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A quebra do elo...

  Lemos & Alves 

A quebra do elo: as consequências da reforma protestante


para o fim das mediações sacerdotal

Douglas L. Lemos 1
Adjair Alves 2

Resumo:

A Reforma Religiosa do século XVI constituiu-se


marco decisório na constituição do caráter de homens e
mulheres, não apenas daquele período, mas da humanidade que
a sucedera. Um contexto de profunda transformação da
mentalidade europeia Ocidental, cujas consequências,
fomentadas pelos ideais humanistas e renascentistas, podem ser
encontradas em séculos posteriores.. Discutir, as consequências
em termos das relações de poder encetadas pela fé religiosa
(reformada), torna-se o objeto do presente artigo, que objetiva
abordar o período do contexto da Reforma, em seus aspectos
social, político e religioso. Identificar os desdobramentos do
processo histórico desencadeado pela publicação das teses
luteranas, tendo como principal foco de análise, o surgimento e

                                                            
1
Graduando em História pela Universidade de Pernambuco.
2
Filósofo e Antropólogo – Professor Adjunto na Universidade de
Pernambuco. Líder de Grupo de pesquisa credenciado pela UPE e com
registro no CNPq por nome: ARGILEA – Antropologia, Religiosidade,
Gênero, Interculturalidade, Linguagens e Educação Ambiental. Atualmente
vem realizando pesquisas nos temas: Mudança Social, Religiosidade no
meio urbano e Rural, Gênero, Etnicidade, Antropologia do Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável. 
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fortalecimento da doutrina do sacerdócio universal, que se
constitui o cerne das análises, aqui apresentadas.

Palavras-chave: Reforma, protestantismo, religião,


sacerdócio, luteranismo.

A sociedade europeia do século XVI fora,


forçosamente, retiradas de seu universo interior de acomodação
cultural e intelectual, e expostas a novos valores que iriam
produzir efeitos tão profundos que findariam em dividir uma
Europa que antes estivera, ao menos no aspecto religioso,
unida pelos laços comuns do cristianismo romano. A
dissolução não era o objetivo de todos os reformadores, mesmo
assim, tornou-se caminho inevitável ante o recrudescimento
das práticas pouco ou nada espirituais da Igreja Católica
Romana, evidenciadas nas atitudes de seus clérigos.
Os questionamentos que sobrevieram à religião não
são obra de um só momento, mas o resultado de um acúmulo
crescente de conflitos e discordâncias internas que surgiram
durante os séculos anteriores ao XVI.
Os cátaros (ou albingenses), no final do século XII,
maioria no sul da França, propuseram uma existência dualista
em que o Deus bom, criador da alma humana, e o deus mau,
criador do mundo visível, conflitavam permanentemente. Para
eles a matéria era fruto do mal e tudo quanto estivesse ligado
ao prazer da carne seria obra do maligno. A resposta da Igreja
foi uma cruzada para a aniquilação dos albingenses. No mesmo
período, os valdenses, com aproximadamente 35.000 crentes
no norte da Itália, pregavam uma vida de pobreza e distante dos
valores materiais, antecipando muitos dos valores dos

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reformados do século XVI, e acabaram sendo excomungados e
perseguidos.
Em toda Europa surgiam grupos reacionários guiados
por lideranças místicas que propunham uma nova experiência
pessoal com a divindade e questionavam a pouca
espiritualidade clerical. Catarina de Sena (1347-1380), com
suas visões, persuadiu Gregório XI a voltar de Avignon para
Roma em 1377; João de Ruysbroeck (1293–1381) influenciou
o movimento místico na Holanda e integrava o grupo
conhecido como Devotio Moderna, ou os Irmãos da Vida
Comum. Além destes, reformadores como João Wycliffe
(1328–1384) e João Huss (1373–1415), na Inglaterra, e
Savonarola (1452–1498), em Florença, se empenharam em
tentar levar a Igreja aos ideais do Novo Testamento, no que
fracassaram. A resposta da Igreja a partir do século XII aos
movimentos considerados heréticos foi a tortura através da
Inquisição.
O colapso da irmandade universal – católica era
iminente e daria origem a uma “nova” fé, a qual se atribuiria o
valor de reformada. À frente dessa Reforma estava um monge
agostiniano, Martinho Lutero, profundamente angustiado e
afligido pela consciência de seus pecados, para os quais não via
a possibilidade de perdão. A tensão espiritual interior de Lutero
era, na verdade, um sentimento evidente em muitas pessoas. A
prática comum, todavia, estabelecida pela Igreja para lidar com
a questão do pecado e do perdão era a venda das indulgências.
Quaisquer pessoas poderiam diminuir seu tempo de sofrimento
no purgatório e encher-se de méritos que contrabalanceassem
com suas faltas, a ponto de garantir-lhes, por fim, um bom
lugar nas moradas celestiais.
A partir da publicação de suas 95 teses (1517), Lutero
se indispõe publicamente contra a Igreja e demonstra a
necessidade de mudanças, condenando veementemente a venda
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de indulgências. O Protestantismo emerge dando ênfase a três
doutrinas principais: a justificação pela fé, o sacerdócio
universal, a infalibilidade apenas das Sagradas Escrituras; a
Bíblia. As repercussões dessas pregações seriam tão
contundentes, que dividiria a Europa entre Protestantes e
Católicos, motivo pelo qual, manifesta é a necessidade de uma
sempre nova, aprofundada e investigativa análise do seu
contexto e desdobramentos.
Discute-se aí, a participação do indivíduo na
construção de sua própria identidade e realidade espiritual, o
que inevitavelmente repercute nas questões políticas daquele
tempo. Colocada ao alcance de cada homem e mulher, o guia
da fé cristã – a Bíblia vai dar a cada um deles a oportunidade
de investigar e questionar o papel dos sacerdotes e reis no
contexto da vida cotidiana.

