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In: The
Inheritance of Rome. Illuminating the Dark Ages, 400-1000. New York: Penguin Books,
2009, p. 201-279 1.
Capítulo 4
1
Tradução provisória para fins didáticos, uso exclusivo na disciplina de História Medieval do Curso de
História da UFMG (2017). A tradução integral está em curso, com autorização do autor e da Editora
Penguin Books, com vistas à publicação pela Editora da Unicamp.
decreto, encurtando assim o debate. Se isso for verdade, foi o único desvio de
Hunerico em sua reencenação do drama honoriano. Hunerico estava gostando de ser
um imperador romano no modo de perseguir, ato por ato; e os católicos sabiam bem o
que ele estava fazendo.
Assim, é possível ver os Vândalos como uma versão dos próprios romanos. Na
verdade, eles poderiam ser vistos como um exército renegado que tomou o poder em
uma província romana e a administrou de uma maneira romana; embora os Vândalos
nunca tenham sido tropas federadas imperiais, eles se assemelhavam bastante à elas,
e qualquer um teria dificuldades para identificar algum elemento nas suas práticas
políticas ou sociais que tivesse raízes não romanas. Mas estaríamos enganados caso
pensássemos que nada mudou quando Genserico entrou marchando em Cartago.
Houve duas grandes diferenças. Em primeiro lugar, os Vândalos governaram a África
como uma aristocracia fundiária militar, que continuava a ver-se como etnicamente
distinta. Exércitos romanos que tomaram o poder antes do século V se contentavam
com criar seu próprio imperador e retornarem aos quartéis com ricos presentes; mas
os Vândalos se tornaram uma elite política, substituindo e expropriando a aristocracia
Senadorial, em grande parte ausente (e, também, alguns proprietários romanos que
viviam no norte de África, embora a maioria destes tenha sobrevivido). Em segundo
lugar, os Vândalos dividiram a infraestrutura mediterrânea do império tardio; eles
tomaram o controle da maior província exportadora de grãos e azeite do Ocidente,
principal fornecedora de alimentos da cidade de Roma. A comida costumava ser, em
grande parte, fornecida gratuitamente, graças aos impostos; no entanto, os Vândalos
eram autônomos e mantiveram a produção africana para si – embora estivessem
preparados para vendê-la. A espinha dorsal de impostos Cartago-Roma terminava. A
população da cidade de Roma começou a diminuir vertiginosamente depois da metade
do século V; no século seguinte ela provavelmente caiu mais de 80 por cento. E um
grande rombo apareceu no cuidadosamente balanceado sistema fiscal do império
ocidental; os romanos enfrentaram uma crise fiscal, justamente quando eles mais
precisavam de gastar o quanto pudessem com as tropas. Não ter previsto que
Genserico tomaria Cartago, apesar de um tratado firmado em 435, é indiscutivelmente
o principal erro estratégico do governo imperial no século V: foi o momento em que o
desmembramento político do império ocidental, pela primeira vez, se tornou uma
séria possibilidade. Daí os tardios, mas intensos, esforços para recapturar a África em
441, 460 e, especialmente, a grande mobilização de 468, que falharam
desastrosamente, apesar de a força militar vândala não ser, até onde se pode
observar, inusitadamente grande. No final, a reconquista em 533-534 foi fácil; mas o
Império Ocidental, neste momento, já deixara de existir. Não obstante o quão
romanizados os Vândalos eram, eles foram os agentes de grandes mudanças.
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Isso porque Valentiniano, quando ascendeu ao governo, tinha apenas 6 anos de idade (ndt).
um estilo político diferente daquele do Ocidente: o patriarca de Constantinopla,
apenas estabelecido em 381, já era um protagonista nas políticas seculares de uma
maneira que o papa, em Roma, não seria ainda por mais um século. O fato de que o
Império Ocidental era governado a partir de Ravena, e não Roma, significou que as
políticas citadinas de Roma se tornaram menos centrais para ele; a importância dos
concílios eclesiásticos e dos debates doutrinais, como um foco de unidade e dissensão,
também era maior no Oriente, dando aos bispos, em geral, mais voz política do que
eles teriam no Ocidente neste momento. A relação igreja-estado também
permaneceria muito mais íntima no Oriente no futuro, exceto, muito tempo depois,
durante o período Carolíngio no Ocidente, como veremos no Capítulo 17.
