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MAURICE AGULHON

PIERRE CMAUNIJ-GEORGES DUBY


RAOUL GIRARDET-MICHELLE PERROT
JACQUES LE GOFF-RENEÍ RElVIOIVI)
PIERRE NORA

ENSAIOS
EGO-HISTÖRIA

lied ïçoes 70
O C O N TEM P O R Â N EO D O C O N TEM P O R Â N EO

R ené R ém o nd

1. Os h isto riad o res n ão se confessam

Com o me tornei historiador? Não há questão aparente­


mente mais banal para um historiador, nem mais próxim a dos
seus hábitos de pensamento ou mais conform e com o tipo de
raciocínio que se tornou para ele uma segunda natureza.
iNão será próprio da inteligência histórica investigar as ori­
gens? Entre todos, o nosso tempo dá mais atenção aos
começos do que aos fins. E, todavia, a questão não encontra
o historiador preparado para lhe responder: se a tentativa lhe
é fam iliar, a aplicação é completamente insólita; não está
acostumado a ser objecto e o pensamento de aplicar ao seu
próprio caso o método que tem um hábito profissional de
praticar sobre os outros desconcerta-o. Os historiadores não
èstão treinados para falarem deles próprios: conhecem-se
muitos que tenham redigido as suas memórias? Se eu, em
duas ocasiões, pareci fugir à regra não escrita que traça uma
fronteira intransponível entre o testemunho pessoal e o traba­
lho do historiador, não foi como historiador; da primeira
vez, prestei-me a um diálogo que se referia a um conjunto de
actividades diversas em que a profissão de historiador tinha
apenas um lugar muito reduzido, apesar de a obra que daí
saiu se intitular Vivre n o tre histoire\ na segunda, analisei uma

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experiência de responsabilidade à qual circunstâncias bastante
excepcionais haviam conferido uma certa dimensão e que
esclarecia alguns dos problemas que decorrem do funciona­
mento de uma sociedade política. É verdade que num e noutro
caso não me desfiz da minha form ação de historiador; como
teria podido fazê-lo? Ainda para mais: ao escrever L a R ègle et
le consentem ent, ao transform ar uma experiência vivida em
escrita, a minha proposta era interpretá-la como historiador.
Mas nem neste caso nem no outro eu era o sujeito: a parte da
confidência e do regresso a si era reduzida a um mínimo.
Se os historiadores não se põem em cena, não se pense
que eles não têm nada para narrar. Uma longa tradição
ensinou-os a desconfiar da subjectividade, da sua, assim como
da dos outros; conhecem por experiência a precaridade da
recordação, a fragilidade do testemunho; conhecem pela pro­
fissão a propensão inconsciente de cada um para introduzir
na curva da sua existência uma coerência emprestada. Não
têm a presunção de se quererem mais defendidos contra essas
deformações; não têm a certeza de desmanchar as armadilhas
da memória que aprenderam a descobrir nos outros.
Educado no respeito pelas regras da crítica, habituado
às práticas da profissão, o historiador apanhou, portanto,
o jeito de refrear a sua subjectividade. Nisso é ajudado pela
convenção de escrita que lhe proíbe normalmente o recurso
ao pronome singular e lhe impõe a utilização do «nós». Esta
utilização universitária não tem nada a ver com o plural
majestático que os grandes deste mundo usam: seria antes um
«nós» de modéstia e de humildade intelectual. Para além da
sua função propriamente pedagógica que associa o ouvinte
ou o leitor à sua tentativa, o «nós» preserva o pudor do
historiador e impede-o de ultrapassar os limites; sobretudo,
permite-lhe ficar no anonimato por detrás da impessoalidade
da comunidade científica: as suas conclusões só exprimem
aquelas a que teria chegado qualquer dos seus colegas que se
tivesse conform ado com os preceitos do método. Esse plural
implica um certo acto de fé na universalidade da verdade
histórica e a convicção de poder alcançar uma determinada
objectividade tem por corolário a evicção da subjectividade.
Esta confiança na objectividade sofreu, é verdade, revezes.
De há meio século para cá, os historiadores tom aram cons­
ciência da ilusão positivista: sabem que a sua curiosidade

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é orientada pelas inclinações do seu tempo e que a sua apre­
ensão do passado é tributária da cultura da sua geração.
Mais recentemente, o espírito de 68 radicalizou a crítica; não
há nenhum daqueles que tiveram então auditórios que não
tenha sido intimado a explicar-se quanto aos seus «pressupos­
tos»: fo i preciso que indicasse, segundo o calão da época reti­
rado de pseudo-vocabulário filosófico, «de que lugar falava».
Crítica seguramente excessiva, alibi cómodo para evitar a as­
cese do acesso a uma certa objectividade e im por aos outros
os seus preconceitos com o verdades. M as contestação que
impõe ao historiador um dever mais im perativo ainda de
refrear a sua subjectividade.
Que interesse, ainda para mais, poderia ter a narração do
seu itinerário? O historiador só atribui um interesse limitado
aos destinos individuais; para o provar, o descrédito em que
caiu o género biográfico. A predilecção pela história de ponta
vai toda para os fenómenos colectivos em que se baseia a ac­
ção dos indivíduos. M as é precisamente esta articulação da
iniciativa pessoal com a evolução de conjuntos mais vastos
que pode vencer a perturbação do historiador incitado a
produzir o seu testemunho e a vencer escrúpulos que nascem
da sua profissão. Uma coisa, de facto, é descrever-se na sua
singularidade, como se ela fosse um objecto único no mundo
e outra coisa, tom ar lugar ao lado de outros numa série, cuja
fdiversidade plural relativiza ipso f a c to cada experiência. A lei­
tura destas vias paralelas fará talvez aparecerem convergên­
cias, surgir parentescos cuja percepção escapava à consciência
de cada um: irá premuni-los contra a tentação de se apro­
priarem como mérito pessoal do que não é, sem dúvida,
senão uma expressão de um tempo, a manifestação de uma
idade do pensamento e da investigação históricos.

2.

Então, como me tornei historiador? De facto, torna-


mo-nos historiadores alguma vez? Haverá um momento da
carreira em que seja legítimo falar disso como de um pro­
cesso a partir de então alcançado? Como de um estádio
ultrapassado? Se a inteligência histórica se define mais por
uma atitude de questionamento do que pela posse de uma
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som a de conhecimentos, não acabamos nunca de nos tornar­
mos historiadores: não é um estado como o de engenheiro ou
prefeito.
A ambiguidade da questão chama uma primeira distin­
ção (distinguir é uma parte do trabalho do historiador).
Se por historiador se designa uma profissão, só me tornei
historiador tardiamente e por fases. O mesmo não acontece
se o termo qualificar uma orientação da curiosidade intelec­
tual; parece-me que sempre o fui. O encontro da actividade
profissional e da disposição intelectual só se deu progressiva­
mente e as circunstâncias tiveram uma parte determinante.
O ensino da história não foi, para mim, uma vocação
irresistível: não ouvi nenhuma voz que me dissesse «serás
historiador, meu amigo», nem cedi a um impulso interior.
O êxito escolar, que é frequentemente um indicador na
origem de numerosas carreiras de historiadores, não falava
uma linguagem clara. Quando tive de me pôr, pela primeira
vez, a questão da escolha de uma profissão, creio lembrar-me
de que o am or à natureza, o gosto pelas marchas na floresta
me levavam antes para as águas e florestas. M esmo depois de
me ter orientado para o ensino, não tinha decidido entre
as letras e a história: durante todo o meu 10.° ano, na rua de
Ulm, tentei m anter a escolha em aberto e foi com pena que
renunciei ao contacto assíduo com as literaturas, medindo
a extensão do que deixava. Sem dúvida que me restam, hoje
em dia, desse am or pelas letras alguns traços que se encon­
tram talvez na minha obra e na tentativa de historiador:
a atenção para as palavras, uma maneira de as palpar, de
as manipular com o calhaus, de as abrir como frutos para
extrair o seu suco, a convicção de que elas encerram uma
substância preciosa para o conhecimento de um tempo ou de
uma fam ília de espírito. Se consagrei depois um a parte dos
meus trabalhos à história das ideias, é à herança do 12.° ano
e à sua pluridisciplinaridade que eu o devo. Também aí
contraí o gosto pela escrita, um sentido agudo do que separa
para sempre um texto escrito de um texto sem qualidade
literária, o desejo agudo de encontrar o term o correcto, do
prazer para com por as palavras, o desagrado também, até
ao torm ento p or vezes, de não conseguir atingir o grau de
precisão e de perfeição cuja existência sinto confusamente
e talvez algumas felicidades de escrita.
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Teria podido fazer outras coisas e encontrar aí satisfações.
Talvez mesmo não me saísse muito mal. M esmo que isso me
desconsidere aos olhos de alguns colegas ou estudantes para
quem a dignidade do espírito não é compatível com uma
profissão activa, por m aioria de razão a das armas, confesso
ter sido bastante feliz no tempo do meu serviço m ilitar apesar
das circunstâncias (1939-1941) e ter tom ado o gosto pelo
exercício de um comando modesto — era aspirante — que
não deixei sem alguma pena. M ais tarde, pertencer ao Con­
selho Superior da M agistratura, dando-me múltiplas ocasiões
para descobrir a profissão de juiz, provocou-m e também
muito interesse. As circunstâncias que me puseram à frente de
uma grande universidade e conduziram a que exercesse uma
responsabilidade, à qual a situação política conferia uma
dimensão singular, revelaram-me, a mim mesmo, certas ca­
pacidades de adm inistrador e aptidões para dirigir uma colec-
tividade que não im aginava possuir. Um longo contacto com
os m ed ia também me persuadiu de que não teria sido inapto
na profissão de jornalista, mas não é esta, na verdade, uma
variante da de professor? Da diversidade destas possibilidades
vem provavelmente que eu me sinta, vulgarmente, estranho aos
reflexos corporativos. Talvez essa ausência seja também devi­
da ao facto de ter sempre pertencido simultaneamente a vários
círculos, praticando a diversidade dos laços e das actividades.
Se, portanto, só sou para o ensino da história uma «voca­
ção tardia», em nenhum instante da minha carreira profissio­
nal lamentei essa escolha. Chegarei mesmo a dizer, como um
dos meus colegas atirou em 68 aos estudantes esta afirmação,
como um desafio cujo fervor me impressionou, que é a mais
bela das profissões? Estou demasiado consciente da relativida­
de das situações para não hesitar perante o superlativo que
implica uma comparação da qual estou longe de ter todos
os^elementos. Mas que é uma boa profissão, seguramente.
Ela reúne entre outros, dois atractivos que tive ocasião de
verificar, relativamente a outros exemplos, como cada um
deles é raro e a sua reunião mais ainda. Poucas profissões se
prestam tão bem à união da actividade profissional e de uma
actividade intelectual: não há necessidade de arranjar, à mar­
gem, um jardim pessoal. A outra vantagem é bem conhecida:
a independência. Ela não tem igual e singulariza o universitá­
rio no serviço público. Não é preciso lutar pela carreira.
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A liberdade de exprim ir o pensamento é completa: não há
que se censurar. Tem apenas de velar para que essa indepen­
dência não se transform e em irresponsabildade! Ela não
deve dispensá-lo de verificar os seus dizeres, de pesar as suas
palavras, de calcular os efeitos das suas afirmações. Se não
tenho reflexos corporativos, defendi apaixonadamente a inde­
pendência da instituição quando estava encarregue dela, para
com e contra tudo, amigos ou inimigos.
A distinção entre a história como orientação de espírito
e a história, como objecto de actividade profissional dos
professores não explica inteiramente a realidade concreta.
Se o meu testemunho é solicitado, não é como professor.
É devido a uma terceira dimensão que não depende de nós,
mesmo para quem tenha o gosto pela história ou pelo ensino:
podemos muito bem ensiná-la com talento sem a escrevermos
nem lhe juntarm os nada de nosso. A o preparar exames
e concursos que fariam de mim professor, não pus a mim
próprio a questão. Mesmo no momento de fazer um a tese,
não tinha a certeza de o conseguir: teria eu um propósito
firme? Em todo o caso não imaginava o mundo de livros que
viria a escrever.
Possam estas distinções sublinhar o aspecto frequen­
temente fortuito de um destino! Sem dúvida que há his­
toriadores que, desde jovens, juraram a si próprios edi­
ficar um a o b ra e nunca encararam outro fu tu ro, mas
estarei eu errado ao presum ir que, para outros, o seu
futuro de historiador foi forjado com a junção de cer­
tas disposições intelectuais e circunstâncias que não
previram nem solicitaram? Se assim é, cada historiador tem a
sua própria história e a sua formação é feita por fases: a
contingência não esteve ausente. É, portanto, ser fiel à inteli­
gência histórica, saber discernir na sua própria existência o
carácter circunstancial do seu futuro.

3.
Se para a actividade profissionál me coloco entre as voca­
ções tardias, para a habilidade do espírito, em contrapartida,
por mais longe que vá na exploração das minhas recordações
conscientes, encontro história.
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Isto não está desprovido de equívoco: o gosto pela história
pode nascer de motivações muito diferentes, quase contradi­
tórias, cuja diversidade a observação das razões pelas quais
o público se interessa por ela nos mostra. Ele provém de duas
fontes principais. A curiosidade pelo passado acorda vulgar­
mente com a descoberta de que a história não começou com a
sua geração e que o universo não pára nas fronteiras do mun­
do que lhe é fam iliar. A partir dessa tom ada de consciência,
o interesse pela história pode tom ar duas direcções opostas.
Uma liga-se de preferência às diferenças: a história desco­
bre-nos os «algures» e os «noutros tempos». O gosto pela
história assemelha-se, então, ao am or pelas viagens longín­
quas: não é substancialmente diferente, no seu princípio, da
paixão que atira os homens para os caminhos da aventura
e que faz os exploradores. A procura da história está, assim,
próxima do gosto pelo exotismo: ela é investigação da deslo­
cação. Sublim ada pelo desejo de conhecer, ela inspira a ar­
queologia ou a etnologia; é essa espécie de curiosidade que
explica o gosto do grande público pelas civilizações desapare­
cidas; espera-se da história que faça esquecer as tristezas do
tempo, que faça sonhar. Mais de um historiador sentiu, assim,
acordar a sua vocação para o estudo do Egipto antigo no
l.° ano do liceu. Que criança um pouco im aginativa não
viveu um dia, em pensamento, na leitura de um romance
, histórico, com as suas personagens ou não lamentou por
algumas horas não ter podido partilhar o destino de um
herói de ficção ou que tivesse realmente existido? Se se
investigassem ás origens da vocação dos historiadores, aposto
que se encontraria, muitas vezes, a influência difusa de leituras
da infância ou da adolescência. Na exploração do nosso
íntimo, onde se enraízam as origens dos destinos intelectuais,
não se saberia dar muita im portância a essas leituras, assim
como não se poderá, para os futuros historiadores, negligen­
ciar a influência das emissões de televisão ou de bandas dese­
nhadas: para a minha geração que só conhecia ainda a galá­
xia de Gutenberg e para quem a leitura era o m odo principal
de acesso ao conhecimento do mundo, as nossas bandas dese­
nhadas eram os romances para a juventude. A meio século de
distância permanece ainda viva a lembrança das minhas impres­
sões da leitura do romance do cardeal Wiseman, F ab io la.
Lembro-me de um rom ance cujo título esqueci, lido com
293
11 anos, e que evocava a resistência dos gauleses à ocupação
rom ana; foi muito antes do Astérix! A história da Polónia
permanece ligada, na minha sensibilidade, a um romance de
Sienkiewicz, que devia intitular-se P ar le f e r et p a r le fe u e que
narrava as guerras do século XVII que opunham os cossacos
de Chmielnicki aos nobres polacos: tempos cruéis onde a
hostilidade das raças era aumentada por uma guerra social.
Há um outro modo de tom ar consciência da história:
a percepção da continuidade através da sucessão das gera­
ções, o reconhecimento de uma herança que não depende de
nós rejeitar. Todo o estudo do passado se torna, então,
investigação das origens: é pedido à história não deslocar-nos,
mas esclarecer-nos sobre nós mesmos revelando-nos as nossas
raízes. Espero não sucumbir à deformação retrospectiva
atribuindo mais peso, na minha descoberta da história, a esta
segunda abordagem. Parece-me, com efeito, que a intuição
da duração foi a primeira: desde que acorrem à minha
lembrança recordações pessoais, o que surgiu em primeiro
lugar foi o sentimento de vir após, de suceder a outros, de
chegar a uma terra povoada há séculos, arranjada por gera­
ções, de me inscrever numa direcção imemorial. Neste aspecto
não mudei: é certo, este sentimento adquiriu, com os anos,
uma form a mais elaborada, mas a minha convicção racional
de que não há, na aventura humana, começo absoluto nasce
nesse primeiro sentimento; daí, a minha desconfiança instintiva
relativamente a utopias que ambicionam voltar a partir do
zero, a minha reserva reflectida pelos sonhos de tábua rasa.
Para uma criança, a ideia de continuidade na duração não
é um princípio abstracto; ela imita aparências concretas, em
relação ao universo que lhe é fam iliar: a sua família, a região
a que está ligada, as tradições em que é educada — numa
palavra, tudo o que a particulariza. A fam ília? Com 10 ou
11 anos ganhei um interesse vivo pelos antecedentes familiares
e escolhi avidamente tudo o que podia saber sobre os meus
antepassados. Originário do Franco-Condado, sem nunca lá
ter vivido muito tempo, ganhei uma afeição sincera pela
história da província e as virtudes da raça: devorei um
romance histórico de X avier de Montépin, L e M édecin des
p au v res, que se inspirava, com alguma liberdade, num episó­
dio da resistência dos camponeses do Ju ra aos Suecos pagos
pela França e exaltava o herói lendário da guerrilha contra os

