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ABSTRACT:
The goal of this paper is to review the recent debate about the position of the Bible
as a source of doctrinal truths in the Seventh-day Adventist Church (SDA). To this
end, the official and mainstream position of the Adventist theology on the subject
will be exposed. Then this paper will analyze the tension between Adventist
theologians around definitions and concepts of sola Scriptura and prima Scriptura.
Later, the consequences of the debate will be assessed from the perspective of
the SDA. Finally, the position of Ellen White, a major figure in the Adventist
movement, will be described. The research uses the method of literature review.
Based on the article, it is possible to conclude that, whatever the position defended
in the debate, it is urgent to have concepts fully explained and clarified, knowing
how the concept of sola Scriptura affects the relationship between the writings of
Ellen White and the Bible in Adventist theology.
1
O autor é mestrando em Teologia na Escola Superior de Teologia, São Leopoldo-RS. E-mail:
pr_isaac@yahoo.com
1
INTRODUÇÃO
Como bem demonstrou George Knight, o adventismo não nasceu num vácuo,
mas foi influenciado pelas diversas correntes teológicas relacionadas às origens de
seus pioneiros.2
A presente pesquisa demonstrará que, desde o início, prevaleceu no
adventismo um conceito radical de sola Scriptura, ligado às raízes
anabatistas/restauracionistas de alguns de seus líderes pioneiros, e que tal visão se
tornou majoritária e oficialmente aceita na IASD até os dias de hoje. Mas, em razão da
forte influência do metodismo wesleyano e seu “quadrilátero wesleyano”3 no
adventismo, e a fim de conciliar o impacto dos escritos de Ellen G. White na teologia
adventista, alguns autores recentemente têm proposto um conceito de prima Scriptura
(no qual a Bíblia teria primazia, não exclusividade) como substituto de sola Scriptura.4
Essa pesquisa fará uma descrição panorâmica do recente debate a respeito do
conceito de sola Scriptura na teologia da IASD. Ao analisar as principais visões sobre o
assunto, fica claro que há uma carência de definições mais precisas de termos e
conceituações mais objetivas, o que pode gerar desentendimentos.
Diante desse quadro, surge uma pergunta essencial: será que o princípio sola
Scriptura entra em conflito com o uso que os adventistas fazem dos escritos de Ellen
G. White? Alguns autores entendem que se sola Scriptura for um princípio radical, isso
removeria Ellen White de sua posição como fonte de autoridade além da Bíblia no
adventismo. Outros entendem que nem mesmo o conceito restauracionista radical de
sola Scriptura poderia invalidar o ministério de Ellen G. White. E é possível verificar que
a própria Ellen White defendia um conceito radical de sola Scriptura. Cada uma dessas
posições tem profundos desdobramentos na teologia adventista.
2
KNIGHT, George R. Em busca de identidade: o desenvolvimento das doutrinas Adventistas do Sétimo
Dia. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2005. p. 29-37.
3
O “quadrilátero wesleyano” é a teoria metodista que ensina a existência de quatro autoridades em
assuntos religiosos: a Bíblia, a Razão, a Tradição, e a Experiência As Escrituras devem ser interpretadas
pela Razão, pela Tradição e pela Experiência pessoal com Deus. Mas as Escrituras são a suprema
autoridade.
4
WHIDDEN, Woodrow. Sola Scriptura, Inerrantist Fundamentalism, and the Wesleyan quadrilateral: Is
‘No Creed but the Bible’ a workable solution? Andrews University Seminary Studies. 1997. p. 216-223.
Disponível em: < http://documents.adventistarchives.org/ScholarlyJournals/AUSS/AUSS19971001-V35-
02.pdf>. Acesso em 15 de Janeiro de 2014.
2
Não faz parte dos objetivos desse artigo discutir se sola Scriptura é ou não é
um princípio bíblico.
5
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP:
Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 47.
6
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 163.
7
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 163.
8
Ver o item n. 5, em IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 47, 49.
9
KNIGHT, George R (ed.). Questões sobre doutrina: o clássico mais polêmico da história do
adventismo. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008. p. 53-54.
10
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. Declarações da Igreja. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira,
2003. p. 180.
11
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2003, p. 81.
12
Literalmente, sola Scriptura significa “somente pela Escritura”, e não “a Escritura somente”. Assim,
quando o adventismo advoga “a Bíblia, e a Bíblia só” está indo além do que o conceito expressa
3
“somente pela Escritura” e foi um dos lemas da Reforma Protestante.13
Publicada em 1974, uma das principais e mais influentes exposições da
hermenêutica adventista do sétimo dia, afirma que “intérpretes adventistas da Bíblia
geralmente tem aceitado esse princípio [sola Scriptura] e mantido que a Bíblia somente
é nossa infalível regra de fé, doutrina, reforma, e prática”.14 A mesma publicação revela
que, na visão adventista, sola Scriptura aponta para a suprema e exclusiva autoridade
da Bíblia em matéria de doutrina e salvação.15
No entanto, na literatura adventista, existem várias nuances e aplicações do
conceito sola Scriptura, desde o conceito radical e exclusivo16 até o conceito que
admite outras fontes além da Bíblia (como a tradição) e submissas a ela.17
Aparentemente, existem diferentes versões de sola Scriptura coexistindo na
teologia adventista. Por isso, não fica imediatamente claro ao leitor a que exatamente
os autores se referem quando utilizam a expressão sola Scriptura. E essa dificuldade
de definir com precisão e de maneira consensual o termo vem desde os tempos da
Reforma Protestante.
literalmente. Isso pode ser explicado pelas raízes que ligam o adventismo aos reformadores radicais,
especialmente os anabatistas, que defendiam um conceito sola Scriptura bem restrito e radicalizado.
13
DAVIDSON, Richard M. Interpretação bíblica. In: DEDEREN, Raoul (ed.). Tratado de teologia
Adventista do Sétimo Dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 70-71.
14
HASEL, Gerhard F. Principles of biblical interpretation. In: HYDE, Gordon M. (Ed.). A Simposyum on
Biblical Hermeneutics. Washington, DC: Biblical Research Committee, 1974. p. 167.
15
HASEL, 1974. p. 167.
16
Também é chamado de nuda Scriptura, ou “solo” Scriptura. Trata-se de uma redefinição para
diferenciar esse conceito exclusivo, dos Reformadores Radicais, do conceito sola Scriptura mais amplo
dos Reformadores Magisteriais – o conceito correto na opinião de alguns. Ver, por exemplo, MATHISON.
Keith A. The Shape of Sola Scriptura. Moscow, ID: Canon Press, 2001. p. 237-254.
