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Beatriz Giugliani
Salvador
2019
Beatriz Giugliani
Salvador
2019
Beatriz Giugliani
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Osmundo Pinho – UFRB (Orientador)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Furtado – UFBA Pós-Afro (Banca Examinadora)
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Urpi Montoya Uriarte – UFBA (Banca Examinadora)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Lívio Sansone – UFBA Pós-Afro (Banca Examinadora)
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rosana Heringer – UFRJ (Banca Examinadora)
Foto 1 – Representação do livro “Seara vermelha” (Jorge Amado) com inspiração livre a partir
da obra “Os retirantes” de Portinari – 3º ano/2016 .................................................................. 84
Foto 2 – Vídeo clipe “Gabriela, cravo e canela” produzido pelos estudantes e apresentado nesta
Feira como criação da turma do 2º ano/2016. A sala de aula é agora “Cine Tieta” ................. 85
Foto 3 – Apresentação final da Feira do Conhecimento de 2016: baianas, personagens dos livros
de Jorge Amado ........................................................................................................................ 87
Foto 4 – Representação do livro “Capitães de Areia” de Jorge Amado ................................... 89
Foto 5 – Quando eles criam .................................................................................................... 123
Foto 6 – Foto do boneco – parte I – cabeça até os genitais .................................................... 131
Foto 7 – Foto do boneco – parte II - genitais até os pés / *aqui o contorno da mão esquerda com
o celular .................................................................................................................................. 132
Foto 8 – Foto do Boneco inteiro ............................................................................................. 133
Foto 9 – Levando um som 1 ................................................................................................... 159
Foto 10 – Levando um som 2 ................................................................................................. 160
Foto 11 – Levando um som 3 ................................................................................................. 161
Foto 12 – Recreio – março/2017 ............................................................................................ 163
Foto 13– Rapazes “na resenha” – 26 de agosto de 2016 ........................................................ 172
Foto 14 – Meninas “na resenha” – outubro de 2017 .............................................................. 173
Foto 15 – Posando para foto 1– setembro/2016 ..................................................................... 173
Foto 16 – Momento em que os jovens do CERG reivindicam a volta da merenda e dos
terceirizados - Meninas à espera da resposta no Fórum de São Félix - 2014 ......................... 174
Foto 17 – Posando para foto 2– setembro/2016 ..................................................................... 208
Foto 18 – Posando para foto 3 – setembro/2016 .................................................................... 209
Foto 19 – Modelos de masculinidades ................................................................................... 210
Foto 20 – Grupo Focal Cores & Valores ................................................................................ 224
Foto 21 – Momento da self ..................................................................................................... 225
Foto 22 – Debatendo a diversidade ........................................................................................ 236
Foto 23 – A voz da fé evangélica no meio da Praça 1............................................................ 239
Foto 24 – A voz da fé evangélica no meio da Praça 2............................................................ 240
Foto 25 – Estudantes aguardando seus representantes na frente do Foro de São Félix 1 ...... 261
Foto 26 – Estudantes aguardando seus representantes na frente do Foro de São Félix 2 ...... 262
Foto 27 – Seguindo a caminhada até a Ponte D. Pedro II 1 ................................................... 262
Foto 28 – Seguindo a caminhada até a Ponte D. Pedro II 2 ................................................... 263
Foto 29 – Estudantes na ponte em direção à cidade de Cachoeira – o trânsito nesse momento já
se encontra interrompido pela polícia que se aproxima ......................................................... 263
Foto 30 – Entrada da Ponte D. Pedro II fechada na entrada de Cachoeira ............................. 264
Foto 31 – Estudantes e Polícia................................................................................................ 264
Foto 32 – Difícil negociação .................................................................................................. 265
Foto 33 – Concerto da Orquestra da Sociedade Filarmônica União Sanfelista – dia 29 de outubro
de 2016 – comemoração do aniversário da cidade (25/10) - Centro Cultural Dannemann – São
Félix ........................................................................................................................................ 267
Foto 34 – Sociedade Filarmônica União Sanfelista no Coreto de São Félix .......................... 267
Foto 35– Vista do Alto da Cruz a partir de Cachoeira ........................................................... 272
Foto 36 – O Alto da Cruz - Trabalho da disciplina de Artes e exposto no corredor da escola
................................................................................................................................................ 272
Foto 37 – Exibição e debate do Filme do IPAC no CERG .................................................... 292
Foto 38 – Apresentação de Pagode com Grupo de estudantes do 3º ano ............................... 296
Foto 39 – Letra da Música de Igor Santos – estudante do 1º ano........................................... 297
Foto 40 – Representação dos estudantes do 2º ano – Cena de Escravos trabalhando nas fazendas
de Engenho ............................................................................................................................. 298
Foto 41 – Pintura corporal – preparação ................................................................................ 299
Foto 42 – O protagonismo do sujeito negro 1 ........................................................................ 307
Foto 43 – O protagonismo do sujeito negro 2 ........................................................................ 308
Foto 44 – O protagonismo do sujeito negro 3 ........................................................................ 309
Foto 45 – O protagonismo do sujeito negro 4 ........................................................................ 314
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Taxa de frequência escolar líquida por sexo, segundo cor/raça Brasil - 2014 (em %)
.................................................................................................................................................. 44
Gráfico 2 – Média de anos de estudo de pessoas de 15 anos ou mais segundo sexo, por cor e
raça – Brasil e Regiões NO/ND/SD (1995, 2004 e 2009) ........................................................ 46
Gráfico 3 – Taxa de frequência escolar líquida por sexo/ano – 2010 – IBGE ....................... 146
Gráfico 4 – Alunos matriculados no Ensino Médio do CERG – sede – por ano e sexo/2015
............................................................................................................................................... .147
Gráfico 5 – Alunos que concluíram o Ensino Médio no CERG – sede – por ano e por sexo/2015
- Quadro corresponde aos concluintes de cada ano do EM .................................................... 148
Gráfico 6 – Alunos matriculados no Ensino Médio do CERG – sede – por ano e sexo/2016...
................................................................................................................................................ 148
Gráfico 7 – Alunos que concluíram o Ensino Médio do CERG – sede – por ano e por sexo/2016
- Quadro corresponde aos concluintes de cada ano do EM .................................................... 149
Gráfico 8 – Expectativas de Futuro ........................................................................................ 153
Gráfico 9 – Situação dos estudantes – Se estuda e/ou trabalha - Por sexo ............................. 191
LISTA DE IMAGENS
Quadro 1 – Características expressas pelos estudantes sobre o que é ser feminino e o que é ser
masculino ................................................................................................................................ 134
Quadro 2 – Dificuldades enfrentadas para frequentar a escola .............................................. 181
Quadro 3 – Motivos para ir à escola ....................................................................................... 182
Quadro 4 – Tempo Livre ........................................................................................................ 352
Quadro 5 – Motivos da repetência .......................................................................................... 355
Quadro 6 – Opinião sobre a repetência .................................................................................. 355
Quadro 7 – Possíveis dificuldades para estudar ..................................................................... 356
Quadro 8 – Motivos para ir à escola ....................................................................................... 356
Quadro 9 – Preconceito na escola........................................................................................... 358
Quadro 10 – Desejo de futuro................................................................................................. 359
LISTA DE TABELAS
1 INTRODUÇÃO 37
1.1 Tema e sua importância ................................................................................................... 37
1.2 Caminhos, aproximação e abordagem metodológica .................................................... 47
1.3 O lugar de onde falo e a escrita do texto ou do familiar ao exótico, do exótico ao familiar
.................................................................................................................................................. 54
1.4 Dos capítulos ..................................................................................................................... 61
2 “OLHE A ESCOLA DO BRANCO PRA VOCÊ VÊ, OLHE OS PROFESSORES DA
GENTE”: A DESIGUALDADE ENTRE HOMENS SE APRENDE NA ESCOLA 67
2.1 O lugar da etnografia ...................................................................................................... 68
2.2 A escola como lugar de raça ............................................................................................ 81
2.3 A cor da desigualdade: narrativas sobre o preconceito e a discriminação ................. 93
2.4 Constituição do sujeito, subjetividades/intersubjetividades e identidade ................... 98
2.5 No coração dessa tragédia se encontra a raça................................................................110
3 “POR QUE A VIDA É MAIS DIFÍCIL PROS HOMENS, TEM QUE TRABALHAR, TEM
QUE FAZER OS CORRE”: DESIGUALDADE ENTRE HOMENS NEGROS E
MULHERES NEGRAS, MASCULINIDADES NEGRAS, DESEMPENHO ESCOLAR,
RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE 125
3.1 Quero ver aqui quem não manda nudes! ....................................................................... 127
3.2 Da rua e da casa .............................................................................................................. 137
3.3 Quantificando a realidade escolar por sexo ................................................................. 143
3.4 O lugar da escola para os jovens rapazes ..................................................................... 150
3.5 A escola como lugar de gênero: masculinidades & feminilidades, relações de gênero e
desempenho escolar .............................................................................................................. 171
3.6 “Porque a vida é mais difícil pros homens – tem que trabalhar, tem que fazê os
‘corre’”: os rapazes, o trabalho e relações de gênero ........................................................ 187
3.7 O mercado de trabalho e a igualdade de oportunidades: sobre discriminação e o
preconceito ao jovem negro ................................................................................................. 190
4 ESCOLA E PODER: A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA, A ARBITRARIEDADE DO
PODER E A PRESENÇA INSTITUCIONAL EM CORPOS RACIALIZADOS 199
4.1 Cultura escolar, cultura dos alunos e cultura juvenil ................................................. 204
4.2 Vicissitudes, dilemas, “o arriscado” ou “os riscos” ..................................................... 218
4.3 A presença institucional em corpos jovens racializados ............................................. 222
4.4 Escola e a violência simbólica: sucesso e fracasso entre os jovens ............................. 240
5 DO FARDO DA RAÇA: RECOMENDAÇÕES POSSÍVEIS PARA UM MUNDO
COMUM E JUSTO 259
5.1 Como uma neblina no mar ............................................................................................ 265
5.2 A experiência negra como um limite fugaz .................................................................. 273
5.3 A Cultura Estudantil e o Estudante Negro na Escola Pública no Recôncavo da Bahia/
São Felix ................................................................................................................................ 286
5.4 Descolonizando currículos: recomendações ................................................................. 300
REFERÊNCIAS 315
APÊNDICE I – Roteiro de Entrevista semiestruturada entre os jovens rapazes estudantes
do CERG e egressos 349
APÊNDICE II – Censo Escolar CERG 2017 – Ensino Médio – Matutino 351
APÊNDICE III – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS 361
37
1 INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como objeto de pesquisa o abandono dos jovens homens negros do
Ensino Médio na cidade de São Félix, no Recôncavo Baiano, Bahia. Em andamento desde 2015,
a análise foi pautada na ideia da construção social das masculinidades. Portanto, busca-se
investigar e compreender, em perspectiva antropológica crítico-interpretativa, não só os
processos cotidianos que levam os rapazes – jovens negros –, a abandonarem a escola nessa
etapa de ensino, mas também as maneiras como estes estudantes interpretam e negociam sua
posição de sujeitos frente ao desafio escolar.
Trata-se de uma investigação que se desenvolveu primordialmente a partir dos diálogos
possíveis com sujeitos da interação, nessa interlocução intersubjetiva no sentido social e
político da antropologia feita com aqueles que estudamos. Ou poderíamos dizer ainda: nossos
momentos dialógicos, nossas práticas cotidianas em campo – que perseguimos quase
obsessivamente ao longo do tempo de trabalho de campo –, são verdadeiramente definidores
para além dos contextos comunicativos. Os diálogos versam sobre “quem são nossos sujeitos”,
o que dizem sobre suas trajetórias escolares, seus modos de vida e seus projetos de vida, o
significado da escola para eles, quais são seus medos, anseios e interesses, com base em que
parâmetros constroem suas masculinidades no cotidiano escolar e fora dele, considerando
aqueles estudantes que frequentam a escola, os que já concluíram e os que interromperam os
estudos.
Estudos sustentados por essa perspectiva (WILLIS, 1978; McROBBIE, 1978;
CARVALHO, 2001; 2003; 2004; ROSEMBERG, 2001; 2002; CASTRO, 2000), só para citar
alguns autores, têm nos dado pistas reveladoras para o entendimento desse jogo imbricado de
contradições que constroem as desigualdades educacionais.
Nesse sentido, importante dar relevo ao texto original do relatório anual de 2003 do
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), de Carol Bellamy (2003), no qual a autora
assinala o crescimento do fracasso escolar entre os meninos, até bem pouco tempo visto como
um problema particular dos países industrializados, e hoje, uma realidade no quadro de
desigualdades educacionais por gênero na América Latina e Caribe (CARVALHO, 2004, p.
12). Mais que isso, o documento do UNICEF confirma que essa “[...] desigualdade invertida de
gênero não é um fenômeno simples, mas ao contrário um tema no qual fatores relacionados
com o gênero se combinam com questões raciais e de classe” (CARVALHO, 2004, p. 12).
38
Justamente, insisto que seria (será) impossível desconsiderar aqui as desigualdades de classe e
de cor e/ou raça ao se aprofundar sobre os motivos que levam os rapazes negros a deixarem a
escola.
Diante disso, opto agora por recuar na história, mesmo que brevemente, e assinalar a
década de 1980, tempo da abertura política e redemocratização da nossa sociedade. Foi nesse
período que assistimos a uma nova forma de atuação política dos negros (e negras) brasileiros.
Novos movimentos sociais passaram a atuar ativamente, sobretudo os de caráter identitário,
trazendo outro conjunto de problematizações e novas formas de atuação e reivindicação
política. Nesse período, o Movimento Negro requisita ao Estado que a questão racial deva ser
compreendida como uma forma de opressão e exploração estruturante das relações sociais e
econômicas brasileiras, acirrada pelo capitalismo e pela desigualdade social (GOMES, 2011, p.
111).
De acordo com Nilma Gomes (2011), a população negra se encontra, na sua grande
maioria, representada de maneira precária e, por vezes, subalterna nos escalões do poder. A
partir dos anos de 1980, a trajetória política do Movimento Negro mergulhada nas múltiplas
“[...] mudanças vividas pela sociedade brasileira [...], se dá de forma articulada com as
transformações na ordem internacional, o acirramento da globalização capitalista e a construção
das lutas contra hegemônicas” (GOMES, 2011, p. 112).
Apesar dessa trajetória de luta incessante do Movimento Negro e da sociedade
organizada, as iniciativas públicas ainda são tímidas. As desigualdades acumuladas na
experiência social da população negra nos processos de escolarização têm sido denunciadas
como, por exemplo, o fenômeno do abandono escolar mais acentuado entre rapazes negros,
objeto desta pesquisa.
Desigualdade e discriminação de gênero e de raça são problemas relacionados com a
maioria da população. A respeito desse quadro cada vez mais evidente de desigualdade, o
debate público em alguma medida se fortaleceu, reforçando iniciativas no campo das políticas
de governo.
Ainda que no Brasil meninos e meninas tenham igual acesso à educação básica, em
termos de matrícula e conclusão, as meninas estão melhores que os meninos (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2009). Além disso, a diferença a favor das
meninas é ainda mais importante quando se compara taxas de distorção idade-série. Enquanto
22% dos meninos entre 10 a 14 anos não estão matriculados na série correta, apenas 15% das
meninas estão na mesma situação (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2009). No Nordeste rural, a área mais pobre do país, juntamente com o Norte
39
rural1, Harbison e Hanushek (1992, p. 70) descobriram que as meninas são mais propensas do
que os meninos a permanecerem na escola e serem aprovadas. Henriques (2002) também mostra
que, para todos os grupos raciais, as meninas tendem a se matricular em maiores proporções e
alcançar níveis mais altos de escolaridade que os meninos. Essa vantagem das meninas,
reafirmada principalmente nos últimos 20 anos, faz com que alguns pesquisadores a concebam
mais como um reflexo dos problemas específicos enfrentados pelos meninos no processo de
escolarização, do que o fato de as mulheres estarem conquistando seu lugar na sociedade por
meio da educação (ROSEMBERG, 2001; CARVALHO, 2004).
É justamente como consequência dessa revelação trazida por Rosemberg (2001) e
Carvalho (2004) que desejei enfrentar o desafio de buscar compreender os processos cotidianos
que têm levado nossos sujeitos de pesquisa a abandonarem os estudos no ensino médio, em
uma escola pública na cidade de São Félix, no Recôncavo Baiano. Além disso, procurei
aprofundar o modo como a construção social da(s) masculinidade(s) condiciona o percurso
escolar desses jovens, observando os processos de subjetivação e ouvindo o que eles dizem
sobre seus percursos e experiências. Destaca-se também reconhecer o padrão dominante de
masculinidade que a própria escola constrói e desempenha.
Analisar a juventude e seus modos de vida tem constituído uma maneira auspiciosa de
perceber as transformações que se operam em um mundo globalizado. Ora, em uma sociedade
como a brasileira, cujas classes sociais têm cores de pele (URREA; SAA, 2001, p. 1) 2, que
relação os estudantes veem entre o trabalho que fazem em sala de aula e as vidas que levam
fora dela? Nesse contexto, ainda precisaríamos interrogar qual o significado da escola no
entendimento desses jovens, qual a sua relação com ela, que lugar é esse no entendimento deles
no interior da Bahia?
Nas sociedades contemporâneas, as aprendizagens sociais fazem-se em diferentes
contextos – a família, a escola, a mídia, grupos de pares –, cada um com sua importância distinta
a cada período da vida. No caso dessa pesquisa, ressaltamos o contexto escolar. Ele possui, a
nosso ver, uma relevância na forma como instiga a construção de uma maneira específica de
1
Entre 2004 e 2013, os índices de pobreza caíram de 20% para 9% da população e de 7% para 4% no caso da
pobreza extrema. No entanto, os principais aspectos ou perfis da pobreza continuam os mesmos: ela está mais
presente no meio rural e nas regiões Norte e Nordeste do Brasil – conclusão de estudo divulgado em abril de 2016
pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), vinculado ao Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (NAÇÕES UNIDAS, 2016).
2
Para ver mais, sugiro a leitura do artigo de Fernando Urrea Giraldo e Teodorora Hurtado Saa (2001), intitulado
“La Construcción de las Etnicidades en la Sociedad Colombiana Contemporánea: un caso ejemplar para una
discusión sobre etnicidad y grupos raciales”.
40
Se assim não fosse, não se poderia falar nem de várias masculinidades nem de
transformações nas relações de gênero. O caráter móvel e contingente da relação entre
masculinidade, homens e poder torna-se claro quando analisamos etnografias que
prestam atenção ao diálogo e conflito entre masculinidades hegemônicas e
subordinadas, ou que prestam atenção quer à variabilidade individual das identidades
masculinas, quer às alterações destas num só indivíduo ao longo do ciclo de vida ou
consoante diferentes situações de interação. (ALMEIDA, 1996, p. 162).
Assim, entender como os jovens negros, estudantes do ensino médio em escola pública
no Recôncavo da Bahia, significam as relações de gênero e atribuem sentidos à(s)
masculinidade(s) e à(s) feminilidade(s) pode significar um exercício relacional com a intenção
de averiguar (des) continuidades nos significados socialmente manipulados, disponíveis e/ou
construídos pela juventude para moldar suas experiências e valores (SOUZA, 2010, p. 110).
Sem dúvida, uma nova abordagem, haja vista um reduzido número de pesquisas acadêmicas
com foco centrado na compreensão dos repertórios, significados e ideias em circulação no
imaginário de rapazes sobre masculinidade (SOUZA, 2010, p. 112), principalmente na
articulação com as questões de raça, de gênero e de desempenho escolar.
A construção de masculinidades nas escolas está longe da mera aprendizagem de
normas, como diz Connell (2000, p. 164). Seguindo a autora, essa construção é um processo
com diversos caminhos, tendo a classe e a etnicidade produzido múltiplos resultados. Ou dito
em outros termos: a escola deve ser entendida enquanto espaço de sociabilidade e de relação
entre pares, salientando o papel dos estudantes como interlocutores nos processos de construção
de masculinidades. “Trata-se de uma ordem de gênero que se relaciona com as estruturas sociais
mais amplas, mas possui uma dinâmica escolar própria e sempre mutável” (CARVALHO,
2011, p. 169). Além disso, “[...] para entender o gênero devemos ir constantemente mais além
do próprio gênero”, diz Connell (1997, p. 38, tradução nossa). Este é um importante alerta se
entendemos que é sempre no encontro entre diferentes formas de subordinação e de poder que
se faz “[...] possível compreender as posições, as escolhas e as identidades de meninos e
rapazes, moças, mulheres e meninas” (CARVALHO, 2011, p. 160).
Mesmo sabendo que a escola não é a única instituição a influenciar as masculinidades –
e também que pode não ser a mais importante delas, uma vez que se sabe que a família, a mídia,
entre outras atuam fortemente nesse processo –, a visibilidade dos resultados escolares de
jovens rapazes e moças tem tido a vantagem de trazer para o espaço escolar a masculinidade
como categoria de análise, tornando-se um problema de investigação científica. Por outro lado,
no âmbito analítico, devo reconhecer ainda o valor político e crítico dos estudos de “cultura
popular”, como refere Sherry B. Ortner, isto é, o valor dos “[...] estudos de mundos locais de
sujeitos ou grupos que, sejam dominados ou marginalizados, buscam criar vidas com
significados para eles mesmos: culturas raciais/étnicas, culturas de classes trabalhadoras,
culturas jovens e assim por diante” (ORTNER, 2007, p. 384), pensando cultura como
integrando “[...] algum tipo de resistência, algum tipo de travessura, ou, alternativamente, como
divertida e prazerosa, parte da criação de uma vida de margens das estruturas de dominação"
(ORTNER, 2007, p. 384). Saliento, ainda, a importância de considerar e estimular a
42
Por isso, e por óbvio, sobrevém a preocupação compulsória, diria, em desmontar noções
de homem enquanto identidade única, a-histórica e essencialista, para pensar masculinidade
como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações, “[...] rastreando-a como
múltipla, mutante e diferenciada no plano das configurações” (MATTOS, 2001, p. 47) de
regulações, práticas, subjetivações e representações.
