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19º Congresso Brasileiro de Sociologia

9 a 12 de julho de 2019

UFSC – Florianópolis – SC

Grupo de Trabalho 23 – Sociologia da Cultura

“Com o suor do trabalho”: reflexões sobre o consumo das classes


populares no Brasil contemporâneo

Ana Rodrigues Cavalcanti Alves

Pós-doutoranda em Sociologia (PPGS-UFPE)

Bolsista PNPD-Capes
1

“Com o suor do trabalho”: reflexões sobre o consumo das classes


populares no Brasil contemporâneo1

Introdução
As transformações ocorridas na estrutura da sociedade brasileira a partir dos
anos 2000 favoreceram processos de micromobilidade ascendente entre os
membros das classes populares e sua maior inserção na cultura de consumo.
Dentre tais transformações, é possível destacar o crescimento econômico, com
geração de empregos formais, principalmente no setor de serviços, o aumento real
do salário mínimo, a implementação de políticas sociais redistributivas e a
consequente redução da desigualdade de renda2. A mudança nos padrões de
consumo das classes populares brasileiras também foi decorrente da
reestruturação do processo produtivo em escala global, o que possibilitou o
barateamento do preço dos produtos – tais como alimentos, vestuário e bens
duráveis – e maior acesso ao consumo de bens mesmo em períodos de estagnação
do crescimento econômico e deterioração da renda, como ocorreu nos anos 1990
(Pochmann, 2012; Rocha, 2002; Torres, Bichir, Carpim, 2006).
A maior capacidade de consumo das classes populares foi tomada como um
dos principais indicadores da emergência de uma “nova classe média” no Brasil,
provocando intenso debate entre os cientistas sociais brasileiros. Embora essa
interpretação tenha se estabelecido, inicialmente, com dominância explicativa,
principalmente a partir da publicação do economista Marcelo Neri, em 2008,
surgiram outras interpretações capazes de questionar essa versão, destacando seu
papel no encobrimento das desigualdades sociais e as contradições intrínsecas a
esse processo, além das possíveis consequências políticas advindas com uma
interpretação triunfalista e redutora da realidade social (Pochmann, 2012, 2014;
Singer, 2012, 2015; Souza, 2012, 2013).

1
A discussão apresentada neste trabalho é resultante da investigação empreendida em minha tese de
doutorado (Alves, 2018).
2
Embora tenha crescido um debate questionando a diminuição da desigualdade de renda no Brasil, nos anos
2000, ancorado em inovações metodológicas possibilitadas pelo acesso aos dados do imposto de renda – que
permitem aferir com maior precisão a renda dos mais ricos -, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra em
Domicílio (Pnad) são considerados mais adequados para analisar a pobreza, já que os mais pobres não
costumam declarar imposto de renda. Na medida em que a fração de classe analisada neste trabalho
encontra-se mais próxima à base da pirâmide, tendo sido beneficiadas pelas políticas acima referidas, foram
considerados estudos que destacam uma diminuição da desigualdade de renda, a partir do Índice de Gini.
2

Nesse contexto, diversos estudos destacaram as limitações teóricas e


empíricas da interpretação da emergência da “nova classe média brasileira”,
sobretudo a partir de análises de dados quantitativos sobre os padrões de consumo
da nova fração de classe (Campello, 2017; Kerstenetzky, Uchoa, 2013; Pochmann,
2014). Contudo, poucas investigações buscaram explorar as condições objetivas e
subjetivas que possibilitam a adesão a novas práticas de consumo entre os
membros das frações ascensionais das classes populares e os sentidos que eles
atribuem ao consumo de bens e serviços.
Cabe mencionar a pesquisa desenvolvida por Jessé Souza (2012) sobre a
“nova classe trabalhadora”, que destaca as condições e disposições responsáveis
pela inserção de uma fração das classes populares no mercado, como produtora e
consumidora de bens anteriormente considerados privilégios de outras classes. No
entanto, apesar de sua contribuição para o debate sobre a reestruturação das
classes sociais no Brasil contemporâneo, a partir de uma perspectiva teórica que
busca superar as interpretações economicistas do conceito de classe social, o autor
confere pouca atenção às práticas de consumo dos membros das classes
populares em processo de mobilidade ascendente. Em sua análise, parece
prevalecer a aplicação de disposições ascéticas, duravelmente instaladas no seio
da socialização familiar, ao campo dos estilos de vida, tais como a disposição para
o sacrifício individual, capacidade de poupança e restrição ao consumo imediato,
consideradas fundamentais para a sobrevivência dos batalhadores em um mercado
fortemente competitivo.
Embora Souza (2012, p. 97) destaque a aquisição de bens de consumo
“superiores” como uma das disposições para a autossuperação encontradas entre
os membros dessa fração de classe – que visam à superação de uma condição de
vida anterior e buscam expressar um padrão de dignidade principalmente a partir
do consumo de bens –, o autor não desenvolve uma análise acerca das condições
que possibilitam a incorporação de novas disposições para o consumo pelos
membros dessa fração de classe, nem explora os sentidos que eles atribuem às
suas práticas de consumo.
O mesmo pode ser afirmado de outros autores que buscam superar a
interpretação da emergência de uma “nova classe média” no Brasil, por meio de
análises empíricas sobre os padrões de consumo das classes trabalhadoras
3