17
Esse seria o conceito correto para MATHISON. 2001. p. 161. Mathison classifica a influência da
tradição na abordagem às Escrituras em níveis: Tradição 0 (“solo” Scriptura): a total ausência de
tradição, em sua opinião, um ponto de vista radical e censurável, defendido por alguns evangélicos
tradicionais; Tradição 1 (sola Scriptura): o autêntico princípio reconhecido por evangélicos tradicionais e
progressistas, que reconhece o valor da tradição em submissão à Bíblia e vinculada a ela; Tradição 2
(posição católica do Concílio de Trento):defende a validade da tradição adicional da Igreja como
autoridade; esta é uma posição inválida para evangélicos; e Tradição 3 (posição católica atual): a
Escritura e a Tradição são interpretadas pelo Magistério da igreja.
4
entre os reformadores Magisteriais e Radicais.18 Lutero e os Reformadores Magisteriais
não defendiam um conceito de sola Scriptura tão estrito como os Radicais (anabatistas,
por exemplo). C.D. Allert sugere que o apelo “a Bíblia e a Bíblia somente” deveria ser
aplicado apenas ao ramo radical da Reforma (especialmente os anabatistas), 19 pois os
Reformadores conhecidos como Magisteriais tinham uma compreensão de sola
Scriptura mais aberta, diferente dos Radicais.20 Segundo Alister McGrath, os únicos
protestantes que aplicaram consistentemente o princípio sola Scriptura foram os
Reformadores Radicais (ou anabatistas).21
Nesse ponto de vista, alguns eruditos defendem que o lema da ala não radical
da Reforma Protestante seria mais bem representado pelo conceito prima Scriptura em
vez de sola Scriptura.22 Isso revela a ausência de um significado único para sola
Scriptura, o que gera ambiguidades e confusões, como veremos.
Por ser fruto de um contexto multidenominacional, o adventismo herdou as
variadas concepções de sola Scriptura. Entre os pioneiros adventistas havia o
pensamento “restauracionista”23 (que defendia um sola Scriptura radical) e o
pensamento reformado clássico (que defendia um sola Scriptura mais moderado).
Assim, é compreensível que sola Scriptura não tivesse (e não tenha) uma definição e
uma aplicação padronizada.
Mesmo assim, a história mostra que os adventistas eram, em geral, mais
radicais na aplicação do conceito que os Reformadores Magisteriais, reduzindo muito a
importância da tradição.24 A visão adventista das Escrituras está ligada à da Reforma
18
O termo Reforma Magisterial designa um ramo da Reforma que contou com o apoio das autoridades
institucionais para sua realização (ramo representado por nomes como Lutero, Zwínglio, Calvino, Knox).
Por outro lado, a Reforma Radical prosseguiu fora e em dissidência do Estado (Karlstadt, Müntzer, Meno
Simons). LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 26-27.
19
ALLERT, C.D. What are we trying to conserve? Evangelicalism and sola Scriptura. Evangelical
Quarterly.Volume 76, número 4, 2004. p. 340 (nota 5). Disponível em <
http://www.biblicalstudies.org.uk/pdf/eq/sola-scriptura_allert.pdf>. Acesso em 12 de Abril de 2014.
20
ALLERT, 2004, p. 338.
21
MCGRATH, Alister E. Reformation Thought: An Introduction. Chichester: Wiley-Blackwell, 2012. p.
101.
22
STEINMETZ, David C. Luther and formation in faith. In: VAN ENGEN, John H. (Ed.) Educating People
of Faith: Exploring the History of Jewish and Christian Communities. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004.
p. 257. O autor afirma que para os Reformadores, sola Scriptura geralmente significava prima Scriptura.
23
O restauracionismo foi um movimento de retorno à Bíblia que influenciou outros movimentos religiosos
no início do século XIX. Os restauracionistas, assim como os antigos anabatistas, eram radicais em sua
visão de sola Scriptura.
24
TIMM, 2007, p. 7.
5
Radical anabatista, cujo conceito exclusivo de sola Scriptura moldou a abordagem
bíblica adventista, especialmente através da influência do conceito “restauracionista” da
Conexão Cristã, a denominação de alguns dos líderes pioneiros do adventismo.25 Essa
postura bíblica radical proporcionou a desconstrução e o recomeço doutrinário que
marcou o adventismo primitvo.26
25
KNIGHT, 2005, p. 29-30.
26
KNIGHT, George R. If I were the devil: seeing through the enemy’s smokescreen: contemporary
challenges facing Adventism. Hagerstown, MD: Review and Herald, 2007. p. 32-33.
27
CANALE, Fernando. Creation, Evolution, and Theology: The Role of Method in Theological
Accommodation. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2005. p. 98.
28
TIMM, Alberto R. Antecedentes históricos da interpretação bíblica adventista. In: REID, George W.
(Ed.). Compreendendo as Escrituras: uma abordagem adventista. Engenheiro Coelho, SP: Unaspress,
2007. p. 3-4; VAN BEMMELEN, Peter M. Revelação e inspiração. DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de
teologia Adventista do Sétimo Dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 49; GULLEY, Norman
R. Systematic Theology: Prolegomena. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2003. p. 373.
29
GULLEY, 2003, p. 557.
30
HASEL, Frank M. Pressuposições na interpretação das Escrituras. In: REID, George W. (Ed.).
Compreendendo as Escrituras: uma abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007. p.
37.
6
Essa tem sido a posição histórica da IASD com relação a sola Scriptura. Para
George Knight, graves controvérsias teológicas surgiram por causa do afastamento por
parte de alguns líderes adventistas dessas “raízes radicais e bíblicas da sola Scriptura
dos fundadores de sua mensagem”.31 Essas raízes radicais incluíam um conceito
exclusivista de “a Bíblia, e a Bíblia somente” (sola Scriptura, e não prima Scriptura).
Em defesa de sola Scriptura, Canale alerta que, no final do século XX, alguns
setores da comunidade teológica adventista abandonaram o princípio sola Scriptura
sobre o qual os pioneiros haviam construído seu sistema teológico, substituindo-o pelas
múltiplas fontes sobre as quais os teólogos católicos e protestantes construíram suas
teologias.32
Van Bemmelen alerta que o princípio da autoridade suprema das Escrituras
(sola Scriptura) corre o perigo, nos dias atuais, de ser ostensivamente atacado ou
sutilmente substituído.33 Segundo ele, “ao ser exaltada a autoridade da razão, da
tradição e da ciência, muitos passaram a negar ou a limitar a autoridade das
Escrituras”.34
Mesmo assim, alguns autores adventistas têm proposto um conceito de prima
Scriptura como substituto de sola Scriptura. Tais autores entendem que um sola
Scriptura como dos Reformadores Radicais excluiria Ellen White, que é considerada
outra fonte de autoridade além da Bíblia no adventismo.35
Fritz Guy, por exemplo, afirma que o lema sola Scriptura:
31
KNIGHT, 2005. p. 95.