I. O cenário da Reforma Protestante: uma igreja em


controvérsias

Muito se discute sobre o caráter sócio histórico e


filosófico da Reforma Protestante. A questão é, sem dúvida,
complexa. Reforma como assinala Keith Randel (1995: 8-9):
foi o termo usado para descrever o “complexo conjunto de
fatos que durou a maior parte do século XVI, pelo qual uma
significativa minoria dos membros da Igreja católica foi
perdida para as novas igrejas protestantes”. Já Earle E. Cairns
(1995: 224) afirma que, “não é fácil aclarar o sentido do termo
Reforma”, demonstrando que há que se levar em conta algumas
particularidades, tais como a situação social e política do
contexto histórico, que acabou sofrendo interferências do
movimento não apenas religioso, mas filosófico, no momento
que se busca sua melhor compreensão.
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Certo é que a Reforma Protestante possui várias
causas inter-relacionadas, e nenhuma delas por si só pode dar
uma explicação completa sobre o movimento. A multiplicidade
de causas que deram força e forma à Reforma Protestante exige
uma abordagem interdisciplinar, com a análise dos vários
fatores relacionados. Essa é uma visão mais moderna que tem
sido usada por historiadores que procuram enxergar os eventos
de forma mais ampla e buscar compreender os diversos
aspectos da vida social daquele período.
Segundo afirma Delumeau (1989: 60), “se tantas
pessoas na Europa, de níveis culturais e econômicos diferentes,
optaram pela Reforma, foi por esta ter sido em primeiro lugar
uma resposta religiosa a uma grande angústia coletiva.” A
religião, portanto, aparece aí, como característica principal do
protestantismo e sobre ela recai o fardo histórico, sem que se
deixe de observá-lo sob outros prismas.
O pensamento do século XVI contou com os
elementos da incerteza e da dúvida, contrariamente ao
pensamento medieval onde as verdades fixadas como eternas
impunham limites aos homens. Mas o mundo medieval
desfalecia ante o novo tempo, a era das grandes descobertas, do
Renascimento italiano, do Humanismo, da ciência; urgia a
necessidade de uma nova forma de lidar com as questões
humanas, de uma nova concepção de existência e de
relacionamento com a natureza, com o divino e com o
próximo.
Do ponto de vista cultural, o século XVI, encontra-se
marcado por uma intensa vida rural. A vida de homens e a
mulheres europeias estava, essencialmente constituída pelas
atividades econômicas ligadas ao campo; lavrando o solo e
cuidando de animais para seu sustento. Um mundo,
basicamente, dominado por superstições e demônios que
viviam a espreita, vigilantes, pronto para se apoderar e
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escravizar a alma humana, levando-a às profundezas do
abismo. Os grandes poetas como Dante, Virgílio, Cervantes,
Bocage entre outros, expressam o caráter temerário que
assolava aquele mundo. A morte era tema presente na
musicalidade e encenações teatrais; era a senhora, onipotente,
de quem nenhum ser humano poderia escapar o domínio.
O crescimento do comércio havia forçado o homem
europeu a se lançar cada vez mais ao mar. O destino era o
Oriente e suas desejadas especiarias. Assim, suas embarcações
deixam a Europa e retornam com ratos infetados que flagelam
o continente com a “Peste Negra”, desde o mar Mediterrâneo
até o mar do Norte, levando consigo parte considerada dos
habitantes. Vez por outra as pestes se repetiam.
No decorrer do século XIII e início do XIV a Igreja
Católica estivera dividida. Clemente V havia transferido, em
1309, o papado de Roma para Avignon, onde permaneceu sob
influência dos reis franceses até 1377, quando Gregório XI
retornou a sede da Igreja para Roma, sob os apelos da mística
Catarina de Sena, pondo fim ao período chamado Cativeiro
Babilônico. Contudo, no ano seguinte, Urbano VI, não tendo
entendimento com os cardeais, declarados inimigos seus, viu
aqueles que o puseram no papado elegerem outro papa,
Clemente VII, que imediatamente transferiria a sede para
Avignon mais uma vez. Era o Grande Cisma, e agora a Igreja
possuía dois chefes. Os europeus, atônitos, teriam que escolher
a quem obedecer. A situação se agravou quando em 1409, no
Concílio de Pisa, numa tentativa de unificar novamente o
papado, os cardeais elegeram Alexandre V como papa
legítimo. Benedito XIII, em Avignon, e Gregório XII, em
Roma, negaram-se a reconhecer a decisão do Concílio e
excomungaram seus membros. Três papas comandavam uma
Igreja completamente dividida. Somente o Concílio de
Constança (1414-1418) resolveria este grande impasse.
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Os acontecimentos denunciavam as consequências da
triste condição pecaminosa de todos os homens. Assim eram
vistos os grandes eventos que se desdobravam ante os olhos de
pessoas quase totalmente desesperançadas. Não se podia
resistir aos apelos da consciência e todos eram culpados. As
pessoas estavam perdidas procurando um sentido para a vida.
Precisavam de esperança, de alimento, de perdão, de disciplina
e dos cuidados da Igreja. Ao invés de alento recebiam
indulgências, penitências, excomunhão e interditos.
Quando o monge agostiniano Martinho Lutero iniciou
suas pregações sobre a justificação pela fé, mediante a qual
todas as pessoas poderiam alcançar a salvação pessoal
exclusivamente pelo ato de crer no sacrifício de Cristo na cruz,
afirmando que as obras (leia-se jejuns, peregrinações,
martírios, aquisição de indulgências, etc.) para nada serviriam
ao pecador quando apresentado diante de Deus, certamente as
multidões encontravam-se preparadas para receber as suas
idéias. Camponeses pobres, comerciantes ávidos pelo lucro
condenado pela Igreja Católica, intelectuais ávidos de uma
nova teologia, mais próxima dos ideais humanistas, nobres e
príncipes ansiosos por verem-se livres dos tributos de Roma,
todos poderiam ver na Reforma Protestante um motivo para
aceitação, ante suas próprias necessidades. Assim, não
demorou para que as idéias de Lutero deixassem sua mente
afligida pela crueldade de seus pecados para alcançarem os
corações de muitos cristãos igualmente contritos e aflitos.

