir: CHARTIER, Roger. “O mundo como
representação”. In: À beira da falésia, p.72. “Tentar superá-las [as divisões entre ‘objetividade das
estruturas’ e ‘subjetividade das representações’] exige, primeiramente, considerar os esquemas
geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras ‘instituições sociais’,
incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social [...], mas
22

são aspectos decisivos da compreensão maquiaveliana da política, intrinsecamente


associados à maneira com que o secretário concebe a instabilidade das coisas do
mundo, o papel da Fortuna nos assuntos humanos, o sentido de virtù e defende o
princípio da imitação dos antigos.
Segundo esta lógica, haveria um tipo de “causalidade exercida pelos céus
tanto nas ‘coisas do mundo’ quanto nas ‘coisas humanas’”, a submeter os seres
humanos “às mudanças qualitativas supostamente ligadas aos movimentos astrais
e às limitações impostas a eles pelo humor individual”.2 Configura-se, assim, um
tipo de naturalismo político alicerçado na idéia de uma relação entre movimento
dos astros, equilíbrio dos humores do corpo humano e político e instabilidade de
ordenações, cidades, leis e costumes. A tópica da “vontade dos céus”, recorrente
em diversos escritos florentinos da primeira metade do século XVI, encontra-se
intimamente associada a esta compreensão da dinâmica cosmológica: de acordo
com Maquiavel, o Duque de Atenas teria sido mandado a Florença “pela vontade
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dos céus, que preparavam as coisas para males futuros”3; Guicciardini, pela voz de
Bernado del Nero, afirma no Dialogo del Reggimento di Firenze que a tirania
pode surgir como resultado da “má fortuna ou das disposições dos céus”.4
Tal forma de compreender a ordem do cosmo remete à física aristotélica, e
parte da premissa de que o movimento do mundo celeste é eterno e perfeitamente
circular.5 Já o mundo sublunar se submete a alterações e transformações
contínuas, atreladas à dinâmica da esfera celeste, as quais incidem em elevada
instabilidade das “coisas do mundo” e das “coisas humanas”. Numa famosa
passagem dos Discorsi, Maquiavel ampara sua defesa da imitação das ações
virtuosas dos antigos com o seguinte argumento: “o céu, o sol, os elementos e os
homens” não mudaram de “movimento, ordem e poder, distinguindo-se do que
eram antigamente”.6 Céu, sol e os elementos são imutáveis. Já as coisas humanas
apresentam oscilações contínuas; no entanto, por estarem submetidas ao

também considerar, corolariamente, essas representações coletivas como as matrizes práticas que
constroem o próprio mundo social”.
2
PAREL, Anthony J. The Machiavellian Cosmos, p.9. “’Natural cause’ I interpret here to mean
the causality exercised by the heavens on both the ‘things of the world’ and on ‘human things’”.
3
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, pp. 132-2.
4
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 86. “ma non mi pare già che
se la mala fortuna loro o la disposizione de’ cieli ha voluto che surga uno tiranno [...]”.
5
Cf. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa, p.34; BERTI, Enrico. As razões
de Aristóteles, pp.43-74.
6
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, Proêmio, p.7.
23

movimento perfeito da esfera celeste, mostram-se suscetíveis a certos padrões de


regularidade e estabilidade – respectivamente os ciclos assimétricos de ascensão e
queda dos povos e costumes e a natureza humana constante –, efetivas condições
de possibilidade para a imitação dos antigos. “A grande verdade”, diz Maquiavel
na abertura do livro III dos Discorsi, “é que todas as coisas do mundo têm seu
tempo de vida; mas as que seguem todo o curso que lhes é ordenado pelo céu
geralmente são aquelas cujo corpo não se desordena, mas se mantém de modo
ordenado, sem alterações, ou, se as houver, com alterações que o tornem mais
saudável, e não o danifiquem”.7 As coisas do mundo, para o secretário, só se
mostram duradouras quando seguem a tendência das predisposições celestes,
numa espécie de adaptação às “condições dos tempos” capaz de tornar possível a
regeneração e fortalecimento dos corpos políticos.
Para empregar palavras do historiador Paolo Rossi, “o mundo terrestre” era
entendido como “o mundo da alteração e da mutação, do nascimento e da morte,
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da geração e da corrupção”, ao contrário da esfera celeste, “inalterável e perene”,


com seus movimentos regulares onde “nada nasce e nada se corrompe”.8 Não se
tratava, porém, de uma dicotomia irrestrita: havia um sentido de integração entre
as duas esferas. Embora o mundo terrestre fosse visto como lugar dos ciclos de
nascimento e morte, geração e corrupção, suas oscilações não eram
compreendidas simplesmente como um caos de eventos difusos; muitas das
transformações do mundo sublunar eram consideradas efeitos de uma causa
primeira, o movimento dos astros.9 Prevalecia, assim, a chamada “doutrina da
simpatia”, a qual pressupunha, para falar como o filósofo neoplatônico Marsílio
Ficino, “uma amizade entre as estrelas e os elementos”.10 Como se acreditava que
todos os entes do mundo sublunar eram compostos pelos quatro elementos (terra,
água, fogo e ar), supunha-se que a trajetória das estrelas deveria necessariamente
interferir, se não completa, ao menos parcialmente, nas agitações das “coisas do
mundo” – inclusive nas transformações sucessivas a que se submetiam povos e
cidades. Caberia aos homens interpretar tais tendências e se adequar a elas,
visando assim à estabilidade e saúde dos costumes e ordenações políticas.

7
Idem. Ibid., III, 1, p.305.
8
ROSSI, Paolo. Op. cit., p.36.
9
Cf. FARACOVI, Ornella Pompeo. “Introduzione”. In: Scritti sull’astrologia, p.9.
10
FICINO, Marsilio. Sopra lo amore, III, iii, p. 51. “É ancora nelle stelle e negli elementi una
certa amicizia, la quale l’Astrologia considera”.
24

Se a idéia de uma relação de determinação entre a esfera celeste e o mundo


sublunar não sofrerá abalos significativos até o questionamento dos pressupostos
da física aristotélica por Copérnico, Galileu, Kepler e outros11, o problema do
caráter divinatório da astrologia se faz motivo de intensa controvérsia no século
XVI.12 Em fins do Quattrocento, inventivas contra a astrologia judicial foram
redigidas por Girolamo Savonarola e Pico della Mirandolla, entre outros.13
Alguns, como Marsílio Ficino, mostravam-se favoráveis à apreciação dos
movimentos astrais para o exame das coisas humanas; o filósofo argumenta em
De vita coelitus comparanda que o poder de atração dos astros deveria ser levado
em conta no tratamento de uma enfermidade, com vistas à melhoria das condições
gerais do paciente.
De acordo com esta lógica, como corpo e alma (essência divina) eram
considerados indissociáveis14, e sendo o corpo formado por humores compostos
pelos quatro elementos – e o próprio temperamento percebido como o resultado
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da variação dos humores –, a atração exercida pelos astros será invariavelmente


sentida pelos seres humanos. A medicina deve consistir, segundo Ficino, na
manipulação desse poder de atração, visando ao máximo o equilíbrio dos humores
corporais (sangue, linfa, bile amarela e bile negra), situação alcançável, ao menos
parcialmente, com o uso de amuletos, plantas, alimentos e perfumes credenciados
a atrair as forças de determinados planetas.15 Por outro lado, a capacidade de
prever o futuro pelos astros é vista com bastante reserva por Ficino em sua
Disputa contro il giudizio degli astrologi – tais previsões, segundo ele, “não

11
Como percebe Claude-Gilbert Dubois, as imagens do “universo-imagem” e do “universo-
mensagem” predominavam no século XVI. “Para escapar do dilema”, afirma ele, “foi preciso
elaborar um terceiro grupo de metáforas: as do universo-objeto, universo-máquina, universo-
relógio, cujo campo vai determinar o surgimento de um pensamento ‘científico’; na verdade, uma
terceira via do imaginário desenvolvida com a língua dos artesãos que falam de técnicas e dos
mercadores que falam de operações e cifras”. DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da
Renascença, p.83.
12
A pressuposição de causalidade entre movimentos dos astros e as coisas do mundo foi refutada
algumas vezes nos séculos XV e XVI, especialmente em tratados filosóficos que tratavam do tema
da Fortuna. No entanto, a crença em tal relação era amplamente predominante. Acerca desta
questão, conferir: PAREL, Anthony. Op. cit., p.18.
13
Cf. Idem. Ibid., p.20. “In any case, the ultimate purpose of both Pico and Savonarola was the
same”.
14
Cf. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética, p.40.
15
Cf. FICINO, Marsílio. De vita libri tres, III, 1, pp. 249-255. Sobre esta questão, afirma Yates:
“A magia de Ficino baseia-se numa teoria do spiritus [...]. Para Ficino, ‘atrair para a terra a vida
dos céus’ só é possível se se usar o spiritus como um canal por meio do qual se difunde a
influência das estrelas”. YATES, Frances. Op. cit., pp. 81-2.
25

prenunciam eventos específicos para os homens, mas somente eventos


genéricos”.16
Maquiavel adota uma postura claramente contrária a Pico e Savonarola, ao
defender a influência dos céus nas coisas humanas, como se pode perceber na já
citada abertura do livro III dos Discorsi. Em estudo cuidadoso sobre a vida
pública na Florença Renascentista, Richard Trexler argumenta que “a ritualização
do comportamento em torno de pontos astrológicos é um dos motivos mais
conhecidos da vida formal florentina. O bastão de comando não podia ser dado a
um condottiere, tropas não podiam deixar a cidade, batalhas não seriam iniciadas,
exceto nos momentos propícios”.17 Ainda que, de acordo com Trexler, Savonarola
possa ter exagerado ao dizer que “os florentinos acreditavam mais na astrologia
que em Deus”18, a disseminação da confiança no poder dos astros fazia-se sentir
sobremaneira, inclusive nas crônicas e Histórias da cidade, como em Giovanni
Villani, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini e, no século XVI, Maquiavel,
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Guicciardini e Cerretani.
Todavia, não se deve confundir a crença no poder dos astros com a apologia
da astrologia judicial, aquela voltada para a adivinhação do futuro. O respeito às
predições e adivinhações de toda espécie eram comuns, como atesta a seguinte
passagem dos Discorsi: “Donde vem isso não sei, mas vê-se, por antigos e
modernos exemplos, que nunca ocorre nenhum acontecimento grave numa cidade
ou numa província que não tenha sido previsto por adivinhos, revelações,
prodígios ou outros sinais celestes”.19 Maquiavel situa no rol de previsões
inexplicáveis aquelas feitas por Savonarola à época da morte de Lorenzo de’
Medici – indício de que o exame astrológico do futuro era distinguido, por ele,
daquele realizado por meio de profecias e adivinhações, enigmáticos segundo
qualquer critério lógico ou natural. “A razão dessas coisas”, afirma Maquiavel,

16
FICINO, Marsilio. “Disputa contro il giudizio degli astrologi di Marsilio Ficino, fiorentino”. In:
Scritti sull’astrologia, p. 51. “Non prennunciano eventi specifici per ogni individuo, ma solo
eventi generici”.
17
TREXLER, Richard. Public Life in Renaissance, p.79. “The ritualization of behavior around
astrological points is one of the better known motifs of Florentine formal life. The baton of
command could not be given to a condottiere, troops could not leave the city, battles could not be
started, except at the right moments”.
18
Idem. “Savonarola exaggerated when he said that the Florentines believed more in astrology
than in God”.
19
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, pp. 163-4.
26

“deve ser comentada e interpretada por alguém que tenha conhecimento das coisas
naturais e sobrenaturais, que não temos”.20
Guicciardini, por sua vez, nunca deixou de se mostrar um crítico contumaz
da astrologia como forma de predição:

As coisas futuras são tão falazes e submetidas a tantos acidentes, que o mais das
vezes mesmo os mais sábios se enganam; e quem anotasse as suas opiniões,
máxime nos particulares das coisas – porque nas generalidades adivinham com
freqüência –, verificaria que há pouca diferença entre eles e os que são tidos como
menos sábios [...] (grifo meu).21

Assim como Ficino, Guicciardini argumenta que os sábios podem acertar


em suas previsões gerais, embora considerasse qualquer presciência de eventos
particulares como falaciosa. Na máxima 207 dos Ricordi ele é ainda mais duro
com a astrologia divinatória:
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Da astrologia, isto é, daquela que julga as coisas futuras, é loucura falar: ou a


ciência não é verdadeira, ou todas as coisas necessárias para que seja não se podem
saber, ou a capacidade dos homens não chega a tanto. Mas a conclusão é que
pensar saber o futuro por este caminho é um sonho. Os astrólogos não sabem o que
dizem, não chegam a adivinhar, a não ser por acaso [...] (grifos meus).22

Ainda assim, Guicciardini sempre levava consigo o próprio horóscopo, para


efeito de consulta. Este documento, descoberto por Roberto Ridolfi em meados do
século XX, consiste em um “volume in quarto de centenas de páginas”, onde sua
vida, “passado e futuro, natureza e ações, são examinados”.23 Embora condenasse
a astrologia divinatória, Guicciardini não descartava a influência dos astros nas
coisas humanas, ao menos no que tange à tendência geral dos acontecimentos.24

20
Idem.
21
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 23, p. 61.
22
Idem. Ibid., máxima 207, p. 141.
23
RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, pp. 58-9. “But this is an actual quarto
volume of hundreds of pages, where the whole life, past and future, the nature and actions of
Guicciardini, are examines”.
24
Ridolfi não chega a uma conclusão sobre a relação de Guicciardini com a astrologia, limitando-
se a dizer que “perhaps he too may have thought there were more things in heaven and earth than
our philosophy dreams of, and so he went on annotating and leafing his way through the
voluminous horoscope”. Idem. Ibid., p.60.
27

Outro dado importante é a atenção por ele dedicada às profecias de toda


espécie, como se pode perceber na máxima 211 dos Ricordi:

Acredito poder afirmar que os espíritos existem. Refiro-me ao que nós chamamos
de espíritos, isto é, àqueles seres aéreos que familiarmente falam com as pessoas,
porque vi tantas experiências que me parece não haver nenhuma dúvida disso. Mas
o que são e como, quem está persuadido de sabê-lo sabe tanto quanto quem nem
pensa nisso. Essas coisas e a previsão do futuro, como certas pessoas fazem por
arte ou por loucura, são potências ocultas da natureza, ou seja, daquela virtude
superior que tudo move: a Ele patentes, a nós secretas, e de tal maneira que as
mentes dos homens não as alcançam (grifos meus).25

Igualmente, os milagres são entendidos por ele como segredos da natureza:


“talvez não seja pecado dizer também que estes [os milagres], assim como os
vaticínios, são segredos da natureza, a cujas razões o intelecto dos homens não
pode chegar”.26 Nas Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli,
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Guicciardini, para refutar a tese defendida por seu amigo da permanência da


“substância” virtù ao longo dos tempos, afirma que “ou por influência dos céus ou
por algum arranjo oculto, ocorre que, em certas eras, não só em uma província,
mas universalmente em todo o mundo, há mais virtù ou mais vício que em outra
era...” (grifo meu).27
Tais “arranjos ocultos” desnudavam-se por meio de sinais ou “prodígios”.
Jean Céard, ao discutir o “insólito” no século XVI, chama de “prodígios” os
acontecimentos maravilhosos e alheios à ordem natural das coisas, percebidos
como anúncios de eventos futuros, presságios, mensagens – avisos atribuídos à
vontade divina e considerados imperscrutáveis em sua natureza última, porém
passíveis de interpretação parcial graças às concessões de forças ocultas.28
Nos Discorsi I, 56 Maquiavel lista uma série de prodígios, muitos dos quais
também se fazem presentes nas Storie Fiorentine e na Storia d’Italia de
Guicciardini: a já mencionada previsão, por Savonarola, da morte de Lorenzo de’

25
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, maxima 211, p.143.
26
Idem. Ibid., maxima 123, p.103.
27
GUICCIARDINI, Francesco. Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli, p. 379.
“...perché si vede essere verissimo che, o per influsso de’ cieli o per altra occulta disposizione,
corrono talvolta certe età nelle quali, non solo in una provincia, ma universalmente in tutto el
mondo è più virtù o più vizio che non è stato in una altra età”.
28
Cf. CÉARD, Jean. La nature et les prodiges. L’insolite au XVIe siècle, p.87.
28

Medici, além dos presságios associados e este evento; os exércitos vistos


combatendo no ar em Arezzo; o relâmpago que atingiu o palácio da Signoria
pouco antes da destituição do gonfaloniero Soderini. Nas Storie Fiorentine,
Guicciardini refere-se a supostos avisos prévios da morte de Lorenzo de’Medici:

As graves conseqüências desta morte foram anunciadas por diversos presságios:


pouco tempo antes, apareceu um cometa; se ouviam uivar os lobos; uma mulher
enlouquecida em Santa Maria Novella gritou que um touro com chifres de fogo
incendiava toda a cidade; alguns leões brigaram entre si, e um deles, belíssimo, foi
morto pelos outros; e por último, um ou dois dias antes de sua morte [de Lorenzo],
durante a noite, um raio atingiu a cúpula de Santa Reparata, e fez rolar algumas
pedras enormes, as quais caíram próximas à casa dos Medici.29

Na Storia d’Italia Guicciardini menciona os prodígios que antecederam a


invasão da Itália pelas tropas de Carlos VIII, rei de França:
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aqueles que dizem ter notícias das coisas futuras, ou por ciência ou por sopro
divino, afirmavam com as mesmas vozes o aparecimento de muitas e freqüentes
mudanças, acidentes muitos estranhos e horrendos que por muitos séculos não
tinham lugar em parte alguma do mundo.30

Ainda: três sóis teriam sido vistos na cidade de Puglia; em Nápoles, o


fantasma do falecido rei Ferdinando teria se revelado a um cirurgião da corte para
alertar sobre a inutilidade da resistência aos franceses.31
Os prodígios eram tratados como produtos da vontade divina transformados
em signos por forças ocultas, seres intermediários: “no entanto”, diz Maquiavel
nos Discorsi, “poderia ser que os ares estejam, como querem alguns filósofos,

29
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.172. “Fu denotata questa morte come di
momento grandissimo da molti presagi: era apparita poco innanzi la cometa; erasi uditi urlare lupi;
uma donna in Santa Maria Novella infuriata aveva gridato che uno bue corna di fuoco ardeva tutta
la città; eransi azzuffati insieme alcuni lioni ed uno belíssimo era stato morto degli altri; ed
ultimamente um dì o dua innanzi alla morte sua, di notte uma saetta aveva dato nella lanterna della
cupola di Santa Liperata e fattone cadere alcune pietre grandissime, le quale caddono vesro la casa
de’ Medici”.
30
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 9. “quegli che fanno professione d’avere, o per
scienza o per afflatto divino, notizia delle cose future, affermavano com uma voce medesima
apparecchiarsi maggiori e più spesse mutazioni, accidenti più strani e più orrendi che giá per molti
secoli si fussino veduti in parte alcuna del mondo”.
31
Cf. Idem. Ibid., I, 18.
29

cheios de inteligência, que por naturais virtù prevêem as coisas futuras e têm
compaixão dos homens, avisando-os com semelhantes sinais para que eles possam
preparar suas defesas”.32 Estes eventos estranhos, portanto, não eram atribuídas
aos movimentos celestes – até mesmo por isso eram considerados alheios à ordem
natural das coisas. É o que explica, para Céard, o lugar de destaque dos prodígios
em Guicciardini, apesar de suas críticas à astrologia judicial.33

A pressuposição de uma relação direta, de ordem simpática, entre a esfera


celeste e os quatro elementos constitutivos dos entes do mundo sublunar é crucial
para a compreensão da teoria clássica dos quatro humores e temperamentos – a
fonte mais importante da medicina renascentista. Entendia-se que os quatro
temperamentos (sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico) resultavam do
predomínio no corpo humano de um dos quatro humores – sangue (associado ao
elemento ar), fleuma (água), bile amarela (fogo) e bile negra (terra)34 – de modo
que a saúde perfeita era pensada, por esta tradição, como o equilíbrio entre os
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quatro humores; logo, como uma cooperação no organismo de humores opostos,


não semelhantes.35 Como o equilíbrio perfeito era considerado praticamente
inalcançável, entendia-se que os seres humanos estavam sujeitos à incidência de
um humor predominante, o qual, juntamente com a posição dos astros no
momento do nascimento, determinava as características marcantes de uma pessoa.
Tome-se o caso da melancolia, temperamento associado à ascendência da
bile negra no organismo – seja por compleição natural ou como resultado da
queima do “humor melancólico”, resultando na perniciosa “melancolia adusta”.36
Como efeito da influência de Saturno, os melancólicos seriam donos de
temperamento perscrutador, mostrando-se atentos, de acordo com Marsilio Ficino,
ao “centro de todos os assuntos, e à inquirição de suas profundezas”.37 Por esta
razão, “deve-se dar razão”, segundo o filósofo, “a Demócrito, Platão e Aristóteles
quando afirmam que não são poucos os melancólicos que às vezes excedem a

32
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, p.164.
33
CÉARD, Jean. Op. cit., p.93. “Ainsi Guichardin, pourtant très critique à l’égard de l’astrologie,
n’hésite pas, dans ses oeuvres historiques, à faire la plus large place aux pródiges”.
34
Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp.
113-24.
35
Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit., pp.101-2.
36
Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.127.
37
FICINO, Marsílio. De Vita Libri Tres, I, V, p. 121.
30

todos em inteligência que parecem divinos, não humanos”.38 O estagirita,


inclusive, propõe no seu Problema XXX,1 uma relação direta entre a melancolia
natural ou equilibrada e a qualidade do bem governar.39 Porém, a queima do
humor melancólico – melancolia adusta – poderia incidir em diversas
complicações, inclusive a perda da razão. Para este caso específico, ou mesmo
preventivamente, Ficino recomendava o uso de amuletos associados ao planeta
Júpiter, capazes de amenizar as influências saturninas.
Por analogia, os “corpos políticos” – entendidos como organismos plurais
em sucessão, totalidades capazes de sobreviver no tempo40 – também eram
considerados suscetíveis às mudanças de humores.41 Por humor de uma cidade
devem-se entender suas partes constituintes – sejam elas de origem “natural”
(ricos e pobres, grandi e universale) ou facciosa (ex. “brancos” e “negros”,
guelfos e gibelinos) –, assim como os apetites e desejos de tais grupos. Nas Istorie
Fiorentine de Maquiavel as referências aos humores citadinos são recorrentes; o
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mesmo se dá nos escritos de Guicciardini, tanto em suas histórias como nos


opúsculos sobre o governo florentino – na Oratio Consolatoria, ele chega a
atribuir seu exílio em 1527 à mudança dos humores da cidade, ou seja, ao declínio
dos Medici e ascensão dos “populares”.42
Se o facciosismo merece grande destaque nos escritos de Maquiavel e
Guicciardini, também as inimizades naturais a todas as cidades, particularmente
aquela entre os grandi e o universale, são tratadas como “diversidade de humores”

38
Idem. Ibid., I, V, p. 117.
39
Cf. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. O Problema XXX,1, p.95. “Mas esses
nos quais o calor excessivo se detém, no seu impulso, em um estado médio são certamente
melancólicos mas são mais sensatos, e se são menos bizarros, em compensação, em muitos
domínios são superiores aos outros, uns no que concerne à cultura, outros às artes, outros ainda à
gestão das cidades”.
40
Cf. POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p.3
41
Como argumenta Ernst H. Kantorowicz, a noção de “corpo político”, de origem aristotélica, se
torna popular no século XIII. “O Estado ou, nesse sentido, qualquer outro agregado político, era
compreendido como decorrente da razão natural. Era uma instituição que possuía seus fins morais
em si mesma e tinha seu próprio código de ética”, p.135. Ao mesmo tempo, é nessa época que as
noções de corpo político e corpo místico tornam-se intercambiáveis. Sobre a analogia entre corpo
físico e corpo político, afirma Kantorowicz: “Em outras palavras, o traço essencial de todas as
corporações não era o de que fossem ‘uma pluralidade de pessoas reunidas em um só corpo’ no
momento presente, mas o de que eram essa ‘pluralidade’ em sucessão, animada pelo Tempo e
mediante a ação do Tempo”. KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre
teologia política medieval, p.190.
42
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.94. “Veggo che per li umori che ora possono nella
città tu ti truovi escluso da tutto el governo [...]”.
31

responsáveis pela irrealização da concórdia.43 A valorização da unidade do “corpo


político” remete às filosofias platônica e aristotélica, mas era fundamentalmente
em Cícero que os autores do Quattrocento e do Cinquecento italiano buscavam
inspiração para discutir esta questão.44 Diz o filósofo romano no De Officiis: “os
que estiverem encarregados dos assuntos públicos” devem se ocupar “com todo o
corpo da república e nunca, ao proteger uma parte”, esquecer “as outras”.45 Dois
dos tratados humanistas mais importantes, a Laudatio de Leonardo Bruni e o Vita
Civile de Matteo Palmieri, têm na questão da concórdia o ponto central.46 Mesmo
em fins do século XV e primeiros decênios do XVI, período marcado por
conflitos internos responsáveis pela restauração republicana em duas ocasiões, a
idéia de concórdia permanece viva: “o fim do governo é a união e paz do povo”,
afirma Savonarola em seu Tratatto sul governo di Firenze.47 Do mesmo modo,
indaga Bartolomeo Cavalcanti em discurso proferido em 1530 diante da
ordinanza militar florentina: “não sabeis quão grandes e suaves são os frutos da
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concórdia civil e quão rudes e graves os danos da discórdia?”.48


Embora a noção de concórdia se faça presente nos textos políticos e
históricos de Maquiavel e Guicciardini como um tipo de horizonte regulatório,
ambos consideravam sua realização efetiva praticamente uma impossibilidade, ao
menos em tempos de corrupção e degradação dos valores; ainda assim, ela jamais
deixou de constituir um ideal – no caso dos textos de Guicciardini anteriores a
1527, este ideal era associado a um passado glorioso de predomínio ottimati,

43
Para Jean-Claude Zancarini, a divisão em dois humores é ampliada e complexificada por
Maquiavel em diversos momentos, revelando uma tensão no uso do léxico. Concordo com
Zancarini quanto às tensões do léxico político, mas a existência de outras divisões não anula o fato
de que, para Maquiavel, tensões naturais são aquelas entre o povo e os grandi – sendo as demais
de caráter faccioso. Cf. ZANCARINI, Jean-Claude. “Gli umori del corpo político nelle opere di
Machiavelli”, pp.61-70.
44
Cf. SKINNER, Quentin. “Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government”. In:
Visions of Politics, vol. II, p.42.
45
CICERO, Marco Túlio. De Officiis, I, xxv, 85, p.43.
46
Cf. PALMIERI, Matteo. Vita Civile, III, p.104. “Solo questa virtù è principale imperadrice
d’ogni altra virtù: conserva a ciascuno quello che è suo, a tutto il corpo della republica insieme
provedere et ministra, ciascuno membro conserva, la pace, unione et concordia della civile
multitudine [...]”.
47
SAVONAROLA, Girolamo. Trattato sul governo di Firenze, de Savonarola. “Perché essendo la
unione e pace del popolo el fine del governo [...]”, I, 2, p.40.
48
CAVALCANTI, Bartolomeo. “Orazione di Bartolomeo Cavalcanti Patrizio Fiorentino falla alla
Militare Ordinanza Fiorentina”, p.17. “Non sapete quanto vi sien grandi e suavi i frutti della civile
concordia e quanto aspri e gravi i danni della discordia?”.
32

localizado nos dois primeiros decênios do século XV49, enquanto na Storia


d’Italia ele se releva algo distante, irrecuperável.
Se as reflexões de Guicciardini sobre a concórdia são bastante
convencionais, diferindo muito pouco do entendimento ciceroniano – o que, de
maneira geral, não deixa de incidir, segundo John Pocock, na constatação de que
“o que deve ser não é o que vai acontecer, mas ainda assim precisa ser afirmado”50
–, Maquiavel explora com originalidade inaudita a distinção entre as divisões
naturais de uma cidade e aquelas de caráter faccioso. Argumenta ele que a
existência de dois humores naturais antagônicos não só não afeta a segurança da
res publica como se mostra benéfica ao bem comum: “em toda república há dois
humores diferentes”, afirma nos Discorsi I, 4, “o do povo, e o dos grandes, e todas
as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles”. Assim,
prossegue ele, “não se pode dizer que tais tumultos sejam nocivos, nem que tal
república fosse dividida”.51 Tais dissensões, diz Maquiavel nas Istorie Fiorentine,
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“naturalmente costumam existir em todas as cidades entre os poderosos e o povo”,


isto porque “visto que o povo quer viver de acordo com as leis, e os poderosos
querem comandá-las, não é possível que se ajustem”.52 Os humores naturais,
prossegue ele, ficaram encobertos, na Florença do século XIV, “enquanto os
gibelinos infundiam medo”, e acabaram se mostrando “com toda a sua força tão
logo estes foram dominados”.53 Se a divisão entre grandes e populares é vista
como natural e até mesmo benéfica, o facciosismo é condenado, precisamente por
descaracterizar o estado natural dos humores de uma cidade – como se tais
partidos representassem, por analogia, a combustão maléfica dos humores a que se
refere Ficino quando discorre sobre a saúde do corpo humano.
A noção de humor também aparece nos escritos de Maquiavel e
Guicciardini em outro sentido, a saber, como indicativo de certas características

49
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.79. “Ebbe la città in quegli tempi più volte
molti tumulti, e finalmente con un parlamento si fermò lo stato nel 93, sendo gonfaloniere di
giustizia messer Maso degli Albizzi, [...] e rimase el governo in mano di uomini da bene e savi, e
com grandíssima unione e sicurtà si continuò insino presso al 1420”.
50
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.243. “... what ought to be is not what is going to happen, but
nonetheless it requires to be affirmed”.
51
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 4, p. 22.
52
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 12, p.94.
53
Idem. Ibid., História de Florença, II, 12, p.95.
33

naturais ou adquiridas de um povo ou cidade.54 Afirma Guicciardini no Dialogo


del Reggimento di Firenze, pela voz de Bernardo del Nero:

não devemos procurar um governo imaginário [uno governo immaginato], que seja
mais fácil de aparecer nos livros que na prática, talvez como a república de Platão.
Ao invés, deve-se considerar a natureza, a qualidade, as condições, a inclinação, e
para reduzir todas essas coisas em uma palavra, os humores da cidade e dos
cidadãos (grifos meus).55

Os humores, segundo este entendimento, correspondem às condições


particulares de determinada cidade e povo, aos seus costumes e inclinações –
passageiras, como no caso de disputas eleitorais demasiadamente acirradas, ou
duradouras, como em características coletivas inatas e costumes arraigados.56
Tais tendências configuram-se quase sempre nos primórdios de uma cidade,
ou então em momentos decisivos do seu passado, e podem ser apreendidas tanto
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pela observação atenta das “coisas do mundo” quanto pela leitura diligente das
histórias antigas e modernas. Por muito tempo, os florentinos defenderam que o
apego à liberdade demonstrado ao longo dos séculos advinha da fundação da
cidade no período da República romana por homens de Mário e Sila, como se vê
na Laudatio de Bruni57 – questão interpretada por um viés completamente distinto
nos Discorsi, onde Maquiavel marca o caráter “cativo” da cidade, por esta ter sido

54
Anthony Parel destaca quatro sentidos de “umori” em Maquiavel: (a) “umori” como os desejos e
apetites naturais de um grupo social; (b) “umori” como os próprios grupos sociais; (c) “umori”
como as atividades produzidas pela interação entre os grupos políticos; (d) emprego de “umori”
para classificar os regimes políticos, associado aos seus efeitos. Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit.,
pp. 104-107. Com tal distinção, Parel relata quatro usos possíveis da palavra “umori”, mas não
quatro sentidos distintos. Como sentidos, penso em apenas dois, que podem possuir inúmeros
desdobramentos: “umori” como os grupos sociais, de origem natural ou facciosa, com seus desejos
e apetites específicos e “umori” como as inclinações, costumes e tendências de uma cidade,
presentes desde a sua fundação ou adquiridos com o tempo.
55
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 146. “E però non abbiamo
a cercare di uno governo immaginato e che sia più facile a apparire in su’ libri che in pratica, come
fu forse la republica di Platone; ma considerato la natura, la qualità, le condizioni, la inclinazione,
e per strignere tutte queste cose in una parola, gli umori della città e de’ cittadini”.
56
Um exemplo do emprego de humor como uma dissensão passageira: “né mi pare che si abbi a
fare coniettura da quelle poche elezione che si sono fatte in questi princìpi, perché ancora ogni
cosa è piena di appetiti vani, di sospetti e di confusione, umori che si purgheranno in brieve
tempo”. Idem. Ibid., p.79.
57
Cf. BRUNI, Leonardo. Panegirico della città di Firenze, p.43. “Imperò che li altri populi ànno
avuto per loro autori overo fugitivi, overo usciti dalla propria patria, overo contadini, overo altro
forestieri; ma di voi [florentinos] il populo romano vincitore et signore di tutto il mondo è autore et
principio”. Como argumenta James Hankins, a associação com Roma visava à construção da idéia
34

fundada como colônia.58 Edificada por forasteiros, argumenta o secretário,


Florença não tivera uma origem livre; ainda assim, o apego à liberdade teria se
revelado desde sempre um dado efetivo da realidade citadina: “porque aquela
cidade [Florença], acostumada que estava a fazer e a dizer todas as coisas com
toda a liberdade, não podia suportar que lhe atassem as mãos e lhe calassem a
boca”.59 Tal noção de liberdade da palavra era considerada uma característica
natural dos florentinos também por Guicciardini.60
Outro aspecto comumente atribuído a Florença: por se tratar de uma cidade
velha, “cativa dos seus hábitos primeiros”, ela seria difícil de reformar, algo a ser
levado em consideração pelos proponentes de reformas do reggimento citadino.61
O reconhecimento dos humores naturais ou adquiridos se faz decisivo, como
argumentam Maquiavel e Guicciardini, para a definição do melhor governo
possível em uma cidade, assim como a atenção às “condições dos tempos” – trata-
se da ênfase nos bons efeitos, em detrimento do governo immaginato existente nos
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livros dos filósofos, aspecto central para a compreensão do sentido de prudência


compartilhado por ambos, como será analisado adiante.
O reconhecimento dos humores citadinos se mostra capital para a escolha do
remédio político adequado: argumenta Bernardo del Nero no Dialogo que
qualquer governo que venha a ser introduzido em Florença deve “seguir o
exemplo dos médicos que, embora sejam mais livres que nós, porque podem dar
aos enfermos todos os remédios que lhes pareçam adequados, não dão aos
enfermos, porém, aqueles que são bons e dignos de nota por si mesmos, mas
aqueles que o enfermo pode suportar segundo sua compleição e outros accidenti”
(grifos meus).62

de que Florença poderia reviver o Império Romano. HANKINS, James. “Rhetoric, history, and
ideology: the civic panegyrics of Leonardo Bruni”, p.145.
58
As “cidades edificadas por forasteiros [...] não são livres na origem”, por isso “raras são as vezes
em que realizam grandes progressos”. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 1, p.9.
59
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 36, p.141.
60
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.174. “massime sendo questa uma città
liberissima nel parlare, piena di ingegni sottilissimi ed inquietissimi...”.
61
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, pp. 122-3. “Considero più
oltre che la città nostra è ormai vecchia [...]. Quando le città sono vechhie, si riformano
difficilmente, e riformate, perdono presto la sua buona instituzione [...]”.
62
Idem. Ibid., p.147. “seguitando in questo lo exemplo de’ medici che, se bene sono piì liberi che
non siamo noi, perché, agli infermi possono dare tutte le medicine che pare loro, non gli danno
però tutte quelle che in sé sono buone e lodate, ma quelle che lo infermo secondo la complessione
sua e altri accidenti è atto a sopportare”.
35

Tendo em vista a importância atribuída aos humores de uma cidade, não é de


se estranhar a recorrência de analogias médicas nos tratados políticos, discursos e
histórias do século XVI florentino. Em passagem do opúsculo inacabado Del
Governo di Firenze dopo la Restaurazione de’ Medici nel 1512, Guicciardini
compara o tratamento (reggimento, na língua toscana do século XVI, mesma
palavra usada para governo) de um doente à condução do stato.63 Na Storia
d’Italia, ele afirma que “as enfermidades da Itália não eram tais, nem pouco débeis
eram suas forças, que se pudesse curá-las com remédios ligeiros; antes, como
ocorre em corpos repletos de humores corrompidos, que um remédio usado para
prevenir a desordem acaba gerando perigos ainda maiores e mais perniciosos”
(grifo meu).64 Nas Istorie Fiorentine, Maquiavel fala de “remédios” que, “se
administrados antes que a necessidade se apresentasse, teriam sido proveitosos,
mas, administrados depois, contra a vontade, não só deixaram de ser proveitosos,
como também apressaram sua ruína”.65
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Estas analogias não devem ser entendidas como simples “jogos poéticos”:
“o mundo”, afirma Claude-Gilbert Dubois, era “concebido como uma vasta
metáfora, em que todas as partes” se correspondiam “entre si”.66 Tratava-se de um
efetivo “saber das semelhanças”, para empregar palavras de Foucault. No todo
orgânico que é o universo segundo esta visão, homem e natureza encontram-se
intimamente conectados.67 Mesmo as palavras são vistas como detentoras de um
poder simpático – premissa da cabala, estudada por Giovanni Pico della
Mirandola, entre outros.68 Segundo Foucault, o “jogo das semelhanças” pode ser
articulado de quatro maneiras: por conveniência, emulação, analogia ou simpatia,
as quais “nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se
duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se”.69
Nesse sentido, conhecer alguma coisa implica “ajustar a infinita riqueza de uma

63
GUICCIARDINI, Francesco. Del Governo di Firenze dopo la Restaurazione de’ Medici nel
1512, p.44.
64
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, VIII, 1, p.721. “Non erano tali le infermità d'Italia,
né sí poco indebolite le forze sue, che si potessino curare con medicine leggiere; anzi, come spesso
accade ne' corpi ripieni di umori corrotti, che uno rimedio usato per provedere al disordine di una
parte ne genera de' piú perniciosi e di maggiore pericolo”.
65
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 8, p.88.
66
DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit., p.57.
67
Cf. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural, p. 90.
68
Cf. YATES, Frances. Op. cit., pp. 108-9.
69
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p.35.
36

semelhança”70 e estabelecer gradações comparativas que tornem possíveis novas


aberturas analíticas – é o caso das analogias médicas, que jogam com um
pressuposto visto como natural (a relação de afinidade entre o corpo humano e
político) e o exploram até a exaustão. O resultado do juízo analógico vai além da
simples comparação didática ou recurso poético: o que está em jogo nas analogias
médicas é uma reflexão aguda sobre a transitoriedade e fragilidade das coisas do
mundo em geral, e também sobre as limitadas possibilidades de regeneração dos
organismos políticos.

O tempo, para os florentinos do século XVI, era compreendido como “coisa


pública e divina”71: a data de nascimento indicava comumente o nome da criança,
de acordo com o santo do dia; a idade de 29 anos era exigida, e ansiosamente
aguardada pelos filhos das grandes famílias, para o início da participação na vida
civil; festejos públicos se espalhavam pelo ano e condicionavam o calendário dos
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casamentos, escrutínios, etc. “Todo tempo era significativo”, argumenta Richard


Trexler, “mas este significado residia no mundo, não no indivíduo”.72
Embora a intuição de uma temporalidade “linear” remetesse aos primórdios
do judaísmo e do cristianismo, é somente a partir de meados do século XVIII que
a experiência do tempo se abrirá como um continuum de infinitas possibilidades
futuras associadas a um espaço de experiências retraído, para falar como
Koselleck.73 Até então, a intuição de um tempo natural, entendido em função dos
ciclos naturais e do movimento das estrelas, coadunava-se sem muitos conflitos
com a noção cristã do tempo74– e mesmo esta não se mostrara coesa e monolítica
ao longo dos séculos.75
Como argumenta o filósofo italiano Santo Mazzarino, imagens como a do
tempo cíclico constituem simples vulgarizações esquemáticas da idéia de cosmo
defendida por pitagóricos e estóicos no mundo antigo.76 “Na discussão moderna

70
Idem. Ibid., p.43.
71
TREXLER, Richard. Op. cit., p.73. “Time was a public and divine thing to which the individual
geared his own”.
72
Idem. Ibid., p.73. “All time was significant – there was no accident – but that significance lay in
world, not individual, biography”.
73
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias
históricas. In: Futuro Passado; MARRAMAO, Giacomo. Minima Temporalia, pp. 47-56.
74
Cf. TREXLER, Richard. Op. cit., p. 79.
75
Cf. KANTOROWICZ, Ernst H. Op. cit., pp. 170-176.
76
Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico, v.3, p.414.
37

sobre a Zeitauffassung ‘cíclica’”, diz Mazzarino, “que seria greco-romana, e


aquela ‘linear’, que seria própria do judaísmo ou do cristianismo, devemos evitar
as polarizações teóricas”77, isto porque as generalizações obscurecem a distinção
entre a idéia de eterno retorno como doutrina cosmológica e o princípio de
tendências cíclicas assimétricas observáveis historicamente. O eterno retorno
como doutrina cosmológica é identificado com a idéia estóica de uma destruição
cíclica e continuada do cosmo.78 Já a intuição do tempo predominante tanto na
Antiguidade quanto no Renascimento não parte do princípio da repetição dos
acontecimentos em suas particularidades. A famosa anaciclose das formas de
governo desenvolvida por Maquiavel no segundo capítulo do livro I dos Discorsi,
emulação de Políbio79, deve ser entendida segundo este viés analítico – ou seja,
como tendência natural de desenvolvimento passível ou não de se verificar na
realidade, isto porque tal tendência pode ser acentuada, anulada ou, em casos mais
otimistas, revertida pela ação humana.80
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O emprego das metáforas geométricas do tempo linear oposto ao tempo


circular – tomadas não como ferramentas analíticas, e sim como dados efetivos da
realidade – muitas vezes obscurece as sutilezas históricas de certas formas de
experiência temporal. Como nota Claude-Gilbert Dubois, a intuição do tempo no
período renascentista “resulta da ação concertada dessas três potências: recebe seu
ritmo geral da natureza, sua direção e diretrizes da providência, da fortuna, seus
impulsos e caprichos” (grifos meus).81 Trata-se, assim, menos de uma percepção
“geométrica” da “linha” do tempo que de uma complexa fenomenologia da
contingência, de caráter naturalista, alicerçada filosoficamente na presunção da
complementaridade entre aspectos da realidade sujeitos a uma lógica cíclica ou
estável – diversidades substanciais – e os elementos acidentais e contingentes da

77
Idem. Ibid., p.415. “Nella discussione moderna sulla Zeitauffassung ‘ciclica’, che sarebbe greco-
romana, e quella ‘lineare’, che sarebbe própria del giudaismo e cristianesimo, dobbiamo evitare le
polarrizzazioni teoretiche”.
78
Idem. Ibid., p.417. “Il Ritorno storico è dunque un ricorso che non prelude all’identità di un
ciclo con quello successivo; viceversa, l’Eterno Ritorno cosmologico, secondo le scuole
filosofiche che l’hanno sostenuto con piena coerenza (soprattutto pitagorici; e stoici, ad esclusione
della tendenza di Panezio), implica la dottrina della distruzione del mondo e della ripetizione di
esso (tal quale per la serie dei suoi eventi) nell’altro mondo che succederà a quello distrutto”.
79
Deve-se notar, contudo, que a adesão de Maquiavel à concepção polibiana da anaciclose é
apenas parcial. Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, p.176.
80
Arnaldo Momigliano argumenta que nem Heródoto, nem Tucídides e nem Políbio trabalhavam
com uma noção cíclica de história. Cf: MOMIGLIANO, Arnaldo. “El tiempo en la historiografia
antigua”, pp. 75-80.
81
DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit, p.126.
38

realidade, submetidos aos caprichos da Fortuna e aos desígnios divinos – os


accidenti.82 John Pocock, a partir dos argumentos de Kantorowicz, percebe que o
desenvolvimento da preocupação com a particularidade e com a contingência está
diretamente atrelado à valorização da dimensão temporal das sociedades – a idéia
de que o corpo político existe no tempo –, operada não pela filosofia do
Renascimento, e sim pela reflexão política de autores do período.83 Nota-se, nesse
sentido, uma constante preocupação com a relação entre geral e particular,
especialmente no que diz respeito à possibilidade de distinção entre o recorrente e
o fortuito.
Na máxima 76 dos Ricordi, Guicciardini argumenta que “tudo aquilo que
foi no passado e é no presente será ainda no futuro; mas os nomes e as aparências
das coisas mudam de tal maneira que quem não tem bom olho não as reconhece”
(grifo meu). Declaração similar é encontrada em carta que ele remete, no dia 18
de maio de 1521, a Maquiavel:
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Caríssimo Machiavello. Quando leio vossos títulos de embaixador da República


(...) e considero com quantos reis, duques e príncipes negociastes, me recordo de
Lisandro, a quem depois de tantas vitórias e triunfos foi dada a tarefa de distribuir
carne aos mesmos soldados os quais havia gloriosamente comandado, e digo: veja
que, mudando somente os rostos dos homens e as cores exteriores, as mesmas
coisas sempre retornam, e não vemos acontecimento algum que em outros tempos
não se tenha visto. Mas o mudar de nomes e figuras das coisas faz com que
somente os prudentes as reconheçam: por isso é boa e útil a história: porque te
coloca adiante e te faz reconhecer e rever aquilo que diretamente não conheceu ou
viu (grifos meus).84

82
Desenvolvi a questão em: TEIXEIRA, Felipe Charbel. “O melhor governo possível: Francesco
Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 50, nº 2,
pp. 325-349.
83
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.9.
84
Carta a Maquiavel, do dia 18 de maio de 1521. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco
Vettori e a Francesco Guicciardini, p.298. “Machiavello carissimo. Quando io leggo e vostri titoli
di oratore di Republica e di frati et considero con quanti re, Duchi et Principi voi havete altre volte
negociato, mi ricordo di Lysandro, a chi doppo tante victorie et trophei fu dato la cura di
distribuire la carne a quelli medesimi soldati a chi si gloriosamente haveva comandado; et dico:
Vedi che, mutati solum e visi delli huomini et e colori extrinseci, le cose medesime tucte ritornano;
né vediamo accidente alcuno che a altri tempi nos sai stato veduto. Ma el mutare nomi et figure
alle cose fa che soli e prudenti le riconoschono: et però è buona et utile la hystoria, perché ti mecte
innanzi et ti fa riconoscere et rivedere quello che mai nos havevi conosciuto né veduto”.
39

Pode-se encontrar uma afirmação análoga nos Discorsi de Maquiavel:


“quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já
aconteceu”.85 Numa passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze,
Guicciardini, pela voz de Bernardo del Nero, afirma que

tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte será em outros tempos e
algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos exteriores diferentes e várias cores,
de modo que quem não possui os olhos muito bons o toma por novo e não o
reconhece; mas quem tem a vista aguda e que se aplica a distinguir cada caso, e
considera quais são as diversidades substanciais e quais são aquelas que importam
menos, facilmente o reconhece, e com o cálculo e medida das coisas passadas pode
calcular e medir o futuro (grifos meus).86

As diversidades substanciais dizem respeito às coisas humanas suscetíveis a


ciclos e padrões recorrentes, como a ascensão e queda de povos e costumes, além
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do surgimento de novas cidades e do enfraquecimento e declínio de outras mais


antigas. Também se referem aos dados da realidade considerados estáveis e
permanentes: à natureza humana, enfim, e a tudo aquilo tomado como desigual ao
longo dos tempos apenas na aparência externa.87 Os accidenti, por outro lado,
compõem-se de matéria singular, fortuita; por essa razão, eles não se subsumem a
qualquer lógica de caráter natural acessível aos homens pela análise dos astros ou
das tendências das coisas do mundo. Seus domínios são os desígnios e caprichos
da Fortuna, assim como a Vontade divina. As diversidades substanciais
articulam-se à já referida visão cosmológica, própria da física aristotélica, de um
mundo sublunar sujeito a ciclos e movimentos regulares, condicionados pela
dinâmica da esfera celeste. Já os accidenti dizem respeito à singularidade das
ações humanas, ao caráter finito da existência, à perecibilidade e também aos

85
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, III, 43, p.445.
86
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36. “ E così tutto quello che
è stato per el passato, parte è al presente, parte sara in altri tempi e ogni dì ritorna in essere, ma
sotto varie coperte e vari colori, in modo che chi non há l’occhio molto buono, lo piglia per nuovo
e non lo riconosce; ma chi ha la vista acuta e che sa applicare e distinguere caso da caso, e
considerare quali siano le diversità sustanziali e quali quelle che importano manco, facilmente lo
riconosce, e co’ calculi e misura delle cose passate sa calculare e misurare assai del futuro”.
87
Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi,
p.7. “Non aveva forse proprio Machiavelli insegnato, o insegnato di nuovo, che, con giro
incessante, tutto torn nel quadro immobile del mondo che non muore? Ebbene, con quel suo tono
peculiare, in cui commoione e parodia si condizionano a vicenda, a questa tesi il Guicciardini
rende omaggio”.
40

fatores externos que impedem uma autonomia plena, impondo empecilhos ao


livre-arbítrio. Não existem leis infalíveis nos assuntos humanos. As diversidades
substanciais, porém, evidenciam tendências, enquanto os accidenti se limitam a si
mesmos, ou, como se acreditava, são produtos dos caprichos da Fortuna ou dos
desígnios da Providência.
A habilidade de distinguir as diversidades substanciais das acidentais se
mostra decisiva para a compreensão adequada dos movimentos e tendências das
coisas do mundo – somente os prudentes são capazes de reconhecê-las, diz
Guicciardini na carta a Maquiavel. Como o prudente precisa se valer do passado
(por meio da experiência e da leitura das histórias antigas e modernas) para definir
intervenções adequadas no presente e controlar seus efeitos futuros, é crucial
saber distinguir o que é acidental, imprevisível, daquilo que pode indicar algum
padrão de recorrência – condição necessária para a análise penetrante da
realidade. Embora o prudente não possa prever a morte de um rei, a proliferação
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de pestes, tempestades ou mudanças inesperadas no curso dos eventos, sua


apreciação das coisas do mundo não é vaga ou arbitrária. Ao se deter no exame
dos padrões gerais de comportamento dos homens em determinadas
circunstâncias, ao atinar para as tendências naturais demonstradas em outros
tempos pelas coisas do mundo, o prudente antevê, se não com plena convicção, ao
menos com certo grau de segurança, os efeitos das ações de outros homens,
podendo assim planejar melhor seus próprios movimentos.

O declínio das cidades, principados e dos seus costumes era percebido como
um dado natural pelos florentinos do século XVI: “como todas as coisas humanas
estão em movimento”, diz Maquiavel nos Discorsi, “e não podem ficar paradas, é
preciso que estejam subindo ou descendo”.88 Configura-se, desse modo, um “ciclo
segundo o qual todas as repúblicas se governaram e governam”89, ciclo este que
raras vezes chega a se completar, pois as cidades, principados e Impérios tendem a
desaparecer antes de retornarem ao estado original. Neste círculo, quase sempre
imperfeito e assimétrico, alternam-se, em movimentos regulares, o bom
principado e sua forma degenerada, a tirania; os ottimati e sua forma degenerada,
o estado de poucos; o regime popular e sua forma degenerada, a licenciosidade.

88
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 6, p.32.
89
Idem. Ibid., I, 2, p.17.
41

Trata-se de um movimento natural correspondente ao nascimento, crescimento e


declínio dos estados, onde os seres humanos não possuem papel passivo, muito
pelo contrário.90 Como os homens são livres em suas ações, torna-se possível, para
Maquiavel, alterar o sentido das tendências naturais e até mesmo revertê-las,
conquanto haja virtù suficiente.
Guicciardini, por sua vez, mostra-se bastante cético quanto à alteração, por
meio de intervenções humanas, das tendências naturais de ascensão e declínio. Em
sua opinião, um período de corrupção não pode esperar uma grande mobilização
da virtù; no máximo, seria possível lutar contra os males imediatos e atenuar os
movimentos de degradação das coisas do mundo. Talvez por isso não se possa
encontrar, em seus escritos, algo similar a uma teoria circular-assimétrica das
formas de governo. Daí a afirmação de que “as cidades são mortais assim como os
homens”, sendo que elas “não morrem por defeito de matéria, a qual sempre se
renova, mas por má sorte ou por má administração, isto é, pelas decisões
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imprudentes tomadas por quem governa”.91 Como os homens são inconstantes, é


natural que as cidades entrem em declínio:

Todas as cidades, os Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, natural
ou acidentalmente, terminam e findam alguma vez. Por isso, um cidadão que se
encontra no fim da sua pátria não deve lamentar-se tanto da desgraça desta e
chamá-la de mal-afortunada, e sim da sua própria: porque à pátria aconteceu o que
de toda maneira devia acontecer, mas a desgraça foi de quem veio nascer numa
época que devia ter tal infortúnio.92

Maquiavel, Guicciardini e tantos outros florentinos do início do século XVI


viam sua época como um período de decadência, de degradação dos costumes e
corrupção. Nesse sentido, se bem que condenasse em muitos aspectos a atuação
de Savonarola, Guicciardini, escrevendo uma década após a morte do frei, é capaz
de elogiar supostas mudanças de costumes produzidas por suas intervenções:

90
Cf. BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.176.
91
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 139, p.109.
92
Idem. Ibid., pp. 131-2. Este motivo também se faz presente no Dialogo: “perché alle case e alle
nobilità interviene come alle città e alle altre cose del mondo, che invecchiano, si diminuiscono e
si spengono per vari accidenti, e in luogo di quelle che mancono bisogna che sempre surghino e si
rinnovino delle altre”, p. 80.
42

No que diz respeito à observância dos bons costumes, o que ele [Savonarola]
conseguiu realizar foi algo santíssimo e miraculoso. [...] Não se jogava mais em
público, e nas casas, apenas com temor; foram fechadas as tavernas, que eram os
lugares de reunião da juventude depravada e antro de todos os vícios; a sodomia
havia praticamente desaparecido; as mulheres, em grande parte, abandonaram as
vestes desonestas e lascivas....93

A decadência dos costumes era compreendida por Guicciardini como um


sinal inequívoco e natural da corrupção dos tempos.94 Precisamente por isso, ele
qualifica como miraculosos os feitos de Savonarola.
A corrupção era então compreendida como uma “lei que diz respeito a todo
o ‘cosmos’ e não somente ao homem em sua singularidade”, para empregar
palavras de Newton Bignotto.95 “Não constitui vergonha para as cidades ilustres”,
diz Guicciardini na Storia d’Italia, “se após muitos séculos caem finalmente em
servidão, porque era fatal que todas as coisas do mundo fossem submetidas à
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corrupção”.96 E, como ele mesmo já notara muito antes, no Discorso di Logrogno


(1512), “a corrupção que há no mundo não é de hoje; dura já por muitos e muitos
séculos, o que atestam os escritores antigos que tanto detestaram e falaram contra
os vícios de seus tempos”.97
Acreditava-se ser próprio das “coisas do mundo” estarem “sempre em
movimento”98 e serem “submetidas a mil casos e acidentes”.99 Tal instabilidade
fazia da política uma atividade complexa, sujeita a erros e mal-entendidos – o que
não implicava, porém, atestar sua completa indeterminação. “Quem considere as
coisas presentes e as antigas”, defende Maquiavel, “verá facilmente que são
sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos os

93
GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.278. “Le opere fatte da lui circa l’osservanzia
de’ buoni costumi furono santissime e mirabile. [...]Non si giudicava più in publico, e nelle case
ancora com timore; stavano serrate le taverne che sogliono essere ricettaculo di tutta la gioventù
scorretta e di ogni vizio; la sodomia era spenta e mortificata assai; le donne, in gran parte lasciati
gli abiti disonesti i lascivi [...]”.
94
Segundo Diane O. Hughes, a analogia entre o corpo humano político implicava a idéia de
corrupção como um dado natural. Cf. HUGHES, Diane O. “Bodies, disease, and society”, p.110.
95
BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.177.
96
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, II, 1, p. 151. “Non essere vergogna alle città
preclare se dopo il corso di molti secoli cadevano finalmente in servitú, perché era fatale che tutte
le cose del mondo fussino sottoposte alla corruzione”.
97
GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logorgno, p.40. “Né incomincia questa corrutela oggi
nel mondo, ma è durata già molti e molti secoli, di che fanno fede li scritori antichi che tanto
detestano ed esclamano contro a’ vizi delle età loro”.
98
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos... II, Proêmio, p.178.
43

povos, e que eles sempre existiram”.100 Assim, se por um lado acreditava-se que as
ações particulares dos homens nunca se repetiam, padrões de estabilidade e
recorrência poderiam ser percebidos tanto pela experiência quanto pela leitura das
histórias antigas e modernas. Nesse sentido, a presunção de imutabilidade do
mundo celeste torna possível, mesmo levando-se em conta a instabilidade das
coisas humanas, atestar a tendência de conservação de certos aspectos
característicos do homem como tal.
Cabe notar que a idéia de natureza humana estável não implicava a
pressuposição de um mundo sempre igual a si mesmo, alheio a todo tipo de
oscilações. Muito pelo contrário: é próprio da natureza movimentar-se
ciclicamente. Do mesmo modo, pressupõe-se que os homens, não como
indivíduos singulares, mas como seres em geral, sejam possuidores de uma
substancialidade atestada na repetição de certos padrões ao longo dos tempos,
como formas de governo, costumes e constituições. Os seres humanos, diz
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Maquiavel nos Discorsi, “nasceram, viveram e morreram, sempre, segundo uma


mesma ordenação”.101 Reconhecer a existência de uma natureza humana estável
implica atestar que os homens tendem a agir de forma parecida quando
confrontados com situações e motivações análogas a outras, que tiveram lugar em
épocas passadas.