32
CANALE, Fernando. From Vision to System: Finishing the Task of Adventist Theology, Part I: Historical
Review. Journal of the Adventist Theological Society. Vol. 15. Número 2, 2004. p. 20. Disponível em:
< http://www.atsjats.org/publication_file.php?pub_id=4>. Acesso em 23 de Maio de 2014.
33
VAN BEMMELEN, 2011, p. 49.
34
VAN BEMMELEN, 2011, p. 49.
35
Ver, por exemplo, GUY, Fritz. Thinking Theologically: Adventist Christianity and the Interpretation of
Faith. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1999. p. 220; MUELLER, Ekkerhardt. Diretrizes
para a interpretação das Escrituras. In: REID, George W. (Ed.). Compreendendo as Escrituras: uma
abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007. p. 131-132; WHIDDEN, Woodrow. Ellen
White and John Wesley: Wesley and his American children laid the foundation for the core of Adventist
teachings of Salvation. Spectrum. Vol. 25. Número 5, Setembro de 1996. p. 48; WHIDDEN, 1997. p.
215.
7
36
experiência.
36
GUY, 1999, p. 137.
37
WHIDDEN, 1997. p. 220.
38
CROSBY, Tim. Why I don't believe in Sola Scriptura. Ministry. Outubro de 1987. p. 13-15.
39
LARSON, David. Wesley keeps Dad and Me Talking: Rediscovering Wesley’s loom of faith (faith,
tradition, reason, and experience) can reknit the Adventist Community. Spectrum. Vol. 25. Número 5,
Setembro de 1996. p. 43.
40
LARSON, 1996, p. 44.
41
Ver HASEL, 2007, p. 38, 42; DAVIDSON, 2011, p. 70.
42
HASEL, 2007, p. 36.
43
HASEL, 2007, p. 36.
44
No entanto, Hasel admite essas fontes apenas como ferramentas úteis para a compreensão da Biblia,
e não como fontes de verdades doutrinárias essenciais para a salvação.
8
No entanto, apesar de usar uma linguagem que se aproxima de prima
Scriptura, Hasel rejeita claramente tal princípio. Ele esclarece que “afirmar que as
Escrituras são a fonte final e exclusiva para sua própria interpretação é mais do que
defender a primazia delas. Isto é afirmado até mesmo pela Igreja Católica Romana”.45
Só então fica claro em que sentido o conceito de exclusividade da Bíblia é utilizado por
Hasel. A linguagem utilizada para defender sola Scriptura nem sempre é clara e
esbarra em definições imprecisas.
45
HASEL, 2007, p. 43.
46
MATHISON. 2001, p. 237-254.
9
parecidos com o princípio prima Scriptura.47 No entanto, em suas declarações mais
claras, alguns deles denominam tal princípio de sola Scriptura.
2) Sola Scriptura significa prima Scriptura, pois o conceito dos Reformadores
Magisteriais não é radical, e é melhor expresso no lema prima Scriptura.48 Trata-se
apenas de uma questão de mudança de nomenclatura. Tais autores tendem a
desvalorizar ou ignorar a Reforma Radical.
3) Sola Scriptura é bem diferente de prima Scriptura. Na verdade, são
conceitos opostos. Apenas os Reformadores Radicais (anabatistas) teriam seguido
sola Scriptura. Lutero e outros reformadores Magisteriais teriam praticado prima
Scriptura.49 Trata-se de uma diferença conceitual, não apenas de nomenclatura.
4) Não há distinção entre Reformadores Radicais e Magisteriais. Tais autores
escrevem como se todos seguissem sola Scriptura de maneira uniforme. Tal posição
não se sustenta diante das evidências históricas que comprovam as diferentes
posições diante de outras fontes de autoridade, como a tradição por exemplo.
É possível identificar cada uma dessas abordagens também na teologia
adventista. Isso já demonstra que a expressão sola Scriptura passou por várias
revisões desde a Reforma, e hoje precisa ser bem descrita a fim de que se saiba do
que o autor está falando. Não se pode pensar que hoje sola Scriptura tem um
significado unívoco.50
Para citar um exemplo adventista, o conceito sola-tota-prima Scriptura, de
Canale, é uma abordagem que busca extrair pressuposições da própria Bíblia.51 Mas,
curiosamente, esse princípio inclui conceitos aparentemente contraditórios: sola
47
Por exemplo, DAVIDSON, 2011, p. 70; MUELLER, 2007, p. 111-112, 131-132, 133 (nota 18);
CANALE, 2005, p. 99; HASEL, 2007, p. 36-37; CANALE, 2006, p. 36-80;
PIPIM, Samuel Koranteng. Receiving the Word: How new approaches to the Bible impact our biblical
faith and lifestyle. Berrien Springs, MI: Berean Books, 1996. p.111.
48
CROY, N. Clayton. Prima Scriptura: An Introduction to New Testament Interpretation. Grand Rapids,
MI: Baker Academic, 2011. p. 130-134.
49
MCGRATH, 2012, p. 101.
50
DONKOR, Kwabena. Contemporary Responses to Sola Scriptura: Implications for Adventist
Theology. Biblical Research Institute General Conference of Seventh-day Adventists. Disponível em: <
https://adventistbiblicalresearch.org/sites/default/files/pdf/Contemporary_Responses_to_Sola_Scriptura_
0.pdf>. Acesso em 12 de Junho de 2014.
51
CANALE, Fernando. From Vision to System: Finishing the Task of Adventist Theology, Part III
Sanctuary and Hermeneutics. Journal of the Adventist Theological Society. Vol. 17. Número 2, 2006.
p. 36-80. Disponível em: < http://www.atsjats.org/publication_file.php?pub_id=317&journ>. Acesso em 03
de Março de 2014.
10
Scriptura e prima Scriptura. Afirmar que a Bíblia é a “única” fonte e, ao mesmo tempo,
“a mais importante” fonte dentre outras pode parecer uma afronta à lógica. Como algo
pode ser o “único” e o mais importante dentre outros? Tal conceito só subsiste se
houver uma redefinição dos termos a fim de harmonizá-los, como o fez Canale.52
Apesar de incluir prima Scriptura, o conceito de Canale não nega a
exclusividade da Bíblia como fonte de verdade doutrinária. Nesse conceito, prima
Scriptura relaciona-se apenas às fontes que auxiliam na compreensão das Escrituras
(e a Bíblia teria a primazia na tarefa de interpretar a si mesma) e não às fontes de
verdades doutrinárias.