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Cinzentos de Saxe-W eim ar, cujo sobrenome era La Cuzon,
e tinha algum orgulho numa tradição familiar, cujo grau de
verdade tinha dificuldades em afirm ar, que pretendia que
os meus antepassados tivessem algum parentesco com ele.
Meus pais assinavam uma revista regionalista que devia
chamar-se L e P a y s com tois e cujos fascículos lia do princípio
ao fim. Mais tarde, interessei-me pela originalidade dessa
região, pelas suas tradições cooperativas, pelos seus pomares,
pela sua geografia política. Se cada um traz em si, como Jean-
-Pierre Richard afirm a, uma paisagem interior que exprime
as suas afinidades mais secretas, a minha retira alguns dos
seus elementos ao alto Jura: conheço um sítio por cima de
Morez que associa simplesmente uma quinta de porta grande,
redonda, alguns abetos, uma vista sobre o longínquo, onde
domina o azul, que resume para mim a região dos meus ante­
passados. Depois, a minha paisagem diversificou-se: a Borgo-
nha, a Provença, a Savóia vieram, uma de cada vez, enri­
quecê-la.
Quanto às origens menos locais, mais fundamentais para
a personalidade, nasci na confluência de duas grandes tradi­
ções que tinham corpo na minha infância: uma fazia-me
francês, a outra católico. Se mais tarde percebi, a pouco
e pouco, que nem uma nem outra eram conjuntos homogé­
neos e aprendi a distinguir nelas culturas e paróquias entre
as quais fiz escolhas, nunca fui tentado a rejeitar uma ou
outra. Com o risco de parecer um conformista inveterado
aos mais jovens que têm orgulho em evadir-se da tradição em
que nascem e que acham ser necessário, para adquirir uma
identidade pessoal, recusar toda a herança, nunca pensei
renegá-las: pela razão, precisamente, que acedi ao sentimento
da história pelo conhecimento das minhas raízes e que desde
aí não cessei de investigar as suas riquezas e de inventariar
a sua diversidade.
Se o sentimento da continuidade e o sentido da duração
desenharam, assim, o eixo da minha reflexão sobre a histó­
ria desde os começos, a sua conotação evoluiu entretanto
e a exigência da sinceridade que implica o presente exercício
obriga-me a parar nessa evolução. Esperando não rectificar
demasiado a curva do meu itinerário, parece-me poder distin­
guir — do ponto de vista das filosofias implícitas que acom­
panharam esse sentimento da história — duas ou três idades,
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um pouco como se destacam, na obra de um pintor ou de um
músico, períodos sucessivos.
Uma primeira idade privilegiou a permanência e preferiu
ao efémero presente em mudança o que manifestava a pereni­
dade dos tempos antigos: lendo H istoire de la cam pagne
fra n ç a ise , de Gaston Roupnel, descobri, com uma espécie de
admiração, que o traçado dos nossos caminhos vicinais se
casava e perpetuava, em pleno século XX, a rede desenhada
pelos nossos antepassados do neolítico e, na pequena vila do
Châtillonnais onde passava os meus verões, dedicava-me
a decifrar a linguagem milenária dos carreiros pedidos em­
prestados, para me associar aos trabalhos dos campos: por
essa razão fui atraído, a certa altura, pela história agrária
como sendo a mais imutável. Ligado a tudo o que prolonga
em nós e no nosso tempo os séculos desaparecidos — vestígios
materiais, monumentos, lembranças conscientes, hábitos in­
conscientes, usos, crenças — , temia o seu progressivo desapa­
recimento e desejava que todos os meus contemporâneos ace­
dessem a um conhecimento explícito dessa presença da histó­
ria. De resto, poderá ser-se plenamente historiador sem temer
pela sobrevivência do que atesta a continuidade? É provavel­
mente a preocupação de não deixar desaparecer o mínimo
traço do que os homens pensaram, sentiram, viveram, que me
impede de destruir os papéis, embora corra o risco de me
deixar submergir por uma maré de impressos. Temia a mu­
dança que ameaçasse alterar a pureza das tradições, apagar
a memória dos séculos. Esta inclinação para conservar era
anterior a toda a ideologia: simples consequência da aceita­
ção da duração e da ligação ao que a manifesta. Esta
valorização da permanência teria podido conduzir-me, como
a muitos, a abraçar uma filosofia política conservadora:
preservar e conservar são duas palavras da mesma família
e o escorregar de uma para outra opera-se por si só tanto
mais facilmente quanto uma educação cristã, para quem
a Tradição tem um carácter religioso, levava, na época,
a sacralizar o passado.
Mas, ao contrário das escolas que fazem considerar a tra­
dição como regra absoluta e das ideologias reaccionárias, a
minha ligação não com portava restrições nem form ulava re­
jeições: era autêntica e integralmente respeitadora do passado,
de todo o passado, e honrava com uma mesma piedade todos

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os capítulos da história; não sonhava cerceá-la devido a con­
siderações políticas. Apanhava a história em bloco. A minha
obra de historiador guardou qualquer coisa disso: interessei-me
pela direita assim como pela esquerda e creio ter simpatia por
todas as experiências sem excepção, com um fraco pelos ven­
cidos que me levaria a tom ar a defesa das causas perdidas,
dos regimes que perderam e a denunciar como falsas as lendas
negras.
P ara mais, em vez de — como acontece frequentemente
com os turiferários da tradição — a referência à herança
e o culto do passado terem como corolário o ódio ao presente
e a execração da modernidade, sempre tive uma queda pelo
tempo em que o acaso — ou a Providência — me fazia viver.
Se, como creio, a atitude em relação ao seu tempo é um
critério que discrimina dois tipos de espíritos, eu pertenço
sem contestação à raça que crê nas suas virtudes e nas suas
possibilidades, e que tem um interesse de princípio pelos
acontecimentos contemporâneos. Dificilmente conseguiria pas­
sar sem a leitura dos jornais. Em criança, inquietava-me com
a possibilidade de acom panhar numa outra vida o que se pas­
saria neste mundo e de me manter ao corrente das sequências
de acontecimentos cujas premissas se teriam vivido nesta terra.
O interesse pela história sempre esteve estreitamente ligado
à atenção à actualidade: puderam expandir-se nos meus traba­
lhos sobre a história do tempo presente. .
Numa segunda idade, cujas linhas se desenharam em
pontilhado desde antes da guerra, mas cuja expansão faria
datar do fim daquela, deixando de temer pela continuidade,
receei quase em prim eiro lugar a recusa da mudança que seria
sinal de uma incapacidade para nos adaptarm os às necessida­
des do tempo. Antecipava-m e, assim, sem o saber, no tema,
que viria a conhecer de seguida um a bela sorte intelectual
e política, da «sociedade bloqueada»: hoje em dia faria algu­
mas reservas a esse respeito, pois a fórm ula não faz justiça
às iniciativas e às inovações de entre as duas guerras. Sob
influências intelectuais que precisarei e sob o choque da
derrota e da ocupação, a preocupação com o futuro ganhou
à fidelidade ao passado. Sem a repudiar, no entanto: a recusa
da mudança era a certeza do declínio e uma form a de trair
a herança. Nos primeiros anos do pós-guerra, levantei avida­
mente todo o indício de uma vontade de renovação; nas

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minhas deslocações através da França para conferências,
observava, ao longo das linhas de caminho de ferro, sinais da
modernização: as obras de construção civil, os trabalhos da
SN CF para electrificar a linha, arranjar as estações, assim
como, na periferia das aglomerações, as construções novas,
o arranque dos grandes conjuntos que m ostravam que a
França se decidia a rom per finalmente com trinta anos de
inacção imobiliária e acom panhava o progresso das curvas
estatísticas. A o evocar estas recordações antigas, lembro-me de
que o tema de que me veio à ideia para o quarto colóquio de
história contem porânea organizado pela Fundação Nacional
de Ciências Políticas, em 1981, sobre a modernização da
França entre 1944 e 1952 teve, sem dúvida, a sua origem nessa
atenção ansiosa do jovem agregado que investigava febril­
mente os sintomas do rejuvenescimento do seu velho país.
Assim se confundem, numa vida de historiador, preocupações
imediatas e investigação desinteressada. Em todo o caso,
a minha visão da história modificara-se: a importância deslo­
cara-se da permanência para a mudança e, sem repudiar
a primeira simpatia pelos prolongamentos dos séculos passa­
dos no nosso tempo, integrava a evolução.
Se tivesse de constituir um terceiro tempo no meu itinerá­
rio, ele distinguir-se-ia do precedente por um certo regresso
à continuidade que não deve nada à inclinação conservadora
onde se vê geralmente um efeito da idade: é apenas o resulta­
do da meditação sobre a história contemporânea, o fruto da
observação assídua da actualidade que manifesta, com uma
força singular, a persistência de certas realidades. Quanto
mais observo o meu tempo, mais discirno as sobrevivências
do passado. Quanto mais reflicto nos ensinos da história,
mais sou tocado pela capacidade de durar de um certo
número das suas componentes. Por exemplo, as personalida­
des nacionais que a história forjou: se há uma realidade em
relação à qual a experiência das últimas décadas demonstra,
com a força da evidência, que é capaz de resistir a todas
as acções de destruição, não é o facto nacional? Irlanda,
Polónia, Arm énia ou a nação Curda, alguns casos tirados
entre cem povos cuja identidade persiste, mesmo privada de
existência jurídica, e sem o recurso de um Estado. Que em
nenhum lado o comunismo conseguiu obliterar o sentimento
de pertença a um a comunidade cujo princípio é a nação,

298
mais forte do que a solidariedade de classe, parece-me um dos
desmentidos mais irrefutáveis à pretensão do marxismo de
ser uma ciência. As ideias também têm uma vida dura: faz
muito tempo que, seguindo a história de algumas delas, fiquei
surpreendido com a sua longevidade. É certo que, com
o tempo, algumas ideologias mais antigas deixam de ser
forças capazes de mobilizar massas, mas, no entanto, não
desaparecem: elas deperecem mas não morrem. Não há
nenhuma que não conserve um núcleo de fiéis que persistem
em ver nela a resposta a todas as questões que o homem põe
sobre o seu destino. No que a tal respeita, o inventário das
ideologias de um país como o nosso é um museu prodigioso
de formas históricas.
Este reconhecimento da presença do passado num presente
a cuja novidade continuo a dar atenção será o termo do meu
itinerário? Seria presunçoso pensar que a minha formação
está completa: não terei mais nada a aprender da história?
Sem preconceber o que está para vir, a sucessão desses três
períodos teve incidências na minha obra. O facto de ter sido
dada im portância, sucessivamente, à fidelidade à tradição
e à abertura à mudança ajudou-me a compreender mentalida­
des tão afastadas uma da outra como a ligação nostálgica
a um passado feito, que inspirou os fiéis da antiga monarquia,
e o sonho utópico das escolas todas viradas para um futuro
que imaginam radioso. Esta trajectória deu-me uma concep­
ção da história com o reconhecimento, a todo o instante e em
cada situação, da associação íntima da continuidade e da
renovação: as proporções variam e não é a menor virtude da
inteligência histórica ensinar-nos a discernir, num tempo, uma
sociedade e as suas partes respectivas.