3
Sobre narrativas hegemônicas, Boaventura Santos, diz: “não há uma única forma de conhecimento válido. Há
muitas formas de conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam. Não reconhecer
estas formas de conhecimento implica deslegitimar as práticas sociais que as sustentam e, nesse sentido, promover
a exclusão social dos que as promovam. O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia foi também
um epistemicídio: eliminaram povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho” (SANTOS, 2010,
p. 328).
43
Esta investigação se dedica a pôr ênfase no relato de jovens rapazes negros da periferia
da Bahia como sujeitos políticos desse campo específico. Entretanto, em um tom provocativo,
perguntamos: para quê insistir na interlocução com esses sujeitos no centro da pesquisa?
Considero que esta questão está relacionada à discussão da inclusão dos homens nos estudos de
gênero, mesmo porque gênero é uma categoria relacional. Ou seja, porque, conforme Viveros,
“[...] la reconstrucción del lugar de las mujeres como algo ‘natural’ implica también
desnaturalizar, desuniversalizar y marcar a los hombres” (VIVEROS VIGOYA, 2002, p. 36), e
porque é imprescindível tratar as relações entre homens e mulheres de maneira ampliada,
dilatada. E, ainda, porque, além disso, é preciso admitir o forte “[...] investimento social e
político para a criação/reprodução de identidades e posições de sujeito masculinas, no âmbito
da própria auto fabricação da vida social em suas contradições e ambiguidades” (PINHO,
2014a, p. 233). Ou seria o mesmo que afirmar que
Gráfico 1 – Taxa de frequência escolar líquida por sexo, segundo cor/raça Brasil - 2014
(em %)
4
Corresponde ao percentual de pessoas em determinada faixa etária que frequenta escola em relação ao total de
pessoas da mesma faixa etária.
5
Equivale ao percentual de pessoas em determinada faixa etária que frequenta escola na série adequada, conforme
adequação série-idade do sistema educacional brasileiro, em relação ao total de pessoas da mesma faixa etária e
que frequenta escola.
6
Pesquisas recentes (SCHINCARIOL; GUIMARÃES, 2017) apontam que jovens negros com idades entre 15 a
24 anos e sem estudo, ou baixa escolaridade, são as maiores vítimas de violência policial (FRANCO, 2017).
45
Gráfico 2 – Média de anos de estudo de pessoas de 15 anos ou mais segundo sexo, por
cor e raça – Brasil e Regiões NO/ND/SD (1995, 2004 e 2009)
O gráfico acima que expõe a evolução da média de anos de estudos nos anos de 1995,
2004 e 2009, em versão reduzida, apresentando a evolução de apenas três regiões8 (Sudeste,
Norte e Nordeste), mostra que a média de anos de estudos da população com 15 anos ou mais
de idade aumentou de 5,5 anos, em 1995, para 7,5 anos, em 2009, refletindo um aumento de
dois anos nesse período. Ponderando-se a população negra, identifica-se um aumento de 2,4
anos no mesmo intervalo, o que não representa ainda uma ruptura das desigualdades: em 2009,
os(as) negros(as) tinham 6,7 anos de estudos, contra 8,4 anos da população branca. Apesar dos
avanços graduais nos índices da educação no país observados no gráfico ao longo dos anos, fica
clara a persistência das desigualdades que têm, “[...] historicamente, limitado o acesso, a
progressão e as oportunidades, principalmente, da população negra, de nordestinos [...] na
educação” (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011, p. 21).
7
Elaboração: IPEA/DISOC. Em 2004, a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. A população negra é composta por pretos e pardos.
8
Das cinco regiões brasileiras, seleciono apenas Sudeste, Norte e Nordeste para este nosso caso específico. Penso
ser uma escolha acertada para evidenciar e ressaltar o contraste entre elas, Sudeste como a mais desenvolvida das
regiões, o Norte estatisticamente como a região mais negra do país, e o Nordeste, a nossa região estudada.
47
O antropólogo Waldemir Rosa (2011, p. 119) nos oferece uma síntese real quando
afirma que o racismo e o sexismo se articulam sempre e em todas as áreas no sentido de produzir
uma situação de desvantagem social para negras e negros. Assinala ainda que:
Esse mesmo gráfico (Gráfico 2), a meu ver, além de distinguir a escolarização por sexo
e cor ou raça no âmbito nacional, particularizando suas regiões, constitui um bom instrumento
para examinarmos “[...] as representações identitárias racializadas constituídas por negros e não
negros no Brasil” (ROSA, 2011, p. 125), que buscam “[...] criar a possibilidade de controle
diante de uma realidade social que é, para os negros, desvantajosa, em decorrência do ‘signo da
raça’ manifesto” (ROSA, 2011, p. 125). Na verdade, podemos aqui, muito fortemente, dizer
que a desvantagem em decorrência do “signo da raça” nada mais é do que a violência racista, o
que Jurandir Freire Costa afirma ser a
[...] pedra de toque, o núcleo central do problema racial brasileiro. Ser negro é ser
violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla
injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar,
negar e anular a presença do corpo negro (COSTA, 1983, p. 2).
O início de todo o meu interesse pelo fazer antropológico e pela pesquisa etnográfica
foi a minha Dissertação de Mestrado, um estudo etnográfico que me proporcionou mergulhar
48
desenvolveu seu Pós-Doc9. Esse projeto esteve alinhado na sua primeira versão, e que nos
inspira até hoje como mote e referência, à pesquisa coordenada pela Fundação Joaquim Nabuco
(FUNDAJ), órgão federal de pesquisa com sede em Recife, Pernambuco (Brasil). O projeto de
pesquisa “Transmissibilidade Intergeracional: Pobreza e Desigualdade Racial: visões e
percepções”, coordenado pela FUNDAJ, pretendeu explorar em seis estados do Nordeste
brasileiro, inflexões e variações das expectativas sobre a educação para pais e filhos, sob “[...]
perspectiva qualitativa, atenta aos significados socialmente produzidos” (PINHO, 2014a, p.
229), controlando-se raça/cor. O levantamento, análise e interpretação dos dados permaneceu
sob responsabilidade do antropólogo Osmundo Pinho (2011; 2012).
Mesmo articulado com o Projeto “Brincadeira de Negão”, e em virtude de um interesse
particular, surge a ideia desse projeto de tese que busca evidenciar uma outra inflexão
relacionada com as questões da defasagem escolar dos rapazes no ensino médio em relação às
moças, e a discussão /de temas como desigualdade de gênero e de raça, masculinidades, espaço
escolar, Recôncavo da Bahia, relações étnico-raciais e identidades raciais.
Como já foi exposto, essa investigação buscou verificar e interpretar as possíveis
intersecções entre gênero, raça e desempenho escolar, e tem como base entrevistas e relatos
desses jovens sobre suas experiências e trajetórias escolares vividas. Dessa forma, recorri à
observação participante, a grupos focais, rodas de conversas, oficinas, questionários e
entrevistas semiestruturadas com sujeitos, jovens homens negros entre 14 a 24 anos10 –
matriculados nos primeiros, segundos e terceiros anos do Ensino Médio –, sobre temas como
gênero, educação, escola, desigualdade e defasagem escolar, cultura popular, identidade negra,
trabalho, violência, raça, racismo, sexualidade, entre outros.
Importa ratificar uma questão de suma importância que resulta da minha associação ao
“Projeto Brincadeira de Negão”, isto é, simultaneamente realizo e participo das atividades do
9
Desenvolvido nas cidades baianas supracitadas por uma equipe interdisciplinar, “o projeto considera a urgência
de entendermos melhor os processos subjetivos, articulados como estruturas de sentimento, que conectam a
subjetividade masculina e/ou popular a padrões particulares de práticas sexuais, identidade de gênero e
violência/vitimização letal, o que além de um drama social de alta intensidade, como tem mostrado o Mapa da
Violência 2012” (PINHO, 2015), denuncia o aumento de homicídios de jovens negros e a diminuição dos
homicídios de jovens brancos entre 2002 e 2010, levando em conta os números de homicídios de jovens no país.
A Bahia é uma das unidades da Federação onde este movimento foi mais forte, ou seja, em números absolutos
tiveram 109 assassinatos de brancos contra 1659 assassinatos de negros (WAISELFISZ, 2012, p. 14).
10
Em primeiro lugar, estamos considerando a idade adequada para frequentar o ensino médio (14 anos) e a idade
considerada limite entre juventude e vida adulta – pretendemos ampliar a pesquisa para o turno noturno. Em
segundo lugar, conforme orienta Eisenstein (2005), “os limites cronológicos da adolescência são definidos pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) entre 10 e 19 anos (adolescents) e pela Organização das Nações Unidas
(ONU) entre 15 e 24 anos (youth), critério este usado principalmente para fins estatísticos e políticos”. Usa-se
também o termo jovem adulto para englobar a faixa etária de 20 a 24 anos de idade (young adults).
50
11
Iremos abreviar o Projeto “Brincadeira de Negão” a partir de agora (BN).
12
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – CNPq.
13
Todos os nomes dos interlocutores /sujeitos da pesquisa, são nomes fictícios.
14
Literalmente diz: “Aqui na Bahia todo mundo é negro”.
51
Assim como o BN, nessa pesquisa busco dialogar com parceiros de outros campos do
conhecimento, ou seja, além de procurar parceria com os professores da escola, tento articular
conexão com estudantes de outras áreas como Cinema, Artes Visuais e das Ciências Sociais da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, especificamente do campus de Cachoeira, cidade
vizinha de São Félix. A proposta era agilizar atividades diversificadas, montando, assim, um
escopo de experiências e/ou jogos pedagógicos que instiguem os alunos a expressar suas ideias,
seus projetos de vida, suas expectativas sobre a escola, sobre a vida futura, etc. Devo sublinhar
que tentei fazer a leitura do que escuto corresponder a uma interpretação subjetiva, ela própria
regulada pela relação estabelecida com uma pesquisadora de cor/raça e geração distinta, e do
sexo feminino15.
Como importante estratégia metodológica qualitativa, nós como Grupo e eu como
pesquisadora, assumimos inteira e plenamente a técnica de Grupo Focal, garantindo, assim,
uma interlocução que abrange questões subjetivas do trabalho em grupo. Sabemos que um dos
aspectos relevantes para alcançar os objetivos desse instrumento metodológico é a seleção dos
participantes16.
O Grupo Focal foi escolhido por ser um dispositivo de análise que tem no processo de
produção justamente a discussão, a colisão. Ao descrever seu mundo, sua vida, seu cotidiano-,
o entrevistado irá construindo um discurso sobre suas próprias subjetividades, suas diferenças
e divergências, contraposições e contradições (GATTI, 2005).
Este instrumento de pesquisa constitui, a meu ver, uma técnica para coleta de dados
quando se quer compreender diferenças, contradições, divergências, contraposições (GATTI,
2005). “Nesse pensamento, o método dialético ganha força, tendo em vista que a contradição é
a mola propulsora para o desvelamento do real, da apreensão do real” (ZIMMERMANN;
MARTINS, 2008, p. 12117).
As Rodas de Conversas e as Oficinas também são instrumentos metodológicos
utilizados. Embora com menos frequência do que os Grupos Focais, tanto quanto possível,
realizei algumas oficinas sobre Gênero e Sexualidade e Identidade Negra.
O compromisso,tanto do Projeto BN quanto o meu próprio, é com o “ponto de vista do
nativo”. Todavia, considero importante revelar que além de analisar o que dizem os
interlocutores por meio de atividades já clássicas da etnografia, “[...] práticas emancipatórias
de pesquisa - dialógicas, horizontais e críticas” (PINHO, 2016a, p. 2) também são utilizadas
15
Darei ênfase à questão, na última seção dessa Introdução.
16
Na seção “Vicissitudes – dilema, o arriscado e os riscos”, irei voltar ao tema do Grupo Focal colocando nossas
dificuldades.
52
com a intenção mesmo de constituir um diálogo com nossos interlocutores por um outro viés,
o de construirmos espaços para o “[...] fortalecimento da capacidade crítica dos agentes por
meios reflexivos” a partir dos seus próprios saberes” (PINHO, 2016a, p. 2). Como continua o
pesquisador: “Nesse estreito espaço devemos criar espaço para que esses meios reflexivos
também possam nos interrogar em termos de nossa ‘situação’, vis-à-vis a dos jovens” (PINHO,
2016a, p. 4).
Essas “práticas emancipatórias” têm sido até agora as nossas oficinas (pedagógicas)
pensadas como uma estratégia de intervenção, a meu ver, que propõe uma abertura de espaços
de valorização da diversidade em sala de aula, ou seja, uma metodologia de trabalho em que
todos os envolvidos participam com sua experiência, inclusive o(a) pesquisador(a), rompendo,
assim, com as “[...] hierarquias do conhecimento o [...] que se dá muitas vezes, pela detenção
de um discurso especializado que justifica a maior importância de quem profere em relação aos
outros” (CORRÊA, 2000, p. 122).
Com efeito, essa metodologia é riquíssima se considerarmos a escuta atenta ao que diz
o sujeito da pesquisa, uma vez que participando com suas experiências de vidas vividas, se
torna um agente no sentido integral da palavra – aquele que atua, pratica a ação –, e não como
recipientes a serem preenchidos. “Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos
se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o
autoritarismo do educador ‘bancário’, supera também a falsa consciência do mundo” (FREIRE,
1996, p. 76).
Já revelei anteriormente que assumo a abordagem qualitativa de natureza interpretativa
e que busquei concentrar as análises na compreensão das representações a partir do próprio
sujeito, da complexidade das situações que o enquadram, das formações discursivas e das
relações de poder subliminares, sob a forma do poder simbólico. Mesmo assim, decidimos –
meu orientador e eu – acessar também uma abordagem metodológica quantitativa.
A pesquisa quantitativa para esse estudo foi feita a partir de um “Censo Escolar”; assim,
fiz uso da quantificação para a compreensão dos fenômenos sociais, na descrição e/ou
comparação de grupos sociais – nesse caso, rapazes e moças, por exemplo; verificar se uma
determinada variável é a causa de algum efeito em outra variável, suas amplitudes particulares;
o efeito em bloco de uma série de variáveis independentes em outra que é dependente.
motivação, as gratificações por relações sociais por sentir-se sujeito e o gosto pelo
saber que mobilizam vontades, criatividades e uma permanência que colabora para
trajetórias cidadãs. Enfatiza-se que, com o presente estudo, aproxima-se do debate
teórico entre ser jovem no presente e constituir uma geração em processo de vir a ser,
considerando-se a importância da relação entre educação e projeto de vida, e entre
educação e projeto de País, bem como, dos jovens, considerações sobre a escola e o
conhecer e porque aí permanecem. (ABRAMOVAY; CASTRO; WAISELFISZ,
2015, p. 18).
Avalia-se que com o “Censo Escolar do Colégio Rômulo Galvão” – como estou
chamando esse recurso metodológico –, as desigualdades e heterogeneidades sejam bem
documentadas, quando, por exemplo, comparamos jovens rapazes entre eles e entre as jovens
moças do Ensino Médio, quadro de valores, gostos e hábitos de lazer e trabalho, trajetórias
escolares e vivências com suas percepções sobre a escola. O Censo abrangeu todos os
estudantes do turno da manhã. Importante evidenciar que se teve como eixo conhecer quem são
os jovens que frequentam a escola, identificar as suas motivações, o lugar (ou não) da escola
como produção de conhecimento no horizonte de tais motivações, do clima escolar e estímulos
externos.
Nesse “Censo Escolar” as dimensões da pesquisa salientam os seguintes aspectos: perfil
socioeconômico dos jovens e da família; história da vida escolar; percepções sobre a escola;
relações sociais na escola (alunos, professores, direção); imagem de seu futuro e relação desse
futuro com sua escolarização; por que permanecer ou sair da escola; relações entre estudo e
trabalho; valores, gostos e hábitos; participação: tipologia, motivação e relacionamentos.
Outros instrumentos irão fazer parte do escopo dos dados como a quantificação da
juventude na cidade de São Félix, na faixa etária colocada como população alvo, em 2016,
buscando desenvolver uma análise comparativa com os anos de 2015, 2016 e 2017, e suas
estimativas a partir de dados do INEP – IBGE. Bem, São Félix (Bahia), onde se inscreve esse
município.
54
1.3 O lugar de onde falo e a escrita do texto ou do familiar ao exótico, do exótico ao familiar
Nas atividades de campo, nos Grupos Focais, nas Rodas de Conversa, enfim, nesses
encontros, por vezes, os estudantes queriam saber também quem sou, além de pesquisadora.
Ora, considerando que o reconhecimento do “outro” passa pelo reconhecimento de si mesmo,
por uma autoanálise por parte da pesquisadora, é necessário e convém que essa questão passe
a constar da própria história da pesquisa. Importante salientar que a presença do pesquisador
tem que ser justificada, como afirma Foote Whyte, especificamente no “Anexo A”, nº 6, sobre
o “Treino em Observação Participante”: “Quando comecei a andar em Cornerville, descobri
que precisava dar uma explicação para a minha presença ali e para o meu estudo” (FOOTE-
WHYTE, 2005, p. 301).
Assim, importa reiterar que a observação participante supõe uma interação
pesquisador/pesquisado, e essa interação deve começar com uma explicação, a explicação da
minha presença. O que acontece é que o pesquisador, por vezes, desconhece sua própria
imagem junto ao grupo pesquisado. É verdade que assim fui me conhecendo e reconhecendo
através desse contato. Foi isso que aconteceu comigo no dinamismo do campo. Descubro minha
própria imagem junto ao grupo pesquisado, principalmente nos primeiros meses em campo,
percebia que os “olhares” curiosos dos meus interlocutores recaíam sobre mim de forma
intensa, o que até hoje acontece, porém de forma menos acentuada. Meus passos durante o
trabalho de campo, de certa forma, são conhecidos e muitas vezes observados pelos
professores(as), funcionários(as), alunos(as). Sinto-me como uma observadora sendo
observada.
Observe-se aqui a relevância da questão biográfica no “fazer etnográfico”, ou como
assinala Peirano,
[...] hoje sabemos que a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia do
pesquisador, das opções, das opções teóricas presentes na disciplina, no contexto
sócio histórico mais amplo e, não menos das imprevisíveis situações que se
configuram entre pesquisador e pesquisado no dia a dia da pesquisa (PEIRANO, 1995,
p. 137).
À parte o fato de que a distância necessária para produzir o estranhamento pode ser
geográfica, de classe, de etnia ou outra, mas será sempre psíquica, os conceitos nativos
requerem, necessariamente, a outra ponta da corrente, aquela que liga o antropólogo
56
Nas palavras de Fabian, “[...] o estudo de outras culturas é possível por haver
intersubjetividade onde quer que seres humanos estejam juntos” (FABIAN, 2006, p. 7),
intersubjetividade é entendida pelo autor como algo que deve ser criada na interação. Se é
verdade que a antropologia está baseada na etnografia, na investigação empírica, e esta última
apoia-se, de modo capital, para além da observação e coleta de dados, isto é, na interação
comunicativa, encontramos no compartilhamento do tempo, e tão somente nele, a condição da
intersubjetividade, como aponta Fabian, ou, da mesma forma,
Mas para chegar até esse entendimento, tive que percorrer um período de tensão interna,
de muita atenção com as minhas próprias atitudes. Acho que a tensão se estabeleceu porque sei
que nosso conhecimento é parcial, limitado. O que estou chamando de “estado de tensão” tem
a ver com o meu conhecimento limitado, parcial das coisas que, de algum modo, teria de
construir um modelo de pesquisa – entendi que não existe um caminho/modelo único a seguir.
Poderia dizer que o que determinou esse caminho foi o fato de saber onde eu queria chegar.
Foi necessário modificar a visão, a percepção, o olfato, a audição, discipliná-los, dando-
lhes “[...] um sentido todo particular, de natureza epistêmica, uma vez que é com tais atos que
logramos construir nosso saber”, como ressalta Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 18). A
partir daí, depois de disciplinar meus sentidos, percebo – “e não sem susto” –, como evidencia
DaMatta (1978, p. 24), que “[...] estou entre dois fogos: a minha cultura e uma outra, o meu
mundo e um outro” (DAMATTA, 1978, p. 24), “entre” porque estamos, como etnógrafos,
relacionados com o “outro” na busca de interpretação e compreensão, tradução daquela cultura,
“em sua verdadeira interioridade” (OLIVEIRA, 2006, p. 34).
A respeito disso, o diário de campo não me faz esquecer:
57
(Sorri achando ‘muita graça’, disse que não, que eu era de longe, mas nem tanto).
- “Do Brasil”? Tentou adivinhar o colega.
- “Sim”, respondi, “a uns 3000 km de distância de Salvador”.
Entreolharam-se. Desafiei, então:
- “Vamos por região: sul” ...
Nesse momento fui interrompida, pois imediatamente falaram:
- “Rio Grande do Sul”.
E um deles exclama:
- “óia” ... (Informação verbal)17.
17
Trecho extraído do Diário de Campo – manhã do dia 30 de março de 2016. CERG.
