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' M ILA N KUNDERA LAN UEDO ROMANCES As idéias do autor de A insustentivel leyeza do ser sobre a arte do romance A EDITORA FRONTEIRA K47a 87-1120 Direitos de edigao da obra em lingua portuguesa no Brasil ‘Titulo Original: L'ART DU ROMAN © Milan Kundera, 1986. adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A Rua Bambina n° 25 — CEP 22251 — Botafogo — tel.: 286-7822 Enderego Telegréfico: NEOFRONT — Telex: 34695 ENES BR Rio de Janeiro, RI Revisio ‘Anpriia Corréa Ropricues Manco Anrénio Corréa Hewriqur TARNAPOLSKY Eis Prenciro CIP-Brasil. Catalogacdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Kundera, Milan, 1929- Aarte do romance : (ensaio) / Milan Kundera; da Fonseca ¢ Vera Mourdo. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1988, Tradugao de: L’art du roman. 1. Literatura tcheco-eslovaca — lho da. TI. Mourdo, Vera, HII. Titulo. CDD-891.864 tradugdo, Teresa Bulhoes C. Ensaios. 1. Fonseca, Teresa BulhOes Carva- Embora a maior parte dos textos que aqui estao devam sua origem a diversas circunstancias determinadas, concebi-os todos coma idéia de que um dia seriam reunidos uns aos outros em um 86 livro-ensaio, balanco de minhas reflexGes sobre a arte do ro- mance. (Devo destacar que nao tenho a menor ambicao tedrica e que este livro todo é apenas a confissao de um pratico? A obra de cada romancista contém uma visdo impltcita da historia do ro- mance, uma idéia do que é 0 romance; é esta idéia do romance, inerente a meus romances, que tentei expor.) Aheranga depreciada de Cervantes expoe minha concepgéo pessoal do romance europeu e abre este “ensaio em sete partes”. ‘Hé alguns anos, uma revista nova-iorquina, Paris-Review, pediu a Christian Salmon para me entrevistar sobre mim e meus habitos de escritor. A entrevista transformou-se de imediato em - didlogo sobre minhas experiéncias praticas com a arte do ro- mance. Dividi a entrevista em dois textos independentes, sendo que o primeiro, Didlogo sobre a arte do romance, é a segunda | parte deste livro. Na ocasiéo da nova edi¢éo de Os sonambulos pela Galli- mard, desejando redescobrir Broch para o publico francés, publi- queino Le Nouvel Observateur o artigo O testamento de “Os so- nimbulos”. Renunciei a reproduzi-lo aqui depois que Guy Scar- petta langou sua excelente Introdugao a Hermann Broch. Con- tudo, nao podendo evitar Os sonambulos que em minha histéria pessoal do romance ocupam uma Posicao eminente, como terceira parte, Anotagdes inspiradas por “Os sonambul Oo; série de reflexes que pretendem menos analisar esta obra do qt dizer tudo 0 que lhe devo, tudo 0 que nds Ihe devemos. O segundo didlogo com Christian Salmon, Didlogo soby a arte da composicao, discute, a Partir de meus préprios roma ces, problemas artisticos, “artesanais” do romance, mente a respeito de sua arquitetura. Em algum lugar do passado 6 0 resumo de minhas reflex6e sobre os romances de Katka. 4 Sessenta e quatro palavras é o dicionario de palavras-chaye que percorrem meus romances, e palavras-chaves de minha este tica do romance. Na primavera de 19835, recebi o Prémio Jerusalém. O ‘padre Marcel Dubois, dominicano, professor da Universidade de Jer. z E salém, leu o panegtrico em inglés com forte sotaque francés; com Primeira parte: A heranga depreciada de Cervantes . ue forte sotaque tcheco, em francés, li meu discurso de agradech Segunda parte: Didlogo sobre a arte do FORE: tf bil 45 mento, sabendo que iria constituir a ultima Parte deste livro, @ Terceira parte: Anotagées inspiradas por Os sondmbu los = Ponto final da minha reflexao sobre 0 romance ea Europa. (Quarta parte: Didlogo sobre a arte da composicao e Poderia té-Io lido em ambiente mais europeu, mais caloroso, Em algum lugar do passado z querido, Quinta parte: Em alg . 107 lavras (a parte: Sessenta e quatro pal a parte Discurso de Jerusalém: o romance ea Europa. 137 QUARTA PARTE DIALOGO SOBRE A ARTE DA COMPOSICAO C\S.: Vou iniciar esta conversa com uma citacdo de seu texto @ Hermann Broch. Vocé diz: “Todas as grandes obras (e jus- ente porque elas sao grandes) contém alguma coisa imaca- _ Broch nos inspira nao somente por tudo o que levoua bom ‘no mas também por tudo o que visou sem atingir. O inaca- lo de sua obra pode nos fazer compreender a necessidade: 1. \uma nova arte do despojamento radical (que permita abranger “omplexidade da existéncia no mundo moderno, sem perder a ‘lnreza arquiteténica); 2. de uma nova arte do contraponto roma- ‘fen (suscetivel de soldar em uma sé musica a filosofia, a narra- ‘jive ¢ 0 sonho); 3. de uma arte do ensaio especificamente roma- feaco (isto é, quenao pretenda trazer uma mensagem apodictica, jay permaneca hipotética, ltidica ou irénica).” Nestes trés pon- {oa eu discrimino seu programa artistico. Comecemos pelo pri- Meiro. O despojamento radical. M.K.: Apreender a complexidade da existéncia no mundo jnoderno exige, parece-me, a técnica da elipse, da condensacao. [De outra maneira, vocé cai na cilada de um tamanho sem fim. O homem sem qualidadesé um dos dois ou trés romances que mais amo, Contudo, nao me pega para admirar sua imensa extensao inacabada. Imagine um castelo tio desmedido que nao se pode abrangé-lo com 0 olhar. Imagine um quarteto que dura nove ho- yan, Hd limites antropolégicos que nao se devem ultrapassar, 0s limites da meméria, por exemplo. No fim de sua leitura, vocé 67 deve estar ainda capacitado a se lembrar