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Urdimento: s.m.

1) urdume;
2) parte superior da caixa do palco,
onde se acomodam as roldanas,
molinetes, gornos e ganchos
destinados às manobras cênicas;
fig. urdidura, ideação, concepção.
etm. urdir + mento.

ISSN 1414-5731
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Número 10

Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART


UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Graduação em
Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As
opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A
publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou
seus representantes.

FICHA TÉCNICA

Editor: Prof. Dr. André Carreira


Secretário de Redação: Igor Lima (bolsista PROMOP)
Capa: Vinegar Tom - montagem da prática de ensino dirigida pela Prof. Dra.
Maria Brígida de Miranda
Fotos: Cleide de Oliveira
Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC
Diagramação Editorial: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com]
Design Gráfico: Israel Braglia [israelbraglia@gmail.com]
Coordenação de Editoração: Célia Penteado [celiapenteado@uol.com.br]

Editado pelo Núcleo de Comunicação CEART/UDESC

Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES

Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas /


Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação
em Teatro. - Vol 1, n.10 (Dez 2008) - Florianópolis: UDESC/CEART
Anual
ISSN 1414-5731

I. Teatro - periódicos.
II. Artes Cênicas - periódicos.
III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Universidade do Estado de Santa Catarina

Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528


Biblioteca Setorial do CEART/UDESC
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC

Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo


Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza
Diretor do Centro de Artes: Antonio Carlos Vargas Sant’Anna
Chefe do Departamento de Teatro: Valmor Beltrame
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Milton de Andrade

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho Edelweiss – UNIRIO


Prof. Dra. Beti Rabetti - UNIRIO
Prof. Dr. Francisco Javier - Universidad de Buenos Aires
Prof. Dra. Helena Katz - PUC- SP
Prof. Dr. Jacó Guinsburg - ECA-USP
Prof. Dra. Jerusa Pires Ferreira - PUC-SP
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Prof. Dra. Sonia Machado Azevedo - ECA-USP
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Prof. Dr. Walter Lima Torres -UFPR
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina
CEART - Centro de Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, caráter strictu sensu, en-


contrando-se implantado desde o primeiro semestre de 2002.

PROFESSORES PERMANENTES

André Luiz Antunes Netto Carreira


Antonio Carlos Vargas Sant’anna
Beatriz Ângela Vieira Cabral
Edélcio Mostaço
José Ronaldo Faleiro
Márcia Pompeo Nogueira
Maria Brígida de Miranda
Milton de Andrade
Valmor Beltrame
Vera Regina Collaço

PROFESSORES VISITANTES

Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha)


Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha)

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos, em nível


nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e
grupos de pesquisa, seus integrantes, página dos professores, dos ex-alunos,
dissertações defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual:
http://www.ceart.udesc.br/ppgt
Sumário

Editorial 7

Teatro na Escola

O professor assume um papel e traz, por que não, um personagem para


a sala de aula: desdobramentos do procedimento teacher in role no pro-
cesso de drama
Heloise Baurich Vidor 9

Condições de trabalho com Teatro na Rede Pública de Ensino: sair de


baixo ou entrar no jogo
Sérgio Coelho Borges Farias 19

Realidade estranhada e a cena teatral


Sidmar Gomes 25

Formação do Professor

O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos históricos


Biange Cabral 35

A encenação contemporânea como prática pedagógica


Ingrid Dormien Koudela 45

Dentro ou fora da escola?


Maria Lúcia de Souza Barros Pupo 55

Formação docente em Teatro: pesquisa aliada à ação pedagógica


Vera Lúcia Bertoni dos Santos 61

Professor de Teatro: existe?


Vicente Concilio 69
Formação do Espectador

Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação de Público


Flávio Desgranges 75

Acerca do teatro e dos festivais estudantis


Joaquim Gama 85

Teatro em Comunidade

Entre o ritual e a arte


Jan Cohen Cruz 95

A opção pelo teatro em comunidades: alternativas de pesquisa


Márcia Pompeo Nogueira 127

Prática como Pesquisa

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva Ecológica


Baz Kershaw 137

O drama da etnografia
Kate Donelan 161
U rdimento

Ensino do Teatro – lugares, olhares, saberes


Editorial

No campo teatral o conceito de estranhamento nos desafia a tornar o


familiar não familiar a fim de observá-lo a partir de um novo olhar. No campo
pedagógico o conceito de deslocamento, com origem no estudo da mobilidade
dos cristais e suas deformações plásticas, nos leva a refletir sobre as alterações
da percepção provocadas pela mobilidade da forma teatral.

O estranhamento decorrente de nosso encontro com olhares diversos


sobre nossa prática docente nos leva a deslocar nossas certezas e expectativas.
Assim foi articulado este número especial da Urdimento – os artigos aqui
presentes apontam para lugares pedagógicos distintos e apresentam uma
pluralidade de olhares sobre o fazer teatral.

Transitar entre os artigos nos remete à idéia de deslocamento e


seu significado na vida cotidiana, no pensamento social contemporâneo, nas
intertextualidades dos projetos do campo das artes.

Estranhamento e Deslocamento implicam mobilidade, caminhar entre


espaços, imagens, lugares, como forma de conhecimento.

Nos olhares dos autores, que integram este número especial


da Urdimento, destacam-se saberes articulados na formação de futuros
professores e nas pesquisas feitas sobre a teoria e a prática do ensino do
teatro. Nesses contextos, os trabalhos localizam-se em campos de atuação
diversos, incluindo os espaços alternativos ao ensino formal, que vem
tropeçando na crise da escola brasileira. São espaços que surgem de trabalhos
políticos, culturais ou religiosos; projetos financiados por iniciativas públicas,
por ONGs, pela universidade. Nos diferentes lugares surgem trabalhos,
aqui analisados, que são complementares na democratização do acesso ao
teatro, envolvendo o fazer e o apreciar. Enquanto fazer, há uma tônica na
incorporação da encenação no processo educacional, tanto na escola como
Dezembro 2008 - N° 10 Editorial

7
na comunidade. Enquanto apreciar há uma preocupação com as formas de
mediação adotadas para ampliar e intensificar a percepção do espectador no
seu encontro com a cena teatral. Esses encontros ganham forma através de
mostras ou de festivais estudantis. Espaços de troca entre os saberes e os
fazeres de grupos de teatro, artistas, professores e facilitadores que atuam
em contextos alternativos ao teatro profissional.

Dessa forma, os artigos aqui reunidos se agrupam em cinco subáreas


distintas da pedagogia do teatro: teatro na escola, formação do professor,
formação do espectador, teatro na comunidade e prática como pesquisa.

O panorama geral da pedagogia do teatro e do teatro na educação


está longe de ser um todo coeso. As lacunas talvez ainda sejam maiores
do que as pistas existentes em termos políticos, culturais e metodológicos.
O debate está aberto e inclui contribuições de professores das diversas
licenciaturas em teatro do país, além de autores convidados, da Austrália,
Estados Unidos e Inglaterra.

Biange Cabral e
Márcia Pompeo Nogueira
Editoras
U rdimento

Heloise Baurich
1

Vidor é atriz, diretora


teatral e professora
do Departamento
de Artes Cênicas da
UDESC/Florianópolis
na área da Pedagogia
do Teatro. Mestre
O professor assume um papel e traz, em Educação e
Cultura pela UDESC e
por que não, um personagem para a Mestranda em Teatro
sala de aula: desdobramentos do no PPGT da mesma
Universidade.
procedimento teacher in role
Teacher in role foi
no processo de drama
2

traduzido para o
português como pro-
Heloise Baurich Vidor1 fessor-personagem,
por Beatriz Cabral,
uma vez que o termo
O presente artigo discute a presença da teatralidade na metodologia ‘role’, com o sentido
de papel social não
do drama a partir da estratégia denominada teacher in role e as possibilidades existe em português.
para o ensino do teatro na escola. Esta estratégia, própria da metodologia do Este fato dificulta a
drama, foi traduzida por professor-personagem devido a uma razão lingüística2. tradução do mesmo.
Entretanto, a experimentação com este procedimento nas práticas com o Entretanto como
durante a pesquisa
drama apontou para um desdobramento do mesmo no sentido de incorporar no
observou-se possí-
processo personagens que mantivessem o texto dramático criado pelo autor, veis desdobramentos
além de explorarem a caracterização física ou visual. Este desdobramento indica deste procedimento
possibilidades em termos metodológicos, para a ação do professor de teatro na que o aproximariam
escola, levando a implicações pedagógicas, conforme discutirei adiante. da noção de perso-
nagem optou-se por
assumir a tradução
Para clarificar a distinção entre o professor no papel e o professor- literal quando se
personagem, revisarei os conceitos a partir de sua origem no contexto inglês e refere ao professor
posteriormente apontarei as possibilidades pedagógicas que surgem quando assumir um papel
social e deixar a
se potencializa os elementos teatrais na estratégia e quando se associa a mesma
expressão professor-
ao ensino do teatro no contexto escolar. personagem para
quando o professor
I. As origens do teacher in role realmente traz para o
processo um determi-
nado personagem de
A origem do teacher in role no drama inglês está relacionada ao trabalho um texto dramático,
de sua criadora Dorothy Heathcote, que introduziu uma série de procedimentos mantendo sua fala e
para o uso do drama no contexto curricular, como articulador de diferentes caracterização.

Dezembro 2008 - N° 10 O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor

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U rdimento

áreas do conhecimento. O papel do professor no processo de drama tornou-se


o objeto de pesquisa e experimentação para Heathcote, já que ela o considera
fundamental neste processo. O professor adquire o status de organizador,
facilitador, tendo responsabilidade como membro mais maduro do grupo. A
originalidade do drama de Heathcote deve-se a sua intuitiva habilidade para
traçar vários conteúdos de fontes teatrais e educacionais, organizando os
vários fatores em um coerente, progressivo e teleológico processo de ensino/
aprendizado. (LEWICKI, 1996)

Em seu trabalho como formadora de professores de drama, três


questões são consideradas fundamentais: uma é o paradigma dominante na
escola em que o professor atua, outro é o paradigma dominante do modo
como o professor vê a criança e o terceiro é o paradigma no qual o próprio
professor opera, como gerencia suas relações no trabalho. (HEATHCOTE,
1990) A partir do entrecruzamento destes paradigmas o professor consegue
potencializar as possibilidades e trabalhar com as dificuldades. Esta reflexão
leva a uma reavaliação da prática do professor na realização do seu trabalho.

Uma aula é sempre um encontro social e este encontro social incluirá


um sistema de comunicações. Se você muda a expectativa do aluno por causa
da forma que você opera o paradigma e o aluno responde a este paradigma,
então você mudará o sistema de comunicação e você poderá mudar o contexto
social. Quanto mais você muda isso, mais você oferece outras estratégias de
aprendizado. (HEATHCOTE, 1990:32, trad. nossa)
3
Rolling role: troca de
Neste sentido, a elaboração da estratégia do teacher in role representa
papéis entre os par-
ticipantes. (BOLTON as várias possibilidades de relação do professor com o grupo de drama e está
apud LEWICKI, 1996: totalmente conectado com o fluxo de informações que emergem durante o
125, trad. nossa) processo, e com a comunicação das informações entre professor-aluno e aluno-
4
Mantle of expert: professor. O teacher in role é, essencialmente, um facilitador da comunicação e
método dramático uma oportunidade de mudança de paradigma.
popularizado por
Dorothy Heathcote Esta perspectiva de comunicação e co-operação entre o professor e
que requer que os o aluno fez com que Heathcote criasse, além do teacher in role, novas técnicas
participantes se como rolling role3 e mantle of the expert4 para aumentar a participação e a
comportem como se
eles tivessem conhe- responsabilidade da criança no drama.
cimento, habilidade
e responsabilidade A literatura do drama na educação ressalta a função pedagógica do
de um ‘expert’, por teacher in role para maximizar as possibilidades de aprendizado; no entanto, não
exemplo, um médico.
(BOLTON apud
há um consenso sobre como ele é feito. (ACKROYD, 2004:136, trad. nossa) A
LEWICKI, 1996: 125 insistência na questão da função desta estratégia tem como objetivo distinguir
trad. nossa) o teacher in role da atuação, ou seja, lembrar ao professor que seu objetivo não é
O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

portar-se como ator diante de uma platéia e esquecer os objetivos pedagógicos


que fizeram com que ele assumisse papéis e lançasse mão da estratégia. Cecily
O’Neill argumenta por exemplo que “os professores quando assumem um
papel nunca precisam atuar no sentido do ator, porque eles têm um diferente
trabalho a fazer, uma separação de funções e que o teacher in role é definido pela
sua função”. (O’NEILL, 1995: 32 trad.nossa).

Porém, o fato de os professores não precisarem atuar, no sentido do ator,


não significa que eles não possam atuar como atores, desde que não percam de
vista o contexto no qual estão trabalhando. Ackroyd (2004) afirma que os
professores quando estão assumindo um papel estão atuando. A intencionalidade
e os objetivos do professor são os fatores que definem ou potencializam esta
proposta. Segundo a autora, há professores que se amedrontam com a idéia
de estarem atuando quando assumem um papel. Assim, ao trabalhar com a
formação de professores de drama, ela os tranqüiliza e encoraja a usarem o
teacher in role separando-o da idéia de atuação.

De qualquer forma, assumir um papel durante as aulas de drama exige


que o professor aceite enfrentar alguns desafios como:

1. Agir como se fosse outra pessoa diante dos alunos;


2. Improvisar sua fala de acordo com o que surge na relação aqui e agora;
3. Sustentar o papel, sua lógica e simultaneamente, manter os
objetivos pedagógicos;
4. Aceitar o imprevisível, o acaso, mudando o rumo sempre que necessário.

Além de, segundo Neelands:

1. Ser um ouvinte
2. Responder ao que é oferecido;
3. Incorporar as idéias dos participantes;
4. Controlar o tempo;
5. Agir como diretor do drama;
6. Agir como dramaturgo;
7. Participar na ação;
8. Representar um papel ou papéis.
(NEELANDS, 1998 apud ACKROYD, 2004: 39, trad. nossa)

É interessante notar que o autor, ao mencionar os procedimentos do


professor quando assume o papel não os relaciona diretamente ao ator. Neelands
menciona as funções de diretor e dramaturgo, mas não de ator. Mas o que
significa “participar na ação” ou “representar papéis” no contexto ficcional?
Dezembro 2008 - N° 10 O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor

11
U rdimento

Quando este questionamento é relacionado ao ensino do teatro, ele


aponta para a idéia de que se há na ação do professor a intencionalidade
de agir como ator há também uma ampliação dos objetivos pedagógicos,
envolvendo: exploração de diferentes estilos de representação, leitura/
apreciação pelos alunos da representação, decodificação de signos pelos
alunos, exploração da relação com o espaço. Assim, os mesmos aspectos que
são analisados com a apreciação de um espetáculo profissional que é levado
à escola e visto pelos alunos, dentro do conceito da pedagogia do espectador
(DESGRANGES, 2003), por exemplo, podem ser discutidos a partir do
exercício rotineiro proporcionado pela estratégia do professor-personagem,
sem logicamente invalidar a proposição anterior – receber espetáculos na
escola ou levar os alunos ao teatro. Este é o mote para a investigação e
exploração do professor-personagem.

No próprio contexto inglês estas variações já foram apontadas,


através da prática diferenciada dos professores de drama. De qualquer
maneira, fica claro que cada professor pode optar pela realização do
que lhe é mais confortável e produtivo quando usa a estratégia. Cecily
O’Neill, apesar de receber influência direta de Dorothy Heathcote, usa
a estratégia de forma minimalista e econômica. “Eu considero mais
funcional apresentar uma atitude ou mostrar um ponto de vista ou uma
perspectiva, mais do que um papel num drama particular, (...) um tipo de
pessoa sem face, podendo ser um homem ou uma mulher.” (O’NEILL apud
ACKROYD, 2004: 94/95, trad. nossa).

Já John O’Toole, em entrevista à Ackroyd, admite que explora a


teatralidade, ou seja, potencializa os signos, em suas experiências com o
teatro na educação. Quando assume um papel utiliza-se de figurinos, objetos
de cena, exploração do uso do espaço e refere-se à noção de personagem
dependendo do drama que está sendo desenvolvido. (ACKROYD, 2004:
125 trad. nossa)

Estes dois exemplos reforçam a idéia de que o teacher in role apresenta


uma natureza multifacetada que pode ser realizada de acordo com estilo de cada
professor. O importante é que ele não se distancie dos objetivos vislumbrados e
que auxilie o envolvimento dos alunos com o aprendizado. Em grande parte da
literatura consultada sobre o drama e sobre o teacher in role Dorothy Heathcote,
além de ser sua criadora, é considerada a grande realizadora do mesmo,
conseguindo conciliar de maneira ímpar os aspectos artísticos e pedagógicos.
Como professora de drama, Heathcote teve seu trabalho comparado, em
diferentes aspectos, a artistas como Grotowski, John Cage (ACKROYD, 2004),
o que confirma a ressonância de sua atuação.
O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A seguir discuto a contextualização do teacher in role no Brasil, que


se relaciona com o uso da estratégia no contexto do ensino do teatro, a opção
inicial pelo termo professor-personagem e suas implicações teórico-práticas.

II. Professor no papel e/ou Professor-personagem: a imigração do drama


para o Brasil e suas diferentes possibilidades

Conforme foi mencionado no início deste trabalho, a expressão teacher


in role foi traduzida para o português por Beatriz Cabral como professor-
personagem e definida como uma estratégia na qual o professor assume
personagens durante o processo de construção de uma narrativa cênica pelos
alunos (CABRAL, 2006). Segundo Cabral:

A expressão “professor-personagem” foi a tradução


escolhida para a convenção inglesa “teacher in role”, justificando-
se tanto pela impossibilidade de uma tradução literal, quanto pelas
características que o uso desta estratégia foi adquirindo no contexto
brasileiro [a autora completa numa nota de rodapé] A tradução para
o contexto do teatro educação, no Brasil, centrado nos jogos teatrais
(Viola Spolin) e na presença constante do espectador, vai de encontro
à prática do nosso licenciado em teatro, que em geral se atém mais à
caracterização do que a sua função social. (CABRAL, 2006: 19-20)

Entretanto, a partir do trabalho prático com o drama, realizado


junto ao grupo de pesquisa em drama 5, verificamos que esta tradução 5
Grupo de Pesquisa:
elimina a diferenciação que pode existir entre o professor assumir um Pedagogia do Teatro
e Teatro como Peda-
papel social e o professor representar um personagem. Embora os termos
gogia - coordenado
tenham sido usados como sinônimos, a importância de diferenciá-los pela Professora Dra.
se deve à possibilidade de explorar a segunda proposta – professor Beatriz Cabral./Proje-
representar um personagem – em termos de verificar sua viabilidade na to Arte na Escola Pólo
prática da sala de aula, e seu potencial pedagógico e metodológico para UFSC /Florianópolis.
o ensino do teatro.

Assim, para clarificar e redefinir os termos dentro do que estou


propondo, retomo inicialmente a perspectiva inglesa, citando Ackroyd
(2004): “Na literatura do drama na educação, os conceitos do teacher in role
são muitas vezes associados com papéis sociais.” (ACKROYD, 2004:7, trad.
nossa). Ao utilizar-se da estratégia do teacher in role, o professor assume
um papel social e com isso estimula a discussão que este papel levanta
entre os participantes, em termos de comportamento e suas implicações
éticas ou conscientização de outra realidade que não a sua própria.
Dezembro 2008 - N° 10 O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor

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U rdimento

Na prática, o professor diz que é determinada pessoa, mantém a


coerência lógica deste papel social escolhido somente com a formulação do
discurso e sua oralização. O texto criado e oralizado pelo condutor, de forma
improvisada, aproxima o mesmo de um dramaturgista, na medida em que este
constrói os diálogos a partir da relação criada, aqui e agora, com o participante,
e não fechado em um gabinete. De qualquer maneira, o foco está potencializado
no o quê está sendo dito, na função deste discurso para o desenvolvimento da
narrativa, e menos no como está sendo dito, sem objetivos cênicos.

Entretanto, na prática, a relação com a questão cênica, no contexto


inglês, também não é tão paralela e aponta para o possível desdobramento do
papel para o personagem. Ackroyd (2004) relata que quando representou o papel
de uma menina que tinha medo de ir para a neve por causa de um acidente
ocorrido há alguns anos, criou a personagem Suzie, uma menina que tinha a
habilidade de evitar questionamentos referentes a seus medos. E diz: “Quando
eu atuei neste papel, eu estava certa de que eu precisava criar um personagem.
Ela não é apenas uma menina pequena, ela é Suzie, como Masha é Masha, um
personagem individual num contexto particular.” (ACKROYD, 2004:67, trad.
nossa) Diferente de O’Neill, que prefere papéis sem face, neste caso Ackroyd
propõe uma individualidade que se define por detalhes na caracterização. E
prossegue dizendo que entende o termo personagem a partir da semiótica, que
o define como: “Um personagem é nem mais e nem menos do que um conjunto
de signos. E estes signos são variáveis, uma vez que são determinados pelo
ator no contexto de produção” (ACKROYD, 2004:67/68, trad. nossa).

A noção de papel e personagem, relacionado ao trabalho do ator, tem


em Stanislávski sua forte referência, na medida em que este autor dedicou-
se a sistematizar procedimentos de atuação, identificando separadamente os
campos da criação do papel e da construção de personagem. Em sua obra A
Criação do Papel (1984), o autor refere-se ao processo de entendimento do
contexto da ficção e das circunstâncias dadas. Em a Construção da Personagem
(2000), o autor focaliza a caracterização física do personagem.

Assim, para a criação de um papel é necessário que haja um período


de análise das circunstâncias dadas pelo autor do texto dramático, ou seja,
a criação do contexto da ficção, a avaliação dos fatos e a criação do discurso
do papel, para depois, numa segunda etapa, partir para a construção de
física. Quando se refere à construção física, exterior, Stanislávski utiliza o
termo ‘personagem’. Para a construção do personagem, seja ele qual for, é
necessário que o ator trabalhe na caracterização exterior, na plasticidade
dos movimentos, nas entonações, na expressividade das palavras, no
tempo-ritmo. (STANISLAVSKI, 2000).
O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

As convenções do professor no papel e do professor personagem


correspondem a estas etapas identificadas por Stanislávski. Podemos
entender que o professor no papel focaliza a primeira etapa, que concentra o
desenvolvimento das circunstâncias dadas e criadas pelo autor ou pelo pré-
texto criado pelo professor. E o professor-personagem abarca as duas etapas,
pois sua composição exige que o professor estude o texto dramático,
compreendendo as circunstâncias e objetivos do personagem dentro do mesmo
para fisicalizá-lo. Porém, no momento de intervenção no processo de drama,
eles são independentes, ou seja, uma estrutura de drama pode ter o professor
no papel em determinado episódio, e o professor representando um determinado
personagem em outro momento.

Patrice Pavis (2001) apresenta uma definição para o termo papel que,
apesar de ser colocado como sinônimo de personagem define o tipo de personagem
- ou personagem tipo - e ajuda a esclarecer a opção inglesa pelo termo:

Enquanto tipo ou personagem, o papel está ligado a uma situação ou


uma conduta geral. Ela não tem característica individual alguma,
mas reúne várias propriedades tradicionais e típicas de determinado
comportamento ou determinada classe social (papel de traidor, de
homem mal). (PAVIS, 2001: 275)

Esta idéia do papel como comportamento de uma determinada classe social vai de
encontro ao aspecto relacionado à função e ao status do papel que o professor assumirá.

Assim, parto de três constatações para especificar os dois termos professor no


papel e professor personagem e justificar a necessidade de um estudo mais aprofundado da
segunda possibilidade:

1. A prática do teacher in role, no contexto inglês, apresenta variações que vão


do uso exclusivo do papel até a incorporação de aspectos do professor-personagem, sem, no
entanto, usar esta expressão.
2. A utilização da metodologia do drama no Brasil se dá nas aulas de teatro, o que
fez com que Cabral (2006) optasse por traduzir teacher in role por professor-personagem.
Esta expressão contribui para a inserção da estratégia ao universo do teatro.
3. A expressão professor-personagem abarca dois procedimentos que, como vimos,
são diferentes ou, no mínimo, complementares.

Em função destas colocações, proponho que a tradução se mantenha literal


teacher in role - professor no papel - e que o termo professor-personagem seja preservado para
definir um procedimento específico, potencialmente interessante para a aquisição de
Dezembro 2008 - N° 10 O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor

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U rdimento

linguagem teatral no contexto escolar. Como no contexto escolar brasileiro o drama está
sendo utilizado dentro das aulas de teatro, o desdobramento do professor no papel para
o professor personagem emerge automaticamente e leva à potencialização dos elementos
teatrais sempre que possível. Chega-se assim ao questionamento principal: qual é a
diferença fundamental do professor-personagem em relação ao professor no papel?

O professor-personagem dá ênfase à caracterização, cria um discurso condizente com


as circunstâncias do personagem em termos de época, nacionalidade, ideologia, criando
assim uma individualidade, enunciando o texto literal de um autor seja ele dramático ou
não. Durante o processo do drama este personagem interage nas improvisações do grupo,
mantendo, porém, sua postura física e ideológica a fim de permitir o desenvolvimento
de uma contra-argumentação pelo grupo. O professor vai refinar a caracterização em
termos físicos, sonoros, visuais, mantendo assim a idéia de construção de personagem, um
personagem determinado que possa ser trazido em diversos momentos do processo.

Esta é, sem dúvida, uma tarefa que exige mais elaboração por parte do professor,
mas que, se ele tem a intenção e o desejo de resgatar sua prática como ator, poderá sentir-
se fortemente gratificado e estimulado, além de provocar um forte impacto nos alunos, já
que esta proposta apresenta-se como sendo de maior radicalidade estética na relação com
o participante e em termos pedagógicos, oportuniza a ampliação da linguagem teatral –
estilo de representação, relação do ator com o espaço cênico, caracterização em termos do
trabalho do ator e em termos da indumentária utilizada, contato com textos dramáticos.

III. Considerações finais

Apesar de constatar a forte influência de Heathcote no desenvolvimento da


metodologia do drama e de lançar mão de uma de suas estratégias de ensino para explorar
as possibilidades de trazer o teatro para a sala de aula, minha proposta de explorar o
teacher in role visa o reforço da teatralidade e da aquisição da linguagem teatral pelo aluno,
diferenciando-se da ênfase que Heathcote dá ao aspecto educacional.

Estas diferentes abordagens confirmam as várias possibilidades de exploração


da estratégia do professor-personagem, e reforçam a idéia de que, segundo Tadeu Lewicki:

[Dorothy Heathcote] não quis transferir suas habilidades


pessoais para os estudantes ou para outros professores, mas ela estava
convencida que todos são capazes de desenvolver suas próprias
habilidades a fim de produzir uma metodologia individual. Seu
objetivo como uma praticante de drama e professora universitária não
foi produzir outras ‘Heathcotes’, mas mostrar e explicar como o drama
funcionou e como todos os professores poderiam adotá-lo em suas aulas.
(LEWICKI, 1996: 68 trad. nossa)
O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor Dezembro 2008 - Nº 10

16
U rdimento

Assim, em linhas gerais, os aspectos que o professor personagem acrescenta ao


professor no papel são: interação dos alunos com alguém de fora, alguém de outra cultura, de
outro lugar e de outro tempo; utilização de fragmentos de texto no processo; exploração
da caracterização e dos aspectos teatrais, em termos de voz e gestos, expressão corporal /
vocal e estrutura cênica. Os personagens são introduzidos pelo professor, que mantém o
texto dos mesmos, seus argumentos e pontos de vista. Este procedimento possibilita que,
além de trabalhar o texto como pré-texto, os fragmentos do mesmo sejam introduzidos
pelo professor no processo, via professor-personagem.

Neste sentido, a distinção dos dois conceitos – professor no papel e professor-


personagem - amplia as alternativas metodológicas do drama no contexto escolar e abre
espaço para a intensificação da sua dimensão teatral, ao mesmo tempo em que dá liberdade
ao professor tanto para desenvolver e explorar o seu modo particular de fazer, quanto de
colocar-se como co-artista do processo.

Referências Bibliográficas

ACKROYD, J. Role Reconsidered – a re-evaluation of the relationship between


teacher in role and acting. Staffordshire, Trentham Books Limited, 2004.
CABRAL, B. A .V. Drama como Método de Ensino. São Paulo, Ed. Hucitec, 2006.
DESGRANGES, F. Pedagogia do Espectador. São Paulo. Hucitec, 2003.
HEATHCOTE, D. The Fight for Drama – The Fight for Education – Keynotes
speeches by Edward Bond & Dorothy Heathcote. From the NATD Conference
October 1989. Edited and introduce by Edward Bond. Newcastle upon Tyne,
National Association for Teaching of Drama, 1990
LEWICKI, T. From ‘play way’ to ‘dramatic art’- A histotical survey about ‘drama
in education’ in Great Britain. Roma. Libreria Ateneo Salesiano, 1996.
O’NEILL, C. Drama Worlds – a framework for process-drama. Portsmouth.
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PAVIS, P. Dicionário de Teatro. SP. Perspectiva: 1999.
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_______. A Criação do Papel. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984.

Dezembro 2008 - N° 10 O professor assume um papel e traz, por que não, um... Heloise Baurich Vidor

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Dezembro 2008 - Nº 10
U rdimento

Condições de trabalho com Teatro


na Rede Pública de Ensino:
sair de baixo ou entrar no jogo

Sergio Coelho Borges Farias1

“Impressionante como eles são perturbados. Eles gritam,


falam alto, agridem uns aos outros. A sétima B é mais civilizada,
mas a sétima A é um inferno. O professor tem que chamar atenção
o tempo todo, praticamente gritar. Não respeitam ninguém, todos
os professores passam por isso. Alguns deles não ligam mais pra
bagunça, tentam abstrair. O pior é que tem alguns alunos que gostam
da aula e querem estudar, mas não conseguem ouvir. Eu levo um
apito. Funciona um pouco, depois não adianta, volta tudo. Eu dei pra
subir na cadeira. Agora dou aula em pé, em cima da cadeira. Aí eles
param, ficam olhando...”.

Esta é uma narrativa de uma estudante de Licenciatura em Teatro,


cursando a sua última disciplina, que inclui estágio em escola da rede pública de
ensino. Os estagiários fazem relatos desse tipo na sessão semanal realizada na
Faculdade de Educação. Um colega dela, que realiza estágio na mesma escola,
depois de registrar as dificuldades em termos de espaço apropriado às aulas
de teatro, complementa: “Para eles pararem eu dou tapa na mesa. Só funciona
assim”. Mostra como faz, e prossegue: “quando eu era aluno, eu era inquieto,
perturbava, mas era eu e mais dois ou três. Agora quatro ficam atentos e todos os
outros perturbam!”. Outro acrescenta: “Eu tenho na minha sala 32 gritantes!”.

Boa parte da aula de Metodologia do Ensino de Teatro, que dura cerca Universidade Federal
1

de três horas, é ocupada pelo depoimento dos estagiários acerca do andamento da Bahia - UFBA
do estágio o que inclui comentários acerca da dispersão, agitação, agressividade, scbfar@gmail.com

Dezembro 2008 - N° 10 Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias

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U rdimento

indisciplina, seja lá como se chame esse jeito de ser de boa parte dos jovens que
(ainda) freqüentam as escolas públicas. Por que isso ocorre? Como lidar com isso?
Até quando um professor consegue agüentar? Vai continuar ou vai desistir?

O contraponto aparece nos relatos de quem faz estágio no CEFET,


em uma ou outra escola que adota um sistema mais definido de incentivo ao
estudo e controle de comportamento, ou de quem atua com grupos especiais,
criados através de projetos, com as aulas funcionando em turno complementar
ao do curso regular. Nesse último caso, são turmas menores, compostas por
quem opta por fazer teatro e não está ali “obrigado”. Em algumas escolas da
rede pública as condições de trabalho para o professor de teatro não são tão
críticas, embora exista, ainda, a indisposição, incompreensão ou intolerância
de diretores e coordenadores pedagógicos para com a arte no currículo.

Salas com chão sujo e de dimensões inadequadas ao número de alunos,


situadas junto às outras salas da escola onde o silêncio é importante, e a falta
quase absoluta de material didático são agravantes para a questão principal
da presente reflexão: a dispersão, a agressividade e a falta de interesse pelos
estudos por parte dos estudantes. Em que medida essas condições de trabalho
são elementos impeditivos ou desafiadores para o professor?

O incômodo causado pelo barulho feito nas aulas de teatro, com os


exercícios corporais de liberação e de expressão vocal, e mesmo com trabalhos
criativos em grupos nos quais muitos falam ao mesmo tempo, vem sendo
um dos motivos para gestores evitarem colocar o teatro como componente
curricular nos projetos pedagógicos das escolas que dirigem. Aulas de artes
visuais e desenho geométrico causam menos problemas, e muitas vezes são
somente elas (também muito importantes) as escolhidas para o cumprimento
da lei que obriga a inclusão do “ensino de arte”.

Jogo dramático (play way), performance, jogo teatral, drama, happening,


peça didática, montagens de espetáculos, além da dança e da música, enfim,
todas as formas de composição artística cênica que impliquem na produção
sonora (vista como bagunça) e na retirada do estudante da tradicional carteira,
restritiva e limitativa do movimento, são vistas em geral como elementos
nocivos, nos já conturbados ambientes da rede pública de ensino.

Na Faculdade de Educação, a segunda parte de cada aula de Metodologia


é destinada à apresentação do que o estagiário se propõe a realizar no campo,
incluindo os exercícios e jogos preparatórios e os textos a serem encenados.
A terceira parte fica para a discussão de um ou dois textos selecionados num
conjunto de mais de cinqüenta indicados, buscando-se relacionar o que se está
estudando no campo teórico com a prática desafiadora na escola.

Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

Ao final do semestre cada estudante de Metodologia compõe um


relatório de estágio que inclui uma introdução contendo concepções sobre
Teatro na Educação, informações sobre as condições de trabalho na escola
onde o estágio foi realizado, o Plano de Curso, os Planos de Aula, a descrição
analítica do processo, que inclui necessariamente a apresentação de um
produto cênico, os critérios e instrumentos de avaliação, e os resultados.
Cada estagiário escolhe no início do semestre um estudante de sua turma
que apresente alguma dificuldade de interação (timidez, agressividade,
necessidade de aparecer etc.) para acompanhar com maior cuidado, ajudando-o
a superar a dificuldade e registrando seus avanços e dificuldades.

É no curso de Metodologia de Ensino de Teatro que o futuro professor


(muitos já atuam na rede escolar através de contratos provisórios) intensifica
sua preparação no campo pedagógico, que envolve preliminarmente os
fundamentos psicológicos, a organização do sistema de ensino e a didática.

A discussão de textos sobre Teatro na Educação indicados para


leitura é uma constante nas aulas de Metodologia. Antes do estágio
na rede oficial de ensino os concluintes de Licenciatura realizam um
experimento de ensino de teatro na educação não formal ou informal e
passam por um treinamento de exercício docente ministrando aulas para
seus colegas na própria Faculdade. As atividades, chamadas micro-aulas,
duram de 25 a 30 minutos e versam sobre temas livremente escolhidos
dentro de três campos: história do teatro, interpretação teatral e técnicas
do espetáculo. Cada estudante escolhe um tema em cada campo. Após a
micro-aula expositiva (que pode conter uma demonstração prática), os
colegas comentam o desempenho didático, identificando os acertos e
sugerindo elementos para aperfeiçoamento. A coordenação do professor
de Metodologia é importante para esclarecimentos e para complementação
das análises. Numa turma de 15 estudantes de Metodologia, por exemplo,
tem-se 45 aulas para serem analisadas.

Cada estudante de Metodologia compõe uma espécie de dossiê em


três pastas, contendo exercícios e jogos, textos sobre arte na educação e textos
que podem vir a ser encenados nas escolas.

É com essa base preparatória que os desafios e os dilemas que aparecem


no estágio são discutidos. As questões éticas aparecem nos relatos, entremeadas
com as problemáticas técnicas e de política pública. Uma pergunta acompanha,
então, as reflexões: qual a postura adequada para o profissional da educação
diante das condições críticas da rede pública de ensino?
Dezembro 2008 - N° 10 Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias

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U rdimento

Os resultados dos esforços para a universalização do acesso à escola não se


fizeram acompanhar de melhoria na qualidade de ensino. O caminho pode ser a devida
valorização da profissão docente, o estímulo a excelência e a cobrança de resultados,
sem falar na destinação dos recursos financeiros necessários por parte da gestão
pública. Os índices começam a melhorar, mas o Brasil ainda está longe de superar o
atraso registrado no ranking mundial referente à qualidade da educação básica.

O desinteresse dos estudantes pela aprendizagem (não quer dizer que


na rede privada isso não ocorra, mas a realidade é outra) é tão marcante que se
tem a impressão de que os que ainda não evadiram estão ali devido aos resquícios
da crença de que é estudando que se consegue emprego melhor e que se
progride socialmente. Estão ali porque os pais os obrigam a freqüentar a escola,
embalados pela referida crença. Não é a toa que muitas escolas têm aparência
de prisões, com grades reforçadas que por um lado dificultam as depredações
e roubos de equipamentos, mas por outro lado impedem os estudantes de fugir
nos inúmeros períodos de aulas vagas devido às ausências de professores. Mas
parece que os estudantes estão ali motivados também pelo encontro com os
colegas. Conversam o tempo todo, brincam, paqueram, aprendem todas aquelas
bobagens importantes na convivência e parecem não se importar com a falta de
aulas, infelizmente muito comum na rede pública de ensino.

Não cabe generalizar, pois existe um pequeno índice de reprovação, mas


o que ocorre em geral é uma facilidade do estudante passar de ano, embalada pela
preocupação dos governos em demonstrar uma eficiência do sistema. Professores
desmotivados pela desvalorização da profissão docente acabam reduzindo seus
investimentos para promover a aprendizagem, aprovando em massa em troca
de trabalhos de equipe, muitas vezes copiados na internet, ou testes curtos com
questões reveladas com antecedência, além da famosa nota de participação. Os
professores evitam passar trabalhos e exercícios para serem feitos em casa, já que
isso implicará na avaliação posterior de centenas deles, para o que não terá tempo,
já que em geral o professor trabalha em mais de uma escola para sobreviver.

O controle de freqüência às aulas assim como as reprovações em algumas


matérias são vistos como fatores sem grande importância nos conhecidos conselhos
de classe, que acabam aprovando em massa. Existem casos de diretores que dizem
transmitir orientações da própria Secretaria de Educação no sentido de se evitar
reprovações, visando aos altos índices de aprovação para as estatísticas oficiais.

Houve uma nítida desvalorização da chamada, do dever de casa e da


prova, três mecanismos encarados como sinalizadores do tradicionalismo. O que
poderia ser um motivo de alegria para os educadores que buscam a renovação
da educação, na verdade acaba sendo um fator adicional de desagregação e
improdutividade na escola pública.
Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A chamada poderia ser substituída pelo estímulo à presença, fator


fundamental para qualquer ação pedagógica participativa, a partir de um
processo que levasse em conta o repertório e o interesse do estudante. O
dever de casa poderia ser considerado um conjunto de exercícios, voltados
para o aprofundamento daquilo que se estudasse na sala de aula, com
abertura para as contribuições espontâneas dos estudantes, ainda mais
com as relativas facilidades da parte dos que têm acesso à internet. A
prova poderia ser substituída por diversos instrumentos de verificação da
aprendizagem para uma avaliação criteriosa, com o sentido de sinalizar
em que o estudante deve melhorar, a partir de objetivos devidamente
explicitados no início do processo.

Mas não é isso que ocorre. Abandonados os mecanismos tradicionais,


prevalecem aqueles que tornam mais fácil a vida do estudante e do professor,
diante da dispersão, da agressividade, da falta de motivação, da desvalorização
do que a escola oferece (ainda) e pode oferecer.

O que os estudantes desejam realmente? Diante da crise, caberia


acabar com a escola, eliminar os professores, formando grupos que buscariam
construir conhecimento, livremente? Deve-se promover somente educação
informal, com cada pessoa se virando para assimilar informações, desenvolver
capacidades, compor sistemas de valores, visões de mundo, espontaneamente,
sem direcionamentos? Nesse caso, todos os setores da população teriam acesso
às fontes de informação? Como desenvolver capacidades, sem ambientes
apropriados e sem orientação de pessoas mais experientes?

A existência da escola, na verdade, não impede a adoção de nenhum


outro caminho que considere os mais diversos espaços e sistemas de
aprendizagem. Ainda que não deixe de ser também um aparelho ideológico
e um instrumento das elites que buscam controlar as instâncias de poder,
muitas vezes para se apropriar do bem público, a escola pode se configurar
como pólo cultural, certamente com suas contradições, presentes em toda
organização social. Além dos ganhos intelectuais em todas as áreas de
conhecimento que podem ser proporcionados pelas escolas, elas se constituem
numa rede pronta para a efetivação de políticas culturais de dinamização e
fruição da criação artística.

Ainda é na escola pública que a população menos contemplada


com os bens econômicos, materiais e culturais pode encontrar referências
significativas. Isso não exclui a necessidade de sempre se buscar seu
aperfeiçoamento organizacional e curricular. A inclusão da arte é sem dúvida
um dos fatores importantes para esse aperfeiçoamento.
Dezembro 2008 - N° 10 Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias

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U rdimento

As boas condições para o ensino-aprendizagem de teatro, e de arte


em geral, não vão ser simplesmente concedidas. Terão que ser conquistadas e
o preparo teórico dos professores é fundamental para a argumentação, nas
reuniões com os pares e perante os ocupantes de cargos diretivos. Numa
sociedade baseada na dominação, expressa pela concentração de riquezas por
poucos e pela miséria de grande parte da população, não interessa a quem está
no poder a formação integral do cidadão, leia-se o desenvolvimento do ser nos
domínios cognitivo, psicomotor, afetivo e estético. É isso que a arte na educação
promove, sem limitar-se a desenvolver apenas a razão. Claro que não interessa
aos políticos e administradores corruptos governar gente sensível e sabida.

O professor de Teatro necessariamente é pedagogo e é encenador.


Mais que os professores de outras matérias, ele precisa ser um pouco ator
e precisa ter algo também de dramaturgo, para organizar os textos saídos
de improvisações e fazer adaptações. Diante dos dramas da cena e da vida
real que afloram em classe, chega a atuar como psicólogo, e não pode se
descolar de sua condição de cidadão e ser político. Como se omitir exercendo
uma profissão voltada para o atendimento de uma necessidade tão básica
na sociedade? A quem interessa desmoralizar um profissional que tem uma
função dessas, e destruir seu espaço de atuação?

Considerar o estudante da escola pública como caso perdido,


desinteressar-se pela efetiva aprendizagem, faltar aulas, sair de baixo, em
outras palavras, é, efetivamente, reforçar a condição de miséria e contribuir
com a dominação. Cabe, portanto, conhecer as regras, identificar parceiros
confiáveis nas diversas instâncias da organização social e entrar no jogo para
enfrentar a problemática e promover a transformação desejada.

Condições de trabalho com Teatro na Rede... Sergio Coelho Borges Farias Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

Realidade Estranhada e a Cena Teatral

Sidmar Gomes

Processos que aliam dramaturgia e jogo são numerosos e consideráveis


dentro do panorama teatral de nossos tempos. Dessa forma, dramaturgias
consagradas do passado ressurgem em montagens e experimentos do presente,
reoxigenadas pela experiência livre e espontânea proporcionada pela prática do
jogo, que traz à tona a riqueza de possibilidades escondidas entre as lacunas de
uma tessitura textual. Como exemplo de tais processos, podemos recorrer ao
trabalho desenvolvido pela Cia. Dos Atores, coletivo carioca que recentemente
apresentou suas montagens experimentais de A Gaivota: Tema Para Um Conto
Curto, inspirada na dramaturgia de A Gaivota, de Anton Chekhov, e Ensaio.
Hamlet, a partir da dramaturgia de Hamlet, de Willian Shakespeare.

Afirmando o campo da Licenciatura em Teatro como terreno de


evidente investigação e fazer teatral, a abordagem de fragmentos, ou da
totalidade de uma dramaturgia pela prática do jogo, mostra-se como um
caminho instigante, uma vez que proporciona aquilo que é, ou pelo menos
deveria ser, a razão de existir de um curso de teatro dentro do ambiente escolar:
sua vocação para, a partir de nos colocarmos no lugar do outro, refletirmos
sobre o homem, seus relacionamentos e, consequentemente, as questões que
engendram nossos tempos.

Tal vocação encontra sua afirmação na possibilidade da Arte, e


conseqüentemente do teatro, de proporcionar ao “eu” identificar-se com a vida
de outro, colocando-o na posição do outro e capacitando-o para incorporar
a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser. Ou seja, é um meio
indispensável para a relação do indivíduo com o todo, para a tomada da
consciência desse todo, refletindo a infinita capacidade humana para a
associação e para a circulação de experiências e idéias.
Dezembro 2008 - N° 10 Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes

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U rdimento

A obra de dramaturgo alemão Bertolt Brecht desperta o interesse de


muitos licenciados em teatro quando o assunto é a prática teatral e o ambiente
da escola formal. Esse interesse nasce da riqueza e da amplitude dos escritos de
Brecht, entre textos, ensaios, peças teatrais, comentários e poemas, que tratam a
fundo as relações entre os homens e suas cisões, evidenciando as determinantes
sociais dessas relações e nos permitindo compreender esse homem por meio
da reflexão acerca dos processos através dos quais ele existe. Dessa forma, o
que a prática de Brecht almeja, alicerçada por um arsenal de técnicas por ele
desenvolvido, é a eliminação da ilusão alienante do teatro naturalista, em prol
do distanciamento crítico necessário para a reflexão acerca da sociedade.

Fica evidente para nós a pertinência do trabalho com a obra de Brecht


dentro do ambiente da escola formal, quando entendemos como função da
prática pedagógica o suscitar de problematizações que tenham como foco o
mundo em que vivemos, e o teatro como caminho para que se instaurem essas
problematizações e suas conseqüentes reflexões e desdobramentos.

Contudo, as experimentações que tratam da dramaturgia de Brecht


abordadas pela perspectiva do jogo teatral e realizadas dentro do ambiente
escolar, debruçam-se geralmente sobre a dramaturgia de suas peças didáticas,
aquelas que ensinam enquanto nelas se atua, modelos de ação que têm por foco a
investigação das relações entre os homens, modelos que são objeto de imitação.

O presente artigo surge da experimentação de fragmentos de uma


manifestação da dramaturgia épica de espetáculo de Bertolt Brecht a partir do
jogo teatral, tendo em vista a educação estética e política de jovens educandos.
Dessa forma, o processo relatado a seguir alarga os experimentos existentes,
colaborando para a exploração de outras possibilidades que aliem a obra do
dramaturgo alemão ao jogo teatral.

Essa prática tem como foco permitir que pessoas de todas as idades
e condições sociais tomem contato com espaços potenciais para o jogo, a
imaginação e a reflexão, inerentes às dramaturgias épicas de espetáculo
de Brecht, tendo em vista contribuir para que seus atuantes pensem, e
consequentemente estranhem, suas relações sociais, hoje.