59
Ou seja, isso acontece de muitas outras formas, não somente quando eu falo, a distinção
está também ao chegar ao bar para comprar qualquer coisa, sou atendida instantaneamente, não
interessando quantos são os que aguardam ali. E isso também aconteceu no cartório, na lan
house, em qualquer estabelecimento. Não só em Cachoeira, mas em São Félix, em Salvador,
onde quer que eu vá. Repito, “numa sociedade como a brasileira, cuja a cor de pele indica certo
status social”, já está dado que sou uma pessoa abastada, bem-sucedida, que deve ter um
atendimento especial e distinto dos demais, e por ter a cor da pele branca a “indicação” é que
seja a “primeira da fila”, possa passar na frente dos demais, até dos mais velhos. E isso me
afeta, me entristece profundamente.
Bem, o que não se pode negar, depois desses relatos – e também da realidade-racista-
cotidiana-brasileira-conhecida –, que a tendência epistemológica do senso comum – e a
científica –, é de atribuir uma “natureza” diferente aos diferentes grupos sociais.
Acompanhando essa perspectiva essencialista, se consegue pensar que o racismo faz parte dessa
mesma lógica que constrói hierarquias que infra humanizam os grupos de “baixo status”
(LIMA; VALA, 2005, p. 144).
Nosso Grupo “Brincadeira de Negão”, como já me referi, conta com a participação de
pesquisadores e pesquisadoras negros e negras que atuam como militantes em contextos
específicos, ou atuando nos movimentos negros, ou mesmo no cotidiano. Solange é uma das
pesquisadoras do grupo e professora em escola pública estadual na cidade de Maragogipe, no
Recôncavo Baiano. Historiadora, formada pela Universidade Federal do Recôncavo, da Bahia
(UFRB), ela tem nos relatado, por ocasião dos nossos encontros semanais, situações de
preconceito e racismo dentro da unidade de ensino que atua.
Em uma dessas reuniões, falávamos sobre a relação dos estudantes do Ensino Médio
com o ENEM, ou melhor, as dificuldades que eles têm de se inscreverem nesse exame. Solange
fala da experiência com seus alunos, e diz que, em geral, os estudantes acham que o lugar deles
não é na Universidade, que eles e elas não se veem nesse lugar, muitas vezes “estranho”, porque
desconhecido. Depois ela passa a revelar, em tom de desabafo, sobre a sua posição como
professora de História. Na sua maioria, os estudantes não a veem como uma professora, não
demonstram respeitá-la, levá-la a sério. Preocupada com isso, resolveu “trocar o visual” se
vestindo com saias e vestidos longos, trocou as sapatilhas por sandálias de salto alto, colocou
megahair, tudo isso em prol de um maior reconhecimento, também junto ao grupo de
professores e professoras. Afirma que essa foi uma estratégia pensada para que os rapazes e
moças, a legitimassem e a autorizassem como autoridade docente. Disse ainda que os
professores e professoras dessa escola, na sua maioria negros, em geral, preferem se distanciar
60
dos estudantes, não estão interessados em reconhecer o fato de que o trabalho pedagógico é
uma atividade interacional ou relacional, trocam a empatia pela indiferença, permanecem
alheios aos jovens quanto às suas necessidades, preferem falar do seu status de docente, dos
seus bens materiais.
Todo esse relato me estarreceu, e me faz voltar àquele quadro que desenhei no início da
seção: o da distinção, do “atendimento preferencial”, da cor da pele e “status social”. Pois o
“salto alto”, há muito deixei de lado, decidi retirá-lo do meu cotidiano por ter compreendido
que a minha cor já é um destaque, já sou valorizada e valorada por característica do tom de pele.
Entretanto e em contrapartida, Solange procura usá-lo para ser reconhecida. No meu caso, não
importa se eu vestir bermuda, camiseta, sandália de couro, aqui “a cor da pele é o destaque, é a
distinção”. Para Solange, importa pela mesma razão.
Aponto essa situação como análise interseccional, uma vez que deve ser lida como
matrizes da nossa própria desigualdade social pensada em todas as suas dimensões, e que se
refere sim “[...] uma história de opressão, desumanização e opróbio a que estiveram sujeitos os
povos conquistados” (GUIMARÃES, 2011, p. 266).
Por fim, a minha interação é a própria condição da pesquisa, não se trata de um encontro
fortuito, e o texto etnográfico é a própria representação do campo e das relações que nele se
estabelecem, uma via “[...] para a compreensão dos valores do outro, considerando o fato de
que estes valores são interpretados por alguém que também não se despe de seus valores e
subjetividades” (SILVA, 2006, p. 183). Minha relação com o campo e com os estudantes –
sujeitos da pesquisa – se prolongou no fluxo do tempo – desde agosto de 2013 –, nesse contexto
escolar específico que é o Colégio Estadual Rômulo Galvão em São Félix, com os estudantes
jovens prioritariamente negros, rapazes negros, com idades entre 14 a 24 anos, sujeitos situados
nesse tempo histórico, mergulhados “em suas formas de vida, entes ontologicamente fundados
sobre a própria cultura e os próprios saberes” (MALIGHETTI, 2004, p. 113).
Uma relação de quase três anos de participação na rotina do grupo estudado, de
observação participante, de observação direta quando das atividades selecionadas – Grupos
Focais, Rodas de Conversa –, enfim, mergulhada na pesquisa etnográfica, no campo dos estudos
da alteridade, nesta aprendizagem de olhar o outro para conhecê-lo. Estamos o tempo todo
alinhando o conhecimento científico sobre a situação pesquisada, sobre as dinâmicas sociais
investigadas. Nesse movimento, vamos tentando “[...] desvendar novas questões, trazer novas
dúvidas, ampliar o leque de possibilidades interpretativas e ao mesmo tempo reavaliar a teoria
acumulada” (PEIRANO, 2008, p. 8).
61
Para descobrir quem as pessoas pensam que são, o que pensam que estão fazendo e
com que finalidade pensam que o estão fazendo, é necessário adquirir uma
familiaridade operacional com os conjuntos de significado no meio dos quais elas
levam as suas vidas. Isso […] requer aprender como viver com eles, sendo de outro
lugar e tendo um mundo próprio diferente (GEERTZ, 2001, p. 26).
As nossas próprias atividades em campo seduzem os estudantes, seja pela abertura que
proporcionamos para o diálogo, seja pela forma como apresentamos nossas propostas para
investigação. Percebemos essa aproximação quando vimos que estávamos abrindo uma “lista
de espera” daqueles(as) que ainda não puderam participar das atividades do Projeto. Outro tipo
de aproximação foi quando vimos, através da janela da sala de aula na qual estávamos
realizando o GF, que muitos(as) alunos(as) espiavam, tentando imaginar o que acontecia lá
dentro, ávidos para fazer parte do grupo.
A tese está organizada em quatro capítulos. O primeiro, “Olhe a escola do branco pra
você vê, olhe os professores da gente: a desigualdade entre homens se aprende na escola”,
procura fazer da questão racial a categoria central desse trabalho, narrando, em especial, as
experiências dos sujeitos da investigação, rapazes estudantes e ex-estudantes do CERG,
construídas a partir das nossas atividades em campo ao longo da investigação, e das entrevistas
semiestruturadas, respectivamente. Antes das narrativas e suas análises, entretanto, desenvolvo,
mesmo que muito brevemente, os processos que produziram (e produzem) na região da América
Latina enquanto território sob domínio europeu, em destaque as relações sociais e de poder que
erguem a formação de sistema-mundo moderno-colonial e que se estruturam em torno de dois
eixos fundamentais: a classificação da população mundial a partir da ideia de raça e a
articulação de todas as formas de controle do trabalho (QUIJANO, 2005).
A ênfase que dei aqui e antes, com os trabalhos de investigação empíricos ou não, à
questão racial e na hierarquia racial – ela como geradora de contradições sociais que, articuladas
às relações de classe nos planos do conhecimento e da ação prática –, se apresenta como uma
perspectiva promissora para se compreender e se transformar o sistema educacional em
62
possível análise do espaço escolar como um constructo cultural que expressa e reflete, para
além de sua materialidade, determinados discursos, dotados de significados, disseminando uma
importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do chamado currículo oculto, ao
mesmo tempo em que impõem suas leis como organizações disciplinares, como nos revela
Escolano (2000). O espaço escolar como um mediador cultural em relação à gênese e formação
dos primeiros esquemas cognitivos e motores, uma fonte de experiência e de aprendizagem
(FRAGO; ESCOLANO, 1998). Quer dizer, a escola, assim como recebe, produz e ressignifica
culturas, produz identidades, subjetividades que são levadas para fora de seus muros em uma
dinâmica constante das ações e relações sociais, motor de seu funcionamento. Meninos e
meninas, rapazes e moças, ali se envolvem ativamente, reagem, recusam, criam estratégias e
também assumem os conceitos e atitudes imbricados nesse contexto social e cultural em que se
encontram incorporados, se produzem e reproduzem, e devem ser analisados dentro desse
contexto histórico e territorial no qual se constituem.
Por fim, no último capítulo, a partir de um acontecimento trágico, procuro interpretar o
sofrimento e a violência dentro das dinâmicas sociais e dos parâmetros políticos e econômicos
que o constroem, reconhecem e nomeiam as relações sociais e de poder. Nossa análise adquire
aqui uma maior cobertura crítica a partir das interconexões e convergências possíveis entre
subjetividades dos nossos interlocutores e as estruturas de sentimento que se articulam.
Nas sociedades contemporâneas, a violência e o sofrimento determinados podem ser
interpretados pelos sujeitos como um preço a pagar por vivenciarem sentimentos de pertença
identitária e social que funcionaria simultaneamente como instrumento social para enfrentar as
frustrações, e como instrumento de poder para explicar e justificar o sofrimento, atribuindo-lhe
uma alegada utilidade social e pedagógica. Dito com outras palavras, “[...] como pensar a
diferença e a vida, o semelhante e o dessemelhante, o excedente e o em comum”? (MBEMBE,
2018, p. 23). A indagação do filósofo camaronês conecta-se justamente à experiência negra,
como se guardasse na consciência contemporânea o ponto de um limite fugaz, um tipo de
espelho móvel. Logo em seguida, transcrevo e analiso a experiência e a história de vida
promissora de um jovem, ex-aluno. Nessa análise, os processos de subjetivação (sujeição) –
definidos pelo poder –, podem, de alguma maneira, ser considerados como condição de
possibilidade. O sujeito preso a uma identidade constitui uma forma de poder que se aplica à
vida cotidiana. Quando esse sujeito reconhece essa identidade como sua, essa lhe impõe uma
lei de verdade.
Foi dessa forma que me direcionei para a seção que reconhece o imperativo da
descolonização dos currículos e a perspectiva cultural como fator importante na trajetória
64
escolar que sabemos que não se circunscreve apenas à escola, mas que a considera fundamental
como elemento convergente de representações e significados que se cruzam diversamente em
cada grupo, ampliando as relações que estabelecemos nesse espaço.
As questões que envolvem as relações étnico-raciais sempre foram tratadas pela escola,
com a intenção de ignorar, de uma forma ou de outra, a reflexão e o debate, ocultando as
maiorias silenciadas, e hierarquizando os sujeitos e grupos de acordo com interesses alheios aos
principais envolvidos. O “ritual pedagógico do silêncio”, como desvenda Gonçalves (1987),
reproduz na escola a marginalização e a exclusão inevitável dos estudantes negros, por
intermédio da invisibilidade em todo o processo de escolarização. Não bastasse o tabu que se
forma em torno de toda a cultura negra. Óbvio que a população negra percebe que o tratamento
não é igual para todos e as situações de racismo, discriminação e preconceito são vivenciadas
e assimiladas de diferentes formas. O silêncio, em relação ao tema, dificulta aos professores
uma discussão embasada e transparente.
De acordo com Moreno (2000), as intervenções dos professores, e de muitas famílias,
geralmente são no sentido de não “aumentar o problema”, não “criar caso” ou aguardar justiça
divina, mesmo que reconheçam certas discriminações. Não significa que essa reação
contemplativa, ou esquiva, satisfaça a escola, mas faltam parâmetros para outro tipo de reação.
Por exemplo, o silêncio diante de certas situações, a aceitação de apelidos e brincadeiras e a
ocultação desses desconfortos são parte de um “aprendizado” constante dos negros na escola.
O desafio que se impõe é saber como descolonizar o pensamento e a produção de conhecimento.
Sandra Harding (2000) propõe uma provocação quando se refere à crença de que por
trás da democratização do saber vem o diálogo entre diferentes conhecimentos. Portanto, faz
sentido qualificar os contextos históricos e culturais de produção de conhecimento, colocando
de lado hierarquias de capacidade de produção de conhecimento, criados permanentemente
pelas grandes instituições e universidades do Norte global.
Na seção das recomendações, e com base no ponto de vista dos jovens interlocutores,
avalio que as reformas institucionais têm ignorado tradicionalmente as múltiplas e diversas
respostas dos seus receptores. O sistema educacional constrói trocas nas estruturas de
mensagens do sistema com o desejo formal de se adaptar à diversidade dos sujeitos, porém os
rigores ou as inflexibilidades sistêmicas deixam pouco espaço para a aplicação de ajustes dos
dispositivos.
Todos sabem que a educação transforma vidas e que, sem educação, a inclusão social
torna-se extraordinariamente difícil. Que a escola constitui um investimento futuro, é algo
conhecido e verificado. Todavia, também se sabe que nem todos os indivíduos têm as mesmas
65
Como qualquer instituição social, a escola deve ser pensada como sendo ativamente
constituída (APPLE, 1989) sobre os fundamentos das múltiplas contradições e hierarquias que,
por sua vez, “[...] informam as relações sociais, de classe, gênero e raça” (ROSEMBERG, 1991,
p. 26).
O objetivo desse capítulo é, justamente, apresentar a questão racial como categoria
central desse trabalho, narrando, em especial, as experiências dos sujeitos da investigação –
rapazes estudantes e ex-estudantes do CERG – construídas a partir das nossas atividades ao
longo da investigação. Antes de proceder propriamente às narrativas e suas análises, entretanto,
não posso deixar de desenvolver, mesmo que muito brevemente, os processos que produziram
(e produzem) a região da América Latina enquanto território sob domínio europeu, em destaque
as relações sociais e de poder que erguem a formação de sistema-mundo moderno-colonial
(QUIJANO, 2005).
Desde a conquista da nossa América, trabalho, raça e gênero se articulam como os três
eixos principais de classificação social do novo padrão mundial de poder, diz Quijano (2005).
As diferenças fenotípicas, como, por exemplo, a cor da pele, a forma e cor do cabelo, dos olhos,
do nariz, começam a ser utilizadas no processo de colonização como forma de diferenciar
conquistadores e conquistados, europeus e não-europeus, estabelecendo, assim, uma relação de
superioridade e inferioridade pautada nas distintas estruturas biológicas de cada grupo social e
criando supostas gradações de seres humanos.
No contexto da América Latina, o espaço político consentido aos problemas de raça e
racismo foi relevante no momento de configurar “[...] as novas nações que tiveram de lidar de
distintas formas com o dilema colocado pela composição racial de suas populações –
visivelmente mescladas – e o desejo e a vontade de acessar as vantagens” (VIVEROS
VIGOYA; ESPINEL, 2014, p. 14) do avanço e da civilização inerentes às nações modernas.
“Raza, etnia y nación en Mariátegui”, é uma publicação na qual o sociólogo Aníbal
Quijano (1993) explora com bastante exatidão o tema da raça. Define-a como uma ideia, uma
construção ideológica, um fato social total, um acontecimento, uma invenção sem a qual a
modernidade não poderia ter existido, um instrumento de dominação social, introduzido há mais
de 500 (quinhentos) anos e que permanece até hoje “virtualmente intocado” (WALSH, 2010,
p. 98).
68
Walsh (2010), no seu artigo “Raza, mestizaje y poder: horizontes coloniales passados y
presentes”, afirma que as dissidências e conflitos permanecem rondando a noção de raça,
portanto, “[...] seu aniquilamento não repousa na política, nas boas intenções da inclusão, da
eliminação dos movimentos indígenas” (WALSH, 2010, p. 121) e afrodescendentes como
atores políticos, menos ainda nos argumentos de que raça e racialização não mais existem. O
caminho necessariamente tem que apontar para o decolonial e a descolonização 18, concepções
que abrangem todos nós, como escreve Fanon: “La descolonización que se propone cambiar el
orden del mundo es […] un programa de desorden absoluto […] un proceso histórico […]
aportado por nuevos hombres, un nuevo lenguaje, una nueva humanidad” (FANON, 1961, p.
30-31).
Algo como o que propõe Mbembe, que será necessário, para a construção de um mundo
que nos é comum, “[...] restituir àqueles e àquelas que foram submetidos a processos de
abstração e de coisificação na história a parte da humanidade que lhes foi roubada” (MBEMBE,
2018, p. 314). “Um mundo livre do fardo da raça”, segue o autor, livre do desejo de vingança e
também do ressentimento que qualquer circunstância de racismo produz (MBEMBE, 2018, p.
315).
Na epígrafe, tem-se uma descrição tão poética quanto real do lugar da nossa etnografia.
Além do que, e por isso mesmo, seria fácil se perder por esses vários caminhos que essa história
18
Catherine Walsh (2010) explica que suprimir o “s” e nomear “decolonial” não é possibilitar um anglicismo, ao
contrário, é assinalar uma diferença com o significado em castelhano do “des”, assim como do português. Isto é,
não se pretende meramente desmontar ou desfazer. Não se pretende passar de uma situação colonial não colonial,
“como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan en existir”. A ideia é marcar e provocar, como diz a
autora, “un posicionamiento –una postura y actitud continua– de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo
decolonial denota un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de
exterioridad y construcciones alternativas” (WALSH, 2010, p. 121).
69
quer e inspira. Assim, antes que eu me perca, vamos fazer uma visita a esse “martirizado
coração moderno da América Escravista”.
Descrever e delimitar o campo do trabalho etnográfico, expressões usadas com
frequência no jargão antropológico, irão determinar o valor singular que esse trabalho de campo
assume na constituição e no processo dessa investigação. Em geral, como sabemos das etapas
estabelecidas oficialmente pela academia, o trabalho de campo aparece como o período
interposto entre a proposta do projeto e a interpretação dos dados apresentados no texto.
Todavia, essa concepção, por vezes, não se faz tão linearmente, como não foi nesse caso.
O meu envolvimento com o campo já existia antes da proposição do projeto de tese, por
ocasião da minha inserção no Projeto “Brincadeira de Negão”, supracitado. Desembarquei,
assim, nessa “aldeia”, bem antes de constituir esse, o campo de trabalho dessa investigação. E
fui desbravando-o melhor com o passar do tempo. A cidade de São Félix, cidade-irmã de
Cachoeira, está ligada (ou separada) pela Ponte Dom Pedro II, e situada no Recôncavo Baiano.
O termo Recôncavo é frequentemente usado para se referir às cidades próximas à Baía
de Todos os Santos, limitando-se ao interior, embora faça parte, oficialmente, toda a região
metropolitana, incluindo a capital Salvador (Bahia). As cidades próximas à referida Baía de
Todos os Santos com maior representatividade histórica e econômica são as seguintes: Santo
Antônio de Jesus, Santo Amaro, Amargosa, Nazaré, Salinas da Margarida, Cachoeira,
Jaguaripe, São Félix, Castro Alves, Maragogipe e Cruz das Almas (RECÔNCAVO..., 2019).
19
Muitas vezes os alunos chegam ao colégio, e recebem a notícia que não terão aulas.
20
Será utilizado como sigla de Colégio Estadual Rômulo Galvão. (CERG).
21
A duração obrigatória do Ensino Fundamental foi ampliada de oito para nove anos pelo - Projeto de Lei nº
3.675/04 (TEIXEIRA, 2004), transformado na Lei Ordinária 11274/2006 (BRASIL, 2006). Portanto, a partir de
2004, passa a abranger a Classe alfabetizadora (fase anterior à 1ª série, com matrícula obrigatória aos seis anos)
que, até então, não fazia parte do ciclo obrigatório (a alfabetização na rede pública e em parte da rede particular
era realizada normalmente na 1ª série).
22
Distrito do Município de São Félix localizado na zona rural. Júlio C. Araújo, pesquisador, membro do BN,
defende sua pesquisa de mestrado, ainda não publicada, a partir de estudo etnográfico realizado com rapazes,
jovens homens negros do Anexo do CERG localizado nesse distrito, que atende alunos primordialmente da zona
rural.
72
Agora escolho uma forma, dentre muitas outras possíveis, de descrever a escola por
dentro.
Na segunda-feira não houve aula, nem na terça. Na quarta-feira, ao chegar à escola, as
aulas já estavam normalizadas. Um professor, ao comentar a situação da falta da merenda, disse:
“Sem merenda, sem aula”. Por vezes, falta água também, e aí as coisas complicam mais: sem
água, sem merenda, sem aula.
A prática e a rotina da alimentação/merenda/janta na escola são direitos de todos os
alunos matriculados nas escolas públicas. Para os estudantes com condições socioeconômicas
menos favoráveis, das classes populares, a alimentação escolar é primordial, pois muitas vezes
ela é sua fundamental ou única refeição do dia. Um estudo elaborado pela Universidade
Estadual de Campinas revelou que a alimentação escolar é considerada a principal refeição do
dia para 56% dos alunos da Região Norte e para 50% dos alunos da Região Nordeste
(STURION et al. 2005). É o que acontece com a nossa escola, e porque os estudantes sabem
disso – que é um direito de todos e um dever do Estado –, eles têm ido às ruas, foram em 2014
como relatei anteriormente, e voltaram em 2016, agora no mês de agosto. Nessa última, não
havia merenda igualmente, mas o motivo foi a greve dos funcionários que faziam a merenda –
funcionários da cozinha. Estavam sem receber o salário há mais ou menos oito meses. Esse
movimento dos estudantes, diferentemente do anterior, teve a presença dos professores.