1. Cenário teológico e controvérsias

Iniciava-se o século XVI e a Igreja Católica estava


distanciada da essência cristã de irmandade, de seus
fundamentos inerentes à entidade religiosa que rogava para si a
responsabilidade da condução das almas dos homens ao
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contato com o divino para eterna redenção. Seu amontoado de
dogmas e doutrinas que por vezes conflitavam entre si, em suas
fundamentações; sua estrutura eclesiástica corrompida pela
insaciável sede por riqueza e poder; a profanação das liturgias e
do culto com elementos estranhos à igreja primitiva, além da
distância imposta aos fiéis por suas regras, dentre as quais, a
exigência do latim como língua oficial para reza das missas;
além de uma forma arbitrária, mística e inconsistente de se
interpretar os diversos acontecimentos da vida humana, dos
fenômenos naturais, fez com que se levantassem por toda parte
os clamores por uma reforma geral.
A verdade é que os problemas arrastavam-se e
aprofundavam-se havia séculos. Os vários Concílios
reformadores do século XV evidenciavam isso. Certamente que
não era apenas contra a religião que se fortalecia o sentimento
de revolta. Entretanto, a religião tomou o centro do sentido da
existência e foi condicionante de todo o processo histórico
ocorrido no ocidente europeu.
O poder papal pouco a pouco havia se fortalecido e
desde o início do século XI, Hildebrando já havia reformulado
a política papal, tendo influenciado cinco pontificados, até se
tornar ele mesmo um deles. Poderia agora trabalhar
diretamente pelo seu ideal de governo teocrático em que o
poder temporal e espiritual deveriam ser exercido pelo Papa
como vice-regente de Deus. “Ele não queria o poder civil
dominando a Igreja Romana; ao contrário, era a Igreja que
devia controlar o poder civil.”, afirma Earle E. Cairns (1995:
171- 2), o que está perfeitamente evidenciado no Dictatus
Papae, documento que afirma que a Igreja deve seu
fundamento somente a Deus, e que somente seu pontífice deve
ser chamado de ‘Universal’, tendo o papa plena autoridade
sobre todos os bispos. A pretensão máxima expressa no

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documento é dizer que jamais houve erro na Igreja, e que, de
acordo com as escrituras, ela jamais errará.
A consolidação da supremacia papal – o papismo –
sobre todos os homens era uma pretensão difícil de alcançar.
Contra a Igreja levantaram-se muitos príncipes de Estados que
não aceitariam estar absolutamente subordinados à Roma. É
nesse contexto que surgem os primeiros pregadores
reformadores de repercussão.
Na Inglaterra, o Parlamento pôs fim ao pagamento
anual de mil marcos ao papado, por volta do ano 1353, pois
desagradava ao povo ter que enviar dinheiro para um papado
que à época estava em Avignon, sob influência do inimigo
inglês, o rei da França. Com isso, o jovem pregador João
Wycliffe (1328-1384) alcança grande prestígio em solo inglês,
ao se opor à propriedade de bens por parte de líderes
eclesiásticos. Segundo ele, Deus havia dado a posse e o uso dos
bens para benefício de Sua glória, não para aumento da riqueza
individual deles. Wycliffe encontrou apoio entre os nobres e
contou com a ajuda deles. A partir daí sua postura era não
somente contestatória, mas também revolucionária. Atacou a
Igreja e o papado. Afirmou que Cristo, e não o pontífice
romano era o cabeça da Igreja, e que a Bíblia, não a Igreja, era
a única autoridade tendo todos o dever de voltar aos ideais da
igreja do Novo Testamento.
Em 1382 Wycliffe entregou ao povo inglês uma
tradução do Novo Testamento em sua própria língua, uma
abominação para Roma, aumentada pela tradução do Velho
Testamento, feita em 1384, por Nicolau de Hereford.
Um ponto doutrinário contundente pregado por
Wycliffe era que durante a ceia não havia a transubstanciação
do pão e do vinho, tornando-se literalmente o corpo e o sangue
de Cristo, como ensinava a Igreja, mas que Cristo estava
representado apenas espiritualmente no ato da comunhão.
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Entretanto, em 1382 as idéias de Wycliffe foram condenadas
em Londres, mas ele, a “Estrela D´Alva da Reforma”, como
mais tarde seria chamado, já tinha conquistado grande prestígio
junto às camadas populares e já havia influenciado a Revolta
dos Camponeses em 1381.
Aluno na Universidade de Praga, onde viria a ser
reitor em 1404, propondo reformar a Igreja na Boêmia, João
Huss havia se levantado contra o papado e assimilado bem as
idéias de Wycliffe. Trouxe sobre si o ódio da Igreja ao não se
retratar e foi condenado à fogueira durante o Concílio de
Constança, embora tivesse salvo-conduto do imperador. Seu
livro De Eclesia, continuaria postumamente sua obra.
Unindo-se a Wycliffe e a Huss, Savonarola, monge
dominicano, propondo uma reforma na Igreja e no Estado na
cidade de Florença, foi enforcado. O período do Cativeiro
Babilônico havia despertado um sentimento nacionalista anti-
papal e estava difícil conter a sublevação das vozes contrárias à
Igreja, que parecia desdenhar disso.

2. O Nascimento

A Europa, deslumbrada, via o florescer do século


XVI. Era o tempo da Expansão Marítima e da Revolução
Comercial, adornadas pela Revolução Cultural, promovida pelo
Renascimento.
O movimento denominado de Renascimento
cultural que se estabelecera desde o século XIV havia dado aos
europeus, ao findar o século XV, uma nova forma de ver o
mundo. Este movimento cultural burguês enfatizava uma
cultura laica, racional, científica, e sobretudo não feudal. O
Renascimento constituiu-se numa eclosão de manifestações
artísticas, filosóficas e científicas, que buscavam seus recursos
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na cultura clássica greco-romana. O homem passava a disputar
com Deus os espaços e o antropocentrismo foi ponto
fundamental no período, a contragosto da religião. Era uma
resposta do novo mundo urbano-comercial aos entraves feudais
e a ruptura incluía as concepções sobre o divino.
Os humanistas, deplorando a ignorância e
exaltando o espírito humano instruído, também propuseram
uma reforma, embora quase todos eles repudiassem Lutero. O
mais famoso humanista foi Desidério Erasmo (1466-1536), de
Roterdã. Na sua obra O Elogio da Loucura (1510), Erasmo
satiricamente denunciou os abusos da Igreja. Contudo, era
contrário à revolução que julgava ser pior do que o julgo dos
tiranos.
Os humanistas tiveram em comum a contribuição
que deram aos estudos sobre a Bíblia com o retorno aos textos
em hebraico e em grego. Era a ‘reforma’ das Escrituras,
baseada na filologia e nos métodos humanistas de se estudar os
textos sagrados.
Erasmo publicou o primeiro Novo Testamento
Grego em . Outro humanista, Johannes Reuchilin produziu uma
gramática e dicionário do Velho Testamento, o qual deu o
título de Rudimentos do Hebraico, permitindo que muitos se
familiarizassem com a língua hebraica antiga, facilitando o
estudo do texto original. Mais tarde, esses trabalhos de
revalorização dos textos antigos acabariam por induzir alguns a
traduzi-los em sua língua vernácula, dando ao povo a
possibilidade de fazer leituras e cultos em suas próprias
línguas, o que provocaria reações da Igreja Católica. Como
poderia a gente comum ter boa compreensão dos mistérios da
fé ocultos nos textos sagrados? O simples pronunciar do credo
do “Pai Nosso” numa língua vernácula era considerado uma
profanação.

