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DOSSIÊ
Elísio Estanque*
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SOCIOLOGIA E ENGAJAMENTO EM PORTUGAL...
dar a ordem estabelecida. Visualizar o invisível e paradigma ocidental da ciência moderna em favor
valorizar, a partir das margens, as múltiplas de uma visão cosmopolita, multiculturalista e
potencialidades emancipatórias que o centro tem emancipatória dos movimentos e dos fenômenos
vindo a apagar ou a excluir. Em outras palavras, sociais em geral que, nos últimos anos, afirmou-se
recusar limitar-se a justificar o que existe só por- na defesa da “ecologia dos saberes” e na opção pela
que existe, e estar atento às ausências e às emer- “epistemologia do Sul”, não obstante o seu interes-
gências (Santos, 2000 e 2002a). se filosófico e o seu potencial crítico sejam assun-
O presente artigo tem como objetivo forne- tos que se apresentam como mais controversos
cer uma amostra dos temas de estudos que temos entre os cientistas sociais, inclusive no seio da
desenvolvido, guiados por essa orientação, ou seja, comunidade do CES (Santos; Menezes, 2009).
procurando usar a reflexão e a análise sociológica Desse modo, a preocupação neste artigo é
para, a partir dela (e com base nos resultados de divulgar junto à comunidade brasileira dos cien-
diversos estudos em áreas distintas), intervir na tistas sociais algumas das leituras e diagnósticos
esfera pública, procurando dirigir o nosso conhe- que temos proposto sobre as tendências de mu-
cimento não apenas para as instituições (“policy dança no período recente, no campo das relações
making”), não apenas para a comunidade acadê- de trabalho e do sindicalismo. Tais temáticas são,
mica (numa perspectiva “profissional” ou “críti- no entanto, perspectivadas no seu sentido mais
ca”), mas para os públicos subalternos e plurais, abrangente, ou seja, como instâncias de eleição em
no sentido de disseminar informação e conheci- torno das quais qualquer estratégia de moderni-
mento inovador, capaz de instigar a participação e zação, tal como o próprio sistema democrático,
a cidadania ativa. Dando sequência a um dos prin- tanto se podem consolidar como entrar em colap-
cípios orientadores do CES, a filosofia subjacente so. Para além disso, importa referir que – nesse
aos trabalhos realizados nessas áreas – sobretudo campo como em muitos outros que integram as
a partir do Núcleo de Estudos do Trabalho e linhas de pesquisa do CES1 – as notas de refle-
Sindicalismo (NETSind) – preocupa-se em contri- xão que se seguem são fruto não apenas de resul-
buir para “democratizar a democracia” ou, por tados de pesquisas diversas, mas, ao mesmo tem-
outras palavras, ajudar a reinventá-la, de uma de- po, exprimem o diálogo que temos aprofundado
mocracia representativa e de baixa intensidade rumo com os atores sociais diretamente intervenientes
a uma democracia de alta intensidade, em que as nesse domínio, quer no âmbito institucional, os
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te, deixar de ser observada sem se levar em conta A noção de “crise” encerra em si mesma
alguns dos traços específicos da sociedade portu- uma enorme variedade de significados e, no caso
guesa, mostrando as suas vulnerabilidades parti- vertente – em que se pensa, sobretudo nas ten-
culares, que remetem para a história recente do dências negativas na esfera financeira, econômica
país e para as dificuldades que vem enfrentando e no emprego –, ela recobre todo um leque de rea-
na aproximação aos padrões europeus. lidades bem diferentes, muitas das quais já anti-
gas. Por outro lado, a própria crise econômica foi
suscitada por um conjunto complexo de fatores
DA CRISE E PARA ALÉM DELA: dilemas e sociais, uns mais estruturais outros mais contin-
dificuldades estruturais gentes. Diversas instâncias políticas e interesses
econômicos desencadearam, desde há cerca de trin-
Numa época de crise internacional que atingeta anos, um programa de iniciativas que significou
todos os cantos do mundo, é fundamental que nos uma aposta sem precedentes no comércio livre, na
questionemos sobre os seus impactos, em especi- especulação nas bolsas de valores, nas offshores e
al no setor do trabalho, que se assumiu como a na economia financeira, fatores que serviriam de
infraestrutura fundamental do sistema social e barômetro para o crescimento econômico. Os mer-
político das sociedades industriais modernas. cados assegurariam um crescimento ilimitado e,
Começarei por chamar a atenção para dois pontos portanto, quanto menos regulação e intervenção
prévios: em primeiro lugar, existe um conjunto de estatal, tanto melhor. A “bondade” do mercado glo-
aspectos relacionados às transformações ocorridas bal parecia garantir o sucesso.