do comeco, De outra: modo, 0 romance se torna informe, sua “clareza arquitet6nica” se obscurece. C.S.: O livro do riso e do esquecimento é composto de sete partes. Se as tivesse tratado de uma maneira menos eliptica, voc teria podido escrever sete longos romances diferentes. i MK: Mas se eu tivesse escrito sete romances independen- tes, nao teria podido esperar apreender “a complexidade da exis téncia no mundo moderno” em um 86 livro. A arte da elipse parece, portanto, uma necessidade. Ela exige: ir sempre direto ao coragao das coisas. Nesse sentido, Penso no compositor que ad- miro apaixonadamente desde a minha infancia: Leos Janacek. Ele €um dos maiores da méisica moderna. Na €poca em que Schén- berg e Stravinski ainda escrevem composig6es para grande or- questra, ele ja se da conta de que uma partitura para orquestra se dobra sob 0 fardo das notas intiteis. Foi por essa vontade de des- Pojamento que sua revolta comegou. Vocé sabe, em cada compo: sicéo musical ha muita técnica: a exposicéo de um tema, o desen-_ volvimento, as variacées, o trabalho polifénico freqéientemente muito automatizado, os recheios de orquestragao, as transicée: etc. Hoje, pode-se fazer miisica com computadores, mas o com= putador sempre existiu na cabeca dos compositores: eles podiam | em caso extremo fazer uma sonata sem uma tinica idéia original, apenas desenvolvendo “ciberneticamente” as regras da composi= ao O imperativo de Janacek era: destruir 0 “computador”! Ao invés das transig6es, uma brutal justaposicao, ao invés das varia~ QOes, a repeticao, e ir sempre ao coracao das coisas: somente a _ nota que diz alguma coisa de essencial tem o direito de existir, Com Oromance, é quase igual: ele também esta atravancado pela técnica”, pelas convengGes que trabalham em lugar do autor: ex« Por uma personagem, descrever um meio, introduzir a agao numa situagao histérica, encher 0 tempo da vida das persona+ gens.com. episédios intiteis; cada mudanga de cendrio exige novas exposicoes, descrigées, explicagées. Meu imperativo 6 “janace kiano’: desembaragar 0 romance do automatismo da técnica ro* manesca, do verbalismo romanesco, torna-lo denso, 68 C.S.: Vocé fala em segundo lugar da “nova arte do contra- ponto romanesco”. Em Broch, ela nao o satisfaz inteiramente. M.K.: Pegue o terceiro romance dos Sondmbulos. E com- posto de cinco elementos, de cinco “linhas” intencionalmente heterogéneas: 1. a narrativa romanesca baseada nos trés persona- gens principais da trilogia: Pasenow, Esch, Huguenau; 2. a no- vela intimista sobre Hanna Wendling; 3. a reportagem sobre um hospital militar; 4. a narrativa poética (em parte em versos) sobre uma moga no Exército da Salvacdo; 5. 0 ensaio filosdfico (escrito em uma linguagem cientifica) sobre a degradacao dos valores. Cada uma destas cinco linhas ¢ magnifica em si mesma. Entré= tanto, estas linhas, se bem que tratadas simultaneamente, numa perpétua alternancia (isto ¢, com uma clara intengao “polifé- nica”), nao sao ligadas, nao formam um conjunto indivisivel; dito de outro modo, a intengao polifonica permanece artisticamente inacabada. C.S.: O termo polifonia aplicado de maneira metaférica 4 li- teratura ndo leva a exigéncias que o romance nao pode satisfazer? M.K.: A polifonia musical é 0 desenvolvimento simultaneo de duas ou mais vozes (linhas melédicas) que, embora perfeita- mente ligadas, guardam sua relativa independéncia. A polifonia romanesca? Digamos de infcio o que Ihe é oposto: a composicao unilinear. Ora, desde 0 inicio de sua historia, o romance tenta es- capar da unilinearidade e abrir brechas na narrac4o continua de \uma hist6ria. Cervantes conta a viagem inteiramente linear de Dom Quixote. Mas enquanto viaja, Dom Quixote encontra outras personagens que contam suas proprias histérias. No primeiro volume ha quatro delas. Quatro brechas que permitem sair da (rama linear do romance. C.S.; Mas isto nao é polifonia! M.K.: Porque nao existe ali simultaneidade. Para tomar em- prestada a terminologia de Chklovski, trata-se de novelas “encai- xndlas’’ na “caixa” do romance. Vocé pode encontrar esse método do “encaixamento” em muitos romancistas do século XVII e do jdéculo XVIIL. O século XIX desenvolveu outra maneira de ultra- pansar a linearidade, maneira que, na falta de melhor, pode-se 69 denominar polifénica. Os demé6nios. Se vo mance sob 0 ponto de vista composto de trés linhas que e: cé analisa este ro- puramente técnico, constata que 6 voluem simultaneamente e, a rigor, teriam podido formar trés romances independentes: 1. 0 ro- mance irénico do amor entre a velha Stavroguin e Stepan Ver- khovenski; 2. 0 romance roméantico de Stavroguin e suas rela- ges amorosas; 3. 