Na medida em que a afirmação da constância da natureza humana não


presumia uma circularidade perfeita das “coisas do mundo”, ou uma estabilidade
perene das condições do homem, é possível atestar a existência de um certo grau
de flexibilidade na maneira com que o homem lidava com sua própria natureza,
para falar como Thomas Greene.102 O homem é produto de sua natureza e também
do livre-arbítrio, sendo capaz de se adaptar, e até mesmo anular, os impulsos
negativos de sua condição animal e de suas paixões. Diz Maquiavel que “os
homens nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade”.103 Tal critério de
necessidade, compreendido como uma espécie de coerção imposta pelos homens a

99
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 1, p.47.
100
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 39, p. 121.
101
Idem. Ibid., I, 11, p.52.
102
Cf. GREENE, Thomas. “A flexibilidade do self na literatura do Renascimento”, p.50.
“’Homines non nascuntur, sed finguntur’, escreveu Erasmo – os homens não nascem, são
modelados –, uma fórmula que poderia ser tomada como o lema da revolução humanista”.
103
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 3, p.20.
44

si mesmos – no caso de uma República, por meio de deliberação coletiva –,


possibilita não só a reversão dos maus costumes como a atenuação e controle dos
impulsos naturais, decorrentes de apetites e paixões destrutivas. “Isso”, ou seja, a
coerção pela lei, permite, de acordo com o secretário, que “os legisladores das
repúblicas ou dos reinos se disponham mais a refrear os apetites humanos,
destruindo nos homens qualquer esperança de errar impunemente”.104 As leis,
deste modo, atuam como freio dos impulsos naturais; como resultado, instituem
bons exemplos: “os bons exemplos”, diz Maquiavel nos Discorsi, “nascem da boa
educação; a boa educação, das boas leis; e as boas leis, dos tumultos que muitos
condenam sem ponderar”.105 Isso no que diz respeito aos humores naturais de uma
cidade. Quando, todavia, a mesma se encontra corrompida por facções ou por
deterioração acentuada dos costumes, “de nada valem leis bem-ordenadas”; neste
caso, é preciso que alguém institua as boas leis exclusivamente pela força.106
Além das leis, a religião, especialmente a religião dos romanos, constitui,
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para Maquiavel, elemento determinante para um controle efetivo dos apetites e


paixões, por incidir, quase sempre, na busca da verdadeira glória e do bem
comum: “assim como a observância do culto divino é a razão da grandeza das
repúblicas, também o seu desprezo é a razão de sua ruína”.107 Mesmo o
cristianismo, pouco afeito às “honras mundanas”108, é, para ele, preferível à
ausência total de religiosidade; ademais, os valores cristãos não são, para
Maquiavel, necessariamente contrários à defesa da pátria: decorrem de uma
interpretação “da nossa religião [cristianismo] segundo o ócio, e não segundo a
virtù”. “Porque”, prossegue o secretário, “se eles considerarem que a religião
permite a exaltação e a defesa da pátria, veriam que ela quer que a amemos e
honremos, preparando-nos para sermos tais que a possamos defender”.109
A disciplina militar se soma às duas qualidades referidas, por modelar corpo
e alma e construir tanto o desapego às paixões perecíveis quanto o amor à pátria e
valorização do bem comum: “em qualquer lugar”, afirma Maquiavel em A arte da

104
Idem. Ibid., I, 42, p.131.
105
Idem. Ibid., I, 4, p.22.
106
Idem. Ibid., I, 17, p.71.
107
Idem. Ibid., I, 11, p.51.
108
Idem. Ibid., II, 2, p.189.
109
Idem. Ibid., II, 2, p.190.
45

Guerra, “com exercícios, fazem-se bons soldados; pois onde falha, a natureza é
suprida pela indústria, que nesse caso vale mais que a natureza” (grifo meu).110
Se não podem transformar a própria natureza, os homens podem controlá-la,
subjugá-la por algum tempo, até mesmo por séculos, como foi o caso dos
romanos, e isto se viabiliza pelo recurso às boas leis, à verdadeira religião, aos
costumes virtuosos, à força militar, e fundamentalmente pelo apego à verdadeira
glória e à honesta ambição.111 Tais elementos fizeram a grandeza dos romanos,
que souberam, por muito tempo, controlar a própria natureza.
A compreensão de Guicciardini acerca da natureza humana é bastante
similar àquela de Maquiavel em seus aspectos centrais, ainda que a categorização
dos seus caracteres constitutivos divirja em alguns momentos. Se Guicciardini,
diferentemente do secretário, considera os homens “por natureza inclinados ao
bem”112, isso não altera o entendimento geral de uma natureza humana fraca,
incapaz, por si só, de levar os homens ao cume da glória: “a verdade”, afirma
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Guicciardini no Dialogo del Reggimento di Firenze,

é que a natureza humana é muito frágil, de modo que por qualquer mínima situação
se desvia do caminho correto [via diritta], e as coisas que promovem tais desvios,
isto é, a cupidez e as paixões, são tantas e possuem tanta força na débil natureza do
homem que, não fossem outros os remédios que não aqueles que os homens
aplicam a si mesmos, pouquíssimos não se corromperiam.113

Para Guicciardini, assim como para Maquiavel, é preciso que os homens


sejam mantidos na diritta via por meio das leis. “Uma coisa que é natural a todos
os povos”, diz ele no Discorso di Logrogno, é que os homens, “quando não são
bem dirigidos [timoneggiati]”, usam “sua liberdade de forma insolente”.114 Os
bons ordenamentos, por sua vez, “não somente consolidam a liberdade e

110
MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da Guerra, I, p.22.
111
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 36. Sobre a questão da glória em Maquiavel conferir:
VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione política nel Rinascimento, pp. 418-441.
112
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.89. “Quanto alla malignità, io vi dico che per natura
tutti gli uomino sono inclinati al bene”.
113
Idem. Ibid., p.89. “Vero è che la natura umana è molto fragile, in modo che per leggiere
occasione diverte dalla via diritta, e le cose che la fanno divertite, cioè la cupidità e le passioni,
sono tante e in uno subietto debole come è la natura dello uomo hanno tanta forza, che se non fussi
altro rimedio che quello che ciascuno fussi per fare da sé medesimo, pochissimi sono che non si
corrompessino”.
46

constituem um bom modo de governar o stato, mas também resultam em


recompensa aos cidadãos que se portam e agem bem”.115
Uma diferença importante entre a concepção de natureza humana de ambos
diz respeito à questão da maldade ou bondade natural dos homens. Para
Maquiavel, os homens são naturalmente invejosos116, além de não conseguirem ser
completamente bons ou maus117, o que acaba por prejudicá-los nos momentos de
tomada de decisões cruciais.118 São também facilmente corruptíveis, ambiciosos e
desconfiados119, tendendo sempre para o lado que imediatamente ofereça melhores
benefícios120: “os homens estimam mais aos bens materiais que às honras”.121
Sempre inclinados às novidades, eles se desapegam facilmente do bem comum,
demonstrando maior interesse pelas aparências que pela realidade.122 Como diz em
O Príncipe, “os homens sempre se revelarão maus, se não forem forçados pela
necessidade de serem bons”.123
Já para Guicciardini, “encontram-se naturalmente nos homens o desejo de
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dominar e de obter superioridade sobre os outros”124; do mesmo modo, “os


homens que conduzem bem as suas coisas neste mundo têm sempre diante dos
olhos o próprio interesse, e medem todas as suas ações por esse fim”.125 A
despeito de tais generalizações, Guicciardini enxerga uma maior indeterminação
na natureza do homem, em comparação com Maquiavel: “são várias as naturezas
dos homens”, diz ele na máxima 61 dos Ricordi: “alguns esperam cem vezes mais
do que realmente podem ter, outros temem tanto que nunca esperam se não têm
em mãos”.126 Suas considerações sobre a natureza humana quase sempre vêm
acompanhadas de advérbios de modo: “Comumente os povos e todos os homens
inexperientes deixam-se atrair mais pela esperança de adquirir algo que quando se

114
GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logrogno, p.14. “...ed uma cosa che è naturale a tutti
e’ populi, quando e’ non sono bene timoneggiati, di usare insolentemente la sua liberta”.
115
Idem. Ibid., p.33. “Gli ordini detti ed introdotti di sopra son solo stabliscono la libertà e
constituiscono buono modo di governare lo stato, ma ancora proveggono in gran parte alla
remunerazione de’ cittadini che si portino ed operino bene”.
116
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, proemio.
117
Idem. Ibid., I, 27.
118
Idem. Ibid., I, 30.
119
Idem. Ibid.,I, 29.
120
Idem. Ibid., I, 42.
121
Idem. Ibid, I, 38. “gli uomini stimano più la roba che gli onori”.
122
Idem. Ibid., I, 25.
123
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXIII, p. 115.
124
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.65. “Mi pare bene, se io non mi inganno, che negli
uomini si truovi naturale el desiderio di dominare e di avere superiorità agli altri”.
125
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 218, página 147.
47

lhes mostra o perigo de perder. [...] normalmente nos homens a esperança tem
mais poder que o temor: por isso facilmente não temem o que deveriam temer, e
esperam o que não deveriam esperar” (grifos meus).127 Embora os homens sejam
inclinados ao bem, é preciso que as boas leis mantenham os homens na via
virtuosa. Diz Guicciardini na máxima 134 dos Ricordi:

Todos os homens são por natureza mais inclinados ao bem que ao mal, e desde que
outro aspecto não os conduza a direção contrária, não há ninguém que não faça
voluntariamente mais o bem que o mal; mas a natureza dos homens é tão frágil e
tão freqüentes no mundo as ocasiões que convidam ao mal que os homens deixam-
se facilmente se desviar do bem. E por isso os sábios legisladores encontraram os
prêmios e as penas: outra coisa não fizeram que manter os homens firmes na
inclinação natural deles (grifos meus).128

Se, em Maquiavel, as boas leis abrem ao homem a possibilidade de superar e


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transformar, ainda que não de forma definitiva, a própria natureza, em


Guicciardini as boas leis permitem a realização plena da natureza humana: a
inclinação ao bem.
Tanto para Maquiavel como para Guicciardini a boa lei não corresponde à
aplicação simples de um princípio universal à realidade. O analista prudente que
se dispõe a perscrutar o melhor reggimento para uma cidade, levando em conta as
condições dos tempos e as variações dos humores citadinos – um melhor governo
possível129–, deve considerar não só os padrões de recorrência das condutas
humanas em geral, como também a natureza de povos e cidades. Isto lhe permitirá
vislumbrar os efeitos produzidos pelas leis que se queira introduzir.130 Como não
se trata de uma aplicação direta de idéias gerais à realidade concreta, o prudente
precisará examinar cuidadosamente as condições particulares das coisas do
mundo; comparando ações passadas com as perspectivas presentes, buscando
similitudes entre situações diversas, estabelecendo analogias que lhe permitam

126
Idem. Ibid., máxima 61, p. 77.
127
Idem. Ibid., máxima 62, p.77.
128
Idem. Ibid., máxima 134, p.107.
129
Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem-ordenada: Francesco Guicciardini e a arte
do bom governo, pp. 131-161; “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método
prudencial de análise da política”. Op. cit., pp. 325-249.
48

enxergar além, ele edificará para si um amplo repertório de experiências próprias


e alheias a partir do qual apoiará a formulação dos seus juízos.

2.2
O princípio da analogia

De como o princípio da analogia constitui aspecto estruturante da retórica


prudencial de Maquiavel e Guicciardini.

Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem inadvertidamente, que
quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já aconteceu;
porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram correspondência
[riscontro] nos tempos antigos.131
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Nesta passagem dos Discorsi, Maquiavel deixa claro quão importante é o


princípio da analogia para o exame minucioso da realidade segundo o critério da
prudência. Embora o presente e o futuro não sejam considerados pelo secretário
repetições exatas do passado, eles engendram situações análogas a acontecimentos
de outras épocas que podem ser postas em perspectiva pelo prudente, aquele capaz
de separar as diversidades acidentais das substanciais, percebendo as tendências
de ascensão e queda das coisas do mundo, as motivações quase sempre
recorrentes na grande maioria dos homens e finalmente identificando o que é
fortuito, casual, e por isso deve ser avaliado como produto das contingências.
No De Inventione, Cícero trata a analogia (similitudo) como um aspecto da
inventio – parte da arte retórica responsável pela busca de argumentos verossímeis
ou verdadeiros capazes de sustentar uma causa determinada.132 Diz ele que “a
analogia se estabelece principalmente entre coisas contrárias, parecidas ou que
obedecem a um mesmo princípio”133, estando associada à urdidura de argumentos
prováveis, isto pelo recurso a uma imagem, a uma comparação ou a um

130
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Però ditemi che governo sarà questo, acciò
che, considerata la natura sua e la natura della città e di questo popolo, possiamo immaginarci che
effetti producerà”.
131
MACHIAVELLI, Niccolò. Discursos, III, 43, p. 445.
132
CICERO, M.T. De Inventione, I, 9.
133
Idem. Ibid., I, 46.
49

exemplo.134 Na Retórica a Herênio, o autor desconhecido, após defini-la, enumera


quatro de seus usos possíveis: “a similitude é o discurso que extrai alguma
semelhança de coisas distintas. É adotada ou para ornamentar, ou para provar, ou
para falar mais claramente, ou para colocar algo diante dos olhos” (grifos
meus).135 Percebe-se um vasto conjunto de possibilidades associadas ao emprego
pragmático das analogias136, segundo o tratamento conferido nestes dois tratados,
textos-base da formação ético-retórica humanista.
Tal recurso da argumentação, todavia, não deve ser entendido estritamente
em caráter técnico-instrumental, isto porque, para empregar palavras do filósofo
italiano Enzo Melandri, a analogia consiste em “processo de pensamento dotado
de uma modalidade específica, exemplificável por uma grandíssima variedade de
formas”.137 Segundo este viés analítico, a analogia não se configura apenas como
tropo retórico ou figura de linguagem, mas como um modo particular de
inferência, nem sempre avaliado devidamente segundo os critérios de
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racionalidade das lógicas clássica e moderna.138 Diante da rigidez instaurada por


divisões binárias, a analogia se revela um tertium comparationis responsável tanto
pela neutralização das possíveis dicotomias que venham a surgir no âmbito da
argumentação como pelo estabelecimento de um novo ponto de partida, capaz de
transcender as aporias instauradas sem precisar necessariamente “resolvê-las” pela
anulação da contrariedade posta, ou pela produção de uma síntese dialética.139
Giorgio Agamben, ao examinar os pontos de vista de Melandri, define analogia
como “o dispositivo que, em toda antinomia e em toda aporia, exibe sua
inevitabilidade lógica e, ao mesmo tempo, torna possível não tanto a sua
composição, quanto sua superação e transformação”.140 Trata-se menos da busca
de um meio-termo aristotélico, capaz de evadir uma situação de impasse pela

134
Idem. Ibid., I, 49.
135
A.D. Retórica a Herênio, IV, 59.
136
Também no De Oratore, tratado de maturidade, Cícero discute amplamente a questão da
analogia, sem recorrer, porém, à divisão apresentada no De Inventione.
137
MELANDRI, Enzo. La linea e il circolo, p.33. “Si tratta di un determinato processo di
pensiero, dotato di una sua specifica modlità, esemplificabile in una larghissima varietà di forme”.
138
Cf. Idem. Ibid., p.311.
139
Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Archeologia di un’archeologia”, p. xvii. Diz ele: “Come scrive
Melandri (792), è solo dal punto di vista della dicotomia che il principio analogico può apparire
come un tertium comparationis. Il terzo si attesta qui soltanto attraverso la deidentificazione e la
neutralizzazione dei primi due che diventano ora i poli di un campo di tensioni vettoriali. Il terzo è
questo campo, e nient’altro”.
50

delimitação de um ponto eqüidistante entre extremos discursivos, que da


flexibilização da rigidez de uma oposição tomada como absoluta, por exemplo
entre verdadeiro e falso, através de uma comparação capaz de insinuar nuanças e
sinuosidades da questão examinada – o que, num campo como a análise política,
mostra-se particularmente relevante.
Na medida em que a analogia consiste fundamentalmente numa comparação
entre coisas distintas, um exame tanto da qualidade como da gradação do que é
então assemelhado revela-se determinante para a formulação de juízos analógicos
– aqueles responsáveis pelo estabelecimento e definição de pertinência em uma
comparação.141 No proêmio da sua Storia d’Italia, por exemplo, Francesco
Guicciardini compara a instabilidade das coisas humanas a um mar agitado pelos
ventos. O mar e as coisas humanas não apresentam em si e de forma evidente
atributos que tornem possível uma assinalação imediata de propriedades comuns
às coisas analisadas, capaz de pôr, de forma instantânea, “algo diante dos olhos”
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de alguém. É preciso definir certas qualidades – como a agitação do mar pelo


vento e a instabilidade das coisas humanas – e certas gradações – um mar agitado
mas não um maremoto, situações instáveis mas não caóticas –, para que a
comparação venha a ser frutífera, produzindo bons efeitos e capacitando o público
leitor e/ou ouvinte a reconhecer, a visualizar, algum princípio de semelhança.
Ao relacionar a instabilidade das coisas humanas a um mar agitado pelos
ventos, Guicciardini formula uma sentença de caráter analógico que, no proêmio
de uma obra histórica, parece alertar para um uso crítico e prudente da memoria
rerum gestarum. Ele não alega a incapacidade das histórias de municiar leitores e
ouvintes com lições prudenciais, tampouco suas reflexões indicam o
enfraquecimento e diluição dos exemplos a serem imitados;142 isto implicaria
contradizer a máxima ciceroniana da história como “testemunha dos tempos, luz

140
Idem. Ibid., p. xvi. “L’analogia è il dispositivo che, in ogni antinomia e in ogni apori, esibisce
la loro inevitabilità logica e, insieme, rende possibile non tanto la loro composizione, quanto il loro
spostamento e la loro transformazione”.
141
Cf. MELANDRI, Enzo. Op. cit., p. 314. “Per il giudizio analogico è invece essenziale che le
qualità, proprietà o attributi siano intensivi, cioè suscettibili di gradazione secondo il criterio del
‘piú-o-meno’ [...]. In altre parole, ciò significa sostituire al criterio del vero-o-falso un criterio del
‘piú-o-meno-vero-o-piú-o-meno-falso”.
142
Embora afirme que Guicciardini tenha procurado em sua Storia d’Italia seguir os preceitos
ciceronianos e humanistas sobre a elaboração de um relato histórico, Felix Gilbert trata tais
preceitos como “aspectos formais” (p.274) da história, e não como condições estruturantes de um
gênero, no sentido de uma unidade ético-retórica. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini ,
p. 282.
51

da verdade, mestra da vida, guardiã do passado”.143 Guicciardini não questiona a


possibilidade de buscar nas histórias a matéria-prima para a orientação das ações
presentes, como argumento no terceiro capítulo; ele questiona, isto sim, a
formulação de sentenças generalizantes e pouco criteriosas a partir da assinalação
de semelhanças superficiais, não substanciais, entre situações presentes e
passadas, como defende na máxima 117 dos Ricordi:

É falacíssimo julgar pelos exemplos porque, se não são semelhantes em tudo e por
tudo, não servem, pois cada mínima variedade no caso pode ser causada de enorme
variação no efeito. Para sermos capazes de discernir estas variedades, quando não
são pequenas, devemos ter olhos bons e perspicazes (grifos meus).144

As coisas humanas são diversas e variáveis; por essa razão, é preciso que o
analista dos fenômenos políticos tenha “olhos bons e perspicazes”, de modo a
extrair da inquirição destes não um ensinamento geral e inequívoco, supostamente
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válido de forma indistinta, mas um princípio de orientação segundo condições


específicas, apropriado a determinada situação concreta. Daí a importância da
analogia: ela não reafirma o que já se sabe (ainda que comparações e metáforas
ligeiras e pouco estudadas sejam, desde sempre, uma constante no campo da
política). Ao contrário: se urdida com prudência e discernimento, a analogia
permite a delimitação de gradações e sutilezas que fornecem ganhos efetivos à
inquirição das coisas do mundo, tornando-a mais criteriosa.
Voltando à passagem do proêmio da Storia d’Italia, a analogia entre o mar
agitado pelos ventos e a instabilidade das coisas humanas é acompanhada de uma
censura à atuação dos príncipes, embaixadores e magistrados dos domínios
principescos e republicanos da Península Itálica, no período que vai da morte de
Lorenzo de’Medici, em 1492, à década de 1530, os quais, segundo Guicciardini,
“vislumbram apenas o que está diante dos olhos” sem se recordar das contínuas
mudanças de Fortuna. Se esta reprimenda for articulada à imagem do mar agitado,
sugerida logo antes, a passagem acaba por chamar a atenção para um aspecto
decisivo dos textos políticos e históricos de Guicciardini e também de Maquiavel:
a condução correta do stato diante das vicissitudes das coisas do mundo; mais

143
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36.
144
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 117, p.101.
52

especificamente o papel central dos bons timoneiros – em analogia com os


magistrados máximos de uma república, príncipes ou senhores preponderantes –,
aptos por suas habilidades prudenciais a navegar com segurança no mar agitado
das coisas humanas, sempre instáveis em função das constantes variações da
Fortuna.
Se as analogias entre a condução dos assuntos públicos e a arte da navegação
eram corriqueiras desde a poesia homérica, também as comparações do bom
governante com o bom médico mostravam-se usuais, como analisei anteriormente.
Numa analogia entre “coisas do estado” e medicação de enfermos, Maquiavel diz:

acontece, neste caso, o mesmo que dizem os médicos dos tísicos: no princípio o mal
é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo
sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais fácil de diagnosticar, mas, com
o passar do tempo, não tendo sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais
fácil de diagnosticar e mais difícil de curar. O mesmo acontece nas coisas de
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estado, já que, quando se conhecem com antecedência (o que só ocorre quando se é


prudente) os males que surgem, eles se curam facilmente; mas, quando por não
terem sido identificados deixa-se que cresçam a ponto de todos passarem a
conhecê-los, não há mais remédio (grifos meus).145

O governante prudente, como o bom médico, deve se mostrar um intérprete


atento das “exigências do tempo”.146 Compara Guicciardini:

os médicos prudentes e experientes em nada usam zelo mais exato que ao conhecer
a natureza do mal, ao perceber os traços, a qualidade e todos os acidentes, para
resolver-se, a partir destes fundamentos, qual deve ser o tratamento [reggimento] do
enfermo, de que sorte e em que tempo se deve dar a ele os remédios.

“E”, prossegue ele,

como do fato de um enfermo ser bem ou mal medicado se pode chegar a um


argumento potente sobre sua melhora ou sua morte, o mesmo acontece no governo
de um stato, porque sendo conduzido prudentemente e proporcionalmente, se pode

145
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
146
Idem. Ibid., XXV, p.120.
53

crer e esperar bons efeitos; sendo conduzido de outra forma e mal governado, em
que se pode crer senão na sua destruição? (grifos meus).147

Assim como o bom remédio é o que produz melhoras significativas no


paciente, o bom governo é o que gera bons efeitos, a saber, uma melhora parcial
do corpo político, na ótica de Guicciardini, ou mesmo total, segundo Maquiavel. E
que figura se não a do prudente está para eles habilitada a identificar e aplicar os
bons remédios necessários à saúde do stato?
Nesse sentido, pode-se dizer que a analogia não é meramente ilustrativa: ao
comparar a condução do stato ao tratamento conferido a um enfermo, Maquiavel e
Guicciardini realçam a vulnerabilidade da organização política das repúblicas e
principados da Península Itálica. Diante de um corpo político decadente e
adoentado é preciso agir com a máxima prudência, tanto no que diz respeito à
cautela quanto à celeridade decisória e à habilidade de saber reconhecer as
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condições do tempo; trata-se, em suma, do controle dos meios eficientes capazes


de incidir na atenuação ou reversão do quadro geral de degeneração.
A seguir, traçarei um panorama de algumas das mais importantes tradições
interpretativas sobre a prudência, com o intuito de fornecer elementos para o
exame, no quarto item deste capítulo, dos termos específicos da redefinição do
conceito nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. Possuidora de uma dupla
dimensão, calculativa e performativa – que de fato compõem uma unidade, na
medida em que perfazem uma retórica prudencial onde a análise sutil da realidade
é indissociável do domínio de convenções ético-retóricas que, mobilizadas
segundo o decoro específico das práticas letradas, visam à produção de efeitos de
persuasão e conseqüentemente ao reconhecimento público do bom juízo do orador,
ou do escritor –, a prudência constitui a categoria-chave para a fixação de um
critério interpretativo alicerçado no princípio do cálculo seguro, aguçado e veloz
das possíveis motivações e ações dos agentes históricos (príncipes, embaixadores,
condottieri, magistrados de Repúblicas, monarcas, etc.) no emaranhado tabuleiro

147
GUICCIARDINI, Francesco. Del governo di Firenze dopo la restaurazione de’ Medici nel
1512, pp. 43-4. “prudenti ed esperti medici in nessuna cosa usare più esatta diligenzia che in
conoscere quale sai la natura del male, e capitulare um tratto le qualità e tutti li accidenti sua per
resolversi poi com questo fondamento quale abbi a essere el reggimento dello infermo [...].E come
dallo essere uno infermo bene curato da’ medici o no, si può pigliare potente argumento della
salute o morte sua, così interviene nel governo di uno stato, perché essendo retto prudentemente e
proporzionatamente, si può crederne altro che la ruína e destruzione sua?”
54

das relações entre os stati, sem prejuízo das tópicas da honestidade e da utilidade,
vistas como finalidades últimas de toda deliberação política.

2.3 Breve excurso: da phronesis à prudentia.

Da phronesis em Aristóteles. A tradução de phronesis por prudentia entre os


latinos. Seu lugar no projeto ciceroniano de unidade ético-retórico-filosófica.
Tomás de Aquino e a recta ratio agibilium. A prudentia no Vita Civile de Matteo
Palmieri e nos escritos do napolitano Giovanni Pontano.

A prudência constituiu por muitos séculos um aspecto decisivo da reflexão


ético-retórica e filosófica entre os gregos, romanos, com a escolástica, no
Renascimento italiano e no mundo ibérico do século XVII. Desde então, ela
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sofreu um eclipse significativo, resultante das transformações do conceito na


modernidade. Conquanto não tenha desaparecido completamente do horizonte da
análise política, a prudência lentamente deixou de ser considerada, especialmente
a partir de meados do século XVIII, uma disposição associada tanto à celeridade
decisória quanto à capacidade de articular o conhecimento das coisas boas,
passando a estar circunscrita a apenas um de seus domínios clássicos, a
precaução.148 Um exemplo retirado de um dicionário contemporâneo ilustra este
entendimento:

[do lat. Prudentia.] S. f. 1. Qualidade de quem age com moderação, comedimento,


buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano. 2. Cautela, precaução:
Dirige o carro com muita prudência. 3. Circunspeção, ponderação, cordura, sensatez: Leu
os autos com toda a prudência.149

148
Cabe ressaltar que o eclipse da prudência não implicou seu desaparecimento na modernidade.
Como demonstra Peter J. Diamond, a análise da racionalidade prática entre autores do iluminismo
escocês atribuía grande destaque à questão da prudência. Cf. DIAMOND, Peter J. “The
‘Enlightenment Project’ Revisited: Common Sense as Prudence in the Philosophy of Thomas
Reid”. Também as controvérsias públicas dos primórdios da República Norte-Americana
envolveram diferentes concepções da ação prudencial. Cf. HARIMAN, Robert. “Theory Without
Modernity”, p.22.
149
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio, p.1.651.
55

Na segunda metade do século XX deu-se uma reabilitação teórica da


prudência, movimento associado ao recrudescimento do interesse pela filosofia
política clássica, especialmente a ética aristotélica.150 Em Verdade e Método,
Hans-Georg Gadamer dedica alguma atenção à phronesis, com o intuito de pensar
a possibilidade de um “saber filosófico sobre o ser moral do homem”.151 Do
mesmo modo, pode-se destacar a contribuição de filósofos como Hannah Arendt,
Pierre Aubenque, Alasdair MacIntyre, Josef Pieper, além do próprio Gadamer,
para a revalorização da categoria. Tal conjunto de reflexões fez da prudência um
tema privilegiado entre os filósofos contemporâneos, especialmente aqueles
interessados nos limites da ética moderna, pós-kantiana.152 Ainda que não se
proponha a discutir o revigoramento da phronesis e da prudentia na
contemporaneidade, o presente estudo tem em seu horizonte algumas das
preocupações delineadas por estes autores, como a relação entre saber teórico e
saber prático, o caráter prudencial da história e a tensão entre segurança e
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contingência no campo da análise política.

As primeiras definições e discussões teóricas acerca da phronesis remetem à


filosofias platônica e aristotélica, mas já na Ilíada e na Odisséia o vocábulo e
alguns significados correlatos se fazem presentes. A figura de Ulisses multi-
ardiloso sugere a importância atribuída ao cálculo cuidadoso das ações e à
ponderação, assim como à elaboração de estratégias e artifícios capazes de trazer
soluções rápidas diante de percalços imediatos. Também Nestor pode ser
destacado nesse sentido, como o protótipo do ancião sábio e experiente da Ilíada –
embora, como percebe Moses Finley, ele não se apóie em momento algum “na sua
experiência para justificar a escolha de uma decisão em vez de outra”.153 Ainda
segundo o historiador norte-americano, “na Ilíada, a prudência era personificada
pelo troiano Polídamas (e não por Nestor), sublinhando o seu diálogo com Heitor

150
Cf. UYL, Douglas J. Den. The Virtue of Prudence, pp.1-11.
151
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, p.466. Sobre a questão da phronesis em
Gadamer, conferir: CÔRTES, Norma. “Descaminhos do método: notas sobre história e tradição
em Hans-Georg Gadamer”. In: Varia História, v. 22, nº 36, pp. 274-290.
152
Segundo Douglas J. Den Uyl, a prudência, entre os autores que, na segunda metade do século
XX, buscam sua reconsideração, “could only hold, at most, a place of prominence as a
motivational basis for virtue, but not as a virtue in its own right. That which will be called virtuous
within the modern perspective will be defined as such in terms of a corresponding duty”. UYL,
Douglas J. Den. Op. cit., p.16.
153
FINLEY, Moses I. O mundo de Ulisses, p.109.
56

a verdadeira qualidade do herói”.154 Tal noção de prudência, associada ao cálculo


preciso e à precaução, acaba por se opor à idéia homérica de honra, alcançada
apenas na guerra e na morte gloriosa, com bravura – daí a insatisfação de Heitor
com os conselhos que lhe dão Polídamas e Príamo. Não se pode dizer, assim, que
a phronesis seja vista, na Ilíada e na Odisséia, como um elemento constitutivo da
areté, um de seus pilares. A reconsideração da prudência no mundo grego estará
diretamente associada à transformação do conceito de areté operada pelas
filosofias socrática e platônica, no sentido de pensá-la como excelência moral.155
Em Platão, a areté conforma a unidade de quatro elementos – justiça,
prudência, coragem e temperança –, denominadas virtudes cardeais por Santo
Ambrósio no século V da era cristã. Entendida como excelência, a areté é
alcançada por meio do equilíbrio entre as três partes da alma – irascível, apetitiva
e racional –, equilíbrio este que tem na phronesis seu alicerce fundamental, posto
que a parte racional deve dominar as demais.156 Há, ainda, uma subordinação da
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phronesis à sophia. Por este critério, caberia aos governantes sábios e prudentes –
na pólis ideal da República, o filósofo-rei; na pólis orientada por esse ideal sem
consumá-lo plenamente, delineada por Platão no Político e nas Leis, os
governantes apoiados na legislação – tomar as decisões apropriadas acerca da
organização da pólis como um todo, sem perder de vista os princípios universais
do Bom e do Justo.157 A phronesis, nesse sentido, é categorizada pelo filósofo
ateniense como uma efetiva politiké epistéme, “ciência da política” – em sentido
completamente distinto do moderno, diga-se158 – responsável por zelar pela
condução apropriada dos assuntos citadinos. A conseqüência imediata de tal
assertiva é a exigência de que tanto magistrados como legisladores devam ser,

154
Idem. Ibid., p.110.
155
Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli
antichi, p.22.
156
Cf. PLATÃO. A República, IV, 428a-432e.
157
Cf. Idem. Ibid., IV, 428c-d. “Na cidade que há pouco fundamos existe, em alguns cidadãos,
uma ciência que não delibera sobre algo que nela ocorre, mas sobre a cidade como um todo,
procurando fazer ver como estabeleceria da melhor maneira as relações entre seus cidadãos e com
as outras cidades?”.
158
O sentido de ciência da política, politiké epistéme, próprio da filosofia política clássica é bem
explicitado por Leo Strauss na seguinte passagem, e em nada se aproxima da ciência política
moderna: “Political life requires various kinds of skills, and in particular that apparently highest
skill which enables a man to manage well the affair of his political community as a whole. That
skill – the art, the prudence, the practical wisdom, the specific understanding possessed by the
excellent statesman or politician – and not a ‘body of true propositions’ concerning political
matters which is transmitted by teacher to pupils, is what was originally meant by ‘political
57

além de homens experimentados nos assuntos políticos, sábios em sentido


filosófico.159 Este constitui o elemento central da crítica de Aristóteles a seu
mestre. Para o estagirita, conhecimento teórico e sabedoria prática constituem
atividades díspares da alma racional.
O ponto de partida das reflexões ético-políticas de Aristóteles reside na
crítica à teoria platônica das Formas. Não que o estagirita renuncie à noção de um
Bem supra-sensível; todavia, mesmo que tal valor exista como um princípio
externo e perfeito, sempre igual a si mesmo, ele não poderá jamais constituir um
modelo efetivo para as ações e aspirações dos homens em geral.160 “Ainda que
haja um bem único que seja um predicado universal dos bens”, diz ele na Ética a
Nicômaco, “ou capaz de existir separada e independentemente, tal bem não
poderia obviamente ser praticado ou atingido pelo homem, e agora estamos
procurando algo atingível”.161 Aristóteles estabelece aqui um finalismo sustentado
pela idéia de que as ações praticadas pelo homem conformam meios pelos quais
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ele pode realizar seus objetivos maiores, bens para si mesmo mas não
necessariamente o Bem Supremo metafisicamente fundado. Como afirma Francis
Wolff, para Aristóteles “tudo o que existe é explicável por aquilo em vista do que
ele existe”162; as ações humanas, deste modo, são compreendidas em função dos
bens almejados: “se há portanto um fim visado em tudo que fazemos”, diz o
estagirita na Ética a Nicômaco, “este fim é o bem atingível pela atividade, e se há
mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade”.163
Dado que as ações humanas direcionam-se a fins, e cada fim, segundo esta
lógica, deve ser entendido como um bem, não seria correto falar em Bem
universal, mas em “bens” próprios a cada homem e a cada circunstância,

science’”. Cf. STRAUSS, L. “On Classical Political Rationalism”. In: The rebirth of classical
political rationalism, p. 52.
159
A forma ideal de governo é instituída e examinada por Platão em A República; em O Político,
esta forma ideal é chamada de “verdadeiro governo”. Já as outras formas (monarquia, aristocracia,
democracia e suas formas degeneradas) “nem são legítimas nem verdadeiras, senão simples cópias
daquela, imitando-a no bom sentido as bem organizadas, e o contrário disso as que de nada
valem”. PLATÃO. O Político, 293e. Também no Górgias há a crítica da maneira com que a polis
fora conduzida até então. Homens de estado reputados como prudentes, phronimos, são
desqualificados por Sócrates, que afirma: “creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o
único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais presentemente a pratica”.
PLATÃO, Górgias, 521d.
160
Cf. HUTCHINSON, D.S., “Ethics”, p.201.
161
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, I, 6, 1096b.
162
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política, p. 43.
163
ARISTÓTELES. Op. cit., I, 1, 1096a.
58

atingíveis por meio de escolhas intencionais do possível.164 Havendo um bem


supremo, este deve ser procurado entre as cobiças comuns a todos os homens, não
entre idéias descarnadas, visíveis para uns poucos e inalcançáveis na plenitude.
Trata-se, este bem possível, da eudaimonia: “a felicidade”, afirma Aristóteles,
“mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos
sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais”.165 Caberia à filosofia
prática, nesse sentido, definir os meios adequados à consecução de fins
determinados em função do bem supremo, a eudaimonia, sem fugir, contudo, da
verdade e da virtude. “A filosofia prática”, diz Enrico Berti,

tem em comum com a teorética o fato de procurar a verdade, ou seja, o


conhecimento de como são efetivamente as coisas, e também a causa de como são
[...]. Sua diferença em relação à filosofia teorética é que, para esta última, a
verdade é fim para si mesma, enquanto para a filosofia prática a verdade não é o
fim, mas apenas um meio em vista de outro, ou seja, da ação, sempre situada no
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tempo presente.166

Se a verdade da filosofia prática não é fim, ela envolve necessariamente o


princípio da escolha (proairesis) – não uma escolha qualquer, mas aquela
“responsável pela retidão dos meios” capazes de incidir na virtude, a retidão dos
fins.167 Viver virtuosamente implica escolher a felicidade suprema, optar por ela e
deliberar, em acordo com a retidão dos fins, sobre os meios necessários para
alcançá-la.168
A phronesis, nesse sentido, é percebida por Aristóteles como a disposição
prática responsável pelo reconhecimento das virtudes morais, pela compreensão
da necessidade de agir em conformidade a elas, preservando a justa medida e,
afinal, pela definição dos meios retos capazes de incidir na consumação dos fins
almejados. Se, como diz Aristóteles no livro II da Ética a Nicômaco, “a

164
Cf. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles, p.163. “Na realidade, há tantos sentidos
de bem quanto há de categorias do ser”.
165
ARISTÓTELES. Op. cit., 1097a.
166
BERTI, Enrico. Op. cit., p.116.
167
Cf. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.199. “De resto, à frente, Aristóteles precisa que a virtude é
responsável pela retidão do fim, o que deixaria supor que a escolha, responsável pela retidão dos
meios, enquanto tal não pode ser dita virtuosa ou viciosa”.
168
Cf. ARISTÓTELES. Op. cit., II, 1113a.
59

excelência moral é engendrada em nós [...] com o hábito”169, a phronesis


corresponde à disposição intelectual capaz de viabilizar tal aprendizado, através
da escolha segundo um desejo correto. “Para que a escolha seja boa”, afirma o
estagirita, “tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto, e
este deve buscar exatamente o que aquela determina”.170 A phronesis se configura,
deste modo, como uma faculdade intelectual associada à parte calculadora da
alma racional (logistikón) – que tem por objeto o contingente –, não à sua parte
“científica” (epistemonikón)171, mostrando-se responsável pela “percepção da
verdade segundo o desejo correto”.172 Daí a definição da phronesis, no livro VI da
Ética a Nicômaco, como a “qualidade racional que leva à verdade no tocante às
ações relacionadas com os bens humanos”.173
Toda deliberação é um ato singular, único.174 “Ninguém delibera acerca das
coisas invariáveis”, diz Aristóteles, “nem acerca de ações que não podem ser
praticadas”.175 Precisamente por esta razão a phronesis se distingue da sabedoria
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(sophia), a qual “diz respeito ao necessário”.176 “A sabedoria do imutável”,


argumenta Aubenque acerca da filosofia prática aristotélica, “não nos presta
nenhum socorro num mundo onde tudo nasce e perece”.177 Daí ser possível dizer
que o domínio da phronesis é aquele das escolhas tomadas com base em critérios
de validade não-asseguráveis em sua plenitude – isto porque, como afirma o
estagirita, “o homem não é o que há de melhor no universo”.178 Ela diz respeito às
“ações humanas e coisas acerca das quais é possível deliberar”179, enquanto a
sophia é a “mais perfeita das formas de conhecimento”.180
É certo, todavia, que o fato de a phronesis lidar com o acaso não implica
atestar a completa indeterminação de seus juízos – que desta forma sequer
poderiam receber este nome. Afirma Aristóteles: “está claro que não é possível

169
Idem. Ibid., II, 1102a.
170
Idem. Ibid., VI, 1139a.
171
Cf. BERTI, Enrico. Op. cit., p. 144.
172
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1139b.
173
Idem. Ibid., VI, 1140b.
174
Cf. HARIMAN, Robert. Op. cit., p. 5. “Prudence is the mode of reasoning about contingent
matters in order to select the best course of action.”.
175
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1140a.
176
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.109.
177
Idem. Ibid., p.147.
178
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1141a.
179
Idem. Ibid., VI, 1141a.
180
Idem.
60

possuir sabedoria prática [phronesis] quem não seja bom”.181 O conceito de bom,
neste caso, constitui um tipo de arché que orientará as escolhas racionais do
homem prudente, sem, contudo, determiná-las. Nesse sentido, Alasdair MacIntyre
defende que “a deliberação primeiramente busca um início, uma arché, tendo em
vista a construção de uma argumentação que conclui com um produto final que
Aristóteles chama de proáiresis”.182 Trata-se do assim chamado “silogismo
prático” aristotélico, no qual a primeira premissa afirma que “tal coisa deve ser
feita enquanto boa”; já na segunda premissa, “o agente afirma que as
circunstâncias são tais que oferecem a oportunidade e a ocasião para se fazer o
que deve ser feito”.183
“A phronesis”, diz Aristóteles, “é a disposição da alma relacionada com o
que é justo, nobilitante e bom para as pessoas”. No entanto, argumenta ele, “estas
são as coisas que o homem bom faz naturalmente, e não seremos mais capazes de
agir bem somente por conhecê-las, já que as várias formas de excelência moral
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são disposições do caráter”.184 Logo, não basta saber o que é justo e nobilitante. É
preciso, acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e conduta, o
que só é possível pela ponderação de cada acidente, de cada lance fortuito a que
os homens estão sujeitos. Daí a afirmação de Aristóteles, na Política, de que “ao
falar em um homem bom queremos dizer que ele possui uma bondade única, a
bondade perfeita, mas é obviamente possível ser um bom cidadão sem possuir a
bondade característica de um homem bom”.185 Dito de outro modo: cada ação,
conquanto orientada por modelo, é única e visa ao seu próprio bem específico, não
se subsumindo, assim, a um padrão previamente estabelecido. Donde decorre que
a phronesis “é a única qualidade específica de um governante”186, aquela capaz de
distingui-lo dos seus governados pela ação no tempo oportuno (kairos) e pela
procura do “melhor possível, dadas as circunstâncias”.187 Assim, como defende
Aubenque, o prudente, o phronimos, “sendo o critério último, é seu próprio

181
Idem. Ibid., VI, 1143b.
182
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade?, p. 148.
183
Idem. Ibid., p. 155.
184
ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1143b.
185
ARISTÓTELES. Política, II, 1277a.
186
Idem. Ibid., II, 1277b.
187
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.186.
61

critério”, de modo que, em Aristóteles, “não é mais o homem de bem que tem os
olhos fixos nas idéias, somos nós que fixamos os olhos no homem de bem”.188

Pierre Aubenque afirma que “os latinos não estavam pouco inspirados
quando traduziram por prudentia, que Cícero nos lembra que se trata de uma
contração de providentia, a phronesis de Aristóteles e da tradição popular”.189 Isto
porque, como sustenta o filósofo no De Officiis, uma das qualidades centrais do
homem sábio e prudente consiste na capacidade de “antever as coisas futuras e, no
momento crítico, resolver os problemas tomando a decisão oportuna”190, com base
no critério da justiça e do honestum – uma vez que, para o Cícero, “a prudência,
sem a justiça, é impotente para gerar fé”191, isto é, gerar fidúcia.
Tal capacidade de antevisão já havia sido ressaltada por ele no De
Inventione, tratado de juventude:
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a prudência é o conhecimento do que é bom e daquilo que é mau, e do que não é


nenhum dos dois. Suas partes são a memória, a inteligência e a previsão
[providentia]. A memória é o que permite à mente revocar o passado; a
inteligência, o que faz compreender o presente; a previsão, o que permite conhecer
a realização de uma coisa antes que aconteça.192

A prudência, no De Inventione, é tratada como parte da matéria honesta –


“aquilo que é desejado por si mesmo, em sua totalidade ou parcialmente”193 –,
visão que é compartilhada na Retórica a Herênio, de autoria desconhecida e
provavelmente redigida na mesma época:

A matéria honesta divide-se em reto e louvável. Reto é o que se faz com virtude e
dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e modéstia. Prudência é a
destreza que pode, com certo método, discernir o bem e o mal. Também se
denomina prudência o conhecimento de alguma arte, e ainda a memória de muitas
coisas e o trato de um grande número de negócios (grifos meus).194

188
Idem. Ibid., p.77.
189
Idem. Ibid., p.154.
190
CICERO, Marco Tulio. De Officiis, II, 33.
191
Idem. Ibid., II, 34.
192
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 160.
193
Idem. Ibid., II, 159.
194
AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153.
62

Como conhecimento do que é bom e mal, e do que não é nem um nem


outro, a prudência é configurada como disposição intelectual capaz de articular o
entendimento do passado, a visão do presente e a antevisão do futuro, de modo a
possibilitar a urdidura de juízos honestos, desejáveis por si mesmos e em acordo
com a virtude e suas partes – especialmente a justiça, como Cícero frisa no De
Officiis. Nesse sentido, ela é responsável pelas escolhas de ações justas e corretas,
estando articulada, porém não subsumida, à sapientia, sabedoria em sentido
filosófico; inclusive, a dificuldade de distinguir sapientia e prudentia nas obras de
Cícero é um indício do nível de articulação destes dois conceitos em sua filosofia.
A discussão sobre a prudência adquire maior clareza no De Oratore e no
Brutus, diferenciando-se em aspectos importantes do entendimento aristotélico da
phronesis, especialmente no que diz respeito à ênfase na unidade entre prudência
e retórica e à defesa de um modelo de prática prudencial associado ao passado
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romano.195 Não que a relação entre retórica e prudência fosse negada pelo
estagirita; em Cícero, porém, ela é realçada e levada ao primeiro plano.196
Prudentes, no De Oratore, são os oradores sábios e eloqüentes, detentores de
ampla sabedoria prática e profundo conhecimento filosófico.197 Cícero vislumbra
na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a
desejável unidade entre filosofia e retórica.
Na abertura do livro II do diálogo De Oratore, Cícero afirma, em trecho
dirigido a seu irmão Quinto, que “a eloqüência alcançada por Crasso e Antônio
nunca poderia se realizar sem o conhecimento de todas as coisas que produziram a
prudência e a fluência oratória [dicendi copiam] manifesta nos dois”.198 É
importante frisar, aqui, a íntima relação entre conhecimento das coisas (cognitis

195
Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the Development of Prudential Practice at Rome”, p.39.
“…by elevating the term within the dialogue genre, providing examples of viri prudentes in
intellectual debate, associating prudentia intimately with rhetoric and politics, and doing this
within the context of writing literary dialogue as a form of political action, Cicero provided a
model of prudential practice”.
196
Cf. NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics: Republicanisms – ancient,
medieval, and modern”, p. 252. “Instead, Cicero states that the realm of so-called ‘practical
philosophy’ (philosophy touching on vita atque mores) falls more properly within the domain of
the orator than of the philosopher”.
197
Cape Jr. argumenta que, em Cícero, a prudência é removida de seu âmbito estritamente legal,
passado a constituir uma virtude essência do orador. Cf. Op. cit., Ibid., p.48.
198
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 2.
63

rebus omnibus) e prudência; tal conhecimento de nada valerá, porém, se não for
acompanhado de eloqüência.
Para além dos procedimentos calculativos da phronesis aristotélica, fica
evidente a relevância atribuída por Cícero às performances práticas do homem
prudente – logo, ao caráter de evento adquirido pela prudência, associado à
deliberação em geral e à vita negotiosa.199 Cícero define modelos de homens
prudentes a serem imitados, e argumenta que o aprendizado da prudência,
envolvendo o somatório de eloqüência e conhecimento prático, se dá pela
observação atenta e respeitosa dos grandes homens do presente e leitura sobre os
grandes homens do passado, na busca do aperfeiçoamento moral pleno.200 Daí a
afirmação de Crasso, no De Oratore: “o costume e o treinamento agudizam a
prudência e aceleram a fluência oratória”.201
Como nota Robert Cape Jr., tal sentido de prudência, ao mesmo tempo em
que alcança seu apogeu com Cícero, não sobrevive à sua morte. Em Sêneca e
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Tácito, alega, a prudentia “se transforma em meio de acomodação ao regime


político corrente”.202 Ainda segundo sua argumentação, os verdadeiros herdeiros
do entendimento ciceroniano de prudência foram os humanistas do Renascimento.

Em instigante exame da filosofia tomista, o filósofo alemão Josef Pieper


argumenta que a prudentia, para Tomás de Aquino, deve ser compreendida como
a causa fundamental para que as outras virtudes se constituam como tal.203
Percebida como capacidade humana de tomar decisões certas, a prudência permite
ao homem agir bem; logo, envolve em seu mecanismo de ajuizamento a própria
intuição da verdade.

199
Cf. CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “The rich texture of prudential practice in De Oratore,
the Somnium Scipionis, and Brutus interwove the calculative procedures of prudence in rhetoric,
ethics, and politics into a living tapestry of practical performance. Wisdom was embedded in
political action; the great men of the state supported learning for its broader application to civic
life and reflected upon their own positions; political performance could be learned and taught, as
rhetoric was, by imitation”.
200
Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli
antichi, p.39. “Che gli antichi romani siano stati esempli di virtù non significa solo per Cicero che
essi abbiano costituito dei modelli a sé stessi, ma anche che la stessa virtù sia talmente radicata
nela loro cultura da non derivare né linguisticamente, né concettualmente, da odelli stranieri”.
201
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 90.
202
CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “Prudentia in later writers, particularly in Seneca and
Tacitus, became a means of accommodation to the current political regime”.
203
Cf. PIEPER, Josef. The Four Cardinal Virtues, p.6. “Prudence is the cause of the other virtues’
being virtues at all”.
64

Para Pieper, a prudência se configura, na filosofia tomista, como uma


espécie de sinderesis – intuição dos princípios universais – aplicada a situações
específicas.204 Trata-se, nesse sentido, da preocupação com os meios dos fins
corretos, fins estes que são concebidos como a “verdade das coisas reais”, ou seja,
das coisas como são.205 A prudência consiste, portanto, em recta ratio agibilium,
reta razão aplicada ao agir206; por meio dela, é possível alcançar a providentia, a
antevisão do que ainda não aconteceu. A antevisão precisa do futuro depende,
porém, da Graça, de uma iluminação de caráter único, ela mesma imprevisível.
Como esta independe do homem, sendo atributo exclusivamente divino, a noção
de providentia em Tomás de Aquino adquire outros contornos, devendo ser
entendida também como um produto intelectual, segundo argumento de Pieper:

Na medida em que a prudência é acima de tudo uma ‘virtude intelectual’, não


devemos, também, imputar às suas decisões a ‘certeza da verdade’ (certitudo
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veritatis)? A esta sugestão, Tomás de Aquino responde: ‘non potest certitudo


prudentiae tanta esse quod omnino solicitudo tollatur’ – a certeza da prudência não
pode ser tão grande de modo a remover completamente a ansiedade. Uma
declaração profunda, esta! O homem, então, quando chega a uma decisão, não pode
jamais ser suficientemente presciente, tampouco pode esperar que a lógica lhe
forneça certeza absoluta.207

Assim como em Aristóteles e em Cícero, o prudente em Tomás de Aquino


não age visando atingir uma certeza plena; esta é insondável. O horizonte, aqui,
ainda é o provável, porém sob os auspícios do Bom e do Justo, princípios
universais que devem orientar toda escolha específica. Nas palavras de Pieper, a
prudência, em sentido tomista, “transforma o conhecimento da realidade em

204
Cf. Idem. Ibid., p.11. “Prudence, or rather perfected practical reason which has developed into
prudence, is distinct from ‘synderesis’ in that it applies to specific situations”.
205
Cf. Idem. Ibid., p.20. “The meaning of the virtue of prudence, however, is primarily this: that
not only the end of human action but also the means for its realization shall be in keeping with the
truth of real things”.
206
AQUINO, Tomás de. A prudência. A virtude da decisão certa, questão 47, artigo 4, p.8.
207
PIEPER, Josef. Op. cit., p.18. “But since prudence is after all an ‘intellectual virtue’, shall we
not also ascribe to its decisions ‘the certitude of truth’ (certitudo veritatis)? To this suggestions
Thomas Aquinas responds: ‘non potest certitudo prudentiae tanta esse quod omnino solicitudo
tollatur’ – the certitude of prudence cannot be so great as completely to remove all anxiety. A
profound statement, this! Man, then, when he comes to a decision, cannot ever be sufficiently
prescient nor can he wait until logic affords him absolute certainty”.
65

realização do bem”.208 Por esta razão, sua caracterização difere um pouco do


tratamento aristotélico: se para o estagirita a phronesis constitui uma virtude
intelectual, dianoética, em Tomás de Aquino a prudentia conforma um ponto
médio entre as virtudes morais e intelectuais.209 “Todos os atos humanos”, afirma
Mario Santoro acerca da filosofia tomista,

são inspirados por dois princípios, o intellectus ou ratio e o appetitus; por isso toda
virtude humana é condizente com um dos dois: em conseqüência, toda virtude, se é
própria do intelecto especulativo, é intellectualis, e se é própria do appetitus é
moralis: por isso a prudência é uma virtude intelectual e, ao mesmo tempo, é
acompanhada de outras virtudes morais.210

A definição de prudência como recta ratio agibilium mostrou-se recorrente


entre os humanistas italianos dos séculos XIII ao XV. Em Dante, ela é pensada
como mestra das coisas a seguir ou fugir211; em Petrarca, ela é compreendida
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como o remédio mais efetivo contra a Fortuna, por guiar o homem nas ações
concretas fazendo-o esquecer dos bens vãos e valorizar a liberdade interior.212
No diálogo Vita Civile, composto em meados do século XV, o humanista
Matteo Palmieri fornece uma das análises mais aguças acerca da prudência:

De acordo com as virtudes cívicas, é ofício da Prudentia dirigir com razão todo o
nosso pensamento e toda a nossa ação, de acordo com fins honestos e dignos de
elogio, não querer nem fazer nenhuma coisa menos que honesta e prover cada uma
das nossas operações com razão e juízo perfeito.213

208
Idem. Ibid., p.22. “Prudence […] transforms knowledge of reality into realization of the good”.
209
Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltà letteraria del cinquecento,
p.47.
210
Idem. Ibid., p.48. “La virtù umana è per S. Tommaso un abito che consente all’uomo di bene
operare: tutti gli atti umani sono ispirati da due principim l’intellectus o ratio, e l’appetitus; perciò
ogni virtù umana è perfettiva di uno di essi: di conseguenza ogni virtù, se è perfettiva
dell’intelletto speculativo, è intellectualis, mentre, se è pefettiva dell’appetitus, è moralis: perciò la
prudenza è una virtù intellettuale e, nello stesso tempo, si acompagna alle virtù morali”.
211
Cf. Idem. Ibid., p.49.
212
Cf. Idem. Ibid., p.50.
213
PALMIERI, Matteo. Vita Civile, I, 187, p.52. “Secondo virtù civile è proprio officio della
Prudentia ogni nostro pensiero et ogni nostra acione con ragione dirizare in laudbile et honesto
fine, niuna cosa meno che honesta né volere né fare, et provedere a ciascuna nostra operatione con
ragione at perfecto giudicio”.
66

Assim como Cícero no De Inventione, Palmieri delimita três partes da


prudência: memória, inteligência e providência, sendo esta última responsável
pela previsão “acautelada de todas as coisas, com arbítrio quase divino”.214
Ao dirigir com razão o pensamento, a prudência se faz virtude intelectual
sem deixar de ser ela mesma uma virtude moral, nos moldes tomistas; a ênfase
nos fins honestos remete à compreensão ciceroniana da prudentia, e está
diretamente associada à valorização do equilíbrio das paixões e apetites humanos,
assim como ao bom governo: “com estas virtudes”, afirma Matteo Palmieri acerca
das quatro virtudes cardeais (prudência, fortaleza, temperança e justiça), “os
homens bons governam primeiramente a si mesmos e às suas coisas; em seguida,
fazem-se governantes das repúblicas”.215 Para que seja reconhecido como
prudente, o homem deve fugir da ignorância, procurar a verdade das coisas –
sabendo medi-las com diligência –, e respeitar o tempo certo de agir, sem perder
de vista o “governo do bom e justo viver”, segundo os critérios do útil e do
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honesto.216 É “ofício próprio do homem prudente saber bem aconselhar”, diz ele;217
para tanto, é preciso que esteja apto a vislumbrar e distinguir a verdade, quando
diante dela.
Segundo Palmieri, o reconhecimento da verdade pode ser obtido de quatro
formas distintas: pelo intelecto, força natural a partir da qual se revelam os
princípios universais; pela ciência, conhecimento verdadeiro das coisas certas;
pela arte com razão, que diz respeito às coisas que podem ser e não ser, ou seja, o
domínio do provável, e finalmente pela sabedoria, consideração elevada das
coisas supremas. Na medida em que o domínio da prudência diz respeito às
“coisas humanas”218, a verdade almejada pelo prudente sempre está sujeita às
contingências, ao acaso e à indeterminação; logo, diz respeito ao domínio do
provável. Sendo assim, das quatro formas de conhecer a verdade elencadas acima,
aquela que, segundo Palmieri, mais se aplica à prudência é a arte com razão –

214
Idem. Ibid., II, 41, p.68. “con arbitrio quasi divino a ogni cosa possiano cautamente provedere”.
215
Idem. Ibid., I, 190, p.52. “Con queste virtù i buoni huomini prima governono loro et le loro
cose; di poi, venutti governatori delle republiche, acrescono, consigliono e difendono quelle”.
216
Idem. Ibid., II, 31, p.65. “sapere bene consigliare di tutte le cose che sieno laudabili et utili
all’universale governo del buono et iusto vivere”.
217
Idem. Ibid., II, 33, p.66. “Sendo proprio ufico dell’humomo prudente sapere bene consigliare, et
bene consigliare non puossi se prima l’animo non discerne il vero”.
218
Idem. Ibid., II, 39, p.67. “[...] gli elevati ingegni di coloro che [...] cercono et sono in
meditationi di beni celestiali et divini sono chiamati sapienti et non prudenti, però che la prudentia
solo sé exercita intorno alle cose humane”.
67

todo conselho deve versar sobre o verossímil, o possível porém incerto, jamais
sobre o necessário, que não é passível de deliberação.219 Assim, existe
aconselhamento acerca dos meios, não sobre os fins. “Numa república”, diz
Palmieri, para exemplificar a última afirmativa, “não se aconselha a paz, mas com
que meios se faz a paz”.220 Ainda, toda prática de aconselhamento deve ser “livre,
verdadeira e aberta”. Livre é o conselho que não enfraquece a verdade em
detrimento de uma comodidade qualquer, ou que não teme retaliações ou se deixa
levar por amizades221; conselho verdadeiro é aquele adequado à virtude e às suas
partes222; aberto é o conselho provido de boas sentenças, palavras apropriadas e
ordem, sem analogias impertinentes ou falar dúbio.223
Vê-se, assim, que para Matteo Palmieri toda deliberação é
fundamentalmente retórica (a “arte com razão”), e que a produção de bons efeitos
– alcance dos resultados visados pela argumentação, ou a edificação de um
consenso a partir de posições contrárias – dependerá fundamentalmente da
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maneira com que argumentos convincentes são mobilizados a partir do recurso a


lugares-comuns retóricos, assim como do emprego conveniente de medidas
dispositivas e figuras de ornato.

Nos escritos do humanista napolitano Giovanni Pontano, embora a


prudência não se desligue da acepção ciceroniana que a fixa entre as virtudes
cardeais e atesta sua indissociabilidade ante a justiça, seu tratamento adquire um
grau maior de complexidade em relação à análise de outros humanistas do
Quattrocento, como Palmieri. Trata-se de um novo direcionamento do olhar, que
passa a estar focado, como argumenta Mario Santoro, em “novos temas”, e numa
“nova interpretação da existência”.224 Tal reconsideração deriva, em grande parte,

219
Idem. Ibid., II, 42-45, p.68. “Ogni consiglio debbe essere di cose possibili [...]. Qualunche
consiglio è rimosso dalle cose di che siàno certi [...]”.
220
Idem. Ibid., II, 46, p.69. “Niuno consiglio è mai del fine, ma in che modo et con che mezi al
fine si possa venire [...]; nella republica non si consiglia dalla pace, ma con che mezi s’abbia la
pace”.
221
Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69. “La libertà prima si domanda da sé, poi di fuori; in sé, si vuole
guardare che particulare commodità non impedisca il vero, fuori di sé, che timore d’odio o
speranza d’amicitia o terrore di potentia non ti tiri al contrario di quello di che tu consigli”.
222
Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69.
223
Cf. Iem. Ibid., II, 50, p.69. “Aperto sarà quello consiglio che con buone sententie, parole
apropriate et chiare fia narrato col proprio suo ordine, sanza similitudini impertinenti o parlari
dubbii, perubati o torti”.
224
SANTORO, Mario. Op. Cit., p.54. “la nozione pontaniana di ‘prudenza’ assume un significato
nuovo, implica nuovi problemi e nuovi temi, riflette una nuova interpretazione dell’esistenza”.
68

das dificuldades de compreender as significativas transformações da realidade


italiana após a invasão de Carlos VIII em 1494 – sentidas inicialmente, e com
mais força, no reino de Nápoles.
Pontano defende no tratado De Prudentia que as “coisas do mundo” são
móveis, fluidas e bastante complexas, estando sujeitas a extremas variações, que
interferem e condicionam as ações humanas, não deixando, muitas vezes, brechas
para a ação plenamente responsável e autônoma, segundo modelos fixados pela
tradição.225 Tal complexidade se revela na delimitação feita por ele das qualidades
do prudente: consyderatio, providentia, meditatio, ingenium, solertia, apparatio,
perspicacitas, cunctatio, celeritas, versatilitas, discretio. Santoro destaca
especialmente o tratamento da cunctatio (saber delongar, adiar, faculdade
imortalizada por Quinto Fabio na Segunda Guerra Púnica) e da celeritas (a qual
remete à prontidão e rapidez decisória), por dizerem respeito à questão do tempo
certo para a deliberação e ação – tema recorrente em Maquiavel e Guicciardini.
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Outro aspecto destacado por Santoro é a discrição, discretio, considerada por


Pontano a disposição para distinguir e julgar apropriadamente o momento certo de
intervir na realidade ou de gozar o benefício do tempo.226
Ainda segundo Mario Santoro, o quinto livro do tratado De Prudentia é todo
ele dedicado a exemplos de homens prudentes, e sua ênfase concentra-se no
campo da prudentia civilis, assuntos concernente a eventos políticos e militares.227
Os exemplos são retirados em grande parte das histórias antigas, especialmente o
Ab Urbe Condita de Tito Lívio. O que está em jogo é a discussão de uma
“possibilidade concreta de retirar da história uma lição política realista e atual”228,
ou seja, ensinamentos capazes de produzir efeitos imediatos segundo as
exigências do tempo e de acordo com as singularidades exigidas pelas
circunstâncias de cada momento. Nesse sentido, o tratamento conferido por
Pontano à questão da prudência revela-se decisivo para a compreensão do modo
de conceber a política que surge entre os florentinos no final do século XV e
início do século XVI. As ênfases conferidas à argúcia da visão, à inconstância das

225
Idem. Ibid., p.55. “Sostituita alla cognizione del reale prospettato come un repertorio di cose da
seguire o da fuggire (per cui la responsabilità delle scelte e dei resultati spetta tutta all’uomo) la
cognizione di una realtà estremamente complessa, fluida, mobile e variabile, che condiziona in
modo massiccio e pressante l’azione dell’uomo”.
226
Cf. Idem. Ibid., p.58.
227
Cf. Idem. Ibid., p.63.
69

coisas do mundo, à celeridade decisória e, fundamentalmente, ao respeito do


tempo certo da ação se mostram recorrentes nos escritos políticos e históricos de
Maquiavel e Guicciardini, constituindo aspectos capitais que sustentam a
redefinição do conceito de prudência operada por ambos.

2.4
Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens”.

A redefinição da prudência nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. A ênfase nas


tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da necessidade. Arte do
estado e verdade efeitual: a retórica das pratiche. Componentes da prudência:
experiência, leitura das histórias, discrezione e ragione.