nas últimas décadas, em especial no que tange às Embora sejam esses alguns dos lemas que
grandes mutações socioeconômicas e sua incidên- conduziram à erupção da atual crise, certos mentores
cia nas relações de trabalho e nos processos pro- teóricos importantes, como Alan Greenspan, fize-
dutivos, que devem ser previamente equacionados ram mea culpa e assumiram o “erro”. Com efeito,
a fim de se compreender como os impactos da atu- foram os Estados e as economias mais ricas do
al crise se fazem sentir de modo muito distinto em mundo, fortemente apoiadas pelos mercados in-
diferentes contextos e sociedades particulares; em ternacionais e pelas novas tecnologias da informa-
segundo lugar, é necessário relativizar a tendência ção e comunicação, que impuseram, como regra, a
para se pensar e discutir todos os assuntos em abertura total das fronteiras ao comércio mundial,
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justamente devido à sua polissemia. Muito embo- para milhões de trabalhadores de diversos conti-
ra se tenha percebido que, afinal, o comércio glo- nentes. E o caso particular da Europa é aquele em
bal é já uma velha história, da qual existem marcas que as alterações em curso representam um fla-
indeléveis há mais de cinco séculos, a reviravolta grante retrocesso em face das conquistas alcançadas
ocorrida há cerca de três décadas suscitou uma desde o século XIX, com a decisiva contribuição
fantástica multiplicação das transações e fluxos de do movimento operário e do sindicalismo. Porque
pessoas, bens e serviços de todos os tipos, dando a Europa é justamente a região “referência” e o ber-
lugar a profundas transformações tanto no plano ço da civilização Ocidental, é necessário pensar
prático como no plano teórico e conceptual. Com em toda a sua tradição humanista e emancipatória,
a massificação da indústria turística e a democrati- na qual encontraremos a gênese das principais dou-
zação dos transportes aéreos, o mundo ficou menor trinas progressistas, revoluções e movimentos so-
e passou a ser olhado sob novas perspectivas. As ciais. O projeto da modernidade e a democracia
velhas noções de modernidade, desenvolvimento e política assentaram promessas de grande potenci-
progresso deram lugar à ideia de pós-modernidade, al utópico rumo a uma sociedade mais justa e igua-
de imprevisibilidade e de incerteza quanto ao senti- litária. Porém, os velhos lemas do iluminismo –
do da história e da mudança social. A intensifica- Liberdade, Igualdade e Fraternidade – foram, nas
ção das trocas comerciais na escala transnacional, últimas décadas, secundarizados, se não mesmo
com a ajuda da revolução informática, tecnológica e desprezados ostensivamente, no discurso
comunicacional, aceleraram e multiplicaram os institucional de governantes e dirigentes (inclusi-
processos de mercantilização da vida e das socie- ve de correntes como a social-democracia, cuja
dades, ao mesmo tempo em que os Estados e as história e referências éticas e doutrinárias se ins-
economias nacionais perderam parte da sua antiga crevem em projetos e ideologias desse teor). Os
soberania, autonomia e capacidade reguladora. efeitos da globalização induziram novas formas de
Porém, ao contrário da retórica liberal e trabalho cada vez mais desreguladas, num quadro
tecnocrática de muitos teóricos e experts, o novo social marcado pela flexibilidade, subcontratação,
liberalismo que avassalou o mundo desde os anos desemprego, individualização e precariedade do
1980, não só não atenuou os problemas humanos trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução
e os riscos sociais como os agravou drasticamente. de direitos trabalhistas e sociais, e ao aumento da
É verdade que as oportunidades de negócio e as insegurança e do risco, num processo que se reve-
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vantagens lucrativas se mostraram fantásticas para lou devastador para a classe trabalhadora e o
uma ínfima minoria – sobretudo dos que já eram sindicalismo os finais do século XX (Castells,
ricos e poderosos –, mas, em contrapartida, a larga 1999; Beck, 2000; Estanque, 2007).