4.. Os alicerces p sico ló g ico s

Se o sentimento da duração histórica esteve presente


desde as origens da minha form ação intelectual, talvez tenha
encontrado algumas conivências em disposições psicológicas:
para além de uma propensão para reflectir sobre o mistério
do tempo, uma facilidade para me m over na temporalidade
e uma inclinação para medir o seu escoamento. Parece-me
que, desde o ponto mais longínquo da minha vida consciente,
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fiquei como que fascinado pelo facto das nossas existências,
individuais ou colectivas, se inscreverem no tempo e desenro­
larem uma sucessão de instantes irreversíveis, de cada um dos
nossos actos se encontrar, por isso, situado num momento
singular da duração, e de essa posição não ser indiferente:
a contingência provoca efeitos determinantes na nossa perso­
nalidade, bem como no curso das coisas. Uma investigação
de três anos conduzida em seminário teve como tema: dura­
ção, memória e política. Creio bem ter tido esse sentimento
do relevo histórico desde a minha mais tenra idade apesar das
asserções de certos psico-pedagogos: não liguei importância
quando os ouvi dizer que uma criança não adquiria o sentido
do tempo antes dos seus 11 anos; seria mesmo esta inépcia
erigida em dogma que estaria no princípio do relegar, no
ensino prim ário, da história para o nível de disciplina dita de
informação com as consequências que se conhecem. Nada
me parece menos cientificamente provado, a avaliar pela
experiência dos meus netos. As crianças têm, muito novas,
o sentido do antes e do depois: sabem distinguir bastante cedo
entre um passado próxim o e um passado mais afastado.
Resta ao ensino, afinando a sua acuidade e utilizando a sua
memória, Completando a percepção imediata do tempo pes­
soal pela iniciação ao tempo histórico, desenvolver esse
sentido que, negligenciado, não deixaria de se atrofiar: será
de espantar que, por não o exercitar, julguemos descobrir
a incapacidade dos jovens espíritos para assimilar o sentido
do tempo?
Uma vez que os tempos se medem aritmeticamente e se
exprimem por datas, não foi, sem dúvida, indiferente que eu
sempre tivesse mantido relações amigáveis com os números
tanto como com as palavras. Que não se enganem a este
propósito a ponto de me atribuírem dotes matemáticos! Teria
sido um medíocre aluno de ciências e foi talvez uma razão
inconsciente para nunca ter sido tentado a fazer a história da
economia, em bora me não desembarace pior do que outros
na leitura e interpretação de dados estatísticos. Mas os núme­
ros têm, para mim, uma existência; gosto bastante do cálculo
mental; tenho prazer em compulsá-los, adicioná-los, subtraí­
dos, multiplicá-los, compará-los. Esta disposição foi-me mui­
tas vezes útil, p or exem plo, nas noites de eleições para
comentar os resultados e avaliar as tendências. A minha
300
aritm om ania fica feliz por se aplicar à cronologia. Se não
tivesse sido historiador, teria sido cronólogo; duvido que se
possa ser um historiador completo sem uma certa facilidade
para se deslocar com agilidade na escala do tempo medida
pelas datas: estas têm, para mim, uma existência, um relevo,
uma individualidade. Com o as vogais para Rimbaud, as datas
têm para mim uma cor que as singulariza e quase um sabor
original: os milésimos têm, assim, uma personalidade. Dotado
de uma m emória bastante boa, cuja precisão pode, por vezes,
ir até ao dia do mês, eu estou precavido contra os anacronis­
mos por ignorância ou por confusão. Isso tornou-se para
mim como uma segunda maneira de calcular as durações de
um regime ou de um governo, de avaliar os intervalos, de
medir os atrasos, de dividir o tempo em segmentos. Outro dos
meus seminários referiu-se à duração dos «estados de graça»,
ou seja, do crédito aberto pela opinião a um chefe de Estado
ou de governo, ou a uma nova maioria. Os exercícios de
periodização divertem-me: sem me deixar iludir pelo arbitrá­
rio que preside à operação, creio que ela é reveladora de
certos ritmos e tenho prazer em voltar a pôr em questão
as divisões convencionais.
Esta atenção às datas aplica-se às existências individuais:
ela exerce-se em particular nas relações de idade entre as pes­
soas. Creio que é importante a distinção entre as gerações; elas
não se definem apenas pela sua data de nascimento, carac­
terizam-se também, e talvez em primeiro lugar, pelo estado de
espírito e as preocupações que guardam do momento em que
acederam à consciência política e foram intimadas, pelo acon­
tecimento, a definirem-se em relação à conjuntura da época:
o caso Dreyfus, a Grande Guerra, o 6 de Fevereiro ou a
Guerra de Espanha, a derrota de 40 e a Libertação, Diên Biên
Phu, o regresso do general, a guerra da Argélia ou a crise
de 1968, tantas marcas decisivas. A profissão de professor
é, a este respeito, um bom observatório: ela desenrola sob os
nossos olhos a sucessão rápida das gerações; só a partir de
1968 não enum ero menos de quatro ou cinco gerações de
estudantes que tudo diferencia. Quando animava uma confe­
rência do l.° ano no Instituto de Estudos Políticos, pedi, no
começo do ano, aos jovens estudantes que contassem a sua
primeira recordação política; experiência instrutiva na sua
repetição sobre uma quinzena de anos; vi assim avançar, num
passado impessoal, sucessivamente, o fervor da Libertação,
as esperanças de renovação da pós-Libertação, os inconve­
nientes da restauração, as esperanças do mendesismo. Pre­
ciosa lição de coisas para um historiador!
Esta sensibilidade para a dimensão tem poral tem a sua
correspondência na escrita. São grandes os recursos da nossa
língua nesse dom ínio; oferece um registo mais rico do que
muitas outras. P ara o m odo indicativo dispomos de cinco
tempos: presente, im perfeito, pretérito perfeito, pretérito per­
feito com posto, e não esqueceremos o precioso futuro que
permite exprim ir um jogo subtil de relações entre os aconteci­
mentos. Aos quais convém ju n tar os tempos passados do con­
dicional e do conjuntivo, mais o infinito histórico, essa curio­
sidade. Que variedade e que leveza de que o historiador teria
grande dificuldade de se privar! D eploro que se contentem
demasiado frequentemente com o presente, que não é o tempo
da história: ele desvanece a perspectiva, põe no mesmo plano
as intenções e a sua realização, os anúncios e as realizações.
Não se concebe um historiador que não tenha o sentido
do tempo. Talvez não seja menos im portante que saiba
tam bém raciocinar no espaço: não vivem os homens num
quadro espacial? A política dos Estados não é grandemente
determ inada pela sua posição à superfície do globo? É esta
articulação do tem po e do espaço que justifica que em
França história e geografia tenham sido unidas no ensino
e que a iniciação à geografia tenha sempre feito parte da
form ação dos futuros, historiadores: interessa que os historia­
dores saibam ver os lugares e m ovim entar-se no espaço tão
facilm ente com o se deslocam no eixo do tempo.
Pertenço à prim eira fo rn a d a de agregados que só são
historiadores, mas a m inha geração é um a das últim as para
quem a geografia fo i um a disciplina de cu ltura geral: assisti­
mos aos últim os lam pejos da grande escola de geografia
francesa que fez d a sua disciplina um a abordagem privilegiada
do conhecim ento das sociedades hum anas, de V idal de La
Blanche a Pierre Georges. É a um ponto através do qual me
sinto p ró xim o de um Lucien F ebvre que consagrou um dos
seus prim eiros livros a um a reflexão sobre a terra e a evolu­
ção hum ana. É certo que, tal com o m uitos historiadores,
sofri com os cortes geológicos e se no concurso não houvesse
apenas um a dissertação de geografia, nunca teria sido agre-

302
gado. Estou, no entanto, grato à geografia por me ter ensinado
a dar valor à posição no espaço e a considerar as influências
do ambiente circundante sobre o decurso dos acontecimentos.
Acontece que, tal como para a duração, certas disposi­
ções de espírito eram como pedras de espera: um sentido
bastante seguro da orientação, alguns dons de observação,
uma boa memória topográfica, um a sensibilidade à diferença
dos lugares. A partir do secundário aprendi a variedade dos
países pequenos que compõem a diversidade francesa. Gostava
de, em férias, em viagem, verificar no local tudo aquilo cujas
noções o liceu me ensinara: Faucigny e as suas tradições
relojoeiras, Confolentais ou Bassigny tom avam -se mais do
que abstracções ou unidades administrativas e ganhavam
rosto de realidades concretas. Aprendi a reconhecer uma
região pela inclinação de um telhado, a curva de uma colina,
o desenho de uma janela, a cor das pedras.
Esta sensibilidade para os lugares e o gosto de ver os ho­
mens no seu ambiente fixaram-se em prim eiro lugar no
mundo da terra. Talvez porque este se espalha mais no
espaço enquanto a cidade nos liberta dos condicionamentos
naturais, mas também porque a escola francesa de geografia
estava naturalmente mais virada para a observação das
paisagens do que para o estudo das aglomerações: o T ableau
de la F ran ce, de Michelet, o de Vidal de La Blanche, o livro
breviário, de Emmanuel de M artonne, sobre L es R égio n s
géographiques d e la F ran ce eram outras tantas descrições do
campo. Li, com paixão, para além de H istoire de la cam p agn e
fran çaise, de Róupnel, o E ssai, de R oger D ion, s u r la
fo rm atio n du p a y s a g e ru ral, assim com o o seu ensaio breve
mas tão rico sobre as fronteiras, e de M arc Bloch o E ssai su r
les caractères de l’h isto ire ru ra le fra n ç a ise .
Com os anos, a minha sensibilidade tornou-se tão urbana
como rural. Seria demasiado simples explicar este deslizar do
campo para a cidade pela simples passagem da idade onde
o meu sentimento da história, preocupando-se com a perma­
nência, devia preferir a ordem eterna dos campos, àquela
em que se tom a descodificação da mudança e procura da
modernidade. De resto, essa atenção ao fenómeno urbano
não diminuiu a minha simpatia pelo campo. Pelo contrário,
a filiação num movimento irmão daquele que teve uma parte
capital na revolução da agricultura francesa, a Juventude

303
A g ríc o la C a tó lic a , estreitou-as. Um a co lab o ra ção de
vários anos com os seus dirigentes, amizades duradouras
travadas com alguns dòs responsáveis actuais pelo mun­
do rural, a minha participação nas sessões de formação
organizadas pelo Instituto de Form ação dos Quadros
Camponeses (a acção de form ação contínua mais exi­
gente e mais conseguida que conheço) deram-me um certo
conhecimento das realidades e dos problemas do mundo
agrícola. Tal com o outros historiadores têm uma incli­
nação esp o n tân ea p a ra o m ovim ento tra b a lh ista , as
minhas afinidades levam -m e para o m undo rural cuja
capacidade de inovação, virtudes da resistência e so­
ciabilidade adm iro e que os historiadores desconhece­
ram d u ran te m uito tem po e negligenciaram estudar,
Fui testem unha da sua transform ação m uito antes de
os observadores exteriores se aperceberem da sua am­
plitude.
Tam bém o meu interesse pela cidade acordou an­
tes de o tema ficar na moda. Lewis M um ford ainda não
fo ra trad u zid o e pensara-se menos ainda em escrever
um a h istória da F ran ça urb ana quando, com o jovem
exam inador de história no concurso de entrada para
a Escola N orm al Su p erior, propus a V .-L . Tapié, de
que me tornara colega no jú ri de provas de história, um
tema de composição sobre as cidades na Europa entre
1815 e 1914; aposto que mais do que um dos meus cole­
gas se lem b ra de ter penado neste tem a. Estabelecera
uma cronologia onde tive o prazer de m isturar referências
a factos tão diversos como o arrazamento das fortificações de
várias capitais, a introdução da iluminação a gás, os poemas
de Baudelaire ou de Verhaeren. A cidade fascina-me como
expressão de toda uma história; ao descobrir uma cidade
ainda desconhecida, utilizo uma cultura de historiador e tenho
com isso um prazer do espírito. Conheço poucas sensações
tão embriagantes como a de nos perdermos numa cidade, na
medina de Fez, nos bairros de Londres ou nas ruelas de
Pequim, assim com o não conheço prazer de espírito mais
vivo do que decifrar a lógica da sua ordenação e encontrar,
abrindo caminho, no sentido próprio do termo, os estratos
sucessivos ou as curvas concêntricas da sua história inscritas
no espaço do seu desenvolvimento.
304
5. As influências

Nunca um biógrafo deixa de se interrogar sobre as in­


fluências que presidiram à form ação da personalidade cuja
vida retrata. Esta preocupação é o correspondente da investiga­
ção das fontes, para a história das ideias e das obras. Baseia-se
nessa verdade de que ninguém é um começo. A orgulhosa
divisa que Montesquieu inscreveu no frontispício de L ’E sprit
des lois, P rolem sine m atre creatam , se sublinha a originalida­
de da afirm ação, não pode ser erigida em máxima universal.
Também não saberíamos, se nos instituímos biógrafos de nós
mesmos, furtar-nos à questão das influências. Mede-se então
melhor a dificuldade do exercício: para quem é maior? Para
o observador estrangeiro que as reconstitui do exterior ou
para o interessado? Não pretenderei não ter sofrido nenhuma
influência e quem tiver a paciência de me 1er até ao fim verá
que atribuo im portância a um numero de experiências sem
dúvida mais elevado e provavelm ente mais diversificado do
que a média dos meus colegas historiadores, devido à plurali­
dade dos meios culturais cujas expectativas e preocupações
partilhei. Mas, no sentido inverso, talvez tenha sido um pouco
menos tributário de influências propriam ente universitárias.
Tive, primeiro no curso geral do liceu e depois no comple­
mentar, excelentes professores que desempenhavam a sua
profissão com consciência e competência, mas terão eles
influenciado notavelmente a minha visão da história? Dois
nomes se destacam na minha recordação: no segundo ano do
liceu, a história rom ana foi-me ensinada por Georges Weu-
lersse, que viria a descobrir vinte anos depois que fora
também o autor de uma tese im portante sobre os fisiocratas;
Maurice Crouzet de quem fui aluno nos dois últimos anos do
liceu, em Condorcet, encorajou o meu gosto pela história das
ideias.
À margem dos ensinamentos que recebi na Sorbonne, que
tinham todas as virtudes, mas por vezes também alguns dos
limites de uma história clássica, algumas circunstâncias, nesses
anos decisivos para a form ação de um historiador em que
adquire os seus graus universitários, foram mais determinantes
e a quarenta anos de distância meço m elhor a sua im portân­
cia. A direcção da Escola Normal organizava, para os alunos
do l.° ano, conferências ditas de iniciação cuja objectivo era

ao
305
revelar-lhes disciplinas, sectores de investigação que a prepa­
ração muito escolar de um concurso de fórm ula tradicional
não lhes dera a ocasião de conhecer. Foi nessa série que ouvi,
no Inverno de 1942-1943, Lucien Febvre e Gabriel Le Bras: a
personalidade fo ra de série deste último impressionou-nos.
Por uma daquelas coincidências que são por vezes decisivas
nas orientações intelectuais, foi mais ou menos na mesma
altura — um pouco antes, um pouco depois? — que me caiu
nas mãos uma ficha editada pelos jesuítas da Acção Popular
de Vanves sobre a sociologia religiosa, da qual o mesmo
Gabriel Le Bras era fundador e, desde há dez anos, o inspira­
dor. Foi uma iluminação: para o objecto assim como para
o método. Descobri que se podia fazer a história dos compor­
tamentos religiosos: havia nela uma permanência das fidelida­
des, uma estabilidade dos comportamentos. A sociologia
religiosa punha também em evidência a diversidade dos com­
portamentos à superfície do território: ela sublinháva as dife­
renças no espaço e a continuidade no tempo. Esta dupla
constatação im plicava uma reflexão sobre a articulação da
liberdade pessoal — que há de mais íntimo do que a fé? —
e das determinações colectivas, na intersecção das escolhas
individuais e das heranças colectivas. Para mais, o método
utilizado permitia passar das afirmações gratuitas às observa­
ções científicas: procedia-se por enumerações. Este tipo de
investigação tinha tudo para me seduzir e, se não segui
o meu prim eiro impulso, de me especializar na sociologia
religiosa, não penso ter sido infiel à sua inspiração profunda:
por um lado, trabalhei na história religiosa e, por outro,
transpus para a análise dos comportamentos políticos a pro­
blemática e os métodos da sociologia religiosa. M antive rela­
ções com Gabriel Le Bras: ele emprestou-me alguns relatórios
de investigações feitas por ele próprio entre 1932 e 1939 sobre
diversos cantões; utilizei-os nos meus ensinamentos de inicia­
ção em proveito dos meus jovens colegas da Escola. Ao es­
crever o meu ensaio sobre a direita, devia lembrar-me a pro­
pósito dos «brancos» do Sul, do que lera naqueles documentos
sobre a pequena Vendeia provençal em redor de Rognonas
e da Montagnette.
No número de professores cuja influência reconheço, men­
cionarei aqueles de que fui colega nos júris dos concursos.
Se a participação num jú ri é um a carga, cujo peso os candida-

