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Versão final: 08/02/2016

DO CORPO PRÓPRIO AO CORPO NOSSO:


Ontogênese do método P5INCO

Prof. Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D.


Universidade Federal do Ceará

A vida que registro nestas páginas discorre sobre um setênio de minhas


práticas profissionais sistemáticas com o corpo, desenvolvidas desde 2009, no
Instituto de Educação Física e Esportes (IEFES) da Universidade Federal do
Ceará (UFC), pelo Núcleo de Integração Somaestética (NISE) do Laboratório
de Possibilidades de Ser (LEPSER), no percurso dos últimos 30 anos de
inter(in)venções docentes, desde o meu ingresso, em 1985, como professor em
sala de aula.
Até a concepção do sistema de Práticas Somaestéticas Integrativas do
Corpo Pentelementar – P5INCO, um método terapêutico multimodal integrativo
centrado na pessoa, a dimensão do corpo não havia recebido a sua devida
atenção em minha vida e nem em minhas pesquisas. Como uma tentativa de
reparação tardia, comecei a sistematizar o método P5INCO1, cujo primeiro livro
você tem nas mãos agora.
Neste mais recente ciclo de intensos trabalhos de ensino, extensão e
pesquisa, com práticas corporais integrativas desenvolvidas em uma
universidade pública (precedidos por uma década na universidade privada 2),
construí o repertório de experiências para um “novo homem”, aprofundando
outra perspectiva de corpo não contemplada no Humanismo clássico, ao qual
me dediquei por vinte e um anos.
A exemplo do filósofo Jean-Luc Nancy, aquele “‘homem’ do
‘humanismo’, destinado a significar, a sobre-significar, a in-significar o seu
corpo, dissolveu progressivamente este corpo e ele próprio”3, liquefazendo-se,
também, na aquarela humanista que me fizera.

1
Veja também: Francisco Silva Cavalcante Junior (Org.), Corpos anárquicos. Curitiba, CRV,
2014 e Francisco Silva Cavalcante Junior (Org.), Corpos extra-vagantes. Curitiba, CRV, 2015.
2
Professor titular dos cursos de graduação e mestrado em Psicologia da Universidade de
Fortaleza (UNIFOR), de 1998 a 2008.
3
Jean-Luc Nancy, Corpus. Lisboa, Vega, 2000, p. 60.
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Felicitado por uma parceria intelectual de muitos anos com André


Feitosa de Sousa e Yuri de Nóbrega Sales, em 2013, concebemos o
Humanismo Vital4 para um ser humano encorpado, para quem o fluxo
experiencial faz pulsar entranhas e vísceras na composição imanente da
diferença, no corpo vibrante daquele que se percebe, cria-se e recria-se
enquanto vida encarnada nas possibilidades de um humano inventado.
Este “novo homem” que estou como processo de abertura e de tornar-
me, facultou-me outros giros do pensamento encarnado, até a concepção do 2
P5INCO enquanto metodologia de expressão poética das linguagens e
inteligências corporais, a partir de um trabalho grupal com as potencialidades
sensíveis do organismo e suas relações de afetação.
A fundamentação epistemológica do P5INCO está baseada nas
correntes do Pragmatismo Americano, conforme suas aplicações filosóficas e
estéticas, no pensamento experiencial de Richard Shusterman5 e Elliot Eisner6,
valendo-se, ademais, de componentes teóricos assentados na filosofia da
produção de presença, articulada por Hans Gumbrecht7, bem como na filosofia
do contato, discutida por Jean-Luc Nancy, e na perspectiva conceitual de
corpo, enquanto formação arquetípico-imaginal de forças mítico-elementares,
apresentadas no pensamento de Gaston Bachelard – os dois últimos,
amplamente desenvolvidos neste capítulo.
No plano operacional, as oficinas semanais ou encontros intensivos (por
exemplo, de finais de semana), com aplicação do método P5INCO, ocorrem
através de processos de “imaginação ativa”8 (ou meditação criativa guiada)
para a expressão do movimento singular do corpo, por meio dos recursos
musicais (em sonoridades instrumentais, previamente estudadas e
selecionadas).
Essa proposta de movimento e ritmo vale-se de uma perspectiva de
inteligências múltiplas de Howard Gardner9 e de letramentos múltiplos de
Donald Graves10 na construção de uma palavra-mundo ampliada, conforme
imaginada por Paulo Freire11, para quem o texto é relação situada no espaço,
texto que é contexto, que é textura, que é tessitura, que é corpo, afinal.
Neste prisma, os participantes são convidados a construir o seu espaço
pessoal de movimento a partir de um vetor de sentido atribuído pela
organicidade, na sua relação com o meio físico e a presença dos participantes
como possibilidade de contato, sem a utilização de artifícios da simbolização na
linguagem verbal.
Trata-se, em outras palavras, da construção de um “texto-sentido”
(textos ressonantes, na tradução de Blake Poland12), utilizando as capacidades
poéticas do corpo, avançando as possibilidades de escritura e partilha de

4
Francisco Silva Cavalcante Junior; André Feitosa de Sousa; Yuri de Nóbrega Sales,
Humanismo vital. Vol. 1. Curitiba: CRV, 2013.
5
Richard Shusterman, Consciência corporal. São Paulo: É Realizações, 2012.
6
Elliot Eisner, The arts and the creation of mind. New Haven: Yale University Press, 2002.
7
Hans Ulrich Gumbrecht, Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir.
Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010.
8
Marie-Louise von Franz, Alchemical active imagination. Boston: Shambhala, 1997.
9
Howard Gardner, Multiple intelligences: The theory in practice. New York: Basic Books, 1993.
10
Donald Graves, A fresh look at writing. Portsmouth, NH: Heinemann, 1994.
11
Paulo Freire, A importância do ato de ler. 28. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
12
Tradutor do referido método para o inglês com aplicações em suas disciplinas na Escola de
Saúde Pública da Universidade de Toronto (Canadá).
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sentidos encarnados, já desenvolvidas no Método (Con)texto de Letramentos


Múltiplos13 (com possibilidades criativas na partilha do sensível) e no Grupo de
Florescimento Humano14 (com práticas contemplativas no suporte da
respiração com/sem objeto de foco e uso de diário experiencial).
Os facilitadores do P5INCO, denominados de Elãs Vitais (aqueles que
reverberam elos de vida), trabalhando em duplas ou trios, disponibilizam
recursos da expressividade e da imaginação nos seus corpos para o contexto
de trabalho grupal, a partir de “jogos” para desmecanização do corpo, oriundas 3
do Teatro do Oprimido de Augusto Boal15, das terapias corporais (antiginástica,
bioenergética, contato improvisação, dança contemporânea, performance
artística), das terapias expressivas e criativas, dentre outras.
Numa fase de aproximação inicial, os participantes são apresentados ao
método P5INCO em seis oficinas (totalizando 18 horas horas/atividade), com a
possibilidade de aprofundá-las em novos encontros semanais (64 horas), ao
longo do semestre letivo. Um(a) elã vital (facilitador/a) do método P5INCO é
alguém com experiência vivenciada de no mínimo quatro semestres (256
horas), incluindo discussão presencial nas referências teóricas anteriormente
apresentadas e participação obrigatória complementar em atividades de
formação acadêmica e estética (conferências e apresentações das artes no
calendário público da cidade).
Imergindo nas experiências com o próprio corpo, em vista da aquisição
de “impressões integrativas” (com uso de metáforas, imagens, intuições,
sensações, percepções não-lineares do espaço e das relações dos corpos nos
seus espaços), conforme proposição de Maria Constança Villas-Bôas Bowen16,
teórica da Abordagem Centrada na Pessoa; seguindo, ademais, o potencial
inexplorado do gesto e do movimento autodirigidos, norteados pelos princípios
de não-diretividade e de não-estruturação prévias, também com inspiração na
Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers 17, os participantes do sistema
P5INCO adentram camadas das suas experiências através de um contexto de
ressonâncias somaestéticas que permitem expandir a qualidade imaginal do
seu movimento, no intercâmbio com a sensibilidade de terceiros.
A possibilidade de criação e sustentação de um campo experiencial e de
presença encorpada compartilhados, em vista da construção de sentido e
ressignificação do vivido, situa o sistema P5INCO como um método terapêutico
multimodal integrativo para a construção de um corpo poético centrado na
pessoa, onde não há uma finalidade antecipada a ser buscada, seja para o

13
Francisco Silva Cavalcante Junior, Por uma escola do sujeito: o método (con)texto de
letramentos múltiplos. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001; Francisco Silva Cavalcante
Junior (Org.), LER... caminhos de trans-form-ação. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2005
e Francisco Silva Cavalcante Junior, Letramentos para um mundo melhor. Campinas, SP:
Alínea, 2009.
14
André Feitosa de Sousa, Francisco Silva Cavalcante Junior e Francisco Antonio de Sales
Abud, “Grupos de florescimento humano: olhares acerca de um programa de pesquisa-
intervenção em promoção de saúde mental integral no Sistema Único de Saúde”. Em Francisco
Silva Cavalcante Junior; André Feitosa de Sousa (Orgs.), Humanismo de funcionamento pleno:
Tendência formativa na Abordagem Centrada na Pessoa - ACP. Campinas, SP: Alínea, 2008.
15
Augusto Boal, Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
16
Francisco Silva Cavalcante Junior, “Trilhas de vida e espiritualidade em Maria Bowen:
Interconexão no universo e na psicoterapia. Em Ercília Maria Braga de Olinda; Francisco Silva
Cavalcante Junior (Orgs.), Artes do existir: Trajetórias de vida e formação. Fortaleza: Edições
UFC, 2008, págs.
17
Carl Rogers, A way of being. Boston: HoughtonMifflin, 1980.
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lugar do corpo no espaço ou mesmo um tipo particular de relação subjetiva


derivada a partir do corpo, bem como não há uma codificação antecipada de
valores ou experiências legitimadas para o corpo singular (seja estética ou
moral).
Assim delimitado, trata-se de uma oportunidade para invenção de si no
campo do tácito, um espaço de feituras somaestéticas onde o poético que se
presentifica no corpo, nos movimentos espontâneos, nas imagens e nas
palavras escritas, são tecidos em contextos de trabalho coletivo experiencial. 4
No caminho de inter(in)venção do P5INCO, sinto ressoar a visão
futurista e profética de Paul Valéry18, em “Vento do Nordeste”:

“O homem ainda não começou seu trabalho, está ainda preparando


suas ferramentas. Quando chegar o momento, dificilmente
conservará o nome de homem. [...]
Quando o homem tiver reconhecido que é nada, então poderá
começar. Poderá a inteligência ou desaparecer ou substituir tudo? Ela
começará a construir.
As questões, os enigmas necessários terão sido rebaixados. Nascer,
sofrer, morrer não serão mais dificuldades. Haverá muito que a
energia, os materiais, os seres vivos auxiliares estarão à disposição.
O comércio e a indústria não mais existirão. Haverá uma única
ciência e ela será quase inata.”