52
CANALE, 2005, p. 99. Canale define o sola-tota-prima Scriptura assim: “A aplicação do princípio sola
Scriptura significa que a condição hermenêutica do método teológico, incluindo os princípios de
realidades divinas, humanas, e do mundo: é interpretado somente a partir do pensamento bíblico. O
princípio tota Scriptura refere-se à interpretação de todos os conteúdos bíblicos e da lógica interna da
condição hermenêutica biblicamente interpretada do método teológico (sola Scriptura). O princípio prima
Scriptura refere-se ao fato de que o princípio hermenêutico interpretado do pensamento bíblico (sola
Scriptura) e de todo o conteúdo do pensamento bíblico (tota Scriptura), vai orientar os teólogos na
seleção e incorporação, de maneira crítica, de informação a partir de outras fontes (filosofia, ciência,
experiência), como os ensinamentos e a lógica interna do pensamento bíblico podem exigir”.
53
“A Reforma não terminou com Lutero, como muitos supõem. Ela continuará até o fim da história deste
mundo”. WHITE, Ellen G. O grande conflito. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988. p. 148. Em
1998, a Federeção Luterana Internacional reconheceu os adventistas como continuadores da Reforma e
os adventistas reconheceram que não são os únicos possuidores da “verdade”, conforme KILPP, Nelson.
FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL. GENERAL CONFERENCE OF SEVENTH-DAY ADVENTISTS.
Lutherans and Adventists in conversation: Report and papers presented 1994-1998. Silver Springs:
General Conference of Seventh-day Adventists, Geneva: Lutheran World Federation, 2000.
54
GULLEY, 2003, p. 557.
11
Escrituras, e isso é visto como um problema.
Van Bemmelen resume a preocupação a respeito dessa aproximação nas
seguintes palavras:
Apesar de terem a Bíblia em alta estima (e até mesmo em primazia, como será
demonstrado a seguir), autores católicos afirmam que a Bíblia não é a única fonte de
doutrina.56 O apologeta católico L. Rumble nega o sola Scriptura dizendo que:
Ele afirma que sola Scriptura é um ensino que não se encontra na Bíblia,58 e
que “[...] Cristo nunca pretendeu que a Bíblia sozinha fosse o Livro-Guia para a
verdade religiosa”.59 Essa é uma posição aparentemente extrema. Os adventistas
defensores de prima Scriptura geralmente não usam uma linguagem tão contundente
quanto a de Rumble, mas suas argumentações levam às mesmas conclusões.
Os adventistas adeptos de prima Scriptura não teriam necessariamente que
concordar com a argumentação de Rumble, mas não poderiam negar que o seu
esforço em rejeitar sola Scriptura seria útil para justificar o conceito prima Scriptura. E,
de fato, o catolicismo defende a primazia das Escrituras, em lugar da exclusividade.
Na teologia católica, a Palavra de Deus escrita é a norma normans non
55
VAN BEMMELEN, 2011, p. 60.
56
RUMBLE, L. A teoria de “A Bíblia somente”. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1959. p. 7. Rumble faz
seguinte a observação: “Em primeiro lugar devemos perguntar se jamais Deus pretendeu que a Bíblia
sozinha fosse a única e exclusiva fonte de doutrina para os cristãos”.
57
RUMBLE, 1959. p. 7-8. Rumble cita Mt 28:20, Jo 21:25 e 2 Ts 2:15 para demonstrar que existem
verdades de fé que ficaram de fora da Bíblia e teriam sido mantidas pela tradição.
58
RUMBLE, 1959. p. 8. Ele diz: “Quem declara que a Bíblia por si mesma é um guia completo está,
portanto, professando uma doutrina não somente não contida na Bíblia, mas também uma doutrina em
divergência com a Bíblia”.
59
RUMBLE, 1959. p. 9.
12
normata,
’a norma que normaliza’ nossa vida cristã, que é ela própria ‘não
normalizada’. Juntamente com a Palavra escrita da Escritura, a tradição
dogmática da Igreja também desempenha um papel nesse processo
normativo e revelador, mas é norma normata, ‘a norma que é
60
normalizada’, isto é, pela Escritura, da qual ela se origina.
60
FITZMYER, Joseph A. A interpretação da Escritura: em defesa do método histórico-crítico. São
Paulo: Loyola, 2011. p. 120.
61
HAHN, Scott W. Scripture Matters: Essays on reading the Bible from the heart of the Church.
Steubenville: Emmaus Road Publishing, 2003. p. 178-181.
62
FITZMYER, 2011, p. 22.
63
FITZMYER, 2011, p. 22.
64
FITZMYER, 2011, p. 22 (nota 18).
65
FITZMYER, 2011, p. 22.
66
FITZMYER, 2011, p. 13-28.
67
RAHNER, Karl. Scripture and Theology, Theological Investigations. Vol 6. Baltimore, MD: Helicon,
1969. p. 93.
13
Joseph Ratzinger crê que a tradição católica ensina a primazia das Escrituras
(prima Scriptura).68 No entanto, Ratzinger reafirma a visão do Vaticano II de afirmar
uma “fonte” de tradição como "regra de fé". E as Escrituras seriam a parte principal
dessa tradição.69 Segundo ele, "toda a Escritura é nada mais do que a Tradição".70
Em sua tese doutoral, Aleksandar Santrac analisa os recentes
desenvolvimentos da teologia católica a respeito da autoridade das Escrituras e
demonstra como a visão católica corresponde ao conceito prima Scriptura.71 Dessa
forma, um conceito de primazia das Escrituras (em vez de exclusividade das
Escrituras) é defendido pelo catolicismo romano, que tem a tradição em alta conta,
mas, em certo sentido, submissa às Escrituras.72
Os adventistas não negam o valor da tradição,73 e também possuem tradições
hermenêuticas e interpretações tradicionais. Existem no adventismo diferentes
“escolas” de interpretação profética, umas mais tradicionais que outras. Tais exemplos
demonstram que, numa proporção menor, a tradição também se faz sentir na teologia
adventista. No entanto, não há no adventismo nada equivalente ao Magistério católico.
Comentando a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, Fitzmyer
afirma que o Magistério católico “não está acima da Palavra de Deus, mas a seu
serviço, não ensinando senão o que foi transmitido”.74 Tal informação oficial é uma
68
HAHN, Scott W. Prefácio. In: RATZINGER, Joseph. Many Religions—One Covenant: Israel, the
Church and the World. San Francisco: Ignatius Press, 1999. p. 13-15.
69
RATZINGER, Joseph. Verbum Domini. Post-Synodal Apostolic Exhortation. Setembro de 2010.
Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/apost_exhortations/documents/hf_ben-
xvi_exh_20100930_verbum-domini_en.html>. Acesso em 17 de Maio de 2013.