306
tos não imaginam, é também uma experiência que enriquece
através dos contactos com os seres, os pensamentos, as tentati­
vas. Fui, durante três anos, examinador na rua de Ulm, fiz
parte do júri de agregação durante três anos, tive mais
recentemente a honra de presidir ao jú ri de admissão à Escola
Nacional de Administração e ao de agregação de história.
Não houve nenhuma dessas experiências que não me tenha
instruído. Mas foi o concurso da Normal que me deixou
a lembrança mais profunda: sem dúvida porque era ainda
jovem na profissão. Sentando-me aó lado de Roland Mous-
nier, cujo vigor de pensamento admirava, concebi a certa
altura o projecto de realizar, para as sociedades liberais,
uma síntese análoga àquela que ele próprio elaborava sobre
as sociedades do antigo regime e de fazer para o liberalismo
aquilo que ele fazia para a monarquia absoluta. Este projecto
não foi levado a seu termo, mas encontrar-se-ão fragmentos
espalhados nos meus ensinamentos e nos meus escritos.
Foi com Victor-Lucien Tapié que talvez aprendi mais, se
bem que as suas especialidades, o século XVíl francês, a história
da Boémia, o barroco, estivessem muito afastadas das minhas
curiosidades mais constantes, mas talvez tenha sido por essa
diferença. Conheci-o bem: fui seu colega durante dois anos no
júri da Rua de Ulm, seu vizinho de férias durante nove Verões
consecutivos. Distinguia-se dos seus colegas por uma cultura
literária mais vasta, uma sensibilidade artística mais informa­
da, uma investigação de escrita mais exigente, curiosidades
que a alguns parecem frivolidades. Aos seus olhos, a história,
tal como ciência, era uma arte de evocação e de restituição.
Devotava aos seres um interesse que não estava então tão
espalhado nos professores relativamente aos seus jovens cole­
gas e aos seus alunos, dava à sua correspondência uma pontua­
lidade e um cuidado de uma outra era e punha nela a elegância
do coração assim como estilo. O seu interesse pelo barroco,
que contribuiu para que voltasse a ser honrado, juntava-se
ao meu gosto pessoal pela fantasia e a exuberância desta arte
cuja riqueza Le S o u lie r de satin de Claudel me fizera ver.
Apresentou-me à intelectualidade da sociedade do Oeste, que
eu ignorava, porque todas as minhas ligações se situavam
a leste do meridiano de Paris: através dele compreendi o que
significara para gerações a devoção à pessoa do conde de
Chambord. O meu ensaio sobre a direita deve-lhe um pouco.
307
Feitas as contas — e já disse que gostava das contas bem
feitas — , devo talvez mais às leituras do que aos ensinamentos
recebidos: sem dúvida que sou mais visual do que auditivo,
embora seja muito sensível às vozes que identifico sem dificul­
dade e não possa viver sem música. Sobretudo, pertenço
a uma geração para quem o diálogo solitário com os livros foi
a via real para a form ação do espírito e o acesso ao conheci­
mento. E, todavia, não sou daqueles grandes leitores que
devoram livros seguidos: em vez de ler depressa e muito,
prefiro andar por fases pequenas. A minha profissão, contra­
riou essa inclinação obrigando-me a ler muito, senão depres­
sa, pois não consegui desfazer-me do hábito de ler linha
a linha: entre as memórias, os capítulos de teses em gestação,
as teses acabadas, os artigos propostos para as revistas de
que eu era responsável, os dossiers a compulsar para as comis­
sões, as leituras para resumos, leio em média por ano umas
20 000 páginas, a m aior parte delas em manúscrito; chega
para perder o gosto pela leitura. Mas as leituras que mais me
marcaram são aquelas feitas aos bocados, meditando-as, re­
servando-me o direito de voltar atrás para retom ar algumas
páginas.
A o verificar essas leituras decisivas, apercebo-me de que
não são geralmente livros de história, no sentido preciso do
termo, mas antes ensaios de reflexão, que abrem novas vias
ou propõem interpretações globais. Destes livros, vários não
foram escritos por historiadores de profissão, mas por pes­
soas de outras disciplinas, ou amadores estranhos à Universi­
dade: sem o ter deliberado, pratiquei uma certa pluridiscipli-
naridade que me preparou, sem o saber, para trabalhar, mais
tarde, nos confins da história e da ciência política. A maior
parte dessas leituras foi feita, quer devido aos tempos livres da
vida m ilitar, quer durante esses maravilhosos anos em que
os jovens da escola norm al, livres por um tem po dos terrores
da preparação do concurso antes de serem de novo agarrados
pelos da agregação, utilizavam os tesouros da biblioteca
entregue ao seu hum or vagabundo. Foi então que descobri
sucessivamente os dois belos livros de Daniel Halévy, L a Fin
des n o tab les e L a R ép u b liq u e des ducs, que me revelaram
uma maneira de evocar um tempo, cujo bem-estar continuo
a invejar; a obra de A lbert Thibaudet, na junção entre a his­
tória, a literatura, a política: L a R é p u b liq u e des professeurs,

308
Les P rinces lo rrain s, sobretudo L es Idées p o litiq u e s de la
F ran ce que me revelaram pela primeira vez a diversidade
e a continidade das famílias políticas; o meu livro sobre Les
D roites tem uma dívida para com ele. L a C rise du p ro grès, de
Georges Friedmann, fez-me ver a possibilidade e o interesse
de uma ligação entre a história das ideias, a da opinião
e a evolução global da sociedade numa perspectiva de con­
junto. Experimentei a elegância e a erudição de L a C rise de la
conscience européenne, de Paul Hazard, que ouvira nas con­
ferências de iniciação da Rua de Ulm, admirei a sua cultura
europeia e ele inoculou-me o gosto pela leitura com parada de
que se encontra um reflexo na minha tese sobre L ’Im age des
É tats-U nis d an s l’op inion fra n ç aise . Há um livro de Valéry
que li e reli, cuja leitura recomendei frequentemente aos meus
alunos: o seu R eg ard s su r le m onde actu el. Não, imagina-se,
pela crítica incisiva e injusta da história, denunciada como
o produto mais perigoso elaborado pela química do intelecto
pelos preconceitos que defende, mas pela acuidade das análi­
ses e a presciência das antecipações, comparáveis, de certo
modo, às de Tocqueville, que só descobri muito mais tarde.
Se acreditei na possibilidade do historiador aplicar a sua
análise ao presente, se estou convencido do seu dever de
ajudar os seus contemporâneos a decifrar os sinais do tempo,
devo-o em parte a essa recolha de textos que demonstram que
é possível a um espírito perspicaz e honesto discernir, na
fluidez móvel do instante, as linhas de força que desenham
a figura do futuro: quantas vezes não citei aos meus auditó­
rios o comentário do autor de V ariétés sobre a guerra hispa­
no-americana de 1898 e as consequências que prevê para
a jovem potência dos Estados Unidos e o futuro das suas
lelações com a velha Europa! O texto não envelheceu.
Aquela lista não pretende ser exaustiva; seria, todavia, muito
incompleta sem dois nomes: André Siegfried e François Go-
guel. Não imaginava, ao lê-los, que teria, trinta anos mais
tarde, a honra de lhes suceder na presidência da Fundação
Nacional das Ciências Políticas. O livro que François Goguel
escreveu no cativeiro, L a P o litiq u e des p a r tis so u s la I I I e
R epublique, para além de me ter ensinado uma história que
ainda conhecia mal, teve em mim, para as opiniões políticas,
o mesmo efeito ilum inador que os trabalhos de G abriel Le
Bras para as crenças religiosas: a revelação da permanência

309
e da diversidade geográfica das orientações e dos comporta­
mentos colectivos. Ele entreabria também a perspectiva das
explicações globais e o campo da investigação das correlações.
É do ano que se seguiu ao meu sucesso na agregação que
data verdadeiramente a minha descoberta da história como
investigação: o estudante não tem ocasião de a perceber
como uma disciplina em movimento, ela aparece-lhe como uma
soma de conhecimentos adquiridos e, no momento de escolher,
por exemplo, um assunto para a sua memória de mestrado,
tem tendência para pensar que tudo já é conhecido, já foi
estudado, explicado. Fico horrorizado ao pensar que a maior
parte daqueles que ensinam história nunca tiveram a Gcasião
de verificar por eles próprios que a história está viva, percorri­
da por correntes, sujeita a modas, deixando por um tempo
alguns sectores, explorando outros, que há uma história da
história. Esta descoberta fi-la, aproveitando o ano de liberdade
de que dispus para ler de seguida a totalidade das colecções da
R evue h isto riq u e, da R evu e de synthèse, e dos A n n ales entre
1929 e 1944; se fosse instado a definir-me em relação ao que se
chama a escola dos A n n ales (que jovem historiador duvidaria,
hoje em dia, de tal necessidade?), proclamar-me-ia devedor
e discípulo da primeira geração dos A n n ale s , a dos anos
1929-1939: uma geração que, longe de privilegiar os factos
económicos, se interessou por factos de mentalidade e contri­
buiu para voltar a honrar o estudo das crenças.
Sendo toda a biografia intelectual tributária da contingên­
cia, desejará não se atribuir a uma complacência pessoal
a evocação de laços mais directos com Lucien Febvre. Eu lera
o seu R a b e la is e também o seu L u th er , saboreara a densidade
do artigo «Cultura e civilização» escrito para uma Sem ain e de
synth èse , que me confirmou a minha convicção no interesse,
para a explicação dos movimentos de ideias, do estudo da
riqueza das palavras. Sobretudo, meditara na sua lição inau­
gural no Colégio de França que continuo a considerar o mani­
festo mais explícito das ambições do que não se chamava
ainda nova história. Uma circunstância fortuita deu-me a oca­
sião de me aproxim ar dele: fizera uma grande parte da guerra
na unidade que o meu tio comandava, tinham vivido as mes­
mas dificuldades e guardado relações amigáveis. Quando de
uma das minhas estadas no bispado de Nice, o meu tio,
sabendo disso, ofereceu-se para dar uma palavra ao seu antigo

310
tenente; mal cheguei a Paris, encontrei na minha caixa
da rua de Ulm um a palavra amiga de Lucien Febvre,
convidando-me a fazer-lhe uma visita na praça do Val-
-de-G râce. Tive, nos anos seguintes, relações frequen­
tes com ele, consultei-o sobre os meus projectos de in­
vestigação. Era o momento em que ele lançava os fun­
dam entos da 6.a Secção da Escola de A ltos Estudos:
propôs-m e mesmo ser um a das traves mestras. Se de­
clinei esse convite generoso, foi porque tinh a então
a certeza de ser assistente na Escola N orm al durante
três anos. Acontece-m e sonhar — raram ente — no que
teria sido o meu itin e rá rio de h is to ria d o r se tivesse
dado seguimento a essa proposta: ensinaria, sem dúvida, na
Escola de A ltos Estudos e Ciências Sociais, escreveria na
A n n ales e faria talvez de defensor da nova história. O que
são os destinos! Se fecharmos o parêntese sobre uma virtuali­
dade que não se verificou, há bastante a fazer com aquelas
que se tornaram realidades. De resto, não lamento nada nem
do que fiz nem do que não fiz.
Lucien Febvre ensinou-m e que tudo tem um a his­
tó ria, incluindo os dados mais perm anentes, os mais
independentes das vicissitudes do tem po, há um a his­
tória da amizade, pode escrever-se uma história do me­
do, da sensibilidade, do am or materno, talvez. No mes­
mo momento, o livro de M aximilien Sorre, Les F ondem ents
de la g é o g ra p h ie h u m a in e , revelou-m e que tam bém as
doenças têm um a história, que os micróbios se domes­
ticam, se substituem . M ais tarde, Em m anuel Le R oy
Ladurie viria a ensinar-nos que o clim a tem, também,
uma história, cujas variações não deixaram de ter in­
cidência na existência quotidiana dos homens e na vi­
da das sociedades. Com o tudo tem uma história, como
tudo o que os homens conheceram, pensaram, viveram,
depende de uma abordagem histórica, vi alargar-se qua­
se até ao infinito o campo da investigação. Nunca desdisse
esta convicção, nunca repudiei esta aspiração a uma história
total, que não deixa de fora nenhum aspecto da actividade
dos homens nem da sua personalidade: inteligência, sensibili­
dade, comportamento, crenças, hábitos, e que se dedica a pôr
em evidência o jogo complexo e por vezes desconcertante das
interferências e das interacções.
311
6. A profissão
Revelando, acentuando ou, pelo contrário, escondendo
as disposições inatas ou adquiridas, entrando em composição
com as influências, as circunstâncias da existência têm tam­
bém um papel determinante na form ação de um historiador,
assim como de todos os homens. As circunstâncias são, em
primeiro lugar, a profissão, e a profissão, para os historiado­
res, é geralmente o ensino: na nossa sociedade, raros são
os verdadeiros historiadores que não sejam universitários.
Pode deplorar-se esta ligação. Ela com porta mais do que um
inconveniente, fecha os historiadores num universo profissio­
nal dom inado pelas considérações corporativas, quando não
sindicais. Implica também temíveis dependências; é pesado
o tributo que as tarefas do ensino e .as que as acompanham
antecipam no tempo assim com o na liberdade de espírito dos
professores, excepto em algumas instituições privilegiadas,
Colégio de França ou Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais, em que os professores sao libertos dos pesos mais
ingratos da profissão — correcção de cópias, enquadramento
dos alunos novos, organização dos exames, preparação dos
concursos — e livres de escolher os temas das suas aulas,
ao contrário dos professores das universidades obrigados
a inscreverem o seu ensino no âmbito de um program a cuja
iniciativa lhes escapa parcialmente. Pela minha parte, não
lamento não ter pertencido a uma dessas instituições elitistas
e orgulho-me de ter assegurado, sem nunca me subtrair a elas,
todas as tarefas da profissão, incluindo as mais fastidiosas.
Sinto-me mais feito para ser oficial de tropa do que de
estado-m aior. Se é verdade que distraem da investigação
pessoal e da escrita durante uma parte considerável do tempo,
e se saldam na obra de um historiador por uma quantidade de
obras que nunca verão o dia, essas dependências não deixam
de ter contrapartidas: para além do contacto directo, vivo,
renovado de ano para ano com os jovens espíritos que temos
o sentimento — ou a ilusão — de ajudar a descobrirem-se
por sua vez, nada como os ensinamentos que se tiveram de
assegurar, os cursos que foi preciso construir com todas
as peças, concorre para a form ação de uma cultura e uma
inteligência históricas. São eles que nos revelam coisas que
ignorávamos sobre nós próprios, que suscitam curiosidades

312
novas, que nos descobrem temas, perspectivas, problemáticas
desconhecidos; a obrigação de tratar questões que certamente
não se escolheriam é uma boa disciplina: tal é a virtude do
trabalho por encomenda. Não há nenhuma obra de historia­
dor que não reflicta uma parte da sua actividade de profes­
sor. Tendo atrás de mim quase quarenta anos de profissão,
avalio retrospectivamente a extensão da minha dívida relati­
vamente ao ensino, mesmo que me aconteça lamentar os livros
que não terei escrito.
É certo que o enriquecimento que a profissão de profes­
sor proporciona não é uniforme consoante os públicos:
depende da qualidade dos auditórios, das suas expectativas,
das suas exigências. É por isso que as circunstâncias da
carreira, as que se inscrevem sob a form a de datas e de títulos
no que se chama um curricu lu m vitae — como se a vida se
reduzisse à carreira! — , são decisivas. A contingência tem, aí,
uma parte talvez m aior do que se imagina e tom ar consciência
dela não é desinteressante para um historiador; ele sabe-o
abstractamente, mas reconhecê-lo no desenrolar da sua pró­
pria existência conduz a reflectir sobre o destino dos outros
e o futuro dos conjuntos colectivos. A história de uma carreira
poderia traçar-se como antes os geógrafos descreviam o curso
de um rio: as ocasiões que surgem inopinadamente, as solici­
tações inesperadas são como os acidentes de hidrografia,
os afluentes que um rio recebe à direita ou à esquerda,
as captações, as passagens de um terreno para outro. Um olhar
para trás faz-me ver as hipóteses que me favoreceram, as oca­
siões que se apresentaram, todo o fortuito de um percurso
que, do exterior, poderia parecer rectilíneo. Atendendo ao lu­
gar que a profissão ocupou na minha existência, e aos elos
entre o meu ensino e a minha obra de historiador, não é de
espantar que páre um pouco: será também a ocasião de
agradecer às iniciativas que estiveram na origem de várias
dessas circunstâncias.
Primeira circunstância propícia: como a direcção da Es­
cola Normal resolvera equiparar a duração das funções dos
assistentes explicadores à do destacamento nos lugares de
assistentes das faculdades, o lugar encontrava-se por isso
vazio e propuseram-mo quase ao sair da agregação. Cargo
próprio para assustar um jovem agregado a quem circunstân­
cias excepcionais — é o fim da guerra — apenas tinham

