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Estranho estranhamento (ostranenie)

Flávio R. Kothe

Briga* da literatura quanto à crítica: pode criticar uma obra por não ter categorias que
realmente permitam compreender a esta obra; pode, porém criticar uma obra pelo fato dela
não ser uma boa obra de arte literária. No primeiro caso, a inimizade é clara e desencoberta;
no segundo, a inimizade para com a má obra significa amizade para com a literatura.
Toda vez que o objeto de seus estudos — a literatura — dá um salto para frente através da
inovação, a crítica tem de ampliar suas categorias ou inventar novas. Como a obra literária
não existe isoladamente, mas pertence, como se diz, ao sistema constituído pela literatura,
assim como este pertence ao sistema constituído pelas artes, que, por usa vez, pertence ao
sistema da cultura, ocorrendo qualquer alteração em algum dos elementos, todos os demais
também acabam sendo afetados, devido a próprio caráter sistemático do todo. Isto quer
dizer que a crítica literária precisa estar se renovando constantemente, atenta não só às
modificações no âmbito específico da literatura, mas também as modificações que ocorrem
nos demais sistemas a que a literatura pertença.
Também não se pode dizer que há um sistema pronto, fornecido pelo passado. O próprio
passado sofre alterações contínuas através das modificações ocorridas no presente. A rigor,
o passado não existe, exceto enquanto presentificação no presente. Começa-se a pertencer
ao passado, quando já não se percebe mais isto. Geralmente, a sincronia era vista como algo
estático, em contraposição ao caráter dinâmico da diacronia. Como, porém, a diacronia é
constituída por uma sucessão de momentos sincrônicos, se não fosse admitido o caráter
dinâmico da sincronia, a própria diacronia, logicamente, não seria possível.
Toda estrutura deve ser, portanto, entendida como um processo contínuo de
desestruturação e reestruturação. Com isto talvez também se possa evitar que a crítica se
transforme em traição da literatura sob a aparência de esforço amigo, pois senão ela estaria
sempre apenas reduzindo o desconhecido ao conhecido, o novo da obra ao velho lugar-
comum.
O próprio conceito de estrutura e de sistema precisa ser reformulado, se não se quiser
abandoná-lo totalmente. Por enquanto ele sempre tem repousado na conservadora categoria
da identidade que possibilita o estabelecimento de conexões entre os diversos elementos,
mas que também tende a castrar-lhes as diferenças, impedindo-os de afirmarem a sua
diversidade e obrigando-os a dizerem “amém” ao já estabelecido.
É óbvio que tudo isto se torna ainda mais grave e evidente no âmbito da arte, onde a
categoria da mimese ainda é essencial. O problema é que esta categoria quase sempre foi
entendida apenas como “imitação”, isto é, como um procedimento através do qual algo
tentava tornar-se igual a algo. A arte, porém, só se realizava como frustração da identidade.
* Nota de transcrição: Esse artigo foi encontrado apenas como foto do periódico em que foi publicado — o Suplemento
Literário de Minas Gerais da Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 20 agosto de 1977, cujo acervo está disponível para
consulta em http://www.letras.ufmg.br/websuplit/. Apesar da qualidade da foto, está quase integralmente transcrito.
Entretanto, por exemplo, a primeira linha está meio cortada, impossibilitando a leitura da palavra com que Kothe abre o
texto—esta foi a palavra inferida. Apesar disso, não há perdas substanciais ao longo do texto.
O quadro que tentava reproduzir a figura da condessa X ou do duque Y acabava não sendo a
figura da condessa X ou do duque Y, mas sim um quadro. A questão, porém, é que o quadro
era valorizado proporcionalmente ao seu grau de semelhança, ou melhor, de identidade em
relação ao objeto (pessoa), do qual se tornava um mero representante.
A fotografia surgiu então como a realização mais perfeita da mimese entendida como
identidade. E, para se salvar, a pintura teve de se tornar cada vez mais abstrata. Mas a
própria fotografia, extraindo o objeto de sua circunstância através do enquadramento, era
artificial e frustrava a realização plena da identidade. Isto a salvava para o mundo da arte.
Primeiro a mimese foi entendida apenas como um processo de imitação da realidade;
depois a obra foi entendida como expressão da alma do artista e se entendia, portanto, a
obra como mimese objetiva da subjetividade do artista. Também se descobriu que as obras
poderiam tentar imitar umas às outras, seja pela clássica “imitatio”, seja pela paródia e
estilização, e se falou então da intertextualidade. Depois se descobriu ainda que as obras
estavam cada vez mais falando de si mesmas, inserindo um nível de metalinguagem crítica
em sua própria linguagem literária, e se disse então que as obras estavam praticando uma
automimese.
Mas sempre, no fundo, estava-se entendendo mimese como identidade. E as obras de arte
riam disso, riam dos homens que só eram capazes de pensar em termos de identidade, riam
dos homens para os quais o diferente era sempre o estranho, o estrangeiro, o inimigo. Riam
para não chorar, lamentando a pobreza dos homens.
É hora de se reintroduzir na Teoria da Literatura o conceito de “modelo negativo”,
encontrável em Sklovskij. Uma obra que pode ser construída formando uma outra obra
como modelo, mas como modelo negativo, isto é, como uma obra que se faz presente por
ausência. Ou seja, a obra que está sendo construída não quer ser igual nem parecida com
aquela outra. Isto não quer dizer também que ela presentifique a outra apenas por fazer-se
às avessas e exatamente ao contrário da outra. Não; pode simplesmente fingir ignorá-la. Mas
de fato não a ignora se esta outra obra tem uma presença tal dentro do sistema que ela acaba
sendo um marco característico de uma parte do sistema.
Mas o que Sklovskij pensou apenas em termos de relação interna dentro da série literária,
sem introduzir a categoria da mimese (pois temos aí um processo de mimese de uma obra
em relação a outra — intertextualidade), pode ser ampliado, introduzindo-se explicitamente
esta categoria, a ponto de abranger os diversos níveis da mimese. Daí, porém, já não se tem
mais a categoria da mimese entendida como identidade ou identificação. E o sistema passa a
dançar como um jogo de diferenças, ou já não é mais propriamente um “sistema” por ter-se
tornado algo que merece outro nome (talvez o de constelação).
II
Um traço comum que marca as diversas correntes modernas da crítica é a busca da
especificidade da obra literária, com uma metodologia adequada à natureza deste objeto. A
corrente crítica que, neste século, colocou o problema do modo mais radical e original foi o
Formalismo russo. Este movimento resultou, em grande parte, de um esforço teórico no
sentido de compreender as inovações trazidas à literatura pelo Futurismo russo.
O Formalismo não teve, excetuada a Escola de Praga, quase nenhuma repercussão no
Ocidente durante meio século. Foi lembrado, sem maiores consequências iniciais, em 1955,
pelo Russiam Formalism History — Doctrine1 do norte-americano Victor Erlich. Mas a recepção
do Formalismo só passou a ocorrer de fato dez anos depois, em 1965, com a tradução, aliás
bastante mal feita e cientificamente não confiável, para o francês do búlgaro emigrado em
Paris, Tzvetan Todorov2. A tradução para o português publicado pela Editora Globo baseia-se
naquela tradução, sem confrontar com os originais, o que é lamentável em suas
consequências.
Quase toda a recepção inicial do Formalismo no mundo românico ocorreu sob a égide de
Roman Jakobson, que, com todo respeito que merece a figura, não foi propriamente um
formalista, pois era um linguista oriundo do Círculo Linguístico de Moscou e que, muito
jovem ainda, passou apenas dois ou três anos em contato direto com os formalistas,
agrupados em Leningrado. Isto coloca alguns problemas: 1) toda a evolução básica ocorrida
com os formalistas não foi vivida nem acompanhada desde dentro por Jakobson; 2) o
Jakobson que o Ocidente conheceu e propagou não era mais, a rigor, o Jakobson-literato
ligado à Escola de Praga; 3) alimentou largamente a ilusão de encontrar na Linguística a
ilusão de sua cientificidade.
Esta ilusão foi alimentada grandemente pelo Estruturalismo francês, que, a rigor, não foi
um estruturalismo, mas antes, uma regressão à primeira fase do Formalismo russo. Isto
grassou no Brasil, mas hoje, graças a uma renovada macaqueação para com algo que vem
ocorrendo ultimamente pelo Quartier Latin e Nanterre, começa a perder sua força3. Passado
este pileque, cabe meditar na ressaca e jurar bons propósitos. Com aquela ilusão, a Teoria da
Literatura só podia acabar na rua da amargura. Hoje faz-se necessária a urgente retomada
dessa evolução crítica, para ver onde foi que este viajor errou seus passou e entrou no mau
caminho... Para recuperar a virtude perdida, é preciso voltar às origens...
Nota-se então, com certo espanto, como a ideologia atrapalha o desenvolvimento da
ciência. Houve todo um desenvolvimento metodológico dos formalistas russos que foi
sistematicamente ignorado no Ocidente: os textos respectivos não ingressaram nas
antologias, não foram traduzidos nem comentados. No máximo se disse, como Erlich, que o