Ratzinger declara: “A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, que falou no passado, continua até
hoje a comunicar sua Palavra na Tradição viva e na Sagrada Escritura. De fato, a palavra de Deus nos é
dada na Sagrada Escritura como um testemunho inspirado da revelação; juntamente com a Tradição
viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé”.
70
HAHN, 1999, p. 21.
71
SANTRAC, Aleksandar S. Sola scriptura: Benedict XVI’s Theology of the Word of God. Tese
(doutorado). North-West University, 2012. Disponível em: <
http://dspace.nwu.ac.za/bitstream/handle/10394/8225/Santrac_AS.pdf?sequence=2>. Acesso em 07 de
dezembro de 2013.
72
Guardadas as devidas proporções, essa frase poderia ser escrita também a respeito da autoridade de
Ellen G. White na teologia adventista.
73
Outras autoridades tais como tradição, razão e experiência se submetem as Escrituras. Ver: HASEL,
2007, p. 36.
74
FITZMYER, 2011, p. 21.
14
novidade no catolicismo75, afirma a primazia da Palavra e desfaz a noção popular de
que para os católicos a norma suprema de crença é o Magistério.
No entanto, é preciso notar que, no catolicismo, a revelação divina “expressa-
se na Tradição e na Escritura, um depósito único da Palavra de Deus”.76 A tradição e a
Escritura teriam a mesma origem divina e constituiriam “um só sagrado depósito da
Palavra de Deus confiado à Igreja” e “transmitido pelo Magistério vivo e pelo culto”.77
Rumble defende o Magistério afirmando que “a Igreja Católica, e só a Igreja
Católica, pretende ser divinamente nomeada e infalível, disponível para esse fim
[interpretar a Bíblia]; e dela é a única posição bíblica verdadeira”. 78 Os adventistas não
creem assim. Na visão adventista, interpretar a Escritura é tarefa de toda a igreja, e
não apenas de uns poucos especialistas.79
Mas, em suma, o conceito prima Scriptura não diferenciaria o adventismo do
moderno catolicismo com relação à posição das Escrituras como principal fonte de
verdade doutrinária. A diferença se daria apenas na forma como esse conceito é
aplicado no exercício da teologia. No catolicismo, o fato das Escrituras serem a fonte
primária para a teologia, (prima Scriptura) e não a fonte exclusiva (sola Scriptura)
submete a Bíblia às pressuposições hermenêuticas da Igreja e sua tradição. Segundo
Hasel, foi contra isso que os reformadores protestantes protestaram quando afirmaram
sola Scriptura.80
Sobre as possibilidades ecumênicas dessa nova postura do catolicismo com
relação às Escrituras, Berkouwer afirma que “a virada da teologia católica para a
Escritura e o retorno da teologia evangélica à tradição oferece-nos a esperança de um
diálogo frutífero sobre a Escritura e a tradição”.81 Na ecumênica Conferência de Fé e
Ordem, em Montreal (1963), grupos protestantes mostraram uma disposição de fazer
75
FITZMYER, 2011, p. 21. Fitzmyer diz: “Essa relação do Magistério com a Palavra de Deus é noção
nova, nunca antes enunciada nos ensinamentos da Igreja sobre a Escritura”.
76
FITZMYER, 2011, p. 18.
77
FITZMYER, 2011, p. 20 e 21.
78
RUMBLE, L. 1959. p. 13.
79
DAVIDSON, 2011, p. 69.
80
HASEL, 2007, p. 43.
81
BERKOUWER, G.C. The Second Vatican Council and the New Catholicism. Grand Rapids:
Eerdmans, 1965. p. 98.
15
concessões quanto à tradição em contraste com a posição radical de sola Scriptura.82
Embora a IASD não condene completamente o movimento ecumênico, ela tem
sido crítica de vários aspectos e atividades. Apesar de não negar que o ecumenismo
tem tido objetivos louváveis e algumas influências positivas, a IASD mantém uma
postura de alerta quanto aos perigos da relativização das crenças e da “amenização
doutrinária”.83
Dessa forma, o conceito prima Scriptura também precisa ser plenamente
esclarecido no adventismo. Dificilmente um adventista defensor de prima Scriptura
concordaria com o conceito católico de primazia das Escrituras, com todas as suas
pressuposições e consequências. Tal conceito atingiria frontalmente a reivindicação
dos adventistas de serem “continuadores da Reforma”.
E como o reconhecimento da autoridade dos escritos de Ellen G. White está no
centro da discussão sobre sola Scriptura no adventismo, será útil analisar como ela
mesma aborda a questão.
Aparentemente, Ellen White era mais radical em seu conceito de sola Scriptura
do que os tentam elevar seus escritos ao mesmo nível das Escrituras. Ela reafirma
categoricamente o princípio sola Scriptura. Douglass afirma que, para Ellen G. White, a
expressão “a Bíblia e somente a Bíblia” significava que, como autoridade, a Bíblia era
superior e exclusiva.84
Ellen G. White descreve o lema protestante como o princípio da “autoridade
infalível das Escrituras Sagradas como regra de fé e prática”.85 Ao descrever as ações
de Lutero, ela afirma que o princípio vital da Reforma era o ensino de que “os cristãos
não deveriam receber outras doutrinas senão as que se apoiam na autoridade das
82
DULLES, Avery. Scripture: Recent Protestant and Catholic Views. Theology Today. Vol. 37, Abril de
1980. p. 16.
83
CENTRO WHITE . Os Adventistas do Sétimo Dia e o Movimento Ecumênico. Disponível em: <
http://centrowhite.org.br/os-adventistas-do-setimo-dia-e-o-movimento-ecumenico/>. Acesso em
18/07/2014.
84
DOUGLASS, Herbert E. Mensageira do Senhor: o ministério profético de Ellen G. White. Tatuí, SP:
Casa Publicadora Brasileira, 2001. p. 377.
85
WHITE, 1988, p. 249.
16
Sagradas Escrituras”.86
Comentando a postura firme dos reformadores, ela elogia a noção deles de
que a Bíblia é “a única infalível autoridade em religião”.87 Ela sempre reconheceu a
Bíblia como a “única regra de fé e doutrina”,88 a norma suprema, por meio da qual
todas as coisas, incluindo suas próprias publicações, deveriam ser testadas.89
Para Ellen G. White, “A Bíblia, e a Bíblia somente, deveria ser nosso credo”.90
Ela apela para um retorno “ao grande princípio Protestante – a Bíblia, e a Bíblia só,
como regra de fé e prática”.91 A revelação na Escritura é plenamente adequada e
suficiente, contendo tudo que o homem precisa saber sobre Deus,92 o “conhecimento
necessário para a salvação”.93
Mesmo em meio a fortes controvérsias teológicas, Ellen G. White não autorizou
a utilização de seus escritos para servirem de árbitro e enfatizou insistentemente o
papel da Bíblia na elaboração doutrinária.94 Ela mesma admite que “os testemunhos
escritos não são para dar nova luz”, e que em seus escritos “não é trazida nenhuma
verdade adicional”.95
Jemison afirma que os escritos de Ellen G. White “não introduzem nenhum
assunto novo, nenhuma revelação nova, nenhuma doutrina nova. Eles simplesmente
dão detalhes adicionais sobre assuntos que já são parte do relato bíblico”.96 Mas os
detalhes e aplicações adicionais fornecidos por Ellen G. White “levam a uma percepção
mais aguçada e a uma compreensão mais profunda da verdade já revelada”.97
Douglass diferencia “nova luz – verdade adicional” de “detalhes adicionais”.