313
deixado oito semanas para se preparar para ele e que não
tinha nunca ensinado, bem como a dupla responsabilidade de
iniciar os seus colegas do l.° ano no último estado da
investigação, fazendo-os partilhar o que ele próprio estava
em vias de descobrir, e conduzir ao sucesso aqueles que serão
candidatos à agregação. Não há auditório mais legitimamente
exigente. Estaria eu à altura das suas expectativas? Só eles
o poderão avaliar. Desde então, fizeram o seu caminho; al­
guns escolheram o serviço público ou a política: Jean-François
Noiville, Jean Charbonnel; a m aior parte fez nome na investi­
gação e encontram-se hoje entre os chefes de fila da nossa
escola histórica, M aurice Agulhon, Pierre Ayçoberry, Fran-
çois Bédarida, Louis Bergeron, Bernard Guenée, Pierre Jean-
nin, Jacques Le G off, A lain Touraine, e ainda outros. Não
saberei dizer se o facto de me encontrarem contou na sua
form ação, mas sei aquilo que esse ensino me trouxe. Ganhei
lá o gosto e o jeito de um ensino pouco directivo, mais
incitativo do que didáctico, que pratiquei de seguida na
direcção dos seus seminários. Aprendi muito ao ter de tratar
para os alunos questões cuja primeira palavra ignorava: fiz as­
sim um curso sobre a história da América latina no século XIX,
um outro cujo tem a me era menos totalmente desconhecido
mas de que tinha um a visão grosseira, tendo o acaso dos pro­
gramas deixado esse assunto fora dos meus estudos, sobre
a economia francesa entre 1815 e 1914. Se esqueci, hoje em
dia, quase tudo sobre as peripécias que balizaram a história
interior de uma determ inada república andina, o estudo
minucioso das transformações e das estruturas da economia
francesa no século XIX ensinou-me muito: uma parte das
minhas reflexões posteriores sobre a mudança, a modernidade,
o balanço dos regimes sucessivos nasceu aí.
Que o historiador não tem interesse em se especializar
demasiado depressa e em delimitar demasiado prematura­
mente o campo dos seus ensinamentos, verifiquei-o de novo
na minha segunda experiência de ensino suscitada, também
ela, por um concurso de circunstância onde as iniciativas de
outros tiveram mais im portância do que as minhas tentativas:
coincidindo o fim das minhas funções na rua de Ulm com
o termo do assistanato de Jean-Baptiste Duroselle na Sorbon-
ne, ele teve o simpático pensamento de avançar o meu nome
para lhe suceder. Exerci, assim, junto de Pierre Renouvin,

314
durante quatro anos, as funções de assistente. Na época,
história moderna e história contemporânea, não estavam
ainda dissociadas no serviço dos assistentes; partilhei, assim,
metade dos meus ensinamentos entre os quatro séculos de que
era responsável, corrigi tantos trabalhos sobre a reform a ou
o im perium sueco do século XVII como sobre as revoluções de
1848 ou os caminhos de ferro. Felicito-me a cada dia por ter
adquirido, desta forma, um conhecimento bastante bom sobre
as origens longínquas das nossas sociedades que continua
a alimentar a minha reflexão, me inspira comparações, entre
as ditaduras contemporâneas e o despotismo iluminado e in­
form a o meu julgamento.
A terceira circunstância foi talvez a m aior hipótese da
minha carreira de professor e da minha form ação de historia­
dor: o encontro com a rua Saint-Guillaume. A o contrário de
vários dos meus camaradas ou dos meus alunos, não estudara
lá. Estreei-me, portanto, como professor em 1947: Jacques
Chapsal confiou-me uma conferência de método para os
estudantes entrados directamente no 2.° ano sem terem feito
estudos de história e que, geralmente, se destinavam à Escola
Nacional de Adm inistração. Começo de um companheirismo
que não conheceu desde então nenhuma interrupção e que
se foi aprofundando sem cessar: desde há cerca de quarenta
anos, a osmose foi tão estreita com o Instituto e a Funda­
ção que eu não saberia recuar o necessário para estabelecer
o balanço de tudo o que essa associação trouxe à minha
form ação de historiador.
Primeiro benefício: o da dupla pertença. Um velho adágio
recomenda que desconfiemos do homem de um só livro. Eu
temo igualmente o homem de uma só instituição, seja ela
qual for: política, sindical, académica, cultural, partido ou
escola. A dupla pertença, a obrigação em particular para um
professor de se dirigir a auditórios diferentes, premune-o
eficazmente contra a esclerose do espírito, que a monoperten-
ça engendra no exercício repetitivo da profissão. Para um
historiador é talvez ainda mais premente a necessidade de
a sua vocação intelectual apelar para a compreensão de
universos múltiplos. Ensinar na Faculdade de Ciências Políti­
cas não é ser infiel à Universidade; nunca tive a sensação
de dever escolher entre uma e outra. Era uma form a de
cum prir a minha vocação de intelectual e de professor,
315
a possibilidade de exercer m elhor a . minha profissão de
universitário graças à abertura no mundo contemporâneo que
a rua Saint-Guillaum e me dava. Foi nessa conjunção que
tive de ligar o estudo do passado e a observação do presente
e de restituir ao político o seu lugar no campo da história.
É preciso, hoje em dia, um esforço de imaginação aos mais
jovens e de memória aos mais velhos para ter uma ideia do
que era, por volta dos anos cinquenta, a desconfiança ou
a reserva universitária em relação a uma história considerada
demasiado recente. Os espíritos mais exercitados na crítica
das fontes, os mais treinados na interpretação do passado,
mantinham-se interditos perante a actualidade e suspendiam
o seu julgam ento, preferindo remeter-se à apreciação de
comentadores que não tinham nem a sua cultura nem o seu
vigor. Lembrar-me-ei sempre de uma deliberação de licencia­
tura que reunia os professores de história moderna e contem­
porânea da Sorbonne: estava-se nos primeiros dias da guerra
da Coreia, no fim de Junho de 1950. Todos aqueles espíritos
superiores esperavam de um dos meus coiegas, um assistente
que não tinha sobre eles outra superioridade senão a de ter
estado seis meses numa das duas assembleias constituintes,
que lhes mostrasse o futuro e lhes revelasse se iria sair
daquele conflito a guerra geral. Aquela universidade descon­
fiava também de todos os que tivessem alguma relação com
temas demasiado próxim os e demasiado comprometidos: ela
professava uma religião da investigação impessoal. A tese
inspirava um tem or reverenciai, mesmo a espíritos que se
pensaria estarem libertos de tal superstição. Ainda ouço
aquele professor, que, todavia, não tinha palavras suficiente­
mente duras para fustigar a história universitária, dizer-me
com um ar de reprovação: «No meu tempo, só nos casávamos
depois da tese». D urante todo o tempo em que trabalhei no
meu livro sobre a direita, nunca ousei falar dele aos meus pro­
fessores; quase não tive coragem de confessar a paternidade
quando do seu aparecimento em 1954: tão grande era o medo
de que eles me censurassem de ter estado arredado, durante
todo aquele tempo, da feitura da única coisa necessária,
o grande trabalho de erudição que deveria abrir-m e as vias
do ensino superior. Depois, as coisas mudaram, felizmente.
A s conferências de m étodo, depois os cursos que me
foram confiados no Instituto de Estudos Políticos sobre

316
a vida política entre a Revolução e o fim da III República
— que estiveram na origem dos meus livros sobre o assunto —
confirm aram -m e a convicção de que não havia senão uma
história, e que a análise do presente relevava do mesmo
esforço que a reconstituição do passado. M elhor: o conheci­
mento do passado era necessário à compreensão do presente
e, em troca, a experiência do presente podia esclarecer certas
situações anteriores. Muitos dos meus ensinamentos, uma
parte dos meus livros, a m aior parte das investigações cuja
iniciativa foi minha, as teses cuja direcção aceitei, a minha
participação no comentário da actualidade sobre os m ed ia
e até a minha designação pelo C N R S para presidir à criação
do Instituto de História do Tempo Presente encontram o seu
princípio nesta experiência, de que a rua Saint-Guillaume
foi o meio de análise.
Mais tarde, em 1956, tive a sorte de ser escolhido por Jean
Touchard para participar na criação do primeiro dos tercei­
ros ciclos de ciências humanas criado em França, o ciclo
superior de ciência política na Fundação com Alfred Grosser,
Jean-Baptiste Duroselle e Maurice Duverger. Os sete anos em
que assegurei a tempo inteiro a corresponsabilidade daquela
instituição original fòram uma outra fase decisiva da minha
form ação. Definindo-se aquilo a que se chama a ciência
política mais pelo seu objecto — a política — do que por um
método específico, impõe uma prática efectiva da pluridisci-
plinaridade. Professores e estudantes tinham diversas prove­
niências: ao conviver com sociólogos, economistas, juristas,
etnólogos descobri noções, métodos, problemáticas que o his­
toriador não tem vulgarmente a oportunidade de aprender,
e cuja im portância ou especificidade nem sequer imagina
muitas vezes. Assim, realidades jurídicas: por uma reacção
inicialmente justificada, contra uma história tradicional, estri­
tamente política, conjugando-se com a influência mais ou
menos difusa dos postulados do sistema de pensamento m ar­
xista, um a geração de historiadores começou a opor as reali­
dades reputadas verdadeiras — que eram para ela principal­
mente económicas ou sociais — às realidades consideradas
formais nas quais se colocava, sem discernimento nem porme­
nor, todo o jurídico, o político e o institucional. Consequên­
cia: hoje em dia pode ser-se historiador na ignorância tranquila
das noções mais elementares do direito e no absoluto desco­

317
nhecimento do papel, por vezes determinante, dos processos
e das regras sobre os comportamentos e o curso das coisas.
Quantos jovens agregados ainda confundem proposta e pro­
jecto de lei, ignoram a diferença entre o domínio da lei e o do
regulamento, nunca reflectiram nos problemas da representa­
ção e nas suas implicações! Ora toda a experiência política
recente, a aplicação do texto constitucional de 1958, a elei­
ção do chefe de Estado por sufrágio universal, a bipolariza-
ção e a simplificação do sistema de forças políticas, procla­
mam a eficácia das regras, a importância dos mecanismos,
a virtude das instituições. O direito é apenas um exemplo:
poderia dizer-se o mesmo dos rudimentos da sociologia e da
m anipulação das estatísticas. Nestas matérias, todo o histo­
riador é pouco ou muito autodidacta: fiz a minha aprendiza­
gem em condições privilegiadas, na escola dos melhores espe­
cialistas de cada disciplina, tendo eu próprio a missão de
form ar investigadores. Foi ainda nessa função que aprofun­
dei a minha reflexão sobre a natureza do político, as frontei­
ras do seu dom ínio, a diversidade dos objectos que reúne,
assim como sobre a sua autonom ia em relação às outras
realidades. Foi lá tam bém que comecei a inventariar as bases
em que assenta a cultura política, a explorar as motivações
dos comportam entos. Essa experiência inspirou uma parte
dos meus estudos posteriores e alimentou os meus comentá­
rios sobre a actualidade política.
Cada fase do desenvolvimento de uma carreira universitá­
ria tem o seu conjunto de obrigações e a sua parte de
satisfações. No começo, umas e outras ordenam-se principal­
mente em torno do ensino: preparação dos cursos, exames.
À medida que se avança na vida sobe-se na hierarquia das
dignidades e tem-se acesso a uma pequena notoriedade, a car­
ga do ensino, sem decrescer absolutamente, cede a pouco
e pouco, em im portância relativa, à animação da investiga­
ção: direcção de teses e memórias, investigações colectivas.
Renuncio a enum erar a diversidade de tarefas que as consti­
tuem, assim com o a avaliar o tempo, cada vez mais extenso,
que elas devoram . Prefiro mencionar aquilo que trazem para
completar a form ação do historiador. Com efeito, uma coisa
é conduzir um a investigação pessoal e outra coisa é dirigir
a investigação de outros ou conduzir uma investigação
colectiva. Não há via mais segura para se estar em primeira

318
linha, naquilo que o vocabulário militar dos historiadores
chama a frente pioneira da investigação; também não há
meio mais directo para nos mantermos inform ados da evolu­
ção das ideias em matéria de historiografia. A história são
também os historiadores. Neste aspecto, a direcção de teses
está na origem de preciosas amizades; devo-lhe ter conhecido
gerações sucessivas dos mais novos: substituíram aqueles que
tinham sido meus alunos na rua de Ulm. Primeiro, como
director de estudos e de investigações na Fundação Nacional
de Ciências Políticas, depois'em Nanterre, desde há quase
vinte anos, acompanhei até ao doutoram ento algumas deze­
nas de historiadores. Vi assim, em vinte anos, aparecerem,
afirmarem-se por sua vez, três ou quatro gerações. A quem
não tenha esta experiência falta o conhecimento da história
como via de uma disciplina. Não estando eu próprio enfeu­
dado a nenhuma escola, mas tendo retirado delas o que me
convinha, não lhes chamarei meus discípulos: espero ter
resistido à tentação de lhes im por os meus postulados. Acon­
tece, entretanto, que, por uma convergência espontânea dos
temperamentos ou pela virtude de uma investigação sem
preconceitos, existe entre eles e eu, entre todos nós, uma
comunhão de visões onde eu não saberia dizer o que é meu
e o que vem deles.

Ensinar não é uma profissão que se exerça algumas


horas por semana: é uma form a de partilhar o saber, um
modo de relação com os outros. Quanto à história, é um
certo olhar sobre o mundo e um método do conhecimento;
o mesmo é dizer que se form a um todo com ela.* A prática do
ensino da história não se isola, portanto, das obrigações de
serviço, nem mesmo das relações com aqueles que frequentam
as nossas universidades. Há para um professor mil outras
ocasiões de aprender e de alargar a sua form ação ao dirigir-se
a outros públicos. Inclino-me mesmo a pensar que é para ele
uma espécie de im perativo. A o fechar-se, durante toda a sua
vida profissional, num frente a frente exclusivo com adoles­
centes, não é imaginário o risco de nunca chegar à idade
adulta e de continuar numa adolescência eterna. A o aceitar
outras ocasiões descobre que há muitas form as de ensinar,

319
segundo os auditórios e as instituições, que provêm todas da
mesma vontade de partilhar e de comunicar o saber e que
concorrem para fazer prevalecer a razão sobre o império das
paixões. Em quatro pequenas décadas, devo ter pronunciado
várias centenas de conferências perante os auditórios mais
variados, engenheiros, militares, homens de negócios, magis­
trados, militantes familiares, bispos, sindicalistas, dirigentes
do mundo rural. Tratei de assuntos muito diferentes, desde
que não fossem muito estranhos às minhas competências,
mas sem afastar temas sobre os quais não dispunha, à partida,
de uma inform ação completa: dei-me quase sempre bem
ao tom ar esse risco calculado; ao explorar, assim, terras
desconhecidas, aprendi muito sobre o nosso tempo e a nossa
sociedade, enriqueci a minha reflexão, adquiri uma certa
fam iliaridade com problemas ou fenómenos sobre os quais
os meus estudos nada me tinham dito.

