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FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA


NO SÉCULO XVII:
A AÇÃO DE GRAÇAS PELA RESTAURAÇÃO DA
CAPITANIA DE PERNAMBUCO
CONTRA OS HOLANDESES

Kalina Vanderlei Silva1

o século XVII o Império Português, dentro do contexto da União


Ibérica e depois dela, susteve um calendário de festas públicas
que exaltavam a glória do rei e da Igreja com celebrações
ritualizadas, onde a pompa estava nos objetos de cena, como
altares, arcos de triunfos, mas também nos gestos das
autoridades que delas participavam. Essas festas, de caráter nitidamente
barroco, abundavam nas cortes ibéricas, mas também nas grandes cidades
dos dois impérios, e incluíam desde entradas solenes, como as dos Filipes em
Lisboa, até datas sagradas como Corpus Christi e comemorações de
conquistas, como a celebração da vitória castelhana sobre Barcelona em 16522.
Organizadas pelas câmaras municipais, as festas barrocas tinham, assim,
a função principal de celebrar a glória da Coroa e garantir a lealdade de seus
vassalos, além de marcar as hierarquias de poder das autoridades da cidade
que a organizava perante os olhares dos expectadores. E, nesse contexto, a
comemoração de uma vitória bélica constituía um dos momentos privilegiados
para essas festas, pois permitia à cidade afirmar sua lealdade ao rei e ao
mesmo tempo cantar sua própria magnificência.
Nesse sentido, a festa barroca que comemorava o sucesso das armas do

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do GEHSCAL -
Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina (UPE/ Diretório CNPq).
Professora Adjunta da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, da
Universidade de Pernambuco, e Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora financiada
pela FACEPE. E-Mail: <gehscal@uol.com.br>.
2
Para as festas barrocas, ver: SILVA, Kalina Vanderlei. Cerimônias públicas de manifestação
de júbilo: símbolos barrocos e os significados políticos das festas públicas nas vilas
açucareiras de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. In: ______ (org.). Ensaios culturais
sobre a América Açucareira. Recife: Edupe, 2008. Já para as comemorações das entradas
reais em Lisboa, ver: MEGIANI, Ana Paula. O rei ausente: festa e cultura política na visita
dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. Para a comemoração
das armas de Castela contra Barcelona, ver: DE LA FLOR, Fernando & BLASCO, Esther.
Política y fiesta en el Barroco - 1652: descripción, oración y relación de fiestas en Salamanca
con motivo de la conquista de Barcelona. Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1994.
68 KALINA VANDERLEI SILVA

rei se traduzia em uma tentativa da elite urbana reafirmar seu próprio status,
demarcando a hierarquia entre seus pares, demonstrando seu prestígio
perante o povo e, ao mesmo tempo, sua lealdade perante a Coroa. Sem
esquecer que a elite local aproveitava ainda para relembrar ao rei seus serviços
prestados.
Imagem paradigmática dessa funcionalidade foi a comemoração da
conquista de Barcelona pela Coroa castelhana em uma festa organizada e
celebrada em Salamanca em 1652, com direito a toda a pompa barroca e
publicação de relação comemorativa. E se tais eventos não eram raros na
Península Ibérica de então, também as câmaras municipais americanas do
período procuravam se manter ao corrente dos padrões festivos europeus.
Assim foi que, poucas décadas depois, Olinda seguiu muito de perto o modelo
de Castela ao promover a festa de ação de graças pela Restauração da Capitania
de Pernambuco contra os holandeses. Festejo que, assim como sua congênere
castelhana, assumiu uma função múltipla de espaço de demarcação de
prestígios locais, lealdades régias e de reafirmação de uma identidade fidalga
por parte da elite açucareira. Identidade essa construída em torno da
Restauração de Pernambuco e da memória desse fato.
Olinda, a Elite Açucareira e a Restauração
Em 1654 terminava a ocupação da Capitania de Pernambuco, e anexas,
pela WIC, a Companhia das Índias Ocidentais, que desde 1630 controlava a
região. A chamada guerra de Restauração, que opusera os senhores de
engenho de Pernambuco e seus aliados à WIC, durara de 1648 a 1654 e deixara
um saldo de destruição nos canaviais, nas cidades e nas fortunas, permitindo
à Coroa portuguesa retomar o poder sobre a Capitania, inclusive de forma
mais presente e intrusiva que antes de 1630, visto que nesse segundo período
de governo português os donatários de Pernambuco haviam dado lugar aos
governadores metropolitanos3.
As muitas modificações sociais, econômicas e políticas da Capitania haviam
atingido todos os grupos sociais, dos escravos que fugiram para o quilombo
de Palmares, passando pelos homens livres ingressos nas inchadas fileiras do
exército ou moradores da crescente povoação do Recife, até a elite de
senhores de engenho que encabeçara a guerra. Esses senhores, que se
denominavam restauradores, viram seu prestígio perante a Coroa atingir o
ápice com os sempre lembrados serviços prestados na devolução da capitania
ao império. Um prestígio que lhes garantiu a manutenção de seu poder político
mesmo quando, no século XVIII, os mercadores já haviam se tornado um
grupo hegemônico4.