O império huno entrou em colapso, mas Aécio já estava morto, assassinado pelo
próprio Valentiniano III, , em 454, que morreu um ano depois como consequência
direta disso. Aécio seria posteriormente visto como (citando aqui Marcelino comes) “a
principal salvação do império ocidental”, em grande parte porque ele era seu último
comandante a transmitir uma impressão de energia militar durante um longo período
de tempo. Seus erros, principalmente na África, poderiam ser considerados como
igualmente fatais. Mas, a década de 450 ainda conheceu um certo nível de
estabilidade no Ocidente. Ele agora continha meia dúzia de governos “bárbaros”, com
os quais qualquer líder romano teria de lidar, embora ainda mantendo uma posição de
força: todos esses governos operavam segundo as regras romanas, e se preocupavam
o bastante com o Império a fim de influenciar sua escolha deles como governantes.
Isto foi demonstrado na crise que sucedeu a morte de Valentiniano, quando Genserico
saqueou Roma; Teodorico II dos Visigodos (453-466) persuadiu o eparca Avito– um
senador da Auvérnia, no centro da Gália, e um dos ex-generais de Aécio, que no
momento estava em uma missão diplomática para ele – a reivindicar o cargo imperial
em 455. Avito não era nenhum fantoche, mas isso não fez diferença. Ele não durou
muito, mas ainda haveria espaço para que um governante enérgico no Ocidente
mantivesse pelo menos a hegemonia de Aécio, e até talvez recuperasse aquela de
Constâncio, se ele pudesse obter apoio logístico oriental (algumas vezes disponível), e
se ele tivesse muita sorte.
Mas, a sorte imperial não durou muito. As duas décadas seguintes, adentrando a
próxima geração, são o período no qual o Ocidente finalmente se quebrou em
pedaços. Avito, claramente um gaulês candidato ao Império, foi derrotado pelo
exército italiano sob o comando de Majoriano e Ricímero, e este primeiro tornou-se
imperador (457-461). Majoriano teve o trabalho de obter tanto o reconhecimento
Oriental quanto o suporte dos aliados gauleses de Avito; também emitiu uma
legislação que mostra suas aspirações reformistas. Mas, se ele foi enérgico,
certamente não foi sortudo, pois Ricímero, seu magister militium, organizou um golpe
e mandou matá-lo. Ricímero, então, governou até sua morte em 472, por meio de uma
sucessão de imperadores praticamente todos fantoches, apesar de Antêmio (467-472),
uma figura militar do Oriente, ter demonstrado uma certa presença e autonomia até
que Ricímero se desentendeu com ele. Foi Antêmio quem organizou, junto com o
general oriental Basilisco (cunhado do Imperador Leão I do Oriente), o grande ataque
contra os Vândalos, em 468, o que não foi apenas um fracasso, mas um fracasso
especialmente caro. Depois disso, Ricímero se concentrou na Itália, a qual ele
defendeu eficientemente, e deixou o resto do império, em grande parte, por sua
própria conta, embora ele mantivesse ligações com o sudeste da Gália através de seu
genro, o príncipe burgúndio, Gundobaldo, que durante um curto período de tempo
sucedeu Ricímero como o homem-forte do império, antes de deixar a Itália para se
tornar rei dos Burgúndios (474-516). É difícil de conhecer Ricímero por meio das
fontes, que são hostis e vagas, mas não há indícios de que ele tivesse interesses
políticos e ambições que se estendiam para além da Itália; ele é um sinal claro de que
os horizontes imperiais estavam se encolhendo. Depois de mais dois golpes de curta
duração, Odoacro, efetivamente o próximo militar supremo na Itália (476-493), não se
preocupou em nomear nenhum imperador para o Ocidente, mas, ao invés disso, fez o
senado romano criar uma petição, dirigida ao Imperador do Oriente Zenão, em que
afirmava que apenas um imperador era necessário neste momento; Odoacro então
governou a Itália em nome de Zenão, como patricius, patrício, um título utilizado tanto
por Aécio quanto por Ricímero, apesar de que, dentro da Itália, Odoacro se auto-
intitulava rex, rei.