Deste modo, a ciência do corpo que vislumbrei para o método P5INCO é


aquela na qual o corpo se deixa ser afetado por suas experiências vitais,
fazendo com que uma qualidade somaestética cresça em si para que se possa
pensar (com) o corpo. Esta postura diferencia-se, radicalmente, daquela em
que se pensa sobre o corpo.
As explicações do poeta e filósofo Antonio Cícero 19 são esclarecedoras
para compreendermos a diferenciação gramatical do pensar sobre e do pensar
o corpo, atribuindo ao pensar a sua condição de verbo transitivo indireto de
pensar em ou sobre alguém ou alguma coisa:

“As preposições em ou sobre, quando digo ‘penso numa rosa’ ou


‘penso sobre uma rosa’ funcionam como uma marca verbal do caráter
mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se
entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado os separa e, por outro,
os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico. [...]
Contudo, o que me perguntei foi se pensar o mundo é sempre
filosofar. Ora, nessa pergunta, a abolição da preposição sugere a
abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa
pensada. É como se o pensamento não ficasse sobre, isto é, acima
ou, de algum modo, fora do mundo, para pensa-lo. É como se
apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um
pensamento intuitivo e noético, ou uma intuição intelectual. Nesse
sentido, pensar o mundo – que é o que supomos fazerem muitos
poetas – afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo
e, portanto, de filosofar.”

18
Paul Valéry, “Ventos do Nordeste”. Em Adauto Novaes (Org.), Poetas que pensaram o
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 371.
19
Antonio Cícero, “O destino do homem”. Em Adauto Novaes (Org.), Poetas que pensaram o
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 230.
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No pensamento intuitivo ou intuição intelectual, pensa-se o corpo


integrando-se a ele. Pensamento e corpo não são mediados por uma
preposição que coloca o pensante sobre o seu corpo descolado; pensador e
corpo formam uma única unidade que passa a ser afetada somaesteticamente.
Se o pensamento caracteriza-se pela ação cognitiva de buscar o que
ainda não foi pensado e a poesia como o processo de se deixar afetado por
aquilo que cresce em nós e está por vir, pensamento e poesia encontram-se no
que Paul Valéry nomeou de “infinito estético”, qual seja, um “desejo que 5
permanece desejo”20.
“Ao poeta”, diz Gaston Bachelard21, “compete o dever de ensinar-nos a
incorporar as impressões de leveza em nossa vida, a dar corpo a impressões
quase sempre desprezadas.” Foi o meu encontro com a obra deste filósofo do
devaneio que me impulsionou na busca do potencial poético (e também da
poesia) em intervenções com práticas somaestéticas.
Uma pergunta elaborada por ele soou-me intrigante e ainda merecedora
de nossa reflexão-ação:

“Por que os psicólogos


não se preocupam
em construir para nós
uma pedagogia
dessa leveza do ser?”

A leitura da filosofia de Bachelard também me alertou para os limites do


saber psicológico e convidou-me a percorrer outras facetas dos humanos que
nos são apresentadas pelos poetas: “Os psicólogos não sabem tudo. Os
poetas trazem outras luzes a respeito do homem”22.
Segundo ele, “teríamos de ser ao mesmo tempo psicólogo e poeta”23;
uma tarefa nada fácil, que venho tentando aprender, nesse cotidiano de
terapeuta somaestético.
Depois de grandes desafios enfrentados, carrego o sentimento precioso
de leveza, com asas belas e crescidas, que me possibilitam admirar um novo
fazer científico no caminho da poética do método P5INCO.
Utilizo intencionalmente o vocábulo “admirar”, pois com ele consegui
mirar adiante o potencial da poesia ainda pouco valorizado em nossa ciência
ocidental. A Bachelard, trago os meus esforços para “demonstrar que a poesia
é uma força de síntese para a existência humana”24.
Com a poesia reaprendi a arte de brincar e de ser feliz. O início da
minha vida, todavia, foi bem diferente.

Corpo próprio

20
Citado por Adauto Novaes (Org.), Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005, p. 14.
21
Gaston Bachelard, A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 199.
22
Ibid., p. 120.
23
Ibid., p. 118.
24
Ibid., p. 199.
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Diz a poesia da música “Estrada” cantada pelo Cidade Negra: “Você não
sabe o quanto eu caminhei / pra chegar até aqui / percorri milhas e milhas
antes de dormir / eu nem cochilei / Os mais belos montes escalei / Nas noites
escuras de frio chorei, ei, ei, ei...”.
A cor do meu corpo infantil é o Vermelho Amargo do poeta Bartolomeu
Campos de Queirós25:

“Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro. Principia nas unhas, passa 6
pelos cabelos, contagia os ossos, penaliza a memória e se estende
pela altura da pele. Nada fica sem dor. Também os olhos, que só
armazenam as imagens do que já fora, doem. A dor vem de
afastadas distâncias, sepultados tempos, inconvenientes lugares,
inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne
morta.”

O pensamento é cruel. Aos modos ditos na voracidade do poeta


Queirós, ou no movimento cruel do serrote que fere esse caule vivo do meu ipê
roxo, “Foi preciso deitar o vermelho sobre papel branco para bem aliviar seu
amargor”26. Ou mesmo, viver o “apocalipse do corpo”, irradiar sensações da
invenção, como propõe o filósofo japonês Kuniichi Uno27, em seu livro A
gênese de um corpo desconhecido.
Ao revisitar o vermelho amargo do meu corpo infantil, soube-me um
corpo que “foi roubado, martirizado, torturado, deformado, suprimido de uma
maneira quase irrecuperável”28. Pela tortura do corpo, somos todos
responsáveis, diz aquele filósofo japonês:

“O Cristo, as doutrinas, os misticismos, as metafísicas, as ciências, as


políticas, tudo o que é social, a medicina e os hospitais psiquiátricos
são responsáveis por isso. A vida humana, suas forças vitais,
incluindo a libido ou o desejo, é moldada nas redes institucionais da
vigilância, da organização ou da exclusão. [...] O Estado, a sociedade,
29
o exército, a escola, a medicina, a cultura são inimigos do corpo.”

No vermelho amargo mergulhei para intensificar, produzir intensidades


com a minha dor, ela mesma como objeto de meu deslizamento somaestético:
pensamento, potência...
Sob a ilusão da pureza do branco, o infante viveu os sonhos no conto
das suas fadas, imaginação de um índigo, proteção de um fauno. Em vermelho
amargo mergulhei na dor do corpo esmagado, alheado, contorcido pelo adulto.
Na sequência, o sofrimento do meu corpo foi ampliado no colégio militar.
Foram 720 dias de tortura, entre os meus 11 e 16 anos de idade. No início das
manhãs, segundas, terças e quintas-feiras, as aulas de “educação” física eram
ministradas em um regime militar rígido e intransigente – rigorosamente, três
vezes por semana.
Sem exceções, vivenciei longos e consecutivos anos de humilhação
pelos docentes de educação física. Toda sexta-feira a minha ansiedade