Segundo ele, “nova luz – verdade adicional” refere-se às verdades necessárias à
86
WHITE, 1988, p. 126.
87
WHITE, 1988, p. 238.
88
WHITE, Ellen G. Fundamentos da educação cristã. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1999. p.
126.
89
WHITE, 2005, p. 32.
90
WHITE, Ellen G. Mensagens Escolhidas. Vol. 1. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001. p. 416.
91
WHITE, 1988, p. 204-205.
92
WHITE, 1999, p. 415
93
WHITE, 1988, p. 7.
94
KNIGHT, 2003, p. 43-49, 58-64.
95
WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja. Vol. 5. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004. p.
665.
96
JEMISON, T. H. A Prophet Among You. Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association,
1955. p. 365.
97
JEMISON,1955, p. 371.
17
salvação. O que Ellen White fornece são “detalhes adicionais sobre as verdades da
salvação e o caráter de Deus. Em outras palavras, a Sra. White não introduz doutrinas
que não estejam na Bíblia”.98
Segundo Damsteegt, Ellen White sempre usou a expressão “a Bíblia e a Bíblia
somente” em contraste com posições antibíblicas de tradições religiosas, experiências,
posições eclesiásticas e a razão humana.99 Frequentemente ela relacionou o princípio
sola Scriptura a expressões como “doutrinas”,100 “ponto de fé religiosa. [...] doutrina ou
preceito”,101 e “grandes verdades indispensáveis para a salvação”.102 Isso revela que,
para ela, “a Bíblia, e a Bíblia só” era um princípio relacionado especialmente a
questões doutrinárias e questões relacionadas à salvação. Isso não exclui o uso de
outras fontes de autoridade como base em outras questões não essenciais.
Dessa forma, fica patente que Ellen G. White deixou clara a diferença de
função entre seus escritos inspirados e as Escrituras.103 Ellen G. White não tem o
propósito de estabelecer verdades doutrinárias. A sua autoridade não pode ser
utilizada nesse sentido, pois não tem tal objetivo. A Bíblia é a única fonte de verdades
doutrinárias.
Faz parte dos objetivos desse artigo fornecer subsídios para uma definição de
sola Scriptura que solucione o já apontado problema das conceituações imprecisas.
Antes, porém, é necessário apontar e esclarecer brevemente alguns conceitos que
estão na base dos desentendimentos a respeito da autoridade única e exclusiva das
98
DOUGLASS, 2001, p. 420.
99
DAMSTEEGT, P. Gerard. Ellen White on theology, is methods, and the use of Scripture. Journal of
the Adventist Theological Society. 4/2, 1993. p. 129. Disponível em: <
http://www.atsjats.org/publication_file.php?pub_id=480&journal=1&type=pdf>. Acesso em 23 de Janeiro
de 2014.
100
WHITE, 1988, p. 7.
101
WHITE, 1988, p. 595.
102
WHITE, Ellen G. Caminho a Cristo. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1987. p. 89.
103
Para uma análise mais detalhada da relação entre os escritos de Ellen G. White e a Bíblia, ver BURT,
Merlin D. Ellen G. White and Sola Scriptura. Seventh-day Adventist Church and Presbyterian Church
USA Conversation Office of the General Assembly PC (USA), Louisville, KY, August 23, 2007.
Disponível em: <
https://adventistbiblicalresearch.org/sites/default/files/pdf/Burt,%20Ellen%20White%20%26%20Sola%20
Scriptura.pdf>. Acesso em 12 de Maio de 2014.
18
Escrituras no adventismo.
104
DAVIDSON, 2011, p. 70.
105
DAVIDSON, 2011, p. 70-71.
106
GULLEY, 2003, p. 373.
19
somente são a norma final para a teologia e a fonte exclusiva de sua
própria interpretação. O protestantismo reivindicava mais do que a
superioridade das Escrituras diante de outras fontes, ou mesmo sua
prioridade. Reivindicava que as Escrituras somente são a fonte
exclusiva de sua própria exposição. Caso contrário, as Escrituras não
podem ser mais a autoridade final em teologia, nem podem ser o lugar
em que se origina a reflexão teológica e atinge sua conclusão.107
5.3 Sola Scriptura não significa que a Bíblia é a única revelação disponível
107
HASEL, 2007, p. 43.
20
A Bíblia aponta para a existência de outras fontes de revelação divina, como a
natureza e o dom profético. Mas elas não revelarão nenhuma verdade necessária à
salvação que a Bíblia já não revele. Sola Scriptura significa que qualquer “nova
verdade” ou “detalhe adicional” deduzido a partir dessas outras fontes de revelação
deve passar pelo crivo das Escrituras. Nesse sentido, sola Scriptura abre espaço para
prima Scriptura.
A palavra de Deus não se restringiu à sua forma escrita. As palavras de Jesus
não foram imediatamente escritas. Os apóstolos, por exemplo, ensinavam a doutrina
oralmente a princípio. Mas com o encerramento do Canon, a forma escrita tornou-se
definitiva. É fato que, ao longo da história, Deus revelou verdades essenciais à
salvação através de outros meios além das Escrituras. Mas hoje só é possível saber
desse fato através das Escrituras.
As variadas revelações divinas dificilmente serviriam às gerações posteriores
se tais testemunhos não tivessem sido preservados e transmitidos de forma fiel sob a
guia do Espírito Santo, como é o caso da Bíblia.108
5.4 Sola Scriptura não quer dizer que só a Bíblia tem verdades
108
VAN BEMMELEN, 2011, p. 35.
109
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 163.
110
SCHOLZ, Vilson. Princípios de interpretação bíblica: introdução à hermenêutica com ênfase em
gêneros literários. Canoas, RS: Ed. ULBRA, 2006. p. 10.