Munidos de cartazes, apitos, e gritando frases e palavras de ordem como “Queremos estudar”,
“Queremos uma solução”.
a) Diário de campo – agosto/2016:
● Logo na entrada, meninas e meninos já se concentravam carregando bexigas pretas
– balões –, outros as enchiam. Caminhavam de um lado para o outro. Também
percebi o som de instrumentos da banda da escola. No pátio, alguns meninos faziam
o aquecimento com esses instrumentos: dois taróis, um bombo e um tambor. Entrei,
então, na sala dos professores onde lia-se uma mensagem para ser veiculada,
segundo os professores ali presentes, no serviço de alto-falante de motos. A
mensagem avisava aos pais da Reunião de amanhã – reunião para comunicar a
situação e decidir, com eles, o que fazer. Era preciso coordenar ações e decidir em
conjunto com os pais porque a situação envolvia, por óbvio, toda a comunidade.
Comunicar pela rádio. Quem iria pagar o serviço de alto falantes: “Topam uma
vaquinha?”.
74
privilegiado para a juventude, tendo em vista as possibilidades de uso – em tese, mas observo
que não existe um cuidado ou mesmo a manutenção necessária desse ambiente.
Pesquisas realizadas em âmbito nacional sobre desigualdades educacionais têm
indicado, além de outros pontos, a infraestrutura como um dos fatores que influenciam no
aprendizado dos alunos. Aspectos como a quantidade de estudantes nas turmas, estado de
conservação dos prédios e instalações adequadas, recursos didáticos são essenciais dentro de
uma escola, diz Soares (2002). Abramovay e Castro (2006), em seus estudos financiados pela
UNESCO, sobre a situação das escolas públicas e privadas brasileiras nas capitais das cinco
regiões do País, demonstram que as escolas públicas apresentam maiores problemas de
infraestrutura do que as escolas particulares. Pesquisas de Hasenbalg (1987) e Rosemberg
(1987) também comprovam que, mesmo em escolas públicas, o alunado negro sempre aparece
em maior proporção nas unidades escolares mais precárias.
Situações de racismo e discriminação marcam os dias de trabalho de campo. Ouve-se
dos interlocutores relatos que trazem à tona com extrema clareza e perspicácia experiências nas
quais a diferença é reconhecida, mas somente na medida em que implica desigualdade.
Realizamos um Grupo Focal sobre igualdade de oportunidades entre brancos e negros.
Reunimos uma turma de 2º ano, composta por rapazes e moças que se auto classificaram como
negros (pretos ou pardos) na sua grande maioria, com idades variando entre 15 a 22 anos.
a) Diário de Campo – manhã do dia 20 de outubro de 2016:
● Nem toda a turma participou da atividade. É preciso dizer, antes de começar a
descrever e transcrever esse Grupo Focal, que ao chegar ao Colégio, 7h50min,
sentada em um dos bancos de concreto em frente à Sala da Vice Direção, resolvi
esperar alguns minutos antes de saber se poderíamos realizar alguma atividade, ou
seja, se alguma turma estava sem aula, por falta de professor(a), ou por algum outro
motivo. Esperei. Chegaram muitos alunos junto comigo. Passados alguns minutos,
então, decidi me dirigir à sala da vice direção e falar com o vice-diretor. Sentado à
frente do computador, pedi licença e entrei. Perguntei sobre a existência de alguma
turma sem atividade, ou sem professor(a). Sua resposta me pareceu apressada
demais, qualquer coisa que se responde antes mesmo de pensar ou mesmo de
registrar a pergunta: “- Não, hoje tá tudo completo, não tem ninguém sem aula!”
● Como havia visto muitos alunos nos corredores – o que não quer dizer que eles
estariam sem aula, isso seria somente uma das alternativas: ou estão sem aula, ou
estão fora da sala de aula, circulando, fui conferir o horário de quinta-feira (hoje).
77
● Sim, as coisas me pareciam um pouco diferentes. A planilha dizia que havia horários
sem professor – a Professora Marília está de Licença. Dois horários “livres” na
13M2. Em algum outro lugar já registrei que vamos a campo realizar nossas
atividades com mais de uma “carta na manga”. Ontem mesmo (quarta, dia 19/10), a
professora Elsa atendia três turmas simultaneamente para “adiantar” os horários,
sendo que assim, os alunos ficam liberados.
● O que importa é que estaria disponível para nós do Projeto Brincadeira de Negão
um horário antes da merenda – das 9h10min às 10h00min.
● Fomos para a sala (Joaci – colega pesquisador – e eu). Montamos o equipamento. A
nossa atividade previa apresentar um vídeo sobre o tema “Igualdade de
oportunidades entre brancos e negros”. Nesse vídeo, o apresentador revela que a
maior parte dos trabalhadores desempregados no Brasil são negros. Depois disso,
apresenta uma enquete nas ruas de São Paulo, onde ele mesmo mostra a alguns
pedestres que passam por ele fotos de pessoas que se diferenciam pela cor. E aí pede
que a pessoa escolha entre as dez fotos, cinco pessoas que contrataria para uma vaga
de emprego. Diferentemente do que acontece na realidade, as pessoas escolhem
tanto pessoas negras como pessoas brancas. Nenhum critério utilizado foi a cor,
foram outros, como simpatia, por exemplo.
● Comecei o GF propondo uma pergunta: “será que a população negra tem menos
oportunidade de emprego do que as pessoas brancas?” Imediatamente um estudante
disse:
Carregar feira, uma expressão que não conhecia bem o que significava. Mas não
interrompi as narrativas que estavam ali acontecendo. Consegui perceber que os rapazes
estavam se referindo que, entre os muitos trabalhos, ou melhor, bicos24 que realizam, esse é um
23
Trecho extraído do Diário de Campo – manhã do dia 20 de outubro de 2016. CERG.
24
Trabalho temporário, pequeno serviço.
78
Este es el uso de «raza» como patrón de poder conflictivo y permanente que desde la
colonia hasta hoy ha mantenido una escala de identidades sociales con el blanco
masculino en la cima y los indios y negros en los peldaños finales, éstas últimas como
identidades homogéneas y negativas. Este patrón de poder ha servido los intereses
tanto de la dominación social como de la explotación del trabajo bajo la hegemonía
del capital; por tanto, «la “racialización” y la “capitalistización” de las relaciones
sociales de tal nuevo patrón de poder, y el “eurocentramiento” de su control, están en
la base misma de nuestros actuales problemas de identidad», como país, «nación» y
Estado (WALSH, 2008, p. 137).
O grande desafio do futuro para a escola seria garantir que a diversidade conhecida e
reconhecida se transforme em uma vantagem pedagógica (FERREIRO, 2002, p. 88).
Reconhecer as diferenças étnicas e culturais, os diferentes grupos socioculturais tem sido um
grande desafio, principalmente para os movimentos sociais. Os temas expostos são múltiplos,
desde injustiças, desigualdades e discriminações, até protestos contra a falta de igualdade de
acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. A homogeneidade, o comum, o
neutro, o normativo, a uniformidade produzida a partir, sobretudo, da matriz político-social e
epistemológica da modernidade, exalta uma cultura escolar dominante, em que as diferenças,
portanto, são ignoradas, ou apontadas como um “problema” a solucionar. Assim:
São múltiplos os questionamentos que já se colocam nesse capítulo inicial, por que os
estudantes – jovens homens negros do Ensino Médio do Colégio Rômulo Galvão abandonam a
escola em maior número do que as moças, ou vão sendo progressivamente “abandonados” por
ela? Ou, mais especificamente, de que maneira o racismo, as relações de poder e a
discriminação racial estão presentes e/ou acontecem na escola – e no caso desse contexto, no
interior da Bahia? Como nos sugere Osmundo Pinho (2015), importa buscar compreender os
modos de subjetivação como uma construção de novos processos em uma perspectiva étnico-
política, de observá-los como “[...] processos de subjetivação já como efeitos das táticas do
poder, que produzem o corpo, sua submissão e repartição em condições de colonialidade de
poder” (PINHO, 2015, p. 5).
Nessa seção pretende-se analisar as relações raciais na escola a partir de relatos
etnográficos coletados tanto no dia da Feira do Conhecimento do CERG de 2016, como as
experiências de vida de um dos nossos interlocutores, para compreender sistemas de
82
A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na
construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no
interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode
estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las. Sendo entendida
como um processo contínuo, construído pelos negros e negras nos vários espaços –
institucionais ou não – nos quais circulam, podemos concluir que a identidade negra
também é construída durante a trajetória escolar desses sujeitos (GOMES, 2002, p.
39).
da dança do hip-hop aos quadros de Portinari representados cenicamente etc. Cor/raça, por
óbvio e contrariamente, permeia todos os dias o cotidiano da escola. Para tanto, nos
transportamos no tempo através da descrição para descobrir o que aconteceu na Feira do
Conhecimento do CERG, mais precisamente no dia 14 de outubro de 2016, o que nos permitirá
que nos situemos um pouco mais nessa realidade escolar.
Hoje (14 de outubro) é o dia destinado à Feira do Conhecimento do colégio. O tema
eleito pelos professores foi Jorge Amado. Partindo do objetivo geral da proposta do Projeto de
Leitura (Quem lê, viaja) da escola, esta feira percorreu a bibliografia de Jorge Amado. Cada
turma escolheria um ou dois livros deste escritor como “Dona Flor e seus dois maridos”,
“Capitães de Areia”, “Gabriela, Cravo e Canela”, “Tenda dos Milagres”, “Tieta do Agreste”,
“Gato malhado e andorinha Sinhá”, “Quincas Berro D’água”, e a partir daí, com a orientação
de um(a) professor(a), criariam formas para apresentar esses enredos, representariam os
personagens desses romances e seus cenários.
Cada turma constituiu um(a) professor(a) coordenador(a) dessa atividade. Construíram,
assim, vídeo, teatro, roda de capoeira, exposições dos elementos que “constituem” os romances
como o dendê, o cacau, os quitutes baianos – ingredientes, modo de preparo, foram estampados
nas paredes, e doces, como cocadas, foram oferecidos aos convidados. Uma dessas
turmas/grupos de trabalho realizou também um paralelo com o pintor Portinari e o escritor
homenageado através da representação do quadro “Os retirantes” e a representação do livro
“Seara Vermelha” de Amado.
A fala do estudante acima transcrita antecipa o que o público irá assistir ao entrar na
sala de aula. Antes de descrever a “instalação” que vimos nessa sala de aula, registro que, de
tempos em tempos, conforme a demanda de público, a turma reiniciava a apresentação. Todas
elas, diga-se de passagem, mantinham um ou mais narradores que discorriam sobre o tema do
grupo e guiava o olhar do espectador para uma leitura sequencial.
25
Trecho extraído do Diário de Campo – manhã do dia 14 de outubro de 2016. CERG.
84
Foto 1 – Representação do livro “Seara vermelha” (Jorge Amado) com inspiração livre
a partir da obra “Os retirantes” de Portinari – 3º ano/2016
Em outra sala de aula, a Capoeira. Sim, a Capoeira estava lá, os meninos tocando
berimbau e pandeiro e outros lutando/dançando/jogando, com seus dorsos nus e suas guias
coloridas, azul claro, azul escuro, branca, vermelha. Um grande painel que ocupava toda a
parede mostrava os grandes mestres da Capoeira. Como já falei, quase sempre temos um(a)
85
guia que nos orientava e explicava o trabalho realizado pela turma. Em outra, havia um outro
painel mostrando a dança/jogo da capoeira – esse quadro era um desenho pintado com tinta,
fundo laranja e os personagens em preto.
Outra sala. Uma sala especialmente montada para acolher os visitantes como em um
cinema – uma sala de cinema. Ali, a turma projetou o vídeo que, no meu entender, é um clipe
do romance “Gabriela, cravo e canela”. O cenário era São Félix, próximo ao Rio Paraguaçu, no
bairro 135. O casal (uma menina e um rapaz) do romance apareceu de mãos dadas, deitaram-se
na grama do lugar, apaixonados. O narrador leu um poema construído por uma estudante da
turma. Interessante o cuidado que os estudantes tiveram ao produzir o vídeo, colocando os
créditos de todos que construíram o produto.
Por outro lado, nessa Feira, o corpo negro esteve em evidência. Nos outros dias do ano,
o corpo está “excluído” do processo educativo. Ora, “[...] o corpo pode ser considerado como
um suporte da identidade negra” (GOMES, 2003, p. 173), ele se localiza em um terreno social
conflitivo, uma vez que é tocado pela esfera da subjetividade. Ao longo da história, o corpo se
tornou um emblema étnico e sua manipulação tornou-se uma característica cultural marcante
para diferentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e de dominação para
classificar e hierarquizar grupos diferentes, como expressamos na introdução.
Há, também, significações e tensões construídas no contexto das relações raciais e do
racismo brasileiro. A discussão sobre a riqueza do trato do corpo negro e sobre os processos de
opressão que o mesmo tem recebido ao longo da história pode vir a ser uma rica atividade
pedagógica a ser desenvolvida com os alunos e as alunas em sala de aula, possibilitando debates
e atividades sobre a história e a cultura afro-brasileira. Segundo Gomes (2003, p. 173), “[...]
nesse processo, um estudo sobre o negro, o cabelo crespo e as práticas corporais pode ser um
bom caminho”.
Somos sujeitos corpóreos e usamos o nosso corpo como linguagem, como forma de
comunicação. O que será que o aluno negro nos comunica por meio de seu corpo?
Com a sua postura? Pela maneira como cuida do seu corpo? Como ele se apresenta
esteticamente? Por outro lado, quais são as representações que nós, docentes,
construímos desde a infância sobre o negro, seu corpo e sua estética? Será que essas
representações, quando negativas, tornam-se mais fortes no exercício do trabalho
docente, a ponto de nos tornar cegos e surdos para entender o que os nossos alunos
tentam nos comunicar? (GOMES, 2003, p. 173).
Aquele foi um momento ímpar, emocionante, colorido. Ver os alunos, rapazes e moças,
envolvidos com o fazer criativo: momento raro. Mesmo que tudo tenha sido surpreendente – a
maneira como incorporaram os personagens de Jorge Amado, a eloquência, a expressividade
que se viu nas performances (muitos estudantes-atores interagiram com o público no momento
de suas atuações, o uso dos celulares como monitor para leitura dos scripts), as improvisações
realizadas no diálogo com o público infantil, e etc., ainda assim faltou, como falamos acima, o
olhar crítico, a reflexão, uma visão libertadora engajada na luta por libertação. A nossa
pedagogia é o nó, é a chave. Faltou o caráter libertador e não domesticador que constitui o
modelo tradicional da educação brasileira. A pedagogia que praticamos é aquela idêntica à do
passado, que mesmo ante a insistência de Paulo Freire (1999) por uma práxis educativa capaz
de libertar o homem de toda situação de opressão, tornando-o um sujeito crítico e reflexivo
capaz de transformar sua realidade e inserir-se na sociedade de forma efetiva.
87
26
Dois destaques: o “carrinho de café” construído e customizado pelos próprios estudantes e a presença ao centro
da representação de Jorge Amado.
27
Baseado na especificidade do racismo no Brasil, atravessado pelo mito da Democracia Racial, os movimentos
negros, além de enterrar os corpos daqueles que não desaparecem misteriosamente, vem denunciando e reforçando
a bandeira política contra o “Genocídio da população negra”, dando ênfase às condições de vida dos negros no
Brasil.
88
obras do autor. A escolha não é neutra, nem a curadoria da Feira. Estimular a leitura é o objetivo
maior do Projeto de Leitura da escola.
Os estudantes estavam, sem dúvida, mobilizados e envolvidos no intento de mostrar e
dar o “seu melhor”. O portão estava escancarado. Ninguém esteve ansioso para sair como
quando esse está com cadeado – nos outros dias de aula “normal”.
No auditório, foi exibida a peça teatral “Capitães de Areia” por uma turma de 3° ano.
Vários cenários compunham a representação: o bar, o bordel, a rua, uma enfermaria religiosa.
A plateia se divertiu muito. Eu estava sentada nas últimas cadeiras da plateia, ao lado de dois
estudantes bastante agitados que comentavam cada cena do espetáculo: - “Olhe aquele lá”! –
“Barril, véi”! Até que uma professora que também se sentara ali, pediu que se retirassem.
Não é preciso um grande esforço para perceber que o passado de sofrimento negro, ainda
não foi desfeito. Os corpos negros representados a partir das páginas de Jorge Amado estão
vivos, presentes na vida do Recôncavo, do Sertão Baiano, nas ruas de Salvador. Os corpos
negros de Portinari estão no presente, na vida de Nocas, de Jerônimos, de Jucundinas, de
Agostinhos. O corpo negro segue preso ao passado da escravidão, da fome, da miséria. O corpo
negro é visto pela sociedade de maneira genérica, folclorizada, estereotipada como nos
romances de Amado.
89
As cenas que foram representadas nesse evento mostraram, sim, o corpo sensualizado
ou executando trabalhos braçais, embrutecidos, a ideia de um corpo à deriva a ser dominado.
Esse embrutecimento justapõe uma desumanização e desativa sua subjetividade.
Como na sociedade, a escola reproduz a desigualdade. Ao selecionar o tema da Feira do
Conhecimento e, depois, ao orientar seus estudantes em relação à maneira de interpretar e
performar tais obras e suas significações, os professores não criaram uma ponte para o presente,
o futuro, a luta.
Meu interlocutor Henrique, o funcionário de Serviços Gerais, é mais que isso, tem um
senso crítico muito aguçado e me falou um pouco sobre o que acha da dinâmica da escola, nesse
caso, sobre a Feira do Conhecimento, acontecimento realizado há poucos dias:
a) Diário de Campo – 27 de outubro de 2016:
● Cheguei muito cedo à escola (6h55min). Encontrei Henrique e outra funcionária.
Coloquei minha pasta no banco de concreto e circulei pelo hall principal onde estão
as salas dos professores e da vice direção. Olhava os trabalhos da Feira de
90
Conhecimento expostos nas paredes. Eram quadros em tela pintados pelos alunos
sobre as obras de Jorge Amado.
● Começamos a conversar sobre as telas pintadas. “Esse ano resolveram pintar. Tem
professor que ao invés de deixar o aluno pintar, pinta por ele”, criticou o funcionário.
● E continuou: “No dia da Feira, tinha um rádio aqui. Quem falava no rádio era a
professora. Não deixou os meninos falarem. Eu mesmo disse pra ela. Ela nem
respondeu”.
- A escola aqui é muito fraca. Os professores estão todos cansados. Um que outro...
Dão 15m, meia hora de aula e tá pronto. Eu se tivesse um filho não botava ele aqui. A
nota do ENEM ficou abaixo da média. A do Colégio Militar ficou na média.
- Esses dias veio uma menina pra colar umas bandeirinhas aqui, aponta pra parede.
- Não deixaram, continua Henrique
- Ela estava de bermuda... com um calor desses!
- O vice-diretor é muito fraco. Vai na pilha, não sabe das leis. O aluno tem direito. Se
ele tiver com a camiseta, pode entrar. E os meninos não sabem da lei. Daí foi embora
(Informação verbal).28
O que eu trago através das palavras do Henrique é que sua força crítica ultrapassa e
ganha “força de ação”. Ou seja, ele não se limita em criticar, mas age, toma iniciativa, por vezes,
e essa ação não agrada a direção, haja vista o que aconteceu em julho de 2018. Antes, porém,
devo esclarecer o meu propósito de demonstrar, através de Henrique e de suas falas, as questões
intraescolares, esses outros lugares que não a sala de aula, não os professores e professoras.
Como revelei, Henrique é um personagem que interatua fortemente com as meninas e rapazes,
expõe seu ponto de vista e influencia, de alguma forma, a vida dos nossosinterlocutores .
Sabendo que ele fica a maior parte do tempo no portão, e por outro lado os estudantes estão
também, na maior parte do tempo no portão, sentados ou de pé, por ali, “na resenha” com os
colegas, ou conversando com o próprio Henrique.
b) Diário de Campo – 19 de julho de 2018:
● Na hora da saída encontro com Henrique. Está preocupado. Pergunto o que houve e
ele me conta que “só porque eu ajudei a menina, aí, estão colocando a culpa em
mim” [...] Desabafa. “Mas o que foi”? Insisto. Aí ele me conta que há alguns dias,
disse a estudante cadeirante, que ela precisava saber que tinha direito no acesso ao
ônibus escolar com acesso mecânico às pessoas com deficiência. Henrique sabia que
o ônibus escolar da prefeitura que leva e traz os alunos, tem como colocar o
adaptador. “Eles não colocam não sei por que” – reclama. “Tô cansado de carregar
28
Trecho extraído do Diário de Campo – manhã do dia 27 de outubro de 2016. CERG.
91
a menina no colo para subir para o ônibus”. E aí, a aluna fez, realmente, uma carta
à prefeitura, solicitando o equipamento. E Henrique foi responsabilizado pela
direção da escola por ter sido a pessoa que estimulou a estudante a recorrer pelos
seus direitos.
Henrique não poupa as palavras, observa tudo com muita atenção e, quando surge
alguma coisa que lhe preocupa, que acha errado, busca uma oportunidade de expressar seu
ponto de vista.
c) Diário de Campo – 20 de julho de 2018:
● Ao chegar à escola, às 8h35min, observo Henrique [o funcionário de Serviços Gerais
– que é preciso dizer, a pessoa que mais sabe de “tudo” sobre a direção, professores,
sistema de ensino, ou seja, alguém com um olhar extremamente crítico sobre o
ambiente de trabalho – um dos meus interlocutores ], ele está conversando com um
estudante e uma estudante na entrada da escola. Falam sobre o celular, ou o seu uso
“indevido”, ou ainda o uso excessivo em sala de aula. Henrique chama a atenção
dos estudantes em relação à falta de interesse deles, e que isso vai fazer falta quando
eles tiverem que prestar concurso público, ou fazer alguma seleção para algum
cargo. Demonstrava impaciência e uma certa gravidade no olhar. O rapaz também
estava sério e reivindicava mais empenho dos professores. Dizia que os professores
também só ficavam no celular. Chegavam na sala de aula, mandavam abrir na página
tal do livro e falavam e mexiam no aparelho o tempo inteiro.