brasileiras, como é o caso de Márcio Pochmann (2014). Embora Pochmann forneça


uma interessante interpretação sobre o padrão histórico de subconsumo da classe
trabalhadora nos países de industrialização tardia, como é o caso do Brasil, o autor
atribui precedência explicativa às condições objetivas – tais como crescimento
econômico, geração de emprego e aumento do gasto público –, consideradas mais
decisivas do que os atributos individuais dos agentes que emergem no processo
de mobilidade ascendente. Sua análise não integra uma tentativa de apreender
quem são esses agentes e como eles vivenciam essas mudanças em sua vida
cotidiana, o que leva Jessé Souza (2013, p. 56) a afirmar que sua interpretação
permanece dentro da mesma chave economicista.
Tais questões são fundamentais para uma análise mais abrangente da nova
configuração social das classes e suas relações, na medida em que o consumo de
bens assume um papel fundamental no projeto de desenvolvimento e
modernização da sociedade brasileira, constituindo-se também como espaço
central para a constituição de identidades (Slater, 2002). Além disso, é por meio de
suas práticas de consumo que os membros das frações ascensionais das classes
populares sentem as mudanças estruturais em sua vida cotidiana e buscam
combater o estigma da pobreza, exprimindo a nova posição alcançada.
Nesse sentido, este trabalho buscou analisar as mudanças nas práticas de
consumo dessa fração de classe, investigando as condições que possibilitaram sua
maior inserção na cultura de consumo e os sentidos atribuídos pelos seus membros
ao consumo de bens. As principais análises decorrentes dessa investigação serão
apresentadas a seguir.

Consumo e ethos do trabalho duro


Ancorada nas contribuições da sociologia da cultura e do consumo, a
presente investigação partiu do pressuposto de que o aumento da renda não se
converte necessariamente em mudanças nos padrões de consumo, de modo que
é necessário analisar as condições que permitem a alguns membros das frações
ascensionais das classes populares aderir a novas práticas de consumo, enquanto
outros permanecem orientados pelas mesmas disposições ascéticas, incorporadas
em sua condição passada e responsáveis pelo seu processo de micromobilidade.
Para tanto, procedeu-se a uma pesquisa empírica, fundamentada numa
sociologia disposicionalista, buscando reconstruir as principais disposições e
4

valores incorporados por esses indivíduos no decorrer de sua trajetória,


investigando como tais disposições são traduzidas para o campo dos estilos de
vida, num contexto de mobilidade ascendente. Desse modo, entre abril de 2015 e
janeiro de 2016, foram realizadas entrevistas em profundidade com dezoito
membros dessa fração de classe, residentes em bairros periféricos da Região
Metropolitana do Recife/PE, além de onze membros de outras classes e frações de
classe, situadas imediatamente acima ou abaixo, que permitem analisar as
diferenças observadas entre elas em termos de trajetória, valores, disposições e
práticas sociais, características de seus respectivos estilos de vida3.
A teoria das classes sociais de Bourdieu constituiu uma referência
fundamental nesta investigação, na medida em que seu enfoque teórico permite
relacionar as práticas e preferências que conformam um determinado estilo de vida
à posição ocupada pelos indivíduos no espaço social – definida pelo volume e
estrutura de capital e pela trajetória social –, através do conceito de habitus
(Bourdieu, 2013). No entanto, o autor é criticado por enfatizar uma excessiva
unicidade e sistematicidade do habitus de classe, negligenciando as variações
individuais, conflitos e tensões encontradas no interior de uma mesma classe. Essa
ênfase é ainda maior quando se trata das classes populares, consideradas pelo
autor como um bloco homogêneo, caracterizadas apenas pela falta e pela
negatividade, contra a qual se definem todos os outros estilos de vida.
Nesse sentido, a sociologia disposicionalista proposta por Bernard Lahire
(2006) constituiu outra referência fundamental para os fins do presente trabalho,
uma vez que seu enfoque teórico permite analisar as variações interindividuais,
observadas no interior de uma mesma classe, e intraindividuais, quando os
indivíduos se orientam por disposições heterogêneas e até mesmo contraditórias
nos diferentes domínios da prática. Seu enfoque mostrou-se profícuo na
abordagem das práticas de consumo das frações das classes populares brasileiras
em processo de mobilidade ascendente, contribuindo para a compreensão das
condições que possibilitam a incorporação de novas disposições para o consumo
por parte de alguns membros dessa fração de classe, ao passo que outros

3
Uma parte das entrevistas foi realizada a partir de minha participação como pesquisadora de campo na
pesquisa “Radiografia do Brasil Contemporâneo”, desenvolvida no Instituto de Pesquisa Econômica e
Aplicada (IPEA), entre 2015 e 2016, sob a coordenação de Jessé Souza, então presidente do Instituto.
5

permanecem com um estilo de vida marcadamente ascético, orientados e


disposições incorporadas em sua condição passada.
A investigação de tais condições conduziu a uma reconstrução dos valores
e disposições constitutivos do ethos dessa fração de classe, uma vez que a adesão
a novas práticas de consumo precisa ser legitimada perante os valores do ethos e
ser coerente com a trajetória de vida desses indivíduos, exprimindo, ao mesmo
tempo, a nova posição alcançada. Nesse sentido, a análise empreendida por Jessé
Souza (2012) sobre as mudanças na estrutura da sociedade brasileira no período
recente também constituiu uma importante referência teórica para apreender as
condições, disposições e valores constitutivos do ethos do trabalho duro, que
permitiram a uma fração das classes populares brasileiras aproveitar as
oportunidades abertas com o ciclo de prosperidade econômica. Segundo o autor,
a ascensão dessa fração de classe – denominada de batalhadores - é resultante
da capacidade de manter mais de um emprego, uma dupla jornada de escola e
trabalho, capacidade de poupança e resistência ao consumo imediato, além de uma
forte crença em si mesmo e no trabalho4.
O conjunto das disposições destacadas por Souza foi amplamente
encontrado entre os informantes da pesquisa de campo, oriundos da referida fração
de classe, de modo que se adotou nesta investigação o conceito de batalhadores
e a noção de ethos do trabalho duro. Dentre as disposições e valores elencados
pelo autor, vale destacar a disposição para o trabalho duro, incorporada desde a
infância no seio da socialização familiar, através da transmissão de uma moralidade
do trabalho duro, que proveria não somente as condições materiais necessárias à
sua reprodução, mas também valores morais, expressando seu desejo por
dignidade e reconhecimento social. Segundo Souza (2012, p. 212), essa ética
possui uma forte relação com elementos de uma religiosidade católica popular,
racionalizados enquanto visão de mundo a partir de uma “ética do sofrimento” ou
de purificação e salvação pelo sofrimento, que remonta às origens do cristianismo
e permanece como conteúdo objetivo de sentido em práticas quase naturalizadas