                                                                                                               
1
Erlich, Victor. Russian Formalism History – Doctrine, Gravenhage, Mouton, 1955.
2
Todorov, Tzetan (ed.). Theorie de la litterature, Paris, Seuil, 1965.
3
C.f. Perrone-Moises, Leyla. “Situação Crítica” in Através 1, São Paulo, Liv. das Cidades, s.d.
que pode ser visto como uma superação do Formalismo alcançada pelos próprios formalistas
foi apenas decorrente de uma coação exercida pelos marxistas alçados ao poder. Sem querer
negar o gelo em que as pesquisas dos formalistas foram postas durante todo período
estalinista, aquela versão procura ignorar propositadamente os fatos. Vê-se então que não
são só obras de arte que se perdem e são esquecidas: o mesmo pode ocorrer com descobertas
científicas.

III
A rigor, o Formalismo russo não começa em 1916 com o ensaio de Sklovskij sobre “A Arte
como Procedimento”4, conforme vem sendo divulgado. Seus elementos básicos já estão
contidos num ensaio-manifesto de 1914, “A Ressurreição da Palavra”5, escrito por Sklovskij
aos 21 anos de idade.
Ao contrário do que Eichenbaum afirma no “Teoria do Método Formal”6 (seguramente a
melhor apresentação formalista do seu método), o Formalismo não procedeu sempre apenas
de modo indutivo, isto é, buscando sua teoria a partir e através de estudos concretos de
textos. Pelo contrário, o Formalismo se inaugura dedutivamente: a contraposição básica, que
atravessa todo o Movimento, entre automatização e estranhamento decorre da
contraposição entre o mero reconhecer objetos familiares e a verdadeira visão das coisas.
Esta grande corrente da crítica, que tanto insistiu na especificidade dos estudos literários,
não parte, aliás, sequer um elemento a rigor literário: parte de um problema de psicologia da
percepção (a contraposição entre conhecimento e mero re-conhecimento de objetos
familiares). E acabou lendo, como mostrou Vigotski7, na dimensão psicológica de um de seus
aspectos mais fracos. Aquela contraposição foi adotada a partir do alemão Christiansen, bem
como os conceitos de dominante e desvio da norma.
“A Ressurreição da Palavra” constata a automatização das palavras na linguagem
cotidiana. O costumeiro não é visto nem vivenciado: só é reconhecido. À Linguagem
artística, então cabe quebrar este mero reconhecimento, para que as coisas realmente
também sejam vistas: artística é a percepção em que a forma é vivenciada. Ela atrai a atenção
sobre si mesma. Palavras, denominações, casas, roupas, obras literárias — tudo pode
petrificar-se, tudo pode se automatizar. Para sobreviver, a arte precisa renovar-se — e esta
renovação Sklovskij encontra no Futurismo russo, do qual o Formalismo vai ser a explicação
e a defesa teórica, especialmente contra o Simbolismo.