A partir do contato próximo com um grupo de dez crianças com idades


entre seis e nove anos, alunos do curso extracurricular de teatro ministrado por
mim em um colégio particular na cidade de São Paulo, identifiquei, provocador
e também sujeito do processo pedagógico disseminado, a necessidade de
que discutíssemos, juntamente com os pais dos alunos, as questões do atual
panorama do trabalho, da infância e da família.
Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

Vale ressaltar que as temáticas elencadas acima são inerentes ao


contexto das crianças de nossos tempos, e por isso responsáveis por interferirem
profundamente na construção de suas subjetividades e no controle de suas
condutas e relações.

Encontrei na dramaturgia de Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt


Brecht, o terreno ideal para que edificássemos essa reflexão.

O que instigou meu interesse em tal Crônica da Guerra dos Trinta Anos
foi, principalmente, o fato paradoxal de Mãe Coragem ter perdido seus filhos
para a guerra enquanto trabalhava na mesma, negociando suas mercadorias,
em prol de sustentá-los. Ou seja, a relação entre a família, o trabalho e a
infância é apresentada carregada de riqueza e atualidade, a partir da história
de uma mulher “cujo comércio e a vida são os pobres frutos da guerra, está na
guerra a tal ponto que a ela não vê, por assim dizer (apenas um vislumbre, no
fim da primeira parte): ela é cega, sofre sem compreender; para ela, a guerra é
fatalidade indiscutível” (Barthes: 1970, p. 26).

Num contexto de guerra pela sobrevivência, as relações passíveis


de serem construídas são, no mais das vezes, fragilizadas e subordinadas às
necessidades de venda da força de trabalho. Tal impessoalidade e mercantilização
das relações humanas, que se encontram generalizadas nas várias esferas sociais
da modernidade, permeiam também as relações familiares. E a reflexão sobre
seus fundamentos e alcance parece-me perfeita e possível de ser feita de modo
instigante por meio do reavivamento do texto de Mãe Coragem e Seus Filhos.

A validade de tal discussão reside, acima de tudo, na atualidade da


contradição e da dialética tão discutidas por Brecht: enquanto mães, reclamamos
contra a disseminação dessas “guerras”; fazemos nosso grito “Maldita seja
a Guerra”, mas esquecemos que dela somos tão vítimas quanto culpados,
sofremos ignorando estupidamente nosso poder de fazer cessar tal catástrofe.

Como dito anteriormente, o processo disseminado teve como foco


um grupo de crianças de seis a nove anos de idade, e esse fato nos apresenta a
necessidade de abrirmos um pequeno parênteses, uma vez que a dramaturgia
de Mãe Coragem e Seus Filhos é considerada por muitos adultos como descabida
à faixa etária em questão.

A limitação do pensamento acima dá vazão a uma visão de infância


marcada por uma espécie de debilidade intelectual e sensorial, uma
perspectiva que coloca os primeiros anos da vida na projeção de um universo
artificial, desonesto e hipócrita, que tem como carro chefe a superproteção.
Dezembro 2008 - N° 10 Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes

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U rdimento

Como conseqüência, temos uma infância cantada em verso e prosa pelo teatro
e pela literatura infantil de nossos tempos que se traduz como uma noção de
infância aburguesada, auto-referente, cristalizada por um universo fantasioso.
Longe desse conto de fadas, a real infância atual, apresenta-se por meio de
indivíduos encerrados em condomínios, favelas, ONG’s ou escolas.

Tutelada pelas práticas ditas culturais/pedagógicas, nas escolas


a infância é atacada pelo amplo cardápio dos mais variados estímulos,
responsáveis por exigirem desde as mais tenras idades desafios diversos.
Natação, culinária, dança, línguas, capoeira, pintura em tela, iniciação musical,
aulas de empreendedorismo, robótica, circo e, é claro, o teatro, fazem parte do
que é considerado um bom currículo para bebês, crianças e jovens. Tudo isso
tendo em vista a construção de um trabalhador adulto voltado para objetivos
variados de aprendizagem sistemática.

Dessa forma, identificamos um paradoxo: ao mesmo tempo em que a


sociedade parece querer impor às crianças novos e constantes desafios para
que se transformem em futuros trabalhadores aptos a lidar com as exigências
e vulnerabilidades do mercado de trabalho, relaciona-se com as mesmas
a partir da tentativa de protegê-las a todo custo do “vasto mundo” e seus
revezes. Quando na verdade deveria atentar para a infância como fase da
idade do homem de significação marcada pela imaginação criadora e inserida
dentro de um contexto social e econômico específico, e por isso de importância
relevante na construção de sua personalidade. Como resultado, temos seres
superprotegidos, hesitantes e dependentes, alijados do enfrentamento das
interrogações cabais da vida – interrogações que o teatro e a escola têm, ou
deveriam ter, condição, dever e disposição de lhes oferecer.

Endossando uma visão deturpada e limitada de Arte, muitos pais, e


ai de nós, profissionais da educação, enxergam na prática teatral uma forte
ferramenta para a produção dessa “super criança”, imprescindível para que no
futuro tenhamos um “super adulto” apto ao mundo do trabalho.

Evidente é que a “pseudo-infância” dos dias de hoje, que se desenvolve como


produto do contexto acima explicitado, interpela-se com questões que certamente
no século passado não se fazia, mas que hoje se faz e geralmente é forçadamente
calada por uma idade adulta que a supõe de forma idílica e preconceituosa.

Fechado o parênteses, o caminho percorrido por essa experimentação


de abordagem dramatúrgica por meio do jogo, teve como referências os Jogos
Tradicionais e os Jogos Teatrais sistematizados por Viola Spolin, edificando-
se sobre o terreno arenoso acima refletido.
Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A educação da sensorialidade dos participantes foi um dos maiores


objetivos dessa prática. A partir do corpo em jogo, os atuantes foram convidados
a refletirem e estranharem suas realidades. Dessa forma, a abordagem intelectual
ou psicológica foi substituída pelo plano da corporiedade, e o texto foi transportado
para a ação por meio da qual os jogadores vivenciaram e investigaram as
contradições sociais de nossa época com o próprio corpo, alcançando a experiência
estética que os possibilitou a compreensão do mundo por meio dos sentidos.

Como ponto de partida para a introdução dos fragmentos a serem


trabalhados, o grupo foi desafiado com jogos tradicionais que, por trazerem
em suas estruturas questões pertinentes às discussões a serem travadas, como
temáticas, sensações físicas, resoluções espaciais, dentre outras, serviram como
metáforas de realidades a serem discutidas posteriormente.

Logo de início a interação entre faixas etárias distintas mostrou-se


pertinente ao trabalho pretendido. As visões e sensações dos atuantes mais
jovens e mais velhos, pertencentes a universos paradoxalmente tão próximos
e ao mesmo tempo tão específicos, se completaram, muitas vezes se fundiram
e principalmente foram responsáveis por instigarem uns aos outros.

Após essa experimentação inicial, em que os atuantes prepararam


seus sentidos abrindo-se à experiência, o grupo tomou contato com os trechos
selecionados da dramaturgia de Mãe Coragem e Seus Filhos a partir da sua
contação/atuação. Animando bonecos de Playmobil (infância não distante,
um devaneio infantil!), devidamente caracterizados como os personagens da
história e munidos de seus respectivos adereços, contei/atuei os trechos em
questão, no tempo presente da ação teatral. Quando possível, introduzi na
narrativa fotos da montagem original de Mãe Coragem e Seus Filhos (1941),
contextualizando historicamente os ouvintes.

Interessante foi notar que mesmo no trabalho com um trecho em


específico dessa dramaturgia, os participantes foram suscitados a refletirem
sobre o conjunto da obra como um todo, interpelando-me com questionamentos,
como as características dos personagens e suas relações, que seriam revelados
por outros trechos. Esse fato comprova a riqueza e a independência dos trechos
que compõem uma mesma dramaturgia de Brecht. Trechos que têm valor em
si só, cada parte contém o todo, cada cena tem unidade própria e está ligada às
outras, pela idéia do todo que traz em si. Ao mesmo tempo, tais questionamentos
nos apresentam a riqueza de um trabalho que se edifica sobre a utilização de
fragmentos de uma dramaturgia, uma vez que nos permitem o contado com a
totalidade de uma obra sem autoritarismo, sem a necessidade de uma série de
conhecimentos sobre o autor, a época e o movimento estético ao qual pertence.
Dezembro 2008 - N° 10 Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes

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U rdimento

Jovens ouvintes, que olharam/ouviram com tranqüilidade a narrativa


contada, tiveram sua imaginação impregnada pelas imagens mostradas.
Imagens que, em conjunto com as palavras da narrativa e a partir de suas
próprias experiências, permitiram-lhes o encontro de significações para as
relações apresentadas.

Após o percurso de apresentação dos fragmentos da dramaturgia,


partimos para o jogo com os elementos presentes nesses fragmentos. Nessa
etapa do trabalho, a partir dos Jogos Teatrais propostos por Viola Spolin,
como Que Idade Tenho?, Três Mocinhos da Europa e da improvisação integral
dos trechos em questão, bem como de outros jogos criados a partir de suas
noções de instrução, foco e fisicalização, os atuantes foram desafiados a se
apropriarem do texto.

No caminho para tal apropriação os educandos encontraram significações


para os trechos de trabalho e refletiram sobre os diversos papéis sociais e os
respectivos corpos por eles moldados, além de aguçarem sua sensorialidade
para as contradições sociais e os conflitos presentes na dramaturgia - matéria-
prima para o estabelecer futuro de relações com suas realidades.

Vale ressaltar que a improvisação integral dos trechos da dramaturgia


de trabalho, com falas improvisadas e diálogos que correspondiam
aproximadamente ao que é dito no texto, mostrou-se extremamente importante
para a compreensão e o aprofundamento das discussões. A partir do colocar-
se fisicamente na situação das personagens, por meio da representação dos
espaços e das relações propostas pelo enredo do texto, o grupo encontrou
resoluções cênicas (desenhos de cena, imagens, gestualidades, movimentações
e falas) criativas e profundamente ricas, além de ter sido instigado para o
romper de sinapses reflexivas e, consequentemente, dotar-se de propriedade
frente às suas descobertas.

Como última etapa do processo, foi pedido aos atuantes que, a partir
das discussões e experimentações anteriores, estabelecessem temáticas
inerentes a suas realidades, que estivessem relacionadas às idéias principais
de trechos chaves da dramaturgia de trabalho: a fala do Sargento ao final da
primeira cena, “quem da guerra quer se aproveitar, alguma coisa em troca tem
que dar” e a fala de Mãe Coragem ao final da terceira cena, “parece que perdi
tempo demais regateando”. A partir de uma breve reflexão sobre essas frases
e o cotidiano dos alunos-atores, foram improvisadas cenas com lugar, espaço e
ação definidos anteriormente. Nessa altura do processo, a dramaturgia de Mãe
Coragem e Seus Filhos não mais guiava o grupo. Serviu de pretexto para que a
partir desse ponto o grupo criasse sua própria dramaturgia.
Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

As cenas criadas trouxeram de forma desnudada grande parte das


questões discutidas anteriormente, atualizadas e coloridas pelo cotidiano de
jovens e sensíveis artífices teatrais. Jovens que rabiscaram por cima de vidas
em tons de branco, cinza e preto, matizes de cores infinitas.

Entre as questões trazidas à tona, podemos citar o consumo e a


total mercantilização das relações humanas imposta em nossos tempos.
Assim como Mãe Coragem acaba por perder seu filho dando maior atenção
ao dinheiro do Sargento, duas amigas fúteis, caracterizadas em uma das
improvisações, são incapazes de manter verdadeiros laços de amizade por
estarem preocupadas profundamente com conflitos e interesses de ordem
material. Uma delas acaba ficando sozinha, perdendo sua “amiga” para o grupo
de “amigas verdadeiras”, devido a seu orgulho e materialismo exagerados. O
que se forma hoje não são mais cidadãos, mas consumidores!

Outras cenas que merecem menção são as que mostram duas


famílias cujos netos ficam aos cuidados dos avós enquanto seus pais
trabalham. A mercantilização das relações humanas e dos sentimentos,
mais uma vez evidencia-se em uma das cenas pelo gestus do avô de dar
às netas dinheiro para que recuperem sua alegria depois de levarem
umas palmadas da mãe, em represália ao fato da mesma querer dormir
e as meninas quererem sua atenção. O trabalho em primeiro plano, para
que a sobrevivência seja garantida, e a família em segunda ordem, é o que
predomina. A fragmentação da família também vem à tona com a ausência
da figura paterna na primeira cena e, em ambas, a divisão das obrigações
familiares com demais parentes, que hoje pertencem diretamente ao núcleo
familiar primeiro, os avós, responsáveis pelo cuidado permanente com os
netos e as tarefas da casa. Além dessas questões, temos também a evidência
da inserção da mulher no mercado de trabalho, e a conquista, por sua parte,
de voz ativa dentro das decisões familiares.

A ênfase dada à condução do processo não foi a de “teatralização”, a


ênfase na constituição de um espetáculo, mas sim a da construção de um discurso
artístico por parte dos integrantes. Contudo, ao final da elaboração das cenas,
a seguinte questão se colocou: seria possível uma reflexão profunda acerca de
nosso atual contexto do mundo do trabalho, da infância e da família, sem que
compartilhássemos com os pais dos alunos-atores (adultos!) nossas reflexões?

Dessa forma, indo ao encontro de uma das exigências pedagógicas e


mercadológicas de um curso extracurricular de teatro, a da montagem de uma
apresentação ao final do semestre - na verdade uma espécie de prestação de
contas por parte dos profissionais aos pais que pagam o curso aos seus filhos e
Dezembro 2008 - N° 10 Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes

31
U rdimento

impacientemente aguardam por resultados rápidos e satisfatórios - começamos


a pensar em uma possibilidade para a organização das cenas criadas e seu
posterior compartilhamento com uma platéia estranha ao processo.

Na procura por essa solução, outra questão se impôs: como costurar todo
o material criado mantendo o frescor das improvisações e o ambiente de liberdade
e de espontaneidade presente em todas as sessões de trabalho sem sufocá-lo pelo
peso e a rigidez de uma apresentação convencional aos olhos do público?

A resposta foi encontrada na essência de nosso trabalho: o jogo. Assim,


procuramos manter latente ao exercício cênico final o caráter imprevisível
do jogo, responsável pelo prazer e espontaneidade em cena, por meio do
sorteio de cenas no momento da apresentação (a cada apresentação as cenas
aconteceram em seqüências distintas), bem como do desnudamento dos meios
de produção da cena, com a montagem dos espaços cênicos e a caracterização
de personagens aos olhos do público.

Acrescentou-se a esses cuidados a minha inserção dentro do exercício,


como um professor-provocador (afinal, qual foi minha função durante todo
o processo?) que conduz o ensaio-apresentação. Ou seja, convidamos o
público para adentrar a cena, compartilhando-a profundamente e muitas
vezes questionando-o diretamente sobre as questões presentes. Para tanto,
preferimos denominar nosso exercício cênico não de Apresentação, termo que,
devido a visões limitadas, apresenta-se dentro do ambiente escolar (antes fosse
só no ambiente escolar!) carregado de um peso e uma rigidez castradora, mas
sim de um Ensaio, campo da experimentação, da tentativa. Assim criou-se Mãe
Coragem e Seus Filhos [UM ENSAIO].

A partir da apresentação desse experimento cênico fruto do percurso


dessa experimentação, o grupo pôde compartilhar suas descobertas e reflexões
com uma platéia estranha, mas inerente ao processo: seus familiares. Tal
apresentação/ensaio desfez a dicotomia entre processo e produto teatral e fugiu
às expectativas convencionais de teatro por parte do grupo de espectadores.
Reafirmou a necessidade do diálogo entre o discurso cênico de um coletivo e uma
platéia estranha a ele. Tínhamos em vista - entendendo política como aquilo que
engendra um sistema de relações sociais, de interações recorrentes entre pessoas
- não apenas a experiência estética dos atuantes e da platéia, de compreensão
do mundo por meio dos sentidos, mas principalmente a educação política de
ambas as esferas. Esse diálogo encontra riqueza a partir do olhar estrangeiro de
indivíduos dotados de distância crítica, presentes, não para julgarem a qualidade
interpretativa dos atuantes e a engrenagem cênica como um todo, mas sim para
compartilharem e aprofundarem com os mesmos o discurso cênico pretendido.

Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

O grupo de alunos-atores estranhou sua realidade, uma vez que, a


partir do despertar de seu aparelho sensorial, cada indivíduo foi convidado
a refletir sobre as ações para consigo, seus pares e o mundo que o circunda,
ações essas rotineiras e agravadas por hábitos de percepção que se tornaram
automatizados. Permitindo a reflexão sobre si mesmo e seus relacionamentos,
essa prática apontou para um caminho de autoconhecimento. Mediante o ato
do jogo, os jogadores-atores foram espectadores e atuantes de suas realidades.

A partir do jogo com trechos da dramaturgia de Mãe Coragem e Seus


Filhos, foi possibilitado aos atuantes terem acesso, de forma coesa, ao teatro
dialético pretendido por Brecht: o grupo foi convidado a distanciar-se de seu
próprio cotidiano para em seguida, por meio da intimidade com a cena teatral,
dele se reaproximar; contudo, agora de forma crítica.

Se os terrenos sobre os quais se edificam as relações entre os envolvidos


nessa práxis teatral, alunos-atores e seus familiares, se transformaram, só o tempo
necessário para a poeira baixar é que vai poder responder. Entretanto, esse
relato nos revela que o olhar daqueles que ocupam esses terrenos, por mais que
ainda não tenham encontrado a firmeza da decisão responsável por realmente
transformar paradigmas instaurados, hoje se mostra mais sensível aos problemas
que envolvem a tríade família-trabalho-infância. Certamente, hoje, esses mesmos
indivíduos não enxergam tal poeira, outrora ofuscante, como natural.

Tal experiência não se apresenta como um modelo a ser seguido em


seus pormenores, mas sim como uma afirmação da função do teatro dentro do
ambiente da escola formal, da infância como fase da vida capaz de participar das
reflexões acerca dos conflitos e das contradições do mundo contemporâneo,
e, por fim, da pedagogia teatral como mais um espaço potencial para que se
instaure o campo minado e imprevisível da experimentação artística.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970.


_______. Escritos Sobre Teatro. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BRECHT, Bertolt. Estudos Sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2001.
_______. Brecht: Um Jogo de Aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.
_______. (Org.). Um vôo brechtiano: teoria e prática da peça didática. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
_______. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1996.

Dezembro 2008 - N° 10 Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes

33
U rdimento

PUPO, Maria Lúcia de Souza B. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, Uma


Aventura Teatral. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
_______. Jogos Teatrais: O Fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2001.
_______. O Jogo Teatral no Livro do Diretor. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2003.

Realidade Estranhada e a Cena Teatral. Sidmar Gomes Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

O professor-artista: perspectivas teóricas


e deslocamentos históricos

Biange Cabral

O ensino do teatro, na escola e na comunidade, reflete as formas teatrais


contemporâneas ao mesmo tempo em que responde aos avanços das teorias da educação.

A partir dos anos 60, o teatro experimental enfatiza as noções de


presença e a interação ator-espectador, e estas constituem a base para pensar o
teatro como processo em sala de aula. Nos últimos dez anos, outras influências
das práticas teatrais contemporâneas estão presentes na pedagogia do teatro –
fragmentação, abordagem não linear e descontínua ao argumento, releitura e
apropriação dos temas e textos clássicos, constante mudança de perspectivas.

Para Grotowski, o valor particular dos clássicos está no fato de que eles
já existem como arquétipos na mente do público e carregam uma ressonância
generalizada que está muito próxima do mito. “A força das grandes obras
realmente consiste em seu efeito catalisador: elas abrem portas para nós (...)
para ambos, produtor e ator, o texto é um tipo de bisturi possibilitando-nos
abrir a nós mesmos, transcender a nós mesmos, achar o que está escondido
dentro de nós” (1987:49). A extensão e o caráter da releitura de um texto
clássico são determinados pela lógica interna do processo de investigação e
pelo contexto e circunstâncias em que foi gerado o projeto de montagem – com
freqüência o texto original torna-se irreconhecível, mesmo quando mantidos
os padrões de relacionamentos e tensões.

Cecily O’Neill considera que o professor, ao retomar um texto clássico,


o utiliza como ‘material esperando significação’, como objeto de um jogo.
“O líder ou professor, inserido no processo criativo, pode assumir algumas
Dezembro 2008 - N° 10 O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral

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U rdimento

das funções de um diretor, produtor, encenador, ou mesmo espectador; mas,


dada a função da atividade, irá além destes propósitos. As tarefas básicas do
líder são aquelas de administrar a ação, operar a estrutura, e funcionar como
dramaturgista” (O’Neill, 1995:64).

A releitura e apropriação dos temas e textos clássicos pode ser uma


forma de responder à dificuldade, usualmente apontada por professores, quer
para encontrar um texto que dê espaço e voz para uma turma de 30 alunos,
quer para estruturar e coordenar um processo de criação coletiva. O texto como
objeto de um jogo, como afirma O’Neill acima, oferece ao professor não apenas
um ponto de partida, mas também uma delimitação para suas ações pedagógicas:
conceitos e situações a serem investigados cenicamente, fragmentos de texto a
serem improvisados, aproximação com o contexto atual dos participantes através
de seu cruzamento com memórias, histórias locais, e mesmo outros textos.

Esta re-significação do texto direciona a atenção para a sua função


cognitiva. Que conhecimentos o aluno adquire ao interagir com o texto e a cena?
Aqui cabe considerar as diferenças e especificidades dos tipos de conhecimento
adquiridos com o fazer teatral, considerando-se que estes por sua vez diferem
se o aluno participar como ator ou espectador. Focalizar a ação pedagógica
requer pensar a função cognitiva e esta está diretamente associada ao maior ou
menor grau de intervenção do professor no processo de criação, o que também
se associa ao caráter do texto usado, e consequentemente gerado.

Retrospectiva Histórica

A forma usual pela qual esta intervenção do professor tem sido


pensada, no Brasil, tem sido através da comparação entre o jogo teatral e o jogo
dramático. A primeira distinção neste sentido, a ser amplamente difundida, foi
realizada por Sandra Chacra:

“o jogo teatral faz nascer um ‘texto’ por meio do desenvolvimento


de uma linguagem teatral consciente, objetiva e comunicável, no
instante da representação. Do mesmo modo que encontramos um
caráter improvisacional na obra formalizada do teatro, encontramos
um caráter formalizado no jogo improvisado. É esse aspecto que lhe
confere caráter “textual” no sentido de ‘comunicação’ e não somente de
‘auto-expressão’”. (CHACRA, 1983:66-67)

A autora analisa esta perspectiva a partir do método de


improvisação teatral de Viola Spolin (1979). Uma visão oposta com, respeito

O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

à função do texto no processo de exploração teatral com crianças, diz ela,


é a do inglês Peter Slade (1971) 1: 1
As datas de publi-
cação das obras de
Spolin e Slade se
“Negando não somente a peça literária, mas também qualquer referem às datas
intenção planejada de trabalho para uma audiência, o ‘jogo dramático de publicação das
infantil’ é por ele considerado como ‘uma forma de arte por direito traduções brasileiras.
A primeira tradução
próprio’, sendo que “nem na experiência pessoal nem na experiência de Spolin, por Edu-
do grupo existe qualquer consideração de teatro no sentido adulto, a ardo Amos e Ingrid
não ser que ‘nós a imponhamos (...) Ao brincarem espontaneamente, Koudela, se refere
as crianças ‘representam’ as suas vivências pessoais, o seu mundo à tese de doutorado
de Spolin, publicada
real ou imaginário, estimuladas e encorajadas pelo adulto (professor em 1963. O primeiro
ou qualquer outra pessoa), através de um processo de ‘nutrição’ do texto publicado por
jogo, que não é o mesmo que interferência, fazendo expandir um texto, Slade, Child Drama,
cujo sentido é mais o de ‘expressão’ (auto-expressão), do que o de se deu em 1954, e An
Introduction to Child
‘comunicação’”. (CHACRA, 1983:68) Drama em 1958.

Retomar esta distinção, após vinte anos, justifica-se devido à atualidade


da contraposição jogo dramático - jogo teatral nas publicações no campo da
pedagogia do teatro, e da associação do primeiro com a influência de Peter
Slade e uma tradição inglesa no campo do teatro na escola. An Introduction to
Child Drama, o livro mais difundido de Slade, foi traduzido para o português
por Tatiana Belinky, como O Jogo Dramático Infantil (Summus Editorial, 1978).
Entretanto, na perspectiva de Slade à época desta publicação, ‘child drama’ se
referia ao brincar ou ao ‘fazer de conta’ da criança; assim como ‘play way’,
expressão usada por seus contemporâneos, se referia à maneira/forma de
brincar (‘play’ pode ser traduzido tanto como jogar ou brincar)2. Pela sua ótica,
2
É desta época o
costume de construir
o “Child Drama” não inclui regras de nenhum tipo, nem mediação do professor atrás da escola uma
ao nível do desenvolvimento da atividade, não apresentando característica de casinha de bonecas,
jogo, a não ser que o traduzíssemos por ‘jogo simbólico’. Brian Way, discípulo completamente
de Slade, afirma em Development through Drama (Desenvolvimento através do equipada, onde as
crianças possam
Drama): “nós estamos preocupados com o desenvolvimento de pessoas, não do
brincar.
drama (e certamente não do teatro)” (1967).

A associação do Child Drama com o jogo dramático, no contexto


brasileiro, em contraposição ao jogo teatral, com freqüência conduz a uma
prática com características que a aproxima do jogo simbólico. A este respeito,
acentua Maria Lúcia Pupo,

(...) ter simplesmente a sistematização e enriquecimento do jogo


simbólico como perspectiva de trabalho em Teatro-Educação equivale a não

Dezembro 2008 - N° 10 O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral

37
U rdimento

3
Também conhecido considerar que este brinquedo já cumpriu sua função em termos da articulação
como process drama, básica entre a realidade objetiva e a subjetiva. (PUPO, 1986:12)
drama as a teaching
method, ou a learning
method (dependendo No entanto, o jogo dramático, enquanto atividade que inclui aquisição
da perspectiva pela de conhecimentos no campo específico do teatro, associa-se à tradição do
qual é investigado ou
analisado).
jeu dramatique, da tradição francesa. Neste sentido a contribuição de Maria
Lucia Pupo (acima) e a recente publicação de Flávio Desgranges (2006), são
4
Professor-persona- fundamentais para o entendimento da distinção entre o Child Drama (o play
gem foi minha tradu-
ção para teacher-in-
way de Slade) e o jogo dramático (da tradição francesa). Desgranges sintetiza
role, e assim como a a caracterização e funções do jeu dramatique:
tradução de Belinky
para child drama,
decorreu em parte (...) uma atividade grupal, em que o indivíduo elabora por si e
devido à dificuldade com os outros as criações cênicas, valendo-se das apresentações no interior
de encontrar um das oficinas como um meio de investigação e apreensão da linguagem
termo adequado teatral. Desenvolvem-se, no decorrer do processo, as possibilidades
para "professor-no-
expressiva e analítica, exercitando o participante tanto para dizer
papel" (social). Porém
dentro do conceito algo através do teatro, quanto para uma interpretação aguda dos
de teacher-in-role diversos signos visuais e sonoros que constituem uma encenação teatral;
estão inseridas as estimulando-o, ainda, a tornar-se um observador atento em sua relação
dimensões de repre- com as diversas produções espetaculares. (DESGRANGES, 2006:95)
sentação e presença;
Heathcote, por
exemplo, interpreta e Quanto à associação de Slade com a tradição inglesa, cabe aqui
mantém personagens ressaltar sua distinção de outra tradição inglesa, o Drama in Education3, criado
de outras épocas,
lugares, textos, para
por Dorothy Heathcote, a partir da segunda metade dos anos 50. Heathcote
contrapô-los às atitu- priorizava (ainda prioriza) a ampliação do conhecimento do aluno através de
des dos alunos, e no uma preocupação com a forma: confrontos espaciais, signos visuais de linguagem
mesmo processo de (cartões, posters, banners, rótulos, manchetes), atuação dialética através de uma
drama, assume papéis
troca de enquadramentos e papéis, foco no gesto. A quantidade e a qualidade
sociais que facilitem
sua mediação no jogo. das informações sobre o contexto e a situação a serem investigados permitem
associar sua atuação a uma abordagem enciclopédica, caracterizada por uma
5
Participei dos dramas
intervenção ao nível da estrutura, da ênfase na forma, do questionamento pelo
"Mary Morgan", "The
Good Samaritan", "Dr. professor, como personagem. Entretanto, o texto resultante é de autoria
Knox", "The Romans", do aluno; o material introduzido – imagens, textos, discurso do professor-
"Chanel Islands", personagem4 - é desconstruído e torna-se uma pista para mediar interações.
"Living in a Dictator-
ship", "The Oxfam
Project". Os registros Esta característica enciclopédica do drama é associada aos diversos
destes processos graus de intervenção do professor. Ao participar de processos de drama
são encontrados no conduzidos por Heathcote, entre 1990 e 1994 (Birmingham/UK), meu
Dorothy Heathcote
maior impacto foi com a intensidade e densidade dos textos e imagens
Archive, mantido pela
Manchester Metropo- que subsidiaram os processos5. Textos e imagens foram coletados de
litan University/UK. romances históricos ou documentários jornalísticos, sobre situações-limite
O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

de sofrimento e opressão, que eram aproximadas e distanciadas através de


um método, cuja poética inclui acesso a informações, linguagem, história,
cultura e política, além de conhecimentos da linguagem cênica. A postura
do professor é a daquele que desafia os pressupostos do texto ou pré-texto
e aqueles introduzidos no decorrer do processo, pelo grupo, investigando
através do drama as motivações ocultas que determinaram as ações e atitudes
de opressão. O impacto nos participantes está relacionado com a ampliação
de seu capital cultural e lingüístico, associado ao engajamento emocional
com o material introduzido.

Entre a teoria e a pedagogia

Quer se fale de jogo dramático, do jogo teatral, ou do drama, não


há como deixar de reconhecer o papel central das interações do fazer teatral
com outras áreas de conhecimento. Processos de montagem, criação coletiva,
investigações cênicas, interagem com temáticas, idéias, imagens. Seu diretor/
professor media as interações entre os participantes, e destes com o espaço, o
tempo, a cena, o contexto da ficção.

É a partir desta constatação que se deve pensar no papel do professor.


O cruzamento de áreas e subáreas do conhecimento, no fazer teatral, aponta
para a interdisciplinaridade. A heterogeneidade do grupo indica uma
abordagem intercultural. Entretanto, o professor de teatro, por um lado
é pressionado a decorar e animar as datas comemorativas, por outro lado,
vê seu espaço de atuação ser considerado descartável – um espaço para ser
substituído por qualquer atividade emergente ou compromisso de última hora
da administração escolar. A complexidade deste quadro, que persiste nos dias
atuais, requer uma reflexão sobre a postura, atitudes e ações do professor no
campo da escola.

O ensino do teatro no contexto curricular requer sejam repensadas


as relações entre o teatro e a escola a partir das interações possíveis entre
metodologias e espaço real, não apenas o necessário. Observações de estagiários
e depoimentos de professores revelam que estes se voltam para as áreas de
desenho, história da arte, confecção de fantoches (sem espaço para a construção
da narrativa e manipulação), dobraduras. O ensino do teatro (e a escola em geral)
padece com a falta de investimento em formação continuada e atualização do
professor. Com sobrecarga de turmas e uma disciplina que envolve movimento,
som, reformulação do espaço disponível e trabalho em grupos, o professor de teatro
acaba reproduzindo uma relação ensino-aprendizagem que vai gradualmente
estabelecendo uma rotina e se afastando da reflexão teórica e prática.
Dezembro 2008 - N° 10 O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral

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U rdimento

Pierre Bourdieu (2007, 2004, 2001), usa o conceito de habitus para se


referir à reprodução social e à resistência a mudanças. Para ele, o habitus está
localizado na tradição e no estilo de vida, é internalizado na mente e inscrito
no corpo e suas formas de expressão. As experiências reiteradas na infância,
enfatizadas pelos discursos e regras de comportamento das instituições
família, escola e mídia, delimitam e enquadram a forma pela qual o indivíduo
age e responde a novas experiências e informações.

O habitus funciona assim como um mecanismo de controle que filtra as


impressões e expressões do sujeito no presente. Neste sentido, é sua história
incorporada e internalizada – esquecida como história; presença ativa do
passado que se manifesta nos pensamentos e ações do presente. Enquanto
defesa contra mudanças, ele não só rejeita novas informações como evita a
exposição a tais informações. Desta forma explica como o indivíduo prefere
discutir e conviver com aqueles com quem compartilha a mesma opinião.
Também explica como discursos e opções sistemáticas são mantidos e como a
crítica é rejeitada.

Como professora da disciplina Teatro na Escola – Estágio I (CEART/


UDESC), que inclui 20 horas-aula de observação em escolas e posterior
seminários para a discussão dos problemas, possibilidades e potencial das
metodologias focalizadas durante o restante do semestre, reuni uma série de
exemplos que considero possam apontar para o habitus no contexto do ensino
do teatro: aquecimento sem relação com a aula propriamente dita, improvisação
sem contextualização, atividades que não introduzem conhecimentos
específicos em teatro (dinâmicas de grupo que tendem a se constituir como
a aula em si), tarefas ou trabalhos em grupos sem input do professor, falta de
concepção cênica que direcione o processo, aulas baseadas em ‘uma novidade
para cada encontro’ – o jogo do dia, baixas expectativas quanto ao trabalho
a ser desenvolvido, barateamento dos resultados - aceitação dos produtos
apresentados, sejam eles quais forem.

Como responder a este quadro? Que teorias poderiam subsidiar a


formação do professor?

A complexidade dos saberes e fazeres contemporâneos aponta para


o papel do professor como intelectual, que na concepção de Henri Giroux é
entendido como

“aquele que desperta a memória, o reconhecimento de


exemplos de sofrimentos passados, públicos e privados, os quais exigem
O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

compreensão (...) aquele de desvenda a dignidade e a solidariedade da


resistência, que chama nossa atenção para as condições históricas que
construíram tais experiências” (GIROUX, 1997:30)

Uma reflexão sobre as implicações metodológicas deste entendimento


remete à investigação das interações entre o fazer teatral e três campos
distintos de conhecimento: cultura, política e linguagem. As três perspectivas
não são excludentes; é comum serem cruzadas em uma mesma abordagem, mas
a identificação maior com uma delas caracteriza as opções metodológicas.

A interação Teatro – Cultura implica reflexões de ordem distintas. Em


primeiro lugar, o trabalho com o texto, que amplia e acentua o caráter do fazer
teatral na escola como possibilidade de levar o aluno a se colocar no lugar de
outra pessoa, de outra época e lugar. Esta perspectiva é expandida quando o
processo dramático tem um texto como referência, o qual além de ampliar o
repertório do aluno, possibilita experiências de cunho intercultural.

Em segundo lugar, a noção do ‘drama como metáfora da maneira


que vivemos’, que introduziu formas de cerimônias e rituais no fazer teatral.
Neste aspecto é acentuada a influência de Victor Turner (1974; 1982), para
quem os rituais marcam a transição entre dois estados de acomodação em uma
atividade cultural, e localizam o teatro na fronteira, à margem daquilo que as
formas mais tradicionais consideram como “o estabelecido”.

A presença do ritual nos escritos sobre teatro, permite elaborar uma


síntese de suas características: “Os rituais podem tomar várias formas, mas
são geralmente descritos como manifestações coletivas, com movimentos
padronizados em seqüências que são caracterizadas pelo seu alto teor teatral,
usualmente incluindo gestos, canções ou sons, cores ou luzes, e vozes, tudo
coordenado e orquestrado em torno de um único tema”. (CABRAL, 2001:56).
O potencial do ritual teatral deriva assim de seus elementos constitutivos: se
caracteriza como uma experiência, incorpora um status simbólico, refere-se
a um processo ou a um grupo de ações performáticas e contém estruturas
com qualidades formais e relações definidas (ver SCHECHNER,1993:12-13;
PAVIS, 1996: 1-21; e COUNSELL, 1996:143-178).

Jonothan Neelands, ao focalizar procedimentos de ensino que


estimulam o desenvolvimento de ações poéticas, descreve o ritual como
“delimitado por regras e códigos tradicionais, usualmente repetitivos, o
que requer dos participantes a submissão à cultura e à ética de um grupo”.
Neelands aponta campos culturais contemporâneos, onde rituais acontecem:
Dezembro 2008 - N° 10 O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral

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U rdimento

iniciação de gangues, testemunhos em juris, eleições, juramentos de escoteiros


e bandeirantes, tribos indígenas. As oportunidades de aprendizagem
decorrentes de sua utilização em processos de ensino, segundo o autor, incluem
o levantamento da ideologia ou ética do grupo, que aparece simbolizada na
atividade ritualística; a característica altamente estruturada desta atividade,
a qual requer atitude reflexiva; uma estrutura simples de ser planejada e
acompanhada. (NEELANDS, 1990: 40).

A interação Teatro – Política prioriza a delimitação do contexto social


e das circunstâncias sócio-políticas a serem focalizadas. Entre as perspectivas
teóricas que influenciaram o pensamento pedagógico nesta direção estão as de
Kenneth Burke (1945, 1950) e Erving Goffman (1974). A preocupação central
de Burke é o estabelecimento de conceitos e estratégias para a análise das
motivações e recursos usados pelas pessoas (consciente ou inconscientemente)
para tentar influenciar as opiniões e ações uns dos outros. Qualquer abordagem
sobre as motivações políticas, segundo Burke, deve responder a cinco questões
que são centrais ao drama: o que foi feito (ato), quando ou onde foi feito (cena),
quem fez (agente), como fez (agência), e porquê (propósito). Goffman detalha
e aprofunda a noção de enquadramento e distanciamento (Frame Analysis),
central ao fazer teatral. As teorias de Burke e Goffman foram incorporadas no
campo da pedagogia por Dorothy Heathcote. No primeiro caso, com a introdução
da investigação cênica dos “Cinco Níveis de Significação” (Five Layers of
Meaning): Ação, Intenção, Motivação, Modelo, Visão de Mundo; pela perspectiva
de Goffman, com o desenvolvimento das “Perspectivas de Distanciamento”
(Frames Distancing), onde a autora especifica nove funções através das quais
o professor e/ou alunos interagem com a situação: participante, guia, agente,
autoridade, relator, repórter, pesquisador, crítico, artista (Byron, 1990).

As abordagens que investigam a relação entre Teatro e Linguagem


enfatizam que o teatro, assim como as demais formas de arte, se distingue das
experiências cotidianas pela associação consciente entre forma e conteúdo a
fim de engajar o intelecto e as emoções no processo de significação artística. A
suposição é que o entendimento das possibilidades e limitações da forma oferece
insights sobre o fazer teatral e permite o controle sobre o meio de expressão
e seu uso pessoal e social. As influências no ensino de teatro, segundo esta
perspectiva, remetem a Wittgenstein (1961) e podem ser sintetizadas em seu
famoso dictum ‘os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo’.
O pensamento de Wittgenstein é o pano de fundo da obra de David Best
(1985; 1992), cuja filosofia da educação e da arte está voltada a erradicar as
dicotomias associadas à relação entre sentimento e razão na criação e fruição
artística. No campo da metodologia é possível observar como as distintas

O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

abordagens investigam, convenções e regras (através de jogos e estratégias)


associadas à estruturação da atividade dramática, como indicadoras das
maneiras pelas quais tempo, espaço e presença interagem e são formatados
para criar significados em cena.

Considerações finais

As interações do teatro com distintas áreas de conhecimento tiveram


ressonância na pedagogia e influenciaram a reflexão metodológica. As três
influências brevemente assinaladas acima permitiram repensar o ensino do
teatro nas últimas duas décadas. Se a livre expressão representou uma reação a
uma tradição de textos memorizados e ‘marcados’ pelo professor, hoje diferentes
níveis de mediação podem ser observados: o jogo dramático, o jogo teatral e
o drama buscam formas de investigar as funções e o papel do professor para
conduzir os alunos no processo de criação cênica a partir de novos parâmetros.

Subjacente a estas mediações está o entendimento de que se o teatro


tem o potencial de promover mudanças, estas decorrem da inseparabilidade
das dimensões cultural (contexto social e artístico do grupo), pessoal (o
desenvolvimento de habilidades – aquisição de linguagem e convenções
artísticas) e política (o objetivo da atuação do grupo). A complexidade do
equilíbrio entre estas dimensões requer um debate contínuo em torno de
realizações cênicas. Este debate deve incluir os atores destas realizações – os
alunos. Para que estes possam acompanhar os debates e se beneficiar com eles,
é necessário familiarização com os discursos poético, cultural e político.

Assim, a importância de refletir sobre as formas de mediação na


construção dos textos dramático e teatral no espaço da sala de aula, está no fato de
que é neste contexto que ele será acessível a todas as crianças, democraticamente.
O ‘jogar’ com o texto (seja este clássico ou contemporâneo) pode aqui significar
a ampliação da percepção estética e a aquisição de conhecimentos artísticos.

Referências Bibliográficas

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BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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Dezembro 2008 - N° 10 O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral

43
U rdimento

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O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos... Biange Cabral Dezembro 2008 - Nº 10

44
U rdimento

A encenação contemporânea como


prática pedagógica

Ingrid Dormien Koudela1

O conceito de encenação nasce na primeira metade do século


XIX. No entanto, a encenação de um modelo literário assume um
peso tão preponderante no trabalho prático e teórico do teatro que
podemos dizer que a história do teatro no século XX pode ser lida
como uma história da encenação. O conceito de encenação engloba
o processo de construção e a forma artística de uma encenação
teatral.

Partindo de um texto ou de um tema ocorre uma confrontação


com um modelo (prefigurado no texto ou em materiais de pesquisa
reunidos em torno do tema) que são experimentados no espaço do
jogo teatral, podendo culminar na publicação de um produto estético
diante de uma platéia.

O conceito de encenação deve descrever, portanto, por um lado


a apresentação teatral como um resultado relativamente exato do
processo de ensaios e, por outro, o caminho que vai do texto escrito 1
A profª Dra. Ingrid
Dormien Koudela é
ou da eleição de um tema até a construção cênica real e visível. O
Docente do Curso
trabalho de encenação lida, portanto, com a construção planejada de de Pós-Graduação
uma representação cênica gerada a partir de um modelo de ação. da ECA/USP e atu-
almente leciona no
Curso de Licenciatura
Brecht propõe dois instrumentos didáticos para o exercício
em Teatro da UNISO
com a peça didática, o modelo de ação (que está prefigurado no texto – Universidade de
dramático) e o estranhamento. Sorocaba/SP.

Dezembro 2008 - N° 10 A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela

45
U rdimento

Ao encarar o texto como pré-texto, Brecht convida o jogador a um


exercício de identificação e questionamento do texto. O texto perde o estatuto
de verdade, não importando a fidelidade a ele. O texto da peça didática pode
inclusive estar impresso, grafado, projetado na cena, valorizando-se a sua
materialidade, tanto sonora como visual. O texto não mais limita a cena, mas
delimita a superfície do mergulho no processo de sua apropriação. O texto é
um objeto estético, estilístico, que sugere um universo de referencias.

O conceito de modelo é neste sentido o texto como objeto de imitação


critica pelo atuante da peça didática. A estrutura dramática possibilita aos
jogadores alterar o texto e inserir conteúdo próprio.

No jogo com o modelo de ação brechtiano, o autor/ator do processo


de conhecimento é o aluno, que constrói os significantes através de gestos e
atitudes experimentados no jogo teatral.

O objetivo principal do jogo com o modelo de ação não é levar o aluno a


aprender um conteúdo específico, mas sim ensinar/aprender o jogo dialético do
raciocínio, como participante de um processo de conhecimento sensório-corporal.

Brecht pretende induzir um processo de aprendizagem em que a


relação entre indivíduo e coletivo seja submetida a exame, através de sua
reprodutibilidade também pelo leigo em teatro.

Característica dos modelos é sua reprodutibilidade por qualquer


pessoa, através da recepção ativa. É importante ressaltar ainda que ao imitar,
cada indivíduo imprime ao modelo características particulares, ampliando as
possibilidades de leitura do significante.

Através de outros materiais (imagens, intertextualidade) trazidos


pelos jogadores, o modelo é transformado, ganha corpo e aproxima-se do
universo e/ou cotidiano do grupo.

Esse jogo dialético se configura na medida em que o autor/ator ou


ator compositor, ou intérprete criador passa a ser sujeito ativo e autônomo
na proposição da criação teatral. Embora Brecht proponha o texto como
Handlungsmuster (modelo de ação) imagens também podem ser utilizadas,
indo além das proposições das Peças Didáticas.

Reportando para o seu passado e para o passado do tempo da história,


o modelo de ação, prefigurado na obra de arte alarga o horizonte temporal e a
percepção do tempo do fruidor. (veja se fica melhor assim!)
A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela Dezembro 2008 - Nº 10

46
U rdimento

Leitura de imagem: Brüghel

Peter Brüghel: Peixes grandes comem peixes pequenos.


O original, um desenho a pena em tinta cinza, no Albertina Museum, em Viena, é datado de 1557 e
assinado “Brueghel”. Impressa na parte de baixo, em latim e flamengo, reza o provérbio:
Grandibus exigui sunt pisces piscibus esca.

O elemento narrativo, presente nas imagens de Brüghel é característica


de sua obra. Além da narração, podemos observar também a representação, a
figuração. Nas pinturas de Brüghel o método narrativo é exercitado no próprio ato
da percepção da obra, na medida em que ele combina o princípio da perspectiva com
a decifração seqüencial das inúmeras informações que suas pinturas aportam.

A etapa da descrição da imagem é um dos momentos mais sutis e


produtivos na leitura de imagens. A narração daquilo que é visualizado faz
com que a percepção de formas e conteúdos seja trazida para a consciência.

Este exercício pode ser instaurado de forma programática com


grupos de crianças, jovens e adultos. Meu intento agora é ser metódica,
sistematizando procedimentos que venho trabalhando com crianças, jovens e
artistas-pesquisadores.

O primeiro passo é a fruição estética e leitura da imagem, através de


uma descrição detalhada e densa de seus pormenores.
Dezembro 2008 - N° 10 A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela

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U rdimento

Descrição de imagem

Com o auxílio de uma faca gigantesca, um homem sem rosto abre a barriga
de um peixe de onde saem também outros peixes com outros peixinhos na boca.

Um homem de elmo abre a barriga do peixe encalhado na areia. De


dentro do peixe grande sai um emaranhado de peixinhos, mexilhões e enguias,
muitas no ato de engolir outros peixes com outros peixinhos na boca. A mesma
cena violenta e cínica é repetida na boca de outro peixe, de cuja boca saem
muitos outros peixinhos.

Um outro homem de chapéu, sem rosto, no alto de uma escada, está


prestes a enfiar o seu tridente nas costas do peixe grande.

A grande faca dentada que o homem com elmo segura tem na sua
lâmina estampado o símbolo desse mundo perverso, tolo e grotesco onde o cão
come o cão e o peixe come o peixe.