Surpreenderei, talvez, alguns colegas que continuem im­


buídos de uma concepção estrita da profissão, unindo às mi­
nhas actividades de professor e à minha profissão de historia­
dor a minha participação nos m edia. Colaborando, mesmo
ocasionalmente, no jornalism o, um professor incorreu duran­
te muito tempo na reprovação dos seus colegas por trair a sua
vocação e expôs-se à sua desconfiança condescendente. Desde
há alguns anos, os espíritos evoluíram, felizmente, no capítulo
e as relações entre universitários e informadores profissionais
aproxim aram -se. Um relacionamento antigo e continuado
com os principais meios de comunicação, relações de traba­
lho que fizeram nascer amizades com os jornalistas da im­
prensa escrita e, sobretudo, da rádio e da televisão, trouxe­
ram à minha form ação de historiador uma contribuição
cujos elementos tenho o dever de pormenorizar.
A participação na informação, escrita ou audio visual
é, pelas suas restrições rigorosas de tempo e de espaço, uma
disciplina salutar, cujas exigências completam ou corrigem
utilmente as da profissão de professor.*A obrigação de tratar
um assupto em três folhetos, ou de fazer, num minuto e três
quartos, a síntese de um a situação impõe a concisão: ela
convida a ir ao essencial, não perdoa as digressões, elimina
320
os parentes, os regressos. É também úma escola de preci­
são e de clareza: não há lugar para a linguagem ininteligível;
interessa ser-se imediatamente compreendido por um público
que pode atingir, em algumas noites, dez ou quinze milhões
de auditores e que constitui um resumo da diversidade da
nossa sociedade.' Não é lugar para discussões subtis ou
controvérsias para iniciados e, todavia, a clareza da explica­
ção nunca deve ser adquirida com o preço da deformação.
Estar associado ao trabalho do jornalista, assistir e con­
correr ao vivo para a elaboração da inform ação é, também,
para o historiador uma experiência preciosa. Uma coisa
é, com efeito, tom ar conhecimento do acontecimento através
da imagem já elaborada que os m ed ia propõem e outra coisa
é vê-la ganhar a form a que conservará depois e que, sem eles
o saberem, os historiadores ouvirão: a diferença é a mesma
que no caso do pai de família que assiste ao nascimento do
seu filho em vez de esperar atrás da porta da sala de partos
que lhe anunciem que é um filho ou uma filha. P or ter
comentado, no decurso do último quarto de século, quase
todas as consultas eleitorais, e de toda a natureza, referendos
às eleições legislativas ou cantonais, na rádio ou para a televi­
são, em postos periféricos ou cadeias nacionais, adquiri uma
experiência que penso ser incom parável do modo como se
form a um acontecimento histórico: conheço a sua incerteza
hesitante nos primeiros instantes. No decurso dos anos, tam­
bém verifiquei que o meu comentário dos primeiros minutos
tinha um impacto decisivo: desenhava a figura do aconteci­
mento, sublinhava os seus traços principais; ao fazer isso,
circunscrevia o campo dos debates políticos, e condicionava
o conjunto das apreciações que se lerão na imprensa do dia
seguinte. Responsabilidade capital que é a de todo o inform a­
dor: o erro não é reparável, pois o público não volta atrás
em relação a uma prim eira impressão; não é mesmo certo
qüè os historiadores façam mais tarde uma leitura errónea.
Assim, o historiador que os inform adores associam ao seu
trabalho, em lugar de se colocar a juzante da informação,
está na fonte e contribui para orientar o seu curso.
Mas terá ele, da sua form ação, uma especificidade que
justifique a sua participação? A questão não é vã: eu pu-la
a mim próprio. Desde há vinte anos, a qualidade da inform a­
ção política melhorou notavelmente: a análise é feita, hoje em
321
y1
dia, por jornalistas que adquiriram uma formação de ciência
política e que são quase todos nossos alunos. Terei ainda
algum a utilidade ju nto dos nossos antigos alunos? Assegurá­
mos uma função de substituição, mas a partir do momento
em que os inform adores profissionais dispõem dos mesmos
instrumentos de análise, se referem a uma cultura comum,
não teremos nós feito o nosso tempo? Não evocaria a ques­
tão se ela não implicasse uma, mais ampla: de que serve
ser-se historiador? Qual é a utilidade da história para a com­
preensão do presente? À força de tornear a questão, pensei ter
descoberto dois elementos de resposta. A primeira só tem
um a dimensão restrita, pois está demasiado ligada ao meu
caso pessoal: ter assegurado sem solução de continuidade
o comentário de um bom número de acontecimentos políti­
cos, em particular de todas as consultas eleitorais, durante um
quarto de século — e sabe-se que a actualidade os multipli­
cou! — e ter memorizado os seus resultados põe instantanea­
mente à minha disposição um banco de dados, um repertório
de números e de situações, um conjunto de referências a partir
das quais posso apreciar as inovações ou as recorrências, avaliar
a dimensão ou a amplitude de uma evolução. A outra
resposta tem mais importância: o conhecimento da história
sobre um século ou dois permite inscrever o curto prazo na
perspectiva de uma duração longa, indispensável para as for­
ças políticas, os comportamentos, as tradições de pensamento:
só a história dá a um acontecimento todo o seu lugar e nada
mais senão ela.

7. A s ex p eriên cias

Seja qual fo r o lugar que a profissão ocupe na existência


pessoal, não a invade toda: cada um é levado a fazer
experiências que não tenham relação directa com a sua
actividade profissional. Elas têm mais ou menos importância
para a vida do espírito em função da relação mais ou menos
lassa que mantêm com a disciplina intelectual praticada.
Nunca são indiferentes para os discípulos que tenham por
objecto o homem e a sociedade, e por m aioria de razão para
o historiador que escolheu fazer do seu tempo, ou dos tempos
próximos, o objecto privilegiado da sua atenção. No meu

322
caso, as experiências extra-universitárias não tiveram menos
importância na minha form ação de historiador e na elabora­
ção dos meus livros do que o exercício da profissão: sempre
tive várias actividades. Essas experiências singularizam e ca­
racterizam mais os historiadores do que os acasos da carreira:
elas transportam tam bém prim eiro a marca da contingência,
em particular da tradição na qual nasceram, quer a tenham
depois assumido ou rejeitado.
Pertencer à Igreja católica foi, e continua a ser para mim,
capital.' Não é este o lugar próprio para tentar dizer o que
é a minha fé: tendo pouca tendência para me contar, tenho
ainda menos para as confidências do íntimo do ser. Mas
como a minha fé e a minha educação cristãs e a minha
integração no catolicismo tiveram uma influência que penso
ter sido decisiva para a minha form ação de historiador, não
jogarei o jogo da verdade ao qual me dediquei, praticando
a restrição mental sobre um aspecto tão im portante do meu
itinerário intelectual.
Presumo que surpreenderei mais do que um se declarar ter
sempre encontrado na Igreja uma possibilidade de grande
liberdade de pensamento: estamos tão acostumados a identi­
ficar a Igreja com o princípio de autoridade, a assimilar
ensino dogmático e negação de toda a independência intelec­
tual e a conceber a instituição como um grande corpo dócil.
Se, todavia, o digo, é porque creio conhecê-la bem e de
diversos pontos de vista: conto lá com amigos de longa data,
falei com vários responsáveis, eu próprio exerci lá diversas
responsabilidades, dirigi-me pelo menos três vezes ao conjunto
do episcopado francês. Se insisto na contradição entre a ima­
gem comum e a realidade de que tenho experiência, é porque
a Igreja não é a única realidade a apresentar assim duas
imagens muito contrastadas consoante se observe do exterior
ou se a conheça do interior: assim como uma cidade contem-
pladã a alguma distância de uma altitude se funde numa visão
uniforme e é preciso ter atravessado as muralhas e penetrado
no entrelaçado das ruelas para descobrir a diversidade dos
seus bairros, também toda a instituição aparece ao historia­
dor que a estude em documentos como um monólito enquanto
os aderentes conhecem as suas dissensões e as tensões; os mili­
tantes operários também imaginam o patronato uniforme
assim como os seus chefes de empresa consideram os leaders
323
sindicais mais parecidos do que eles o são. O adversário
é sempre homogéneo, centralizado, disciplinado. Fala-se dele
no singular enquanto o número da realidade não é nem
o singular nem mesmo o dual, mas quase sempre, excepto em
situação de crise, o plural. Se tiver uma pequena hipótese de
deixar um traço na historiografia, será sem dúvida por ter
introduzido e dado crédito à ideia de que a direita não é uma,
mas que ela federa três tradições em que cada uma tem a sua
originalidade, que nunca se confundiram, mesmo que se
tenham aliado frequentemente e que a esquerda as considere
sinceramente unânimes ou finja acreditar nisso.
Tendo as circunstâncias da minha existência unido sempre
estreitamente fé e Igreja, teria dificuldade em distinguir, na
minha avaliação de historiador, entre os efeitos de uma
e as consequências da outra. Esta parte da minha personalida­
de está evidentemente na origem do interesse que dou ao facto
religioso na história dos homens. Disse que revelação foi,
para mim, a descoberta de que os comportam entos religiosos
na sua constância e na sua diversidade podiam ser matéria de
estudo histórico, pois reuniam todas as condições que definem
um objecto de história: o carácter colectivo que se presta a um
método quantitativo, a estabilidade na duração, mas também
a diversidade no espaço e a mudança na sucessão. Desde
então, sem nunca fazer disso o único objecto da minha
curiosidade, não deixei de lhe dar atenção; escrevi vários
livros, animei seminários, suscitei investigações, individuais ou
em equipa, fiz prefácios para üvros, e contribuí com a minha
parte para a profunda renovação e expansão da história
religiosa, que é uma das componentes do dinamismo da
história em França desde há trinta anos.
Não limitei, dizia eu, o campo da minha atenção apenas
aos fenómenos religiosos. Pelo contrário: o facto de pertencer
à Igreja deu-me acesso ao universal; pode surpreender que a
referência confessional possa ser princípio de alargamento.
E contudo, foi o que aconteceu: a pertença consentida, com
todas as suas implicações, a uma Igreja tendencialmente
universalista foi para mim o equivalente para aquilo que
suponho que outros encontram na referência ao internaciona-
lismo proletário e à solidariedade activa com o movimento
operário. Tenho apenas a fraqueza de acreditar que o univer­
salismo cristão, que, em vez de adoptar a causa de uma
324
fracção da humanidade contra uma outra erigida em inimigo
de classe, tende a abraçar a humanidade inteira, é mais
universal do que o outro.
À minha cultura religiosa e à reflexão de que ela foi fonte
e, ao mesmo tempo, objecto, devo também aquilo a que se
chama, por vezes, com um fio de pretensão, uma antropolo­
gia ou, para falar numa linguagem menos pomposa, uma
certa concepção do homem. Não me parece possível que
o historiador, no seu trabalho ou na sua problemática, possa
passar sem uma visão assim; pouco im porta que ela tenha
existido antes da sua investigação ou que tenha sido consti­
tuída a pouco e pouco no decurso das suas invstigações; há
sempre uma subjacente nas suas escolhas assim como nas suas
interpretações. Aquela que eu tenho de uma longa tradição,
tirada de uma experiência e de uma prática plurisseculares
premunia-me contra as utopias que alimentam a ilusão de
poder suscitar um homem radicalmente novo pela única
virtude de uma transform ação de ordem social: foi ela que,
sem dúvida, me imunizou contra a sedução do comunismo
— ainda que vários cristãos tenham passado sem transição
de uma adolescência cristã ao empenhamento militante nas
fileiras do partido. Esta visão do homem que tem uma
confiança consumada nas suas possibilidades e que proclama
a sua grandeza não exorciza menos a tentação do pessimismo
e do cepticismo que é frequentemente o fruto de uma certa
meditação sobre uma história «cheia de barulho e furor».
E nesta base que ponho a minha convicção de que o homem
não se define essencialmente pelo lugar que lhe está destinado
na sociedade, e ainda menos pelo seu papel no processo de
produção, e que o seu ser não se reduz ao seu estatuto social
ou à sua condição económica. Afirm ação sem consequência
para o historiador? Não: ela condu-lo a recusar ver nas
motivações profundas, nas crenças religiosas, nas convicções
filosóficas e nas escolhas políticas, o simples reflexo da sua
posição social; ela afasta, pois, toda a explicação mais
redutora e recusa a distinção entre uma ordem de factos
sociais considerados determinantes e outros que seriam deter­
minados. Sem desconhecer os condicionamentos sociais, nem
as interacções, ela postula que os factos de ordem cultural,
psicológica, intelectual ou ideológica têm uma consistência
própria e dispõem de uma certa autonomia. Julguei encontrar
325
a confirm ação experimental desses postulados que reconheço
com o tal no decurso das minhas investigações, na observação
da discordância frequentemente pronunciada entre o socioló­
gico e o ideológico, na observação das distorsões entre
referências sócio-profissionais e pertenças políticas ou religio­
sas, na independência dos comportamentos eleitorais em rela­
ção aos interesses categoriais, no reconhecimento por parte
dos sociólogos de que, mesmo na nossa sociedade seculariza-
da, o parâmetro religioso continua a ser estatisticamente o mais
relacionado com as escolhas políticas (cada consulta nacional
renova a demonstração), assim como na capacidade das
tradições ideológicas para sobreviverem às circunstâncias que
as viram nascer. Se o conjunto da minha obra tem alguma
unidade, ela encontra provavelmente o seu princípio nesta
concepção das relações do homem com a sociedade.
i É ainda à minha pertença à Igreja que devo a descoberta
de uma realidade essencial da história, assim como da vida das
sociedades: a instituição.'Bastante antes de ter ganho expe­
riência através de um a responsabilidade administrativa e muito
antes também de a reflexão sobre a política me ter convencido
da im portância da dimensão institucional, eu previra a sua
existência e pressenti a sua influência, frequentemente deter­
minante, pela minha participação em movimentos que ti­
nham precisamente como característica serem instituições e
aspirarem a agir sobre estruturas condensadas em instituições.
Experimentei, então, a form a como uma acção individual se
funde num esforço colectivo, como ela se incorpora num
movimento que atravessa gerações e como ela lhe dá, em
troca, um a eficácia decuplicada. Esta experiência pôs-me em
contacto com a tradição de pensamento do catolicismo social
que sublinha a im portância do factor institucional; guardou
ainda uma lem brança precisa de uma sessão de formação
sobre a instituição que reunia, no coração da Paris ocupada
de 1943, os responsáveis pelos grandes movimentos especiali­
zados de acção católica. Foi assim que adquiri a convicção,
que o seguimento não fez senão afirm ar, de que as institui­
ções concorrem poderosamente para desenhar a figura de
uma sociedade e dar form a ao destino dos povos.
Nesses m ovim entos — Juventude Estudantil Cristã, As­
sociação Católica de Juventude Francesa — onde militei
e exerci responsabilidades importantes, não limitando o cam-

326
pG das suas preocupações a visões estritamente confessionais,
mas tendo como ambição lançar uma ponte entre a Igreja e a
sociedade e propondo contribuir para a transformação da
organização social, a minha reflexão alargou-se naturalmente
ao estudo das relações entre Igreja e Estado, religião e política,
cristianismo e sociedade. Não há, sem dúvida, assunto que
tenha desde há quarenta anos retido tanto a minha atenção
nem suscitado a minha reflexão, sem que eu possa nem que
tente — a procura seria vã,e desprovida de sentido — precisar
a parte na minha investigação do desejo do cristão de ver
claro na articulação do tem poral e do espiritual e de delimitar
o que havia de legítimo e também de excessivo ou de desusado
na pretensão de uma Igreja para anunciar as regras da organi­
zação social, e a parte do historiador preocupado em aperce­
ber-se dos acidentes que pontuaram a história das relações
entre Igreja e sociedade. Assim, em 1943, a minha reflexão era
solicitada para estes assuntos ao mesmo temp^ pela actualidade
e pela preparação de um diploma de estudos superiores que
tinha como tema o pensamento de La Mennais sobre os proble­
mas da educação. Toda a minha reflexão posterior sobre a
laicidade, a questão escolar, tem, sem dúvida, a sua origem aí.
Enfim, a participação e a solidariedade com os movimen­
tos que se propunham ordenar a sociedade, que não tinham
medo de falar em reformas de estrutura, que praticavam uma
pedagogia apropriada a esses fins, teve a sua importância na
mutação de que falei e que modificou, na minha percepção de
história, o equilíbrio entre a continuidade e a mudança. Para
além disso, foi uma ocasião para estabelecer amizades dura­
douras com uma geração de dirigentes operários e camponeses
cujos nomes viriam , mais tarde, a conhecer a notoriedade: de
Eugène Descamps a Michel Debatisse. Fui testemunha da revo­
lução silenciosa que transform ou, num quarto de século, as
estruturas, os modos de vida, os hábitos do mundo rural e cuja
iniciativa foi obra principalmente de militantes formados na
escola da acção católica rural. Nesse estádio, a minha expe­
riência desembocava na história geral da sociedade francesa.