3
A guerra de Restauração é bastante conhecida a partir do estudo clássico de MELLO,
Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo:
Topbooks, 1998.
4
A situação da capitania no pós-guerra pode ser vista em SILVA, Kalina Vanderlei. ‘Nas
Solidões vastas e assustadoras’: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 69

Foi essa elite de senhores, auto-intitulada ‘nobreza da terra’, que projetou


e realizou a festa da Restauração em celebração de seus próprios feitos
heróicos, conseguindo, para tanto, o beneplácito da Coroa portuguesa.
Foram eles que, no século XVII, após retornarem à jurisdição portuguesa,
esmeraram-se em fazer das ruas de Olinda, e mais tarde de Igarassu, palco
para as festividades barrocas do calendário régio, adotando as festas
regulares e extraordinárias da Coroa portuguesa, com procissões, entradas
de governadores, celebrações de casamentos e mortes da realeza, em
cerimônias que desfilavam nas ruas e praças e tomavam espaços especiais
nas igrejas. Nelas encontrando o perfeito cenário para o desenvolvimento de
seus papéis de ‘fiéis vassalos’ da Coroa.
Nessas ocasiões, os senhores de engenho, traduzidos em oficiais das
câmaras, realizavam performances que afirmavam ou confirmavam seus
status sociais, assegurando-lhes prestígio e honra. Em cada festa, fosse
procissão pelas ruas ou celebração na Igreja da Sé, os espaços de poder eram
rigidamente demarcados: nas procissões, estar mais próximo aos símbolos
de autoridade religiosa ou leiga, como o pálio que guardava o Santíssimo
Sacramento, informava aos espectadores a importância daquele ator. Não
poucas vezes, governadores, bispos e oficiais das câmaras de Olinda e
Igarassu se engajaram em disputas entre si devido a diferenças de opinião
sobre onde deveria se sentar o governador quando em presença do Santíssimo
Sacramento, ou onde, na procissão, deveria ser alocado o pendão que
simbolizava a câmara, ou ainda onde deveria se situar o governador durante
a assistência de uma cerimônia organizada pela câmara5.
Exemplo dessas querelas foi a disputa entre a Câmara de Olinda e o
Governador de Pernambuco, no final do século XVIII, em torno do ritual de
encontro entre essas duas instâncias de poder. Nessa ocasião, a câmara
escreveu ao príncipe regente, então D João, sobre o assunto:
Porquanto Vossa Alteza Real pelas cartas régias que vão insertas
nas certidões em anexo decidiu que este Senado, debaixo do
estandarte de que jamais nunca se devia separar, não representava
menos a Sua Real Pessoa do que os governadores. Porquanto sem
embargo de se achar assim decidido, os governadores pretendem,

açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2009. E a ascensão da elite mercantil
em SOUZA, George Cabral. Elite y ejercicio de poder en el Brasil Colonial: La Cámara
Municipal de Recife (1710-1822). Tesis Doctoral. Facultad de Geografía y Historia de la
Universidad de Salamanca. Salamenca, 2007.
5
Por exemplo, REQUERIMENTO do Bispo de Pernambuco ao Rei pedindo se remeta ao
Desembargador do Paço a representação dos conflitos com o governador de
Pernambuco sobre o cerimonial romano e o lugar que deve ocupar o assento do
governador na Igreja. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa- AHU_ACL_CU_015, cx. 16.
1636; PARECER incluso na carta do capitão-mor de Igarassu, Francisco Xavier Carneiro
da Cunha, ao rei, D Jose I, sobre as dúvidas a respeito dos assentos nas festas e
procissões daquela vila assistidas pela câmara. AHU_ACL_CU_015, Cx. 081, D. 6751.
70 KALINA VANDERLEI SILVA

quando este senado se encontra com eles por ocasião das festas
reais, que este senado debaixo de estandarte os vá receber aos
adros das igrejas, como se este senado representasse pessoa inferior
a que eles representam. E porquanto finalmente nos parece que os
governadores não podem pretender semelhante obséquio, que
somente lhes deveria ser feito se este senado não representasse a
Real Pessoa de Vossa Alteza assim e do mesmo modo que lhes
representam. Portanto suplicamos a vossa alteza real aja por bem
decidir em que lugar deve esse senado receber aos governadores,
e aos excelentíssimos reverendíssimos bispos em semelhantes
ocasiões.6
Nessa carta, a Câmara de Olinda insistia nas mesmas reivindicações que já
vinha fazendo desde o século XVII sobre seu papel como representante da
Coroa. A mesma reivindicação que fez, por exemplo, em 1677, quando, depois
do estabelecimento dos governadores do rei na capitania, em geral sediados
no Recife, os senhores de Olinda começaram a disputar com eles a posição de
representantes da Coroa, como podemos ver na ordem régia passada em
julho daquele ano:
Oficiais da Câmara da Capitania de Pernambuco. Eu o Príncipe vos
envio muito saudar. Havendo mandado ver o que me escrevestes
em carta de 10 de junho do ano passado, sobre as diferenças que
tivésseis com o Vigário Geral da Matriz da Vila de Olinda acerca do
lugar em que nas procissões havia de ir o pendão da Câmara, por
querer que saísse adiante do pálio, fora do corpo da câmara e o que
sobre isso resolveu o governador D. Pedro de Almeida, e porque
convém atalhar diferenças, me pareceu dizer-vos que o governador
não representa mais minha pessoa do que a representa o senado: e
assim não havia de resolver que nas procissões que não fosse o
pendão porque só quando eu vou nelas deixa de ir o pendão e nas
mais começa do pendão o corpo do senado da câmara, e nesta
forma se deve observar daqui em diante; e assim o mando advertir
ao Vigário Geral, e que não inquiete meus ministros contra o estilo
dos [ ] de que não registra indecência alguma.7
Essa reclamação da Câmara de Olinda é eloquente sobre sua vontade e
insistência em ser reconhecida pelos altos funcionários da burocracia régia
como parte integrante e importante do poder imperial, representando ela
mesma o rei. Uma representação que deveria ser feita através da investidura