Na água, à direita do barco, um mexilhão gigante crava um gancho


em um peixe grande que está engolindo um menor. Mais acima à direita, nesta
mesma ação triangular, o peixe nº 1 devora o nº 2 que está devorando o nº 3.

Acima, no recife, está sentado o tolo refletindo sobre o mundo... se os


tubarões fossem homens, seriam mais gentis com os peixes pequenos?

Mais além, na água, uma embarcação pesqueira joga a sua rede.

Em uma ilha distante uma grande baleia está encalhado entre as


rochas. Aproxima-se uma multidão de homens para matar, cortar e devorar.

No horizonte, há navios ancorados.

Pássaros voam no céu – alguns mais próximos e outros mais distantes.

A criatura dominante no céu é um monstro de forma tri-anfíbia,


parte peixe, parte cobra, parte pássaro ou inseto. Sua boca escancarada
espera por uma presa.

Um outro monstro sobe no banco de areia à esquerda: um peixe com


pernas de homem, sua boca empanzinada com um peixe.

Na árvore acima, dois peixes estão dependurados, suas barrigas abertas


em fendas. Um homem sobe em uma escada para pendurar um terceiro peixe.
A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A Prática Pedagógica

1 - Sentados, os participantes observam a imagem projetada (slides ou


retro projetor) durante três a cinco minutos em silencio. Atenção detalhada
ao ato de perceber.
2- Caminhando no espaço, os participantes podem se aproximar da
imagem projetada, observando detalhes e, mudando sua localização no espaço,
perceber a partir de diferentes pontos de vista no espaço.
3- Descrição detalhada da imagem: todos falam simultaneamente, ou
com parceiros que estão ao seu lado. O coordenador vai irradiando as falas,
repetindo as descrições feitas pelos participantes e colocando perguntas,
apontando para detalhes da imagem, confirmando as descrições feitas pelos
alunos.

INSTRUÇÃO:
Descreva apenas o que você está vendo!
Onde? Aqui? Mais acima? E aqui?
O que vocês estão vendo?

4- Descrição de Imagem pelo coordenador, captando todos os


pormenores.
5- Construção de imagem corporal, sem movimento, selecionando um
recorte da imagem de Brüghel (formação de grupos de jogadores).
6- Cada grupo “mostra” a sua imagem corporal para a platéia:
a platéia completa a imagem criada pelo grupo, acrescentando novos
elementos. Consultar a imagem de Brüghel, que continua projetada na tela ou
retroprojetor.
7- Jogos tradicionais podem preceder e acompanhar a leitura,
fornecendo apoio para a apresentação das imagens corporais. (Por exemplo:
A Canoa Virou).
8- Teatralização do Jogo Tradicional através do foco no personagem
PEIXE. Explorar a relação palco/platéia através de jogos teatrais, com foco
nos movimentos do PEIXE (Spolin, 2007).
9- Roda e retomada do jogo tradicional: A Canoa virou. Cada grupo
mostra a sua imagem dentro da roda – definição de títulos para as imagens
com participação da platéia – a platéia intervém, ora completando as imagens
propostas pelos grupos, ora verbalizando títulos para as cenas assim criadas.

Os jogadores na roda cantam a cantiga. As cenas são mostradas pelos


grupos e podem ser apoiadas por música. Os títulos das cenas são sugeridos através
de uma relação dialógica na qual o coordenador intervém colocando perguntas,
durante o processo de elaboração da imagem corporal e da palavra (título da cena).
Dezembro 2008 - N° 10 A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela

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U rdimento

Intertextualidade: Brecht

Tendo como tema alegórico os peixes, a encenação pode partir de uma


pesquisa intertextual através da qual se dará o processo de historicização dos
conteúdos sociais presentes na imagem.

A leitura da imagem pode nos levar a outros textos narrativos e


poéticos, entre eles O Sermão de Santo Antonio aos Peixes, do padre Antonio
Vieira (Vieira, 2007) ou Aquário de Guimarães Rosa (Rosa, 2001) ou Se os
Tubarões fossem Homens (Brecht, 2004).

Trago o exemplo da narrativa brechtiana que poderá se constituir


em objeto na tematização do processo de encenação. A intertextualidade da
encenação promove um olhar sobre o tempo presente, instaurado a partir do
olhar sobre a história.

Se Os Tubarões fossem homens

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentis com os


peixes pequenos?
Certamente, se os tubarões fossem homens, fariam construir
resistentes gaiolas no mar para os peixes pequenos, com todo tipo de
alimento, tanto animal como vegetal. Cuidariam para que as gaiolas
tivessem sempre água fresca, e adotariam todas as providencias
sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana,
imediatamente lhe fariam uma atadura, para que ele não morresse
antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, dariam
cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres têm gosto melhor do
que os tristes.
Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nas aulas
os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões.
Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia para localizar os
grandes tubarões deitados preguiçosamente por aí. A aula principal
seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam
ensinados que o ato mais grandioso e mais sublime é o sacrifício alegre
de um peixinho e que todos deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo
quando estes dizem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos
saberiam que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a
obediência. Acima de tudo, os peixinhos deveriam evitar toda inclinação
baixa, materialista, egoísta e marxista, e denunciar imediatamente aos
tubarões, se um dentre eles mostrasse tais inclinações.
A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras


entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas
guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há
uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Eles
anunciariam que os peixinhos, são notoriamente mudos, mas calam em
línguas diferentes, e por isso é impossível que entendam um ao outro.
Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos, que
silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena Ordem
das Algas e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também
arte entre eles. Haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões
seriam pintados em vistosas cores, e suas goelas como jardins onde se
brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como
valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as goelas dos tubarões.
A música seria tão bela, que sob seus acordes todos os peixinhos, com a
orquestra na frente, sonhariam, embalados nos pensamentos mais doces
e se precipitariam nas goelas dos tubarões.
Também haveria uma religião, se os tubarões fossem
homens. Ela ensinaria que só na barriga dos tubarões é que começa,
verdadeiramente, a vida.
Além disso, se os tubarões fossem homens também acabaria
a igualdade que hoje existe entre os peixinhos. Alguns deles obteriam
cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho
maiores poderiam até mesmo comer os menores. Isto seria agradável
para os tubarões, pois eles teriam, mais constantemente, bocados maiores
para devorar. E os peixinhos maiores, detentores de cargos, cuidariam
da ordem entre os peixinhos, para que estes chegassem a ser professores,
oficiais, construtores de gaiolas e assim por diante.
Só então haveria uma civilização no mar, se os tubarões
fossem homens.
(Brecht, Bertolt, in: Histórias do Sr. Keuner, tradução: Ingrid Koudela)

A Prática Pedagógica
1- Aquecimento com jogos tradicionais
2- Leitura do texto em voz alta, simultaneamente aos parceiros,
caminhando pelo espaço da sala. Cada qual lê no seu próprio ritmo, do início
ao final do texto. Não é uma leitura em coro.
3- Mesmo procedimento, dialogando agora com parceiros, ora com
um ora com outro, mantendo o ritmo próprio. Cada jogador pode estar em um
momento diferenciado do texto. Não é leitura coral.
Dezembro 2008 - N° 10 A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela

51
U rdimento

4- Formar um círculo de costas para o centro. Cada jogador escolhe


uma frase que vai pronunciar repetidas vezes, com diferentes intenções na voz
(sussurando, gritando, etc.) A leitura não é simultânea, agora cada um diz a
sua frase quando houver um espaço de tempo, sem combinação prévia.
5- Formar círculo voltado para o centro. Um jogador escolhe uma
frase do texto e a diz para um parceiro no círculo. Este escolhe outra frase e a
diz para um outro parceiro no círculo e assim sucessivamente.
6- Construção de imagens corporais. Em grupos de três a quatro jogadores,
cada grupo mostra a sua imagem para o coro, que lhe atribui títulos e a completa.
7- Jogos tradicionais. Mostrar as imagens criadas através da relação
palco/platéia gerada pelo jogo+ música + movimento.
8- No processo de apropriação da narrativa de Brecht é possível sub-
dividir o texto a partir dos temas que ele sugere: arte, religião, desigualdade
social, educação, guerra. Estes temas podem ser experimentados pelo grupo,
seja através da sua distribuição na sala, seja experimentando um tema por vez
com a sala toda. A contextualização da narrativa através das cenas criadas
pelos atuantes proporá assim o processo da pesquisa e construção cênica que
será única com cada grupo.

O texto cênico

Toda transposição de um modelo para o palco baseia-se na interpretação


do encenador e do coletivo de todos os colaboradores artísticos. A análise do
texto escolhido e/ou a pesquisa temática levam a uma concepção de encenação
que necessita ser desenhada e traduzida cenicamente com o auxílio de signos
(e de cenas teatrais).

Durante a apresentação, por outro lado, o espectador interpreta os


eventos que lhe são mostrados a partir da sua perspectiva, completando-se só
então a encenação propriamente dita. A intenção do encenador, a estrutura de
sua narrativa em formas cênicas influencia a recepção do espectador.

A elaboração de ações e interações no sistema cênico nunca ocorre


desvinculada de suposições sobre a futura platéia. Já a escolha do texto
dramático ou tema e sua elaboração dependem do contexto social e histórico
no qual a encenação concreta está sendo realizada.

Contemporaneamente o texto é utilizado como material bruto sobre


cuja base é construída uma nova versão, permitindo diferentes versões até o total
desaparecimento do original. A forma como é trabalhado o texto dramático ou
o tema faz nascer assim um novo produto, o texto cênico (Pavis, 1999) que deve
ser avaliado como obra independente em relação ao modelo literário.
A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A abertura do texto dramático para o experimento cênico se orienta


a partir da tematização do original. A tematização é aqui entendida como uma
série de construções de sentido contraditórias que dialogam e que podem
coexistir de forma que uma multiplicidade de sentidos potenciais possa ser
instalada, articulando espaços de significação. O texto cênico nasce então, gerado
pelo atrito entre dicção e oratória do texto original, penetrando e atualizando
os discursos por ele produzidos.

De relevância decisiva para o leitor/encenador contemporâneo são as


perguntas que possam ser formuladas para o modelo, permitindo uma relação
dialógica. Os pontos de incerteza demarcam momentos nos quais a ambigüidade
e polissemia do texto literário é ressaltada. São exatamente essas incertezas
que fornecem sinais de sentido para a encenação contemporânea.

O infinito jogo de oscilações entre mostrar e ocultar a construção de


significado transforma o texto em uma espécie de areia movediça e ao mesmo
tempo em relógio de areia: se o leitor quiser iluminar um lado, obscurece o
outro. Na práxis do teatro esta oscilação do texto é motor essencial: tanto os
espectadores como os atuantes brincam com o reconhecimento e destruição de
sentido durante a apresentação do espetáculo.

Na encenação, o poder de ruptura estética do material de partida


necessita ser traduzido para o sistema de símbolos e signos teatrais. A
materialidade da arte do teatro exige uma transformação da expressão escrita
para a oralidade da fala. A corporeidade do atuante, aliada a elementos visuais e
auditivos dão uma forma ao texto cênico que se desdobra no tempo e no espaço.

Entre os elementos visuais podem-se enumerar signos espaciais


como a cenografia, adereços e iluminação. Também figurinos e máscaras
dos atuantes devem ser aqui listados. Os signos espaciais constituem o cerne
do trabalho de encenação já que signos gestuais, mímicos e proxêmicos são
determinantes para a ação da cena. Signos acústicos, ao lado de ruídos e música
constituem signos lingüísticos e paralinguisticos que marcam a encenação. A
maneira como estes diferentes campos se relacionam e a forma que assumem
em cena é determinante para a decifração do texto cênico. O jogo entre os
elementos visuais e acústicos transforma a interpretação do texto e/ou tema
em um espaço imaginário para os espectadores. Neste sentido, a coordenação
e composição desses diversos elementos são determinantes para o processo de
construção de sentido da encenação.

Encenar significa então organizar movimentos no espaço e


estruturar espaços através do movimento, de forma que tornem visíveis
Dezembro 2008 - N° 10 A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela

53
U rdimento

ao mesmo tempo espaços tanto externos quanto internos. Através desses


espaços, a leitura de mundo abre para novos mundos.

A construção simbólica de todos os participantes no processo artístico


assume então a feição de uma aventura, de uma viagem de descoberta. Nesta
encenação o atuante entra em cena transformando o espaço em um espaço de
jogo compartilhado com a platéia!

Referências Bibliográficas

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GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. Dicionário
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KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. SP: Ed. Perspectiva, 1984.
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SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. Tradução: Eduardo Amos e Ingrid
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_______. O Jogo Teatral no Livro do Diretor. Tradução: Eduardo Amos e Ingrid
Koudela SP: Ed. Perspectiva, 1999.
_______. Jogos Teatrais. O Fichário de Viola Spolin. Tradução e introdução:
Ingrid Koudela SP: Ed. Perspectiva, 2001.
_______. Jogos Teatrais na Sala de Aula. Tradução e introdução: Ingrid Koudela
SP: Ed. Perspectiva, 2007.
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão de Santo Antonio aos Peixes, Biblioteca Digital,
Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2007.

A encenação contemporânea como prática... Ingrid Dormien Koudela Dezembro 2008 - Nº 10

54
U rdimento

Dentro ou fora da escola?

Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

A multiplicação dos protagonistas da cena que presenciamos na


atualidade, como não poderia deixar de ser, vem repercutindo diretamente
na formação na Licenciatura em Artes Cênicas oferecida pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Se em seus primeiros tempos - lá se vão mais de três décadas – o


campo da licenciatura visava exclusivamente ao ensino do teatro dentro
do sistema educacional, hoje a situação é bem distinta. Demandas de
entidades as mais variadas, tanto ligadas à sociedade civil como as ONGs,
quanto instituições vinculadas ao poder público na área da cultura como é
o caso de centros culturais, além de setores da área da saúde, constituem
algumas das múltiplas esferas nas quais processos de criação em teatro
- e, de modo mais abrangente, nas artes da cena - revelam uma área em
plena expansão.

Índice eloqüente das transformações pelas quais o teatro vem


passando entre nós, essa diversificação dos contextos nos quais ele ocorre
certamente revela uma bem-vinda ampliação dos segmentos da população
que têm acesso, hoje, à realização e à fruição teatral. Certamente é necessário
muita cautela ao tratar essa expansão quantitativa, se levarmos em conta a
escala da periferia das metrópoles brasileiras, mas é inegável que estamos
fazendo referência a um fenômeno tangível, digno de análise cuidadosa.

Os exemplos mencionados acima dizem respeito a processos de


conhecimento oriundos de experiências teatrais – envolvendo pessoas na
qualidade de atuantes ou de espectadores - que se inserem em uma noção

Dezembro 2008 - N° 10 Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

55
U rdimento

ampla de educação, baseada no princípio de que as ações interativas entre os


indivíduos promovem a construção de saberes. Em outras palavras, estamos
falando em modalidades de educação não formal, campo no qual a pesquisa em
pedagogia do teatro vem fazendo avanços consideráveis entre nós.

O reverso da moeda, ou seja, a área da educação dita formal, apresenta


um panorama de outra natureza. Como é sabido, a instituição escolar, coração
do projeto democrático, não vem recebendo do poder público no Brasil a atenção
merecida. Em meio às profundas transformação sociais que ora atravessamos
no campo do trabalho, da organização familiar, das comunicações, a escola
sobrevive em meio a perplexidades, sobressaltos e impasses. Se no campo das
atividades levadas a efeito em caráter extra-curricular dentro de escolas públicas
e particulares há exemplos de práticas teatrais bastante interessantes, eles são
menos freqüentes quando analisamos os casos de experiências teatrais dentro
do currículo escolar, o que, evidentemente, pode ser explicado pelas dificuldades
mais amplas hoje inerentes à escola, principalmente pública, no Brasil. Temos
aí configurado um quadro que certamente demanda atenção especial dos
responsáveis pela formação de professores de artes cênicas, assim como daqueles
que atuam nas demais licenciaturas no âmbito da universidade como um todo.

A mesma perspectiva de fazer da atividade cênica um dos vetores da


educação denominada não formal vem ocupando o horizonte de vários grupos de
teatro marcados pela preocupação com o caráter coletivo dos processos de criação.

Em Belo Horizonte o Galpão implantou no espaço de um antigo


cinema o Galpão Cine Horto, desdobramento das perspectivas estéticas do
conhecido grupo. Trata-se de um núcleo pedagógico que oferece cursos
livres e oficinas de teatro para iniciantes, sejam crianças, jovens ou adultos,
interessados em aprender teatro. Em Porto Alegre o Oi nóis aqui traveiz se
atribuiu uma relevante função pedagógica ao criar uma escola na periferia da
cidade, também voltada a um trabalho teatral com iniciantes, importante eixo
da função social almejada pelo grupo.

Na capital paulista o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a


Cidade de São Paulo, fruto da atuação de grupos e coletivos teatrais, constitui,
ao mesmo tempo, poderoso apoio para a sua consolidação. Tendo em vista
a sustentação de projetos continuados de pesquisa teatral, assim como um
melhor acesso da população a essas realizações, o Fomento seleciona duas
vezes por ano propostas de criação que revelam uma concepção do trabalho
teatral enquanto ação cultural pública. Um exame preliminar do conjunto de
1
O termo aparece no projetos contemplados desde 2002 – cerca de duzentos - revela interessantes
texto da Lei. modalidades de “contrapartida social”1 propostas pelos coletivos. Entre eles
Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Dezembro 2008 - Nº 10

56
U rdimento

podemos destacar a ocupação e reforma de espaços abandonados; a ação em


rede, implicando tessitura de vínculos e parcerias com escolas, centros culturais,
entidades de bairro; a oferta de oficinas teatrais à população; a organização de
encontros visando à formação de espectadores, além da documentação dos
próprios processos de criação dos grupos beneficiados com o apoio público.

Os exemplos mostram um quadro singular: coletivos teatrais,


revelando uma notável capacidade de intervenção na vida social, aliam
experimentação, pesquisa e atuação pública, revelando seu compromisso com
uma ação cultural que consagra campos de atuação efetivos, aquém e além
do momento da representação propriamente dito. O teatro transborda das
margens que até há pouco pareciam conter o seu percurso.

Antigos papéis cristalizados se embaralham, dando origem a


vínculos inesperados entre o fazer artístico e a preocupação com a cidadania.
Modalidades de educação não formal são desenvolvidas junto ao público das
metrópoles pelos coletivos teatrais, comprometidos com um debate de caráter
ativo em torno da função social do teatro. Limites estáticos e arbitrários entre
cultura e educação caem por terra.

Na perspectiva de chamar a atenção para os vínculos entre as esferas


da formalidade e da não formalidade, e voltando agora para o âmbito do
sistema educacional, gostaríamos de trazer à tona um aspecto da formação
oferecida pela Licenciatura em Artes Cênicas na ECA-USP.

No último semestre da referida formação, os licenciandos organizam


uma mostra na qual apresentam monografias de conclusão de curso resultantes
de processos de aprendizagem teatral por eles conduzidos, acompanhadas,
sempre que possível, de apresentações públicas vinculadas a esses processos.

Esse momento final é precedido pelo acompanhamento contínuo do


estudante, em um caminho que vai desde a primeira versão do projeto ao qual se
propõe, passa pelas dificuldades naturais de sua implantação e desenvolvimento
e pelos impasses ligados à escritura, até chegar ao exame da monografia por
um conjunto de docentes em sessões abertas ao público. Do ponto de vista dos
estudantes às vésperas da conclusão do curso trata-se de ocasião especialmente
rica, na qual eles encerram um ciclo de acompanhamento da trajetória dos colegas
envolvidos com investigações sobre processos de aprendizagem em teatro.

Tendo em vista a diversidade dos contextos nos quais pode se dar


hoje a atividade teatral, cada estudante tem autonomia para propor seu
projeto no ambiente que lhe aprouver. Não apenas escolas de ensino básico,
Dezembro 2008 - N° 10 Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

57
U rdimento

mas também parcerias com entidades as mais diversas, públicas e privadas


e até mesmo o espaço da rua vêm sediando a atuação dos jovens formandos.
São portanto múltiplos e diversificados os processos de aprendizagem teatral
coordenados pelos estudantes. Em determinadas ocasiões esses processos se
tornam objeto de tentativas de enquadramento por normas institucionais
que tentam neutralizar o potencial transgressor do fazer teatral. Em outras
circunstâncias, menos institucionalizadas, os processos em questão são
encarados como desejável atividade simbólica que contribui para a ampliação
do olhar sobre o mundo e recebidos calorosamente.

Dois exemplos provenientes da mostra apresentada pelo Departamento


de Artes Cênicas em dezembro de 2007 ilustram a inserção de processos de
aprendizagem teatral dentro das esferas formal e não-formal de educação.

O primeiro deles se refere à inesperada impossibilidade de atuação


2
Bianca Zanchetta e no terreno da educação formal, verificada por uma dupla de estudantes2. As
Priscilla Carbone. alunas em questão, a partir de diretrizes iniciais apresentadas em um pré-
projeto – valer-se da leitura de imagens e da abordagem de textos - previram
com bastante antecedência (em relação ao calendário que havíamos montado
em conjunto) iniciar o contato com escolas públicas de ensino fundamental,
visando a constituir um grupo de adolescentes interessados na experiência
que gostariam de levar a efeito. Dificuldades de toda ordem, no entanto,
constituíram obstáculos que acabaram se revelando intransponíveis para a
implantação do projeto: encontros com responsáveis institucionais cancelados,
protelados ou adiados, pretextos vinculados a problemas do espaço físico,
impedimentos a priori atribuídos à organização de grupos de alunos em horários
diferentes do habitual, acabaram tendo um efeito corrosivo sobre os planos
das estudantes. Decepcionadas com o quadro diante do qual se deparavam,
acabaram reorientando sua atuação para a coordenação de um processo junto
a jovens no âmbito de uma oficina teatral de breve duração dentro da própria
cidade universitária. Uma perversa conjugação de fatores, entre os quais
supomos dificuldades de comunicação, inércia institucional, incompreensão
da envergadura da experiência proposta - reveladores evidentemente de um
sistema escolar atravessado por intensa crise - inviabilizaram uma atuação na
escola, definida como prioritária pelas estudantes.

Um segundo exemplo, no sentido oposto ao anterior, ilustra o


estabelecimento de vínculos promissores - verdadeiras “passarelas”- entre a
instituição educativa e a ação cultural. Sandra Savóia Grasso Nascimento de
Oliveira, em determinado momento de seu percurso como coordenadora de
um grupo teatral de jovens de 17 a 20 anos no Colégio Equipe, em meio a
experimentações a partir de Aquele que diz sim / Aquele que diz não de Brecht,
Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Dezembro 2008 - Nº 10

58
U rdimento

formula junto com o grupo a interrogação que vai permear sua pesquisa: seria
possível “desenvolver um processo de construção de conhecimentos acerca da
mediação da recepção teatral com um grupo de jovens alunos-atores envolvidos
com experimento com peça didática de Brecht e interessados em dialogar com
seus espectadores?”3 A partir daí, juntos, Sandra e o grupo passam a apresentar 3
"Pulgas atrás de
sua encenação do texto brechtiano em uma perspectiva marcada pelo caráter orelhas. A peça
didática de Brecht e a
lúdico, para platéias cada vez mais diferenciadas dos meios habitualmente
mediação da recepção
freqüentados por eles. Simultaneamente concebiam, experimentavam e teatral: uma perspec-
avaliavam modalidades de apropriação da cena que pudessem contribuir para tiva pedagógica". Tra-
que os espectadores se confrontassem, no nível do jogo teatral, com as questões balho de Conclusão de
relativas ao conformismo político e social formuladas por Brecht. Curso, Departamento
de Artes Cênicas,
ECA- USP. 2007, p. 6.
O fato de terem assistido coletivamente aos espetáculos Aldeotas e
Vemvai, o Caminho dos Mortos, contribuiu para a tarefa à qual se propunham.
A partir deles os participantes foram convidados a conceber procedimentos
de caráter lúdico que viessem a mediar a recepção dessas encenações, em um
exercício de aproximação gradativa com o tema da leitura da cena, central nas
preocupações do grupo naquele momento.

Uma mescla de leituras sobre a peça didática de Brecht e sobre a


formação do espectador teatral associou-se a apresentações voltadas para
diferentes platéias: do próprio Colégio Equipe, de uma mostra de teatro
no Colégio Santa Cruz, de assembléia de movimento de juventude, e de
participantes de um encontro do Projeto de Teatro Vocacional da Prefeitura
Municipal de São Paulo. Em cada uma dessas ocasiões os jovens portanto, além
de atuar, coordenavam sessões de jogos teatrais cuidadosamente planejados,
visando à apropriação da cena por parte dos espectadores. Entusiasmados
com a perspectiva de realizar um “teatro pensante que faz as pessoas
pensarem”, os alunos do ensino médio concluíram sua trajetória respondendo
ao desafio que lhes pareceu o mais complexo: apresentaram seu trabalho
e propuseram reflexão sobre a cena através de modalidades lúdicas a uma
platéia de adolescentes da Escola Municipal Amorim Lima, pouco mais jovem
do que eles mesmos. O processo de construção de conhecimentos vivido pelo
grupo, portanto, partiu de um contexto de educação formal e ganhou corpo
mediante desdobramentos na condução de processos em diferentes contextos
de educação formal e não-formal.

Dentro da situação que tentamos esboçar muito brevemente, na qual


a inserção social dos grupos de teatro, a expansão da ação cultural e os graves
impasses da escola constituem uma paisagem cujos contornos - talvez ainda
relativamente imprecisos - continuam a surpreender, podemos constatar
desafios de nova envergadura.
Dezembro 2008 - N° 10 Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

59
U rdimento

4
Cf. o trabalho Equipes interdisciplinares em países diversos4 vêm indicando a
realizado na Colombia crescente necessidade da elaboração de um “pacto social” entre diferentes
por Antanas Mockus,
"A cidade como uma
entidades, órgãos e instituições públicos e privados que se responsabilizem
grande escola", Porto pela educação e pela formação do conjunto da sociedade. “A crise da escola
Alegre, GEEMPA, não pode ser resolvida a partir do interior da própria escola”5 é sem dúvida
2005, assim como o uma afirmativa a ser examinada com atenção. Se a escola brasileira carece de
do grupo de pesquisa- sérias medidas a curto, médio e longo prazo para tentar superar seus graves
dores de Barcelona,
coordenado por Car- impasses, a ação cultural também constitui hoje um campo imprescindível
men Gómez-Granell e na formação dos cidadãos.
Ignácio Vila, "A cidade
como projeto educa- Ao se alimentar da reflexão gerada por essas novas modalidades de
tivo", Porto Alegre,
Artmed, 2003.
atuação e pelos desafios cada vez mais complexos que se nos apresentam
em nosso momento histórico, o campo da Pedagogia do Teatro tende a
5
Carmen Gómez- se ampliar e a se consolidar. Certamente teríamos muito a ganhar se nos
Granell e Ignácio Vila
(org.), "A cidade como
muros da escola da educação básica fossem cavadas brechas que abrissem
projeto educativo", passagem para concepções de trabalho teatral em sintonia com as recentes
Porto Alegre, Artmed, dinâmicas instauradas nos espaços urbanos das metrópoles.
2003, p. 31.

Dentro ou fora da escola? Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Dezembro 2008 - Nº 10

60
U rdimento

Formação docente em teatro:


pesquisa aliada à ação pedagógica
Vera Lúcia Bertoni dos Santos1

Este trabalho resulta da etapa preliminar de uma pesquisa mais ampla que
se relaciona intimamente à trajetória acadêmica da sua autora junto à formação
docente em teatro e delineia-se em seguimento a investigações anteriores, através
das quais se tem buscado refletir sobre o processo de formação do professor de teatro
sob a ótica interacionista. Nele apresentam-se alguns resultados dessa pesquisa 1
Doutora em Educação
mais atual e anunciam-se possibilidades de continuidade e aprofundamento das pela UFRGS; Professora
reflexões oportunizadas pela prática pedagógica impulsionada, ou desafiada, pela e pesquisadora do
Departamento de
curiosidade científica. Arte Dramática e do
Programa de Pós-
A base empírica da parte da pesquisa da qual se extraem os resultados a Graduação em Artes
serem apresentados constituiu-se a partir do processo cooperativo de elaboração, Cênicas da UFRGS;
execução e avaliação de um Laboratório de Prática Docente, desenvolvido por Coordenadora da
Pesquisa Professor
estudantes do Curso de Licenciatura em Teatro do Departamento de Arte e Teatro e Construção
Dramática (DAD) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação de Conhecimento: o
da coordenadora da pesquisa, e oferecido a um grupo de jovens da comunidade. Laboratório de Prática
Docente, com registro
Dessa experiência pedagógica refletida emergiram questões e problemas no Sistema de Pesquisa
da UFRGS e apoio
identificados a interesses individuais das estudantes de graduação, que, assumidos PROPESQ/UFRGS e
como ideais de pesquisa, foram analisados e compreendidos num contexto mais amplo FAPERGS; Líder do
e relacionados a um quadro conceitual que lhes permitiu identificar a problemática GESTE – Grupo de
mais ampla a que se vinculavam e definir métodos adequados à sua investigação. Estudos em Teatro
e Educação (CNPq);
autora de diversas
A articulação dessas “sub-pesquisas” entre si precipitou uma “meta- obras envolvendo as
pesquisa” que busca compreender a complexidade do processo de conhecimento relações entre
dos sujeitos da relação educativa por meio da interpretação das suas formulações teatro e educação;
teóricas e da observação da sua ação pedagógica. atriz de teatro.

Dezembro 2008 - N° 10 Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos

61
U rdimento

O objetivo primordial dessa meta-pesquisa é ampliar o debate sobre


a construção de conhecimento em teatro sob a ótica interacionista de Jean
Piaget, a perspectiva dialógica de Paulo Freire e a pedagogia teatral de Viola
Spolin e Jean-Pierre Ryngaert, dentre outros autores que problematizam a
construção de conhecimento em teatro na contemporaneidade.

Longe da intenção de estabelecer princípios norteadores à ação


docente no ensino superior ou de traçar uma metodologia precisa de pesquisa
aliada à docência, neste recorte pretende-se identificar evidências de
uma pedagogia comprometida com a transformação do conhecimento,
com vistas a compartilhar uma visão particular do processo interativo,
construtivo, relacional e permanente que envolve a formação docente em
teatro na UFRGS.

Dos problemas e dos propósitos


2
Tais resultados
referem-se ao A pesquisa da qual se extraem os resultados parciais2 que aqui se
trabalho investigativo expõem intitula-se Professor de Teatro e Construção de Conhecimento: o Laboratório
e reflexivo realizado
no decorrer do ano
de Prática Docente e delineia-se em continuidade à investigação que originou a
de 2007, que contou Tese de Doutorado da sua autora, denominada No fio do equilibrista: professor
com a inestimável de teatro e construção de conhecimento, ambas motivadas pelo trabalho docente
colaboração das e reflexivo que realiza na interação com estudantes do Curso de Licenciatura
acadêmicas da UFRGS, em Teatro da UFRGS.
Adriana Serrão Sch-
neider, Daniela Dutra
O propósito central da investigação mais ampla é aprofundar a discussão
Silveira, Luciana
Rodrigues Marcon e sobre a (trans)formação do professor de teatro e as suas relações com a construção
Marcia Kopczynski da inteligência (compreendida, esta, como forma complexa de adaptação do ser
de Freitas Filha, humano ao mundo em que vive), e explorar diversas facetas desse processo. Ou seja,
Bolsistas de a problemática mais abrangente da pesquisa compreende o processo de formação do
Iniciação Científica
da Pesquisa.
professor de teatro, situando-se na intersecção das áreas do teatro e da educação.

Subordinada a esse objetivo geral, a etapa a qual se referem os


resultados a serem apresentados compreende, em especial, os processos de
ensino e aprendizagem desenvolvidos por um grupo de quatro licenciandas
em teatro que, tendo cursado, com destaque, a disciplina de Metodologia do
3
Componente curricular
obrigatório do Curso de
Ensino do Teatro3, aceitou o convite da coordenadora (professora da disciplina
Licenciatura em Teatro e coordenadora da pesquisa) para dar continuidade às reflexões e interações
da UFRGS, que prevê propiciadas naquela ocasião, mediante a participação numa experiência coletiva
o desenvolvimento de Laboratório de Prática Docente.
de uma situação real
de docência coletiva Dentre os objetivos mais específicos do trabalho investigativo ligado
e reflexiva acerca da
à experiência em questão, destacam-se: a reflexão acerca do significado do
ação pedagógica em
teatro. trabalho docente através da análise da prática teatral; a tematização das relações

Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos Dezembro 2008 - Nº 10

62
U rdimento

entre teoria e experimentação; a compreensão da intencionalidade das ações


pedagógicas, tais como, a intervenção nas relações interpessoais, a seleção e
a abordagem dos conteúdos, a avaliação e a cooperação; a problematização
do papel do teatro na sua relação com a educação, com ênfase na busca de
reconhecimento da importância do “processo” em relação ao “produto”
(tradicionalmente valorizado no meio escolar), mas sem detrimento do
produto (na medida em que ele se constitua por interesse do grupo e criação
coletiva); a reflexão sobre diferentes aspectos do processo de construção
(apropriação) de elementos fundamentais do teatro (representação perante
platéia com o intuito de comunicar), tendo em vista os modelos tradicionais
de teatro e de representação que significam identificação e mostram-se
através do gesto (corpos/vozes, intenções e ações) dos aprendizes; a análise 4
Na análise do diálogo
minuciosa do processo de transição entre a dramatização espontânea, que caracteriza os
processos pedagógicos
característica das etapas mais desenvolvidas do simbolismo coletivo (Piaget, segundo a perspectiva
1946), e a arte teatral contemporânea; a busca de substrato teórico acerca de Freire (1987, p.
das modalidades de improvisação do jogo dramático (Ryngaert, 1977) e 77), a palavra deve
dos jogos teatrais (Spolin, 1963) e a compreensão dessas modalidades como ser compreendida no
seu sentido radical,
vias de aprendizagem do teatro num projeto educacional contemporâneo; ou seja, mais do que
a sistematização de um repertório de proposições ou procedimentos para um meio para que o
a abordagem pedagógica de elementos (espaço, corpo/voz, estrutura da diálogo se produza,
narrativa, diálogos) do conhecimento teatral; e a ampliação das possibilidades a palavra merece
de intervenção pedagógica e de inserção do teatro no meio escolar. ser analisada como
"práxis", termo que
comporta as suas duas
Atenta à interação com tantos e tão complexos e multifacetados dimensões constituti-
aspectos do processo de construção de conhecimento em teatro, o Laboratório vas: ação e reflexão.
de Prática Docente visava evidenciar os caracteres relacional e processual 5
Na filosofia moderna
da ação pedagógica em teatro, considerados, na perspectiva interacionista, e contemporânea o
qualidades intrínsecas à formação reflexiva do professor de teatro. termo é freqüente-
mente utilizado no
sentido de Hegel.
Nesse sentido, salientaram-se alguns fatores cruciais concorrentes "Toda a realidade
para o avanço das reflexões sobre a práxis4 na formação docente, tais como: move-se dialetica-
a qualidade do envolvimento do grupo de licenciandas que se dispuseram mente e, portanto, a
a participar como Bolsistas de Iniciação Científica da pesquisa; o rigor filosofia hegeliana vê
científico que caracterizou os debates travados entre elas; a busca constante em toda parte tríades
de teses, antíteses e
de interação entre teoria e experimentação, aspecto que contribui de sínteses, nas quais a
maneira decisiva para o desenvolvimento da curiosidade científica dessas antítese representa a
professoras em formação; e a compreensão do processo de conhecimento ‘negação’, o ‘oposto’
numa perspectiva dialética5, que permitiu enfatizar a unidade do processo ou ‘outro’ da tese, e a
síntese constitui unida-
de ensino e aprendizagem sob o ponto de vista da interação entre o de e, ao mesmo tem-
pesquisador e os sujeitos que compartilham a situação empírica, entre o po, a certificação de
sujeito do conhecimento e seu objeto, e entre os fazeres teóricos e práticos ambas" (Abbagnano,
relacionados à aprendizagem do teatro. 1998, p. 273).

Dezembro 2008 - N° 10 Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos

63
U rdimento

Do campo, dos sujeitos e da metodologia

A base empírica do trabalho investigativo estruturou-se a partir da


seleção e preparo da equipe da pesquisa, que envolveu cinco bolsistas de Iniciação
Científica (três Bolsistas PROPESQ/UFRGS e uma Bolsista FAPERGS),
todas estudantes de graduação do Curso de Licenciatura em Teatro, que
se destacaram pela qualidade da sua participação, empenho e iniciativa nas
atividades realizadas na disciplina de Metodologia do Ensino do Teatro.

Essa estruturação permitiu o desenvolvimento do processo de


elaboração, execução e avaliação de um Laboratório de Prática Docente ocorrido
nas dependências do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e oferecido
a um grupo de alunos da comunidade. E a preparação da equipe de bolsistas
para o trabalho pedagógico deu-se a partir de seminários sobre textos
teóricos, exposições e debates que versavam sobre diferentes aspectos do
processo de conhecimento em teatro, abarcando caracteres estéticos, artísticos
e pedagógicos do fazer teatral.

O Laboratório, denominado pelas bolsistas de Oficina de Teatro para


Iniciantes, desdobrou-se em dois módulos, que ocorreram, o primeiro, entre os
meses de maio a junho, e, o segundo, entre os meses de agosto e outubro de 2007,
totalizando quatorze encontros (de duas horas semanais) e congregando um
contingente de vinte e três alunos (jovens com idades entre onze e dezoito anos).

A análise da experiência docente propiciada pela interação com o


grupo de jovens seguiu diversas linhas investigativas, tais como: a reflexão
sobre a formação do professor de teatro; a problematização das trajetórias
pessoais das professoras pesquisadoras, relacionadas ao teatro e à educação; a
observação participante e a avaliação constante do desenvolvimento do
processo de conhecimento do grupo de jovens com o qual elas compartilharam
a sala de aula; e a teorização sobre o desenrolar dos processos de aprendizagem
evidenciados no decorrer do trabalho.

A reflexão sobre os acontecimentos da sala de aula e a elaboração da


teoria que a sustenta e desafia relacionam-se intimamente à postura do “professor
pesquisador”, compreendida segundo a perspectiva de Freire. Nessa concepção:

O que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou


uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte
da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de
que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba
e se assuma, porque professor, pesquisador. (Freire, 1996, p. 32)
Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos Dezembro 2008 - Nº 10

64
U rdimento

Para Freire, a assunção dessa postura não ocorre de forma automática ou


pré-determinada, pois emana do compromisso permanente do professor com o
desenvolvimento da sua consciência crítica, vinculada, por sua vez, às crescentes
capacidades de indagação e busca que lhe possibilitam transformar a chamada
“curiosidade ingênua” em “curiosidade epistemológica” (Freire, 1996, p. 32).

Na concepção de Piaget (1974a e 1974b) essa transformação depende do


mecanismo de tomada de consciência, relacionado ao processo de conceituação, ou
seja, à “passagem da assimilação prática a uma assimilação por meio de conceitos”,
e correspondente, no seu quadro teórico, à idéia de “aprendizagem no sentido
amplo”, que se vincula estreitamente ao processo dinâmico de equilibração das
estruturas de conhecimento, implicado, por sua vez, à criação da “novidade”.

No sentido do delineamento teórico da pesquisa, autores como Ryngaert,


Spolin (1963), Ingrid Koudela e Maria Lúcia Pupo entre outros, fornecem elementos
para refletir sobre a complexidade do processo de construção da teatralidade.

Concorrem também aspectos do método clínico ligado à


Epistemologia Genética, refletidos através da leitura da obra de Piaget e seus
colaboradores, em especial os estudos voltados à compreensão dos processos
de aprendizagem e conhecimento.

Tendo por base teórica esses referenciais realiza-se um estudo descritivo,


analítico e reflexivo das (trans)formações dos sujeitos do processo de formação
docente, compreendidas numa totalidade coordenada, na qual se busca equilibrar
o estudo da teoria e a análise da prática, alicerces e reflexos uma da outra.

Um dos princípios que orienta a investigação é que o professor de


teatro é um pesquisador envolvido com a produção e difusão do conhecimento
teatral e que não pode ser considerado um profissional de segunda classe que
não precisa ir tão fundo nos conhecimentos específicos da área do teatro. Ou seja,
é um profissional em construção de domínios fundamentais à expressão e
compreensão de visões de mundo através da materialidade de uma determinada
forma artística – o teatro –, e em desenvolvimento da sua capacidade de
transpor essa materialidade às necessidades de aprendizagem dos seus alunos,
significando novas possibilidades de reflexão sobre o mundo.

A análise do material coletado possibilitou reconstruir, explorar e


ampliar a compreensão das ações empreendidas no sentido da transformação
dos conhecimentos como necessidade dos sujeitos envolvidos nesse processo
construtivo, gerando novos percursos cada vez mais adaptados às necessidades
de conhecimento evidenciadas nesse contexto.
Dezembro 2008 - N° 10 Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos

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U rdimento

Dos resultados e dos desdobramentos

Da teorização dessa experiência emergiram questões identificadas a


interesses individuais das licenciandas, dentre as quais se evidenciam: a busca
de compreensão da sala de aula como espaço-tempo de compartilhamento da
experiência estética e ética em teatro; a compreensão do papel da tomada de
consciência na formação do professor de teatro; a investigação acerca das relações
entre a teoria e prática e entre ação e reflexão no processo de conhecimento
relacionado à expressão vocal na iniciação teatral; e o estudo do processo de
interação professor-aluno e suas relações com o ensino-aprendizagem do teatro.

Essas questões foram assumidas como ideais de pesquisa das estudantes,


professoras-pesquisadoras em formação, sendo analisadas e compreendidas num
contexto mais amplo e relacionadas a um quadro conceitual que permitiu
a cada uma delas identificar a problemática a que se vinculam, estabelecer
metodologias adequadas à sua elucidação e “dar corpo” às suas próprias idéias,
mediante categorizações e análises coerentes e consistentes.

No trabalho intitulado Teatro como Encontro: uma experiência na sala de


aula, a bolsista Adriana Serrão Schneider analisou a relação entre “quem está
em cena e quem está na platéia”, salientando a importância da comunicação no
ato teatral e questionando as funções de ator e de espectador, exercitadas pelos
alunos nos trabalhos cênicos de sala de aula.

Para refletir sobre essas questões ela partiu da análise de experiências


teatrais que a transformaram como espectadora e como aluna-atriz e
investigou a possibilidade de desenvolver experiências éticas e estéticas com
os alunos do Laboratório.

Suas reflexões fundamentaram-se em princípios lúdicos e experiências


teatrais desenvolvidas em sala de aula e registradas através de escritos e
imagens (fotos e filmagens), envolvendo a sistematização de referenciais
teóricos e de impressões e avaliações do grupo sobre o trabalho realizado.
Na análise dos exercícios e improvisações teatrais, em acordo com teóricos
como Peter Brook e Paulo Freire, dentre outros, a professora em formação
observou o alargamento dos referenciais dos alunos, tanto no que diz respeito
à qualidade de “estar em cena”, quanto à de “ser platéia”.

Nesse sentido, ela passou a entender a criação teatral como “possibilidade


de troca, de transformação das relações e de ampliação das visões de mundo”, ou seja,
passou a analisar o fenômeno teatral como “encontro entre seres humanos que se
aprendem mutuamente, que se enriquecem uns aos outros com suas experiências”.
Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

A bolsista Daniela Dutra Silveira, autora de O Valor da Memória na


Formação Docente, realizou um estudo sobre o papel da tomada de consciência
na trajetória dos próprios integrantes da pesquisa, ou seja, os professores-
pesquisadores, tendo por base empírica o Memorial, instrumento de coleta dos
dados que constituiu oportunidade de descrição e reflexão das histórias de
vida dos professores em formação.

No Memorial, as integrantes da pesquisa foram desafiadas a pensar


sobre suas experiências mais significativas em relação ao teatro e à educação,
resultando uma produção textual que foi analisada com o propósito de
entender como é que ocorre a tomada de consciência dos processos de
construção de conhecimento.

A base teórica das reflexões sobre esses processos constituiu-se


por princípios de autores, tais como, Piaget, Freire, Spolin e Ryngaert, cuja
leitura auxiliou a professora-pesquisadora a compreender os processos de
conhecimento em teatro.

Luciana Rodrigues Marcon, cujo trabalho intitulou-se Cantando na


Chuva: para uma pedagogia vocal no teatro, partiu da sua própria trajetória como
atriz, cantora e orientadora vocal na preparação de atores e investigou as
relações entre a formação do professor de teatro e a sua prática docente, tendo
por objetivo central problematizar os procedimentos do professor de teatro
ao propiciar um ambiente onde possam se desenvolver habilidades vocais que
fazem parte do aprendizado da iniciação teatral.

Partindo da idéia de que o trabalho coletivo com a voz evidencia a


necessidade de exposição individual e, por conseguinte, o relacionamento de
grupo, ela enfocou o papel da espontaneidade como fator de desenvolvimento
do trabalho vocal no processo de iniciação teatral.

Finalmente, no trabalho intitulado Professor e aluno construindo


identidades na prática teatral, a bolsista Marcia Kopczynski de Freitas Filha
pesquisou a relação que se estabelece entre os professores-pesquisadores e os
alunos no Laboratório de Prática Docente, com vistas à ampliação do processo
de ensino-aprendizagem de teatro.

Tendo por base empírica o planejamento, a execução e a avaliação das


atividades em jogo no Laboratório, ela partiu da hipótese que o processo de
formação docente relaciona-se ao tipo de relação que o professor estabelece
com os alunos e às escolhas das propostas pedagógicas, das condutas e das
abordagens das situações de sala de aula.
Dezembro 2008 - N° 10 Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos

67
U rdimento

Como aspectos analisados no seu trabalho, destacam-se: a construção


da identidade docente, que se dá, dentre outros fatores, através da relação
estabelecida entre professor e aluno; o espaço pedagógico como possibilidade
de construção de uma relação na qual os participantes (professor e alunos)
constituem-se pelo compartilhamento do conhecimento; e o princípio de que
quem ensina, aprende ao ensinar, e vice-versa, através do trabalho coletivo, da
aceitação do outro e da reflexão teórica, indissociável na prática.

Os aspectos relativos a essas investigações (sub-pesquisas) individuais


foram descritos em conjunto no Relatório apresentado no final de 2007,
elaborado pela Bolsista BIC/PROPESQ/UFRGS, Adriana Serrão Schneider,
e aprofundados individualmente nos Trabalhos de Conclusão do Curso de
Licenciatura em Teatro das bolsistas, constituindo ricas oportunidades de
discussão das questões levantadas pelos estudantes em particular.

A articulação dessas pesquisas entre si exigiu o desdobramento da


pesquisa numa segunda etapa, que constitui uma espécie de “meta-pesquisa”
dedicada à análise da complexidade do processo de conhecimento dos futuros
professores de teatro por meio da interpretação das suas construções teóricas
e da sua ação pedagógica, à luz da teoria.

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
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_______. [1974a] A tomada de consciência. São Paulo: Melhoramentos, Ed. Da
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SPOLIN, Viola. [1963] Improvisação para o teatro. São Paulo:
Perspectiva,1979.
Formação docente em teatro: pesquisa... Vera Lúcia Bertoni dos Santos Dezembro 2008 - Nº 10

68
U rdimento

Professor de Teatro: Existe?