25
Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho amargo. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 7-8.
26
Ibid., p. 5.
27
Kuniichi Uno, A gênese de um corpo desconhecido. Trad. Christine Greiner. São Paulo: N-1
Edições, 2012.
28
Ibid., p. 41.
29
Ibid., p. 42.
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aumentava, sempre que, no flanelógrafo, eram publicadas as modalidades de


exercícios físicos e esportes das aulas na semana seguinte. As modalidades
em si não eram por mim temidas, mas a forma como os professores as
aplicavam, sem adaptações para os diferentes tipos físicos, tais como o meu,
em seu sobrepeso.
Salto em altura e a escalada de cordas eram as mais temidas, sem falar
nos esportes coletivos com bola, cuja aproximação do meu corpo era motivo de
grande sofrimento e de xingamentos constantes. “Chuta essa bola, marica!”, 7
era o que de mais cândido consigo lembrar, na agressão dos meus colegas.
Dos professores, principalmente nas corridas grupais, quando sempre
estive muito atrás de quem seria o último, em esgotamento já extremo para
acompanhar os demais, ouvia: “vamos, acelera, mostra que é homem, 354!”.
Por um sexteto de anos, a minha subjetividade foi reduzida a uma combinação
matemática casual. Todos os estudantes eram tratados por seus números. Eu
era o 354.
A primeira libertação deu-se ao final de 1984, quando mudei de colégio
vislumbrando uma melhor preparação para o exame de vestibular, de modo
que, para o currículo da nova instituição, não existia aula obrigatória de
educação física.
Anteriormente ao confinamento marcial, havia também experienciado a
liberdade do movimento livre e expressivo no colégio O Canarinho, em aulas
de dança folclórica (guardo com vivacidade a experiência de ter sido o boi na
dança do boi-bumbá) ou nos contextos de expressão corporal criativa e
espontânea.
O meu retorno às trincheiras aconteceu 25 anos depois, e nele ainda
permaneço, imbuído do compromisso de criar práticas para o desenvolvimento
do corpo humano sensível, a partir de um resgate daquelas outras marcas
experienciais que foram registradas em minha corporeidade de criança, dos 5
aos 10 anos de idade.
São exatamente as práticas corporais livres, espontâneas e autênticas
que passei a ensinar aos estudantes de educação física, como uma disciplina
optativa para sua formação humana, ética e poética. “Libertinagem” foi o
julgamento redutor que um professor-doutor atribuiu a estas práticas, por meio
de sua livre imaginação – uma vez que não as experimentou ou observou
diretamente.
Segundo a compreensão pedagógica e visão de mundo de um
segmento da educação física, modalidades de práticas corporais livres e
autênticas, que preservam a naturalidade do contato físico intercorporais, não
são bem-vindas na cultura institucional e educacional do saber científico para o
corpo.
O que fazermos nessa educação física que voluntariamente tortura
corpos sensíveis, o que propor aos seus torturadores? São perguntas que, há
anos, não consigo desvencilhar-me.
Às feridas geradas pelas escolas, dedicou-se Kirsten Olson30, em seu
brilhante livro Wounded by School [ferido pela escola], por ocasião de sua
pesquisa de doutoramento na Harvard Graduate School of Education. Dentre
as categorias elencadas pela autora, “Wounds of understamation” (cicatrizes de

30
Kirsten Olson. Wounded by school: recapturing the joy in learning and standing up to old
school culture. New York: Teachers College Press, 2009.
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subestimação) também sintetizam as minhas experiências em aulas de


educação física no colégio militar.
Essas lesões psicológicas foram as mais frequentemente encontradas
na pesquisa de Olson, que chegou à conclusão de que “Many with wounds of
understamation are spending significant energy healing from those wounds”31
[muitos com feridas de subestimação estão gastando significante energia
curando-se destas feridas].
Para mim não foi diferente: além de tempo e força de vida empreendidas 8
e anos de sofrimento acumulados pela patologização de um corpo sinalizado
como “diferente”, muito dinheiro foi gasto em horas de psicoterapia e de
trabalhos pessoais (também corporais) que pudessem amenizar esse
sofrimento de um corpo ferido.
Por que a educação física não concebe práticas corporais plurais,
capazes de promover o crescimento humano de corpos também singulares e
diferentes; corpos, especialmente, daqueles que não são hegemonicamente
atléticos, hipertróficos ou másculos? Qual modalidade de saber e de
intervenção seria capaz de preservar a dimensão da estesia de um corpo vivo
e plenamente sensível?
Em “a guerra declarada contra o menino afeminado”, o sociólogo
peruano Giancarlo Cornejo32 apresenta a violência física e simbólica contra os
corpos que fogem aos padrões desse histórico rígido para a educação física.
Em sua experiência com esta disciplina, o autor ocupa um espaço
relevante do seu pensamento com a sua narrativa autobiográfica como
evocativo de outras reflexões:

“Quase todos os meus professores me adoravam, mas me lembro


que os que lecionavam Educação Física eram particularmente hostis
a mim. Um desses professores falou com meu pai, porque estava
preocupado comigo e, disse a ele que eu era muito afeminado, e que
todos os meus colegas zombavam de mim. Meu pai, ao chegar em
casa, me repreendeu, e não hesitou em me culpar pela hostilização
sistemática pela qual eu passava no colégio. Quando este professor
chamou o meu pai para falar sobre o meu afeminamento, tornou-se
inevitável e óbvia a patologização do meu corpo, como das minhas
performances de gênero. O que não era tão óbvio é que, naquele
momento, este jovem e atlético professor estava reconhecendo a sua
própria impotência para me fazer o homem que se supunha que eu
deveria ser, e sua impotência para marcar claramente os limites entre
ele e eu.”

Desse modo, o que se apresenta como sensibilidade, potencialidade e


expressividade dos corpos tornam-se elementos ameaçadores no espectro
dessa educação física enrijecida e seus algozes. O que pensar daqueles
envolvidos na tortura e no exercício diário como torturadores de corpos
indefesos, em sua plena vitalidade nos anos escolares? Quem será
responsabilizado pelo sofrimento empreendido nestas crianças e
adolescentes?
O caminho mais “fácil” tem sido criminalizar o próprio sujeito do corpo
sensível pela hostilização que lhe foi dirigida, tal como fez o pai de Giancarlo,

31
Ibid., p. 50.
32
Em Richard Miskolci. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012, p. 71.
Versão final: 08/02/2016

no exemplo supracitado. Ainda dificilmente, as instituições e seus quadros


docentes são percebidos como aliciadores de contextos de exploração e
perseguição, constrangimento (bullying), abuso emocional e assédio moral.
É chegado o tempo de interrompermos o ciclo de sofrimento
interpresado nas aulas de educação física escolar e de pluralizarmos as
modalidades de práticas corporais para o benefício e florescimento de todos os
corpos sensíveis.
9

Retornando ao campo de batalha

Decorridas três décadas desde a minha saída do colégio militar, recebo


em meu correio eletrônico uma longa mensagem de um corpo sensível,
estudante de educação física. Não se tratava de uma crise de motivações
profissionais por um universitário com dúvidas sobre a sua carreira e futuro.
Deste diálogo, seleciono o trecho que me interessa aqui refletir: “(...)
Cada dia que eu vou pro bloco didático [da educação física] é uma tortura,
simplesmente queria não ter mais que por os pés ali (...).”
O que mais me dói, todavia, é a indiferença e desleixo com a vida
humana como um valor, o abandono da escuta capaz de reconhecer o
sofrimento vivenciado por estudantes submetidos a essa forma inadequada de
educação para o corpo, um treinamento de escuta para o qual a psicologia me
capacitou.
Recorro ao filósofo Josep Esquirol33 para com ele compreender o
conceito de indiferença como sendo “a incapacidade de prestar atenção e de
perceber as diferenças e qualidade das coisas e das pessoas que temos ao
nosso redor.”
Com todos os seus avanços teóricos e metodológicos, a educação física
ainda enfrenta grandes desafios 30 anos depois e continua a torturar. Ela não
tem logrado o êxito de enxergar a diferença entre os corpos que frequentam as
suas aulas, especialmente nas escolas. O “corpo atlético” continua sendo o seu
padrão dominante e para ele, aulas são dirigidas.
Nesse tipo de “educação” padronizada, as escolhas, afetos e
perspectivas relacionais com o mundo não constituem elementos que movem
os corpos de crianças e adolescentes. A dor que o estudante compartilha, a
partir dos ecos de violência em sua formação em educação física na
Universidade, é também a minha dor.
Ao objetivar esse histórico de tortura e opressão que testemunhei desde
a minha infância, permito-me abraçar os lugares que me assustam e causam
salutar estranheza para os meus estudantes34. Através desse “truque”, diz o
psicólogo Viktor Frankl35, profundo conhecedor da tortura em campo de
concentração,

33
Josep Esquirol. O respirar dos dias: Uma reflexão filosófica sobre a experiência do tempo.
Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 76.
34
Cf. Pema Chödrön. Os lugares que nos assustam. Trad. José Carlos Ribeiro. Rio de Janeiro:
Sextante, 2003.
35
Viktor Frankl. Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 18ª. ed. Trad.
Walter Schlupp e Carlos Aveline. Petrópolis: Vozes 1991, p. 73.
Versão final: 08/02/2016

“consigo alçar-me, de algum modo, para acima da situação, colocar-


me acima do tempo presente e de seu sofrimento, contemplando-o
como se já estivesse no passado e como se eu mesmo, com todo o
meu tormento, fosse objeto de uma interessante investigação
psicológica-científica, por mim mesmo empreendida.”

Contemplar a dor do estudante universitário de educação física


supracitado é uma forma de também me encontrar com a dor que residiu no
meu corpo sensível, fruto da indiferença de uma educação física escolar que 10
me destituiu a dignidade ao longo dos anos. Somente intensificando a angústia
provocada por esta dor, técnica denominada de “intenção paradoxal” por
Frankl36, consegui dela libertar-me e provocar outro mundo.
Ao tentar formar uma ideia clara e nítida da emoção de tortura vivida por
meu corpo sensível, aproximei-me da Ética de Spinoza37, para quem “um afeto
que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma
ideia clara e distinta.”
A dor que doeu em mim foi alçada e ganhou um status de problema a
ser investigado psicológico-cientificamente, porque, utilizando-me novamente
de Frankl, “a dor psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer
razão é o que mais dói numa hora dessas”38.
O sonho com um novo corpo para a educação física e para a civilização
dista de longas datas para muitos de nós. O filósofo Rubem Alves39 anunciou a
morte do velho esqueleto para que um novo corpo possa ser regenerado:

“Nosso mundo necessita um novo corpo; precisa ser regenerado, no


sentido etimológico do termo: ser criado outra vez. O velho corpo tem
de morrer se se quiser preservar a vida em um novo. Porque o corpo
humano é muito mais do que seu próprio e limitado organismo: ele
consiste na civilização inteira, civilização que criamos a fim de tornar
possível a existência.”