O norte da Gália fora, por muito tempo, a parte mais militarizada da região, onde
o exército estruturava os padrões de posse de terra, convívio social e comércio
durante o século V. A cultura da Villa acabara aqui por volta de 450, por exemplo,
como também na Bretanha, em rápido processo de desromanização, mas ao contrário
de qualquer outro lugar no Ocidente, onde as ricas residências rurais continuaram até
meados do século VI; isso marca o fim precoce de um dos clássicos indicadores da
cultura das elites civis. Sidônio, que conhecia todos os grandes aristocratas civis da
Gália, quase nunca escrevia para as pessoas ao norte do Loire (um deles foi Arbogasto
de Tréveris, a quem ele elogia pela manutenção das tradições culturais romanas –
Sidônio claramente pensava que isso era difícil no norte). O resto do que sabemos
sobre o norte aponta para procedimentos políticos bastante circunstanciais, como
acontece com as santas viagens de Genoveva a fim de encontrar alimentos para Paris,
provavelmente na década de 470, ou os bispos que lidavam diretamente com Clóvis,
nos anos 480. O sul da Gália estava muito melhor organizado: reis visigodos e
burgúndios legislavam, taxavam, distribuíam grãos na região, empregavam oficiais civis
romanos, e criavam exércitos integrados de “bárbaros” e romanos, que incluíam
generais romanos. Mas, em todos os lugares da Gália, as últimas duas décadas do
século V foram definitivamente pós imperiais, no sentido de que meia dúzia de
governantes se enfrentaram sem nenhuma mediação, nenhuma hegemonia distante
baseada em Roma/Ravena na qual se espelhar. A Gália é a parte mais bem
documentada do Ocidente, no final do século V, por isso podemos ver mais claramente
o que acontecia ali, mesmo que ela tenha sido, indiscutivelmente, a região onde a
mudança foi maior: maior do que na Itália, certamente, mas ainda maior do que na
África, onde a administração vândala, popular ou não, era sólida e relativamente
tradicional. Todas essas regiões eram, no entanto, pós romanas também; a unidade e
identidade imperial eram, pelo ano 500, propriedade exclusiva do Oriente.
Estamos agora no ano 500, e o Oriente, apesar de alguns problemas sob Zenão,
ainda se mantinha estável. O Ocidente tinha mudado bastante, como vimos, mas ainda
havia elementos de estabilidade também. Teoderico governava a Itália de Ravena, a
capital romana ocidental, com uma tradicional administração romana, uma mistura de
líderes Senadoriais da cidade de Roma e burocratas de carreira; ele era (assim como
Odoacro também tinha sido) respeitoso com o senado romano, e fez uma visita
cerimonial à cidade em 500, com visitas formais à Igreja de São Pedro, ao prédio do
Senado e ao palácio imperial do Palatino, onde ele presidiu jogos, como qualquer
imperador. Todo o modus operandi de Teoderico era, em grande parte, imperial, e
muitos comentadores o viram como um restaurador das tradições imperiais. Essa
certamente era a visão do senador Cassiodoro (que viveu em torno de 485-580), que
era um de seus administradores, após 507, e que escreveu uma extensa coleção de
cartas oficiais para Teoderico e seus sucessores imediatos, às quais ele chamou de
Variae; Cassiodoro deliberadamente descreveu Teoderico como um defensor dos
valores romanos, mas era fácil para ele afirmar isso. O sistema fiscal e administrativo
tinha mudado pouco; os mesmos proprietários de terra tradicionais dominavam a
política, ao lado de uma nova (mas parcialmente romanizada) elite militar goda ou
ostrogoda.
Mas o mundo estava mudando. O fim da unidade política não foi apenas uma
mudança trivial; toda a estrutura política teve de mudar como consequência. As
classes governantes das províncias ainda eram (em sua maioria) romanas, mas elas
estavam em rápida transformação. O Oriente também estava se distanciando do
Ocidente. Ele, por exemplo, tornara-se muito mais grego em sua cultura oficial. Leão I
fora o primeiro imperador a legislar em grego; menos de um século depois, Justiniano
(527-565) talvez tenha sido o último imperador oriental a falar latim como sua
primeira língua. Mas é, acima de tudo, no Ocidente que encontramos uma crescente
provincialização, no final do século V, o que é, ao mesmo tempo, uma consequência e
uma causa do colapso do governo central. Agostinho pensava o império como um
todo; Salviano tomou suas imagens morais, mas pensava apenas o Ocidente (embora
ele realmente só conhecesse a Gália). Sidônio, no entanto, era definitivamente um
gaulês. Por esta época, as elites gaulesas raramente viajavam para a Itália; mesmo que
Sidônio tenha sido o prefeito de Roma, em 468, ele foi o primeiro gaulês a ocupar este
cargo desde, pelo menos, 414, e também foi o último. Seus colegas eram ainda mais
claramente preocupados com políticas gaulesas, como seu amigo Arvando, prefeito do
pretório) da Gália, em 464-468, e seu inimigo Seronato, um administrador na Gália
central durante e após 469, ambos apostaram nas ambições políticas de Eurico e
foram demitidos por isso; Vitório e Vicente, generais romanos de Eurico, foram
presumivelmente variantes mais bem sucedidas do mesmo tipo: provinciais que viam a
ascensão na corte visigótica como simplesmente mais relevante do que a tradicional
hierarquia de carreira centrada na distante Ravena. Essas foram mudanças políticas
que fizeram muito sentido para os atores locais, mas foram fatais para o que restava
do Império. O próprio Sidônio abandonou a hierarquia imperial quando se tornou
bispo, em 469/470, e a crescente tendência dos aristocratas da Gália de buscarem uma
carreira no episcopado (acima, Capítulo 3) expressa este foco no local de maneira bem
clara. Na próxima geração, os horizontes se estreitaram novamente: Rurício de
Limoges (m. 510) e Avito de Viena (m. 518), bispos nos reinos visigodo e burgúndio,
respectivamente, deixaram coleções de cartas, escritas em sua maioria para
destinatários dentro de seus respectivos reinos (com a grande exceção do filho de
Sidônio Apolinário, em Clermont, com quem ambos estavam relacionados).