Maquiavel e Guicciardini viveram em um período de grandes turbulências


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políticas e militares. Em 1494 a Península Itálica foi invadida pelas tropas de


Carlos VIII, monarca francês, o que desencadeou profundas transformações na
dinâmica política da região. Se antes desta data havia um certo equilíbrio de poder
entre as Repúblicas e principados da região – em especial Florença, Veneza,
Nápoles, Milão e os domínios papais –, com a chegada dos franceses e, logo em
seguida, também dos espanhóis, a Península praticamente foi dividida entre os
interesses das duas grandes monarquias.
Já na última década do século XV diversos tratados políticos põem em
xeque algumas concepções sobre a vida civil próprias dos “humanistas cívicos”.229
A discussão sobre a interferência da Fortuna nos assuntos humanos adquire
evidência, uma vez que o poder do acaso e os caprichos da deusa passam a ser
associados, por escritores da passagem do XV para o XVI como Pontano,
Rucellai, Maquiavel e Guicciardini, às mudanças dos ventos na Península Itálica.
Também o conceito de prudentia, ou prudenzia, ganha novo destaque, sendo
reconfigurado a partir das demandas por novas formas de compreender as
significativas mudanças políticas da época. Compõe-se, assim, um horizonte de
expectativas pleno de incertezas, ligado por fios ainda fortes a um espaço de

228
Cf. Idem. Ibid., p.64. “[...]la concreta possibilità de trarre dalla storia una lezione politica
realistica e attuale”.
70

experiência bastante amplo que, todavia, se mostrava cada vez mais difícil de
mobilizar, por ser incapaz de fornecer, por si só e de forma evidente, as respostas
necessárias às indagações sobre os rumos imprevistos das “coisas do mundo”.230
Como nota Jean-Louis Fournel, pode-se perceber, a partir do exame dos
chamados “escritos de governo” maquiavelianos do período republicano (1494-
1512) – ofícios, legações, cartas da Chancelaria, etc. –, uma grande atenção ao
problema da passagem do tempo e da rapidez com que certas transformações
inesperadas se impunham, sem que seus vestígios pudessem ser rastreados
adequadamente.231 A reflexão sobre o presente adquire centralidade: este se torna
em grande medida incompreensível, segundo os critérios usuais defendidos e
praticados em assembléias e magistraturas da República, isto porque a experiência
e as histórias antigas deixam de constituir repositórios evidentes em si mesmos de
ações e condutas para o presente, e o futuro já não é compreendido como algo
plenamente mensurável.232 Não que o recurso à experiência e às histórias seja
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abandonado; nota-se, porém, uma maior exigência no que diz respeito à


mobilização de tais expedientes, evidenciada pelo destaque conferido ao que
chamavam de exame da “qualidade dos tempos”. Torna-se imperativo saber se
valer da experiência e das histórias de forma correta, em estreita relação com as
condições particulares em jogo: somente os prudentes, donos de olhar agudo e
penetrante, podem distinguir, no emaranhado de situações superpostas, muitas das
quais praticamente indistinguíveis entre si, as escolhas e caminhos apropriados.
É significativo que tanto nas Istorie Fiorentine de Maquiavel quanto na
Storia d’Italia de Guicciardini a palavra prudência venha na maior parte das vezes
acompanhada do advérbio “pouca”: “[...] para a admiração de toda a Itália, que,

229
Para uma discussão sobre a propriedade do emprego da categoria de “humanismo cívico”,
conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 13-31.
230
Emprego estas categorias em acordo com o sentido proposto por Reinhart Koselleck em
“Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas”. In: Futuro
Passado. Não se trata de uma contração do espaço de experiências atrelado a um alargamento do
horizonte de expectativas, e sim de um espaço de experiências quase hipertrofiado, porém incapaz
de lidar plenamente com o problema da aceleração temporal – questão decisiva para a
compreensão da idéia de prudência em Maquiavel e Guicciardini –, e um horizonte de expectativas
obscuro, incerto, sem um critério delimitador capaz de fornecer respostas especulativas à questão
do devir.
231
Cf. FOURNEL, Jean-Louis. “Temps de l’histoire et temps de l’ecriture dans les scritti di
governo de Machiavel”, p.80.
232
Cf. Idem. Ibid., pp. 80-81. “Enfin, le présent a acquis une radicalité qui le rend tout à la fois
impératif et incompréhensible, porteur d’un passé proche qui engage et d’un possible futur qui
impose une réaction circonstanciée (puisque l’enjeu de cette dernière n’est plus ni le salut
71

por pouca prudência, os honrava”233; “essa injúria, cometida com pouca prudência,
foi recebida com grande ódio pelo povo”234; “valendo-se, em detrimento alheio, do
poder a eles concedido pela coletividade [salute comune], fazem-se, ou por pouca
prudência ou por demasiada ambição, autores de novos tumultos”.235 Quando
Maquiavel e Guicciardini analisam as decisões e ações de príncipes, magistrados e
condottieri italianos, especialmente dos seus contemporâneos, raras são as vezes
em que exaltam condutas adequadas.
As dificuldades encontradas pelos escritores do século XVI florentino para
compreender os desenlaces da calamità italiana incidiram no reexame de certos
critérios tradicionais sobre o melhor ordenamento da República, suas leis,
costumes e hábitos militares – há, nesse sentido, um aguçamento e, por que não
dizer, radicalização da “crise das relações entre a linguagem e a realidade
histórica”, para empregar palavras de Cesare Vasoli que demarcam um dos
“aspectos fundamentais da cultura filosófica” do século XV.236 A validade de
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julgamentos, sentenças e ações até então considerados pertinentes é duramente


questionada, como no caso do princípio de “gozar o benefício do tempo”, máxima
dominante entre os florentinos do século XV no que diz respeito aos assuntos
externos da res publica: como “o tempo leva adiante todas as coisas e pode trazer
consigo tanto o bem como o mal”, argumenta Maquiavel em O Príncipe, deve-se
gozar os benefícios da “virtù e prudência”, não da delonga.237 Diante da ineficácia
imediata do que “está na boca de todos os sábios dos nossos tempos”238; em vista
da sensação de uma esfacelamento dos critérios ordenadores da relação entre
passado/presente, presente/futuro; ante o contato com sucessivas novidades, como
a descoberta de novas terras e a emergência de atores políticos dotados de
exércitos gigantescos e fiéis (caso de França e Espanha); perante um horizonte de
intensas transformações sócio-políticas; em presença destes dados, torna-se um

individuel ni la survie du monde chrétien mais la sauvegarde d’une république singulière, d’un
Etat particulier, bref de la patrie”.
233
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, I, 39, p.74.
234
Idem. Ibid., II, 7, p.86.
235
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1. “[...] e convertendo in detrimento altrui la
potestà conceduta loro per la salute comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione,
autori di nuove turbazioni”.
236
VASOLI, Cesare. “L’Humanisme Rhetorique em Italie au XVeme Siècle”, p.45. « ‘Crise’ des
relations entre la langage et la réalité historique contemporaire, qui constitue un des aspects
fondamentaux de la culture philosophique de cee temps ».
237
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
238
Idem.
72

imperativo de governantes, magistrados, conselheiros, príncipes e embaixadores


deliberar com celeridade e agir com presteza, na tentativa de assegurar alguma
margem de autonomia para suas intervenções na realidade – e como
conseqüência, garantir a segurança da res publica ou dos domínios territoriais
(mantenere lo stato).
Nos tratados latinos de retórica, a tópica do útil quase sempre aparece
atrelada à tópica da segurança, especialmente no que diz respeito ao
fortalecimento militar, à preservação do stato e à expansão territorial.239 Como
percebe Maurizio Viroli, a tradição ético-retórica clássica não comportava uma
oposição cabal entre útil e honesto.240 Lê-se na Retórica a Herênio que “no debate
político a utilidade divide-se em duas partes: a segura e a honesta”.241 A matéria
honesta, por sua vez, é dividida em duas categorias: o reto e o louvável. “Reto é o
que se faz com virtude e dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e
modéstia”.242 O louvável é “aquilo que produz lembrança honesta tanto no
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presente quanto na posteridade”.243 No De Inventione, a utilidade é pensada como


o conjunto composto por segurança e potência. A segurança, por sua vez, é
definida como “a disponibilidade de meios idôneos para conservar os próprios
bens ou para debilitar aqueles de outros”.244 Já o honestum é tratado por Cícero
como “aquilo que é desejado por si mesmo, em sua totalidade ou parcialmente”;
esta categoria engloba a virtude, “que pode ser definida como um comportamento
em harmonia com a norma natural e a razão”.245
Conforme a argumentação ciceroniana, o útil se delineia em função da
“sobrevivência e segurança dos estados”, e busca afirmar o poder e a grandeza
adquiridos por estes.246 Ele é dividido em duas categorias: uma diz respeito ao
“objeto mesmo” e a outra a coisas estranhas a este:

A maior parte deste [do útil] se refere, fundamentalmente, às vantagens que se


refletem sobre o objeto mesmo: assim, na re publica, algumas coisas dizem
respeito, por exemplo, ao corpo civil, como território, os portos, o dinheiro, a frota,

239
Cf. HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, pp. 40.
240
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.68.
241
AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153.
242
Idem.
243
Idem. Ibid., III, 7, p.157.
244
CICERO, Marco Túlio. De Inventione, II, 169.
245
Idem. Ibid., II, 159.
73

os marinheiros, os soldados, os aliados, coisas que garantem segurança e liberdade;


mas existem outras coisas que produzem vantagens mais vistosas e menos
necessárias, como o embelezamento e grandeza de uma cidade, uma riqueza
extraordinária, um grande número de amigos e aliados.247

Dito desta forma, o útil revela-se atrelado ao honesto – dado confirmado pela
crítica de Cícero a Aristóteles, o qual defendia ser o gênero deliberativo inclinado
somente à utilidade.248
Tendo em vista a centralidade da Retórica a Herênio e do De Inventione –
considerados, juntamente com os tratados ciceronianos De Oratore e De Officiis,
além da Institutio Oratoria de Quintiliano, os textos-chave da formação ético-
retórica renascentista, efetivos modelos de memorização, reflexão e imitação249 –
tanto para a formação ético-retórica dos florentinos em fins do século XV como
para a constituição do que Richard Lanham denominou “ideal retórico da vida”250,
o tratamento conferido ao gênero deliberativo nestes tratados deve ser levado em
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conta para a compreensão do destaque imputado por Maquiavel e Guicciardini às


tópicas da utilidade e da segurança.
A proeminência do útil denota uma acentuada preocupação com o “corpo
civil”, especialmente com a segurança geral do stato e com a manutenção da
liberdade – compreendida como ausência de domínio externo e acesso equânime
às magistraturas citadinas251 –, sem que haja um afastamento substancial do
honestum. Donde se pode afirmar que tal deslocamento não se dá à margem ou
mesmo em contradição com os preceitos ético-retóricos sustentados pelas
autoridades antigas e seus comentadores humanistas. Fundamentalmente, não há
uma dicotomia entre útil e honesto; podem existir, isto sim, certas tensões entre o
que é considerado como o honroso em geral e o que é tido como útil ou vantajoso

246
Idem. Ibid., II, 169.
247
Idem. Ibid., II, 168.
248
Idem. Ibid., II, 156.
249
Cf. WARD, John O. “Renaissance Commentators on Ciceronian Rhetoric”, p.128. “[...]
equally, we might expect the Ad Herennium and its commentaries to have remained the main
didactic text during the Renaissance”. Conferir também: MOSS, Ann. Les recueils de lieux
communs, pp. 97-120.
250
Cf. LANHAM, Richard. The Motives of Eloquence. Literary Rhetoric in the Renaissance, p.3.
251
Cf. PETTIT, Philip. Republicanism. A Theory of Freedom and Government, pp. 31-35;
SKINNER, Quentin. “The republican ideal of political liberty”, pp. 293-309.
74

em determinada circunstância particular, questão que não era estranha aos


tratadistas romanos, como nota Maurizio Viroli.252
Note-se, nesse sentido, o emprego por Maquiavel em O Príncipe da
paradiástole, técnica retórica de redescrição de virtudes e vícios, que atua
precisamente na lacuna entre definições gerais e enunciados específicos: a
redescrição, como nota Quentin Skinner, consiste no “meio de aumentar o que se
pode dizer a favor de determinado ato, ou de minimizar o que se pode dizer contra
ele”.253 Lê-se na Retórica a Herênio:

Com efeito, não haverá quem prescreva o abandono da virtude, mas que se diga,
então, que o caso não é tal que permita pôr à prova uma excepcional virtude, ou
que a virtude reside, antes, em coisas opostas às que foram exibidas; também, se
assim pudermos, o que o adversário chamar justiça demonstraremos que é
covardia, fraqueza e torpe liberalidade; o que tiver denominado prudência, diremos
que é um saber inepto, verboso e molesto; o que disser que é modéstia, diremos
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que é inércia e negligência dissoluta; ao que ele nomear coragem, chamaremos de


temeridade irrefletida e gladiatória (grifos meus).254

Como percebe Skinner, a descaracterização das virtudes comumente


associadas à condução de estados – virtudes cardeais, principescas e cristãs255 –
pode ser vista como prática de redescrição paradiastólica, empregada em O
Príncipe especialmente na análise das virtudes da clemência e da liberalidade.256
“A liberalidade usada de maneira ostensiva te prejudica”257; “um príncipe deverá
portanto não se preocupar com a fama de cruel se desejar manter seus súditos
unidos e obedientes”.258 Trata-se da depreciação do uso indistinto da liberalidade e
da clemência na condução do stato. Não que ambas devam ser descaracterizadas

252
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.88. “Roman authorities on the art of rhetoric amply discuss
the delicate issue of possible conflicts between honor and expediency, or between what is
praiseworthy and what is advantageous”.
253
Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p. 218.
254
AD. Retórica a Herênio, III, 6, p.157. Conferir também: CICERO, Marco Tulio. De Inventione,
II, 165.
255
Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, pp. 146-7.
256
Afirma Skinner, sobre O Príncipe: “É que o livro de Maquiavel é um texto em que a técnica da
redescrição retórica é não apenas utilizada de maneira sensacional, como é também
especificamente usada como um meio de depreciar e solapar as chamadas virtudes ‘principescas’
da clemência e da liberalidade”. Ibid., p.229.
257
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, p.75.
258
Idem. Ibid., XVII, p.79.
75

como virtudes em geral; apenas precisam se adequar às situações particulares,


cuja análise atenta, muitas vezes, demonstra o caráter inapropriado do emprego
destas em determinadas circunstâncias.

A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à questão dos bons efeitos


– a saber, a capacidade de antevisão dos possíveis resultados de uma ação e o
emprego de meios eficientes, independentemente de sua retidão, para o alcance
dos fins desejados – não pode ser tomada como a pressuposição de uma dicotomia
entre útil e honesto. Nesse sentido, a famosa frase atribuída a Maquiavel – “os fins
justificam os meios” –, se não foge completamente ao espírito de O Príncipe,
precisa ser reconsiderada: nem todo meio é justificável em si; basta que se pense
no caso de Agátocles, eficiente na manutenção do seu stato mas inglório em sua
fama, por se valer excessivamente da força e da brutalidade. É preciso alcançar
um certo equilíbrio para que um meio contrário à compreensão usual de virtude
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não arruíne a possibilidade de realização de um fim honesto. Por essa razão, o


príncipe novo nunca deve perder de vista o honesto, embora este dificilmente seja
plenamente realizável em tempos de corrupção; ainda assim, ele pode atuar como
ideal regulatório a partir do qual os meios e fins primeiros (resultados imediatos
que, em longo prazo, devem ser compreendidos como meios de fins últimos)
serão balizados. Como afirma Isaiah Berlin, “os fins últimos nesse sentido, sejam
ou não aqueles da tradição judaico-cristã, são o que geralmente se pretende dizer
por valores morais”.259
Próprio da análise efetiva, ou efeitual, é a exploração dos diversos lados de
uma questão, com vistas à definição do útil em cada situação específica. Na
máxima 21 dos Ricordi, Guicciardini afirma:

Eu disse e escrevi outras vezes que os Medici perderam o stato em 1527 por tê-lo
governado com liberdade em muitas coisas, e que duvidava que o povo perdesse a
liberdade se a tivessem praticado com mais força em muitas outras. A razão destas
duas conclusões é que o stato dos Medici, que era detestável para a cidade como
um todo, querendo manter-se, devia ter formado uma base de amigos partidários,
isto é, de homens que por um lado tirassem muitas vantagens do stato, por outro se
considerassem perdidos a ponto de não poderem continuar em Florença se os

259
BERLIN, Isaiah. “A originalidade de Maquiavel”, p.314.
76

Medici fossem expulsos dela [...]. Totalmente ao contrário deve proceder um


governo popular, porque sendo comumente amado em Florença, e não sendo
também uma máquina regida por certas finalidades encaminhadas por um ou por
poucos, mas trabalhando todos os dias para a multidão e ignorando os que querem
modificar o seu procedimento, precisa, querendo manter-se, conservar-se grato à
toda a população [...] (grifos meus).260

Aqui, Guicciardini considera o ponto de vista dos Medici segundo o


princípio do que lhes teria sido benéfico. Ao mesmo tempo, ele não perde de vista
o honesto, ao dizer que o governo da família era “detestável para a cidade como
um todo”. Finalmente, ele analisa o modo correto de proceder num governo
popular – agradar à multidão.
Maquiavel, diante de questão similar – como um príncipe civil que ascendeu
“pelo apoio dos seus concidadãos” deve proceder261 –, afirma que “não se pode
satisfazer honestamente aos grandes sem injúrias aos outros, mas ao povo sim,
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porque seus fins são mais honestos que os dos grandes” (grifo meu).262 Ainda
assim, ele reflete sobre a melhor maneira de manter o controle sobre um
principado civil apoiado mais nos grandes que no povo: “mas quem se tornar
príncipe pelo favor dos grandes e contra o povo deverá, antes de qualquer outra
coisa, procurar conquistá-lo, o que também será fácil, se lhe der proteção”.263
Nesse sentido, pode-se dizer que a análise efetiva sempre tem em vista o
princípio da utilidade: ou o que é útil num governo stretto – que mesmo se
opondo muitas vezes ao honesto não deve perdê-lo de vista – ou o que é útil num
governo popular, quando então útil e honesto se complementam. Diante deste
quadro, a discussão sobre a possibilidade de retidão dos meios e fins primeiros e o
grau de adesão destes ao fim último revela-se bastante complexa. Torna-se
forçoso o estabelecimento de gradações e hierarquizações entre valores como o
honesto, o útil, o seguro, a conveniência, etc., que torne possível a ordenação das
situações específicas segundo critérios regulatórios gerais. O recurso ao De
Inventione pode trazer alguma luz à discussão de tais critérios. Diz Cícero:

260
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 21, p.61.
261
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, IX, p.43.
262
Idem. Ibid., p.44.
263
Idem. Ibid., p.45.
77

o honesto e o útil são as características das coisas que devemos buscar, e o


desonesto e o inútil as que devemos evitar. A estas duas categorias há que se
acrescentar outras duas sumamente importantes: a necessidade e a affectio. A
primeira está associada à força, a segunda às pessoas e às coisas.264

Quando aborda as necessidades, Cícero trata de hierarquizá-las:

a necessidade mais importante é a da honestidade; segue a esta a necessidade


relativa à segurança; a terceira, e menos importante, é a conveniência, que nunca
poderá enfrentar as anteriores.265

Embora o honesto seja, em si mesmo, mais importante e louvável que o


seguro, não há uma rigidez na hierarquização proposta, visto que toda necessidade
implica, em maior ou menor grau, alguma adaptabilidade às circunstâncias
particulares.266 Ademais, Cícero sustenta que “não podemos consegui-la
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[honestidade] se sacrificarmos a segurança” (grifos meus)267; logo, se a


segurança estiver ameaçada – no caso de uma República como a florentina nos
primeiros decênios do século XVI a principal ameaça era a perda de liberdade e
autonomia –, o honesto deixa de constituir a necessidade premente, embora não
cesse de conformar um horizonte regulatório. É o caso, por exemplo, da
“crueldade bem empregada”, a que Maquiavel se refere no capítulo VIII de O
Príncipe. Diz ele que “são bem empregadas as crueldades (se é legítimo falar bem
do mal) que se fazem de uma só vez pela necessidade de garantir-se e depois não
se insiste mais em fazer, mas rendem o máximo possível de utilidade para os
súditos” (grifos meus).268 Aqui, dois pontos chamam a atenção: em primeiro lugar,
a afirmação de que bem e mal não se confundem, e que uma crueldade só pode ser
um bem “relativo”, desde que pensada em função de um fim honesto – no caso, a
utilidade para os súditos, e não para o governante. Do mesmo modo deve ser
interpretada a famosa passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze em que

264
CICERO, Maro Tulio. De Inventione, II, 158.
265
Idem. Ibid., II, 173.
266
Sobre esta questão, afirma Maurizio Viroli: “This ordering can, however, be altered and, if
security is really at stake, the orator can put security before honour, particularly if honour,
momentarily lost, can later be recovered by courage and diligence”. VIROLI, Maurizio. Op. cit.,
p.88.
267
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 174.
268
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VIII, p.41.
78

Bernardo del Nero fala das “razões e usos dos estados”, associadas à preservação
de um domínio pela força.269 “Porém, quando falei em matar ou manter os pisanos
prisioneiros, não falei porventura como cristão, mas falei segundo as razões e
práticas dos estados [la ragioni e uso degli stati]”.270 O que está em jogo, nesta
passagem, é a segurança dos florentinos, e a necessidade de fortalecer os próprios
domínios – tratar-se-ia, neste caso, de uma “crueldade bem empregada”, para falar
como o secretário.
Algumas vezes, pode ocorrer de as circunstâncias particulares incidirem em
mudanças tão notáveis e inesperadas que a hierarquização das necessidades deixa,
momentaneamente, de ter validade. Tais mudanças dizem respeito às
contingências da realidade, e são tratadas por Cícero como um princípio de
indeterminação associado às pessoas e às coisas: “a affectio é uma mudança
repentina, espiritual ou física, devida a alguma causa, como a alegria, o desejo, o
temor, a pena, a enfermidade, a debilidade, e outras do mesmo gênero”.271 A
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conjunção entre affectio e necessidade instaura um rol de condições tanto mais


indeterminantes quanto atreladas aos movimentos fortuitos da realidade –
associados por Maquiavel e Guicciardini à Fortuna. “Existem certas coisas que
devem ser consideradas de acordo com as circunstâncias e os motivos”, diz
Cícero, “e não segundo sua própria natureza”.272 Assim, embora um argumento
baseado no honesto seja sempre extremamente persuasivo, as circunstâncias
particulares, decorrentes muitas vezes de uma affectio imprevisível (afetação
circunstancial) ou de uma necessidade premente, tornam peremptória a
reconsideração da hierarquia das necessidades, especialmente no que diz respeito
à segurança do stato: é o caso da liberdade interna e da autonomia em assuntos
externos. Diante de circunstâncias adversas, o critério de orientação das ações
humanas deixa de ser o melhor em geral, deslocando-se para o que é possível

269
Cf. STOLLEI, M. “L’idée de la raisón d’etat de Friedrich Meinecke et la recherche actuelle”.
In: ZARKA, Y., Philosophie politique et raison d’etát, p.23, sustenta que “l’occurence de
l’expression chez Guicciardini (vers 1523) n’est pas une curiosite fortuite que l’on pourrait
bégliger”.
270
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.231. “Però quando io ho detto di ammazzare o tenere
prigioneri e’ pisani, non ho forse parlato cristianamente, ma ho parlato secondo la ragione e uso
degli stati”.
271
CÍCERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 36.
272
Idem. Ibid., II, 176.
79

obter – conforme análise de Cícero no De Inventione, o possível não é fácil, exige


fadiga, esforço, tempo, além de gerar inconvenientes e dificuldades.273

“Vamos discutir”, solicita Bernanrdo del Nero aos seus interlocutores do


Dialogo del Reggimento di Firenze, “se a mudança do stato [dos Medici para a
República, em 1494] foi útil ou não à cidade, e em seguida [...] considerar os
efeitos daquele governo que caiu e suas condições, e por outro lado considerar
quais serão os efeitos e condições deste que introduzis, ou, para dizer melhor,
pensastes haver introduzido” (grifos meus).274 Com este chamado ao exame dos
efeitos e condições dos governos, del Nero opera um deslocamento de foco
analítico: enquanto seus interlocutores esquadrinhavam definições gerais de
República e bom governo, alicerçadas no ajuste da ação às virtudes, à honra e à
“glória verdadeira”275, o ancião defende uma análise cuidadosa e comparativa das
condições e circunstâncias particulares das duas formas de governo em jogo, a que
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caiu e a que então de instituía, segundo o princípio da qualidade dos tempos.


Pode-se dizer que a rigidez de uma análise conformada a valores comunais
(aqueles das grandes famílias florentinas) e preceitos formais bem estabelecidos
(segundo os fundamentos ético-retóricos das autoridades antigas e humanistas) dá
lugar a uma definição mais maleável das formas de governo, sem regras fixas
determinadas de antemão: conquanto não sejam abandonados, o arranjo de bons e
maus ordenamentos políticos em formas positivas ou deterioradas, assim como as
“listas de coisas a seguir ou a não seguir”, para empregar expressão de Mario
Santoro, revelam-se insuficientes para a compreensão dos confusos movimentos
da realidade florentina e da vida política italiana. Como percebe Newton Bignotto,
“se Guicciardini não está disposto a simplesmente deixar de lado o que aprendeu
com a tradição, como prova o desenrolar do diálogo, também não aceita se guiar

273
Idem. Ibid., II, 169.
274
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Noi vogliamo disputare se la mutazione dello
stato è stata utile alla città o no; e secondo questo fonamento che io ho fatto, a volere bene
risolversene, bisogna considerare gli effetti di quello governo che è mutato e le condizione sue, e
da altro canto considerare quali saranno gli effetti e le condizioni di questo che voi avete
introdotto”.
275
Conferir, nesse sentido, a fala de Soderini no Dialogo: “la virtù è onorata [...], si debbe cercare
ogni altro vivere; perché nessuno governo può essere vituperoso e più pernizioso che quello ha
cerca di spegnere la virtù e impedisce a chi vi vive drenti, venire, io non dico a grandezza, ma a
grado alcuno di gloria, mediante la nobilità dello igegno e la generosità dello animo”. Idem. Ibid.,
p.63.
80

unicamente pelas fórmulas herdadas”.276 Mais importante, segundo o personagem


Bernardo del Nero, é buscar uma forma de organizar o reggimento citadino que
incida no fortalecimento interno das magistraturas; na preservação e aquisição de
domínios externos; na distribuição equânime de cargos e honras públicas; na
agilidade administrativa e presteza decisória; e finalmente no posicionamento
adequado de Florença diante das forças italianas e européias, num jogo contínuo
de interpretação e antecipação de pensamentos e ações de governantes e
embaixadores de outras Repúblicas, principados e monarquias, condição decisiva
para o planejamento bem-sucedido das próprias intervenções, segundo o critério
da prudência. Esta, por sua vez, não é elencada pelo ancião entre as assim
chamadas “virtudes cardeais”, como faziam os humanistas do Quattrocento;
tampouco a virtude é entendida como unidade composta de quatro elementos bem
definidos (justiça, prudência, temperança e coragem). Assim, embora a prudência
não deixe de ser vista como uma virtude, ela já não está necessariamente atrelada
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a outras virtudes pré-fixadas, as quais podem ou não ser úteis na condução dos
assuntos públicos. Nesse sentido, pode-se dizer que o conceito de prudência em
Maquiavel e Guicciardini aproxima-se em alguma medida da concepção
aristotélica da phronesis, sem que, contudo, se possa tomá-los como sinônimos.
De acordo com Pierre Aubenque, “a phronesis” em Aristóteles “designa, de
fato, a virtude da parte calculativa ou opinativa da alma”.277 Cabe a ela, com
correção de critérios, separar o bom do mau, definir o que é acertado em
determinada circunstância particular, orientar a deliberação, reconhecer a virtude e
fazer agir – a virtude, em Aristóteles, consiste em justo meio determinado pela
reta regra da deliberação prudente.278 Sendo assim, a phronesis, virtude intelectual,
embora não se confunda com as virtudes morais, está intimamente associada a
elas. Não há, portanto, uma tensão entre meios e fins; embora Aristóteles nunca
almeje “deduzir o particular do universal”279, ele atesta a validade dos princípios
normativos acerca das condutas humanas gerais a partir de critérios definidos pelo
próprio phronimos, o homem prudente.280 Nesse sentido, as idéias de justo meio,
moderação e eqüidade conformam critérios capazes de coordenar a correção dos

276
BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo, p.139.
277
AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.23.
278
CF. Idem. Ibid., p.61. “enquanto a virtude moral é uma disposição (prática) que concerne à
escolha, a prudência é uma disposição prática que concerne à regra da escolha”.
279
Idem. Ibid., p.75.
81

meios e a adequação dos fins segundo a reta regra. Conquanto a “norma” seja
encontrada entre os valores caros aos homens, e não em Idéias transcendentes, e
muito embora ela dependa da deliberação de homens prudentes que são eles
próprios os critérios de si mesmos, há uma “universalidade de valor” a que
Aristóteles não renuncia.281 Tampouco o fazem Maquiavel e Guicciardini; há,
porém, uma problematização decisiva, que diz respeito não à definição dos
valores últimos, mas às possibilidades de realização destes.
Para o secretário, a antiqua virtus, o modelo republicano romano e seus
valores, constituem tal universalidade de valor.282 Para Guicciardini, esta se define
em referência ao período de predomínio das grandes famílias florentinas e dos
valores ciceronianos do bom governo – o modelo otimatti que teve em Maso
degli’Albizzi seu ponto máximo. Porém, a calamità instaurada a partir de 1494,
com a alegada corrupção dos costumes e a imprudência dos governantes, conferiu
a tais valores certa intangibilidade. A problematização da universalidade dos
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valores é um elemento capital em Maquiavel e Guicciardini, por levar à já aludida


tensão entre meios, fins primeiros e fins últimos.
A suposição de uma certa intangibilidade dos valores últimos pode ser
articulada à redefinição do conceito de prudência inicialmente esboçada em
Giovanni Pontano e levada a cabo por Maquiavel e Guicciardini. Como afirma
Reinhart Koselleck, todo conceito “reúne em si a diversidade da experiência
histórica assim como a soma das características objetivas teóricas e práticas em
uma única circunstância, a qual só pode ser dada como tal e realmente
experimentada por meio desse mesmo conceito”.283
A polissemia do conceito de prudência não pode ser tomada como fruto
exclusivo de intenções hipertrofiadas pensadas numa evolução cronológica; trata-
se do produto de uma “tensão dinâmica”284, para falar como o historiador alemão,
entre a realidade e o conceito, entre a forma de compreender a dinâmica das coisas
do mundo e as ferramentas cognitivas de caráter ético-retórico disponíveis. Daí
minha discordância em relação ao argumento de Victoria Kahn de que
“Maquiavel altera o significado de prudência, da razão prática dos humanistas,

280
Cf. Idem. Ibid., p.77.
281
Cf. Idem. Ibid., pp. 83-84.
282
Cf. GARVER, Eugene. “After Virtù”, p.75.
283
KOSELLECK, Reinhart. “História dos conceitos e história social”. In: Futuro Passado, p.109.
82

alicerçada por considerações morais, para a faculdade de julgamento calculativa,


potencialmente amoral, apropriada ao homem de virtù”.285 Trata-se de uma
concepção calcada na premissa de uma subjetividade forte que atua como
desenraizadora consciente da tradição humanista. Penso que a redefinição da
prudência em Maquiavel e também em Guicciardini obedeça a movimentos mais
sutis, isto porque, para ambos, a prudência não deixa em absoluto de ser
concebida como recta ratio agibilium; é precisamente a noção de “razão reta” que
se transforma, distanciando-se da idéia de que modelos universais possam ser
intuídos e realizados em ações particulares, e aproximando-se de um
entendimento mais pragmático calcado na valorização dos efeitos das ações dos
agentes envolvidos e na antevisão das possibilidades em jogo no tabuleiro da
política. A ênfase analítica é em grande medida direcionada aos meios e fins
primeiros, os quais não deixam de remeter, ainda que muitas vezes de forma
opaca, a fins últimos tomados como honestos. De modo que não se pode afirmar
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que a idéia aristotélica de desejo correto seja questionada por Maquiavel e


Guicciardini; porém, o caráter normativo deste desejo correto se dissolve de tal
forma que o princípio de correção passa a ser, ele próprio, contingente e passível
de deliberação.
O secretário possivelmente concordaria com Aristóteles sobre o princípio de
que a virtude não é passível de deliberação, sendo desejável por si mesma, mas
talvez acrescentasse a esta máxima uma série de elementos condicionantes,
capazes de “esvaziar” o “conteúdo” moral da idéia de virtude e fazer dela um
“recipiente” a ser preenchido de acordo com as condições dos tempos. Como
percebe Isaiah Berlin, Maquiavel não questiona que a virtude seja boa em si, e que
tudo aquilo que a tradição chamou de virtudes seja de fato louvável – em Between
Friends, John Najemy lista uma série de virtudes e vícios presumidos a partir da
leitura de O Príncipe, os quais nunca se encontram num único homem, e que,
mesmo que pudessem se fixar, não representariam a plena garantia do alcance de
bons efeitos.286 O questionamento fundamental diz respeito à aplicabilidade

284
Idem. Ibid., p. 117. “A tensão dinâmica entre realidade e conceito aparece, portanto, tanto no
nível da língua-fonte como no da linguagem científica”.
285
KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 21. “At the same time, he alters the meaning of
prudence from the humanists’ practical reason, informed by moral considerations to the
calculating, potentially amoral faculty of judgment appropriate to the man of virtù”.
286
Virtudes presumidas: liberale, donatore, pietoso, fedele, feroce, animoso, umano, casto, intero,
facile, grave, religioso. Vícios presumidos: misero, rapace, crudele, fedifrago (traiçoeiro),
83

universal de tais virtudes, e à desconsiderações de práticas que, em circunstâncias


determinadas, e tendo em vista fins últimos úteis e honrosos, poderiam ser
consideradas virtuosas, não em absoluto, mas segundo condições específicas – a
isto Quentin Skinner denominou “revolução maquiavélica”, ou “qualidade da
flexibilidade moral que se requer de um príncipe”.287
Para Aristóteles, agir de forma magnânima, ou com liberalidade, ou com
coragem, implica necessariamente agir de forma prudente, uma vez que a
phronesis se constitui como disposição intelectual responsável pelo
reconhecimento da virtude e pela ação conforme o justo meio – há o
reconhecimento do universal no particular, seguido pela escolha da ação correta e
pela consumação desta.288 A virtude, nesse sentido, é sempre determinável; o
prudente é aquele que sabe reconhecê-la no particular e agir em conformidade a
ela. Em Maquiavel, o reconhecimento da virtude é mais complexo que na filosofia
prática aristotélica: é preciso, antes de tudo, perceber o que é a virtude numa
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circunstância tal, dar moldes a ela para, então, pensar na decisão prudente a se
tomar, visando à produção de bons efeitos, em acordo com um bem definido em
função das situações particulares em jogo. Um exemplo desta prática está no
tratamento conferido à liberalidade em O Príncipe:

Logo, não podendo um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e
sem danos, de forma que seja divulgada, deverá, se for prudente, não se preocupar

effeminato, pusillanime, superbo, lascivo, astuto, duro, leggieri, incrédulo. Sobre esta questão,
afirma Najemy: “Machiavelli’s approach depends on the difference between the way the terms in
his list are normally or generally used and the way in which he, having carefully considered them,
can invert – not their meanings in conventional usage, for virtues remain virtues, and vices are still
vices – but their relationship to the problem of how princes ought to act in order to preserve their
power”. NAJEMY, John. Between Friends, p.192.
287
Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.65. “Ele endossa a idéia convencional de que virtù é o
nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um príncipe aliar-se com a Fortuna e
conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o sentido do termo de toda e qualquer conexão
necessária com as virtudes cardeais e principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica
que define um príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo
aquilo que for ditado pela necessidade – independente do fato de ser a ação eventualmente iníqua
ou virtuosa – para alcançar seus mais altos objetivos”.
288
Sobre esta questão, afirma Pierre Aubenque: “Enfim, é preciso notar que as duas fórmulas se
encontram no livro VI, onde a phronêsis é descrita tanto como capacidade de aplicar o universal ao
particular, como a capacidade de escolha judiciosa dos meios. [...] Não há, portanto, nenhuma
‘contradição’ entre as duas descrições da ação dadas por Aristóteles. Pois, uma vez reconhecido o
particular, se o universal a ele se aplica necessariamente, é preciso inicialmente reconhecer o
particular: o que se deduz silogisticamente é a propriedade do particular de ser desejável, mas não
a existência do particular. Não é difícil saber que é preciso ser corajoso, nem decidir que o que foi
reconhecido como corajoso deve ser cumprido”. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.227.
84

com a fama de miserável, porque com o tempo será considerado cada vez mais
liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe bastam.289

Se a liberalidade é inquestionavelmente uma virtude em sentido amplo, sua


aplicação é passível de deliberação: dependendo da circunstância, ela pode ou não
ser ou não uma virtude para a situação específica.
Guicciardini também percebe a virtude como algo honrado e digno em si;
porém, não denomina virtude àquilo que não é considerado como tal pela tradição
ético-retórica de caráter ciceroniano. Ao tomar como fins últimos a segurança do
estado, a liberdade, a distribuição equânime das magistraturas, ao se ater ao útil,
ele pensa estar contribuindo para a glória da res publica, logo, contribuindo para a
consecução do que é honesto. Ademais, como percebe John Pocock, a categoria
de virtù não possui centralidade em Guicciardini.290
Se a prudência não deixa de ser concebida por Maquiavel e Guicciardini
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como uma virtude, as razões para tanto divergem do tratamento conferido à


questão pelos humanistas do Quattrocento. Diferentemente das reflexões
aristotélica e ciceroniana, Maquiavel e Guicciardini não subordinam a prudência à
justiça – daí se poder falar, como o faz Guicciardini, em “tirano prudente”.291 Não
que a justiça não seja desejável em si mesma. Agir de forma justa, porém, nem
sempre resulta na produção de bons efeitos segundo os critérios do útil, do seguro
e do necessário; atuar com justiça quando a res publica está em perigo pode até
mesmo implicar a ruína do stato. Daí a necessidade de estar sempre atento à verità
effetualle della cosa, como diz Maquiavel – o que difere do “agir conforme a
verdade das coisas” de Tomás de Aquino, uma verdade inflexível, evidente e
natural, porque associada à sinderesis, enquanto a verità effetualle maquiaveliana
é provisória, circunscrita e retórica. Como nota Eugene Garver, “agir de acordo
com princípios garante a retidão das ações numa ética dos princípios; alcançar
resultados bem sucedidos justifica a retidão numa ética das conseqüências”.292
Seria tentador enxergar neste movimento uma instrumentalização da
prudência, associada a uma autonomização da política em relação à ética, como

289
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, pp.75-6.
290
Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.238.
291
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máximas 98 e 99.
85

defende Athanasios Moulakis: “pode-se dizer que o desenvolvimento de um ramo


autônomo da política [...] visa a prevenir a contaminação da lógica da política por
ilusórias mistificações ideológicas”.293 O que estaria em jogo, segundo Moulakis,
seria a inauguração de um “constitucionalismo realista”, conjunto de idéias
inovadoras supostamente responsáveis pela fundação da modernidade política.294
Embora Maquiavel flexibilize a noção de virtude, segundo a sugestão de
Quentin Skinner analisada acima, esta permanece sendo louvável e o vício
condenável. Deste modo, entra em discussão o que é virtude e o que é vício em
relação a um fim primeiro, considerado útil e necessário à segurança do stato, e
em que medida este fim primeiro se posiciona diante de um fim último
necessariamente honesto. Dito isto, não se pode falar, como o fazem Moulakis e
tantos outros, em uma autonomia da política em relação à retórica, assim como
não há a autonomia da política diante da ética295 – como se a política, separada dos
outros campos, fosse “realista” porque atrelada à “verdade das coisas”, enquanto
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ética e retórica seriam fundamentalmente “ideológicas”.296 A prudência depende,


como argumentarei adiante, de uma performance retórica para se tornar efetiva,
para que venha a alcançar bons efeitos, para que seja reconhecida como tal. Como

292
GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “Acting according to
principles guarantees the rectitude of actions in an ethics of principles; successfully attaining some
result justifies the rectitude of actions in an ethics of consequences”.
293
MOULAKIS, Athanasious. Republican Realism in Renaissance Florence, p.4. “One could say
that the development of an autonomous craft of politics isbefore it is transmuted into an
instrumentum regni, an attempt at intellectual hygiene: it seeks to prevent the contamination of the
logic of politics by specious ideological mystifications”.
294
Cf. Idem. Ibid., p.22.
295
Nas décadas de 1920 e 1930, num momento de reordenamento das forças político-militares e
ascensão dos fascismos na Europa, diversos filósofos europeus se voltam para os escritos
maquiavelianos, especialmente O Príncipe. Benedetto Croce (1866-1952), em seus Elementi di
política (1925), defende a hipótese de que Maquiavel teria descoberto a autonomia da política em
relação à ética. É também de Croce a tese que atribui ao secretário a paternidade da idéia de razão
de estado – entendida como ciência independente da religião e moral cristã. Friedrich Meinecke
(1862-1954), com base no argumento croceano, publica em 1924 seu famoso estudo sobre A idéia
de razão de estado na idade moderna, responsável pela “canonização” do argumento da separação
entre política e moral em Maquiavel. Meinecke afirma, ainda, que Maquiavel teria fundado a
moderna concepção de Estado, hipótese seguida por Ernst Cassirer (1874-1945), para quem o
escritor florentino foi responsável pela instauração de uma ciência política de validade geral,
alicerçada numa concepção estática da história. Em sua refutação da hipótese da separação entre
ética e política, Isaiah Berlin atesta a existência, em Maquiavel, de “dois mundos, o da moralidade
pessoal e o da organização pública. Há dois códigos éticos, ambos supremos; não são suas regiões
‘autônomas’, uma da ‘ética’, outra da ‘política’, mas duas alternativas (para ele) exaustivas entre
dois sistemas conflitantes de valor”. Berlin defende que, para o secretário, “nem todos os valores
são compatíveis uns com os outros”, o que faria de Maquiavel, “a despeito de si mesmo”, “um dos
criadores do pluralismo”. Cf. BERLIN, Isaiah. Op. cit., pp. 327-8; 347-8.
296
Cf. GARVER, Eugene. “After Virtì”, p.75. “The rhetorical virtue of appropriateness and
decorum and the ethical virtue of doing what is right in the right circumstances are assimilated”.
86

percebe Eugene Garver, “nada assegura que uma ação prudencial seja correta; a
correção e o sucesso de uma ação prudencial estão sempre abertos ao debate e à
refutação pelo fracasso prático”.297 Precisamente por isso a prudência não se
configura apenas como um instrumento da razão calculativa; por estar associada à
qualidade elementar de toda deliberação, condição de possibilidade para a
produção de consensos argumentativos numa República e de bons conselhos no
âmbito de um principado ou regime stretto, ela é fundamentalmente retórica,
estando sujeita aos preceitos convencionais de reconhecimento que lhe atribuem
validade prática.

O prudente em Maquiavel e Guicciardini, diferentemente do prudente


delineado pela tradição ciceroniana e humanista, atém-se primordialmente às
conjunturas circunscritas a um conjunto particular de possibilidades, conforme o
parâmetro do que é possível realizar. “Um homem prudente”, afirma Maquiavel
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em O Príncipe,

deve sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos
que foram excelentes. Mesmo não alcançando sua virtù, deve pelo menos mostrar
algum indício dela e fazer como os arqueiros prudentes que, julgando muito
distantes os alvos que pretendem alcançar e conhecendo bem o grau de exatidão do
seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para
atingir tal altura com flecha, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar
ao objetivo (grifos meus).298

O princípio do possível, tomado pelo prudente, implica a escolha dos mais


elevados modelos para emulação, o que incide, em decorrência, no necessário
reconhecimento das distâncias e proporções exatas – o cálculo certeiro de quem
mira para o alto para acertar um ponto mediano. Na mesma linha, afirma o
secretário em outra passagem de O Príncipe:

297
GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “[…] nothing assures that a
prudential action will be correct; the rightness and the success of a prudential action are always
open to debate and to refutation by practical failure”.
298
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23.
87

Sei que vão dizer que seria muito louvável que um príncipe, dentre todas as
qualidades acima, possuísse as consideradas boas. Não sendo isto porém
inteiramente possível, devido às próprias condições humanas que não o permitem,
necessita ser suficientemente prudente para evitar a infâmia daqueles vícios que lhe
tirariam o estado e guardar-se, na medida do possível, daqueles que lhe fariam
perdê-lo.299

Em outro capítulo, diz o secretário: “A prudência consiste em saber reconhecer a


natureza dos inconvenientes e tomar os menos maus como satisfatórios”.300
A mesma ênfase na observação atenta é prescrita por Bernando del Nero, no
Dialogo del Reggimento di Firenze:

a se querer ajuizar entre governo e governo, não devemos considerar tanto de que
espécie são, mas seus efeitos, e dizer que é o melhor governo ou menos daninho
[cattivo] aquele que produz melhores efeitos, ou menos daninhos.301
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O foco, nestas passagens, está tanto na agudeza no olhar – a capacidade de


distinguir o fulcro de uma questão e analisá-lo segundo os critérios da efetividade
– quanto no cálculo das possibilidades conjunturais. Vale citar uma vez mais a
passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze em que Guicciardini, pela voz de
Bernando del Nero, diz: “não devemos procurar um governo imaginário [uno
governo immaginato], que seja mais fácil de aparecer nos livros que na prática,
talvez como a república de Platão. Ao invés, deve-se considerar a natureza, a
qualidade, as condições, a inclinação, e para reduzir todas essas coisas em uma
palavra, os humores da cidade e dos cidadãos”.302 Não se busca na realidade o que
já se sabe, ou não se projeta nela o que se espera saber; ao contrário: parte-se da
diversidade, do que é pouco visível, do que se esconde em cores e nomes diversos,
para, com engenho, agudeza e celeridade, destrinchar os movimentos sutis das
“coisas do mundo”, através da separação entre diversidades substanciais, aquelas
que de alguma forma remetem a certos padrões estáveis e recorrentes – como

299
Idem. Ibid., XV, p.74.
300
Idem. Ibid., XXI, p.108.
301
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.33. “dico che a volere fare giudicio tra governo e
governo, non debbiamo considerare tanto di che speie siano, quanto gli effetti loro, e dire quello
essere migliore governo o manco cattivo, che fa migliori e manco cattivi effetti”.
302
Idem. Ibid., p.60.
88

ciclos de formas de governo, princípios associados à natureza humana, máximas e


sentenças presentes em diversos povos e tempos, tudo enfim que transcende as
“variações de nomes e cores” responsáveis pelos enganos recorrentes de analistas
desatentos, sejam eles príncipes, conselheiros ou homens de letras –, e os
acidentes, cuja lógica, se é que existe, é inextricável, remetendo, portanto, aos
caprichos da Fortuna, ao acaso e aos desígnios da Providência.
Ser prudente, para Guicciardini, é olhar para as “coisas do mundo” de forma
penetrante, com occhi che penetri drento303, separar o substancial do acidental,
mergulhar nas motivações dos homens procurando antever com alguma margem
de segurança – nunca, porém, com certeza absoluta –, as motivações, ações e
condutas dos agentes políticos. Basta lembrar a passagem do Dialogo del
Reggimento di Firenze, anteriormente mencionada, em que Bernardo del Nero
afirma que “tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte será em
outros tempos e algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos exteriores diferentes
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e várias cores”, de tal modo que os possuidores de “vista aguda”, atentos às


“diversidades substanciais” – em suma, os prudentes –, mostram-se habilitados a,
com base no “cálculo e medida das coisas passadas”, “calcular e medir o futuro”
(grifos meus).304 Como diz Maquiavel em passagem de O Príncipe também
mencionada anteriormente: “Quando se conhecem com antecedência (o que só
ocorre quando se é prudente) os males que surgem, eles se curam facilmente”.305
Ser prudente é, também, duvidar a todo o momento dos próprios olhos e dos
sentidos imediatos306, posto que o mundo está sempre em transformação, e o que
parecia correto ontem poderá, amanhã, deixar de sê-lo: “nunca tenham como certa
uma coisa futura”, diz Guicciardini,

ainda que assim pareça, de modo que, se puderem, não alterando a conduta habitual,
reservem algo para o caso de acontecer o contrário, pois as coisas muitas vezes têm
êxito fora da opinião comum e a nossa experiência mostra ser prudente agir
assim.307

303
GUICCIARDINI, Francesco. Oratio Consolatoria, p. 115.
304
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36.
305
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12.
306
Sobre a relação entre juízo e sentidos, conferir: ADVERSE, Helton. Aparência, retórica e juízo
na filosofia política de Maquiavel. Belo Horizonte, Tese de Doutorado, UFMG.
307
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 81, pp.86-87.
89

Diante destes dados, pode-se dizer que a prudência em Maquiavel e


Guicciardini possui necessariamente um caráter de evento: a validade de seus
juízos nunca é universal, mas provisória, mesmo quando diz respeito aos padrões
de recorrência ou tendências de estabilidade. Nesse sentido, as lições da prudência
legadas às gerações futuras por meio de histórias ou tratados só se revelarão úteis
se puderem ser atualizadas performativamente, mostrando-se aptas a produzir,
diante de um público leitor ou ouvinte, bons efeitos similares, mas não
necessariamente iguais, àqueles produzidos em seu contexto original de
enunciação – entenda-se por bom efeito um resultado de acordo com o esperado,
produto de uma deliberação sustentada por argumentos sólidos, numa assembléia
pública ou no escrutínio do analista consigo mesmo.308
Por esse viés, a análise da política, para que seja efetiva, effetualle, não pode
visar exclusivamente, mesmo preferencialmente, à formulação de sentenças
genéricas de validade indistinta. Não que as sentenças deixem de se fazer
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presentes: especialmente nos Discorsi de Maquiavel e nos Ricordi de Guicciardini


elas encontram um campo privilegiado, tendo lugar também nas histórias. Tais
sentenças, porém, possuem pouca ou nenhuma validade se descoladas de situações
concretas. Neste caso, a ênfase fundamental se volta para a capacidade de enxergar
na dinâmica da realidade as recorrências e os padrões gerais de conduta, com o
intuito de fornecer elementos para o ajuizamento prudente. Além disso, as
sentenças possuem um papel importantíssimo na construção retórica dos discursos:
“convém interpor as sentenças esparsamente para que nos vejam como advogados
de uma causa, não como preceptores do viver”309, defende o autor desconhecido da
Retórica a Herênio. As sentenças podem ser de dois tipos: simples, no caso de
exposições breves que não necessitam de justificativas, ou confirmadas pela
apresentação de uma razão, mais elaboradas. “Quando dispostas assim, contribuem
muito para o ornamento e necessariamente o ouvinte dará seu assentimento
tácito”.310 Elas fornecem, assim, considerações alicerçadas na experiência que,
todavia, não constituem princípios normativos de intervenção tática, tampouco
lições morais generalizantes. Seu emprego visa fundamentalmente à produção de

308
Cf. PERELMN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação. A Nova
Retórica, pp.45-50. “O acordo consigo mesmo é apenas um caso particular de acordo com os
outros”, p.46.
309
AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p.235.
310
Idem. Ibid., IV, 25, p.237.
90

efeitos persuasivos, e a análise da mobilização das sentenças não pode


desconsiderar a situação particular a que engendrou.

“Sendo meu intento escrever algo útil para quem quer me ler”, diz
Maquiavel em famosíssima passagem de O Príncipe, “parece-me mais
conveniente procurar a verdade efetiva (ou efeitual) da coisa [verità effetualle
della cosa] do que uma imaginação sobre ela”.311 A verità effetualle remete à
noção de bom efeito.312 Como tal, ela revela um duplo caráter: diz respeito à ênfase
analítica nos resultados produzidos por certas ações (em detrimento de sua
adequação a preceitos tácitos, pretensamente universais) e também à performance
retórica consumada pelo discurso diante de uma platéia específica de leitores ou
ouvintes deliberando, publica ou intimamente, sobre casos concretos. De tal modo,
a veritá effetualle deve ser compreendida como aquela adequada ao
convencimento de um auditório de homens prudentes, por meio de argumentação
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consistente, analogias bem fundamentadas, imagens copiosas e discurso


conformado ao decoro letrado do gênero retórico, e também como aquela capaz de
mover os homens à ação ou de proporcionar deleite, segundo o momento e a
circunstância.
A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à questão dos efeitos está
diretamente ligada ao tipo de debate que teve lugar, entre 1494 (expulsão dos
Medici) e 1512 (recondução da família pelos espanhóis), nas practiche da
República florentina. As pratiche (no singular, pratica) eram reuniões dos
cidadãos mais influentes, com o intuito de aconselhar os órgãos consultivos da
República, como a Signoria.313 De acordo com Felix Gilbert,

embora as pratiche não fossem, durante o período republicano, uma instituição


constitucionalmente estabelecida, elas serviam ao importante propósito de fornecer
aos comitês decisórios um meio de testar as reações dos cidadãos a algumas de
suas propostas, e de permitir aos cidadãos arejar suas opiniões.314

311
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XV, p.73.
312
Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.82.
313
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p.29.
314
Idem. Ibid., p.65. “Although the pratiche were not, during the republican period, a
constitutionally established institution, they served the important purpose of giving the policy-
making boards a means of testing the citizens’ reactions to some of their proposals and of allowing
the citizens to air their opinions”.
91

Os registros referentes às pratiche foram conservados, e constituem


documentos preciosos para o exame das discussões políticas associadas à esfera
administrativa da República, ou aos debates das magistraturas e chancelarias. A
“análise efeitual” da realidade, típica de Maquiavel e Guicciardini, deve muito à
retórica das pratiche. Há, notadamente, um foco na utilidade e na segurança da
República, como é de se esperar em discursos de retórica deliberativa. As falas
dos oradores, registradas em seus aspectos centrais por redatores – um dos quais
foi Maquiavel, segundo-chanceler e secretário dos Dez –, também enfatizam
recorrentemente a necessidade de se ater ao honesto e evitar o desonesto.315
Os participantes não se abstinham de interpretar as possíveis motivações dos
principais agentes envolvidos nas pendengas sujeitas à análise. O intuito central
era tentar se antecipar às possíveis iniciativas destes, propiciando um maior grau
de segurança nas tomadas de decisões pelos ocupantes das magistraturas
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republicanas.
Na pratica de 23 de maio de 1505, Giovanbattista Ridolfi traça um retrato do
Marquês de Mântua, definindo-o como um homem dependente e servil; logo,
passível de condução e manipulação.316 Piero Guicciardini (pai de Francesco), o
orador seguinte, concorda com o juízo de Ridolfi: “circa lo homo, il medesimo
che Giovambaptista Ridolphi”.317
Na prática de 29 de Junho de 1505, Ridolfi dá novamente mostras de seu
bom juízo, ao mudar, com sua intervenção, os rumos do debate. Diante da questão
“um acordo com Siena e com Luca pode ajudar Florença a recuperar Pisa?”, os
primeiros oradores, Giovanvictorio Soderini, Matteo Nicolini e Piero Popoleschi
argumentam pela utilidade da retomada da Pisa, o que seria digno e honroso para
Florença; defendem, assim, a aliança com Luca e Siena. Fora a discordância de
Guglielmo de’ Pazi, que afirma não haver “nem honra nem utilidade” na amizade
com as referidas cidades318, os oradores subseqüentes reiteram os benefícios do
acordo. Até que, em seu discurso, Ridolfi argumenta que ninguém, até então,

315
Cf. BAUSI, Francesco. “Machiavelli nelle consulte e pratiche della Repubblica Fiorentina”.
316
Pratica, 23 de maio de 1505. Consulte e Pratiche, p.5.
317
Idem.
318
Pratica, 29 de Junho de 1505. “Sì che non ci vedendo né honore né utilità [...]. Delle gabelle che
domandono di più Luchesi, cioè di levare la legge fatta per loro conto, non li parendo honorevole
né con dignità o utile della città, se rimetteva alli altri”, p.22.
92

havia levado em conta a mudança dos tempos e a variação das coisas analisadas.319
Seria preciso, segundo ele, obter inicialmente o consenso dos espanhóis, os quais,
bem armados, poderiam a qualquer momento desfazer todo tipo de acordo
traçado: “é necessário entender-se bem com os espanhóis, os quais são vizinhos e
poderosíssimos”.320 Ridolfi prega a proximidade com os espanhóis, e em relação a
Siena e Luca defende o benefício do tempo, ou seja, o adiamento da decisão. Os
oradores seguintes tomam seu partido, chegando-se assim a um consenso sobre a
questão.
A prática de 29 de Junho de 1505 indica exatamente o percurso da produção
de um consenso, tornado possível pela intervenção de um homem reputado sábio e
prudente, atento às sutis variações da realidade que haviam passado despercebidas
aos demais oradores. Seria necessário realizar uma análise mais profunda das
pratiche, com o intuito de buscar ligações mais efetivas entre a forma de
argumentação própria a Maquiavel e Guicciardini e as discussões travadas nas
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assembléias. Porém, há nas pratiche, indubitavelmente, uma maneira de


compreender os fenômenos políticos distante do tratamento usual dos tratados
humanistas do Quattrocento, em função da ênfase na análise atenta das
transformações sutis da realidade e da antevisão dos possíveis efeitos das ações
dos agentes – sem que haja o abandono dos preceitos ético-retóricos tradicionais e
de princípios arraigados, como o “benefício do tempo” tão criticado por
Maquiavel e Guicciardini. Também a escrita funcional de legações e ofícios de
órgãos como a Chancelaria demonstra uma acentuada preocupação com as
interpretações das motivações dos agentes, a antecipação dos efeitos, as condições
dos tempos, celeridade decisória, etc.321

O tipo de argumentação efetiva ou efeitual deve-se sustentar


necessariamente a partir de exemplos variados, oriundos tanto da experiência
prática como da leitura atenta das histórias antigas e modernas; deve, também, ser
urdido com discrezione (discernimento) e ragione, o que é racional porque

319
Ibid., p.23. “[...] però li pareva fussi da havere altri respecti che non si hebbe alhora nel
consigliare, sendo mutati li tempi et variate le cose da quello essere”.
320
Idem. “Però iudicava più ad proposito et più necessario intendersi bene con li Spagnioli, quali
sono vicini et potentissimi, che con altri”.
321
Cf. FOURNEL, Jean-Louis. Op. cit., p.93. “L’insistence sur la celerità est ainsi une constant
des scritti di governo”.
93

razoável. Voltarei a este ponto adiante. Outro aspecto decisivo é o respeito ao


princípio da probabilidade.322 Sobre essa questão, diz Cícero, no De Inventione:

toda argumentação que utilize os argumentos que acabamos de mencionar deverá


ser provável ou necessária. Pois, em minha opinião, e para defini-la em poucas
palavras, a argumentação é qualquer tipo de meio concebido que demonstra que
algo é provável ou que prova que é necessário.323

A argumentação pautada no critério da necessidade pode ser atestada,


prossegue Cícero, quando não existem meios de demonstrar os fatos de maneira
distinta da que se diz. Ela é classificada em “dilema”, “enumeração” ou
“inferência simples”.324 Já a probabilidade diz respeito ao que ocorre
“habitualmente, quando faz parte da opinião comum ou quando oferece alguma
analogia com a realidade, seja verdadeira ou falsa”.325 O juízo prudente é
fundamentalmente da ordem do provável, mesmo se levar e conta os aspectos
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substanciais da realidade – isto porque as diversidades substanciais, por


necessitarem de um olhar agudo capaz de distingui-las, precisam de comprovação
pelo hábito, pela opinião comum ou por analogias. A validade de tais juízos não é
atestada por comprovação necessária; sua verdade é uma verdade limitada e
circunscrita a condições específicas, uma verdade efetiva. Diz Guicciadini, em
trecho do Dialogo:

As coisas desta sorte não têm regola certa ou curso determinado; antes, possuem
variações diárias, segundo o andamento do mundo, e as decisões que se tem que
tomar tem por fundamento quase sempre a conjuntura, e de um pequeno
movimento dependem com muita freqüência as coisas da maior importância, e dos
princípios pouco notados nascem muito efeitos gravíssimos. Por isso é necessário
que o governante seja muito prudente, dedicando atenção aos mínimos accidenti, e

322
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.20.
323
CICERO, Marco Túlio. De Inventione, I, 44.
324
Idem. “El dilema es un razonamiento en el que el contrario es refutado sea cual sea la
proposición que haya admitido. Por ejemplo: ‘si es um malvado, por qué lo tratas? Si es honesto,
por qué lo acusas?
En la enumeración, se mencionan diferentes hipótesis de manera tal que se refutan todas excepto
una cuya validez queda necesariamente demostrada. [...].
Una inferencia simples deriva de una deducción necessaria, como en este ejemplo: “si cuando
decís que cometí esos actos yo estaba en ultramar, hay que concluir que no solo no hice lo que
decís sio que ni siquiera pude hacerlo”.
94

pese bem tudo aquilo que pode acontecer, esforçando-se em evitar de início e
excluir, na medida do possível, o poder do acaso e da Fortuna.326

A prudência é apresentada, assim, como remédio eficaz contra a Fortuna.


Não um remédio de fácil aplicação, ou infalível, e sim um paliativo capaz de
orientar a ação no mundo com alguma segurança, minimizando os riscos de
sucumbir às constantes variações propiciadas pelo acaso. Num tempo de pouco
controle dos resultados das ações, a prudência permite olhar adiante.
Maquiavel, embora tenha se notabilizado pela oposição entre Fortuna e
virtù, também via na prudência um paliativo contra os caprichos da deusa: “a
maldade da fortuna”, diz ele nas Istorie, “pode ser vencida com a prudência,
pondo-se freio à ambição desses homens, anulando-se as ordenações que
alimentaram as facções e prendendo aqueles que não estão em conformidade com
a verdadeira vida livre e civil”.327 O prudente, nesse sentido, é mais livre que os
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outros homens, por conseguir se manter menos vulnerável à Fortuna. O exercício


desta liberdade é uma forma de manter aceso o amor à res publica, de vislumbrar,
em horizonte turvo, as possibilidades, ainda que parciais, de consolidação dos fins
últimos e honestos.

Resta discutir os elementos que, em Maquiavel e Guicciardini, dão alicerce


ao prudente na formulação de seus juízos segundo as regras da arte. Tratam-se das
tópicas dos argumentos da experiência e do conhecimento das histórias antigas e
modernas, além da ragione e da discrezione, disposições do prudente.
A tópica dos argumentos de experiência trata, de acordo com Alcir Pécora,
“da produção de um discurso em que a experiência de vida se apresenta como
principal fundamento e garantia do saber que propicia”.328 A experiência permite o

325
Idem. Ibid., I, 46.
326
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.96. “Perché le cose di questa sorte non hanno regola
certa né corso determinato, anzi hanno ogni dì variazione secondo gli andamenti del mondo, e le
deliberazioni che se ne hanno a fare, si hanno quasi sempre a fondare in su le conietture, e da uno
piccolo moto dependono el più delle volte importanze di grandissime cose, e da princìpi che a pena
paiano considerabili nascono spesso effetti ponderosissimi. Però è necessario che chi governa gli
stati sia bene prudente, vigili attentissimamente ogni minimo accidente, e pesato bene tutto quello
che ne possi succedere, si ingegni sopra tutto di ovviare a’ princìpi ed escludere quanto si può la
potestà del caso e della fortuna”.
327
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, III, 5, pp. 168-9.
328
PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: As excelências do
governador, p.52.
95

acesso a situações diversas, ilustrando o discurso e lhe dando força de autoridade.


Na dedicatória de O Príncipe, Maquiavel diz ter aprendido o que sabe “através de
uma longa e contínua experiência das coisas modernas e um contínuo estudo das
antigas”.329 Nos Discorsi, também na dedicatória, o secretário afirma ter
expressado o que aprendeu “na longa prática e contínuas lições das coisas do
mundo”.330 No proêmio do Dialogo del Reggimento di Firenze, Guicciardini
destaca a prudência e experiência dos quatro interlocutores, especialmente
Bernardo del Nero, “cidadão já velhíssimo e muito sábio”.331 Não é um acaso que
tais referências sejam apresentadas nos exórdios, momento responsável pela
captação da benevolência e atenção dos leitores ou do auditório, como argumenta
Lucia Calboli Montefusco.332 A produção de um ethos favorável, por meio da
afirmação da prudência de quem compõe o discurso, ou dos interlocutores do
diálogo, contribui decisivamente para a produção da docilidade da platéia ou dos
leitores. Uma das principais finalidades do exórdio (para Quintiliano a única, como
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percebe Skinner), era a de “estabelecer dessa maneira o caráter da pessoa, com isso
colocando sua platéia num estado de espírito receptivo”.333
A experiência é tão decisiva que Guicciardini chega a considerá-la mais
importante que a prudência natural, inata: “que ninguém confie tanto na prudência
natural ao ponto de persuadir-se de que esta basta sem a experiência como
acessório, porque todos os que lidaram com negócios, ainda que prudentíssimos,
puderam verificar que com a experiência se chega a fazer muitas coisas, o que não
é possível apenas com o talento natural”.334
Ao mesmo tempo, o bom conhecimento das histórias antigas e modernas
revela-se decisivo, por proporcionar o acesso a exemplos abundantes,
fundamentais na retórica deliberativa. Lê-se na Retórica a Herênio que

o exemplo é o relato de algo feito ou dito no passado com a segurança do nome do


autor. É usado pelos mesmos motivos que usamos a similitude. Torna as coisas

329
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, p.129.
330
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p.3.
331
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.16. “[...] Bernardo del
Nero, cittadino già vecchissimo e molto savio”.
332
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium, narratio, epilogus. Studi sulla teoria retorica
greca e romana delle parti del discorso, p.3. “L’oratore cioè si serviva dell’esordio non solo per
anticipare l’argomento da trattare, ma anche per rendere benevolo l’ascoltatore [...]”.
333
SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p.177.
334
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 10, p.55.
96

mais ornadas quando é empregado apenas em razão da dignidade; mais claras,


quando ilumina aquilo que parecia obscuro; mais prováveis, quando as faz mais
verossímeis; coloca-as diante dos olhos, quando expressa tudo de modo tão
perspícuo que eu diria ser quase possível tocar com a mão.335

Vê-se por essa passagem que o exemplo possui uma vasta aplicação, estando
articulado tanto à sustentação “lógica” de um argumento quanto à produção de um
efeito de presença, capaz de incidir com propriedade na produção de bons efeitos
retóricos.
A retórica da exemplaridade, assim como o princípio da analogia, orienta
tanto o uso das histórias antigas e modernas quanto a mobilização da
experiência.336 “Um homem prudente”, diz Maquiavel em O Príncipe, “deve
sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos que
foram excelentes”.337 Por esta razão “deve o príncipe ler as histórias e refletir sobre
as ações dos homens excelentes”.338 Aqueles que lêem com zelo as histórias
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antigas e modernas, afirma Guicciardini no Dialogo, pela voz de Bernardo del


Nero, e fazem disso um hábito, não possuem dificuldades para antever o futuro.339
É importante notar, contudo, algumas divergências de propósitos acerca dos
usos das histórias antigas e modernas em Maquiavel e Guicciardini. No que diz
respeito aos romanos, especialmente do período republicano, o ex-secretário
mostra-se propenso a aceitá-los como modelos para a ação política presente, sem
se conformar, é bom que se frise, com uma idéia servil e irrefletida de imitação.
Como ele afirma no proêmio do livro I dos Discorsi, “na ordenação das repúblicas,
na manutenção dos estados, no governo dos reinos, na ordenação das milícias, na
condução da guerra, no julgamento dos súditos, na ampliação dos impérios, não se
vê príncipe ou república que recorra aos exemplos dos antigos”, situação oriunda
“do fato de não haver verdadeiro conhecimento das histórias, de não se extrair de
sua leitura o sentido, de não sentir nelas o sabor que têm” (grifos meus)340; enfim,

335
AD. Retórica a Herênio, IV, 62, p.297.
336
Cf. HAMPTON, Timothy. Writing From History, pp.1-30.
337
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23.
338
Idem. Ibid., XIV, p.71.
339
Cf. GUICCIARDINI, Dialogo, p.35. “E dove mi ingannassi io, potrete facilmente supplicare
voi, perché avendo voi letto moltssime istorie di varie nazioni antiche e moderne, sono certo le
avete anche considerate e fattovene uno abito, che con esso non vi sarà difficile el fare giudizio del
futuro”.
340
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, I, proêmio, pp. 6-7.
97

de não se saber ler as histórias adequadamente e da incapacidade de mobilizá-las


com prudência, ou seja, como modelos efetivos para a ação.
Já para Guicciardini, seria preciso “ter uma cidade como era a deles
[romanos], e depois governar-se segundo aquele exemplo”, algo que, “para quem
tem qualidades desproporcionais, é tão desproporcional quanto querer que um asno
corra como um cavalo”.341 Ler as histórias agudamente e com discernimento, de
modo que estas possam orientar as ações presentes, implica, segundo Guicciardini,
o respeito às enormes diferenças de qualidade entre os tempos, especialmente
quando os romanos estão envolvidos na comparação. Estes, para o escritor
florentino, só poderiam representar modelos efetivos caso houvesse uma série de
recorrências e similitudes capazes de corroborar a analogia.
Articulando a experiência e o conhecimento das histórias antigas e modernas
está a ragione, razão num sentido de “racional porque razoável”, sem a pretensão
de fixação de princípios gerais e intangíveis.342 Diz Guicciardini: “sou daqueles
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que, neste tipo de coisa, jamais alegaria a experiência se esta não viesse
acompanhada de razão”.343 Também a discrezione, discernimento, desempenha um
papel decisivo na articulação entre experiência e leitura das histórias, como a
disposição responsável pela percepção da “variedade das circunstâncias” da
realidade e por saber medi-las e considerá-las com propriedade. Trata-se de
atributo do tipo discreto, necessariamente prudente (em oposição ao homem
vulgar).344

341
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 110, página 97.
342
Cf. BARBUTO, Gennaro Maria. La politica dopo la tempesta. Ordine e crisi nel pensiero di
Francesco Guicciardini, p.36.
343
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo..., p.45. “Io sono uno di quegli che in queste cose non
allegherei mai la esperianza, se io non a vedessi accompagnata dalla ragione”.
98

2.5
Uma retórica prudencial

Da unidade entre retórica e prudência. Copia rerum e copia verborum. Adaptação


às circunstâncias: prudência e decoro letrado.