0 romance Politico de um grupo revolucio- nario. Dado que todos os Personagens se conhecem entre eles, uma fina técnica de fabulacdo péde ligar facilmente estas trés li- nhas em um sé conjunto indivistvel. A esta polifonia dostoievs- kiana comparemos agora a de Bri ‘och. Esta vai muito mais longe. Enquanto as trés linhas dos Demé6nios, embora de cardter di- ferente, sio do mesmo género (trés histérias Tomanescas), em Broch os géneros das cinco linhas diferem radicalmente: ro- mance; novela; reportagem; poema; ensaio, Esta integracdo dos géneros ndo-romanescos na polifonia do romance constituia ino- vagao revoluciondria de Broch. C.S.: Contudo, segundo vocé, estas cinco linhas ndo estao suficientemente soldadas. Na verdade, Hanna Wendling nao conhece Esch, a moga do Exército da, Salvagéo nunca saber4 da existéncia de Hanna Wendling. Nenhuma técnica de fabulacdo pode, portanto, unir em um 86 conjunto estas cinco linhas dife- tentes que nao se encontram, nao se cruzam. M.K.: Elas nao estao ligadas sendo por um tema comum, Mas acho essa uniao temética perfeitamente suficiente. O pro- blema de desuniao esté em outro aspecto. Recapitulemos: em Broch, as cinco linhas do romance evoluem simultaneamente, Sem se encontrar, unidas por um ou alguns temas. Designei esta espécie de composicao por uma palavra tomada de empréstimo 4 musicologia: polifonia. Vocé vai ver que nao é tao intitil com- Parar o romance a musica. Efetivamente, um dos Principios fundamentais dos grandes Polifonistas era aj, igualdade das vozes: nenhuma voz deve dominar, nenhuma deve servir de simples acompanhamento. Ora, 0 que me parece ser um defeito do terceiro romance dos Sondmbulos 6 que ascinco “vozes” nao sao iguais. A linha némero um (a narrativa “romanesca” sobre Esch 70 ae 2 Hug uenau) ocupa quantitativamente muito es lugar ae “ Rss linhas e, sobretudo, é privilegiada qualitativamen' eine medida em que, por intermédio de Esch e de Pasenow, e : ligada aos dois romances precedentes. ee a isco de reduzir o papel das outra ; mcao e corre oO risco ps e inka” aum simples ““acompanhamento”’. Uma oun e uma fuga de Bach nao pode dispensar nee 2 oe : ‘ozes, em compensacao, pode-se imaginar a novela sobre ane Wendling ou o ensaio sobre a degradacao dos valores come textos independentes, cuja auséncia nao faria 0 romance ie a seu sentido nem sua inteligibilidade. Ora, para ae if fe igd i do contraponto romanesco sao: 1. condigées sine qua non 1 omanee? aaa “Wi A tivas; 2. a indivisil i de das “‘linhas’’ respec ain D eons Lembro-me do dia em que terminei a terceira Pas de ollie do riso e do esquecimento, intitulada Os anjos. con fesso i 0- que estava terrivelmente orgulhoso, peace $e iar a i ira de construir uma narrativa. Ess i ‘tO uma Nova maneira ‘ omnes dos seguintes elementos: 1. a ane ot So a itagao; tiva autobiografica; 3. 0 sua levitagdo; 2. a narral : BY pe um livro feminista; 4. a fAbula sobre 0 anjo . g ne ea E ima de Praga. Estes ele- i Eluard que voa acima 5. a narrativa sobre re. ae a isti em 0 outro, eles se es ntos nado podem existir um s : ‘ me licam Seaene examinando um s6 tema, uma. sé ae a “9 que é um anjo?’ Somente esta interroga¢ao os ee cdo: t St feta parte, intitulada também Os anjos, oa eee ae i iris ‘te de Tamina; 2. da nar narrativa onirica sobre a mor : 2 aa i eu pai; 3. de reflexdes mi biografica da morte de m ae Cte 6 imento que assola Praga. reflex6es sobre o esquecim : § rae Ao entre meu pai e Tamina torturada por criangas? ei eee earns a frase cara aos surrealistas, “o encontro de uma i st r| de costura com um guarda-chuva”’ na lista do mesmo ' olifonia romanesca é muito mais poesia que técnica. Pr q C.S.; Em A insustentdvel leveza do ser 0 contrap : : po + . i. ae K.: Na sexta parte, o carater polifénico ¢ a pes dente A historia do filho de Stalin, uma reflexao teoldgica, e) 2 n j re Politico na Asia, a morte de Franzem Bangkok eo e Tomas na Boémia sao unidos i se é pela interrogacao eneeeur a que 6 0 kitsch?” Esta Passagem polifénica @ a ‘€ mestra de toda a construgéo. Todo o segredo do equilibri arquitetural se encontra ali. 1 CS.: Que segredo? - M.K.: Ha dois segredos. Primo: £, seada no esboco de uma historia mas no Sobre o kitsch). Fragmentos Tidos neste ensaio como pe Parte nao esta r ‘€ um ensaio (ensaio 2 da vee dos personagens estao inse- ( ‘exemplos”, “situacd isar”. E = ae p - g0es a analisar’’. ee SEs seagera “eemresumo, que se conhece o fim aiid ae nz, de Sabina, 0 desfecho das relacées entre Tomas (0. Esta elipse tornou formiday cond POS OS acontecimentos da te deslocamento, a ultima Co, esta inundada de uma ee nhecimento do futuro, gules to ao seu estudo sobre Os sondmbulos, Vocé a aoe ana a Propésito do ensaio sobre a degra- d v res. © ao seu tom apodicti inesagent cientifica, ele pode se impor, ‘seine a ‘ —s ideoldgica do romance, como. sua “Verdade”, ans. sétima (ultima) Parte. Gracas a esi Parte, apesar do seu cardter idili melancolia proveniente de nosso co! , © trans- mesco”’, M.K.: Em primeiro lugar, uma evidéncia: Sroueag idéncia: entrando no a meditacgao muda de esséncia. Fora do ro- mundo esta seguro de sua palavra: Porteiro. No territério do romance, jogoe das hipdteses, A meditagao cia, interrogativa, hipotética, C.S.: Mas por que um romancista deve se privar-do direito um Politico, um filésofo, um ndo se afirma: 60 territério do romanesca é pois, por essén- 72 dt exprimir em seu romance sua filosofia direta e ilirmativamente? M.K.: Existe uma diferenca fundamental entre a maneira de pensar de um filésofo ¢ a de um romancista. Fala-se freqiiente- mente da filosofia de Tchekhov, de Kafka, de Musil etc. Mas tente lirar uma filosofia coerente de seus escritos! Mesmo quando ex- primem diretamente suas idéias, em seus apontamentos, estas pio mais exercicios de reflexées, jogos de paradoxos, improvisa- gOes que a afirmagéo de um pensamento. C.S.: Dostoievski, em seu Diario de um escritor, é, no en- tanto, totalmente afirmativo. M.K.: Mas nao € nisso que reside a grandeza de seu pensa- mento. Grande pensador ele é somente enquanto romancista. O que significa: ele sabe criar em seus personagens universos in- telectuais extraordinariamente