6
CARTA dos oficiais da Câmara de Olinda ao Príncipe Regente, D João, sobre as dúvidas
acerca de onde deveria ir o pendão da câmara nas procissões. AHU_ACL_CU_015, Cx.
212, D. 14418.
7
REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara, sobre ir, ou não o
pendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho de 1677. Livro de Registro de
cartas, provisões e ordens régias. L. 1º. Arquivo Público Jordão Emerenciano - APEJE.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 71

de símbolos, aqui o pendão da câmara. É sabido que o Antigo Regime


enfatizava a representação do rei ausente nas muitas localidades do império
a partir de uma série de símbolos que assumiam a papel do rei em pessoa,
como os retratos reais, da mesma forma que o Santíssimo Sacramento era
investido da função de representar o corpo de Deus nas cerimônias. Nesse
mesmo contexto, o pendão da câmara assumia, para o Senado de Olinda, um
papel vital no espetáculo festivo, representando não apenas a câmara, mas o
próprio rei8.
A carta de 1799, por sua vez, continuou a insistir no mesmo tema, deixando
claro ainda o importante papel que a etiqueta barroca tinha nesse cenário:
nas festas reais todos os gestos e espaços eram rigidamente hierarquizados,
ocupados de acordo com uma escala de prestígio que deveria informar quem
estava submisso a quem. Nesse sentido, se os oficiais da Câmara de Olinda
fossem obrigados a ir receber o governador fora das igrejas, mesmo estando
em formação oficial junto ao pendão que simbolizava a câmara, estariam se
colocando em posição inferior ao governador. Contra isso, invocavam perante
o rei o seu próprio papel de representantes da Coroa.
Essa situação de eterna competição com os governadores pelo privilégio
de simular a Coroa em solo americano tornava cada festa um momento de
disputa, compreensível quando se entende que o status público da elite estava
vinculado ao papel que representariam na encenação pública.
As festas barrocas foram sempre, na Península Ibérica, uma vitrine para a
demonstração do status e prestígio das autoridades perante o povo, a Coroa
e entre elas mesmas. O mesmo ocorreu com a América açucareira, onde os
senhores, assentados nas câmaras, tanto tinham o dever de organizar e
promover as festas anuais e extraordinárias do calendário régio, quanto o
direito de aproveitarem esse momento para ostentar seu status. Em geral, as
festas camarárias eram as mesmas para todo o império, pois seguiam um
calendário ditado pela Coroa, no caso das anuais, e ordens específicas, no
caso das extraordinárias9. Existia, dessa forma, um modelo imperial pré-
estabelecido, e ao passar as ordens para as festas extraordinárias, por
exemplo, que deveriam comemorar as vitórias e efemérides da realeza, a Coroa
já determinava como ela deveria ser feita: com luminárias e salvas de artilharia,
8
Para Roger Chartier as sociedades do Antigo Regime empregavam a noção de
representação em dois sentidos: como manifestação de uma ausência ou como
apresentação pública de algo. Os festejos camarários apontam os dois significados
dessa noção, pois as festas funcionavam como espaços de representação do rei ausente,
mas também como espaço de apresentação pública da hierarquia da elite açucareira.
Nesse caso específico, do pendão da câmara, era o papel de representação do rei que
se sobressaia. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietudes.
Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, p. 74.
9
Para as festas barrocas camarárias no Império Português ver: SANTIAGO, Camila
Fernandes. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela Câmara de Vila Rica –
1711-1744. Belo Horizonte: Fumec-Face; C/Arte, 2003; CATÃO, Beatriz. O Corpo de Deus na
América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa, século XVIII. São
Paulo: Annablume, 2005.
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como na celebração da paz com Castela, ordenada à Câmara de Olinda em