● Professor Ivan – meu outro interlocutor –, mais tarde, me conta sobre esse episódio
do celular. Na reunião dos professores, no dia 23, professores reclamavam
contrariamente, do uso do celular na sala de aula, mas pelos alunos. Pensaram em
performar, isto é, fariam uma cena usando seus celulares na frente dos alunos.
Provocando, certamente, uma reação, usando o contrário para produzir uma
resposta, uma ação, uma atitude por parte dos estudantes. Ivan foi contrário a esse
ato provocativo, para ele não fazia sentido. Ao final, os professores desistiram.
Cabe salientar que não se trata aqui de criticar indivíduos ou coletividades, mas
processos, processos esses que discriminam, que não consideram cenários econômico-sociais,
o imaginário e as práticas das populações de referência e que passam por cima da democracia,
uma vez que barram a participação dos interlocutores estudantes.
Racismo, violências simbólicas e masculinidades negras, tudo isso parece se conectar
quando constatamos, por exemplo, as complexidades das subjetividades vividas por homens
negros percebidas sobre si mesmos; as diversas práticas sociais experienciadas por eles ao
92
quatrocentos reais por mês. Com esse dinheiro compra suas roupas, abastece e faz a manutenção
da moto, e compra alguma coisa que esteja precisando, “esse dinheiro eu uso comigo”.
O sonho dele era ser jogador de futebol. Matava aula com alguns colegas do colégio
para ir ao campinho, e assim, passava a manhã ali, jogando. Isso acontecia com certa frequência
durante a passagem dele pelos dois anos do EM. Só quando tinha aula “importante”, passar
matéria para prova, matéria nova, início ou fim de unidade, ia para o colégio e ficava, não ia
para o campinho jogar com os companheiros. “Queria ser como o Neymar, ele é o meu ídolo”.
Participou de seleções de futebol com a equipe de Cachoeira, de São Félix. Entretanto, quando
o treinador foi fazer a indicação dos jogadores que iriam viajar para um campeonato, percebeu
que os escolhidos estavam previamente “escolhidos”, ele (o treinador) já tinha a lista pronta. Aí
veio a decepção. Falavam que jogava “bem certinho”. Não entendeu a decisão (ou a prática) do
treinador. Hoje joga de vez em quando, diz que não quer mais tentar jogar profissionalmente,
não pensa mais nisso, “o tempo já passou pra mim”, “deixa lá”, finaliza.
Assim, no seu tempo livre, fica na internet, nas redes sociais. Não sai muito à noite,
somente quando tem festas como no “São João”. Namorada não tem. “Vai casar?”, pergunto a
ele. Diz que “quando passar a pessoa certa no caminho”, aí sim, vai pensar nisso. “Futuro”?
Não sabe. Sobre sucesso e fracasso, entende que uma pessoa fracassada é aquela pessoa que
não vai para o colégio, nem o nome sabe escrever, fica na roça todo o tempo.
Sobre a sua trajetória escolar, logo anuncia que não fez o pré, se referindo à “pré-escola”.
Começou seus estudos na zona rural: até o 4º ano foi “tranquilo”. A partir daí, começaram as
recuperações, no 5º, no 6º e no 7º ano ficou em recuperação. Porém, perdeu no 8º. Passou a
frequentar o CERG no Ensino Médio. No 1º ano, passou, e no 2º, na metade do ano, decidiu,
como já relatei, viajar para Candeias e começar a trabalhar na construção civil com seu cunhado.
Sobre sua cor: conta que sua bisavó paterna era indígena. Seu pai tem a mesma cor que
ele. [Roberto aparenta ser pardo, tem a cor da pele clara]. Fala que se considera (também)
indígena, embora sua mãe seja negra. Nasceu em Sinunga, zona rural de Maragogipe, depois,
ainda pequeno, foi para Fazenda Pillar com a família.
O tempo já passou para mim, sentencia Roberto [aos 22 anos (2018)].
Chamo a atenção para nossas atividades em sala de aula – Oficinas, Rodas de Conversa,
Grupo Focais; ali, os rapazes, quando perguntados sobre quais seriam os motivos de irem para
recuperação, acabam apontando situações autoritárias e discriminatórias por parte de alguns
94
professores. Quando os estudantes se dirigem à Direção para reclamar do professor, ele nega o
que havia falado:
Guilherme: - Aí a gente chega na diretoria e ele [o professor] fala que era brincadeira.
Ele pegava e disfarçava. Mas não era brincadeira, não. Até chamar a gente de mendigo
ele já chamou. Parece que o dono do colégio era ele.
Oberdan: - A obrigação, a função dele era levantar as pessoas, não baixar as pessoas.
E é o que ele fazia, e ainda faz, né? (Informação verbal)29.
Consideraríamos necessário abordar o que, a meu ver, é ainda mais urgente, o motivo
do desinteresse que os rapazes e moças destacam nesses diálogos, nas atividades, ou seja, a falta
extrema de conexão entre o conteúdo instituído na escola e a vida “lá fora”. Então pergunto
sobre as aulas:
Antônio: - Tem certas coisas que tem que melhorar, não só da parte dos professores.
Na parte da gestão.
Josué: - Acho que as aulas [poderiam melhorar]. Uma sala com mais projetos. No
caso de projetos que se relacionam com ‘lá fora’, com a nossa vida de todo dia, com
as empresas, trabalho (Informação verbal)30.
Por que importa falarmos de identidade? Do racismo lá fora, ou ali dentro da escola?
Do cabelo black, assumido por algumas meninas estudantes, na discriminação que existe em
relação aos estudantes que praticam o candomblé, do silenciamento sobre o próprio
Candomblé? Na escolha dos professores em eleger certos rapazes, ou justamente aqueles que
não seguem os padrões de “menino exemplar”, para se dirigirem à Sala da Direção para serem
inscritos na “ata do dia”, devido à indisciplina? Expor seus cabelos, seus corpos, suas escolhas
religiosas, enfim, quem são, somente em dias específicos, como no Dia da Consciência Negra,
na Festa do Conhecimento.
a) Diário de Campo – 26 de setembro 2018 – quinta-feira:
● Em um encontro com uma turma de um 1º (primeiro) ano (EM), o pesquisador Joaci
Conceição e eu, resolvemos apresentar os propósitos do Projeto Brincadeira de
Negão, fazendo um “apanhado” do que constitui o Projeto e os temas que ele aborda.
Assim, Joaci colocou no quadro branco uma síntese do que poderíamos falar nesse
encontro: Racismo, Gênero e Sexualidade.
29
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”! realizado na manhã do dia 30 de março de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min – 11h10min.
30
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”! realizado na manhã dia 07 de abril de 2016,
no CERG, pela autora. Horário: 9h00min – 10h05min.
95
A lucidez dessas falas demonstra que, mesmo após 130 anos do fim da escravidão no
Brasil, o país ainda sangra com os efeitos do racismo. E é [também] por isso que não tenho
dúvida que a escola é um lugar privilegiado para falar sobre tudo isso, sobre temas como
31
Texto extraído da transcrição do GF: “Igualdade de oportunidades” realizado na manhã do dia 1 de setembro de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 9h10min – 10h13min.
96
Vander: - É... Foi um probleminha que aconteceu há anos, dois anos, que o professor
falou que a universidade era para alunos pobres, pretos, da periferia, maconheiro e de
pessoas que não gostam de tomar banho. Então, se ele falou isso aí, é uma forma de
discriminação, de preconceito dele. Graças a deus, um professor bom daqui, chamou
esse outro a sua atenção, e ficou tudo resolvido numa boa. Depois que esse professor
agiu com essa discriminação, parou pra pensar e refletir, que ele agiu de modo errado
– né – e que deixou muitas pessoas que necessitam do conhecimento, em dúvida.
Vamos supor: uma pessoa que necessita do conhecimento, de cursar uma
universidade, por exemplo, eu, ele me deixou na dúvida através desse discurso dele.
Depois que surgiu a resposta e a solução... Ficou tudo tranquilo e eu consegui entender
que, o professor falou aquilo porque estava numa situação de nervoso, tinha acabado
de discutir, não entendeu bem a pergunta que ele ia falar e então acabou escapulindo
isso, tá? (Informação verbal)34.
Muitos professores e professoras não percebem o seu poder na história de vida dos
jovens (CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004). A relação professor-aluno é uma exigência
do processo de aprendizagem, pois essa relação anima, ativa, dinamiza e dá sentido ao processo
educativo. Vander diz ter ficado em dúvida se deveria continuar perseguindo o desejo de
continuar “atrás” do conhecimento. Podemos considerar dois lados da interação professor-
aluno: o da transmissão de conhecimento e a própria relação pessoal entre professor e aluno.
A relação professor-aluno pode se mostrar conflituosa, como qualquer relação, porque
se baseia no convívio de classes sociais, culturas, valores e objetivos diferentes. O conteúdo
emocional e afetivo faz parte também da facilitação da aprendizagem. A opinião do professor
32
Roteiro da Entrevista Semiestruturada – ver Apêndice I.
33
Texto extraído da transcrição da Entrevista semiestruturada com o estudante Vander, no CERG, na manhã do
dia 04 de junho de 2014.
34
Texto extraído da transcrição da Entrevista semiestruturada com o estudante Vander, no CERG, na manhã do
dia 04 de junho de 2014.
97
no caso relatado foi relevada por Vander, estaria o professor nervoso devido a algum problema
de sua vida particular, agiu de maneira “errada”, mas “graças a Deus, um professor bom daqui,
chamou esse outro a sua atenção, e ficou tudo resolvido, numa boa”.
Piletti (1986) lembra que o sucesso do trabalho educativo requer o gosto pelo ato de
ensinar, gostar da sua profissão é importante para que ele, o professor, compreenda sua
influência no processo de aprendizagem, o que está para além da transmissão de conteúdo.
Antunes aprofunda esta discussão ao relatar o desconhecimento docente a respeito da "[...]
importância dos aspectos emocionais envolvidos no processo de aprendizagem" (ANTUNES,
1993, p. 142). Todas as ações refletem nossos sentimentos, e com Vander não foi diferente.
Esse momento ocorreu há dois anos e vai permanecer com ele como uma experiência negativa,
mesmo que tenha tentado amenizar ao narrar o caso nessa entrevista, levantando hipotéticas
razões para a atitude do professor.
Conforme Coutinho, Sant’Anna e Fernandes (2015, p. 90-91), os estudos sobre sucesso
escolar salientam um aspecto de extrema relevância: as expectativas dos pais e professores e a
influência que elas exercem sobre o processo escolar entre seus filhos e alunos. No nosso caso,
a discriminação relatada não ficou no passado, um fato isolado, permanece sim, viva na
memória dos estudantes como um ato de discriminação, de violência simbólica como se vê
acima. Respondem sumariamente que “alguns professores jogam os alunos pra baixo, muitos
já fizeram isso”. Em um Grupo Focal realizado com oito estudantes do 3º e 2º ano, em abril de
2016, um deles fala sobre esse tipo de discriminação recorrente: “já tive um professor de história
aqui em São Félix, há uns três anos atrás, que a vida dele era “esculhambar” as pessoas, os
alunos. Pra ele, ninguém ia ter futuro, ia limpar chão, ia sê gari (Informação verbal)35.
A dimensão da expectativa, nesse caso, dos professores, influi bastante nas realidades
educacionais dos jovens (BARBOSA; RANDALL, 2004; BUCHMANN, 2005; COUTINHO;
SANT’ANNA; FERNANDES, 2015, p. 91).
Em outra entrevista, Renato, que concluiu o Ensino Médio em 2017, declara que os
colegas criticavam certos professores por falarem de forma “áspera”, criticavam por acharem
errado falar dessa maneira. Segundo Renato, os professores falavam “só a verdade”. Cita que
um desses professores dizia que se os alunos não estudassem, se não levassem os estudos a
sério, se tornariam “escravos do Pereira” [dono de estabelecimentos em Cachoeira como
supermercado, farmácia e outros].
35
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”! realizado na manhã do dia 12 de abril de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 8h23min –9h30 min.
98
Depois de Michel Foucault compreendemos que saber e poder não existem em uma
relação externa; ao contrário, saber e poder, ou currículo e poder implicam uma relação
necessária, do currículo como corporificação do saber vinculado estreitamente ao poder, ou do
poder inscrito no interior do currículo. No momento que examinamos de maneira atenta os
conteúdos que são desenvolvidos de maneira explícita na maioria das instituições escolares,
constata-se a arrasadora presença de culturas negadas. As culturas de grupos sociais
marginalizadas que não possuem “[...] importância de poder costuma ser silenciadas, quando
não estereotipadas e deformadas para anular suas possibilidades de reação” (SANTOMÉ, 2013,
99
Neusa Santos Souza afirma no já clássico “Tornar-se negro” (1983) que a violência
racista do branco se exerce, antes de tudo, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do
sujeito negro. O negro é compulsoriamente obrigado a elaborar para si um “projeto
identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo” (SOUZA, 1983, p.
65). Pinho nos leva a pensar “em hegemonia e subalternidade, em processos dinâmicos de
construção e reconstrução de hegemonias ou consensos parciais sobre o sentido das relações
sociais, seus sentidos e práticas instituintes” (PINHO, 2004b, p. 65). Tanto subalternos quanto
hegemônicos são, na verdade, sujeitos políticos comprometidos em jogos de poder e
dominação, conclui o autor.
De forma geral, a identidade é um processo negocial e contínuo, e por meio do diálogo
com outros, não é construída no isolamento. Segundo Gomes (2005, p. 43), “[...] tanto a
identidade pessoal quanto a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto”.
Segundo a autora, estas estão inexoravelmente subordinadas às relações dialógicas construídas
com os outros (GOMES, 2005, p. 43). Para construção da identidade negra, obviamente, não é
diferente. Essas diversas e múltiplas identidades formam os sujeitos, na medida em que estes
são interrogados a partir de distintos cenários, instituições ou agrupamentos sociais.
A identidade negra é entendida, aqui, como uma construção social, histórica, cultural
e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que
pertencem a um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com
o outro. Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,
historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso
negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros
(as). Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? (GOMES, 2005, p. 43).
100
Voltando para o campo, e para o que agora vamos analisar: um Grupo Focal realizado
em abril de 2016, com a coordenação do pesquisador Júlio Cerqueira, no qual participei como
integrante da equipe de apoio. O título do GF era “Identidade: Ser homem, ser negão”.
Com a temática, o pesquisador pretendeu abrir o diálogo com os estudantes sobre o
“homem negro” versus [ou não] “negão”, identidades negras, masculinidades negras. A certa
altura, Júlio indaga os rapazes sobre a existência ou não de grupos diferenciados no colégio.
Prontamente um rapaz responde:
Cássio: - Na verdade o caso nem é isso, porque... não vem da gente... vem das pessoas,
né, que... tipo, já estão mais avançadas que a gente. Tipo, mais velhos vem mais deles
do que vem da gente. Tem gente que aprende com eles a... discriminar. ‘Ah... aquele
menino ali ó, andando daquele jeito ali, com aquele cabelo assim, é vagabundo’. Outra
pessoa vê e diz, ‘é vagabundo’. Aí começa.
Pesquisador: - Em relação a você? [pergunta direcionada à Igor].
Igor: - Eu tenho uma aparência comum.
Pesquisador: - E o que é uma aparência comum?
Igor: - Eu não tenho alteração nenhuma no meu corpo.
Pesquisador: - E quem aqui tem uma alteração no corpo?
Igor: - Por exemplo, ele usa o cabelo de acordo com o estilo dele, que usa o cabelo
‘de molinha’. E ele gosta do cabelo dele. É um direito dele que ele tem. Eu uso o meu
assim porque eu quero [Igor tem o cabelo ‘corte rente’, quer dizer, quase raspado].
Cada um tem o direito de usar o cabelo como quer.
Pesquisador: - Ah... Você acha então que a sua estética é bem mais aceita do que a
dele?
Igor: - Não exatamente isso.
Luiz: - Pelo fato de o dia a dia do nosso Brasil sê assim, na parte dele, ele tá falando
uma coisa que é real. Pelo fato de ele não ter um cabelo... Ou seja, criar cabelo, pelo
fato dele ser aquele menino, vamos supor, que pra ele, numa hipótese, que pra ele seja
um menino exemplar... (Informação verbal)36.
Aqui, o homem negro – o jovem estudante negro -, estaria sendo representado, ou “[...]
produzido racialmente com o concurso agressivo dessas representações como estruturas de
sustentação para práticas concretas de exclusão, marginalização e violência” (PINHO, 2004b,
p. 66). Excluído por não seguir exatamente as normas do que o contexto impõe
subliminarmente, os jovens nos informam uma outra categoria, a de menino exemplar.
36
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
37
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
101
O fato de ser uma pessoa que não dá lugar a ninguém falar – criticar, discriminar –, torna
essa pessoa exemplar, nesse caso, um “menino exemplar”. O menino “não exemplar” também
se mostra bem definido:
Pesquisador: - E o não exemplar? Aqui tem meninos que são não exemplares? Vocês
se auto definem como, como exemplares ou não exemplares?
Márcio: - Eu me auto defino como um pouquinho de cada um.
Denis: - Eu não sou exemplo pra dar a ninguém.
Cássio: - Eu não sou exemplar. Não vou dizer que eu sou exemplar, porque os outros
já me veem com o cabelo assim [ele tem o cabelo ‘molinha’ e tem tatuagem], falaram
que eu sô... Me julgam sem nem me conhecer.
Pesquisador: - Vocês já perceberam algum tratamento diferenciado com esses
meninos que não são como vocês falaram ‘comum’. Esses meninos que têm cabelo
diferente, que tem tatuagem, há um tratamento diferenciado?
Cássio: - Eu considero que é o modo que ele quer se vestir, entendeu? Acho que todo
mundo tem que respeitar. É um estilo. Eu acho normal, mas tem gente que olha com
outros olhares diferentes, entendeu? Já discriminando. Tipo assim, se eu não fizesse
nada de errado que tivesse que levar uma suspensão, já era tipo como 90% de
possibilidade de ser suspenso, já ele [aponta para o colega com a cabeça raspada] têm
10%.
Márcio: - O preconceito sempre vai existir! Em todas as partes.
Denis: - Na minha visão, mesmo a gente cuidando todos aqueles motivos pra não ser
malvisto, sempre vai ter aquele que vai olhar você com...
Luiz: - Diferença! Complementa a resposta do colega.
Denis: - Independente de tudo aquilo que a gente tentar fazer pra melhorar...
(Informação verbal)38.
“Mesmo a gente cuidando todos aqueles motivos pra não ser malvisto, sempre vai ter
aquele que vai olhar você com diferença, independente de tudo aquilo que a gente tentar fazer
para melhorar”, fatalmente – como disse outra interlocutora em outro GF, “não tem o que
fazer”. Declarações que falam que a “diferença” inscrita em seus corpos, suas “marcas no
corpo”- tipos de cabelo [molinhas ou corte rente] e, implicitamente, pela cor da pele, modos de
andar, “[...] converte-se em marcadores importantes para construção de subjetividades de
homens negros e adoção de novos estilos corporais como signos políticos, da moda e da beleza”
(SOUZA, 2010, p. 134).
Quando o nosso interlocutor Cássio, fala da distinção, da “diferença”, da discriminação,
dos que tem “marcas no corpo”, dos que não são meninos exemplares isso tudo “não vem da
gente... vem das pessoas, né, que... Tipo, [aquelas pessoas que] já estão mais avançadas que a
gente”. Ora, a cultura constitui um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um
processo de lutas entre grupos sociais cujo objetivo é manter distanciamentos distintivos entre
classes sociais. Para Bourdieu (2005; 1983) a dominação cultural se expressa na fórmula
38
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
102
segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista,
média, de massa), caracterizadas de modo respectivo pela distinção, pela pretensão e pela
privação. Por outro lado, ao encararmos o problema racial que atravessa nossas relações, no
Brasil, de uma maneira explícita, percebemos que o racismo cria uma tela que estrutura
historicamente um modelo de Estado que confere permissibilidade a mortes física e simbólica
de sujeitos subalternizados. Nessa perspectiva, Sueli Carneiro (2005), ao apropriar-se do
conceito de dispositivo difundido por Foucault, para examinar o tema racial em sua tese – “A
construção do outro com não-ser como fundamento do ser” –, produz o conceito de dispositivo
de racialidade. Sumariamente, tal dispositivo somado ao biopoder atua por meio de tecnologias
de poder como o epistemicídio39, consequentemente interrogando o lugar da educação na
reprodução de poderes, saberes e subjetividades atravessadas justamente pelo viés desse
dispositivo. Na tese, a autora propõe que:
39
Abordaremos o tema do epistemicídio no 5º (quinto) capítulo.
103
Portanto, é por meio da raça que se afirma o valor de cada grupo/subgrupo, na proporção
de sua humanidade. Segundo Carneiro, o saber do negro é visto como prática discursiva de
diferenciação social conforme a racialidade, “[...] que permite a distinção social de cada
indivíduo por discursos de raça, produzidos no interior de relações de poder” (CARNEIRO,
2005, p. 51).
À vista disso, negritude e branquitude apresentam condicionantes diferenciados quanto
à hacer morir o dejar vivir. Para Foucault (1999a), o racismo no campo do biopoder, na
104
qualidade de tecnologia de poder voltada para preservar a vida de uns e abandonar a de outros,
presta-se à sentença do hacer morir o dejar vivir, que podemos chamar da própria expressão do
biopoder. Foucault (1999a) define a função do racismo que integra o biopoder como elemento
legitimador do direito de matar, intrínseco ao poder soberano, que no contexto das sociedades
disciplinares será exercido pelo Estado, por ação ou omissão.