Justiniano foi, e continua sendo, uma figura controversa. Ele era odiado por
muitos, notadamente por aqueles dos quais discordava e perseguia, por razões
religiosas, e que se tornaram mais numerosos na medida em que seu reinado
avançava. Isso seguiu-se à sua crescente hostilidade com os monofisitas,
especialmente após a morte de sua influente esposa Teodora (ela mesmo uma
monofisita), em 548, e depois, sua igualmente controversa tentativa de dar um passo
doutrinário em direção ao monofisismo, no quinto concílio ecumênico de
Constantinopla, em 553, o que alienou grande parte do Ocidente. De menor seriedade
(mas demasiadamente influente nos estudiosos modernos) foi a obra anti-panegírica
História Secreta, de Procópio, que retrata Justiniano e Teodora como gênios
malévolos, em termos altamente coloridos e sexualizados, com Justiniano sendo
caracterizado como um demônio. Hoje em dia, Justiniano é, acima de tudo, acusado de
arruinar financeiramente o império,, graças às suas guerras anacrônicas no Ocidente; o
Império oriental, após sua morte, em 565, é comumente visto como enfraquecido,
tanto militar quando economicamente, uma situação que iria resultar nos desastres
políticos dos anos pós 610. Veremos a crise do século VII no Capítulo 11, mas ela não
me parece ter muito a ver com Justiniano. As guerras ocidentais não foram
anacrônicas, pois o Império Romano ainda era um conceito importante até mesmo no
Ocidente, nem foram particularmente caras; a África foi reconquistada por uma
ninharia, e permaneceu romana por mais de um século, e a guerra na Itália teria sido
uma confusão bem menor caso Justiniano tivesse investido mais, e não menos,
dinheiro nela. Seus sucessores, notavelmente Tibério II (578-82) e Maurício (582-602),
mantiveram afastados os Persas, seus principais oponentes, tão eficientemente
quanto Justiniano tinha feito. Eles também mantiveram longe os Ávaros, novos
detentores da hegemonia “bárbara” no médio Danúbio, os quais, a partir dos anos
560, tornaram-se os mais recentes invasores dos Bálcãs, em sua maioria de língua
eslava (mas também turca e germânica), sendo a maior ameaça militar para a área
desde os Hunos. Eles abandonaram a maior parte da Itália a um novo povo, os
Lombardos, mas dado o estado em que a Itália se encontrava, isso não foi
necessariamente um fracasso estratégico. Outrossim, o dinheiro estava
suficientemente abundante nos anos 570 para Tibério (embora não para Maurício) ser
mencionado como um gastador extravagante. O reinado de Justiniano não aparenta
ter sido uma guinada negativa para o império. Mas a controvérsia sobre ele, pelo
menos, impõe respeito: Justiniano imprimiu sua marca em uma geração, ao redor de
todo o Mediterrâneo, e, diferentemente da maioria dos governantes, os eventos de
seu reinado parecem ter sido o resultado de suas próprias escolhas. Seu protagonismo
desmente a visão de que o desmembramento do Ocidente, no século V, por si só,
marca o fracasso do projeto imperial romano.
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Mas, voltemos aos líderes “bárbaros” e seus povos: afinal, o que exatamente os
definia como não-romanos, “bárbaros” ou germânicos? Existe, atualmente, um
enorme debate sobre o assunto, com uma infinita variedade de posições, mesmo
entre aqueles que aceitam que os novos grupos étnicos buscavam se acomodar dentro
das leis romanas o máximo que podiam: desde a crença de que havia um núcleo
substancial de valores e tradições não-romanos, associado ao elemento de dominação
presente em qualquer grupo invasor ou assentado, que poderia sobreviver por
séculos, até a crença de que os diferenciadores étnicos germânicos eram apenas uma
mudança de nome da identidade militar dos soldados romanos, e que não havia nada
de tradicional neles. Quanto a essa segunda posição, é preciso ao menos reconhecer
que a maioria dos novos grupos “bárbaros”, no império do século V, tinha um histórico
de emprego no exército romano; os soldados mais bem-sucedidos entre eles, como os
Visigodos, eram efetivamente indistinguíveis de um destacamento militar romano.