4
Segundo o autor, tais comportamentos convergem diretamente para o tipo de capitalismo flexível que se
desenvolve no Brasil, caracterizado por um crescimento de empregos formais precarizados, organizados
segundo parâmetros pós-fordistas – que exigem maior flexibilidade e capacidade de altos sacrifícios pessoais,
físicos e psicológicos.
6

entre os batalhadores, fornecendo-lhes um recurso de interpretação e ação no


mundo.
Outro elemento fundamental constitutivo do ethos do trabalho duro
corresponde à disposição para o sacrifício individual, que prega uma renúncia dos
interesses individuais, em favor do grupo familiar, e do estabelecimento de relações
duradouras de compromisso e reconhecimento mútuo entre seus membros – de
modo que a família desponta como um valor fundamental e como condição
necessária para assegurar sua mobilidade ascendente. Segundo Souza (2012, p.
135), essa disposição não é harmoniosa nem plena, sendo perpassada por
contradições, ambivalências e sentimentos conflitantes. O autor destaca ainda a
capacidade de previdência, que consiste numa economia doméstica e controle do
presente baseada na experiência passada, marcada pela privação material.
De acordo com Souza (2012), o ethos do trabalho duro orientaria o
batalhador nos mais diversos âmbitos da vida social, traduzindo-se em disposições
ascéticas no âmbito das práticas de consumo constitutivas de seu estilo de vida.
Contudo, a pesquisa de campo empreendida nesta investigação permitiu perceber
a heterogeneidade constitutiva dessa fração de classe, notadamente no campo dos
estilos de vida, na medida em que seus membros parecem orientar suas práticas
de consumo por combinações complexas de disposições ascéticas e hedonistas,
incorporadas e ajustadas aos valores constitutivos de seu ethos, de modo a
expressar a nova posição alcançada.
Collin Campbell (2001) já havia destacado a coexistência de orientações
culturais diferentes no interior de uma mesma classe com o advento da
modernidade. O autor constrói uma interpretação sociológica acerca da
emergência do hedonismo moderno, a partir de uma crítica ao pensamento de
Weber, destacando que ao lado da ética da produção, cujas origens remetem ao
protestantismo, desenvolveu-se uma ética do consumo, ligada ao romantismo, que
possibilitou o surgimento do consumidor moderno na Inglaterra do final do século
XVIII. Ao invés de tratá-los como processos culturais opostos e excludentes, o autor
destaca sua coexistência no interior da então nascente burguesia, mostrando que
a modernidade, desde o início, não se caracterizou apenas por uma crescente
racionalização e ascetismo, mas também absorveu aspectos sentimentais do
7

protestantismo, constituindo-se de elementos diversos e heterogêneos que foram


fundamentais para o desenvolvimento da economia moderna.
De acordo com o autor, o hedonismo moderno estaria ligado à capacidade
dos indivíduos de controlar as próprias emoções, orientando seus poderes
imaginativos e criativos na busca pelo prazer – prática descrita como devaneio ou
fantasia. É o devaneio que possibilita a experiência da gratificação adiada, cultivada
como fonte de prazer – e não mais como frustração – pelo indivíduo moderno, e
estruturada como antecipação imaginativa do futuro – o que possibilita sua
articulação com os bens de consumo (Campbell, 2001).
Em outro trabalho, Campbell (1998) aprofunda sua análise sobre as práticas
de consumo na sociedade inglesa dos anos 1990, destacando que o ato de
consumo não pode ser explicado somente pelo desejo do consumidor e pelo
acesso a recursos; pois ele também precisa sentir que a compra é um ato legítimo
de ser realizado. Desse modo, o autor enfatiza a dimensão normativa do consumo,
afirmando que os indivíduos lançam mão de duas retóricas para legitimar seus atos
de compra: a retórica do precisar e a retórica do querer. Enquanto a primeira aprova
a conduta baseada na necessidade e encontra maior aprovação social, a segunda
orienta o consumo para o prazer.
Na medida em que as gratificações do querer não possuem o mesmo nível
de legitimação, as retóricas do consumo aparecem, com maior frequência, nas
situações de compra orientadas pelo desejo e pela busca de prazer. Nessas
situações, o consumidor recorre a duas estratégias para legitimar suas práticas de
consumo. Ele pode inventar ou descobrir uma racionalização para legitimar uma
compra baseada no desejo como sendo uma necessidade ou pode redefinir a
situação de modo que a gratificação do querer seja permitida. Nesse segundo caso,
é o contexto da compra que confere legitimidade à gratificação direta de desejos –
aniversário do consumidor, férias, grau de indulgência obtido através de algum
sucesso pessoal ou grande esforço no trabalho, ou ainda através de uma economia
feita por um longo período de tempo e do sacrifício de outros bens de consumo
(Campbell, 1998, p. 243).
A partir dessa perspectiva, é possível analisar as diferentes orientações para
o consumo encontradas entre os membros das frações ascensionais das classes
populares brasileiras e suas estratégias para legitimar a reformulação das suas
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necessidades e a adesão a novas práticas de consumo. A análise permitiu