171510.
Mas, em Pernambuco, a festa de Ação de Graças pela Restauração da
Capitania contra os holandeses assumiu um caráter nitidamente local,
elaborada e organizada pela elite açucareira, tendo por base o padrão festivo
ibérico. Celebração por excelência de Olinda, seu caráter localista ilustrava a
ativa manutenção do calendário festivo régio na capitania e a adaptação e
transformação que a elite açucareira realizava sobre os valores ibéricos.
Essa elite, no Pernambuco seiscentista, grupo social que controlava a
política da capitania, batendo-se com governadores e outros representantes
régios, era constituída por senhores de engenho e lavradores de cana11. Até a
ascensão de uma elite mercantil sediada na vila do Recife, no século XVIII,
esses senhores, que tinham Olinda como base, foram hegemônicos no cenário
político e cultural da sociedade açucareira, dominando os principais núcleos
urbanos de Pernambuco, como Igarassu, e mantendo relações de parentesco
com os senhores das capitanias anexas.
Ocupando os assentos na Câmara de Olinda, mas também em outras
instituições como a Santa Casa de Misericórdia e a Irmandade do Santíssimo
Sacramento, a elite açucareira não apenas exercia controle sobre a política
local, mas ditava as normas cultas da sociedade, traduzindo um imaginário
influenciado pela Igreja, pela Coroa e pela cultura fidalga ibérica. Em todo o
império era tarefa das câmaras patrocinarem as festas públicas e dever da
Irmandade do Santíssimo se encarregar de algumas das cerimônias mais
importantes da vida católica dessas cidades, como a procissão do viático e a
festa de Corpus Christi. Funções que a elite açucareira assumiu de forma
entusiástica em Pernambuco, por lhe permitir ocupar esses espaços de poder
e aparecer como responsável pelo cerimonial oficial da capitania, além de
atuar como uma nobreza local12.

10
“Juiz, Vereadores e Procurador da Cidade de Olinda. Eu El Rei vos envio muito saudar: Por
estar confirmada e ratificada a paz que celebrei com El Rei de Castela, e ser esta nova de
grande gosto, é justo que como tal se festeje no Reino, a mandeis publicar no 1º do presente
mês de maio na [forma] que vereis na cópia inclusa, com a demonstração de luminárias,
repique, e salvas de artilharia na noite do dia da publicação e nos dias seguintes, e da mesma
sorte o fareis assim executar pela parte que vos toca”. REGISTRO da carta de S. Majestade
para os oficiais da câmara pela qual manda se festeje a paz que se celebrou com el rei
de Castela. Escrita em 15 mai. 1715. LIVRO de registro de cartas, provisões e ordens
régias da Câmara de Olinda. L 1º, fl. 125. APEJE.
11
Para a definição da elite açucareira, ver: ACIOLI, Vera Lúcia. Jurisdição e conflito: aspectos
da Administração Colonial. Recife: Ed. UFPE, 1997; FERLINI, Vera Lúcia. Terra, trabalho
e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Em Acioli encontramos também os conflitos dessa elite com os governadores de
Pernambuco e Bahia.
12
O imaginário da fidalguia ibérica pode ser visto em: FRANÇA, Eduardo D’Oliveira.
Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec. 1997. Sobre o viático e seus rituais,
ver: CAVALCANTI, Viviane. Religiosidade e morte: instrumentos do projeto colonial
português. Columbia: The University of South Carolina, 1995. A Irmandade do Santíssimo
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 73

Que tal elite se esmerava em se manter dentro de padrões culturais


aceitáveis pela nobreza reinol vemos no pedido daqueles dentre seus membros
que ocupavam assentos na Santa Casa de Misericórdia em Olinda, em 1672,
ao solicitarem ao rei que esta instituição gozasse dos mesmos privilégios
concedidos à Santa Casa da Bahia, que, por sua vez, já gozava dos privilégios
da Santa Casa de Lisboa. Diziam os irmãos de Olinda servirem com todo o zelo
e que sua casa “no ornato e dispêndio lhe não excede a da Bahia”13. Afirmação
com a qual esperavam demonstrar a lealdade apropriada aos valores da
nobreza ibérica, como o zelo devocional e a ostentação pública.
Assim como os papéis de ‘irmãos’ das Santas Casas e irmandades do
Santíssimo conferiam fidalguia, a participação dos senhores nas câmaras por
todo o império lhes garantia acesso permanente aos meios para a manutenção
do prestígio social e de um permanente estado de ostentação de luxo,
exigência para o status de ‘nobreza da terra’. Não apenas pela natureza oficial
do cargo em si, mas pelas possibilidades que suas muitas cerimônias públicas
e símbolos ofereciam de tornarem mais visíveis seus portadores para um
público de espectadores. Os cargos camarários faziam os senhores visíveis
também, e principalmente, para a Coroa, garantindo que pudessem
comprovar sua lealdade e vassalagem ao celebrarem a glória real nas festas
públicas, o que abria as portas para futuras solicitações de mercês.
E, na segunda metade o século XVII, os senhores de Olinda empregaram
todos os meios possíveis para conservar os favores da Coroa. Nesse momento
ainda sustinham o poder político da capitania, mas enfrentavam a contestação
dessa posição pelos governadores régios, tanto na própria capitania quanto
na Bahia. Por outro lado, a ascendente elite mercantil do Recife estava para
se tornar um problema bem maior, que estouraria nas primeiras décadas do
século XVIII. Assim, os senhores olindenses, de seus assentos como oficiais
da câmara, tentavam se manter no controle travando brigas pela sede da
capitania e promovendo festas públicas para reafirmarem status de nobreza
da terra e fiéis vassalos.
E nesse contexto procuravam sempre recordar a restauração da capitania,
fosse em seus pedidos de pensões e cargos, fosse na própria festa de ação de
graças. A guerra em si abrira as portas para múltiplas possibilidades de
ascensão social em Pernambuco, principalmente através de serviços militares
prestados. Mesmo soldados e henriques, os milicianos pretos, conseguiram
regalias a partir de solicitações com base nas justificativas desses serviços. Já
Sacramento e a Santa Casa de Misericórdia enquanto instituições de elite, em ASSIS,
Virgínia Almoêdo de. Pretos e brancos: a serviço de uma ideologia de dominação (Caso
das Irmandades do Recife). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Pernambuco. Recife,1988; e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa
da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UnB, 1981.
13
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente D. Pedro sobre requerimento
do provedor e irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, pedindo a concessão
de um alvará para que a dita casa goze dos privilégios e provisões concedido a Casa da
Bahia. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 946. 16 jun. 1672.
74 KALINA VANDERLEI SILVA