                                                                                                               
4
Sklovskij, Viktor. “L’art comme procede” in Todorov (ed.). Theorie de la litterature – p. 76 ss.
5
Sklovskij, Viktor. “Die Auferweckung des Wortes” in Stemper, Wolf Dieter (Hrg.) Texte der russischen Formalisten, Band 2,
München Fink V., 1972 – p. 3 ss.
6
Eichenbaum, Boris. “La theorie de la “methode formelle” in Todorov (ed.). Theorie de la litterature– p. 31 ss
7
Vigotski, Liev Semionovich. Psicologia del arte, Barcelona, Barral, ed., 1972 – esp. te p. 73 ss.
IV
O problema da automatização precisa, hoje, ser revisto. Ou seja: os formalistas insistiram
sempre na ideia de que a obra de arte está aí para redespertar a percepção toda vez que um
objeto ou uma situação se tornem tão conhecidos que só são ainda reconhecidos, sem haver
qualquer conscientização. Daí deduziram: 1) um princípio de construção da arte: o
estranhamento; 2) uma lei de evolução do procedimento se automatiza, surge um novo
procedimento que o substitui (pode haver aí uma fase intermediária, em que o antigo
procedimento sobrevive descanonizadamente pela e na paródia); 3) uma finalidade da arte:
renovar a percepção e acabar com o pessimismo.
Ora, segundo tal teoria, toda vez que um princípio de construção artística se torna
demasiadamente repetitivo, ele seria substituído por outro. O que não fica aí bem claro é
saber se isto se refere a apenas um determinado público ou independe dele. Pois o que pode
ser automatizado para o público de um determinado meio e momento, pode ser a maior
novidade para outro.
Os formalistas se dedicaram muito a estudar a arte que era nova em sua época: o cinema.
Hoje temos de pensar a televisão. Tome-se então um determinado público, por exemplo, o
público brasileiro que assiste aos vários enlatados filmes policiais norte-americanos, que são
apresentados a cada semana (Kojak, Police Woman, O homem de seis milhões de dólares,
Mannix, As Panteras, etc.). Aparentam serem diferentes entre si, mas no fundo são todos
iguais. As variações são apenas a nível de estrutura de superfície. (o “herói” pode ser homem
ou mulher, manter bigodes ou não, ser branco ou preto, pertencer diretamente à policia ou
ser apenas detetiver particular, trabalhar sozinho em equipe, etc.). A estrutura profunda,
tanto destes personagens quanto dos enredos, é sempre a mesma. Do enredo: uma norma é
violada; procura-se quem a violou; este é punido.
A rigor, esses “heróis” não são sequer heróis, pois o herói se caracteriza por ser um
indivíduo que enfrenta uma série de adversidades com o risco da própria vida e acaba
vencendo. Geralmente, ele conta com algum bom auxiliar (um amigo rei, uma espada
mágica, um tapete voador, instrumentos especiais, um cão, etc) e no fim seus esforços são
recompensados (ganha a mão da princesa, consegue contar a verdade que apareceu na
historia, [ininteligível], é nomeado guerreiro, etc.). O esquema narrativo básico fundamental
já é muito antigo, mas ele nunca foi tão repetido quanto hoje. Aparentemente uma época
esclarecida, nenhuma época foi tão dominada por mitos e lendas quanto a nossa.
O “herói” dos enlatados americanos só aparenta arriscar a própria vida: na verdade já se
pode saber de antemão que ele vai vencer. De fato, todo o enredo é um mero fingimento,
pois o seu desenlace já está prefixado. Isto permite ao espectador comum uma identificação
tranquila com o “herói”. Sem querer, neste processo de identificação, o espectador confessa a
sua própria fraqueza, nesta busca de “justiça” na ilusão, ele confessa as injustiças que sente
sofrer a cada dia. A cada noite lhe é repetida a força e a “justiça” no status quo. É-me dito que o
“stablishment” busca a verdade e a justiça, apesar de erros ocasionais. A própria necessidade
de repetir tantas vezes esta mesma coisa já deveria, porem levar o espectador a desconfiar
que há algo podre aí. É a mentira que, tantas vezes repetida, acaba parecendo verdade. Mas
não é.
Seria ingênuo crer que a verdade possa se impor. Mas por que as pessoas engolem essas
balelas? Por que sentem a necessidade de ouvir sempre a mesma historia, sem se cansarem?
Por que as pessoas hoje, ao contrário do que pensaram os formalistas, não buscam a
inovação mas exigem o automatizado?
Nos enlatados, assim como o risco é apenas aparente, também o heroísmo o é. Mas ai do
herói se não fosse assim. Isso também decorre de uma necessidade estrutural: se o herói
falhasse e morresse, não haveria sequencia no mesmo dia e horário da semana seguinte. É
claro que, ao longo do enredo, ele precisa aparentar um momento de quase fracasso. Isto é
apenas um truque narrativo para captar mais atenção do espectador e sublinhar ainda mais
a “heroicidade” da vitória final.
Quanto mais se insiste nisto a cada semana, tanto mais se reforça a identificação. Os
espectadores sentem a necessidade de ver e ouvir mentiras. E isto interessa ao stablishment:
ele até o impõe. No fundo, sempre se insiste na ideia de que o bem é superior ao mal, que a
virtude compensa, que a justiça tarda mas não falha; nunca, porém se discute realmente —
como fez Dostoiévsk no Crime e Castigo ao estilizar e transcender o gênero do romance
policial — quais são os fundamentos daquilo que aí se está entendendo por justiça, por
virtude, por bem.
É espantoso e parece loucura dizer isto: mas este espectador sofre de algo da arte: toda vez
que um determina que a psicanálise seria obrigada a designar como sendo algo semelhante a
uma neurose obsessiva. Se este espectador for tomado como instância da verdade, todas as
teorias dos formalistas estão erradas.
O “herói” dos enlatados pode, aparentemente, ser ameaçado não só por “bandidos”, mas
também pelo anti-herói, que foi criado pela literatura quando esta se viu cansada ou
insatisfeita com os heróis de suas epopeias, de seus romances de aventuras, etc. Mas aquele
“herói” revela uma incrível resistência: ele é capaz de absorver enormes ingredientes de anti-
herói aparente. Exemplo típico é o inspetor Columbus, que é vesgo, tem cara de bobo, usa
roupa amarrotada e carro velho, não sabe beijar nem bater, mas continua sendo “herói”
porque a sua “heroicidade” repousa em apenas um dado, que é, porém, o dado essencial pare
seu desempenho: a sagacidade com que deslinda os crimes mais complicados. Ele é, antes de
tudo, uma demonstração cabal de quanto uma determinada estrutura profunda é capaz de
absorver alterações de superfície e continuar sendo a mesma. As próprias alterações só
servem para manter a mesma estrutura profunda, para cativar de novo uma eventual faixa
de público que se mostrasse um tanto cansada por encontrar sempre o mesmo esquemão.
Esta faixa de público, com a pretensão de ser mais esperta e esclarecida, só tem a diferença
de ser engambelada de um modo um pouco mais refinado.
As fotonovelas, os filmes água-com-açúcar, as novelas cor-de-rosa — todos tem a mesma
estrutura básica: X é predestinado a casar com Y; surgem vários empecilhos; X acaba
casando com Y. Os empecilhos, isto é, as dificuldades intermediárias que constituem o
enredo, podem ser de variada ordem: X é rico e Y é pobre; X tem título nobiliárquico e Y não,
X ou/e Y é orgulhoso e não quer admitir seu amor pelo outro; X e Y pertencem a famílias
rivais; X é belo e Y não; etc. No fundo, há sempre um deus ex-machina, o Amor, e uma mesma
assertiva: o amor tudo vence. São narrativas essencialmente ideológicas: procuram provar às
pessoas de classe média e baixa (as consumidoras básicas dessas estórias) que as barreiras
para se chegar à classe alta não são intransponíveis e que, portanto, a sociedade de classes é
aceitável, ou melhor, que essas pessoas que estão no nível inferior devem aceitá-la e
considerar o nível superior como sendo realmente superior.
Essas estórias, tão inocentes na aparência, parecendo tão longe de qualquer preocupação
de natureza social e política, são as mais profundamente ideológicas, são as menos
inocentes, são as mais politizadas. Repetem sempre o mesmo esquema, dizem sempre a
mesma coisa. São automatizadas. E muito consumidas. Seu público, basicamente leitoras e
espectadoras preocupadas em saber em subir na vida dando o rabo com a garantia de um
casório, deve ouvir a realidade lhe mostrar e dizer a cada dia que isto não é possível, pois
senão não teria esta necessidade obsessiva de ouvir, ler e ver o mesmo sonho repetido.
Quanto mais a realidade lhe diz “não”, mais este público precisa sonhar “sim”. E a literatura é
então, como diz Borges, este sonho dirigido.
Do mesmo modo, nos filmes, romances e novelas policiais, a lei sempre acaba vencendo
através de seus heroicos representantes. Mas a lei, e a “ordem” que ela representa, nunca é
questionada. Ocasionalmente pode aparecer algum agente da lei que seja corrupto e que
acaba, por isso, fazendo o papel de “bandido”. Logo, porém, surge aí um outro policial, ou até
mesmo um cidadão particular, que desempenha então o papel de agente da lei e esta volta a
se estabelecer mais forte do que nunca: aí, a tese é a de que a lei não tem culpa se algum de
seus “agentes” a desrespeite e não a cumpra. A lei em si aparece sempre como inocente e
pura. Este tipo de enredo procura destacar exatamente isto. A Lei não é questionada. Mas
por isso mesmo é que este tipo de produção não ultrapassa o nível de literatura trivial e não é
propriamente Literatura.
O leitor e o espectador que consomem esses vários tipos de obras que apenas repetem a
mesma coisa aproximam a obra do rito. Se um culto religioso é uma representação teatral
(por exemplo, a missa católica como uma retomada incruente do sacrifício de Cristo na
cruz), cabe então perguntar por que este crente não se cansa de assistir sempre ao mesmo
espetáculo? Então a TV seria o grande deus dos tempos atuais. O rito se caracteriza por
retomar os mesmos gestos, as mesmas palavras, através dos mesmos figurantes, com o
mesmo enredo e o mesmo desfecho, tendencialmente nas mesmas datas. Ele repete
rigidamente a sua estrutura. Repete-a, porém, dentro de um sistema social e ideológico que
tende a sofrer modificações; a repetição ritual serve, portanto, para travar essas
modificações e reforçar a mesma estrutura fundamental.
Daí porque os referidos enlatados, os romances e novelas policiais, os filmes de far-west,
as fotonovelas, os filmes água-com-açúcar, as novelas cor-de-rosa, etc., não são arte, são
ritos. Aparentam pairar acima do tempo e do espaço, aparentam ser mera diversão, mas são
basicamente voltados para situações muito concretas no espaço e no tempo. Traços disso
guardam muitos de seus personagens e de seus enredos.