identificar duas orientações para o consumo entre os batalhadores, que possibilita
situá-los mais próximos do polo ascético ou do polo hedonista do campo dos estilos
de vida, muito embora essa caracterização não seja estanque.
Para fins analíticos, procedeu-se à construção de dois perfis culturais, de
acordo com a orientação das práticas de consumo e atividades de lazer, no campo
dos estilos de vida. De um lado, o batalhador ascético, caracterizado pela
incorporação de disposições ascéticas para o trabalho duro, responsáveis pela sua
mobilidade ascendente, que se caracteriza pela transposição dessa orientação
ascética para o campo dos estilos de vida, em sua nova posição social. De outro
lado, o batalhador hedonista que, apesar de ter incorporado disposições para o
trabalho duro, responsáveis pela sua ascensão social, mostra-se mais suscetível à
influência dos valores e promessas da cultura de consumo, adotando uma postura
mais hedonista em determinados subespaços simbólicos.
Tais orientações são possibilitadas por meio de um ajuste com relação aos
valores e disposições ascéticas constitutivas do ethos do trabalho duro e
influenciadas por diversos fatores, que serão explicitados mais adiante. Desse
modo, o batalhador ascético afirma orientar o consumo de bens pela lógica da
necessidade e concentra suas práticas de consumo na constituição de uma esfera
doméstica, voltada para a família, tendo no conforto a margem das despesas
eticamente permissíveis. Assim, muitos informantes mais próximos desse perfil
investiram na compra de um terreno ou em pequenas reformas de suas casas e no
consumo de bens duráveis, visando à modernização do lar e o conforto da família.
De modo semelhante, os batalhadores ascéticos se caracterizam por um
maior controle das despesas, uso restrito do dinheiro e do cartão de crédito,
exprimindo uma disposição para o autocontrole e capacidade de poupança. Essas
disposições são ainda mais importantes na trajetória dos batalhadores
empreendedores que tentam sobreviver às inconstâncias do mercado. Uma das
informantes, Jéssica, 36 anos, é proprietária de um salão de beleza na Cidade
Universitária e afirma orientar suas práticas de consumo pela lógica da
necessidade.
9

Tenho um cartão de crédito e sou muito controlada. Eu sou muito controlada, eu


posso sair com todos e só compro aquilo que realmente me necessita. O que não
tem necessidade, eu não compro não.

Os entrevistados, de modo geral, parecem preocupados em demonstrar à


pesquisadora uma disposição para o autocontrole no consumo de bens, buscando
exprimir uma conduta coerente com seu ethos ascético, com a sua condição
passada, muitas vezes marcada por uma forte privação material, e com a condição
de vida dos mais pobres – em face da qual rejeitam toda espécie de desperdício e
de consumo conspícuo. Tal orientação se ancora nos valores do ethos do trabalho
duro, que parecem rejeitar qualquer tentativa de pretensão entre os membros das
classes populares, tanto mais reforçada pelo fechamento dos batalhadores
ascéticos em círculos sociais relativamente homogêneos. A influência exercida pela
própria homogeneidade do meio em que vivem e pelo convívio com os membros
de sua classe atuam como um importante princípio de conformidade, orientando as
práticas de consumo dos membros das classes populares por um gosto de
necessidade, ainda quando vivenciam um processo de mobilidade ascendente.
Por outro lado, essa postura também parece responder a certa “moralidade
de classe média” que paira sobre o consumo popular (Scalco, Pinheiro-Machado,
2010), de acordo com a qual as práticas de consumo das classes populares devem
se orientar pela lógica da necessidade, ainda quando eles vivenciam processos de
mobilidade ascendente.
O uso do dinheiro pelo batalhador ascético também é voltado para os
interesses familiares, em detrimento dos interesses individuais, projetando nos
membros da família as aspirações de ascensão social e melhoria de vida. Nesse
sentido, é comum o investimento na educação dos filhos, netos e sobrinhos,
propiciando-lhes, quando possível, atividades de lazer – de modo a assegurar uma
trajetória ascendente e um futuro melhor para a família. Como mostra Bourdieu
(2013), é o desejo de continuação de uma mobilidade ascendente, através da
família, que justifica o autossacrifício. Isso pode ser observado na trajetória de
Rosa, uma manicure de 60 anos que afirma empregar a maior parte da renda
familiar mensal na educação da neta, depois de ter investido na educação dos seus
quatro filhos. No momento da entrevista, em junho de 2015, Rosa pagava escola
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particular para a neta e comprava os livros escolares no cartão de crédito,


parcelados em diversas vezes ao longo do ano.
Além disso, os batalhadores ascéticos geralmente se permitem comprar um
bem de maior valor unitário quando se trata de presentear alguém, sobretudo um
membro da família, exprimindo as relações de obrigação moral e compromisso
mútuo entre os familiares (Sarti, 1994). Isso pode ser observado na fala de Jane,
38 anos, que afirma ter comprado uma televisão para presentear a mãe com o seu
primeiro salário como atendente de telemarketing:

Ah, tu perguntou o que eu comprei com meu salário, comprei essas televisões
novas que têm internet, como é? SmartTV. Tem 40 polegadas. Pra dar de presente
à minha mãe na copa, pra o Brasil levar de 7 da Alemanha. Risos. Fiz esse, foi a
coisa mais cara que eu já comprei na minha vida, foi dois mil, quatrocentos e pouco
em doze vezes. Risos. No cartão de uma amiga. Risos.