A idéia de retórica prudencial visa destacar a unidade entre retórica e


prudência na filosofia política antiga e renascentista. Embora Aristóteles tenha
proposto, na Ética e na Retórica, analogias entre o homem prudente e o orador –
no que diz respeito à sabedoria prática e à forma de julgamento de ambos345 –, é
com Cícero que prudência e retórica se mostram plenamente indissociáveis.
De acordo com definição do De Inventione, a retórica consiste na eloqüência
segundo as regras da arte.346 Ela é uma parte constitutiva da civilis ratio (ou
scientia), a ciência dos assuntos civis. A prudência, nesse sentido, é compartilhada
pela ciência dos assuntos civis e pela retórica, sem que os dois campos se
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englobem totalmente. Como argumenta Antonio no livro I do diálogo De Oratore,


em refutação a Crasso, prudentia e ratio dicendi não se superpõem: “existe uma
grande diferença entre estas duas habilidades”.347 Para ilustrar seu argumento, ele
faz menção a Marcus Scaurus (163-89 a.C.), cônsul em 115 e censor em 109,
princeps senatus por muitos anos (o primeiro a falar quando das consultas
senatoriais), reputadamente um homem honrado, que “embora fosse um orador,
nos assuntos de envergadura se apoiava mais em sua prudência que na arte
oratória”.348
Antonio delimita um campo de atuação específico da prudência, concernente
aos assuntos de estado e à vida civil – em suma, à rerum cognitione, o
conhecimento das coisas. Segundo Cícero, sem este tipo de conhecimento o orador
não consegue ir longe na compreensão das questões civis; em conseqüência, não se
mostrará convincente e persuasivo em suas intervenções. Ainda assim, argumenta
Crasso, a rerum cognitione não possuirá valor algum caso o orador não revele em
seu discurso maneiras harmoniosas, urbanidade, graça e polidez, de modo que o

344
Cf. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho, p.94.
345
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.30.
346
CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 6.
347
Idem. Ibid., I, 215.
348
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 214.
99

estilo venha a se “acomodar plenamente ao pensamento”.349 Copia rerum leva à


copia verborum – a abundância e fluência oratória existem verdadeiramente
quando há um conhecimento efetivo do assunto tratado.350
A partir do livro II, Antonio, que no segmento anterior confrontara seus
pontos de vista com Crasso, num exemplo de argumentação in utramque partem,
passa a buscar com este um consenso sobre a perfeição oratória, onde fluência
verbal e conhecimento das coisas não se dissociem. Vale relembrar a assertiva de
Cícero na abertura do livro II do De Oratore, citada anteriormente: “a eloqüência
alcançada por Crasso e Antônio nunca poderia se realizar sem o conhecimento de
todas as coisas que produziram a prudência e a fluência oratória [dicendi copiam]
manifesta nos dois”.351
Para Cícero, não se pode pensar num homem prudente que não seja um bom
orador, tampouco num bom orador que não seja prudente – princípio eternizado
por Quintiliano na expressão vir bonus dicendi peritus.352 Os humanistas do
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Quattrocento compartilhavam este entendimento com seus mestres da


Antiguidade: Leonardo Bruni defendia, segundo a linha proposta no De Oratore, a
identidade entre eloquentia e sapientia353; com base na leitura de Quintiliano,
Lorenzo Valla valorizava a experiência do orador nos assuntos públicos, o que, em
sua opinião, tornava a eloqüência mais eficaz354; para Jorge de Trebizonda, a
oratória estava associada à condução de cada momento da vida moral e política355;
Poliziano sustentava que a retórica era responsável tanto pela formação do homem
como da civilização356, tópica que busca em Cícero.357
Embora se possa notar uma redefinição no conceito de prudência nos
escritos de Maquiavel e Guicciardini, a associação desta com a retórica não deixa
de se fazer notar. Como discuti anteriormente, prudência implicava, para ambos,

349
Idem. Ibid., I, 50-54.
350
Cf. CAVE, Terence. The cornucopian text. Problems of Writing in the French Renaissance,
p.6. “According to this theory (a commonplace since the ancient Greek debates on rhetoric), true
copia – as opposed to vitiosa abundantia or loquacitas – is assured where res inform or guarantee
verba”.
351
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 6.
352
Cf. ALBERTE, Antonio. “Recepción de los criterios retóricos ciceronianos en Quintiliano”, pp.
159-183.
353
Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhetorique en Italie au XVeme siecle », p.54.
354
Cf. Idem. Ibid., p.64.
355
Cf. Idem. Ibid., p.77.
356
Cf. GALAND-HALLYN, Perrine. “La rhetorique en Italie a la fin du Quattrocento (1475-
1500) », p.138.
357
Cf. CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I,1.
100

um olhar atento para a realidade, capaz de separar diversidades substanciais e


acidentais e compreender sua dinâmica; tendo por horizonte o que normalmente
ocorre em situações similares, o juízo prudente visa à definição do que é
apropriado em determinadas circunstâncias, o melhor possível. Daí a atenção aos
efeitos das ações de outros homens e seus prováveis resultados – almeja-se, deste
modo, à máxima segurança na consecução dos fins primeiros e últimos visados, o
que envolve a deliberação. Por deliberação, deve-se entender não apenas uma
prática intelectual, realizada publicamente ou intimamente, mas fundamentalmente
uma atividade regrada segundo os preceitos de um dos três gêneros retóricos, a
saber, o gênero deliberativo.
A retórica deliberativa tem no seu cerne a idéia de prudência. Somente
homens prudentes são capazes de discorrer com precisão acerca dos assuntos
concernentes à res publica e agir com celeridade. No exercício do debate e na
busca do consenso os prudentes mostram suas habilidades práticas, orientados por
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vasta experiência e ampla leitura das histórias, e também pelo bom juízo natural
(prudência natural) e discrição (discrezione), sem os quais mesmo os homens mais
experientes e eruditos não conseguirão ir além de análises superficiais das “coisas
do mundo”. A deliberação, entendida retoricamente, envolve a participação – ou
sua presunção, no caso da deliberação consigo mesmo –, de outros homens num
ragionamento, um debate onde terá lugar a argumentação in utramque partem,
(argumentos contrários), ou então a busca de consenso via cooperação, ou mesmo
as duas coisas – dos argumentos contrários à busca do consenso, como no De
Oratore.
“O ofício do orador”, lê-se na Retórica a Herênio, “é poder discorrer sobre
as coisas que o costume e as leis instituíram para o uso civil, mantendo o
assentimento dos ouvintes até onde for possível”.358 O orador sempre fala para
alguém, buscando a produção de efeitos particulares num auditório específico.
Sem a capacidade de convencimento, sem saber lidar com um auditório, de nada
valerá ao prudente a excelência calculativa do bom juízo, isto porque a deliberação
entre homens reputados prudentes é ela mesma condição primordial para o
reconhecimento da prudência de um sujeito particular. Sem a retórica, a prudência
é inefetiva, por não adquirir um caráter público. Analogamente, a retórica sem

358
AD. Retórica a Herênio, I, 2, p.55.
101

prudência é vazia, rasa, incapaz de ir ao cerne das questões. Assim, embora não se
confundam, retórica e prudência perfazem uma unidade necessária, sem a qual
ambas não se sustentam. A prudência não se resume a uma atividade intelectual:
ela possui uma dimensão performativa presente mesmo na deliberação consigo
mesmo.
Em Maquiavel e Guicciardini, as práticas letradas não podem ser
compreendidas apropriadamente sem que se leve em consideração a
indissociabilidade entre prudência e retórica.
Nos escritos de ambos, as referências à prudência implicam quase sempre as
noções de bom juízo – “confiando na vossa prudência, criarei coragem para dizer o
que penso” (Arte da Guerra)359 –, celeridade decisória e desembaraço na ação,
como na Storia d’Italia:

não se deve confundir – como poucos observadores das propriedades, dos nomes e
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da substância das coisas afirmam – a timidez com a prudência; nem se deve reputar
como sábios aqueles que, tomando por certo todos os perigos, agem como se todos
fossem acontecer. Não se pode chamar de sábio ou prudente àqueles que temem ao
futuro mais que se deve.360

Trata-se, assim, de um conceito diretamente associado ao aconselhamento e


à ação política – no âmbito da República de Florença, a prudência dirá respeito ao
aconselhamento nos foros de discussão (como nas já referidas pratiche) ou de
deliberação (como no Consiglio Maggiore) e à ação no exercício das diversas
magistraturas (como na Signoria). Já num principado, ou num regime stretto –
como era o caso da Florença sob o jugo dos Medici, antes da instituição do ducado
–, a ação se concentrará nas mãos do príncipe, dos condottieri e seus homens de
confiança; neste caso, caberá aos conselheiros orientar a ação principesca segundo
o bom juízo. Em todas as instâncias referidas, porém, o caráter calculativo da
prudência não se basta, isto porque o princípio do reconhecimento público orienta
a produção dos efeitos desejados. Ainda mais importante: não existe um cálculo

359
MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da guerra, III, p.98.
360
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, III, 4, p.284. “e perciò non doversi confondere,
come molti poco consideratori della proprietà de’ nome e della sostanza delle cose affermano, la
timidità con la prudenza, né riputare savi coloro che, presupponendo per certi tutti i pericoli che
sono dubbi e però temendo di tutti, regolano, come se tutti avessino certamente a succedere, la loro
102

prudencial anterior ao ornato; o discurso não é o meio transparente que dá vazão a


idéias, e sim o produto de uma complexa operação onde os elementos
convencionais mobilizados na argumentação – a disposição do discurso, o
emprego de lugares-comuns (argumentos-padrão, ou “pequenos-discursos”,
segundo definição de Lechner, de aplicação “universal”)361, as técnicas de
amplificações, etc. – estruturam a urdidura dos juízos prudenciais. É o caso, por
exemplo, da já mencionada redescrição paradiastólica: ela não é um “instrumento”
empregado por Maquiavel para justificar sua flexibilização da noção de virtù, mas
a própria condição de possibilidade de tal flexibilização, sendo incorreto separar
um hipotético “cálculo anterior” de uma técnica supostamente neutra.
Pela mesma razão, prudência e decoro letrado são indissociáveis.362 O
prudente, além de se mostrar habilitado a deliberar, sem timidez e com bom juízo,
sobre as melhores ações a seguir ou evitar num determinado momento, deverá, da
mesma forma, saber como se portar, o que dizer ou escrever segundo a ocasião –
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diante de iguais, de superiores ou de inferiores, de acordo com as hierarquias


sociais. “Se as paixões estão na natureza”, afirma João Adolfo Hansen, “a
moderação prescrita como virtude é a do decoro”.363
Erasmo, em sua Brevíssima e Muito Resumida Fórmula de Elaboração
Epistolar (1521), discute “o que convém” aos diversos tipos de cartas e epístolas,
no que diz respeito ao tratamento com inferiores – ex. de um príncipe para os
súditos, de um chefe de família para agregados, etc. –, iguais – ex. foros de
deliberação em uma República – e superiores – ex. postar-se diante de um
príncipe. Ao mesmo tempo, expõe preceitos sobre os diferentes gêneros de
epístolas a que “todas as espécies de cartas podem ser resumidas”364, equivalentes
aos três gêneros de causa da arte retórica (judicial, deliberativo e epidítico). Diz
Erasmo, sobre o gênero deliberativo:

deliberazioni. Anzi non potersi in maniera alcuna chiamare prudenti o savi coloro che temono del
futuro piú che non si debbe”.
361
Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance concepts of the commonplaces, pp. 72-73. “After the
topoi have been sighted and their treasury of invention explored, there remains one further element
of the commonplace to be defined and that is its place as a ‘speech-within-a-speech’. This concept
of the locus communis as an oratio marks its full development in amplifying virtue or vice, in
adorning and embellishing the speech, and in moving the audience to virtuous action. The
commonplace, whether it be considered as an argument, a thesis, or an oration, is a rhetorical
device brought into the main speech from outside the cause being pleaded”.
362
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39.
363
HANSEN, João Adolfo. Op. cit., p.45.
103

De início, deve-se observar que o gênero deliberativo, que também pode ser
chamado de suasório, deve ser definido com utilidade e decoro. Contudo, quando
com utilidade dizemos, com decoro também queremos seja interpretado, eis que
nada útil pode ser dito que da mesma forma decoroso não seja (grifo meu).365

Nos séculos XV e XVI, os preceitos estabelecidos na Antiguidade por


autores como Aristóteles, Cícero e Quintiliano, visando primordialmente a oratória
forense e as diversas cerimônias públicas, acabam se difundindo de forma notável
para a composição de tratados, diálogos e outros gêneros.366 A demarcação precisa
do que convém mostra-se crucial, como forma de assegurar o reconhecimento
público da dignidade dos escritos; logo, como reconhecimento da prudência de
quem os compôs. Não há prudência sem decoro: o princípio da adequação às
condições particulares do auditório e do tempo é o que os une. Afirma Cícero no
Orator,
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da mesma forma que na vida, também nos discursos o mais difícil é ver o que
convém. [...] O orador deve mirar o conveniente não só nas idéias, mas também nas
palavras. É que as pessoas em diferentes circunstâncias, de classes distintas, com
prestígio pessoal diferente, de diferentes idades, e os diferentes lugares, momentos e
ouvintes não devem ser tratados com o mesmo tipo de palavras ou idéias. Há que se
ter em conta todas as partes do discurso, da mesma forma que na vida, o que é
conveniente: e o conveniente depende do tema que se trate e das pessoas, tanto as
que falam como as que escutam (grifos meus).367

A regra, aqui, é a adaptação às circunstâncias. Decoro e prudência não


apenas se complementam: são indissociáveis. Só o prudente sabe reconhecer o que
convém diante de um auditório específico; logo, ninguém pode ser chamado de
prudente a menos que seja reconhecido como um orador discreto e honesto. O
Cortesão é um exemplo vívido da conexão entre decoro, prudência, dignidade,

364
ERASMO, Desiderio. “Brevíssima e Muito Resumida Fórmula de Elaboração Epistolar”,
p.120.
365
Idem. Ibid., p.123.
366
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.38.
367
CICERO, Marco Tulio. Orator / El Orador, I, 71.
104

discrição (discrezione), agudeza e graça.368 Castiglione defende que o cortesão


discreto deve evitar todo tipo de afetação, e “usar em cada coisa uma certa
sprezzatura que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço
e quase sem pensar”.369 A oratória não deve aparentar artifício ou excesso de
energia, constituindo-se como uma arte do justo meio, do equilíbrio e da
prudência. Alguns oradores antigos, prossegue Castiglione pela voz do conde
Ludovico de Canossa, “mostravam que seus discursos eram elaborados de modo
simples e segundo o que lhes sugeriam a natureza e a verdade, menos que o estudo
e a arte”.370 A dissimulação do artifício é um registro de prudência: um orador
gracioso e discreto conquistará facilmente as benesses do seu público.

Boa parte da educação humanista se baseava nos estudos associados às “boas


letras” – leitura, memorização e composição em acordo com as autoridades
clássicas.371 Como defende Victoria Kahn, os humanistas concebiam as práticas
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letradas como uma forma de prudência em si, e não apenas como produtos
materiais da prudência de determinados homens.372 “Assim como Salutati”, afirma
a autora, “Giovanni Pontano afirmou que o decoro literário ou retórico pode
educar o leitor na virtude da prudência, tanto porque provê exemplos temáticos de
ações prudentes do passado como porque as habilidades de julgamento e
discernimento envolvidas na composição e interpretação de uma obra literária são
similares àquelas envolvidas na reflexão prática sobre nossas ações”.373
Deste modo, pode-se dizer que eram definidos como prudentes não apenas
os homens honestos que participavam com dignidade da vida pública de suas
cidades, os conselheiros de príncipes e das magistraturas republicanas, mas
também os homens de letras – especialmente os que procuravam registrar, em seus
textos, o difícil percurso do cálculo prudencial e da conversação sobre as coisas do

368
Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.72.
369
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão, I, p.42.
370
Idem.
371
Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p.56.
372
Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39.
373
Idem. Ibid., p.40. “Like Salutati, Giovanni Pontano claimed that literary or rhetorical decorum
can educate the reader in the virtue of prudence, both because it can provide thematic examples of
prudent actions in the past and because the skills of judgment and discrimination involved in the
composition and interpretation of a literary work are similar to those involved in practical
reasoning about our actions”.
105

mundo, de forma ornada e em acordo com o decoro letrado. “A escrita”, afirma


Castiglione pela voz de dom Federico,

não é outra coisa senão uma forma de falar que permanece depois de se ter falado, e
quase uma imagem, ou antes, a vida das palavras [...]. Mas certamente aquilo que
convém ao escrever, convém igualmente ao falar; e é belíssimo o falar que é similar
aos belos escritos.374

A forma privilegiada, nesse sentido, era o diálogo, associado à dimensão oral


do debate; porém, mesmo tratados mais “sistemáticos” como O Príncipe
reproduziam, em sua invenção, disposição e ornato, a estrutura dos discursos de
retórica deliberativa. Entendidos como performances letradas da prudência, os
textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini pressupunham “auditórios
implícitos”, ou um público inscrito nos próprios caminhos do texto. Tais
performances prudenciais só se consumam plenamente como atos de leitura ou
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práticas orais. Elas dependem da produção dos efeitos desejados no leitor; do


contrário, não haverá evento, não haverá prudência – nenhuma lição poderá ser
aprendida, nenhum caminho será seguido.
Entretanto, os percursos que levaram Maquiavel e Guicciardini da situação
de membros ativos da vida política florentina e italiana à condição de homens de
letras não foram destituídos de tensões e ambigüidades, tampouco resultaram de
escolhas bem-planejadas ou de um ideal de equilíbrio entre otium e negotium.
Diante da Fortuna, eles procuravam os remédios que pudessem não só amenizar
suas situações particulares, como também atenuar a calamità italiana iniciada em
1494. Embora não tivessem o controle do timão florentino, possuíam uma arma
formidável, a reconhecida prudência nos assuntos civis, além do engenho e da
agudeza necessários à composição de algumas das peças letradas mais importantes
do Cinquecento florentino, as quais, se não foram suficientes para lhes devolver a
almejada participação nos negócios públicos, ao menos permitiu que definissem
estratégias e intervenções que consideravam as mais apropriadas num momento de
graves turbulências.

374
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. cit., I, p.47.
3.
Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardini
como homens de letras.

Ah, Fortuna crudel, Fortuna ingrata!


Trionfan gli altri, e ne moro io d’inopia.
(Ariosto. Orlando Furioso, I, 44).

3.1
Exílio, ócio e melancolia

Ócio e negócio na Antiguidade e no Renascimento: o otio onorato. Exílio e


melancolia. O ócio sem dignidade de Maquiavel e Guicciardini.

Leonardo Bruni foi orador reputadíssimo entre os humanistas do


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Quattrocento. Tradutor de Platão e Aristóteles, chanceler da República florentina


por duas vezes, escritor de diálogos, tratados e comentários muito lidos em seu
tempo, Bruni legou copiosa epistolografia, organizada ainda em vida por ele
mesmo. Em suas cartas familiares, costumava refletir sobre a relação entre vita
negotiosa e vita otiosa; embora considerasse a participação nos assuntos da
República uma honra inigualável, Bruni não só enaltecia o estudo e a
“contemplação” como se mostrava recorrentemente desejoso de um estado ideal
de ociosidade filosófica.1
A busca pelo equilíbrio entre vida ativa e ócio filosófico não era em
absoluto uma especificidade do “humanismo cívico”. Na Ética a Nicômaco,
Aristóteles diferencia as virtudes morais – entendidas como meio-termo entre dois
vícios e próprias à participação na vida da polis e à orientação prática da ação no
mundo, sob a orientação da disposição intelectual da phronesis – das virtudes
intelectuais, associadas ao conhecimento daquilo que “não é sujeito sequer a
variações”: as verdades filosóficas.2 Entre os romanos, esta distinção é trazida
para o cerne do debate sobre a res publica; homens como Cícero, Sêneca e Marco
Aurélio, conquanto fossem personagens bastante atuantes na vida política,

1
Cf. VITI, Paolo. Leonardo Bruni e Firenze. Studi sulle lettere pubbliche e private, p.342.
2
Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VI, 1139a – 1140a.
107

deixaram vasto legado de orações, textos filosóficos, diálogos e tratados diversos,


muitos dos quais focados nas questões do retiro voluntário e do ócio filosófico.
No livro I do diálogo ciceroniano De Oratore, o personagem Antonio,
debatendo com Crasso, afirma que o orador deve guardar suas reflexões
filosóficas para os momentos de ócio.3 Segundo ele, estas não seriam importantes
no âmbito das disputas judiciais ou no debate público, pois as decisões práticas
associadas à vida civil não necessitam interrogar a todo o momento sobre o
summum bonum.4 Delimita-se, assim, a separação de duas esferas distintas, onde
ao otium é associado o estudo filosófico das verdades eternas e ao negotium
corresponde a sabedoria prática do prudente. A idéia de vita otiosa era também
comumente atrelada ao descanso da alma e ao revigoramento das agruras próprias
da vita negotiosa. Como afirma o personagem Crasso, em passagem do livro II do
De Oratore, “o ócio verdadeiro é fruto da relaxação, e não das contendas da alma
[contentio animi]”,5 o que o leva, em seguida, a argumentar que “não pode ser
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chamado de livre aquele que às vezes não está fazendo nada”.6


O verdadeiro ócio, nesse sentido, é compreendido como disposição do
homem livre, do cidadão virtuoso, o qual, nos intervalos indispensáveis entre as
fatigantes atividades públicas, dispõe de seu tempo ora contemplando as verdades
eternas ora repousando das dificuldades inerentes à vita negotiosa. Por esta razão,
não se pode atestar uma oposição entre negotium e otium nas diversas tradições
filosóficas da Antiguidade; o ócio, inclusive, era percebido como etapa necessária
de preparação para a vida pública, “ocasião propícia para se ater à companhia de
homens excelentes [optimos viros], os melhores exemplos a partir dos quais
guiaremos nossas vidas”7, como se lê no tratado De Otio, de Sêneca.
Ao contrário dos epicuristas – os quais, segundo Sêneca, defendiam a
abstenção dos negócios da res publica –, os estóicos, de acordo com ensinamento
de Zenão mobilizado pelo filósofo romano, deveriam se engajar nos assuntos
públicos, a menos que houvesse algum tipo de impedimento, como por exemplo
um estado de corrupção amplamente disseminado.8 No ócio, fundamentalmente,
dá-se o “cultivo das virtudes”, através da conversação com homens excelentes e

3
Cf. CÍCERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 224.
4
Idem. Ibid., I, 222.
5
Idem. Ibid., II, 22.
6
Idem. Ibid., II, 24.
7
SENECA. De Otio. In: Moral Essays, 28, 1.
108

do estudo dos grandes filósofos, virtudes essas consideradas decisivas na vida


pública.9 Para Sêneca, a vita otiosa permite àqueles homens engajados nos
assuntos públicos o cultivo adequado da virtus; em relação aos que optam por
servir ao que ele chama de grande res publica sem fronteiras, o conhecimento
verdadeiro, esses têm no ócio a condição propícia para o bom desenvolvimento
das disposições almejadas.10
Mesmo quando o homem é forçado a se exilar11 – experimentando então a
“pobreza, a desonra e o desprezo”12, como diz Sêneca na Consolação a Hélvia –,
ainda assim não incorrerá em indignidade, pois, segundo o filósofo, “duas coisas,
que são belíssimas, para onde quer que nos movamos, nos seguirão: a natureza
universal e nossa própria virtude”.13 Como “nada que há no mundo é estranho ao
homem”,14 a dor do exílio pode ser então substituída pelo amor ao país de
adoção.15 Tendo optado pela virtude e pela coerência consigo mesmo, nenhuma
dificuldade externa, associada aos reveses da Fortuna, poderá atormentar a alma
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de um estóico. “O sumo bem”, diz Sêneca, “é uma alma que despreza os azares da
sorte e se compraz na virtude”.16
Trata-se, como observa Pierre Hadot, de uma efetiva escolha de vida,
associada não só ao estoicismo como também às mais diversas tendências
filosóficas do período helênico, do fim da República e início da época imperial17:
o amor à sabedoria e à filosofia, condições para que o homem sinta-se em casa
mesmo no exílio. Não existe propriamente, tanto em Cícero quanto em Sêneca,
uma oposição efetiva entre ócio e negócio: embora sejam percebidos como
domínios diferentes da vida, eles devem se completar na busca pelo equilíbrio da
alma e pelo aperfeiçoamento moral. Somente aos optimos viros é facultado o otio
onorato e verdadeiro, atributo do homem livre e condição de cultivo das belas
virtudes.

8
Cf. Idem. Ibid., 30, 3.
9
Cf. Idem. Ibid., 30, 4.
10
Cf. Idem. Ibid., 31,2.
11
Sobre os exílios de Sêneca, conferir: VEYNE, Paul. Seneca, the Life of a Stoic, pp. 1-30.
12
SENECA. Consolação a Hélvia. In: Cartas consolatórias, VI, 1.
13
Idem. Ibid., VIII, 2.
14
Idem. Ibid., VIII, 5.
15
SENECA. Carta XIII. In: As relações humanas, p. 97.
16
SENECA. De vita beata, IV, 2.
17
Cf. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga, p.154.
109

No diálogo Secretum e nos tratados De vita solitaria e De otio religioso, o


humanista Francesco Petrarca discute a questão do ócio e da solidão, no horizonte
do diálogo interior do homem cristão em busca da verdade e da graça divina. Por
uma ótica marcadamente agostiniana, Petrarca, nos textos referidos, valoriza tanto
o ócio do leigo quanto aquele do religioso como lugares de reflexão, favoráveis à
meditação sobre a situação do homem no mundo, a Queda, o sentido do tempo e a
relação com a eternidade.18 Em De otio religioso, o humanista trata da solidão
monástica, com o intuído de pensá-la em bases distintas da noção de acedia, a
melancolia dos monges, considerada nos séculos finais da Idade Média um grave
pecado.19
Como argumenta Giorgio Agamben em Stanzas, a acedia decorria do
impasse entre o imenso desejo de união com Deus e a constatação da
impossibilidade de tal realização; tratava-se da alternância entre uma tristeza
angustiada e o tédio e indiferença oriundos do saber-se definitivamente apartado
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do objeto de desejo – no caso, Deus.20 O movimento de Petrarca se dá


precisamente no sentido de valorizar a solidão monástica, não como fonte de
tormentosos taedium vitae, tristitia e desidia, mas como condição de imitação
terrena da eternidade, orientação para o infinito sagrado e verdade divina; em
suma, pelo alcance de uma sensação de presença divinal, propiciada pela paz de
uma vita otiosa consagrada aos estudos e à fé.21 Como nota Francesco Tateo,
Petrarca, ao propor uma releitura da oposição otio / labor, reverte o entendimento
clássico da vita otiosa como preparação para a vida pública: apenas a vida
solitária é considerada por ele como digna de fato; unicamente pela contemplação,
o homem, desde que tenha sido apreciado com a graça divina, é capaz de lidar
adequadamente com sua condição decaída.22 “Nos esforçamos não para alcançar a
virtude como fim”, diz Petrarca em De Otio Religioso, “mas para chegar a Deus

18
Cf. TATEO, Francesco. L’ozio segreto di Petrarca, p.19. Diz o autor: “Ciò dipende dal senso
polemico dell’ozio petrarchesco, che è il luogo della riflessione e quindi anche l’occasione di
meditare sulla propria situazione di uomo costretto ad aspirare a quel luogo come unica condizione
di sopravvivenza”.
19
Cf. HERSANT. Yves. “L’acédie et ses enfants”. In: CLAIRE, Jean. Mélancolie. Génie et folie
en Occident, p.54.
20
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Stanzas. Word and Phantasm in Western Culture, p.5.
21
Cf. PETRARCA, Francesco. On Religious Leisure / De Otio Religioso, I, 7, p.65. “The way is
sweet; the end blessed. Taking time to see, to ménage leisure, to realize, and to climb, not only
with minimal effort to eternal rest, a goal which itself is highly desirable, but also through worldly
joy to eternal blessings, will grant you the reward of immense grace”.
22
TATEO, Francesco. op cit., p.113.
110

através da virtude”:23 a verdadeira glória é restrita a Deus; ao homem, cabe


contemplá-Lo.24
Tal reversão do modelo clássico incide numa nova forma de associar ócio e
liberdade. Fundamental, em Petrarca como em Agostinho, é a liberdade de
consciência, condição primeira para o diálogo interior.25 Somente a solidão e o
ócio podem tornar o homem efetivamente livre das fadigas e da indignidade da
vida terrena; somente o afastamento das coisas do mundo garante as condições
necessárias para a descoberta de si e para a perscrutação da condição humana.26 O
lugar do solitário é pensado, nesse sentido, como um altar, onde a paz se
estabelece e se eterniza num constante estado de doçura da vida, associado à fé e à
espera da graça. Desligado de seu caráter preparatório, intervalo voltado para a
busca da glória terrena, o ócio é compreendido por Petrarca como a condição
fundamental para o exercício da mais alta virtude, a contemplação da Verdade.27
Ao realizar o duplo movimento de distanciar o ócio tanto da vita negotiosa
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quanto da acedia, Petrarca abre o caminho para a associação entre otium


modestum et suave e melancolia: “Que o ócio seja moderado e suave, não
excessivo; a solidão serena, não feroz; seja assim solidão, não barbárie”.28 Ao
invés da acedia tormentosa, entra em cena o equilíbrio e serenidade da suave
melancolia do estudioso solitário, dedicado a Deus e seus mistérios. Como na
gravura São Jerônimo em seu estúdio, de Dürer, o ideal petrarquiano constrói uma
melancolia terna, livre de angústias não só por lidar adequadamente com a perda
de Deus como também por possibilitar, através da vida solitária, a construção de
um simulacro da eternidade como presença.29

23
Citado por: TATEO, Francesco. op. cit., pp.118-9.
24
Cf. VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione politica nel Rinascimento. Da Petrarca a
Machiavelli, p.117.
25
Cf. TATEO, Francesco. op. cit., p.100.
26
Idem. Ibid., p.104.
27
Cf. Idem. Ibid., p.112. “perciò l’ozio non può confondersi con l’inerzia perché risiede
nell’esercizio della più alta virtù, che non è azione in senso politico, né ‘opera’ in senso religioso,
ma contemplazione di Dio e conoscenza delle cose”.
28
Citado em: TATEO, Francesco. op. cit., p.111.
29
Cf. ALCIDES, Sérgio. “Sob o signo da iconologia: uma exploração do livro Saturno e a
melancolia, de R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl”, p.165. “A suave melancolia descrita por
Panofsky a propósito de ‘S. Jerônimo em seu estúdio” é um ideal estranho a Saturno e a
melancolia. O prazeroso isolamento do estudioso ‘com seus pensamentos, seus animais, seu Deus’
nada tem a ver com o ideal humanista que apontava para a contínua superação dos limites
impostos pela natureza do entendimento humano. A diferença entre ‘S.Paulo’ e Melancolia I é de
grau, segundo a escala de Agrippa; mas o que distingue o ‘S. Jerônimo’ de Melancolia I não é o
temperamento nem o grau, e sim o próprio espírito: na linguagem de Klibansky, Panofsky e Saxl, é
111

Em Coluccio Salutati, a serenidade do ócio petrarquiano dá lugar a uma sutil


tensão entre vita negotiosa e vita otiosa, onde o equilíbrio entre as duas
disposições afigura-se como o ideal desejável da verdadeira glória, inalcançável
em sua plenitude: “neste mundo corruptível”, diz ele na inventiva contra Antonio
Loschi, “tanta grandeza é sem dúvida impossível”.30 Embora o desejo de glória
fosse considerado por Salutati como uma fraqueza humana, reveladora da
fugacidade e inconsistência dos que não se apegam verdadeiramente aos valores
cristãos, ele é também analisado pelo humanista florentino como característica
inata dos seres humanos. Associado ao amor à res publica e à “verdadeira
ambição”, o desejo de glória mostra-se fundamental, segundo ele, para a formação
de um cidadão virtuoso.31 Ainda assim, apesar de considerar a glória humana
como inconsistente e associar a verdadeira glória à fé e aos valores cristãos,
Salutati jamais deixa de destacar o caráter decisivo do gratissimum negotium: o
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homem é um ser destinado à ação.32 O caráter cristão do sentido ideal de glória e


virtude em Salutati incide numa ambigüidade inexistente na reflexão clássica, já
que o equilíbrio entre vita otiosa e vivere civile, plenamente atestado e almejado
em Cícero e Sêneca, não pressupõe, nos escritos do humanista florentino, uma
unidade plena, haja vista a impossibilidade de superposição entre duas éticas
distintas e em muitos aspectos antagônicas: a moralidade cristã e a antiquas virtus
pagã.33
Em Leonardo Bruni, tal ambigüidade será não apenas atestada, como
permitirá uma nova associação entre ócio e melancolia, ao mesmo tempo próxima
e distante do ideal petrarquiano. Bruni teve sua carreira marcada tanto pela intensa
participação civil na vida política florentina quanto pela elaboração de diálogos e
tratados fundamentais para a afirmação da singularidade da República de

a diferença entre o erudito medieval que pretendia ‘unir-se a Deus’ e o gênio humanista que
aspirava a ‘competir com Deus’”.
30
SALUTATI, Coluccio. Invettiva contro Antonio Loschi da Vicenza, p.37. “Ma poiché in questo
mondo corruttibile tanta grandeza è senza dubbio impossibile [...]”.
31
Cf. VAROTTI, Carlo. op.cit., p.143. “Da una parte Coluccio condanna dunque con argomenti
tipici della tradizione cristiana l’aspirazione alla gloria, dall’altra pone il desiderio di gloria degli
antichi romani tra i fattori ineliminabili della loro natura, al punto che esso fu tra le componento
fondamentali dei loro moris e consuetudines”.
32
Cf. GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.85. “Salutati, though he had admitted, in keeping
with medieval tradition that contemplation is to be rated more highly than action, had projected the
beatific vision into heaven. On earth, he had insisted, man is destined for action”.
112

Florença, através do destaque de elementos que viriam a se tornar comuns entre os


humanistas do Quattrocento, como a tópica do caráter natural tanto da liberdade
quanto da igualdade entre os florentinos, decorrentes, segundo ele, da origem
republicana da cidade, fundada no apogeu de Roma.34 Tais princípios são
afirmados em textos como a Ludatio Florentinae Urbis, a Oratio in funere
Ioannis Stroze, o Dialogi ad Petrum Paulum Histrum e na História do Povo
Florentino, onde Bruni não só discorre sobre a grandeza de Florença como
procura justificar seu domínio sobre outros povos e cidades.
Por outro lado, Bruni adquiriu significativa reputação como tradutor do
grego e comentador de Platão e Aristóteles. Nesse sentido, pode-se dizer que ele
tentava afirmar, com seus escritos, um modelo bifronte de virtus. Na dedicatória a
Eugênio IV de sua tradução da Política, Bruni toma a vida de Cícero como
modelo para sua defesa do equilíbrio entre vita otiosa e vita negotiosa, ao destacar
não só suas virtudes como escritor e orador, mas também suas qualidades como
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cidadão e homem da política.35 Como em Aristóteles, a contemplação é associada


aos valores eternos, adquirindo, nesse sentido, um amplo destaque; todavia, sem a
participação política, esta seria de pouquíssima valia. No seu Diálogo a Pier
Paolo Vergerio, Bruni, pela voz do personagem Coluccio Salutati, afirma que “é
um absurdo falar consigo mesmo e examinar diversas questões entre quatro
paredes, de forma solitária, e em seguida, nas reuniões com outros homens, agir
como se nada soubesse”.36 Fica clara, nesta passagem, a mobilização da tópica
clássica do ócio como preparação para a vida ativa.
Em seu epistolário, porém, a defesa do equilíbrio entre ação e contemplação
sofre alguns reveses, como se pode perceber a partir da análise minuciosa e
erudita feita por Paolo Viti das cartas familiares do humanista aretino. Ainda que
a integração entre ócio e negócio se mantenha como horizonte ideal, Bruni
lamenta-se recorrentemente de seus fatigantes afazeres públicos, tarefas
duríssimas que, segundo ele, não lhe propiciavam o tempo necessário aos seus

33
Sobre a relação entre vida contemplativa e vida ativa entre os humanistas do Quattrocento,
conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 83-130.
34
Cf. HANKINS, James. “Rhetoric, history and ideology: the civic panegyrics of Leonardo
Bruni”. In: HANKINS, James. (org.). Renaissance Civic Humanism, p.153.
35
Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp.342-3.
36
BRUNI, Leonardo. Dialogo a Pier Paolo Vergerio, p. 49. “Ed è assurdo parlare seco stessi e
molte questioni esaminare tra quattro pareti e in solitudine, e pois nelle radunanze degli upmini
tacere come se nulla si sappia”.
113

estudos e traduções.37 Emulando o estilo epistolar ciceroniano38, Bruni constrói


um modelo ideal de vida solitária muito próximo àquele delineado por Petrarca,
com uma diferença significativa: no lugar da ênfase na contemplação (nunca
direta) de Deus, Bruni destaca preferencialmente o amor ao saber, aos estudos e à
erudição filosófica. Estabelece-se, assim, uma tensão entre vita negotiosa e vita
otiosa ainda mais forte que aquela delineada em Salutati. Se, para este, o caráter
inconciliável entre ócio e negócio, embora se fizesse presente, não fora levado às
últimas conseqüências, em Bruni ele é não só atestado como problematizado.
Conquanto as cartas familiares renascentistas, como será discutido adiante, não
possam ser tomadas como reflexos diretos de um suposto “estado de ânimo” de
seus escritores, por remeterem a tópicas da inventio retórica e regras específicas
de decoro letrado, a própria seleção do que dizer e o modo de elocução levam,
como se pode atestar pela análise de Viti, a uma ambigüidade decisiva, na medida
em que Bruni apresenta-se como desejoso de uma vita otiosa inexeqüível, perdida
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sem que nunca tenha se concretizado efetivamente.39


Se, como em Petrarca, o ócio é associado por Bruni a uma vida doce e
suave, regulada pela busca dos valores eternos através do estudo e da
contemplação, ele é configurado nas cartas familiares como desejo de retorno a
um estado ideal perdido, nostalgia do que nunca se teve. A suave melancolia do
homem de letras petrarquiano transforma-se em Bruni num ideal praticamente
inconciliável com as agruras da vida civil, condição da glória citadina. Pode-se
dizer que, para o humanista aretino, a tensão entre vita otiosa e vita negotiosa
revela-se um dado constitutivo da experiência humana, na contínua impressão de
uma perda fundamental, em grande medida irremediável. Definem-se deste modo
os primeiros contornos de uma inaudita associação entre melancolia e perda,
objeto de reflexão do filósofo neoplatônico Marsilio Ficino.

37
Cf. VITI, Paolo. op. cit., p.347. “Ma nel suo epistolario privato, a prima vista – ed, anzi, ad una
diffusa verifica di queste lettere – ci troviamo di fronti ad un Bruni che fra le due ‘vite’, quella
‘negotiosa’ e quella ‘otiosa’, per quanto in teoria, come si è visto, amedue tanto, e parimenti,
celebrate, ci appare esclusivamente proteso a condannare quei fastidiosi affari politici ad
amministrativi che lo tormentano e lo tengono lontano dal più affascinate mondo della solitaria
riflessione culturale e dell’operosità letteraria, ed a rimpiangere ed esaltare questo mondo col suo
sereno raccoglimento negli studi”.
38
Sobre as cartas familiares de Cícero, conferir: MARCHETTI, Sandra Citroni. Amicizia e potere
nelle lettere di Cicerone e nelle elegie ovidiane dall’esilio, pp. 3-99.
39
Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp. 353-4. “...molte sono le lettere in cui il Bruni, in occasioni diverse e
con vari personaggi, di fronte alla dicotomia ‘vita otiosa’ – ‘vita negotiosa’ mostra apertamente la
114

Entre os séculos XV e XVII, uma vasta literatura sobre o problema da


melancolia veio à tona na Europa, em especial após a publicação dos três livros de
Marsílio Ficino destinados à saúde do homem de letras e à magia: De vita sana,
De vita longa e De vita coelitus comparanda, posteriormente reunidos em um
único volume, intitulado De vita libri tres. Neste estudo, em especial no primeiro
livro, Ficino retoma a doutrina hipocrática dos quatro humores, associada à idéia
galênica dos quatro temperamentos.40 O humanista, porém, não se limita ao
resgate de tais preceitos. Como notam Panofsky, Saxl e Klibansky no clássico
Saturno e a Melancolia, Marsílio Ficino foi o primeiro estudioso a identificar a
concepção aristotélica da melancolia como característica dos homens
41
intelectualmente destacados com a noção platônica de “furor divino”.
Como já foi dito no primeiro capítulo, os melancólicos, para Ficino, se
fazem mais perscrutadores e atentos às sutilezas da vida e ao centro das questões
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fundamentais da existência, isto por conta da influência decisiva do planeta


Saturno. A bile negra, também chamada de humor melancólico ou simplesmente
melancolia – nesse sentido, melancolia designa tanto o estado de ânimo quanto o
humor –, possuiria destacada afinidade com o centro da Terra, por conta da
própria natureza do humor melancólico, frio e seco. Isto, porém, no que concerne
à melancolia natural, uma parte mais densa e seca do sangue: “logo, somente a
bile negra a que chamamos de natural nos leva ao bom juízo [iudicium] e
sabedoria, mas nem sempre”.42 A chamada melancolia adusta – resultante da
combustão do sangue, bile, fleuma ou da própria melancolia natural – incidiria,
segundo ele, numa predisposição contrária àquela da melancolia natural, por
afetar o julgamento e tornar os homens irascíveis e propensos a ações irrefletidas:

qualquer melancolia que derive da adustão afeta a sabedoria e a capacidade de


julgar, pois quando o humor entra em combustão e queima, ele caracteristicamente

sua preferenza per la prima, e quindi una profonda attrattiva per un’esistenza appartata, tutta dedita
agli studi...”.
40
Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANSKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp.
113-24.
41
Ibid., p. 254.
42
FICINO, Marsílio. De vita libri tres, I, V, p.117.
115

torna as pessoas excitadas e agitadas; a esta melancolia os gregos denominaram


mania [maniam] e nós chamamos de furor [furorem].43

Além de queimar, incidindo na perda do juízo, a melancolia natural poderia


tornar-se muito fria, levando o melancólico a experimentar sensações de
desesperança e temor excessivo; quando em abundância, misturando-se com a
fleuma, a melancolia tornaria o “espírito mais pesado e mais frio”.44 Evidencia-se,
segundo Ficino, a tendência aos extremos presente nos melancólicos: “muito
quente, ela produz a mais extrema audácia, mesmo ferocidade; muito fria,
contudo, leva ao medo e à covardia”.45
Na análise que fazem sobre Ficino em Saturno e a melancolia, Panofsky,
Saxl e Klibansky associam sua concepção de melancolia à idéia de genialidade,
não em sentido romântico, mas no que diz respeito à busca da distinção e da glória
universal: “para o Renascimento”, dizem, “o parentesco da melancolia com o
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gênio não era uma mera reminiscência cultural, mas uma realidade experimentada
muito antes de sua formulação humana e literária”.46 Trata-se da tentativa de se
emancipar dos limites ordinários da vida, sem que isto todavia fosse percebido
como algo plenamente possível47; mesmo homens como Leon Battista Alberti
aturdiam-se com a incapacidade de dominar completamente os resultados de suas
ações, como é possível perceber no diálogo Fatum et Fortuna. A nostalgia de um
ócio idealizado, como nas cartas familiares de Bruni, pode ser lida nessa ótica:
tratam-se, aqui, de diversas formas de conceber um hiato entre o desejo de possuir
pleno controle das próprias ações e a constatação da impossibilidade da
autonomia, questão que, conforme discutirei adiante, será decisiva em Maquiavel
e Guicciardini. De fato, como nota Giorgio Agamben ao analisar a questão da
perda em Ficino, próprio da melancolia é fazer com que um objeto inapreensível –
como o ócio de Bruni – seja dado a ler como uma perda imaginária.48

43
Idem.
44
Ibid., p. 119.
45
Idem.
46
Cf. PANOFSKY; SAXL; KLIBANSKY, op. cit., p.246.
47
Cf. Ibid., p.249. “Así, de la situación intelectual del humanismo – es decir, de la conciencia de
libertad experimentada como una sensación de tragedia – surgió la idea de un genio que
reclamaba, cada vez con mayor apremio, emanciparse en su vida y obras de los criterios de la
moralidad ‘normal’ y de las reglas comunes del arte”.
48
Cf. AGAMBEN, Giorgio. op. cit, p.25. “The imaginary loss that so obsessively occupies the
melancholic tendency has no real object, because its funeral strategy is directed to the impossible
capture of the phantasm”.
116

Na mesma linha, Juliana Schiesari defende que Ficino, mais em De Amore


que no De vita libri tres, leva ao primeiro plano a associação entre melancolia,
perda e desejo.49 Se, como argumentei, a fé e a esperança na graça divina
garantem em Petrarca as condições de possibilidade de uma paz suave, simulacro
da presença de Deus, em Ficino o conhecimento da verdade configura-se como
um desejo de presença associado à anamnese do Um, processo lento e repleto de
inquietações.50 Conhecer, nesse sentido, é lutar contra o esquecimento e
recuperar-se da perda. Não há suavidade em tal processo, muito pelo contrário.
Em Petrarca, Deus, embora inalcançável, não é um objeto perdido; em Ficino,
todavia, o Um é o próprio objeto perdido e desejado que deve ser novamente
alcançado. Diz Schiesari que, “assim como todo o conhecimento é reduzido à
anamnese, do mesmo modo aquilo que se ama na pessoa amada é também o que a
pessoa amada desperta no amante”.51 A melancolia amorosa decorreria, assim, do
desejo por uma unidade inalcançável, segundo a análise da autora.52 Esta
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associação entre melancolia e perda, pensada por Freud séculos depois em termos
bastante distintos, se faz presente em muitos dos humanistas, e não
necessariamente no sentido da perda amorosa – tanto o otio onorato de Cícero e
Sêneca quanto o otium modestum et suave de Petrarca são concebidos, no
Quattrocento e no Cinquecento, como objetos inalcançáveis.
Já nos primeiros decênios do século XVI, período da chamada calamità
italiana, superpõem-se à recorrente nostalgia de um equilíbrio inalcançável entre
ócio e negócio análises sobre a destruição da autonomia política e
recrudescimento dos poderes do acaso, da contingência e do inesperado,
associados à Fortuna. A perda, para alguns, deixa de ser intuída como nostalgia
de um desejo “metafísico” de unidade plena com o divino e passa a ser encarada
como embate contínuo contra forças imprevisíveis da realidade.

Em Maquiavel, o afastamento compulsório da vida pública, mudança de


afetos, distanciamento de tudo que dava sentido à sua existência, constitui o ponto

49
Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.111.
50
Cf. Idem. Ibid., p.116. “Knowledge, then, can never be the acquisition of ‘new’ insights; it can
only be the remembering of what was once known but has been forgotten”.
51
Idem. Ibid., p.119.
52
Cf. Idem. Ibid., p. 127. “Not only is the state of lack associated with melancholia, an extreme
state brought on by love, but – again as in the case of Socrates – those who are ‘melancholy by
117

de partida para uma possível associação entre sua visão negativa do ócio, a
melancolia e a experiência do exílio. Nas margens do autógrafo do opúsculo Dello
ordinare lo stato di Firenze alle armi, o ex-secretário redige três palavras que
ficarão associadas por séculos à sua desventura: Post res perditas.53 De acordo
com Roberto Ridolfi, “amargo era o vexame, pungente a injustiça, depois de ter
servido à República com tamanho zelo e fidelidade, angustiada a visão do futuro,
insuportáveis os primeiros tempos de ócio para aquele homem de muitas
tarefas”.54 Se para Petrarca, Bruni e Ficino, o ócio, em suas diversas acepções,
representava a condição de possibilidade para a busca infinda de algo
simultaneamente perdido e inalcançável, em Maquiavel ele se revela um obstáculo
intransponível à verdadeira glória, aquela obtida no serviço da República. Trata-se
de uma perda irreparável, da impossibilidade de perseguir os objetivos
considerados por ele como dignos e honrosos.
A questão da vita otiosa, pouco tematizada pelo secretário nos opúsculos,
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cartas e legações oficiais anteriores a 1512, adquire algum destaque nos escritos
posteriores ao exílio compulsório. Nos Discorsi, os ociosos são comparados aos
ímpios, covardes, inúteis, aos destruidores de religiões, inimigos das virtudes, à
corrupção de toda espécie, enfim.55 Ócio torna-se sinônimo de indolência,
efeminação, recusa das agruras da atividade militar, ambição desmedida por
riquezas e luxos e afastamento da verdadeira glória; ociosos são, por exemplo, os
gentiluomini pouco afeitos ao trabalho árduo e à virtù, indivíduos perigosos em
qualquer República por sua falta de apego ao bem comum.56 Ócio ambicioso,
associado por Maquiavel ao homem corrompido de seu tempo; juntamente com os
parcos conhecimento das histórias antigas e com a fraqueza oriunda dos valores
cristãos, o ócio forma a tríade decisiva que leva à corrupção dos costumes e

nature’ (and not just as a contingent or accidental effect of love) are said to be more prone to
falling in love”.
53
Cf. RODOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p.157.
54
Idem.
55
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44. “São, ao contrário, infames e detestáveis os
homens que destroem religiões, dissipam reinos e repúblicas, inimigos das virtù, das letras e de
qualquer outra arte que confira utilidade e honra à espécie humana; tais são os ímpios, os
violentos, os ignorantes, os incapazes, os ociosos, os covardes”. (grifo meu).
56
Idem. Ibid., I, 55, p.161. “E, para esclarecer o que é chamado de gentil-homem, digo que gentis-
homens são chamados os que vivem ociosos das rendas de suas grandes posses, sem cuidado
algum com o cultivo ou com qualquer outro trabalho necessário à subsistência. Esses são
perniciosos em todas as repúblicas e em todas as províncias, porém mais perniciosos são aqueles
que, além de terem as fortunas de que falamos, comandam em castelos e têm súditos que lhes
obedecem” (grifos meus).
118

proliferação dos vícios nas cidades italianas.57 Também em O Príncipe o ócio é


visto como condição propícia à degradação: “um príncipe sábio deve observar
comportamento semelhante e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz”.58
Tanto nos Discorsi como no opúsculo sobre os principados, o ócio é tratado como
fator condicionante do desapego à antiquas virtus.
A vita otiosa a que fora compulsoriamente relegado a partir de setembro de
1512 configura-se para Maquiavel como uma existência indigna, distante do ideal
verdadeiro da participação política; seu próprio ócio enforma, nesse sentido, a
lente a partir da qual vislumbrará uma idéia de República perdida. Pode-se dizer
que tal República não se constitui, para Maquiavel, somente como aquela de seu
passado recente como segundo secretário. Existem dois níveis articulados de
perda: o primeiro, mais imediato, refere-se à reviravolta de sua vida após a
restauração dos Medici em 1512; o segundo nível corresponde a um ideal
republicano associado a um modelo de virtus visível tão somente nas histórias dos
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antigos, em especial em Tito Lívio e Salústio. Semelhantes desqualificações do


ócio também se fazem presente em Guicciardini: na Oratio Consolatoria, escrita
em 1527, logo após seu afastamento da vida pública, a via estóica da resignação é
prontamente recusada, isto porque os bens da Fortuna são por ele considerados
valorosos.
O ócio é visto por Maquiavel e Guicciardini como algo abjeto, obstáculo
intransponível à realização de um certo modelo de vida, especialmente após o
exílio compulsório e distanciamento forçoso das atividades públicas. Ao mesmo
tempo – ironia trágica –, ele é a condição de possibilidade para que ambos
viessem a exercer plenamente o papel de homem de letras, produzindo alguns dos
escritos mais expressivos da tradição ocidental. Trata-se, porém, de uma lenta e
descontínua metamorfose, do ócio visto como algo indigno à aceitação do papel
de litterati, o que, especificamente no caso de Maquiavel, precisou envolver o
“cancelamento” de uma imagem-de-si cuidadosamente construída em longo e
sólido processo de formação de valores – no sentido proposto por Stephen
Greenblatt de uma ambigüidade constitutiva entre self-fashioning e self-

57
Idem. Ibid., I, proêmio, p.6. “E creio que isto provém não tanto da fraqueza à qual a atual
religião conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio fez a muitas regiões e cidades
cristãs [...]” (grifo meu).
58
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XIV, p.72.
119

cancellation, a modelagem de um papel público e o desejo, no caso de Maquiavel


a necessidade, de cancelar esta imagem e forjar uma outra.59
Em suas trocas epistolares com Francesco Vettori entre 1513 e 1515, post
res perditas, a autocomiseração, a melancolia e a tematização da perda associada
ao exílio forçado são constantemente abordadas por Maquiavel. Ao mesmo
tempo, ele vislumbra para si, em certos momentos, uma nova identidade, a do
homem de letras, a qual não se configurará plenamente antes dos primeiros anos
da década de 1520, e mesmo assim jamais chegará a constituir uma conquista
pacífica, um estado de tranqüilidade associado à recusa voluntária da participação
nos assuntos públicos. Também Guicciardini, na Oratio Consolatoria – composta
em 1527 no exílio compulsório, após o saque de Roma e a desgraça de Clemente
VII –, abordará as tópicas da perda e do afastamento do que até então lhe fora
mais importante. Cabe frisar, uma vez mais, que ócio literário e vita negotiosa não
eram considerados mutuamente excludentes segundo as diversas tradições antigas
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ou mesmo renascentistas – embora nestas se possa atestar uma certa tensão no


tratamento do assunto. No período de chancelaria, Maquiavel redigiu os
Decennali, poema histórico; Guicciardini, nos intervalos de suas ocupações,
dedicou-se à composição de diversos tratados sobre o governo de Florença,
inclusive o Dialogo, erigido segundo os preceitos retóricos concernentes ao
gênero. O afastamento compulsório da vida pública, porém, fez com que o
caminho das letras se configurasse para ambos como um produto da necessidade,
do acaso, associado às mudanças de vento da Fortuna.

59
Cf. GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-fashioning. From More to Shakespeare, p.13.
120

3.2
Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a Consolatoria
de Guicciardini.

O gênero epistolar no Renascimento. A melancolia como tópica da inventio nas


cartas de Maquiavel a Vettori. O secretário diante da Fortuna. A recusa da via
estóica na Consolatoria de Guicciardini.

No dia 31 de janeiro de 1515, Maquiavel escreve a Francesco Vettori,


embaixador da República Florentina junto a Roma sob o papado de Leão X.
Mostra-se desanimado e abatido, como se tivesse definitivamente optado pela
resignação diante dos caprichos da Fortuna, a quem culpava pelas perdas e
intempéries de que fora vítima nos últimos anos. Procurando aparentar
acomodação aos novos tempos, vis e indignos segundo seus critérios, o ex-
secretário diz a Vettori que os grilhões impostos pela deusa lhe parecem agora
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“doces, leves e pesados”. Após dois anos de afastamento dos afazeres da


chancelaria, ele afirma não imaginar outro cotidiano que não o seu. O embaixador
não responde a esta carta, e dessa maneira as trocas epistolares são suspensas por
um bom tempo, aparentemente até 1521, quando o ex-secretário envia ao então
gonfaloniere Vettori uma mensagem bastante curta e formal, retomando, sem o
mesmo afinco e regularidade, o antigo hábito da escrita mútua. O que teria levado
Vettori a não responder à carta do secretário e Maquiavel a não retomar o diálogo
epistolar?
Entre os anos de 1513 e 1515, os dois mantiveram uma extensa
correspondência, onde discorriam sobre os mais variados assuntos – da situação
política italiana às peripécias amorosas de que tomavam parte, passando pela sutil
ironia ou deslavada galhofa em relação a qualquer um que se lhes revelasse um
alvo propício.60 Já em 1508, muito antes da restauração dos Medici, Vettori e
Maquiavel estreitavam laços enquanto participavam conjuntamente de uma
importante missão junto ao Imperador Maximiliano, fomentando uma relação
fundada no respeito mútuo e gostos privados similares.61 Ainda assim, é preciso
notar, nunca deixou de haver entre eles um desnível hierárquico patente, resultado

60
Como percebe Maria Luisa Doglio, as cartas privadas eram, para Maquiavel, não apenas
instrumentos de comunicação, mas também lugares específicos para construir uma imagem-de-si.
Cf. DOGLIO, Maria Luisa. “Varietà e scrittura epistolare: le lettere del Machiavelli”, p. 336.
121

das diferenças de extração familiar: não se poderia imaginar que Vettori, filho de
uma das mais importantes famílias florentina, e Maquiavel, membro de um clã
respeitável, porém apartado das grandes glórias, pudessem estabelecer entre si
relações absolutamente livre de protocolos, em acordo com a noção moderna de
intimidade.62 As cartas trocadas por ambos refratam a todo o momento esta
hierarquia, como se pode atestar pelo emprego específico de certos preceitos
concernentes ao tratamento com superiores, iguais ou inferiores, conforme
definidos em tratados destinados ao gênero epistolar.
Embora a chamada “nova epistolografia” do humanismo italiano tenha
flexibilizado as preceptivas medievais da ars dictaminis, recuperando o
entendimento ciceroniano da carta familiar como amicorum mutuus sermo,
diálogo entre amigos ausentes63, a atinência a ditames e modelos das autoridades
antigas e humanistas não fora de modo algum abandonado.64 Como afirma
Erasmo, em tratado sobre epistolografia datado do início do século XVI, escrever
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uma carta equivalia a “sussurrar num canto com um amigo” sobre matérias as
mais diversas.65 O remetente deveria, inclusive, construir cuidadosamente seu
despojamento: “com efeito”, diz Erasmo, “o estilo epistolar deve ser simples e
mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido estudado”, de modo a
parecer “não trabalhado e quase improvisado e sem preparação”.66 Esta sentença
erasmiana pode ser tomada pelo analista contemporâneo das correspondências
renascentistas como um “sinal amarelo” em relação às possíveis familiaridades
entre o gênero epistolar quinhentista e a correspondência privada moderna:
enformando o aparente descuido de um diálogo entre amigos distantes, existe um
conjunto de silêncios eloqüentes, marcas da diligência negligente trabalhada com

61
Sobre esta missão, conferir: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 119-29.
62
Como nota Maurizio Viroli, Maquiavel costumava se dizer pobre, o que não significa dizer que
sua família não tivesse alguns bens e reputação estabelecida em Florença. O pai de Maquiavel,
Bernardo, ainda que fosse um advogado de poucos recursos, era respeitado nos círculos eruditos
da cidade de Florença, tendo sido representado inclusive como um dos personagens de um diálogo
do humanista e chanceler da República Bartolomeo della Scala. Nesse sentido, diz o autor: “Ao
definir-se como pobre, Maquiavel se colocava entre os que não pertenciam a grandes famílias e
estavam, portanto, excluídos de serem eleitos aos cargos públicos ou de alcançar fortuna nos
negócios”. Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau. História de Maquiavel, p.20.
63
Cf. FUMAROLI, Marc. “Genèse de l’épistolographie classique”, p.887.
64
Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros, p.24.
65
Cf. Idem. Ibid., p.25.
66
ERASMO, Desiderio. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar, p.112.
122

afinco, as quais não devem ser confundidas, como Erasmo mesmo advertia, com a
simples espontaneidade.67
Como afirma Richard Trexler, não havia “sinceridade sem forma e forma
sem sinceridade”, uma vez que as convenções marcavam a condição de
possibilidade da conversa civil e urbana entre homens públicos.68 Assim, muitos
dentre os humanistas dedicados à discussão do gênero epistolar, como Aeneas
Sylvius, Francesco Negri, Poliziano, Pietro Aretino, Erasmo e Justo Lípsio,
conquanto destacassem a diversidade de estilos e matérias no gênero epistolar – a
“infinidade das formas possíveis”, segundo definição de Erasmo69 –, prescreviam
um conjunto de regras visando marcadamente à afirmação do decoro letrado e
prudência do remetente. Justo Lípsio, em seu A arte de escrever cartas (1590),
resume a cinco os preceitos do sermo humilis epistolar quanto ao “modo de estilo
e de elocução adequado à carta”. Se, “quanto à matéria, é totalmente um assunto
de moderada prudência”70, no que diz respeito ao estilo o remetente deve
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privilegiar a brevidade do relato, a clareza, simplicidade, elegância e o decoro.