Outras experiências que não tinham, também elas, nada


de universitário, vieram dar a sua contribuição e fundir-se na
327
encruzilhada ua existência. Uma participação, embora mo­
desta, em actividades clandestinas de resistência ensinou-me,
mais do que todas as leituras, a diferença radical entre as si­
tuações ditas normais, em que a vida em sociedade é regida
pelo direito e se conform a grosseiramente com as regras,
e as situações de excepção e de anomalia; é a lembrança desta
experiência que se revolta, por vezes, contra os julgamentos
por demais simplistas que até historiadores, devido a nunca
terem conhecido experiências do tipo, fazem sobre o com por­
tamento dos franceses de então. A participação em diversos
organismos responsáveis dos m ed ia — Comissão de progra­
mas da televisão, conselho de administração da ORTF,
da Rádio-France, da Antenne 2 — completou a minha visão
de jornalista ocasional e alimentou as minhas reflexões sobre
inform ação e política, sobre o poder de que os m ed ia eram
supostos dispor e que creio ser menos determinante do que se
imagina: desde 1962, depois de um referendo cujo resultado
os bons espíritos pensavam poder atribuir à manipulação da
opinião peio poder televisivo, fiz uma das primeiras investi­
gações levadas a cabo em França para avaliar a influência real
da televisão nas escolhas políticas e permitir falar disso de
outra form a do que por a p r io r i ou asserções passionais.
Houve, finalmente, uma experiência que contou muito na
minha vida e pesou bastante na minha reflexão histórica:
a direcção da Universidade de Nanterre. Não me alongarei
sobre isso, tendo-o contado num livro em que tentei juntar
a narração e a meditação. Essa experiência é, talvez, aquela
que melhor ilustra o impacto das circunstâncias numa existên­
cia: sem a crise de M aio de 68 nunca teria exercido uma res­
ponsabilidade que me ensinou muito, que me modificou tam­
bém, talvez: sou, de uma certa maneira, um «filho de 68». Que
lição sobre quase todos os fenómenos e os problemas da or­
ganização das sociedades! O exercício do poder, a concentra­
ção, a deliberação, a elaboração das decisões, a circulação
da inform ação, a necessidade de uma regra aceite, a aspira­
ção de todo o agrupamento a ser dirigido.
A Universidade, a Igreja, a inform ação, a justiça outros
sectores ainda reúnem-se como as peças de um p u z z le para
recompor parcialmente a sociedade global. Tudo justamente
pesado, penso que a diversidade destas experiências não
contou menos na minha form ação de historiador do que os
.128
ensinamentos, as leituras e a prática da profissão. A o avaliar
o que me ensinaram e ao com parar a sua contribuição com a
minha ignorância anterior, acabaria quase por me perguntar
se se pode ser historiador sem nunca se sair do gabinete:
coro ao pensar em algumas avaliações ou em certas explica­
ções sobre a form a como se tom a uma decisão política do
tempo em que eu não tinha nenhuma experiência dessas
coisas. É certo que a imaginação pode e deve suprir a ausência
da experiência: a imaginação, que tenho como sendo uma
das faculdades principais dó historiador, que o esclarece sobre
outras mentalidades, descobre-lhe outras formas de pensar
e não poderíamos exigir de todos os historiadores que come­
çassem por viver aquilo de que tratam . Mas não devem
negligenciar os ensinamentos da vida que vêm enriquecer
a sua visão da história.

8.

Se o exercício a que me submeti tivesse de incluir ainda


uma questão, aposto que ela se relacionaria com o tipo de
história que deveria, no ponto em que se cruza a rede
complexa destas disposições, destas influências e destas expe­
riências, ser a resultante dessas componentes.“’ E se só depen-
desse de mim designar o meu lugar na vasta coorte de
historiadores, meus contemporâneos, em que as correntes são
numerosas, a diversidade grande, onde escolheria eu situar-me?
c Para responder a essa questão recorre-se vulgarmente
a vários processos: a ligação a um grupo, a referência a um
sistema, o inventário da obrai Tenho a fraqueza de pensar que
os dois primeiros não são muito operacionais no meu caso.
Pertencer a uma escola? Se o recuso, não é da minha
parte uma marca de orgulho; nem também uma censura para
aqueles que encontram alguma satisfação em se agregarem
a uma equipa. Um gosto vivo pela independência assim como
as circunstâncias fizeram que eu ficasse afastado das escolas.
É simplesmente um facto não me reconhecer em nenhuma
escola, por mais interesse que possa encontrar nas suas orien­
tações. Para vários temas dos meus livros, estive desfasado em
relação à orientação dominante do momento, tanto em
contracorrente, como em avanço: quando o estudo da econo-
329
mia se im punha como a história do futuro, enquanto a maior
parte dos meus contemporâneos fazia teses de história econó­
mica e social — form ando, então, os dois termos um par
estreitamente soldado — , virei-me para os fenómenos de
opinião, e depois para a história das ideias políticas. Foi,
sobretudo, determinante a convicção de que nenhum sistema
de explicação explica totalmente a riqueza e a complexidade
da realidade. «
Também a referência a um sistema não é a mais indica­
dora. A o contrário de muitos dos meus contemporâneos ou
colegas alguns anos mais novos, nunca me senti atraído pelo
m arxism o; menos ainda pelo comunismo. A biografia de
muitos deles inclui um a passagem pelo partido comunista:
alguns daqueles cujo nome personifica, para o grande público,
a história que se faz não fazem segredo de terem sido
seduzidos pelo comunismo e de terem acreditado, em tempos,
que ele representava o futuro. A simbiose que se estabeleceu
entre a disciplina histórica e esse partido é um dos factos
principais da história intelelectual do pós-guerra. Percebo
as razões objectivas dessa sedução; não sou insensível à visão
grandiosa que ele propõe, não desconheço a força da sua
coerência interna, o rigor sistemático, o carácter global da
explicação do m undo e da história. O meu pensamento não
foi nada influenciado. Fui logo mais tocado pelo que o sistema
não conseguia explicar; demasiados factos, e factos capitais,
continuam incompreensíveis: a perenidade do facto nacional
e a força do sentimento que lhe atribuem os indivíduos,
a natureza e as causas das guerras, o facto religioso. Contra
a sedução do sistema eu estava m unido de um a desconfiança
de princípio relativam ente a todos os sistemas fechados.
Quanto ao comunismo, não procurava uma Igreja, tinha
uma que respeitava mais a minha liberdade de pensamento na
ordem dos factos naturais e que, para mais, me inculcava uma
lição de relativism o em relação às ideologias.*Ter ignorado
a tentação comunista preservou-me, de seguida, de cair no
anticomunismo passional em que vejo atirarem-se tanto aque­
les que tinham começado por abraçar o comunismo com
o fervo r do neófito. Não tenho nenhuma vaidade por não ter
em nenhum m om ento sido tocado por essa form a de pensa­
mento e de acção, assim como por não ter variado as minhas
opções fundamentais: sempre fui democrata, e continuo de­

330
m ocrata. .Mas, p o r favor, não me contestem o direito de ter
uma opinião nessas matérias pelo m otivo de, não me tendo
enganado, não ser qualificado para falar com conhecimento
de causa dos erros dos outros. Será necessário, para se ter
o direito de dar uma lição aos outros e de indicar aos povos
a via da verdade e da salvação, ter-se deixado enganar
durante dez ou vinte anos pela sedução de uma propaganda?
Uma ingenuidade prolongada será um certificado de lucidez
tardia e uma recomendação à atenção dos outros? Neste
aspecto, não estou disposto a abdicar do meu direito de
prioridade.
A obra, então? A pretensão do termo faz-me hesitar:
não im plicará um a coerência, a unidade e a continuidade de
um desejo procurado durante toda a existência com constân­
cia e persistência? Ora, a lista dos meus livros dará verdadei­
ramente, a quem a vir, a impressão de um a relativa disper­
são. No tempo, ela cobre um período que vai desde o fim do
antigo regime até à actualidade mais recente e estende-se por
uns duzentos anos. O quadro geográfico? Vai de um lado
ao outro do Atlântico, apoiando-se nas duas costas. Abarca
vários domínios, tratando de história política, cultural, reli­
giosa. Quanto ao género, finalmente, associa obras de erudi­
ção e sínteses, análises pontuais e ensaios gerais* De facto,
como acontece com toda a produção em que as circunstân­
c ia s e as solicitações têm um lugar, os meus escritos justapõem
pelo menos três lotes. Um prim eiro lote é form ado por obras
cuja iniciativa veio de outros: participação em obras colecti-
vas em que me foram confiados um ou vários capítulos,
trabalhos de encomenda que, todavia, não são de desprezar,
pois são ocasiões para alargar o campo das curiosidades
e dom ar a caneta. Um segundo grupo compõe-se de obras
colectivas ou publicação das actas de colóquios em que fui
eu, desta vez, que tive a iniciativa. Elas exprimem, portanto,
as minhas inclinações e as minhas interrogações: normalmente,
concebi o projecto, desenhei a arquitectura, formulei a proble­
mática, enunciei as conclusões, avaliei o balanço. Mas é natu­
ralmente nos escritos que constituem o terceiro grupo que me
reconheço mais: coloco aí a minha tese sobre os Estados
Unidos perante a opinião francesa na primeira metade do
século XIX, o meu ensaio sobre a história das direitas ém
França de 1815 até aos nossos dias, o meu estudo, ainda
331
inacabado, sobre a evolução da vida política em França,
conduzido por agora de 1789 até 1879, o livro sobre o anti-
clericalismo e juntaria, se bem que tenha um género diferente,
o ensaio sobre o governo de uma sociedade à luz da minha
experiência de responsável por uma colectividade universitá­
ria apanhada pela turbulência.
Sem cair no erro tão comum de introduzir na existência
e na desordem de um a produção uma lógica que não estava
no início, discirno, entretanto, uma certa unidade de inspira­
ção que me parece o fim da rede de influências, de disposi­
ções e de experiências cuja meada tentei desenredar. Que me
seja permitido enunciar as características principais desta
relativa unidade de preocupações.
Consideremos à partida a hipótese da dispersão no espaço:
a regra da unidade de lugar não foi, por mais que pareça,
transgredida. Se consagrei, efectivamente, longos anos a uma
investigação de que os Estados Unidos eram aparentemente
o tema e se o livro, que é o seu fruto, é o mais volum oso de
todos os que escrevi, o objecto principal, o ponto focai desta
elipse de dois focos era a França: a realidade americana não
era senão o pretexto para uma radiografia desta opinião ou
o reactivo que dá cor ao produto; era a imagem que se form a
sobre a retina da opinião francesa, mais do que os objectos
reais que constituem a sua fonte, que picava a minha curiosi­
dade. Esta preferência confessada pela França não exclui um
vivo interesse pela sociedade e a história do outro lado do
Atlântico. Sem pre fui atraído pela singularidade das histórias
de cada povo e quanto mais avanço na vida mais fico fascina­
do pelo mistério das identidades nacionais e a sua perenidade
através das idades. Mas são a França, a sua cultura, as suas
tradições de pensamento, as suas forças políticas, a sua
sociedade, que são o tema constante, quase exclusivo, dos
meus trabalhos e dos meus escritos.
Acontece um a coisa diferente no que respeita à referência
cronológica: concordo que o centro de gravidade das minhas
investigações se desfasou; como que escorreguei do princípio
do século XIX — o da m onarquia restaurada e da sociedade
censitária, cujos seres e as coisas, hábitos de pensamento,
cenário de existência, costumes e estilo se me tornaram
familiares — para a segunda metade do século XX. Mas este
deslocamento não foi ruptura, não escolhi o dia de hoje em

332
relação a anteontem. Para além do interesse pela história do
nosso tempo ser tão antigo como os meus trabalhos sobre
o século XIX, a minha decifração do presente enraíza-se no
conhecimento do passado. Nunca adoptei a divisão que
os meus superiores pensavam dever estabelecer entre um
passado digno de toda a sua atenção e um presente que
abandonavam à observação subjectiva dos contemporâneos.
Sempre considerei nocivo para a disciplina histórica e prejudi­
cial para a educação do cidadão o no m a n ’s la n d da
ignorância e da indiferença que interpunha uma extensão
desértica entre o termo do período inscrito nos programas
e tornado m atéria de ensino e o m om ento em que nós
vivemos. Não tive descanso até ter preenchido eu próprio
a lacuna e reestabelecido a continuidade entre o conhecimento
livresco e a experiência directa, a tal ponto que essa fatia
intermediária, deixada na penumbra, que para mim ia do
início da Prim eira G uerra aos pródrom os da Segunda, se
tornou em breve uma das mais familiares. Em 1957, Jean
Touchard, que partilhava neste aspecto a minha ideia, aco­
lheu na R evu e fra n ç a is e d e scien ce p o litiq u e um artigo que se
intitulava «Plaidoyer pour une histoire délaissée» («A favor de
uma história abandonada»). Qual era, então, essa história
abandonada? Aquela, precisamente, de entre as duas guerras,
que eu deplorava não ter ainda sido objecto de um estudo
propriamente histórico: reivindiquei para ela o estatuto de
objecto científico e tracei várias direcções de investigação.
O artigo fez algum barulho e as reacções não foram todas
positivas: defender, em 1957, que os historiadores se começas­
sem a interessar pela Câm ara do Bloco Nacional e pelas
eleições do Cartel das Esquerdas parecia ainda, a alguns his­
toriadores, uma aventura e mesmo uma provocação. Depois,
as coisas modificaram-se e os espíritos felizmente evoluíram.
É admitido por todos que se possa trabalhar validamente
num a história menos afastada do que a que é definida
pelo fatíd ico lim ite dos cinquenta anos passados. A s
investigações m ultiplicaram -se na esteira dos colóquios
cuja iniciativa foi minha, sob a égide da Fundação Na­
cional das Ciências Políticas e que foram os primeiros
a ab rir a via a um estudo científico do governo da
Frente Popular ou do regime de Vichy e da Revolução
Nacional.