em 1651, a Câmara de Olinda solicitara da Coroa que seus heróis, os futuros


restauradores, fossem aproveitados nos principais postos de comando da
capitania, no que foram atendidos quando terminou a guerra14. E todas as
reivindicações pós-restauração foram feitas empregando fórmulas que
relembravam à Coroa portuguesa os benefícios que os mazombos de
Pernambuco lhe haviam feito: ‘às custas de nosso sangue, vida e despesas’,
afirmavam os oficiais da Câmara de Olinda ainda em 165115. Os mesmos que
mais tarde se apresentariam como ‘fiéis vassalos’ da Coroa16.
Assim, se por um lado as últimas décadas do Seiscentos viram os senhores
de Olinda entrarem em disputas políticas com os representantes da Coroa,
por outro os viram também sustentar, perante a mesma, um prestígio em alta
devido a seu status de restauradores da capitania, responsáveis pela
devolução desta ao Império português. E aproveitaram esse prestígio para
solicitar mercês e aumentar seu status pessoal e privilégios camarários. Nesse
sentido, a comemoração da expulsão dos holandeses assumia uma
importância vital ao recordar à Coroa os serviços prestados por seus vassalos
pernambucanos. Mas tudo isso, recordar serviços prestados e manter uma
imagem pública prestigiosa, passava pela construção de uma memória em
que essa elite era a responsável pela conquista da capitania aos holandeses.
Ou seja, uma memória que deveria ser preservada a todo custo, razão pela
qual foi elaborada a festa de Restauração.
A Festa, a Identidade Fidalga e a Memória da Restauração:
A festa de ação de graças pela Restauração data da segunda metade do
século XVII, quando começou a ser celebrada em Olinda pela câmara que,
seguindo a tradição das festas régias, esperava que essa cerimônia pudesse
ser, a cada ano, uma recordação dos feitos heróicos da elite açucareira. As
festas barrocas que almejavam celebrar as glórias da monarquia em geral
costumavam ser pródigas construtoras de memória17. E nesse aspecto a ação
de graças pela Restauração se constituiu no principal fenômeno de construção

14
ACIOLI, Jurisdição e conflito, p. 18.
15
CÂMARA de Pernambuco e Povos das Capitanias do Norte do Brasil a D João IV.
Biblioteca da Ajuda, 1654, apud MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da
Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008, p. 92.
16
A expressão “fiéis vassalos” vem do próprio discurso da câmara de Olinda e da Coroa
portuguesa, como no expresso no REGISTRO da Carta de S. Majestade para a câmara,
de agradecimento pelas festas que fizeram no nascimento da Infanta. 12 out. 1699.
Livro de registro de Cartas, Provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. L. 1º, fl. 95.
APEJE, onde o rei agradece as festas que em Olinda se fizeram pelo “nascimento da
Sereníssima Infanta, minha muito amada e prezada filha”, afirmando que “pareceu de tão
bons, fiéis e honrados vassalos, que não faltam a mostrar nela o vosso amor, por ser tanto
gosto para esse reino e de todos os seus domínios”.
17
O fenômeno de fabricação de memória nas festas públicas foi estudado por LOPES,
Emílio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre as
manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: EDUSP,
2004.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 75

da identidade dos restauradores em Pernambuco, juntamente com a


elaboração de obras literárias como o Valeroso Lucideno, publicada em 1648 e
escrita pelo frei Manuel Calado de Salvador, e o Castrioto Lusitano, de 1679, do
Frei Rafael de Jesus. Ambas encomendadas pelo principal líder da restauração,
João Fernandes Vieira18.
Nessas obras apologéticas, assim como nos retratos e murais também
feitos por encomenda tanto quanto na festa de Restauração, transparece a
intencionalidade da criação de uma imagem de lealdade e heroísmo na qual
investiram os restauradores pernambucanos. O frei Manuel Calado, por
exemplo, não se furtou a fazer os mais altos elogios a João Fernandes Vieira
em seu O Valeroso Lucideno, seguindo um modelo ibérico de panegírico que
procurava ressaltar o valor heróico da nobreza. Assim, cantou o frei:
A Liberdade restaurada canto,
Obrada por a espada portuguesa
Guiada pela luz do Pólo Santo,
(terrena obra, mas celeste empresa)
Canto um João, que é terror, e espanto
Do belga, e quebrantou sua braveza,
E de seus esquadrões em tempo breve
Muitos triunfos, e vitórias teve.”19
Nas palavras de Calado a imagem de bravura cultivada por seu patrono,
Vieira, e pelos restauradores de Olinda.
Com essas práticas a elite açucareira apenas se situava no sistema de valores
da fidalguia ibérica, ávida por construir uma imagem ideal de si através de
obras encomendadas, fossem pinturas, peças, panegíricos ou mesmo festas
públicas. E o caráter de encomenda que as obras artísticas barrocas possuíam
marcou o ato de criar memória e identidade tanto na nobreza ibérica quanto
na elite açucareira.
Assim foi que, seguindo os padrões ibéricos, os senhores de Pernambuco
se esmeraram em encomendar crônicas de seus feitos heróicos e retratos
pintados. E muito comum ao mundo ibérico do Seiscentos e Setecentos eram
os textos panegíricos dentre os quais as descrições de festas públicas eram
tão populares que constituíam um gênero literário próprio, a relação. Desse
gênero são exemplos a relação das festas celebradas em Salamanca pela vitória
da Coroa espanhola sobre a revolta de Barcelona em 1652, e as memórias
impressas das entradas solenes dos Filipes em Portugal ao longo do XVI e
XVII.
Da América portuguesa, por sua vez, partiram descrições de festividades
públicas de intrínseco caráter barroco no século XVIII, celebradas com o recurso
à arquitetura efêmera, com arcos de triunfo, decoração nas janelas, luminárias
18
MELLO, Rubro veio, p. 63.
19
CALADO, Frei Manuel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. 2 vols. Recife:
FUNDARPE, 1985, Vol. 1, p. 25.
76 KALINA VANDERLEI SILVA