“Como na conversação ou na narração”, afirma Lípsio, “na carta é odiosa a
tagarelice”.71 É preciso acima de tudo ater-se à justa medida:

No entanto, viso à medida apropriada à matéria. Se é uma carta Séria ou Erudita,


desejaria alguma coisa mais difusa e alguma gravidade das palavras poderia ser
acrescentada à própria matéria grave. Se é Familiar, condensa: e assuntos variados
e superficiais tu não deves sobrecarregar com um estilo rebuscado.72

Fundamental em uma carta, argumenta Lípsio, é “adequar a tua pessoa e o


teu estilo, visto que o ponto capital da arte é escrever convenientemente”,73 o que
leva à questão do decoro: saber o que convém dizer no momento certo para a
pessoa certa, evitando a desarmonia e o desequilíbrio do discurso, era decisivo
para a afirmação da prudência do remetente. “Por decoro”, afirma Lípsio,

67
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.890. “Elle est d’autant plus souhaitable pour Erasme qu’il doit
combattre un autre adversaire que les Artes dictaminis, et leur légalisme excessif ; c’est un certain
spontanéisme qui abandonnerait l’art de la lettre privée, genre sans valeur littéraire, à une
négligence sans diligence”.
68
TREXLER, Richard. Public life in Renaissance Florence, p.132.
69
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.889.
70
LÍPSIO, Justo. A arte de escrever cartas, p.141.
71
Idem. Ibid., p.142.
72
Idem.
123

“entendo aquilo que os gregos chamam adequação; encontra-se numa carta


quando alguma coisa está adequada e apropriadamente escrita”. Dois aspectos são
assim destacados: a pessoa e o assunto.

Quanto à pessoa, esta tem enfoque dúplice: com respeito a ti mesmo e a quem tu
escreves. Já o assunto, em qualquer caso, é simples: qualquer coisa deve concordar
com o conteúdo, e as vestes da sentença e frases devem ser adequadas às estruturas
do assunto.74

O decoro envolve sempre uma relação entre duas partes, pautada por
critérios de conveniência; assim, como afirma Marc Fumaroli, próprio do decoro é
que a posição social e a posição institucional determinem inteiramente o ritual de
trocas epistolares, marcando tanto o estilo quanto a matéria do discurso.75
Atualizam-se dessa maneira na correspondência diversos “níveis hierárquicos de
conveniência discursiva e extra-discursiva”, pautados pela harmonia do discurso e
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pela prudência e agudeza das sentenças do remetente, atestadas e construídas


como adequação conveniente a certos lugares, conformes aos posicionamentos
hierárquicos do remetente e do destinatário.76
Pode-se dizer que o desnível hierárquico visível no epistolário Maquiavel-
Vettori constitui a própria condição de possibilidade da fala, pois delimita o
tratamento, a matéria e o estilo empregados por ambos. John Najemy, em estudo
cuidadoso, sustenta que “as cartas de Maquiavel e Vettori estavam imersas nas
tradições retóricas e literárias da epistolografia antiga e humanista”.77 A inventio
envolve, nesse sentido, a reprodução de tópicas retóricas em todas as etapas do
comércio epistolar, da saudação ao lacre; envolve também a seleção conveniente
do que dizer, no sentido de produzir no destinatário um afeto relativo à posição do
remetente.
Com base nestas questões, acredito ser possível pensar a melancolia na
correspondência ativa de Maquiavel como uma tópica, ou um conjunto de tópicas,

73
Idem. Ibid., p.143.
74
Idem. Ibid., pp.146-7.
75
Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., pp.887-8. “Il s’agissait d’un decorum officiel, mettant en
rapport deux personnages dont le range social, la position institutionelle, determinait entièrement
le rituel de l’échange”.
76
Cf. HANSEN, João Adolfo. “Introdução. Cartas de Antonio Vieira (1626-1697)”, p.37.
77
NAJEMY, John. Between Friends, p.23.
124

de sua inventio epistolar. Empregada na escolha do que falar e de como falar, ela
ajuda a marcar uma posição verossímil sobre sua nova realidade, a vita otiosa
desonrada, sendo construída retoricamente como condição associada à perda da
vida pública e dependência em relação a outros homens e à Fortuna. Ela se
associa, portanto, à constatação de um hiato entre o desejo de autonomia e a
consciência da impossibilidade de controlar o próprio destino, em acordo com os
desdobramentos pensados por Ficino acerca do desejo por uma unidade
inalcançável e a perda decorrente de tal incompletude – no caso de Maquiavel,
não apenas a perda do cargo, mas a constatação do caráter inexeqüível de seu
ideal de República. Trata-se, aqui, não da identificação e diagnóstico de uma
compleição e temperamento correspondentes ao homem Maquiavel, mas da
análise da maneira particular com que este se vale de imagens amplamente
difundidas associadas à melancolia, como a incompletude, o abatimento, as
variações de humores, o sofrimento amoroso, etc.
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A melancolia, como percebe Juliana Schiesari, possui um caráter


essencialmente teatral, estando associada à produção de uma representação de si78
– talvez por isso ela tenha sido tão bem sucedida no teatro elizabetano, ao ser
caracterizada em personagens como Jacques e Hamlet.79 Nesse sentido, pode-se
dizer que a seleção de tópicas ligadas à melancolia nas cartas de Maquiavel a
Vettori visa ao reforço da compaixão do destinatário, o que remete ao
posicionamento adotado pelo embaixador na primeira carta enviada por ele após
ter recebido notícias do secretário.
Diante daquele a quem passa a tratar como protetor, Maquiavel procura
demonstrar constrição e sofrimento, forjando em certos momentos um
distanciamento decoroso rejeitado por Vettori, que não deixa de explicitar seu
desconforto diante de tais situações. O embaixador procura, em inúmeras
situações, definir uma igualdade entre ambos, na forma de relação de amizade
pautada pelo critério ciceroniano da harmonização de preferências, gostos e
princípios, os quais tornam todo e qualquer sentido utilitário, como favores e
pedidos, amplamente descabidos.80 Dá-se, assim, um desnível de expectativas:

78
Cf. SCHIESARI, Juliana. op. cit., p. 236.
79
Cf. LYONS, Bridget Gellert. Voices of Melancholy, p.11.
80
Cf. CICERO, Marco Tulio. Da Amizade, IV, 15. “Entretanto, quando me vem à mente a
amizade que nos unia, tal é a minha satisfação que julgo ter sido venturoso, uma vez que convivi
com Cipião. Com ele dividi preocupações políticas e da vida privada; com ele atravessei tempos
125

Maquiavel confia na proteção de Vettori; por essa razão, constrói em algumas de


suas cartas, especialmente naquelas em que solicita ao embaixador intervenção
junto aos Medici, um tratamento próprio ao comércio com superiores, ainda que
moderado e sutil. Vettori, por sua vez, conquanto tenha oferecido proteção na
primeira carta por ele remetida após a soltura do secretário, passa a rejeitar
sistematicamente tal posição, visando à construção de um outro decoro: o ânimo
cordial entre iguais, pautado pela agudeza dos conceitos e simplicidade casual.81
Esta situação implica uma recorrente tensão, relativa à dificuldade revelada por
ambos para situarem-se adequadamente diante do outro, de escolher a forma
propícia de reproduzir nas trocas epistolares alguma estabilidade. As cartas
alternam-se, assim, entre pedidos formais de Maquiavel, recusas de Vettori,
tratamento cordial e agudo quando falam de seus casos amorosos, gravidade
prudente na discussão das “coisas do mundo”, sem que, à diversidade das
matérias, correspondesse uma estabilidade no tratamento.
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Tomando por base tal variedade, discutirei a seguir a construção da


melancolia nas cartas de Maquiavel endereçadas a Vettori, com atenção especial a
dois pontos: o debate sobre o papel da Fortuna nos assuntos humanos, associado à
problematização da perda do mundo público, e também à lenta e descontínua
produção, da parte do secretário, de um novo “lugar” para si, associado à escrita e
à prudência letrada.

Maquiavel e Vettori representavam alguns papéis no trato com o outro, o


que não implica dizer que entre eles houvesse necessariamente fingimento ou
ausência de sinceridade. Tais posições constituem condições da fala, e marcam a
possibilidade de situar-se em diversas dinâmicas sociais a partir de um lugar
específico. Precisamente por esta razão, o epistolário revela grande riqueza de
silêncios e recusas, na medida em que Vettori possui claramente um papel ativo
na correspondência, delimitando o material adequado e inadequado às cartas.82 O

de pa e guerra. E, o que constituiu a essência de toda amizade, nossas preferências, gostos e


princípios se harmonizavam perfeitamente”.
81
Cf. HANSEN, João Adolfo. op. cit., p.47. Diz o autor, sobre Vieira: “Assim, quando escreve
para superiores, aplica termos de submissão, reverência, humildade, obediência, súplica e
obséquio. Dirigindo-se a iguais, trata-os com termos corteses e civis, correspondentes a um ânimo
cordial”.
82
Cf. NAJEMY, John. op. cit., pp. 3-17. Diz o autor: “His letters of 1513 (not unlike The Prince, I
will argue) are filled with swerves and inconsistencies, inventions and projections, leaps and
126

que não implica dizer que eles não se tratassem em boa parte do tempo como
iguais, especialmente em duas situações: em assuntos de amor e luxúria, onde a
discussão era caracterizada pela agudeza das sentenças, bom-humor e leveza, e na
análise prudente das “coisas do mundo”, invariavelmente construída em estilo
grave.
Nas referidas situações de tensão, contudo, o desnível social se expunha em
toda a sua força, acrescido das recusas silenciosas de cada um de adotar o papel
que o outro lhe tentava atribuir. Em diversas ocasiões, Maquiavel tenta convencer
o embaixador a intervir em seu favor junto aos Medici, para que pudesse sair do
ostracismo, mas Vettori parece não lhe dar ouvidos nessas horas: freqüentemente
responde com evasivas, promessas incertas e longas digressões sobre a falta de
autonomia do homem diante dos caprichos da Fortuna. Nessas horas, o
argumento do humanista Leon Battista Alberti de que, no rio do destino, as
grandes famílias tendiam a naufragar mais facilmente que as “embarcações
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pequenas”, quando expostas aos caprichos da Fortuna, deveria parecer ao ex-


secretário incrivelmente falacioso.83 Conquanto ambos tivessem servido fielmente
ao gonfaloniero Soderini no período republicano, os efeitos do retorno dos Medici
à cidade foram por eles sentidos de forma incrivelmente desigual: enquanto
Francesco Vettori fora nomeado embaixador da República Florentina em Roma84,
um cargo que, apesar da pouca importância estratégica – sua função era a de
representar os Medici de Florença junto aos Medici da cúria papal –, retinha alto
valor simbólico, ao ex-secretário coube a prisão, a tortura, e, ainda pior, a
invisibilidade, o ostracismo político, um resto de vida forçosamente apartado dos
anseios da glória e da honra pública.
Diante das insistências de Maquiavel – sendo a mais famosa o pedido para
que o embaixador oferecesse ao papa seu recém-redigido opúsculo sobre
principados –, e também porque fazia questão de frisar seu enfado diante da cena
política romana, Vettori tenta seguidamente evitar discussões sobre as “coisas do
mundo”. As contendas políticas revelavam-se cada vez menos agradáveis ao
embaixador, especialmente a partir do segundo semestre de 1514, embora

contradictions, whose cumulative effect conveys the impression if a good deal of doubt and
hesitation in the face of certain dilemmas”, p.3.
83
Cf. ALBERTI, Leon Battista. “O Destino e a Fortuna”. In: BIGNOTTO, Newton. Origens do
republicanismo moderno, p.298.
127

tivessem sido bastante usuais ao longo do ano de 1513. Ao invés de discorrer


sobre assuntos políticos, Vettori prefere se ater às suas aventuras eróticas – a
ponto de afirmar, em carta datada de 16 de Janeiro de 1515, que o mundo nada
mais é que amor e luxúria.85 Ele demonstra entusiasmo especial com relatos bem-
humorados e maliciosos de Maquiavel; contudo, quando o assunto em questão é a
carreira política do secretário, e suas perspectivas de voltar a ocupar uma função
pública, Vettori opta pelo silêncio ou por evasivas.
Maquiavel procura, em suas cartas, corresponder aos anseios do
embaixador; recorrentemente, porém, destaca as amarguras do exílio. Também
insiste na eficácia e propriedade de seus conselhos, que a seu ver poderiam ser de
grande valia para os Medici naqueles dias turbulentos. Vez ou outra tenta
demonstrar suas habilidades analíticas, mas Vettori quase sempre dá pouco
destaque a estas digressões – discordando inclusive de muitas considerações e
pontos de vista do secretário.
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Cerca de um mês antes da suspensão das trocas epistolares, em dezembro de


1514, Maquiavel envia ao embaixador um longo texto, onde comenta a grave
situação italiana e os perigos que o papa enfrentaria no jogo político europeu caso
optasse pela neutralidade entre França e Espanha. Em sua resposta ao documento,
Francesco Vettori – que havia ele mesmo solicitado ao amigo tal análise –, prefere
se ater a outras questões, ora muito gerais (como o imenso poder da Fortuna nas
coisas humanas), ora bastante pontuais (a resposta sobre um pequeno favor que o
secretário lhe solicitara, para que interviesse em Roma a favor dos negócios de um
certo Donato del Corno). Quanto à possibilidade de conseguir um posto político
para Maquiavel, o embaixador esquiva-se uma vez mais, agora com clareza
incomum, deixando evidente, de modo cordial, que preferia não fazer pedidos aos
seus protetores: “Parece-me que estou em boas graças com o papa e os outros
Medici, de quem todavia nada peço. Para me manter, gasto o salário que a lei me
atribui, e no fim do mês resta-me pouco” (grifo meu).86 Sobre o documento

84
Sobre a vida e obra de Vettori, conferir: JONES, Rosemary Devonshire. Francesco Vettori.
Florentine Citizen and Medici Servant.
85
Carta de 16 de Janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco Vettori e a
Francesco Guicciardini, p.281. “Poi, pensando intra me medesimo che questo mondo non è altro
che amore, o, per dir più chiaro, foia, mi ritenni”.
86
Carta de 15 de Dezembro de 1514. Ibid., p. 269. Trecho em latim, que é traduzido desta
maneira: “Mi pare di essere in buona grazia presso il papa e gli altri Medici, cui pure non chiedo
nulla. Per mantenermi, spendo il salario che la legge mi attribuisce, e a fine mese non me ne
avanza nulla”.
128

redigido pelo amigo, argumenta que ainda não pudera mostrá-lo às autoridades
competentes.87
Impaciente, Maquiavel não consegue aguardar a resposta de Vettori a seu
documento (resposta esta que o embaixador expedira no dia 15, ou seja, apenas
cinco dias após Maquiavel ter-lhe remetido o pequeno texto). Inicia uma carta
complementar, datada de 20 de dezembro de 1514, com as seguintes palavras:
“Magnífico embaixador. Como vós tivésseis me incitado, se eu vos aborreci com
meu escrito, diga: seja eu o culpado, que o requeri”.88 Trata-se de tópica muito
comum, não só em cartas familiares como também em dedicatórias e proêmios de
escritos dos mais diversos gêneros – o próprio Maquiavel se valerá dela nos
Discorsi. Em seguida, reitera os pontos de vista defendidos na carta anterior,
especialmente a crítica ao princípio da neutralidade, como se pretendesse
complementar e melhor fundamentar a argumentação anterior. Contudo, ao
receber, ainda naquele dia, a resposta de Vettori – logo após ter-lhe enviado a
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carta onde reafirma seus pontos de vista –, Maquiavel se vê obrigado a mudar de


postura, isto porque, dessa vez, Vettori não adota o silêncio como estratégia: ao
afirmar que nada poderia solicitar junto aos Medici, o embaixador praticamente
enterra as expectativas políticas de Maquiavel de se fazer ver em Roma ou
Florença, isto porque Vettori representava, naqueles dias, a melhor conexão do
secretário com o mundo público. Diz Maquiavel, na segunda carta remetida a
Vettori no dia 20 de dezembro de 1514:

Eu vos agradeço novamente por todas as ações e por todos os pensamentos que
tenhais tido por amor a mim. Não vos prometo recompensas, porque já não creio
que possa fazer bem nem a mim nem aos outros. E se a fortuna tivesse desejado
que os Medici, ou em assuntos internos de Florença ou em política externa, ou em
assuntos deles, particulares ou públicos, tivessem me recomendado, eu estaria
contente. Todavia, eu ainda não me encontro completamente privado de
esperanças. E se isto tivesse acontecido e então eu não soubesse me manter, eu me
lamentaria; mas o que há de ser, será. E a cada dia reconheço que é verdade o que
disseste, sobre o que escreve Pontano: quando a fortuna nos leva a uma

87
Cf. Idem. “L’altra che mi risponde a’ quesiti vi feci, hebbi hieri. Anchora non l’ho monstra a
ninsignor de’ Medici, el quali mi commisse ve li facessi: creddo che satisfaràm perché satisfà
anchora a me: quando l’haró monstra, vi risponderò quello mi dirà”.
129

determinada direção, coloca diante de nós uma vantagem imediata ou temor


imediato, ou ambos simultaneamente; acredito que estas duas possibilidades sejam
os maiores inimigos àquela posição que sustento em minha carta. (grifos meus).89

Aqui, Maquiavel acata um certo entendimento acerca do papel da Fortuna


na vida dos homens, associado ao humanista napolitano Giovanni Pontano, cujo
tratado Sulla Fortuna havia sido lido por Vettori, que o recomendara ao amigo em
carta anterior.90

Creia em mim – diz Vettori –, somos conduzidos pelo destino. Li nos últimos dias
o livro de Pontano, Sulla fortuna, recentemente publicado (...). Pontano demonstra
claramente que nada podem o ânimo, a prudência, a força ou qualquer outra
virtude, se faltar a fortuna. (Vettori).91

Ao acatar tal posição, Maquiavel muda seu ponto de vista usual acerca das
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possibilidades do homem de lidar com as desventuras impostas pela deusa. Como


percebe Mario Santoro, o tratado do humanista Giovanni Pontano sobre a Fortuna

88
Carta do dia 20 de dezembro de 1514. Ibid., p.272 (primeira carta). “Magnifico oratore. Poiché
voi mi havete messo in zurlo, se io vi straccheró con lo scrivere, dite: habbimi il danno, ché gli
scrissi”.
89
Carta do dia 20 de dezembro de 1514 (segunda carta). Ibid., pp. 277-8: “Io vi ringrazio di nuovo
di tutte l’opere et di tutti i pensieri che voi havete hauti per mio amore. Non ve ne prometto
ricompenso, perché non credo mai più potere far bene né a me né ad altri. Et se la fortuna havesse
voluto che i Medici, o in cosa di Firenze o di fuora, o in cose loro particolari o pubbliche, mi
havessino una volta comandato, io sarei contento. Pure io non mi diffido ancora affatto. Et quando
questo fussi, et io non mi sapessi mantenere, io mi dorrei di me; ma quello che ha ad esse, fia. Et
conosco ogni dì, che gli è vero quello che voi dite, che scrive il Pontano: et quando la fortuna ci
vuole cacciare, la ci mette innanzi o presente utilità o presente timore, o l’uno et l’altro insieme; le
quali due cose credo che sieno le maggiori nimiche habbia quell’opinione che sieno le maggiori
nimiche habbia quell’opinione che nelle mie lettere io ho difesa”.
90
Esta carta de Vettori é escrita parte em língua vulgar e parte em latim. O trecho em que fala do
livro de Pontano é todo ele escrito em latim, talvez para diferenciar este tipo de reflexão dos outros
tópicos abordados na carta. De todo modo, ele faz referência, logo no início, a uma carta que
recebera de Maquiavel, toda ela redigida em latim. Juntamente com tal carta latina, datada de
1514, Maquiavel envia uma longa carta política, solicitada por Vettori, em que discute os possíveis
posicionamentos do papa diante da conjuntura política do momento, especificamente o
posicionamento em favor de Espanha ou França. Vale notar que a carta latina é dirigida
diretamente ao embaixador, como se explicasse a ele as circunstâncias de envio, e outros pequenos
detalhes. Já a carta política é toda ela redigida em língua vulgar. Sobre a questão da escrita em
latim e em língua vulgar no Cinquecento, conferir: TROVATO, Paolo. Storia della língua italiana,
pp. 19-35.
91
Carta do dia 15 de dezembro de 1514. MAQUIAVEL, Nicolau. op. cit., p.271. Tradução do
trecho feita a partir da tradução italiana de Giorgio Inglese “Ma, credimi, siamo trasportati dal
destino. Ho letto nei giorni scorsi il libro del Pontano, Sulla fortuna, recentemente stampato (...).
Pontano dimostra chiaramente che niente può l’animo, o la prudenzam o la forza, o qualunque
virtù, se manca la fortuna”.
130

é profundamente marcado pelo desencanto decorrente da invasão francesa de


1494 na Península Itálica, o que incide na valorização do fortuito, imprevisível,
irracional e extraordinário – em suma, dos obstáculos ao domínio cognitivo da
realidade.92 Vale notar que, como napolitano, Pontano vivenciou tais agruras
muito de perto, pois o reino de Nápoles fora o palco mais sangrento das batalhas e
das disputas políticas dos últimos anos do século XV. Assim, ao acatar tais
ensinamentos na carta de 20 de dezembro de 1514, Maquiavel parece fazer uma
concessão à resignação, como se reconhecesse que, diante da Fortuna, só lhe
cabia baixar a cabeça – postura esta que Vettori vinha defendendo insistentemente
desde o início de 1513, e que Maquiavel sistematicamente rejeitava. “Já não creio
que possa fazer bem nem a mim nem aos outros”, diz: juntamente ao
reconhecimento do imenso poder da deusa, Maquiavel afirma a impotência de
seus atos.
Tal postura de resignação diante da Fortuna não se havia feito presente nas
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cartas anteriores de Maquiavel a Vettori, redigidas entre março de 1513 e o fim de


1514. Tampouco se faz presente em O Príncipe, escrito na segunda metade de
1513. Se em dezembro de 1514 as esperanças de voltar à vita negotiosa pareciam
se diluir diante das constantes evasivas de seu amigo Francesco Vettori e da
recusa dos Medici de lhe atribuir alguma função, em março de 1513 o quondam
segretario – ex-secretário, como assina em algumas cartas – procurava construir
uma idéia de altivez, se não de desafio, diante dos caprichos da Fortuna.

No dia 13 de março de 1513, sete meses após a perda do cargo de segundo


secretário, Maquiavel escreve a Vettori para falar de sua disgrazia, os eventos
sucedidos como avalanche trágica desde setembro de 1512, quando as tropas do
rei espanhol Fernando de Aragão destituíram o gonfaloniere Piero Soderini e
reconduziram os Medici para dentro dos muros florentinos. Em suas palavras, “a
sorte fez de tudo para me perpetrar esta injúria”.93 Maquiavel refere-se, aqui, à sua
prisão e tortura, das quais fora salvo pelo indulto de Giovanni de’ Medici – que

92
Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltá letteraria del cinquecento,
p.33. Diz o autor: “Ma ora il problema si presentava con una insospettata gravità e attualità: la
presenza del fortuito, dell’imprevisto, dell’irrazionale, con la sperimentazione di quegli eventi
straordinari, acquistava dimensioni così ampie, un peso così determinante che un’ indagine sulla
‘fortuna’ finiva per risolversi in un’ indagine sulla stessa realtà della condizione umana”.
93
Carta do dia 13 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.99. “la sorte há fatto
ogni cosa per farmi questa ingiuria”.
131

após ser eleito papa (Leão X), mandou libertar todos os presos da cidade como
parte dos festejos comemorativos e demonstração de magnanimidade.
Já nesta primeira carta, Maquiavel inicia o movimento, recorrente nos dois
anos seguintes, de tentar se fazer ver junto à cúria romana. Embora soubesse da
gravidade de sua situação – um fiel servidor de Soderini, de família não muito
bem reputada, jamais seria visto com bons olhos pelos Medici –, Maquiavel
solicita a Vettori que o mantenha vivo junto à memória do papa.94 Em sua
resposta, Vettori desculpa-se por não haver intercedido quando teve notícias das
torturas sofridas por seu amigo: “dói-me não vos poder ter ajudado, como
merecíeis pela fé em mim depositada”.95 Em seguida procura alentar aquele a
quem costuma chamar na salutatio de suas cartas de compare mio charo –
enquanto Maquiavel refere-se a Vettori como Magnifico viro Francisco Victorio
oratori florentino apud Summum Ponteficem –, ao dizer que, tão logo a situação
se acalme, Maquiavel poderá ir a Roma visitá-lo, e assim estar diante do papa e de
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tantas outras figuras de destaque. Em sua análise desta carta, John Najemy
argumenta que Vettori constrói uma idéia de compaixão, como se o embaixador
quisesse se desculpar e se justificar por nada ter feito no sentido de ajudar o
secretário quando este se encontrava em apuros.96 De fato, logo no início de sua
carta, Vettori se identifica com as dores e sofrimentos do amigo, empregando
inclusive a palavra “tortura”, evitada por Maquiavel.97 Como afirma Najemy, “em
uma curiosa reversão, praticamente parece que Vettori era quem estava em
necessidade, almejando consolação”.98 Vettori expressa seu amor por aquele a
quem toma para si como protegido, convidando-o para passar alguns dias em

94
Cf. Ibid., pp. 99-100. “Tenemi, se è possibile, in memoria di Nostro Signore, che, se possibile
fosse, mi cominciasse a adoperare, o lui o suoi, a qualche cosa, perché io crederrei fare honore a
voi et utile a me”.
95
Carta do dia 15 de março de 1513. Ibid., p. 102. “Duolmi non vi havere potuto aiutare, chome
meritava la fede havevi in me”.
96
Cf. NAJEMY, John. op. cit., pp. 96-7.
97
Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 102. “Compare mio
charo. Da otto mesi in qua io ho avuto e maggiori dolori che io havessi mai in tempo di mia vita, e
di quelli anchora che voi non sapete; nondimeno non ho avuto il maggiore, che quando intexi voi
essere preso, perché subito iudicai che sanza errore o causa havessi havere tortura, chome è
riuscito”.
98
Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.97. “In a curious reversal, it almost seems that Vettori was the
one in need of and seeking consolation”.
132

Roma, tão logo a situação se torne favorável a ambos, de modo que Maquiavel
pudesse restabelecer seus antigos contatos e solicitar favores aos Medici.99
Em sua resposta, datada de 18 de março de 1513, Maquiavel demonstra
alegria diante do convite: “Magnífico embaixador. Vossa tão amorosa carta me
fez esquecer todos os afãs passados; e, conquanto estivesse mais que certo do
amor que tendes por mim, esta carta me foi gratíssima”.100 Logo na abertura,
Maquiavel constrói a condição de protegido, a que retomará constantemente, para
desconforto de Vettori. Por reconhecer no embaixador a figura de um benfeitor, o
secretário vislumbra nesta relação um possível caminho para inserir-se novamente
na vita negotiosa.
Olhando adiante, Maquiavel consegue mirar para o seu passado recente com
algum distanciamento, a ponto de recomendar a Vettori que extraísse lições das
vicissitudes por ele enfrentadas: “quanto a virar o rosto para a Fortuna, quero que
tenhais destes meus afãs este prazer, que eu o suportei tão francamente, que estou
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contente comigo, e que pareço ser mais do que acreditei ser”.101 Maquiavel quer
se mostrar à altura de um recomeço, marcando a própria altivez e capacidade de
superação, como se dissesse ao embaixador estar pronto para esquecer as
desventuras, sem ressentimento algum. Parece-me que a idéia chave, neste trecho,
é a de “virar o rosto para a Fortuna”, não se deixar abater, mostrar-se vigoroso
mesmo diante de um grande tropeço, certamente percebido por ele como injustiça
dos céus. Tal postura diante da Fortuna será bastante recorrente nas cartas
seguintes de Maquiavel, como um ideal regulatório de comportamento diante do
imponderável: o chamado a uma virtù fundada na força e na virilidade, capaz,
senão de controlar a deusa plenamente, ao menos de amenizar os efeitos das suas
ações, precisamente porque, além de não se deixar abater diante da deusa,
Maquiavel procuraria dali em diante desafiá-la, mostrando-se merecedor de seus
favores – como percebe Hanna Pitkin, embora a personificação da Fortuna como

99
É o que fica evidente na seguinte passagem da carta: “Scriverrovi, quando harò l’animo posato,
se ci ho a stare, di che dubito, perchè credo saranno huomini d’altra qualità non sono io che ci
vorranno stare, e io harò patientia a tutto”. Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL,
Nicolau. Lettere..., p.102.
100
Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 76. “Magnifico oratore. La vostra lettera tanto
amorevole mi há fatto sdimenticare tutti gli affani passati; et, benché io fussi più che certo
dell’amore che mi portate, questa lettera mi è suta gratissima”.
101
Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 104. “Et quanto a volgere il viso alla Fortuna, voglio
che habbiate di questi miei affani questo piacere, che gli ho portati tanto francamente, che io stesso
me ne voglio bene, et parmi essere da più che non credetti”.
133

mulher fosse bastante antiga, Maquiavel foi o primeiro a sugerir a idéia da


conquista sexual da deusa, através da ação viril e do desafio explícito.102
É certo que tal postura não lhe poderia garantir a plena certeza do sucesso:
“e se parecer [adequado] a estes nossos patrões não me deixar por terra, eu os
estimarei muito, e creio conduzir-me de modo que também eles terão razões para
querer-me bem; e se não os parecer [adequado], viverei como vim ao mundo
[viverò come io ci venni], eu que nasci pobre, e aprendi antes a lutar que a gozar a
vida”.103 Segundo Najemy, trata-se aqui da afirmação de um certo “estoicismo” de
Maquiavel, da possível aceitação resignada de tudo o que possa vir a acontecer.104
Penso, contrariamente, que se trata precisamente de uma recusa da via estóica, na
medida em que o ideal almejado é o da participação, o da inserção. Maquiavel
tenta se posicionar diante dos seus próprios reveses, e procura também fazer com
que, através do exemplo de sua conduta, Vettori volte a acreditar na possibilidade
de restabelecer o controle dos efeitos das próprias ações, num processo de
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reaquisição da autonomia perdida. Ele reconhece, no entanto, o imenso poder da


Fortuna, ao aceitar que suas próprias forças já não são suficientes para conseguir
uma nova inserção, por menor que seja.
Em carta datada de 30 de março de 1513, Francesco Vettori procura não
iludir ao amigo, ao demonstrar que suas possibilidades em Roma eram de fato
muito reduzidas; como se, diante da carta do dia 18 de março escrita pelo
secretário, em que este defende a atitude de mostrar a face para a Fortuna, o
embaixador procurasse alertá-lo sobre a necessidade de agir como muita cautela.
Vettori reitera sua posição valendo-se da mesma imagem empregada
anteriormente por Maquiavel:

Eu sou daqueles que, ainda que vos exortasse a virar o rosto à fortuna, entretanto
persuado mais propriamente os outros que a mim mesmo, porque na fortuna

102
Cf. PITKIN, Hanna Fenichel. Fortune is a woman, p. 144. “Specifically, although the
prsonification of fortune as female is very old, Machiavelli appears to be the first to use that
metaphor as a way of suggesting the sexual conquest of fortune, introducing into the realm of
politics and history concerns about manliness, effeminacy, and sexual prowess”.
103
Carta de 18 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 104. “et se parrà a questi
patroni nostri non mi lasciare in terra, io l’harò caro, et crederrò portarmi in modo che gli haranno
ancora loro cagione di haverlo per bene; quando e’ non paia, io mi viverò come io ci venni, che
nacqui povero, et imparai prima a stentare che a godere”.
104
Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.98.
134

próspera não me elevo, mas na adversa me acovardo e de tudo temo; e se vos


falasse acreditaria ser possível fazer-vos capaz de temer com razão.105

Vettori recusa nesta carta a possibilidade de estabelecer um ragionamento


seguro sobre as “coisas do mundo”. Tal recusa da parte do embaixador deve-se à
crença, revelada inclusive em momentos anteriores106, de que todos os efeitos das
ações políticas estariam sujeitos ao mero acaso.107 Para o embaixador, quando
falta a sorte, ou quando a Fortuna se mostra desfavorável, o melhor a fazer é se
acomodar, deixar os ventos mudarem de direção, para então tentar se reerguer,
mais ou menos como procurava agir em sua estadia junto à cúria papal.108
Maquiavel, por sua vez, parece não aceitar esta postura resignada. Em sua
resposta, defende a possibilidade de elaborar ragionamenti seguros sobre a
política. Como se, diante da inexorabilidade dos fatos, das imposições do azar e
do acaso, a ele só restasse a reflexão detida e acurada dos acontecimentos
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políticos, como única ligação com um ideal de vida que se perdia. Diz Maquiavel
em famoso trecho da carta de 9 de abril de 1513:

Sem dúvida, se vos pudesse falar, não poderia evitar preencher vossa cabeça com
fantasias [castellucci], porque a Fortuna fez com que, não sabendo discorrer
[ragionare] nem da arte da seda e da arte da lã, nem dos lucros e perdas, me
conviesse discorrer sobre o stato [e’ mi conviene ragionare dello stato], e necessito
ou calar-me ou discorrer [ragionare] sobre isto.109

Ao invés da resignação, o desafio. Na segunda metade deste mesmo ano de


1513, Maquiavel se empenhará na redação de seu opúsculo sobre os principados.

105
Carta de 30 de março de 1513. Ibid., p. 107.”Io sono di quelli che, anchora che vi chonfortassi a
volgere il viso alla fortuna, nondimeno lo so meglo persuadere a altri che a me medesimo, perché
nella prospera fortuna non mi lievo, ma nell’ adversa mi avilisco e d’ ogni chosa dubito; e se vi
parlassi crederrei farvi chapace dubitare con ragione”.
106
Refiro-me às divergências entre Vettori e Maquiavel na missão de 1508. Cf. NAJEMY, John.
op. cit., p. 81.
107
Cf. Carta de 30 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 107. “E chosì m’ho
acconcio questo Grillo nel cervello; e, chome vi ho decto qualche altra volta, io non voglo andare
più discorrendo con ragione, perché spesso mi son trovato ingannato...”.
108
Cf. Ibid., p. 108. “Si che, Niccolò mio, vedete quello fa la buona sorte, della quale chi manca,
chome fo io, bisogna facci poche imprese, o per meglio dire nessuna...”.
109
Carta de 9 de abril de 1513. Ibid., p.110. “Pure, se io vi potessi parlare, non potre’ fare che io
non vi empiessi il capo di castellucci, perché la Fortuna ha fatto ché, non sapendo ragionare né
dell’arte della seta et dell’arte della lana, né de’ guadagni né delle perdite, e’ mi conviene
ragionare dello stato, et mi bisogna o botarmi di stare cheto, o ragionare di questo”.
135

Diante dos reveses de sua Fortuna, procurará desafiá-la com sua capacidade de
ragionamento, precisamente aquela aptidão de discorrer sobre os assuntos da
política abdicada por Vettori há muito. Maquiavel recusa a acomodação do
embaixador, até mesmo porque, diante das poucas possibilidades que se lhe
abriam, as possíveis perdas não pareciam de fato tão grandes. Abrir mão de sua
arte implicaria o abandono do seu maior atributo natural, a prudência, de que
tanto se vangloriara em sua carreira como secretário da República.
Se por um lado o apego ao ragionamento pode ser lido como uma tentativa
de tornar-se novamente visível, os príncipes virtuosos – no sentido já discutido
anteriormente de uma qualidade de flexibilização moral que leva o príncipe a não
operar com regras fixas e definidas de antemão110 – esboçados em seu tratado
podem ser descrito como homens capazes, por aptidão própria, de superar
inúmeras adversidades. Esperava-se destes homens, fundamentalmente, que eles
pudessem enfrentar a deusa caprichosa, domando-a com virilidade, impondo-se
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bravamente e mostrando-lhe a face, desafiando-a até que ela cedesse às


investidas.111 É o que defende em famosa passagem de O Príncipe:

Estou convencido do seguinte: é melhor ser impetuoso do que tímido, porque a


fortuna é mulher, e é necessário, para dominá-la, bater-lhe e contrariá-la. Vê-se que
ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que pelos que agem friamente; e,
como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos tímidos, mais ferozes
e a dominam com maior audácia.112

Maquiavel projeta seu príncipe virtuoso como alguém que desafia a


Fortuna, revelando-se capaz de lhe mostrar a face, enfrentando-a sem temor. Mas
poucos podem desafiá-la: diferentemente de Alberti, que afirmava que os grandes
tinham mais chances de perecer diante dos caprichos da deusa, para Maquiavel
são precisamente os mais poderosos, como os Medici, aqueles habilitados a reunir
as características necessárias para tal enfrentamento. Quanto a ele, que “nasceu
pobre, e aprendeu antes a lutar que a gozar a vida”, é reservado um papel mais
detido, porém não menos significativo: o de conselheiro dos príncipes, se não

110
Para esta discussão, voltar ao capítulo 1, item 4.
111
Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento Italiano: o caso de
Maquiavel”. In: Modernas Tradições, p.185.
112
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXV, p.122.
136

diretamente, ao menos por meio de suas habilidades calculativas e oratórias,


apresentadas na forma de um opúsculo sobre os principados.
Ao buscar alguém que se mostre apto a unir os diversos principados e
repúblicas da Itália em uma única força capaz de enfrentar o poderio de França e
Espanha, Maquiavel projeta seu desejo viril de domínio sobre o fortuito. Tal
desejo pode ser interpretado como a construção de um modelo antagônico em
relação à sua própria realidade, sua experiência do ócio. Nas missivas remetidas a
Vettori na segunda metade de 1513, pode-se notar um leve arrefecimento de suas
crenças em uma nova inserção no mundo público, após o impulso inicial de
desafiar a Fortuna. Na famosa carta de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel
constrói um “retrato” de sua vida em Sant’Andrea, no sentido de mais uma vez
despertar a compaixão do embaixador. Ele assegura viver isolado e apartado,
cuidando da casa e da alimentação familiar, jogando com bêbados para preencher
suas tardes. Na companhia de “piolhos”, como se refere aos camponeses com os
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quais se relaciona, o secretário dizia limpar o cérebro do mofo, esquecendo por


alguns instantes da malignità de sua sorte. Como nota Maurizio Viroli, ele chega a
inventar uma palavra para descrever a situação em que se encontrava:
m’ingaglioffo, algo como “acanalho-me”.113 Sente-se tão degradado que só lhe
restava esperar a piedade da deusa (per vedere se la se ne vergognassi).114 Diz ele:

De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei
desmatar em meu bosque (...). Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com
os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e
observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas (...). Depois de
comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um
moleiro e dois padeiros. Com eles me acanalho [m’ingaglioffo] o restante do dia
jogando cricca e trique-traque, e depois vêm mil discussões e infinitos desaforos
com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa
gritaria se ouve nada menos que em San Cassiano. Assim, em meio a esses piolhos,

113
Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau, p.180. Diz o autor: “Para tentar descrever como
se sentia, inventou um verbo – m’ingaglioffo –, que significava ‘acanalhar-se, afundar na
vulgaridade, aturdir-se’. Entrega-se a essas atividades para desafogar a raiva que sente por dentro,
pela sua condição atual”.
114
Carta de 10 de Dezembro de 1513, p.194. “Con chesti io m’ingaglioffo per tutto dì giucando a
criccha, a trische-tach et poi, dove nascono mille contese et infiniti dispetti di parole injuriose, et il
più delle volte si combatte un quattrino et siamo sentiti nondimanco gridare da San Casciano. Così
137

extraio meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que
ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter
feito isso.

Logo a seguir, porém, Maquiavel menciona uma súbita mudança de ânimo,


típica do temperamento melancólico, para ilustrar os altos e baixos dos seus dias.
Após deixar a taverna, retira-se para a casa; tranca-se no quarto e durante quatro
horas se esquece do mundo, estabelecendo contato direto com os autores
antigos115:

Quando a noite vem, volto para casa e entro em meu escritório e, na entrada, tiro a
roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas.
Vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde,
recebido amavelmente, me nutro do alimento que é só meu e para o qual nasci;
onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de
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suas ações, e eles, por bondade, me respondem. Não sinto, por quatro horas, tédio
algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com
a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz
ciência sem reter o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser
essencial e compus De Principatibus [...].116

Se, por um lado, não se pode tomar a representação construída na carta de


10 de dezembro de 1513 como um retrato fiel do cotidiano de Maquiavel em
Sant’Andrea in Percussina, ou mesmo de seu “estado de espírito”, ela pode
auxiliar na compreensão do processo de produção de O Príncipe.117 Na carta,
Maquiavel vislumbra uma imagem que lhe parece conveniente, a do diálogo
literário com grandes homens da Antiguidade; ao mesmo tempo, tal imagem não é

rinvolto entra questi pidocchi traggo el cervello di muffa, et sfogo questa maignità di questa mia
sorte, sendo contento mi calpesti per questa via, per vedere se la se ne vergognassi”.
115
Sobre o colóquio com os antigos, afirma Giulio Ferroni: “Si deve però notare che, anche se
carico di una cosí immediata risultanza pratica e política, quel colloquio con gli antichi si insrisce
in uno spazio ‘a parte’, che sembra sganciato da ogni legame con la vita quotidiana, il mondo
basso che ha reso la veste ‘piena di fango et di loto’, ma la stessa urgenza della realtà esterna, la
stessa dimensione dell’essere pratico, la stessa aleatorità della vita, la stessa sospensione ed
incerteza, la stessa minacciosa varietà che regola l’accadere umano, il regno della fortuna, la scena
del vivere (che è anche la scena della politica”. FERRONI, Giulio. “La struttura epistolare come
contradizione”, p.267.
116
Emprego aqui a tradução presente em: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 175-6.
117
Sobre esta questão, conferir: NAJEMY, John. op. cit., pp. 176-214.
138

associada, por ele, à dignidade do ócio filosófico, mas à desonra de uma vida
apartada das glórias públicas. Escrever um espelho de príncipes é obra para
homens de letras; orientar um príncipe, tarefa para conselheiros prudentes.
Maquiavel acaba se colocando entre os dois extremos, ao compor um discurso em
acordo com as normas literárias vigentes que pudesse ser capaz de aconselhar
efetivamente, não segundo os ditames da filosofia moral antiga ou humanista, mas
em acordo com as lições extraídas do próprio movimento das coisas, dos efeitos
produzidos por elas, da experiência na condução e deliberação acerca dos assuntos
concernentes à res publica, da leitura cuidadosa das histórias antigas e modernas;
um discurso que pudesse ser um produto singular da prudência de alguém apto a
discorrer com clareza e precisão sobre a arte do estado; finamente, um discurso
que pudesse ser persuasivo ao ponto de reverter ânimos contrários e retirá-lo do
ócio forçado.
Não há propriamente na carta de 10 de dezembro de 1513 a fixação de um
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lugar valoroso em si mesmo para o homem de letras; pode-se, contudo, perceber a


delineação de uma possibilidade ainda incerta, associada ao comércio com os
homens antigos, à composição de textos e à percepção da dignidade de tal relação.
Maquiavel passa, na carta, da resignação à ira, se lamenta, ri de seu estado e ao
fim restabelece a própria honra, ao descrever sua ocupação literária.

No fim de 1514, um ano após ter redigido O Príncipe, Maquiavel não


avistava muitas alternativas para si. Percebendo que Vettori provavelmente jamais
interviria em seu favor, o secretário passa a dar razão àqueles que, como Pontano,
afirmavam a incapacidade humana diante da Fortuna. Neste horizonte pleno de
perspectivas sombrias, o normalmente espirituoso Maquiavel parece se curvar
diante do imponderável. Em missiva datada de 31 de Janeiro de 1515, o secretário
apresenta-se como um homem triste, padecendo de um mal que sequer
considerava capaz de explicar. Nesta carta, a última que troca com Vettori antes
de 1521, ou ao menos a última de que se tem registro, Maquiavel vale-se da tópica
do sofrimento amoroso, como faz notar no soneto de abertura:

Haveva tentato il giovinetto Archiere Tinha tentado o jovem arqueiro


già molte volte vulnerarmi il petto já muitas vezes vulnerar-me o peito
con le saette sue, ché del dispetto com sua flecha, que do despeito
139

et del danno d’altrui prende piacere e do dano dos outros tem seu prazer.
et benché fosson quelle acute et fiere, e embora sua flecha fosse afiada e brutal,
ch’uno adamante non hare’ lor retto, que nem mesmo um diamante a ela
resistisse
non di manco trovâr sì forte obbiecto ainda agora encontrou um objeto tão forte
che stimò poco tutto il lor potere. e não tomou satisfação do seu poder
Onde che quel si sdegno et furor carco, Donde para fazer pesar seu desdém e furor,
per dimostrar(e) la sua alta excellenza, e para demonstrar a sua grande excelência,
mutò pharetra, mutò strale, er arco; mudou de aljava, flecha e arco;
et trassene uno con tanta violenza, e deixou-se voar com tanta violência
ch’anchor(a) delle ferite mi rammarco, que ainda me entristeço por essa ferida
et confesso et conosco sua potenza e confesso e conheço sua potência

O jovem arqueiro a que Maquiavel se refere é naturalmente o Cupido. Não


só a Fortuna impõe seus desígnios com veemência: todas as forças da natureza
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parecem, de acordo com o ex-secretário, conspirar para “acorrentá-lo” e tolher sua


capacidade de ação, a ponto de Maquiavel escrever, em certo trecho da carta, que
prefere esta situação a uma possível mudança da sorte:

E estes grilhões são tão fortes que eu me encontro totalmente desesperado da


liberdade, e nem posso pensar como seria se me desacorrentasse; e quando por
sorte ou outra manobra humana algum caminho se abrisse para que eu saísse,
talvez não quisesse segui-lo, pois que agora me parecem doces, leves e pesados
esses grilhões, e fazem tal mistura de modo que julgo não mais ser possível viver
contente sem este tipo de vida.118

Aqui, Maquiavel procura se apresentar como um ser fraco, carente de


autonomia, resignado diante do imponderável e abatido, não só pelo amor não
correspondido – tópica convencional da literatura medieval e renascentista, não
necessariamente um sentimento “sincero”119 – mas também pelos infortúnios dos

118
Carta de 31 de janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.283. Diz Maquiavel:
“Et sono, quelle che mi ha messo, sì forte catene, che io sono al tutto disperato della libertà né
posso pensare via come io habbia a scatenarmi; et quando pure la sorte o altro aggiramento
humano mi aprisse qualche cammino ad uscirmene, et per avventura non vorrei entrarvi, tanto mi
paiono hor dolci, hor leggieri, hor gravi quelle catene, et fanno un mescolo di sorte, che io giudico
non potere vivere contento senza quella qualità di vita”.
119
A frase de Frank Kermode acerca dos versos de Romeu por Rosalina, na abertura de Romeu e
Julieta, aplica-se bem ao soneto de Maquiavel: “Rhyming whenever he feels like it, the rhymes
140

últimos anos. Porém, ao mesmo tempo em que se apresenta como melancólico


sintomático – talvez para tentar, mais uma vez, ganhar a compaixão do
embaixador –, ele emprega um último artifício. Maquiavel revela ter notícias de
que o irmão de Francesco Vettori, Paolo, estava prestes a ser nomeado para a
senhoria de Parma, Piacenza, Modena e Reggio. Tendo ciência destes fatos, o
secretário se apressa em dar conselhos ao embaixador sobre a manutenção de
principados novos, como se pretendesse aproveitar a oportunidade para mostrar,
uma vez mais, o valor e a pertinência de seus conhecimentos práticos. Nada pede;
apenas discorre longamente sobre ações e medidas capazes de gerar resultados
eficientes.120 Vettori, porém, perdera completamente o gosto pelas discussões
políticas, pelo ragionamento dello stato; com seus pedidos e cobranças,
Maquiavel tornava-se um peso para o desiludido embaixador. A carta do ex-
secretário permanecerá sem resposta, e, ao que tudo indica, eles só voltarão a se
escrever em 1521.121
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Alguns meses antes de retomar, de modo formal, a correspondência com


Francesco Vettori, Maquiavel inicia um estimulante diálogo epistolar com
Francesco Guicciardini; em determinado momento, chegam a trocar quatro cartas
no espaço de um único dia, quando o ex-secretário se encontrava em uma pequena
missão oficial a serviço dos Medici.122 Guicciardini, quatorze anos mais novo,

being more or less as conventional as his suffering, Romeo brings the scene to an end with an
account of the unseducible Rosaline”. KERMODE, Frank. Shakespeare’s language, p.54.
120
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere... p.284: “Chi vedesse le nostre lettere, honorando
compare, et vedesse le diversità di quelle, si maraviglierebbe assai, perché gli parrebbe hora che
noi fussimo huomini gravi, tutti vòlti a cose grandi, et che ne’ petti nostri non potesse cascare
alcuno pensiere che non havesse in sé honestà et grandezza. Però dipoi, volttando carta, gli
parrebbe quelli noi medesimi essere leggieri, inconstanti, lascivi, vòlti a cose vane”.
121
Existe a possibilidade de que tenham trocado cartas nestes seis anos, e estas tenham sido
perdidas. Trata-se, porém, de hipótese pouco provável, por duas razões: em primeiro lugar,
Maquiavel costumava guardar todas as cartas que Vettori lhe enviava. Em segundo lugar, a carta
de 1521 enviada por Maquiavel a Vettori, que parece retomar o diálogo epistolar interrompido seis
anos antes, apresenta um tom bastante formal; Vettori é chamado de “signor gonfaloniere”, e
Maquiavel assina como “obligatissimus Niccolò Machiavegli”. Sobre a preservação das cartas de
Vettori por Maquiavel, afirma John NAJEMY: “In sum, the evidence from the Apografo makes it
seem likely that Machiavelli did keep a nearly complete file of the letters that he and Vettori wrote
to each other over these years”. op. cit., p.13.
122
Sobre o epistolário Maquiavel-Guicciardini, conferir: MASI, Giorgio. “Saper ‘ragionare di
questo mondo’. Il carteggio fra Machiavelli e Guicciardini”.
141

porém membro de família respeitabilíssima, ocupava naquele ano de 1521 um


importante cargo: o governo da província de Modena.123
Guicciardini tinha por costume redigir pequenos textos políticos nos
intervalos de otia inter negotia, como um hábito de auto-reflexão; em tais escritos,
invariavelmente discorria sobre a reforma do reggimento florentino. Em especial,
procurava refletir sobre a melhor maneira de organizar as magistraturas de sua
cidade natal, de modo a preservar os valores do bom governo, mesmo diante do
predomínio de uma só família.124 No Dialogo del Reggimento di Firenze, redigido
entre 1521 e 1526 nos poucos intervalos de afastamento das coisas públicas,
Guicciardini procura recuperar um debate que teria de fato ocorrido no ano de
1494, emulando o De Oratore de Cícero, modelo recorrente entre os autores
renascentistas de textos do gênero diálogo.125 No texto de Guicciardini, os
interlocutores abordam as vicissitudes concernentes à reorganização republicana
da cidade, diante da fuga de Piero de’ Medici e conseqüente retorno de Florença
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ao regime republicano, após sessenta anos de domínio familiar; sua análise,


porém, voltava-se também para o presente, e tinha como horizonte uma possível
queda, nos anos subseqüentes, do regime mediceu.126 Em um primeiro momento,
o autor considera pouco provável que Florença pudesse sediar um regime livre
rapidamente; entretanto, “os accidenti que ocorrem diariamente nas coisas
humanas” poderiam, segundo Guicciardini, fazer com que “da mesma forma que
do stato popular originou-se o stato de um, possa com a mesma facilidade voltar
do stato de um à liberdade primeira” (grifos meus).127
Se Maquiavel ainda possuía razões de sobra para se queixar da Fortuna ao
longo da década de 1520 – e decerto as teria até o momento de sua morte –, o
mesmo não se pode dizer do governador: desde que iniciara suas atividades
políticas em 1512, sua carreira fora marcada por sucessos recorrentes. Ao

123
Não se pode garantir que Maquiavel e Guicciardini não trocaram cartas em período anterior.
Sabe-se que Maquiavel possuía relações com o irmão de Francesco Guicciardini, Luigi. De todo
modo, o diálogo é intensificado neste período.
124
Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem ordenada..., pp. 10-24.
125
Sobre o gênero diálogo, conferir: MARSH, David. The Quattrocento Dialogue.
126
Como afirma Newton Bignotto, “a escolha da forma dialogal é exigência de um pensamento
que não hesita em enfrentar suas contradições”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo,
p.134.
127
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 14. “se bene per la autorità
che hanno e’ Medici in Firenze, e per la potenza grandissima del pontefice paia perduta la libertà
di quella, nondimeno per gli accidenti che tuttodì portono seco le cose umane, può a ogn’ora
142

mobilizar no Dialogo o princípio de indeterminação associado aos accidenti, e


conseqüentemente à Fortuna, Guicciardini fala com a autoridade de quem fora
por ela muito beneficiado até aquele momento de sua vida – ao contrário de
Maquiavel, cujo destino é lamentado pelo governador na já referida carta de 18 de
maio de 1521:

Caríssimo Machiavello. Quando leio os vossos títulos de embaixador da República


(...) e considero com quantos reis, duques e príncipes negociastes, me recordo de
Lisandro, a quem depois de tantas vitórias e triunfos foi dada a tarefa de distribuir
carne aos mesmos soldados os quais havia gloriosamente comandado.128

Ainda na mesma carta, Guicciardini aconselha o ex-secretário a aproveitar


os bons ventos da Fortuna129, numa referência à pequena missão para a qual
Maquiavel fora nomeado pelos Medici, após quase dez anos de ostracismo.130 Este
evento serviu para aproximá-los, pois Guicciardini hospedou o secretário por
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alguns dias durante esta missão oficial.


Ao se indagar no Dialogo sobre a reforma do governo florentino, o
governador destina pouca atenção a uma idéia recorrente nos tratados políticos do
Quattrocento e do Ciquecento, idéia esta que Maquiavel fora forçado pelas
circunstâncias a aprender: trata-se do princípio de que os favores da Fortuna
nunca são eternos, e que de uma hora para outra ela impõe seus desígnios sem se
fazer notar. Aeneas Sylvius Piccolomini, em texto de 1444 intitulado Um sonho
com a Fortuna, indagava à deusa: “por quanto tempo és amável para com os
homens?”. No que ela respondia: “não por muito tempo, para com nenhum
deles”.131
Como defende Mario Santoro em análise do De Belo Italico de Bernardo
Rucellai, a Fortuna era considerada no Cinquecento um elemento dominante da
realidade.132 Havia, segundo o crítico italiano, um evidente “sentido naturalístico
da noção de ‘fortuna’: esta se apresenta acima de tudo como complexo de

nascere, che così come in uno tratto dallo stato populare la venne allo stato di uno, possi ancora
con la medesima facilità ritornare dallo stato di uno alla sua prima libertà”.
128
Conferir o item 1 do capítulo 1.
129
“Non mi è parso in beneficio vostro da perdere tempo o abbandonare la fortuna, mentre si
mostra favorevole”.
130
Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., p. 215.
131
Apud. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.49.
132
Cf. SANTORO, Mario. op. cit., p.156.
143

circunstâncias, de eventos, de acontecimentos, e também como instintos e paixões


operantes no interior do homem, que condicionam, para além de qualquer refúgio,
de qualquer defesa, de modo imprevisível e mesmo irracional, o agir do
indivíduo”.133 Tratava-se, assim, de um princípio geral de indeterminação
associado à impossibilidade do controle pleno do próprio devir. Daí a oposição,
muito comum no Quattrocento e também no Cinquecento, entre Fortuna e
prudenzia; embora fosse comumente aceito que esta última não era capaz de se
antepor às forças incontroláveis da realidade objetiva – como, em certa medida,
poderia fazer a virtù segundo o argumento de Maquiavel no capítulo XXV de O
Príncipe –, acreditava-se que a prudenzia fosse capaz de propiciar alguns
paliativos no trato com o imponderável.
Em seus textos políticos escritos entre 1512 e 1527, Guicciardini dedica
pouco espaço à Fortuna; preocupa-se mais com a delineação de ações eficientes,
capazes de incidir em reformas das magistraturas citadinas e dos costumes em sua
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cidade natal, que propriamente com o papel do inesperado e do contingente nos


assuntos políticos.134 Como percebe com argúcia Mario Santoro, o emprego do
vocábulo Fortuna nos primeiros escritos de Guicciardini, como as Storie
Fiorentine, a Relazione di Spagna e o Discorso di Logrogno, remetia à “acepção
convencional de boa sorte, circunstâncias e ocasiões favoráveis”.135 Esta situação
mudará a partir da segunda metade da década de 1510.136 Guicciardini passa a
ocupar um papel de destaque no jogo político italiano, como homem de confiança
de Clemente VII, o segundo papa Medici. Em 1527, com a invasão e saque de
Roma, detenção do papa e expulsão dos Medici de Florença, ele, que tanto se
orgulhava de seu papel destacado no cenário italiano, é forçado a retornar à sua
cidade natal como inimigo do regime, sendo obrigado a enfrentar um tribunal por
conta de seu apoio ao regime derrubado.