VI
Toda essa realidade “artística”, cujo denominador-comum é a automatização como
principio dominante de construção, estava quase fazendo do Formalismo, que pretendeu
inaugurar a Ciência da Literatura, uma mera ideologia de novo. Os formalistas
desenvolveram sua teoria numa das maiores situações de reviravolta social já havidas.
Foram depois combatidos, mas, hoje, parece que desenvolveram uma concepção adequada
àquela situação. Não puderam avaliar o domínio quase absoluto que a categoria da
identidade alcançou na sociedade de massas, especialmente através da automatização não
só da produção, mas também do homem.
O ensaio de 1916 (e não de 1917, como consta na edição francesa), “A Arte como
Procedimento”8, que tem funcionado como manifesto teórico do Formalismo, teve seu
conceito central, “ostranenie”, mal traduzido para o português e o espanhol a partir da
tradução francesa. Foi traduzido por “singularização”. Ora, este termo indica o processo de
tornar algo “singular”. A categoria do singular surge, porém, na tradição da estética como a
categoria contraposta à do universal. Da conjugação do singular com o universal é que surge
a categoria do particular, que é considerada típica da arte (V. Hegel, Lukács). Daí é que tem
surgido, por exemplo, nos estudos sobre Literatura Brasileira a tese de que uma grande obra
se torna grande quando consegue conjugar no singular de sua dimensão regional a
dimensão de uma problemática universal. O personagem que melhor conseguiu conjugar o
universal e o singular foi Jesus, que, como se diz, foi Deus e foi um homem.
O ensaio de Sklovskij centra-se na contraposição entre linguagem cotidiana e linguagem
poética, que, por sua vez, decorre da contraposição anterior entre o mero reconhecimento do
costumeiro e a visão consciente e surpresa do objeto. Esta é alcançada pelo procedimento da
“ostranenie”, que deve ser traduzido por “estranhamento”. O nome foi inventado por
Sklovskij9 em 1915. Grandemente devido a um erro de tradução, tem-se deixado de ver a

                                                                                                               
8
Sklovskij, Viktor. “L’art comme procedé”
9
Sklovskij, Viktor. Von der Ungleichheit des Aehnlichen in der Kunst, München, Hansa V., 1973 – p. 32.
relação que ele apresenta com o conceito básico do teatro épico e da produção teórica e
literária de Brecht.
Como se refere Clemens Heselhaus10, o conceito foi apreendido provavelmente em 1935,
através de Tretjakov, quando Bertolt Brecht visitava a União Sociética. Só vai aparecer em
sua obra a partir de 1936. “Verfremdung” (estranhamento) não deve ser confundida com o
conceito de “Entfrendumg” (alienação), apesar deste último ter desempenhado um
importante papel na modificação do conceito em sua passagem de Sklovskij e Brecht. Que
este tenha feito esta adoção, foi expressamente reconhecido por aquele em 1970: “A teoria do
estranhamento, que foi adotada por muitos, entre outros também por Brecht, encara a arte
como um conhecimento, como um meio de pesquisa”.11
Uma grande diferença se coloca, porém, entre o conceito de estranhamento de Sklovskij e
o de Brecht. O primeiro, em 1917, apesar de enfatizar a ideia de que a finalidade da arte é dar
uma sensação do objeto como visão e não como mero reconhecimento, estava basicamente
preocupado com o modo do objeto artístico ser construído. O estranhamento era, para ele,
um conjunto de procedimentos de construção artística. Para Brecht, contudo, não se tratava
apenas do modo de construir obras de arte, mas este modo de construir decorria da intenção
do autor no sentido de fazer com que o espectador ou leitor adquirisse uma visão crítica da
realidade social e ideológica. Não se tratava, portanto, apenas de atrair atenção para a obra,
mas sim, através disso, contribuir para a própria modificação da coisa significada.
Este momento de crítica social já está, porém, contido implicitamente no antigo ensaio de
Sklovskij, através do exemplo básico de estranhamento que ele apresenta, ou seja, “A
História de um Cavalo” de Tolstói. Nesta novela, o autor não emprega o artifício de fazer de
um cavalo o personagem-narrador, que, já aposentado em um pasto, conta a história de sua
vida, isto é, como passa das “mãos” de um aristocrata para as de um burguês e daí para as de
um campônio, simplesmente a fim de dar uma visão das diversas classes da sociedade russa
do século XIX. O importante é aí a visão critica que é transmitida quanto ao conceito de
propriedade que impregna as várias classes: o cavalo a todo momento estranha ser
considerado “propriedade” de alguém.
Isto, porém, não foi percebido por Sklovskij naquele momento. É por isso que ele,
segundo Renate Lachmann12, rejeitou em 1966 o conceito antigo de estranhamento.
Considera-o como não sendo original (já presente em Aristóteles e Novalis) e como sendo
falso, pois de um meio estilístico traz a finalidade da arte. Substitui-o, por conseguinte, pelo
conceito de “novoe videnie” (nova visão). Este não é um apenas-ver, mas é um ver crítico,
destinado à modificação do social. É conseguido através de uma montagem diferente dos