ricos e inéditos. Gostamos de pro- curar em seus personagens a projecao de suas idéias. Em Chatov, por exemplo. Mas Dostoievski tomou todas as precaugdes. Desde sua primeira aparigao, Chatov é caracterizado bem cruelmente: “era um desses idealistas russos que, iluminados repentina- mente por alguma imensa idéia, se fascinaram por ela, muitas ve- zes para sempre. Jamais conseguem dominar essa idéia, créem nela apaixonadamente, e desde entao toda sua existéncia nao é mais, dir-se-ia, que uma agonia sob a pedra que 0s semimassacrou”. Portanto, ainda que Dostoievski tenha proje- tado em Chatov suas proprias idéias, estas sao imediatamente re- lativizadas. Para Dostoievski, também, permanece a regra: uma vez no corpo do romance, a meditagéo muda de esséncia: um pensamento dogmatico se torna hipotético. O que escapa aos filé- sofos quando eles tentam o romance. Uma tinica excegao. Di- derot. Seu admirével Jacques o fatalista! Apés ter transposto a fronteira do romance, este enciclopedista sério se transforma em pensador Itidico: nenhuma frase de seu romance é séria, tudo nele é brincadeira. E por isso que na Franga esse romance é escan- dalosamente subestimado. Na verdade, esse livro concentra tudo o que a Franca perdeu e se recusa a reencontrar. Hoje preferemas 73 idéias as obras. Jacques o fatalista é intraduzivel na linguagem das idéias. ___CS.:Em A brincadeira, é Jaroslav que desenvolve uma teo- tia musicologica. O cardter hipotético dessa reflexao é Pportanto claro. Mas em seus romances encontram-se também passagens onde € vocé, diretamente vocé, quem fala. M.K.: Ainda que seja eu quem fale, minha reflexao esta lic gada a um personagem. Quero pensar suas atitudes, sua maneira de ver as coisas em seu lugar e mais profundamente do que eleo | poderia fazer. A segunda parte de A insustentavel leveza do.ser comega por uma longa reflexao sobre as relagdes do corpo e da alma. Sim, € 0 autor que fala, entretanto tudo o que ele diz nao é valido senao no campo magnético de uma personagem: Tereza. E a maneira de Tereza (embora jamais formulado Por ela mesma) ver as coisas. C.S.: Mas freqiientemente suas meditacGes nao sao ligadas anenhum Personagem: as reflexdes musicoldgicas em O livro do riso e do esquecimento ou suas consideragées sobre a morte do filho de Stalin em A insustentavel leveza do ser... M.K.: E verdade. Gosto de intervir de vez em quando dire- tamente, como autor, como eu mesmo. Nesse caso, tudo de- pende do tom. Desde a primeira palavra, minha reflexio temum tom lidico, irénico, provocador, experimental ou interrogativo Toda a sexta parte de A insustentével leveza do ser (A grande marcha) 6. um ensaio sobre 0 kitsch, tendo por tese principal: “O kitsch é a negacdo absoluta da merda.” Toda essa meditacio so- bre o kitsch tem uma importancia totalmente capital para mim, existem atras dela muitas reflexes, experiéncias, estudos até paixao, mas 0 tom nunca € sério: 6 provocador. Esse ensaio é im- pensavel fora do romance; é 0 que denomino um “ensai i- ficamente romanesco”. aa ; C.S.: Vocé falou do contraponto romanesco como uniao da filosofia, da narrativa e de sonho. Paremos no sonho. A narragéo onirica ocupa toda a segunda parte de La vie est ailleurs, sobre ela esta baseada a sexta parte de O livro do riso e do esquecimento, . 74 a através dos sonhos de Tereza ela percorre A insustentével leveza do ser. M.K.: A narragao onirica; digamos antes: a imaginacao que, liberada do controle da razao, do cuidado com a verossimilhanga, entra nas paisagens inacessiveis reflexao racional. O sonho é apenas 0 modelo dessa espécie de imaginagdo que eu considero como a maior conquista da arte moderna. Mas como integrar a imaginagao incontrolada no romance que, por definicao, deve ser um Iticido exame da existéncia? Como unir elementos tao heterogéneos? Isso exige uma verdadeira alquimia! O primeiro, acho, que pensou nesta alquimia foi Novalis. No primeiro tomo de seu romance Heinrich von Ofterdingen, ele inseriu trés gran- des sonhos. Nao é uma imitacao “realista’” dos sonhos como se encontram em um Tolstoi ou em um Mann. E uma grande poesia inspirada pela “técnica de imaginagao” pr6pria ao sonho. Mas cle nao estava satisfeito. Esses trés sonhos, ele achava, formayam no romance espécies de ilhas a parte. Quis por conseguinte ir mais longe e escrever o segundo tomo do romance como uma narracao em que o sonho e a realidade estao ligados, misturados um ao outro de tal modo que ndo se possa mais distingui-los. Entre- tanto, ele jamais escreveu esse segundo tomo. Deixou-nos somente algumas anotlagées, onde descreve sua intencao esté- tica. Esta foi realizada cento e vinte anos mais tarde por Franz Kafka. Seus romances sao a fusao sem falha do sonho e do real. Ao mesmo tempo, o olhar mais licido pousado sobre o mundo moderno e a imaginacao mais desabrida. Kafka, antes de qual- quer coisa, € uma imensa revolucdo estética. Um milagre artis- tico. Tome como exemplo esse incrivel capitulo do Castelo em que K. faz pela primeira vez amor com Frieda. Ou 0 capitulo em que transforma uma sala de aula da escola primaria em quarto de dormir para ele, Frieda e seus dois ajudantes. Antes de Kafka, tal densidade de imaginagao era impensavel. Claro, seria ridiculo imitd-lo, Mas como Kafka (e como Novalis) experimento esse de» | sejo de fazer entrar o sonho, a imaginagao prépria ao sonho, No romance. Meu modo de fazé-lo nao é uma “‘fusdo do