Se voltamos ao campo, de onde propriamente derivamos a nossa análise sobre o
biopoder, as relações entre a vida e a morte, o racismo, “as políticas de crueldade” (MBEMBE,
2011, p. 34), a racialidade – a distinção social de cada indivíduo por discursos de raça –,
continuamos ouvindo dos nossos interlocutores, a omissão ou a ação do Estado. Quando Cássio
fala da discriminação para com aqueles que têm “marcas no corpo”, dos que não são meninos
exemplares, e que isso tudo “não vem da gente... vem das pessoas mais avançadas que a gente”,
ele expressa uma violência, ou seja, uma afirmação de poder sobre o outro. Essa e outras formas
de violências em práticas cotidianas acontecem, em geral, em virtude das discriminações, dos
preconceitos, crises de autoridade ou, no caso da escola, por conta da grande dificuldade da
direção e/ou docentes proporcionarem um convívio escolar justo e democrático.
Gilberto Velho (2000) fala dessa violência como uma das mais graves, quando dá
origem ao desrespeito, à negação do outro, à violação dos direitos humanos, sendo que seus
efeitos são ainda mais nocivos quando está integrada à miséria, à exclusão, e às desigualdades
na sociedade brasileira. Neste sentido, nem sempre a violência acontece como um ato ou como
uma relação identificável, muitas vezes ela é naturalizada. As violências escolares incorporam
tanto a violência explícita – agressão entre sujeitos –, quanto a violência simbólica, que se
manifesta por meio de regras, hábitos culturais e normas de uma sociedade que já é
substancialmente desigual (ODALIA, 2004), haja vista a violência policial no Brasil,
Narrativas sobre abuso policial são abundantes na intermediação tanto entre a ação
formal do Estado e as relações pessoais, quanto “o arbítrio individual do agente do Estado”,
como veremos a seguir, no relato de Luiz:
105
- O que é racismo pra mim? Assim, quando tá discriminando aquela pessoa, chamando
ela de negra, negra não, de preto, pobre, fudido. Isso pra mim é racismo. Assim,
quando os policiais vão fazer assim, tipo dar um baculejo... Teve uma vez mesmo que
eu tava ali no porto sentado, tava eu, o único escurinho que tinha era eu, o resto tudo
era branquinho. Com os branquinhos ele não falou nada, só ficou... Só cismou com
minha cara. Me xingou de tudo. Fiquei bem quieto pra ele não me levar. Me deu muita
raiva. (Informação verbal)40.
40
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
106
Na sua quase totalidade, os rapazes expressam que o racismo está por toda a parte, no
bairro onde moram, no país como um todo, quer dizer, dentro e fora da escola como veremos
nesse outro Grupo Focal coordenado também pelo meu colega pesquisador Júlio Cerqueira, no
qual os estudantes foram estimulados, a partir de um videoclipe, a discutir sobre as
características do “Negro Lindo” referido na música de Léo Santana – músico baiano. O
pesquisador pergunta, então, quais são as características de um “Negro Lindo”. Eles
prontamente responderam que para ser um “negro era preciso se reconhecer, se aceitar e ter
orgulho da sua raça”. Entretanto, quando o pesquisador questionou o grupo perguntando: “De
que forma a sociedade vê esse ‘Negro Lindo’, como aquele cara que se reconhece, que se aceita,
que tem orgulho de sua raça?”, eles aí respondem:
Luís: - Não!
Pesquisador: - E o que a sociedade cobra de um negro lindo?
Luís: - Aparência.
Pesquisador: - Qual é essa aparência?
Antônio: - Aparência de ser aquele cara, né? Vamos supor, pela parte de ser aquela
pessoa que tenha dinheiro, que seja bem... que tenha... uma família estruturada.
Pesquisador: - Pra ser negro lindo, você acha que é isso?
Antônio: - Não. Na parte da sociedade. Pra ser um negro lindo, tem que ser uma
pessoa bem estruturada, tanto da parte...
Afonso interrompe Antônio para completar a resposta: - E tanto pra não ser
discriminado.
Pedro: - É que tem muita gente que discrimina, muita gente discrimina. Eu mesmo
criava cabelo e todo mundo me chamava de vagabundo.
Pesquisador: - E essa coisa que a sociedade julga as pessoas pela aparência. Vocês
acham o quê disso?
Antônio: - Isso é um erro grave.
Pedro: - É um crime.
Antônio: - Na verdade se era pra ser um crime, a cadeia tava cheia.
Pedro: - Ele devia sê julgado e não vai haver...
Antônio: - De eu ser um negro e discriminar uma pessoa branca, eu posso ir preso.
Mas ela me discriminando, eu vô chegar lá dentro e a minha palavra não vai valer de
nada (Informação verbal)42.
41
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
42
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
107
Pesquisador: - E o que vocês acham disso, o que os colegas de vocês tão dizendo?
Antônio: - Sempre foi assim, desde o tempo... de antigamente... da escravidão que é
assim.
Pesquisador: - E vocês acham que pode melhorar, pode mudar?
Antônio: - Já era pra ter melhorado.
Marcos: - Duvido que vá.
Daniel: - Pode melhorar sim. Porque a esperança é a última que morre (Informação
verbal)43.
43
Texto extraído da transcrição do GF: “Identidade: Ser homem, ser negão”, realizado na manhã do dia 12 de abril
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h20min – 11h15min.
108
que aprendemos a enxergar as raças” (GOMES, 2005, p. 49). Se observarmos bem nas próprias
narrativas/falas ou relatos dos interlocutores acima – ao longo mesmo de todo o texto –,
veremos claramente que aprendemos a ser e ver negros e brancos como diferentes na maneira
como são educados e socializados a ponto dessas “ditas” diferenças serem completamente
internalizadas em nossa maneira de ser e ver o outro, enfim, “aprendemos, na cultura e na
sociedade, a perceber as diferenças, a comparar, a classificar” (GOMES, 2005, p. 49).
Entretanto, se as coisas permanecessem só nesse âmbito, não teríamos tantos agravantes,
adverte a autora (GOMES, 2005). Mas tendemos a hierarquizar as classificações raciais, como
chamamos atenção no início desse capítulo na voz de Mbembe (2011; 2018) –, e também as
classificações de gênero e sociais, quando passamos a lidar com as diferenças de modo desigual.
Não obstante, não se trata tão somente de internalizações na maneira de ver e ser, isto
é, “o processo de tornar-se sujeito, é um processo de submeter-se a um poder”, como afirma
Butler, seguindo Foucault (PINHO, 2016a, p. 136). O processo de formação é base relevante
para a compreensão da própria política. Isso porque, em primeiro lugar, os sujeitos são
atravessados por forças assimétricas, disputas e agenciamentos de bases diversas ao longo de
sua formação; e em segundo lugar, porque a própria reconfiguração processual dos sujeitos
constitui a manifestação política do processo posto que as sociedades se transformam em meio
a seus conflitos e disputas. Seria mais apropriado pensar os sujeitos como meio de manifestação
concreto e corpóreo da prática da política, política aqui compreendida como prática
comunicacional e conflitiva de constituição e redefinição constante de sujeitos, suas ações e
formas de agenciamento.
Segundo Michel Foucault (2009), o sujeito não está nunca simplesmente dado.
Opostamente, o próprio sujeito precisa ser sempre pensado como uma posição de sujeito
produzida por relações de poder. Tornar-se sujeito, para o autor, implica a capacidade de agir
diante de constrangimentos de poder que fluem através de posições de sujeito (FOUCAULT,
2009). A forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos, para Foucault (1995), é
aquela que favorece uma ligação produtiva a si mesmo, garantindo a submissão ao poder. O
sujeito político, enredado em relações discursivas de poder, constitui-se por meio delas e se
submete a elas, em uma constante tensão entre operações conectadas e indissociáveis:
assujeitamento e emancipação; dominação e passividade; subjugação e autonomia; ação e
resistência.
Judith Butler (2015) acrescenta ainda que esquemas normativos e midiáticos de
enquadramento contribuem para uma desigual distribuição da precariedade ao estabelecerem
aqueles e aquilo que será e não será apreendido e reconhecido como digno de valor. Os
109
Voltando para o nosso Grupo Focal sobre “Igualdade de Oportunidades entre negros e
brancos”, em um dado momento, quando falávamos sobre a percepção dos estudantes quanto à
escola do negro e do branco, ouvimos que “às vezes tem gente branca que estuda em um colégio
público, mas o ensino é melhor do que o colégio público do preto. Tem muita escola aí que é
pública, mas o ensino é diferente” (Cláudia). Pois, mesmo que o estudante branco eleja uma
escola pública para frequentar, ela será de mais qualidade do que a escola pública “do preto”.
Relevante essa percepção objetiva da estudante. Uma realidade observável, já que eles e elas
vivenciam cotidianamente problemas de toda ordem: administrativos, pedagógicos,
curriculares, etc.
110
Escolho essa frase para abrir essa subseção que nos levará, de todo o modo, a analisar o
próprio lócus dessa investigação, na medida em que desejamos revelar, dentre os múltiplos
procedimentos do método etnográfico, o quanto a raça e o racismo colonial perpetuam-se na
fabricação de sujeitos raciais. Como denuncia Mbembe (2018, p. 49), “raça e racismos, não
pertencem, portanto, somente ao passado. Têm também um futuro [...]” e esse futuro, diria eu,
ou está aqui mesmo, no coração do Recôncavo, região que “[...] concentrou traços gerais do
processo de colonização do território brasileiro pelos portugueses iniciado no século XVI e
erguido em torno do trabalho escravo e da cultura da cana de açúcar” (PINHO, 2014a, p. 2).
Ao realizarmos o Censo Escolar do CERG – 2017, pensamos em enfatizar o material
quantitativo para associar os dados qualitativos às características socioeconômicas dos
estudantes dessa escola, assim como sexo, cor/raça, moradia, trabalho, interrupção dos estudos,
renda familiar, número de reprovações e outros elementos para auxiliar nessa análise específica.
Com a intenção de situar melhor a escola, lócus dessa investigação, podemos dizer, a partir dos
dados colhidos no referido Censo Escolar realizado no 2º semestre de 2017, que a renda familiar
dos estudantes segue as seguintes características: 55,8% dos estudantes responderam que a
renda familiar é de até um salário mínimo; 30,9% de 1 a 2 salários; 7,9% de 2 a 3 salários; 3,6%
de 3 a 4 salários; 0,6% de 4 a 5 salários; e com mais de 5 salários, 1,2%.
De posse desses dados, ainda se pode relacionar a revelação do sociólogo Antônio
Sérgio Guimarães (2016) no sentido que há uma equivalência entre pobreza e cor/raça,
seguramente para esse contexto. Aliás, mais que isso, desde os estudos de Hasenbalg (1979) e
de Silva (1960), nos deparamos com estudos quantitativos contundentes e apoiados em dados
oficiais, que existe uma evidente “linha de cor” no Brasil, e que nos permite dizer que a
desigualdade se revela em todos os indicadores sociais disponíveis. Quanto ao conceito de
pobreza, consideramos como um fenômeno explicitado segundo o padrão de vida vigente na
sociedade que define como pobres as pessoas situadas na camada inferior da distribuição de
renda, quando comparadas àquelas mais bem posicionadas. O conceito de pobreza relativa é
descrito como aquela conjunção em que o indivíduo, quando equiparado a outros, “[...] tem
menos de algum atributo desejado, seja renda, sejam condições favoráveis de emprego ou
poder” (CRESPO; GUROVITZ, 2002, p. 4).
44
Frase que abre a subseção” O espelho enigmático”, no livro de Achille Mbembe (2018, p. 197) “Crítica da razão
negra”.
111
Amartya Sen (2000) define pobreza como uma privação das capacidades básicas de um
indivíduo e não apenas como uma renda inferior a um patamar pré-estabelecido. Por capacidade
distinguem-se as combinações alternativas de funcionamentos de provável realização. Logo, a
capacidade é uma espécie de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações
alternativas de funcionamentos ou a liberdade para ter múltiplos estilos de vida. Ou,
[...] a pobreza recebe, hoje, uma dimensão moral, não oferecendo mais alternativa e
nem mesmo a possibilidade remota de ascensão social. Mesmo havendo certa
relatividade na demarcação entre ricos e pobres, parece haver uma condenação
irremediável à pobreza, o que faz com que os pobres prefiram não se reconhecer como
tais. (VÉRAS, 1999, p. 38).
45
Até o momento (dezembro/2018), o valor do salário mínimo é de R$ 954,00 (novecentos e cinquenta e quatro
reais).
112
manteve-se estável entre gerações. Nos anos de 2000, essa situação talvez tenha encontrado seu
ponto de inflexão: a diferença entre a média de anos de estudo de brancos e negros foi, pela
primeira vez desde que a PNAD passou a coletar o quesito cor/raça (1987), menor que dois
anos, ficando em 1,8.
Essa queda, que poderia ser interpretada pelos mais céticos como anômala em uma série
histórica na qual a diferença de escolaridade entre brancos e negros estaria cristalizada em torno
de dois anos, acabou se mostrando, nos anos seguintes, como a nova tendência desse indicador.
Considerando-se as questões metodológicas centrais ao processo de reprodução das
desigualdades sociais e as transformações pelas quais o sistema educacional brasileiro tem
passado desde meados dos anos 1990 – ações afirmativas e políticas públicas de inclusão social
–, não gera espanto a verificação desse recuo das desigualdades raciais na educação. As
desigualdades sociais, e mais especificamente as raciais, retratadas pelas estatísticas nacionais,
são os resultados de variados processos sociais.
As desigualdades educacionais entre brancos e negros não são somente resultado dos
processos discriminatórios vivenciados pelos estudantes negros. Segundo Hasenbalg e Valle
Silva (1999), além das questões relacionadas à inscrição racial dos estudantes, as desigualdades
educacionais na área da educação são também geradas por diferenças de renda, região de
domicílio, estrutura familiar, escolaridade dos pais e estrutura dos sistemas de ensino.
Entretanto, frequentemente, as análises dos indicadores educacionais se limitam aos aspectos
ligados à qualidade do ensino oferecida pelas escolas. Sem dúvida, a qualidade deve ser
considerada primordial, porém devemos destacar a contribuição específica dos processos
relacionados a ela, na reprodução das desigualdades raciais.
No fundo, existe um desconhecimento, ou talvez uma má-fé, de que a questão de
cor/raça tenha sua importância intrínseca para discutir a realidade social no Brasil. Como
destaca Rosemberg (1998), mesmo entre crianças e jovens que vivem na mesma região, com
níveis de vida bastante similares, e estudam na mesma instituição, é como se vivessem
contextos distintos. As desigualdades pesam mais contra negros(as), por razões diversas, que
vão desde a discriminação de cunho racista, a ausência de identificação positiva, etc.
(SENKEVICS, 2015).
Tal afirmação precisa ser teoricamente sustentada para uma adequada compreensão do
fenômeno. O Brasil se destaca como uma das maiores sociedades multirraciais do mundo e
abriga um contingente significativo de descendentes de africanos. Em 2014, a população
brasileira foi estimada em 203,2 milhões de pessoas. De acordo com esta estimativa do PNAD
(2014), divulgada pelo IBGE em 13 de novembro de 2015, desses 203,2 milhões de pessoas,
113
45,5% se auto classificam como brancas, 53,6% como negras (pretas e pardas) e 0,9% como
amarelas e indígenas (COSTA, 2013).
Segundo Fúlvia Rosemberg (2005), o pensamento social brasileiro sobre as relações
raciais é representado a partir de três correntes que serviriam para interpretar as desigualdades
raciais e o racismo no Brasil. Em primeiro lugar – e ligada originalmente a Gilberto Freyre
(2005; 2000) –, temos a corrente que advoga a existência de uma democracia racial. Ou seja, a
mestiçagem representa não só “[...] um elemento crucial na formação nacional – sendo
apresentada como símbolo do caráter relativamente democrático e flexível da cultura brasileira”
(MAIO; SANTOS, 2008, p. 88) –, mas, acima de tudo, “[...] representa o movimento contra o
imobilismo das castas ou do regime patriarcal e uma vitória da urbanização e da modernização
da sociedade” (PINHO, 2004a, p. 98). Para Freyre (2000), a miscigenação tem sentido quando
da incorporação do negro na cultura nacional, sendo dessa forma, assimilação, afirma Pinho
(2004a). Os temas da miscigenação, para o caso brasileiro, parecem implicados com a história
de dominação racial de forma definitiva, “[...] com a história da consolidação de um pensamento
propriamente racial, que tem a invencível propriedade de fazer-se presente sem estar
pronunciado e de produzir efeitos sem ser identificado” (PINHO, 2004a, p. 101). Em resumo,
“a ideia de mestiçagem é uma linha de fuga que nega a existência de negros e esconde a de
brancos”, contanto que se preservem as hierarquias sociais (SANT’ANNA; GUIMARÃES,
2015, p. 106). Dito com outras palavras, o discurso da mestiçagem afastou retoricamente o
racismo da agenda pública, porém, sem remover os mecanismos que reproduzem, no campo
das estruturas sociais e também do cotidiano, a ordem social racista, como afirma Costa (2006,
p. 211).
A segunda corrente, representada por Florestan Fernandes (1978), revela a existência de
uma profunda desigualdade entre os segmentos branco e negro da população, interpretando as
relações raciais no período pós-abolicionista como resíduos do antigo regime, inconciliáveis
com a nova ordem social que se configura em uma sociedade competitiva e de classes. Apesar
de essa corrente reconhecer a existência de desigualdades raciais, ela assume uma perspectiva
otimista, ou seja, conforme seu enfoque, a desigualdade racial tenderia a desaparecer com o
desenvolvimento da industrialização. Isto é, o padrão tradicional das relações raciais,
estabelecido como “persistência do passado”, seria superado dado que o desenvolvimento
capitalista dos anos 50, com a expansão da oferta de emprego, traria ao negro condições
singulares de ascensão social, enfim, um novo lugar da estrutura de classes (FERNANDES,
1972, p. 29-30).
114
completamente perverso, “[...] que parece apontar para a existência de traços patológicos no
sistema de funcionamento do sistema de ensino brasileiro”, afirma Silva (2003, p. 117).
Vários trabalhos da pesquisadora Marília de Carvalho (2005; 2004; 2001) apontam os
alunos brancos como aqueles mais presentes na lista dos melhores, sendo “[...] sub-
representados entre os com problemas disciplinares pelas professoras” (CARVALHO, 2004).
O desempenho escolar, segundo Carvalho (2005), determinou a classificação racial por parte
das professoras, revelando uma conexão entre pertencimento à raça negra, masculinidade e
“problemas” na escola. Ou seja, as professoras são mais rígidas/rigorosas com as crianças que
elas percebem como negras, assim como clareiam os estudantes que têm bom desempenho.
Ora, são inúmeros os exemplos, em vários domínios da atividade humana, onde
podemos encontrar a comprovação da realização automática de profecias. Assim sendo, é bom
que as profecias se cumpram, mas para bem da humanidade. Em termos gerais, o mito de
Pigmaleão é um exemplo clássico que tende a comprovar a ideia de que as profecias se podem
cumprir. Na antiguidade, na obra Metamorfoses, referida por Barros Oliveira (Oliveira, 1992,
p. 11-12), Ovídio apresentava uma versão aperfeiçoada do mencionado mito: o escultor
Pigmaleão modelou uma estátua de Galateia, representando o seu ideal de mulher, e apaixonou-
se por ela. Afrodite, respondendo a suas preces, deu vida à imagem esculpida, tornando-a de
carne e osso, o que possibilitou a Pigmaleão desposá-la. O desejo de Pigmaleão se transformou
em realidade e assim, estava criado o mito.
De todo modo, parece evidente que as expectativas que se formam em relação ao
comportamento de certas pessoas, em dadas circunstâncias, são passíveis inconscientemente,
de desencadear comportamentos adequados (ou mesmo, condizentes) com as expectativas,
operando como um tipo de profecia que se há-de cumprir.
Sendo a escola e o sucesso escolar um dos nossos primeiros cuidados, nos interessa
apontar, mesmo que superficialmente, que as expectativas dos professores, em relação aos seus
alunos, podem influenciar os resultados destes.
O mito de Pigmaleão, em 1968, deu origem ao título da obra do polêmico, mas também
célebre, livro de Rosenthal e Jacobson (Pygmalion in the classroom). À exemplo de Pigmaleão,
o professor vai alimentar expectativas positivas em relação aos seus alunos. Os autores
desenvolvem na segunda parte do livro a ideia que tem a ver com as crianças em situação de
desvantagem, ou seja, esses estudantes são duplamente penalizados pelo sistema educacional e
pelos professores, uma vez que as diferenças entre crianças em situação de vantagem e
desvantagem são, inequivocamente indivisíveis daquelas existentes na expectativa do professor
sobre o que elas podem conquistar. O fato também corresponde às questões da origem, etnia,
116
gente perceber, nós garotos... Eu penso assim. Pelo menos eu e algumas pessoas que
eu conheço pensa assim. A gente quando tá dentro de casa tem o apoio do pai, só vai
trabalhar depois que tem uma Faculdade (Informação verbal)46.