Eu também gostaria de acreditar que a educação física está


comprometida com a invenção de uma nova qualidade de viver e mover-se. O
sonho de Rubem Alves40 também almejo ver concretizado. Diz ele:

“É, gostaria de acreditar que a educação física está em paz com o


corpo, que ela não deseja transformá-lo em puro meio para fins
olímpicos (por pequenos que sejam), mas que tratasse de cuidar dele
como coisa bela que deseja reaprender a esquecida arte de brincar (e
de ser feliz)... .”

36
Viktor Frankl, Um sentido para a vida: Psicoterapia e humanismo. 11ª. ed. Trad. Victor
Lapenta. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2005.
37
Benedictus Spinoza, Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 216.
38
Viktor Frankl, Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 18ª. ed. Trad.
Walter Schlupp e Carlos Aveline. Petrópolis: Vozes 1991, p. 32.
39
Rubem Alves, A gestão do futuro. Trad. João-Francisco Duarte Jr. Campinas, SP: Papirus,
1986, p. 76.
40
Rubem Alves, O corpo e as palavras. Em BRUHNS, Heloisa (Org). Conversando sobre o
corpo. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 42.
Versão final: 08/02/2016

Corpos sencientes

Ao filiar-me teoricamente à filosofia somaestética concebida por Richard


Shusterman41, intencionei criar um método terapêutico para os corpos
sencientes, aqueles que buscam múltiplas possibilidades de ser, os corpos
inventivos, criativos e autoestilizantes. Vislumbrei, com os estudos
empreendendidos no grupo de extensão e pesquisa NISE – Núcleo de 11
Integração Somaestética no IEFES–UFC, partilhar dos anseios do psicólogo
Viktor Frankl42 e dos seus sonhos, de quem sentiu na pele a dor profunda em
campos de violência e esmagamento dos direitos humanos, para passar a
“tocha acesa para espíritos independentes e inventivos, inovadores e criativos”
que serão professores e profissionais da ciência do esporte, educação física ou
do movimento humano.
Foi preciso, portanto, transgredir as práticas “tradicionais” da educação
física, aquelas trazidas pelo racionalismo bélico-totalitário que a concebeu com
“movimentos metódicos, frequentemente bruscos”43 e o espírito de
“competição” capitalista que nos foi apresentado pelo racionalismo em sua
aplicação aos esportes.
Mais gravemente, o que observei na educação física é semelhante ao
que Ruy Santo44 vem constatando em campos variados do conhecimento, “a
importância que cada especialista procura dar à sua área de conhecimento,
buscando inferiorizar as demais disciplinas.”
São os cursos que fazemos e as experiências que acumulamos que
demarcam o nosso fazer docente, como também confirmam as palavras de
Santo45: “cabe aqui enfatizar a importância em minha formação de um curso de
expressão corporal que fiz durante três anos na década de 1970 e que foi
decisivo em minha docência.”
Além das experiências corporais dos 5 aos 10 anos de idade, foram
dezenas de cursos de expressão corporal vivenciados por mim desde a
adolescência. A minha iniciação ao teatro, que deu-se ainda n’O Canarinho, foi
abortada durante muitos anos de colégio e ditadura militares, conforme relatei
anteriormente, embora usufruindo de algum espaço residual durante o ensino
médio, em uma escola profissional de teatro.
Cursos de dança contemporânea seguiram-se ao teatro. O encontro com
a antiginástica de Thérèse Bertherat e aplicada por uma fisioterapeuta muito
talentosa em seu estúdio de práticas corporais, em Fortaleza, foi de grande
relevância.
O meu contínuo e inquieto lugar de plateia, acompanhando o movimento
criador em salas de teatro, cinema, música, dança, performances e linguagens
variadas é parte integral do meu cotidiano no convívio com a minha própria
organicidade.

41
Richard Shusterman, Consciência corporal. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É
realizações, 2012 e Richard Shusterman, Thinking through the body: Essays in somaesthetics.
New York: Cambridge University Press, 2012.
42
Viktor Frankl, Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 18ª. ed. Trad.
Walter Schlupp e Carlos Aveline. Petrópolis: Vozes 1991, p. 128.
43
SANTO, Ruy Santo, Pedagogia da transgressão. 7. ed. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 43.
44
Ibid., p. 72.
45
Ibid., p. 44.
Versão final: 08/02/2016

Cursos com Augusto Boal e sua equipe no Centro de Teatro do


Oprimido no Rio de Janeiro, vivências de Contato Improvisação, cursos de
Eutonia e Natural Touch, estudos independentes e vivências de Bioenergética,
aulas semanais de consciência corporal e de hatha yoga, além de intensivo
treinamento, por mais de uma década, nas práticas de meditação com mestres
budistas nos Estados Unidos e no Brasil, completam o conjunto de minha
experiência prática com as diversas disciplinas somaestéticas.
Para reunir todo este conjunto de práticas corporais em um Ser Humano 12
que Se-Movimenta, encontrei na filosofia somaestética de Richard
Shusterman46, uma plataforma epistemológica conforme a tradição dos
pragmatistas e estetas americanos.
Nessa condição de um pragmatismo sistematizado como filosofia de
vida, a somaestesia possibilitou-me dar continuidade a um ciclo de estudos e
intervenções dedicados ao Pragmatismo de John Dewey, Carl Rogers, Anísio
Teixeira e Paulo Freire, em minhas atuações, e de colaboradores, nos campos
da educação e da psicoterapia, desde o mestrado e doutoramento nos Estados
Unidos47.
Quero imaginar que o meu esforço prático e intelectual, ao longo desses
anos de Universidade e docência, contribuem para um mundo com
experiências mais livres, mundo como espaço de criação vital, onde os
sentidos para compor e decodificar a palavra-mundo estejam porosos às
sensibilidades plurais dos tempos, das culturas e dos modos singulares; e, não
menos importantes, resguardar o espaço do inesperado para que as travessias
estésicas que o corpo realiza não cedam ao domínio capturado de um logos
sobre a dimensão visceral da vida.
O pragmatismo defendido por Shusterman48 “coloca a experiência no
coração da filosofia e celebra o corpo vivo e senciente como núcleo
organizador da experiência.” Na somaestesia o corpo não se restringe aos
seus atributos físicos, mas apresenta-se como lugar de autoestilização criativa,
visando ao refinamento das capacidades cognitivas para o desenvolvimento de
uma vida virtuosa e feliz.
A opção pelo soma na grafia de somaestesia, deve-se a uma
diferenciação clara e intencional das concepções de corpo, utilizadas em
contraposição à mente e aplicada aos seres não sencientes e, portanto, sem
vida; e de carne, frequentemente adotada pela cultura cristã de um corpo que
se faz carne (encarnação).
O soma se refere a um corpo vivo, senciente, sensível, dinâmico,
perceptivo e intencional. Portanto, segundo a definição proposta por

46
Richard Shusterman, Consciência corporal. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É
realizações, 2012 e Richard Shusterman, Thinking through the body: Essays in somaesthetics.
New York: Cambridge University Press, 2012.
47
Francisco Cavalcante Junior, Letramentos para um mundo melhor. Campinas, SP: Alínea,
2009; Francisco Cavalcante Junior (Org.), LER... caminhos de trans-form-ação. Fortaleza:
Edições Demócrito Rocha, 2005; Francisco Cavalcante Junior, Por uma escola do sujeito: o
método (con)texto de letramentos múltiplos. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001;
Francisco Cavalcante Junior, André Sousa e Yuri Sales, Humanismo Vital. Vol. 1. Curitiba:
CRV, 2013; Francisco Cavalcante Junior, André Sousa (Orgs.) Humanismo de funcionamento
pleno: Tendência formativa na Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). Campinas, SP: Alínea,
2008.
48
Richard Shusterman. Consciência corporal. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É
realizações, 2012, p. 19.
Versão final: 08/02/2016

Shusterman49, “a somaestética se volta para o estudo crítico e para o cultivo


melhorativo de como experienciamos e usamos o corpo vivo (ou soma) como
lugar de apreciação sensorial (estesia) e de autoestilização criativa.”
Transcendendo às capacidades que tacitamente me reconheço
possuidor, a sensabilização dos corpos se amplia como valorização para as
diferenças dos corpos que somos, possibilitando-lhes as condições para os
seus diversos modos de viver e de ser.
Sendo a educação física escolar, a primeira disciplina modeladora dos 13
corpos e de suas possibilidades na vida do ser humano, capacitando ou
incapacitando as diversidades de corpos que somos, maior atenção necessita
ser atribuída a este campo do conhecimento, para que pessoas como eu,
Giancarlo e o meu estudante anônimo (que teme ser reprimido por seus
professores e colegas) – certamente, outras centenas de milhares de vidas
mundo a fora que vêm sendo subestimadas por uma educação castradora do
corpo físico –, possam usufruir das riquezas do corpo humano belo e rico de
possibilidade que somos.
As disciplinas de humanidades, ciências humanas e sociais, quando
presentes nos cursos de educação física, adquirem um caráter de grande valor
para a preservação do humano no corpo.
À antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia, artes, tradições
populares, tradições espirituais, dentre outras, cabe-nos atribuir um valor de
importância tão equânime como as demais que constituem o horizonte
curricular do bacharel e do licenciado em educação física.
São muitas, afinal, essas feridas que acumulamos, oriundas de uma
prática profissional que deveria ser capaz de libertar os corpos para
expressarem a sensibilidade subjetiva com a qual experienciam e transformam
o mundo.
Certamente as emoções podem ser de outra ordem que não a da
tortura, a exemplo da que ferrou profundamente a minha vida e de muitos
outros seres, cujos corpos fogem ao padrão da “certa” norma esportiva, atlética
e máscula.
Pensar e disponibilizar práticas somaestéticas para os corpos torturados
e como prevenção para o engendramento de muitos outros, tornou-se uma
agenda política do grupo de extensão e pesquisa NISE – Núcleo de Integração
Somaestética e dos eventos promovidos pelo LEPSER – Laboratório de
Estudos das Possibilidades de Ser, aos quais me encontro vinculado, ladeado
por outra(o)s professora(e)s que veem construindo uma educação física
inclusiva, também, dos corpos sensíveis.