sonho ¢ do v4.) ae real” mas uma confrontaca i P i¢a0 polifénica. A “ontrica” uma das linhas do contraponto. “raven C.S.: Viremos a pagi ; pagina. Eu gostaria en, ug que voltassemos 4 - ee unidade de uma composicao, Vocé definiu Olivrod ae ‘quecimento como “um romance em forma de ee mesmo um romance? ene M.K.:O0. i i anidade de aco, Tense difeatinde cs aren usenn aera g ade em imaginar um romani fnlimeee a8 eeeae do “novo romance” eo eres le de acdo (ou de nio-agao). Sterne e Di- teen mar essa unidade extremamente fragil. A oe ee ea amo ocupa a parte menor do romance, narativas, reflexdes. Conta eae presto eee en xto, essa “‘caixa’’ - Pais ee — romance seja sentido como rca _ eens Ss a Lint de romance. Entretanto, acho que fates eee mn ‘i melorque assegura a coeréncia de um ro- ee ca. E sempre foi assim, alids. As trés li- Hee ae oie aes quais repousa Os deménios sao unidas cnn ‘abulacao mas sobretudo pelo mesmo tema: 0 Deus: Emeadalinhadenarragio,extetemaécnccaaie ee ae t , este tema 6 considerado sob ous ae faa uma coisa refletida em trés espelhos. E 6 esti eo eee aque chamo tema) que dé ao conjunto ee nse interior, a menos visivel, a mais im- Pane eee ae riso edo esquecimento, a coeréncia do nen mente pela unidade de alguns temas (e ng iados. E um romance? Sim, nido. O romance é uma meditacdo sobre a existé: : de personagens imagindrios. = C.S.: Se aderimos a uma definicdo tao mar de romance até 0 Decameron! Todas eee Pelo mesmo tema do amor e conta dores... M.K.: Nao levarei a Provocacao até o ponto de dizer que 0 ce Ou, na minha opi- cia vista através das pelos mesmos dez narra- 76 Decameron éum romance. Nao obstante, na Europa moderna es- se livro é uma das primeiras tentativas de se criar uma grande composicao da prosa narrativa e que como tal faz parte da histéria do romance, pelo menos como seu inspirador e precursor. Vocé sabe, ahistéria do romance tomou o caminho que tomou. Poderia tomar também um outro. A forma do romance é liberdade quase ilimitada. O romance durante sua historia nao se aproveitou disto. Perdeu essa liberdade. Deixou muitas possibilidades for- mais inexploradas : C.S.: Entretanto, deixando de lado O livro do riso e do es- quecimento, seus romances também sao baseados na unidade de ago, embora um pouco solta. M.K.: Sempre os construi em dois niveis: no primeiro nivel, componho a histéria romanesca; acima, desenvolvo temas. Os te- mas sao trabalhados sem interrupacao na e pela historia roma- nesca. Quando o romance abandona seus temas ese contentaem contar a histéria, ele se torna sem densidade. Em contrapartida, um tema pode ser desenvolvido sozinho, fora da historia. Essa maneira de abordar um tema eu chamo de digressao. Digressao quer dizer: abandonar por um momento a histéria romanesca. Toda a reflexao sobre o kitsch em A insustentavel leveza do seré, por exemplo, uma digressao: eu abandono a histéria romanesca para atacar diretamente meu tema (0 kitsch). Considerada sob este ponto de vista, a digressio nao enfraquece, mas corrobora a disciplina da composicao. Do tema, distingo 0 motivo: € um ele- mento do tema ou da historia que retorna varias vezes no decor- yer do romance, sempre em um outro contexto; por exemplo: 0 motivo do quarteto de Beethoven, que passa da vida de Tereza.as reflexées de Tomas e atravessa também os diferentes temas: © do peso, 0 do kitsch; ou entao o chapéu-coco de Sabina, presente nas cenas Sabina-Tomas, Sabina-Tereza, Sabina-Franz, e que expoe também o tema das ‘‘palavras incompreendidas’’. C.S.: Mas 0 que vocé entende exatamente pela palavra tema? M.K.: Um tema é uma interrogacao existencial. E cada ver 7a mais me dou conta de que tal interrogacao é, afinal, 0 exame de palavras particulares, de palayras-temas. 0 que me leva a insistir; © romance é baseado primeiramente em algumas palavras funda- mentais. E como a “série de notas” em Schonberg. Em Olivro do tiso e do esquecimento, a’'sétie” é a seguinte: 0 esquecimento, 9 Tiso, os anjos, a “litost”, a fronteira, Estas cinco palavras princi- Pais sao, no decorrer do romance, analisadas, estudadas, defini- das, redefinidas, e assim transformadas em categorias da existén- cia. O romance é construido sobre estas Ppoucas categorias como uma casa sobre pilares. Os pilares de A insustentavel leveza do SeF: 0 peso, a leveza, a alma, o corpo, a Grande Marcha, a merda, o kitsch, a compaixao, a vertigem, a forga, a fraqueza. C.S.: Paremos no plano arquitet6nico de seus romances, Todos, menos um, sao divididos em sete partes. M.K.: Uma vez terminada A brincadeira, eu nao tinha nenhu- ma razao de me espantar por ela ter sete partes. Em seguida, La vie est ailleurs. O romance estava quase acabado e tinha s tes. Eu estava insatisfeito. A historia me parecia chata. Subits me veio a idéia de inserir no romance uma histéria que se trés anos ap6s a morte do herdi (sto 6, além do tempo do ro £ a pentiltima parte, a sexta: O quadragendrio. Na mesma hora, tudo ficou perfeito. Mais tarde, atinei que essa parte seis correspon- dia estranhamente a parte seis de A brincadeira (Kostka) que, tam- bém ela, introduz no romance um personagem do exterior, abre na Parede do romance uma janela secreta. Risfveis amores eram de ini- cio dez novelas. Quando redigi a coletanea definitiva, eliminei tras delas; 0 conjunto se tornou muito coerente, de tal maneira que ja prefigura a composicio de O livro do tiso e do esquecimento: os mesmos temas (especialmente o da mistificagéo) unem num $6 con- junto sete narrativas sendo que a quarta e a sexta sao por outro lado reunidas pelo “gancho” do mesmo protagonista: o doutor Havel. Em O livro do riso e do esquecimento, a quarta e a sexta Parte sao, também, reunidas pelo mesmo personagem: Tamina. Quando es- crevi A insustentavel leveza do ser, quis a todo prego quebrar a fa- talidade do ntimero sete. O romance ha muito tempo estava conce- bido num esboco de seis partes, Mas a primeira me parecia ainda 78 escrevi eis par- amente passava mance). li i ir Informe. Finalmente, compreendi que essa parte, na ae a mava duas, que era como gémeas siamesas que se Ps eae om duas, através de uma delicada intervengao Cae oat {sto para dizer que nao é de minha parte nem cones ae ioso com um numero magico, nem calculo raciot os =e hi profundo, inconsciente, incompreensivel, arqu a oe do qual nao posso escapar. Meus somianices: oa arquitetura fundamentada sobre o ntmero ea , C.S.: Até onde vai essa ordem matemiatica? ss M.K.:Pegue A brincadeira. Este romance é con’ po! 4 sonagens: Ludvik, Jaroslav, Kostka e Helena. © monolog e iad cou 2/3 do livro, os mondlogos dos outros, juntos, ocu- ana sie vio (Jaroslav 1/6, Kostka 1/9, Helena 1/18). Hataye oe re matemiatica é determinado o que et denominaria a toes im dos personagens. Ludvik se encontra em plena Juz, ilu- aes sien or seu proprio mondlogo) e do exterior (todos oo io tragam seu retrato). Jaroslav ocupa através de 7 -aRele ie sexo do livro e seu auto-retrato é corrigido he ce feoopcia coeniloie de Ludvik. Et caetera. Cada pence e ‘ minado por uma outra intensidade de luzedeum m a Se Lucie, uma das personagens ee ——— nate al i lo ex! ome a de ands iluminacdo interior lhe da um a nag e intangivel. Ela se oe por assim dizer, do outro it a S ja. M.K.: Nao. Descobri tudo isso, apésa publicagao a set deira em Praga, gracas ao artigo de um critico literdrio teheco: 2 " i “A brincadeira’”’. Um texto revelador pat mim. Expl antl ae essa “ordem matemiatica” se impés naturalmente nto necessidade da forma e nao precisa de célculos. C.S.: E dai que provém sua mania de ntimeros? Em todos 0s seus romances, as partes ¢ os capitulos sao me on MK.: A divisao do romance em partes, das partes 1 a i tro modo, a articulagdo fi m pardgrafos, dito de ou! a saad fa clareza muito grande. Cada uma das 79 do romance, quero-a de um: sete partes é um todo em si. Cada qual é caracterizada por seu prio modo de narracao: por exemplo, La vie est ailleurs: pri Parte: narragéo “continua” (isto é, com uma ligacao. causal entre 0 es): segunda Parte: narracéo onirica; terceira parte: narra lescontinua (isto é, sem ligagio causal entre os capitulos); parte: narragao polif6nica; quinta parte: narracéo continaa ail Parte: narracao continua; sétima parte: narragéo polifénica, Ca uma tem sua propria perspectiva (é contada sob o ponto de vist um outro ego imaginario). Cada uma tem sua Propria duragdo: a 01 dem de durac4o em A brincadeira: muito curta; muito curta; lon curta; longa; curta; longa. Em La vie est ailleurs, a ordem 6 an longa; curta; longa; curta; Jonga; muito curta; muito curta. També1 quero que os capitulos sejam, cada um, um pequeno todo em si por es que insisto junto aos meus editores Para qué ponham em evi i a Ncla Os nluimeros e separem os capftulos muito nitidamente uns. dos outros. (A solucao ideal é a de Gallimard: cada capit numa nova pagina). Permita-me mais uma vez mee ei com a mtisica. Uma parte é um movimento, Os capitulos sao com- Passos. Esses compassos sao ou breves ou longos, ou entéo de dura- a0 muito irregular. O que nos leva a questo do andamento. Cada parte em meus romances poderia trazer uma indicagao musical: derato, presto, adagio, etc. a C.S.: O andamento e eniao determinad a duragao de uma parte e o ntimero de aie —e q ee M.K:: Olhe sob esse ponto de vista La vie est ailleurs: meira parte: 11 capitulos em 71 paginas; moderato Segunda parte: 14 capitulos em 31 paginas; allegretto Terceira parte: 28 capitulos em §2 paginas; allegro Quarta parte: 25 capitulos em 30 paginas; prestissimo Quinta parte: 11 capitulos em 96 paginas; moderato Sexta parte: 17 capitulos em 26 paginas; adagio See Parte: 23 capitulos em 28 paginas; presto ‘ea: a quinta parte tem 96 paginas e so itulos; ee tranqtiilo, ieiitemedemton A a ea eaan aes eras O que da impressao de uma grande rapidez: pres- 80 Se es dos andamentos! Para mim, eles fazem parte da primeira (8.1 A sexta parte tem 17 capitulos em apenas 26 paginas. Isto (fica, se bern compreendi, que tem uma freqiéncia bastante r- . Entretanto vocé a designa como adagio! M.K.: Porque o andamento também é determinado por outra : a relacdo entre a duragio de uma parte e o tempo “real” do intecimento relatado. A quinta parte, O poeta é ciumento, repre- ia um ano inteiro de vida, enquanto a sexta parte, O quadrage- i/o, fala apenas de algumas horas. A brevidade dos capitulos tem Jl aqui, como fungao, desacelerar o tempo, imobilizar um unico ide momento... Acho extraordinariamente importantes os con- idleia que fago de meu romance bem antes de escrevé-lo. Esta sexta parte de La vie est ailleurs, adagio (atmosfera de paz e de compai- slo) ¢ seguida pela sétima parte, presto (atmosfera excitada e cruel). Nosse contraste final eu quis concentrar todo o poder emocional do yomance, O caso de A insustentavel leveza do ser é exatamente pposto. Ali, desde o inicio do