O tema da cobrança dos pais é colocado por Pedro como algo real, por óbvio, mas não
resiste à questão de gênero, e também não resiste à cobrança de fora, da sociedade. Isto é, “a
garota não tem a mesma obrigação de um garoto”, no caso a obrigação de trabalho ou de
trabalhar é do garoto, como afirma o nosso interlocutor, devolvendo a questão para
pesquisadora: “vamos supor, se a senhora tiver dois filhos, um filho homem e uma mulher, a
senhora vai cobrar de qual dos dois”? Pedro mora com o pai, a mãe e mais três irmãos, mesmo
assim ele relativiza, considerando outras realidades. “Só vai trabalhar depois que tem uma
Faculdade”, afirma Pedro, sabendo que essa não é uma realidade vivida pela maioria dos seus
colegas. São muitos os fatores que fazem a realidade ser outra. O tipo de arranjo familiar é um
deles. Dos 214 estudantes recenseados, 89 responderam que moram com o pai, a mãe e irmãos
(41,6%) – o grupo mais significativo. Com a 2ª maior frequência está a categoria “outros” – 39
respostas (18,2%). Assinalando essa alternativa, os alunos poderiam preencher escrevendo a
formação da sua família. As mais frequentes foram aquelas que indicavam que moram com sua
avó, depois com os avós, tia e namorado(a). Na sequência, vem a família formada pela mãe e
irmãos (12,6%), depois, mãe e pai (8,4%) - sem irmãos47. Voltando ao padrão de discriminação
racial, é importante destacar que os níveis de escolaridade entre brancos e negros não é somente
consideravelmente elevado, como mantém-se “perversamente estável entre as gerações”
(INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE, 2001, p. 15), que é do que
estamos tratando. “Por motivos coloniais”, como bem ressaltam Madeira e Gomes (2018, p.
472), a população negra tem se deparado com imensas dificuldades em ampliar seu nível de
46
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha””, realizado na tarde do dia 19 de agosto de
2015, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Paulo Roberto. Horário: 14h20min – 15h15min.
47
As investigações sobre desigualdades escolares empreendidas durante o século XX mostram uma forte
correspondência estatística entre a origem social dos alunos - incluindo os seus arranjos familiares -, e seu
rendimento escolar, evidenciando as crianças dos meios populares como sendo atingidas “de forma muito mais
maciça e regular” por situações de fracasso (Forquin, 1995). As pesquisas sociológicas em educação realizadas a
partir da década de 1980, redirecionam seu interesse para as práticas e estratégias educativas internas às famílias,
de acordo com o instrumental antropológico como estudos etnográficos, observação participante e outros métodos
- histórias de vida, biografias escolares, como afirma Nogueira (1995, p.16). O impacto social e afetivo de ser um
filho numa família nuclear (composta por pai, mãe e filhos que compartilhem a mesma residência), monoparental
(um lar onde somente o o pai ou a mãe se responsabiliza sozinho pelos filhos) ou recomposta (quando a família é
redesenhada com a incorporação de novos pais no meio familiar), provavelmente não é a mesma, e as
consequências disso parecem incidir em experiências distintas, dentre as quais aquelas referentes aos processos de
construção da escolaridade. Ver mais em: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v15n30/06.pdf GLÓRIA, Dília.
RELAÇÃO ENTRE ESCOLARIDADE E DIFERENÇAS CONSTITUTIVAS DASFRATRIAS Paidéia, 2005,
15(30), 31-42
119
escolaridade. Apesar dos avanços nos últimos anos, com mais pessoas alcançando o nível
superior, as disparidades entre os grupos perpetuam-se, conforme demonstram os dados:
Entre 1995 e 2015, duplica-se a população adulta branca com doze anos ou mais de
estudo, de 12,5% para 25,9%. No mesmo período, a população negra com doze anos
ou mais de estudo passa de inacreditáveis 3,3% para 12%, um aumento de quase
quatro vezes, mas que não esconde que a população negra chega somente agora ao
patamar de vinte anos atrás da população branca. (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA, 2016, p. 2).
Ricardo: - Vamos supor, pra uma pessoa que não trabalha, chegar no outro dia com
uma moto, do ano...
Joel: - Roubou!
Ricardo: - É, roubou, ahahahahahah, é droga, porque ele não trabalha. Ainda mais se
a pessoa anda até tarde da noite na rua, porque a pessoa é amigo de uma pessoa que
tá envolvida com coisa errada, tá fazendo, tá junto. Então, tudo isso aí, a sociedade
influencia sim, muita coisa!
Pesquisadora: - Vocês acham que essa saída pro mundo das drogas, ela tem essa
ligação com a falta de estímulo dentro da sala de aula ou cara sai porque é fraco
mesmo?
Joel: - Fraqueza, por influência de muita gente, problema dentro de casa (Informação
verbal)48.
Para os nossos sujeitos em São Félix, os rapazes do CERG, “fariam pouco caso da
escola”, “seus pais são mais liberais com os rapazes, deixando fazer o que querem” – aqui a
opinião dos estudantes sobre o possível baixo desempenho escolar dos rapazes49. Em
contrapartida, os rapazes relatam que muitos deles não se interessam mesmo, e se tornam
fogueteiros. Faço de conta que não conheço essa ocupação, e peço que me expliquem.
Entreolham-se e riem, riem muito. Eles demonstram não estarem dispostos em me contar o que
é fogueteiro na realidade. Depois de alguns minutos, me dizem que é o cara que avisa que o pó
chegou.
Como assinala Pinho, “[...] é difícil exagerar a magnitude do ódio social e da violência
do estado contra os jovens negros, nem o ambiente de violência que os acompanha” (PINHO,
2016a, p. 131). Portanto, relato nossa Roda de Conversa após a exibição do filme “Pantera
48
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”, realizado na tarde do dia 19 de agosto de
2015, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Paulo Roberto. Horário: 14h20min – 15h15min.
49
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha!”, realizado na manhã do dia 24 de julho de
2016, no CERG, pela autora.
120
“Pantera Negra” não foge à tendência temporal, mesmo tempo que retoma a ideia
original de ambientar a realidade de um herói específico. No caso em questão,
Wakanda. Não é exagero dizer que o país-natal de T'Challa seja um dos principais
personagens de Pantera Negra. Isolado do resto do mundo de forma a esconder uma
potência tecnológica inigualável à base do valioso vibranium, Wakanda é uma
conjunção entre as raízes ancestrais do povo africano com tamanha modernidade - não
por acaso, a trilha sonora traz muito da força dos tambores. Mais do que a beleza
paisagística, chama a atenção a cultura construída em torno de tal lugar: dos figurinos
vistosos às máscaras exuberantes, das crenças relacionadas à dança - ou ao movimento
dos corpos, como preferir - ao sotaque imaginário e coeso: tudo é muito peculiar a
esta localidade, trazendo de imediato uma nova camada ao já imenso UCM, tanto em
relação à pluralidade quanto à representatividade. Em ambos os aspectos, Pantera
Negra é essencial. Não apenas por possibilitar um ícone negro como exemplo, para
que jovens mundo afora se reconheçam também no universo dos super-heróis, mas
também por trazer sua realidade e anseios ao fantasioso mundo da Marvel. Sim, pois
o conflito existente entre T'Challa (Chadwick Boseman) e Killmonger (Michael B.
Jordan) pode facilmente ser apontado como reflexo dos ideais de Martin Luther King
e Malcolm X sobre a posição dos negros na sociedade norte-americana, lá nos anos
1960 (RUSSO, 2018).
O filme foi uma das grandes produções internacionais de 2018. Realmente, todo o
empenho do Projeto “Brincadeira de Negão” não foi em vão. Contabilizamos entre os
participantes (professores, professoras, estudantes e pesquisadores do “Brincadeira de Negão”),
aproximadamente, duzentas pessoas.
a) Diário de Campo – 06 de agosto de 2018:
● Pois retomamos o filme na sala de aula no dia 06 de agosto. Tentou-se realizar uma
atividade antes dessa, no dia 02, um dia depois da exibição do filme, porém,
conseguimos apenas a participação de uma turma do 2º ano. Já no dia 06, uma
semana depois do evento, o pesquisador Joaci e eu, reunimos duas turmas de 2º ano,
50
Pantera Negra´ acompanha T´Challa que, após a morte de seu pai, o Rei de Wakanda, volta pra casa para a
isolada e tecnologicamente avançada nação africana para a sucessão ao trono e para ocupar o seu lugar de direito
como rei. Mas com o reaparecimento de um velho e poderoso inimigo, o valor de T´Challa como rei – e como
Pantera Negra – é testado quando ele é levado a um conflito formidável que coloca o destino de Wakanda, e do
mundo todo, em risco. Confrontado pela traição e o perigo, o jovem rei precisa reunir seus aliados e liberar todo o
poder do Pantera Negra para derrotar seus inimigos e assegurar a segurança de seu povo e de seu modo de viver.
(PANTERA, 2018).
121
e como havia mais estudantes, logramos mais participação. Fizemos então alguns
questionamentos sobre o filme, pedimos para que contassem sobre o mesmo,
falassem o que tinha lhes chamado a atenção. Nesse meio tempo, fizemos um
exercício no qual estabelecíamos uma relação metafórica entre a cidade Wakanda
se relacionava com São Félix, inclusive nos seus aspectos tradicionais e ritualísticos,
aquelas que antecediam ocasiões especiais no caso do filme. Foi então que estudante
Gilmar relacionou os rituais do Pantera Negra com os rituais ligados às religiões de
matriz africana, comum tanto em Cachoeira, quanto São Félix.
● Joaci chamou a atenção dos estudantes e das estudantes para o fato de que os atores
dos filmes eram negros, especialmente o núcleo principal, os protagonistas, e de
como isso fazia diferença na questão de representatividade. Em seguida, explicou
qual era nossa proposta de trabalho, além de fazer o debate em sala de aula, ampliá-
lo para a escola, e assim, tendo em vista que não teríamos condições de fazê-lo com
todas as turmas que assistiram ao filme, eles produziriam cartazes sobre suas
impressões sobre o filme, divididos em pequenos grupos. Esta atividade foi bem
acolhida pela turma que, a partir de material disponibilizado pela escola e pelo BN,
foram construindo suas impressões.
● Dentre as frases, duas me chamaram a atenção: uma que falava que faltou sexo no
filme, segundo fui informada, escrita por um garoto, e um outro escrito com o
número 17, também segundo informado por outros estudantes seria uma referência
ao número de um candidato nas eleições deste ano. Depois foi feita uma nova
intervenção que o associava ao número 666, o dito número da besta. Talvez fosse
apenas uma gastação51 dos estudantes, de qualquer forma esta gastação pode e é
sintomática, própria do contexto em que eles estão inseridos. Também neste
momento um estudante parou Joaci para perguntar sobre o motivo de filmes sobre
negros estarem situados sempre na África. Joaci optou por não responder, mas
chamou a atenção para o fato da pouca presença de negros nos filmes, especialmente
como protagonista, como era o caso de Pantera Negra, e também para outra questão,
que ele concordou, isto é, que normalmente o negro se encontrava sempre em papéis
menores, empregados, enfim, um questionamento muito comum na filmografia
hollywoodiana principalmente.
51
Gastação: o ato de gastar: brincar, zoar.
122
52
Referente à maconha.
123
Risos
Joaci: - Por que São Félix?
Gilvan: - Por conta da disputa da erva [maconha] e outras.
Risos
Joaci: - Agora, vamos lá: ele pensou em São Félix e todo mundo riu. Então digamos,
Wakanda é São Félix. O que que tem São Félix parecido com o que a gente viu em
Wakanda?
Gilvan: - A Guerra. O minério é diferente, mas é assim.
Joaci: - Tá certo, gente. Acho que a comparação tá certa. Quais outros elementos que
a gente pode associar entre São Félix e Wakanda?
Cochichos
Joaci: - Vamos ampliar essa associação: São Félix e Cachoeira. Eu falaria, por
exemplo, em Wakanda e Cachoeira.
João Paulo: Por quê? Pelo amor de Deus. Por quê? Olha aí a guerra que a gente tem
em Cachoeira e São Félix?
Joaci: - Sim, Cachoeira e São Félix, então. Essa guerra não é muito semelhante com
a guerra que estava no filme?
Todos concordam: - É! (Informação verbal)53.
53
Texto extraído do Diário de Campo - Relatório do Debate sobre o filme “Pantera Negra”, realizado na manhã
do dia 6 de agosto de 2018, com a turma 13M1, no CERG, organizado pela autora e pelo pesquisador Joaci
Conceição.
54
Aqui lhes foi sugerido a criação de um painel sobre o filme assistido. Trouxemos algumas cópias dos
personagens. Com isso, além de colar as figuras, escreveram suas impressões ou palavras que expressassem algo
sobre o filme.
124
Os homens negros, suspeitos na cartilha policial, quando nas ruas não possuem o
direito de transitar por onde quiserem e a qualquer hora do dia, de longe gozam da
mesma liberdade do homem branco. Num paradoxo entre invisibilidade e percepção
sua aparência é temida em determinados locais, incompatível para aquela paisagem.
Homens negros que esteticamente carregam no corpo, na cor da pele e no que veste,
marcas de quem foi institucionalizado na marginalidade pelo Estado (OLIVEIRA,
2016, p. 5).
Assim, o sujeito negro habita a “zona do não-ser” (FANON, 2008), uma zona na qual a
negação desse sujeito é igualmente “[...] a afirmação da nação com uma comunidade (branca)
imaginada” (AMPARO-ALVES, 2016, p. 61). “Qual o lugar histórico dos negros e negras no
projeto nacional”? – perguntamos junto com o autor. Ou ainda, seria a educação um escudo
contra o genocídio negro, contra a ratificação da descartabilidade do sujeito negro?
125
3 “POR QUE A VIDA É MAIS DIFÍCIL PROS HOMENS, TEM QUE TRABALHAR, TEM
QUE FAZER OS CORRE”: DESIGUALDADE ENTRE HOMENS NEGROS E
MULHERES NEGRAS, MASCULINIDADES NEGRAS, DESEMPENHO ESCOLAR,
RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE
O meu propósito nesse capítulo é evidenciar o modo como a construção social das
masculinidades racializadas condiciona o percurso escolar de jovens estudantes negros no
CERG. Como esses jovens significam as relações de gênero e atribuem sentidos às
masculinidades e às feminilidades pode constituir um exercício para explorar (des)
continuidades nos significados socialmente manipulados, disponíveis e/ou construídos pela
juventude para moldar suas experiências e valores (SOUZA, 2010, p. 110). A partir das
experiências narradas pelos rapazes, apresento o repertório conceitual mobilizado a fim de lidar
com algumas das questões centrais desse trabalho e suas articulações, como a trajetória escolar
dos atores, construídas, como já expus, em uma interação dialógica, na qual, durante o trabalho
de campo, se envolvem a pesquisadora e seus interlocutores (RABINOW, 1992).
A busca de uma maior complexidade dessa abordagem sócio antropológica nos remete
a outras duas questões constituintes desse capítulo: gênero e as relações de gênero entre os
jovens rapazes e as moças no contexto escolar, e o processo da subjetivação e intersubjetivação
na construção social das masculinidades negras.
Com base nas observações de campo, e considerando que o racismo, as relações de
poder e a discriminação racial são frequentemente marcados pelo gênero, mulheres e homens
vivenciando diferentemente abusos dos direitos humanos. Com base no campo, “[...] o
imperativo de incorporação do gênero põe em destaque as formas pelas quais homens e
mulheres são diferentemente afetados pela discriminação racial e por outras intolerâncias
correlatas” (CRENSHAW, 2002, p. 173). A incorporação do gênero no âmbito da análise do
racismo, além de trazer à luz a discriminação racial contra as mulheres, proporciona uma
compreensão mais intensa das formas específicas pelas quais o gênero conforma a
discriminação também enfrentada pelos homens, diz a autora. Como provoca o antropólogo
Osmundo Pinho, quando analisa os resultados de investigação exploratória realizada sobre
experiências e perspectivas educacionais – discriminação, preconceito e desempenho escolar
nas cidades de Cachoeira e São Félix na Bahia,
[...] a articulação concreta e historicamente consolidada entre raça e gênero não segue
um modelo único cumulativo de desigualdades, mas apresenta padrões diferenciais
resultantes da interação de fatores complexos, como Rosemberg aponta. As mulheres,
126
55
Para ver mais, sugiro a leitura da dissertação de Luiza Cristina Silva Silva (2018), intitulada “Currículo da
Nudez: relação de poder-saber na produção de sexualidade e gênero nas práticas ciberculturais de nude selfie”.
128
marcante, depois por sua eloquência e, mais ainda, por demonstrar certa liderança,
repito. Destacava-se pelo seu gestual, dominava a cena.
● Solicitei que chegassem mais próximos do quadro formando uma meia-lua. Pedi que
alguém se dispusesse a servir de modelo. Iríamos construir um boneco fazendo o
contorno de um deles. Nesse momento lhes perguntei a idade, dos dezessete alunos
e alunas, apenas um rapaz disse ter dezoito anos, os demais variaram entre dezesseis
e dezessete anos.
● Um rapaz que se sentava ao fundo da sala, fora do semicírculo, tomou a iniciativa e
se dispôs a servir de modelo. Levantou-se com um sorriso, agradeci. Ele ainda me
ajudou a erguer o papel pardo e fixá-lo na parede com fita aderente. Foi me dizendo
que é grande demais para o papel – ele mede aproximadamente 1m85cm (um metro
e oitenta e cinco centímetros). Sua altura favorece, pois, desejo colocar o boneco à
vista de todos e todas. Pedi, então, que alguém fizesse o contorno do colega já
deitado no chão em cima do papel. Uma menina se levantou. Dei-lhe um pincel para
que fizesse o contorno do colega.
● Feito isso, os dois voltaram às suas carteiras. Então, rasgando um pedaço de papel,
fiz uma bola. A bola iria auxiliar no jogo. Explico: remeto a bola para alguém da
sala. Essa pessoa, se for menina, irá dar uma característica masculina – psicológica
ou física – para o boneco, se for menino, o contrário. Fizemos duas rodadas, isto é,
na primeira, as meninas tinham a tarefa de dar uma característica para os meninos e
os meninos, uma característica para as meninas. Na segunda rodada, as meninas
colocaram as características delas próprias e os meninos, deles próprios. Tínhamos,
portanto, vinte e seis características femininas e masculinas. Logo, teríamos
quatorze no lado das meninas, mais doze características deles. Contudo, excedemos,
pois inteiramos trinta e uma. Bom, no “calor” da atividade, não pude perceber o que
ocorreu de fato.
● Para realizar este “jogo”, utilizei uma bola de papel improvisada, como já me referi.
Joguei a bola. Ela foi suspensa no ar por um menino. Tentei diversificar intercalando
uma menina, um menino. Eles ou elas se dirigiram até o boneco e escreveram.
Todos(as), sem exceção, pareciam já ter escolhido previamente a palavra-
característica feminina ou masculina. Escreveram sem titubear, em um tempo só.
● Definimos que as características masculinas seriam escritas com pincel atômico
verde, e as femininas, lançadas pelos meninos, em vermelho. O estudante ou a
estudante foi até o boneco que estava afixado no quadro, na frente da sala e escreveu
130
Foto 7 – Foto do boneco – parte II - genitais até os pés / *aqui o contorno da mão
esquerda com o celular
Quadro 1 – Características expressas pelos estudantes sobre o que é ser feminino e o que
é ser masculino
Características físicas ou Características físicas ou
psicológicas do ser feminino psicológicas do ser masculino
Enfrentar barreiras com a cabeça Ser sorridente apesar de
erguida qualquer coisa
Maravilhosa Deus grego
Independente Carne fraca
Saber compreender Saber perder
Ser valorizada Saber esperar
Seduz Atraente
Ser diva Tesudo
Macete – ter manha, truque Respeito
Se dar o valor Sacanagem
Fiel Ter palavra
Delícia Gostoso
Linda Lindo
Sensacional Ser agradável
Ser feliz Ser responsável
Saber fazer
Cumprir obrigações
Corno
Fonte: Elaborado pela autora.
Como diz Jeffrey Weeks, “[...] o corpo é visto como corte de julgamento final sobre o
que somos ou o que podemos nos tornar” (WEEKS, 1995, p. 90). O jogo que propusemos aqui
demonstrou, entre outras coisas, que é no âmbito da cultura e da história que se estabelecem as
identidades sociais – todas elas, não só as sexuais e de gênero, mas incluindo as de raça, de
classe, etc. –, afirma Louro (2013, p. 12). Em meio a muita agitação, os(as) estudantes
construíram alternadamente esse quadro de atributos, muitas vezes com fortes recusas por parte
de alguns ou de algumas, como aconteceu no momento que um estudante atribuiu às meninas
a característica de “saber se dar o valor”. Todas elas demonstraram ali, naquele momento, que
essa competência é uma verdade inequívoca, por excelência, contrariamente ao sentido
135
Outras características fixadas pelas moças aos rapazes também devem ser postas em
destaque, como “carne fraca”, “saber perder”, “sacanagem”, levando em conta a agitação
causada quando essas palavras foram escritas no boneco, gritos, mãos para cima, palmas. Três
rapazes saíram correndo de suas carteiras – um deles chegou a derrubar um colega. Queriam
pegar o pincel atômico da menina que havia escrito “sacanagem”. Intervi imediatamente,
dizendo que teríamos um momento para debater a atividade, e, assim, eles poderiam comentar
e repudiar cada uma das características postadas. Dessa forma, os ânimos se acalmaram. Ora,
esse conjunto de atributos dado aos rapazes por elas, estaria indicando a ideia corrente, a
percepção de que os homens são naturalmente carregados da pulsão sexual, principalmente, a
respeito, da expressão de ter a “carne fraca”, de “fazer sacanagem”, algo com a conotação de
dominar, enganar, abusar, possuir. Como afirma Bourdieu (2005, p. 25), a própria virilidade
masculina está inscrita na lógica da conquista, da exploração. De certa forma, por vezes, cria-
se um modelo de masculinidade altamente hierarquizador, em que a ideia é vangloriar a
masculinidade que se deseja elogiar, feminizando-se aquele que se quer humilhar.
b) Diário de Campo - 07 de abril/2016 (Oficina – continuação):
● Um nome para o boneco? Talvez um nome que pode ser, ao mesmo tempo, feminino
e masculino. Imediatamente decidiram em grupo, o nome dele(a) seria Ariel.