                                                                                                               
10
Heselhaus, Clemens. “Brechts Verfreumdung der Lyrik” in Iser Wolfgang (Hrg.). Poetik und Hermeneutik II, München,
Fink V., 1966 – esp. te p. 315.
11
Sklovskij, Viktor. Von der Ungleichheit (…) – p. 176 ss.
12
Lachmann, Renate. “Die Verfremdung” und das “Neue Sehen” bei Viktor Sklovskij” in Poetica 3, Bochum, 1970.
elementos, através do deslocamento de uma série para outra, etc. Assim, é possível constatar
não só uma influência de Sklovskij em Brecht mas também deste naquele, pois Sklovskij
praticamente acaba adotando de volta o conceito conforme ele havia sido reelaborado pelo
outro. Que Brecht não tenha citado nem badalado o nome do formalista, deve-se
provavelmente ao fato de ter vivido durante a época em que o Formalismo era uma teoria
condenada no bloco socialista e desconhecida no mundo capitalista.
Na referida novela, Tosltói, através de uma dissonância na apresentação
costumeiramente harmônica de uma parcela do mundo, quer levar a um ver de modo
diferente, quer levar a um ver correto. Estranhamento é aí também desideologização. Em
1966, Sklovskij critica a ênfase formalista em considerar o estranhamento como um voltar a
atenção à própria forma artística, encontrando a obra de arte uma finalidade em si mesma.
Essa tese formalista é a que vai se encontrar, porém, no Jakobson tardio, que entende a
linguagem poética apenas como uma mensagem apenas voltada para si mesma e uma
percepção dirigida ao próprio objeto.

PARTE 2
Qual é a relação entre o conceito de “ostranenie” (singularização, isto é, estranhamento)
em Sklovskij e o conceito de “Entstellung” (deformação) em Freud?
Talvez a pergunta não surpreendesse tanto se não estivesse aí ante um duplo problema de
tradução. Assim como o primeiro termo apresenta dificuldades já vistas, traduzir o segundo
por “deformação”, como sói acontecer, é uma deformação básica do conceito de
“Entstellung”, pois a palavra “deformação” guarda em si um sentido basicamente negativo, o
que não corresponde ao pensamento de Freud. Quando, na linguagem corrente, se diz que
uma pessoa ou situação é ou está “deformada”, não se quer dizer apenas que ela sofreu uma
mudança de forma, mas uma mudança de tal forma que houve uma perda ou até uma
falsificação básica em relação a um estágio anterior tomado como modelo.
Ora, nada disso corresponde ao que Freud entendeu por “Entstellung”. Esta categoria,
traduzível talvez por “transposição”, contém duas outras em si cuja combinatória decorre:
“Verdichtung” (condensação: muitas vezes aproximada da metáfora) e “Verschiebung”
(deslocamento: muitas vezes aproximada da metonímia). Assim, por exemplo, se num sonho
aparece o rosto do pai acrescido com bigodes do açougueiro da esquina, houve aí tanto o
deslocamento (metonímico, isto é, abarcando a sinédoque) de uma parte do rosto do
açougueiro para o rosto do pai, quando um processo de condensação dos dois rostos. Ambos
foram metaforicamente comparados por terem algum denominador-comum sub-reptício.
Conjugadamente, teve-se aí um processo de “Entstellung”.
Não se pode dizer simplesmente que o rosto do pai ficou “deformado”. Através desse
processo, o sonho pode ter conseguido expressar algo que a censura do sonhante não
permitisse ser expresso, como por exemplo: “meu pai é um açougueiro, meu pai é cruel”. Na
perspectiva de Freud, não se pode dar uma significação negativa a isto só porque a imagem
do rosto do pai não é um retrato absolutamente fiel e exato. Pelo contrario, é exatamente
esta “deformação” que permite ao sonho dizer algo que a censura queria impedir. Com isto,
é a própria censura que se desvela. O retrato “deformado” acaba, portanto, sendo a imagem
mais exata e fiel. É, então, do ponto de vista psicanalítico, extremamente desejável.
Sklovskij, ao formular, entre 1914 e 1916, a sua teoria do estranhamento, estava no máximo
preocupado em conseguir com isto recuperar a vivência do mundo, ressuscitar as coisas e
matar o pessimismo. Não estava muito consciente de que o afastamento do caráter de cópia
exata do objeto convencionalizado, o evitar a retomada dele em uma perspectiva
automatizada, continha em si a possibilidade de dizer algo que as relações de produção
literária e as forças ideológicas intencionam reprimir e coibir.
Na época em que formulou essa teoria, Sklovskij não foi ainda capaz de entender que a
visão habitual do mundo (que ele pretendia inovar pela “ostranenie”) era uma visão
ideológica, de acordo com os interesses da classe dominante. Brecht tomou isto, porém,
como cerne de toda a sua teoria.
Freud também não examinou explicitamente a moral como parte da supra-estrutura
ideológica de uma classe. Mas descobriu, no mais recôndito do individuo, o trauma
neurótico, cuja origem sempre é social. Cada doente era, portanto, um grito contra a
sociedade. Trabalhando basicamente na sociedade vienense, descobriu síndromes e tipos
neuróticos existentes também nas outras sociedades.
Freud, examinando sonhos já existentes e traumas oriundos do passado acabou
acarretando grandes mudanças em áreas com o a Pedagogia, a Moral, a Religião. Sklovskij,
defendendo um tipo de produção literária que então estava se inaugurando, acabou
lançando uma luz completamente nova sobre o passado. Freud não podia, obviamente,
ensinar as pessoas a sonhar; só podia dar-lhes instrumentos de compreensão de seus
sonhos. Sklovskij queria desenvolver instrumentos de compreensão das obras literárias. Mas
Brecht queria dar às pessoas instrumentos de compreensão de sua situação existencial, bem
como ensinar a elas o caminho para um novo modo de viver.
Sklovskij, procurando justificar teoricamente as inovações do Futurismo russo, acabou
por forjar uma categoria capaz de superar em muito as limitações e características deste
Movimento. “Ostranenie” talvez seja a síntese do que a Retórica tradicional vinha tentando
compreender através de categorias diversas como metáfora, metonímia, sinédoque, litotes,
etc.
No sonho, a “Entstellung” vinha ocorrendo sem qualquer esforço consciente do homem
em produzi-la. Somente com Freud é que ela foi compreendida cientificamente. Ele tentou
descobrir o sentido da modificação que ocorre com os personagens e situações dos sonhos.
Acabou encontrando aí o reflexo da negatividade social. Todo seu trabalhou acabou tendo,
portanto, uma dimensão de crítica à realidade social e à sua ideologia.
Na fotografia, a arte em que a mimese entendida como identidade aparente encontrar a
sua maior realização, o próprio olho único da câmera, a distancia desta em relação ao objeto
fotografado, o tipo de lente e de filme, bem como especialmente o enquadramento do objeto
(que o arranca de sua circunstancia e da outra diversa), tudo isto acaba rompendo e
violentando a identidade e a identificação. Permite, porém, que a fotografia se realize como
arte. Vê-se aí que é o avesso da mimese enquanto identidade ou identificação que permite o
surgimento e a afirmação da arte. É pelo “estranhamento”, pelo tornar-se outro, pelo fazer
“outro”, que a mimese encontra sua verdadeira realização.
Comum às categorias do estranhamento e da “transposição” é o afastamento da maneira
habitual de um objeto ser apresentado, é a modificação de seus marcos habituais. Com isso,
ele não só passa a atrair a atenção sobre si mesmo. Ele passa basicamente a dizer a sua
diferença em relação à realidade que é tomada como modelo.
A “ostranenie” é para a literatura o que a “Entstellung” é para o sonho: a própria condição
de sua existência. Constituindo a base da diferença entre signo e coisa significada, são a
própria possibilidade de significação. Instauram a dimensão de autonomia do texto e a
natureza estranha do sonho. Traçam o círculo onde vigem leis próprias e que são a própria
magia do sonho e da arte.

