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Em 1960, o sociólogo Daniel Bell publicou The End Of Ideology (O Fim da Ideologia), onde
argumentava que a ideologia – entendida no sentido de uma perspectiva filosófica coerente e
irretratável ou um sistema de abstrações com o objetivo de ser tanto uma alavanca para
mudar a sociedade quanto uma descrição para explicá-la – estava morta, pelo menos no
Ocidente, e nos Estados Unidos em particular. Uma combinação de democracia e
prosperidade em massa havia “resolvido” a questão política que agitava a humanidade desde
a época de Platão. Não haveria mais ideias grandiosas e transformadoras, apesar de
terrivelmente errôneas; tudo o que restava era a administração pública com, no máximo,
algumas disputas sobre pequenos detalhes de política. A nova versão do velha
expressão, mens sana in corpore sano, uma mente sadia em um corpo sadio, era uma
economia capitalista em uma política democrática liberal. Essa foi a lição da história.
Como vemos, é claro, não tivemos muito tempo (muito menos séculos) para sofrermos de
tédio existencial. Nossos sonos dogmáticos – usando os termos de Kant para o estado
filosófico do qual David Hume o despertara – mal começaram quando um grupo de jovens
fanáticos conduziu aviões comerciais às Torres Gêmeas e ao Pentágono, demonstrando,
assim, que os pronunciamentos da morte tanto da ideologia como da história foram um tanto
precipitados.
Com efeito, deveríamos ter notado, ou pelo menos adivinhado, sem precisarmos ser
lembrados. As conclusões finais de Fukuyama contêm uma sugestão da função psicológica
que a ideologia desempenha. Não é apenas o descontentamento com o estado do mundo
que estimula o desenvolvimento e a adoção de ideologias. Afinal, o descontentamento com a
sociedade sempre existiu e sempre existirá. A insatisfação é o estado permanente da
humanidade, pelo menos da humanidade civilizada. Nem todo homem insatisfeito é um
ideólogo: se fosse, dificilmente haveria alguém que não fosse ideólogo. A ideologia, no
entanto, ao menos como fenômeno de massa, é um desenvolvimento comparativamente
recente na história humana.
Quem são, então, os ideólogos? São pessoas carentes de propósito na vida, não em sentido
mundano (ganhando o suficiente para comer ou pagar a hipoteca, por exemplo), mas no
sentido de transcendência do pessoal, de segurança de que há algo mais na existência do que
a própria existência. O desejo de transcendência não ocorre para muitas pessoas lutando por
sustento. Evitar o fracasso material dá um significado bastante suficiente às suas vidas. Por
outro lado, os ideólogos pouco se preocupam com seu pão diário. Sua dificuldade com a vida
é menos concreta. Sua segurança lhes dá o lazer, sua educação a necessidade e, sem dúvida,
sua disposição a inclinação, para encontrar algo acima e além do fluxo da vida cotidiana.
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grandes projetos, ou assumirem papéis de liderança aos quais acreditam que sua educação
lhes dá direito. As atrações da ideologia não são muito encontradas no estado do mundo –
sempre lamentável, mas às vezes melhorando, pelo menos em certos aspectos – mas em
estados de espírito. E em muitas partes do mundo, o número de pessoas instruídas
aumentou bem mais rápido que a capacidade das economias de recompensá-las com
posições que acreditam serem proporcionais às suas realizações. Mesmo nas economias mais
avançadas, sempre encontraremos pessoas educadas e infelizes buscando o motivo pelo qual
elas não são tão importantes quanto deveriam ser.
Um dos primeiros a notar a politização dos intelectuais foi o escritor francês Julien Benda,
cujo La trahison des clercs de 1927 – “A traição dos clérigos”, sendo “clérigo” compreendido em
seu sentido medieval como uma pessoa educada distinta dos leigos sem instrução – deu uma
expressão ao discurso educado. Hoje, usa-se a expressão com mais frequência a para referir-
se à fidelidade que os intelectuais deram ao comunismo, apesar do fato evidente de que o
estabelecimento de regimes comunistas levou, em todos os lugares e sempre, a uma
diminuição da liberdade intelectual e do respeito pelos direitos individuais que os intelectuais
alegavam defender.
Benda quis se referir a algo muito mais amplo, embora o apoio ao comunismo estivesse sob
sua rubrica: a crescente tendência dos intelectuais de seguir determinadas linhas de
pensamento, não por causa da verdade ou para orientar a humanidade sub specie
aeternitatis[1], mas pelo fim de alcançar o poder adotando, justificando e manipulando as
paixões políticas comuns a setores da humanidade, fossem eles nacionais, raciais, religiosos
ou econômicos. As paixões políticas que Benda mais temia quando escreveu seu livro eram o
nacionalismo, a xenofobia e o antissemitismo, que até então possuíam muitos apologistas
intelectuais, e que, de fato, logo se mostraram cataclísmicos em seus efeitos; deveras, ele
estava defendendo a autonomia da vida intelectual e artística dos imperativos políticos.