Pensando a profissionalização
de quem ensina teatro

Vicente Concilio

O debate em torno da profissionalização docente e as possíveis


conseqüências das reivindicações que ela abarca são terreno fértil para
construirmos conexões entre questões amplas da educação e outras mais
específicas, concernentes à formação de professores de teatro.

Falar em professor de teatro já é assumir uma postura em busca da


especificidade de uma linguagem artística dentro de um contexto histórico e
político-educacional que só recentemente decidiu propor o fim do professor
polivalente no ensino da arte.

Apenas para nos situarmos, é preciso esclarecer que o ensino da arte


no contexto escolar apresenta um desenvolvimento bastante controverso,
podendo ser definido por alguns “marcos históricos”:

· A implantação da Educação Artística nas escolas brasileiras


na década de 70, a partir da Lei de Diretrizes e Bases 5692/71, inaugurando
a necessidade de formação de professores que atendessem à demanda
provocada pela nova matéria do currículo escolar básico.
· O surgimento das associações de arte-educadores, nos anos 80.
· O desenvolvimento das licenciaturas em artes, da pós-
graduação em artes e consequente avanço nos debates e difusão de conceitos
acerca das metodologias de ensino e conceitos de arte.

Dezembro 2008 - N° 10 Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio

69
U rdimento

· A luta pela obrigatoriedade do ensino da arte na escola,


garantida pela redação da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
1
Sobre este processo, Nacional 9394/961.
ver Situação Política
do Ensino de Arte · A elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais de
no Brasil no Fim dos Arte pelo MEC em 1997/98, que reconhece a arte como área de saber, com a
Anos 80, primeiro mesma relevância na formação educacional de áreas consagradas como Língua
capítulo do livro Portuguesa e Matemática, por exemplo.
A Imagem no
Ensino da Arte, de
Ana Mae Barbosa. Como podemos analisar, as primeiras preocupações com a formação do
professor de artes surgem concomitantes à implantação da Educação Artística
no contexto escolar, com a Lei 5692/71. Nasce aí o conceito de professor
polivalente, capaz de assumir as responsabilidades do ensino das diferentes
2
Hoje, essa terminolo- linguagens artísticas tanto do Primeiro quanto do Segundo Graus2.
gia foi substituída por
Ensino Fundamental
Dessa forma, os primeiros cursos de Licenciatura em Educação
(antigo Primeiro Grau)
e Ensino Médio (antigo Artística nascem de acordo com esse referencial, que só viria a ser
Segundo Grau). questionado na década seguinte, quando o fim da ditadura permitiu
reavaliar as conseqüências da formação polivalente, que supunha formar
um profissional capaz de ensinar dança, música, teatro e artes visuais em
contextos escolares que relegavam o ensino das artes ao posto de lazer, de
descanso ou de enfeite da escola.

Assim, presenciamos a deformação das aulas de Educação Artística


em aulas de artesanato ou de desenho geométrico, revelando a dificuldade da
escola (com seu sistema burocrático de avaliação e estrutura de funcionamento
em aulas de 50 minutos) em lidar com uma área que necessita assegurar um
mínimo de liberdade criadora.

Essa deformação revela outra conseqüência para o ensino de Educação


Artística: a tendência em se privilegiar as artes plásticas, algo que acontece até
hoje, mesmo nas universidades, onde ainda se confunde história da arte com
história das artes plásticas.

Diante desse panorama, o teatro sobreviveu dentro das escolas graças a


cursos extracurriculares. Todavia, uma nova situação tende a se configurar com
a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais e sua ênfase na necessidade
do ensino de Arte possibilitar o acesso às diversas linguagens artísticas.

Fora da escola, o ensino do teatro se afirmou na formação técnica


de atores e como importante aliado em propostas de ação cultural. Neste
sentido, destacam-se as propostas coordenadas por Secretarias de Cultura

Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio Dezembro 2008 - Nº 10

70
U rdimento

nos âmbitos municipal e estadual, normalmente justificadas pelo discurso da


democratização do fazer artístico como forma de combate à exclusão social.

Todo esse preâmbulo pretende deixar claro quais os tipos de área de


atuação profissional existentes para quem pretende ser professor de teatro.
Hoje, além dos cursos técnicos, a escola também se abre para o ensino de
teatro e as políticas culturais privilegiam o acesso ao saber teatral.

Por outro lado, um extenso estudo realizado por Santana (2000) revela
que existiam, à época, apenas 19 cursos de licenciatura em Teatro3 no Brasil. 3
A licenciatura em
Suas observações: Teatro privilegia a
formação artística
específica, como
Um primeiro detalhe a ser comentado refere-se à pequena no bacharelado em
quantidade de cursos existentes em todo o Brasil, considerando-se a interpretação ou
direção, por exemplo,
exigência constitucional quanto a oferta de disciplinas na área de Arte,
e é depois com-
dentre elas Teatro. A maioria dos cursos referentes a essa linguagem plementada com a
artística encontra-se na região Sudeste, sendo que apenas o Estado de formação pedagógica
São Paulo conta com cinco cursos, número idêntico à somatória dos dentro desta área, o
estados nordestinos. Essas estatísticas confirmam a existência de um que diverge da antiga
formação polivalente,
eixo Rio - São Paulo também no panorama do ensino teatral, em que se propunha a
sintonia com o mercado de artes em geral e a situação da produção ensinar a abordagem
teatral em particular, uma vez que ali concentram-se cerca de 39% dos pedagógica das
cursos existentes em todo o Brasil. (SANTANA, 2000: 130) diferentes áreas
artísticas (teatro,
música, dança e
Portanto, diante da escassez de profissionais licenciados em teatro, a artes plásticas),
situação que se configura é o preenchimento de vagas de ensino do teatro por preocupando-se em
trabalhar com uma
profissionais com pouca ou nenhuma formação pedagógica, mas muitas vezes habilitação específica
de reconhecida formação teatral. apenas no fim do curso.

Em outros casos, não se trata de escassez de profissionais licenciados,


mas de um forte preconceito que não consegue relacionar capacidade
artística com saber pedagógico, ignorando todo o processo de formação
do professor de teatro, como se isso reduzisse a formação do artista. Esse
tipo de preconceito nasce já dentro da própria universidade, e persegue o
licenciado por toda sua carreira artística, por uma série de enganos e idéias
equivocadas que pedem esclarecimento.

A discussão ganha mais vulto quando se toma consciência da diferença


de atuação entre um profissional que ensina Teatro dentro das aulas de Artes,
em contextos escolares, outros que atuam no ensino técnico profissionalizante,
formando atores, e outros que atuam nas mais diferentes formas de ação cultural.

Dezembro 2008 - N° 10 Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio

71
U rdimento

Se o contexto escolar aceita, por princípio regulador legislativo,


somente profissionais licenciados, o ensino profissionalizante e projetos de
ação cultural costumam prescindir da licenciatura como fator de seleção dos
profissionais que atuarão no ensino do teatro em contextos não-escolares. Por
que isso acontece? A quem interessa o não-reconhecimento dos especialistas
em ensino do teatro? Que possibilidades os professores de teatro encontram
para defender seus interesses de classe? Quais os possíveis problemas de
se reconhecer a formação profissional do professor de teatro diante de um
contexto mais amplo, que envolve a classe teatral como um todo?

Já que essas questões nasceram das idéias relacionadas com os


princípios da profissionalização docente, cabe esclarecer o que entendemos
por profissionalização, como isso é gerido pelas instâncias reguladoras
profissionais da arte teatral, para finalmente defendermos nossa idéia de
reconhecimento profissional dos professores de teatro.

A idéia de profissionalização carrega consigo uma série de valores


e aspirações que

... embora em princípio pareçam apenas referir-se às


características e qualidades da prática docente, não são sequer expressões
neutras. Escondem em seu bojo opções e visões de mundo, abrigando
imagens que normalmente são vividas como positivas e desejáveis e
que é necessário desvelar se quisermos fazer uma análise que vá além
das primeiras impressões. O tema do profissionalismo – como todos
os temas em educação – está longe de ser ingênuo ou desprovido de
agências mais ou menos escusas. (CONTRERAS, 2002:31)

Ou seja, ao utilizarmos o discurso da profissionalização em relação ao


professor de teatro, estamos fazendo uso de idéias como:

· A valorização salarial dos profissionais de ensino,


equiparando-o a outras categorias profissionais liberais;
· O reconhecimento da necessidade de formação inicial
e contínua que atenda não só aos interesses dos projetos pedagógicos
governamentais, mas que também ajam no sentido de ampliar a apropriação
de conhecimentos passíveis de aumentar o grau de consciência em relação ao
seu objeto e contexto de ensino;
· A necessidade de reconhecimento e valorização da categoria
e dos resultados de seu trabalho por camadas mais amplas da sociedade civil e
dos órgãos governamentais de toda ordem.
Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio Dezembro 2008 - Nº 10

72
U rdimento

Como foi dito, uma das características da profissionalização está relacionada


ao reconhecimento do exercício profissional pela sociedade em geral. Para que
isso ocorra, é preciso que ele seja garantido por uma legislação que o regularize,
que exista uma área de atuação estabelecida que interesse a outras parcelas da
sociedade, sendo portanto reconhecido através de seu valor de mercado.

O campo da pedagogia teatral é, hoje, estruturado em torno da


formação artística dos licenciados em teatro. Entende-se que o professor é, em
verdade, um artista que cria sua obra junto com seus alunos ao mesmo tempo
em que os auxilia na construção de saberes acerca da linguagem teatral.

Nesse sentido, a busca é de reconhecimento da área da licenciatura


como opção do artista interessado em desenvolver processos junto a estudantes
do ensino básico ou em projetos de ação cultural, e não como alternativa de
trabalho a artistas sem emprego.

Muitas vezes, desrespeita-se a licenciatura em teatro de duas formas:

1. Desprezando o valor artístico dos processos e produtos


criados pelos profissionais do ensino de teatro, o que, em última análise, é um
questionamento da qualidade da formação artística dos licenciados;
2. Duvidando do princípio democratizador de processos artísticos
e pedagógicos de qualidade, que ampliam o acesso de qualquer interessado aos
meios e códigos da linguagem teatral.

Se a dúvida com relação à qualidade da formação dos profissionais


se justificava no panorama inicial das faculdades de Educação Artística, que
habilitavam o profissional polivalente, hoje o quadro já dá fortes sinais de
modificação. A licenciatura em Educação Artística polivalente não mais se
justifica, perdendo espaço para licenciaturas que privilegiam a formação artística
e a pedagógica, pois é consenso que ambos os aspectos são complementares e
de valor equivalente na formação do futuro professor de teatro.

Por outro lado, há a necessidade de reconhecimento da profissionalização


do professor de teatro, que não existe nem mesmo como categoria profissional
no Ministério do Trabalho. O resultado é que um licenciado não pode
comprovar seu vínculo com a própria habilitação, já que ele sai formado
como professor de Educação Artística, e acaba impossibilitado de obter o
registro profissional nas funções de ator ou diretor mesmo quando, durante
a graduação, teve acesso a muito mais horas-aula em matéria específicas de
teatro que grande parte dos atores formados por colégios técnicos com pouco
ou nenhum compromisso com o ensino do teatro.
Dezembro 2008 - N° 10 Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio

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U rdimento

Nosso desejo é deixar clara a importância do ensino do teatro não só


em todos os níveis da instrução escolar, mas também em todos os contextos
de ação cultural que façam uso de seu potencial agregador. E para que essa
importância se configure, é preciso reafirmar que o exercício de sua prática
pedagógica quando feito sem cuidado, avaliação, parâmetros e qualidade,
compromete a sobrevivência desta linguagem.

Além disso, é essencial que um processo de ensino do teatro manifeste


seu compromisso com a qualidade da formação dos indivíduos, assumindo sua
responsabilidade para com o potencial artístico de qualquer interessado em
praticar arte, pois “a depuração estética da comunicação teatral é indissociável
do crescimento individual do jogador” (PUPO, 2001: 182).

Assim, é preciso garantir maiores possibilidades de acesso à


licenciatura, ainda pouco asseguradas por nossas universidades públicas,
e quase inexistentes em universidades privadas. Só assim o profissional do
ensino de teatro terá uma formação condizente com as necessidades de sua
função, num momento em que a educação como um todo reavalia o seu papel e
4
"As tradições ‘des- busca na arte4 respostas para solucionar algumas de suas inquietações atuais.
viantes’ da formação
artística, bem como do
treino físico e da apren-
Referências Bibliográficas
dizagem profissional,
contêm, no seu melhor, ALMEIDA, Maria Isabel de. O Sindicato como Instância Formadora dos
as características de Professores: Novas Contribuições ao Desenvolvimento Profissional. Tese de
um practicum reflexivo.
Doutorado, FEUSP, 1999, pp 20-53.
Implicam um tipo de
aprender fazendo, em BARBOSA, Ana Mae. “Situação Política do Ensino da Arte no Brasil no Fim dos
que os alunos começam Anos Oitenta”. IN: A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva, 2002, 5 ed.
a praticar, juntamente
com os que estão em BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São
idêntica situação, mes- Paulo: Cortez, 2002.
mo antes de compreen- BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. Ministério da Educação.
derem racionalmente
o que estão a fazer". Secretaria da Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Esta citação, extraída CONTRERAS, José. A Autonomia de Professores. São Paulo: Cortez, 2002.
de um texto de Schon,
Formar Professores CUNHA, Maria Isabel. “Profissionalização Docente: Contradições e
como Profissionais Perspectivas”. IN: Desmistificando a Profissionalização do Magistério. Campinas:
Reflexivos, ilustra uma Papirus, 1999.
das idéias recorrentes
com relação ao tipo
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. O Lúdico e a Construção do Sentido. Revista
de transmissão de Sala Preta n.1. Departamento de Artes Cênicas, ECA-USP, São Paulo, 2001.
saberes artísticos que, SANTANA, Arão Paranaguá de. Teatro e Formação de Professores. São Luiz,
por ser bem sucedido,
serve como paradigma
MA: EDUFMA, 2000.
a outras áreas do SCHON, Donald A. “Formar Professores como Profissionais Reflexivos”. IN:
saber escolar. NÓVOA (org.) Os Professores e sua Formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
Professor de Teatro: Existe? Pensando a profissionalização... Vicente Concilio Dezembro 2008 - Nº 10

74
U rdimento

Mediação Teatral: anotações sobre o


Projeto Formação de Público

Flávio Desgranges1

Procurarei tecer aqui um breve relato do Projeto Formação de Público,


do qual participei como orientador em 2004, justamente o seu último ano de
existência. O projeto era uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura
de São Paulo e fora criado em 2001, sendo extinto, como se tornou usual em
nosso país, assim que a nova gestão assumiu a prefeitura, em 2005. Um novo
governo, como bem sabemos, faz terra arrasada das conquistas engendradas
na gestão anterior. Mas podemos aproveitar espaços de reflexão como este
para manter vivas algumas experiências realizadas, evitando em parte - em
pequena parte talvez - que os ventos da pretensa novidade continuem a varrer
e a transformar em caco a nossa história.
Importa ressaltar que, em cada um dos quatro anos de duração do
projeto, os procedimentos artísticos e pedagógicos adotados foram alterados
completamente. Estas alterações foram decorrentes de necessidades observadas
pelos coordenadores, com o intuito de ampliar e aprimorar as suas ações. O que,
não posso deixar de notar, convida a que se faça, em outro momento, um estudo
detalhado dos percursos deste projeto, das tantas descobertas e dificuldades
encontradas em sua trajetória. A minha opção por abordar a experiência 1
Professor do
de 2004 se dá especialmente porque não participei das outras versões do Departamento de
projeto, e não poderia apresentá-las com conhecimento de causa. Neste ano Artes Cênicas da USP,
o Formação contou também com a orientação de Luiz Fernando Ramos, de autor dos seguintes
livros: "A Pedagogia
Silvia Fernandes e de Flávio Aguiar, e com a curadoria de Gianni Ratto. Além do Espectador",
da atuação de sete coordenadores e de quarenta e dois monitores. Ed. Hucitec, 2003;
"Pedagogia do
Esclareço ainda que selecionei alguns aspectos da nossa atuação para Teatro: provocação
que possamos pensar a partir destes recortes, já que a iniciativa era bastante e dialogismo", Ed.
grandiosa em suas dimensões, e talvez também em suas pretensões. Em 2004, Hucitec, 2006.

Dezembro 2008 - N° 10 Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges

75
U rdimento

participaram da ação um total de 305 escolas municipais, com um público


estimado de 257.000 alunos. Eram 11 grupos teatrais que circulavam com seus
espetáculos, apresentados durante o ano letivo, às terças e quintas-feiras às 8
horas da noite, para jovens e adultos do ensino médio. Nos finais de semana,
uma vez por mês, as encenações eram abertas para o público em geral. Nesta
versão do projeto os espetáculos foram apresentados nos teatros dos CEUs
(Centros Educacionais Unificados), recém-inaugurados na ocasião. Foram 21
CEUs construídos pela prefeitura na periferia da cidade, e em cada unidade
uma sala de teatro muito bem aparelhada, melhor equipada do que a grande
maioria dos teatros de São Paulo. De maneira que apresentar espetáculos
teatrais em condições tais - especialmente para uma parcela da população que,
em grande parte, nunca havia entrado em uma sala de espetáculo, ou mesmo
visto uma encenação teatral em qualquer espaço alternativo -, constituía-se
em um desafio bastante estimulante.

O conceito de mediação teatral aqui trabalhado dá conta de qualquer


ação que ocupe o que por alguns autores é chamado de terceiro espaço,
aquele existente entre a produção e a recepção (Deldime, 1998). Podemos
compreender a mediação teatral, no âmbito de projetos que visem a formação
de público, como qualquer iniciativa que viabilize o acesso dos espectadores
ao teatro, tanto o acesso físico, quanto o acesso lingüístico. O acesso físico
constitui-se na viabilização da ida do público ao teatro. Ou vice-versa, da ida
do teatro até o público, ou seja, na difusão de espetáculos por regiões social
e economicamente desfavorecidas. Assim, podemos considerar facilitação do
acesso físico iniciativas como: promoção e barateamento dos ingressos; ampla
circulação das produções culturais pelos veículos de comunicação; campanhas
publicitárias; a difusão das produções por regiões geográfica e socialmente
afastadas; disponibilização adequada de transportes; construção de centros
culturais na periferia das cidades; segurança pública, garantindo o ir e vir dos
espectadores; entre tantos outros.

O acesso lingüístico, como o próprio termo sugere, opera nos terrenos da


linguagem. E trata não apenas da promoção, do estímulo, mas especialmente da
constituição do percurso relacional do espectador com a cena teatral, da conquista
de sua autonomia crítica e criativa. Autonomia não apenas na concepção desta
relação, na definição de um percurso próprio de aproximação com os elementos
artísticos colocados em jogo e com os variados aspectos sensíveis e reflexivos
suscitados pela cena, mas também na constituição de critérios de interpretação.
A organização deste potencial de sentidos que surge na experiência artística,
a elaboração de significações que constituem o ato pessoal e intransferível do
espectador, como sabemos, não se limitam a um talento natural, mas precisam

Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges Dezembro 2008 - Nº 10

76
U rdimento

ser antes de tudo compreendidos como conquistas culturais. Conquistas nem


um tanto imediatas ou evidentes, mas que, ao contrário, solicitam esforço para
se efetivar. O que não quer dizer que o prazer esteja fora deste percurso. Com
certeza não, mas o próprio prazer precisa ser também tomado como objeto de
análise. De que prazer estamos falando afinal?

A distinção entre acesso físico e lingüístico pode facilitar a compreensão


da diferença entre pensar a formação de público e a formação de espectadores.
Podemos afirmar, neste sentido, que um projeto que cuide somente (o que não
é pouco) da viabilização do acesso físico dos espectadores ao teatro, pode ser
considerado como um projeto de formação de público teatral, considerando
este em uma visada generalizante, almejando, assim, a ampliação dos
freqüentadores em potencial, criando condições para o estabelecimento, em
determinada parcela da população, do hábito de ir ao teatro. Por sua vez, um
projeto de formação de espectadores visa não apenas a facilitação do acesso
físico, mas também, e principalmente, a do acesso lingüístico, pois quer
trabalhar com as individualidades, com as subjetividades, com as conquistas
efetivadas por cada espectador no processo em curso.

O Projeto Formação de Público, em seu último ano de realização, se


pretendia estabelecer como um projeto de formação de espectadores.

Esta noção de formação de espectadores tem em Bertolt Brecht uma


figura chave. O encenador alemão compreendia esta apreensão do fazer teatral
pelos espectadores como democratização dos meios de produção, possibilitando
efetivar o ato do espectador como um ato artístico, autoral, produtivo. Os
procedimentos de apropriação da linguagem eram por Brecht denominados
como a pequena pedagogia do teatro, e podem ser observados tanto em suas
investigações acerca do teatro de espetáculo - e alguns dos procedimentos
adotados em seu teatro épico (Rosenfeld, 1985) podem ser destacados neste
âmbito, especialmente aqueles que visavam o descortinamento do aparato
teatral –, quanto nas experimentações por ele efetivadas no âmbito da peça
didática (Koudela, 1991), que estavam menos preocupadas com a montagem de
espetáculos, mas calcadas na própria investigação cênica dos atuantes.

A minha intenção aqui (e assim também se dava lá, no percurso do


projeto) é tratar justamente dos procedimentos artísticos e pedagógicos de
mediação, adotados para favorecer o encontro do espectador com a cena teatral.
Contudo, quando o projeto entrou em ação em 2004, o que se viu foi a grande
dificuldade que enfrentávamos ante a hercúlea tarefa de organizar aquela
complicada logística das tantas escolas, grupos teatrais, monitores, agentes

Dezembro 2008 - N° 10 Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges

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U rdimento

culturais dos CEUs, empresas de transportes, e demais parceiros envolvidos


nesta operação. Parecia que fazer funcionar em sintonia os tantos envolvidos
no projeto tomava conta de tudo. Aquilo que parece simples, quando se pensa
em refinados procedimentos de mediação, tornava-se justamente o principal
impedimento, e antes de superar esta etapa nada poderia acontecer de fato.
Desta maneira, os primeiros desafios eram responder a questões como: em
uma cidade de trânsito complicado como São Paulo, de que maneira cuidar
para que os ônibus não chegassem atrasados?; quando uma das três escolas
que recebíamos por sessão atrasava, o melhor seria começar ou esperar?;
interrompíamos a cena para a escola atrasada entrar, ou tentávamos fazer com
que cento e vinte pessoas entrassem em silêncio na sala? O que atrapalharia
menos o evento?; no andar de cima ao da sala de teatro foi construída, em
cada uma das unidades dos CEUs, uma quadra poliesportiva, e o som vazava
embaixo (imaginem um jogo de basquete com o barulho da bola percorrendo
o teto do teatro), como conseguir articular a necessária interrupção desta
importante atividade de lazer oferecida aos alunos e moradores daquela região?;
os seguranças da empresa contratada para zelar pelo espaço, posicionados no
saguão do teatro, não acostumados com a sutileza do acontecimento artístico-
teatral, trocavam informações por seus radiotransmissores em altos brados,
e como convencê-los de que, ao invés de ajudar, eles estavam atrapalhando
o evento?; o que fazer com os quatrocentos espectadores em um dia em que
havia um imprevisto, como quando a longa escada de regulagem dos refletores
do palco fora roubada e o grupo teatral não tinha como preparar a luz para o
seu espetáculo?; o que fazer com o espectador que chegava bêbado ou armado
ao teatro?; como estabelecer uma parceria fina com as escolas, de maneira que
os monitores pudessem ser recebidos de forma respeitosa e com condições
adequadas para a proposição das oficinas de desmontagem, oferecidas aos
alunos antes e depois de cada espetáculo?

Como vimos, ainda não estamos falando mais especificamente dos


procedimentos pedagógicos adotados, e sim de questões que poderíamos
qualificar como operacionais. Porém, todas de suma importância para a
realização da experiência artística.

Há ainda uma questão crucial para a efetivação de um projeto


assim desenhado, que está relacionada com a intimidade que o grupo
teatral participante tem ou não com este público, tão distinto daquele que
freqüenta as salas de espetáculo nas regiões centrais da cidade. Estávamos
percorrendo um território que não necessariamente todos os grupos teatrais
conheciam. Um território geográfico, um território social, e mesmo um
território constituído de maneira característica na dimensão do imaginário.
Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

E o estranhamento se apresentava na própria expectativa que a platéia trazia


para o evento, percebida nas reações, nas conversas por vezes ruidosas, nos
eventuais apupos, gritos, nas manifestações inesperadas. Alguns dos grupos
teatrais demonstravam saber se situar neste território - especialmente
aqueles que tinham, de uma maneira ou outra, a sua investigação artística
embrenhada neste universo -, outros não. E aqui não se faz, necessariamente,
um juízo de valor das produções, mas aponta-se para a necessária afinidade
dos artistas com um projeto como este.

Isto permite que nos debrucemos sobre a conduta da platéia durante o


evento. Como possibilitar que os espectadores percebam a hora de falar e a de
silenciar? O silêncio pode ser também considerado como uma conquista, nem
imediata, nem evidente. E que, portanto, não pode ser imposta. A imposição
do silêncio, em geral, se torna muito pouco produtiva para as ambições
de um projeto de formação de espectadores. Trata-se de uma questão que
definitivamente não se resolve chamando a segurança e colocando para fora
quem estiver se manifestando durante a cena. Pouco adianta também que os
professores repreendam fortemente seus alunos, ou que os artistas interrompam
a apresentação para pregar lições de boa conduta ao público presente. Ressalte-
se especialmente que a atitude concentrada destes espectadores na sala - e isto
estava claro para nós - não se relaciona somente com a atuação dos artistas,
mas com a importante ação desempenhada pelos monitores (ou mesmo pelos
professores, a depender de quem organize os procedimentos de mediação), na
preparação e sensibilização para o encontro. Podia-se notar que uma monitoria
tinha sido bem feita na própria realização do espetáculo.

Outro aspecto importante que se podia observar era que os espectadores


que tinham participado das versões anteriores do projeto, diferente dos que
o integravam pela primeira vez, se mostravam mais afeitos ao encontro,
passeavam mais à vontade pela leitura das cenas e tinham descoberto o prazer
do silêncio, quando este se mostrava necessário.

O Formação de Público desempenhava duas ações educacionais


simultâneas. Uma com a perspectiva de médio prazo, que visava a formação
continuada em teatro dos professores das escolas participantes, e que tinha o
intuito de que os próprios educadores assumissem futuramente a mediação
pedagógica dos espetáculos. Outra com a perspectiva de atuação imediata, e
que estava voltada para o próprio ato de leitura dos espectadores, que envolvia
oficinas de preparação e de prolongamento para cada um dos três espetáculos
que cada escola assistia durante o ano, além dos debates com os artistas no
final de cada apresentação.

Dezembro 2008 - N° 10 Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges

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U rdimento

O curso para os professores

O curso oferecido aos professores das escolas tinha como objetivo


prepará-los para que, aprimorando seu conhecimento sobre teatro, pudessem
mediar o encontro de seus alunos com esta arte. As oficinas de formação
continuada estariam centradas, a partir da prática de jogos de improvisação
teatral, no estudo dos variados elementos de significação presentes em
uma encenação, motivando os participantes a investigarem, debaterem e
apreenderem as possibilidades lingüísticas da arte teatral. De maneira que
o processo fosse norteado pela experiência prática e reflexiva, estimulando
os professores a experimentarem e analisarem as diversas possibilidades de
comunicação que o teatro oferece, motivando-os a assumirem-se enquanto
espectadores plenos e formadores capacitados. A prática teatral proposta
nas oficinas do curso e na freqüentação aos espetáculos, contudo, almejava
especialmente criar nos educadores o gosto por teatro, reconhecendo-o como
espaço efetivo e prazeroso de produção de conhecimentos.
O debate com os artistas

Após a apresentação dos espetáculos, integrantes do grupo teatral


colocavam-se no palco para conversar com os espectadores, a quem era
proposto que fizessem questões ou comentários sobre a encenação. Dois
objetivos principais poderiam ser ressaltados pelos artistas - que aqui
precisavam posicionar-se como educadores - e pelos monitores, que mediavam
este encontro: a revelação dos meandros da arte teatral, e o convite a que os
espectadores formulassem concepções pessoais da cena.

Assim, nesse diálogo com o público, os artistas poderiam, destacando


o primeiro dos objetivos citados, trazer informações relevantes acerca do
processo e dos procedimentos adotados para a estruturação do espetáculo,
possibilitando aos participantes o acesso a um conhecimento específico acerca
do fazer artístico-teatral: quanto tempo leva para se ensaiar uma peça?; como
se forma um artista teatral?; um ator faz cursos? Que cursos?; qual a diferença
de um ator de televisão para um ator de teatro?; quantos artistas participam
de uma montagem teatral?; além dos atores, que outras funções existem na
construção da cena?; como e quando se monta o cenário? E assim por diante,
tornando os participantes do projeto mais íntimos do processo de formação do
artista e de criação do espetáculo.

O outro objetivo a ser enfocado no debate seria o de estimular os


participantes do projeto a produzirem interpretações pessoais acerca dos
acontecimentos cênicos. Freqüentemente, os espectadores pediam que os
artistas lhes explicassem a opção por um ou outro signo cênico: por que
Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

vocês usaram tal elemento?; o que vocês quiseram dizer com aquilo?; qual a
mensagem que vocês quiseram passar? Sugeria-se aos monitores e artistas que,
nesse caso, devolvessem a pergunta, convidando os espectadores a elaborarem
respostas próprias às provocações semióticas feitas pelos artistas na encenação.
Mesmo que os participantes não formulassem as suas interpretações para
a cena no momento do debate, poderiam levar a questão para casa, ou para
debater com seus companheiros após a peça, ou com os professores na escola,
ou mesmo nas oficinas de prolongamento propostas pelos monitores alguns
dias depois. Além do que, os integrantes do projeto, tanto alunos quanto
professores das escolas, poderiam levar consigo a certeza de que cabe a eles e
a mais ninguém a tarefa de efetivar uma compreensão da experiência teatral,
ainda que esta possa se enriquecer muito na conversa com outros. De maneira
que os participantes estivessem seguros que a palavra de cada um e a sua
formulação crítica e criativa não só estaria “autorizada”, mas seria fomentada
durante todo o processo. E conquistassem a noção de que, por mais relevante
que seja, a resposta do outro não lhes serve completamente nesse caso, pois o
ato do espectador é necessariamente autoral, e exige uma produção pessoal.

As oficinas de desmontagem

Antes e depois da freqüentação aos espetáculos, os monitores iam até


as escolas para realizar oficinas teatrais com os espectadores, tendo em vista
tanto a sensibilização prévia para o evento, quanto o estímulo para a efetivação
de uma leitura acurada da obra assistida.

Durante o processo nas oficinas, os mediadores propunham atividades


específicas, voltadas para a exploração de determinado espetáculo, que, na
ocasião, seria assistido pelo grupo. Optamos por compreender essas abordagens
como ensaios de desmontagem dos espetáculos, em que algumas linhas de
investigação seriam selecionadas para serem especialmente trabalhadas. A
perspectiva da desmontagem está apoiada na idéia de se efetivar uma arte do
espectador, tratando este como um artista em processo, propondo-lhe jogos
de improvisação semelhantes aos desenvolvidos pelo grupo teatral durante a
montagem. O que pressupõe a implementação de procedimentos que tornem
os participantes aptos para interpretar (compreender artisticamente), tal
como os artistas implementam procedimentos para interpretar (conceber
artisticamente).

Esses ensaios de desmontagem eram desenvolvidos antes e depois dos


espetáculos. Nos ensaios de preparação podiam ser selecionados e enfocados um
ou mais aspectos lingüísticos que tivessem especial relevância em determinada
montagem (a narrativa, os objetos cênicos, as canções, o gestual dos atores,
Dezembro 2008 - N° 10 Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges

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U rdimento

a iluminação etc.), visando uma aproximação prévia com o universo cênico


constituinte daquela encenação. Os ensaios preparatórios tinham o intuito de
oferecer vetores de análise para guiar os espectadores em sua leitura da cena - o
que não significa fornecer uma análise previamente construída -, e sensibilizar
a percepção dos participantes para a riqueza das resoluções cênicas levadas
à cena. Ou para permitir que os espectadores, que experimentaram soluções
próprias ao se depararem com aqueles elementos de linguagem nas oficinas,
pudessem chegar a conclusão de que soluções cênicas diferentes (ou mesmo
mais pertinentes) seriam possíveis naquele espetáculo.

Os ensaios de prolongamento, por sua vez, tinham o intuito de provocar


uma interpretação pessoal dos diversos aspectos observados no espetáculo
assistido pelo grupo, e estruturavam-se por procedimentos que convidassem
os espectadores a criar cenas de elaboração compreensiva. Ou seja,
prolongamentos criativos que buscavam dar conta das questões propostas pela
encenação. Os espectadores eram convidados a conceber breves atos artísticos,
que não se estruturavam enquanto continuidade do espetáculo mas enquanto
exercícios interpretativos da cena em questão.

O importante, podemos concluir, não é somente o que a cena quer


dizer, mas o que cada observador pode elaborar artisticamente a partir
daquilo que a cena diz. Portanto, a função do mediador teatral, em oficina,
seria a de estimular o participante a manifestar-se criativamente sobre a cena,
efetivando a (co) autoria que lhe cabe, elaborando compreensões que vão
sendo construídas para além da mera análise fria e racional do que viu. O que
2
Estamos aqui importa são os contra-lances2 criados pelo espectador, que indicam formulações
compreendendo a compreensivas que concretizam o que se espera dele: a efetivação de um ato
relação do autor
com o espectador
produtivo, autoral.
como um jogo de
linguagem, em que Os exercícios de mediação, propostos antes e depois do espetáculo,
o primeiro age, poderiam tornar perceptível para o participante do projeto a perspectiva
desferindo alguns
lances, e o segundo necessariamente criativa de seu papel, evidenciando a própria função artística
reage, formulando do espectador no evento teatral.
contra-lances.
Referências Bibliográficas

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
DELDIME, Roger. Introduction. In: La médiation théâtrale. Actes du
5e. Congrès internacional de Sociologie du théâtre. Morlanwelz,
Lansman, p. 11-12, 1998.

Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo, Hucitec, 2003.


_______. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo, Hucitec, 2006.
KOUDELA, I.D. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo, Perspectiva, 1991.
ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo, Perspectiva, 1985.

Dezembro 2008 - N° 10 Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação... Flávio Desgranges

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Dezembro 2008 - Nº 10
U rdimento

Acerca do teatro e dos festivais estudantis

Joaquim Gama1

(...) não é propriamente fixar uma forma rígida de


representação – muito pelo contrário! (...) há que provocar e
explicitar alterações, e, em lugar dos atos de criação esporádicos e
anárquicos, deverão surgir processos de criação que empreendam,
indiferentemente, alterações graduais ou subidas.
Bertolt Brecht

Este texto é fruto das reflexões instauradas no 1º Colóquio sobre


Teatro Estudantil, realizado na Universidade de Sorocaba, no interior do
Estado de São Paulo, em 18 de setembro de 2007, sob a curadoria da Profa.
Dra. Ingrid Dormien Koudela. Nesse evento houve a participação dos alunos
do curso de licenciatura de Teatro/Arte Educação, professores da universidade
e artistas integrantes do 6° Festival Estudantil SESI de Teatro.

O trabalho tem como objetivo apresentar as reflexões que surgiram


durante o Colóquio e propor ações de âmbito artístico-pedagógico que
possibilitem ao leitor pensar na importância do Teatro Estudantil e na 1
Professor univer-
organização dos festivais estudantis. sitário de teatro da
Universidade Sorocaba
- SP e diretor do
As questões que conduziram esta reflexão foram: Grupo Experimental
de Teatro - GET, do
- Como se dá a formação dos atores no Teatro Estudantil? Teatro Humboldt - SP.
Atualmente desenvolve
- A instrumentalização do teatro na escola, muitas vezes, sem o conhecimento pesquisas na área
da pedagogia do
pedagógico do fazer artístico, é presente também no Teatro Estudantil? teatro,em nível de
pós-graduação,
- Em que universo está circunscrito o Teatro Estudantil? doutorado, na ECA/USP.
Dezembro 2008 - N° 10 Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama

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U rdimento

Na perspectiva da última questão, Ingrid Koudela abriu o evento


destacando as especificidades do Teatro Estudantil e do Teatro Amador.
Em geral, a denominação Teatro Amador sempre causou polêmica. Alguns
autores consideram tal nomenclatura pejorativa para o trabalho de artistas
que realizam suas propostas cênicas às custas da boa vontade e do trabalho
intenso dos participantes. Tal denominação, normalmente, vem acompanhada
da idéia de uma produção com qualidade inferior às companhias profissionais
de teatro e isso não pode ser tomado como regra. Sabe-se que muitos dos atores
profissionais são oriundos do movimento de Teatro Amador e conseguiram se
destacar justamente pela sua capacidade de experimentação e criação artística.
É o que se observa nos dizeres de Paschoal Carlos Magno, “(...) um teatro só é
autêntico quando revela ou leva à cena os autores de seu país, quando descobre,
compara ou estimula os talentos novos e os jovens. Daí a importância do teatro
amador” (In: FAYA, 2005, p. 177).

Aqui, cabe salientar que se a utilização do termo amador, atrelado ao


teatro, sempre foi acompanhado de juízo de valor depreciativo e preconceituoso
não podemos perder de vista que o Teatro Amador, notadamente por
intermédio dos festivais, tiveram e têm a tarefa de propor, reinventar e criar
novas combinações cênicas que não só trazem um frescor para o fazer teatral,
como também realimentam as companhias profissionais.

Convém destacar que o Teatro Amador se configura como um


laboratório de experiência e investigação teatral. Assim, possibilita também
aos profissionais da área teatro lançar mão de propostas que já tenham sido
experimentadas e colocadas à prova do público. O fato de trabalharem sob a
égide da diversidade, os grupos amadores têm justamente um campo propício
para investir na experimentação teatral o que resulta, conseqüentemente,
numa maior liberdade de ação artística.

Já o Teatro Estudantil tem as mesmas possibilidades do fazer


artístico do Teatro Amador, porém, está circunscrito no âmbito do
universo estudantil. Enquanto o Teatro Amador congrega indivíduos
dos mais variados níveis sociais, o Teatro Estudantil se caracteriza pela
disposição de um grupo de estudantes que elegem o teatro como expressão
e comunicação artística. Assim, claro está que o Teatro Estudantil se
insere nas perspectivas do Teatro Amador, entretanto está voltado para
estudantes e é vinculado a uma instituição de ensino. Vale insistir que o
Teatro Estudantil não é Teatro Infantil, no entanto, pode ser realizado por
crianças. Ele pode contemplar produções realizadas por crianças, mas não
é a sua única configuração, nem tampouco se dirige apenas a uma platéia de
crianças e/ou estudantil.
Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama Dezembro 2008 - Nº 10

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Por esse viés, tanto o Teatro Amador como o Teatro Estudantil trazem
possibilidades de lançar um olhar inovador e mais investigativo sobre a cena.
Se, algumas vezes, confundimos Teatro Amador com o Teatro Estudantil, sem
ter muita clareza de suas fronteiras, ambos são marcados por uma mesma
característica: a busca por novas convenções teatrais (HIRSZMAN, 1980).

Dentro desse espectro, os festivais assumem um papel importante para


a difusão de pesquisas cênicas e para o surgimento de novas dramaturgias. A
descaracterização desse espaço pode se constituir num hiato irreparável para o teatro.

O Teatro Estudantil sempre se mostrou ativo e presente na cultura brasileira,


e isso fica evidente nos diversos momentos da história do teatro brasileiro. No
século XX, cabe destacar diversos movimentos, entre eles, o ocorrido na faculdade
do Largo São Francisco, em São Paulo, na década de 50. Nesse espaço transitaram
nomes significativos do teatro nacional, como o dramaturgo e encenador José Celso
Martinez Correa – Zé Celso, que, hoje, dirige o Teatro Oficina.

É fundamental apontar que esse período foi marcado pela notoriedade


do Teatro Estudantil. Em 1938, no Rio de Janeiro, surge o Teatro Estudantil
do Brasil - TEB, fundado por Paschoal Carlos Magno. As propostas desse
grupo foram iniciadas em 1933, ainda na Casa do Estudante do Brasil. Com
a montagem de Hamlet, de William Shakespeare, o grupo propôs um novo
padrão cênico e, junto com o grupo Os Comediantes, criado no mesmo ano,
formam a linha de frente da renovação cênica no país (HIRSZMAN, 1980).
O mesmo se seguiu com outros grupos como: o Teatro Acadêmico (1939), de
Mário Brassini, transformado em Teatro Universitário – TU (com o apoio da
União Nacional dos Estudantes, UNE); Teatro do Estudante de Pernambuco, TEP
(1946); Teatro de Amadores de Pernambuco, TAP; Teatro Popular do Nordeste,
TPN, sob o apoio de Hermilo Borba Filho.

Já em 1955, temos a criação do Centro Popular de Cultura da UNE –


CPC por todo Brasil. Nessa época, São Paulo registra o surgimento do Teatro
Paulista do Estudante (1957), que se funde com o Teatro de Arena; A Oficina,
que deu origem ao Teatro Oficina em 1959. Há ainda o Teatro da Universidade
Católica - TUCA, na PUC/SP; o Teatro dos Universitários do Mackenzie –
TEMA; o Teatro do Sedes Sapientie - TESE (1965); o Teatro dos Universitários
de São Paulo - TUSP, ligado ao DCE central da USP (1967).

No Rio de Janeiro, em 1965, temos o Teatro Universitário Carioca,


TUCA/Rio, dirigido por Amir Haddad. Vale ainda relacionar diversos grupos
que nasceram por outras regiões do Brasil e tiveram participações artísticas
de relevância em vários festivais.
Dezembro 2008 - N° 10 Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama

87
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1
A Escola nas Férias Durante o período da ditadura, o Teatro Estudantil, vindo das
é um projeto que se universidades, assumiu um papel de resistência política, transformando
propõe oferecer uma
série de experiên-
São Paulo no epicentro do movimento das produções estudantis. A partir
cias aos alunos, dos festivais, essas produções se transformaram num dos mais importantes
envolvendo diversos espaços de discussão política e artística.
núcleos temáticos e
atividades artísticas.
Os festivais estudantis foram responsáveis, no Brasil, pela renovação
O Programa Escola da cena teatral, atingindo:
da Família consiste
em abrir as escolas
da Rede Estadual de (...) não apenas os meios expressivos do palco como, de modo
Ensino de São Paulo,
aos finais de semana,
enfático, os padrões de gosto e de consumo da atividade teatral,
transformando-as em ampliando consideravelmente os locais de oferta. Optando por um
centro de convivên- repertório que dificilmente um conjunto profissional ousaria montar,
cia, com atividades ofereceu ao espectador um grande leque de proposições artísticas. Do
voltadas às áreas es-
Shakespeare de 1938 chega-se ao Brecht de 1968, paulatinamente
portivas, culturais, de
saúde e de trabalho. percorrendo as etapas artísticas mais significativas da arte cênica
ocidental. (HIRSZMAN, 1980, p. 49-52)
A Escola de Tempo
Integral tem como
objetivo a aprendi- O animador cultural, produtor, crítico, autor e diretor de teatro
zagem baseada em
vivências e experiên-
Paschoal Carlos Magno estruturou o primeiro Festival de Teatro
cias organizadas por Estudantil, no Recife, ainda na década de 40. Seus festivais iam além de uma
meio de projetos ou programação de espetáculos vindos de todo o país; constituiam-se, acima de
temas geradores. Dá- tudo, em encontros teatrais riquíssimos. Esses festivais promoviam inúmeras
se ênfase a uma área
discussões, mesas redondas, aulas, palestras e exposições, cumprindo também
ou a um tema do
conhecimento como a função pedagógica e didática na formação de público, com a intenção de
eixo de organização despertar novos interessados no fazer teatral.
para o desenvolvi-
mento das habilida-
des e competências
Hoje, os festivais de Teatro Estudantil possuem uma demanda de
dos alunos. Nesse grupos oriundos de escolas de Educação Básica. Com a obrigatoriedade
caso, a arte se cons- do ensino da Arte e a inclusão do teatro nas atividades extracurriculares,
titui num dos projetos muitos grupos surgiram, tendo como atores crianças e adolescentes. Nesse
aglutinadores do
conhecimento e a co-
sentido, o professor de teatro assume o papel de encenador e passa a ter
nexão para o ensino. como perspectiva a montagem de espetáculos. O processo de montagem
Destaca-se nessa de uma encenação torna-se o campo didático e experimental para a
proposta uma meto- aprendizagem teatral.
dologia participativa
que envolve a vida
prática comunitária, a Numa relação colaborativa, professores-encenadores e alunos-
solução de problemas atuantes buscam focalizar seus esforços na descoberta de novos modos de
que inquietam ou fazer teatro, em insights e em processos que se configuram num modo próprio
estimulam a vida coti-
diana dos alunos.
para aprender e fazer teatro.

Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama Dezembro 2008 - Nº 10

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Em São Paulo, nas escolas públicas, há vários grupos trabalhando a Em geral, uma parte
partir dessa perspectiva. Devem-se essas ações também às implementações do dia é destinada
aos estudos das dis-
realizadas pela Secretaria Estadual de Educação, que abrangem oficinas de ciplinas que compõem
teatro em Escolas de Tempo Integral, projetos desenvolvidos no período de férias o núcleo da matriz
e no programa Escola da Família2. Dentro desse conjunto de ações, destaca-se curricular nacional
o lançamento de um portal eletrônico em julho de 2008, para arregimentar as e a outra parcela do
dia é destinada ao
propostas do projeto Escola em Cena. O objetivo é se apropriar dos recursos
desenvolvimento de
da multimídia para lançar ações artísticas e pedagógicas, que envolvem idas ao projetos.
teatro e textos sobre o fazer teatral. O portal Currículo é cultura pretende atingir
Cabe dizer que uma
professores e alunos, propondo a ampliação dos espaços de aprendizagem
avaliação mais atenta
dentro da escola3. para essas propos-
tas, indica problemas
Dentro dessa visão é possível afirmar que a escola é um espaço que dificultam a rea-
de potencialidade para o fazer teatral. E mais, investir em iniciativas que lização de trabalhos
promovam a montagem de espetáculos por estudantes, traz a oportunidade na área teatral. Esses
problemas vão desde
de ampliar as atividades teatrais dentro da escola, que, muitas vezes, estão
o escasso tempo
circunscritas num universo meramente instrumental. destinado às aulas
de Teatro até às
Observa-se, também, que, muitas vezes, o teatro na escola está presente condições físicas dos
apenas como instrumento para o ensino e a aprendizagem de conteúdos estabelecimentos de
ensino.
de outras disciplinas e é conduzido de forma autoritária, desvinculado da
experiência artística dos alunos. 3
O endereço eletrô-
nico desse portal é
culturaecurriculo.
Desse modo, a perspectiva instrumental do teatro não precisa ser
edunet.sp.gov.br.
negada e pode ser ampliada já que o teatro é eficiente no processo de ensino e
aprendizagem de determinados conteúdos escolares. Portanto, mesmo diante
de uma proposta teatral instrumentalista, os alunos devem ser encorajados
a contribuir com o processo de criação, trazendo, assim, para as cenas suas
vivências e o universo social em que estão inseridos. Uma encenação com
caráter instrumental não precisa limitar a preparação dos alunos-atuantes em
mera repetição técnica que nada contribui para o momento e a necessidade do
grupo. Os alunos-atuantes podem, sim, deixar de serem meros instrumentos
para a realização de uma encenação e passarem a ser os criadores, co-autores
do trabalho teatral.