VIII
Em 1930, num curto ensaio de 7 páginas, Sklovskij rejeitou expressamente certas posições
formalistas. Por não querer tornar-se (como, depois, de fato ocorreu) um monumento em
prol do erro cientifico, deu-lhe o titulo de “Monumento em Memória de um Erro
Científico”13. Seja por inatividade ou por falta de desenvolvimento da Eslavística no Brasil,
seja por motivos ideológicos, o fato é que este ensaio tem permanecido aqui num quase
olvido.
Sklovskij afirma aí que o erro da primeira fase do Formalismo não residia em isolar a série
literária por uma determinação heurística, mas em insistir e teimar no isolamento: vendo as
obras como um sistema fechado, não via sua correlação com o sistema global da literatura e
com a série socioeconômica que funda a cultura. Através de pesquisas empíricas, os
formalistas haviam verificado que cada obra só se realiza a partir do background de outra
obra, isto é, ela só é captável no sistema literário. Em vez de método formal, passou-se a falar
de método morfológico.
Os trabalhos de Tynianov foram o elemento decisivo para a evolução do Formalismo,
especialmente pela introdução do conceito de função literária, ou seja, a ideia de que os
elementos literários apresentam um significado diferente em épocas diversas: as obras

                                                                                                               
Sklovskij, Viktor. “Denkmal zur Erinnerung an einen wissenschaftlichen irrtum” in “Flaker, Alexandar und Zmegac,
13

Viktor (Hrg.). Formalismus, Strukturalismus und Geschichte, Kronberg, Scriptor V., 1974 – p. 74 ss
realizam-se nos campos de ressonância colocados pelos grupos de leitores, sendo estes
condicionados pela classe a que pertencem.
Da primeira definição de obra literária como soma de procedimentos utilizados, continua
Sklovskij, restou pouco, pois as partes da obra não são meramente somadas, mas agem entre
si (esta posição é confirmada em 1976). A forma literária mostra-se assim, em sua identidade
aparente, como uniforme, mas não equivalente nem de significado sempre igual.
Ao contrário do que acontecia antes, Sklovskij afirma claramente: “A evolução literária
deve ser pesquisada levando em conta o contexto social. Surgem aí dificuldades na pesquisa
das diversas correntes literárias que se infiltram de modo desigual nas diversas camadas
sociais e são reelaboradas por estas de um modo não uniforme. (...) O surgimento de uma
nova forma é precedido por um processo de acumulação qualitativa na forma inerte, de
elementos oriundos das séries sociais próximas. Os processos correm aos saltos, através da
transformação dos desvios em uma nova qualidade. A forma antiga, que está disponível e
não mostra mudança formal, modifica-se em sua função. (...) O surgimento da nova forma
não supera completamente a forma inerte, mas só modifica (em geral por limitação) o
âmbito de sua aplicação. (...) a evolução literária não deve ser entendida como uma corrente
ininterrupta ou como a herança de um determinado patrimônio, mas sim como um processo
de substituição de formas intercombatentes, acompanhado por mudanças de sentido dessas
formas, avanços aos saltos, interrupções, etc.”14
Para concluir o referido ensaio, Sklovskij declara: “O Formalismo é, para mim, um
caminho deixado para trás, superado em algumas etapas. A etapa mais importante foi
chegar a reconhecer a função da forma literária. Do método formal restou uma
terminologia, da qual todos agora se utilizam. Restou, além disso, um conjunto de
observações de natureza técnica. Na pesquisa da evolução literária a nível social, é
totalmente inútil um diletantismo sociológico. Absolutamente necessário é adquirir todo o
método marxista. Tenho a pretensão de ser um marxista, pois não há filiação a métodos.
Estes querem ser dominados e elaborados.” 15
Em 1976, aos 83 anos de idade, Sklovskij concedeu uma entrevista ao visitar Berlim por
ocasião da “première” de uma nova versão do “Encouraçado Potemkin”16. Afirma aí que, ao
escrever sobre “Como é feito o Don Quijote?”17 (1921), havia se esquecido o para quê este
romance havia sido escrito. Cervantes construiu um fato parodístico, tomando um herói
maluco que declara guerra ao mundo inteiro, mas colocando-se no lado desse “herói”.