O exemplo mais óbvio de uma ideologia que ganhou proeminência – ou melhor, que entrou
proeminentemente em nossa consciência – após a queda do comunismo foi o islamismo. A
efeito de sua ênfase no retorno à pureza islâmica, e sua aparente – na verdade, berrante –
rejeição da modernidade, a maioria das pessoas não percebia quão moderno era o
islamismo, não apenas no tempo, mas no espírito. Isso fica evidente com a leitura de apenas
um dos textos fundamentais do islamismo: Milestones de Sayyid Qutb, publicado pela primeira
vez em 1964, onde a marca do marxismo-leninismo está profunda, especialmente o
componente leninista.
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Qutb inicia com críticas culturais que alguns podem achar estranhamente prescientes. “A
liderança da humanidade pelo homem ocidental está agora em declínio, não porque a cultura
ocidental tenha se tornado pobre materialmente ou porque seu poder econômico e militar se tornou
fraco”, escreve ele. “A era do sistema ocidental chegou ao fim principalmente porque está privado
daqueles valores vivificantes que o permitiam ser o líder da humanidade.” Uma vez que, de acordo
com Qutb, esses “valores vivificantes” não podem vir do Bloco Oriental, ele pensa (como Juan
Domingo Perón, o ditador argentino, e Tony Blair, o ex-primeiro ministro britânico) que um
Terceiro Caminho deve existir: o qual, diz ele, só pode ser o Islã.
Como Lenin, Qutb pensava que a violência seria necessária contra a classe dominante (dos
burgueses em Lênin, dos incrédulos em Qutb): “Aqueles que usurparam a autoridade de Deus e
estão oprimindo as criaturas de Deus não desistirão de seu poder apenas através da pregação”. Outra
vez como Lênin, Qutb acreditava que até que a autoridade humana desaparecesse, a
autoridade do líder deveria ser total. Referindo-se ao “árabe” da época de Meca – uma época
cujas qualidades morais ele deseja restaurar -, Qutb afirma: “Ele deve ser treinado para seguir a
disciplina de uma comunidade que está sob a direção de um líder, e referir-se a esse líder em todos os
assuntos e obedecer às suas injunções, ainda que elas possam contrariar seu hábito ou seu gosto”.
Não há muito com o que Lenin pudesse discordar. O historiador stalinista britânico Eric
Hobsbawm escreveu de si mesmo: “O Partido teve a primeira, ou mais precisamente, a única
reivindicação real em nossas vidas… O que quer que tivesse ordenado, teríamos obedecido”.
Qutb é tão explícito quanto Lenin ao sugerir que seu partido deve ser uma vanguarda e não
um partido de massas, pois apenas uma vanguarda se mostrará suficientemente dedicada
para realizar a revolução. E como o leninismo, o islamismo de Qutb é dialético:
O [Islã] não enfrenta problemas práticos com teorias abstratas, nem confronta estágios
variados com significados imutáveis. Aqueles que falam sobre Jihad no Islã e citam versos do
Alcorão não levam em conta este aspecto, nem compreendem a natureza dos vários estágios
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através dos quais o movimento se desenvolve, ou a relação dos versos revelados em várias
ocasiões com cada estágio.
Qutb era um homem estranho: jamais se casou, por exemplo, porque (assim alegou) não
encontrou uma mulher com pureza suficiente para ele. Você não precisaria ser Freud para
encontrar a explicação suspeita, ou encontrar sua reação a Greeley, Colorado, em 1950, onde
passou um período em uma bolsa de estudos – vira aquilo como um foco de vício
desenfreado – um tanto histérico, uma capa para algo fervendo profundamente e
perturbadoramente dentro dele. A devoção a uma ideologia pode fornecer uma espécie de
resposta a problemas pessoais e, como os problemas pessoais são comuns, não é de
surpreender que várias pessoas escolham a ideologia como a solução.
O pensamento ideológico não se limita aos islamistas em nosso meio. A necessidade de uma
lente simplificadora que possa filtrar as intratabilidades da vida e de nossas próprias vidas em
particular, é eterna; e com o desaparecimento do marxismo no Ocidente, pelo menos em sua
forma mais economicista, surgiram várias ideologias substitutas entre as quais os
descontentes podem escolher.