(Exércitos “bárbaros” regularmente viajavam com suas famílias e dependentes; apesar
de ser teoricamente ilegal, seria imprudente presumir que os exércitos romanos não
faziam o mesmo na prática.) Nós podemos, no entanto, ver uma clara distinção em
nossas fontes entre as forças do exército regular, que, independentemente de origem
romana ou “bárbara” (como vimos, no Capítulo 2, havia, nas fronteiras, de onde os
soldados geralmente provinham, pouca diferença entre eles), eram parte de uma
hierarquia militar e de uma estrutura padrão de carreira; e os seguidores do Rei X ou
líder Y, que se identificavam com seu líder, geralmente tinham um nome étnico
distinto, e eram aceitos no exército romano como um grupo distinto. Essa é a distinção
entre Odoacro e Teoderico, por exemplo, sucessivos governantes da Itália. Odoacro
era o candidato do exército romano da Itália, que era composto apenas por etnias
Hérula, Escira e Torcilingi; o próprio Odoacro era pelo menos meio esciro, mas tinha
formação militar romana, e nunca é chamado de chefe dos Esciros, ou de nenhum
outro grupo na Itália. Ele se tornou um rei, formalmente autônomo, mas reconhecia
Zenão, e poderia facilmente ter sido repensado como parte do Império Romano.
Teoderico, em contraste, era um rei dos Godos, cujo povo vinha com ele desde o
começo, não importa quantos títulos imperiais ele também tivesse. Esse povo era tão
misto quanto os apoiadores de Odoacro; ele certamente comportava os Rúgios (que
mantiveram uma identidade através de casamentos endogâmicos por cinquenta anos
após a conquista da Itália por Teoderico), Gépidas, Hunos e, sem dúvida, homens de
ascendência romana também, e, após a conquista de Teoderico, também absorveria
todos ou pelo menos a maior parte dos seguidores de Odoacro. Porém, ele estava
ligado a um chefe, e tinha um nome, “godo”, ostrogodo em nossa terminologia; esse
nome caracterizaria o povo como um todo, não importando sua origem, e também o
reinado de Teoderico. Foram povos como esse, heterogêneos, mas – um aspecto
essencial – unidos por um único chefe, que assumiram as províncias ocidentais; e, de
fato, as renomearam: a Gália passou a ser Regnum Francorum, e a África chamou-se
Regnum Vandalorum. Ao permanecerem à frente dessas terras por tanto tempo, como
ocorreu com os Francos e os Visigodos, diferentemente dos Vândalos e Ostrogodos,
eles tenderam a esquecer suas origens diferentes, e “se tornaram” Francos ou Godos –
e também, crucialmente, não romanos.
É este o processo que foi chamado de “etnogênese” por Herwig Wolfram e sua
escola: o reconhecimento de que identidades étnicas são flexíveis, maleáveis,
“construções situacionais”; o mesmo “bárbaro”, na Itália do século VI, podia ser Rúgio,
Ostrogodo e até mesmo Romano (mas isso somente a partir da reconquista romana
oriental). Tais povos teriam adquirido diferentes identidades sucessivamente (ou
contemporaneamente), e essas teriam trazido diferentes modos de comportamento e
lealdades, e até, eventualmente, diferentes memórias. Como Walter Pohl propôs
recentemente, o “núcleo de tradições”, que fazia alguém Ostrogodo ou Visigodo, era,
provavelmente, uma rede de crenças contraditórias e mutáveis; não parece ter havido
um conjunto estável de tradições em cada grupo quando cruzaram a fronteira para
prestar um serviço descontínuo no exército romano, até se tornarem um
assentamento em uma província romana. Em 650, todo reino “bárbaro” tinha suas
próprias tradições, algumas delas remetiam-se a um passado secular, tradições essas
que, sem dúvida, nessa época, eram elementos centrais dos mitos fundadores de
muitos de seus habitantes; da mesma forma que os mitos fundadores não precisam
ser verdade, também não precisam ser antigos. Cada um dos reinos “Romano-
Germânicos” tinha uma bricolagem de crenças e identidades com raízes muito
variáveis, e essas, repito, poderiam mudar, e ser reconfiguradas, em cada geração,
para se adequar às novas necessidades. Os historiadores tendem a dar mais atenção
ao relato de que o avô de Clóvis era o filho de um monstro marinho, um quinotauro,
do que ao relato de que os Francos eram descendentes dos Troianos, o que parece ser
mais “literário”, menos “autêntico”; mas o registro mais antigo de cada uma dessas
tradições aparece na mesma fonte do século VII, e seria difícil dizer qual delas era mais
crida – ou mais antiga – do que outra.