É possível perceber que a compra do bem mais caro comprado na vida é


legitimado justamente por ser um presente destinado à mãe, adquirido na época da
copa do mundo, o que permitiu receber amigos em casa para assistir aos jogos.
Desse modo, os princípios e promessas da cultura de consumo parecem se atrelar
aos valores fundamentais constitutivos do ethos do trabalho duro, como a família,
de modo a legitimar a adesão a novas práticas de consumo por parte dos
batalhadores ascéticos. Além disso, é válido ressaltar a importância das relações
de solidariedade entre amigos e familiares no acesso ao consumo de bens e
serviços, através do empréstimo do cartão de crédito àqueles que não possuem as
condições objetivas para obter seu próprio cartão.
O consumo de bens parece assumir, para os batalhadores ascéticos, muito
mais o sentido de superar a precariedade da situação passada e expressar sua
dignidade material e moral, construída por meio do trabalho duro, do que o de tentar
imitar um estilo de vida das classes superiores. No entanto, embora afirmem
orientar seu consumo por um gosto de necessidade, os batalhadores ascéticos não
descartam os lucros simbólicos associados ao consumo de bens, buscando
exprimir seus valores e sua identidade. Assim, embora afirme não ser vaidosa,
Rosa busca exprimir sua identidade de mulher respeitosa e religiosa através do
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consumo de vestuário, acionando critérios como “cores neutras”, “comprimento”,


“sem decote”, dentre outros5. Através do consumo de vestuário e produtos
cosméticos para alisar o cabelo, Rosa procura manter uma “boa aparência” e
expressar uma presença de gente, mostrando-se apresentável, limpa e higiênica
para buscar a neta no colégio ou ir à casa de uma cliente.
Desse modo, é possível observar que os membros das frações ascensionais
das classes populares buscam também combater o estigma da pobreza por meio
do consumo de bens, já que a pobreza envolve não apenas a privação material,
mas também uma forte dimensão simbólica. A construção da autoimagem assume
um caráter específico no caso da mulher negra, como é o caso de Rosa, que tenta
diminuir a dupla desvantagem que pesa sobre ela, tanto no mercado matrimonial
como no mercado de trabalho, devido à sua condição sobredeterminada de mulher
pobre e negra, buscando construir uma imagem positiva de si.
O outro perfil cultural construído a partir da pesquisa de campo corresponde
ao batalhador hedonista que, apesar de ter incorporado disposições para o trabalho
duro, responsáveis pela sua inserção no mercado, mostra-se mais suscetível à
influência dos valores e promessas da cultura de consumo, adotando uma postura
mais hedonista no campo dos estilos de vida. Apesar das nuances e diferenças
encontradas entre os dois perfis no âmbito das práticas de consumo, eles partilham
de uma trajetória social relativamente comum e de um conjunto de disposições e
valores que constituem o ethos do trabalho duro. Assim como o batalhador
ascético, o batalhador hedonista incorporou desde a mais tenra idade disposições
ascéticas para o trabalho no seio da socialização familiar, que possibilitaram sua
reprodução de classe e posterior mobilidade ascendente.
Contudo, o batalhador hedonista parece vivenciar de modo diverso os
conflitos entre o conjunto de valores e disposições ascéticas incorporadas desde a
infância e os valores e crenças a que está exposto no seio de uma sociedade
capitalista e de mercado, permeada por uma cultura de consumo. Estes últimos
constituem um universo simbólico, apresentando possibilidades e modos de ser e
de viver que o batalhador hedonista almeja em alguma medida, de modo que ele

5
De acordo com Cynthia Sarti (1994, p. 98), a vaidade é condenada entre os mais pobres, na medida em que
implica numa individualidade tida como irresponsável porque nega os preceitos de obrigação moral em
relação aos seus iguais.
12

vivencia de maneira mais acentuada o conflito entre os valores encerrados no ethos


do trabalho duro e aqueles sustentados pela cultura do consumo.
É possível observar, nesse sentido, um conflito entre a disposição para o
sacrifício individual – por meio da qual o batalhador prioriza os interesses da família
em detrimento do consumo de bens individuais voltados para o prazer – e a
disposição para a autossuperação – que possibilita o consumo de bens
considerados “superiores”, por meio do qual os batalhadores exprimem sua
dignidade material e a nova posição alcançada. Portanto, a adesão a novas práticas
de consumo requer um ajuste com relação aos valores e disposições ascéticas
constitutivos do ethos do trabalho duro.
Para tanto, os batalhadores lançam mão, em determinados contextos, de
uma nova ética do consumo, mais próxima da retórica do desejo e do querer, tal
como explicitada por Campbell (1998). Tal ética do consumo foi denominada neste
trabalho de retórica do trabalho duro, na medida em que visa legitimar as práticas
de consumo dos batalhadores como decorrência do “suor do seu trabalho”. Isso
pode ser observado na trajetória de Elisângela, 36 anos, que adquiriu novas
práticas de consumo, depois que começou a trabalhar como faturista de uma
empresa terceirizada, recebendo um salário mínimo – o que possibilitou o aumento
da renda familiar mensal:

Aí é, é essas coisas que eu comecei a fazer né? Ter mais a liberdade de, de
comprar as coisas que eu tenho, se eu passar hoje numa loja, vê, eu vou e compro,
porque eu trabalho.