133
Idem. Ibid., p.160. “Da questi esempli (e da tanti altri che si pottrebbero addurre) appare
evidente la direzione naturalistica della nozione di ‘fortuna’: questa cioè si prospetta soprattutto
come complesso di circostanze, di eventi, di accadimenti, oltre che come instinti e passioni
operanti nell’interno dell’uomo, che condizionano, al di là di ogni riparo, di ogni difesa, in modo
imprevedibile e spesso irrazionale, l’agire dell’individuo”.
134
Cf. CADONI, Giorgio. Un governo immaginato. L’universo politico di Francesco Guicciardini,
pp.9-38.
135
SANTORO, Mario. op. cit., pp. 319-20. “[...] ma, come abbiamo osservato, la fortuna qui ha
l’accezione convenzionale di ‘buona sorte, circostanze e ocasioni favorevoli”.
136
Cf. Idem. Ibid., p.320. “Nel decennio 1516-1526, nel corso di un’intensa attività politica [...] il
Guicciardini sperimentò di persona la massiccia presenza del fortuito, dell’imprevedibile,
144

Diante desta situação, Guicciardini isola-se em uma de suas propriedades


rurais, onde redige um pequeno texto, a Oratio Consolatoria. Trata-se de um
escrito auto-reflexivo, diálogo do autor consigo mesmo que remete ao modelo
clássico da consolatio ad exsulem: tentativa de exibir uma atitude racional diante
do exílio, reflexão sobre a universidade da natureza humana e o poder da Fortuna,
refutação de argumentos de que o exílio é um mal em si, entre outras tópicas.137 A
imagem construída é de desencanto. Orgulhosamente, contudo, ele procura se
convencer de que suas ações não teriam sido equivocadas, e que qualquer pessoa
bem intencionada teria agido como ele, em respeito ao papa e às “razões das
coisas”. Configura-se, assim, uma associação entre abatimento e orgulho, tópica
recorrente em escritos dos séculos XV e XVI – como no caso da peça As You Like
It, de Shakespeare, com o personagem Jacques.
A primeira frase que se lê, antes mesmo do começo do texto, constitui forte
indício do que virá: Fatta di settembre 1527 a Finocchieto, Tempore pestis, tempo
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de peste em Florença e arredores. Inicialmente, o remetente da carta, que chamarei


de “amigo fictício”, lamenta o estado de Francesco naqueles dias de isolamento.138
Diante de toda a glória que experimentara ao longo da vida, diz o amigo, os
acontecimentos recentes causavam naturalmente um “desprazer infinito”139, até
mesmo porque, segundo ele, Francesco, acusado de desvio de dinheiro e de incitar
uma ação militar contra a própria cidade natal, fora atacado naquilo de que mais
se orgulhava – a honra.140 Diante de acusações tão graves, o amigo conclui que
Francesco provavelmente estaria passando por um período de extrema
turbulência, impelido a um tipo de vida que lhe era completamente estranho:

de um extremo de excessiva honra, de reputação, de feitos grandíssimos e de


reconhecimento universal em que te encontravas, tu te viste repentinamente
precipitado em um outro extremo, de vida ociosa, abjeta, privado de tudo, sem

dell’irrazionale, in una realtà che si rivelava, con le sue continue variazioni e complicazioni,
estremamente sfuggente e rischiosa”.
137
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. Displaced persons. The literature of exile from Cicero to Boethius,
p.22.
138
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.91. “Io non mi maraviglio, Francesco, benché io
ti cognosca di animo fermo e virile, che tu ti truovi ripieno di grandissimo dispiacere...”.
139
Ibid., p.93. “Ma quando io veggo che tu sei percosso si può dire nel tuo proprio, ed in quello
che depende dalla patria tua, non posso credere che el dispiacere tuo non sia infinito”.
140
Ibid., p.91. “né è solo la roba in che tu patisci, mas di più la grandezza, la degnità, e quello che
io credo che ti pesi sopra tutte le cose, l’onore”.
145

dignidade, sem grandes feitos, inferior em sua cidade a qualquer cidadão pequeno
(grifos meus).141

Guicciardini constrói para si mesmo a imagem de um homem subitamente


apartado de tudo aquilo que, segundo ele, dava sentido a uma existência digna;
mantém o orgulho de seu passado, mas ao olhar para o presente enxerga um
homem abjeto, desonrado e de pouca valia. Assim como nas cartas de Maquiavel
a Vettori, há, na Consolatoria, uma associação entre ócio e indignidade, ao
mesmo tempo em que o estado de ânimo representado visa a despertar a
compaixão. Embora o texto não fosse destinado a ninguém especificamente, ele se
inseria na tradição antiga das cartas consolatórias, e como tal pressupunha uma
série de convenções próprias ao gênero epistolar consolatório.142 Há, nesse
sentido, um “leitor implícito” – fundado na “estrutura do texto”, como defende
Wolfgang Iser143 –, que pode ser atestado na circulação de tópicas retóricas
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associadas à produção do decoro letrado.144 As dores da alma, o sentimento de


injustiça145, a doença que o “amigo fictício” diagnostica, todos estes aspectos
devem ser tratados como tópicas que pressupõem uma expectativa de leitura e
compreensão segundo critérios convencionais.
Pela mesma ótica deve ser compreendido o chamado do “amigo fictício” a
que Guicciardini se cure da enfermidade e recupere as forças para bem viver.146
Trata-se da cogitação do caminho estóico: na filosofia, Francesco poderá

141
Ibid., p.94. “in modo che da uno estremo eccesivo di onori, di riputazione, di faccende
grandissime e di notizia universale in che tu eri, ti truovi precipitato subito in uno altro estremo di
uno vivere ozioso, abietto, privatissimo, sanza degnità, sanza faccende, inferiore nella tua città a
ogni piccolo cittadino”.
142
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., p. 21.
143
Cf. ISER, Wolfgang. O ato da leitura, vol. 1, p.73. Embora a categoria de leitor implícito seja
proposta por Iser para pensar o texto ficcional, ela se aplica também a textos não-ficcionais, desde
que estes possuam em alguma medida um caráter convencional, como é o caso de textos regrados
segundo preceitos retóricos. Diz Iser: “o leitor implícito não tem existência real; pois ele
materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condição de
recepção, a seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em substrato
empírico, mas sim na estrutura do texto”.
144
Refiro-me aqui à categoria proposta por João Adolfo Hansen de uma “primeira legibilidade
normativa”. Cf. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho, p.23.
145
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.95. “sono certissimo che quelo che ti duole insino
al cuore, quello che ti cava l’anima, è el vedere che sanza alcuno fondamento di verità, sanza
alcuna cagione, fu sparsa voce sì universale che tu abbi in questa guerra rubato e’ danari publici,
che tu abbia in questa per avarizia o per malignità permesso che e’ soldati faccino tanti danni in
questo contado, che tu sia di animo tirannico ed inimico della libertà della città”.
146
Cf. Ibid., p.96. “Ma poi che io non posso fare questo, mi sforzerò almanco con le parole darti
quella medicina o quello lenitivo che io saprò (...). E’ dispiaceri che tu hai sanza dubbio
grandissimi, e potentissime le ragione che ti fanno risentire (...)”.
146

encontrar a consolação de que necessita, uma vez que, para os estóicos, o “sumo
bem” consiste na vida virtuosa e no crescimento interior:

não só julgo digno de nota – diz o “amigo fictício” –, como considero admiráveis e
beatos aqueles que se encontram dispostos [a levar esta vida], de modo que com
estas contemplações se afastem tanto das coisas do mundo, que não sintam e se
afetem pelos seus acidentes.147

O que a Fortuna dá ou tira não deve ser considerado como relevante, pois a
deusa procura seduzir os homens pela oferta de bens efêmeros, e não pelos valores
verdadeiros, aqueles encontrados tão somente na atitude contemplativa.148 Trata-
se de um tipo de ensinamento muito aludido e considerado nos diversos tratados
humanistas do Quattrocento e do Cinquecento, quase sempre em referência a
Sêneca. Em De Vita Beata, este define felicidade a partir da idéia de virtus, ao
equiparar a vida feliz ao estado de perfeito equilíbrio entre corpo e alma:
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uma vida feliz é a que está em conformidade com sua natureza e isso só pode
acontecer se, antes de mais nada, a alma está sã e em perfeito estado de saúde; em
segundo lugar, se é corajosa e veemente, e, mais ainda, muito bela e paciente,
pronta para tudo o que vier, cuidadosa, sem ansiedade, com o seu corpo e tudo o
que lhe diz respeito.149

O estado de equilíbrio aludido por Sêneca – o summum bonum como


concórdia da alma150 – é precisamente o oposto do que Guicciardini expõe na
Consolatoria. Acostumado com a glória e com as honrarias públicas, ele não
aceita facilmente o desmoronamento de suas referências, sem que tenha, em seu

147
Ibid., p.97. “ed io non solo giudico degni di laude, ma ammirabili e beati quelli che si truovono
disposti in modo che con queste contemplazioni si spicchino tante dalle cose del mondo che non
sentino e non curino gli accidenti suoi”.
148
Cf. Idem. “Così chi procedendo filosoficamente si ricordassi che questi beni della fortuna sono
di nessuno momento, e da essere stimati da’ savi come cosa vilissima, e’ quali chi perde, perde più
presto una soma inutile e travagliosa, che cosa di alcuno valore, e che la felicità ed el sommo bene
consiste solo nella virtù e ne’ beni dello animo (...)”.
149
SÊNECA. De Vita Beata (Sobre a Vida Feliz), III,3, p.27.
150
Cf. Ibid., VIII, 6, p.41. “Por isso, você pode declarar, sem hesitação, que o sumo bem é a
concórdia da alma; pois as virtudes deverão estar onde residirem a harmonia e a unidade; os vícios,
com as dissensões”.
147

juízo, cometido ações equivocadas ou imprudentes.151 Dá-se, deste modo, uma


tensão entre o desejo de possuir os bens da Fortuna e a prescrição de um caminho
estóico. Guicciardini, no exílio, percebe a impossibilidade de uma plena
autonomia, sem se conformar com o próprio destino. É nesse sentido que sua
Consolatoria adquire singularidade, como conflito irresoluto entre o imperativo
da resignação diante do fortuito e o desejo inatingível da plena autonomia.
O “amigo fictício” de Guicciardini orienta-se pelos ensinamentos de Sêneca,
especialmente pela idéia de que a verdadeira liberdade, obtida por intermédio da
contemplação e vida virtuosa, era capaz de anular o poder da Fortuna, por se
fundar na perseguição dos valores eternos, e não no anseio das glórias efêmeras.
Diz Sêneca: “Essa liberdade, nada a pode dar senão a indiferença aos caprichos da
fortuna”.152 Analogamente, a pior das escravidões consistia, segundo ele, na
dependência e vinculação do homem em relação à deusa, como nota o estóico:
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Pois – e essa é a maior das escravidões – ela começa a precisar da fortuna; daí
resulta uma vida ansiosa, suspeitosa, temerosa, assustada com os acontecimentos,
preocupada com as vicissitudes da vida.153

Ainda que os caminhos da contemplação e do ócio filosófico fossem


considerados muito dignos, Guicciardini recusa terminantemente a solução
inicialmente aventada – ao menos para si –, mesmo que tenha se convencido
acerca da sabedoria envolvida na atitude estóica. Seu interesse sempre fora pelas
“coisas do mundo”; o que caracteriza a humanidade, segundo ele, não é a
beatitude das pessoas, mas a vida incerta e totalmente suscetível aos accidenti,
visando à glória em vida e à realização das ambições privadas.154 Guicciardini não
quer abrir mão das glórias que a Fortuna traz e tira caprichosamente; o que ele
deseja é receber novamente os favores da deusa. O remédio de Sêneca não pode
produzir bons efeitos em um paciente como ele; daí a afirmação do “amigo
fictício”:

151
GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “perché io non ti cognosco sì imprudente né
sì poco consideratore delle cose del mondo”.
152
SÊNECA. op. cit., IV, 5, p.31.
153
Ibid., XV, 3, p.57.
154
Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “Ma ho anche perscutato chi dalla
fragilità umana è impedito a levarsi tanto alto, e chi in ogni avversità che gli sopravenga si ricorda
e senta di essere uomo”.
148

sem querer imitar certos médicos que rapidamente dão ao paciente aqueles
remédios de que por si não necessitam, falarei de maneira mais baixa [più
bassamente] e mais de acordo com a natureza dos homens e do mundo.155

É preciso encontrar boas razões, concernentes à “natureza dos homens e do


mundo”, para convencer e conduzir este paciente; o remédio contra a Fortuna não
pode consistir na simples recusa dos seus bens e favores. É preciso persuadi-la,
envolvê-la. Mas como?
“Não te recordas de ter nascido homem”, indaga o “amigo fictício”,
“submetido às coisas do mundo e às variações da fortuna como os outros
homens?”.156 Esta auto-censura atua como impedimento à consolação plena e
necessária; a recusa do caminho estóico implica a aceitação resignada do estado
de incerteza inerente aos homens. O erro de Guicciardini, segundo seu auto-
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exame, fora o de se considerar inatingível pelos accidenti, superior aos desígnios


da deusa volúvel. O estado de abatimento que ele compõe na Consolatoria,
caracterizado pela prostração e orgulho excessivo, não poderá ser solucionado
com medicamentos estóicos, pois que resulta do afastamento compulsório da vida
pública, e não de uma escolha ponderada e equilibrada da alma. O hiato entre o
desejo de autonomia e a consciência da impossibilidade de controlar o próprio
destino mantém-se insolúvel.
Que remédio contra a fortuna? Dificilmente Guicciardini ou Maquiavel
concordariam com a postura debochada de Celia em As You Like It: “Let us sit
and mock the good housewife Fortune from her Wheel, that her gifts may
henceforth be bestowed equally”.157

155
Idem. “e però non volendo imitare certi medici che spesso danno allo infermo quelle medicine
che per sé non piglierennono, parlerò teco più bassamente e più secondo la natura degli uomini e
del mondo”.
156
Ibid., p.102. “Non ti ricordi tu di essere nato uomo, sottoposto alle cose del mondo, a’ morsi
della fortuna come gli altri uomini?”
157
SHAKESPEARE, William. As You Like It, I, 2, 5-8.
149

3.3
O homem de letras na escala da glória

Res literaria como forma de prudência. Glória, reconhecimento público e o lugar


do homem de letras em Maquiavel e Guicciardini.

É apenas em fins do século XVIII e início do XIX que a idéia de um mundo


literário autônomo ganha força158, com a imposição da literatura como valor
cultural eminente e o “reconhecimento da subjetividade individual” como “fonte
de exaustão do antigo critério retórico”.159 Até então, como argumenta Marc
Fumaroli, o vocábulo “literatura” era empregado no sentido amplo de “belas-
letras”, derivando do latim res literaria.160 Por belas-letras entendia-se
fundamentalmente o “íntimo e assíduo comércio com os oradores e poetas da
Antiguidade”161, a erudição proveniente da leitura e diálogos com outros homens
de letras, assim como a capacidade de emular as “autoridades” clássicas em textos
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e orações regrados segundo preceitos letrados convencionais.162 Nesse sentido,


pode-se dizer que as práticas letradas eram compreendidas segundo o critério do
“rigor preceptístico”163, ou seja, da adequação às definições de gênero
estabelecidas em tratados de retórica e poética, campos cujas fronteiras muitas
vezes se confundiam.164 Os litterati eram, nas palavras de Luiz Costa Lima,
artífices de topoi “entendidos como resultantes da escolha objetiva e impessoal de
recursos expressivos à disposição de qualquer letrado”.165

158
Cf. VIALA, Alain. Naissance de l’écrivain, p.7. “C’est au milieu du XIXe siècle que la
littérature s’est imposée comme valeur éminente : cette thèse formulée par Jean-Paul Sartre a été,
ensuite, reprise, et confirmée à quelques nuances près”. Até o século XVII não havia propriamente
um “campo literário” autônomo. É com a criação, na França do século XVII, das primeiras
academias, com o recrudescimento do comércio de obras, com o surgimento dos direitos do autor,
com a renovação de gêneros como a tragédia e a comédia, em suma, com a possibilidade de que
alguns homens se dedicassem fundamentalmente à escrita, que a literatura se afirmará, ainda que
de forma embrionária, como um valor cultural em si mesma.
159
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, pp. 323-4.
160
Cf. FUMAROLI, Marc. L’âge de l’éloquence, p.24. “Les mots ‘Lettres’, ‘Littératture’ au XVIIe
siècle, que nous tirons sans scrupule à nous, sont en fait des traductions du latin humaniste Litterae
humaniores, Literatura, res literaria et sont chargés du même sens : connaissance érudite de ces
fondements de la sagesse et du savoir que sont les textes légués par l’Antiquité [...]”.
161
Idem. Ibid., p.25. “Les Belles-Lettres elles-mêmes, avant d’être ‘création littèraire’, sont
d’abord un commerce assidu et intime avec les poètes et orateurs de l’Antiquité”.
162
Cf. PÉCORA, Alcir. op. cit., pp. 11-16.
163
Cf. COSTA LIMA, Luiz. “A questão dos gêneros”. In: Teoria da Literatura em suas fontes, p.
260.
164
Cf. LECLERC, F. “Théoriciens français et italiens: une ‘politique’ des genres”, p.96.
165
COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 324.
150

Duas categorias essenciais da retórica clássica orientavam, no


Renascimento, a composição de peças letradas dos mais diversos gêneros: a
imitatio, emulação dos mais altos padrões estilísticos da Antiguidade, e a
convenientia, “adaptação do discurso a todas as variáveis do problema concreto a
que ele responde”.166 O homem de letras, nesse sentido, era um artesão da palavra
escrita ou falada, alguém capaz de reconhecer e manipular as inúmeras
convenções concernentes à composição de peças retóricas dos mais diversos
gêneros, para expressar, de forma apropriada, o que convém dizer.167
Os tratados antigos de retórica estabeleciam três grandes gêneros do
discurso: o judicial, ou a retórica dos tribunais, o deliberativo, retórica das
assembléias e discussões públicas, e o epidítico, voltado para o deleite da platéia e
calcado no princípio da amplificação de virtudes e vícios. No Quattrocento, como
percebe Victoria Kahn,
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a distinção entre retórica deliberativa e demonstrativa [epidítica] sucumbe [...] não


apenas porque o [gênero] epidítico pode ser visto como um incitador do curso da
ação, mas também porque a deliberação envolvida na leitura é ela mesma
entendida como uma forma de deliberação que leva à ação. Os humanistas do
Renascimento assim vão além dos seus mentores clássicos ao conceber a literatura
não somente como a causa e efeito da prudência e ação direita (i.e., presume-se que
o escritor seja prudente e que inspire prudência em outros), mas ela mesma como
uma forma de prudência (grifos meus).168

166
FUMAROLI, Marc. op. cit., p.22. “Une des catégories essentielles de la rhétorique est
l’imitatio : c’est par référence à une gamme de styles illustrée par les modèles exemplaires de
l’Antiquité que procède l’invention de l’écrivain ou de l’orateur du XVIIe ; une autre de ses
catégories esta la convenientia, l’adaptation du discours à toutes les variables du problème concret
auquel il répond : c’est par référence à cette valeur à la fois esthétique et morale que l’homme de
Cour se conduit et converse”.
167
Sobre o domínio e importância das convenções, afirma Paul Zumthor, “dans la littérature des
civilisations traditionnelles, les genres, quel qu’ils soient, présentent un haut degré de
conventionnalité, nécessaire au fonctionnement de la communication”. ZUMTHOR, Paul.
“Perspectives Générales”. In: La notion de genre à la Renaissance, p.8.
168
KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the
distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the
Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but
also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation
that leads to action. The Renaissance humanists thus go beyond their classical mentors in
conceiving of literature not only as the cause and effect of prudence and right action (i.e., the
writer is presumed to be prudent and to inspire prudence in others), but as a form of prudence
itself”.
151

Segundo o argumento defendido por Kahn, esperava-se que o homem de


letras fosse ele próprio discreto e prudente, possuindo as mesmas habilidades
oratórias e calculativas dos homens envolvidos na condução dos assuntos
públicos. Nesse sentido, a ars historica possuía um papel de destaque, por ser o
gênero onde habilidades oratórias e rerum cognitione precisam mostrar total
conveniência – daí que o humanista napolitano Giovanni Pontano tenha afirmado,
no seu diálogo Actius, que a história se serve indistintamente dos gêneros
deliberativo e epidítico.169
Assim, exigia-se do homem de letras tanto a capacidade de manipular os
lugares-comuns retóricos, as regras de invenção, disposição e elocução do
discurso como um conhecimento aprofundado da matéria tratada, em consonância
com a definição ciceroniana de orador pleno e também com a caracterização
horaciana da indissociabilidade entre meio e conteúdo nos gêneros retórico-
poéticos.170 “Se não posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gênero
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literário”, indaga-se Horácio na Ars Poetica, “por que saudar em mim um poeta?
Por que a falsa modéstia de preferir a ignorância ao estudo?”.171
As cidades italianas do Renascimento foram fartas em uomini litterati
reputadíssimos, como Petrarca, Dante, Bocaccio, Coluccio Salutati, Leonardo
Bruni, Pontano, Castiglione, Boiardo, Ariosto, Bembo, Pietro Aretino, entre
outros. “A prática das letras”, defende Marina Beer em estudo sobre a cultura
literária do Renascimento italiano, “e das letras vulgares em particular não é nada
além de uma das atividades destinadas a tornar virtuoso e talvez produtivo o
‘ócio’ nobiliário”.172 Alguns dos lugares privilegiados para as práticas letradas
eram as instáveis cortes principescas, como a de Guidobaldo de Montefeltro em
Urbino, descrita por Castiglione em O Cortesão.173 As cortes constituíam não só
ambientes propícios, mas efetivas condições de possibilidade para a produção de

169
Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In: Civitas Mundi, p.223.
“Anzi, con un’espressione assai icastica, definiva la storia come una ‘poetica soluta’, sciolta dal
ritmo e dal verso, che aveva in comune con la poesia la ‘repetitio’ delle cose antiche e vetuste, che,
come la poesia, si serviva dei generi retorici ‘dimostrativo’ e ‘deliberativo’”.
170
Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., pp.13-14. “Horace, in his Ars Poetica, while emphasizing
both authorial purpose and the importance of the audience or reader as receptor, crystallized the
generally held ancient understanding of generic convention, characterizing genre by both metre
(medium) and content (object). Here he followed a Roman precedent: for Varro, style and content
could not be divorced”.
171
HORÁCIO. Ars Poetica, p.57.
172
BEER, Marina. L’ozio onorato. Saggi sulla cultura letteratia italiana del Rinascimento, p.14.
173
Cf. FANTONI, Marcello. Il potere dello spazio. Principe e ciità nell’ Italia dei secoli XV-XVII.
152

tais registros letrados, uma vez que seus “autores” vinculavam-se diretamente aos
príncipes por meio de uma economia das mercês. Como percebe Norbert Elias,

as formas literárias e de saber que caracterizavam a sociedade de corte


correspondem às suas exigências e necessidades específicas. Trata-se sobretudo de
memórias, cartas, aforismos (“máximas”), determinados gêneros de poesia, ou seja,
formas literárias que nasciam direta ou indiretamente da conversação incessante em
sociedade, que estimulava seu crescimento.174

O caso florentino mostrava-se mais complexo que a média italiana, uma vez
que a cidade, entre os anos de 1494 e 1512, experimentou um tipo de governo
republicano bastante incomum naqueles dias.175 Por outro lado, mesmo com o
retorno dos Medici a Florença em 1512 algumas instituições e magistraturas
republicanas foram preservadas. Assim, não se pode dizer que escritos como a
Arte da Guerra e os Discorsi de Maquiavel, produtos das discussões sobre os
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rumos florentinos nos Orti Oricellari176, os jardins da família Rucellai, ou o


Dialogo del Reggimento di Firenze de Guicciardini, que ele próprio percebia
como sendo de difícil aceitação pelos Medici, por força de sua adesão aos valores
republicanos e defesa da liberdade177, encaixem-se na categoria de formas
literárias típicas das sociedades de cortes. Mesmo escritos como O Príncipe e as
Istorie maquiavelianas, dedicados aos Medici, ou os Ricordi e a Storia d’Italia de
Guicicardini, que tiveram ampla circulação nas cortes européias da segunda
metade do Cinquecento, dificilmente podem ser tratados como exemplares típicos
de “literatura” cortesã. Em O Príncipe, as lições de Maquiavel fogem
completamente do que é recomendado no gênero de espelho de príncipes,
especialmente a tópica do príncipe justo, liberal e magnânimo, por isso mesmo

174
ELIAS, Norbet. A sociedade de corte, p. 299, nota 34.
175
Cf. ALBERTINI, Rudolph von. Firenze dalla Repubblica al Principato. Storia e Coscienza
Politica. “Ci si riallaccia qui alla tradizione dei comuni, dove cittadino, nel senso vero della parola,
era chi aveva diritto di sedere in consiglio e di eleggere le lagistrature”, p.10.
176
Cf. GILBERT, Felix. “Bernardo Rucellai e gli Orti Oricellari. Studio sull’origine del pensiero
politico moderno”, pp.18-30.
177
Cf. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo, p.127. “O que devemos levar em conta é
que ele não desconhece a tensão entre o republicanismo aristocrático, que continua a defender, e
sua trajetória política na esfera do poder papal. Suas convicções teóricas vão de encontro à sua
visão da política italiana e ele procura desesperadamente um meio de colocar as coisas no mesmo
patamar”.
153

virtuoso e prudente178; nas Istorie, como analisarei no próximo capítulo, a matéria


que deveria alicerçar um monumento florentino composto de encômicos de
homens ilustres e vitupérios de tiranos estrangeiros desmesurados ou cidadãos
refratários à concórdia é tratada como retrato das fraquezas institucionais da
cidade e de suas contínuas lutas internas, muito distintas, porque contrárias à
natureza, dos combates entre patrícios e plebeus na Roma republicana; nos
Ricordi, Guicciardini oferece máximas bem distantes dos preceitos de urbanidade
que della Casa urdirá no Galateo, lições que não fixam regras, padrões de
costumes ou exemplos estáveis de modos de ação e conduta política – “muitos,
mesmo prudentes, erram, e é difícil abster-se disso; mas se a dificuldade é grande,
são maiores os frutos que obtém quem souber fazê-lo”179, diz ele, numa clara
constatação da “instabilidade que se impõe às coisas humanas”180 associada ao
desejo de controle das próprias ações e de atenuação das diversas
indeterminações. Além disso, há uma diferença significativa entre a maneira com
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que Maquiavel e Guicciardini lidam com a tópica do ócio com dignidade e o


modo predominante na escrita cortesã: embora as práticas letradas sejam vistas
por eles como louváveis, na escalada da glória elas são invariavelmente postas
abaixo das honras conquistadas no comando de exércitos ou no exercício de
importantes cargos e magistraturas.

O Dialogo del Reggimento di Firenze de Francesco Guicciardini, redigido


entre 1521 e 1524, apresenta um colóquio ocorrido no ano de 1494, supostamente
narrado a Francesco Guicciardini por seu pai, um dos interlocutores.181 No
primeiro livro, o autor dispõe a matéria tratada como um choque de pontos de vista
contrários: de um lado Bernardo del Nero, homem de confiança do falecido
Lorenzo de’ Medici e perito na arte dello stato – conhecimento das habilidades e
meios eficientes para a preservação dos domínios (stati) de uma família ou de uma
República.182 De outro Piero Guicciardini (pai de Francesco), Paoloantonio
Soderini e Piero Capponi, representantes legítimos da aristocracia quatrocentista
florentina, os chamados ottimati. No segundo livro, os interlocutores deixam as

178
Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.61.
179
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 7, p. 53.
180
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1.
181
Cf. BROWN, Alison. “Introduction”. In: Dialogue on the Government of Florence, p.x.
182
Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p.3.
154

divergências de lado e passam a buscar um consenso argumentativo; como


resultado, esboçam uma definição do melhor governo possível para a cidade de
Florença, adequado a um momento de turbulências externas e corrupção dos
valores civis. Na língua toscana do século XVI, o vocábulo ragionare possuía a
acepção de conversação; nesse sentido, o ragionamento poderia ser confundido
com a própria prática do diálogo. Sobre este conceito, afirma John Najemy:
“ragionare (...) existe em algum lugar entre a razão e a fala, incorporando aspectos
de ambas e implicando algum controle ou domínio sobre um assunto que poderia
ser tanto aprendido quanto ensinado”.183
No proêmio do diálogo, “gênero por excelência a adotar-se quando se
tratasse de produzir o elogio do convívio intelectual e do prazer honesto da
companhia”,184 fica claro o propósito de Guicciardini de fornecer ensinamentos
“úteis e adequados” à realidade florentina, através da dramatização de uma
conversa ocorrida em 1494 entre homens considerados sábios e prudentes, o que
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ressalta um aspecto concernente a toda República que se pretendia livre e bem


ordenada: o debate entre concidadãos como fundamento do vivere civile.185 Como
afirma Alcir Pécora, “a forma de diálogo [...], gênero tributário do prestígio das

183
NAJEMY, John. op. cit., p. 109.
184
PÉCORA, Alcir. op. cit., p. 97.
185
No proêmio, Guicciardini propõe-se a realizar a “sincera e fiel narração daquilo que, uma vez,
fora ragionato por alguns dos nossos cidadãos muito graves e sábios” (grifos meus)”. Cabe dizer
que tal noção de fidelidade, recorrente em tratados retóricos clássicos e renascentistas, não remete
à idéia de uma reprodução exata das palavras proferidas, mas à verossimilhança de uma narração
de acordo com certos critérios retórico-poéticos – tal qual Tucídides, que nos discursos de sua
Guerra do Peloponeso (I, XXII) se atém “o mais próximo possível do sentido geral das palavras”.
Trata-se de um lugar-comum retórico amplamente empregado em exórdios de diálogos – como no
Cortesão de Castiglione ou na Arte da Guerra de Maquiavel –, cuja finalidade consiste em afirmar
a autoridade de quem fala e tornar verossímil a argumentação e a narração, através da amplificação
das virtudes ou dos vícios dos personagens envolvidos. Cícero, seguindo Aristóteles, sustenta no
De Inventione (I, 44) que toda argumentação pode ser caracterizada ou como provável ou como
necessária. Necessário é o argumento silogisticamente irrefutável; provável é o argumento
construído a partir da opinião comum, do hábito, ou da analogia com a realidade. Na mesma linha,
lemos na Retória a Herênio (I, 16) que “a narração será verossímil se falarmos como o costume, a
opinião e a natureza ditam, se nos ativermos à duração do tempo, à dignidade dos personagens, aos
motivos das decisões e às oportunidades do lugar (...). Se a matéria for verdadeira, ainda assim,
todos esses preceitos devem ser observados ao narrar, pois é comum acontecer de a verdade não
conseguir obter fé quando são negligenciados”. Obter fé, aqui, implica afirmar a honestidade e
gravidade da matéria nas diversas partes do discurso, especialmente no exórdio e na narração. Tais
elementos são mobilizados por Guicciardini na passagem do proêmio em que se refere à “sincera e
fiel narração” do ragionamento travado entre os quatro grandes homens. Trata-se, assim, da
reprodução verossímil dos efeitos de tal conversação, o sentido do que por eles fora discutido, a
saber, a delineação de um “governo honesto, bem ordenado, a que se possa verdadeiramente
chamar de livre” (Dialogo, p.15). Verossímil porque homens reputados pela opinião comum como
honestos – virtuosos e cientes dos seus deveres, conforme definição da Retórica a Herênio (III,3) –
emitem bons juízos sobre a realidade, demonstram agudeza e celeridade de raciocínio e, sobretudo,
almejam primordialmente o bem comum e a saúde da República.
155

grandes obras da Antiguidade filosófica, mostra-se inteiramente própria para o


estabelecimento do espectador como alguém que deva produzir um decisivo ato
de juízo, mediante a exposição das falas contraditórias das diferentes
personagens”.186 Daí a importância da dramatização de uma conversação, que não
pode ser substituída pela simples exposição de argumentos. Por esta razão,
Guicciardini avalia que “não se pode dizer que não mereça ser louvado quem
aplica o ânimo e dedica boa parte do tempo na contemplação de matéria tão digna
e honesta; pode-se, ainda, obter ensinamentos em grande medida úteis e relevantes
ao nosso viver”.187 Em seguida, ele faz questão de frisar que suas análises não
devem ser tomadas como uma “disposição contrária à grandeza” ou autoridade
dos Medici188: daí sua preocupação de anunciar que escreve para seu próprio
“prazer e recreação”189, nos momentos de otia inter negotia. Guicciardini, antes
de experimentar a disgrazia que o levará ao ostracismo anos depois, reproduz uma
idéia convencional de ócio literário, associada a autoridades como Cícero e
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186
PÉCORA, Alcir. op. cit., p.71.
187
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.13. “[...] non si può dire se
non che meriti di essere laudato chi applica l’animo e consuma ancora quache parte del tempo
nella contemplazione di sì onesta e sì degna materia; sanza che sempre se ne può cavare documenti
acccommodati e utili a molte parte del vivere nstro”.
188
Ainda que a narrativa remeta à restauração republicana de 1494, o horizonte analítico de
Guicciardini consistia primordialmente no exame da situação política florentina na década de
1520. Se bem que a ruína dos Medici fosse então considerada pouco provável, fazia-se necessário,
segundo o autor, manter vivo o pathos republicano, já que os muitos accidenti ocorridos a cada dia
poderiam fazer com que subitamente a liberdade pudesse voltar a imperar na cidade. E dessa vez,
diferentemente do que se dera em 1494, os florentinos deveriam estar preparados para enfrentar as
variações das “coisas do mundo”. Conquanto não vislumbre razões que o levem a crer na ruína dos
Medici em um curto espaço de tempo, Guicciardini afirma que “não se pode esperar de uma
família a perpetuidade que se pode esperar de uma República”. Ainda assim, faz questão de se
prevenir, no proêmio, de possíveis acusações, ao deixar clara a sua fidelidade aos Medici e
também seu amor republicano. Trata-se de ambigüidade notada por diversos intérpretes, como
Vittorio de Caprariis e John Pocock. Segundo Vittorio de Caprariis, tal conflito reflete-se na
própria estrutura do Dialogo: no texto, a “esperança do cidadão”, correspondente ao livro II,
choca-se com a observação aguda do “estado das coisas” – livro I. John Pocock, refutando
Caprariis, defende que a diferença de perspectiva entre as duas partes do Dialogo consiste numa
tensão entre “valor” e “história”. Como atesta Nicolai Rubinstein, a perspectiva de uma mutazione
di stato não era totalmente improvável no contexto de redação do Dialogo. Seguindo tal linha
argumentativa, pode-se aferir que Guicciardini se propunha, no texto, a pensar uma efetiva
reforma da cidade, a ser implementada tão logo os Medici perdessem o poder – o que poderia levar
alguns meses ou muitos anos, mas em algum momento ocorreria, pois, como diz o próprio
Guicciardini em trecho já citado do Dialogo, “não se pode esperar de uma família a perpetuidade
que se pode esperar de uma República”. Cf. CAPRARIIS, Vittorio. Francesco Guicciardini dalla
política alla storia; POCOCK, John. Machiavellian Moment, p.243; RUBINSTEIN, Nicolai.
“Guicciardini politico”. In: Francesco Guicciardini 1483-1983. Nel V centenario della nascita, p.
176.
189
GUICCIARDINI, Francesco. op. cit., p.17. “Alle quali obrigazione non pare che si convenga
nutrire pensieri contrari allo stato della casa loro; perché dallo scrivere mio, massime fatto per mio
piacere e recreazione né con intenzione di publicarlo, non si può né debbe inferirne che i abbia
anio alieno dalla grandezza loro, né che la loro autorità mi dispiacia”.
156

Sêneca: a tentativa de atribuir dignidade aos momentos de afastamento dos


assuntos públicos – in otio cum dignitate, como sentencia Cícero na abertura do
De Oratore.190 Nesse sentido, é significativa a maneira como compõe a frase “não
se pode dizer que não mereça ser louvado quem aplica o ânimo e dedica boa parte
do tempo na contemplação de matéria tão digna e honesta”: os que se ocupam da
res literaria certamente merecem honras e respeito, mas seriam eles tão dignos
quanto os participantes ativos do vivere civile? Não estaria a dignidade do ócio
literário atrelada à possibilidade de voltar recorrentemente à prática política?
Trata-se de questão amplamente discutida pelos antigos, como se pode perceber
no seguinte trecho da Bellum Catilinae de Salústio:

Em meio a grande variedade de ocupações a natureza mostra a cada um o seu


próprio caminho. É belo servir à república com ações [bene facere rei publicae],
não é descabido fazê-lo com a eloqüência [etiam bene dicere haud absurdum est];
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é possível se tornar ilustre na paz ou na guerra; e muitos foram louvados, os que


realizam façanhas e os que narram as façanhas de outros. Para mim, embora a
glória de quem narra as façanhas não seja igual àquela de quem as faz [auctorem
rerum], me parece que o ofício de quem escreve as coisas acontecidas seja árduo
(grifos meus).191

Nos Discorsi, outro escrito que dificilmente pode ser enquadrado na noção
de escrita cortesã, Maquiavel define o lugar do homem de letras numa escala da
glória, em acordo com os ensinamentos de Salústio:

Entre todos os homens louvados, os mais louvados foram os cabeças e ordenadores


de religiões. Logo depois destes, os que fundaram repúblicas ou reinos. Depois
destes, são célebres os que, comandando exércitos, ampliaram seu próprio domínio
ou o da pátria. A estes se somam os homens de letras [uomini litterati]. E, como
estes são de vários tipos, são eles celebrados segundo o mérito de cada um.192

Embora os uomini litterati não possam ser igualados em sua glória aos
fundadores de religiões e repúblicas ou aos grandes generais, Maquiavel lhes

190
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 1.
191
SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae, III, 1-2, p.5.
192
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44.
157

atribui um alto grau de dignidade, assim como o faz Guicciardini no Dialogo.


Ambos, porém, consideram a glória do letrado inferior àquela dos grandes homens
de ação. Há, nesse sentido, uma associação entre ambição pela busca das honras
do vivere civile e o reconhecimento público do bom serviço à pátria – o que
remete à noção de cupido gloriae, tal qual pensada por Leonardo Bruni, o
estímulo à grandeza individual por meio do amor à res publica.193 Não existe
glória sem reconhecimento público, e este parece se voltar com mais força e
louvor àqueles empenhados na condução dos assuntos de estado ou de religião.
Tanto a experiência post res perditas de Maquiavel quanto o afastamento
compulsório de Guicciardini dos assuntos públicos revelam-se freios
significativos aos anseios de reconhecimento público manifestados em inúmeras
ocasiões. Se, no Dialogo del Reggimento di Firenze, Guicciardini é capaz de
vislumbrar um horizonte de dignidade para o ócio literário, associado à
preparação para a “vida ativa”, na Consolatoria, como afirmei anteriormente, o
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ócio é visto como a mais abjeta das situações, e mesmo a atividade literária não
pode instituir consolo algum.

Sem uma análise aprofundada da correspondência particular de


Guicciardini, não é possível atestar se, nos treze anos que se seguiram à sua
derrocada, intercalados por curtos momentos de retorno aos assuntos de estado,
ele construiu para si uma representação de homem de letras. A própria decisão de
escrever obras históricas após vinte anos – precisamente o período de ocupação à
serviço da República e dos Medici – constitui um indício de que ele talvez
entrevisse para si um novo papel, uma vez que a ars historica era tida no
Renascimento como um dos gêneros mais importantes e graves, e por essa razão
destinava-se comumente aos homens de letras mais reputados, especialmente os
ocupantes ou ex-ocupantes de magistraturas de destaque. Trata-se, porém, de
especulação. O que se pode atestar é a dedicação de Guicciardini às Cose
Fiorentine (1528), deixadas de lado após algum tempo, aos Ricordi, conjunto de
máximas que vinha redigindo há muitos anos e que ganharão uma versão final em
Santa Margherita a Montici, às Considerazioni sobre os Discorsi de Maquiavel,

193
Cf. VAROTTI, Carlo. op. cit., p. 411. “Alle origini del repubblicanesimo fiorentino Bruni
aveva attribuito alla libertà e all’equalità cittadina il merito di stimolare la cupido gloriae, facendo
158

comentário à obra maquiaveliana, e finalmente à Storia d’Italia, redigida nos


últimos anos da década de 1530.
Muitos analistas notaram a transformação das posições de Guicciardini
neste período, como a verificação do recrudescimento do papel da Fortuna nos
assuntos humanos e o ceticismo quanto às possibilidades efetivas do retorno da
situação italiana a um estado de paz, como o existente nos últimos anos de vida de
Lorenzo o Magnífico. Felix Gilbert defende que “como Guicciardini havia sido
inspirado pela crença no poder do homem de controlar os eventos e em seu
próprio talento de conduzir os assuntos públicos, o choque causado pelos eventos
de 1527 foi profundo”.194 Embora ele tenha voltado a ocupar cargos importantes,
como o governo de Bolonha, Guicciardini jamais recuperou o lugar de destaque
que tivera, especialmente após a morte de Clemente VII.195 Durante o ducado de
Cosimo de Medici, afirma Gilbert, “Guicciardini estava sem nenhuma influência
política, e não lhe restava nada além de se retirar para sua villa. Então ele
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começou a escrever sua História da Itália”.196 Isso foi em 1538. Dois anos depois,
Guicciardini morre, deixando incompleta a obra. Em seu testamento, pediu para
que seus escritos fossem queimados. Não foi atendido.

Já em Maquiavel as evidências da lenta construção de uma nova identidade


são bastante significativas, não só em seu epistolário como também em seus
textos diversos, de peças teatrais às Istorie Fiorentine (o que não implica dizer
que ele tenha deixado de desejar as honrarias públicas: na década de 1520, quando
solicitado pelos Medici ou por Francesco Guicciardini, tomou parte em pequenas
missões). Na correspondência com Vettori, Maquiavel concebe para si um lugar
como homem de letras, ainda que discretamente, na passagem da carta de 10 de
dezembro de 1513 que trata da conversação com os antigos; nos Discorsi,
provavelmente redigidos entre 1515 e 1517, os homens de letras são vistos como
possuidores de um lugar digno na escala universal da glória, como mostrei acima;
em carta de 17 de dezembro de 1517 a Luigi Alamanni, Maquiavel se queixa da

della politia il luogo in cui principalmente la grandezza individuale può esprimersi, divenire una
forma di eccellenza ‘vista’, sottoposta alo sguardo ammirato della comunità”.
194
GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, pp. 280-81. “Becase Guicciardini had been
inspired by the belief in man’s power to control events and in his own talent to menage his affairs,
the shock caused by the events of 1527 was profound”.
195
Cf. RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, p.216.
196
GILBERT, Felix. op. cit., p. 281.
159

ausência de seu nome na lista de grandes poetas italianos presente no Orlando


Furioso, de Ariosto197; no dia 21 de outubro de 1525, assina uma carta a
Francesco Guicciardini como “Machiavelli, historico, comico et tragico”.198 Como
percebe Roberto Ridolfi, “seus próprios ócios, como seus escritos”, com o passar
do tempo “assumem aparência mais literária”.199 No prólogo da Mandrágora,
provavelmente composta em 1518, a situação é colocada de forma bastante clara:

E se esta matéria, por ser muito leve,


Não for digna de um homem
Que deseja parecer sábio e grave,
Desculpem-no por isto,
Pois ele usa seu engenho [s’ingegna]
Para fazer, com estes vãos pensamentos,
Mais suave seu triste tempo.
Porque noutro lugar não tem para onde mostrar a face
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Pois foi impedido


De mostrar com outras empresas outra virtude,
Não sendo premiado por suas fadigas (tradução livre).200

A matéria leve da comédia se opõe à gravidade da tragédia ou do tratamento


dos assuntos concernentes à res publica. Entendia-se que a composição de uma
peça cômica deveria se dar em acordo com o gênero de estilo simples (tenue),
próprio da conversação e das cartas familiares. “O melhor estilo”, diz Reboul, “ou

197
Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Opere, v. 3. Carta de 17 de dezembro de 1517, p.498. “Io ho letto
a questi dì Orlando Furioso dello Ariosto, e veramente el poema è bello tutto, et in molti luoghi à
mirabile. Se si truova costì, raccomandatemi a lui, e ditegli che io mi dolgo solo che, avendo
ricordato tanti poeti, che m’abbi lasciato indreto come un cazo, e ch’egli ha fatto a me quello in sul
suo Orlando, che io non farò a lui in sul mio Asino”.
198
Carta a Francesco Guicciardini de 21 de outubro de 1525. Cabe destacar que Maquiavel jamais
escreveu tragédias, o que constitui matéria de discussões infindáveis entre seus intérpretes. Sobre
esta questão, afirma Ridolfi: “Tragédias jamais as escreveu, talvez nem cogitou, a não ser essa em
que agora estava trabalhando ao se voltar para questões históricas”. RIDOLFI, Roberto. Biografia
de Nicolau Maquiavel, p.251. Conferir também: MARTINEZ, Ronald L. “Tragic Machiavelli”,
p.119. Afirma o autor que, “signing himself historian, comedian, and tragedian, Machiavelli
foresaw all too well how the history of Italy was shaping itself into a tragic plot”.
199
RIDOLFI, Roberto. op. cit., p.191.
200
MAQUIAVEL, Niolau. Mandragola. In:____ Tutte le opere storiche, politiche e letterarie, p.
728. “E, se quesa materia non è degna, / per esser pur leggieri, / d’un uom, che voglia parer saggio
e grave, / scusatelo con questo, che s’ingegna / con questi van’ pensieri / fare el suo tristo tempo
più suave, / perché altrove non have / dove voltare el viso / che gli è stato interciso / mostrar con
altre imprese altra virtùe, / non sendo premio alle fatiche sue”.
160

seja, o mais eficaz, é aquele que se adapta ao assunto”201, respeitando a regra da


conveniência. Maquiavel, no prólogo da Mandrágora, reconhece a necessidade de
mudar o estilo em função da matéria tratada. E isso era exatamente o que se
esperava de um homem de letras prudente: o respeito às convenções letradas
convenientes e a capacidade de mobilizá-las com agudeza e engenho.
O texto engenhoso era assim concebido simultaneamente como um fruto da
prudência e como um produto prudente, cujo reconhecimento enquanto tal
dependia da autoridade tácita investida a leitores e ouvintes discretos, habilitados
a identificar tanto a correção do tratamento como a conveniência do discurso. Por
esta razão, os textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini devem ser
compreendidos como performances da prudência, registros do bom juízo cuja
validade não é universal, por estar circunscrita às situações analisadas, mas cujo
poder exemplar é infindo, na medida em que cada leitura, cada apropriação por
outros prudentes, pode incidir em nova performances, análises inspiradas no modo
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de ajuizar sem necessariamente copiar o juízo definido. É nesse sentido que se


configura uma dignidade específica para o homem de letras.
Especificamente as histórias compostas por ambos, por analisarem a matéria
de crônicas e “histórias antigas e modernas” segundo o critério da efetividade
analítica, maximizam as possibilidades de atualização continuada de performances
do bom juízo prudencial. Nesse sentido, a ars historica era concebida por
Maquiavel e Guicciardini não apenas como a edificação de um monumento
cívico, mas fundamentalmente como a exposição de erros e acertos, segundo os
critérios da efetividade analítica prudencial, dos que, em algum momento, tiveram
o timão em suas mãos, e também uma maneira de exibir o que eles próprios
fariam caso possuíssem outra vez, mesmo que de forma fugidia, o controle do
timão. A utilidade da história se revela, por esse viés, menos nas lições universais
que o leitor / ouvinte pode extrair e mais na possibilidade de compreender o
percurso de ragionamento. Assim, o leitor / ouvinte é convidado por analistas
experimentados nas coisas do mundo a tomar parte, como espectador privilegiado
e participante potencial, no processo de “fabricação” de bons juízos.
Convidado em 1521 para se tornar chanceler do condottiero Prospero
Colonna, um dos homens mais influentes da Península Itálica naqueles tempos,

201
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p.62.
161

com remuneração de duzentos ducados de ouro, livre de despesas – quase cinco


vezes o que ganhava para escrever as Istorie sob o patrocínio dos Medici –,
Maquiavel recusa a proposta.202 Talvez porque para ele a verdadeira glória só
pudesse ser alcançada no serviço da pátria; ou porque não se considerasse
vocacionado para a vida cortesã; ou porque o ânimo lhe faltasse depois dos
cinqüenta anos. Ou mesmo, quem sabe, porque agora se encontrava
definitivamente do lado dos que “narram as façanhas dos outros”.
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202
Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 212-3.
4.
Ars historica como arte da prudência.

Quando eu considero a quantidade e a


variedade dos acidentes, das enfermidades, do
acaso e da violência a que a vida do homem é
submetida e quantas coisas devem concorrer
no ano para que a colheita seja boa, não há
nada que me espante mais que ver um homem
velho, um ano fértil (Francesco Guicciardini.
Ricordi, máxima 161).

4.1
Uma construção de fatos e palavras.

Tucídides: sobre a distinção entre logos e ergon e o procedimento da autópsia. O


princípio da utilidade: Tucídides e Políbio. O tratamento latino para a tensão
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entre res e verba. Os preceitos da ars historica no De Oratore. A história como


monumento da virtus: Salústio e Tito Lívio.

Embora a história – entendida como prática de inquirição sobre as grandes e


memoráveis obras dos homens calcada numa "atitude crítica com relação ao
registro de acontecimentos”,1 cujo propósito central seria o de salvar os feitos
humanos do esquecimento –2 tenha não apenas surgido na Grécia do V século
como alcançado, com Heródoto e Tucídides, sua maior expressividade no mundo
antigo, a discussão acerca da concepção retórica de história predominante na
Antiguidade deve dar atenção especial às reflexões de Cícero no livro II do
diálogo De Oratore, isto porque os gregos jamais chegaram a definir a história
como um gênero retórico-poético. Porém, antes de discutir os preceitos
ciceronianos sobre a escrita da história, dedicarei algumas páginas à análise da
tensão entre logos e ergon na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides,
assim como ao exame da concepção de autópsia e do privilégio do testemunho
ocular sobre os relatos orais predominantes entre os historiadores gregos, como

1
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna, p.55. Segundo Santo
Mazzarino, esta atitude crítica era, ao mesmo tempo, profundamente religiosa. Cf. MAZZARINO,
Santo. Il pensiero storico classico, vol. 1, p.207.
2
Cf. HARTOG, François. O espelho de Heródoto, p.22; CANFORA, Luciano. La storiografia
greca, pp. 26-43.
163

forma de introduzir a discussão acerca da definição ciceroniana da história como


exaedificatio in rebus et verbis.
Como nota Charles Fornara, a nomenclatura “historiador” era bastante
imprecisa na Antiguidade, podendo ser atribuída a escritores de textos em prosa
que lidavam com “aspectos da atividade humana e heróica no tempo passado”.3
Havia, segundo o autor, cinco tipos básicos de abordagem dos feitos de outras
épocas: genealogia, etnografia, história, história local e cronografia.4 A história,
nesse sentido mais estrito, era compreendida como a descrição das ações humanas
passadas – em suas acepções latinas, expositio rerum gestarum, memoria rerum
gestarum ou simplesmente historia –, diferenciando-se da “história local”
(próxima dos anais) por não se constituir necessariamente como registro ano a ano
dos acontecimentos da polis desde sua fundação. Os limites e fronteiras entre as
referidas formas de relato eram tênues, e os próprios gregos não demonstravam
muito interesse em delimitar as particularidades de cada uma. Apenas Aristóteles
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será mais específico a esse respeito, ao diferenciar, na Poética, a história da


poesia.5
Na abertura da História da Guerra do Peloponeso lê-se que “Tucídides de
Atenas escreveu a guerra dos peloponésios e atenienses, como guerrearam uns
conta os outros”.6 Escrever a guerra é diferente de escrever sobre a guerra; trata-
se de uma maneira peculiar de conceber a relação entre logos e ergon, palavra7 e
feito, pela simultânea constatação de uma “dificuldade de chegar à realidade das
coisas”8 inerente ao logos e da possibilidade de reduzir a equivocidade do relato a
um mínimo, pelo recurso ao testemunho ocular – não os logoi dos que se arrogam
suspeitas observações, mas as considerações do phronimos, homem diligente e
prudente, o próprio Tucídides de Atenas, testemunha dos acontecimentos mais

3
FORNARA, Charles. The Nature of History in Ancient Greece and Rome, p.3, nota 8.
4
Cf. Idem. Ibid., p.1.
5
Cf. ARISTÓTELES. Poética, IX, p.28.
6
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I, 1, p.3. Emprego aqui a tradução de Jacyntho
Lins Brandão. In: HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho, p.57.
7
Emprego o vocábulo “palavra”, aqui, para caracterizar aquilo que Jacques Derrida chamou de
privilégio da phoné, em sua relação direta com o logos: “Tal como mais ou menos implicitamente
determinada, a essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’
como logos, tem relação com o ‘sentido’; daquilo que o produz, que o recebe, que o diz, que o
‘reúne’. [...] Entre o ser e a alma, as coisas e as afeções [affection], haveria uma relação de
tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização
convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação
natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada”. DERRIDA, Jacques. Gramatologia,
p.13.
164

grandiosos e memoráveis que tiveram lugar na Hélade desde o fim da guerra de


Tróia e por isso mesmo apto a elidir em sua exposição todo e qualquer desnível
entre o que aconteceu e o que é apresentado discursivamente, compondo uma
narrativa que é ela própria a presença da guerra, segundo o ideal do rigor
(akríbeia).9
Como percebe Adam Milman Parry, a distinção entre logos e ergon
constituiu uma característica central do “pensamento” grego, fazendo-se presente
já em Homero e sendo percebida de maneiras particulares na poesia – onde ambas
as categorias conformam aspectos dessemelhantes porém igualmente
significativos da experiência humana –, na tradição popular – entendimento dos
erga como “realidade inquestionável” e condenação dos logoi como puramente
delusórios –, e na filosofia – especialmente em Parmênides e Heráclito,
correspondendo o logos à “realidade verdadeira” e sendo o mundo sensível visto
como simples “aparência ilusória”.10 Ainda segundo Parry, o capítulo 22 do livro I
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da História da Guerra do Peloponeso marca a primeira vez em que a distinção


logos / ergon ocorre no texto de Tucídides.11 Diz o ateniense na referida
passagem:

Quanto aos feitos realizados na guerra, decidi escrever não recolhendo informações
junto de qualquer um, nem como me pareciam ser, mas os que eu próprio
presenciei, tendo ainda checado cada um deles, com a maior exatidão possível,
junto de outros. Com muito trabalho eles se descobriam, porque os presentes a cada
um dos feitos não diziam as mesmas coisas sobre os mesmos, mas de acordo com a
simpatia ou lembrança que tinham.12

8
PARRY, Adam Milman. Logos and ergon in Thucydides, p.103.
9
Cf. MAZZARINO, Santo. Op. cit., p. 250.
10
PARRY, Adam Milman. Op. cit., pp. 15-16. “To understand its development properly, we must
take account of three strands of thought in Greek literature of this period. These strands are often
intertwined, and they do not appear with equal consistency throughout the period in question. Yet
they can legitimately be considered as distinct attitudes toward a similar problem. One is a literary
strand: that is, it appears first in the poets. Its tendency is to regard logos and ergon, or equivalents
thereof, as differing but positive constituents of human experience. The second is popular. It
appears first in Solon, then in the earliest comic writers. There is reason to think that it was
common coin in the Vth century. It is simple and ethical, placing value on ergon as unquestioned
reality, and condemning logos as something purely delusive. The third is philosophical, appearing
first in Parmenides and – though less clearly – in Heraclitus. It regards logos as true reality, and
puts in the category of the delusive appearances of the sensible world”.
11
Idem. Ibid., p.103.
12
TUCÍDIDES. Op. cit., I, 22, p. 81.
165

Diferentemente de Heródoto, Tucídides, ao descartar os depoimentos orais


diversos, procura estabelecer uma presunção da fidúcia em torno do seu
testemunho ocular bem intencionado, cujo produto é apresentado não como uma
interpretação particular, mas como a presença da coisa mesma –13 feitos
memoráveis não apagados pela ação do tempo.14 Esta é, para o historiador
ateniense, a condição de possibilidade para que seu relato possa se constituir como
“aquisição [ktêma] para sempre”, dotada de utilidade universal.15
Trata-se, nas palavras de Luciano Canfora, de uma “axiologia das
sensações”, sendo os sentidos privilegiados a visão e a audição.16 A proeminência
da visão põe em segundo plano a discussão sobre a tensão entre logos e ergon,
pois desde que o historiador não queira ludibriar seus ouvintes / leitores, o relato
proveniente de testemunho ocular assegurará a verdade (alétheia) da exposição,
no sentido do desvelamento do que poderia ter-se ocultado rapidamente com a
ação destrutiva do tempo.17 É nesse sentido que deve ser compreendida a famosa
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assertiva de Collingwood de que, para os gregos, “em vez de ser o historiador a


escolher o assunto, era o assunto que escolhia o historiador. Isto é, a história era
escrita apenas porque tinham lugar acontecimentos memoráveis, que despertavam
o aparecimento de um cronista”.18
O progressivo distanciamento em relação aos feitos, associado à
multiplicação dos relatos, constitui entrave decisivo na luta contra o
esquecimento; nesse sentido, a autópsia seguida de registro constitui o melhor

13
Cf. GUMBRECHT, Hans-Urich. Production of Presence. What Meaning Cannot Convey, 2004,
p. xiii. “The word ‘presence’ does not refer (at least does not mainly refer) to a temporal but to a
spatial relationship to the world and its objects. Something that is ‘present’ is supposed to be
tangible for human hands […]”.
14
Cf. TUCÍDIDES. Op. cit., I, 20, p.79.
15
A premissa da utilidade geral da história, sua compreensão como “aquisição para sempre”, é a
estabilidade da natureza humana e a recorrência de certos padrões perceptíveis nos
acontecimentos.
16
CANFORA, Luciano. Op. cit., p.17. Discordo de Canfora, porém, quando este diz que “con
l’esaltazione della vista, la storiografia rivela tutta la sua deboezza conoscitiva”. Não se trata de
uma debilidade, e sim, para falar como Hartog, de um regime de historicidade fundado em uma
concepção distinta de verdade.
17
Como percebe Luiz Costa Lima, a partir da análise heideggeriana da questão, “alétheia,
portanto, continha um duplo movimento, que não era sucessivo e não se esgotava ao atingir o
segundo estágio: ocultar e desvelar. Essa alternância lhe será constitutiva. Acrescente-se para o
caso particular da escrita da história: a reconstituição de uma cena passada desvela e ao mesmo
tempo oculta, sem que isso dependa de alguma intenção de fraude de quem a empreende”. COSTA
LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 111.
18
COLLINGWOOD, R. G. A idéia de história, p.42.
166

remédio contra a ação do tempo. “A natureza”, diz Políbio no livro XII das
Histórias,

forneceu-nos dois instrumentos por meio dos quais sabemos muitas coisas e
podemos averiguar outras. Refiro-me à visão e à audição; a vista é muito mais
fidedigna, segundo o dito de Heráclito: os olhos são testemunhos mais exatos que
os ouvidos.19

Isto porque, como diz Candolo a Gigés no livro I das Histórias de Heródoto, “os
ouvidos são menos crédulos que os olhos”.20
Políbio, prosseguindo seu exame dos dois “instrumentos” – visão e audição
–, cita o caso de Timeu, que teria escolhido para suas investigações o método
“mais agradável, porém menos válido”, abrindo mão do testemunho ocular e
valendo-se da audição, campo que comporta também a leitura.21 Neste último
caso, é preciso que o historiador tenha o cuidado de “buscar uma cidade que
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possua documentação abundante ou que tenha em suas cercanias uma biblioteca”,


de modo a permitir o cotejo dos diferentes relatos”.22 A comparação e exame
cuidadoso das diversas posições analisadas fazem-se necessários, também, quando
existem diferentes versões orais. É significativo, nesse sentido, que Heródoto, nas
passagens de suas Histórias que tratam de acontecimentos já opacos na memória
dos homens, seja extremamente cauteloso, evocando diversas posições e muitas
vezes abstendo-se de tomar partido, enquanto os logoi de suas viagens não
comportam este tipo de procedimento, sendo mais afirmativos.23 O cotejamento
de informações obtidas por meios orais ou pela leitura de livros não deve, porém,
substituir a “investigação pessoal”, como defende Políbio.24 “Éforo”, diz ele,
“afirma que se pudéssemos ser testemunhas de todos os acontecimentos, esta
experiência seria muito distinta das outras”.25

19
POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.521.
20
HERODOTO. Histórias, I, 8, p.32.
21
Cf. POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.521.
22
Cf. Idem. Ibid., XII, 27, p.522.
23
O que se relaciona diretamente àquilo que Santo Mazzarino considera uma singularidade de
Heródoto: sua tentativa de compreender também o ponto de vista persa. Cf. MAZZARINO, Santo.
Op. cit., p.164.
24
POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.522.
25
Idem.
167

Entre os latinos, a abordagem da relação res / verba ganha novos contornos,


na medida em que a discussão acerca do caráter retórico da história é alçada ao
primeiro plano. Há, na comparação com os historiadores gregos, um deslocamento
parcial de ênfase, da produção da presença via autópsia ou escrutínio cuidadoso de
relatos orais para a construção de lições gerais moralizantes, o que se associa em
grande medida ao caráter cerimonial atribuído à história em Roma. Não que os
gregos tivessem preterido a meditação sobre o caráter retórico da história, ou
destinado pouca atenção à questão das lições formuladas a partir do exame de
acontecimentos passados. Segundo o argumento de Luciano Canfora, pode-se
perceber, da parte de Tucídides, um “esforço de elaboração retórica” na História
da Guerra do Peloponeso, onde o “espaço reservado à palavra retoricamente
elaborada é amplíssimo, em grande medida mais que em Heródoto”.26 Ademais,
discípulos de Isócrates, como Teopompo e Éforo, fizeram da retórica o princípio
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condutor na composição de histórias.27 No que diz respeito à tópica da utilidade,


tanto Tucídides como Políbio realçam sua centralidade na história: “mas, se todos
os que quiserem examinar com clareza o que aconteceu (e o que porventura,
conforme o humano, será de novo igual ou semelhante ao acontecido) os julgarem
úteis, será o suficiente”, afirma Tucídides;28 “a melhor educação para a realidade
da vida é a experiência que resulta da história pragmática”, define Políbio.29
Existem, porém, diferenças contundentes no que diz respeito à comparação
do tratamento da tensão entre logos e ergon em Tucídides e da tensão entre res e
verba em Salústio e Cícero, assim como à comparação da concepção de utilidade
em Tucídides e Políbio e nos historiadores latinos. Diferentemente dos gregos,
estes esboçam uma sutil problematização daquilo que Luiz Costa Lima chama de
“determinação aporética da escrita da história”, ou seja, a compreensão desta
como inscrição da verdade, determinação do que é necessariamente fugidio.30 Diz
Salústio, em sua Conjuração de Catilina:

26
CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22. Posição similar é defendida por: HORNBLOWER, Simon.
“Narratology and Narrative Techniques in Thucydides”. In; HORNBLOWER, Simon. Greek
Historiography, p.165.
27
Cf. CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22.
28
TUCÍDIDES. Op. cit., 22, p.81.
29
POLIBIO. Op. cit., I, 35, p.112.
30
COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p. 39.
168

parece-me que o ofício de quem escreve as coisas acontecidas [res gestas scribere]
seja árduo: primeiramente porque se deve adequar as palavras aos fatos; depois
porque diante das críticas feitas, a maioria pensa que as palavras foram ditas por
malevolência e ódio; quando se faz menção da grande virtude e da glória dos
valorosos, aceita de bom grado aquilo que julga capaz de fazer, enquanto considera
inventado ou falso o que supera suas possibilidades.31

Aqui, diferentemente do tratamento tucididiano da questão, Salústio não


recorre ao procedimento da autópsia como solução para seu impasse, que é tratado
como tensão constitutiva, no que diz respeito à verificação das dificuldades de
adequar palavras e fatos e de constatar uma apropriação que não seja tida como
maledicente, partidária ou puramente laudatória. A preocupação com a produção
da presença, embora exista, é tomada como um dos meios capazes de incidir no
fim almejado: a educação moral dos ouvintes / leitores. Como analisarei adiante,
Cícero, no De Oratore, abordará a questão em termos próximos de Salústio – ou,
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reconhecida a anterioridade do escrito ciceroniano, pode-se dizer que os termos de


Salústio aproximam-se daqueles do filósofo latino.
A outra diferença fundamental diz respeito à questão da utilidade do relato
histórico. Para Tucídides e Políbio tratava-se menos da definição de lições morais
generalizantes que da proposição de ensinamentos práticos, de caráter político e
militar, capazes de atuar como “memória artificial” para homens que porventura
viessem a se encontrar diante de situações semelhantes às descritas nas histórias.32
Segundo Charles Fornara, o primeiro a introduzir lições moralizantes de caráter
geral nas histórias foi Xenofonte –33 não é de se estranhar, nesse sentido, que tanto
ele quanto Plutarco tenham sido, no Renascimento florentino, os historiadores
gregos mais difundidos.34 Para os latinos, a produção de uma lição de virtus pelo
ouvinte ou leitor do relato histórico era o ponto crucial. Daí a relevância atribuída
à questão do tratamento retórico da expositio rerum gestarum: se não houver a
atualização de efeitos persuasivos junto a leitores e ouvintes, o relato será incapaz
de fornecer lições adequadas.

31
SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae,, 3, 2, p.5.
32
Cf. WALBANK, Frank W. “Polybius and the past”. In: Polybius, Rome and the Hellenistic
World. Essays and Reflections, p. 179.
33
Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.107.
34
Cf. FRYDE, E. B. Humanism and Renaissance Historiography, p.24.
169

Cícero, no De Oratore (55 a. C.), alude a utilidade do relato histórico em


sentença memorável e exaustivamente repetida até os nossos dias: “a história é
testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida,
mensageira do passado”. Menor atenção, porém, foi dedicada pela posteridade à
pergunta que fecha a ilustre passagem: “que voz, se não a do orador, pode torná-la
imortal?”.35 A seguir, analisarei a maneira com que Cícero concebe a relação entre
história e retórica, e sua ênfase na figura do orador prudente – simultaneamente
conhecedor da matéria e perito na ars dicendi – como aquele apto a ornar a
expositio rerum gestarum segundo os modelos gregos.

Procurando esmiuçar os termos da possível relação entre memoria rerum


gestarum e retórica, Cícero, pela voz do personagem Antonio, traça no livro II do
diálogo De Oratore uma genealogia das atividades de registro das coisas passadas
entre os romanos, com o intuito de delimitar, através da comparação dessas
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práticas com o legado grego, aquilo que ele considera a especificidade da história:
ser uma construção de palavras e coisas devidamente ornada pela voz do orador,
condição para que o registro dos acontecimentos passados possa revelar alguma
utilidade pública. Diz Antonio que “a história [historia] não era mais que a
confecção de anais [annalium confectio]”36, e mesmo os gregos antes de Heródoto
e Tucídides haviam escrito como Catão, Fábio Pictor e Pisão – famosos, segundo
ele, tanto por suas valiosas notas sobre acontecimentos passados como pela crueza
e ausência de adornos em seus relatos.37 “Muitos seguiram essa forma de
redação”, prossegue ele, “que, sem ornamento algum, deixou apenas os
monumentos relativos aos tempos, aos homens, aos lugares, aos
acontecimentos”.38 Tais registros, porém, por sua rudeza e falta de elegância, não
são vistos como adequados à produção de ensinamentos gerais, capazes de
orientar as ações dos homens. Era preciso, segundo Antonio, que, a exemplo dos
gregos, os romanos dispusessem e ornassem suas histórias segundo as regras da
arte retórica, para que tais registros fossem capazes de produzir nos ouvintes e
leitores os efeitos desejados.