Isso não significa que os grupos “bárbaros” não trouxeram nada de suas culturas
anteriores para o império. Há toda uma nova historiografia que discute a germanidade
das primeiras práticas sociais medievais: como os grandes clãs, as faidas, séquitos
pessoais, o consumo de carne, certos conceitos de propriedade ou certos tipos de
broche ou fivela. Quase tudo isso é falso, se visto como sinal de uma identidade inata,
como se os Francos, de 700, fossem os mesmos Francos de 350. Algumas dessas
marcas também são imprecisas: grande parte das primitivas leis de propriedade
medievais tinha antecedentes romanos impecáveis, ou, pelo menos, paralelos bem
próximos; de modo semelhante, a metalurgia “germânica”, às vezes, tem
antecedentes romanos, e, mesmo quando isso não ocorre, não nos fornece qualquer
guia para as identidades étnicas de quem as usava. Mas seria igualmente
contraproducente descartar tudo isso de uma vez só, e apresentar os novos grupos
étnicos simplesmente como variantes da própria sociedade romana. Uma ênfase no
consumo de carnes pela aristocracia, por exemplo, parece ter sido, genuinamente,
uma inovação dos (entre outros) Francos; isso não era parte da culinária romana, para
a qual o status era transmitido pela complexidade e pelo custo dos ingredientes, mas
aparece, pela primeira vez, em um tratado sobre dieta escrito para o rei franco
Teoderico I (511-33) por um médico de origens gregas chamado Antimo, e continuou
ao longo da Idade Média.
3
Wickham cria um neologismo para traduzir a ideia de uma identidade étnica para os Godos e, a seguir,
os Francos. Utilizamos o termo ‘goticidade’ para traduzir Gothic-ness, ‘franquicidade’ para Frankishness
e ‘germanidade’, mais conhecido, para traduzir German-ness (ndt).
Uma inovação particularmente importante foi a assembleia pública, a reunião
formal dos membros masculinos adultos de uma comunidade política, para deliberar e
decidir sobre ações políticas e guerra, e, cada vez mais, para se criar leis e arbitrar
disputas. Os romanos tinham muitas cerimônias públicas de larga escala, como vimos
no Capítulo 3, mas, nos reinos pós-romanos, as assembleias tinham um significado
mais amplo, na medida em que elas representavam o princípio de que o rei tinha um
relacionamento direto com todos os Francos ou Lombardos ou Burgúndios livres; essas
assembleias derivam dos valores das comunidades tribais do período imperial, mas
continuaram de maneira bem diferente no mundo pós-romano. Podemos, assim,
traçar um contínuo de prática política que liga os Francos e Lombardos, não com
Roma, neste caso, mas com os povos menos romanizados ou não-romanizados do
norte alto medieval; as assembleias denominadas placitum pelos Francos ou
Lombardos, ou conventus pelos Burgúndios, têm paralelos com a gemot anglo-saxã, a
thing escandinava e a óenach irlandesa. Essas assembleias não eram realmente para
todos os homens livres, o tradicional Kingdom-at-arms da mitologia romântica, mas,
apesar disso, elas podiam ser grandes encontros, cujo poder de legitimar ações
políticas ou judiciais derivava, precisamente, do fato de que muitas pessoas
participavam delas. De 500 a 1000, e algumas vezes mais tarde, as políticas públicas do
Ocidente eram sustentadas pela participação direta de grande parte da sociedade livre
e masculina. Isso se somou a uma suposição de que uma grande parte dos livres tinha
obrigações militares, o que era, principalmente, um produto de condições pós-
romanas, como veremos em mais detalhes adiante. Mas o elo entre o compromisso
militar e as políticas de assembleia deveria já ter feito sentido para os exércitos étnicos
do século V; a generalização da imagem da assembleia em cada reino romano-
germânico (mesmo no altamente romanizado estado Visigótico) por si só nos permite
presumi-lo.