333
Mais do que a referência a um país, ou do que um
segm ento na duração, é a natureza dos factos sobre
os quais se fixa de preferência a atenção do historia­
dor que define a sua personalidade e a originalidade
do seu trabalho. O cam po que o historiador proSpecta
hoje em dia tornou-se tão vasto e tão diverso que já
não é possível — mas algum a vez o foi? — a nenhum
historiador abarcar toda a extensão; por um paradoxo,
cuja lógica parece im placável, é quando se afirm a como
nunca a aspiração a um a história global que reunifi­
caria todos os aspectos da existência dos homens em socieda­
de, que o historiador desfalece perante a imensidade da tarefa
e que a história se fragm enta num a multiplicidade de especia­
lidades: o tempo da história global é também o da história
despedaçada.
Creio ter sempre tido o gosto por uma história problem á­
tica: a história anedótica sempre me deixou indiferente. Sem ­
pre concebi a tentativa histórica como essencialmente interro­
gativa. O reflexo do historiador deveria ser de espanto: não
adm itir como dependendo de si o percurso dos acontecimen­
tos, encontrar a frescura de espírito dos contemporâneos,
a novidade do acontecimento. A união de duas datas, a com­
paração entre dois países são form as de fazer brotar as ques­
tões. Daí que a minha tendência natural me leve mais para
o ensaio do que para a narração: a relação à qual eu regresso
voluntariam ente, de vez em quando, no processo de uma
reflexão que tende a com preender ou a explicar. É este
espírito que me faz ter tanto prazer e encontrar tanta satisfa­
ção na form a do seminário de investigação: mais do que dar
um ensino completo, a tentativa vulgar é a de um questiona­
mento ininterrupto em que cada aquisição relança a interro­
gação, em que todo o resultado é o ponto de partida para
outras questões, onde sobretudo a conversação mantém o vai­
vém entre o espírito e a realidade. Com a experiência, desco­
bri que o ritmo mais adequado à respiração da inteligência na
busca era um desenvolvimento em dois ou três anos. Num
quarto de século conduzi, assim, uma investigação colectiva,
casando estreitamente o estudo do passado com a observação
do presente e fecundando a análise política pelo conhecimento
das experiências históricas; sobre uma dezena de temas: as igre­
jas, assim como instituições políticas, a participação, os ro­
334
deios políticos, o segredo na política, a parte da memória na
cultura política.
Os meus centros preferenciais de interesse fixam -
se em q u atro vocábu los cujo enunciado desenha um
tetrágono: as ideias, a opinião, o facto religioso, a vida
política.
As ideias? É o mais antigo dos quatro. Vêm-me à memória
conversas tidas com um amigo, desaparecido em 1944: no
tempo do serviço militar, no coração do Inverno de 1940,
tínhamos já o projecto de escrever um a história da vida das
ideias. Partilhávam os a convicção de que as ideias tinham
uma existência própria que não eram a simples projecção
dos interesses ou de uma organização social: estávamos
igualmente persuadidos de que elas tinham um poder e, por­
tanto, que ao estudá-las não nos deixávam os lograr por um
reflexo mas agarrávam os nelas uma das componentes da
história. Este interesse pelas ideias não se separava de uma
percepção histórica: no nosso espírito, o termo história não
tinha menos im portância do que a referência às ideias; não se
estudam estas abstraindo-as do tempo da sua eclosão, nem
independentemente do acolhimento que receberam dos con­
temporâneos ou das gerações seguintes. Eu estava, em conclu­
são, menos interessado pela sua coerência interna, a sua
colocação num conjunto sistemático, do que pelas suas rela­
ções com os homens, a sua sorte ou o seu azar, a sucessão
dos acasos que afectaram a sua difusão, as alterações que elas
sofreram.
Estas precisões sobre a minha preferência pelo estudo das
ideias terão dado a entender que a opinião — o segundo
termo da minha enumeração — não é um pólo concorrente
com o qual ela deveria partilhar a atenção: é o prolongamento
da mesma orientação. Uma opinião é uma aproximação:
designa o conjunto de crenças e engloba essa ordem de factos
à qüal Alphonse D upront deveria dar um estado civil ao in­
troduzir a denominação, mais sugestiva do que harmoniosa,
de mental colectivo. Era, sou sempre atraído pelo que os ho­
mens — e não só as primeiras figuras — pensam, acreditam,
pelas suas convicções políticas, as suas crenças religiosas, a sua
sensibilidade, a sua afectividade, os valores que dão um sen­
tido à sua existência e até aos seus comportamentos, na medida
em que se esclarecem por meio desses factores culturais.

335
Foi esta orientação que me inspirou o tema que escolhi
para a minha tese: ele apresentou-se em boa hora ao meu
espírito; creio bem que foi mesmo antes de ter terminado
a minha licenciatura. Disputou o lugar com alguns outros,
entre os quais um estudo do orleanismo como filosofia políti­
ca, sistema de pensamento e família de espírito, e também uma
história da missa como prática e experiência no século xix.
Lucien Febvre, que consultei no meu embaraço, era céptico
quanto à possibilidade de fazer uma tese sobre a imagem da
realidade americana na opinião francesa; via antes nisso
matéria para alguns artigos bem feitos. Charles H. Pouthas
aceitou muito liberalmente dirigir este tema. Em 1947, este tipo
de assunto era ainda relativamente insólito: foi só alguns anos
depois que Pierre Renouvin fez a teoria do estudo das forças
profundas na história das relações internacionais. O tema
seduzia-me porque conjugava duas ou três das minhas atrac-
ções: a vida das ideias, a evolução da opinião e as clivagens
políticas.
O mesmo agrupamento de motivos, a mesma combina­
ção de sentimentos inspiraram um pouco mais tarde a esco­
lha do tema para o livro em que trabalhava concomitante­
mente, que foi o meu verdadeiro primeiro livro e que continua
ainda hoje, trinta anos depois, aquele com que me identificam
mais vulgarmente: L a D ro ite en F ran ce. Quando se cita
apenas um título, se só se leu uma obra, é geralmente esta.
A identificação tem uma certa conformidade: abriu-me as
portas da Fundação Nacional das Ciências Políticas. Sobre­
tudo, é um daqueles que exprimem mais fielmente as minhas
orientações de espírito. E, todavia, antes de parar definitiva­
mente a minha escolha sobre o estudo de um a tradição de
pensamento, hesitei durante algum tempo entre ele e uma
história de greve: ou seja, mais ou menos o tema que Michelle
Perrot viria a tratar magistralmente. Em que se baseia a orien­
tação de uma vida e de uma obra? Uma história da greve
teria feito de mim um especialista da história social, teria
ganho uma pequena reputação de historiador social, teria
escrito no L e M o u v em en t so cial, seria sócio do Centro de
História do Sindicalismo e se os m ed ia me chamassem de vez
em quando, seria para com entar os conflitos de trabalho ou
explicar as inovações da legislação social. A escolha que fiz
era, sem dúvida, a mais conforme com as minhas inclinações
336
secretas e encontrava a conivência do meu interesse pela
política. Direi que essa atenção para a coisa política é tão
antiga como o sentimento da duração, cujo nascimento faço
proceder da minha vocação de historiador? Talvez não, mas
não deve ser muito mais tardio. Terei dificuldade em mencio­
nar a minha prim eira recordação política: creio, indo passear
com o meu pai para os lados da estação Saint-Lazare, ter
assistido de longe ao cerco que faziam, nos escritórios da rua
de Rom a, os membros da Acção Francesa; aprendi muito
mais tarde a datar esse facto do mês de Junho de 1927
e a apreciar o seu significado, mas que podia representar
o acontecimento para uma criança de 8 anos? Lembro-me
também das vésperas do l.° de M aio da minha infância;
à saída do liceu, cavaleiros da guarda republicana vinham
reforçar os comissariados da polícia. Lembranças escassas que
atestavam a emergência do político e me faziam pressentir
a existência de um domínio misterioso. Nasci verdadeiramen­
te para a consciência política com o Inverno de 1933-1934:
o caso Stavisky, a noite do 6 de Fevereiro, a morte do
conselheiro Prince. Desde então, nunca mais deixei de lhe
dar um interesse de todos os dias; é preciso reconhecer que
a política não poupou nada a minha geração. Para um
historiador, ter 20 anos no dia da assinatura dos acordos de
Munique não predispõe para considerar negligenciável a polí­
tica. O mesmo se passa com o atravessar da linha dos 50 anos
em 1968. A política conduziu-nos com a sua vara de ferro.
Também não tenho grande mérito por a considerar determi­
nante. Os anos seguintes conseguiram convencer-me da im­
portância de todo o sistema para se aperceber do fenómeno
da guerra que não inclui a explicação racional e que exerce
um papel considerável na história dos homens. Descobri,
mais tarde, o fascínio que exerce, no espírito, o poder, que
é uma figura do sagrado assim como uma necessidade da vida
em sociedade. Mais tarde ainda, a responsabilidade de uma
universidade numa fase crítica, pondo-me em contacto estrei­
to com os poderes públicos, far-me-á tocar no carácter aleató­
rio de toda a acção política e nas incertezas que acom pa­
nham toda a decisão. Mais do que qualquer outro fenómeno
político, o facto eleitoral virá a reter a minha atenção: não
preenche apenas o meu am or pelos números, interessa-me
pelo que revela de constâncias de opinião; incomoda-me pelo
337
»a
segredo que o rodeia até ao último momento em que começa
a contagem; faz-me ver o mistério dos comportamentos colec-
tivos pela extraordinária homogeneidade que caracteriza as
suas evoluções.
Por todas estas razões, com a distância que apaga os aci­
dentes de terreno e simplifica as linhas, parece-me que a es­
colha de um estudo da direita, desde a primeira Restauração
até aos nossos dias, não foi um produto do acaso, mas
correspondia à minha vocação profunda. «Nos nossos dias»,
parei a minha escolha em 1950: era ainda o começo da
VI República e, para a direita, o fundo do abismo. Os primei­
ros sinais precursores da sua subida não estavam ainda
desenhados no firm am ento político: nada então deixava
prever que, dois anos mais tarde, um moderado, Antoine
Pinay, acederia à direcção do governo e um ano mais tarde
um outro moderado, René Coty, seria levado à presidência da
República. A o decidir escrever a história da direita eu não
cortejava a facção em ascensão e podia dar a impressão de
lavrar a certidão de óbito de uma fam ília de pensamento. Tal
não era a minha ideia, pois estava demasiado intimamente
convencido da perenidade das ideologias, e não afastaria
a esperança de dar um a contribuição para a inteligência da
vida política contem porânea. Mas quem sabe se não foi
precisamente o descrédito ém que a direita teria então caído,
o declínio inexorável ao qual ela parecia prometida que me
orientaram nessa direcção? Sempre tive uma propensão para
tom ar a defesa dos regimes ou das tendências que uma
reviravolta da sorte subjuga aos vencedores do presente.
Espírito de contradição? Talvez, mas também exigência de
verdade que leva o historiador a restabelecer a justiça. Estou a
ver-me nos primeiros dias de Julho de 1940, no dia 4 ou 5,
fazendo guarda à entrada da caserna de Clerm ont-Ferrand
que acabávam os de reocupar depois dos alemães e fazendo
em pensamento o balanço de tudo o que a III República fizera
para a grandeza da França, arm ando-m e com argumentos
objectivos contra o processo que a Revolução Nacional se
apressava a instruir contra a República. E, todavia, não era
indulgente para as faltas e as fraquezas do regime que acaba­
va de se afundar. Também em 1958 não subscrevi os excessos
da crítica da VI República. Assim como não saboreei, na
Prim avera de 1981, as arrogantes simplificações da nova
338
m aioria e o seu absoluto desconhecimento da obra positiva
feita pelos dois decénios precedentes. Pressentia já que viria a
defender, p or sua vez, essa m aioria contra acusações injustas.
É que nenhum regime é tão pernicioso como gosta de dizer
aquele que o suplantou nem nenhum partido é tão estúpido
ou criminoso como fazem ver os seus detractores. O senti­
mento da relatividade das coisas e a exigência da equidade
não são os frutos menos apreciáveis da inteligência histórica.
A o escrever esta história da direita, que punha em evidên­
cia a pluralidade das correntes que congrega e sublinhava
a continuidade das tradições políticas, eu atraía uma reflexão
que desde então não conheceu tréguas sobre o significado da
dicotomia direita-esquerda, a dimensão das clivagens políti­
cas, o enraizamento das famílias de pensamento. Estendi-a
depois à m aior parte das outras ideologias ao capricho das
circunstâncias ou das solicitações ou de mim mesmo: sucessi-,
vamente, interessei-me pelo socialismo, o radicalismo, o gau-
lismo, consagrei um livro à história do anticlericalismo, fiz
cursos sobre a democracia de inspiração cristã. Só o comu­
nismo ficou fo ra do meu campo de estudo: não só por ser
a ideologia mais afastada da minha sensibilidade, por usar
o delicioso eufemismo pelo qual os comunistas reivindicam
hoje a sua identidade, mas também porque suscitou uma
quantidade de trabalhos excelentes ao lado dos quais eu
temeria fazer fraca figura. Pratiquei, assim, na minha profis­
são de historiador, um pluralism o que não creio ser apenas
üm traço da democracia, mas que considero ser uma virtude
do historiador. Se a história fo r boa em alguma coisa,
é a desprender-se dessas estreitezas e a entrar na inteligência
de outras form as de pensamento para além daquela em que
o acaso nos fez nascer.
O estudo histórico de uma tradição política prolongada
até. aos nossos dias alcançava um traço de união entre
a exploração do passado e a explicação do presente, entre
a histórica política e a ciência política. Em 1953, eu não
percebia ainda todas as suas implicações epistemológicas. Dez
anos depois, foi conscientemente que decidi casar uma e outra
começando um a história seguida de vida política em França,
cujo propósito era aplicar ao estudo do passado os conceitos
e a problemática da jovem ciência política, esclarecendo
a compreensão do presente pelo conhecimento dos antece­
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dentes. Alguns historiadores temeram que eu traísse a história
em proveito de não se sabe que disciplina cuja existência lhes
parecia incerta e cuja qualidade científica parecia mais duvi­
dosa. Ora, sem sucumbir a um imperialismo intelectual onde
costumam cair os historiadores, a minha ambição erá, pelo
contrário, restituir à história as províncias que ela teria aban­
donado a outros. Tinha a ideia de pôr em obra, no campo da
actividade política do homem, o grande projecto de uma
história total e a certeza de ser fiel às minhas orientações
mais antigas, constitutivas da minha personalidade intelectual,
o sentimento da duração, a curiosidade por tudo o que é do
homem e uma atenção preferencial aos factos da cultura
e à dimensão política.

P.

No fim deste m ergulho nas profundezas do meu passado,


cresce em mim um a acção de graças à destreza da disciplina
histórica por tudo o que me ensinou e ela trouxe-m e ainda,
sem dúvida, mais do que sei.
„ Defendeu-me do espírito de sistema, preservou-me do
orgulho do espírito que pensa deter a explicação suprema das
coisas, vacinou-m e contra o doutrinarismo e o sectarismo
ideológico. Imunizou-me também contra as utopias de um
e outro lado, da ilusão de poder renovar a «cadeia dos
tempos» e fechar os parênteses, assim como da atracção da
tábua rasa, do fascínio de uma mudança radical da existência
colectiva. Ensinou-me ainda a infinita diversidade das coisas,
a complexidade dos seres e das situações, a contingência dos
acontecimentos, a lógica da história que não é a da razão
lógica. '
Se um pouco de história pode conduzir ao cepticismo e
engendrar uma espécie de indiferentismo que viria a conside­
rar que todas as causas são importantes e todas as soluções se
equivalem, mais história cura esse relativismo. O verdadeiro
historiador não será aquele cuja abertura de espírito não
apagou o fervor, que sabe aliar lucidez e simpatia, rigor e
fervor? Na ligação ao passado e observação do presente, na
análise das condutas e na reflexão sobre o funcionamento
das sociedades, tirei m otivos de adm iração pela aventura

340
húmana, o engenho inventivo dos homens, a sua aptidão
para triunfar sobre a resistência das coisas, para ordenar a
terra, para criar riquezas, para edificar instituições, para
construir sociedades. Tenho muita pena da quantidade de
sofrim entos suportados pela humanidade, aqueles em que
o homem não influi, aqueles também de que ele é autor.
A história também me inculcou a admiração pela sua persistên­
cia, pela capacidade de resistência à opressão, por uma
ligação visceral à liberdade, pela coragem de testemunhar a
sua fé em valores transcendentes.
Haverá em todo o universo do conhecimento uma via que
vá mais longe na compreensão do homem? Na verdade, é
verdadeiro o adágio antigo que define a história como profes­
sora da verdade, fornecedora de sensatez, mestra da vida.

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Título original: E s s a is D ’E g o - H is to ir e

© Éditions Gallimard, 1987


Tradução de Ana Cristina Cunha
Capa de Edições 70
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para
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em Agosto de 1989

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