35
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36. Emprego a tradução de Jacyntho Lins Brandão. In:
HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho, p.181.
36
Idem. Ibid., II, 52, p.145.
37
Idem.
38
Idem.
170

Antonio define dois modelos que, segundo ele, deveriam ser emulados pelos
romanos interessados em compor histórias. São ele Heródoto e Tucídides:

[...] entre os gregos, homens eloquentíssimos, que se mantiveram longe da prática


forense, dedicaram-se a outras atividades ilustres e sobretudo a escrever história
[historiam scribendam]. Por exemplo, o famoso Heródoto, que foi o primeiro a
ornar esse gênero, não se ocupou absolutamente de processos, segundo a tradição
que recebemos; todavia, tanta é sua eloqüência que eu, certamente, tanto quanto
posso entender o que se escreve em grego, me regalo extremamente com ela.
Depois dele, Tucídides, segundo minha opinião, ultrapassou facilmente a todos
pela arte da sua linguagem [dicendi artificio]: ele é tão denso em numerosos
domínios, que conseguiu ter quase tantas palavras [verborum] quanto
pensamentos [sententiarum]; mais ainda, sua dicção tem tanta proporção e tensão,
que não se sabe se o fato [res] dá brilho ao estilo [oratione] ou a língua [verba]
ao pensamento [sententiis]. [...] em seguida, saídos do que era como que uma
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brilhantíssima escola de retórica, dois homens de superior talento, Teopompo e


Éforo, sob o impulso de seu mestre Isócrates, consagraram-se à história (grifos
meus).39

Heródoto é tido como o primeiro a ornar o gênero, a expositio rerum


gestarum, e Tucídides como o maior de todos, por seu dicendi artificio. Percebe-
se a ênfase atribuída ao ornato, à fluência e à riqueza de expressão – precisamente
o que diferencia, para Antonio, eloqüentes exornatores de simples narratores,
responsáveis pelo registro de fatos passados sem brilho algum.40 Como observa
Charles Fornara, o verbo latino ornare “significa algo mais que adornar
superficialmente, decorar, embelezar. [...] Ornare em si mesmo é tomar um fato e,
a partir dele, montar uma cena, desenvolvendo suas potencialidades latentes”.41
Um ponto deve ser destacado na passagem acima, por trazer elementos
cruciais para a compreensão do próximo passo argumentativo de Antonio, a saber,
a definição da história como uma construção de fatos e palavras [rebus et
verbis]:42 trata-se da tematização da especificidade da relação entre res e verba,

39
Idem. Ibid., II, 55-57, p.147.
40
Idem. Ibid., II, 54, p.147.
41
FORNARA, Charles William. Op. cit., p.136.
42
O uso do vocábulo “fato”, aqui, deve ser tomado em sentido amplo, como acontecimento, ou
“coisas acontecidas”.
171

através dos pares res x oratione, verba x sententia. Reagrupando-os pelo critério
da semelhança, não do antagonismo, é possível chegar a novos pares, a saber: res,
sententia x verba, oratione. O valor de Tucídides, segundo Antonio, estaria
exatamente no entrelaçamento destas oposições, de modo a tornar indistinguíveis
ars dicendi e rerum cognitione como aspectos separados do discurso; articulados,
torna-se difícil assinalar se é a res que dá brilho à oratione de Tucídides ou se é a
verba a iluminar seus pensamentos [sententiis]. Nesse sentido, pode-se dizer que o
valor da história ornada – a única, para Cícero, digna desse nome – repousa na
supressão retórica da oposição entre res e verba, não pelo recurso à autópsia, que
sequer é mencionada por Antonio, e sim pela prescrição de uma unidade
discursiva entre verba e rerum cognitione, que somente a figura do orador pleno –
simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – pode alcançar.
Assim, se em Tucídides existe a presunção de que o phronimos é
potencialmente o melhor historiador, por ser capaz de observar e compreender
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com clareza as variações da realidade sem se deixar levar por simpatias ou


partidarismos diversos, conformando a fidúcia necessária à validação do
procedimento da autópsia, em Cícero a unidade retórica entre res e verba só pode
ser alcançada pelo prudente, um orador eloqüente que seja ao mesmo tempo
profundo conhecedor da matéria tratada. Daí a indagação de Antonio, após o
término de sua exposição sobre o valor dos historiadores gregos: “não vedes a que
ponto a história é função do orador? Não sei se a mais importante, pela riqueza e
pela variedade do estilo”.43
Logo a seguir, Antonio destacará a falta de atenção dos tratados de retórica à
história, a qual, segundo ele não é “em lugar algum especialmente contemplada
pelos preceitos dos retores”.44 Isto se deve, segundo ele, ao fato de as leis da
história serem de conhecimento geral, estando por isso “diante dos nossos olhos”.
São as seguintes as leis da história elencadas por Antonio:

Com efeito, quem ignora que a primeira lei da história é não ousar dizer algo falso?
Em seguida, não ousar dizer algo que não seja verdadeiro? Que não haja, ao se
escrever, qualquer suspeita de complacência? Nem o menor rancor?.45

43
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 62, p.151.
44
Idem.
172

As leis da história constituem premissas necessárias, sem as quais mesmo


uma narrativa convenientemente ornada não se revelará eloqüente e persuasiva,
precisamente por carecer de conhecimento da matéria. Como diz Emanuele
Narduci, “a abundância da matéria”, para Cícero, “produz a riqueza das palavras,
e a honestidade (honestas) dos argumentos tratados conferem uma natural beleza à
expressão do orador”.46 Por esta razão não é possível extrair lições úteis do que
não aconteceu, ou do que foi deturpado por rancor ou complacência. Assim como
Tucídides, Cícero, por um viés diverso, embora em alguma medida complementar
àquele do historiador ateniense, atribui relevo à questão da fidúcia, não pelo
recurso ao argumento de autoridade do testemunho ocular prudente, mas através
da construção retórica de um caráter (ethos) irretocável,47 fundamental para que
haja a produção de uma “representação que coloca diante dos olhos”. Diz Alcir
Pécora acerca do panegírico, subgênero epidítico assim como a história e outras
formas historiográficas:
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trata-se pois de um discurso que autoriza a verdade desses feitos. O seu recurso
fundamental para tanto é a representação que os coloca diante dos olhos do leitor,
por meio de uma composição assentada na vivacidade do que se narra, de tal modo
que se imagina testemunhado pela vista, no exato presente da leitura.48

A atinência às leis da história, nesse sentido, é incapaz por si mesma de “dar


fé” ao que é narrado, uma vez que a construção de um bom ethos é ela mesma
retórica, sendo parte importante da inventio – seu lugar apropriado é o exórdio,
que deve buscar a atenção e captar a benevolência dos ouvintes.49 Daí a afirmação
de Antonio de que “esses fundamentos são conhecidos por todos, mas a própria
construção repousa nos fatos e nas palavras [exaedificatio posita est in rebus et

45
Idem.
46
NARDUCCI, Emanuele. Cicerone e l’eloquenza romana, p.65.
47
Digo que são aspectos complementares porque também em Tucídides a construção do ethos é
retórica, uma vez que o que dá fé não é apenas o testemunho ocular em si, mas também a
prudência de quem testemunha, a qual é atestada pelos ouvintes e leitores que precisam reconhecê-
lo como tal. No entanto – e aí reside a diferença fundamental –, Tucídides não tematiza esta
construção do ethos como elemento decisivo da história, enquanto Cícero, na medida em que
subordina a ars historica ao sistema retórico, implicitamente atribui um lugar próprio à
delimitação do ethos.
48
PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: SCHWARTZ, Stuart B.;
PÉCORA, Alcir (org.). As excelências do governador, p.49.
49
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium Narratio Epilogus. Studi sulla teoria retorica
greca e romana delle parti del discorso, p.3.
173

verbis]”.50 Como argumenta Luiz Costa Lima, “o De Oratore, concebido e


redigido em 55 a.C., revelava que, mesmo em Roma, a maior ênfase na
eloqüência não dissolvia a nota específica do historiador”.51 Isto não quer dizer,
porém, que “Luciano e Cícero expunham o historiador fora do puro domínio da
retórica”,52 muito pelo contrário: toda a ênfase do filósofo romano – e também do
sátiro de Samósata, como analisarei adiante –, voltava-se para a elevação da
expositio rerum gestarum segundo preceitos retóricos articulados a partir da
leitura atenta e minuciosa dos historiadores gregos, especialmente Tucídides.53
Dito de outro modo, Cícero defende que, embora as leis da história não possam
ser abandonadas, elas, em si, não garantem a elevação do gênero; somente o
orador pleno, um homem prudente,54 está apto a produzir uma história rica em
ensinamentos, útil por ser capaz, inicialmente, de deleitar seus ouvintes / leitores e
em seguida de movê-los no sentido da ação virtuosa.55
Seguindo o mesmo viés analítico, Luciano de Samósata, embora defenda em
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seu opúsculo Como se deve escrever a história que “do mesmo modo que
admitimos que o historiador deve ter como objetivos a franqueza e a verdade,
assim também o primeiro e único objetivo de sua linguagem é explicar claramente
os fatos e fazê-los aparecer em plena luz”56, argumenta que “será necessário
algum sopro poético para inflar as velas com bons ventos e elevar a nau sobre a

50
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63, p.151.
51
COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p.98.
52
Idem. Ibid., p. 100.
53
Cf. NARDUCCI, Emanuele. Op. cit., p. 23.
54
Cícero vislumbra na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a
desejável unidade entre filosofia e retórica. Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the
Development of Prudential Practice at Rome”. In: HARIMAN, Robert (org.). Prudence. Classical
Virtue, Postmodern Practice, p.39; NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics:
Republicanisms – ancient, medieval, and modern”. In: HANKINS, James (org.). Renaissance
Civic Humanism, p.252.
55
Docere, delectare, movere: de acordo com os tratados clássicos, estas seriam as três finalidades
da retórica, sendo a primeira associada ao gênero de estilo simples, a segunda ao gênero nobre e a
terceira ao gênero médio. A história, por ser compreendida como subgênero epidítico com alguma
proximidade do gênero deliberativo, não deveria se fixar exclusivamente em um dos três gêneros
de estilo. No que diz respeito à narração, o gênero simples deveria ser privilegiado. Já no exórdio e
nas digressões, o gênero médio seria o mais apropriado, visando ao deleite e à captação da
benevolência do auditório ou dos leitores. Na peroração, responsável por mover os homens à ação,
o gênero de estilo conveniente seria o nobre. Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.7.
“Nell’orator poi la dottrina, pur presentata sempre come caratteristica di Antonio, subisce
un’evouzione nella conessione tra queste qualità o compiti dell’oratore e i tre stili del discorso, per
cui al docere corrisponderebbe lo stilo piano, ao delectare il medio, al movere l’elevato”.
56
LUCIANO. Como se deve escrever a história. In: HARTOG, François. A história de Homero a
Santo Agostinho, 44, p. 225. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.
174

crista das ondas”.57 Daí sua preocupação com a disposição e com o adornamento
do discurso:

justamente essa é também a tarefa do historiador: ordenar os acontecimentos de


forma bela e mostrá-los da maneira mais clara possível. Quando, escutando-o,
alguém julga ver o que é dito e em seguida o elogia, então, sim, sua obra está
perfeita, tendo ele recebido um elogio apropriado a um Fídias da história (grifo
meu).58

Em Luciano, como em Cícero, a produção da presença advém do domínio


das sutilezas e habilidades da arte retórica. A visualização do que é dito decorre da
consecução de um efeito desejado, insinuado em movimentos sutis concernentes à
mobilização de lugares-comuns, às medidas dispositivas e às figuras da elocutio
empregadas. Constitui-se, assim, uma unidade discursiva calcada na presunção da
indissociabilidade entre o conhecimento da matéria e sua exposição apropriada,
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incidindo em relato pleno, decoroso, útil e honesto. Daí que o lugar da história no
sistema retórico seja, senão esmiuçado, ao menos aludido nos tratados clássicos de
arte retórica, especialmente nas sessões destinadas ao exame do gênero epidítico.
Voltado para a produção de lições edificantes, úteis e honestas, onde,
através do encômio ou vitupério de homens e cidades, ficassem claros o caminho
da virtude e os perigos do vício, o gênero epidítico englobava uma série de
subgêneros: o panegírico, a laudatio funebris, a biografia exemplar, a crônica, a
história, entre muitos outros. Como argumenta Lucia Calboli Montefusco, “no
gênero epidítico o uso da narratio se justifica mais razoavelmente”, em
comparação com seu emprego no gênero deliberativo.59 Daí que, no De
Inventione, a história seja tratada na seção destinada à narrativa, sendo definida
como a exposição de gesta res, ab aetatis nostrae memoria remota – coisas
acontecidas em tempos distantes, segundo nossa memória.60 Ela vem incluída,
juntamente com a fabula – “narração própria da tragédia e da poesia, distante da
verdade e da verossimilhança” – e o argumentum – “narração própria da comédia,

57
Idem. Ibid., 45, 227.
58
Idem. Ibid., 51, p. 231.
59
MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p. 36.
60
CICERO, Marco Tulio. De Inventione. Madrid: Gredos, 1997, I, 19.
175

distante da verdade mas verossímil”61 –, na classe de narrativas concernentes aos


negotiis, não às pessoas, categorias que por sua vez pertencem ao terceiro grupo
de uma divisão tríplice: (a) narrativa que inclui a própria causa, fundamento da
controvérsia; (b) narrativa que contém uma divisão externa à causa, cuja
finalidade principal é a acusação; (c) narrativa alheia às causas civis, cujo objetivo
principal é agradar, embora sirva também como exercício útil para o falar e o
escrever.62
As premissas gerais do gênero epidítico são estabelecidas e analisadas por
Cícero em De Partitione Oratoria: “tudo o que está associado à virtude deve ser
louvado e tudo o que está associado ao vício deve ser vituperado”, diz ele.63 “Mas
este tipo de discurso”, prossegue, “consiste em narrar e exibir ações passadas, sem
empregar argumentos, e seu estilo busca influenciar suavemente as emoções, ao
invés de buscar convencimento e aquisição de provas. Ele não estabelece
proposições que são duvidosas; ao contrário, ele amplifica o que é certo, ou tido
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por certo”.64 Como o objetivo claro é o de deleitar a audiência, prossegue ele, o


orador deve buscar um “ritmo capaz de satisfazer os ouvidos como o que se pode
chamar de harmonia verbal”,65 o que corresponde ao gênero de estilo médio. Este
ritmo, no caso da história, deve emular a autoridade de Heródoto e Tucídides,
perfazendo um “tipo de discurso agradável, fácil, abundante, com frases
engenhosas e palavras harmoniosas”, de acordo com definição proposta no
Orator.66
Como notam Perelman e Tyteca,

os discursos epidíticos constituem uma parte central da arte de persuadir [..]. A


eficácia de uma exposição tendente a obter dos ouvintes uma adesão suficiente às
teses apresentadas, só pode ser julgada pelo objetivo que o orador se propõe. A
intensidade da adesão [...] muitas vezes será reforçada até que a ação, que ela
deveria desencadear, tenha ocorrido.67

61
Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.46.
62
Esta mesma divisão se faz presente na Retórica a Herênio e em Quintiliano. Cf. Idem. Ibid., pp.
45-6.
63
CICERO, Marco Tulio. De Partitione Oratória, XXI, 71.
64
Idem.
65
Idem. Ibid., XXI, 72.
66
CICERO, Marco Tulio. Orator, 42, p. 47.
67
PERELMAN, Chaïm; TYTECA, Lucie Olbrechts. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica,
pp. 54-5.
176

O discurso epidítico, nesse sentido, reforça “uma disposição para a ação ao


aumentar a adesão aos valores que exalta”,68 aproximando-se, portanto, do gênero
deliberativo, sem confundir-se com ele. Assim, o ato de deleitar a audiência, a que
a história deveria visar inicialmente, não era tomado como um fim em si mesmo,
isto porque havia claramente a prescrição de uma finalidade pedagógica dos
relatos, na medida em que se esperava que estes visassem sobretudo à afirmação
do útil. Define-se, assim, uma estreita relação entre os gêneros epidítico e
deliberativo, embora, ao menos até o século XV, seus contornos se mantenham
nítidos e bem traçados.69
O argumento-tipo do discurso epidítico é a amplificação. Por amplificação
entendia-se uma forma de argumentação pautada na elevação da nobreza de algo
ou alguém, ou no destaque dos vícios de algo ou alguém, como forma de “instigar
o auditório por meio do lugar-comum”70 e de compor o caráter virtuoso ou vicioso
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do sujeito através do elogio ou censura.71 Os preceitos relativos ao encômio e ao


vitupério são compartilhados pelo panegírico e pela história, e Cícero os enumera
no livro II do De Oratore (45,46). A história, porém, possui algumas regras
próprias, que tanto dizem respeito ao tratamento da matéria quanto à elocutio. Diz
Antonio:

a inteligência dos fatos requer a ordem dos tempos e a descrição dos lugares. Pede
também, já que em fatos importantes e dignos de memória se espera que haja
primeiro deliberações, depois execução e em seguida resultados, que sobre as
deliberações seja indicada qual é aquela que o autor aprova; sobre os feitos, que se
declare não só o que se fez ou se disse, mas também de qual modo; e, quando se
fala do resultado, que se desenvolvam todas as causas que se devem ao acaso, à
sabedoria ou à temeridade – e não se fale só dos feitos dos próprios homens, mas,
com relação aos que se distinguem pela reputação e pelo nome, também da vida e
do caráter de cada um. Quanto à economia da linguagem [verborum autem ratio],

68
Idem. Ibid., pp. 55-6.
69
Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the
distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the
Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but
also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation
that leads to action”.
70
AD. Retórica a Herênio, II, 47, p.143.
71
Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance Concepts of the Commonplaces, p.101.
177

deve-se perseguir um gênero oratório difuso e arrastado, que flua regularmente


como uma certa suavidade, sem essa aspereza própria ao tribunal e sem os
aguilhões que as fórmulas têm no fórum (grifos meus).72

São estes, para Antonio, os preceitos concernentes à composição da história


segundo as regras da arte retórica, princípios que envolvem não apenas o
tratamento do estilo como também a apreciação da matéria, através da
especificação dos três tipos de causas que devem ser atribuídas às ações humanas;
da necessidade de não apenas descrever o que se fez ou disse, mas também de
definir os modos com que algo foi feito ou dito; da defesa de que a vida e caráter
dos homens sejam abordados como aspectos constitutivos dos próprios fatos.

Embora tratadistas subseqüentes como Quintiliano e Dionísio de


Helicarnasso tenham direcionado o debate para outros aspectos, como a
proximidade entre história e poesia,73 a asseveração da dignidade da história
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sempre esteve associada à mobilização da tópica da utilidade. Daí a afirmação de


Luciano de Samósata de que “a utilidade é o fim da história, de modo que, se
alguma vez, de novo, acontecerem coisas semelhantes, poder-se-á, diz ele,
consultando-se o que foi escrito antes, agir bem em relação às circunstâncias que
se encontram diante de nós”.74 Os termos são claramente tucididianos, e remetem
à famosa passagem do capítulo 22 do livro I, onde o historiador ateniense afirma
que seu relato constitui “aquisição para sempre”.
Ao afirmar o produto de sua operação como ktêma (aquisição, patrimônio)
para sempre, Tucídides atribui a seu escrito um caráter monumental: por ser o
registro da guerra, a história se afirma como presença, cuja validade em si, cuja
grandeza dos erga, registrada em logos a que se atesta fidúcia pela autópsia,
produzirá lições úteis àqueles que se dispuserem a destrinchá-la. Como nota
François Hartog, Tucídides opera aí um deslocamento fundamental em relação a
Heródoto, do kléos ao ktema:

Heródoto pôs mãos à obra para impedir que todas as marcas da atividade dos
homens se apagassem (tornando-se akléa), deixando muito rapidamente de serem

72
CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63-64, p.151.
73
Cf. COSTA LIMA. Op. cit., pp.100-104.
178

contadas. Tucídides, por seu lado, escolhendo ‘escrever’ uma guerra que ele sabia
dever ser ‘a maior’ de todas, apresenta sua narrativa como ‘ktêma para sempre’,
isto é, patrimônio para sempre. Do kléos ao ktêma, o deslocamento é sensível. [...]
Daí em diante não se trata mais de preservar do esquecimento as ações valorosas,
mas de transmitir às gerações futuras um instrumento de inteligibilidade de seu
próprio presente.75

Este sentido de patrimônio, aquisição, monumento, adquire uma dimensão


ainda mais expressiva com os romanos, para quem a história era sempre entendida
como res gestae populi Romani.76 Como percebe Charles Fornara, diferentemente
dos gregos, “Fábio, Postumus, Catão, Fannio, Asellio e outros escreveram sobre
sua cidade-estado como membros da elite dirigente”.77 Daí que, por exemplo, a
questão dos conflitos internos (stasis), de modo algum um assunto considerado
memorável e por isso digno de nota entre os historiadores gregos, torne-se um
objeto privilegiado nas considerações dos romanos.
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Uma das principais críticas de Cícero aos primeiros narratores latinos das
coisas acontecidas dizia respeito à dificuldade de se extrair lições edificantes de
relatos pouco ornados, rústicos e meramente descritivos. Nesse sentido, Salústio,
profundo conhecedor dos oradores gregos, pode ser considerado como o primeiro
dentre os romanos a compor uma obra histórica em consonância com os preceitos
ciceronianos, embora fosse inimigo político do filósofo – o que, como percebe
Santo Mazzarino, não o impediu de atribuir a Cícero um papel de destaque na luta
contra Catilina.78 Sua Conjuração de Catilina, claramente inspirada em motivos
tucidideanos, pode ser considerada uma tentativa de construir um legado romano
para sempre apoiado em dois pilares: a antiga virtus do período anterior à Segunda
Guerra Púnica, associada a homens que “com estas duas atitudes, a audácia na
guerra e a eqüidade nos momentos de paz, governavam a si mesmos e à
república”,79 e os exemplos de virtude no mar de corrupção da Roma de Salústio,

74
LUCIANO. Op. cit., 42, p.225.
75
HARTOG, François. Op. cit., p.28.
76
Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.41.
77
Idem. Ibid., p.54.
78
Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico clássico, vol. 3, p.17.
79
SALUSTIO. Op. cit., 9,3, p.13.
179

especificamente Catão e César, “homens de notável virtude, e por caráter


opostos”.80
Eis um tema que Maquiavel retomará em O Príncipe: a complementaridade
entre ímpeto e prudência. Catilina só pôde ser derrotado, argumenta Salústio,
porque dois homens de temperamentos distintos atuaram em colaboração – Catão,
homem severo, modesto e decoroso, que preferia ser bom a parecer bom; César,
responsável por inúmeras glórias e conquistas no comando de suas legiões, liberal,
o “refúgio dos pobres”, além de estimado pela generosidade.81 A prudência, na
Conjuração de Catilina, é vista como a principal dentre as virtudes, aquela
responsável tanto pela articulação da concórdia civil – sendo por isso
fundamentalmente justa –, como pelo equilíbrio dos apetites:

os homens mais prudentes eram os mais ocupados nos negócios políticos, ninguém
exercitava a mente sem o corpo, os melhores preferiam agir a falar [...]. Tanto na
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paz como na guerra os bons costumes eram cultivados: a concórdia era máxima,
mínima a avidez.82

Já o ímpeto é associado à bravura e à coragem, especialmente no que


concerne ao domínio das habilidades militares.
Salústio, sem perder de vista a lição honesta afirmada no proêmio de caráter
filosófico – “a glória das riquezas e da beleza é efêmera e frágil; a virtus é um
bem esplêndido e eterno”83 –, constrói, em movimentos bem marcados, sua
exposição da conjuração de Catilina, procurando seguir tanto o preceito
tucididiano da akríbeia como as regras elencadas no De Oratore sobre o
tratamento da matéria e o estilo adequado à história: a narrativa é breve e suave,
indo dos tempos antigos, descritos rapidamente como na parte “arqueológica” da
história de Tucídides, aos tempos atuais, delineados em minúcias; discursos
diretos expõem as motivações dos personagens, e possibilitam a demarcação de
pontos de vista diversos; o acaso, a sabedoria e a temeridade são os critérios
explicativos fundamentais das ações dos agentes; a amplificação da virtudes de
César e Catão, assim como dos vícios de Catilina e seus asseclas, demarcam

80
Idem. Ibid., 53, 6, p.81.
81
Cf. Idem. Ibid., 54, p.83.
82
Idem. Ibid., 8-9, p.13.
83
Idem. Ibid., 1, 4, p.3.
180

nitidamente o caráter destes, encadeando-se com as ações – as amplificações


constroem o ethos em sentido retórico, mobilizando lugares-comuns de aceitação
universal; trata-se, nesse sentido, menos da tentativa de delimitar as motivações
dos agentes que da produção de hipérboles capazes de incidir na atenção dos
ouvintes e leitores. Assim, o relato ornado, repleto de exemplos, sentenças,
amplificações e figuras engenhosas deleita num primeiro momento para, em
seguida, persuadir os ouvintes e leitores no sentido da ação imitativa, segundo os
modelos virtuosos apresentados.
Levando-se em conta o tratamento de Cícero e Salústio da ars historica,
modelos que Tito Lívio toma para si, não é de se estranhar que ele, em seu Ab
Urbe Condita, defina a história como monumento:

o que principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos [cognitione


rerum] é que consideras todos os modelos exemplares, depositados num
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monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para teu estado [rei publicae] o que
imitar; daí evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização.84

Concebida como “texto-monumento”85 – oposto à “palavra evento” do


aedo, para empregar terminologia de Florence Dupont –, registro utilitário da res
gestae populi Romani, esperava-se da história que iluminasse os homens,
fornecendo, através de exemplos numerosos, modelos virtuosos a serem imitados
ou condutas viciosas a serem rejeitadas. O exemplo, retoricamente, torna claro o
que é obscuro; ajuda na construção do verossímil; torna a matéria mais ornada;
finalmente, como se pode ler na Retória a Herênio, “coloca-as diante dos olhos,
quando expressa tudo de modo tão perspícuo que eu diria ser quase possível tocar
com a mão”.86 O monumento da história é, nesse sentido, uma efetiva presença
tangível, capaz de orientar, como aquisição para sempre, inúmeras gerações. E é
precisamente como monumento pedagógico da virtus, urdido retoricamente pelo
prudente – profundo conhecedor da matéria tratada e perito na ars dicendi –, que
os humanistas florentinos, emulando as autoridades da Antiguidade, conceberão a
ars historica.

84
TITO LIVIO. Ab Urbe Condita, Proêmio, 10, p.207. In: HARTOG, François. A história de
Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.
85
Cf. DUPONT, Florence. L’invention de la littérature, p.36.
86
Cf. AD. Retória a Herênio, IV, 62, p.297.
181

4.2
A concepção humanista da ars historica.

Do tom ciceroniano predominante no tratamento humanista da ars historica. As


histórias de Florença de Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini. As considerações
de Giovanni Pontano e Lorenzo Valla.

Na ótica do humanista Coluccio Salutati, a história constituía difficilimum


genus dicendi:87 somente um profundo conhecedor dos assuntos públicos e da arte
retórica estaria apto, segundo ele, a compor uma obra histórica diligente e
cuidadosa, capaz de fornecer lições úteis e de orientar o homem no sentido da
virtude.88 Cesare Vasoli percebe que

Salutati fixa com clareza o status da história na cultura de que ele mesmo é um dos
representantes máximos; a saber, sanciona a função predominantemente ético-
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política, o caráter peculiar de ars dicendi (que tem por instrumento essencial o
exemplum) e a finalidade francamente persuasiva [...]. Não espanta que o opus
oratorium mais digno, mais eficaz e melhor adequado a estas finalidades seja
justamente a grande narrativa histórica, imitada dos modelos clássicos máximos.89

O tom das considerações de Salutati é claramente ciceroniano, e busca


fundamentalmente a afirmação da unidade entre expressão decorosa e
conhecimento rigoroso da matéria – o que ademais conformará um padrão entre
os humanistas dedicados à discussão da ars historica. Guarino de Verona, em
epístola de 1446, afirma que na história veritas e utilitas são inseparáveis90; Jorge
de Trebizonda, no seu Rhetoricorum libri, defende o caráter essencialmente

87
Cf. STRUEVER, Nancy. The language of History in the Renaissance, p.72.
88
Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In. Civitas Mundi, p. 215.
“[…] la storia sia il solo vero ammaestramento etico-politico, la forma di discorso più persuasiva
che permette il migliore orientamento nell’intricata selva del mondo umano, dove tutto semra
posto sotto il segno del possibile e del probabile e valgono a poco le sottigliezze astratte dei logici,
le predicazioni dei moralisti e – si direbbe – le dottrine sempre troppo universali dei filosofi”.
89
Idem. Ibid., p. 216. “[…] il Salutati fissi già con chiarezza lo status della storia nella cultura di
cui egli stesso è uno dei massimi rappresentanti; e, cioè, ne sanzioni la preminente funzione etico-
plitica, il carattere peculiare di ars dicendi (che ha per strumento essenziale l’exemplum) e la
finalità schiettamente persuasiva [...]. Né stupisce che l’opus oratorium più degno, più efficace e
megli rispondente a simili finalità diventi appunto la grande narrazione storica, imitata dai massimi
modelli classici [...]”.
90
Cf. Idem. Ibid., p. 219.
182

oratório da história91; Bartolommeo della Fonte, assim como o Trapezuntio,


argumenta que a eloqüência é condição necessária de uma narração histórica
verdadeira92; Paolo Cortesi, em De hominibus doctis (1490), destaca a
importância de aliar estilo elegante, basicamente inspirado em Tito Livio, e
deliberação prudente, sustentada em exposição clara das estratégias militares e dos
debates públicos.93 “Cortesi”, argumenta Donald Wilcox, “insiste no valor da
‘delectationem’ e da ‘utilitatem’, que só podem ser asseguradas por um arranjo
claro e bem-expresso da grande variedade de eventos que uma história deve
incluir em sua narrativa”.94
Já foi amplamente notado que a Historiarum Florentini Populi Libri XII de
Leonardo Bruni, composta ao longo de várias décadas e deixada incompleta em
função da morte do humanista aretino em 1444, possuiu um caráter quase oficial.
Segundo Felix Gilbert, “os governos principescos italianos” costumavam nomear
“historiadores públicos desde o início do Quattrocento”; porém, segundo ele,
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“uma posição similar não existia nas cidades-estado republicanas”, pelo menos
não antes da contratação de Andrea Navagero em 1516 para escrever uma história
de Veneza.95 Ainda que as Histórias não tenham sido encomendadas diretamente
pela Signoria, Bruni, após a publicação do primeiro dos doze livros, passou a ter
isenção de impostos para melhor se dedicar à sua composição, tornando-se uma
espécie de historiador oficial da cidade.96 Em seu funeral, Bruni, autor de
panegíricos, vidas, diálogos, cartas familiares, tradutor de Platão, Aristóteles,

91
Cf. Idem. Ibid., pp. 219-220.“Ora, il Trapezunzio non ha alcun dubbio che il discorso storico sia
sempre ed essenzialmente oratorio (anche se contraddistinto del particolare carattere della sua
narrazione che deve essere ‘clara’ e ‘brevis’)”.
92
Cf. TRINKAUS, Charles. “A Humanist’s Image of Humanism: the Inaugural Orations of
Bartolommeo della Fonte”, p. 117. “Summarizing what he had covered I this present oration he
again indicates history as subordinate to rhetoric”.
93
Cf. WILCOX, Donald. The Development of Florentine Humanist Historiography in the
Fifteenth Century, p. 17.
94
Idem. Ibid., p. 19. “Cortesi himself insists o the vlue of ‘delectationem’ and ‘utilitatem’, which
can only be assured by a clear and well-expressed arrangement of the great variety of events that a
history must include in its narrative”
95
GILBERT, Felix. “Le ‘Storie Fiorentine’ di Machiavelli. Saggio interpretativo”. In: Machiavelli
e il suo tempo, p.291. “I governi principeschi italiani avevano nominato storici pubblici fin dagli
inizi del Quattrocento. Ma una simile posizione non esisteva nelle città-stato rpubblicane. La prima
nomina di questo tipo fu quella di Andrea Navagero, che nel 1516 fu stipendiato dal governo
veneziano per comporre una storia di Venezia”.
96
HANKINS, James. “Introduction”. In: History of the Florentine People, vol. 1, p.xi.
183

Tucídides, Políbio e outros, teve depositado em seu túmulo precisamente um


exemplar das Histórias, cena preservada em monumento fúnebre.97
Como percebe Eugenio Garin, “o ideal de Lenardo Bruni era usar humanae
litterae e studia humanitatis como meios para a educação do homem completo”.98
Nesse ideal, pode-se dizer que a história possuía um lugar de destaque, sendo
considerada, inclusive, como um dos pilares dos studia humanitatis,99 por oferecer
exemplos abundantes de ações virtuosas e viciosas, atuando assim como
repositório de experiências alheias incorporadas artificialmente como memória.100
A História de Bruni, nesse sentido, era vista pelos próprios florentinos como um
monumento da cidade, por ilustrar, em estilo irretocável, aquilo que eles
consideravam sua maior virtude como povo: o apego à liberdade.101 Uma prova do
valor atribuído ao empreendimento de Bruni é a tradução para o vulgar do texto,
completada em 1473 por Donato Acciaiuoli e financiada pela Signoria.102
Não que Leonardo Bruni tenha sido o primeiro a escrever os feitos dos
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florentinos desde tempos imemoriais: ao longo dos séculos XIII, XIV e XV


diversos cronistas, como Dino Compagni, Giovanni Villani, seu irmão Matteo,
Filippo, filho deste, Goro Dati, entre outros, deixaram valiosos registros da vida
citadina e dos conflitos externos de Florença. Um dos focos principais dos
cronistas era fornecer descrições detalhadas dos assuntos internos e externos da
cidade, entre outras coisas para que futuros historiadores interessados em escrever
histórias de Florença segundo os cânones clássicos tivessem material abundante à
disposição.103 As crônicas eram compostas em língua vulgar – ou seja, na própria

97
Cf. WILCOX, Donald J. Op. cit., p.8. “Poggio Bracciolini, who would eventually succeed Bruni
both as chancellor and as historian of Florence, composed a funeral oration for Bruni in which the
Historiae are singled out among Bruni’s achievements: ‘But’, [diz Poggio], ‘what must receive the
highest praise from all ages is the history of Florentine affairs which he wrote in twelve books
[..]’”.
98
GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.41. “Leonardo Bruni’s ideal was to use humanae litterae
and studia hmanitatis as means for the education of the complete man”.
99
Cf. KRISTELLER, Paul Oskar. Renaissance Thought and its Sources, p.244. “The fourteenth
century witnessed a rise of grammar and rhetoric, especially in Italy, and this is reflected in the
new scheme of the studia humanitatis which we encounter in the course of the fifteenth century.
This scheme, as we saw before, includes grammar, rhetoric, poetry, history, and moral
philosophy”.
100
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.125. “History becomes the history of publicly-shared
experience on the one hand”.
101
Como nota Donald Wilcox, “[...] at least outside humanist circles, Bruni’s history was valued as
an illustration of how liberty is to be achieved and maintained”. WILCOX, Donald. Op. cit., p.16.
102
Cf. Idem. Ibid., p.4.
103
Apud MATUCCI, Andrea. Machiavelli nella storiografia fiorentina, p.3. Diz Villani: “non
perch’io mi senta sifficiente a tanta opera fare, ma per dare materia a’nostri successori di nonn-
essere negligenti di fare memorie delle notevoli cose che averranno per gli tempi apresso noi”.
184

língua falada e usada em apontamentos comerciais, e não em latim, comum nos


tratados humanistas – e em estilo próximo daquele empregado por mercadores em
seus livros de memórias, visando primordialmente à produção de lições úteis
calcadas na distinção entre virtude e vício.104 Apesar disso, as crônicas não se
conformavam a muitos dos preceitos clássicos associados à ars historica.105 “As
crônicas ainda não eram histórias”, diz Eric Cochrane, “pelo menos não de acordo
com a nova definição de história que estava para emergir do trabalho de Bruni e
seus sucessores”106 – precisamente a noção de vera storia, ou história verdadeira.
Isto por algumas razões: em primeiro lugar, as crônicas eram redigidas em língua
vulgar, considerada imprópria para gêneros nobres e dignos. Em segundo lugar, as
crônicas eram estruturadas livremente: normalmente não apresentavam uma
introdução geral de caráter filosófico, não se atinham exclusivamente à vida
política e assuntos militares – até mesmo por isso elas são documentos preciosos
para os historiadores contemporâneos, por fornecerem informações valiosas sobre
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o cotidiano e as práticas econômicas –, tampouco emulavam necessariamente as


autoridades clássicas. Finalmente, a história, como argumentavam os humanistas a
partir da leitura de Cícero, deveria fornecer padrões de compreensão mais
complexos que a pura descrição dos eventos, característica das crônicas
(descrições estas que, como percebe Louis Green, muitas vezes portavam um
sentido providencialista completamente estranho às histórias humanistas).107
A História de Bruni, nesse sentido, pode ser considerada como o modelo
perfeito da vera storia em sentido humanista: construída em latim perfeito, emula
as autoridades de Tito Lívio, Salústio, Tucídides e Políbio, especialmente do

104
Cf. GREEN, Louis. Chronicle into History, p.3.
105
Sobre esta questão, afirma Donald Wilcox: “Bruni’s statement of theme differs from the
opening sections of all these chronicles and vernacular histories in two major respects. First, in no
case do the chroniclers present a clear statement of the scope of their subject. […] The second
difference between the preface of Bruni and those of the chroniclers illustrates even more plainly
his departure from tradition. The chroniclers’ statements of scope are not only confused but
basically nonselective, including everything in any way connected with the general topic of their
work, whether that is a city or a family. The rigor with which Bruni applies his principle of
selectivity separates him strikingly from the group of vernacular historians”. WILCOX, David.
Op. cit., p.34.
106
COCHRANE, Eric. Historians and Historiography in the Italian Renaissance, p.11.
“Chronicles were not yet history, at least not according to the new definition of history that was to
arise from the work of Bruni and his successors”.
107
Cf. GREEN, Louis. Op. cit., p.5. “Instead of so dismissing history, a chronicler such as
Giovanni Villani saw it as material through which the will of God revealed itself. It could be made
to demonstrate the consistency between the working of the human world and the principle of
divine justice”.
185

primeiro.108 Seus temas são circunscritos à vida política citadina e às guerras


travadas por Florença.109 “A história”, diz Bruni no proêmio, em clara referência a
alguns dos preceitos ciceronianos estabelecidos no De Oratore, “requer uma
narrativa longa e bem conectada, explicações causais de cada evento, e a
expressão pública do julgamento sobre cada assunto”.110
Assim como em sua acepção antiga, a história, para os humanistas, deveria
ser persuasiva. Por essa razão, esperava-se que ela seguisse as regras próprias ao
decoro letrado do gênero – ou seja, o que convém a um tipo de relato.111 Se não
houver a demonstração da estima pelo bem público e pela virtude; se o estilo e as
figuras não forem apropriados; se não houver uma preocupação com a verdade;
enfim, se estas condições não se fizerem presentes, presumia-se que dificilmente
um leitor ou ouvinte se deixaria levar pela narrativa.
A abertura, ou proêmio, das Histórias de Leonardo Bruni ilustra bem os
aspectos discutidos acima:
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Deliberei por muito tempo e muitas vezes tive que mudar de idéia antes de decidir
escrever sobre os feitos do povo florentino, suas lutas na cidade e fora dela, seus
celebrados êxitos na guerra e na paz. O que me atraiu foi a grandeza das ações
realizados por este povo: primeiramente, suas muitas lutas internas, em seguida
suas admiráveis empresas contra seus vizinhos imediatos, e finalmente, no nosso
tempo, a luta contra o todo poderoso Duque de Milão e o agressivo rei Ladislau.
[...] Por terem parecido a mim dignos de registro e lembrança, acreditei que o
conhecimento destes fatos serviria tanto a fins públicos como privados. Pois se
pensarmos que homens de idade avançada são mais sábios porque viram mais da
vida, quão maior é o conhecimento que a história nos pode proporcionar se for lida
com cuidado! Pois na história as ações e decisões de muitas eras podem ser

108
Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.208. “The humanists believed that
writers of histories ought to follow the same principle which the humanists applied to all their
literary efforts: the principle of ‘imitation’”.
109
Cf. FUBINI, Riccardo. “Note sugli ‘Historiarum Florentini Populi Libri XII di Leonardo
Bruni”. In: Storiografia dell’umanesimo in Italia da Leonardo Bruni ad Annio da Viterbo, pp. 97-
8. “Le Historiae del Bruni nascono da esigenze complesse: l’intento di ricostruire la storia
cittadina, concepito di seguito e a sviluppo del panegirico della Laudatio Florentinae urbis, mal si
lascia distinguere da quello di ripristinare il modello della storiografia antica greco-latina, come
parte in senso lato di un programma culturale, in virtù del quale egli veniva in pari tempo
traducendo (o ritraducendo) e divulgando opere di storici, oratori e filosofi greci [...]”.
110
BRUNI, Leonardo History of the Florentine People, p.5.
111
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.164. “Conversely, the prudent man who wishes to be
considered wise also observes the same decorum and bows to the times: ‘prudentis viri esse parere
tempore’”.
186

minuciosamente examinadas; de suas páginas podemos facilmente aprender que


comportamento devemos imitar ou evitar, ao mesmo tempo em que a glória
conquistada por grandes homens nos inspira a agir de forma virtuosa”.112

No trecho fica evidente o caráter pedagógico e paradigmático da história:


através de inúmeros exemplos de ações nobres e virtuosas do passado, tanto no
que diz respeito à condução da República quanto às guerras com outras cidades, é
possível deliberar sobre os comportamentos a imitar ou evitar no presente e no
futuro. As lições definidas por Bruni, nesse sentido, não pressupõem uma tensão
entre o útil e o honesto: elas afirmam preceitos universais, sentenças de validade
indistinta que todavia devem ser urdidas em consonância com o exame cuidadoso
das situações particulares. Se, como defende Cícero no De Oratore pela voz de
Antonio, “que sobre as deliberações seja indicada qual é aquela que o autor
aprova”, a aceitação ou reprovação das resoluções e condutas dos agentes é
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articulada como efetivo juízo prudencial, orientado pelo exame das circunstâncias
conjunturais. Bruni, tradutor da Política e da Ética aristotélica, vê na prudentia a
disposição responsável pela orientação da escolha segundo as virtudes morais,
resultando em ações apropriadas, que são objetos de elogios, ou em situações
contrárias à prudência, passíveis de vitupérios. Os discursos diretos, nesse sentido,
constroem não apenas paralelismos argumentativos como também conformam
exemplos vívidos de tipos de virtudes cívicas, como percebe Nancy Struever.113
A Historia populi florentini de Poggio Braciolini, mesmo com um alcance
temporal menor – cem anos, de 1350 a 1450, contra os quase mil e quinhentos
anos abrangidos por Leonardo Bruni114 –, apresenta pontos de vista bastante
similares àqueles sustentados pelo humanista aretino115, embora, como note
Donald Wilcox, Poggio dedique mais atenção às guerras externas que às
vicissitudes internas.116 No proêmio, Poggio afirma a utilidade da história, e diz
que somente homens excelentes e de grande engenho podem escrevê-la

112
BRUNI, Leonardo. Op. cit., p.3.
113
Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.135. “Bruni most frequently uses speeches to present
recurring types of civic virtue”.
114
Cf. Idem. Ibid., p.166.
115
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.131. “the historical ideas in Poggio’s Historia are quite
similar to Bruni’s”.
116
Cf. Idem.
187

apropriadamente.117 Poggio, como argumenta Wilcox, é ainda mais enfático que


Bruni na formulação de seus julgamentos morais, menos sutis que os de seu
predecessor118 – talvez porque o humanista aretino, tradutor de Aristóteles, tivesse
uma compreensão mais apurada que a de Poggio sobre as agudezas do livro VI da
Ética a Nicômaco.119
Sem questionar os preceitos ciceronianos associados à ars historica, o
tratamento da questão por Lorenzo Valla e Giovanni Pontano apresenta algumas
nuances que podem fornecer elementos para o exame de certas particularidades
das histórias compostas por Maquiavel e Guicciardini. Como percebe Cesare
Vasoli acerca das reflexões de Lorenzo Valla, “a cultura humanista consignou ao
futuro ainda uma outra concepção da história, fundada na idéia do valor crítico do
conhecimento do passado”.120 Trata-se, penso, menos de uma outra concepção
que do destaque a certos elementos até então secundarizados ou discutidos
apressadamente por Cícero, Quintiliano e por humanistas como Salutati, Guarino,
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Fontius e o Trapezuntio. A proeminência conferida a aspectos como solertia,


acumen e iudicium, aos quais Valla se refere em sua Historiarum Ferdinandi
Regis Aragoniae libri tres, não entra em contradição com a concepção retórica da
história, muito pelo contrário: ela visa a tornar mais efetivo o conhecimento das
coisas – copia rerum –, fornecendo elementos diversos para a conformação da
copia verborum. Daí que para Valla a “história ofereça ao homem um saber civile
e um ensinamento de prudentia superior à filosofia”.121

117
BRACCIOLINI, Poggio. Historia populi florentini, prohemio. “per idustria eingegnio
deglhuomini excellenti estata trouata lahistoria”.
118
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.143. “His attention to the conduct of tyrants in the Historia is
clear evidence that he wishes his history to have didactic and moral value for them as well as for
citizens of a republic – an attention which represents a definite expansion in scope over the
Historiae Florentini populi. […] Rather, he superimposes upon an historical narrative constructed
in terms of a casual complex similar to Bruni’s a moral judgment of a type that Bruni regularly
avoids”.
119
Ao mesmo tempo, como argumenta Gian Mario Anselmi, Poggio, diferentemente de Bruni,
atribui importância destacada ao poder da Fortuna e do acaso. Cf. ANSELMI, Gian Mario.
Ricerche sul Machiavelli storico, p.71.
120
VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 229. “Ma la cultura umanistica ha consegnato al futuro anche
un’altra concezione della storia, fondata sull’idea del valore critico della conoscenza del passato,
del suo rapporto con il mutare dei linguaggi, delle istituzioni e delle culture, della sua capacità
d’intendere e interpretare i ‘documenti’ e i segni di ogni genere che tramandano la memoria
dell’umanità, e di servirsene per comprendere e discutere anche il presente”.
121
Idem. Ibid., p. 230. “Ma il Valla sa pure, e lo afferma senza esitazioni, che la storia offre
all’uomo un sapere ‘civile’ e un insegnamento di ‘prudentia’ assai suepriore di quello recato dalla
filosofia”.
188

Nesse sentido, como argumenta Liliana Monti Sabia, “a normativa do


Actius”, diálogo composto pelo humanista napolitano Giovanni Pontano entre
1495 e 1499,

revela-se facilmente como uma reelaboração, amplamente articulada e filtrada pelo


próprio gosto e a própria sensibilidade artística, de preceitos que remetem a autores
clássicos, em particular a Cícero, a Quintiliano e Luciano, preceitos que eram de
domínio comum na consciência cultural do Humanismo, tanto que já antes dele
outros, como Guarino de Verona e Jorge de Trebizonda, as haviam tomado como
objeto de seus escritos, antes mesmo de Pontano.122

Ad docendum, ad delectandum, ad movendum123: são estas, para Pontano, as


três finalidades da história. Para que sejam alcançadas, diz ele, o historiador deve
privilegiar em sua narrativa a brevitas e a celeritas124; deve expor as causas e
efeitos dos acontecimentos, assim como os consilia, sententiae e voluntates dos
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que têm poder de decisão.125 Estas tópicas, porém, não devem ser tomadas como
fins em si mesmas, na medida em que possibilitam um melhor conhecimento da
matéria – de modo a trazer para a análise elementos diversos, capazes de incidir
na produção de lições úteis e honestas pelos ouvintes e leitores.126 A ênfase
atribuída a tópicas atreladas à discussão da acuidade do relato histórico não se
choca com as prescrições do De Oratore; tal destaque revela, todavia, um
interesse cada vez maior pela questão dos efeitos, pela análise prudente das

122
SABIA, Liliana Monti. Pontano e la storia. Dal De bello Neapolitano all’ Actius, pp. 2-3.
“Cominceremo subito coll’osservare che la normativa dell’Actius sul modo di scrivere la storia,
salvo alcuni spunti personali, si rivela facilmente come una rielaborazione, ampiamente articolata
e filtrata attraverso il proprio gusto e la propria sensibilità artistica, di precetti risalenti agli autori
classici, in particolare a Cicerone, a Quintiliano, a Luciano, precetti ch’erano di dominio comune
nella coscienza culturale dell’Umanesimo, tant’è vero che giá altri, come Guarino Veronese, o
Giorgio da Trabisonda, li avevano fatti oggetto dei loro scritti assai prima del Pontano stesso”.
123
Apud. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p. 9.
124
Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.11.
125
Cf. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p.12. “Alle cause che provocano un’azione politica o una
guerra sono legati i consilia, le sententiae, le voluntates di coloro che hanno poteri decisionali,
teorizza l’Actius, citando l’esempio di Livio e Sallustio, per mostrare come sia opportuno
presentare attraverso i discorsi le opinioni di protagonisti in contrasto tra loro”.
126
Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 224. “Il Pontano – è stato già più volte rilevato – insiste sul
nesso tra causa ed effetto di cui lo storico deve essere ‘memor certusque ... ac versus expositor’,
così comme deve conoscere i fini perseguiti dagli ‘actores’, le loro decisioni (‘consilia’) ed i loro
risultati. [...] Comunque, il suo modello della narrazione storica consisteva nella presentazione di
una serie di fatti e di azioni tra loro strettamente connesse, da ricostruire nella loro genesi e nel
loro sviluppo che lo storico deve adornare con la sua capacità oratoria, proporre come exempla e
utilizzare per il fine preminente dell’insegnamento etico e politico”.
189

possibilidades deliberativas abertas aos agentes históricos. Deste modo, na medida


em que o exame da prudência em Pontano adquire um maior grau de
complexidade em relação ao tratamento humanista usual, como analisei no
capítulo 1, também a ars historica, gênero por excelência do homem de letras
prudente, adquire novos contornos, com a ênfase nas minúcias das ações
particulares e nas motivações dos agentes envolvidos em processos decisórios,
analisados não apenas pelo viés moralizante da adequação de suas condutas às
virtudes morais, mas também pela inquirição dos efeitos práticos de suas
intervenções e deliberações.

As análises críticas sobre as histórias renascentistas, especialmente aquelas


produzidas nos séculos XV e XVI em Florença, Nápoles, Milão e Veneza, têm-se
pautado, ao menos desde a publicação, no início do século XX, da História da
Historiografia moderna de Eduard Fueter127, pela afirmação do suposto caráter
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moderno e inovador das produções letradas de cunho histórico compostas por


Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Giovanni Pontano, Bartolomeo Cerretani e
especialmente as Istorie Fiorentine de Maquiavel e a Storia d’Italia de
Guicciardini, isto pela observação, entre os homens de letras que se dedicaram à
composição de obras históricas nesse período, de práticas como a pesquisa
documental apurada e a atenção especial às motivações “psicológicas” dos
agentes históricos.
Alguns pesquisadores da segunda metade do século XX, como Felix
Gilbert, Nancy Struever, Donald Wicox, Hannah Gray, E. B. Fryde, Cesare Vasoli
e Gian Mario Anselmi, bastante cuidadosos em suas abordagens críticas,
procuraram atenuar a hipótese central do historiador alemão sobre a
“historiografia” humanista – a saber, a idéia de uma ruptura desta com certos
padrões antigos e medievais –, alicerçada na premissa da secularização e
independência dos eruditos do Quattrocento em relação às autoridades religiosas.
Ao mesmo tempo, estes estudiosos rejeitaram determinados aspectos teleológicos
da argumentação de Fueter, como a consideração do princípio da imitatio como

127
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.27. “A more balanced understanding of the humanists
emerged only in the early years of the twentieth century in what has become a classic work on
historiography: Eduard Fueter’s Geschichte der neueren Historiographie. Fueter points out the
humanists’ secularism and independence from authority, their use of history to embellish cultural
190

subserviência intelectual aos modelos clássico, a rejeição de algumas conclusões


das histórias humanistas que, para o historiador alemão, careciam de melhor
comprovação documental, além da afirmação de certas ausências estruturais,
como o tratamento marginal destinado aos assuntos econômicos.128 Embora não
tenham se recusado a atribuir um caráter inovador e moderno à ars historica
humanista, os autores referidos sublinharam de forma unânime a necessidade de
compreender as histórias humanistas como peças retóricas que seguiam regras,
padrões e convenções estabelecidos em tratados como o De Oratore ciceroniano e
o Actius de Pontano. Nesse sentido, segundo palavras de Donald Wilcox, a ars
historica humanista deve ser compreendida como uma efetiva “concepção retórica
da escrita histórica”129, ou uma “teoria retórica da história”130 que visava
primordialmente à fixação de lições úteis para seus leitores.
Pode-se dizer que, desde a década de 1970, as tendências predominantes no
debate crítico acerca da ars historica do Quattrocento e do Cinquecento têm
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oscilado entre a afirmação de uma suposta originalidade humanista, quase sempre


vinculada à conjectura da emergência de uma nova consciência histórica nos
séculos XIV e XV, e a constatação de um certo grau de convencionalidade
retórica nas histórias humanistas – concepções que muitas vezes se entrelaçam
numa mesma argumentação. Em The Language of History in the Renaissance
(1970), Nancy Struever defende que “a nova consciência da linguagem dos
Humanistas italianos envolve necessariamente uma nova consciência da
história”.131 Hipótese similar é defendida por E. B. Fryde em “The Revival of a
‘Scientific’ and Erudite Historiography in the Earlier Renaissance” (1973),
incluído em Humanism and Renaissance Historiograph. Para o autor, mudanças
significativas teriam se dado entre os séculos XIV e XV, decorrentes do
“despertar, nesse período, de um senso mais aguçado da mudança história”.132
Também Cesare Vasoli destaca a emergência de uma nova consciência da

ideals, their superior narrative and stylistic techniques, and, finally, the extent to which they made
critical use of sources”.
128
Cf. Idem.
129
Idem. Ibid., pp. 28-29.
130
Idem. Ibid., p.30.
131
STRUEVER, Nancy. Op. cit., p. 144. “The basic assumption of this study is that the new
awareness of language of the Italian Humanists necessarily involves a new awareness of history”.
132
FRYDE, E. B. Op. cit., p.3. “My way of attempting to do this Will be to focus attention on
certain significant changes in historiography that took place in Italy in the fourteenth and fifteenth
centuries. Historiography, strictly speaking, means only the actual writing of history. But I shall be
also concerned with the awakening in that period of a more acute sense of historical change”.
191

linguagem, embora rejeite quaisquer atribuições de modernidade ou proto-


modernidade à ars historica dos humanistas italianos.133
No que diz respeito às Istorie Fiorentine de Maquiavel, Felix Gilbert e
Andrea Matucci argumentam pela existência, no texto, de um contraste entre o
conceito humanista de história e uma aproximação pragmática do passado134;
segundo esse viés, as Istorie comportariam uma revolução não levada plenamente
ao seu limite, onde a força das abordagens políticas de Maquiavel seria de certo
modo tolhida pelas amarras de uma concepção retoricizante da escrita da história.
Gian Mario Anselmi, por sua vez, pressupõe a presença, nas Istorie, de uma
“concepção de história” que se constitui como entrelaçamento contínuo entre
iniciativa do sujeito e os processos objetivos da realidade.135 Sobre a Storia
d’Italia de Guicciardini, Felix Gilbert destaca o “realismo psicológico”
guicciardiniano136, a saber, sua tentativa de perscrutar as motivações dos
principais agentes envolvidos nos processos decisórios de Repúblicas, principados
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e monarquias – aspecto que segundo Donald Wilcox já se fazia presente nas


Histórias de Leonardo Bruni.137 Outro suposto elemento inovador destacado por
Felix Gilbert acerca da Storia de Guicciardini diz respeito à aplicação rigorosa de
métodos críticos e à amplitude histórica das análises do florentino.138 Nesse
sentido, a Storia d’Italia seria, para o historiador norte-americano, a última grande
obra de história segundo os padrões clássicos e a primeira grande obra da
historiografia moderna.139 Andrea Matucci vai ainda mais longe, ao dizer que
Guicciardini foi efetivamente o fundador da ciência histórica moderna.140

133
Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhétorique en Italie au XVeme siècle”, p.45 ; “Modelli
teorici della storiografa umanistica”. In : Op. Cit., p. 213.
Op. cit., pp. 211-213.
134
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 237; MATUCCI, Andrea. Op. cit., p.219
135
Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.199. “[…] riconoscere la portata innovatrice di un
discorso che, come quello machiavelliano, assume la realtà come oggettività da verificare, la
natura come materia, la storia quale intreccio continuo fra le iniziative dei soggetti e i processi,
oggettivi nella loro naturalità, ad essi esterni”.
136
GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292.
137
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.57. “Bruni’s treatment of human motivation tends to bring
out the psychological element of his historical vision; in his assessment of individual character, on
the other hand, the political nature of his historical writing emerges most sharply”.
138
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., pp. 290-291.
139
Cf. Idem. Ibid., p. 301. “Guicciardini’s History of Italy is the last great work of history in the
classical pattern, but is also the first great work of modern historiography”.
140
Cf. MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 246. “È dalle Cose fiorentine in poi, dunque, che si parla di
Guicciardini come del fondatore della ‘scienza storica moderna’: di colui, cioè, che ha dato rigre
scientifico, e procedimenti extra-letterati, a quel lavoro preparatorio che, di soliro invisibile, è
sempre il primo passo verso il finale risultato letterario di un’opera storiografica”.
192

Penso que este tipo de abordagem, embora possua inegável valor, não
considera de forma apropriada o caráter convencional das Istorie Fiorentine e da
Storia d’Italia. Mesmo autores que, como Felix Gilbert, Gian Mario Anselmi e
Guglielmo Barucci, atribuíram importância significativa ao exame dos preceitos
retóricos propostos pelas “autoridades” antigas e humanistas sobre a ars historica
para a compreensão das histórias renascentistas acabaram por vezes tratando tais
preceitos como aspectos puramente formais, “convenções literárias” em grande
medida descoladas de um conteúdo inovador, pensado como concretização de
intenções de ruptura manifestas ou sub-reptícias, especialmente no que diz
respeito às Istorie Fiorentine de Maquiavel e à Storia d’Italia.141 Nesse sentido,
defendo que, embora certas tensões com as tradições clássica e humanista possam
ser delineadas nestes escritos, eles não devem ser tratados como tentativas de
renovação do gênero histórico. Muito pelo contrário: proponho uma interpretação
das histórias compostas por Maquiavel e Guicciardini que, ao explicitar e
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examinar o caráter convencional destas, segundo os preceitos ciceronianos e as


concepções humanistas sobre a ars historica, permita atestar os pontos de tensão
destes escritos em relação às reflexões antigas e humanistas, aspectos que,
heuristicamente, mas nunca pelo critério do verossímil histórico, podem até
mesmo conformar figurações avant-la-lettre de certas preocupações específicas da
historiografia moderna – o que, devo dizer, não é a linha argumentativa
privilegiada nas próximas páginas, focadas inicialmente no exame do caráter
retórico das Istorie Fiorentine e da Storia d’Italia, para, em seguida, examiná-las
como performances letradas do bom juízo alicerçadas por um sentido de
prudência distinto do usual entre os humanistas do Quattrocento.

141
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 274. “But if in its formal aspects the History of Italy
corresponds to humanist prescriptions, these are not the features which the reader considers as
determining the character of the book. Rather it is a work which bears the imprint of the author’s
personality and mind, and as such it is a reflection of the Florentine political tradition and of the
political experiences of the age”.
193

4.3
Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias.

Considerações gerais. Do suposto caráter inovador das Istorie Fiorentine de


Maquiavel: breve estado da questão. O proêmio geral: as críticas às histórias de
Leonardo Bruni e Peggio Bracciolini. Da convencionalidade retórico-poética das
Istorie. A história como performance letrada da prudência: a questão dos efeitos.