à noite e cortejos rigidamente hierarquizados nos quais tremulavam os


pendões de câmaras e outros símbolos políticos e que eram acompanhados
por coreografias de corporações de ofício e outros grupos populares20.
Exemplo de minuciosas memórias de celebrações barrocas são o Triunfo
Eucarístico, de Simão Ferreira Machado, publicado em Lisboa em 1734 e que
descrevia a inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Vila Rica em
1733, e o Áureo Trono Episcopal, publicado em Lisboa em 1749 por Francisco
Ribeiro da Silva, descrevendo a festa realizada por ocasião da investidura de
dom frei Manuel da Cruz como bispo de Mariana em 174821.
Pernambuco também conheceu memórias escritas de festas celebradas
em seu solo, aparentemente todas datadas do século XVIII: sobre a festa de
aclamação de d José I, Relação das Festas que se Fizeram em Pernambuco pela
feliz aclamação do alto e poderoso rei de Portugal, d José I. 1751-1752, e sobre a
festa de São Gonçalo Garcia, em 1745, a Súmula Triunfal da Nova e grande
Celebridade do Glorioso e Invicto Mártir São Gonçalo Garcia, de Sotério da Silva
Ribeiro, e o Discurso Histórico, Geográfico, genealógico e político e encomiástico,
de Frei Jaboatão22.
Todas essas obras esperavam criar uma memória a partir de uma efeméride
festiva significada como marco de algum momento solene para a Coroa, fosse
espanhola ou portuguesa. Por outro lado, como toda obra barroca, seu caráter
de encomenda dizia muito sobre os personagens que a encomendavam: além
de celebrar os feitos da monarquia, as festas e suas relações enfatizavam a
importância fundamental dos encomendadores, as elites locais, na celebração
em questão.
As obras panegíricas patrocinadas pelos restauradores de Pernambuco,
como o Valeroso Lucideno, reproduzem tanto quanto a festa de Restauração,
muito dos valores barrocos que a elite açucareira procurava assimilar e
demonstrar, em sua busca por nobilização: valores como heroísmo, lealdade
e coragem eram idealizados pela nobreza ibérica, reproduzidos nas obras
literárias espanholas e portuguesas do século XVII e assimilados pela elite

20
O modelo ibérico de festas barrocas, assim como a descrição de suas práticas, pode ser
visto em ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco - Vol. 1: uma linguagem
a dos cortes, uma consciência a dos Luces. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 144-154.
21
MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cristandade Lusitana em Pública
Exaltação da Fé na solene Transladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do
Rosário, para um novo Templo da Senhora do Pilar em Vila Rica, etc. Lisboa Ocidental: Oficina
de Música, 1734, apud ÁVILA, O Lúdico...; AUREO Trono Episcopal, Collocado nas Minas de
Ouro, ou Notícia Breve da Criação do Novo Bispado marianense, da sua felicíssima posse, e
pomposa entrada do seu meritíssimo primeiro Bispo,e da Jornada, que fez do Maranhão, etc.
Lisboa: Oficina de Miguel Manascal da Costa, 1749, apud ÁVILA, O Lúdico...
22
Ambas as relações, assim como a da aclamação de d José, foram transcritas por José
Aderaldo Castello em O Movimento Academicista Brasileiro, apud ARAÚJO, Rita de Cássia.
A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In: JANCSÓ,
Istvan & KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. Vol.
1. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2001, p. 419-444.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 77

açucareira de Pernambuco que se queria barroca23.