O trabalho parece prover, portanto, as condições materiais e simbólicas para


a incorporação de novas disposições para o consumo, na medida em que possibilita
tanto as condições objetivas – maior volume de capital econômico – quanto a
legitimação moral para a aquisição de novos bens de consumo, permitindo a
justificação daquelas práticas mais distanciadas da lógica da necessidade e a
expressão de um gosto de liberdade.
A partir de sua inserção do mercado de trabalho, a entrevistada explica que
passou a usar o cartão de crédito, pois quando viviam numa condição financeira
mais apertada, procuravam comprar tudo à vista, assegurando o controle estrito
13

sobre as despesas. A entrevistada afirma que consumia com muita cautela,


restringindo-se aos itens considerados necessários. A fala de Elisângela também
permite inferir que o batalhador hedonista pode ter incorporado disposições para
crer, em sua condição anterior, ligadas aos valores e às promessas da cultura do
consumo, sem ter as condições materiais para incorporar as disposições para agir.
Somente depois que se inseriu no mercado de trabalho e passou a ganhar seu
próprio dinheiro, a entrevistada conseguiu aderir a novas práticas de consumo.
Assim, Elisângela usa seu dinheiro para comprar bens duráveis para a casa,
proporcionar atividades de lazer para a família, além de dar vazão aos seus desejos
por bens de consumo individuais. Ela afirma orientar o consumo de bens duráveis
– como móveis e eletrodomésticos – por um gosto de necessidade, comprando
quando está quebrado ou está precisando. Contudo, a entrevistada também
procura algo mais nessas compras, buscando modernizar seu lar e seguir as novas
tendências em decoração – uma parede com cor destaque na sala de estar, TV
LCD instalada na parede colorida, sofá em estilo chaise (retrátil) –, buscando
legitimar a adoção de critérios simbólicos a partir de uma “retórica do trabalho duro”,
na medida em que o conforto do lar é percebido como uma recompensa pelo seu
esforço no trabalho. Isso pode ser observado quando a entrevistada explicita os
critérios acionados na escolha do sofá que comprou recentemente:

Eu já imaginei quando eu fui comprar esse daqui, eu disse: eu vou querer um com
“chaise” porque aí como a gente assiste TV, a gente assiste um filme, a gente quer
um conforto, né, chegar do trabalho, ter um conforto.

A entrevistada justifica a compra do novo sofá a partir de uma retórica do


consumo ancorada no trabalho e na necessidade de proporcionar conforto para a
família. Embora a busca pelo conforto no âmbito do consumo de bens duráveis para
o lar também seja encontrada entre os batalhadores ascéticos, constituindo a
margem das despesas eticamente permissíveis do ethos ascético (Weber, 2016),
estes últimos não apresentam a mesma inclinação para o consumo de bens
voltados para o prazer e desfrute individual – como é o caso entre os batalhadores
hedonistas. Estes últimos apresentam uma maior propensão ao consumo de bens
individuais, destinados à satisfação de desejos e necessidades imediatas, o que
14

favorece uma transformação na natureza e dinâmica da unidade de consumo –


observada em domínios e contextos específicos –, além de uma mudança no
processo de tomada de decisão sobre a aquisição de bens de consumo e na própria
natureza dos bens, até então característicos dessa fração de classe. Nesse sentido,
é possível perceber a passagem da família como unidade de consumo –
característica do ethos do trabalho duro –, para o indivíduo (Mccracken, 2003), que
será encontrada sobretudo entre os batalhadores mais jovens.
No caso de Elisângela, o trabalho também atuou como um importante
processo de socialização secundária na incorporação de novas disposições para o
consumo e para o lazer, uma vez que a entrevistada passou a conviver com
pessoas de outras classes sociais, trabalhando com médicas, enfermeiras,
secretárias, o que possibilitou um maior acesso às práticas de consumo
características das classes dominantes, as quais parecem ser almejadas pela
entrevistada, em alguma medida. Ela conta que as colegas de trabalho sempre
viajam para o exterior, usam perfumes importados e até já trouxeram alguns de
presente para ela, despertando seu interesse por tais bens de consumo. Desse
modo, Elisângela passou a frequentar uma loja de perfumes importados,
inicialmente interessada em conhecer a fragrância dos perfumes, incorporando
novas disposições para o consumo, ainda que sob a forma de crença (Lahire,
2002). Posteriormente, a entrevistada passou a comprar alguns desses perfumes,
aproveitando as situações em que as médicas do trabalho viajavam para o exterior
e compravam perfumes no dutyfree dos aeroportos por um preço mais acessível.
As justificativas apresentadas por Elisângela sobre as condições nas quais
considera prudente consumir bens individuais orientados para o prazer, como
vestuário e perfumes importados, expressam uma combinação entre ascetismo e
hedonismo, encontrada entre os demais batalhadores hedonistas entrevistados:

Hoje em dia pra você comprar um perfume no Boticário, Boticário, Natura, é em


torno de mais de R$100 reais um perfume bom, então é melhor você pagar um
pouquinho a mais e ter um produto melhor né? Isso é quando dá pra você comprar
né? Você também não vai fazer, sacrificar a família, “ai vou comprar um perfume
bom, porque eu quero”, não. E sacrificar a família? A alimentação? Não. Eu só
compro realmente quando dá pra comprar, como eu comprei esses dois, comprei
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um e depois de muito tempo comprei outro, quando dá mesmo. Eu tô te dizendo


assim a questão de qualidade, realmente a qualidade é bem melhor.