maioria das populações e das classes trabalhado- A realidade do mundo do trabalho, nos últi-
ras, incluindo amplos setores da classe média, vêm mos tempos, atualizou visões críticas do capitalismo
se debatendo com o agravamento das suas condi- até há pouco julgadas ultrapassadas. Karl Marx e a
ções de vida e de trabalho. Hoje, muitos consta- sua obra maior, O Capital, voltou a suscitar as aten-
tam a intensificação das desigualdades e injusti- ções do mundo, quer por parte de acadêmicos, quer
ças sociais, e mesmo aqueles que mais ativamente por parte da opinião pública em geral. Mas, se o
glorificaram o mercado livre e as infinitas pensamento marxista parece ganhar nova atualida-
potencialidades da economia financeira voltam-se de, não é porque se pretenda recuperar a ortodoxia
agora para o Estado pedindo auxílio. leninista ou reincidir em modelos comprovadamente
O campo do trabalho é, sem dúvida, aquele falidos, como o soviético. É sim porque o mercado
em que os impactos desestruturadores da desregulado, a intensificação da exploração – sob
globalização têm se mostrado mais problemáticos. velhas ou novas formas – e todo o conjunto de pro-
As consequências disso tornaram-se devastadoras blemas socioeconômicos que a atual crise
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aprofundou (em muitos casos pondo a nu o que já mesmo tempo que se combina sob diferentes lógi-
lá estava, mas ainda imperceptível) comprovaram cas e formas mais instáveis (metamorfoseia-se) e,
a falência do paradigma neoliberal e requerem, por em muitos casos, mais penosas para quem tem de
isso, que se repensem os modelos de mercado que viver de qualquer trabalho. Tornou-se clara a ver-
guiaram a economia mundial nos últimos tempos. satilidade, a instabilidade e a multiplicidade de
Em especial no campo do emprego, temos formas e de sentidos que envolvem o trabalho e
assistido a um efeito de pêndulo, em que cada vez seus mundos no início do século XXI. Muito em-
menos trabalhadores se encontram numa situação bora se tenha esbatido como potência criadora e
de emprego seguro, estável e com direitos, enquan- espaço de consolidação de “subjetividades de clas-
to existem cada vez mais pessoas desempregadas se” dirigidas para a ação transformadora, o traba-
que se debatem com o iminente risco de pobreza e lho, material e imaterial permanece como o módulo
exclusão. Como os vagabundos do século XVIII central no processo de acumulação capitalista
europeu ou os chamados malteses alentejanos de (Antunes, 2006).
meados do século XX, essa gente vê negados os O flagelo do desemprego, associado a um
direitos mais elementares. São atirados ao mundo “individualismo negativo” (Castel, 1998), que se
em uma busca desesperada de subsistência e obri- assemelha a fenômenos que ocorreram na Europa
gados a aceitar quaisquer condições de trabalho e do século XVIII, resultante dessa precariedade –
a se entregarem à vontade gananciosa de patrões geradora das mais diversas formas de dependên-
sem escrúpulos. Excluídos, de fato, do estatuto de cia, insegurança, resignação e medo – permite todo
cidadania, são por vezes eles próprios que se ne- o tipo de prepotências e abusos. No atual panora-
gam a si mesmos o direito de procurar um traba- ma, já não são os direitos trabalhistas aquilo que
lho digno, aceitando ser tratados como sub-huma- se pretende defender, mas, do ponto de vista de
nos ou como os novos escravos da economia glo- milhões de assalariados, tão só o emprego a todo o
bal do século XXI. custo, pois “o pior dos empregos é sempre prefe-
Os processos recentes de fragmentação e rível ao desemprego” – o que traduz bem a debili-
precarização das relações e formas de trabalho atin- dade em que se encontra hoje o trabalhador. Des-
giram o conjunto das classes trabalhadoras e pulve- mantelou-se o velho compromisso entre capital e
rizaram as próprias estruturas contratuais e trabalho, e a concertação social – a negociação
organizacionais do sistema produtivo. Perante o tri- “tripartite” –, essa velha conquista do fordismo e
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as e tutelas de todos os tipos, que se adaptam de tória e o significado das lutas sociais dos trabalha-
modo perverso à vida moderna, corroendo o fun- dores europeus ao longo dos últimos cento e
cionamento das empresas e instituições e travan- cinquenta ou duzentos anos, jamais compreende-
do as potencialidades de modernização econômi- remos a diferença entre o modelo social europeu e
ca e de aprofundamento democrático. o mercantilismo individualista dos países anglo-
Mantêm-se ou intensificam-se os velhos saxônicos. Se houve efetivamente progressos fun-
dualismos, tais como a divisão entre o interior e o damentais na Europa ao longo de todo esse tem-
litoral ou entre o rural e o urbano, muito embora po, eles se devem essencialmente à capacidade de
tais divisões conservem fortes imbricações recípro- organização e de luta coletiva da classe trabalhado-
cas. Essas antigas contradições continuam a per- ra e do movimento operário nos países industria-
sistir, embora se adaptem aos tempos atuais. Os lizados. Esse é, de resto, um patrimônio que é rei-
setores protegidos do emprego tornam-se cada vez vindicado por toda a esquerda, desde a social-de-
mais raros, enquanto o emprego precário subiu mocracia até o movimento comunista.