A festa da Restauração tentava celebrar esses valores e, ao mesmo tempo,
marcar no imaginário coletivo a importância dos feitos heróicos da elite. Era
realizada em Olinda todo dia 27 de janeiro, com sermão, Te Deum, missa
cantada na Sé e desfile dos corpos militares. Mas aparentemente ela nunca
mereceu uma relação impressa. O único de seus sermões panegíricos que se
viu publicado foi o pregado por Frei Jaboatão em 1731, publicado muito mais
tarde pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 186024.
Essa festa era agrupada pela Câmara de Olinda, desde 1690, com as festas
anuais pelas quais o tesoureiro-geral solicitava à Fazenda Real pagamento de
propinas, gratificações, para os oficiais que delas haviam participado. As outras
festas anuais eram as de São Sebastião e a de Corpus Christi, pelos registros
de 1690, às quais se somava o Anjo Custódio em registros de 1738. O
tesoureiro, ao contabilizar os gastos totais da câmara com as festas naquele
ano, e que somavam a quantia de 78 mil e 280 réis, descreveu os itens festivos
nos quais esse valor havia sido alocado: cera para as velas, castiçais, missa
cantada e sermão, sacristão, escravos carregadores, além de outros gastos
não especif icados 25 . Objetos que iam compor o cenário para aqueles
espetáculos festivos nas igrejas e nos cortejos, bem iluminados à luz de muitas
velas e embalados pelo som de música religiosa e sermões em latim. Já então,
em 1690, o tesoureiro listava a festa da Restauração como anual, o que sugere
que aquele não era o primeiro ano em que era celebrada.
E era celebrada sempre em Olinda, pelo menos até a década de 1740 quando
a Câmara de Igarassu procurou também implantá-la. O caráter de celebração
da elite açucareira era tão marcante que a festa não parece ter sido realizada
no Recife apesar dessa povoação, depois de elevada à vila em 1711, tentar se
adaptar ao padrão festivo da Coroa, promovendo sua cota de festas públicas.
A câmara da nova vila estava ansiosa por demonstrar sua lealdade à Coroa e
angariar para seus oficiais uma quantidade respeitável de prestígio. E, para
isso, insistiu na realização de sua própria festa de Corpus Christi, a mais
importante celebração dos impérios português e espanhol, concorrendo e
23
Vemos esses valores em MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de uma
estrutura histórica. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp, 1997; e FRANÇA, Portugal ... Que
os mesmos eram conhecidos e reproduzidos pela elite açucareira vemos na obra de
um de seus expoentes máximos, Duarte de Albuquerque Coelho. COELHO, Duarte de
Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil. São Paulo: BECA, 2003.
24
MELLO, Rubro veio, p. 28.
25
REQUERIMENTO do tesoureiro-geral da câmara de Olinda, cap. Feliciano de Mello da
Silva, aos oficiais dela, para que se passasse mandado de despesas das festas religiosas
que o senado mandou fazer este ano. AHU_ACL_CU_015, D. 1537. Já em documento de
1738, vemos a Coroa estabelecendo a quantia de 30 mil réis para a realização das
festas de São Sebastião, da Restauração e do Anjo Custódio do Reino, todas realizadas
na catedral com o Santíssimo Sacramento exposto. CARTA dos oficiais da câmara de
Olinda ao rei, d. João V, pedindo um aumento nas verbas concedidas ás despesas com
as festas de são Sebastião, da Restauração frente ao holandês e do anjo custódio do
reino. AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4537.
78 KALINA VANDERLEI SILVA

disputando com a de Olinda. Por outro lado, a ação de graças pela Restauração
não atraiu sua atenção, celebração que era dos feitos dos senhores de
engenho olindenses, enquanto em Recife dominavam os comerciantes de
grosso trato26.
E não apenas o Recife não organizou festa semelhante, como não
prestigiou a comemoração em Olinda, como demonstra a reclamação que a
câmara daquela cidade fez ao rei a respeito da ausência do governador, então
sediado em Recife, e demais autoridades na ação de graças de 1725 e 1726.
Em 1725, escreveu o rei ao governador de Pernambuco, então D. Manuel
Rolim de Moura, reproduzindo a queixa dos oficiais da Câmara de Olinda
sobre a ausência das autoridades na comemoração da “memória da gloriosa
restauração da capitania” que se fazia por ordem régia todos os anos. A carta
régia descreve a organização da cerimônia com missa, Santíssimo Sacramento
exposto e sermão na Santa Sé, assistida pelos terços de Olinda e Recife, além
dos ministros, oficiais de Justiça e Fazenda. Mas no ano em questão só se
achavam presentes os oficiais da Câmara de Olinda. A essa reclamação
respondeu então o governador dizendo que
Sempre a assisti e os ditos ministros em a dita festa, como também
todo o terço inteiro da cidade marcha para a Sé como é estilo, e
não tenho notícias que o terço do Recife se achasse também em
outros anos na tal celebridade, como afirmam os ditos oficiais.27
No ano seguinte os oficiais de Olinda voltaram a reclamar ao rei, solicitando
que, como era costume em anos anteriores, na festa da Restauração
marchassem os dois terços, o de Olinda e o de Recife, com seus mestres de
campos, além do terço dos henriques com mestre de campo, e que todos
recebessem pólvora para uma salva de artilharia em memória do dia. Além
disso, reiteravam seu pedido de que o governador, ministros e oficiais, e
todas as “pessoas da nobreza” dentro de duas léguas da cidade fossem
obrigados a comparecer a festa28.