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As queixas contra a Igreja avolumavam-se. As
indulgências se tornaram o ponto de partida da contestação de
Lutero à Igreja. Após entrar para o claustro agostiniano de
Erfurt em 1505, onde havia se dedicado ao mais zeloso
monaquismo, logo foi enviado a recém inaugurada
Universidade de Wittenberg um território da Saxônia,
governada por Frederico – o Sábio. Este era um dos sete
eleitores do Imperador do Sacro Império Romano o qual
desejava transformar a cidade no centro cultural da Alemanha.
O Eleitor possuía uma coleção particular de relíquias sagradas,
cerca de 17 mil que lhe proporcionavam boa renda, quando da
distribuição de indulgências. Pessoas de todas as partes
viajavam para a Wittenberg a fim de obter a absolvição de
pecado.
O erguimento de outra basílica sob o túmulo de São
Pedro, no Vaticano, havia sido ordenada pelo Papa Júlio II. Seu
sucessor, Leão X, deu continuidade ás obras, publicando bula
sobre indulgências para arrecadação de mais dinheiro para a
conclusão. Pregadores ávidos passaram a proclamar a nova
bula por toda a Europa, sob protesto de muitos príncipes que
viam as escassas economias de seus territórios esvaírem-se
para Roma. João Tetzel, frade dominicano, era um famoso e
bem sucedido pregador de indulgências. Lutero contrariava a
idéia da venda de indulgências como alternativa às penitências.
Na verdade havia firmado convicção através de seus estudos
sobre o Novo Testamento de que somente pela fé, e não por
obras, chegar-se-ia à salvação que era gratuita e fruto da graça
e dos méritos do Cristo.
Assim, em 31 outubro de 1517, véspera do ‘Dia de
Todos os Santos’, dia especial em que a Igreja em Wittenberg
abriria para receber os fiéis em busca das indulgências de
Frederico, Martinho Lutero fixa nas suas portas as 95 Teses
contrárias à venda e questiona o papa perguntando porque o
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mesmo, ‘sendo rico como Creso’, não construía a basílica de S.
Pedro com dinheiro do seu bolso, ao invés de espremer o bolso
dos pobres.
Em 1518, Lutero defendeu-se das acusações
lançadas sobre ele perante sua ordem agostiniana, em
Heidelberg. Àquele tempo, chegava em Wittenberg o homem
que seria o considerado 'o teólogo da Reforma’ – Filipe
Melancton. As idéias de Lutero tiveram rápida aceitação entre
muitos professores de Wittenberg. Ainda em 1518, com o
aumento das agitações, foi convocado a comparecer em Roma,
o que causou protesto por parte de Frederico, que afirmou que
um súdito seu deveria ser julgado em território alemão, e não
por italianos, obtendo concessão papal. No outono daquele ano,
compareceu na Dieta de Augsburg, e defendeu-se diante do
Cardeal Cajetano, afirmando a autoridade final das Escrituras
ante assuntos de fé e moral, em detrimento à palavra do Papa.
Em 1519 Lutero sofreu duro ataque ao enfrentar
John Eck, poderoso na ortodoxia e grande orador, em Leipzg.
Eck conseguiu tirar do reformador afirmações de que os
concílios em geral são falhos; que ele, Lutero, não poderia
aceitar as decisões papais sem questioná-las; e ainda apoio a
muitas idéias de João Huss, ‘herege’ condenado pela Igreja
havia cerca de 100 anos.
Lutero passou da crítica das práticas da Igreja à
crítica aos dogmas. Combateu os sete dogmas estabelecidos
reconhecendo apenas dois: o batismo e a comunhão (Ceia), em
sua obra intitulada O Cativeiro Babilônico (1520), onde
também declarava que depois de 1.000 anos em prisão de
Roma, a religião cristã havia perdido sua pureza, corrompido a
fé e perdido a moral.
O Papa havia demorado a reconhecer a força que as
contestações ganhavam e em junho de 1520, quando publicou
bula intimando Lutero a retratar-se em até 60 dias e
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condenando todas as suas obras, estudantes em toda Saxônia
queimavam as obras anti-luteranas e a bula papal. Lutero
reagiu radicalmente à bula declarando que ela seria a palavra
de Satã, na boca de seu Anticristo. À Igreja Católica não restou
mais nada senão a excomunhão.
Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano
convocou, então, a Dieta de Worms, em 1521, causando grande
movimento entre autoridades seculares, religiosos e intelectuais
da época. Frederico orgulhava-se do alcance publicitário que
sua Universidade havia alcançado. Era crescente o medo de
que os camponeses se levantassem em rebelião caso Lutero
fosse condenado. Quando os representantes papais chegaram à
Worms, espantaram-se juntamente com o Imperador da grande
popularidade do monge agostiniano. Edith Simon(1971,p.43)
cita que um representante do Papa lhe escreveu dizendo: “Nove
décimos do povo gritam “Lutero!” e o décimo restante grita:
“Abaixo Roma!””.
Em seu julgamento, quando lhe apresentaram vinte
de seus livros e lhe perguntaram se ele se retrataria das heresias
neles contidas, respondeu que ao menos que pudesse ser
persuadido pelas Escrituras ou pela sua razão, não poderia nem
desejaria retratar-se de coisa alguma, pois não seria correto agir
contra a consciência. Lutero deixou a Dieta como um herói
alemão e Frederico providenciou para que o mesmo fosse
‘raptado’ e ficasse escondido em uma fortaleza em Wartburg
por quase um ano.
A Alemanha cedeu, e por fim cada príncipe pode
estabelecer sua forma de culto, que agora estava subordinado
ao poder temporal e à opção de cada governante. A teologia
luterana transpassou e ultrapassou o Sacro Império Romano
desaguando nos 13 cantões ou Estados suíços que juntos
formavam uma confederação. Neles destacaram-se as
pregações de Ulrich Zuínglio. Roma tratou-lhe com mais
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cuidado em virtude da experiência mal sucedida na Alemanha.
Zuínglio acabou por envolver-se numa guerra civil na Suiça e
foi morto. Depois dele, Genebra se tornaria baluarte da reforma
sob o comando de Calvino.