Ora, esta mudança não se deve muito às diferenças culturais. Regiões que
experimentaram situações péssimas de insegurança, descritas anteriormente em
relação ao Noricum , teriam visto um colapso social significativo mesmo que nenhum
“bárbaro” tivesse se estabelecido ali. Mas, nas províncias conquistadas, a maioria no
Ocidente, a mudança derivou principalmente da posição estrutural de cada grupo
“bárbaro”. Como observado anteriormente, os exércitos “bárbaros”, que tomaram
essas províncias, tinham objetivos diferentes dos exércitos romanos, que tomaram o
poder para seus generais, nos séculos anteriores. Eles queriam se assentar de volta nas
terras, como seus ancestrais haviam feito antes que a geração de movimento
intermitente e conquista começasse. Seus chefes, e provavelmente uma boa parte dos
Godos, Vândalos e Francos de status mediano, também queriam ser uma classe
governante, assim como os ricos aristocratas romanos em cada uma das províncias
que eles ocupavam. Para cumprir este objetivo, em si bastante romano, eles
precisavam de propriedades, e, como conquistadores, estavam em uma boa posição
para obtê-las. Embora os detalhes exatos dos assentamentos de terra de cada grupo
“bárbaro” sejam obscuros e muito debatidos (realmente eles devem ter sido muito
variáveis), por volta de 500, é claro que os Godos e outros aristocratas “bárbaros”
possuíam extensas propriedades, e estavam bem dispostos a estendê-las ainda mais;
por exemplo, as Variae de Cassiodoro incluem vários episódios de Ostrogodos
abusando de sua autoridade política e militar e expropriando as terras de outros. A
partir do século V, houve uma tendência constante de cada vez menos se sustentar
exércitos por meio da tributação pública e de os apoiar através de rendas derivados da
propriedade privada, o que era essencialmente o produto deste desejo por terra das
elites conquistadoras. Em 476, de acordo com Procópio, até mesmo o exército romano
da Itália queria receber terras, e o conseguiu apoiando Odoacro. Procópio pode muito
bem ter exagerado; o estado ostrogótico, na Itália, certamente ainda utilizava da
tributação para pagar o exército, pelo menos em parte, provavelmente mais do
qualquer outra entidade política pós-romana fazia no início do século VI. Em geral, no
entanto, a guinada em direção à terra era permanente. Após o fim da Itália
ostrogótica, não há nenhuma outra referência, no Ocidente, de exércitos
remunerados, com exceção de mantimentos para guarnições, até que os Árabes
reintroduziram a prática na Espanha, a partir da metade do século VIII; em outros
reinos ocidentais, apenas os ocasionais destacamentos de mercenários eram pagos,
até bem depois do final do período tratado neste livro. Algumas destas terras devem
ter sido fiscais - isto é, propriedades públicas - e distribuídas por reis; outras devem ter
sido parte de assentamentos rurais ordinários, nos quais proporções fixas dos
patrimônios de proprietários romanos eram cedidas aos “bárbaros”, provavelmente
para substituir os impostos; e outros ainda (como na África vândala) as propriedades
podem ter sido simplesmente tomadas à força. De qualquer forma, uma mudança em
direção a um exército com terras, e, portanto, políticas de terras, começou aqui; ao
mesmo tempo houve uma mudança em direção a uma identidade étnica “bárbara” por
parte dos donos de terra, independentemente de suas origens.
Esta foi uma mudança crucial. Estados que arrecadam impostos são bem mais
ricos do que a maioria dos estados baseados em terras, pois os impostos sobre
propriedade são geralmente coletados de muito mais pessoas além dos que pagam
aluguel a um senhor pelo uso de sua terra pública. Provavelmente apenas os reis
francos, no auge de seu poder, isto é, entre 540 e 770, é que poderiam se igualar, em
riqueza, aos estados do Mediterrâneo oriental, o Império bizantino e o Califado árabe,
que ainda mantinham as tradições romanas de tributação. Além disso, estados
arrecadadores têm muito mais controle geral sobre seus territórios, em parte devido à
constante presença de fiscais e coletores de impostos, em parte porque os
dependentes do estado (funcionários e soldados) são assalariados. Os governantes
podem parar de pagar salários e, por conseguinte, conseguem ter maior controle
sobre seus funcionários. Mas se os exércitos dependem da posse de terras, eles se
tornam mais difíceis de controlar. Generais podem se tornar desleais caso não
recebam mais terras, o que reduz a quantidade de terras que o governante dispõe; e,
se eles forem desleais, conseguem manter o controle de suas terras, ao menos que
sejam expulsos à força, o que é uma tarefa difícil. Os estados cuja base é a propriedade
de terra correm o risco de se fragmentarem, de fato, pois seus territórios periféricos
são difíceis de dominar totalmente e podem separar-se por completo. Isso não seria
comum até, pelo menos, o final do século IX, no Ocidente. Muitas coisas teriam de
mudar antes disso, como veremos nos próximos capítulos. Mas isso acabou ocorrendo
no final, sobretudo nas vastas terras governadas pelos Francos.