Poéticas do método P5INCO

Riscam o espaço com o movimento dos seus corpos: nativos da água,


do ar, do fogo e da terra passeiam de olhos fechados, emprestam-se ao
escuro, do calcanhar às pontas dos dedos, os pés atentos que afagam o chão.
Deslizamentos espalmados que sentem o espaço onde pisam, sem a
pressa do lugar qualquer, nessa sensação de extra-vagar, simplesmente o

49
Ibid., p. 26.
Versão final: 08/02/2016

bastante no espaço para reconhecer a primeira pele no contato consigo e com


o espaço que a cerca.
O objetivo da experiência não é somente a diversão, mas uma proposta
que convoca à consciência do que se é bem como do que se pode ser, de
ambos os corpos de possibilidades.
Aprende-se a descansar a atenção nessas sensações de um corpo vivo,
sensível e senciente, portanto, que transita riscando e sendo riscado no
espaço, gradualmente conquistando a liberdade dos enquadramentos, regimes 14
normativos e funcionais que padronizam os movimentos no campo do
previsível e mecanizado.
O espaço abre-se para a expressão do autêntico e do espontâneo em
movimentos com liberdade e improvisação gestual. Desfeito os padrões
habituais, o corpo pentelementar é convidado a deformar o passado,
reconhecendo-se a partir do que já não se percebe sendo, em consonância à
“filosofia do não” proposta por Gaston Bachelard50.
Abandonando o que não se é ou não mais se quer pertencente, assim, o
corpo de matéria elementar é retomado, de modo a permitir o que se pode ser
– água, para os nascidos sob os arquétipos de câncer, escorpião e peixes; ar,
para os afiliados por gêmeos, balança e aquário; fogo, para os regidos pelo
carneiro, leão e centauro; e terra, para os abrigados em touro, dama virgem e
capricórnio; forças que se expressam no lugar enquanto sinergia, por onde
extra-vaga contato próprio e partilha/reverberação com outros corpos
pentelementares, espaço de engajamento em processos imaginativos – pela
imaginação in-formados, con-formados, de-formados e trans-formados.
A imaginação que acessa o corpo pentelementar não consiste em
preservar aquela imagem do corpo enquanto origem ou natividade; ao
contrário, se trata de expressar a capacidade de “formar imagens que
ultrapassam a realidade”51, tanto do que se é, como do que ainda se pode
querer ser.
No exercício de imaginação dessa matéria em movimento corporal,
também se deformam as imagens fornecidas pela percepção52 no intuito que
as imagens primeiras, previamente informadas e registradas no corpo e na
alma, sejam borradas nesse afeto do que se pode e se quer ser.
Dissonante aos padrões, valores e julgamentos, o corpo pentelementar
libera a sua fruição somaestética53 de corpo vivo (soma), sensível e senciente
dessa capacidade de autoestilizar-se sensorial (estesia) e imaginativamente.
Instala-se, por conseguinte, a possibilidade do corpo vivo que sente e percebe-
se como água, ar, fogo, terra no imediato de suas poéticas, ou seja, em suas
autocriações do espaço a partir do movimento, nesse território de afetos
individualizados e coletivizados entre as múltiplas poéticas possíveis dos
corpos.

50
Gaston Bachelard, A Filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Lisboa: Editorial
Presença, 2009.
51
Gaston Bachelard, A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 18.
52
Gaston Bachelard, O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
53
Richard Shusterman, Consciência Corporal. São Paulo: É Realizações, 2012.
Versão final: 08/02/2016

Poética do corpo água

A água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A


água devolve-nos a nossa mãe. Dos quatro elementos,
somente a água pode embalar. Este é mais um traço de seu
caráter feminino: ela embala como uma mãe. Tudo o que se 15
reflete na água traz a marca feminina. Tudo o que o coração
deseja pode sempre compartilhar-se na figura da água. Só a
água pode desembaraçar a terra. A água alimenta tudo o que
impregna. Uma gota dessa água poderosa basta para criar
mundos e dissolver a noite. É um embrião; concede à vida um
impulso inesgotável. O verdadeiro olho da terra está no espiral
de água. Nossos olhos, é também a água que sonha. Para
alguns sonhadores, água é o movimento que nos convida à
viagem jamais feita. Não façamos subestimar a juventude das
águas, a lição de vivacidade que nos apresentam as águas
vivas. A água evoca a nudez natural, o necessário que pode
conservar uma inocência. Quando assume um rancor, a água
muda de sexo. Tornando-se feroz, é água masculina.
Reconhecerá na água, na substância da água, um tipo de
intimidade, bem diferente daquelas sugeridas nas ‘profundezas’
do fogo ou da pedra. É por dispor de um poder íntimo que a
água pode purificar o ser íntimo, que pode devolver à alma
enfadada a brancura da neve. A jornada pela água, em seu
princípio imaginário que faz o homem projetar o seu desejo de
curar e sonhar com a substância compassiva. A água é o
elemento melancolizante. Quando o coração está triste, toda a
água do mundo comporta-se em lágrimas. O sofrimento da
água é infinito. O ser voltado à água é um ser em vertigem,
morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância
desmorona constantemente. A água é o túmulo do fogo e dos
homens.54

O corpo água oculta um mistério insondável da própria vida em


constante mudança. Corpo de “sangue frio” que enfrenta turbulências sem
abandonar a harmonia. São corpos que se conectam a outros corpos e receiam
quebras de vínculos.
O corpo água é criativo, imaginativo, visionário e dotado de aspiração
valorativo-espiritual; lembra a dádiva de um poeta, com sua capacidade de
olhar do íntimo para enxergar as belezas da vida, considerado, ademais, o
guardião do amor humano.
Com sua extrema fluidez consegue dissolver ou contornar os obstáculos
em seu caminho. Quando desintegrado, entrega-se às loucuras e precipitações
no caos da multidão.
O corpo água é o mais humano dos elementos e não menos estranho,
capaz de revelar profundezas ainda desconhecidas pela humanidade média.
54
Texto livremente compilado de Gaston Bachelard, A água e os sonhos: ensaio sobre a
imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Versão final: 08/02/2016

De temperamento fleumático, o corpo água é observador do seu entorno e


contemplador dos fenômenos com muita calmaria. Comer ou beber são
convites para sua sensibilidade.
Na oficina da água vivenciamos a ternura do cuidado, entrando em
contato com as emoções e suas profundezas. Nesta oficina trabalhamos a
emotividade de ser para que a luz individual possa brilhar plenamente.

Poética do corpo ar 16

Para a imaginação dinâmica, o voo é uma beleza primeira.


Voando, a volúpia é bela. O sonho de voo é o sonho de um
fascinante sedutor. Admitiremos, pois, como princípio, que no
mundo do sonho não se voa porque se tem asas, mas acredita-
se ter asas porque se voa. As asas são consequências. A
imagem quer o movimento, ou, mais exatamente, a imaginação
dinâmica é precisamente o sonho da vontade; é a vontade que
sonha. Para algumas imaginações materiais, o ar é antes de
tudo o suporte dos cheiros. Um cheiro tem, no ar, um infinito.
Há no céu tantos sonhos que a poesia, embaraçada pelas
velhas palavras, não conseguiu nomear! Regresse ao princípio
do devaneio; o céu estrelado nos é dado não para o conhecer,
mas para sonhar. No reino da imaginação, o ar nos liberta dos
devaneios substanciais, íntimos, digestivos. Liberta-nos de
nosso apego às matérias: é, pois, a matéria da nossa
liberdade. Em sua contemplação, o ser vivo aprende a animar-
se do interior, aprende a viver o tempo regular, o tempo sem
impulso e sem choque. É o tempo da noite. A ambivalência do
vento é doçura e violência, pureza e delírio. O sonho de voo
está submetido à dialética da leveza e do peso. Só por esse
fato, o sonho de voo recebe duas espécies bastante diferentes:
existem voos leves e voos pesados. A passagem dos
movimentos da alma à alma inteira em movimento é
precisamente a grande lição do voo onírico. Se é preciso amar
para que se desfaçam as angústias que nos abafam, sim, o
sonho de voo pode mitigar, durante uma noite, um amor infeliz,
pode suprir por uma felicidade noturna um amor impossível. O
ser que sonha na noite serena encontra o maravilhoso tecido
do tempo que repousa. O sonho é a cosmologia de uma noite.
Todas as noites o sonhador recomeça o mundo55.

O corpo ar é visto como a expressão do brilho fugaz da mente e do


espírito, caprichoso, presunçoso, vaidoso e eternamente em fluxo. De
temperamento sanguíneo, os olhos do corpo ar brilham como pedras lapidadas
em cores preciosas.
Atento ao seu redor como um todo, aberto às novas experiências e
direções. Portador dessa capacidade de compreender, conceituar e planejar,
sem deixar-se confinado aos limites da terra ou do instinto.