Os procedimentos instaurados na construção das encenações podem


combinar vários encaminhamentos pedagógicos, que vão desde jogos teatrais
até improvisações. Pode-se e deve-se instaurar um espaço de experimentação
que possibilite a investigação de novos modos de fazer teatro. Procedimentos
oriundos do sistema de Jogos Teatrais, de Viola Spolin, contribuem para a
fluência imaginativa dos participantes do grupo. Propostas que incluem a
ludicidade e a descoberta, trazem para o trabalho a:

Dezembro 2008 - N° 10 Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama

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U rdimento

(...) alegria de representar, assinalando (...) que seria ridículo


imaginar que alguém se dedica a jogar futebol para cumprir um dever
patriótico de fortalecer o corpo. E define o encenador como um homem
que se reúne com seu coletivo de trabalho não para fornecer respostas
e soluções, mas para incentivar a pesquisa, a reflexão, a duvida, o
questionamento permanente. (WEKWERTH, 1992, p. 14)

As investigações cênicas, surgidas dos jogos teatrais podem quebrar


conceitos fechados, engessados, de modelos do teatro profissional. Na
sistematização dos jogos teatrais, as discussões acerca do fazer teatral trazem
aos atuantes o entendimento das atividades lançadas pelo professor-encenador e
propiciam o debate sobre questões estéticas a serem assumidas na encenação.

Claro está que os jogos teatrais lidam com os conflitos de grupo como
desafios a serem superados pelos atuantes. Um dos conflitos enfrentados pelos
professores-encenadores, que trabalham com grupos sediados em escolas, é
a distribuição de personagens entre os seus integrantes. Encenadores que
elegem apenas um ator como protagonista, acabam com os conflitos de
relacionamento, criando uma série de descontentamentos entre os outros
atores. Muitas vezes, o diretor perde um tempo enorme buscando reconduzir
o trabalho teatral e tentando encontrar saídas para o problema instaurado.

Outro aspecto a ser considerado é a atuação em coro, pois é uma


proposta estética e pode se configurar como uma saída para o problema de
distribuição de papéis dentro de um grupo. Para a autora Koudela,

(...) a forma coral é particularmente interessante no teatro


(dança e música) com crianças, jovens e amadores, na medida em que
potencialmente elimina a apropriação do personagem por um único
ator, descaracterizando assim a perigosa noção de “talento”, que
facilmente conduz a comportamentos competitivos e exibicionistas.
(KOUDELA, 1992, p. 85)

Com efeito, o que também não se pode negligenciar é que o trabalho


teatral, realizado dentro das escolas, pelos grupos estudantis, deve dialogar
com as propostas contemporâneas do teatro. Há uma tendência em criar uma
cisão entre o teatro que se faz na escola e o teatro que se faz fora dela. Uma
investigação teatral, dentro da escola, precisa contemplar também uma atitude
política e artística que se coadunam com as propostas do teatro contemporâneo.
Dentro dessa perspectiva, a experimentação e o distanciamento de velhas
referências técnicas tornam o caminho bastante instigante.
Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

As propostas artísticas do Teatro Estudantil, provenientes de escolas de


Educação Básica, podem surgir de inúmeras formas, que vão desde o contato com
outros artistas até à ida ao teatro. Espetáculos assistidos pelos alunos-atuantes
se configuram como um espaço também propício à aprendizagem artística.

Ao se pensar na organização de festivais estudantis, faz-se necessário


refletir sobre o encaminhamento desses eventos:

- Se levarmos em conta que os grupos nem sempre têm disponível


um palco à italiana e nem os aparatos de um teatro equipado, não seria
interessante os festivais colocarem à disposição desses grupos locais
diferenciados, como a rua, praças e outros locais possíveis de serem
transformados em espaços cênicos?

- Como fazer para que os festivais estudantis realizem suas vocações


de aprendizagem artística?

- Qual a importância de um corpo de jurados que dialoga com os grupos


(atuantes/encenadores), ao invés de posturas conduzidas pelo julgamento e/
ou avaliações que são orientadas pelo teatro profissional?

- Será que a premiação de grupos é de fato a melhor forma de


reconhecimento do trabalho dos grupos de Teatro Estudantil?

É preciso não perder de vista a possibilidade de troca e aprendizagem


artística que os festivais oferecerem aos grupos. Seria fundamental se os grupos
de Teatro Estudantil pudessem ter espaço para discutir suas pedagogias, suas
propostas estéticas e suas visões sobre o teatro. É importante não só abrir
espaços para discutir a recepção do trabalho pela platéia, efetivando o que as
atuais pesquisas na área da pedagogia do teatro denominam como a leitura da
obra teatral, mas também é significativo refletir sobre a construção estética de
uma encenação e os seus desafios pedagógicos.

Os festivais estudantis podem primar por uma análise mais precisa


dos encaminhamentos pedagógicos empregados pelos grupos, discutindo
o impacto desses procedimentos na construção das cenas e nas suas
estruturações espetaculares. Não se trata de julgar as encenações a partir
dos critérios e valores artísticos oriundos do teatro profissional, mesmo
porque nem sempre é possível enquadrar essas produções nos moldes do
teatro profissional. O teatro dito profissional e o Teatro Estudantil devem
estar em constante diálogo, mas ambos possuem especificidades que são
determinantes para seus resultados teatrais.
Dezembro 2008 - N° 10 Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama

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U rdimento

Assim sendo, parece mais estimulante estabelecer um espaço


de diálogo entre os grupos e o corpo de jurados. Essa relação dialógica
possibilita não só aos jurados uma maior compreensão do fazer teatral dos
grupos, como também aos encenadores e atuantes explorarem a experiência
teatral dos jurados. Dessa maneira, mobiliza os grupos de Teatro Estudantil
mais para o desejo de investigação do que pela reprodução de uma pretensa
convenção estética teatral correta.

Em face disso, há necessidade de criar outros espaços de aprendizagem


dentro dos festivais, estabelecendo programações que envolvam oficinas,
palestras e mesas-redondas. Esses espaços, com ênfase na pedagogia do teatro,
tornam-se significativos para o domínio dos modos de produção teatral, para
o aprimoramento das capacidades de expressão artística e para a compreensão
de processos didáticos experimentados pelos grupos.

Já em relação à premiação dos grupos, faz algum sentido uma noite


destinada à entrega de troféus? Não seria um paradoxo para os propósitos de
coletividade, presentes nos grupos de estudantes, festivais que finalizam suas
programações com festas hollywoodianas que imitam o Oscar?

Diante de uma diversidade enorme de produções, cada qual com suas


proposições artísticas, como estabelecer o melhor trabalho? Sob qual ótica as
premiações estariam fundadas? No projeto teatral do grupo? Na capacidade
de comunicação com a platéia? Ou, mais uma vez, em critérios advindos do
chamado teatro profissional?

Se o desejo é o incentivo à criação, não é mais interessante pensar


em encerramentos que agreguem outras perspectivas? Por que não uma festa
performática? Por que não a apresentação de um outro grupo de teatro que
tenha ligação com os propósitos ou o tema do festival estudantil?

É bem verdade que, muitas vezes, as premiações oferecem aos


grupos a oportunidade de serem reconhecidos não só fora do contexto
estudantil, mas também dentro das suas instituições de ensino. São comuns
os encenadores afirmarem que depois de serem premiados, os diretores de
escola passam a valorizar mais suas atividades de teatro. Para esses grupos, o
reconhecimento do seu trabalho é fundamental à sua continuidade. Afinal de
contas a produção teatral está pautada na idéia de visibilidade. Todos fazem
teatro na esperança de serem vistos e reconhecidos pelos seus desempenhos
artísticos. Porém, em se tratando de um festival estudantil, talvez, a maior
contribuição seja a divulgação dos grupos junto à imprensa, à comunidade
local ou em outros setores da cultura.
Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

É interessante insistir em que diante do escasso lastro financeiro dos


grupos de Teatro Estudantil, uma ajuda de custo por parte das instituições
que promovem o evento é sempre bem vinda e contribui para a participação
dos atuantes no festival.

Repensar os modos de produção dos grupos de Teatro Estudantil


e a organização dos festivais, talvez, aproxime mais os envolvidos à
etimologia latina da palavra festival - festvs, como encontro jovial, alegre,
de intensidade criativa e comunicativa.

Referências Bibliográficas

BRECHT, Brecht. Diários de trabalho. Org. Herta Ramthum. Trad. Reinaldo


Guarany, Porto Alegre: L&PM, 1995.
_______. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
FAYA, Orleyd Rogéria Neves. Teatro paulista de amadores: 1964-1985 – a
trajetória do movimento federativo nos 21 anos de ditadura militar no Brasil –
preâmbulo histórico – cultural. Dissertação de mestrado apresentada à ECA/
USP. São Paulo: ECA/USP, 2005.
FERNANDES, Silvia. Grupos teatrais – anos 70. Campinas: Ed. Unicamp, 2000.
GAMA, Joaquim C. Moreira. Produto teatral: a velha nova história – experimento
realizado com alunos do ensino médio. Dissertação de mestrado apresentado à
ECA/USP. São Paulo: ECA/USO, 2000.
HIRSZMAN, Leon. CPC: arte para o povo e com o povo. Revista Ensaio, n. 3.
Rio de Janeiro, 1980, p. 49-52.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1996.
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SPOLIN, Viola. Jogos teatrais na sala de aula. Trad. Ingrid D. Kuodela. São
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WEKWERTH, Manfred. Diálogo sobre a encenação – um manual de direção
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Dezembro 2008 - N° 10 Acerca do teatro e dos festivais estudantis. Joaquim Gama

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Entre o Ritual e a Arte1

Jan Cohen Cruz

Qualquer performance baseada na comunidade é situada em algum


lugar entre a arte e o ritual. Começo com a tradição específica da arte onde se
localiza este lugar. A performance baseada na comunidade, na tradição de arte
popular, surge “da experiência comum que o público e o ator compartilham....
[A]quelas experiências conhecidas e familiares, são aprofundadas quando
reinterpretadas” (Hall 1965, 64). A “performance popular” evoca imagens
ecléticas – os adolescentes de Nova Iorque, uns tentando superar os outros
cantando rap ou dançando break; atores de commedia dell’arte improvisando uma
peça em um mercado na Itália do século XVI; moradores de vilarejos africanos
compartilhando histórias a sombra de uma grande árvore. A performance
baseada na comunidade encontra-se nesta tradição, comprometida com formas
e conteúdo culturais que são expressões de um grupo de pessoas conectadas
pelo local, tradição, história, e/ou espírito. Como o estudioso John Cavelti
escreve em relação à cultura popular, a arte baseada na comunidade “anda na
fronteira” entre “convenções e intenções” (M. Berger 1998, vii). Ou seja, tal
arte combina os elementos familiares de comunidades específicas com aspetos
novos e surpreendentes. Os espectadores não têm que se ver com uma inclinação
artística para poder esperar que tal trabalho diga algo a eles. Os artistas não
1
Este artigo foi
retirado do livro de
têm que suprir o público, mas, em uma relação dialética, às vezes liderar e à Cohen-Cruz, Jan.
vezes seguir as pessoas às quais os seus trabalhos são direcionados. Local Acts: communi-
ty based performance
Enquanto a arte popular não é sinônimo de arte baseada na comunidade, in the United States.
teorias sobre o que consideramos popular ajudam a esclarecer os objetivos New Brunswide: Rut-
gers, 2005. Tradução
da arte baseada na comunidade e também os preconceitos difundidos contra de Daniel Yencken
ela. O estudioso Raymond Williams articula cinco usos do termo popular que e Maria Brigida de
refletem uma variedade de atitudes relevantes ao meu assunto. Miranda.

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O primeiro é o que atribui ao popular o sentido de “outro”, em


relação à arte erudita (Heath e Skirrow 1986, 4). Enquanto influenciado
negativamente para posicionar este campo abaixo da arte erudita, esta idéia
do popular também tem uma conotação positiva, revelando uma estética
que não exige uma educação especial para ser apreciada. Sobre a sua
companhia, composta principalmente por pessoas sem-teto, John Malpede
declara que, “O fato de que muitos dos artistas do LAPD [Los Angeles
2
"Departamento Poverty Department2] não freqüentaram a academia – e nunca frequentarão
de Pobreza de Los – é, de fato, o ponto central” (Lewis 2002b). Eles providenciam o que
Angeles". O acrônimo
deste nome em inglês
Malpede chama da “coisa verdadeira”, uma maneira de ver o mundo,
(LAPD) é o mesmo do informada por experiências freqüentemente duras e pouco conhecidas
acrônimo do Depar- por pessoas que nunca viveram sem teto. O que as suas histórias revelam
tamento de Polícia de pode ser tão universal quanto os contos que pertencem à arte erudita. A
Los Angeles.
escritora Vivian Gornick faz uma distinção útil entre a história – definida
como “a experiência emocional que preocupe o escritor: o discernimento –
a sabedoria – a coisa que a pessoa tem a dizer – e a situação – ‘o contexto
ou circunstância’” (2001, 13). Embora a situação em uma produção
baseada na comunidade possa relacionar-se às circunstâncias das vidas
daquelas pessoas, o que eles estão comunicando por aquelas circunstâncias
poderia ser tão significativo quanto qualquer outra história. Ter base na
comunidade não indica o nível de universalidade ou qualidade artística, mas
simplesmente colaboração entre artistas e um grupo de pessoas conectadas
de alguma maneira contínua, que contribuíram significativamente para a
criação de um trabalho.

O teórico cultural Stuart Hall explica que o popular pode ser


distinguido da grande arte por causa das “severas linhas de divisão dentro do
nosso sistema educacional, a identificação entre cultura e classe, e a questão
de climas culturais distintos entre seções diferentes da nossa sociedade
estratificada” (1965, 74). Visando a construção destas divisões, Lawrence
Levine escreve sobre os espaços culturais fluidos da primeira parte do século
XIX que permitiram compartilhamento cultural; pessoas de classes diversas
freqüentaram habitualmente produções de Shakespeare, por exemplo.
Mas, cada vez mais, diferenças culturais foram utilizadas para justificar
divisões de classe. Somente as formas culturais consideradas inconseqüentes
intelectualmente poderiam ser compartilhadas amplamente com a população
geral, e ainda assim o preço de seções distintas de poltronas limitou a
possibilidade de interação e contato entre as pessoas. A cultura chegou a
reforçar diferenças de classe, realçando que a arte não trata só de objetos, mas
antes, a relação destes objetos com espectadores particulares, em contextos
sociais reais. Percebemos esta dinâmica em uma história tão simples quanto
a do encanador que foi para o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque em
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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1897 e foi impedido de entrar porque estava vestindo macacão (Levine 1988,
185). A performance baseada na comunidade é freqüentemente percebida
como popular neste sentido de ser mais baixa na hierarquia cultural, devido
principalmente, à participação de pessoas fora das classes média e alta.

A segunda definição, segundo Williams, é o popular como cultura do


povo, dando continuidade a uma tradição cultural sem as marcas específicas
de um artista individual (Heath e Skirrow 1986, 4). Como a primeira definição
de Williams, o popular como cultura do povo carrega um status mais baixo
do que a arte erudita. Desafiando esta percepção, a estudiosa Yolanda Broyles-
Gonzalez expandiu o seu foco de estudo sobre El Teatro Campesino, além
da abordagem “o grande homem/textocentrismo” (neste caso, o fundador
Luis Valdez e os roteiros do Campesino) para privilegiar as raízes culturais,
ao posicioná-lo dentro da tradição oral mexicana operária. O trabalho de
Broyles-Gonzalez tem ramificações significativas para a performance baseada
na comunidade, que pode semelhantemente ser valorizado nos seus próprios
termos e por suas raízes culturais. A oralidade providencia à arte baseada
na comunidade o poder que falta no teatro que não está aliado a públicos
particulares. Broyles-Gonzalez escreve que “A cultura oral não é tipicamente
apenas de palavras faladas, mas palavras definidas pelo contexto do seu modo
de vida . . . engajada na cotidianeidade da vida” (1994, 5-6). Devido a sua base
na vida cotidiana, em trabalho baseado na comunidade, referências comuns a
populações inteiras são profundas e inúmeras. Os atores-trabalhadores rurais
de El Teatro Campesino, por exemplo, souberam muito bem quais referências
foram relevantes aos trabalhadores rurais “chicanos” que constituíram o seu
público central. Em contraste, não é provável que atores profissionais conheçam
em detalhe o que um grupo de espectadores anônimos tem em comum. A
ligação com cultura do povo é um bem e não um déficit, da performance
baseada na comunidade.

Segundo a terceira definição de Williams, o popular é algo


direcionado a uma grande quantidade de pessoas e “apreciado por muitos”
(Heath e Skirrow 1986, 4). Hall, por outro lado, argumenta contra uma
formulação do popular baseada em números de espectadores. Ele acredita
que a arte popular “prospera só quando públicos largamente variados
encontram algo em comum e comumente valorizado na sua apreciação;
uma das precondições disso sendo que as instituições que sustentam esta
arte deveriam ser instituições abertas e amplamente disponíveis” (65). A
diversidade dos espectadores engajados, e não a quantidade, é o fator que
Hall enfatiza. Como a performance baseada na comunidade cada vez mais
incorpora diversos grupos em parcerias, a popularidade neste sentido é um
valor que ela compartilha.
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A popularidade medida em números trás a idéia de arte de massa


e a questão da comercialização. O crítico Dominic Strinati questiona: “A
emergência da cultura em forma de mercadoria significa que a rentabilidade
e comercialização tomam precedência sobre qualidade, valor artístico,
integridade e desafio intelectual?” Ou seria o caso onde o crescente mercado
universal para cultura popular garante que ela seja verdadeiramente popular
porque disponibiliza mercadorias que as pessoas realmente querem?” (3).
O termo massa neste contexto se refere à sociedade da idade industrial,
caracterizada por indivíduos separados fazendo as suas próprias escolhas
em lugar de serem organizados em comunidades com valores coletivos e
“relacionamento[s] moralmente coerentes” (Strinati 1995, 6). Arte baseada
na comunidade é claramente uma alternativa ao popular no sentido de
cultura da massa.

A quarta definição de Williams é o popular como oposição: “Aquele que


representa uma certa forma de interesse ou experiência, versus os modos de
uma cultura estabelecida ou versus um poder” (Heath e Skirrow 1986, 5). Apesar
de toda a performance baseada na comunidade não ser popular neste sentido,
há muitos exemplos. No final da década de sessenta, Cesar Chavez, o líder do
sindicato de trabalhadores rurais “chicanos” identificou o papel de um teatro
orientado a um público operário. Seguindo a tradição Mexicana da carpa, um
espetáculo popular itinerante de lona, um teatro deste tipo apresentaria peças
satíricas, pastelões e peças improvisadas, simpatizando com os desfavorecidos:
“Com uma carpa poderíamos dizer coisas difíceis às pessoas sem ofendê-las.
Poderíamos falar sobre pessoas sendo covardes, por exemplo. O que poderia
ser ofensivo vira engraçado. E poderíamos ainda comunicar questões sindicais.
Quando o Teatro Campesino foi fundado, eu dava às personagens iniciais nomes
[tradicionais da carpa]” (Broyles-Gonzalez 1994,13). Esta categoria também é
um exemplo da dinâmica popular de “convenção com invenção.” Chavez queria
aproximar-se da convenção familiar e prazerosa da carpa impregnando-a,
porém, com um conteúdo novo, inventivo e pró-sindicato.
Em quinto lugar, Williams descreve o popular como “um mundo muito
ativo de conversação e trocas cotidianas. [Isso inclui] piadas, [e] ... fofocas
cotidianas” (Heath e Skirrow 1986, 5). Este entendimento do popular é aliado
à estética da vida cotidiana, e, como na terceira definição, também à cultura do
povo. Segundo Oscar Handlin, a cultura do povo “lidou diretamente com o mundo
concreto e intensamente familiar a seu público” e com “situações comuns dentro
de um padrão de vida familiar” (Hall 1965, 53). Existia uma relação direta entre
ator e público, porque o material transmitido por gerações, era profundamente
familiar. A cultura do povo foi ultrapassada pela cultura popular quando a
arte não era mais criada pelo coletivo, mas pelo indivíduo ainda conectado ao
grupo. Muitos artistas atuantes na comunidade são populares neste sentido,
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inspirando-se nas tradições culturais compartilhadas que eles manipulam de


acordo com a sua habilidade artística. Um exemplo é o Teatro Pregones, que
utiliza as tradições de performances Latinas como fonte e está vinculado a um
público majoritariamente, mas não exclusivamente, de latino-americanos.

A performance baseada na comunidade recupera a base coletiva da


arte do povo, combinando-a com um papel central para o artista como na
arte popular, e, caindo em algum lugar entre as duas, continua a incorporar
uma contribuição da comunidade. Hall (1965, 59) informa que da arte popular
“Dados elementos ‘do povo’ foram mantidos apesar do artista substituir o
artista anônimo do povo e do ‘estilo’ ter sido mais do performer do que do estilo
comunal. As relações aqui são mais complexas – a arte não é mais simplesmente
criada pelas pessoas de classes mais baixas – mas a interação, por meio de
convenções de apresentação e sensação, restabelece esta conexão. Apesar
desta arte não ser mais o produto de um ‘modo de vida’ de uma ‘comunidade
orgânica’, e de não ser ‘feita pelo povo’, continua sendo, de uma maneira não
aplicável às artes eruditas, uma arte popular, para o povo.” A performance
baseada na comunidade fica de um lado do continuum de teatro popular, ao qual
o “público-como-comunidade” é envolvido ao máximo no processo criativo.

No lado ritualístico da arte baseada na comunidade fica a tradição da


performance criada com uma comunidade para servir a uma função social ou
espiritual. O ritual faz parte do que o antropólogo John MacAloon (1984,1)
chama de performance cultural, “ocasiões em que, como uma cultura ou
sociedade, refletimos sobre e definimos nós mesmos, dramatizamos nossos
mitos e nossa história, [e] apresentamos-nos com alternativas.” MacAloon
observa que as performances culturais oferecem a sua comunidade algumas
maneiras de mudar, e outras maneiras de permanecer a mesma. Por exemplo,
no discurso bar mitzvah do meu filho, ele confirmou a sua identidade como
judeu em virtude da sua ligação com a comida, os encontros de grupo, e o
estudo do Torá, mesmo quando ele declarou o seu agnosticismo, beirando o
ateísmo. Mesmo não sendo um discurso de bar mitzvah típico, por meio do
discurso ele ofereceu à nossa congregação tanto um sentido da continuidade
do Judaísmo como uma concepção alternativa ao que é ser Judeu.

O paradigma do ritual contempla o potencial intensamente engajado


da performance baseada na comunidade para todos os envolvidos. Richard
Schechner escreve: “Não existe um público [no ritual]. No lugar disso, existem
círculos de intensidade crescente” (1973, 243). As pessoas escolhem assistir às
performances no contexto de arte; são obrigados a assistir às performances no
contexto do ritual. Tais performances (se sacras, como em uma missa, ou seculares,
como em uma inauguração política) afirmam “as verdades compartilhadas e
não questionáveis do grupo” (Myerhoff 1978, 32). A performance baseada na
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comunidade é como ritual ao surgir de uma comunidade que contextualiza a


performance como parte de um projeto coletivo maior. O antropólogo Victor
Turner explica porque a comunidade precisa de tais performances: “As culturas
são mais amplamente expressas e tornam-se conscientes de si mesmas em seu
ritual e em suas performances teatrais. [...] Uma performance é uma dialética
de ‘fluxo’, ou seja, o movimento espontâneo em que a ação e a consciência são
uma, e a ‘reflexividade’ na qual os significados, valores e objetivos centrais
de uma cultura são vistos ‘em ação’, à medida que formam e explicam o
comportamento” (Schechner e Appel 1980, 1).

As performances culturais também oferecem uma ligação cultural


e intelectual entre as nossas vidas individuais, aqueles que vieram antes,
e os que ainda estão por vir. Eu ouço as palavras hebraicas que iniciam o
canto Judeu para os mortos–yisgadal, vyisgadal, shmay raba–e as lágrimas
surgem. Não importa se eu acredito em Deus ou não, se permaneço fiel aos
dez mandamentos, ou se moro em uma comunidade Judaica. Profundamente
familiar, o canto funciona tanto como um microscópio, focando naqueles que
amava e perdi, quanto como um telescópio, avistando um rio imenso de almas
partidas, dando-me uma visão ampla de geração após geração. Com a ajuda
daquela lente, eu tenho uma maneira particular de trabalhar a minha perda.

A dimensão ritual pode considerar a espiritualidade que a performance


baseada na comunidade abrange. Por exemplo, as suas raízes no movimento
de direitos civis incluiu um fundamento na igreja e liderança religiosa. Apesar
de ter motivos práticos para os ativistas do movimento encontrarem-se nas
igrejas – outros poucos espaços grandes estavam disponíveis para eles – um
dos papéis da igreja é de reafirmar a fé. Assim também o idealismo secular é
sustentado pela fé, no sentido da crença comprometida com uma visão sem
nenhuma garantia sobre o que está por vir. No contexto da performance
baseada na comunidade, aquela visão pode ser a esperança por um mundo
melhor, com ou sem tom religioso. A dimensão ritual ao fundir passado,
presente e futuro sinaliza a espiritualidade para guiar a força daquelas
pessoas com os mesmos valores que tomaram a frente e lutam por algo que
ainda está por vir. Nós buscamos atingir este futuro quando falamos em
ser o melhor de nós, de sermos a mudança que queremos ver no mundo. As
músicas que marcam os encontros e as saídas a campo de artistas baseados
na comunidade freqüentemente são musicas espirituais, como aquela que
John O’Neal usa há tempos em seus projetos: “Segure a minha mão enquanto
corre esta corrida (repete duas vezes), porque não quero correr esta corrida
em vão.” O valor alocado à boa escuta neste trabalho, incorporando o outro
como tão importante quanto si mesmo, é parte da criação desse tipo de mundo
com uma evocação espiritual.
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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O elemento ritual também carrega perigo. O desejo intenso de


compartilhar a profundidade e apelo da vida expressiva de uma cultura é
diminuído ao saber que coisas terríveis já foram feitas em nome de comunidades
com laços muito estreitos. Às vezes uma hipnose toma conta da situação;
balançando nos braços confortantes do coletivo, as fronteiras individuais
desaparecem, e paramos de perceber o que no nível do pessoal teria sido
reprovável. Por isso entra a arte, a outra dimensão da performance baseada na
comunidade, que não demanda a conformidade com idéias essenciais.

A arte oferece uma suspensão temporária de crença, um “imagine


se...” convidando participantes a envolverem-se criticamente. De fato, a arte
freqüentemente interroga suposições e verdades herdadas. Como o filósofo
Herbert Marcuse afirma, a arte é a prática de liberdade; a nossa melhor
proteção contra um conformismo terrível está na expressão da “imaginação
não-colonizada” (Becker 1994, xx). No mesmo espírito, o escritor James
Baldwin fala: “O propósito da arte é expor as questões que foram escondidas
pelas respostas” (Lerman e Borstel 2003, 8). O ritual puro também ofereceria
respostas. O pólo da arte do continuum de performance baseada na comunidade
é responsável por tornar o familiar novo. Isto é, enquanto a arte também tem
tradições, é esperado que seja tão comprometida com o novo como pelo velho.
Segundo a escritora Anaïs Nin, “É a função da arte renovar a nossa percepção.
As coisas com as quais somos familiares, paramos de ver. O escritor agita a cena
familiar e, como por mágica, conseguimos ver novos significados nela” (8). Ao
apresentarem “como teatro”, os artistas baseados na comunidade convidam
as pessoas que não aderem a um conjunto de valores e práticas específicas
como artistas e espectadores. Tal trabalho, tipicamente apresentado em locais
seculares, é mais aberto do que apresentações tradicionais para crédulos. Na
performance baseada na comunidade arte e ritual enlaçam qualquer projeto
situado entre os dois.

O uso do espaço apóia a fusão de ritual e propósitos estéticos.


O Cornerstone Theater adapta de forma criteriosa elementos de design à
comunidade na qual trabalha. A sua produção de Steelbound com o Touchstone
Theater em Bethlehem, Pensilvânia, foi apresentada em uma ex-fundição de
ferro de 160 anos. O espaço apoiou o papel ritualístico do Steelbound, unindo o
passado (a incrível história e significado daquele espaço para a comunidade), o
presente (o estado atual de abandono), e o futuro (um espaço para se imaginar
como prosseguir). A fundição também apoiou a produção como uma obra
de arte, com prazeres estéticos – pela sua profundidade vasta, a sua altura
elevada, as antigas paredes e arcos. A performance baseada na comunidade
busca integrar o melhor dos dois mundos – partindo de um grupo de pessoas
conectadas umas às outras de alguma forma, reafirmando um senso de valor,
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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U rdimento

mas sem autoritarismo – nem a celebração unicamente contextualizada em


si mesma, ou a obrigação inquestionável da performance cultural, nem o
completamente aberto e disponível-para-ser-comprado, o acesso limitado e o
âmbito individualista da arte erudita na tradição euro-americana.

Mesmo que tanto a arte como o ritual dependam da liderança de


pessoas com habilidades especiais, ambos têm critérios diferentes quando se
trata de participação. No ritual, todos que aderem aos valores do grupo, se
tiverem habilidades especiais ou não, podem participar. Na arte, espera-se
que todos os participantes, não só os lideres, tenham habilidades especiais.
Por ter sua base em ambos ritual e arte, qualquer performance baseada na
comunidade deve ter clareza de quem pode participar – se os membros do
grupo em questão, habilidosos ou não, como no ritual, ou se somente pessoas
com habilidades especiais, seja com uma afiliação coletiva específica ou não,
como na arte. O propósito-chave de uma dada performance está em questão:
é mais importante para os participantes terem experiência primária como no
ritual, ou é melhor depender da representação de artistas treinados, como
na arte, para conseguir comunicar os pontos de vista de um grupo ao um
público maior que pode ter dificuldade em apreciar uma peça com qualidade
artística limitada? Ou é possível propiciar uma experiência atrativa a ambos
os participantes da comunidade e o público em geral?

Cada performance baseada na comunidade precisa ser clara sobre


o seu objetivo primordial. O propósito do ritual é fortalecer o coletivo, e,
dependendo da ocasião, talvez transformá-lo também, por participação. O
propósito pode ser de literalmente atingir algo. Os propósitos da arte são
diversos, mas dependem ambos da expressão pessoal do artista e de como
a apresentação “funciona” para um público. Onde isso deixa a performance
baseada na comunidade? Como ela pode servir a dois mestres? Quando pessoas
sem treinamento artístico representam a elas mesmas, há uma limitação
do potencial comunicativo da produção? Diferentes artistas têm respostas
diferentes a estas questões.

Artistas podem ser inspirados pelo ritual e ainda manter os padrões


de arte em um nível profissional. Liz Lerman cita com freqüência a seguinte
suposição: “Eu acho que existia um tempo quando pessoas dançavam
e as plantações cresciam. Eu acho que elas dançavam e era assim que elas
curaram os seus filhos. Elas dançavam e era assim que se prepararam para
guerra. Talvez elas dançassem principalmente porque não podiam entender
o incompreensível, e talvez no momento de transformar – não interpretar – o
sol em uma dança do sol, elas conseguissem entender as forças da natureza.”
Não obstante esta apreciação do papel ritual da dança (que acontece mesmo
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agora entre algumas culturas, como também no passado), Lerman tornou-


se mais comprometida com o treinamento formal dos participantes das suas
peças, vislumbrando recentemente uma escola para pessoas mais idosas para
que os que participam em suas credenciadas danças inter-gerações pudessem
ser fisicamente mais flexíveis e capazes (2003b).

Os valores da arte e do ritual podem ser negociados ao assegurar que


a participação aconteça em algum momento no processo da performance sem
predeterminar qual momento. Dependendo do projeto, as pessoas podem ser
pesquisadoras, fontes primárias, atores, ou participantes centrais em debates
pós-espetáculo ou ter outras atividades. Enquanto apenas atores de Roadside
atuam nos espetáculos Roadside, por exemplo, a interação com as comunidades é
mutuamente benéfica, dando tanto às pessoas locais oportunidades de narração
de histórias, quanto aos artistas de Roadside o conhecimento cultural que
informa as suas produções e enriquece suas vidas. Ainda assim, certos assuntos,
como quem é pago, também têm que ser abordados. Muitos grupos baseados
na comunidade negociam as necessidades das pessoas para que elas possam
participar. Para algumas pessoas é a questão de cuidar das crianças; para outras
é transporte para o local de ensaio. Além do mais, a questão de pagamento é
mais complexa do que se pensa, porque estamos acostumados a expressar o
valor de algo pela compensação monetária. Os participantes têm que saber que
são valorizados a despeito de receberem salários ou ajuda de custo.

A diferença entre os membros da comunidade fazerem apresentações


eles mesmos ou serem representados por artistas profissionais tem seu paralelo
no sistema político da democracia. Os teóricos de direito Lani Guinier e Gerard
Torres explicam que enquanto na democracia representativa as pessoas votam
para que um político profissional fique um mandato representando seus
eleitores, na democracia participativa eles estão envolvidos diretamente pelo
menos em discussões que os afetam. Guinier e Torres dão o exemplo do Teatro
Fórum de Augusto Boal como um terreno fértil para democracia participativa,
porque os espectadores intervêm nas situações encenadas ao propor as suas
próprias idéias para resolver a situação. Guinier e Torres explicam porque
isso é importante: “Conseguir envolver comunidades no processo de imaginar
seu próprio futuro é um problema que a democracia deveria resolver” (2002,
219). Muitos artistas baseados na comunidade lidam com a centralidade
de participação para o crescimento político ao regularmente incluir todo
mundo em círculos de histórias pré ou pós-espetáculo, incluindo mesmo
aqueles que não atuam no espetáculo. Em outras palavras, tanto a democracia
representativa quanto a participativa são modos da performance baseados
na comunidade. Os adeptos da democracia, tanto na política quanto na
performance baseada na comunidade, vêem um papel tanto para profissionais
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como para os constituintes ativos. Guiner e Torres aconselham políticos


profissionais a desenvolver as suas habilidades por meio do engajamento com
as pessoas que eles supostamente devem representar. Comparativamente, os
artistas baseados na comunidade valorizam o engajamento profundo com os
participantes da comunidade, a despeito de quem irá para o palco atuar. À
medida que os participantes da comunidade tenham um papel significativo,
este papel não tem que ser no palco.

Existem outros fatores governando a questão de quem participa em


uma produção. Para artistas baseados na comunidade cujas raízes estão na
vanguarda e nos happenings, e não no teatro, é a experiência da pessoa, e não a
habilidade teatral, o critério para a seleção do elenco. Uma preocupação para
os artistas das duas tradições é o poder da relação com os participantes. Ao
criar arte sobre um “outro” menos poderoso corre-se o risco da exploração.
Suzanne Lacy dá o exemplo do dramaturgo Henrich Ibsen. A sua peça Hedda
Gabler (1892) poderia ser vista como uma exploração das mulheres por
representá-las a partir da posição de poder do autor. Já por outro lado, Lacy
afirma que, “muitos de nós apegam-se a esta peça como uma das primeiras
nas quais vemos a representação de um desejo e uma ambição frustrada, e
uma personagem feminina mais complexa – assim, os artistas representam
e os artistas inevitavelmente representarão algo além deles mesmos. Então,
você está em uma posição de níveis” (2002). Lacy entende que o dramaturgo
negro August Wilson somente quer diretores negros para suas peças, dado
que diretores negros provavelmente tiveram experiências mais próximas às
personagens de Wilson do que diretores brancos. Entretanto, estas práticas
podem resultar no pior tipo de política de identidade que afasta grupos de
pessoas que poderiam ser aliadas. Lacy questiona quão específica necessita
ser a similaridade entre diretor e material; Wilson só quer diretores negros
da classe operária de uma idade específica? Lacy acredita que agora os
artistas de forma geral estão bastante conscientes destas negociações
complexas de identidade à medida que “nós de certo modo avançamos de
maneira incerta.”

As políticas de identidade levantam a questão: quem é da


comunidade? É necessário que os participantes compartilhem uma
identidade como raça, lugar, ou etnia, no núcleo de uma peça, para
poderem exercer um papel de liderança nesta empreitada ou simplesmente
para poderem participar? O’Neal deu boas vindas a todas as pessoas que
estavam sinceramente comprometidas com a luta pelos direitos civis para
participar no Free Southern Theater. A liderança, porém, teria que emanar
das pessoas que fossem da luta para liberação. Assim da perspectiva de
O’Neal, o ator profissional judeu e branco Murray Levy, profundamente
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comprometido com a igualdade, era um modelo de membro exemplar


do Free Southern Theater, uma organização negra com liderança afro-
americana. Entretanto, Thomas Dent e outros da companhia discordaram
e expulsaram todos os membros brancos.

Com freqüência é a ressonância emocional, mais do que as políticas


de identidade, que determina quem faz arte e sobre o quê. Lacy comenta
que o fato de um artista trabalhar com um tema como o envelhecimento não
significa que tem interesse primeiramente no envelhecimento. O interesse
pode ter a ver com a questão da exclusão, um envolvimento com “o outro”
expresso por uma empatia por grupos excluídos. Como é que participantes
da comunidade podem se relacionar com o artista se ele ou ela não é do
mesmo lugar que eles, seja geograficamente ou no que diz respeito à
etnicidade, economia ou circunstâncias? Lacy nos impele a investigar a
dinâmica do de dentro/de fora com mais complexidade: “E sobre nossas
identidades múltiplas? Somos de fora do quê? Muito do meu trabalho
sobre raça começou com mulheres. O argumento poderia ser de que a raça
é um definidor mais crítico. No entanto, é mais importante que nós todos
trabalhemos para resolver os problemas do que excluir a participação de
pessoas genuinamente comprometidas. Muitos de nós trabalhamos mais
pela empatia do que pela culpa. Eu não me senti culpada em relação a
negros no movimento pelos direitos civis, eu me senti completamente
simpática a ele.” (2002).

Negociar inclusão e exclusão, similaridade e diferença, é primordial


para a performance baseada na comunidade. Os artistas que Linda
Burnham produziu no espaço teatral alternativo Highways em Los Angeles
queriam que as suas identidades interculturais fossem reconhecidas: “Os
Latinos queriam a performance Latina de artistas Latinos, mas também
insistiram em participar em projetos que misturaram todas as identidades.
Isso permitiu a eles o enquadramento de ‘meu povo’ e de ‘meu povo como
partes de todos os povos.’ Eles precisavam que as suas identidades fossem
reconhecidas, mas também precisavam da inclusão” (2003). Às vezes o
artista pode esperar identificação e no seu lugar achar diferença. Quando eu
trabalhava com um grupo de mulheres recém libertas da penitenciária, uma
delas perguntou se eu tinha filhos. Agradecida por poder mostrar a nossa
identidade compartilhada de mães, mostrei uma foto dos meus filhos para
ela. A resposta dela foi, “Dois? Que bom - ela tem dois filhos! Gêmeos???
Ela tem gêmeos! Eles tiraram meus bebês de mim”.

Existem, no entanto, outros fatores a serem investigados em relação


ao de dentro e o de fora. Como se sentem as pessoas com as quais o artista
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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trabalha? Como a posição do artista muda ao longo do tempo? Dentro de


qualquer grupo, algumas pessoas serão mais dispostas do que outras a se
aproximar de um novo membro. No final da década de setenta, Lacy descobriu
que as pessoas da idade da avó dela na comunidade afro-americana eram com
freqüência mais dispostas a criarem laços com ela do que mulheres urbanas,
intelectuais na mesma faixa etária dela. Ela também descobriu que muitas
pessoas tendem a adotar este raciocínio: “Sou deste lugar e então tenho o
direito de falar sobre e em nome dele.” A resposta dela é:

Morei em Oakland no meio de um gueto por dez anos e 50 por


cento dos meus amigos são negros. Claro que sou de fora pela questão
racial, e raça tem poder, mas qual é a base para as pessoas determinarem
se sou de fora? Se for raça, compreendo, mas se for pelo lugar – não
é o caso. A questão verdadeira do de dentro/de fora é o poder que
a sua significação traz com ela, e o benefício que você recebe desta
representação. Repare que quase nunca pensam que tem base em gênero.
Eu ainda acho que gênero é um dos assuntos menos considerados de
forma ampla – não que raça seja tratada – da nossa cultura. E se
você estiver separando os de dentro e os de fora, então você está criando
oposições, que na perspectiva Budista não é uma maneira habilidosa de
fazer coisas. (2002)

Cocke do Roadside Theater explica a vantagem do status de estranho:

Quando viajamos, reconhecemos o valor de estar de fora das


dinâmicas estabelecidas de uma comunidade. Isto porque, quando
estamos em casa, gostamos de ter uma parte do nosso público como
estrangeiros/ou de fora da nossa cultura e tradições. Por ser de fora
eles fazem conexões além daquilo que nós vimos. Não gostamos quando
todo mundo é de fora porque neste caso não há uma percepção do que
seja a visão do de dentro; esta ressonância profunda com uma tradição,
realmente a conhecendo, conhecendo a história da música e em que
medida ela está sendo bem tocada. (2003b)

A performance baseada na comunidade às vezes acontece nos limites


mais extremos da diferença, quando artistas com certo privilégio (raça, classe,
educação ou circunstância) fazem arte com pessoas com quase nenhum poder.
Suspeitamos daquela pessoa com uma situação confortável que quer fazer
arte com pessoas que vivem na pobreza, algumas entrando e saindo de prisão,
algumas tomando e parando de tomar drogas, outras incapazes de cuidar dos
próprios filhos, e algumas crianças ainda tendo filhos? Nestas instâncias,
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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este campo pode parecer como colonialismo. Constantemente, os artistas


financeiramente mais estáveis, e pela maior parte brancos, traficam para o
primeiro mundo os bolsões de pobreza entrincheirados no quarto-mundo. E
o que é que os artistas fazem? – eles exploram o material cru, todas aquelas
experiências e todas aquelas histórias. Depois partem com os recursos naturais
e fazem deles a sua própria arte. É aqui que o modelo pára de funcionar; o
mercado é localizado no primeiro mundo porque a arte não tem o poder de
ajudar a construir a economia do quarto-mundo, o bastante para que ela
possa servir como mercado. Neste sentido, a arte baseada na comunidade é
pior do que colonialismo! Claro que os artistas podem também chegar e ficar
na comunidade, fazendo uma encenação lá com o povo e os recursos locais.
Eles podem ajudar a estabelecer um teatro naquela comunidade que continue
depois que os artistas foram embora. Enquanto num primeiro momento os
artistas podem ser ingênuos, a experiência pode ser um despertar social para as
desigualdades e injustiças sociais do mundo. Os artistas podem reconhecer as
suas próprias posições de poder e chegar a estimar a necessidade de parcerias
igualitárias e o compartilhar de tomadas de decisões e de recursos.
Uma outra crítica da polaridade típica do de dentro/de fora em
projetos de curto prazo baseados na comunidade é que parecem com o
liberalismo – que significa que, diferente dos políticos radicais, o artista
acredita que “o sistema” pode ser reformado. Este tipo de pensamento pode
resultar em um processo de culpar a vítima, não reconhecendo que racismo e
sexismo são institucionalizados e precisam ser desmantelados politicamente e
socialmente; que estender a mão por meio do fazer artístico para pessoas que
estão batalhando sem que se tenha uma proposta social mais ampla significa
provavelmente uma atitude que terminará junto com o projeto. Os artistas que
fazem este tipo de trabalho deveriam educar-se sobre as causas da injustiça e
expandirem as suas estratégias baseadas em arte de acordo com pessoas que
já o fizeram, ou para colaborar com estas pessoas. Isso implica na necessidade
de desenvolver um modelo interdisciplinar de treinamento com um forte
componente político para os artistas baseados na comunidade.

Princípios
Eu passo agora para os quatro princípios – contexto comum,
reciprocidade, hifenação e cultura ativa – que sugerem boas razões para
performance baseada na comunidade. Articulada em torno de preocupações
comuns, a performance baseada na comunidade desafia a tendência para a
profissionalização do engajamento cívico e de deixar especialistas lidarem
com isso. Em um mundo de lobistas e política eleitoral baseada em democracia
representativa e não participativa, a performance baseada na comunidade é um
anacronismo bem-vindo.
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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A performance baseada na comunidade surge de um contexto comum:


o ofício e a visão do artista estão a serviço de um desejo específico do grupo.
Este pode ser o de promover os objetivos do movimento de direitos civis, como
no caso do Free Southern Theater. Pode também ser o de afirmar uma cultura
sem representação ou mal representada, como no caso do Roadside Theater.
Os artistas baseados na comunidade utilizam as suas ferramentas estéticas
junto ao grupo de pessoas que tem experiência de vida sobre um assunto
e com quem eles trabalham para moldar uma visão coletiva. A expressão
comum é enraizada no reconhecimento de que muito da criatividade e do
significado vem do grupo. O teatro, claro, já é uma arte colaborativa. A
estrutura hierárquica da maioria dos teatros, porém, dá a maior parcela de
poder ao produtor, ao dramaturgo, e ao diretor, enquanto a performance
baseada na comunidade, pelo menos teoricamente, defende um modelo de
poder compartilhado entre os vários artistas e parceiros da comunidade.
Além disso, como no ritual, a arte baseada na comunidade recebe sentidos a
partir de seu contexto; seus criadores são inspirados a fazer uma bela arte
por causa do papel social significativo que ela exerce. A estética não tem uma
importância menor no contexto ritual, mas neste caso eles estão apontando
para um objetivo coletivo e não para o criador individual.

O apreciar do contexto coletivo do campo leva a uma reavaliação do


gênio individual e coletivo. O primeiro é o bem conhecido e aceito modelo de
arte do Ocidente. Dudley Cocke define o último como “a sabedoria acumulada
de um povo, destilada e repassada pela tradição. Para tradições viverem,
precisam ser renovadas regularmente. No teatro popular, o gênio individual,
percebendo completamente a fonte coletiva dada a sua inspiração, esmaece a
linha entre os dois” (2003c). Uma vez aceita a noção de gênio coletivo – uma
realidade subjacente ao teatro, seja isso reconhecido ou não – a relação do
artista com a comunidade é radicalmente modificada. Ao invés de ser uma
pessoa alienada e sensível, o artista é alimentado pelas pessoas com as quais
ele escolhe viver e trabalhar e pelo lugar onde escolhe estabelecer-se. Ele está
engajado na vida compartilhada da sua comunidade. Por sua vez, apresenta a
sua arte da maneira mais acessível, como com custo de ingresso baixo, locais
acessíveis, e contextos convidativos.