Essas diferenças regionais – que poderiam vir a crescer, pois nossas informações
estão ficando mais detalhadas o tempo todo, na medida em que as escavações
arqueológicas científicas se tornam mais comuns em cada país – são indicadores dos
diferentes impactos que as invasões e deslocamentos populacionais de 400-550
tiveram em cada parte do império. Foram maiores do que se costuma esperar no
interior da Espanha; e menores no norte da Gália franca e na África vândala. Tais
diferenças também mostram que as aristocracias dos novos reinos não se
equiparavam à riqueza de seus predecessores ou ancestrais, precisamente porque era
mais difícil de se possuir propriedades em terras distantes agora que o império se
dividida (a super rica elite Senadorial de Roma, em particular, deixou de existir), mas
este empobrecimento também era muito variável, é verdade, em termos regionais.
Vendo globalmente, entretanto, essas mudanças mostram que os reinos pós-romanos
do Ocidente foram incapazes de atingir a intensidade de circulação e a escala da
produção do antigo Império Romano. O Oriente era bem diferente neste aspecto; no
início do século VI, cidades, indústrias e a troca de produtos estavam atingindo seu
auge, e continuaram neste nível até o início do século VII. Mas o Império sobreviveu no
Oriente. Essa correlação é exata: a complexidade econômica dependia da unidade
imperial, em ambos os impérios oriental e ocidental. As implicações que essas
mudanças tiveram para as sociedades locais, no Ocidente, serão discutidas no Capítulo
9.
O maior resultado dessas tendências foi que a cultura de elite secular do império
romano perdeu seu papel como indicador de status. Isso explica por que
provavelmente as villas rurais foram abandonadas: como símbolo de conforto e de
luxo, elas estavam fora de moda em uma sociedade mais militarizada. O consumo de
carne foi introduzido neste contexto, também. A vestimenta das elites também
mudou; reis e aristocratas da Alta Idade Média se vestiam como os generais romanos
tardios, e não como a antiga tradição Senadorial togada. Mas acima de tudo, saber de
cor Virgílio e outros clássicos seculares, ser capaz de escrever em poesia e prosa
elaborada, o que Sidônio ainda considerava como essencial, deixou de ser importante;
o manejo da espada, ou da Bíblia, eram fontes bem mais relevantes de capital cultural.
Como resultado, nossas fontes escritas mudam dramaticamente, tornando-se muito
mais ligadas a temas cristãos, hagiografias, sermões, liturgia (como aconteceu também
em Bizâncio). Não é que todas as formas de instrução literária desapareceram; mesmo
no Ocidente, as aristocracias eram geralmente capazes de ler, até o final do século IX.
Mas devemos, de qualquer maneira, nos manter neutros em relação a tais mudanças.
Como enfatizado no Capítulo 2, é muito mais importante reconhecer que uma
educação complexa existia, acima de tudo, para demonstrar que as elites romanas
eram especiais, mas, como agora a identidade das elites estava mudando, ela não era
mais necessária.
Essas mudanças, usualmente, ocorriam de maneira lenta: afinal, cento e cinquenta
anos é um longo tempo. (Apenas na Itália as mudanças foram realmente rápidas,
sobretudo como resultado da Guerra Gótica, nos anos 540.) As pessoas, geralmente,
não estavam cientes delas; ajustavam-se facilmente a cada pequena mudança. Não é,
de modo algum, claro até que ponto a maioria dos escritores ocidentais viu o mundo
romano como tendo acabado, no período até 550, ou até mesmo mais tarde. Os
escritores raramente demonstravam alguma nostalgia pelo passado, e, apesar de
serem certamente capazes de reclamar sobre quão terríveis eram os costumes de seu
presente, essa é uma característica dos conservadores de cada geração. Em todo caso,
à medida em que a escrita se tornava mais eclesiástica, ela também se tornava mais
socialmente crítica, mais moralizante; mas isso era um produto do gênero, não
necessariamente uma mudança social, seja percebida ou real. As aristocracias
tradicionais romanas, escritoras da maioria de nossas fontes, ainda estavam em vigor
na maior parte do Ocidente; elas existiam ao lado de famílias mais recentes, que
ascendiam na igreja ou no exército, e, é claro, das novas elites “bárbaras”, mas esses
últimos grupos ainda estavam copiando a cultura aristocrática romana. Ainda assim,
até mesmo essa cultura estava mudando. E as aristocracias estavam se tornando cada
vez mais localizadas, distanciando-se umas das outras. No final – por volta de 650, em
todos os reinos pós-romanos – elas deixariam de pensar em si mesmas como romanas,
mas antes como francas, visigóticas ou lombardas. Os “romanos”, nesse momento,
restringiam-se ao império oriental, às porções não lombardas da Itália (sobretudo a
própria Roma), e à Aquitânia - a antiga parte visigótica da Gália, onde os Francos
menos se assentaram. Nessa época, os romanos eram vistos como pertencentes ao
passado, também; mas levou todo esse tempo para que as pessoas reconhecessem
que o império tinha desaparecido no Ocidente.