trabalho, eu sabia que a tiltima parte devia ser pianissimo e adagio (O sorriso de Karenina: atmosfera calma, melancélica, com poucos acontecimentos) e que devia ser precedida por uma outra, fortissimo, prestissimo (A grande mar cha: atmosfera brutal, cinica, com muitos acontecimentos). C.S.: A mudanga de andamento, portanto também implica mudanga de atmosfera emocional. M.K.: Mais uma grande licao da miisica. Cada passagem de \uma composigéo musical atua sobre nds, queiramos ou nao, através de uma expressao emocional. A ordem dos movimentos de uma sin- fonia ou de uma sonata foi determinada, em todos os tempos, pela regra, nao escrita, da alternancia dos movimentos lentos e dos movi- menttos rapidos, o que significava quase automaticamente: movi- mentos tristes e movimentos alegres. Estes contrastes emocionais, logo se tornaram um sinistro estereétipo que somente os grandes mestres souberam (e nem sempre) superar. Admiro nesse sentido, para mencionar um exemplo arquiconhecido, a sonata de Chopin, aquela cujo terceiro movimento éa marcha fiinebre. Que mais se po» dia dizer depois desse grande adeus? ‘Terminar a sonata como de habito com um rondé vibrante? Mesmo Beethoven em sua sonata 81 Op. 26 nao escapa a esse esteredtipo quando faz seguir a marcha ft nebre (que também 6 o terceiro movimento) por um final alegre. quarto movimento na sonata de Chopin é totalmente eat Be nissimo, rapido, breve, sem nenhuma melodia, absolutamelfl nao-sentimental: uma borrasca longinqua, um ruido surdo anun- ciando o esquecimento definitivo. A proximidade desses dois movi- mentos (sentimental — ndo-sentimental) nos causa um aperto na garganta. E absolutamente original. Falo disso para fazer vocé cont preender que compor um romance € justapor diferentes espac cans € que nisto esta, para mim, a arte mais sutil de um ro- GES: ua educacao musical influenciou muito sua escrita? a M.K.: Até os ‘vinte e cinco anos, eu era muito mais atraido pela miisica que pela literatura. A melhor coisa que fiz entao foi uma composicao para quatro instrumentos: piano, viola, darineta e ba- teria. Ela prefigurava quase caricaturalmente a arquitetura de meus romances, dos quais, na época, eu sequer desconfiava da existéncia futura, Essa Composicao para quatro instrumentos é dividida, ima- gine, em sete partes! Como é 0 caso nos meus romances, 0 eonj junto € composto de partes formalmente muito heterogéneas (jazz; ar~ dia de uma valsa; fuga; coral etc.) e cada uma delas tem uma a i s- tragao diferente (piano, viola; piano solo; viola, clarineta, beter etc). Esta diversidade formal é equilibrada por uma enorme cand da teméatica: do comego até 0 fim sao elaborados somente dois sabia A eB. As tres ultimas partes so baseadas em uma polifonia que 7 época considerei muito original: a evolucao simultanea de dois te- ae diferentes ¢ emocionalmente contraditérios; por exemplo, na ultima parte: repete-se em um gravador 0 registro do terceiro tnovi mento (0 tema A concebido como um coral solene Para clarinets viola, piano) enquanto, ao mesmo tempo, a bateria e o trompete © clarinetista devia trocar sua.clarineta por um trompete) vrais com uma variagao (no estilo “barbaro”) do tema B. Eainda uma curi- Osa semelhanca: é na sexta parte que surge uma tinica vez um novi tema, C, exatamente como Kostka de A brincadeira ou 0 juadra; 2 nario de La vie est ailleurs. Conto tudo isto para lhe most a forma de um romance, sua “estrutura matemitica”, naoé sini od 82 calculada; é um imperativo inconsciente, uma obsessao. Outrora, cheguei a pensar que essa forma que me obceca era uma espécie de definicao algébrica de minha propria pessoa, mas, um dia, ha alguns ‘anos, prestando mais atengdo ao quarteto op. 131 de Beethoven, tive de abandonar essa concepsao narcisista e subjetiva da forma. Primeiro movimento: lento; forma de fuga; 7°21” Segundo movimento: répido; forma inclassificavel; 326” Terceiro movimento: lento; simples exposigao de um sé tema; 51” Quarto movimento: lento e rapido; forma de variagoes; 13/48” Quinto movimento: muito rapido; scherzo; 5’35” Sexto movimento: muito lento; simples exposigao de um s6 tema; 1'58” Sétimo movimento: rapido; forma-sonata; 6/30” Beethoven , talvez, o maior arquiteto da musica. Herdoua sonata concebida como um ciclo de quatro movimentos, muitas vezes reunidos bem arbitrariamente, dos quais 0 primeiro (escri- to na forma-sonata) era sempre de maior importancia que os mo- vimentos seguintes (escritos em forma de rondé, de minueto etc.). Toda a evolucdo artistica de Beethoven é marcada pela von- tade de transformar esse conjunto em uma verdadeira unidade. Assim, em suas sonatas para piano, ele desloca pouco a pouco 0 centro de gravidade do primeiro para o ultimo movimento, reduz freqiientemente a sonata a apenas duas partes (algumas vezes se- paradas por um movimento-interltidio, como € 0 caso das sona- tas op. 27 n? 2 e op. 53, algumas vezes diretamente justapostas, como € 0 caso da sonata op. 111), trabalha os mesmos temas nos diferentes movimentos etc. Mas ao mesmo tempo tenta introdu- zir nessa unidade um maximo de diversidade formal. Varias ve- zes insere uma grande fuga em suas sonatas, sinal de uma extra- ordinaria coragem pois, numa sonata, a fuga devia entao parecer tao heterogénea quanto 0 ensaio sobre a degradacgao dos valores no romance de Broch. O quarteto op. 131 é 0 auge da perfeigao arquitetOnica. Nao quero chamar sta atengao senao a