21
é desnecessário apontar para o fato de que existem muitas verdades úteis não
abordadas pela Bíblia. As Escrituras são plenamente suficientes “para cumprir o
objetivo proposto por Deus”.111
5.5 Sola Scriptura não representa uma negação do ministério de Ellen G. White
111
VAN BEMMELEN, 2011, p. 51.
112
KNIGHT, 2008, p. 100.
113
KNIGHT, 2008, p. 54.
114
KNIGHT, 2008, p. 99.
115
KNIGHT, 2008, p. 101.
22
reconhecidas pela igreja como tendo autoridade teológica.116
George Knight escreveu que, apesar da posição oficial da igreja apontar uma
direção, “alguns indivíduos e subgrupos tradicionais dentro da denominação parecem
basear alguns de seus ensinos nos escritos de Ellen White”.117
A questão da autoridade de Ellen G. White parece ser o ponto nevrálgico da
questão. Afirmar o princípio sola Scriptura significa negar, ou diminuir, a autoridade de
Ellen G. White?
Discorrendo sobre o dom profético de Ellen G. White, Gerhard Pfandl esclarece
que “a Igreja [IASD] não aceita graus de inspiração” e reconhece que “sua inspiração,
embora não sua autoridade, é do mesmo tipo de inspiração dos profetas do Antigo e do
Novo Testamento”. Ao contrário, Douglass escreve que “os escritos dela diferem em
função e objetivo, mas não em autoridade”.118 Aparentemente, os autores não se
referem à mesma coisa quando escrevem sobre a autoridade dos escritos de Ellen
White.
O documento Confiança no Espírito de Profecia, votado na assembleia da
Conferência Geral realizada em Utrecht, na Holanda, em 30 de junho de 1995 afirma:
“Consideramos o cânon bíblico encerrado. Contudo, cremos também, como o fizeram
os contemporâneos de Ellen G. White, que seus escritos têm a divina autoridade tanto
para o viver piedoso quanto para a doutrina”.119
O documento não faz uma comparação entre a autoridade de Ellen White e a
da Bíblia, mas abre espaço para a compreensão de que os escritos de Ellen G. White
podem servir como regra (“tem a divina autoridade”) de fé (“para a doutrina”) e prática
(“para o viver piedoso”).
Contrário a essa noção, Peter van Bemmelen afirma que nenhuma outra fonte
tem autoridade igual à da Bíblia.120 Ele descreve a autoridade da Bíblia como
116
DOUGLASS, 2001. p. 428.
117
KNIGHT, 2008, p. 100.
118
DOUGLASS, 2001, 416. No entanto, na mesma obra, citando o ex-presidente da Associação geral da
IASD, George Butler, Douglass escreveu: “As Escrituras são a regra pela qual provamos tudo, inclusive
as visões e tudo o mais. Essa regra, portanto, possui a autoridade mais elevada [...]”. p. 418. Isso deixa
claro que “autoridade” pode ter diferentes sentidos.
119
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2003, p. 97.
120
VAN BEMMELEN, 2011, p. 49.
23
“exclusiva”121 e “suprema”.122 Gulley defende que a Bíblia deve ser a única
autoridade.123
Na mesma direção, Fernando Canale diz que “a nenhum outro livro sagrado,
sejam histórias sacras, tradições antigas, declarações eclesiásticas ou credos, pode-se
atribuir autoridade igual à da Bíblia”.124 Frank Hasel também defende a Bíblia seja a
“autoridade suprema”125, e que o princípio sola Scriptura aponta para o reconhecimento
da “autoridade única das Escrituras”.126
Em contrapartida, Roger Coon defende que a autoridade de Ellen White é a
mesma que a dos profetas canônicos, e que a diferença estaria apenas na função dos
seus escritos.127
Esclarecendo tal conceito (de “autoridade igual, mas funções diferentes”), um
documento divulgado pelo White Estate, depositário oficial do patrimônio literário de
Ellen G. White, reafirma a autoridade dos escritos dela, mas nega que eles funcionam
como a “base e autoridade final da fé cristão como são as Escrituras” e que seus
escritos podem ser usados como “base de doutrina”.128
Assim, “autoridade” é outro conceito que também precisa sempre de definições
mais claras e objetivas para não causar confusões. Mas, de qualquer forma, Ellen G.
White sempre recusou que apelassem à autoridade de seus escritos para resolver
questões doutrinárias, mesmos nos momentos mais críticos. 129 Ela deixou claro que
seus escritos tinham a intenção de levar os adventistas de volta à Bíblia. 130
Douglass esclarece que sola Scriptura significa que tudo o que a Bíblia fala
121
VAN BEMMELEN, Peter M. A autoridade das Escrituras. In: REID, George W. (Ed.).
Compreendendo as Escrituras: uma abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007. p.
79.
122
VAN BEMMELEN, 2007, p. 80.
123
GULLEY, 2003, p. 373.
124
CANALE, Fernando. Revelação e Inspiração. In: REID, George W. (Ed.). Compreendendo as
Escrituras: uma abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007. p. 49.
125
HASEL, 2007, p. 43.
126
HASEL, 2007, p. 36.
127
COON, Roger W. The Relationship Between the Ellen G. White Writings and the Bible. Journal of
Adventist Education. Vol. 44. Número 3. Março de 1982. Disponível em
<http://www.whiteestate.org/issues/rev-insp.html#part3>. Acesso em 13 de Janeiro de 2014.
128
CENTRO WHITE. A Inspiração e autoridade dos escritos de Ellen G. White. Disponível em
<http://centrowhite.org.br/perguntas/perguntas-sobre-ellen-g-white/a-inspiracao-e-autoridade-dos-
escritos-de-egw/>. Acesso em 3 de Março de 2014.
129
KNIGHT, George R. A Mensagem de 1888. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003. p. 59-63.
130
WHITE, Ellen G. Mensagens Escolhidas. Vol. 3. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2005. p. 30.
24
deve ser honrado, inclusive seu ensino de que o “dom de profecia” continuaria até o fim
do tempo.131 Assim, em vez de estarem negando o princípio sola Scriptura,os
adventistas aceitam o ministério de Ellen G. White exatamente por causa do princípio
sola Scriptura.
131
DOUGLASS, 378.
132
VAN BEMMELEN, 2007. p. 75.
133
VAN BEMMELEN, 2007. p. 79, 80.
134
VAN BEMMELEN, 2007. p. 79.
135
VAN BEMMELEN, 2007. p. 80.
136
VAN BEMMELEN, 2007. p. 81.
137
VAN BEMMELEN, 2007. p. 75.
138
VAN BEMMELEN, 2007. p. 80, 81.
139
HASEL, 2007. p. 37.
140
CANALE, 2007, p. 55.