II. O conflito entre as doutrinas

Não era a vida desregrada dos que conduziam a


igreja o foco dos questionamentos e dos debates. A despeito do
temor da morte e de uma angústia ante a severidade de um
juízo divino que poderia estar prestes a acontecer, as pessoas
viviam num estado de ‘apostasia’ geral. A vida incoerente com
os princípios e dogmas da fé não incomodava tanto mais o
homem do Renascimento.
As devassidões e a depreciação da espiritualidade
da igreja não constituíam o cerne da questão da Reforma. Na
verdade, no centro do debate e dos conflitos entre os
reformadores e a igreja romana estavam as doutrinas. Elas
expressavam o verdadeiro caráter da cristandade católica e
eram facilmente distorcidas em favor de algum interesse
particular, ainda que conflitassem entre si. A questão era a
satisfação de quem detivesse o poder, em menor ou em maior
grau.
Os esforços da Igreja de Roma de fundamentar-se e
justificar-se com base nas bulas papais, nos concílios
episcopais e na supressão das opiniões já não surtia o efeito de
outrora. Lutero de logo apontara que os concílios haviam sido
contraditórios e que se neles fossem reveladas as verdades
eternas de Deus, não haveria a constante necessidade de um
concílio ser convocado para debater a decisão de outro anterior.
A Reforma produziu a partir de suas novas
doutrinas uma abertura no pensamento e uma transformação no
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comportamento dos reformados. Desde que Lutero apregoou a
salvação exclusivamente pela fé, de logo Wittenberg sentiu o
impacto da nova teologia, visto que tiravam do rei seus
dividendos e da Igreja sua autoridade sobre a salvação. A
pregação do uso da fé alimentou o espírito daqueles que
despertavam do sono medieval, ansiosos por novas
experiências e pelas aventuras. Eram os duros e incontroláveis
efeitos de uma liberdade que ecoava em cada canto da vida
social.
Contudo, a doutrina do sacerdócio universal de
todos os crentes parece mesmo ter promovido ruptura ainda
maior, pois colocou o rei, o príncipe, o nobre, o artesão, o
miserável mendigo urbano diante de Deus, para o desespero
dos nomeados sacerdotes esvaídos de seus privilégios oficiais.

2.1. O ponto fundamental – A justificação pela fé


Lutero teve a força de um revolucionário no
provocar a reforma a partir de suas convicções e necessidades
pessoais de afirmação e consciência. Filho de pais camponeses
(Hans e Margaret Luther), em 10 de novembro de 1483,
véspera do dia de São Martinho, padroeiro da bebida e da
alegria, Martinho Lutero nasceu na cidade mineira de Eisleben,
na Saxônia.
Desde cedo os ensinamentos religiosos fizeram
parte de sua formação. A vida cotidiana dos saxões era
impregnada, como não poderia deixar de ser, dos valores
religiosos de uma Europa dominada pela mentalidade cristã
católica. Não havia espaço para outras manifestações religiosas
senão por meio dos sincretismos. Lutero, como muitos outros,
não escolheu sua religião. Nasceu nela e carregou consigo seus
fardos e reflexos. Não se via fora do cristianismo e o levava em
seu próprio nome. Cresceu sob uma disciplina dura,
fundamentada numa moral que não permitia um mínimo
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vacilo, e foi ensinado que toda transgressão exige uma severa
pena. Em sua mente estavam claras as consequências da
desobediência. O castigo viria acintosamente sobre o corpo e
sobre a alma; o sofrimento diário de uma vida limitada era
nada perto das tormentas futuras que recairiam sobre os
perdidos.
O contexto social em que Lutero nasceu era
perturbador. De que valeria o gozo que uma vida volátil em
que a maioria das pessoas raramente tinha sua existência
contada em meio século, se a morte poderia ser passagem para
uma realidade contada na casa dos milênios? Decepcionando o
pai, após alguns meses de estudos jurídicos, Lutero entrou para
um mosteiro onde passou a viver a realidade das penitências.
Diz-se que após uma tempestade, temendo ser atingido por
algum raio, fez promessa a Santa Ana afirmando que se
sobrevivesse dedicaria seus dias à vida religiosa.
A partir de seus estudos de teologia, Lutero
desenvolveu sua crescente preocupação com a salvação e com
o julgamento de Deus sobre os homens. Dedicou-se
rigorosamente à prática de orações, vigílias, jejuns e todas as
formas de penitências. Confessava-se regular e
minuciosamente. Tais perturbações fizeram com que seus
superiores o mandassem estudar em Wittenberg. A paz que
tanto buscava não seria encontrada no seu zelo para com as
práticas dogmáticas mais sim em seus estudos sobre o Novo
Testamento. A visita que fez a Roma durante o período que
esteve no mosteiro o fez questionar a eficácia dos métodos
adotados pela Igreja para a salvação, nos quais se incluíam as
indulgências, substitutas das penitências. Lutero logo percebeu
que as pessoas não estavam adquirindo indulgências por
estarem de fato preocupadas com sua salvação, mas, ao
contrário, sem arrependimento, adquiriam tais títulos como se a