Existem momentos, porém, quando o indivíduo está mais livre para


apresentar pontos de vista contrastantes e heterogêneos ao coletivo. O
indivíduo está livre para ser deslumbrante sem se preocupar em chocar
o grupo. Além do mais, a dependência das tradições coletivas não é
sempre possível. Como pensar sobre um grupo de atores ou espectadores
heterogêneos que não compartilham uma tradição? E sobre as áreas
ultrapassadas de uma tradição – por exemplo, os papéis de gênero cada vez
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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mais delineados? Como alguém pode prevenir que uma tradição oprima, em
vez de ser libertadora? Como é que o gênio coletivo pode enfrentar desafios
contemporâneos sem o gênio individual?

A Inovação é essencial para o gênio coletivo – os artistas se permitem


liberdade de experimentação e reinterpretação das tradições para seu tempo
e espaço particular. Cocke acredita que o Roadside tem uma responsabilidade
de fazer das tradições algo novo, reinventando-as para que se mantenham
interessantes e instrutivas. Ele explica, “As pessoas que trabalham com a
consciência de uma tradição, qualquer que seja, têm ainda mais incentivo
para serem criativas do que os artistas que não são conscientes da tradição.
Eles sabem o que já foi inventado, que é a mola propulsora para inventar
algo diferente. Se não, você fica se debulhando sem ter um entendimento do
caminho que a arte está trilhando, porque você não conhece os caminhos que
ela já percorreu” (2003b).

As fontes dos gênios individuais e coletivos são interligadas. Liz


Lerman descreve a flexibilidade necessária entre as duas: “Eu encontro muita
inspiração, prazer, e desafios na minha colaboração com outros membros da
companhia, outros artistas e membros de comunidades, exatamente como
curto os momentos de saltos criativos. Seria bom se pudéssemos achar uma
linguagem que apoiasse a idéia da visão artística fazendo um zig-zag entre
gênio colaborativo e brilho individual” (2003a). Lerman nos estimula então
a ultrapassar o pensamento isto ou aquilo e a necessidade de escolher entre
gênio individual e coletivo.

A ênfase no gênio individual e exclusão de gênio coletivo pode


desestimular pessoas não identificadas nessa categoria e fazê-las menos
dispostas a participar de qualquer experiência artística. Estou perfeitamente
satisfeita com a idéia de sentar-me de vez em quando e assistir a peças
teatrais. Mas a idéia de gênio individual como o único modelo de produção de
arte serve a uma perspectiva particular, não-democrática e ideológica. Está
ligada a outros tipos de hierarquias e justifica que se dê mais aos julgados
abençoados e talentosos do que aos outros membros da sociedade. Também
serve à mercantilização total da arte; se só algumas pessoas selecionadas
podem produzi-la, pode-se cobrar mais por ela.

O poder do contexto coletivo é utilizado para uma variedade de fins.


Um exemplo especialmente agitador é a descrição da compositora/ativista
Bemice Johnson Reagon de como, durante uma marcha, o som do canto dos
que protestavam os precederam enquanto caminharam, “de forma que, até o
momento que eles chegaram ao seu destino, as suas vozes já tinham ocupado
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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o espaço de uma forma que não permitia que a polícia reclamasse. Não foi só a
mensagem da música que foi importante, mas também a habilidade da música
dar presença física e força visceral ao movimento” (Cieri e Peeps 2001, 271).
O contexto coletivo conecta o lugar onde uma apresentação acontece, com
quem será o público. A performance baseada na comunidade é habitualmente
encenada em igrejas e escolas, em parques e centros comunitários, e de fato, em
qualquer lugar onde se reúne o povo para o qual a apresentação é dirigida.

O próximo princípio, a reciprocidade, descreve a relação desejada entre


artistas baseados na comunidade e os participantes como algo mutuamente
nutritivo (mesmo que às vezes desafiador). Os participantes obtêm tais
satisfações como a imagem e a imaginação, quer dizer, a tradução de idéias
em formas, e o sonho sobre o que a vida poderia ser; a reflexão profunda,
um resultado da construção da peça; a distância crítica nas suas vidas; e a
visibilidade pública. Uma opinião constante das pessoas que participaram em
tais projetos é de como se sentiram apreciados por estarem um momento sob
o holofote e por serem tratados com respeito por pessoas interessadas nos
seus pontos de vista.

Por meio da autoridade da sua experiência e a particularidade da sua


imaginação, artistas tornam-se flexíveis ao aprenderem o que pessoas sabem e
sentem. O diretor artístico de Cornerstone, Bill Rauch, descreve a experiência
de ser preparado como um jovem diretor em Harvard para posteriormente
tornar-se diretor artístico de um teatro profissional regional. Porém, ele estava
decepcionado porque a maioria dos teatros regionais não eram, realmente,
expressões de suas próprias regiões. Ele sabia que havia muitas histórias que
nunca tinham sido ouvidas. De fato, o teatro profissional depende de agentes,
submissões de roteiros, audições, e métodos de treinamento particulares que
não são acessíveis a todo mundo que tem algo a expressar. Rauch acreditava
que ele cresceria ao conhecer coisas que ele não sabia, de pessoas espalhadas
pelo território Norte Americano, pessoas que tinham experiências diferentes
das experiências dele. Com um grupo de colegas que tinham idéias similares,
Rauch saiu na busca de um teatro que expressasse experiências tão ecléticas
quanto a variedade do próprio país. A companhia Cornerstone, fundada por
Rauch e seus colegas 1986, aproxima-se das pessoas tratando-as como
parceiros no processo criativo; enquanto a Cornerstone garante a parte técnica,
as pessoas, que vêem de circunstâncias bem variadas, oferecem o conteúdo.

A reciprocidade caracteriza o processo de arte baseado na comunidade.


Os dançarinos/facilitadores de Urban Bush Women, inspirados em A People’s
History of the United States de Howard Zinn, entram nas comunidades
convidando as pessoas a contarem histórias ainda pouco ouvidas. Eles
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chamam esse processo de juntar as histórias de “Quando os leões contam


histórias” que, como sugere o provérbio africano, é muito diferente da versão do
caçador (Zollar 2003). Em contraste aos especialistas de-cima-para-baixo que
supõem o que seria de interesse para o povo, este processo usa as habilidades
de artistas/facilitadores treinados para provocar e ajudar a um grupo variado
de pessoas a expressar suas histórias.

O elemento central de reciprocidade na relação artista/comunidade


é ouvir. Baseado em entrevistas extensas com pessoas que tiveram um
envolvimento com o Cornerstone, Ferdinand Lewis escreve sobre o respeito,
que toma forma concreta no saber ouvir: “O princípio de respeito refere-se
a valorizar a contribuição da comunidade em todos assuntos, e apreciar as
vidas e histórias dos parceiros e participantes comunitários de todas as formas
possíveis. Na nossa experiência quando existe este fator nas decisões criativas
e administrativas, é mais provável que os colaboradores contribuam de forma
mais integral e verdadeira com o trabalho. O respeito cria as condições para
que uma felicidade-em-criar essencial seja liberada, isto, por sua vez, envolve
os colaboradores de maneiras extraordinárias” (2003a, 6).

Eu vivenciei este tipo de reciprocidade pela primeira vez em 1969, após


conseguir meu primeiro trabalho como atriz profissional com o Players’ Theatre
de Manchester, em New Hampshire. Graças a uma bolsa, pela qual o governo
federal equiparou os orçamentos locais, nós estávamos apresentando uma peça
baseada em Daniel Webster de New Hampshire, nas pequenas cidades da região
das White Mountains, da Nova Inglaterra. As pessoas dessas cidades queriam
nos contratar, mas não saberiam dizer quanto de dinheiro poderiam nos pagar até
a noite da nossa apresentação, pois pretendiam angariar o dinheiro promovendo
um jantar de arrecadação antes do espetáculo. O que eles nos prometiam era um
jantar caseiro. Nós aceitamos estas condições e chegamos na câmera municipal em
uma atmosfera de grande animação. Quase todos os espectadores tinham feito um
prato delicioso, estabelecendo uma sensação de reciprocidade como eu raramente
tinha experimentado em qualquer outro evento. Este espírito contaminou a
própria apresentação do espetáculo, contando tanto com a generosidade extra dos
atores, como com a receptividade extra dos espectadores. Isto era um resultado
da criação mútua dos prazeres daquela noite.

Em contraste, o teatro comercial como instituição carrega um aparato


inteiro de hierarquia. Aqueles capazes de angariar mais fundos estão no topo,
sejam eles os produtores ou as estrelas. O dramaturgo geralmente é o segundo,
demonstrando a inclinação da civilização ocidental em favor da expressão
escrita acima da oral e física. A seguir vem o diretor, e depois o resto do “time
criativo”– designers, compositores e coreógrafos. Depois os atores meramente
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intérpretes, seguidos pelo mais abaixo ainda os técnicos, simples trabalhadores


qualificados. Por fim e por último, quando chega a ser discutido, está o público.
Alguns anos depois da minha experiência em New Hampshire, ao apresentar
em uma sala experimental “fora do circuito da cidade” (ou seja, fora de Nova
Iorque), eu tinha a terrível sensação de que não tinha ninguém na platéia. Não
eram as luzes brilhantes do palco e o auditório no escuro – um espetáculo
com base na comunidade pode escolher este desenho de luz para apoiar o
foco. Concebido mais como um teste fora da cidade, a apresentação não era
para os espectadores verdadeiros e sim uma preparação para se apresentar
em outros lugares. De uma forma profunda, o público para o qual estávamos
apresentando não estava lá.

Aplicar o critério de reciprocidade alivia várias concepções errôneas.


Por exemplo, a arte baseada na comunidade contrasta distintamente com
“serviço comunitário” que traz a idéia de um sopão, com os bem alimentados
de um lado servindo sopa para os famintos que recebem do outro lado. Este
modelo unidirecional não é recíproco; não apóia trocas significativas. Nem
esse campo é uma celebração monolítica do que é comum entre os humanos,
apagando as diferenças muito reais que podem existir entre artistas e parceiros
locais. A Reciprocidade depende de diálogo, que se refere a “duas ou mais partes
com pontos de vista diferentes trabalhando para conseguir um entendimento
comum em uma discussão aberta e cara a cara” (Bacon et al 1999, 12). Os artistas
têm que estar tão sensíveis às suas diferenças em relação aos participantes
quanto à base comum que compartilham. Todos os envolvidos precisam
apreciar verdadeiramente o que os outros dão como colaboração, se não for
desta maneira, por que fazer?

Baseado em sua teoria de heteroglossia, o teórico literário russo


Mikhail Bakhtin refere-se ao dialogismo como o modo quintessencial de
saber. No coração desta idéia complexa está a primazia do texto em relação
ao contexto: “uma palavra proferida num lugar particular num momento
particular significa algo diferente do que significaria em qualquer outra
circunstância” (Bakhtin 1981, 428). Dialogismo, para Bakhtin, significa que
tudo tem de ser entendido como parte de um todo maior. Existe uma interação
constante entre significados, todos os quais têm o potencial de condicionar
outros significados (426-427). Bakhtin vê o objetivo do diálogo não como uma
solução específica, mas como um co-entendimento. Ele também teoriza sobre
os nossos próprios diálogos internos na distinção que ele faz entre discursos
autoritários e discursos internamente persuasivos (341-342). O anterior
refere à voz do pai, do estado, a autoridade externa imposta de fora do ser. O
posterior refere-se a nossa própria autoridade internalizada, conseguida por
uma síntese das vozes internas e externas.
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A reciprocidade é refletida na posse conjunta do trabalho criado


pela comunidade local e pelo artista/facilitador. Às vezes há o perigo dos
artistas imporem a sua própria estética e ideologia. No entanto é necessário
precaução quanto a acusações de artistas “usarem” uma comunidade. Suzanne
Lacy mantém rédeas curtas nos desfiles e paradas que ela cria com centenas
de pessoas. Eu vejo isso como uma escolha metodológica, não como uma
imposição. Dentro do processo de Lacy, as pessoas têm muitas oportunidades
de explorar os seus assuntos, criar laços com outras pessoas, e se tornarem
mais públicas. Os artistas podem da mesma forma ser pouco envolvidos,
aparentemente não-comprometidos, o que pode resultar em um trabalho que
contradiz suas próprias posições políticas. Uma peça pode representar a todos
os envolvidos exceto o artista facilitador e arriscar assim cair em um modelo
unidirecional, o artista-ajudando-o-povo. A posse [autoral] coletiva é um
outro desafio que às vezes os artistas estão mais preparados para a mudança
do que a comunidade. Linda Parris-Bailey de Carpetbag Theater descreve a
necessidade do bom senso uma vez que a comunidade dela não é tão ativa:
“Às vezes a comunidade é desafiada e precisa ser desafiada, e às vezes não
gostam disso. Mas isto faz parte da maneira que nós todos crescemos. Então
não temos que agradar constantemente” (Watkins 2002b).

A Reciprocidade é enraizada em um modelo de construção comunitária


que “insiste em começar com um compromisso claro de descobrir as capacidades
e recursos de uma comunidade”(Kretzman e McKnight 1993, 1). Este modelo
contrasta-se com aquele que foca nas deficiências e nos problemas de uma
comunidade. Na performance baseada na comunidade, tanto os artistas como
os organizadores precisam encontrar os pontos fortes da comunidade. Os
organizadores comunitários John P. Kretzman e John L. McKnight explicam
que enquanto as comunidades pobres têm problemas, enfatizar exclusivamente
os aspectos negativos resulta em (1) residentes daqueles bairros pensando nas
deficiências como a realidade única; (2) tentativas fragmentadas de amenizar
a situação quando, na realidade os problemas geralmente são interligados;
(3) repasse de verbas para pessoas que oferecem serviços e não para os
residentes; e (4) a percepção de que só as pessoas de fora podem ajudar. Os
autores concluem que “o desenvolvimento comunitário significativo acontece
só quando pessoas locais da comunidade têm compromisso em envolver-se
e em investir seus recursos neste esforço” (5). Estes critérios aplicam-se às
parcerias entre artistas da mesma companhia, entre duas companhias, e com
participantes da comunidade, tanto indivíduos como instituições.

Ron Short do Roadside Theater expressa a satisfação pessoal resultante


de um terceiro princípio da performance baseada na comunidade, é o que eu
chamo de hifenação: “Porque eu não iria querer fazer este trabalho? É tão central
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a quem eu sou. É ritual e religião para mim. É a integração da minha história,


da minha cultura e da minha família” (Fields 2002a). O diretor artístico de
Jump-Start Steve Bailey diz: “Relaciona à criação de um intercâmbio com a
comunidade, que não acontece somente por meio de trabalho com teatro”
(Hennessey 2002). A performance baseada na comunidade é hifenada por
consistir tanto de disciplinas múltiplas (estética e algo mais como educação,
construção de comunidade, ou terapia) e funções múltiplas, tendo como
objetivos a eficácia e o entretenimento.

A noção de hifenação trás à memória a observação de Schechner de


que qualquer performance específica pode ser vista em um continuum entre a
eficácia e o entretenimento (1977, 75). Quanto mais as suas características caem
no primeiro termo, mais próxima ao ritual fica a performance, e quanto mais
suas características caem no termo posterior, mais a performance é teatro. De
fato, uma única performance encenada em dois contextos diferentes poderia
ser caracterizada diferentemente. Uma performance da dança da chuva, por
exemplo, é teatro, não ritual, quando apresentado para um público de turistas.
Mas feita por e para pessoas com o objetivo de trazer chuva, e dentro do
sistema espiritual ao qual aderem, é ritual.

De outra forma uma produção teatral pode virar ritual dependendo


do contexto. Assim foi a minha experiência em uma produção de Palsettoland
na Broadway, no início da década de noventa. Quando o protagonista
da peça lamentava a perda do seu amigo por causa da AIDS, eu chorava
pela perda do meu querido amigo David e sem perceber esbarrei em
um estranho ao meu lado. Ele, chorando com uma liberdade que também
pareceu transcender a morte da personagem, encostou-se em mim também,
comunicando uma grande empatia. Em todo lugar eu vi espectadores
chorando e senti que o evento teatral foi um grande funeral público para
nossos entes amados mortos pela AIDS. A força de atração na performance
baseada na comunidade é normalmente consistente de ambos os lados do
continuum ritual/eficácia e arte/entretenimento.

Os artistas experimentam com freqüência a arte em relação a algo


adicional à estética, como a religião, terapia, educação, ou a articulação e
expressão de um ponto de vista ou visão política. A performance baseada na
comunidade é ainda mais intrinsecamente hifenada. O poeta Muriel Rukeyser
(1974, 23-24) expressa a diferença entre arte sobre algo e arte que faz algo:
“Porque você imaginou amor, você não amou; meramente porque você
imaginou irmandade, você não fez irmandade.” Para os praticantes nesta área,
a expressão simbólica não basta; eles/elas querem que a sua arte tenha algum
impacto social concreto, e querem uma vida na arte que interaja com outros
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territórios (como a terapia ou a organização comunitária). Então a performance


baseada na comunidade desafia a estética tradicional que, segundo o American
Heritage Dictionary é “uma doutrina pela qual a arte e artistas são considerados
livres de qualquer obrigação ou responsabilidade fora da busca da beleza” A
concretude que Rukeyser evoca posiciona novamente este campo entre a arte
e o ritual, entre o entretenimento e a eficácia.

Para a artista baseada na comunidade Susan Ingalls, o objetivo geral


do seu trabalho não é fazer uma arte superior a qualquer custo, mas dar aos
participantes uma “experiência positiva fundamental.” Esta é uma aventura
que abre uma noção expandida do ser e do que o ser é capaz, e com ela, uma
sensação de preenchimento. A experiência positiva fundamental pode ser o
resultado de uma experiência emocional, intelectual, física, ou estética: uma
viagem a Outward Bound desafiadora ou um esporte de equipes tanto quanto
um esforço de produção artística. No mesmo espírito, o conceito de Ingalls
(1996) de “testemunha simpática”, o artista/facilitador que reforça o membro
da comunidade como princípio do seu trabalho, tem sentido em um campo que
não é preocupado somente com a estética.

Como um campo hifenado, a performance baseada na comunidade


se fundamenta em outras disciplinas além do teatro. Ingalls expandiu a sua
prática artística para servir a objetivos sociais influenciados por Teacher, o
relato de Sylvia Ashton-Warner sobre a instrução de crianças Aborígenes
na Austrália, começando com “palavras chaves” que as crianças geram que
são significativas para elas. Ingalls adaptou a prática de Ashton-Warner em
uma abordagem que ela chama de “Palavras Funcionam” [“Words Work”] e
conseguiu despertar o interesse de crianças na leitura, começando com as suas
próprias palavras chaves antes de avançar para textos.

Muitos artistas baseados na comunidade buscaram inspiração no


brasileiro Paulo Freire, cuja pedagogia libertária propõe uma teoria e um
método para alfabetizar, especialmente para adultos. O alcance de Freire supera
o reconhecimento de palavras e chega ao reconhecimento mais profundo,
um aprendizado de leitura do mundo: “Cada ser humano, não importa quão
‘ignorante’ ou submerso na ‘cultura de silêncio,’ é capaz de olhar criticamente
o seu mundo num diálogo de encontro com outros, e se oferecermos as
ferramentas certas para tal encontro ele pode gradualmente perceber a sua
realidade pessoal e social e lidar criticamente com ela” (Freire 1970, capa).

O companheiro brasileiro Augusto Boal integrou princípios centrais


da “pedagogia do oprimido” ao seu “teatro do oprimido”. Por exemplo, Freire
pediu o fim do modelo de educação bancária, dentro do qual os estudantes são
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tratados como recipientes passivos, objetos, dentro do qual o professor deposita


o seu conhecimento. No lugar disto, Freire propôs um método dialógico de
educação, onde todos são sujeitos. Similarmente, Boal substituiu o espectador,
o receptor passivo dos critérios do artista, com o especta-ator, que é capaz de
intervir e substituir o ator/protagonista por meio de uma série de técnicas que
dinamizam o espectador de outrora em um sujeito ativo.

Como etnografia, a arte baseada na comunidade é uma colaboração


entre artistas profissionais e pessoas de todo tipo, centrada na expressão de
comportamento e prática humana significativos. O antropólogo James Clifford
define etnografia como “maneiras diversas de pensar e escrever sobre a cultura
do ponto de vista da observação participante” (9). Segundo esta definição, os
artistas baseados na comunidade também são etnógrafos. De fato, o trabalho
de campo, a prática de pesquisa antropológica, baseada na observação
participante, pode ser tão valorizada pelos artistas baseados na comunidade
quanto para os antropólogos: “para poder entender e apreciar completamente
as ações da perspectiva dos participantes, deve-se aproximar e participar, de
um modo amplo e variado, das atividades do dia-a-dia deles, ao longo de um
período de tempo” (Emerson, Fretz, e Shaw 1995,10).

O princípio de cultura ativa reflete o reconhecimento de que as


pessoas normalmente têm mais retorno por fazer arte do que por ver os
frutos do trabalho de outros. Tais experiências motivam pessoas a minar dos
seus corações e das suas mentes experiências e concepções. A cultura ativa é
refletida também em um outro axioma central da área – que todo mundo tem
potencial artístico. Achar os pontos fortes estéticos de cada ator iniciante é um
dos desafios maiores para artistas baseados na comunidade. Bill Rauch é um
mestre na seleção de elenco para papéis que são enriquecidos pela experiência
pessoal do ator. Assistir ao chefe da tribo Walker River Paiute fazer o papel
do rei em The House on Walker River, adaptação da Orestéia de Ésquilo,
incrementou de tal maneira a performance que mais do que compensou a falta
de treinamento teatral do ator. Em outras palavras, como o campo se baseia
em disciplinas múltiplas, pode também aproveitar das múltiplas capacidades
das pessoas e aplicá-las na performance.

Liz Lerman vê seu papel como o de “manter-se aberta para ver a


beleza do que pessoas, sem treinamento nas artes, fazem e fazer isso funcionar.”
Lerman distingue entre o “processo criativo” e o “fazer artístico” O primeiro
é a livre exploração de temas, na medida em que o artista tenta fazer pessoas
sentirem-se relaxadas e confiantes e encorajar o fluxo de material. A segunda
fase é a edição e a formatação do material em algo que pode ser articulado
para um público que não participou do processo criativo. Alguns projetos

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comunitários ficam na primeira fase. Lerman está interessada no como trazer


os grupos para a segunda fase. Ela nota uma falácia na idéia de que somente
na arte comunitária os artistas se preocupam em não ferir os sentimentos dos
participantes no processo de edição. Ao contrário, ela percebe ser este um
processo delicado também companhias profissionais com projetos de criação
coletivas. Nos dois casos, o diretor/coreógrafo lida com lealdades conflitantes
– à obra de arte, aos participantes, ao público. Lerman (1997) acredita que os
artistas precisam ser duros sem serem cruéis, usar suas habilidades de edição
sem serem desnecessariamente autoritários.

A inclusão e a diversidade são dois outros elementos de cultura


ativa. Na “Matriz de Princípios de Teatro de Base/Popular,” esta idéia
é categorizada de duas maneiras. Primeiro, “A inclusão é um valor central
expresso por meio de preços de ingressos mais em conta, locais acessíveis, e
parcerias com organizações da comunidade.” A segunda é mais explicitamente
sobre a relação de justiça social: “O teatro de base é ligado às lutas para
igualdade cultural, social, econômica e política para todos”(Cocke et al 1993,
81). Cornerstone analisa a diversidade como um dos seus quatro princípios
centrais na colaboração comunitária (os outros três são a escuta, o respeito, e
a flexibilidade). Ferdinand Lewis escreve sobre o Cornerstone:

A experiência tem mostrado que nenhuma comunidade é tão


monolítica que não contenha uma grande mescla de diversidade...Como
estrutura para a criatividade, o conceito de diversidade pode liberar a
imaginação de idéias monolíticas, e estimular colaborações inesperadas...
[Q]uando possível, a equipe de montagem deveria representar uma
diversidade de experiências com colaborações do Cornerstone, incluindo
aqueles participantes que poderiam estar fazendo o seu primeiro projeto
junto com os que já colaboraram com a companhia no passado”. (2003a, 6)

Para o Cornerstone, então, a cultura ativa, expressa como inclusão e


diversidade, é ao mesmo tempo um pilar estético e filosófico do trabalho.

As quatro características de contexto comum, reciprocidade, hifenação,


e cultura ativa se reforçam mutuamente. Ter raízes em um contexto comum
é possibilitado por uma interação profunda e recíproca com as pessoas que se
identificam com aquele contexto. Expandir a participação – isto é, a cultura
ativa que leva para a performance hifenada – não-artistas trazem outras fontes
de conhecimento. Com a arte de um lado do hífen, o “algo mais” no outro lado
pode também formar o desenvolvimento de um projeto. A natureza daquela
performance, para servir ao máximo aquelas pessoas, é capaz de fazer algo

Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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U rdimento

além de ser algo, de ter objetivos de eficácia, assim como estéticos. Que o
processo de criação seja o mais ativo e inclusivo possível é tão importante
quanto a produção final. A performance baseada na comunidade significa
tanto construir a comunidade quanto expressar a comunidade.

A performance baseada na comunidade como processo

Os artistas baseados na comunidade podem lutar para incorporar os


valores, alcançar os objetivos, e se integrarem com os grupos porque este
tipo de performance não é somente a apresentação, mas todos os processos
anteriores e posteriores à apresentação. O tempo se abre; este trabalho é sobre
muito mais do que a transação entre atores e espectadores no período curto da
apresentação, por mais poderosa que esta seja. Como no teatro experimental
de forma geral, a performance baseada na comunidade é distinta por realçar o
processo. Boal explica porque os teatros populares tendem a enfatizar o que está
em processo e incompleto: “A burguesia já sabe como é o mundo, o seu mundo,
e pode, portanto, apresentar imagens desse mundo completo, terminado. O
proletariado e as classes exploradas, ao contrário, não sabem ainda como será
o seu mundo; conseqüentemente, o seu teatro será o ensaio” (1991, 164).

Os critérios de Boal sobre processo no teatro nos remetem ao grande


filósofo político Frederick Engels, que explica:

O grande pensamento básico que o mundo não é para ser


compreendido como um complexo de coisas já-feitas, mas como um
complexo de processos, no qual as coisas aparentemente não menos
estáveis do que as suas imagens-mentais nas nossas cabeças, os conceitos,
passam por uma mudança ininterrupta de chegar a ser e morrer,
na qual, apesar de todos os acidentes aparentes e de toda regressão
temporária, um desenvolvimento progressivo se afirma no final – este
grande pensamento fundamental tem, desde os tempos de Hegel, tão
completamente permeado a consciência ordinária que nesta generalidade
é quase nunca contradito. (Selsam e Martel 1963, 100-101)

A ênfase no processo cria espaços para interação e, talvez mais


importante, a base para acreditar na mudança, seja pessoal ou política. O
valor igual atribuído às fases pré e pós-apresentação – a peça, em e por si
mesma, não é a (única) coisa – corresponde à estrutura de ritos de passagem,
aquela categoria de ritual que propicia um processo não só para os indivíduos
passarem por mudanças, mas para a sua comunidade reconhecer e adaptar-se
a mudança. Como nos rituais, as performances baseadas na comunidade são
processos estruturados capazes de conduzir as pessoas pelas mudanças.
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

Segundo o antropólogo Arnold can Gennep (1960), os ritos de


passagem têm estruturas de três partes: separação, liminaridade, e reintegração.
Na primeira fase, as pessoas passando pela mudança são tiradas da sua vida
cotidiana para serem preparadas especialmente para a mudança. A fase média
é um período intermediário, durante o qual os participantes não estão mais
na categoria antiga, mas ainda não estão na categoria nova. A terceira fase,
freqüentemente marcada por uma performance, é o momento de reincorporar
a pessoa de volta à comunidade com o novo status. Um exemplo de um rito
de passagem é o casamento. A fase de separação corresponde ao período de
compromisso crescente durante o qual o casal para de flertar com outras
pessoas. Na fase de “noivado” o casal fica no meio – não são mais solteiros,
mas ainda não são casados. O casamento marca o novo status do casal na
comunidade como casados, não só para eles mesmos, mas também para pais e
amigos, com a mudança de comportamento que deveriam exibir também.

Richard Schechner (1985,21) identifica sete fases possíveis para


qualquer apresentação, em um “padrão análogo a ritos de iniciação” e
referindo-se a van Gennep. As primeiras quatro fases de Schechner –
treinamento, oficina, ensaio, e aquecimento – correspondem à primeira fase
ritual de van Gennep, a “separação.” São processos pelos quais os atores
passam antes de ter contato com o público, e durante os quais eles preparam-
se para a apresentação. A fase do meio do um rito de passagem, a liminaridade,
corresponde à quinta fase de Schechner, à apresentação, durante a qual a
transformação é representada simbolicamente, mas ainda não efetuada na
vida cotidiana. A noção de reintegração de van Gennep, o ponto no qual as
pessoas que passaram pelo rito de passagem se reúnem com a sua sociedade
com novos papéis e responsabilidades, corresponde às últimas duas fases de
Schechner, relaxamento e resultado. Estas fases garantem oportunidades
para experimentar os princípios da performance baseada na comunidade – o
contexto comum, a reciprocidade, a hifenação, e a cultura ativa.

A primeira fase é treinamento. Dada a natureza hifenada deste campo,


é necessário aprender habilidades múltiplas junto com as artísticas. Dudley
Cocke, por exemplo, enfatiza a necessidade de artistas de base aprenderem
organização comunitária. Escritora baseada na comunidade Alice Lovelace, ela
acredita que artistas trabalhando para mudança social precisam de treinamento
na resolução de conflitos. Habilidades particulares relacionadas à performance
também são valorizadas. O ator/diretor Mark McKenna reflete sobre a escola de
Dell’Arte, que ensina técnicas de teatros populares como a commedia, um modo
inerentemente interativo: “Estudantes chegam a entender a responsabilidade
do performer em relação ao público” (2002). O foco da escola está em criar
o seu próprio trabalho, uma habilidade crítica para os atores baseados na
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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comunidade. A Dell’Arte ensina uma percepção do artista como sendo o dono


do seu trabalho; Steve Bisher diretor associado da escola diz que antes de fazer
oficinas com Michael Fields, também da companhia, ele “não sabia que como
ator você poderia ter os seu próprios pensamentos”(McKenna 2002).

A próxima fase, oficina, é um período para construir a performance.


Incorpora input comum de uma forma ou de outra. Tanto as pesquisas primárias
como as secundárias geram material para criar o espetáculo. Histórias são
colhidas, o assunto em questão é investigado, e um roteiro é desenvolvido em
um processo envolvendo artistas e normalmente participantes da comunidade.
A estrutura de tal participação varia. Por exemplo, cada apresentação
comunitária de Cornerstone incorpora uma média de vinte encontros com
grupos e líderes principais e locais. A companhia começa por achar uma pessoa
local “apostando na fé”, e tornam esta pessoa um defensor do projeto, ajudando
a achar pessoas apropriadas para um comitê de conselheiros. Cornerstone diz
para o comitê como é que deveriam construir um projeto, e o comitê aconselha
como fazer esta construção naquele lugar. A inclusão da fase de oficina impacta
quem vem para o espetáculo. O membro da platéia de Dell’Arte, Kit Zettler
dá um exemplo: “Você não vai necessariamente conseguir um madeireiro que
venha assistir a esta peça e saia dizendo que ele nunca mais vai fazer isso.
Mas um madeireiro vem para a peça porque um amigo dele foi entrevistado
ou alguém conversou com ele” (McKenna 2002). Então ele acaba escutando
outros pontos de vista.

Uma variação na fase de oficina é o que Suzanne Lacy (2003) chama de


imersão, que focaliza a organização de habilidades de organização e também
estéticas. Em uma etapa anterior no processo, Lacy treina participantes
para contextualizar o trabalho em organizações comunitárias e na mídia.
Por exemplo, em Code 33, Lacy mandou que saíssem a campo participantes
adolescentes para conversar com repórteres e políticos sobre o policiamento
na comunidade, ainda enquanto elaboravam o espetáculo. Criar o fundamento
para os componentes públicos de Code 33 aconteceu em paralelo ao trabalho
nos seus componentes estéticos internos.

Durante o processo de ensaio, nos projetos integrando atores iniciantes,


as habilidades do artista têm que ser adaptadas às pessoas com quem irão
trabalhar. Percebendo o que um elenco não-treinado é capaz de repetir, o
diretor precisa fazer escolhas para realçar as forças e amenizar as fraquezas
dos atores. Alguns conjuntos, como Cornerstone, incorporam música, dança, e
espetáculo para intensificar a experiência estética. Os membros profissionais
do elenco são responsáveis não só por eles mesmos, mas também pelo elenco
comunitário, com freqüência ensaiando várias cenas pequenas simultaneamente
Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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para otimizar um tempo que nunca é o suficiente. Quando ensaiando com um


elenco completamente profissional, a performance baseada na comunidade se
assemelha com qualquer outra produção de grupo. Companhias como Dell’Arte
têm uma estética estabelecida, que só pode ser realizada por pessoas com anos
de treinamento. A repetição da fase de ensaio também funciona como ritual
por ligar membros do elenco que de outra forma nunca teriam se encontrado,
se conectado ou interagido.

Ambas as fases de oficina e ensaio dependem do que muitos facilitadores


chamam de “espaço seguro.” Baseado no valor de inclusão, como é que tais
artistas criam ambientes, utilizando habilidades além do fazer artístico, onde
as pessoas realmente podem participar? Como é que facilitadores mantêm uma
atmosfera livre e aberta sem permitir interações prejudiciais entre pessoas
acerca de suas diferenças? Como é que diretores identificam um papel que
uma pessoa vai exceder sem escolher pelo tipo físico dele ou dela? Como é que
artistas baseados na comunidade podem reforçar valores como diversidade
sem ficarem autoritários, especialmente quando valores contrários podem
estar fundidos com outras partes das vidas dos participantes?

Aquecimento é o processo que imediatamente precede a apresentação.


Em peças planejadas para otimizar a participação do público, é normalmente
dada aos espectadores uma forma de se preparar também, talvez por meio
de exercícios físicos ou vocais. O jantar de arrecadação da comunidade é um
outro formato popular. Cocke conta que “com freqüência os atores de Roadside
passam diretamente do encontro social ao palco e começam o espetáculo”
tendo assim estabelecido uma conexão.

Em seguida, a própria performance oferece maneiras dinâmicas para


a troca ator-espectador e ilustra a hifenação da área. Red Summer do
Carpetbag Theater foi baseado na documentação histórica sobre ativistas de
Knoxville, durante a era de direitos civis. A diretora Linda Parris-Bailey
viu Red Summer como uma maneira de dizer para os residentes que a
crença de que nada poderia mudar era historicamente incorreta: “Talvez, se
simplesmente pudermos lembrá-los do que existia antes aqui, vocês possam
ver algumas possibilidades para o futuro. Falamos de pessoas que assumem o
controle” (Watkins 2002b). Parris-Bailey também enxerga um componente
fundamentalmente celebratório nas peças históricas da companhia. E é uma
satisfação para os atores e o público devolver para as comunidades histórias
originárias dali. Uma outra função do espetáculo é a crítica pública. O texto
de Agents and Assets do LAPD é a transcrição de uma audiência do congresso
sobre o envolvimento da CIA na venda de cocaína na Califórnia. É uma crítica
à Guerra contra Drogas. LAPD é composto principalmente de pessoas sem-
Dezembro 2008 - N° 10 Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz

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teto. Existe uma ironia quando se escuta as palavras de políticos educados


e habilidosos faladas por atores que em algum momento foram vítimas da
guerra contra drogas. Ter um ator do LAPD retratando um político cria uma
crítica embutida. The Embrace do Pregones é um exemplo de uma produção
que integra o diálogo do público. Utilizando o teatro-fórum de Boal, os
espectadores são convidados a substituir um protagonista na luta sobre uma
questão social, neste caso como um resultado de se estar com AIDS. Os
espectadores encenam diferentes maneiras possíveis de lidar com estas lutas,
como parte do espetáculo, entrelaçado com diálogo.

A fase de relaxamento segue imediatamente após o espetáculo e pode


tomar a forma de uma discussão. Apesar de serem freqüentemente efetivas,
as discussões não são sempre o mais desejado. Às vezes os espectadores não
estão prontos para conversar sobre um espetáculo tão rapidamente; às vezes
os artistas trazem líderes para a discussão, mas o público só quer ouvir do
artista. O Pregones geralmente poupa a discussão para obras novas que eles
pedem para o público avaliar. As histórias que pessoas contam nas rodas
de histórias seguindo as apresentações de Roadside garantem um tipo de
crítica, ajudando o conjunto a sentir se fizeram um trabalho efetivo ou não.
Um outro local de reciprocidade são os painéis pós-espetáculo, que podem
ser tão valiosos para participantes especialistas como para os artistas.
No Agents and Assets, especialistas sobre a CIA em um painel relataram
ser educados por co-participantes de Skid Row. Em um outro exemplo, o
Cornerstone, em uma colaboração com Touchstone Theater, arranjou encontros
pós-espetáculo com sobremesas e drinques para que espectadores pudessem
ter conversas não mediadas uns com os outros. Os artistas de Alternate
ROOTS habitualmente usam o Processo de Resposta Crítica desenvolvida
pela coreógrafa Liz Lerman, depois de mostrarem um trabalho ainda em
construção. Lerman desenvolveu este processo para por o próprio artista
em controle da sessão de comentários.

Resultados/atividades de longo-prazo seguindo o espetáculo, mas não


imediatamente, levam a iniciativa ainda mais além. Porque um dos mantras
deste campo é a sustentabilidade: artistas têm que deixar algo para trás. No
final do dia, depois do fim da apresentação, há pessoas locais com habilidades
para facilitar outros trabalhos? Existe uma rede de apoio, qualquer tipo de
programa contínuo para pessoas cujos apetites não foram satisfeitos?

Os resultados são a etapa seguinte à apresentação, durante a qual


espectadores, possivelmente facilitados pelos artistas, atuam sobre novas
percepções. Os exemplos de resultados são ecléticos. Durantes os anos
nos quais o Cornerstone fez residências em cidades pequenas por todos os

Entre o Ritual e a Arte. Jan Cohen Cruz Dezembro 2008 - Nº 10

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Estados Unidos, eles doaram dinheiro para cada cidade iniciar um teatro.
LAPD fez uma parceria com uma organização chamada SRO (Single-Room
Occupancy) Housing, que, até 2002, tinha reformado trinta cortiços que
foram transformados em hotéis para a ocupação de quartos individuais.
(Lewis 2002b). De forma geral eles compartilham a missão de ajudar
pessoas a deixar as ruas. LAPD adiciona uma dimensão criativa ao SRO,
que por sua vez providencia uma infra-estrutura que alimenta o LAPD. Às
vezes assistir a uma performance baseada na comunidade influencia uma
decisão posterior de se envolver ativamente na vida política/cívica. Como o
conceito de Ingall, da experiência chave-positiva, às vezes leva anos para as
pessoas perceberem que tiveram uma experiência transformadora por meio
da arte, ou, em termos rituais, que passaram por um rito de passagem que
efetuou uma mudança permanente.

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U rdimento

A Opção pelo Teatro em Comunidades:


alternativas de pesquisa

Márcia Pompeo Nogueira1

O significado do Teatro em Comunidade ficou claro para mim quando


estreamos o espetáculo “A Outra História do Boi”, em Ratones, em 1995. Era
o terceiro espetáculo feito pelas crianças e jovens desta comunidade, desde que
iniciamos o projeto de extensão2 em 1991. Na apresentação deste espetáculo
saímos da escola – local onde aconteciam as oficinas – e apresentamos no centro
comunitário da igreja local. O espaço estava lotado de pessoas da comunidade
que, na grande maioria, nunca tinha assistido a uma peça teatral.

O tema da montagem havia nascido de uma investigação com os moradores


dessa comunidade motivada por uma curiosidade: por que uma comunidade do
interior da Ilha de Santa Catarina, mais preservada em relação ao turismo do que
outras comunidades de Florianópolis, não possuía um grupo de Boi de Mamão,
tão popular nas outras comunidades? Entrevistando os moradores, descobrimos
que a brincadeira era viva na comunidade, mas parou de ser praticada há trinta
anos. Em função desta resposta, Reonaldo Manoel Gonçalves (Nado), um dos
integrantes de nossa equipe, coordenou um processo de resgate do Boi de Mamão,
em Ratones, identificando os antigos praticantes do Boi e incluindo as crianças e 1
Márcia Pompeo
os jovens do grupo de teatro na revitalização da brincadeira. Nogueira é professora
do CEART/UDESC,
doutora em Drama
Durante as entrevistas, uma pessoa nos deu uma informação curiosa.
pela Universidade de
Disse ter havido um assassinato da pessoa que dançava no miolo do boi, durante Exeter, Inglaterra.
uma apresentação e que depois disso nunca mais se dançou o Boi de Mamão em 2
Projeto "Teatro com
Ratones. Não pudemos confirmar esse depoimento com outros moradores, mas
Crianças e Adoles-
ele nos motivou na criação do espetáculo “A Outra História do Boi”. Esse dado, centes" do Centro de
verídico ou não, simboliza a morte das tradições culturais em Ratones. O processo Artes da UDESC.

Dezembro 2008 - N° 10 A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira

127
U rdimento

de montagem foi feito em torno dessa informação, envolvendo também, na


construção dos personagens, conteúdos e formas pesquisados pelos atores junto
a pessoas da comunidade. Por outro lado, o processo criativo envolveu a pesquisa
sobre teatro de sombras que, somada à prática de jogos teatrais, já incorporada na
representação do grupo, representou um passo a mais na sua expressão estética.

Não sei ao certo se foi pela vinculação com as tradições culturais da


comunidade, se pelo envolvimento da comunidade com a pesquisa do Boi
de Mamão, que divulgou o trabalho teatral que lá acontecia, se pelo nosso
histórico junto com a comunidade, já que desenvolvíamos o trabalho teatral
há vários anos ou mesmo se foi pela qualidade estética do grupo que – apesar
de ser bem diferente de uma estética de um teatro profissional - já tinha um
domínio considerável dessa linguagem artística. O certo é que o espetáculo
atraiu um número enorme de moradores que participou tão ativamente da
apresentação que me fez optar definitivamente por este tipo de teatro. Lembro-
me dos comentários feitos em voz alta sobre o que acontecia em cena, das
risadas, do burburinho, dos aplausos e da felicidade dos integrantes do grupo
após a apresentação. Era um teatro vivo!

Passei então a nomear meu trabalho de Teatro na Comunidade.


Logo um colega me questionou. Comunidade? Como falar em comunidade
na contemporaneidade, justamente no momento em que diversos teóricos
questionam sua existência?

O Conceito de Comunidade

O conceito de comunidade, debatido por Zygmunt Bauman, apóia-


se no conceito de Ferdinando Tönnies de Gemeinschaft – um espaço de
“entendimento compartilhado por todos os seus membros” (Bauman,
2003,p.15), onde o entendimento comum flui naturalmente – para dizer que
essa comunidade não existe.

Refletindo sobre este conceito, Bauman esclarece que não se trata


de um consenso adquirido no debate. Trata-se de um tipo de entendimento
que precede todos os acordos e desacordos. Não é um pondo de chegada,
mas um ponto de partida (ibidem, p.15). A comunidade que habitamos é bem
diferente desse paraíso perdido.

A comunidade realmente existente se parece com uma


fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas
vezes invisíveis) de fora e freqüentemente assolada pela discórdia

A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira Dezembro 2008 - Nº 10

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interna; trincheiras e baluartes são os lugares onde os que procuram


o aconchego, a simplicidade e a tranqüilidade comunitárias terão que
passar a maior parte de seu tempo. (ibidem, p.19)

Já no conceito de comunidade proposto por Anthony Cohen, os


embates dentro e fora da comunidade fazem parte de uma construção de
sentido. Uma instância de negociação de significados que se situa num espaço
intermediário entre a família e a sociedade:

[Comunidade] É a entidade à qual as pessoas pertencem,


maior que as relações de parentesco, mas mais imediata do que a
abstração a que chamamos de “sociedade”. É a arena onde as pessoas
adquirem suas experiências mais fundamentais e substanciais da vida
social, fora dos limites do lar. (Cohen: 1998, p. 15)

Para Cohen, a comunidade não significa a mesma coisa para todas as


pessoas. Ela é um símbolo de algo comum. As pessoas podem compartilhar
símbolos sem compartilhar significados.

Por sua natureza, os símbolos permitem interpretação e oferecem


possibilidades de manobras interpretativas para aqueles que os usam.
Os símbolos são frequentemente definidos como coisas que se colocam
‘no lugar’ de outras. Mas eles não representam essas outras coisas sem
ambiguidades. (...) Eles podem portanto prover um meio através do
qual indivíduos podem experimentar e expressar seus vínculos com uma
sociedade sem comprometer suas individualidades. (ibidem, p. 18)

Como exemplo ele analisa este símbolo: . As pessoas que se


associam a este símbolo podem ter posições diferentes sobre muitos dos
significados atrelados a ele no que diz respeito, por exemplo, a sua atitude em
relação à OTAN ou ao bloco soviético, à importância do cristianismo, pacifismo,
socialismo, apoio ao desarmamento nuclear. (ibidem, p. 18) Portanto, pessoas
com visões opostas podem aderir ao mesmo símbolo por diferentes razões.
Podem também mudar seu entendimento sobre essa opção a partir do debate
no interior dessa comunidade.

Comunidade e tudo o que existe nela, conceitualmente e


materialmente, tem uma dimensão simbólica, e, mais profundamente,
esta dimensão não existe enquanto um consenso de sentimento. Em
vez disso, existe como algo para as pessoas ‘pensarem’. Os símbolos

Dezembro 2008 - N° 10 A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira

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são construções mentais: permitem às pessoas fazerem sentido. Dessa


forma, também possibilitam a elas os meios de expressão do significado
particular que a comunidade tem para eles. (ibidem, p. 19)

Mesmo entendendo que Bauman contribui para a reflexão sobre o


significado da comunidade na contemporaneidade, é o conceito proposto
por Cohen que mais contribui para o nosso entendimento sobre teatro
na comunidade.

A afirmação de um teatro voltado para comunidades específicas pode


ser aprofundada pelo entendimento de que a comunidade, pelo menos enquanto
um símbolo comum, existe e que o teatro pode contribuir para a necessária e
permanente construção do sentido da comunidade.

Reforçando meu comprometimento sobre este tipo de teatro, entrei


em contato com o debate internacional nesta área. De um modo geral, pude
aprofundar meu entendimento sobre este tipo de teatro e sobre o significado
da prática desenvolvida em Ratones. Por outro lado, pude identificar que o
preconceito ao teatro em comunidades também existe fora do Brasil, como
bem pontua Eugene van Erven:

Não são somente os participantes considerados periféricos. Teatro em
comunidade como uma forma artística também o é (2001, p. 2).