                                                                                                               
14
idem – p. 77-79
15
ibidem – p. 80
16
Sklovskij, Viktor. “Über Verfremdung” und anderes in der Kunst” Interview in Weimarer Beiträge, Nr. 10, XXII, Jahrgang,
Berlin, Aufbau V., 1976 – p. 33 ss.
17
Sklovskij, Viktor. “Wie Don Quijote gemacht ist” in Theorie der Prosa, Frankfurt a.M., Fischer V., 1966.
Se, no ensaio sobre Tristam Shandy (1925), Sklovskij18 afirma que a arte não tem
sentimento e que este não pode ser conteúdo da obra porque não ha conteúdo dissociável na
obra, em 1970, ele declara o seguinte: “Naquele tempo, quando eu dizia que a arte não tem
conteúdo e que ela não é emocional, eu escrevia com o coração sangrando livros como
Viagem Sentimental e Zoo. O livro Zoo tem o subtítulo de “Cartas não sobre o amor” porque é
sobre o amor.”19
No ensaio “Literatura sem Sujet” [Literature without a Plot: Rozanov], que também participa
do livro Teoria da Prosa (1925), afirma que “o conteúdo da obra é a soma de todos os
procedimentos estilísticos nela empregados”20. Na entrevista de 1976, Sklovskij declara:
“Naqueles tempos falei dos procedimentos na arte — na arte como artifício. Este termo se
origina de um esquema greco-romano. Foi lá empregado no esporte. Quando eu disse que
uma obra de arte se constitui de uma soma de procedimentos, cometi um erro.
Simplesmente porque há interação entre os diversos procedimentos. Se hoje os
estruturalistas recortam uma obra e a decompõem em partes individuais, comente o mesmo
erro. Porque a interação dos elementos provoca uma negação. Roman Jakobson dividiu (hat
zerlegt*) os poemas de Puschkin e provou que não há imagens na linguagem. Tomando-se,
porém, o poema como totalidade, as imagens tornam-se muito concretas...”21
Em 1976, Sklovskij também rejeitou a tendência, tão divulgada especialmente pelo
“Estruturalismo” francês em nome do Formalismo russo, de que o estudo da literatura seja
uma mera subdivisão da Linguística, que pretende ser a onisciência do saber. A Linguística
não é a dimensão da objetividade dos estudos literários. A Teoria da Literatura, mesmo que
não deva isolar-se dos avanços da Linguística nem possa ignorá-los, torna-se, porém,
ridícula quando apenas macaqueia as andanças dos estudos linguísticos. Com a evolução da
Linguística de estrutural para transformacional, este processo se acalmou um pouco22.
Chomsky, ao contrário de Jakobson, não teve a pretensão de fazer da Poética uma mera
subdivisão da Linguística.
Sub-repticiamente, dois conceitos opostos de estrutura acabaram se impondo. A grosso
modo, um oriundo do Estruturalismo tcheco; o outro do Estruturalismo francês. O primeiro,
um conceito dinâmico e individualizado, dialético; o segundo, abstrato e coletivo, cartesiano.
Um, próprio da obra de arte literária; o outro, adequado ao entendimento de rito, mesmo
quando este se mascara como narrativa com pretensões artísticas.

                                                                                                               
18
Sklovskij, Viktor. “Die Parodie auf den Roman: Tristam Shandy” in Theorie der Prosa.
19
Sklovskij, Viktor. Von der Ungleichheit (…) – p. 174.
20
Sklovskij, Viktor. Theorie der Prosa – p. 165.
* Nota de transcrição: Kothe parece colocar a expressão no original em alemão, derivada de zerleg, que pode ser
traduzida com uma ideia de desmembrar, desmontar.
* Nota de transcrição: Kothe parece colocar a expressão no original em alemão, derivada de zerleg, que pode ser
traduzida com uma ideia de desmembrar, desmontar.
21
Sklovskij, Viktor. Interview in Weimarer Beiträge – p. 35.
22
Sklovskij, Viktor. Von der Ungleichheit (…) – p. 12 e 19.
O Formalismo russo entendeu primeiro a obra como soma, e depois como interação de
seus procedimentos. A obra foi entendida como sistema e, logo como um elemento
participante do sistema constituído pela literatura. O passo básico foi dado por Tynianov23
em 1919, com seus estudos sobre a paródia. O que se procura são as similitudes existentes
entre duas obras: é a semelhança (por identidade) que torna possível a comparação; as
diferenças é que a tornam interessante. Ou melhor, na própria semelhança é que se acaba
descobrindo a maior diferença.
Um verso como “Minha terra tem palmeiras” (Gonçalves Dias) (texto A1) é parodiado pelo
verso de Oswald de Andrade “Minha terra tem palmares” (texto A2. O texto A2 diz em si A2,
diz também o texto A1, e diz especialmente a diferença entre A2 e A1. Quanto maior a
semelhança entre eles, tanto mais se mostra sua diferença. Isto foi muito enfatizado por
Sklovskij. Um momento que Tynianov não destacou, devido às limitações formalistas que o
dominavam naquele momento, é o fato de que os textos não se diferencias apenas
internamente entre si, mas se diferenciam especialmente pelo seu modo de encarar a
realidade. É por isso que aquela pequena diferença formal se torna tão grande de fato. Com
isso, o próprio nível de informação do texto parodiante se amplia muito. É por isso que ele
pode tornar-se perigoso, enquanto instrumento de desmistificação ideológica.
Tyniannov, no referido ensaio, baseia-se no estudo de uma novela de Dostoiévski, cujo
caráter de paródia em relação a certas obras e até à figura de Gogol havia sido esquecido e
que ele procura demonstrar e recuperar. Insiste muito na ideia de que a consciência de que
uma obra é parodia ou estilização pode ser frequentemente esquecido e a obra passa a ser
lida como uma obra comum. Dai a pergunta que ele lança no fim, sobre quantas paródias
não descobertas existem. Praticamente sugere que todas as obras literárias são “paródias”,
são constituídas no diálogo com outras obras.
Toda essa teoria da paródia se constrói sobre o grau de semelhança entre obras. Procura
conseguir, deste modo, estabelecer ligações aparentemente objetivas entre elas e mostrá-las,
mostrar a literatura, como constituindo um sistema. Mas será que as obras literárias
realmente são sistemas? Será que a literatura é um sistema? Ou será que isto é mais um
modo de encarar a obra literária e a literatura do que o próprio modo de ser da obra literária
e da literatura? Será que isso não é mais um decorrência inconsciente de dois milênios e
meio de tradição metafisica e teológica do que a verdadeira realidade literária?
Um sistema pode ser entendido como um conjunto de elementos em interação ordenada
e distintos de seu meio. A categoria da identidade, se encontra aí tanto no caráter
“ordenado” da interação (que não pode, portanto, ultrapassar certos limites — mas como são
fixados esses limites, especialmente no caso da evolução literária e dos modos de entender
uma obra ao longo do tempo e do espaço?), como também na ideia de se ter um “conjunto”
                                                                                                               