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simples aquisição pudesse lhes garantir o livramento do
purgatório e por fim a salvação.
Em 1511, Lutero era professor de Bíblia quando
recebeu o título de Doutor em teologia. Aos poucos
desenvolveu o princípio da sola scriptura - apenas a Bíblia era
autoridade em se tratando de assuntos de religião, fé e moral.
Ao estudar as cartas do apóstolo Paulo, a frase que
lhe tomou a atenção foi: “O justo viverá pela fé”. A partir de
então a mente do monge agostiniano começava a mudar. O
entendimento que teve foi de que a salvação era possível aos
homens única e exclusivamente pela fé, e não pelas obras,
fossem quais fossem. Era a gênese da doutrina da “justificação
pela fé”, a qual passou a defender arduamente em suas obras.
Para a Igreja, a salvação era uma dádiva adquirida
através da confissão, do arrependimento e da expiação,
mediante penitência. Não era possível encontrar-se a graça de
Cristo fora da Igreja, pois esta, mediante estabelecimento do
Cristo, era a única representante legítima de Deus na terra. Seu
era o dever de mediar o encontro entre os homens e Deus. O
dever de todo homem era reconhecer na igreja universal o
único caminho para se obter eterna redenção.
Lutero combateu todos esses pressupostos. Todo
grande esforço, ainda que sincero, não era suficiente para que o
homem se preparasse para o julgamento. Nem a Igreja, nem
seu Papa, nem os santos poderiam intervir pela salvação
humana senão a fé que cada um individualmente tivesse nos
méritos de Jesus Cristo.

2.2. A quebra do elo – o sacerdócio universal

Ao erguer-se a Santa Hóstia, dar-se-ia a


transubstanciação. O padre detinha, então, em suas mãos,
literalmente, o corpo de Cristo, um milagre que se dava em
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todas as missas. À frente de todos estava aquele que era o elo, a
ligação entre este mundo e o divino, entre a realidade humana e
a transcendental – o padre. Os sacerdotes, bispos, arcebispos,
cônego, monges, etc. eram homens de estirpe
privilegiadíssima. Sobre eles recaía a missão de conduzir os
homens até o Deus Supremo, tornando-se mediadores.
A figura do sacerdote no cristianismo evidencia sua
herança judaica. Moisés, o maior e mais eminente profeta
bíblico, em sua condução do povo pelo deserto, estabeleceu um
sistema de rituais para o culto a Jeová, as chamadas ‘Leis
Cerimoniais’, que organizavam a religião de um povo nômade
em busca de sua ‘terra prometida’ - Canaã.
A função sacerdotal teve grande importância e
reconhecimento em toda a história do povo de Israel. Eles eram
os responsáveis pela manutenção do Santuário, que nos tempos
do Rei Salomão, tornou-se um edifício imponente e central na
organização do Estado e na vida das pessoas. Nele se
concretizavam as formas de adoração e os sacrifícios diários,
além de outros rituais e festividades, sendo o Sumo Sacerdote o
maioral entre os demais, visto que ele, e somente ele, poderia
adentrar num compartimento do Santuário chamado ‘lugar
santíssimo’ ou ‘santo dos santos’, onde Deus, em sua
manifestação visível de forte luz, aparecia para julgar e salvar o
seu povo.
O cristianismo, incorporando o sacerdócio judaico,
deu-lhe em contribuição maior perspectiva. A partir da crença
em Jesus Cristo e em nome dele, todo e qualquer discípulo
poderia ter acesso direto a Deus. Ao longo do tempo, porém, a
Igreja de Roma havia de certa forma retomado a característica
mais forte do judaísmo de exclusivismo dos sacerdotes. O
papa, então, tomou a condição de ‘pontífice’, ou seja, Sumo
Sacerdote de todos os cristãos. Não obstante, o status
acompanhou tal atributo e de certo o líder cristão do ocidente
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europeu concentrou poder e grande autoridade em nome de
Deus.
Ainda que a vida pouco ou nada espiritual dos
‘homens de Deus’ não tenha sido motivo central para a
Reforma, contribuiu para a depreciação do sacerdócio e deu
grande força para o discurso protestante. Bebedices, glutonaria,
avareza, porfias, lascívia, prostituição e os vícios mais diversos
não eram características estranhas à classe sacerdotal àquele
tempo. A desvalorização do sacerdócio era visível e
contundente. Muitos leigos passaram a socorrer as igrejas nos
locais onde não havia padres ou, por algum tempo, a serviço
deles. Muitos se perguntavam se o homem comum de vida
honesta e santa não seria mais autêntico do que um clérigo
desregrado.
A descoberta ou entendimento do sacerdócio
universal provocou o nascimento de uma convicção
irreversível na mente do Reformador. O Cristo, e não o Papa
era Sumo Sacerdote diante de Deus. Seus estudos sobre o Novo
Testamento fê-lo descobrir a seguinte afirmação encontrada na
Epístola aos Hebreus (cap. 10, versos 19 a 22): “Tendo, pois,
irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue
de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo
véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a
Casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em
plena certeza de fé...”. Lutero encontrava a base para sua
doutrina do sacerdócio universal, alinhada à doutrina da
justificação pela fé, e nunca mais o mundo seria o mesmo.
Removiam-se os entraves à libertação dos Estados
dominados por Roma com o estabelecimento das afirmações
laicas remodeladas pela própria religião. O Rei poderia, então,
consultar o próprio Deus e a si mesmo, antes de tomar qualquer
decisão sobre as questões de seu reino e dos seus súditos, sem
estar limitado pelas decisões e interpretações da Igreja. No
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plano individual, liberavam-se as populações do arbítrio dos
padres sobre as coisas de suas vidas.

III. Repercussões do sacerdócio universal

O sistema sacerdotal dominante impunha a todos a


idéia de uma hierarquia onde Deus havia estabelecido uma
estrutura extremamente rígida de governo onde os sacerdotes e
ministros religiosos estariam no topo, sendo a espiritualidade a
base da vida de todos. O poder temporal, qual seja o dos
governantes do mundo, estaria subordinado aos ditames do
sistema espiritual, e na sua temporalidade deveriam proteger,
respeitar e obedecer aos mediadores de Deus. Diversas
manifestações populares e revoltas de sacudiram as estruturas
estabelecidas havia muitos séculos.
Certamente que a crença numa relação mais
pessoal com Deus não foi causa exclusiva de tais
acontecimentos. O sacerdócio de todos os crentes supria, na
prática e realidade diárias, muito mais as expectativas de
rompimentos e alteração da realidade social perversa a que
estavam submetidas a maioria das pessoas. Tal crença
avantajava-se em influência sobre as mentes, pois envolvia o
místico e a realidade visível e empírica. O que dizer da
sensação de poder alcançar a graça divina indo pessoalmente
até o céu, pela simples oração de fé?
O sacerdócio universal, proposto e defendido por
Lutero e seus seguidores abalaria as estruturas da Igreja de
Roma, poria em lados opostos reis e prelados, e atingiria a
medula do poder – religioso e secular – na Europa. A salvação
por meio da fé aliviava a tensão interior de cada homem e os
libertava das muitas indulgências. A remoção da mediação ia
muito mais além.