acima dos 20% (22% em 2007 para os trabalhado- Se hoje temos mecanismos de regulação dos
res com menos de 35 anos) e, nas camadas mais conflitos e uma ordem jurídica que privilegia o
jovens, atinge cerca do dobro desse percentual, o diálogo e a concertação entre os diferentes parcei-
que, por sua vez, exprime a contradição geracional ros e classes sociais, isso se deve aos grandes sa-
entre uma juventude mais qualificada, mas tam- crifícios e às lutas do movimento operário. Nesse
bém mais precária, e as condições de trabalho dos sentido, o direito do trabalho foi (e é) um instru-
seus pais ou avós. O discurso da privatização foi, mento decisivo a serviço dos trabalhadores, desti-
durante décadas, elevado ao estatuto de único le- nado a reequilibrar as relações sociais entre capital
gítimo, pois apoiado na competitividade, e, ao abri- e trabalho, que são, como se sabe, estruturalmente
go desse discurso – erigido em pensamento único assimétricas. No entanto, apesar dos avanços al-
por parte do poder –, desencadearam-se diversas cançados, em muitos países persistiram, ao longo
reformas nos serviços públicos em diversas áreas, dos tempos, inúmeras formas de trabalho fora de
tais como a saúde, o funcionalismo público, a edu- qualquer proteção jurídica, e a erosão dos direitos
cação e outras, justificando-se tais mudanças com sociais e econômicos dos trabalhadores suplantou
base num suposto privilégio dos trabalhadores e largamente a força da lei. Como sabemos, isso ain-
funcionários da administração pública, por con- da ocorre em diversas regiões do globo.
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impedem o fortalecimento da esfera pública e ten- de frente à qual muitas outras exigências, mesmos
dem a inibir qualquer ação reivindicativa no campo as mais evidentes, podem ser sacrificadas. Exis-
profissional, onde imperam os constrangimentos e tem empresas, nos EUA e na Europa, que estabele-
a mentalidade autoritária de empresários e chefias. cem um salário máximo, pedindo aos candidatos
A presença de culturas autocráticas, de tutelas e a um posto de trabalho que indiquem quanto “pre-
compadrios dos mais diversos tipos, onde deveri- tendem” ganhar, até esse nível máximo (por exem-
am prevalecer a transparência, as estratégias de ges- plo, oito euros por hora), o que induz a um cons-
tão e lideranças democráticas, são ingredientes que tante rebaixamento salarial indicado pelos preten-
dentes ao emprego (os que indicam quatro euros
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Designação atribuída ao pacote legislativo na área traba-
lhista, que teve uma primeira versão em 2003, no gover- ou menos serão naturalmente os preferidos). É a
no do PSD, dirigido por Durão Barroso, e que mais re- lógica da autonegação da dignidade, produzida pelo
centemente foi reformulado e aprovado pela Assembleia
da República, em 2008. A nova orientação, defendida espectro do desemprego e da miséria. O clima de
pelo PS de José Sócrates, teve, porém, uma forte oposi-
ção, sobretudo por parte dos partidos à sua esquerda (o angústia que o atual cenário de crise tem acentua-
Partido Comunista e o Bloco de Esquerda) e também por
parte do campo sindical (em especial a central sindical do só contribui para que tais sintomas “patológi-
mais representativa e combativa, a CGTP), que mobili- cos” se tornem ainda mais dramáticos do que até
zou, em 2008, várias manifestações de rua em Lisboa,
algumas delas com mais de duzentos mil participantes. agora temos conhecido.