Tynianov, Jurij. “Dostoievskij und Gogol” in Die literarischen Kunstmittel und die Evolution in der Literatur, Frankfurt a.M.,
23

Suhrkamp V., 1967.


de elementos (distintos — isto é, com marcos de semelhança entre si e dessemelhança em
relação à sua circunstância). Aparentemente dinâmico por falar em “interação”, o sistema é,
de fato, estático, pois limita e delimita de tal modo a ação de seus elementos que só se tem
ainda uma aparência de movimento.
O sistema tende a esquecer que é apenas um modelo teórico. Para se validar, procura
fingir que é a própria coisa sistematizada. Querendo ser ciência, tende assim a resvalar em
ideologia. É preciso insistir na diferença entre sistema e objeto sistematizado para, ainda se
manter algo um pouco mais próximo à verdade. Esta se eclipsa totalmente quando um é
confundido com o outro.
A mimese tende a acabar zombando da categoria da identidade. Todo sistema se baseia
em alguma identidade fundamental que o organiza e lhe dá coerência. Mimese e sistema
parecem, portanto, contrapostos.
O Formalismo russo e a Escola de Praga encontraram esta identidade na dominante da
obra, (ou também de uma época, de uma escola literária). Ela é o governo interno da obra. E
como governo pretende ser encarada como algo apenas positivo, como o elemento que
organiza e canaliza as forças da obra. Só que em geral não confessa que tudo isto é feito para
que a mesma continue sendo a dominante. Procura eliminar todo o que não se adeque à sua
dominação. As obras de arte são cínicas e hipócritas. Aparentemente utopias concretas
(mundos de beleza e harmonia), são ideológicas: a dominante apresenta a sua ditadura como
democracia, como o governo de todos os elementos que participam da obra. E os homens
foram convencionados a crer nisso. Os elementos reprimidos e eliminados numa obra não
recebem ai as condições para alçar a sua voz ou dar o seu grito. Isto quase não era sequer
perceptível na obra de arte tradicional, a obra orgânica; mas com o surgimento da obra de
arte de vanguarda, a obra inorgânica, pelo mínimo tornou-se possível desconfiar-se de algo
que já estava presente no passado.
Toda Ciência procura organizar-se como discurso sistemático, como um conjunto
coerente em torno de um ou mais princípios fundamentais. Desde Hegel, a Filosofia não
mais organizou sistemas que pretendiam explicar tudo. E isto talvez não só devido à
especialização, mas porque o principio básico de organização era mais um fator destrutivo
do que fator construtivo. Nietzsche deu o golpe de morte de Deus, o princípio organizador
por excelência, a identidade das identidades. Como no passado não era possível falar contra
a Teologia, hoje não se pode falar contra a Ciência. Toda Ciência tende a esquecer que é uma
construção conceitual do mundo e não a própria realidade. Forma conjuntos através da
atribuição mais ou menos arbitrária de propriedades que não são o denominador comum, a
base organizadora deste conjunto sistemático.
Ao se encarar a obra literária, a literatura e a evolução literária como sistema, surge,
porém, o problema de que tal principio regulador, as dominantes, contêm em si o âmbito do
atingível pelo sistema. Não se pode, porém, determinar a priori, por exemplo, o âmbito das
leituras que podem ser feitas de uma obra, o âmbito do que vai ser considerado literatura e o
que vai deixar de sê-lo. A dominante contudo, procura delimitar isto e tende, portanto, a se
contrapor ao impulso mais genuíno do literário. A evolução literária não pode, como o fez
Jakobson24, ser entendida apenas como mudança na hierarquia dos procedimentos. Mimese
e sistema são termos que não se casam sem problemas.
Na natureza, o processo mimético serve para salvaguardar a não-identidade. Assim, uma
borboleta que se assemelha a uma folha, um louva-deus que parece um pedaço de pau, um
insto que parece outro inseto venenoso, o camaleão que toma a cor do seu ambiente — todos
eles aparentam construir uma identidade, mas acabam por salvar e demonstrar uma não-
identidade. Como o enfatizou Adorno, não basta examinar aí o procedimento de construção
de uma identidade: é preciso ver também o momento em que a função disto se manifesta
como não-identidade.
Sklovskij25 adotou o conceito de estrutura enquanto correlação tal das partes que a
mudança de uma acarreta modificações de sentido e significado em todas as outras. Aí é
enfatizado o caráter tensional da obra. Além disso, ele insiste na ideia de que, em arte, o
desigual necessita do semelhante para mostrar seu caráter próprio e poder diferenciar-se.
Também não se deve esquecer a antiga ideia de Sklovskij de que uma obra pode ser
construída em função de um modelo ausente, de um modelo que é propositadamente
ignorado na construção de outra obra.
Se a obra de arte mimetiza a si mesma, ela não é apenas uma identidade, mas também a
negação dessa identidade. Se a arte mimetiza o real, ela nega este real e constrói um outro
mundo. Se ela mimetiza a alma do artista, constrói algo diverso dessa subjetividade. Se uma
obra mimetiza a outras coisas, ela o faz para marcar sua diferença.
Em Sklovskij há sempre ênfase ao momento da ausência de, ao momento da negação, da
construção de outro. Isto é “ostranenie”, isto é mimese. “Ostranenie” é mimese enquanto
negação. A tradição insistiu em ver na mimese só o momento da identidade e não pôde ver
que arte se realiza por negação. Por isso é que a literatura talvez não seja sistema: talvez seja
constelação. A “ostranenie”, assumindo em si aquilo em relação ao que ela se constrói
enquanto estranhamento, enquanto negação, torna-se dialética. Portanto, “ostranenie” é
mimese, mimese é “ostranenie”.

                                                                                                               
24
Jakobson, Roman. “La dominante” in Question de Poétique, Paris, Seuil, 1973.
25
Sklovskij, Viktor. Von der Ungleichheit (…) – p. 68 e 14.

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