55
Texto livremente compilado de Gaston Bachelard, O ar e os sonhos: ensaio sobre a
imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Versão final: 08/02/2016

O corpo ar observa a vida de cima e destila experiências em ideias –


justiça, por exemplo, antecede até a operação mais fácil ou instintivamente
gratificante, no anseio de um mundo equilibrado e harmonioso. De criticidade
aguçada, traduz a vida como preto ou branco, aparentemente inflexível para
outras nuanças da vida.
A sua confiança é perdida quando os ambientes refratam propriedades
intelectuais e cognitivas. O corpo ar é amante da clareza do pensamento e da
perfeição humana. 17
Seus lábios querem dizer algo, atribuindo certa tensão aos seus traços
fisionômicos. Por outro lado, o corpo ar é receptivo ao que lhe é apresentado,
expressando tensão e desassossego da alma, buscando percorrer todo e
qualquer trabalho rapidamente quanto possível, frequentemente dispersando-
se de uma atividade para outra.
Na oficina do ar vivenciamos o contentamento da liberdade,
desapegando-se dos pesos que impossibilitam voar alto e livre. Nesta oficina
trabalhamos a leveza de ser para que a tranquilidade seja conquistada com o
encerramento de ciclos.

Poética do corpo fogo

O fogo é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso


coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e
se oferece como um amor. O amor não é senão um fogo a
transmitir. O fogo não é senão um amor a surpreender.
Algumas vezes o fogo que começa já está ativo na carne. O
homem é uma fogueira viva. É num excesso do fogo vivido que
podemos encontrar o verdadeiro sentido fenomenológico da
Fênix, o sentido formado em consciência primeira, num desejo
flamejante de flamejar. O homem que acende, que ativa o fogo,
trabalha para aumentar e, portanto, para dominar e regular as
forças do mundo. Dentre todos os fenômenos é realmente o
único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações
contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no
Inferno. É doçura e tortura. Um poeta que, no fundo mesmo de
sua imaginação, pertence ao fogo pode conhecer sofrimento e
morte quando os esplendores da luz lhe são recusados. O
herói Prometeu é o símbolo da desobediência construtiva. É
preciso desobedecer aos pais para fazer melhor do que os
pais. Desobedecer para agir é a divisa do criador. Prometeu
tem o domínio intelectual do fogo. Ele é um ladrão de fogo.
Quem traz o fogo traz a luz, a luz do espírito – a clareza
metafórica –, a consciência. Aos deuses, Prometeu ocultou,
para oferecê-la aos homens, a consciência. O dom do fogo-luz-
consciência abre ao homem um novo destino. É um duro dever
esse de se manter nesse destino de consciência, nesse destino
de espiritualidade. A poética do Fogo não tem necessidade de
narrações. A narração é apenas o fio do colar. Não se pensa
Versão final: 08/02/2016

nela quando, alegre porque alegre, é-se capturado pelo


maravilhamento do fogo56.

O corpo fogo é intenso e a sua fruição imaginativa tem uma potência


inigualável. Consegue gerar a realidade a partir de seu eu interior, capaz de
transcender os limites e de criar um futuro com mais possibilidades do que o
presente e o passado.
De temperamento colérico, o corpo fogo é impaciente com os limites 18
terrenos e sempre procura transformá-los; tende ao egoísmo e ao desejo de
poder, residindo neste corpo uma tremenda capacidade de força decisória que
o impele para o mundo e para ação.
O calor existente no seu sangue preenche o seu organismo de vida e o
possibilita viver intensamente em sua vontade. O corpo fogo consegue arrastar
multidões consigo. Quando reprimido em seu potencial criativo, o corpo fogo
sente-se extremamente frustrado e infeliz desconhecendo os motivos.
Na oficina do fogo vivenciamos o acalanto do amor, ampliando a energia
do coração que faz da amorosidade a emoção que humaniza e transcende.
Nesta oficina trabalhamos a vontade de ser para que o novo seja bem-vindo.

Poética do corpo terra

Para um terrestre, todas as fontes são petrificantes. Aquilo que


sai da terra guarda a marca da substância das pedras. Os
rochedos nos ensinam a linguagem da dureza. O rochedo é
também um enorme moralista. Um grande devaneador vê o
céu na terra, um céu lívido, um céu desabado. O amontoado
das rochas tem todas as ameaças de um céu tempestuoso. A
terra foi criada para parar uma queda. Viver lentamente,
envelhecer suavemente, eis a lei temporal dos objetos da terra,
da matéria terrestre. A imaginação terrestre vive esse tempo
enterrado. Não é a forma de uma árvore retorcida que faz a
imagem, mas é a força de torção, e essa força de torção
implica uma matéria dura, uma matéria que se endurece na
torção. Repentinamente o sonhador que vive a dureza íntima
da árvore compreende que a árvore não é dura sem razão –
como são muito amiúde os corações humanos. A árvore é dura
para levar ao alto a sua coroa aérea, a sua folhagem alada. Ela
proporciona aos homens a grande imagem de um orgulho
legítimo. A árvore aqui é dura e grande, é grande porque é
dura. É um grande destino de dura coragem. A imaginação
trabalha diferentemente dentro da terra e na superfície da terra.
Embaixo da terra, todo caminho é tortuoso. A terra oferece
antros, tocas, grutas, vindo a seguir os poços e as minas,
aonde se vai por coragem. Ao descer pela imaginação numa
coisa, o sujeito desceu em si mesmo57.

56
Texto livremente compilado de Gaston Bachelard, A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 2012 e Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
57
Texto livremente compilado de Gaston Bachelard, A terra e os devaneios do repouso. São
Paulo: Martins Fontes, 2003 e A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
Versão final: 08/02/2016

O corpo terra comunica-se pelos cinco sentidos, é tátil e sensorial,


cativando e envolvendo os que com ele convivem através dos seus olhos,
ouvidos, língua, nariz e pele. Resiste aos aspectos da vida que possam afasta-
lo da solidez do mundo físico.
O movimento do corpo terra é lento e medido, suave e governado pelos
ciclos das estações; não gosta de ser apressado, uma vez que o mundo parece
exigir seu ritmo natural de amadurecimento e a urgência pode destruir esse 19
crescimento delicado das coisas vivas.
Ser corpo terra significa ser forte o suficiente para enfrentar a vida real,
sem sentimentalismos ou ilusões, saboreando a vida como ela é no instante
presente. De temperamento melancólico, o corpo terra contempla o mundo
sem muito interesse, tendendo à introversão e ao pensamento excessivo.
Na oficina da terra vivenciamos a alegria do desbravamento, que explora
o desconhecido e descobre possibilidades. Nesta oficina trabalhamos a
coragem de ser para que a energia da continuidade seja crescente na vida.

Poética do corpo espaço

O corpo espaço expressa o mais sutil de todos os elementos. O espaço


é ao mesmo tempo o lugar onde passam o corpo e a força de crescimento para
a expressão do corpo que se quer ser.
O corpo espaço é a expressão plena do aspecto espiritual da vida. No
processo de desenvolvimento do organismo humano, a força espiritual
amplifica-se para que este corpo possa ocupar cada vez mais o espaço do seu
propósito.
Esta energia requisita a força espiritual do pensar, do conhecer a si
mesmo, do ampliar-se na travessia de autoconhecimento. Um processo que se
assemelha às práticas ancestrais da contemplação – da percepção do espírito
humano que se é e de todas as suas propriedades enquanto condição humana.
Para pensar-se no espaço, necessário se faz construir para si a
percepção de um mundo ampliado em suas possibilidades. Descobre-se,
desse modo, a importância da função da imaginação, a potência maior da
natureza humana, conforme ressaltou Gaston Bachelard em sua filosofia
materialista: “A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida
nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão.”58
Perceber-se intencionalmente com novos olhos e todos os sentidos é a
possibilidade apresentada pelo corpo espaço. Ao apropriar-se do espaço e de
suas forças formativas que impulsionam o corpo espaço ao crescimento,
preenche-se de intensidade energética cujo resultado é a expressão de um
corpo-que-se-move-no-espaço, onde corpo e espaço são um só, imersos na
experiência do corpo que cresce, ganha volume e ocupa o espaço como
presença encorpada (um pressuposto primeiro do livro Humanismo Vital59).
Na oficina do espaço vivenciamos ao mesmo tempo o meio e a força de
crescimento para a expressão do corpo que se é. Nesta oficina trabalhamos a

58
Gaston Bachelard, A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 18.
59
Francisco Silva Cavalcante Jr, André Feitosa de Sousa e Yuri de Nóbrega Sales,
Humanismo vital (vol. 1). Curitiba: Editora CRV, 2013.
Versão final: 08/02/2016

possibilidade de ser para que a percepção de um mundo ampliado em suas


possibilidades seja resultado do caminho de trans-form-ação.