Nomenclatura e significado

De um modo geral o teatro em comunidade existe em todos os


continentes do planeta, mas são vários os entendimentos sobre o seu significado
e são vários também os termos utilizados para nomeá-lo. Baz Kershaw propõe
a seguinte definição de Community Theatre (Teatro na Comunidade):

Sempre que o ponto de partida [de uma prática teatral]


for a natureza de seu público e sua comunidade. Que a estética de
suas performances for talhada pela cultura da comunidade, de sua
audiência. Neste sentido estas práticas podem ser categorizadas
enquanto Community Theatre (Teatro na Comunidade).
(Kershaw: 1992, p. 5)

Para Kershaw, toda comunidade é parecida no que diz respeito às


diferenças internas que abriga e ao papel de mediação que assume entre o
indivíduo e a sociedade. Ele cita dois tipos de comunidade:

A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira Dezembro 2008 - Nº 10

130
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‘Comunidade de local’ é criada por uma rede de


relacionamentos formados por interações face a face, numa área
delimitada geograficamente.
‘Comunidade de interesse’, como a frase sugere, são formadas
por uma rede de associações que são predominantemente caracterizadas
por seu comprometimento em relação a um interesse comum. Quer
dizer que estas comunidades podem não estar delimitadas por uma
área geográfica particular. Quer dizer também que comunidades
de interesse tendem a ser explícitas ideologicamente, de forma a que
mesmo que seus membros venham de áreas geográficas diferentes, eles
podem de forma relativamente fácil reconhecer sua identidade comum.
(ibidem, p. 31)

No primeiro sentido, acredita-se que pessoas que vivem e/ou


trabalham numa mesma região possuem determinadas vivências e problemas
comuns, enquanto o segundo indica que algumas pessoas comungam de idéias,
se identificam por um olhar preconceituoso com que são vistas, ou sofrem
uma mesma exclusão, como por exemplo: mulheres, homossexuais, negros,
meninos de rua, domésticas, entre outros.

Eugene van Erven utiliza a mesma nomenclatura e sua definição é


semelhante à de Kershaw:

Community Theatre (Teatro na Comunidade) é um 3


Jan Cohen Cruz é au-
fenômeno mundial que se manifesta de diferentes formas, produzindo tora dos livros Local
uma ampla gama de estilos de representação. Elas se unem, eu penso, por Acts: Community
sua ênfase em histórias pessoais e/ou locais (no lugar de peças prontas) Based Performance
in the United States.
que são trabalhadas através de improvisação e ganham coletivamente New Jersey: Rutgers
uma forma teatral sob a direção de um artista profissional – que pode University Press,
ou não estar ativo em outros tipos de teatro profissional – ou de um 2005; Radical Street
artista amador que reside com o grupo que, por falta de um termo Performance:
an international
melhor, pode talvez ser chamado de “periférico”. (Erven, 2001, p. 2) anthology. Londres:
Routledge, 1998;
Jan Cohen Cruz3, da Universidade de Nova York, também se refere a uma Cohen-Cruz, Jan;
Shutzman. Playing
prática teatral criada a partir de interações com comunidades específicas, mas o termo
Boal: Theatre, Thera-
que ela utiliza é Community-based performance (Teatro baseado na comunidade): py, Activism. Londres:
Routledge, 1994 e
A Boal Companion:
Uma produção de community-based performance é Dialogues on Theatre
geralmente uma resposta a um assunto ou circunstância coletivamente and Cultural Politics.
significativos. É uma colaboração entre um artista ou grupo de artistas Londres: Routledge, 2006.

Dezembro 2008 - N° 10 A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira

131
U rdimento

e uma “comunidade” na qual a última é a fonte principal do texto,


possivelmente também dos atores, e definitivamente de grande parte
do público. Ou seja, a base da community-based performance não
é o artista individualmente, mas sim uma “comunidade” constituída
por meio de uma identidade primária compartilhada, baseada em
local, etnia, classe, raça, preferência sexual, profissão, circunstâncias ou
orientação política. (Cohen-Cruz, 2005, p. 2)

Outros autores, apesar de utilizarem outros nomes, também situam


4
Helen Nicholson é estas práticas em comunidades. Helen Nicholson4 utiliza o termo Applied
do Departamento de
Drama (Drama Aplicado), título de seu mais recente livro:
Drama e Teatro da
Royal Holloway, Uni-
versidade de Londres. [Teatro Aplicado] é uma investigação sobre o valor e os
valores do drama, teatro e a performance que acontecem num local
da comunidade e num contexto educacional. É sobre o fazer teatral
em diferentes locais, algumas vezes nada glamurosos – como por
exemplo, asilos de idosos, abrigos de sem-tetos, escolas e prisões –
dirigidas por praticantes que têm experiência facilitando drama
com participantes community-based (baseados na comunidade).
(Nicholson, 2005, p.2)

Um termo semelhante Applied Theatre (Teatro Aplicado) é proposto


5
Professor associado por Philip Taylor5, embora faça referência a um direcionamento mais explícito
do Departamento da prática teatral, voltada para solução de problemas:
de Música e Artes
da Performance, da
Universidade de Nova Applied Theatre opera a partir de um princípio central de
York. transformação: gerar consciência sobre assuntos particulares (prática
sexual segura), ensinar conceitos particulares (alfabetização e
matemática), questionar ações humanas (crimes odiondos, relações
raciais), prevenir comportamentos perigosos (violência doméstica,
suicídio de jovens), para curar identidades rompidas (abuso sexual,
imagem corporal), mudar situações de opressão (vitimização pessoal,
proibição política de votação). Esses princípios de transformação são
próximos de outros movimentos participativos e de teatro comunitário,
onde a principal ênfase recai nas aplicações do teatro para ajudar
as pessoas a refletir mais criticamente no tipo de sociedade em que
desejam viver. (Taylor, 2003, p.1)

Outro termo usado na bibliografia que também se refere a práticas


teatrais com comunidades é o popular Theatre (Teatro Popular):

A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira Dezembro 2008 - Nº 10

132
U rdimento

Teatro popular é um processo teatral que envolve profundamente


comunidades específicas na identificação dos temas de sua preocupação,
analisando as condições existentes e causas de situações, identificando
pontos nevrálgicos, e analisando como uma mudança pode acontecer
e/ou contribuindo para a ação implicada. O teatro é sempre parte
do processo de identificação e da exploração de como a situação ou o
assunto pode ser mudado. (Prentki; Selman, 2000, p. 8)

É interessante notar que, apesar da diversidade de entendimento do


significado do trabalho voltado para comunidades e da terminologia usada
para designá-lo, existe uma unanimidade no reconhecimento da influência
de Paulo Freire e Augusto Boal, presentes na bibliografia pesquisada (Cohen
Cruz, 2005, p. 98); (Cohen Cruz, 2005, p. 98); (Prentki; Selman, 2000, p.12).

Enfim, havia uma ampla bibliografia sobre teatro em comunidade que,


apesar da diversidade de nomes e de abordagens metodológicas, possuíam
pontos em comum com o que eu fazia em Florianópolis.

Teatro e Comunidade no Brasil

Reconhecer o trabalho em Ratones como Teatro na Comunidade


e identificar a vinculação desta prática com trabalhos feitos nos diversos
continentes do planeta foram passos que levaram à sedimentação de um campo
de pesquisa. Seria o trabalho com a comunidade de Ratones um trabalho
isolado? Alguns indicadores me levavam a pensar que sim: a bibliografia sobre
teatro em comunidades no Brasil era rara, nas conferências que eu tomava
parte, pouco se falava sobre trabalhos nessa área e este conteúdo não fazia
parte dos currículos da grande maioria dos cursos de Artes Cênicas. Existiriam
outras práticas significativas nessa área, no Brasil?

O projeto de pesquisa “Banco de Dados em teatro para o


desenvolvimento de comunidades” foi formulado a partir da necessidade de
contribuir para o mapeamento dessa modalidade de práticas de teatro, no
Brasil, através do preenchimento de formulário on line6. Partindo de pesquisa 6
O projeto Banco de
de endereços eletrônicos de grupos a serem contatados, identificamos dados foi criado em
2005. Pode ser aces-
trabalhos diversos e solicitamos que respondessem o questionário e que
sado pelo endereço:
passassem a fazer parte do Banco de Dados. O formulário foi concretizado, mas http://teatrocomuni-
seu preenchimento ficou aquém das expectativas. Paralelamente, a pesquisar dade.ceart.udesc.br/).
incluiu investigação sobre grupos específicos, de forma a aprofundar os dados
iniciais contidos nos formulários. Nesse trabalho foram identificadas seis
modalidades básicas de teatro em comunidades, principalmente relacionadas
às instituições a que se vinculam.

Dezembro 2008 - N° 10 A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira

133
U rdimento

7
Ver Viganó, Suzana O Teatro Comunitário religioso é a origem do engajamento de
Schmidt As Regras do muitos jovens com a prática teatral. Envolve práticas ligadas a datas religiosas
Jogo: a ação cultural
em teatro e o ideal
como a representação da Paixão de Cristo que pode adquirir contornos mais
democrático. São ou menos comunitários; trabalhos vinculados a grupos de jovens; trabalhos
Paulo: Hucitec, 2006. assistenciais etc. A prática teatral com comunidades pode ser identificada
junto à religião espírita, pentecostal, católica etc. Destaco, a título de exemplo,
8
Ver Silva , Rosemeire
da; Nogueira, Márcia
o trabalho de conclusão de curso de Reginaldo Maurício Ferreira “O Papel do
Pompeo "Estudo de Teatro Religioso na comunidade do Ribeirão da Ilha: a Encenação da Paixão
Caso em Teatro na de Cristo” (2005), que detalha um processo de aprofundamento das qualidades
Comunidade: o Grupo teatrais da encenação da Paixão de Cristo paralelo a um envolvimento crescente
União".
da comunidade do Ribeirão da Ilha, Florianópolis, na encenação.
9
As místicas são
representações A prática teatral em ONGs tem se multiplicado recentemente. Alguns
artísticas desenvol- estudos já se dedicam a esse tema7 mas ainda há muito que se aprofundar, em
vidas coletivamente função da quantidade e da variedade de práticas. Vinculada a essa modalidade,
pelos militantes do a bolsista de iniciação científica Rosimeire da Silva pesquisou a prática do
Movimento dos Sem
Terra há cerca de
“Grupo Nova União”, coordenado por Virginia Costabile, a partir de contato
vinte anos. Segundo com a ONG Novo Olhar, que atua em São Miguel Paulista, São Paulo8.
João Pedro Stedille,
elas têm o objetivo de A ligação do teatro em comunidades com movimentos sociais pode
manter o engajamen- ser identificada, por exemplo, no trabalho de teatro no MST – Movimento dos
to e a unidade, dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Além de uma prática bastante teatralizada,
militantes, na luta pela
reforma agrária no
que existe desde a origem do movimento, as chamadas Místicas9, o MST recebe
Brasil (Stedille, 1999, p.). influência do Teatro do Oprimido que já ofereceu oficinas para multiplicadores
do movimento. Outras influências vêm de contatos de grupos teatrais com o
10
Ver Rótulo, Guilher- MST, como por exemplo a Companhia do Latão que influenciou o trabalho
me; Nogueira, Márcia
Pompeo "Práticas
do grupo do MST Filhos da Mãe... Terra. O bolsista de iniciação científica,
Teatrais no MST". vinculado a esse projeto, Guilherme Rótulo, pesquisou a prática teatral no
MST, identificando uma rede de trabalhos teatrais comunitários vinculada
11
Maria Amélia a esse movimento político10. O que impressiona nessa vinculação do teatro
Gimmler Netto pesqui-
sou em 2006 três prá-
em comunidade é a incorporação da estrutura e organização política para
ticas teatrais comu- disseminar a prática teatral.
nitárias: Parque dos
Maias, Bairro Cristal A proposta de práticas teatrais comunitárias enquanto políticas
e Bairro Humaitá, que públicas acontece diferentemente em cidades brasileiras. A bolsista de
eram vinculadas aos
projetos da Secretaria
iniciação científica Maria Amélia Gimmler Netto11, vinculada a esse
de Descentralização projeto, nos aproximou das Oficinas Populares de Teatro, da Secretaria da
da Cultura e existiam Descentralização da Cultura em Porto Alegre. Criadas na gestão do Partido
há mais de três anos. dos Trabalhadores na prefeitura desta capital, o trabalho pôde se manter
Ver Nogueira, M. P.; por muitos anos, criando diversos grupos que são articulados em diferentes
Gimmler Netto, M. A
"Teatro e Comunidade
eventos. Muitos deles atuam em comunidades específicas por vários anos.
em Porto Alegre: um Três desses grupos foram investigados pela bolsista no artigo “Em Busca de
estudo de caso". Práticas Teatrais Comunitárias em Porto Alegre”.
A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira Dezembro 2008 - Nº 10

134
U rdimento

O teatro de Grupo também está na origem de muitos trabalhos de


teatro em comunidades. Essa ligação pode ter sua origem na necessidade de
sobrevivência financeira do grupo e dos seus membros, pode também estar ligada
aos objetivos intrínsecos do grupo e pode ainda levar em consideração ambos
fatores. A interação da Cia do Latão com o MST, citada acima é um exemplo de
uma vinculação intrínseca aos objetivos do grupo.
Existem também práticas teatrais comunitárias que se vinculam
a comunidades de local, buscando financiamentos diversos, mas existindo
independente deles. Destaco o grupo Nós do Morro, da favela do Vidigal, no Como banca de
12

Rio de Janeiro, pesquisado por Marina Henriques na UNIRIO12. Destaco Mestrado, reda-
também a pesquisa do bolsista de iniciação científica, vinculado a esse projeto, ção conjunta de
Mário César Coelho Gomes, que pesquisou o grupo de teatro de São Gonçalo artigo internacional
e co-orientação de
do Bação13, Minas Gerais, cujo trabalho contribui há mais de vinte anos para
doutorado.
a afirmação da identidade da cultural da cidade.
Ver Gomes, Mario
13

Mesmo não esgotando todas as possibilidades de teatro em César c.; Nogueira,


comunidades, e sabendo que essa classificação apresenta modelos de práticas Márcia P. "Garimpan-
que muitas vezes se interpenetram, identifico essas seis modalidades de do o Teatro de São
Gonçalo do Bação".
teatro vinculado a comunidades como um vasto campo de pesquisa. O atual
mapeamento do Banco de Dados em Teatro em Comunidades representa
apenas a ponta de um iceberg. Cada modelo de teatro em comunidade
precisa ser investigado mais amplamente para que sua compreensão possa
ser aprofundada.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
COELHO, Mario César; Nogueira, Márcia P..” Garimpando o Teatro de
São Gonçalo do Bação”. In Anais da IV Jornada de Pesquisa do CEART, 2008
(no prelo).
COHEN, Anthony P. The Symbolic Construction of Community. Londres:
Routledge, 1998.
COHEN-CRUZ, Jan. Local Acts: community-based performance in the United
States. New Jersey: Rutgers University Press, 2005.
COUTINHO, Marina Henriques; NOGUEIRA, Márcia Pompeo. “The use of
dialectical approach for community theatre by the group Nós do Morro, in the
Vidigal favela of Rio de Janeiro”. In PRESTON, Sheila; PRENTKI, Tim. A
Companion to Applied Theatre. Londres: Routledge, 2008.
FERREIRA, Reginaldo Maurício. “O Papel do Teatro Religioso na comunidade
do Ribeirão da Ilha: a Encenação da Paixão de Cristo”. Trabalho de Conclusão de
Curso, CEART/UDESC, 2005, não publicado.
Dezembro 2008 - N° 10 A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira

135
U rdimento

GIMMLER Netto, M.A.; NOGUEIRA, M. P, M. A “Teatro e Comunidade em


Porto Alegre: um estudo de caso”. In Anais da II Jornada de pesquisa do CEART
e 16o Seminário de Iniciação Científica UDESC, 2006
KERSHAW, Baz. The Politics of Performance: Radical Theatre as Social
Intervention. Londes: Routledge, 1992.
NICHOLSON, Hellen. Applied Drama: the Gift of Theatre. Basingstoke:
Palgrave Macmillan, 2005.
PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture: Britain and Canada in
Focus. Bristol: Intellect, 2000.
RÓTULO, Guilherme; NOGUEIRA, Márcia Pompeo “Práticas Teatrais no
MST”. In Anais da III Jornada de Pesquisa do CEART, 2007.
SILVA, Rosemeire da; NOGUEIRA, Márcia Pompeo “Estudo de Caso em
Teatro na Comunidade: o Grupo União”.In Anais da II Jornada de pesquisa do
CEART e 16o Seminário de Iniciação Científica UDESC, 2006.
TAYLOR, Philip. Applied Theatre: Creating Transformative Encounters in the
Community. Portsmouth: Heineman, 2003.
VIGANÓ, Suzana Schmidt. As Regras do Jogo: a ação cultural em teatro e o ideal
democrático. São Paulo: Hucitec, 2006.

A Opção pelo Teatro em Comunidades... Márcia Pompeo Nogueira Dezembro 2008 - Nº 10

136
U rdimento

1
Tradução de Daniel
Yencken e Maria
Brigida de Miranda.
Agradecimentos:
Eu sou muito grato a
Frank Hildy e Janelle
Reinelt pelo convite
para apresentar este
artigo, que forma o
núcleo deste capítulo,
Artistas Cidadãos no Século XXI: na 2005 IFTR Annual
Em Busca de uma Perspectiva Ecológica1 Conference ‘Citizen
Artist: Theatre,
Baz Kershaw Culture and Com-
munity’ na University
of Maryland, nos EUA.
Sou igualmente grato
Prefácio a Christopher Balme
e Meike Wagner por
me convidarem a par-
O artigo que deu origem à parte principal deste texto foi primeiro
ticipar da excelente
apresentado em uma palestra de abertura dada em julho de 2005, na conferência conferência anual
anual da International Federation of Theatre Research, na Universidade de International Promo-
Maryland, nos EUA. O tópico da conferência era a noção de ‘artista cidadão’. tions Programme
Eu abordei as políticas deste termo por meio de um aporte para pesquisa que in Performance
and Media Studies,
desafia os binarismos comuns da formação do conhecimento: no Reino Unido financiada pela UE,
isto é conhecido como ‘prática como pesquisa’2. A prática como pesquisa é um entre 2001 e 2005,
método que fundamentalmente questiona as distinções convencionais entre e aos estudantes
teoria e prática, ao colocar a prática da performance no centro do processo de e funcionários por
suas contribuições
pesquisa3. Então, os três exemplos deste artigo foram retirados das minhas
amigáveis e sempre
próprias produções anteriores encenadas em diferentes décadas, para oferecer estimulantes para a
uma ‘visão profunda’ (em oposição à convencional ‘visão geral’ das palestras pesquisa.
de abertura) de como alguns tipos de espetáculo politizado engajam-se com 2
Os termos cognatos
na questão cidadania. no Reino Unido são
‘practice-based
Eu exploro as produções da perspectiva daqueles que estão envolvidos research’ (pesquisa
com a prática da performance, para expor a relevância das produções baseada na prática)
e ‘practice-led
para o ‘artista cidadão’ em seus contextos sociais e históricos, em parte research’ (pesquisa
para sugerir como a performance ao vivo pode ser considerada como um liderada pela prática).
fenômeno ecológico, complexamente engajada como um elemento integral
Entre 2000-2006 eu
3
para processos-chave de mudanças em seu meio ambiente. Portanto, minha dirigi um projeto de
apresentação objetiva, em parte, exemplificar o que chamo ‘ecologia teatral’, ao pesquisa em prática
enfatizar, primordialmente de forma implícita, dois fatores. Primeiro que, como como pesquisa. Veja
uma performance, uma palestra principal, especialmente quando apresentada o Website, PARIP:
www.bris.ac.uk/
em um teatro em funcionamento, está sujeita a algumas das mesmas forças parip/2005.htm
que formatam as ecologias teatrais de modo geral. Em segundo lugar, que, (01.09.2006)
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

137
U rdimento

por meio de sua natureza como uma performance, minha apresentação poderia
de forma homóloga demonstrar aspectos das produções originais que as
fizeram especialmente relevantes para o pensamento sobre ‘o artista cidadão’
e a ‘ecologia teatral’. Assim, como a ‘participação da platéia’ foi crucial para
os três exemplos de performance como pesquisa que eu analisei, então ela,
também, deve ser central para os argumentos da minha palestra principal.
Esta tática de ‘ecologia teatral’ objetiva colocar ênfase tanto nos aspectos
performativos do texto da apresentação, quanto nas suas qualidades como
artigo de pesquisa: um híbrido entre roteiro para performance e argumento
acadêmico. Pretendo permanecer verdadeiro a este hibridismo, apresentado
aqui em seu estilo original por meio da palavra falada, com ilustrações que
indicam a estrutura para a participação da platéia, composta por centenas de
conferencistas delegados.
O artigo IFTR foi apresentando subseqüentemente em uma versão
mais informal na IPP Summer Congress, em agosto de 2005, no Johannes
4
Estabelecido em Gutenberg University, Mainz, Alemanha4. O congresso da IPP considerava
Mainz por Christo- que, ‘como ambos, conceito tradicional e fenômeno popular, a “matriz” pode
pher Balme, o pro-
grama IPP oferece
ganhar um novo valor quando considerada à luz dos estudos da performance’.
uma oportunidade No argumento do artigo que segue abaixo, a ‘ecologia’ pode ser pensada como
rica para estudantes um termo equivalente à ‘matriz’, no sentido que uma matriz é ‘um lugar ou
de pós-graduação meio no qual alguma coisa é criada, produzida, ou desenvolvida’5. ‘Ecologia’
participarem em também carrega noções de um lugar ou um sistema, mas ela tem uma ênfase
‘pesquisa interdis-
ciplinar de douto- no processo, o qual falta à ‘matriz’. Então, nós podemos dizer que ecologia
rado em um nível define um ‘sistema em processo’, enquanto ‘matriz’ indica ‘a estrutura de um
internacionalmente sistema’. Mesmo assim, parte do meu método nas apresentações era construir
competitivo nos cam- uma matriz para a análise da idéia de artista cidadão, e suas implicações para os
pos de teatro, drama,
performance, cinema,
processos de performance, quando considerados de um ponto de vista ecológico.
televisão, e novas Para construir esta matriz na prática foi oferecido a cada um dos delegados
mídias.’ Folheto do na Conferência da IFTR e no Congresso da IPP uma boa folha de papel em
programa. branco de material reciclado, para usar como ‘participação da platéia’.
5
Shorter Oxford O aporte ecológico para o estudo da performance tem, cada vez mais,
English Dictionary, me levado a envolver o que eu chamo de uma ‘paradoxologia da performance’
fifth edition (Oxford
University Press,
como uma forma de tentar certificar que minha pesquisa reconhece todas
2002), p. 1720. as complexidades da performance. O artigo da conferência da IFTR/IPP
mencionava paradoxologia porque, em relação à noção de ‘ecologia’, uma
paradoxologia da performance pode ser melhor entendida como uma tentativa
de consideração da multi-dimensionalidade e da fluida complexidade de um
sistema de performance altamente desenvolvido. Ela pode ser caracterizada
como um processo de investigação que objetiva ir além da análise binária, ao
mesmo tempo que reconhece o poder do pensamento binário. Defendo que
isto é especialmente pertinente para os estudos da performance e do teatro,
Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

138
U rdimento

porque o seu principal ‘objeto’, a própria performance ao vivo, é muitas vezes


fundamentalmente paradoxal. Por exemplo, considere o seguinte paradoxo,
cunhado por Eugene Ionesco, como um vetor conceitual fundamental dos
estudos da performance: apenas o efêmero é de valor permanente6. 6
Baz Kershaw, ‘Per-
formance studies and
Com isso em mente, na conferência da IFTR Artista Cidadão, eu Po-chang’s ox: steps
sorri para a platéia sentada na pelúcia-vermelha, no opulento conforto do to a paradoxology of
performance’, New
auditório e iniciei os meus. Theatre Quarterly
XXII: 1 (February
Comentários Introdutórios 2006); Baz Kershaw,
Theatre Ecology
O título ‘artista cidadão’ está predestinado a ocupar o nicho volátil nas (Cambridge Univer-
culturas democráticas contemporâneas, onde artistas atraem o status que se sity Press, a ser
publicado).
encontra numa posição difícil em relação à maioria das noções de cidadania.
Isto se dá, principalmente, porque a licença artística, seja ela aceita ou não
por artistas em particular, dá acesso para um excesso que sempre ameaça
7
Su Braden, Artists
and People (Londres:
desrespeitar a lei. E sem tal licença, o artista indiscutivelmente torna-se outra Routledge and
coisa: artesão, artífice, designer criador e assim por diante. Antes, na Bretanha Keegan Paul, 1978);
‘artista de comunidade’ era o termo mais próximo de ‘artista cidadão’, mas os Owen Kelly, Com-
artistas ‘de verdade’ costumeiramente zombavam deste termo, como sendo munity, Arts and the
State: Storming the
um substituto para ‘agente social de segunda classe’7. Mesmo os humildes Citadels (Londres:
tatuadores atraem mais respeito que isso. A evolução das democracias Comedia, 1984).
ocidentais oferece uma história imprecisa deste binômio cidadão/artista.
Os cidadãos tornam-se comuns à medida que a franquia se estende, mas o 8
Website, Wikipedia:
artista mantém-se como uma criatura rarefeita; cidadãos devem ser criados, http://en.wikiquote.org/
wiki/
mas o artista nasce artista; os cidadãos têm direitos e deveres, enquanto o William_Shakespeare
artista é um espírito livre planando acima da multidão de Joãos-cidadãos para (9.12.2006)
reivindicar o título de gênio. Soaria estranho responder a questão ‘O que você 9
Kidman recebeu o
faz?’ com ‘Ah eu sou apenas um artista comum.’ premio Sérgio Vieira
de Mello Cidadão do
As atitudes populares em relação a Shakespeare medem o poder Mundo da United Na-
contínuo da mágica elevação do artista ‘de verdade’. Pense no panegírico tions Correspondent
nítido de Laurence Olivier sobre o Bardo ‘A coisa mais próxima na encarnação Association em 2004.
aos olhos de Deus’, disse ele8. Nem os artistas contemporâneos estão imunes, 10
Website, Yahoo
é claro. No ano passado, Nicole Kidman foi oficialmente decretada ‘Cidadã Answers: http://
do Mundo’ pelas Nações Unidas pelo seu, hum, trabalho humanitário9. E answers.yahoo.com/
como nós podemos ter certeza que George W. Bush não estava confundindo question/index?qid
Shakespeare com Hitler quando ele disse: ‘As pessoas que são realmente muito =20061107080850A
A6rDoD
esquisitas podem se colocar em posições delicadas e ter um tremendo impacto Esta colocação é as
na história’10. Assim, o avanço global das democracias liberais no século XX vezes atribuída ao
não libertou a humanidade dos gênios. E sim, o capitalismo mais recente e a Vice-Presidente Al
tecnologia digital espalharam a febril miragem de um estrelato brilhante nas Gore.
texturas do dia-a-dia de bilhões de pessoas.
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

139
U rdimento

11
Veja, por exemplo: A despeito desta perigosa teia de sonhos, estudiosos do teatro
Martin Banham contemporâneo (me incluo nisso), fizeram pouca coisa para reivindicar do
(ed.), The Cambridge
Guide to Theatre,
‘cidadão’ propósitos mais democráticos. Nossas enciclopédias e dicionários
Cambridge University listam verbetes para os comédias de cidadãos (ou cidades) da Londres Jacobina
Press, 1992; Dennis e para o Teatro do Cidadão em Glasgow, mas, não mais que isso11. Nas
Kennedy (ed.), The histórias de teatro padrão e da mesma forma, nas teorias contemporâneas de
Oxford Encyclopedia performance, o ‘cidadão’ geralmente atrai a atenção por sua ausência. Isto é
of Theatre and
Performance, Vol 1 quase tão verdadeiro para livros sobre teatro popular, radical, político e de
(Oxford University comunidade. No livro Legislative Theatre de Augusto Boal, o termo ‘cidadão’ é
Press, 2003). pouco usado, e aparece na frase ‘cidadão como artista’ apenas uma vez. O que
12
Aproximadamente parece igualá-lo com ‘espectador’, um termo crucial no teatro do oprimido,
sete/oito vezes. mas cujas implicações não são discutidas12. Na excelente coleção internacional
Augusto Boal, de Performing Democracy existe apenas um ensaio que considera o ‘cidadão’
Legislative Theatre como um conceito significativo13. Há algumas poucas exceções que tratam a
trad. Adrian Jackson
(Londres: Routledge,
palavra seriamente, incluindo uma de nosso presidente atual14 – mas na maioria
1998), p. 46. das vezes flutua incerta em um ocasional pensamento posterior à obra no
firmamento dos estudos de teatro contemporâneo. Apenas muito recentemente
13
Susan C. Haedicke
e Tobin Nellhaus
o termo começou a receber uma atenção mais séria, pelo menos no Reino Unido,
(eds), Performing normalmente sob a bandeira do ‘applied theatre’15. [teatro aplicado].
Democracy:
International Eu vejo a febre de adulação a Shakespeare, a Kidman e às vidas deles
Perspectives on como se fossem cenas conectadas a algo próximo da sublimação Freudiana.
Community-Based
Performance (Ann
Então, eu discutirei o ‘artista cidadão’ como um resto do banquete global
Arbor: University of burguês das celebridades, estrelas e gênios. Isto permitirá considerar o
Michigan Press: 2001). ‘artista cidadão’ como um suplemento Derridiano especialmente provocador.
14
Janelle Reinelt,
O fato de que o ‘cidadão’ foi colocado nos estudos de teatro e performance
‘Notes for a Radical às margens do teatro ecologia torna-o poderoso em ambos sentidos do
Democratic Theatre: ‘suplemento’, conforme Derrida. O seu exemplo famoso do fio-dental
Productive Crises sugere seu perigoso potencial duplo: a tira de seda suplementar, vamos
and the Challenge of
dizer, adiciona erotismo ao corpo ao tomar o lugar dos órgãos sexuais16.
Indeterminacy’, em
Staging Resistance: Da mesma forma, o ‘artista cidadão’ poderia adicionar um novo poder ao
Essays on Political corpo político, mas teria ele de tomar o lugar do gênio para tal? Poderia
Theatre, eds Jeanne essa ameaça explicar a falta de popularidade da palavra ‘cidadão’ nos estudos
Colleran e Jenny S. teatrais? Poderia o deslocamento do gênio expor as fronteiras inesperadas
Spencer (Ann Arbor:
University of
dos nossos principais regimes de pesquisa?
Michigan Press, 1998).
Trabalharei em busca de algumas respostas a estas questões
15
Helen Nicholson,
considerando, também, o lugar do sublime no teatro e na performance. E como
Applied Theatre:
the Gift of Theatre isto é sempre um elemento fugidio, eu oferecerei minhas próprias pesquisas
(Basingstoke: criativas como um meio de estabelecer alguns objetivos para ele. Eu farei isso
Palgrave Macmillan, por meio de dois auto-retratos e meio de artistas como cidadãos, cada um
2005). moldado por significativas diferenças de foco e definição. Esqueça o artista

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

genial, ou a celebridade apresentada como honorária ‘cidadã do mundo’. Quais


são os campos de força que entram em jogo quando o artista é colocado de
várias formas como cidadão ecológico local, nacional e global?

Método

Alguns comentários sobre os métodos deste artigo estão ordenados abaixo.


16
Jacques Derrida,
Se ‘cidadão’ indica algum tipo de delimitação para a pesquisa teatral The Truth in Painting,
recente, como podemos evitar cair nas armadilhas comuns do método, ao nos trad. Geoff Bennington
aproximarmos de sua utilidade? Estou pensando, por exemplo, no observador e Ian McLeod
(Chicago University
determinando à força a natureza da coisa observada ou a questão da pesquisa
Press, 1987), p. 57.
inevitavelmente determinando respostas particulares. Eugene Ionesco fez uma
tirada visceral e brilhante sobre as tais recorrências, quando ele disse: Descreva 17
Patrick Hughes
um círculo, acaricie suas costas e ele torna-se malévolo17. E não é um bom e George Brecht,
pensamento, você chutará o problema ao invés de acariciá-lo. Alguém precisa, Vicious Circles and
Infinity: An Anthology
vamos dizer, entrar no círculo do desejo e fazer cócegas em sua barriga, então of Paradoxes
talvez ele ronrone. A geometria de um paradigma emergente para a pesquisa (Harmondsworth:
em teatro pode nos ajudar nisso; no Reino Unido ele é chamado habitualmente Penguin, 1978), p. 2.
de ‘prática como pesquisa’. Todos os outros
paradoxos citados
A prática como pesquisa objetiva um redimensionamento da teoria desta fonte.
e prática nos estudos da performance. Então, como uma performance, esta 18
Veja, por exemplo:
palestra de abertura deve, por exemplo, tentar minar aquele binômio comum Keith J. Holyoak
teoria/prática. E começarei por reconhecer que nossa posição pública como e Paul Thagard,
Mental Leaps:
estudiosos nesta sociedade democrática assegura que aqui (i.e. na conferência da Analogy in Creative
IFTR no Kay Theatre, University of Maryland, USA, em 2005) é um fórum, que Thought (Cambridge,
em si mesmo é um exercício de cidadania, uma prática carregada com teoria. Massachusetts:
Eu tentarei evidenciar um pouco este fato por meio de minha performance. MIT Press, 1995);
Então por favor, estejam preparados, meus amigos: assim como o privilégio Tamar Szabó Gendler,
Thought Experiment:
da democracia envolve obrigações, eu os convidarei a atuarem coletivamente, On the Powers and
além de darem ouvidos nesta manhã. Vamos começar agora: Limits of Imaginary
Cases (Nova Iorque:
Nós precisamos de uma simples máquina de pensamento Garland, 2000);
experimental – uma matriz para pensar – para engajar os vários campos de Martin Cohen,
força do ‘artista cidadão’18. Uma máquina requer três pessoas para construí- Wittgenstein’s Beetle
and Other Classic
la, embora duas poderão conseguir também. Por gentileza, agrupem-se em Thought Experiments
equipes de três. Como um cuidadoso maestro de sinfonias, eu contarei para (Oxford: Blackwell, 2005).
vocês (conto de dez para zero). Alguma dupla ou indivíduo ficou de fora?
(Improviso para ajudar os que ficaram de fora). Cada um de vocês deve já
ter uma folha de papel verde, gentilmente oferecida pelos organizadores da
conferência. Por favor, peguem suas canetas e desenhem um quadrado na
folha, com as laterais de 10 centímetros, ou 4 polegadas de comprimento.

Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

141
U rdimento

Agora, dividam-no em nove quadrados menores, três a cada lado, como se


19
Os delegados você fosse jogar um jogo básico de computador, jogo da velha19. Numere as
do IFTR tiveram três folhas entre vocês: então uma pessoa tem o ‘um’, outra tem o ‘dois’, a
dificuldade com este
terceira tem o ‘três’. (Pauso e respondo as questões se necessário). Na Folha
simples exercício
geométrico - eu Um, fora da caixa escreva, por favor, ‘Auto-Retrato do Artista Cidadão?’ Na
deveria ter pedido um folha Dois escreva ‘Campos de Força do Artista Cidadão’. Por favor, deixe a
flip chart. [Cavalete folha Três sem título por um momento, talvez coloque interrogações onde
que funciona como deveria ser o título. (proponho questões de esclarecimento, se o parecem necessárias).
suporte para
papéis utilizados
Parabéns, você acaba de construir uma estrutura matriz de programação para
em álbum seriados uma máquina de pensamento experimental democratizadora.
ou para anotações
realizadas ao longo
do treinamento
(substitui o guadro)].

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

142
U rdimento

FIGURA 1. Primeira etapa na construção de uma matriz da máquina de pensamento


experimental ‘Artista Cidadão’.

As folhas correspondem aos meus principais tópicos e modos de


dirigir nesta performance de abertura. Você pode anotar os modos nas suas
folhas: Folha Um – reminiscência; folha Dois – Análise Racional; folha Três
– estimativas. Então se você tem a folha Dois, você será o responsável pela
Análise Racional, ok?. Para fazer funcionar a máquina, escreva nas lacunas de
cima da folha Dois, as três palavras do título da conferência – teatro, cultura,
comunidade – uma palavra por lacuna. Se você tem a folha Um, por favor,
escreva nas três lacunas superiores: liberal, local, carnaval.

Eu preciso explicar que esta máquina é um substituto para toda uma


apresentação de dança e canto em power-point. Assim vocês já estão engajados
na subversão do hiper-real. E isso também economiza eletricidade, embora
não muito. Compartilhar três folhas economiza em tinta e o papel é reciclado
e reciclável. Nós já estamos envolvidos em um projeto de performance
ecologicamente responsável aqui. Eu tentarei atingir ainda maiores economias
de recursos ao carregar as suas máquinas de pensamento com o desvio da
efemeridade de três, das minhas montagens passadas de práticas como pesquisas.
Como uma performance de abertura, estas objetivaram posicionar as próprias
platéias como participantes, tanto quanto como observadores e espectadores.

A propósito, essas economias ambientais resultam de um pensar


sobre a performance como uma paradoxologia. Isto trata o paradoxo como
o constitutivo de muitas performances. A performance do suplemento de
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

143
U rdimento

Derrida é profundamente paradoxal porque ela adiciona ao sujeito ao subtrair


dele. Então, hoje eu espero que nós conservemos os recursos ao gastá-los ao
mínimo, um tipo de economia chave minimalista. Por meio disto, eu espero
que a efemeridade das minhas montagens passadas energizem a qualidade
crucial da performance neste evento, qualidade brilhantemente expressa no
paradoxo de Voltaire: o supérfluo, uma coisa muito necessária.

Então, por meio desta performance colaborativa nós estamos trabalhando


em busca de uma perspectiva ecológica, ecologicamente construída sobre a idéia
do artista cidadão nos estudos do teatro e performance. Isto envolverá uma
visão do teatro em democracias, que no momento sofrem de uma séria falta do
que os ecologistas chamam de retroalimentação negativa. A retroalimentação
negativa é o sinal que um sistema envia para si próprio, em seu esforço para
manter-se sustentável. Ignore a retroalimentação negativa e ela será substituída
pelo retroalimentação positiva, o que ao final levará o sistema ao colapso. Os
sinais do aquecimento global são vistos pela maioria dos cientistas como uma
retroalimentação negativa, possivelmente tornando-se positiva.

A retroalimentação negativa efetiva é normalmente paradoxal, neste


sentido ela é crucial para a sobrevivência do sistema, ao ser um suplemento
para o sistema. Se a retroalimentação negativa é efetiva, ela é também efêmera,
porque é usada para a sobrevivência do sistema. A noção de ‘artista cidadão’
poderia operar como uma retroalimentação negativa efetiva para as políticas
de teatro e performance nas democracias contemporâneas, mostrando-nos o
que está faltando e o que precisa de atenção, provando assim a afirmação de
Ionesco: apenas o efêmero tem valor duradouro.

Kenton Capers

Agora, de volta à construção do conteúdo da nossa máquina de


pensamento experimental.

Lembrança número um. O primeiro auto-retrato do artista como cidadão.

A cidade de Exeter, em Devon, Inglaterra – 1975. ‘Será chamada A


Peça: O Dia do Juízo Final [Doomsday Play]’, disse o diretor da companhia
de teatro itinerante profissional. ‘ Nós iremos para cinco vilarejos por uma
semana cada um, e nós vamos expor o problema – vocês sabem, pobreza rural,
agentes imobiliários forçando as pessoas locais a mudarem-se, agências de
correios fechando, cercas vivas destruídas pelos agronegócios capitalistas,
vocês sabem, tudo isso. Vocês darão oficinas nas escolas, nos clubes de jovens,
se eles tiverem um, no Instituto das Mulheres, com o Am Drams [esta é a
Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

144
U rdimento

abreviação para Teatro Amador], até mesmo na igreja – existem radicais


nas igrejas dos vilarejos. No sábado à noite, eles apresentarão uma peça
usando documentos históricos, como vocês sabem, chamada O Dia do Juízo
Final, porque as coisas eram definitivamente bem melhores naquela época
do que agora. Que ironia, heim?’

Nossas palavras sobre o acontecido.

Quatro meses mais tarde, numa noite de sábado, eu fiquei de pé,


nos fundos do Salão da Vila de Kenton, dez milhas ao sul de Exeter. Meu
queixo caiu literalmente, como se fosse uma dobradiça frouxa, ao assistir ao
último ato de um show de variedades chamado ‘Kenton Capers’. Kenton era a
segunda das cinco vilas no projeto e já estava claro que a idéia do Dia do Juízo
Final já havia praticamente fracassado. No palco, havia um trabalhador rural
forte e encorpado chamado Roy diante de um salão tão cheio de gente, que
seria provavelmente uma aglomeração ilegal. Havia famílias, casais jovens e
idosos, adolescentes risonhas, um enxame de meninos vestidos iguais, crianças
soltas engatinhando na ribalta, todos bastante animados com o evento, do tipo
que há anos não acontecia na vila, como me disseram. Roy suava horrores à
medida que ele repetia o seu grand finale – o ‘Danúbio Azul’ em dois pares de
ossos – quatro vezes. Apenas para vocês terem uma vaga idéia.

(Demonstro o tocar o instrumento chamado ‘ossos’, com algumas barras).

Diferentemente de mim, Roy era um gênio quando se tratava de ossos.


A sua técnica era precisa e fisicamente muitíssimo expressiva. Ambos pares
de marfim tocavam a mesma batida à medida que ele lançava seus braços em
círculos amplos e mantinha seus punhos fortes em giros precisos dos pulsos,
para criar uma calistenia musical, que tinha todo seu corpo ondulando em
respostas rítmicas em sincronia com o tempo da valsa. Já na quarta repetição,
sua camisa engomada estava manchada, como a praia com as marcas da maré,
por seu fabuloso esforço controlado.

Perto de mim, estava o diretor de teatro. Roy terminou a apresentação.


Dez segundos de pausa e as pessoas da vila foram à loucura, urros e assovios e
danças frenéticas terminaram em fortes abraços e grandes balões esbarravam-
se no ar e o teto daquele velho salão de madeira do vilarejo parecia que iria
flutuar com aquela explosão de alegria da vizinhança. O diretor virou-se para
mim no alto do tumulto, aplaudindo entusiasticamente, mas seus olhos me
fitavam, e naquela época eu já o conhecia suficiente bem para adivinhar o que
ele estava pensando. Provavelmente alguma coisa como ‘Seu bastardo! Seu
saco de merda! Você arruinou a pôrra do meu Dia do Juízo Final!’
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

145
U rdimento

Eu delinearei um pouco do contexto geral desta cena, como uma forma


de reconstruir o meu velho ‘eu’ ligado a arte comunitária, como um ‘artista
cidadão’. Kenton era uma vila dormitório, tão desconfortavelmente dividida
entre os habitantes nativos, como o Roy, e os recém-chegados moradores de
Exeter. A companhia, chamada Medium Fair, tinha uma reputação por fazer um
teatro comunitário criativo em áreas rurais. ‘Kenton Capers’ tinha um formato
de variedades, pois tantos os antigos como os novos moradores insistiam
que qualquer pessoa que quisesse participar, deveria poder participar, sem
exclusão. Os atores profissionais de Medium Fair não atuavam no trabalho,
mas o trabalho tinha algumas cenas de documentário histórico que foram
criadas com diferentes grupos do povoado.

Para os observadores de fora da vila, partes do material encenado


poderiam parecer reacionárias – duas donas-de-casa, novas moradoras,
20
Baz Kershaw, com roupas sumárias cantando de forma provocativa ‘Tem um buraco no
‘Theatre Art and meu balde’, por exemplo. Para mim, parecia que as tensões entre os antigos
Community Action: e novos moradores estavam sendo mostradas por meio da encenação
the Achievement of
celebrativa. Assim, a estética aberta do carnaval era um processo ético
Medium Fair’, Theatre
Quarterly VII: 30 passando por atitudes como viva-e-deixe-viver, na vida comunitária, uma
(Summer, 1978); aposta na coesão liberal democrática local20.
Baz Kershaw, The
Radical in Performance: A idéia da comunidade coesa estava viva e forte na Europa em meados
Between Brecht and
Baudrillard (Londres:
da década de 1970. Um ano depois do ‘Danúbio Azul’ do Roy, Raymond
Routledge, 1999), Williams publicou Keywords, observando que ‘a comunidade’, ‘diferentemente
pp. 217-20. de outros termos de organização social (estado, nação, sociedade, etc.)...
21
Raymond Williams,
nunca parece ser usada desfavoravelmente, e nunca lhe é dada uma oposição
Keywords: a Vocabulary positiva ou termo que a distinga”21. Desde o início da década de 60, Williams
of Culture and Society e outros intelectuais dos estudos culturais fizeram uma cruzada para liberar
(Londres: Fontana, a idéia de ‘cultura’ do privilégio dos intelectuais. Todos tinham o direito
1976), p. 66.
de afirmar a cultura como própria deles, porque eles a criaram. Eu estava
22
Baz Kershaw, feliz por facilitar os moradores das vilas em uma batalha teatral sob a dupla
The Politics of bandeira igualitária de comunidade e cultura.
Performance:
Radical Theatre
as Community Seguindo Bakhtin e outros, eu teorizava sobre a performance
Intervention celebrativa como capaz de criar o empoderamento da vizinhança por meio
(Londres: Routledge, do excesso carnavalesco. Mas, ela também era uma válvula de escape para
1992), pp. 67-75 difundir a dissidência22. Este era um dilema típico vivenciado por artistas
23
Arts Council of ingleses de comunidade nos anos 70. Era definitivamente algo que valia a
Great Britain, Sixth pena encarar, embora, ao canalizar as políticas culturais britânicas, que eram
Annual Report, 1950-51 baseadas na democratização de uma cultura definida pelas tradições elitistas:
(Londres: Arts Council
of Great Britain, para os radicais, o mote de financiamento das secretarias de cultura [Arts
1951), p. 57. Council] da Grã-Bretanha ainda parecia ser ‘pouco, mas bom’23. Eu pensava,
Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

melhor uma cultura de-baixo-pra-cima, contraditória, mas coesa no nível do


local, do que aquela cultura nacional de-cima-para-baixo que ilusoriamente
compartilha valores alheios.

Tal paixão anti-hegemônica era validada pela vertente cultural da


Comissão Européia, o Conselho da Europa. Ao longo dos anos 70, ele defendia
uma política de democracia cultural em toda Europa, na qual as ‘pessoas’
eram (a) assumidas como se potencialmente tão criativas quanto os grandes
artistas da tradição, (b) habilitadas para os recursos, que as permitiriam fazer
a sua própria cultura, e (c) prontas para um empoderamento que encorajaria
a participação em uma política democrática rejuvenescida. Em suma, uma
política para a criação de artistas cidadãos24. 24
J. A. Simpson,
Towards Cultural
Estes eram campos de força ambientais formatando o projeto Democracy
(Strasbourg: Council
Village Visit Weeks [Semanas de Visitas à Vila]. Mas como seu desenrolar of Europe, 1976)
no projeto influenciou a mim e aos atores na reconfiguração democrática
de cultura? Que tipo de artistas profissionais nós havíamos nos tornado? O
termo que o Conselho Europeu preferia era ‘animateur’ [animador], o que
implicava em ressurreição: artistas soprando vida para dentro da cultura
da comunidade25. Mas mesmo essa leve alusão aos poderes especiais, 25
Finn Jor, The
nos deixou desconfortáveis. Os pragmáticos artistas de comunidade Demystification of
Culture: Creativity
britânicos preferiam chamar-se ‘facilitadores’. Esta diferença define o tipo
and Animation
de ecologia da performance da qual somos parte, uma na qual o sublime do (Strasbourg: Council
carnaval atacou as sublimações dominantes do gênio, e na qual os artistas of Europe, 1976)
profissionais de comunidade – meus colegas e eu – nos tornaríamos
redundantes pelo sucesso.