respeito de um sé detalhe do qual ja falamos: a diversidade das duragées, O terceiro movimento € quinze vezes mais curto que o movimento seguinte! E séo precisamente os dois movimentos tao estranha» 83 mente curtos (0 terceiro e 0 sexto) que reGnem, mantém j essas sete partes tao diversas! Se todas as pares fosse} a ; menos da mesma duracao, a unidade desabaria. Por cae f explicar. E assim. Sete partes de uma mesma dim 6 4 a como, sete grandes armérios postos um ao lado do juts ‘aed propels mais um exemplo: o primeiro disco de minha vida foi certo de Bach para quatro pianos, segundo Vivaldi. Na época eu ae apenas dez anos e fiquei totalmente fascinado pelo 7 en do movimento, largo. Mas que ha de tao extraordinério ne: ‘imento? Sua forma é A-B-A. Tema A: um didlogo muito si ples entre um piano ea orquestra—70 segundos. Tema B: os : tro Pianos sem orquestra, nenhuma melodia, uma simy ‘ si ee sao de acordes, uma superficie imovel de agua — 105 a nd depois, a retomada do tema A, mas somente um ou dois a pastas = 0) segundos! Imagine esse /argo composto somente d luas partes: A-B. Sem esses 10 segundos da retomada, nao § Sa is ee) imagine o tema A retomado inteira) y los — 105 segundos — 70 si metria. Na verdade, a simetneda see D ay oe i compensada pela assimetria radical das duracées! 5 wo Portanto me encantado, quando crianga, nesse largo, a abele das proporgées. Bele: i 5 oe za matematica. 70 — 105 — 10; 0 que sij 10x7 - mae 15x7 ae © que significa: 2 — 3 — -2_ 7 Mas deixemos isto. ne Vocé quase nao falou de La valse aux adieux. aa Kes Entretanto, éo romance que, num certo sentido, me caro. Assim como Risiveis amores, escrevi-o com mal prazer e divertimento que os outr 1 ra i ‘os. Em um outro pirito. Muito mais depressa, também. “aa C.5.: Ele s6 tem cinco partes. 84 M.K.: Ele repousa sobre um arquétipo formal inteiramente diferente dos meus outros romances. £ absolutamente homoge neo, sem digressdes, composto de uma 86 matéria, contado no mesmo andamento, é muito teatral, estilizado, baseado na forma do vaudeville. Em Risfveis amores, vocé pode ler a novela Ocol6- quio. Em tcheco ela se chama Symposium, alusao parodica a0 Symposium (O banquete) de Platao. Longas discussoes sobre 0 amor. Ora, esse Coldéquio é composto inteiramente como La valse aux adieux: vaudeville em cinco atos. C.S.; Que significa para vocé a palavra vaudeville? M.K.: Uma forma que destaca enormemente a intriga com todo seu aparato de coincidéncias inesperadas e exageradas. La- biche. Nada se tornou mais suspeito num romance, mais ridi- culo, fora de moda, de mau gosto que a intriga com seus excessos vyaudevilescos. A partir de Flaubert, os romancistas tentam apa- far os artificios da intriga, o romance tornando-se assim muitas Vozes mais cinzento que a mais cinzenta das vidas. Contudo, os primeiros romancistas nao tiveram esses escrtipulos diante do improvavel. No primeiro volume de Dom Quixote, ha uma ta- berna em algum lugar da Espanha onde todo mundo, por mero eso, se encontra: Dom Quixote, Sancho Panga, seus amigos jurbeiro e cura, depois Cardenio, um rapaz de quem um certo (dom Fernando roubou a noiva Lucinda, mas logo tambem Doro- {¢ia, a noiva abandonada desse mesmo Dom Fernando, e mais lurde esse mesmo Dom Fernando com Lucinda, depois um oficial (jue fugiu da prisao moura, e depois seu irmao que 0 procura ha nos, depois também sua filha Clara, € ainda o amante de Clara perseguindo-a, ele proprio perseguido pelos servidores de seu proprio pai... Um actimulo de coincidéncias e de encontros total- Mente improvaveis. Mas nao devemos considerar isso, no caso ily Cervantes, como ingenuidade ou inabilidade. Os romances de pntio ainda nao tinham celebrado com oleitor o pacto da verossi- Wilhanga. Nao queriam simular o real, queriam divertir, embas- hear, surpreender, enfeitigar. Eram Itidicos ¢ nisso é que residia wun virtuosidade. O comeco do século XIX representa uma trans- formagao enorme na hist6ria do romance. Eu diria quase um cho- 85 grande infidelidade ines- a eaney da bigamia des- M.K.: Sonho sempre consegui escapar 10 conss taberna de Cervantes. O sé it perada. Mas no momento na fas duas formas tealismo do século XIX se interpés, cidéncias improvaveis nao pode mais ser inocente. Ele se to ou intencionalmenie engracado, irénico, parddico (Les caves Vatican ou Ferdydurke, por exemplo) ou entio fantéstico, oni co. O que 6 0 caso do primeiro romance de Kafka: L’Amérique Leia 0 primeiro capitulo, com o encontro inteiramente inveross: mil de Karl Rossmann e seu tio: 4 da taberna cervantica, Mas ness xemos bem: Kafka entrou em seu primeiro universo “surreal” (em sua primeira “fusao do realedosonho”) pela taberna de C vantes, pela porta vaudevilesca, M.K.: Em seus inicios, 0 grande romance europeu era ui divertimento e todos os verdadeiros romancistas tém nostalgi disso! O divertimento nao exclui alids de modo algum a gravit dade. Em La valse aux adieux, pergunta-se: 0 homem merece vi- ver sobre esta terra, nao é preciso €m nossas camas assim como og que representamos Palco da Histéria) em sua terrivel insignificancia. C.S.: Existem pois duas formas-arquétipos em seus roman- ces: 1. a composigao polifonica que une os elementos heterogé- Neos em uma arquitetura fundamentada sobre ontimero sete;2.a composicao vaudevilesca, homogénea, ieatral e que roga o in- verossimil. no grande 86 aL iit

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