Corpo nosso
20
Nas cinco oficinas (água, ar, espaço, fogo e terra que integram a
primeira fase do método P5INCO, denominada de EISE – Educação de
Integração Somaestética, os corpos prestam atenção nas porções da sua
inteireza. O foco da atenção é incialmente levado aos pés caminhantes na
dimensão física da sala, passando para as narinas que percebem o ar frio que
entra e o ar quente que sai, transferindo-se, em seguida, para os olhares que
se entrecruzam nos corpos que se movimentam em manobras ousadas ou
tímidas.
Deitados, no chão, meditam em movimento, autorizando aos seus
corpos expressarem em movimentações pequenas, médias ou grandes, as
sensações do momento presente. Em ciclos de quatros respirações, inspiram,
expiram e deixam que movimentos espontâneos acompanhem o fluxo da
respiração.
Em pé e de olhos fechados, movimentam-se pelo espaço onde se
imaginam, por exemplo, uma alga marinha dentro do oceano, ou uma vela de
cera que derrete ao calor do fogo, ou um pássaro que voa em liberdade, ou
quem sabe, o índio que desbrava florestas em suas terras ancestrais.
Os corpos pentelementares entram em contato com a pele dos outros
corpos, de olhos fechados, na heterotopia onde ser se torna possível. A
imaginação coletiva em devaneios somaestéticos cria espaço para novas
visões. Para se ter visões, como exprimiu Bachelard, é preciso “se educar com
devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem
depois como provas de seus devaneios.”60
O corpo nosso autoestilizado pelos praticantes do método P5INCO vai
se caracterizando, na concepção emprestada do filósofo Jean-Luc Nancy,
como elementos expostos dos corpos, informado pela densidade e intensidade
desse corpo que se inventa na relação com a água, o ar, o fogo, o espaço, e a
terra.
Nesta perspectiva ampliada de pensar e de autoestilizar o corpo,
recorremos novamente a Jean-Luc Nancy61 que nos apresenta uma discussão
relevante em sua concepção de arealidade, compreendida como “a potência
máxima do existir, na extensão total do seu horizonte”62. Para este filósofo
francês, uma prática que se propõe a tematizar o corpo está implicada em uma
forma de pensamento que deve ser “uma pesagem real, um tocar, dobrado-
desdobrado segundo a arealidade”63. Elegemos o pensar dos 5 elementos nos
termos de outra “ecologia”, como corpo pentelementar que se faz com outros
corpos, em movimentos de ex-posição e de abertura.

60
Gaston Bachelard, A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 18.
61
Jean-Luc Nancy, Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Vega, 2000.
62
Ibid., p. 42.
63
Ibid., p. 43.
Versão final: 08/02/2016

Queremos, a exemplo de Nancy, “ver o que se oferece à vista, a


imagem, a miríade de imagens que é o corpo, a imagem nua, pondo a nu a
arealidade.”64 Este corpo, pensando por Nancy, “o mundo = os corpos = ‘nós’”65
é uma proposição para pensarmos o corpo como “aquilo a que estamos
expostos, e que nos expõe como nós – como nós-mundo”66, o corpo nosso
aludido nestas páginas, a partir da provocação de Nancy: “Chegou o tempo de
escrever e de pensar este corpo no afastamento infinito que o faz nosso”67,
imaginando um corpo da “população do mundo”68, e não somente um regime 21
próprio de corporeidades individuais.
Nancy apresenta a necessidade de “excrição do nosso corpo”69, um
corpo “que vem até nós, nu, apenas nu, e de antemão excrito de toda a
escrita”70. Nesta perspectiva, “os corpos são lugares de existência”71 e para
Jean-Luc Nancy, este “corpo-lugar não está cheio nem vazio, não tem fora nem
dentro, assim como não tem partes nem totalidade, funções ou finalidade”72. É
um corpo “sem pés nem cabeça em todos os sentidos”73, diz o filósofo.
Para aquele pensador contemporâneo, o corpo é simplesmente “uma
pele diversamente dobrada, redobrada, desdobrada, multiplicada, invaginada,
exogastrulada, furada, evasiva, invasiva, tensa, distendida, excitada, siderada,
ligada, desligada”74.
Compreendendo a superficialidade máxima do corpo como pele, o corpo
no método P5INCO objetiva alcançar a sua feitura no afastamento infinito que o
faz nosso no “tocar-se pele (e não ‘si próprio’)”75. Pensamos a exposição dos
corpos, inspirados na filosofia de Jean-Luc Nancy, para quem “o corpo é o ser-
exposto do ser”76 presente no mundo do fora, “o mundo onde dentro e fora,
cima e baixo se baralham”77.
O corpo no P5INCO se escreve como esse Fora (estranho, estrangeiro).
Compreendendo com Nancy que “o corpo não é nem substância, nem
fenómeno, nem carne, nem significação. É o ser-excrito.”78, penso o corpo
como estrangeiro a nós, “esse corpo que lançámos diante de nós, e que vem
até nós, nu, apenas nu, e de antemão excrito de toda a escrita”79.
A pele como um corpo que vaza é a musa do P5INCO, na descrição
sublime capturada por Nancy:

“Quando esse vazo deixa vazar seu conteúdo, a água se espalha e


surge o pequeno, pululante. Todo seu corpo – pela primeira vez
inteiro e liberto – traz a marca úmida que passa a ser sua pele, que

64
Ibid., p. 46.
65
Ibid., p. 78.
66
Ibid., p. 80.
67
Ibid., p. 13.
68
Ibid.
69
Ibid., p. 12.
70
Ibid.
71
Ibid., p. 15.
72
Ibid.
73
Ibid.
74
Ibid., pp. 15-16.
75
Ibid., p. 38.
76
Ibid., p. 34.
77
Ibid., p. 31.
78
Ibid.
79
Ibid., p. 12.
Versão final: 08/02/2016

se funde no projeto de sua pele, mas que faz com que essa pele seja
sempre capaz de receber do exterior, de ser banhada e balançada,
embalada pelas ondas do exterior. Assim, o tocar é, a princípio e para
sempre, esse embalo, essa ondulação e esse atrito que a sucção
repete, relançando e retomando o desejo de se sentir tocado e
tocante, o desejo de se experimentar em contato com o fora. E até
mesmo mais do que ‘em contato’, mas ele próprio o contato. Ou seja,
também aberto ao exterior, aberto por todos os seus orifícios, minhas
orelhas, meus olhos, minha boca, minhas narinas – e, claro, tanto
esses canais de ingestão e digestão, quanto os de meus humores, de 22
80
meus suores e de meus líquidos sexuais.”

Trata-se, portanto, de um desafio marginal. É o tocar dos 5 elementos


devolvido do inanimado à condição de agente. O toque-pentelementar-como-
pele, não o corpo. Tendência Formativa de Carl Rogers81 como rugosidade-
actante, dobra, malha. Toque que não desfere seu corpo anterior.
Pensamento que desconstrói o corpo de uns e de alguns. O toque sem
homem, sem mulher, sem corpo, sem identidade: “acompanhando o traçado
que desdobra e limita uma arealidade”82, mundos humanos e não-humanos, é
a travessia à qual somos expostos no método P5INCO.
Um corpo que, segundo Jean-Luc Nancy, “o faz vir a nós de longe, de
mais longe que todos os nossos pensamentos: o corpo exposto da população
do mundo”, corpo este, que para o filósofo, “exige uma escrita, um pensamento
popular”83.
O meu corpo é também seu. A escrita do meu corpo também é sua. Os
nossos corpos agora se excrevem em suas excreções literárias. Neste instante,
afinal, você lê e ao ler-me, seguindo as trilhas de Bartolomeu Campos de
Queirós, “é uma disponibilidade que você tem, uma capacidade de deixar o
outro entrar no seu interior e modificar a sua vida.” Essa alteridade que chega
por estas letras “vai te modificar, vai te incomodar, vai mudar teus princípios,
vai propor outras situações.”84
Isso que do meu corpo toca nas letras que passam, agora, a compor
palavras compartilhadas é corpo nosso. O meu corpo se torna espaçoso para
incluir o seu corpo e os muitos outros corpos que relacionalmente somos nós.
Na concepção de Nancy, “o corpo é o ser da existência” 85, ele é a nossa
própria ontogênese, o corpo como lugar onde a nossa existência acontece
mediada pela pele na qual nos excrevemos.

Pe(n)sar o corpo em Terapia de Integração Somaestética

80
Jean-Luc Nancy, Arquivida: do senciente e do sentido. Trad. Marcela Vieira e Maria Paula
Gurgel Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2014, p. 20.
81
Francisco Silva Cavalcante Junior e André Feitosa de Sousa (Orgs)., Humanismo de
funcionamento pleno: A tendência formativa na Abordagem Centrada na Pessoa – ACP.
Campinas, SP: Alínea, 2008.
82
Jean-Luc Nancy, Arquivida: do senciente e do sentido. Trad. Marcela Vieira e Maria Paula
Gurgel Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2014, p. 110.
83
Jean-Luc Nancy, Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Vega, 2000, p. 13.
84
“Bate-papo com Bartolomeu Campos de Queirós e João Luiz AnzanelloCarrascoza”. Em
Célia Belmiro, Francisca Maciel, Mônica Baptista e Aracy Martins (Orgs.), Onde está a
literatura? Seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizonte: EDUFMG,
2014, p. 49.
85
Jean-Luc Nancy, Corpus. Lisboa: Vega, 2000, p. 16.
Versão final: 08/02/2016