O ano de 1520 marcou o início da aproximação oficial de Maquiavel com os


Medici. Após compor, nos três anos anteriores, peças letradas que tiveram boa
circulação e contribuíram para a formação de uma sólida reputação de homem de
letras engenhoso e hábil em vários gêneros – na comédia (Mandragola), na fábula
(Belfagor), na poesia (Asino), no diálogo (Arte da Guerra), em gêneros históricos
como a Vita di Castruccio Castracani, isso para não falar dos Discorsi e do
Príncipe, um pouco anteriores e bastante difundido nos círculos eruditos
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florentinos142 –, Maquiavel recebe do Cardeal Giulio de’Medici, futuro papa


Clemente VII, a incumbência de “escrever os anais, ou em verdade a história das
coisas feitas pelo estado e cidade de Florença, a partir da data que lhe pareça
conveniente, e em língua latina ou toscana, como preferir”, na formulação por ele
mesmo sugerida em carta a Francesco del Nero – o qual, juntamente com o
Cardeal Giulio, presidia o Studio Fiorentino.143 Em seguida, foi agraciado com o
salário de cem florins di studio – equivalente a cinqüenta e sete florins di suggello,
“pouco mais da metade do que ganhava regularmente nos bons tempos como
chanceler da Senhoria”, nas palavras de Roberto Ridolfi.144
Muitos já notaram proximidades importantes entre as Istorie Fiorentine e as
histórias humanistas. Segundo Felix Gilbert, Maquiavel “modelou sua história de
acordo com os padrões humanistas aceitos”: a história é dividida em livros, cada
qual iniciando com reflexões de caráter geral; “a narrativa é salpicada com um
vasto número de discursos cuidadosamente trabalhados”; “eventos importantes

142
Cf. RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, pp. 191-201.
143
Carta de Nicolau Maquiavel a Francesco del Nero, 10 de setembro de 1520. “Sai condotto per
anni ecc. con salario ecc. con obligo che debba e sia tenuo scrivere gli annali o vero le istorie delle
cose fatte da lo stato e città di Firenze, da quello tempo gli parrà più conveniente, et in quella
lingua o latina o toscana che a lui parà”.
144
RIDOLFI, Roberto. Op. cit., p.210.
194

são anunciados por sinais dos céus, e as cenas de batalhas são dolorosamente
relatadas”.145 Porém, prossegue Gilbert,

existem indícios de que Maquiavel considerava as prescrições humanistas mais


como convenções literárias que como uma forma apropriada para a escrita da
história. Após descrever a batalha de Anghiari na maneira ornada requerida pela
teoria histórica humanista, ele comentou que nessa longa e famosa batalha apenas
um homem havia sido morto e ele não teria morrido em conseqüência de ação
inimiga, e sim ao cair do seu cavalo e bater com a cabeça no chão. Com esta
observação ele satirizou as elaboradas peças de batalha dos historiadores
humanistas.146

E conclui: “o modelo humanista era, para Maquiavel, uma estrutura onde ele
expunha, quase que arbitrariamente, sua mensagem política”.147
Há, em Gilbert, a presunção de dois domínios distintos atuando
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conjuntamente nas Istorie, com fronteiras claramente demarcadas: a forma, que


pode ser satirizada e usada de maneira instrumental, e o conteúdo, dono de uma
mensagem que se cola a uma moldura retórica que lhe dá suporte. Posição similar
é sustentada por Harvey Mansfield, que afirma haver uma incerteza quanto ao
caráter do escrito do secretário, se ele deve ser entendido como obra de ciência
política ou como uma história148 – dito de outra forma, tratar-se-ia de uma
incerteza quanto ao aspecto fundamental das Istorie, se sua forma usual ou seu
conteúdo inovador.149 Segundo Donald Wilcox, as considerações tecidas no

145
GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p. 237. “He framed his history according to the
accepted humanist standards. […] Machiavelli divided his work into a number of books, and each
began with general reflections on a topic to which the events described in the following chapter
referred. The narrative is studded with a large number of carefully wrought speeches. Important
events are announced by signs from the heavens, and battle scenes are painstakingly related”.
146
Idem. Ibid., p.237. “But there are indications that Machiavelli considered the humanist
prescripts as a literary convention rather than as an appropriate form for the writing of history.
After he described the battle of Anghiari in the ornate manner required by humanist historical
theory, he commented that in this long and famous struggle only one man was killed and he did
not die from enemy action but from falling from his horse and landing on his head. With this
remark he satirized the elaborate battle pieces of the humanist historians”.
147
Idem. Ibid., p. 238. “The humanist pattern was for Machiavelli a framework onto which he
hung, almost arbitrarily, his political message”.
148
Cf. MANSFIELD, Harvey. Machiavelli’s Virtue, p. 131. “Besides the uncertainty as to whether
his work is history or political science, and in addition to the concentration on politics, Machiavelli
shares with humanist historians the device of inventing speeches”.
149
Trata-se de questão das mais debatidas entre os estudiosos de Maquiavel, a saber, o caráter da
mobilização e circulação de muitas das hipóteses defendidas nos Discorsi nas Istorie. Cf. SASSO,
Gennaro. Niccolò Machiavelli, vol II. La storiografia, p.47. “Ed è così importante che non a torto
195

proêmio geral das Istorie sobre Lenardo Bruni e Poggio Bracciolini, que analisarei
adiante, constituem uma crítica ao conteúdo das histórias humanistas, embora
Maquiavel, nas palavras de Wilcox, imite a “elegância formal” dos seus
predecessores.150
Penso que tais considerações, embora não deixem de ressaltar a
proximidade das Istorie em relação aos modelos antigos e humanistas da ars
historica, comportam alguns equívocos. O primeiro diz respeito à já referida
pressuposição da separação entre forma e conteúdo; o texto das Istorie, nesse
sentido, seria o marco de uma tensão irresoluta entre análise política efetiva e
rigidez retórica formal, hibridismo que só não teria sido implodido por Maquiavel
pelo fato de que ele fora contratado pelos Medici e, por essa razão, precisaria, em
alguma medida, prestar contas com a tradição, o que teria feito pela imitação da
forma humanista, não sem deixar registros de sua lucidez analítica, especialmente
nos proêmios dos oito livros. “A história de Maquiavel”, afirma Andrea Matucci,
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“apenas aceita a retórica em seu primitivo sentido ‘oral’ de força de persuasão”,


organizando “sua matéria de modo a sempre fazer sobressair o significado
político, tornando possível passar com facilidade da ‘narração’ ao ‘discurso’”.151
O segundo equívoco que gostaria de destacar diz respeito à proposição de
um antagonismo entre Maquiavel e os humanistas, que parece deixar em segundo
plano a evidência de que a ars historica do Quattrocento voltava os olhos para os
mesmos modelos emulados por Maquiavel, como Tito Lívio – não apenas nas
Istorie, mas também nos Discorsi –, Salústio e Cícero. Muitas das questões vistas
como centrais em Maquiavel, como a antiga virtus e o exame do caráter benéfico
de certos conflitos internos, são articuladas pelo secretário a partir do tratamento
destes auctores. Finalmente, o terceiro equívoco que gostaria de destacar está

potrebbe essere indicata come la questione stessa, per eccelenza, delle Istorie Fiorentine, – quella
che concerne il significato, non solo storico, di quest’opera, ma altresì teorico-politico: il
sigificato, insomma, che, variamente intrecciat con il primo, costituirà l’oggetto specifico della
ricerca che sta per prendere il suo avvio”.
150
Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., pp. 20-21. “Machiavelli goes on, however, to criticize the
content of both histories of Florence, noting that Poggio and Bruni tended to neglect domestic
affairs in their accounts of the wars and foreign relations of the city.
Machiavelli’s determination to imitate the formal elegance rather than the factual accuracy of his
predecessors cannot be wholly explained by his preferences for vernacular sources”.
151
MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 192. “La storia di Machiavelli, infatti, accetta la retorica solo
nel suo primitivo senso ‘orale’ di forza di persuasione; evita ogni coinvolgimento emotivo con i
personaggi e le loro vicendi/ organizza la sua materia in modo da farne risaltare sempre il
significato politico, così da potere facilmente passare dalla ‘narrazione’ al ‘discorso’, e costringere
il lettore a un continuo confronto fra i fatti e le idee”.
196

diretamente associado ao anterior, e diz respeito à atribuição de uma intenção de


ruptura supostamente articulada no proêmio geral das Istorie, a assim chamada
“crítica à historiografia humanista” – associada, para Gian Mario Anselmi, à
tentativa de “instaurar um discurso científico que restitua à história, na sua
objetividade, também as lutas sociais”, o que incidiria numa “indubitável fratura
em relação a todas as tradições historiográficas precedentes”.152 O fundamento
desta concepção reside na dicotomização entre adesão plena e rejeição total dos
cânones humanistas, abordagem que deixa pouco espaço para a proposição de
possíveis modos mais sutis de relação do secretário com a ars historica
humanista.

As Istorie levaram cerca de quatro anos para serem compostas – de 1521 a


1525. Na já referida carta a Francesco del Nero, Maquiavel deixa em aberto
diversas possibilidades, da remuneração à escolha do idioma, passando pelo ano
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em que a narrativa deveria ter início. O comentário do secretário no proêmio geral


das Istorie sobre a delimitação do ponto inicial de sua narrativa é crucial para a
compreensão do entendimento de Maquiavel sobre a utilidade da história – ou,
como ele chamara nos Discorsi, o verdadeiro conhecimento das histórias.
No proêmio, provavelmente redigido após a composição dos quatro
primeiros livros153, Maquiavel afirma sua aspiração inicial de começar seu relato a
partir do ano de 1434:

Quando deliberei escrever as coisas feitas pelo povo florentino, dentro e fora de
Florença, minha intenção era começar a narração pelo ano 1434 da era cristã,
quando a família dos Medici, graças aos méritos de Cosimo e de Giovanni, seu pai,
ganhou mais autoridade que qualquer outra em Florença.154

152
ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p. 96. “Machiavelli tenta di instaurare un discorso scientifico,
che restituisca alla storia nella sua oggettività anche le lotte sociali. I limiti in proposito del suo
discorso sono i limiti sotoricamente determinati dai tempo (le nuove classi si erano appena
affacciate alla storia): resta l’indubbia frattura operata rispetto a tutta la precedente tradizione
storiografica”.
153
Cf. SASSO, Gennaro. Op. cit., p.11, nota 10. “Che il Proemio si riferisca in realtà ai primi
quattro libri, si deduce agevolmente da quel che si legge nelle sue linee conclusive [...]. Sembra in
effetti evidente che, mentre i primi quattro libri sono anteriori alla stesura del Proemio, che può
perciò descriverli con precisione e indicarne i termini cronologici, i restanti appartengono al
futuro; e, a parte l’ambiguità che si coglie nell’espressione ‘questi nostri presenti tempi’,
Machiavelli evita, non a caso, di specificare quanti libri gli ocorrano per pervenire al traguardo”.
197

Em seguida ele expõe os motivos que o teriam levado a desistir dessa idéia:

messer Lionardo d’Arezzo e messer Poggio, dois excelentes historiadores


[istorici], já haviam narrado, com particularidades, todas as coisas sucedidas até
aquele ano. Mas, depois de ler diligentemente seus escritos, para ver com que
ordem e com que modo procediam, a fim de que, imitando-os, nossa história
recebesse melhor aprovação dos leitores, percebi que foram muitíssimo diligentes
na descrição das guerras travadas pelos florentinos contra os príncipes e os povos
estrangeiros, mas que, no que se refere às discórdias civis e às inimizades internas,
bem como aos seus efeitos, eles calaram de todo uma parte e descreveram a outra
com tanta brevidade que nela os leitores não podem encontrar utilidade nem
prazer algum. Creio que assim fizeram por acharem que aquelas ações eram tão
pouco importantes que as consideraram indignas de entrar para a memória das
letras, ou então porque temiam ofender os descendentes daqueles que, naquelas
narrativas, se houvesse de caluniar. Duas razões são essas que (seja dito em boa
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paz) me parecem de todo indignas de grandes homens; porque, na história, se


alguma coisa há que deleite ou ensine, é a descrição das particularidades, e se
alguma lição há que seja útil aos cidadãos que governam as repúblicas, é aquela
que demonstra os motivos dos ódios e das divisões das cidades, para que, diante do
perigo em que incorreram outros, eles possam ganhar sabedoria e manter-se
unidos. [...] Não sei, portanto, qual a razão de não serem tais divisões dignas de
descrição particularizada. E, se aqueles nobilíssimos escritores se tiverem contido
para não ofenderem a memória daqueles de quem deviam falar, enganaram-se e
mostraram que pouco conhecem a ambição dos homens e o desejo que têm de
perpetuar seu nome e o dos antepassados; e não se lembraram que muitos, por não
terem tido ocasião de conquistar a fama com alguma obra louvável, empenharam-
se em conquistá-la com coisas vergonhosas; e não consideraram que as ações que
têm em grandeza, como são as dos governos e dos estados, seja qual for o modo
como são tratadas, seja qual for o seu fim, sempre conferem aos homens mais
honra que reprovação. Então, depois de considerar tais coisas, mudei de propósito e
decidi começar minha história pelo princípio de nossa cidade. E como não é minha
intenção ocupar o lugar alheio, descreverei com particularidades, até 1434,
somente aquilo que ocorreu dentro da cidade, e sobre as coisas de fora só direi o

154
MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, p.7.
198

que for necessário ao entendimento das de dentro; depois, passado o ano de 1434,
escreverei com particularidades ambas as partes (grifos meus).155

Este trecho é um dos mais citados nas análises críticas das Istorie de
Maquiavel, não somente pelas menções explícitas aos humanistas Leonardo Bruni
e Poggio Bracciolini, como também pela reafirmação de algo que Maquiavel já
defendera nos Discorsi: a importância da análise cuidadosa das lutas internas e
facções de um povo para uma compreensão apropriada das suas instituições,
costumes e hábitos político-militares. Para a maior parte dos analistas, como Felix
Gilbert, Gian Mario Anselmi, Andrea Matucci, Eric Cochrane, entre outros, o
proêmio geral deve ser interpretado como uma crítica direta à “historiografia
humanista”. Embora seja evidente que Maquiavel apresente uma crítica em
relação às abordagens de Bruni e Poggio, creio ser preciso tomar alguns cuidados
na interpretação desta passagem, para que ela não seja tratada como um manifesto
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de ruptura de uma suposta “historiografia crítica nascente” em relação a uma


“historiografia retórica arcaizante”, cujo pressuposto implícito seria a separação
entre esfera formal e retórica da história e análise efetiva da realidade, afastada de
todo tipo de tratamento convencional. Defendo que as críticas de Maquiavel não
têm por objeto as “tradições historiográficas precedentes”, como diz Anselmi;
dirigem-se, isto sim, a um aspecto particular da análise de Bruni e Poggio, a saber,
o tratamento inadequado da questão da discórdia civil, diretamente associado ao
modo com que os humanistas consideravam a relação ente prudência, justiça e
concórdia.
Isto não quer dizer, contudo, que Maquiavel não visse Bruni e Poggio como
homens prudentes: “e como não é minha intenção ocupar o lugar alheio”, diz
Maquiavel, “descreverei com particularidades, até 1434, somente aquilo que
ocorreu dentro da cidade, e sobre as coisas de fora só direi o que for necessário ao
entendimento das de dentro”: há, aqui, o reconhecimento da acuidade de “dois
excelentes historiadores”, no que diz respeito ao tratamento das contendas de
Florença com outros povos – aspecto decisivo, como analisei no capítulo 1, para a
afirmação da segurança e grandeza do stato; logo, para a sustentação da liberdade
em pelo menos um dos seus aspectos constitutivos, a ausência de dominação

155
Idem. Ibid., pp. 7-10.
199

externa. Para Maquiavel, os leitores que se dedicarem às histórias de Bruni e


Poggio extrairão lições dignas e úteis no que diz respeito aos assuntos militares e
às guerras florentinas, alcançando prazer com o relato e sentindo-se incitados a
agir valorosamente na guerra e a buscar a glória verdadeira. Porém, no que diz
respeito aos assuntos internos, suas análises revelam-se insatisfatórias,
especialmente pela brevidade do tratamento ou mesmo ausência total de
considerações acerca das discórdias civis. Nesses momentos, segundo Maquiavel,
as histórias de Bruni e Poggio revelam-se incapazes de incitar à ação imitativa,
por carecerem de conhecimento da matéria.
O direcionamento do olhar para as lutas internas revela um princípio
orientador distinto daquele perceptível em Bruni e Poggio, princípio que, todavia,
não é excludente em relação à atribuição de importância às guerras, às conquistas
citadinas e ao fortalecimento do stato. Como percebe Mikael Hörnqvist, “pela
metade do século XIV, quando a República Florentina começou a emergir como
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um estado imperialista em sua aspiração à hegemonia na Toscana, os termos


libertas e libertà eram freqüentemente agrupados a conceitos como imperium e
signoria”.156 Esta associação predominou também nos séculos XV e XVI,
fazendo-se presente, de acordo com os argumentos de Hörnqvist, nos escritos do
secretário:157 “uma cidade que vive livre”, diz Maquiavel nos Discorsi, “tem dois
fins, um é conquistar, o outro manter-se livre”.158 Porém, no que concerne à tópica
da concórdia, o tratamento de Maquiavel distancia-se, embora não totalmente, dos
preceitos ciceronianos.
Como analisei no primeiro capítulo, o secretário propõe uma distinção entre
dois tipos de conflitos internos: aqueles naturais, entre os grandi e o universale,
que quase sempre incidem em boas leis, e as contendas facciosas, quando os
“humores naturais” dividem-se entre si, como se resultassem de adustão
perniciosa, responsável por desregular completamente o sempre difícil equilíbrio

156
HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, p.40. “By the middle of the fourteenth
century, when the Florentine republic began to emerge as an imperialist state in its own right
aspiring to Tuscan hegemony, the terms libertas and libertà were often coupled with the concepts
imperium and signoria, denoting dominion over internal or external subjects”.
157
Cf. Idem. Ibid., p.72. “When Machiavelli in his Discourses on Livy (c. 1514-18) lays down the
basic tenet of Roman and Florentine republicanism, he draws on and summarizes this more than
century-long tradition: ‘a city that lives free has two ends – one to acquire, the other to maintain
itself free”.
158
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 29, p. 95. Adaptação da tradução. No original: “avendo
una città che vive libera duoi fini, l’uno lo acquistare, l’altro il mantenersi libera”.
200

do corpo político. A concórdia – entendida como tensão de humores distintos que,


em equilíbrios provisórios, incidem na saúde do corpo político, como o fazem no
corpo humano são – constitui, nas Istorie, horizonte regulatório que nunca esteve
perto de se consumar efetivamente na cidade de Florença. Daí as constantes lutas
que incidem no enfraquecimento do stato e que põem em xeque a segurança da
República, afastando os homens da liberdade, tornando-os servos de seus apetites
e, ainda pior, das forças estrangeiras que dispõem da cidade como bem entendem.
A desatenção às contínuas repetições do facciosismo ao longo dos tempos fez dos
florentinos vítimas de si mesmos, da própria incapacidade de alcançar o desejável
equilíbrio provisório entre grandi e universali – cujas tensões, em Roma, tomada
como modelo comparativo pelo secretário, incidiam quase sempre no
fortalecimento do corpo político –, pela reprodução de divisões internas fundadas
em interesses mesquinhos e ambição desmedida. Não é de se estranhar, portanto,
que as conquistas externas tão louvadas por Bruni e Poggio se tornem, no século
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XVI, meras lembranças, ante a constatação da incapacidade dos florentinos de


reaver domínios perdidos e manter os poucos ainda existentes.
As Istorie procuram iluminar este aspecto crucial; se a afirmação da
liberdade inata ao povo florentino constitui uma espécie de fio condutor das
Histórias de Bruni, a atenção ao facciosismo é o ponto de ordenamento da
descrição maquiaveliana das coisas acontecidas em Florença. Tratam-se não
somente de pontos de vista distintos. Maquiavel afirma no proêmio que, “depois
de ler diligentemente” as histórias de Bruni e Poggio, “para ver com que ordem e
com que modo procediam”, é obrigado a atestar a inefetividade destes relatos no
que concerne ao deleite e à produção de lições úteis acerca da dinâmica interna da
cidade de Florença. Ao realizar uma variação de foco analítico, Maquiavel opera,
também, uma significativa mudança de “modos e ordens” – o que não implica,
porém, uma ruptura com a prática humanista da ars historica, ou, como defendem
alguns, um afastamento no que diz respeito ao conteúdo das histórias
quatrocentistas associado à atinência formal à vera storia humanista.
O procedimento analítico que orienta a análise maquiaveliana das coisas
acontecidas em Florença – seus “modos e ordens”159, expressão recorrente nos

159
Como nota J. Patrick Coby, “Modes and orders (modi ed ordini) is Machiavelli’s preferred
phrase for describing the principles and operations of government”. COBY, J. Patrick.
Machiavelli’s Romans. Liberty and Greatness in the Discourses on Livy, p. 195.
201

escritos do secretário, sempre indicando um método particular de inferência


prudencial da realidade, alicerçado na atenção à verità effetualle della cosa – tem
dois fundamentos: (a) a ênfase nos resultados efetivos das ações dos agentes e na
antecipação de possíveis deliberações e condutas destes, através do exame
prudente da realidade e (b) o exame das particularidades das coisas ocorridas,
verdadeira condição, segundo Maquiavel, para a produção de deleite e, logo, de
lições úteis a partir da leitura das histórias. Nesse sentido, pode-se dizer que a
apreciação minuciosa das coisas ocorridas fundamenta a observação aguda da
dinâmica entre diversidades substanciais e acidentes, sem a qual o analista
prudente não poderá, com o mínimo de segurança, orientar a formulação dos seus
juízos.160 Esta é a premissa essencial para que as ações de outros homens do
passado possam ser incorporadas como experiências particulares – uma
estabilidade ou recorrência de certos aspectos das coisas humanas.
Fundamentalmente, está em jogo uma concepção de prudência distinta
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daquela mobilizada por Bruni e Poggio. Se, para estes, a prudência consistia na
decisão correta segundo as virtudes morais e a justiça, Maquiavel associa a
prudência ao bom juízo efetivo – seja ele de um conselheiro de príncipe, de um
embaixador em missão oficial, de um orador atuando nas instâncias deliberativas
da República ou de um magistrado ocupando cargo oficial – daqueles capazes de
interpretar apropriadamente os movimentos da realidade.
Numa passagem do livro IX de suas Histórias que trata do movimento dos
Ciompi, Leonardo Bruni refere-se ao nobre Piero de Filippo degli Albizzi como
“homem famoso por sua prudência”; já a Michele de Lando, homem de baixa
extração que por seus méritos se torna gonfaloniero, Bruni não atribui esta
qualidade.161 Maquiavel, em sua análise do mesmo movimento, confere a um
plebeu não identificado as seguintes palavras, num discurso do livro III das
Istorie: “confesso que essa decisão é audaz e perigosa, mas, quando se é premido
pela necessidade, a audácia é considerada prudência” (grifo meu).162 Já a Piero
degli Albizzi ele atribui uma deliberação desastrosa, responsável pela eleição de
Salvestro de’Medici, “nascido de nobilíssima família do povo”, para o cargo de

160
Sobre esta questão, conferir o capítulo 1, item 1.
161
BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p.19.
162
MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., III, 13, p. 186.
202

gonfaloniero, acirrando ainda mais os conflitos entre grandi e populares.163


Prudente, para Maquiavel, teria sido Michele de Lando, homem de extração baixa
mas que, no comando da República, soube tomar decisões apropriadas ao
momento de crise: “Michele aceitou a Senhoria; e, como era homem sagaz e
prudente, cujos dotes devia mais à natureza que à fortuna, decidiu apaziguar a
cidade e pôr fim aos tumultos”.164 Bruni, embora considere uma “sorte divina”
que o gonfalão tenha parado nas mãos de Michele “naqueles tempos turbulentos”;
ainda que ateste sua “autoridade natural”; conquanto reconheça a relevância de
sua atuação para o apaziguamento dos conflitos naquele ano de 1378, não o
qualifica em momento algum como prudente.165
A nobreza da extração familiar, para o secretário, não é garantia de bom
juízo; somente a argúcia analítica, a atenção à variedade das coisas do mundo e a
tentativa de antever as possíveis ações de outros agentes, critérios necessariamente
associados à eloqüência, conformam premissas capazes de alicerçar um juízo
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prudencial efetivo. Assim, pode-se dizer que em Maquiavel a utilidade do relato


histórico é associada não à produção de lições gerais moralizantes, mas a análises
particulares que levem em conta as condições dos tempos, as minúcias da
realidade e seus efeitos; nesse sentido, as lições maquiavelianas têm mais a
ensinar sobre seu próprio modo de inferência que acerca dos produtos finais dos
ajuizamentos, frutos de considerações alicerçadas no exame das particularidades,
mesmo quando mobilizam sentenças gerais, como analisarei adiante. O olhar
agudo e penetrante de Maquiavel, atento mais aos efeitos das ações humanas que
a deontologias rígidas, opera o reexame da trajetória do povo florentino, não pelo

163
Cf. Idem. Ibid., III, 9, pp. 173-174. “Corria então o ano de 1378, e o mês era abril; messer Lapo
não achava bom diferir a ação, afirmando que nada prejudica tanto o tempo quanto o tempo,
sobretudo para eles, já que na próxima Senhoria Salvestro de’Medici facilmente seria
gonfaloneiro, e, como sabiam, ele era contrário à facção deles. Piero degli Albizzi, por outro lado,
achava bom diferir, porque julgava que precisavam de forças, que não seria possível reuni-las sem
chamar a atenção, e, se fossem descobertos, correriam sério perigo. [...] Tomaram, portanto, essa
decisão, ainda que messer Lapo concordasse de má vontade, considerando nocivo diferir a ação,
pois nunca será inteiramente conveniente o momento de executar uma ação, de modo que quem
espera todas as conveniências ou não tenta coisa alguma, ou, se a tenta, na maioria das vezes o faz
para a própria desvantagem. Advertiram o Colégio, mas não conseguiram impedir que Salvestro se
tornasse gonfaloneiro, porque, quando os Oito descobriram a manobra, impediram que fosse feita
nova votação. Com isso, para gonfaloneiro foi sorteado o nome de Salvestro, filho de messer
Alamanno de’Medici.
164
Idem. Ibid., 16, p.193.
165
BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p. 11. Posição similar é defendida por Guicciardini em suas
juvenis Istorie Fiorentine, onde o governo dos Ciompi responsável por “muitas coisas brutas”. Cf.
GUICCIARDINI, Francesco. Istorie Fiorentine, p.78.
203

viés na monumentalização da liberdade, e sim pela rígida perscrutação da herança


de corrupção dos costumes, abandono da antiga virtude e decadência.
Pode-se notar, nesse sentido, uma proximidade de Maquiavel em relação ao
modelo polibiano da “história pragmática”. Diz Políbio:

Sem dúvida, a partir do entrelaçamento e comparação de todos os feitos entre si,


levando-se em conta suas semelhanças e diferenças, somente assim poder-se-ia
alcançar, no tempo apropriado, o deleite e o proveito proporcionados pela
história.166

Note-se que Políbio, assim como Maquiavel, entrelaça utilidade e deleite: somente
pela exposição das particularidades a narrativa histórica pode produzir um efeito
retórico de presença como os defendidos por Cícero e Luciano; apenas um relato
bem construído, detalhado, ornado, capaz de prender a atenção – em suma, o
produto do engenho aguçado de um homem de letras prudente, capaz de dominar
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as convenções ético-retóricas exigidas no tratamento de sua matéria –, mostra-se


apto a mover o leitor no sentido da ação imitativa. Esta parece ser a questão em
jogo na famosa passagem dos Discorsi:

No entanto, na ordenação das repúblicas, na manutenção dos estados, no governo


dos reinos, na ordenação das milícias, na condução da guerra, no julgamento dos
súditos, na ampliação dos impérios, não se vê príncipe ou república que recorra aos
exemplos dos antigos. E creio que isso provém não tanto da fraqueza à qual a atual
religião conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio fez a muitas regiões
e cidades cristãs, quanto do fato de não haver verdadeiro conhecimento das
histórias, de não se extrair de sua leitura o sentido, de não se sentir nelas o sabor
que têm. Motivo por que infinitas pessoas que as lêem sentem prazer em ouvir a
grande variedade de acontecimentos que elas contêm, mas não pensam em imitá-
las, considerando a imitação não só difícil como também impossível; como se o
céu, o sol, os elementos, os homens tivessem mudado de movimento, ordem e
poder, distinguindo-se do que eram antigamente (grifos meus).167

166
POLÍBIO. Histórias, I, 4.
167
MAQUIAVEL, Nicolau. Discorsi, I, proêmio, pp. 6-7.
204

Como analisei anteriormente, o gênero epidítico visava fundamentalmente o


deleite da audiência, que na história não constituía fim em si mesmo, na medida
em que se supunha que o relato deveria incidir na fixação de lições úteis. Também
já foi dito que a partir de meados do século XV as fronteiras entre os gêneros
epidítico e deliberativo tornam-se cada vez mais tênues, o que reforça ainda mais
a associação entre deleite e utilidade. Na passagem dos Discorsi citada acima,
Maquiavel associa o “verdadeiro conhecimento das histórias” a uma leitura capaz
de extrair delas sentido e sabor, ou seja, uma leitura que se consume plenamente
tanto no deleite – o sabor –, quanto na utilidade, o sentido revelado na imitação de
ações dignas e virtuosas dos grandes romanos do período republicano. Entretanto,
argumenta Maquiavel, os homens de seu tempo recusavam-se a imitar as grandes
ações dos homens do passado, talvez por terem desaprendido o modo diligente de
ler as histórias.
Há, assim, uma estreita proximidade entre o deleite, a imitação e a ação: o
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primeiro produz disposição favorável, a segunda escolhe o modelo apropriado,


através de leitura cuidadosa, enquanto a terceira produz os resultados e efeitos
desejados. Este é, para Maquiavel, o verdadeiro conhecimento das histórias. Este
é, também, o princípio ordenador de suas Istorie, conhecimento efetivo que busca
tanto nas particularidades das coisas quanto na leitura atenta e diligente de
histórias antigas e, como nota Riccardo Fubini, das crônicas do Trecento e do
Quattrocento,168 elementos capazes de conformar bons juízos, urdidos com
eloqüência a partir de matéria abundante. Ao mesmo tempo, tais lições precisam
ser efetivas e persuasivas, pois o verdadeiro conhecimento das histórias é o que se
materializa em ações imitativas; sem isso, o conhecimento será incompleto, e não
poderá ser chamado de prudente.
Pode-se dizer, portanto, que o verdadeiro conhecimento das histórias em
Maquiavel consuma-se com uma performance prudencial do bom juízo com viés
utilitário, a ação imitativa, cuja condição de possibilidade reside na leitura atenta e
diligente das histórias, especialmente as antigas. Nas Istorie, a leitura atenta e
diligente também constitui condição de possibilidade do verdadeiro conhecimento

168
Cf. FUBINI, Riccardo. “Machiavelli, i Medici e la storia di Firenze nel Quattrocento”. In: Op.
cit., p. 204. “Pur nell’ambizione di una storiografia ad elevate pretese letterarie, e soprattuto
inquadrata nella storia generale d’Italia così come era stata suggerita dai suoi modelli umanistici,
Machiavelli aderisce in pari tempo alle prospettive comunali e private di autori quali Villani,
205

das histórias, aquele efetivo, sem revelar, contudo, um viés utilitário tão explícito,
uma vez que os modelos a serem imitados são raros e pouco se destacam em
cenários marcados pela corrupção dos costumes e estranhamento da antiga virtù.
Nesse sentido, pode-se dizer que a opção pelo tratamento das lutas internas nas
Istorie revela-se o produto da leitura diligente realizada por Maquiavel das
crônicas e histórias dos séculos anteriores; ao mesmo tempo, ela visa à produção
de efeitos persuasivos capazes de deleitar seus ouvintes e em seguida movê-los, se
não a imitar bons modelos, em função da quase ausência desses, a emular o modo
de ragionamento exposto nas Istorie. Aqui há uma diferença importante em
relação aos Discorsi, onde os padrões de referência são os romanos do período
republicano, ápice da antiga virtus. Nas Istorie, os exemplos são florentinos: os
modelos para a imitação, se existem, encontram-se perdidos em meio à
degradação geral.
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Com base no que foi dito, pode-se atestar a indissociabilidade entre ars
dicendi e rerum cognitione nas Istorie. O deslocamento do foco analítico operado
por Maquiavel é retórico em todos os seus momentos, estando diretamente
atrelado à reconfiguração do conceito de prudência operada em seus escritos. A
história, assim, deixa de ser concebida como um monumento, passando a
constituir uma forma de performance letrada do bom juízo, evento cuja
atualização por ouvintes e leitores dependerá fundamentalmente da observação e
imitação não das ações, mas do modo cuidadoso de inferência. Isto não implica
atestar um distanciamento da convencionalidade ético-retórica: os fins últimos das
Istorie são o útil e o honesto. Porém, diz ele sobre seu tempo, “nos príncipes não
há apetite de glória verdadeira, e nas repúblicas não há nenhuma ordenação que
mereça louvor”.169 Os homens, argumenta o secretário, sequer são capazes de ler
diligentemente as histórias antigas. Por esse viés, as Istorie, focadas na corrupção
dos tempos, nos erros dos homens, nas condutas impróprias e imprudentes, na
incapacidade decisória, não apenas ensinam pelo viés da negatividade como
oferecem o próprio mecanismo do ajuizamento prudente. As Istorie, nesse
sentido, ensinam a pensar; suas lições são pouco tangíveis, mas nem por isso

Cavalcanti, Giovanni di Carlo”. Conferir também: PHILLIPS, Mark. The Memoir of Marco
Parenti. A Life in Medici Florence, pp. 217-240.
169
MAQUIAVEL. Op. cit., II, 1, p. 77.
206

menos eficientes. Elas não fornecem ensinamentos morais de validade indistinta,


mesmo quando produzem sentenças – por sentença, entenda-se “um fraseado
tirado da experiência que mostra brevemente algo que acontece ou deveria
acontecer na vida”, segundo definição da Retórica a Herênio.170
Como analisei no primeiro capítulo, as sentenças, quando dispostas
esparsamente, “contribuem muito para o ornamento e necessariamente o ouvinte
dará seu assentimento tácito, quando vir que se acomoda à causa um princípio
indiscutível, tomado da vida e dos costumes”.171 As sentenças se espalham pelas
Istorie: “em muitas empresas a tardança te tolhe a ocasião, e a celeridade as
forças”;172 “mas, como nas ações perigosas, quanto mais se pensa, menor é a
vontade de executar, sempre são descobertas as conjurações cuja execução
demora certo tempo”;173 “sem dúvida, maior é a indignação e mais graves são as
feridas de quem recupera a liberdade do que de quem a defende”.174 Embora
sejam apresentadas como princípios indiscutíveis, ela não constituem julgamentos
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morais; a finalidade aqui é menos a produção da lição que a construção do deleite,


através da ornamentação adequada – uma “quebra” da narrativa através da
articulação ocasional da descrição das coisas com reflexões advindas da
experiência. Elas não são conclusões naturais das histórias, e sim princípios
tácitos mobilizados para a produção de efeitos persuasivos.
Não há, portanto, a delimitação de lições universais moralizantes. O
ensinamento das Istorie diz respeito à educação do olhar no sentido da prudência.
Este é precisamente o ponto de conexão entre o escrito maquiaveliano e a Storia
d’Italia de Guicciardini. Embora os produtos do juízo prudencial sejam
completamente distintos, a lição legada diz respeito à necessidade de
aprimoramento das faculdades analíticas.

170
AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p. 235.
171
Idem. Ibid., 25, pp. 235-237.
172
MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., II, 22, p. 112.
173
Idem. Ibid., II, 32, p. 128.
174
Idem. Ibid., II, 37, p. 146.
207

4.4
Guicciardini e os limites da prudência.

Da atinência à verità effetualle. Os limites da análise prudencial da realidade. Os


retratos de Guicciardini.

Se os manuscritos políticos de Guicciardini foram redescobertos apenas no


século XIX, sua maior empreitada literária, a Storia d’Italia, teve ampla
repercussão já no século XVI. Publicada vinte e um anos após a morte do autor,
foi rapidamente traduzida para o inglês, francês, latim, espanhol e alemão.175
Considerada por muitos o registro mais importante da crise dos valores que
caracterizaram o apogeu da Renascença, a Storia d’Italia impressiona pela riqueza
dos seus retratos e pela análise aguda da situação política italiana, ao enfatizar o
papel de destaque adquirido por França e Espanha na região.
Redigida entre 1535-1540, a história apresenta uma análise das “coisas
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ocorridas na Itália” a partir da morte de Lorenzo de’Medici e da chegada dos


franceses – chamada por ele e por muitos dentre seus contemporâneos de calamità
(calamidade) italiana –, com vistas à edificação de um relato exemplar, a partir
dos preceitos ciceronianos sobre a ars historica.176 Na Storia d’Italia, porém, as
análises das personagens envolvidas na dinâmica política italiana no período da
calamidade não são exclusivamente construídas a partir da mobilização de
lugares-comuns retóricos de elogio ou censura, sustentados por amplificações de
virtudes ou vícios. Embora lance mão destas tópicas em diversos momentos,
Guicciardini se propõe a realizar uma análise atenta e penetrante das motivações
dos agentes e das sutilezas da realidade – no que se revela em acordo com o
princípio da verità effetualle della cosa.177
Se no Dialogo Guicciardini argumenta que aqueles que queiram tomar o
passado como modelo devem ser muito perspicazes na leitura das histórias,

175
Cf. RIDOLFI, Roberto. Studi Guicciardiniani, p.18.
176
Cf. BARUCCI, Guglielmo. I segni e la storia. Modelli tacitiani nella Storia d’Italia del
Guicciardini, p.15. “La Storia d’Italia, prima opera storiografica del Guicciardini concepita per la
pubblicazione, è infatti decisamente impostata sul principio ciceroniano dell’opus oratorium
maxime e sulle sue esigenze di decorum riflesse nel profilo classicheggiante costituito
dall’atenzione agli eventi militari, la scansione annalistica, il largo impiego di orazioni,
suggerendo così un impianto tipicamente, ma anche genericamente, liviano”.
177
Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292. “The conventional method which historians used to
describe a personality (and which Guicciardini used in his first Florentine History), was to view
208

porque mínimas variações nas situações podem produzir conseqüências


enormemente diferentes – “tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente,
parte será em outros tempos e algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos
exteriores diferentes e várias cores, de modo que quem não possui os olhos muito
bons o toma por novo e não o reconhece”178 –, conformando assim uma
possibilidade de cálculo relativamente seguro da dinâmica da realidade, e se na
máxima 117 dos Ricordi os “olhos bons e perspicazes”, atentos a “cada mínima
variedade”, podem orientar um ajuizamento prudente sobre as coisas do mundo,
na Storia d’Italia Guicciardini argumentará que “é sem dúvida muito perigoso
governar-se com os exemplos se não concorrem, não só em geral mas em todos os
particulares, as mesmas razões, se as coisas são reguladas com a mesma
prudência, e se, como nos outros fundamentos, não haja uma mesma fortuna”.179
Aqui, as possibilidades de uma análise prudencial segura da realidade são
reduzidas a patamares mínimos.180 A atenção às minúcias da realidade, nesse
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sentido, configura-se não mais como modo possível de atestar padrões de


estabilidade associados às diversidades substanciais das coisas, como no Dialogo
ou mesmo nos Ricordi. O controle dos resultados das intervenções no mundo
definitivamente fugiram ao controle dos prudentes. Assim, até mesmo a
exemplaridade do processo de ajuizamento, mais que das lições gerais em si –
segundo o modelo das Istorie Fiorentine –, torna-se de difícil consecução: embora
o leitor da Storia d’Italia se veja recorrentemente diante de diversos percursos de
ajuizamento prudente, a efetividade dessas análises é posta em xeque, uma vez
que enredadas em teias quase imperscrutáveis de “erros vãos”.
Tome-se o caso de Ferdinando, rei de Nápoles, a quem Guicciardini atribui
imensa habilidade de interpretação das coisas do mundo, especialmente por sua
aptidão para antecipar possíveis desenlaces das ações de outros agentes

the individual in relation to the recognized scheme of virtues and vices so that the moral qualities
of the individual in question would be clearly discernible to the reader”.
178
GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36.
179
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 14, p. 98. “Ma è senza dubbio molto pericoloso
il governarsi con gli esempli se non concorrono, non solo in generale ma in tutti i particolari, le
medesime ragione, se le cose non sono regolate con la medesima prudenzia, e se, oltre a tutti gli
antro fondamenti, non v’ha la parte sua la medesima fortuna”.
180
Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento italiano”, p.200. “Mas a
História da Itália de Guicciardini radicalizara de tal modo as exigências da análise empírica que
acabou por negar o império da repetição (e com ele o da virtù) para afirmar aquele da fortuna (e
com ele o da discrezione).
209

políticos.181 Tal capacidade, contudo, não foi suficiente para impedir sua ruína:
cercado pela corrupção dos costumes e dos valores, rodeados por condottieri e
príncipes ineptos, não há muito que o prudente possa fazer – o que se relaciona
diretamente à maneira com que Guicciardini concebe a dinâmica das “coisas do
mundo”, especialmente a ênfase atribuída ao papel da Fortuna, que se torna, na
Storia d’Italia, uma força praticamente incontrolável que a tudo arrasta: “é
grandíssimo (como todos sabem) em todas as ações humanas o poder da
fortuna”.182
Assim, embora afirme na abertura da Storia que “do conhecimento de tais
fatos, tão graves e variados, todos poderão adquirir muitos ensinamentos salutares,
para si e para o bem público”, o máximo de generalização que tais “ensinamentos
salutares” comportam é a afirmação de que “por exemplos inumeráveis, ficará
evidente toda a instabilidade que se impõe às coisas humanas”. Nas palavras de
Felix Gilbert, “na História da Itália de Guicciardini praticamente inexistem
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exemplos que possam ser imitados”183, o que o escritor florentino afirma logo no
proêmio:

quão perniciosos são, quase sempre a si mesmos mas sempre ao povo, os maus
conselhos proferidos por aqueles que governam, quando, por erros vãos ou cupidez
imediata, vislumbram apenas o que está diante dos olhos, não se recordando das
freqüentes variações da Fortuna; e valendo-se, em detrimento alheio, do poder a
eles concedido pela coletividade, fazem-se, ou por pouca prudência ou por
demasiada ambição, autores de novos tumultos.184

181
GUICCIARDINI, Franceco. Op. cit., I, 2, pp. 11-12. “[...] e, tra gli altri, è manifesto cge il re di
Napoli, benché in publico il dolore conceputo dissimulasse, significò alla reina sua moglie con
lacrime, dalle quali era solito astenersi eziandio nella morte de’figliuoli, essere creato uno
pontefice che sarebbe perniciosissimo a Italia e a tutta la republica cristiana: pronostico veramente
non indegno della prudenza di Ferdinando” (grifo meu).
182
Idem. Ibid., II, 9, p. 193. “Ma è grandissima (come ognuno sa) in tutte l’azioni umane la potestà
della fortuna”.
183
GILBERT, Felix. Op. cit., p. 282. “The humanists believed that history taught by example. In
Guicciardini’s History of Italy there are hardly any examples which ought to be imitated”.
184
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 1, p. 5. “[...] quanto siano perniciosi, quasi sempre a se
stessi ma sempre a’popoli, i consigli male misurati di coloro che dominano, quando, avendo
solamente innanzi agli occhio o errori vani o le cupidità presenti, non si ricordano delle spesse
variazioni della fortuna, e convertendo in detrimento altrui la potestà conceduta loro per la salute
comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione, autori di nuove turbazioni”.
210

A narrativa das “coisas ocorridas na Itália segundo nossa memória”185


constitui, nesse sentido, uma seqüência de erros, oriundos da má interpretação da
realidade pelos governantes “italianos”. Agindo com “pouca prudência” e
“demasiada ambição”, eles teriam levado Repúblicas e principados à ruína. Como
afirma Mark Phillips, “Guicciardini percebe claramente que os acontecimentos
eram ainda mais trágicos por não serem inevitáveis”:186 a queda dos estados
italianos, da situação de estabilidade nos últimos decênios do século XV para a
calamità, decorre fundamentalmente dos “maus conselhos” dos governantes.
Diante deste quadro, o leitor dificilmente poderá extrair modelos afirmativos
de conduta; no máximo, aprenderá a não agir como os protagonistas da Storia
d’Italia. É certo, porém, que seus leitores, como aqueles das Istorie Fiorentine,
poderão se educar num modo de inferência alicerçado no exame minucioso da
realidade, atento aos efeitos das ações dos agentes envolvidos em processos
decisórios – somente os prudentes, donos de “olhos bons e perspicazes”,
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possuidores de vasta experiência e erudição nas histórias antigas e modernas,


podem, segundo ele, destrinchar as diversas nuances envolvidas na dinâmica da
realidade. Os prudentes, porém, não são muitos, como argumenta Guicciardini; e
mesmo eles precisam recorrer a conselhos:

nada é certamente mais necessário nas deliberações árduas, nenhuma coisa de outra
parte mais perigosa, que solicitar conselho; tampouco existe dúvida de que o
conselho é menos necessário aos homens prudentes que aos imprudentes; e não
obstante, que os sábios obtêm muito mais utilidade ao se aconselharem. Pois quem
é dono de prudência tão perfeita que sempre considere e conheça as coisas por si
mesmo? E nas razões contrárias discirna sempre a melhor parte? E que certeza tem
aquele que demanda o conselho de ser fielmente aconselhado? Porque quem dá o
conselho, se não for muito fiel ou devotado a quem o demanda, não somente
movido por interesses notáveis mas pensando em sua pequena comodidade e
satisfação ligeira, dirige seu conselho ao fim que mais lhe convém, ou de que pode
se beneficiar; e sendo esses fins no mais das vezes desconhecidos de quem pede os
conselhos, este não notará, se não for prudente, a infidelidade do conselho.187

185
Idem. “cose accadute alla memoria nostra in Italia”.
186
Cf. PHILLIPS, Mark. Francesco Guicciardini: the Historian’s Craft, p. 121. “Guicciardini’s
clear perception that what happened was the more tragic because it was not inevitable”.
187
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 16, pp. 108-9. “Niuna cosa è certamente piú necessaria
nelle deliberazioni ardue, niuna da altra parte più pericolosa, che’l domandare consiglio; né è
211

Somente a deliberação pública pode incidir em ajuizamentos seguros,


porque fundamentados em debate in utramque partem, calcados na vasta
exploração dos diversos lados de uma questão e resultantes do consenso
prudencial. Esta é precisamente a situação esboçada no Dialogo del Reggimento
di Firenze, redigido entre 1521 e 1526, que apresenta um colóquio ocorrido no
ano de 1494, supostamente narrado a Francesco Guicciardini por seu pai, um dos
interlocutores. O homem particular, contudo, dificilmente será capaz de não
cometer os equívocos de julgamento que a deliberação pública acaba evitando. Na
segunda metade da década de 1530, período de composição da Storia d’Italia,
debates republicanos como o esboçado no Dialogo constituíam meras memórias
fugidias.188 Florença se transformara num ducado, e as instâncias de debate davam
lugar, cada vez mais, aos conselheiros privados, muitas vezes mais interessados
em manter a própria influência que na saúde da res publica. Cercado por homens
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imprudentes, interessados apenas na realização das próprias ambições, resta ao


prudente pouco mais que a lamentação do desenlace da calamità, erigida como
narrativa detalhada de erros e falhas estratégicas. Como nota B. A. Haddock,
Guicciardini

manteve o uso de discursos formais, cuidadosamente emparelhados, para explicar


os motivos e intenções das partes antagônicas e explorou com grande efeito o
tradicional estudo de caráter que se inseria no texto a seguir à morte de uma figura
proeminente. Enquanto estes artifícios tinham sido utilizados em dias mais
otimistas para realçar as lições políticas ou morais, Guicciardini recorreu a eles
para exemplificar a futilidade das esperanças, ambições e planos dos sucessivos
chefes face a uma fortuna hostil. Há uma certa sabedoria que se pode ganhar aqui;
mas o motif predominante é mais a resignação à mutabilidade dos assuntos

dubbio che manco è necessario agli uomini prudenti il consiglio che afli imprudenti; e nondimento,
che molto più utilità riportano i savi del consigliarsi. Perché chi è quello di prudenza tanto perfetta
che consideri sempre e conosca ogni cosa da se stesso? E nelle ragioni contrarie discerna sempre la
migliore parte? Ma che certezza ha chi domanda il consiglio d’essere fedelmente consigliato?
Perché chi dà il consiglio, sen non è molto fedele o affezionato a chi’l domanda, non solo mosso
da notabile interesse mas per ogni suo piccolo comodo, per ogni leggiera sidisfazione, dirizza
spesso il consiglio a quel fine che più gli torna a proposito o di che piú si compiace; e essendo
questi fini il piú delle volte incogniti a chi cerca d’essere consigliato, non s’accorge, se non è
prudente, della infedeltà del consiglio”.
188
Cf. LUGNANI, Emanuella Scarano. Guicciardini e la crisi del Rinascimento, p.86. “In realtà
all’approdo definitivo alla storiografia spingono in maniera determinante soprattuto le esperienze
politiche sucessive al 1530”.
212

humanos do que qualquer concepção do conhecimento dos fundamentos da história


como chave para o êxito neste mundo.189

Como resultado deste conjunto de preocupações, a história acaba sendo


configurada como uma investigação focada na percepção e compreensão dos
movimentos e variações das “coisas do mundo” – trata-se, nas palavras de
Gennaro Sasso, de uma “discrezione historiográfica” fundada na “prudência
crítica” e capaz de penetrar e as complexidades de um tempo de crise.190 Como
nota Franco Gaeta, “na Storia d’Italia” a tragédia italiana é narrada sob a insígnia
do poder da fortuna e da falácia dos homens”.191 A dinâmica das transformações
da realidade passa ao primeiro plano, e a descrição do ethos dos agentes, embora
possua força persuasiva, é menos importante que os efeitos produzidos pelas
ações desses mesmos agentes. Veja-se, por exemplo, o retrato do papa Alexandre
VI traçado por Guicciardini:
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Porque em Alexandre sexto (assim foi chamado o novo pontífice) havia solércia e
sagacidade singulares, excelente consiglio, maravilhosa eficácia na persuasão, e em
todas as questões graves solicitude e destreza incríveis; mas estas virtù eram
acompanhadas em grande medida por vícios: costumes muito obscenos, nem
sinceridade nem vergonha nem verdade nem fé nem religião, avareza insaciável,
ambição imoderada, crueldade mais que bárbara e ardente cupidez ao exaltar de
qualquer maneira seus filhos, que eram muitos.192

A mobilização dos vícios atua, neste trecho, como elemento para a


construção retórica do caráter, o ethos de Alexandre VI. No entanto, as
habilidades analíticas do papa Borgia são destacadas e vistas como aspectos

189
HADDOCK, B. A. Uma introdução ao pensamento histórico, p.27.
190
Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi,
p.3. “Che, più di quello machiavelliano, questo ‘sistema’ di pensiero, così sapientemente fondato
sulla prudenza critica, sulla ‘misura’ politica, sulla ‘discrezione’ storiografica, sia fatto per piacere
a culture perplesse e in crisi, stanche di valore assoluti e, nel nome del libero esperimento, poco
disposte, ormai, a intraprendere la via che conduce al ‘fondamento’, si può comprendere”.
191
GAETA, Franco. “Il percorso storiografico di F. Guicciardini”, p. 159. “Nella Storia d’Italia la
tragedia italiana è narrata all’insegna della potenza della fortuna e della fallacia degli uomini”.
192
Idem. Ibid., I, 2, p.12. “Perché in Alessandro sesto (cosí volle essere chiamato il nuovo
pontefice) fu solerzia e sagacità singolare, consiglio eccellente, efficacia a persuadere
maravigliosa, e a tutte le faccende gravi sollecitudine e destrezza incredibile; ma erano queste virtù
avanzate di grande intervallo da’ vizi: costumi oscenissimi, non sincerità non vergogna non verità
non fede non religione, avarizia insaziabile, ambizione immoderata, crudeltà più che barbara e
ardentissima cupidità di esaltare in qualunche modo i figliuoli i quali erano molti”.
213

responsáveis por levá-lo a uma posição de destaque no cenário italiano. Nesse


sentido, pelo critério dos efeitos, Alexandre foi bem-sucedido, pois conseguiu
obter muitos dos resultados que desejou; embora não possa ser chamado de
virtuoso em sentido moral, a qualificação de prudente se aplica a ele – note-se, por
exemplo, a mobilização das tópicas da solércia (solerzia ou soltertia) e do
consiglio, associadas por Pontano à prudentia.
Os retratos esboçados por Guicciardini tornaram-se famosos, sendo
considerados por diversos analistas como descrições “psicológicas” dos
agentes.193 Penso, porém, que eles se mostram adequados às convenções ético-
retóricas associadas ao gênero epidítico. Não existe, da parte de Guicciardini, uma
inquirição acerca da subjetividade dos agentes; trata-se do exame minucioso dos
modos de agir destes, a partir da mobilização de tópicas convencionais de forma
bastante engenhosa, que resultam na construção do ethos coerente. Ao minimizar
as amplificações, por perceber que virtude e vício, num momento de corrupção,
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acabam se confundindo, Guicciardini produz exames que, para os leitores


modernos, parecem menos rígidos e “estereotipados” que, por exemplo, os de
Leonardo Bruni, ou de historiadores antigos como Tito Lívio e Salústio, embora
constituam mobilizações de lugares-comuns da retórica epidítica e deliberativa.
Tome-se, por exemplo, a famosa comparação entre os dois papas Medici, Leão X
e Clemente VII.
Leão X, para Guicciardini, foi “homem de suma liberalidade”. No que diz
respeito a seu pontificado, demonstrou grande “magnificência, esplendor e ânimo
verdadeiramente real”.194 Ao mesmo tempo, ele possuía uma profunda capacidade
de simulação, “com a qual enganou a todos no início do seu pontificado, e o fez
parecer um príncipe ótimo”.195 Sobre seus modos, diz ele: “não digo de bondade
apostólica, porque nos nossos costumes corrompidos a bondade do pontífice é
louvada quando não ultrapassa a malícia [malignità] dos outros homens”. Ao

193
Cf. PHILLIPS, Mark. Op. cit., p.130. “But Guicciardini’s historical understanding is distilled
from his sense of the particulars, especially of personalities. Psychology and self-interest guide the
flow of events in the Storia”; GILBERT, Felix. Op. cit., p. 290. “more intensive psychological
explanations of human motivations”.
194
GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., XVI, 12, p. 1666. “Lione [...] fu uomo di somma
liberalità; se però si conviene questo nome a quello spendere eccessivo che passa ogni misura. In
costui, assunto al pontificato, apparí tanta magnificenza e splendore e animo veramente regale che
e’sarebbe stato maraviglioso ezidiando in uno che fusse per lunga successione disceso di re o di
imperadori”.
195
Idem. “A questa tanta facilità era aggiunta uma profondissima simulazione, con la quale
aggirava ognuno nel principio del suo pontificato, e lo fece parere principe ottimo”.
214

mesmo tempo, “era reputado clemente”.196 “Nos primeiros tempos de


pontificado”, diz Guicciardini, “acreditou-se que fosse castíssimo; mas descobriu-
se oportunamente que se dedicava excessivamente, e a cada dia com menos
vergonha, àqueles prazeres que com honestidade não se pode nomear”.197 Note-se,
aqui, a oposição entre os “primeiros tempos”, onde a dissimulação foi efetiva, e a
revelação progressiva do caráter de Leão X. Pode-se remeter, nesse sentido, à
máxima 44 dos Ricordi, ela mesma um diálogo com O Príncipe de Maquiavel:
“façam tudo para parecer bons, pois serve para infinitas coisas: mas, já que as
opiniões falsas não duram, dificilmente conseguirão parecer bons por longo tempo
se não o forem realmente”.198 Já o papa Clemente VII, primo de Leão, “era de
natureza grave, diligente, nos negócios, alheio aos prazeres, moderado e
parcimonioso em todas as coisas”.199 Este, nos tempos de cardinalato, havia de tal
modo superado os “contratempos e dificuldades que teve”, que, ao ser eleito papa,
apenas dois anos após a morte de seu primo, despertou um “juízo universal de que
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seria o maior pontífice e de que faria coisas que jamais alguém havia feito
antes”.200 Este juízo, porém, não veio a se confirmar, simplesmente porque as
habilidades decisórias e a prudência de Leão X superavam e muito as de Clemente
VII: “em Leão havia mais habilidade que bondade”.201 Já Clemente,

embora tivesse intelecto muito capaz e possuísse maravilhoso conhecimento de


todas as coisas do mundo, todavia não correspondia na resolução e na execução;
porque, impedido não somente pela timidez do ânimo, que nele não era pequena, e
da cupidez de não gastar mas também de uma certa irresolução e perplexidade que

196
Idem. “non dico di bontà apostólica, perché ne’ nostri corrotti costumi è laudata la bontà del
pontefice quando non trapassa la malignità degli altri uomini; ma era riputato clemente, cupido di
beneficiare ognuno e alienissimo da tutte le cose che potessino offendere alcuno”.
197
Idem, Ibid., XVI, 12, p. 1667. “Credettesi per molti, nel primo tempo del pontificato, che
e’fussi castissimo; ma si scoperse poi dedito eccessivamente, e ogni dí piú senza vergogna, in
quegli piaceri che con onestà non si possono nominare”.
198
GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 44, p. 71. Sobre esta questão, afirma Newton
Bignotto: “a tendência dos homens de julgar pelas aparências, mesmo quando elas encontram forte
apoio na realidade, se mostra falha exatamente por não recompor a complexidade do real e por
conter a pressuposição de que é possível analisar a história a partir de proposições universais e
abstratas”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo. Um perfil de Francesco
Guicciardini, p. 63.
199
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, XVI, 12, p. 1667. “Perché essendo Giulio di
natura grave, diligente, assiduo alle faccende, alieno da’piaceri, ordinato e assegnato in ogni cosa”.
200
Idem. Ibid., XVI, 12, p. 1668. “dove entro con tanta espettazione che fu fatto giudizio
universale che avesse a essere maggiore pontefice e a fare cose maggiori che mai avesse fatte
alcuni di coloro che avevano insino a quel dí seduto in quella sedia”.
201
Idem. “Perché in Lione fu di grande lunga piú sufficienza che bontà”.
215

lhe eram naturais, manteve-se quase sempre incerto e ambíguo quando era
conduzido à efetivação do que havia há muito previsto, considerado e praticamente
resolvido.202

Aqui, como na análise de Alexandre VI, a capacidade de deliberar


adequadamente e executar as decisões com celeridade é o ponto central na
caracterização dos agentes, que são julgados mais pelo critério dos efeitos de suas
ações que pela bondade ou amor à res publica. Existe, porém, uma tensão
irresoluta neste tipo de abordagem, uma vez que o ideal guicciardiniano
permanece atrelado à concepção ciceroniana de bom governo. Daí a melancolia de
suas reflexões e a resignação diante do imponderável, associadas à constatação da
imensa variedade das coisas do mundo e da quase impossibilidade de controlar as
próprias ações. Os que são prudentes possuem vícios de caráter; os que são graves
e bons têm medo de tomar decisões. Não existem, na Storia d’Italia, modelos de
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homens prudentes que tenham podido controlar plenamente os resultados de suas


intervenções, exceção feita a Lorenzo de’Medici, cuja morte constitui exatamente
o ponto de partida de Guicciardini. Ao mesmo tempo, a prudência, como valor
máximo de orientação no “mar agitado pelos ventos”, não só não é
descaracterizada como constitui o efetivo fio condutor da Storia d’Italia – como
se Guicciardini precisasse afirmar a diritta via mesmo sabendo que os valores que
sempre defendera já não podiam se realizar.

202
Idem. “E ancora che avesse lo intelletto capacissimo e notizia maravigliosa di tutte le cose del
mondo, nondimeno non corrispondeva nella risoluzione ed esecuzione; perché, impedito non
solamente dalla timidità dell’animo, che in lui non era piccola, e dalla cupidità di non spendere ma
eziandio da una certa irresoluzione e perplessità che gli era naturale, stesse quasi sempre sospeso e
ambiguo quando era condotto alla determinazione di quelle cose le quali aveva da lontano molte
volte previste, considerate e quali risolute”.
5.
Considerações Finais.

Uma possível história do conceito de prudência na Época Moderna


confundir-se-ia com uma narrativa das tentativas humanas de controle das
próprias ações, determinação dos seus resultados e realização plena dos fins
desejados. Nessa história, Maquiavel e Guicciardini possuiriam um lugar de
destaque, por representarem simultaneamente o ápice das possibilidades
calculativas da prudência – modo de antevisão das deliberações e dos efeitos das
ações dos agentes envolvidos nos processos decisórios de Repúblicas,
principados, monarquias e estados papais – e a constatação dos seus limites, nas
Istorie Fiorentine maquiavelianas e principalmente na Storia d’Italia, onde a
tópica da história mestra da vida passa a conformar pouco mais que uma
exemplaridade negativa e as possibilidades de intervenção bem calculada perdem
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espaço ante a constatação da completa indeterminação das ações de homens pouco


afeitos ao exame cuidadoso e prudente da realidade.
A força do juízo prudencial, expressa sobretudo em textos como O Príncipe
e os Discorsi de Maquiavel e o Discorso di Logrogno e o Dialogo del Reggimento
di Firenze de Guicciardini, advém da possibilidade de extrair das contínuas
variações da realidade alguns princípios de recorrência e estabilidade, com vistas
a tornar a análise da dinâmica das “coisas do mundo” mais segura, fornecendo
princípios de orientação para a “navegação” do bom timoneiro. Entendida como
bom juízo, agilidade decisória e aguçada capacidade de examinar as sutilezas das
coisas humanas, a prudência constitui categoria central nos escritos de Maquiavel
e Guicciardini, conformando um modo de análise dos fenômenos políticos
revelador de duas dimensões absolutamente interligadas: um caráter calculativo –
a capacidade de análise dos resultados práticos das intervenções dos agentes
políticos e de antevisão de suas possíveis deliberações e ações – e performativo –
a prudência só pode ser reconhecida publicamente como produto discursivo
regrado segundo preceitos ético-retórico-poéticos estabelecidos em tratados
antigos e humanistas de arte retórica.
Neste estudo discuti os alicerces do modo prudencial de análise da política
delineado nos textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini, assim
217

como a redefinição do conceito de prudência, resultante do seu distanciamento do


quadro tradicional das virtudes cardeais, da rejeição de sua subsunção à justiça e
da ênfase atribuída ao princípio da efetividade – chamado pelo secretário de verità
effetualle della cosa. Isto não quer dizer, porém, que em Maquiavel e Guicciardini
a prudência adquira um caráter meramente instrumental: seus fundamentos
residem tanto (a) na possibilidade de separar diversidades substanciais e acidentes,
condição para que o analista da realidade possa examinar tudo aquilo que remete a
certos padrões gerais – como a natureza humana, ciclos de ascensão e queda das
cidades e formas de governo, padrões de condutas prováveis conformados pela
experiência e pela leitura atenta das histórias antigas e modernas – e diferenciá-los
das obras do acaso, da contingência e do fortuito, movimentos imperscrutáveis por
remeterem aos caprichos da Fortuna ou aos desígnios da Providência, quanto (b)
na articulação do juízo prudencial segundo os preceitos de decoro dos gêneros
retóricos, regras de conveniência que operam em todos os momentos do cálculo
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prudencial e conformam as práticas letradas – trata-se de condição para o


reconhecimento da prudência do orador ou do homem de letras, seja no debate
público nas esferas deliberativas da República ou em domínios mais restritos,
como as cortes de príncipes ou monarcas.
Em função deste duplo caráter, avaliei não apenas os fundamentos do
cálculo e medida da dinâmica da realidade, como também o processo, lento e
descontínuo, de formação de uma representação letrada – a imagem do litterati –
nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. Na medida em que os registros que
possuímos são precisamente aqueles deixados na forma de produtos letrados
associados a alguns dos gêneros em circulação no Renascimento – como os
diálogos, os espelhos de príncipes, os comentários, as histórias, entre outros –, o
exame da prudência nos autores em questão não pode deixar de lado a análise da
construção textual de efeitos persuasivos: somente pela mobilização das
convenções associadas aos gêneros retóricos deliberativo e epidítico os produtos
dos juízos prudenciais poderão adquirir efetividade, sendo aceitos como
performances letradas convenientes e decorosas. É precisamente nesse sentido que
as Istorie Fiorentine de Maquiavel e a Storia d’Italia de Guicciardini são
analisadas, como “eventos” que ensinam a refletir, que apresentam os caminhos
de um modo particular de inferência pautado no exame atento das coisas do
mundo e dos efeitos das ações dos principais agentes envolvidos nos processos
218

decisórios: nesse sentido, as lições que os leitores devem extrair destas histórias
dizem respeito menos à delimitação de modelos gerais de conduta, táticos ou
morais, que à definição de um modo particular de ragionamento que deve incidir
em ações imitativas, segundo o “verdadeiro conhecimento das histórias”, como
definido por Maquiavel, ou na prudência crítica, um tanto resignada, com que
Guicciardini procura compreender as complexidades de um tempo de crise e
corrupção.
Se, como afirmei anteriormente, Maquiavel e Guicciardini seriam
protagonistas em uma história da prudência, isto se deveria, também, à
constatação dos limites do modo prudencial de ajuizamento, decorrentes menos
das incertezas quanto a efetividade do procedimento empregado que da
constatação de mudanças tão severas na realidade que as ferramentas cognitivas
disponíveis, de caráter ético-retórico, embora adaptadas às condições do tempo, a
“navegação” num mar agitado pelos ventos, tornam-se incapazes de compreender
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adequadamente todas as nuances envolvidas nas significativas transformações das


coisas do mundo – horizonte de expectativa forçosamente descolado do espaço de
experiência. Muitos analistas falaram em aceleração do tempo, em nova
“consciência histórica” e em transformações estruturais nas esferas sócio-
políticas, com a entrada em cena dos poderosos exércitos das monarquias do
Norte e de seus modos particulares de organização. São temas para a história do
conceito de prudência ainda não escrita, que talvez possam lançar luz sobre um
aspecto não examinado neste estudo: se, como nota Reinhart Koselleck, “a
história dos conceitos tem por tema a confluência do conceito e da história” 1,
como essa confluência se sedimenta nas transformações da concepção de
prudência no Cinquecento, das quais Maquiavel e Guicciardini, muito em função
de suas habilidades e do engenho como homens de letras, são menos artífices que
expoentes?

1
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “História dos Conceitos e História Social”. In: Futuro Passado,
p.110.
6.
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