25
bíblica: como sua própria intérprete, só a Bíblia estabelece as regras de interpretação e
possui a palavra final nesse assunto.141
Como na interpretação bíblica sola Scriptura não exclui o auxílio de outros
campos de estudo (arqueologia, antropologia, sociologia,história, etc) e outros recursos
(léxicos, dicionários, concordâncias, etc),142 surge então o espaço para o conceito de
primazia das Escrituras. Sola Scriptura também não exclui o auxílio da comunidade da
fé, da razão humana e da tradição na interpretação da Bíblia,143 mas submete todas
essas fontes às Escrituras (prima Scriptura).
Além das questões diretamente relacionadas à interpretação bíblica, o conceito
de primazia coloca a Bíblia acima de reivindicações da razão humana em diferentes
campos de estudo, como a “geologia, filosofia ou teologia”.144 Ainda que não seja um
compêndio científico, a Bíblia contém informações essenciais e princípios que não
podem ser contrariados pelo inconstante arrazoado humano e por pressuposições
filosóficas.
Então, a abordagem adventista pode ser assim resumida: a Bíblia tem a
exclusividade como fonte das doutrinas a serem cridas para a salvação e como fonte
autorizada para dizer como um cristão deve viver. Também detém a exclusividade
como norma para sua própria interpretação. E a Bíblia tem a primazia com relação aos
recursos que possam auxiliar a sua própria interpretação e como autoridade aferidora
de outras áreas do conhecimento.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os adventistas do sétimo dia acreditam que a Bíblia deve ser a “única” fonte de
doutrina e que a sua interpretação deve ser pela própria Bíblia (sola Scriptura). Em seu
início, o adventismo sabatista refletia o conceito anabatista/restauracionista radical de
sola Scriptura, e não o conceito mais aberto mantido por Lutero e outros Reformadores
141
HASEL, 2007, p. 36, 43; TIMM, 2007, p. 5.
142
HASEL, 2007, p. 36.
143
HASEL, 2007, p. 37.
144
BALDWIN, John T. Fé, razão e o Espírito Santo na hermenêutica. In: REID, George W. (Ed.).
Compreendendo as Escrituras: uma abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007. p.
17.
26
Magisteriais do século XVI.
Mas uma análise da literatura adventista revela a diversidade de posições a
respeito de sola Scriptura. Existem os que enfatizam a primazia das Escrituras, e vêem
a Bíblia como a autoridade “primária” em matéria de fé e prática. E existem aqueles
que defendem um conceito mais estrito, enfatizando a exclusividade da Bíblia como
“única” regra de fé e prática.
Os eruditos adventistas que enfatizam sola Scriptura se recusam a permitir que
a Bíblia seja considerada mais uma dentre outras fontes de verdade teológica, como a
tradição, a razão e a experiência. No entanto, admitem o fato de que há outras fontes
que contribuem para o desenvolvimento da teologia cristã, mas nenhuma delas deve
ser considerada a base para doutrinas.
Entre os que enfatizam a primazia das Escrituras há quem sugira até mesmo
que o adventismo abandone o conceito sola Scriptura em favor do conceito prima
Scriptura, que refletiria a prática real em uso no desenvolvimento da teologia.
Outros não chegam a propor a troca de conceitos, mas redefinem sola
Scriptura de uma forma menos radical. Nesse caso, o lema sola Scriptura não deveria
ser entendido no sentido de que a Escritura é a "única" fonte da verdade e da doutrina.
Antes, a Escritura deveria ter a palavra final ou a suprema autoridade sobre o que deve
ser aceito como verdade doutrinária.
Tal conceito aproxima-se do conceito de primazia das Escrituras (prima
Scriptura) do catolicismo recente. E essa aproximação da posição católica é vista
negativamente, como um retrocesso, já que o adventismo deve ser a continuação da
reforma protestante.
Algumas expressões como “norma final”, “suprema” e “única”, não são usadas
de forma padronizada, e podem representar conceitos diferentes, dependendo do
autor. As abordagens ainda não parecem claras.
Qualquer que seja a posição defendida no debate, ela precisa ter seus
conceitos plenamente esclarecidos. Há um lamentável abismo entre a devoção popular
e a teologia erudita que deve ser transposto. Mas como educar teologicamente o povo
se eruditos utilizam as mesmas palavras para expressarem conceitos opostos? Os que
escrevem sobre assuntos bíblicos em nível popular podem se apropriar das
27
descobertas da pesquisa bíblica adventista e popularizá-las. Mas os conceitos devem
ficar claros antes disso, e, aparentemente, não é o que ocorre nesse assunto.
Continuar aplicando algo que não tenha sido definido de forma suficientemente
clara (como o princípio sola Scriptura) poderá ser uma fonte contínua de
desentendimentos e até mesmo divisões na teologia adventista. É necessário definir-se
com exatidão o que é sola Scriptura, prima Scriptura, “autoridade”, “norma final”, dentre
outras expressões.
Outra questão que afeta o conceito adventista de sola Scriptura é o
relacionamento entre as Escrituras e os escritos de Ellen G. White.
Alguns estudiosos adventistas acham que a autoridade de tais escritos entram
em conflito com o conceito sola Scriptura, e é por isso que promovem o uso de prima
Scriptura. Afinal, na opinião deles, outras fontes extra-bíblicas contribuem para o
empreendimento teológico adventista, especialmente Ellen G. White.
O principal objetivo de Ellen G. White foi dirigir a atenção para as Escrituras.145
Se o objetivo dela era levar os adventistas de volta à Bíblia, eles não fazem justiça a
ela “interpretando” a Bíblia através dela. Atender aos apelos de Ellen G. White significa
debruçar-se no estudo bíblico profundo, voltar à exegese.
Será que o adventismo deveria mesmo reconhecer a posição mantida por
Martinho Lutero, em contraste com a dos Reformadores Radicais? Tal visão tornaria
possível reconhecer e aceitar mais facilmente o ministério e os escritos dos profetas
não-canônicos posteriores, como Ellen G. White, mas deixaria uma porta aberta para
conceitos de primazia das Escrituras como o do catolicismo. Se aceitos, e
desenvolvidos às últimas conseqüências, tais conceitos provocariam profundas
alterações no adventismo e em sua identidade como um movimento bíblico.
Mas se continuar acreditando e afirmando que sola Scriptura significa “a Bíblia
somente”, e que a Bíblia é sua própria intérprete, então, como afirma George Knight, a
IASD “precisa lembrar-se constantemente de que qualquer coisa não ensinada
claramente pela Bíblia não pode se tornar uma doutrina”.146
145
IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, 2003, p, 96.
146
KNIGHT, 2005, 211.
28
7. REFERÊNCIAS
ALLERT, C.D. What are we trying to conserve? Evangelicalism and sola Scriptura.
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Abril de 2014.
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Número 2, 2006. Disponível em: <
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