É possível perceber um forte elemento de ascetismo na orientação de suas


práticas de consumo, ainda quando a entrevistada parece nortear suas práticas
para o consumo de bens de luxo, voltados para o prazer e desfrute individual.
Elisângela exprime certa preocupação em mostrar, diante de uma observadora
externa, que suas práticas de consumo são responsáveis e prudentes, explicando
que só compra perfumes importados quando tem um dinheirinho sobrando, e que
paga à vista – em espécie – de modo a não contrair dívidas que poderiam prejudicar
os interesses de sua família no futuro. Portanto, embora o batalhador hedonista
apresente uma maior inclinação para a incorporação de novas disposições para o
consumo de bens individuais, esse processo não se dá sem tensões e conflitos
internos, precisando ser ajustado aos valores e disposições ascéticas constitutivas
do ethos do trabalho duro. Por outro lado, o projeto de “subir na vida” envolve um
crescente processo de individualização, através de diversas formas de
autonomização com relação à condição anterior – nas quais o indivíduo busca
substituir o status atribuído por um status adquirido – e por uma tensão permanente
entre compromissos familiares e interesses individuais (Duarte e Gomes, 2008).
As práticas de consumo dos batalhadores hedonistas visam, portanto,
exprimir a nova posição ocupada, de modo a se distanciar da fração de classe que
se encontra imediatamente abaixo, aproximando-se do estilo de vida das classes
dominantes. Assim como no caso dos batalhadores ascéticos, as práticas de
consumo dos batalhadores hedonistas adquirem sentido em contraste com a
condição passada, marcada por algum grau de privação material. Nesse sentido,
muitos entrevistados afirmam aderir a práticas de consumo e atividades de lazer a
que não tinham acesso na condição passada, que são proporcionadas aos filhos
ou a si mesmos. Elisângela lembra que, na infância, costumava comprar roupa
apenas duas vezes ao ano e agora pode orientar seu consumo de vestuário por um
gosto de liberdade, seguindo as tendências da moda e comprando roupas sempre
que se agrada de alguma peça que vê na vitrine das lojas.
Outro entrevistado, Erinaldo, 29 anos, licenciado em matemática e bombeiro
militar, afirma que comprou com o seu primeiro salário como técnico administrativo
16

de uma Organização Não-Governamental um vídeo game que fora seu sonho de


infância, mas sua mãe nunca teve condições de comprar. Ele percebe o consumo
de bens e as atividades de lazer como uma compensação pelo seu esforço no
trabalho, sobretudo considerando sua profissão de bombeiro, cujas atividades
envolveriam muito estresse. Além dos ajustes com relação aos valores e
disposições constitutivos do ethos do trabalho duro, a adesão a novas práticas de
consumo pelos membros das frações ascensionais das classes populares é
influenciada por uma série de fatores e variáveis que serão discutidas a seguir.

As variantes do gosto de necessidade e do gosto de liberdade


As práticas de consumo dos batalhadores também são norteadas pela
distância com relação ao mundo das necessidades materiais e urgências
temporais, pelo volume e estrutura do capital, pela idade, gênero, posição na família
e no mercado de trabalho, pelo momento no ciclo de vida, além da influência
exercida pela origem social e pelos diversos processos de socialização secundária.
Assim, os entrevistados que tiveram sua condição passada marcada por uma forte
privação material apresentam maior tendência a adotar uma orientação ascética no
campo dos estilos de vida, ao passo que aqueles mais distanciados do mundo das
necessidades materiais apresentam maior propensão a incorporar novas
disposições para o consumo – o que permitiu perceber o peso exercido pela origem
social e sua relação com o modo de aquisição de novas disposições. No entanto,
é importante afirmar que não se trata de uma correlação mecânica e automática,
haja vista que o mais importante é que os indivíduos atribuam às novas práticas de
consumo um sentido coerente com a sua trajetória.
A composição do capital (volume e estrutura) também se mostrou decisivo
na orientação das práticas de consumo dos membros das frações ascensionais das
classes populares, na medida em que um maior volume de capital econômico ou
cultural favorece a reformulação de necessidades – tais como a prática de almoçar
ou jantar em restaurante ou alguma atividade de lazer –, enquanto um menor
volume de capital restringe o consumo dos membros da referida fração de classe.
Nesse sentido, foram os batalhadores empreendedores – detentores de maior
montante de capital econômico – e aqueles que ingressaram no ensino superior –
detentores de maior montante de capital escolar e cultural – que apresentaram
maior propensão à adesão a novas práticas de consumo.
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É importante destacar também a importância das categorias de gênero e


idade na determinação das orientações com relação ao consumo. Tal como
assinalou Campbell (1998), com base em pesquisas realizadas com grupos focais
na Inglaterra dos anos 1990, é possível observar uma relação entre as diferentes
orientações do consumo e a estruturação dos papeis de gênero. Enquanto os
homens parecem mais propensos a orientar suas práticas de consumo através de
uma retórica da necessidade, as mulheres parecem mais inclinadas a associar as
práticas de consumo às atividades de lazer – embora essa propensão seja mais
comum entre as batalhadoras hedonistas entrevistadas, já que as batalhadoras
ascéticas também afirmam se orientar pela necessidade.
Foi possível observar uma divisão sexual do trabalho que se estende às
práticas de consumo, na qual as mulheres costumam ficar responsáveis pela
pesquisa e compra de bens duráveis para o lar, bem como pela compra de vestuário
para toda a família. Nesse sentido, elas mostram maior interesse para falar sobre
consumo do que os homens, que consideram essa temática de menor importância,
tal como observou Rocha (2002) em sua pesquisa nos anos 1990. Desse modo, ao
serem questionados sobre suas preferências e escolhas de consumo, muitos
homens afirmaram delegar essas tarefas às suas esposas, ou apontaram o preço
como critério mais razoável, acionado na escolha dos bens de consumo. Por outro
lado, as mulheres acionam bens e práticas de consumo na construção de uma
identidade feminina – sobretudo aquelas situadas mais próximas ao polo hedonista
do campo dos estilos de vida.
É possível observar também uma importante variável geracional na
orientação das práticas de consumo dos batalhadores, na medida em que os mais
velhos possuem disposições ascéticas duravelmente instaladas no tempo, que
tendem a ser traduzidas para o campo dos estilos de vida em sua condição
presente, ainda quando se encontram mais distanciados do mundo das
necessidades materiais. Voltados para a condição passada, geralmente marcada
por algum tipo de privação material, eles incorporam disposições para a poupança
e para o pensamento prospectivo na condição presente, de modo que a
preocupação com o futuro parece assumir um papel fundamental na organização
de suas despesas. Enquanto os mais jovens parecem mais dispostos a consumir
bens e serviços, conformando um estilo de vida mais próximo ao polo hedonista,
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caracterizados, geralmente, por um maior distanciamento do mundo das