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O entusiasmo dos luteranos e de outros que a eles
se associaram no movimento protestante sem dúvida promoveu
grandes mudanças não somente na relação dos homens com as
instituições religiosas, como também dos homens entre si. Ao
se estabelecerem novas relações, inevitavelmente com elas
vieram novos símbolos, signos, semióforos. Quando a pregação
luterana difundiu um conceito de sacerdócio universal,
verificou-se a quebra histórica de uma mentalidade que
aceitava passivamente a idéia de que clérigos oficialmente
ordenados eram, com exclusividade, os que possuíam acesso à
Divindade. O que se constata nas obras relacionadas ao período
é uma transformação no comportamento dos homens com as
instituições sociais como um todo. Contudo, ao se estudar a
Reforma Protestante, é necessário abster-se do dualismo e
enfocar as mudanças em si.
A que se considerar para isso, também, que a
Reforma não foi em si um movimento orquestrado e
organizado, de forma a alcançarem todos os pregadores
reformadores um mesmo propósito.

3.1 O cotidiano e a política

A crença de que todos os crentes tinham acesso à


Deus deu naturalmente origem a um sentimento de
independência, que acabou por fazer surgir cristãos
“independentes”. Não havia obrigatoriedade de se estar
agregado a qualquer agremiação ou facção religiosa, uma vez
que individualmente se podia viver uma vida espiritual, guiada
pela consciência, vontade e entendimento próprios. Isso
responde à questão do porquê tantas pessoas se engajaram
particularmente no movimento protestante, passaram a pregar a
reforma, assimilar as idéias dos líderes, e a buscar desenvolvê-
las.
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De cedo, Lutero havia se empenhado na
evangelização e sua forma mais comuns de divulgar suas
convicções e sua teologia foram os sermões. Desse modo
difundiam-se as doutrinas luteranas que foram rapidamente
assimiladas pelos seus ouvintes fiéis. Lutero publicou em 1529
o seu Grande Catecismo, para os adultos, e o Pequeno
Catecismo, para as crianças. Todos os domingos as famílias
paravam para as aulas de religião, das quais surgiram as
contemporâneas Escolas Dominicais, presentes em grande
parte das igrejas evangélicas.
Se as idéias de Lutero foram rapidamente
difundidas e aceitas entre os camponeses, igualmente
moldaram as suas opiniões e fundamentaram muitas de suas
reivindicações antigas. Questionou-se, então, o porquê da
manutenção da obrigação de dar dízimos. Os homens simples
do campo entenderam que aquela era uma oportunidade de
transformação de suas próprias vidas. Como, porém, não havia
uma organização dos revoltosos, os príncipes sem grandes
dificuldades retomaram o controle de suas regiões, ao custo de
cem mil camponeses executados (sic). As rebeliões são no
plano macro, uma expressão do sentimento de independência
fomentado pela quebra dos privilégios sacerdotais do clero
ordenado. No âmbito do culto, as pessoas viram-se livres para
manifestarem suas formas de adoração, o que causou uma
incontável variedade de propostas de organização das missas.
A partir da quebra do exclusivismo sacerdotal,
pessoas simples, homens ilustres, nobres, cavaleiros, todos
puderam sentir-se habilitados para partilhar os elementos
sagrados no momento de comunhão da Ceia, sacramento
reconhecido pelas facções religiosas em conflito, e máxima
expressão do cristianismo ocidental.
Muitos príncipes se puseram em guerra em defesa
da sua fé. Os nobres protestantes reivindicavam direitos ao
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Imperador do Sacro Império. As lutas somente cessariam em
1555 quando foi assinada a Paz de Augsburgo, dando ao
protestantismo igualdade legal com o catolicismo e
estabelecendo que cada Príncipe determinaria a religião de seu
território, havendo possibilidade de imigração dos súditos de
confissão religiosa oposta.
Outra mudança diretamente influenciada pelas
pregações do sacerdócio universal foi a forma como as pessoas
passaram a lidar com as Escrituras. A partir da importante
contribuição dos humanistas para a revisão dos textos sagrados
nas línguas originais, e a conseqüente tradução nas línguas
vernáculas, intelectuais de toda Europa puderam experimentar
reflexões particulares sobre tais textos. A vida política dos
europeus mudou completamente. Reis e príncipes estiveram
divididos. Cada reino, província, território determinava sua fé,
criando um imenso mosaico de influência religiosa.
Na Inglaterra, o rei Henrique VIII, então defensor
da Igreja Católica Romana, ansiando divorciar-se de sua esposa
Catarina de Aragão, que não lhe dava um filho herdeiro, foi
excomungado, afastando-se em definitivo da Igreja. Henrique,
então, não se importando com seus atritos com Roma, casou-se
com Ana Bolena, e conseguiu com aprovação do parlamento
tornar-se chefe supremo da Igreja na Inglaterra. Enquanto na
Alemanha, o protestantismo havia se desenvolvido entre as
camadas populares e tinha conquistado apoio entre os nobres
até chegar ao Imperador, na Inglaterra o movimento foi
estabelecido a partir da realeza até alcançar a população. Todos
se sentiam árbitros de sua fé e o rei parece ter absorvido o
conceito de liberdade do sacerdócio universal com o intuito de
justificar seu divórcio.