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Porém, quando o trabalhador (ou o cida- postamente, se pode dialogar e os outros, ditos con-
dão) é sistematicamente reprimido e impedido de servadores ou “ao serviço de...”), seremos levados
manifestar a sua vontade ou de exigir o cumpri- a perceber o papel social e transformador do
mento de direitos, o que acontece é o aumento do sindicalismo (e tanto a contestação como a negocia-
descontentamento e da contrariedade no trabalho ção são vias igualmente válidas no plano social) e
e na sociedade. Daí resulta, então, uma de duas talvez então se possa aceitar que o sindicalismo
posições: ou se acentua a resignação e o medo, ou combativo e de movimento é aquele que maior con-
aumenta a crispação e o sentimento de revolta. Esse tribuição deu e pode dar ao progresso social.
ambiente – agravado com as múltiplas formas de É sobretudo em períodos de crise e de difi-
recomposição, desmembramento, flexibilidade, culdades para as classes trabalhadoras que ocor-
deslocalização e fechamento de empresas, rem as grandes reviravoltas históricas, normalmente
precarização do trabalho, fragmentação dos pro- acompanhadas de novos movimentos e da emer-
cessos produtivos etc. – tem conduzido a classe gência de novas lideranças. Na Inglaterra do sécu-
trabalhadora a uma cultura de impotência e de lo XIX e noutros contextos históricos mais recen-
conformismo. Uma “classe” cada vez mais hetero- tes – de que pode ser exemplo o 25 de abril de
gênea e frágil, que se depara com tremendas difi- 1974 –, a mobilização popular não se deveu ape-
culdades em agir coletivamente. Há muito que as nas a motivações políticas e econômicas (nem a
identidades de classe perderam fulgor em favor de causas racionais, da ordem da “consciência” ou
outras identidades rivais e de outras formas de dos “interesses”), mas também, talvez, sobretudo,
ação coletiva (e de inação), num processo que se a fatores culturais e identitários. A identidade pre-
acentuou enormemente com o colapso do regime cede os interesses. Mas estes, quando fundados
soviético e, no caso português, após a saturação em fortes carências e necessidades básicas por sa-
da linguagem marxista e “de classe” de que se usou tisfazer, podem produzir rebeliões radicais e de
e abusou no período da Revolução dos Cravos massas, ainda que não sejam orientadas por ne-
(1974). Perante o refluxo da ação coletiva e do dis- nhuma motivação política explícita (ou inspiradas
curso ideológico, os sindicatos perderam força e numa ideologia identificável).
capacidade de organização e de mobilização, nome- A classe trabalhadora deixou há muito de ser
adamente junto dos segmentos mais fragilizados e homogênea (porventura nunca chegou a sê-lo, a não
mais jovens da força de trabalho. Para além de um ser em contextos muito particulares), mas a difusão
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Tomados por muitos como fatores de blo- gor o princípio da “válvula de escape”, mas os
queio ao crescimento econômico e ao desenvolvi- seus efeitos são politicamente incertos. As ondas
mento, os sindicatos queixam-se, com razão, de de protesto e o discurso de indignação que as acom-
que, em diversas regiões do mundo, as formas de panha, exacerbados por um poder (institucional,
trabalho parecem ter regressado aos tempos “satâ- empresarial ou governamental) de viés autoritário,
nicos” de Marx. Mas, apesar da mítica classe ope- podem ganhar um efeito mimético de proporções
rária estar em desagregação, não surge no horizon- imprevisíveis, se para tal as condições sociais se
te nenhuma outra identidade capaz de congregar a tornarem propícias.
unidade dos assalariados. As atuais pressões do O atual contexto de crise, ao mesmo tempo
mercado e da economia global deixam aos sindica- em que ameaça desfazer um conjunto de laços soci-
tos uma margem de manobra cada vez mais estrei- ais que até aqui garantiam a coesão mínima da soci-
ta, mas, por outro lado, o esforço de atualização edade, pode – precisamente porque o sistema soci-
por parte das estruturas sindicais tem sido dimi- al tem horror ao vazio – galvanizar de novo as mul-
nuto e insuficiente para responder aos problemas tidões que se sentem ressentidas e desprotegidas. E
da atualidade. Sobra, então, espaço para novos o fato de o sindicalismo apenas timidamente se
atores e movimentos. envolver nesse tipo de iniciativas, até agora, não
Nas últimas décadas, enquanto a economia garante que elas continuem a ter uma expressão
e os mercados deixaram de estar confinados às fron- modesta. Até porque, se o presente é fortemente
teiras nacionais, o movimento sindical revelou marcado pela contingência, tanto pode acontecer
enormes dificuldades em agir para além do âmbito que expressões de grupos minoritários (sejam eles
nacional (e, muitas vezes, do próprio âmbito os MayDay, os FERVE ou outros3) possam repenti-
setorial). A globalização revelou-se contraditória e namente se alastrar, como a própria intensificação
gerou múltiplos efeitos paradoxais, nomeadamen- da pressão pode levar a que o sindicalismo radicalize
te ondas sucessivas de protestos juvenis e movi- o seu discurso e consiga mobilizar a massa de pre-
mentos sociais que se reclamaram de “alter- cários e desempregados que tem vindo a engrossar
globalização”. Desde a cúpula da Organização e ameaça expandir-se ao longo de 2009.
Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999, Diversos autores e acadêmicos têm formu-
passando pelos encontros do Fórum Social Mun- lado a necessidade de se criarem novas alianças e
dial, em Porto Alegre e outras cidades, esse ativismo
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dinâmicas internacionalistas, como condição para te do sindicalismo de hoje se deixou enredar. Exi-
revitalizar o sindicalismo perante o agravamento ge uma reflexão séria e uma atitude autocrítica e
das desigualdades e injustiças sociais em todos os porventura mais humilde da parte das atuais lide-
continentes, alegando que a mobilidade global – ranças sindicais, associativas e institucionais, em
de capitais e de empresas funcionando em rede – todos os domínios da nossa vida social.
exige respostas sindicais também em rede e igual- Por exemplo, a extraordinária capacidade da
mente articuladas na escala transnacional internet e do ciberespaço constitui um enorme
(Waterman, 2002; Estanque, 2007). Ao contrário potencial ainda subaproveitado. A facilidade para
de outros países e regiões, como o Brasil e a Amé- aceder à informação, para acumular e divulgar co-
rica Latina, onde a cooperação entre as universi- nhecimento em frações de segundo poderia ser uma
dades, os acadêmicos e os centros de pesquisa, de poderosa arma a serviço do movimento sindical e
um lado, e os movimentos sociais e sindicais, de da democracia em geral (Ribeiro, 2000; Waterman,
outro, são uma constante, em Portugal essa tradi- 2002). O problema não reside, portanto, na
ção praticamente não existe. tecnologia ou na sua ausência. O problema é que os
As novas redes e estruturas transnacionais atributos socioculturais que enunciei anteriormen-
de organização política são cada vez mais necessári- te se refletem e se reproduzem nos mais diversos
as. Não apenas na União Europeia, onde as famíli- meios e instâncias organizacionais, inibindo, assim,
as políticas possuem ainda pouca eficácia e os pró- uma maior transparência na gestão das instituições
prias estruturas sindicais são incipientes. Para en- e travando, sem sabermos até onde, o processo de
frentar os atuais desafios (que a crise apenas veio consolidação e aprofundamento democrático.
acelerar), o sindicalismo de hoje terá de se reinventar
ou se reestruturar profundamente. Um sindicalismo
de movimento social global, orientado para a in- CONCLUSÃO
tervenção cidadã, terá de se estender para além da
esfera laboral; terá de passar das solidariedades Concluindo, a crise que nos surpreendeu
nacionais para as transnacionais, de dentro para no final de 2008 tem causas bem mais profundas e
fora, dos países avançados para os países pobres. longínquas do que pode parecer. E o modo como
Precisamos de um sindicalismo que não abdique setores decisivos, como o do emprego, são ou não
da defesa dos valores democráticos, mas em que capazes de responder às dificuldades e problemas
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KEY-WORDS: public sociology, crisis, labour, trade MOTS-CLÉS: sociologie publique, crise, travail,
unionism, Portugal. syndicalisme, Portugal.
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 311-324, Maio/Ago. 2009
Elísio Estanque - Doutor em Sociologia pelo ISCTE. Pesquisador do CES – Centro de Estudos Sociais e
Professor de Sociologia na Universidade de Coimbra. Coordenador dos Programas de Pós-Graduação em
Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo. Desenvolve pesquisas nas áreas de Sociologia
do Trabalho, Classes e Desiguadades Sociais, Movimentos Sociais e Estudantis. Publicou, entre outros, Entre
a Fábrica e a Comunidade (Porto, Afrontramento, 2000); Mudanças no Trabalho e Ação Sindical: Portugal,
Brasil e o contexto transnacional. (Co-autor. São Paulo: Cortez, 2005; e Do Activismo à Indiferença: movimen-
tos estudantis em Coimbra (em co-autoria com Rui Bebiano, Lisboa, Ed. ICS, 2007).
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