A Terapia de Integração Somaestética (TISE) constitui a segunda fase


do método P5INCO – Práticas Somaestéticas Integrativas do Corpo
Pentelementar. Dotada de natureza mística, em cujo significado radical
encontramos o sentido de “fechar os olhos e os lábios”86, a TISE é praticada
por um Elã Vital (facilitador) “familiarizado com a visão interior, que ultrapassa a
consciência ordinária, [que] vive a radicalidade da presença de algo
absolutamente novo e gratuito; vive uma experiência que toca a dimensão 23
profunda e escondida da realidade”.
Essa experiência do mistério aponta uma qualidade de presença que
emerge do silêncio e de um tipo de relação que não se constitui, meramente,
de adentrar na realidade do outro como se fosse a sua própria. Trata-se de
uma prática ampliada de empatia, de natureza cósmico-relacional, portanto,
formativa à medida que o corpo reverbera com a malha larga da vida, onde o
meu mundo e do outro são mundos singulares.
Na compreensão de Jean-Luc Nancy87, “é o mundo da apropriação do
próprio: mundo da não-generalidade, mundo que não se oferece à
‘humanidade’, mas aos seus corpos singulares. Não geral: mundial”. Mundo
radical, por isso mesmo, singular e selvagem.
Também para Alfred Adler88, a empatia “é um sentimento cósmico e um
reflexo do encadeamento de todo o cosmo que vive em nós. É uma
característica inevitável de ser um ser humano”. A mística aqui se pronuncia
quando fechamos os estímulos externos e deixamos que essa tendência
formativa direcional do universo que vive em nós ecoe na relação
presentificada dos corpos.
Neste estado de profundidade relacional com a vida, o pathos vivido pelo
outro é também sentido por mim. A alegria dele é minha também. A tristeza
dela é também minha. A crise do país onde ele vive é também a crise onde
vivo. A empatia formativa convida-nos a construir relações norteadas pelo
princípio da compaixão – o pathos, as afecções, as emoções que vivo com o
outro.
A empatia formativa tem sido o objeto de nossos estudos e práticas
fundamentadas nos pressupostos da Tendência Formativa da Abordagem
Centrada na Pessoa (ACP)89 e inspiram-se na importante contribuição da
psicóloga brasileira Maria Constança Villas-Bôas Bowen com sua concepção
de uma terapêutica espiritual90.
Fundamentado na etimologia da palavra presença e o seu sentido literal
de “trazer para diante”, “empurrar para frente”, a TISE é uma prática
terapêutica que visa à produção de presença como uma forma de tornar

86
Faustino Teixeira, O desafio da mística comparada. Em: TEIXEIRA, Faustino (Org.), No limiar
do mistério: mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 27=28.
87
Jean-Luc Nancy, Corpus. Lisboa: Vega, 2000, p. 40.
88
Citado em Rollo May, A arte do aconselhamento psicológico. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001, p. 63.
89
Francisco Silva Cavalcante Junior e André Feitosa de Sousa (Orgs.), Humanismo de
funcionamento pleno: Tendência formativa na Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP).Campinas, SP: Alínea, 2009.
90
Francisco Silva Cavalcante Junior, Trilhas de vida e espiritualidade em Maria Bowen:
"Interconexão no universo e na psicoterapia". Em: CAVALCANTE JR.F.rancisco; OLINDA,
Ercília (Orgs.)Artes do existir:trajetórias de vida e formação (Coleção Diálogos Intempestivos,
vol. 51, pp. 126-139). Fortaleza: Edições UFC, 2008.
Versão final: 08/02/2016

palpáveis os volumes experienciais acerca das “coisas do mundo”. Segundo


Hans Ulrich Gumbrecht91: “Algo presente é algo que está ao alcance, algo que
podemos tocar, e sobre o qual temos percepções sensoriais imediatas.”
Gumbrecht infere a possibilidade de vivermos uma experiência estética
que se encorpa, ou seja, que ganha corpo, em contraposição a uma
experiência estética epifânica, ou momentânea, ou ainda, fugaz. Quando
deixamos que a presença cresça sua expressão em nós, pessoa e mundo
físico tornam-se um só corpo. 24
Ao nos apropriarmos das “coisas do mundo”, somos apresentados ao
que Gumbrecht92 denomina de “momentos de intensidade”, quais sejam, os
momentos que nos ajudam “a recuperar a dimensão espacial e a dimensão
corpórea da nossa existência.” São nestes momentos que experienciamos a
sensação de “estarmos-no-mundo, no sentido de fazermos parte de um mundo
físico de coisas”, cuja literalidade da presença cresce em nós, ganha volume e
ocupa o espaço, ao que, no contexto da TISE, denominamos de presença
encorpada. Para o pensador alemão, significa “experienciar as coisas do
mundo na sua coisidade pré-conceitual” e a sua implicação consiste em
reativar “uma sensação pela dimensão corpórea e pela dimensão espacial da
nossa existência.”
Ao iniciar o processo terapêutico na TISE, o participante é convidado a
pe(n)sar o seu corpo, ou seja, pensar o que pesa o seu corpo e o que nele
existe de singular, fundindo-se ao corpo como processo de imersão em si
mesmo. Este tipo de imersão é aquela descrita pelo químico e filósofo da
ciência Michel Polanyi93, denominada por ele de “dwelling in”, um tipo de
residência na própria experiência. Para Polanyi “não significa nem observar e
nem dominá-las [experiências], mas, sim, viver dentro delas”.
Não tenho dúvidas de que de que essa aplicação da residência na
experiência é central para a prática da TISE, porquanto a sua ênfase é sempre
facilitar que os participantes residam em si mesmos. É o conhecimento
pessoal, conforme propõe Polanyi, gerado pelo próprio participante, que se
tornará o alicerce para a sua transformação.
O processo de trans-formação na TISE é precedido por 3 outros
movimentos formativos: in-formação, con-formação e de-formação. Para cada
um dos movimentos, é solicitado ao participante da TISE que desenvolva uma
feitura somaestética para pensar o que pesa o corpo. O termo “feitura” refere-
se à etimologia da palavra “poética” em sua acepção grega de um tipo de fazer
(poíesis).
Foi em Paul Valéry, um dos maiores expoentes do estudo e da prática
da poética como método de conhecimento, onde encontrei a melhor
ressonância:

“O fazer, o poïein, do qual desejo me ocupar, é aquele que termina


em alguma obra [...] que se convencionou chamar de obras do
espírito. São aquelas que o espírito quer fazer para o seu próprio uso,

91
Hans UlrichGumbrecht, Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 50.
92
Hans UlrichGumbrecht,Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad.
Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010, pp. 145-146.
93
Michel Polanyi, Personal knowledge: Toward a post-critical philosophy. Chicago: The
University of Chicago Press, p. 196.
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empregando para esse fim todos os meios físicos que possam lhe
94
servir.”

Valéry enaltece o espírito criativo do qual somos dotados e convoca a


nossa sensibilidade para o fato de que todo conhecimento, em qualquer campo
do saber, é o resultado do que “podemos ou observar ou fazer nós mesmos”95,
obras da imaginação pessoal de cada participante da TISE.
Quando o participante da TISE reside na experiência do instante poético
25
na sua feitura, chega-se à constatação do filósofo Gaston Bachelard96: “A
poesia torna-se [...] um instante da potência pessoal.”
O conhecimento pessoal para o qual se abre a poesia é a maior potência
da natureza humana, a sua própria imaginação. Este mesmo filósofo francês
chama a atenção para a desvalorização desta grande potência humana, em
especial o descrédito que uma tradição da psicologia a ela atribuiu:

“A psicologia clássica praticamente não estuda a imagem poética,


frequentemente confundida com a simples metáfora. Aliás, em geral,
a palavra imagem é um ponto de equívocos nas obras dos
psicólogos: vêem-se imagens, reproduzem-se imagens, guardam-se
imagens na memória. A imagem é tudo, salvo um produto direto da
97
imaginação.”

O que intencionamos na TISE é abrir espaço para que as feituras


somaestéticas sejam resultantes da imaginação pessoal de seus participantes,
afinal, o sujeito que sente é também o sujeito que imagina a sua trans-
formação. A feitura “é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do
nosso ser. Aqui, a expressão cria o ser”98.
Gaston Bachelard pavimentou o caminho da mudança: “Conheço-me
somente naquilo que já não sou. Naquilo que de mim abandono,
transformando-me.” Posteriormente, o seu aluno mais nobre, o também filósofo
Michel Foucault, chancelou: “Temos que imaginar e construir o que poderíamos
ser.”99
Na TISE, o participante é convidado a in-formar-se ao pensar o que pesa
o seu corpo, construindo uma feitura na qual expresse livremente, em qualquer
forma de linguagem, o peso que faz o seu corpo pesar.
Em um segundo movimento, é convidado a con-formar-se ao peso,
fazendo o que pesa pesar ainda mais e o peso ainda mais pesado provoca a
criação de uma nova feitura.
Em um terceiro movimento, convida-se o participante a de-formar o
peso, imaginar a dissolução do peso daquilo que não mais se quer ser, para
que o peso possa ser transformado em leveza, em uma nova feitura.
Por fim, aquilo que se quer ser ocupa o quarto movimento em uma
feitura de trans-formação.
94
Paul Valéry, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2011, págs. 196-197.
95
Ibid., p. 199.
96
GastonBachelard. A intuição do instante. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 2. ed. Campinas:
Verus, 2010, p. 100.
97
GastonBachelard,A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 2. ed.São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 17.
98
Ibid., p. 8.
99
Citado em Marcelo de Carvalho, Conhecimento e devaneio: Gaston Bachelard e a androginia
da alma. Rio de Janeiro: Maud X, 2013, p. 130.
Versão final: 08/02/2016

O tempo de apresentação de cada feitura é processual e o tempo entre


as feituras varia de pessoa para pessoa. Alguns mergulham em um trabalho
terapêutico intensivo de uma nova feitura por semana, outros precisam de
algumas semanas ou meses entre elas.
Poetizemos, pois,

“É ao poeta que compete o dever de ensinar-nos


a incorporar as impressões de leveza em nossa vida,
100 26
a dar corpo a impressões quase sempre desprezadas.”

Contato com o autor


Prof. Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D.
Instituto de Educação Física e Esportes - IEFES
Universidade Federal do Ceará
Av. Mister Hull, s/n - bloco 320 - sala 8 - Campus do Pici
60455-760 - Fortaleza – CE
Tel.: (85) 3366-9535
E-mail: fscavalcantejunior@gmail.com

100
GastonBachelard,A poética do devaneio. Trad. Antonio de PáduaDanesi. 3. ed.São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 199.

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