26
As querelas de jurisdição entre Olinda e Recife em torno da festa de Corpus Christi
estão registradas em documentos como a CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao
rei [d João v], sobre a pretensão da câmara de Recife de fazer a procissão do corpo de
Deus no mesmo dia em que se faz em Olinda. AHU_ACL_CU_015, cx 63, D. 5386, e
CARTA dos Oficiais da Câmara do Recife ao rei [D João V], sobre se realizar a procissão
de Corpo de Deus no Recife devido à isenção do seu povo e clero de comparecerem à
de Olinda. AHU_ ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3499.
27
CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao rei sobre a ordem para que
todos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador, senado e todos os terços
de Recife e Olinda participem dos festejos da Restauração. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31,
D. 2849. Pernambuco, 18 jul. 1725.
28
CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, sobre a ordem para que na
festa de ação de graças de 27 de janeiro, marchem os terços e compareçam o
governador, ministros e oficiais. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2950.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 79

Essa repetida queixa deixa claro o desrespeito das elites de Recife com a
celebração da nobreza olindense, que se queria fidalga. Clara também fica a
insistência dessa ‘nobreza da terra’, já então em pleno processo de perda de
hegemonia política sobre a capitania, na festa como marco de sua importância
social e política. Uma insistência que enfatizava a memória do feito que esta
celebração deveria comemorar.
E, apesar dessa decadência, ou por causa dela, a elite açucareira continuou
a insistir na festa da Restauração pelo menos até a década de 1740, quando a
implantou também em Igarassu:
Prostrados aos benignos pés de Vossa Real Majestade, que Deus
guarde, como mais leais e fiéis vassalos, damos conta a Vossa
Majestade, que sendo essa vila de Santos Cosme e Damião de
Igarassu a mais antiga desta capitania de Pernambuco, e fazendo
na cidade de Olinda no dia vinte e sete de janeiro, anualmente
ação de graças a Deus Nosso Senhor por ser o dia em que se restaurou
esta terra do poder do holandês, nesta vila se não faz ato algum de
lembrança, e parecendo ser necessário, fazermos a mesma ação
de graças no dito dia, para lembrar aos presentes o que fielmente
obraram os nossos antepassados; Demos conta a Vossa majestade,
que sendo servido, nos mandar ordem para a podermos fazer, com
a mesma despesa, que se costuma fazer nesta vila a do Anjo
Custódio, paga das sobras do Concelho.29
Era a reafirmação da memória dos feitos gloriosos dos senhores de
engenho que, em 1740, enfrentavam o crescimento do Recife e sua elite
comercial. Uma última tentativa de fixar na memória coletiva da capitania os
feitos pelos quais a elite açucareira tanto se orgulhava e sobre os quais baseava
todas as suas reivindicações de nobreza. Uma tentativa de “lembrar aos
presentes o que fielmente obraram os nossos antepassados”, segundo as
palavras da própria câmara. Afirmação que enfatiza a função da festa como
ato de criar e cristalizar uma memória, ao mesmo tempo oficial e coletiva, em
torno dos fatos em questão.
Se as festas públicas do Antigo Regime deveriam instituir memória ao
cristalizarem determinadas representações sobre o passado, representações
essas que traziam a público uma memória selecionada, um passado que se
queria recordar, tal papel foi assumido à perfeição pela festa de ação de
graças pela Restauração da capitania de Pernambuco que procurava
comemorar e construir uma dada memória de feitos heróicos da elite
açucareira.
Mas se a festa barroca tinha a função de construir memória, também tinha

29
CARTA dos oficiais da câmara de Igarassu ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazer
ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco do poder dos holandeses,
como se faz anualmente em Olinda, no dia 27 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, Cx. 59, D.
5054.
80 KALINA VANDERLEI SILVA

a de reafirmar privilégios, o que dependia de rígidas definições nos papéis


sociais de cada personagem no cerimonial, e do estabelecimento bem definido
da geografia política dos espaços de privilégio nessas festividades. E como
todas as cerimônias públicas barrocas, a festa da Restauração demarcava
lugares de poder, fosse na procissão, fosse na Igreja. As autoridades, como
governador, ministros, mestres de campos, tinham seus lugares pré-
determinados, seguidos de personagens de menor status mas cuja presença
servia para validar a das grandes autoridades, como os soldados que deveriam
acompanhar os mestres de campos. Os gestos eram medidos, como as salvas
de artilharia e os sermões. Os símbolos do poder absoluto da Igreja e da
Coroa estavam presentes, como no Santíssimo Sacramento. E em torno deles
se repartiam as posições hierarquicamente predeterminadas de prestigio,
equivalente ao status de cada participante.
A elite açucareira de Pernambuco muito fez para ser lembrada como
restauradora. Esse epíteto lhe dava privilégios perante a Coroa portuguesa
para quem, a seu ver, tinha restituído uma parte importante do império.
Muitos dos discursos dessa elite pós 1654, então, giraram em torno da
comemoração da Restauração, tanto os discursos políticos expressos nas
petições e requerimentos endereçados à Coroa, quanto o discurso artístico
em obras devidamente encomendadas pelos líderes da guerra. E se a festa da
Restauração era o ápice desse espírito de celebração/construção de uma
memória, visto que reproduzia os bens sucedidos mecanismos de espetáculo
do barroco ibérico, por outro lado ela não cresceu para além da sede da elite
açucareira, nunca conseguindo convencer os opositores, a elite mercantil do
Recife. Enquanto durou, todavia, foi responsável pela fixação pública da
identidade da elite açucareira enquanto fidalguia, pelo menos no imaginário
da própria elite açucareira.

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