Para ver isso claramente, necessitamos um foco na apresentação de


Roy do ‘Danubio Azul’ como sublime, já a nossa facilitação dela, e o resto do
show, como um suplemento Derridiano. Como Roy produziu um evento tão
fantástico? Nós devemos reconhecer a sua apresentação como um fenômeno
paradoxal: como um relâmpago numa noite de verão, profundamente
excepcional em sua cotidianidade, excessivo na sua efêmera necessidade.
Este paradoxo fez isso, como toda arte poderosa, simplesmente sublime.
Fora de sua comum singeleza (Levanto os ossos para os delegados verem) ela
abriu um reino, nos termos desenvolvidos por Slavoj Žižek em sua re-
leitura de Hegel, uma negatividade radical: um senso de que não há ‘nada
além da fenomenalidade, além do campo da representação’26. Em outras 26
Slavoj Žižek,
palavras, o poder que pode vir com a fenomenalidade da representação em The Sublime Object
of Ideology (Londres:
jogo na performance não tem uma fonte de origem e validade. O poder da Verso, 1989), p. 205.
apresentação de Roy estava, literalmente, nas suas mãos: elas não eram a
fonte do sublime, elas eram o sublime.
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

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U rdimento

Se aceitarmos isso, várias conseqüências maiores se seguirão a partir das


ecologias da performance deste evento, para a idéia do ‘artista cidadão’. Primeiro,
o mito do artista gênio desaparece; qualquer pessoa, dadas as circunstâncias certas,
pode ser o produtor de tais poderes. Segundo, o significado exato desse poder para
os moradores de Kenton cabia a eles determinar, na medida em que eles tinham
coletivamente formado o ambiente imediato que permitiu a manifestação do sublime
aparecer como uma força energizadora, positiva para a coesão. Terceiro, isto pode
acontecer porque meus colegas e eu, como ‘artistas profissionais de comunidade’,
facilitamos o sublime ao sermos um suplemento para os sistemas do evento.
Assim, nos termos de Derrida fomos o ‘fio-dental’ do ‘eroticismo’ do
espetáculo. Ajudamos à manifestação dos seus poderes de democratizar a arte
sublime, por tomar o lugar de quase-líderes comunitários na sua ecologia da
performance. Isso foi o paradoxo de ser um artista profissional comunitário
buscando a democracia cultural. Se o processo funcionou, viramos aparições
poderosas – líderes transparentes, se preferir – na criação de artistas cidadãos.
Mas isso só pode acontecer, porque as circunstâncias ambientais conduziram a
isso. Estas incluíram a prontidão das pessoas de Kenton de estarem no evento,
no qual fomos somente suplementos, simples facilitadores.
Eu já sugeri três, dos principais campos de força, na conjunção de
circunstâncias culturais em Kenton em 1975, que modelaram tantos artistas
cidadãos. Eles foram o liberalismo, o localismo e o carnavalesco: já indicados
na Folha Um da sua máquina de pensamento.
E a Terceira Folha, a grade de Previsão Aproximada? Vamos deixar sem
título, mas eu tenho uma palavra especial que vocês especialistas em Previsões
Aproximadas poderiam colocar na primeira linha: ‘sublime’. Eu não tenho certeza,
porém, em qual caixa isso deveria ser colocado. Deixo para vocês decidirem.

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

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FIGURA 2. Segunda etapa na construção da matriz da máquina de pensamento experimental ‘artista cidadão’.

Teatro de Reminiscência
Eu tentei sugerir homologias – princípios estruturais comuns – entre
os diferentes tipos de campos de forças políticos, geográficos e estéticos que
influenciam eventos de performance, como um meio de indicar como podem ser
vistos ecologicamente. Ensaiarei, brevemente, aquele método usando de novo uma
outra reminiscência, no meu segundo auto-retrato como um artista cidadão.
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

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Cidade de Honiton, em Devon, Inglaterra, 1982. Levou um tempo


para reparamos que tínhamos realmente desenvolvido um novo gênero
de performance, que chamamos de ‘teatro de reminiscência’. Não é de se
surpreender, então, que o Departamento de Serviços Sociais do município
tenha ficado inicialmente desconfiado de um: teatro participativo para idosos a
beira da morte, em asilos do Governo Local. Era uma carta muito imprevisível
para se jogar. Ainda assim, quatro anos mais tarde, a nossa companhia, Fair
Old Times teve o projeto aprovado, com acesso para se apresentar em todos os
asilos do município, um programa de treinamento para enfermeiras e outros
27
Gordon Langley e assistentes e até mesmo algum apoio financeiro27. Mais difícil ainda: fomos
Baz Kershaw (eds), confiáveis o suficiente para lidar com alguns dos metais pesados da memória.
Reminiscence Theatre
– Dartington Theatre A Primeira Guerra Mundial ainda era um tema muito delicado para este
Papers, Series 4 No 6 povo frágil dos asilos, com os seus andadores e perdas ainda relativamente recentes.
(Dartington Theatre
Reunir os seus casos de guerra foi inspirador, mas profundamente assustador,
Papers, 1982)
então nós fizemos uma apresentação teatral de uma seleção, que basicamente
ficava no limiar do potencial traumático – como uma cena sobre a mulher olhando
atentamente para o mar, no topo de um despenhadeiro do sul de Devon, que acabou
sendo uma espiã alemã disfarçada. O pobre homem foi enforcado mais tarde na
Torre de Londres. Este fato, com freqüência, estimulava discussões animadas nos
nossos públicos sobre a sua veracidade e se tais informações deveriam tornar-se
públicas em tempos de guerra. Isto, às vezes, tomava o rumo de conversas sobre a
supressão de vozes específicas na sociedade contemporânea, por exemplo, aquelas
dos idosos nos asilos – e mais histórias sobre a estranheza da guerra.
Se esta cena provocava uma energia forte, nós às vezes, seguiríamos com
a história de um ex-diretor de escola. Um dos seus estudantes tinha sido premiado
postumamente com a distinção militar mais alta, a Victoria Cross. Ele tinha salvo
a vida de vários membros do seu regimento ao jogar-se sobre uma granada,
que caiu na trincheira em que ele estava. O ato de nós recontarmos esta história
concluiu com a música ‘Pack up your troubles in your old kit bag’ (coloque as suas
dificuldades na sua velha mochila) que termina com ‘and smile smile, smile’ (e sorria,
sorria, sorria) cantada lentamente através de uma antiga vitrola portátil. Nunca
encenávamos aquilo se os assistentes não pudessem estar na sala. Em um asilo
perto de Honiton, Devon Leste, quanto a música terminou, uma senhora muito
velha falou em uma voz trêmula, mas clara, para todos escutarem: ‘Fizeram isso
com meu Jack e ele nunca voltou. Que descansem na paz de Deus.’ Um assistente
que estava perto engasgou e ficou tão pálido, que parecia que ia desmaiar.
Já havíamos visto alguns casos semelhantes. Aparentemente, aquelas
foram as primeiras palavras que aquela senhora idosa falava desde que chegou
ao asilo, um ou dois anos antes. Uma semana depois, a enfermeira chefe nos
ligou, encantada com o que ela chamou de teatro de reminiscência. Ethel,
abençoada seja, tinha umas boas estórias que talvez gostaríamos de ouvir. Uma

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

150
U rdimento

delas, era sobre uma mulher avistada no topo de um de despenhadeiro alemão, 28


Margaret Thatcher,
que na verdade, era um soldado-espião inglês disfarçado. ‘Aids, education and the
year 2000!’, entrevistada
Apesar da evidência tão comum da perda de memória ou da demência, por Douglas Keay,
aquele momento em que Ethel ganhou de volta a sua voz foi sublime. Mas, de uma Woman’s Own (30
Outubro 1987);
forma diferente da música do Roy em Kenton. Tinha uma qualidade inefável no Website – Margaret
seu tom de voz que, por alguns momentos trouxe uma quietude elétrica à sala, Thatcher Foundation:
seguida pelo engasgar do enfermeiro assistente. Enquanto se cresceu da quebra de http://www.
um período longo de silêncio, para falar sobre a morte violenta, também se ganhou margaretthatcher.org/
poder dos mais amplos campos de força da Bretanha do início da década de oitenta. speeches/
displaydocument.asp?
O espetáculo estava viajando em turnê quando teve início a Guerra das Malvinas, docid=106689
um evento que garantiu um segundo mandato para Margaret Thatcher, como (10.12.2006)
primeira ministra, em 1983. Logo ela declarou que, ‘a sociedade não existia’28. O 29
Eric Hobsbawm e
individualismo radical, promovido pelo estilo de neo-conservadorismo Thatchiano, Terence Ranger (eds),
foi uma ameaça óbvia aos já fracos, especialmente se, como nossos contadores de The Invention of
histórias idosos, que eram dependentes diretamente do estado-nação. Tradition (Cambridge
University Press, 1983).
Teorias emergentes da nação e de comunidade também reforçavam 30
Anthony Cohen P.,
dúvidas sobre identidades coletivas. Os historiadores Eric Hobsbawm e Terence The Symbolic Construction
Ranger publicaram The Invention of Tradition (A Invenção das Tradições), of Community
em 1983, demonstrando que muitas marcas de nacionalidade, que parecem (Chichester: Ellis
Horwood, 1985), p. 31,
existir fora de tempo, são invenções do século dezenove29. Em 1985, em The
ênfase minha;
Symbolic Construction of Community (A Construção Simbólica da Comunidade) para uma extensão
de Anthony Cohen o autor, argumentou que o processo de construir uma dos argumentos
comunidade ‘continuamente transforma a realidade da diferença na aparência de Cohen, veja:
da similaridade... [unindo pessoas] na sua oposição, tanto uns aos outros, Vered Amit e Nigel
Rapport, The Trouble
quanto aos de fora’30. Aquela pequena palavra ‘aparência’ abre um espaço para
With Community:
discordância, justamente, no momento da coesão. Por outro lado, aponta a Anthropological
coerção que toda comunidade pode exercer. Reflections on Movement,
Identity and Collectivity
Um foco nas vozes de grupos de indivíduos ‘oprimidos’ foi uma preocupação (Londres: Pluto, 2002).
crescente dos grupos de teatro orientados para a comunidade na Bretanha 31
Veja por exemplo:
durante este período31. Conseqüentemente, o nosso teatro de reminiscência visou Gillian Hanna (ed.)
produzir trocas altamente dialógicas entre atores, residentes e funcionários. Cada Monstrous Regiment:
vez mais, os espetáculos apresentaram um convite aberto para a interrupção de A Collective Celebration
seu fluxo, ao sugerir claramente que os residentes tinham o direito de fazer isso, (Londres: Nick Hern
Books, 1991); Philip
dado o conhecimento superior deles do passado e o fato de que estávamos em um Osment (ed.) Gay
espaço que era, supostamente no mínimo, a ‘sua’ casa. O dialogismo do teatro Sweatshop: Four
de reminiscência significou resistência às condições de cuidado que estavam Plays and a Company
ficando profundamente opressivas à medida que o Governo conservador dos Tory (Londres: Methuen,
(conservadores) restringia os recursos das autoridades locais. Estávamos lidando 1989); Richard
Tomlinson, Disability,
com a diminuição dos direitos de grupos marginalizados à autonomia digna, em Theatre and
uma nação democrática que passava por uma reconstrução rápida como uma Education (Londres:
bandeira do lassez faire internacional, neo-capitalista. Souvenir Press, 1982).

Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

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Então o estado-nação florescente estava reprovando estes cidadãos


idosos, tornando-os politicamente de segunda-classe ou pior. O teatro de
reminiscência foi um suplemento a este perturbante desempoderamento; as
suas técnicas acrescentavam legitimidade criativa a um processo de lembrança
que, antes tinha sido considerado regressivo. Mas também, ele ficou no lugar
de um sistema que deu legitimidade a ele – funcionando de forma análoga aos
Derrida, Truth in
32
quadros dos velhos mestres discutidos por Derrida32 – sempre lembrando
Painting, p. 57 passim. aos residentes dos limites opressivos impostos às suas vidas frágeis. Desta
perspectiva, o lugar do teatro de reminiscência, no aparato do estado para
o gerenciamento dos idosos enfermos, pode ser visto como profundamente
comprometedor. Como peças radicais em um teatro nacional, talvez ele
estivesse jogando demais com as regras do dominante. Se fossemos cidadãos
artistas, nós estaríamos do outro lado do estado Thatcherista?
Ainda assim, pelo menos nos momentos em que se tocou o sublime, o
teatro de reminiscência poderia ter se tornado esta dupla operação do suplemento,
com a vantagem para o dissidente. Porque o sublime poderia bem ser uma rota
para se chegar ao que Hakim Bey chama de TAZ, uma zona temporária autônoma,
um espaço de liberdade radical. A performance pode paradoxalmente produzir
tal espaço, porque a negatividade radical do sublime é, nos termos de Bey, uma
‘recusa a mediação... [que pode remover] todas as barreiras entre os artistas e os
“usuários” da arte [e] tender a uma condição em que (como A. K. Coomaraswamy
o descreveu) “o artista não é um tipo de pessoa especial, mas toda pessoa é um
33
Hakim Bey, TAZ: tipo especial de artista”.’33 Se qualquer coisa deste gênero foi realizada pelo teatro
The Temporary de reminiscência, então talvez, as identidades dos cidadãos idosos tivessem sido
Autonomous Zone reforçadas ao exercerem os seus direitos a se tornarem cidadãos artistas. E as
(Brooklyn: Autonomedia,
1991), p. 132.
nossas credenciais radicais, como camaradas deles, tivessem ficado intactas.

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FIGURA 3. Terceira etapa na construção da matriz da máquina de pensamento ‘Artista Cidadão’.

Então, como é que esta análise se traduz para nossa máquina de


pensamento? Na segunda linha da Folha Um, intitulada Auto-Retratos do
Artista Cidadão, a folha da Reminiscência, eu sugeriria ‘dissidente, nacional,
narrativa’. Na segunda linha da Folha Dois, a folha de Análise Racional, vamos
tentar ‘direitos, democracia, identidade’. E para a linha no meio da Folha Três,
a de Previsões Aproximadas, que tal ‘autônomo’?
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Ecologias e o SS Great Britain: The Iron Ship

Homologias entre a mudança macro-social e a micro-criatividade de


eventos de performance particulares fornecem o potencial para suas análises
de uma perspectiva ecológica. Através disso, a performance é articulada ao seu
ambiente de formas mais amplas e dinâmicas do que outros pontos de vista talvez
revelassem. Por exemplo, poder-se-ia argumentar que eventos sublimes de
performance, como a música de Roy e a fala de Ethel, oferecem a retroalimentação
negativa de uma arte cidadã, que melhora a sustentabilidade dos sistemas dos
seus ambientes particulares, sejam eles definidos localmente ou nacionalmente.

Concentrei-me em dois exemplos de Kenton e Honiton, porque a sua


distância histórica ajuda no ganho de perspectiva sobre estas ecologias diferentes.
Usei a noção do suplemento de Derrida para mostrar como artistas de comunidade
profissionais podem não só ajudar à criação de artistas cidadãos pela performance
democratizada, mas também assistir a produção do sublime. A asserção decorrente
de que o sublime aparece em qualquer lugar, dadas as circunstâncias certas, até
entre artistas cidadãos, não é um passo excepcional. No entanto, é um passo
importante por considerar a rotina de sublimação do artista como gênio rarefeito,
ou como estrela, ou como celebridade na cultura contemporânea.

Porém, meus dois exemplos podem ser vistos como restritos de


várias maneiras. São casos especiais com limitações, que não apoiarão as
generalizações sobre ecologias da performance que busquei neles. Eles
trataram de comunidades já existentes de interesse e/ou localização; eles
eram bastante localizados em uma região ou nação; eles tiveram uma escala
pequena, etc.. Então, os princípios do suplemento e do sublime podem
transferir-se para domínios públicos mais dispersos e amplos em uma escala
maior? A participação e a habilidade artística do cidadão podem operar, como
se estivessem, em um nível global? Estas talvez sejam questões principais, em
uma era caraterizada pelo colapso do comunismo, a expansão da democracia
liberal, o pós-modernismo florescente, o declínio da comunidade, a inovação
tecnológica e a midiatização, a globalização e a desestabilização do estado
nação, a internacionalização do capital, a ascensão da sociedade performativa,
o aquecimento global e o terrorismo, e assim por diante.

Desde o início da década de oitenta, continuo a fazer espetáculos


com comunidades pequenas e bem definidas, mas também experimentei
performances em locais fixos e específicos, algumas de grande escala e
vistas na esfera pública, no limiar de muitas comunidades. Uma questão
chave da pesquisa foi: como é que espectadores podem ser transformados em
participantes pelas formas que uma performance utiliza um espaço? Isso me
Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

154
U rdimento

leva a meu último retrato Reminiscente, ou melhor, a metade de um retrato do


artista como cidadão, porque esta experiência ainda não é antiga o suficiente
para revelar plenamente seus segredos.

The Iron Ship foi um espetáculo com local fixo e específico produzido
em maio de 2000, em um navio do século dezenove, o SS Great Britain. O
navio foi lançado em 1846, das docas de Bristol e foi um ícone da era de
Revolução Industrial e do Império. Foi o primeiro navio com casco de ferro,
primeiro de motor a vapor com hélice em parafuso, primeiro a manter escalas
globais: o Concorde da sua época. Agora está de volta na doca seca onde foi
construído, uma atração bem sucedida do patrimônio histórico, que conta uma
história monológica de inovação da engenharia e da conquista marítima34. Website – SS Great
34

Talvez 20 a 25 porcento da população de 20 milhões da Austrália de hoje Britain: http://www.


ssgreatbritain.org/
sejam descendentes dos que migraram por razões econômicas, europeus que (10.12.2006)
navegaram para lá nas 32 viagens, entre 1852 e 1875, mas a responsabilidade
deles no colonialismo e degradação ambiental é ignorada. Como muitos
críticos da indústria do patrimônio notaram, tais espaços são memoriais de
esquecimento, mesmo no momento da lembrança35. 35
Veja, por exemplo:
David Lowenthal, The
A produção incorporou mais de 50 atores estudantes e 20 pessoas Heritage Crusade
de apoio, que estruturaram o local para receber 180 espectadores por noite, and the Spoils of
History (Cambridge
como cidadãos globais em uma peça de moral ecológica. A produção usava ao University Press,
máximo o espaço, levando os espectadores a circularem pelo navio inteiro, de 1997).
uma instalação de teatro convencional construída dentro de um grande galpão
de navios, descendo à doca seca para encontrar a última sereia viva, depois
em grupos passando por quatro cenas simultâneas, em partes diferentes do
próprio navio – casa de máquinas, convés principal, convés superior, proa –
acompanhados pela fala de um guia verdadeiro, um profissional empregado do
navio; depois disso, houve um jantar cujo anfitrião era o fantasma de Isambard
Kingdom Brunel (o engenheiro que desenhou o navio), e por fim um grand
finale espetacular no convés frontal. O espetáculo inteiro apelou pelo visual,
criando espectadores. Mas o uso físico do navio tinha uma função muito
diferente, pela qual o suplementar e o sublime entraram em jogo36. 36
Baz Kershaw,
‘Performance,
Um dos melhores exemplos disso ocorreu durante as quatro cenas Memory, Heritage,
History, Spectacle:
simultâneas na casa de máquinas, convés superior, proa e convés principal,
The Iron Ship’,
cada uma com uma duração de quinze minutos. Estas foram reapresentadas Studies in Theatre
para permitir que todo espectador assistisse as três. A casa de máquinas é and Performance
literalmente o coração físico do navio, como um átrio subindo da quilha até 22: 3 (2002).
o convés mais alto. Incrivelmente, os curadores do navio concordaram que
os foguistas sujos que colocamos lá poderiam utilizar o motor parcialmente
reconstruído como um grande tambor. Ligando e desligando, por quarenta
e cinco minutos conseguimos fazer o casco inteiro de trezentos-e-vinte-e-
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

155
U rdimento

dois pés vibrar, como se o navio estivesse ainda navegando a todo vapor. A
pesquisa de público na pós-produção, indica que muitos acharam que foi uma
experiência maravilhosa, de certa forma, sublime: o navio morto estava vivo,
tremendo de energia. A ecologia da performance, desta segunda metade do
Ibid., pp. 148-9.
37
espetáculo, tinha transformado alguns espectadores em participantes37.

O efeito físico poderia ser considerado pouco mais do que um truque


de circo, os atores somente um suplemento corporal adicionado à vibração
excitante ao tomar o lugar do motor. Os foguistas e todas as outras personagens
históricas – o engenheiro Isambard Kingdom Brunel, a Rainha Vitória, o
capitão do navio – basicamente cumpriram um papel similar: contribuir para
a ressurreição da glória do seu passado. Mas todas as outras personagens
encontradas pelos espetadores-participantes modularam a história dominante
do local com uma perspectiva crítica: a última sereia viva, cavalos-marinhos
gigantes mutantes, peixes protestando e sendo servidos no último jantar, um
Neptuno desesperado, uma Gaia chorando. Estes suplementos mitológicos
acrescentaram, parcialmente, uma outra história global ao local por tomar o
lugar da história dominante da engenharia e da inovação marítima pela qual
os espectadores passaram. Esta ecologia estimulou-os na participação como
cidadãos globais criativos com uma consciência ecológica?

Eu não tenho tempo de utilizar a minha pesquisa público-participante para


persuadi-los mais nisso. Mas, por favor me dêem o prazer de deixá-los alimentar
a nossa máquina de pensamento para uso futuro. A terceira linha de Folha Um,
a folha do Auto-Retrato, poderia ser: radical, global, espetáculo. Para Folha Dois
poderia ser: ideologia, ecologia, ética. E para Folha Três, por que não ‘utopia’?

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

156
U rdimento

FIGURA 4. Quarta etapa da construção da matriz da máquina de pensamento experimental


‘Artista Cidadão’.

Conclusão

(Para Frank) Só mais algumas palavras de conclusão, por favor,


Coordenador [da mesa].

Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

157
U rdimento

As circunstâncias que evocam o sublime são sempre complexas, uma


conjunção de muitas energias de campos de força, que circulam pelo animal
humano em redes locais, regionais, nacionais e até globais. Eu quero fixar
estas energias/redes em uma perspectiva ecológica, como o melhor jeito de
entender as suas complexidades dinâmicas. Mas este passo é também um meio
de incorporar o pensamento binário (que com certeza tem os seus usos) em
uma análise paradológica. A máquina de pensamento que temos, ainda em
construção, pode ser uma ajuda em tal análise, um motor para gerar as partes
móveis de uma paradoxologia da performance, se preferir. Por exemplo, se você
coloca as três folhas, uma sobre a outra, em ordem numérica, você pode fazer
uma leitura vertical de algumas conjunções sugestivas no firmamento dos
artistas cidadãos: ‘comunidade local sublime’ ou ‘cultura carnaval autônoma’.
Pela sua participação na criação da máquina de pensamento, eu busquei trazer
para o jogo uma outra noção de ecologia da performance. Somando-se a visão
da performance como uma ecologia, quero sugerir, segundo Gregory Bateson
38
Gregory Bateson, e Felix Guatarri, que ela, junto com outras formas culturais, é uma ecologia38.
Steps to an Ecology Eu acho que é crucial entender isso com urgência, por causa das condições
of Mind (University
of Chicago Press,
desesperadoras no Planeta Terra.
2000); Felix Guattari,
The Three Ecologies, No ano passado, Tony Blair teve uma discordância com o seu
trad. Ian Pindar e Conselheiro Científico Principal, Sir David King. Qual seria a maior ameaça
Paul Sutton (London: a humanidade, o aquecimento global ou o terrorismo global?39 Com certeza
Athlone Press, 2000).
você teria vislumbrado a armadilha em questão imediatamente, com o seu
39
David King, ‘Climate fio de detonação de explosivos binário. Por que precisamos escolher? Se um
Change: Adapt, funciona perfeitamente pela lógica da sua natureza, os dois são, em última
Mitigate or Ignore’, instância, aterrorizadores. Mas cheguei a pensar que são mais que isso. O
Science 303: 5655
(October 2004);
mesmo impulso que me leva em direção a uma paradoxologia da performance
Website – Foundation ricocheteia nesta armadilha de pregar peças. Poderíamos rapidamente
for Science and perceber para onde isso poderia nos levar, ao adaptar um velho dito russo que
Technology: www. diz: Em Leninegrado o ponto de fusão é chamado de ponto de congelação.
foundation.org.uk/ No Planeta Terra o terror global é fusão.
events/pdf/
20021031_summary.pdf
(20.11.2006) Se isso fosse um paradoxo verdadeiro, o animal humano agora talvez
tenha passado da luxúria do pluralismo e/ou ambivalência pós-modernos, que é
uma outra maneira de dizer que uma perspectiva global ecológica seguramente
carrega uma carga considerável. Espero que tenha conseguido trilhar uma
parte do caminho de convencê-los disso neste assunto sobre o artista cidadão
da performance, do século XXI. Mas onde é que isso coloca o teatro - este
teatro no qual construímos as nossas máquinas de pensamento? Vou deixá-los
com duas perguntas e um comentário em relação a isso. A crescente criação de
estrelas e de gênios ocasionais do sistema teatral estaria nas mãos de alguém
da mesma forma como está uma destruição global - ou pelo menos o vício em
Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

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U rdimento

carbono do capital internacional? A produção de espectadores-qua-espectadores


daquele mesmo teatro funcionaria para impedi-los do engajamento ecológico,
observadores de uma ‘natureza’ que eles nunca ‘ter’ ?

E meu comentário final? Caros colegas, ele tem a forma de um último


ato de participação através de nossa máquina de pensamento. Isso somente
envolve os criadores da Folha Três, a folha de Previsões Aproximadas, em que
deveria estar escrito ‘utopia autônoma sublime’. Sim? Estas são as folhas pelas
quais conservamos mais energia e aqui está uma que preparei previamente.
Por favor, dobre a sua folha no sentido do comprimento, assim. Agora dobre
os dois cantos de um lado da folha. Dobre de volta a ponta restante, um pouco
em volta dela mesma e depois dobre os lados para baixo. Excelente.

FIGURA 5. Etapa final da construção da matriz da máquina de pensamento experimental ‘Artista


Cidadão’.

Agora segure pronto para lançar. Oh. E um último paradoxo, de


Talleyrand, para ajudá-los a decidirem o que fazer neste momento de ecologia
da performance nascente: Este é o começo do final. Uma consulta rápida com
os seus colegas de equipe. Sim/não? Temos uma carona para fora do Planeta
Terra? Cinco, quatro, três...

(E com isso termina a minha performance da conferência.)

Pós-escrito

Já há algum tempo, existe uma continuidade convencional entre


sonhos e criatividade, assim como entre subversão e o sonhar. Certamente, em
nossos sonhos nós trabalhamos por meio de nossas ansiedades mais profundas
e atuamos em nossas fantasias mais queridas. E é claro que o teatro sempre
esteve estreitamente conectado ao universo dos sonhos, de Jocasta ‘Antes disso,
em sonhos também, assim como em oráculos, muitos homens deitaram-se com
suas mães’ a Próspero ‘Somos feitos da mesma matéria que os sonhos’; da
Dezembro 2008 - N° 10 Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw

159
U rdimento

‘peças sonho’ de Strindberg a outras mais. Ocasionalmente, algumas semanas


antes das minhas produções de ‘prática-como-pesquisa’ encararem finalmente
o buraco negro da apresentação pública, pesadelos e suores costumavam
me atormentar, por exemplo, entrar no palco vestindo apenas a cueca para
apresentar o show, só para perceber que as minhas anotações são um papel
em branco e que eu perco a minha voz, para então ter todo tipo de coisa
desagradável atirada em mim. A última vez que este sonho aconteceu foi na
noite anterior a uma entrevista marcada para a promoção da minha primeira
professorship [cátedra]. E daquela vez, eu era o show e os espectadores eram os
principais acadêmicos internacionais da área teatral; claro que o meu caderno
de notas estava em branco e que minha voz tinha sumido completamente. Eu
olhava para o imenso auditório com cadeiras de pelúcia e minha face era uma
máscara de um apelo mudo patético, à medida que o horror crescia em meu
coração como um vulcão perto de explodir. Mas ao invés de um clima ruim o
ar estava repleto de rodopiantes aviõezinhos de papel.

Artistas Cidadãos no Século XXI: Em Busca de uma Perspectiva... Baz Kershaw Dezembro 2008 - Nº 10

160
U rdimento

O Drama da Etnografia1

Kate Donelan2

Etnografia é uma metodologia de pesquisa particularmente apropriada


para o estudo do drama em contextos educacionais. Escrevi anteriormente sobre
a afinidade entre drama e etnografia e as qualidades de empatia e identificação
que são fundamentais ao trabalho do drama educador e do etnógrafo
(Donelan, 1991, 1994). A capacidade de se projetar imaginariamente dentro
de uma situação e se identificar com outra perspectiva possibilita que pessoas
explorem a experiência humana no drama; possibilita que um professor de
drama compreenda as experiências de seus alunos e isto permite ao etnógrafo
observar a vida através dos olhos daqueles que ele está estudando. Neste
artigo vou discutir alguns dos valores e processos que são compartilhados
pelo etnógrafo e o professor de drama e meu entendimento dos respectivos 1
Tradução de Biange
desafios artísticos e emocionais que o etnógrafo enfrenta ao pesquisar a prática Cabral, professora
do drama. Dois estudos etnográficos em que estou envolvida atualmente, em da Universidade do
Estado de Santa Cata-
comunidades escolares, fornecerão o contexto para esta discussão. rina. Texto publicado
no livro Drama and
As conexões entre etnografia e drama na educação estão refletidas na Theatre in Education
linguagem, nas categorias conceituais e nas áreas de debate entre os dois campos – International
Conversations (eds.
de conhecimento. Por exemplo, há hoje uma preocupação com o relacionamento
Carole Miller e Julia-
apropriado entre processo e produto na orientação do trabalho etnográfico (Van na Saxton. Canadá:
Maanen, 1995; Wolcott, 1995; Woods, 1996). Críticas da prática etnográfica International Drama
focalizam as qualidades do produto pesquisado – o texto etnográfico e “o in Education Institute.
problema que as representações etnográficas atualmente enfrentam” (Van
Maanen, 1995:15). Para Agar (in Van Maanen, 1995) etnografia é um termo 2
Senior Lecturer
ambíguo dado que ele se refere “tanto ao processo de pesquisa e a um produto and Head of Drama.
textual” (p.112). Onde quer que ‘novos’ etnógrafos focalizem o texto etnográfico The University of
como distinto do trabalho de campo, ele propõe um inter-relacionamento Melbourne

Dezembro 2008 - N° 10 O Drama da Etnografia. Kate Donelan

161
U rdimento

próximo entre textos etnográficos escritos “e os processos de pesquisa que os


subsidiaram” (p.129). Entre os drama educadores a posição mudou do debate
sobre se processo e produto estão separados e em oposição, para um consenso que
eles são formas inter-relacionadas de prática artística e educacional contínuas,
com o contexto determinando a orientação apropriada do trabalho do drama e
do teatro (Fleming, 1994; O´Toole, 1992; Burton, 1991).

Outro tema relacionado com etnógrafos e drama educadores é o


conceito de “artistry” (dimensão artística) e a medida pela qual os processos
artísticos são inerentes à prática da pesquisa e do ensino. A recente análise de
Taylor (1995) sobre o trabalho de dois eminentes drama educadores confirma
que os aspectos estéticos e simbólicos estão embutidos dentro de todos os
estágios do processo em drama. Em um livro recente, A Arte do Trabalho
de Campo, Wolcott (1995) aponta um argumento convincente a favor das
qualidades artísticas requeridas do etnógrafo tanto na condução da pesquisa
em campo e na construção de seu registro. Wolcott reconhece que o processo
de estudar o ser humano em um contexto particular de interações sociais,
sempre será caracterizado por relacionamentos complexos em que nada
ocorre exatamente da mesma forma duas vezes; entretanto, “o desafio artístico
é preservar, divulgar, e celebrar aquela complexidade” (p.19).

Os estudos etnográficos de drama educação estão baseados na


suposição de que a ação dramática pode somente ser entendida em termos
do enquadramento dentro da qual ela ocorre e “do contexto e objetivos dos
participantes” (O’Toole, 1992:2). O pesquisador precisa estar sintonizado
com as qualidades particulares do contexto social e cultural e se engajar
num processo de interpretação hermenêutica. É dada atenção aos detalhes de
eventos e interações na medida em que elas ocorrem, como também à busca
de conexões entre eventos e padrões, temas e significados. Um entendimento
do texto social dos participantes e do texto teatral do drama emerge de forma
dinâmica e cumulativa no decorrer das fases interconectadas do trabalho de
campo, coleta de dados, análise e escrita (Donelan, 1994).

Em ambos meus estudos de drama, em andamento, eu estou tentando


acessar, interpretar e descrever as experiências coletivas e individuais de
estudantes e professores enquanto engajados na prática do drama dentro de
seus ambientes educacionais particulares. Um desses estudos é parte de um
projeto nacional em colaboração, e focaliza a prática do drama nas séries iniciais
e o conceito de pré-texto (O’Neill, 1995). Professores das séries iniciais de
cada Estado e Território da Austrália, planejaram, ensinaram e documentaram
sessões de drama de três horas de duração baseadas em um pré-texto comum:
Os Mistérios de Harris Burdick (Van Allsburg, 1984). Eu trabalhei como co-
O Drama da Etnografia. Kate Donelan Dezembro 2008 - Nº 10

162
U rdimento

pesquisador com Tiina Moore (que está dirigindo o Projeto Pré-Texto nas
Séries Iniciais) para apoiar seu estudo das sessões de drama que ela ministrou
a uma turma de 4ª série de sua escola. Como observadora passiva, sentada ao
fundo de sua sala de drama, eu fui uma testemunha do drama gerado pelo pré-
texto; da minha perspectiva de outsider eu escrevi notas de observação de campo
que complementaram outras fontes de dados. Nossas reflexões e análise das
sessões de drama focalizaram o pensamento de Tiina e tomadas de decisão como
professor/pesquisador, o engajamento dos estudantes nas várias fases do drama,
momentos críticos que ocorreram e o relacionamento entre o pré-texto e a ação
dramática. Nós agora estamos construindo um relatório no qual a conclusão de
Tiina, como professora e pesquisadora, irá incluir as vozes das crianças e minha
recepção, cruzadas através de um relato em forma de diálogo reflexivo.

Em outro estudo, eu venho documentando um projeto de drama inter-


cultural sendo desenvolvido por um artista/educador performático africano
em uma escola secundária. Há cinco meses eu venho identificando o efeito
deste projeto inovador na vida da comunidade escolar. Eu estou interessada
na forma pela qual este projeto de drama e suas interfaces podem gerar
conscientização cultural, engajamento estético e empoderamento pessoal e
comunitário. Em contraste com o estudo anterior, eu adotei um papel ativo e
participante de forma a me tornar um membro parcial da cultura da escola.
Ao assumir tarefas dentro do projeto, eu compartilhei com os participantes os
eventos criticamente e contribui para seus insights quanto à forma de responder
ao projeto na medida em que este se desenvolvia. Atualmente, com o trabalho
de campo em sua etapa final, estamos enfrentando o desafio interpretativo
de escrever um relato significante e reflexivo do que tem sido um estudo
emocionalmente intenso e inesperadamente difícil.

A dimensão emocional e estética do processo de pesquisa precisa


ser reconhecida e incluída em dados observáveis, reflexivos e analíticos. (Ely,
Friedman, Garner & McCormack, 1991). De acordo com Woods (1996),
professores no papel de artistas são “expressivos e emergentes, intuitivos e
flexíveis, espontâneos e emocionais” (p. 6); estas qualidades também se aplicam
claramente ao papel de um etnógrafo. Os pesquisadores do campo da etnografia
precisam estar sintonizados e sensíveis aos instrumentos que utilizam para
tornar familiar contextos “estranhos”. Quando pesquisando um ambiente
relativamente familiar de uma escola ou sala de aula de drama, o desafio é tentar
perceber um mundo aparentemente comum de uma nova maneira, respondendo
aos eventos da sala de aula e às vozes dos participantes com os sentidos aguçados
de um artista. Ao examinar a nossa prática de drama educação através de uma
lente etnográfica, nós precisamos expandir nossa consciência ao olhar “para”
em vez de olhar “por” (Jackson in Eisner & Peshkin, 1990:163).
Dezembro 2008 - N° 10 O Drama da Etnografia. Kate Donelan

163
U rdimento

Ao analisar o “artístico” no ensino de Cecily O’Neill, Taylor (1995)


define as qualidades que também são intrínsecas ao trabalho do etnógrafo.
O’Neill está preocupada em dar aos participantes acesso a perspectivas e
pontos de vista múltiplos, “para que se projetem inteiramente na situação”
(p.20). De maneira similar, um etnógrafo busca compreender como os
eventos e interações humanas são compreendidos por aqueles envolvidos,
para acessar e “representar a realidade estudada em todos seus diferentes
níveis de significado social, em sua completa plenitude” (Woods, 1996:5).
No processo do drama, “os resultados não são pré-determinados mas sim
descobertos em processo” (Taylor, 1995:13); isto equivale à abordagem de
um etnógrafo que entra em campo sem uma hipótese pré-determinada e
permite que as questões e temas da pesquisa emerjam do contexto.

O conceito de “pré-texto” para um drama educador e o conceito de


“antecipação de problemas” – um termo usado por Malinowski (1922:9) para
definir a atitude de um etnógrafo antes de entrar em campo, apresentam
características similares. Assim como um “pré-texto” define expectativas,
estabelece padrões e “dá origem a qualquer número de temas” gerando a
ação dramática (Taylor, 1995:14), também a “antecipação de problemas”
dá aos etnógrafos um senso de direção e um foco de enquadramento para
guiar seu estudo de um grupo cultural e seu texto social. “Pré-texto” e
“antecipação de problemas” facilitam uma abertura para os significados
emergentes, de forma que as questões possam ser modificadas e outros
temas possam surgir na medida em que o ensino procede. Na sessão de
drama de Tiina Moore, a simples imagem que ela usou como pré-texto
funcionou como um enquadramento evocativo que deflagrou o engajamento
dos estudantes com o mistério central no coração do drama. Ela permaneceu
um ponto de referência forte através das sessões do drama, e encorajou os
participantes a explorar eventos passados e futuros e a gerar um texto
dramático de múltiplas dimensões.

No coração do processo do drama está o fenômeno da “metaxis”,


definida por Boal (1995) como “o estado de pertencer completamente
e simultaneamente a dois diferentes e autônomos mundos” (p.43). Isto
relaciona-se diretamente com a atitude de um etnógrafo que precisa
equilibrar os dois papéis de insider e outsider, atuando tanto como
participante e como observador em um ambiente dinâmico. Assim como as
qualidades pedagógicas e estéticas do drama dependem da tensão criativa
e do jogo entre os mundos real e ficcional dentro do enquadramento do
drama (Burton, 1991), também um etnógrafo precisa adotar tanto um
“envolvimento pessoal profundo e uma medida de distanciamento” (Woods,
1977:261). Um aspecto da dimensão artística do trabalho de O’Neill é
O Drama da Etnografia. Kate Donelan Dezembro 2008 - Nº 10

164
U rdimento

sua seleção deliberada de estratégias que possibilitarão aos participantes


a experiência de engajamento e distanciamento na estrutura do drama
(Taylor, 1995:25). Um etnógrafo “torna-se um instrumento de investigação
ao jogar dois papéis – estando presente na situação e estando fora para
observá-la” (Sherman & Webb, 1988:86).

Em minha experiência, manter uma dupla perspectiva de


envolvimento e distanciamento em relação à cultura sendo estudada é difícil e
estressante. Em meu estudo do projeto de drama intercultural africano, meu
papel ativo dentro do contexto me deu acesso ao mundo dos participantes
e gerou uma grande quantidade de dados relacionados a suas experiências.
Entretanto, meu engajamento com meu papel profissional dentro do projeto,
e meu crescente envolvimento emocional com os participantes, tornou
difícil manter uma atitude desapaixonada em relação ao objeto da pesquisa.
Minhas próprias reações emocionais, incluindo às vezes sentimentos de
frustração e desconforto, compõem uma parte integral dos dados na medida
em que tentei monitorar os efeitos da tensão entre meu duplo papel como
pesquisador e como participante.

Um projeto de pesquisa colaborativa pode prover os meios de


equilibrar uma “percepção apaixonada de insider com uma desapaixonada
de outsider” (Van Maanen, 1988:77). Estudos planejados de maneira que os
eventos da sala de aula possam ser vistos tanto da perspectiva do insider
como do outsider podem ser construídos (Smith & Geoffrey, 1968). O
projeto colaborativo do pré-texto assegurou que o professor-pesquisador
pudesse atuar na perspectiva mais distanciada do co-pesquisador. Incluir
o professor como parceiro integral na pesquisa pode evitar a solidão e
o stress que surgem com a posição marginal do pesquisador dentro do
contexto. Por outro lado, se o pesquisador pode dar conta da difícil posição
simultânea de insider e outsider, com auto-controle entre familiaridade
e estranhamento, ele pode gerar insights criativos no universo estudado
(Hammersley & Athinson, 1995:112).

O ato de construir um relato etnográfico, de contar a história do


campo de trabalho, também envolve processos artísticos. Os dados precisam
ser transformados em texto que seja expressivo e evocativo, que dê conta
das qualidades emocionais e estéticas das experiências dos participantes e
que envolva o leitor imaginativamente no desenrolar da história dos eventos
do drama. O relato precisa ser reflexivo, isto é, incluir as próprias respostas
emocionais do pesquisador aos eventos documentados. Crucialmente, é
necessário prover o leitor com um relato interpretativo dos significados
educacionais e culturais inerentes ao estudo, que tenham credibilidade.
Dezembro 2008 - N° 10 O Drama da Etnografia. Kate Donelan

165
U rdimento

Em minha pesquisa anterior, eu usei formas narrativas para engajar


o leitor no desenrolar de histórias de três processos de drama em sala
de aula; vinhetas, bicos de pena, e sketches impressionistas foram usados
para evocar as complexidades das experiências dos participantes dentro
de cada contexto (Donelan, 1994). Eu relembro minha ansiedade que
este trabalho pudesse ser dispensado, como trivial e carente de rigor de
pesquisa, por uma audiência acadêmica. Em meus atuais projetos, parece
apropriado construir relatórios de pesquisa que são dialógicos, pessoais,
evocativos, metafóricos e que intercalam as vozes dos participantes em
uma narrativa coletiva (Ely, 1996; Grumet, 1990). Eu estou interessada nas
formas representacionais pós-modernas que usam uma ampla variedade
de recursos artísticos para dar conta das múltiplas vozes, perspectivas
fragmentadas e significados (Manning, 1995). Eu concordo com Richardson
(1995) que “se nós queremos entender a mais profunda e a mais universal
das experiências humanas, se nós queremos que nosso trabalho seja fiel à
experiência viva das pessoas ... se nós queremos usar nossos privilégios e
habilidades para fortalecer as pessoas que estudamos, então nós devemos
valorizar a narrativa” (pp 218-219).

Sob meu ponto de vista, as qualidades da imaginação, criatividade,


intuição, paixão e dedicação deveriam subsidiar tanto o nosso ensino de
drama quanto nossa prática de pesquisa etnográfica. Apesar dos problemas
e desafios inevitáveis que eu experimento em cada estudo, eu acredito
no potencial da etnografia para prover insights únicos e valiosos sobre
os complexos eventos culturais que caracterizam nosso trabalho como
drama-educadores. Ao focalizarmos, como pesquisadores, o currículo de
drama em seu contexto vivo, nós examinamos, criticamos, e expomos as
qualidades estéticas e educacionais, e as suposições subjacentes ao nosso
trabalho com os jovens.

Nota

Eu devo a Bruce Burton o título deste artigo. Ele usou a mesma frase
como título do capítulo 3 de sua tese de Ph.D (1996).

Referências Bibliográficas

AGAR, M. “Literary journalism as ethnography”. In J. Van Maanen (Ed.),


Representation in Ethnography (pp 112-129). Thousand Oaks, CA: Sage, 1995.
BOAL, A. The Rainbow of Desire. London: Routledge, 1995.
BURTON, B. The Act of Learning. Melbourne, AU: Longman Cheshire, 1991.

O Drama da Etnografia. Kate Donelan Dezembro 2008 - Nº 10

166
U rdimento

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Dezembro 2008 - N° 10 O Drama da Etnografia. Kate Donelan

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Dezembro 2008 - Nº 10
U rdimento

Normas para publicação de artigos

1) Artigos – mínimo de 8 e máximo de 12 laudas. Resenhas de livros


– mínimo de 3 e máximo de 4 laudas. Digitação em tipologia 12,
Times New Roman, espaçamento normal, Word para Windows (ou
compatível), limite de 5.700 caracteres com espaços por lauda;
2) Solicita-se clareza e objetividade nos títulos;
3) As notas devem ser formatadas em algarismos arábicos, apresentadas
no rodapé da página. A bibliografia deve ser acrescentada imediatamente
após as notas, obedecendo ao seguinte padrão: SOBRENOME, Nome,
Título (tradutor), Local, Editora, Ano, páginas referidas (ex: 13-16).
Para periódicos e jornais: SOBRENOME, Nome, Artigo/Reportagem,
Periódico ou Jornal, nº V (tradutor), Local, Editora, Ano ou Data,
páginas referidas. Periódicos não devem ter títulos abreviados;
4) Para indicações de obras no corpo do texto ou final da citação:
SOBRENOME, Ano: número da página. Para quaisquer outras
normas, seguir o padrão ABNT vigente;
5) No corpo do texto, usar a primeira letra maiúscula e toda(s) a(s)
palavra(s) em itálico para nomear títulos de peças, óperas, livros,
títulos e obras em geral;
6) As colaborações devem incluir uma brevíssima apresentação do
autor, visando situar o leitor, de no máximo 3 linhas;
7) À parte, o colaborador deve enviar uma autorização para publicação.
Caso inclua fotos, desenhos ou outros materiais gráficos da autoria
de terceiros, é indispensável o aceito dos mesmos assim como uma
legenda de identificação;

Dezembro 2008 - N° 10 Convocatória para artigos.

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U rdimento

8) O conjunto destinado à publicação deve ser encaminhado em duas


cópias impressas, uma em CD e outra para o e-mail urdimento@udesc.br
aos cuidados da revista, até o prazo do fechamento.

Endereço para correspondência e envio de colaborações:

Revista Urdimento
Programa de Pós-Graduação em Teatro – UDESC
Av. Madre Benvenuta, 1.907 – Itacorubi
88.035-001 – Florianópolis – SC
E-mail: urdimento@udesc.br

Convocatória para artigos. Dezembro 2008 - Nº 10

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Realização:

Programa de Pós-Graduação em Teatro

Centro de Artes
Diagramação Editorial

CEART / UDESC

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As famílias tipográficas Bell MT e BellCent
são utilizadas em toda esta revista.

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