necessidades materiais em sua condição passada e por novas formas de
sociabilidade, decorrentes de processos de socialização mais heterogêneos.
As disposições para o consumo parecem ser influenciadas também pela
posição que os indivíduos ocupam no seio da família – muitas vezes como
provedores do sustento material e moral do grupo familiar – e no mundo do trabalho,
onde o investimento na aparência ou a prática de poupança podem cumprir um
papel mais ou menos importante no desempenho de suas atividades profissionais.
No caso do batalhador por conta própria e pequeno empreendedor, a capacidade
de poupança e a restrição ao consumo imediato constituem disposições
fundamentais para assegurar sua sobrevivência em um mercado competitivo.
Assim, o perfil cultural do batalhador ascético foi mais comumente
encontrado entre homens, idosos, indivíduos responsáveis pelo papel de provedor
da família, batalhadores empreendedores ou cuja origem social está ligada a um
passado de forte privação material, caracterizados pelo baixo volume de capital
cultural considerado legítimo e pelo pertencimento a círculos sociais e processos
de socialização mais ou menos homogêneos.
No caso do batalhador hedonista, é mais comum encontrar neste perfil
mulheres, jovens, indivíduos com maior volume de capital cultural, ocupações nas
quais a construção da autoimagem é importante, posições sociais mais
distanciadas do mundo das necessidades materiais – tanto na condição passada
quanto no presente – e processos de socialização relativamente heterogêneos, nos
quais os batalhadores se relacionam com membros de outras classes sociais, e
parecem mais suscetíveis à incorporação de valores e disposições heterogêneos
ou contraditórios com relação ao ethos do trabalho duro.
Por fim, conforme Bernard Lahire (2006) já havia destacado, o momento no
ciclo de vida também parece influenciar as orientações para o consumo, de modo
que nem sempre os batalhadores entrevistados se orientaram pelas mesmas
disposições para o consumo. Nesse sentido, foi possível observar na pesquisa de
campo tanto indivíduos mais inclinados à orientação hedonista e ao consumo de
bens, que incorporaram disposições ascéticas em uma fase posterior de sua vida,
quanto batalhadores caracterizados por uma conduta ascética em sua condição
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passada, cujo processo de mobilidade ascendente – social, ocupacional ou escolar


– foi acompanhado pela incorporação de disposições hedonistas para o consumo.

Considerações finais
Dentre as conclusões alcançadas a partir desta investigação, vale destacar
a relação que a nova ética do consumo empregada pelos membros das classes
populares – denominada de retórica do trabalho duro – parece manter com a
persistência dos altos níveis de desigualdades da sociedade brasileira. Isso porque
enquanto Campbell (1998) destacou a redefinição dos bens de consumo e dos
contextos de compra (aniversário do consumidor, férias, etc.), a partir de uma
perspectiva transclassista, de modo a legitimar as práticas de consumo orientadas
pelo desejo e pela busca de prazer, os batalhadores hedonistas entrevistados na
pesquisa lançam mão quase exclusivamente da retórica do trabalho duro,
destacando o consumo de bens como uma recompensa pelo seu trabalho. Desse
modo, o trabalho forneceria as condições materiais e simbólicas, legitimando o
consumo de bens distanciados da retórica da necessidade tanto perante aos
valores e disposições ascéticas constitutivos do ethos do trabalho duro, quanto
diante das expectativas reunidas em torno de uma “moralidade de classe média”
(Scalco, Pinheiro-Machado, 2010).
A análise também permite problematizar a interpretação sobre a emergência
de uma “nova classe média” no Brasil, fundamentada na mudança dos padrões de
consumo na base da pirâmide social, destacando sua inconsistência teórica e
empírica. Do ponto de vista teórico, o conceito bourdieusiano de classe social
destaca a necessidade de se considerar a gênese sociocultural das classes sociais
– para além da renda –, bem como seu caráter relacional. Portanto, o que
caracteriza um estilo de vida distinto e distintivo é a sua posição diferencial com
relação aos demais, de modo que não faz sentido falar de uma “nova classe média”
com base na cesta de consumo das frações emergentes se as classes mais
abastadas também aumentaram os seus níveis de consumo, demarcando sua
posição social. Do ponto de vista empírico, é importante considerar os usos e
sentidos que os membros das classes populares atribuem às suas práticas de
consumo, associados à condição de privação material no passado e voltados à
superação do estigma da pobreza, distanciando-se daqueles encontrados entre os
membros da classe média.
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