3.2 A Fé

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Ao se analisar as repercussões da doutrina do
sacerdócio de todos os crentes, uma das maiores evidências de
sua magnitude está revelada no surgimento de idéias e
conceitos divergentes entre os reformados. Nunca houve
consenso entre os mesmos e isso é uma característica clara do
individualismo alcançado à época, resultado de muitos fatores
sociais e políticos, mas religiosamente representado pelo
sacerdócio universal. A disputa teológica evidenciou a
inquietude espiritual dos reformados e ainda no início do
movimento, Lutero sofreu dura competição.
Carlstadt e Zwilling, discípulos seus promoveram
um grande levante em toda a Alemanha. Carlstadt preferia as
experiências místicas pessoais e um relacionamento mais direto
com o divino que o aprofundamento da compreensão das
Letras, dando as Escrituras importância secundárias. Ele
insistia num movimento interior do espírito humano que
transforma e leva o eleito pelo caminho da deificação, para o
desespero de Lutero, para quem a salvação era alcançada por
uma revelação e redenção exteriores.
Lutero, em 1522 fez com que os agitadores fossem
expulsos de Wittenberg e com seus sermões conseguiu conter
as violências. Considerava que as pessoas não estavam
preparadas para mudanças radicais, pois não poderiam
compreender bem os propósitos. Contudo, outros luteranos
levaram a diante uma revolução não pretendida por Lutero.
Hutten e Sickingem, em 1522, iniciaram um
levante por toda a Alemanha para difundir por todos os cantos
aquilo que consideravam os valores da verdadeira fé. Tentaram
tomar as terras do Eleitor de Treves, mas o movimento
malogrou e ambos foram mortos. Ainda outros “profetas” se
levantariam provocando grande agitação popular.
Os profetas de Zwickau são um dos exemplos mais
notórios que podemos ter de como se processou na mente das
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lideranças que surgiram a idéia de uma autonomia religiosa e
de uma compreensão particular de Deus. Esses pregadores que
ensinavam um novo batismo, de adultos, ficaram conhecidos
como “anabatistas”. Eles instavam o povo a rebelar-se e
tomaram algumas cidades alemãs. A Alemanha foi tomada por
camponeses, artesãos, padres e monges renegados.Lutero
respondeu com um artigo nominado Exortação à Paz (abril de
1525).
Um anabatista chamado Melchior Hofman, pregou
nos países do Báltico. Para ele, o fim do mundo estava às
portas, marcou a data do grande acontecimento para o ano de
1533; contudo, Strasburgo seria a “Nova Jerusalém”. Dois
discípulos seus empenharam grande esforço para aniquilar o
mundo pecador. João Matthijs e João de Leiden tomaram o
poder em Münter (Vestfália) no ano de 1534. Leiden se tornou
“rei da nova Sião” e pretendia conquistar toda a terra. Foram
torturados e mortos pelas tropas do bispo que retomaram a
cidade em 24 de junho de 1535. A divisão protestante seguia e
a proliferação de pregadores independentes esfarelou o
movimento. Para Lutero, os líderes políticos deveriam conter
as revoltas e fazer cessar as “abominações” que se faziam em
nome de Deus. A liberdade cristã era substituída, assim, pela
Igreja de Estado. Para Lutero só havia importância na
“liberdade espiritual”.
Grandes líderes reformistas estavam, por vezes, em
lados opostos. Lutero esteve sempre contido pelo seu temor e
respeito para com as autoridades, reflexo, talvez, do grande
conflito interno pelo qual passou grande parte de sua vida. Fez
para si muitos amigos. Avolumaram-se, contudo, seus
inimigos.
A teologia dividiu a Alemanha e o mundo europeu.
O Imperador do Sacro Império havia alimentado a esperança de
conseguir uma conciliação, na Alemanha, entre Católicos e
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Protestantes. Esperou chegar a um acordo em 1530, em
Augsburgo. Lutero estava refugiado e Melanchton o
representou. Apresentou uma Confissão protestante onde 21
dos 28 artigos falavam sobre pontos comuns da fé Católica e
Protestante. Combatia, o papado, e os abusos e leis humanas.
Melanchton fez concessões que foram desaprovadas por
Lutero. Mesmo assim, Carlos V rejeitou as Confissões. A
cristandade européia seguiria dividida. Aos poucos, muitos
reinos e principados buscariam livrar-se de sua subserviência à
Roma. A Inglaterra, adiante de todas, transformou a Igreja num
braço do Estado, sendo o rei o líder dos cristãos em seu país.
Outros, contudo, permaneceram fiéis ao Papa e ao Catolicismo.
A propósito da nova teologia desenvolvida por
Lutero e seus associados, e ainda por muitos outros homens
que vieram a ser lideranças religiosas e políticas em seus
países, nunca mais a cristandade pode experimentar, ainda que
externamente, uma unidade semelhante àquela expressada nos
tempos feudais. A crença no sacerdócio universal foi, portanto,
o meio que a Reforma encontrou para expandir-se e conquistar
muitos corações e mentes ávidas por liberdade. A
multiplicidade de conceitos teológicos cristãos advindos da
liberação do pensamento resultou numa verdadeira renovação
do cristianismo como um todo. Num mundo mutante a religião
não poderia permanecer estagnada. A união, contudo,
permanece como desafio ante o enraizamento do
individualismo estabelecido em todas as sociedades modernas.
Num mundo de expansões territoriais, comerciais,
culturais, científicas, etc., a religião cristã teve seu viés na
doutrina do sacerdócio universal. Lutero foi expressão religiosa
das mudanças que toda a sociedade européia vivia. Sobre os
escombros do mundo feudal, ergueram-se novos pilares e uma
nova sociedade foi preparada pelo espírito inquieto do ser
humano. Lutero não era um herói. Era apenas um homem em
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expansão, de idéias em expansão, vivente num mundo exterior
que o afligia e o condenava. No seu interior, somos levados a
crer que pretendeu apenas sua salvação. Mas foi o arquiteto de
uma obra muito maior que ele mesmo.
Afirma Delumeau (1989, p.113) que no enterro de
Lutero (1546), Melanchton citou com um paradoxal a-
propósito uma sentença de Erasmo: “Deus deu ao mundo um
rude médico.”

REFERÊNCIAS
CAIRNS, Earle E.. O cristianismo através dos séculos: uma
história da igreja cristã. Tradução de Israel Belo de Azevedo.
2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. 508p.
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma.
Tradução de João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989.
384p. (Série Nova Clio; 30).
RANDELL, Keith. Lutero e a reforma alemã. São Paulo:
Ática, 1995.112p. (Série Princípios; 248)
SIMON, Edith. Reforma. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio
de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1971. (Biblioteca de História
Universal LIFE)

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