A maioria começou como queixas legítimas, mas enquanto as reformas políticas lidavam com
demandas razoáveis, as demandas se transformavam em ideologias, ilustrando assim um
fato da psicologia humana: a raiva nem sempre é proporcional à sua ocasião, mas pode ser
uma recompensa poderosa em si mesma. As feministas continuaram a ver todos os
problemas humanos como uma manifestação do patriarcado, ativistas dos direitos civis como
uma manifestação do racismo, ativistas dos direitos dos homossexuais como uma
manifestação da homofobia, antiglobalistas como uma manifestação da globalização e
libertários radicais como uma manifestação da regulação estatal.
Quão agradável é ter uma chave para todas as misérias, tanto pessoais como sociais, e
conhecer a felicidade pessoal por meio da busca constante de um fim para toda a
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humanidade! A todo custo, deve-se manter à distância a percepção que veio cedo na vida
de John Stuart Mill, como descreveu em sua autobiografia. Ele se perguntou:
“Suponha que todos os seus objetivos na vida foram realizados; que todas as mudanças nas
instituições e opiniões que você está procurando, pudessem socorrer neste mesmo instante: isto
seria uma grande alegria e felicidade para você?” E uma autoconsciência irreprimível respondeu
distintamente,“Não!”. Meu coração afundou dentro de mim: todo o alicerce sobre o qual minha
vida fora construída desabou. Toda a minha felicidade fora encontrada na busca contínua
desse fim. O fim deixou de encantar, e como poderia haver algum interesse nos meios? Eu
parecia não ter mais nada para o que viver.
Essa é a pergunta que todos os ideólogos temem, e explica por que a reforma, longe de
encantá-los, apenas aumenta sua ansiedade e raiva. Explica também por que a crença
religiosa tradicional não é uma ideologia no sentido em que estou usando o termo, pois,
diferentemente da ideologia, reconhece explicitamente as limitações da existência terrena, o
que podemos esperar dela e o que podemos fazer por nós mesmos. Algumas ideologias têm
o aroma da religião; mas a certeza absoluta dos, digamos, Anabatistas de Münster, ou dos
islamistas de hoje, é irreligiosa, uma vez que reivindicaram ou reivindicam saber até o último
detalhe o que Deus requer de nós.
Por exemplo, uma coluna recente no The Guardian, do ambientalista George Monbiot, trazia a
manchete: O PLANETA ESTÁ AGORA TÃO DEVASSADO QUE APENAS A RENOVAÇÃO TOTAL DE
ENERGIA PODE NOS SALVAR. Monbiot, é verdade, não nos oferece o céu na terra se
seguirmos suas prescrições; apenas o mero – e de modo algum garantido, pois “poderia ser
tarde demais” – impedimento da aniquilação biológica total. Mas por trás da urgência de
Monbiot, ou mesmo histeria, sente-se uma profunda necessidade de poder. Ele não pode
realmente acreditar no que diz, para começar. “Queremos ser lembrados”, pergunta
retoricamente, “como a geração que salvou os bancos, mas deixou a biosfera entrar em
colapso?” Se é realmente verdade que devemos ou ter “renovação total de energia” ou
morrer, então, não podemos ser lembrados como a geração que deixou a biosfera entrar em
colapso, pois se deixarmos que ela desmorone, ex hypothesi, ninguém estará por perto para
lembrar-se de nós. Isso me lembra pacientes que costumava acompanhar que tentariam o
suicídio, na clara expectativa de uma longa vida pela frente, a menos que alguém fizesse o
que eles queriam. E embora Monbiot diga que é incerto que qualquer coisa que façamos
agora fará alguma diferença, propõe que todo ser humano na terra deva seguir suas
prescrições.
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A ideologia ambientalista ameaça fazer sérias incursões no Rule by law [2] da Grã-Bretanha.
Em setembro passado, seis ambientalistas foram absolvidos de terem causado US $ 50 mil
em danos a uma usina – não porque não o fizeram, mas porque quatro testemunhas,
incluindo uma gronelandesa, testemunharam a realidade do aquecimento global.
Vale recordar a desastrosa absolvição do júri em 1878, em São Petersburgo, de Vera Zasulich,
pela tentativa de assassinato do general Trepov, com fundamento na suposta pureza de seus
motivos. A absolvição destruiu toda a esperança de estabelecer o estado de direito na Rússia
e deu início a uma era de terrorismo que levou diretamente a uma das maiores catástrofes da
história humana.
Tradução: Valéria Cutrim
Notas:
[1] Do latim “do ponto de vista da eternidade”, expressão honorífica usada por Spinoza para
designar o que é universalmente e eternamente verdadeiro, sem nenhuma referência a ou
dependência nas frações temporais da realidade.
[2] O que na tradição do civil law é chamado de “Estado” de Direito, recebe, nos países que
adotaram o sistema commom law, o nome de “governo” (rule) of law ou “rule by law”,
ressalvadas as diferenças teóricas e históricas entre ambos os princípios.
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