● O sinal soou e era hora de finalizar. Os alunos e as alunas foram desfazendo a
formação de semicírculo. Guardando o material, percebi que a turma estava menos
agitada do que quando entrei.
● O seguimento dessa atividade deverá, em síntese, estabelecer um ambiente de
discussão sobre as características determinadas por eles e elas. Solicitar que reflitam
em grupos mistos de quatro estudantes para depois, em plenário, expor suas opiniões
sobre o que foi levantado nesta primeira sessão – concordo, discordo e justifico.
Infelizmente, não foi possível retornar à atividade com a turma 14M2, mesmo tendo
prometido. Ao sair da sala, agradeci a participação da turma e disse que na próxima semana
agendaria um horário para finalizar a atividade. Sabia que seria um novo desafio. A Direção
não tem se envolvido com o Projeto Brincadeira de Negão a ponto de estabelecer, dentro das
possibilidades curriculares (por óbvio), um espaço para nossas práticas. Desde 2013, quando
iniciamos nosso Projeto no CERG, a cada novo ano letivo, fazemos uma exposição dos
objetivos e detalhamento do nosso trabalho para o corpo docente e a equipe diretiva. Mesmo
assim, não vemos muito interesse na prática do dia a dia. No entanto, precisava insistir para
finalizar a atividade com a turma do 3º ano. Na semana seguinte, na terça-feira, conversando
com o vice-diretor, procurei saber das aulas dessa turma. Vimos que estariam sem professor na
137
3ª aula. Peguei o cartaz do Ariel, e fui para sala de informática – sala ampla, sem carteiras,
melhor para essa Roda de Conversa – discutiríamos ali as relações de gênero a partir das
características que eles e elas haviam anotado em “Ariel”. Eram 8h00min. Abri a sala e pendurei
o cartaz na parede. A aula seria às 9h10min, quando soaria o sinal para o início da 3ª aula. Às
8h50min, o vice-diretor bateu na porta da sala e me diz que terei que abortar a atividade. Desde
o dia anterior a escola estava sem água. Com a esperança que o abastecimento retornasse, a
direção resolveu não fechar a escola. Porém, a empresa havia acabado de avisar que água
somente à noite.
Fizemos outras atividades sobre Relações de Gênero e Sexualidade com outras turmas.
No dia 5 de maio de 2016, tive a sorte de entrar na sala do 1º ano na 2ª aula (8h20min-9h10min).
Estava desde a 1ª aula na escola, 7h30min. Todos os professores e professoras estavam na
escola, assim não havia possibilidade – teoricamente – de desenvolver atividade. Porém,
imprevistos acontecem, e temos de estar prontos. A Professora Nise tinha se retirado da escola
às pressas, pois não se sentia bem. Então, imediatamente, me dispus a entrar na sala de aula do
1º ano. Precisava apenas da caneta para o quadro branco. Entrei na sala, alguns sentados, outros
se levantando para sair, grupos de meninas conversando, grupos de meninos conversando.
Assim que entrei, a primeira coisa que notei foi que as meninas ocupavam um lado da sala e os
meninos, outro. Apresentei-me para a turma e logo pedi que fizéssemos uma rodada de
apresentações. Eram vinte e um alunos dentre os quais treze eram meninas e oito meninos. A
faixa etária variava entre 15 a 19 anos. À medida que eu falava propondo a atividade, eles me
interrompiam querendo saber de onde eu era. Já falamos disso na introdução, sobre a
curiosidade deles em saber de que “país” eu venho. Curiosidade suprida. Resolvi, então, ir logo
propor a construção de uma lista no quadro. Vamos fazer aqui no quadro uma lista, aliás, duas,
sugeri a eles, “o que é ser mulher”, e outra lista “O que é ser homem?
a) Diário de Campo – 5 de maio/2016 (Oficina Relações de Gênero e sexualidade -
Turma de 1º ano):
● Todxs começaram a querer dar a sua contribuição. Mulher = trabalhadora, disseram
as meninas, - “Homem também é trabalhador”, sentenciou um menino. A agitação
era tanta que a maioria estava em pé, no lugar da carteira, mas em pé. Talvez para
garantir que eu ouvisse e escrevesse no quadro as características que tinham para a
mulher e para o homem. E aí vieram outras características: “Homem é cachaceiro”,
138
[...] uma verdadeira compreensão das mudanças sobrevindas, não só na condição das
mulheres, como também nas relações entre os sexos, não pode ser esperada,
paradoxalmente, a não ser de uma análise de transformações dos mecanismos e das
instituições encarregadas de garantir a perpetuação da ordem dos géneros”
(BOURDIEU, 2005, p. 102-103).
56
“Fazer os corres”: o significado dessa expressão para os nossos interlocutores está relacionado a resolver algum
problema, ir até um local para atender um compromisso, estar na rua para batalhar um dinheiro para não depender
somente dos pais.
139
Não posso deixar de registrar que nossos interlocutores estão sendo entrevistados,
observados, no âmbito escolar, são, portanto, interlocutores-estudantes, e por isso devo
evidenciar, como DaMatta (1991), que, no caso da sociedade brasileira, o que se observa muitas
140
vezes como mudança ou diferença é apenas um pedaço do sistema diferenciado. Quer dizer,
estamos no interior da escola com osinterlocutores , enquanto existem outros espaços, outras
esferas de significação social, esferas de sentido que separam contextos e configuram atitudes.
Conforme DaMatta, casa e rua e outro mundo demarcam “[...] fortemente mudanças, atitudes,
gestos, roupas, assuntos, papéis sociais e quadro de avaliação da existência em todos os
membros de nossa sociedade” (DAMATTA, 1991, p. 53).
A despeito de haver, obviamente, aqueles que digam a mesma coisa em todos os espaços
sociais, o que se espera não é um comportamento único nos três espaços propostos pelo autor,
mas uma conduta diferenciada conforme o ponto de vista de cada uma das esferas de
significação. Diferenciações, essas, que não são alternativas, diríamos, porém, complementares,
“[...] o que faz com que a realidade seja sempre vista como parcial e incompleta”, revela o autor
(DAMATTA, 1991, p. 53). Nesse caso, os interlocutores estudantes do CERG, nessa
propositiva sugerida como atividade, nos informam a partir da sala de aula, dos corredores, do
pátio, por vezes, da rua, quando estiveram eventualmente em grupo reivindicando merenda, fim
da greve dos terceirizados etc.
Ao falar de esferas de significação social, e também para finalizar a seção, integrei aqui
dados do Censo Escolar57 que estão relacionados com a percepção – o ponto de vista dos nossos
atores – sobre o tratamento dado à mulher e ao homem na sociedade, na escola e na família –
distinção entre os sexos nessas três esferas sociais, ou seja, “se a sociedade espera coisas
diferentes da mulher e do homem – expectativa dos sexos”; “Se a família trata seus filhas e
filhos de forma diferente”; “Se existe diferença no tratamento do aluno e da aluna – tratamento
diferenciado na escola entre moças e rapazes”. A resposta era de escolha simples (sim ou não).
Interessante observar o resultado dessas questões que foram propostas – por óbvio –
sequencialmente, correspondendo aos números 37, 38 e 39 do Censo Escolar, em apêndice58.
Por exemplo, na questão 37 – se a nossa sociedade espera coisas diferentes de homens
e mulheres –, a resposta dos rapazes foi afirmativa, ou seja, sim, a sociedade espera coisas
diferentes de homens e mulheres. As meninas também têm a mesma percepção que a dos
rapazes. Assim, percebe-se que, tanto para eles quanto para elas, existem expectativas sociais
distintas baseadas no sexo. Na sequência, vê-se o resultado com os dados da questão 38 – se a
família espera coisas diferentes de seus filhos e filhas. Observa-se que, da mesma forma, a
percepção dos rapazes e moças é a mesma, não há distinção no que se refere às expectativas
entre filhos e filha. Vejamos os resultados:
57
Vide Apêndice II do presente trabalho.
58
Vide Apêndice II do presente trabalho.
141
Feminino 43 68
Masculino 41 54
Total 84 122
% 40,8% 59,2%
Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados do Censo Escolar do CERG (2017).
Quando 82% dos jovens estudantes respondentes afirmam a existência de uma diferenciação na
expectativa da sociedade para homens e mulheres, inegavelmente confirmam uma prática social
que atribui valores distintos para os sexos. Já na questão subsequente – o tratamento da família
para seus filhos e filhas a diferença entre afirmação e a negação é bem menor, indicando um
recuo significativo quando se pensa o núcleo familiar.
Não obstante, importa escutar Marcelo nosso interlocutor, estudante do 2º ano/2016,
líder da turma, aluno estudioso e aplicado, conforme consenso dos professores, e também nosso
bolsista PIBIC Ensino Médio do projeto BN, e que se destaca pela sua estatura – possui
1m83cm, com seus 16 anos, cor preta. Pois bem, ele fez questão de nos contar sobre a relação
com sua irmã de quatro anos: “Lá em casa acontece isso”, confirmando que a sociedade, sim,
59
Foram obtidas 210 respostas.
60
Foram obtidas 210 respostas.
142
espera coisas diferentes em relação ao gênero. E nos afirma que, se depender dele, sua irmã
“não vai casar, digo isso sempre para minha mãe. Ela tem que ser independente”. Ele diz que a
mãe se espanta com isso, e então ele corrige: “Pode até casar, mas tem que ser independente,
ter seu próprio dinheiro”. Não quer ver a submissão da irmã, ou que ela se torne subordinada
ao casamento. “Ela vai ter que ser independente, ter seu próprio dinheiro”. Na questão sobre a
família, com quem mora, profissão e escolaridade dos pais, Marcelo, além de assinalar a
resposta, quer falar que seu pai perdeu o emprego de padeiro por ter sofrido um derrame
cerebral, e hoje se encontra aposentado por invalidez. O pai estudou até a 3ª série do Ensino
Fundamental I. A mãe é dona de casa e é alfabetizada. A família não tem outra fonte de renda,
a não ser a aposentadoria do pai. Marcelo contribui dando aulas particulares de matemática e
português a crianças do seu bairro que necessitam de reforço escolar.
Na questão 39 – se há diferença no tratamento da escola para alunos e alunas –, os
estudantes nos informam que, ao contrário da família e da sociedade, não existe diferença.
Porém, a diferença encontrada é bem mais mitigada do que no caso da sociedade. Mesmo assim,
das três esferas sociais dadas no Censo, a escola é, para os estudantes, um espaço onde não se
diferencia menina e menino como se ela estivesse fora do contexto social, como se ela não
estivesse em convergência com as duas outras esferas de significação social – sociedade e
família.
Essa suave diferenciação poderia produzir aqui algumas questões sobre o lócus da
escola. Um campo sutilmente neutro, imparcial? Uma expectativa desejada ou a realidade
vivida? Para Daniela Auad (2006), o sistema de ensino brasileiro é promotor de sutil e
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Foram obtidas 210 respostas.
143
62
Ao final de cada trimestre, os professores organizam um simulado nos moldes do ENEM – Exame Nacional do
Ensino Médio – envolvendo o conteúdo estudado no período.
144
[...] as estatísticas globais, como, por exemplo, número de anos de estudo para a
população maior de 18 anos, podem ser enganosas, pois englobam em um mesmo
indicador o comportamento diferenciado das diversas coortes. O que podemos
depreender dos dados é que as mulheres dos grupos etários mais jovens têm não só
diminuído as diferenças em relação aos homens quanto à escolaridade, como também
vêm ganhando terreno sobre eles. [...]. Todavia, se o hiato de gênero continuar
crescendo, mesmo que a favor das mulheres, o Brasil estará contrariando as
recomendações das Conferências Internacionais da ONU que apontam para a
equidade de gênero em todos os campos de atividade. Homens com níveis
educacionais muito inferiores aos das mulheres podem dificultar o diálogo e a
convivência entre os sexos. Evidentemente, é preciso elevar os graus de escolaridade
dos homens e não interromper a ascensão das mulheres. Ao mesmo tempo, seria
preciso melhorar a qualidade do ensino para ambos os sexos. (BELTRÃO; ALVES,
2009, p. 153-154).
O gráfico abaixo indica que a taxa de frequência escolar líquida por sexo e por cor ou
raça, é maior na população branca do que na população negra com idade entre 15 a 17 anos no
Brasil em 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Por
cor ou raça, as mulheres brancas superam não só os homens brancos e negros, mas também as
mulheres negras; e mulheres negras superam os homens negros. Cabe dizer ainda que, a partir
do momento em que se universalizou o ensino, elas (meninas/moças/mulheres) passaram a ser
as maiores beneficiadas, reafirmando o hiato de gênero crescente a favor das mulheres.
146
Como a sala de aula e a escola são arena ou contexto socialmente estruturado para a
performação de identidade de gênero, e sua efetiva construção intersubjetiva. De que
maneira, para os meninos e rapazes da escola, a sala de aula, o pátio, e o entorno
seriam lócus de processos de subjetivação de gênero, independente, ou para além dos
processos educativos institucionais (PINHO, 2014a, p. 11).
Quais, então, os termos para interpretar o sucesso maior das moças no CERG no Ensino
Médio? Vejam os índices de matrícula – por sexo/ano-série – (Taxa de matrículas dos três anos
do Ensino Médio), e os índices dos que concluíram – por sexo/ano-série – (Taxa de conclusão
dos três anos do Ensino Médio) nos anos de 2015 e 2016.
Gráfico 5 – Alunos que concluíram o Ensino Médio no CERG – sede – por ano e por
sexo/2015 - Quadro corresponde aos concluintes de cada ano do EM
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados extraídos dos Relatórios dos Resultados Finais –
Secretaria da Educação do Estado da Bahia – Secretaria do Colégio Estadual Rômulo Galvão (2015).
Gráfico 7 – Alunos que concluíram o Ensino Médio do CERG – sede – por ano e por
sexo/2016 - Quadro corresponde aos concluintes de cada ano do EM
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados extraídos dos Relatórios dos Resultados Finais –
Secretaria da Educação do Estado da Bahia – Secretaria do Colégio Estadual Rômulo Galvão (2016).
Nos gráficos acima – evolução das taxas de matriculados e das taxas dos que concluíram
o ano/série cursado durante os anos de 2015 e 2016, sequencialmente, um dos destaques mais
evidentes é o caso do 3º ano. Tanto em 2015 quanto em 2016, os rapazes estão em menor
número entre os matriculados, e também entre os que concluíram o último ano do ensino médio.
Daqueles que concluíram o 3º ano em 2015, 53 são moças, e 31 são rapazes, e essa proporção
permanece quase a mesma no ano seguinte, no qual são 48 moças que concluem, e 25 rapazes.
Chamo atenção para os índices de matrículas dos primeiros anos de 2015 quando os rapazes
atingem um número maior do que das moças matriculadas. Teríamos então uma educação ao
mesmo tempo mais favorável às meninas e menos favorável aos meninos? Esse debate e outros
correlatos foram abordados no livro “The Men and the Boys” de Raewyn Connell (2000), que
nos mostra não somente um resumo das discussões sobre as difíceis relações dos
meninos/rapazes com a escola nos países de língua inglesa, mas também outras diversas
reflexões e pistas para entender e transformar essa realidade. Essas discussões, em verdade,
atravessam os tempos, uma vez que a autora relata situações do início do século XX, e as retifica
ampliando outras perspectivas como as seguintes:
150
Ora, se a escola é frequentemente acusada por problemas sociais de todo tipo, não
havemos de nos surpreender se ela também for acusada pelas dificuldades dos meninos, diz
Connell (2000). Mas sabemos que ela não é a única instituição a influenciar as masculinidades,
talvez nem a mais importante, porque também atuam nesse processo a família e a mídia, entre
outras. Igual situação tem sido observada no Brasil por vários autores (CARVALHO, 2009;
BRITO, 2009; LOURO, 1997, 2013; CASTRO; ABRAMOVAY, 2008). São diversificadas as
formas de organização das masculinidades nas escolas, e os estudantes participam “[...]
simplesmente entrando na escola e vivendo em suas estruturas. Os termos nos quais eles
participam, contudo, são negociáveis – ajustando-se aos padrões, rebelando-se contra eles ou
tentando modificá-los” (CONNELL, 2000, p. 154). Assim, veremos como os nossos
interlocutores vivem essas negociações.
Tadeu é um rapaz da zona rural, estudante do 3º ano. Tem 20 anos (2016). Não conversa
muito com os colegas. No recreio, fica mais na sala de aula do que no pátio. Estatura média,
magro, cabelos curtos, se autodeclara pardo. Eventualmente, quando está no pátio, conversa
com alguns colegas de aula. Quando realizamos um Grupo Focal sobre Recuperação Escolar,
me surpreendi quando solicitou a palavra:
Tadeu: - Sem a escola não somos nada. É oportunidade pra eu ser alguém, alguma
pessoa. Falando assim da minha família. Meu irmão e minha irmã não terminaram;
meu pai e minha mãe não tiveram oportunidade de estudar, não tiveram oportunidade
[repete]. Mas, graças a deus, a mim que [...] e hoje eu tô no 3° ano. Mas os meus
irmãos não chegaram até a 8ª [série]. Só eu cheguei aqui. Eu agradeço a escola pela
porta que se abriu pro aprendizado. Eu pretendo buscar algo que eu me saia bem
também. (Informação verbal)63.
Pergunto então sobre a avaliação da escola na opinião deles, peço uma nota para a escola
de zero a dez, Tadeu diz: “Pra mim eu poderia dar 10 (dez)”.
63
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha, realizado na manhã do dia 7 de abril de 2016,
no CERG, pela autora. Horário: 9h00min – 10h05min.
151
Outros estudantes entrevistados nesse mesmo Grupo Focal foram contrários à opinião
de Tadeu, dando nota sete à escola: Raul, por exemplo, deu nota sete e justificou: “acho que as
aulas poderiam melhorar. Uma sala com mais projetos. No caso de projetos que se relacionam
lá fora, com as empresas, trabalho”.
Em entrevista semiestruturada, alguns jovens nos relatam essa mesma insatisfação de
Raul com a escola. A instituição parece se mostrar distante dos seus interesses e necessidades,
como expressa a resposta acima. Em tal caso, a noção de “culpa” se inverte e o(a) professor(a)
aparece como o(a) culpado(a) dos infortúnios que os jovens dizem enfrentar no contexto
escolar. Para Dayrell e Carrano,
É desta forma que concordo que é a instituição escolar, no que se refere aos concluintes
homens, que constitui o agente dessa exclusão particular, pois, por um lado transforma as
experiências dos estudos – “[...] desencantos dos jovens pela escola” (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2008, p. 3) – e, por outro, causa um desequilíbrio, uma instabilidade (ou crise)
“[...] quando não responde às mínimas demandas pedagógicas dessas crianças” [e jovens]
(CASTRO; ABRAMOVAY, 2008, p. 3). No meio desses entraves estão as expectativas – e
como evoluem no CERG.
O Censo Escolar/2017 nos possibilitou estimar os dados referentes às expectativas dos
estudantes quanto à escola, isto é, medir o nível de importância da escola para o futuro, por
ano/série e sexo. Estamos nos referindo à questão 41, na qual o estudante assinala o grau de
importância da escola para o seu futuro. Assim, cruzamos o resultado dessa questão com sexo
e o ano que estava cursando em 2017. Entre os 204 alunos que responderam à questão, 141
disseram ser “muito importante”, logo, 69,1% do grupo estudado. Desses 141 estudantes, 80
são meninas (56,7%), e 61, meninos (43,3%). Através da Análise de Variância (ANOVA),
comparamos a distribuição dos três anos do EM por sexo, quanto ao grau de importância da
escola. No 1º ano, entre as moças, o grau de significância ficou em 3,58, passando para 3,66 no
2º ano, e 3,19 no 3º. Para os rapazes, 3,51 no 1º ano, 3,37 no 2º ano, e 3,20 no 3º ano. Na
verdade, o que se verifica nesse quadro, de toda forma, é o vetor decrescente, indicando ânimo
abalado dos rapazes frente ao desafio de estudar. E isso parece demonstrar que eles em relação
a elas – e já no 2º ano e de forma bem mais acentuada no 3º ano -, vão colocando o estudo em
outro plano que não é prioritário. Para a tese, essa questão permite afirmar que as expectativas
dos rapazes do CERG, não podem ser encaradas como sinônimo dos desejos pessoais, mas sim
como produto da tensão entre estes e o reconhecimento social das condições objetivas,
vinculados, em última instância, à posição na estrutura social (hierarquia socioeconômica e
escolar), como segue na análise abaixo. Entretanto, vejamos primeiramente o gráfico:
153
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados do Censo Escolar CERG (2017) 64.
Portanto, as moças ingressam no Ensino Médio com uma maior expectativa relacionada
ao futuro em relação aos rapazes. Nessa dinâmica é nitidamente demonstrável que, enquanto a
expectativa das moças cresce na passagem para o 2º ano, a dos rapazes cai drasticamente. A
queda acontece de forma abrupta para ambos os sexos na última passagem, ou seja, do 2º para
o 3º ano. Algo acontece durante a trajetória do Ensino Médio. Assim, me parece importante
mencionar o conceito de esperança subjetiva, definido por Bourdieu e Passeron como “[...]
produto da interiorização das condições objetivas que se operam segundo um processo
comandado por todo o sistema de relações objetivas nas quais ela se efetua” (BOURDIEU;
PASSERON, 1975, p. 166), e que estaria na base da explicação da “[...] mortalidade escolar
das classes populares” (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 166). Na verdade, as expectativas
estão relacionadas diretamente com o planejamento de uma trajetória – as pretensões, a
avaliação de chances, as estratégias. Conforme Bourdieu e Passeron (1992), a baixa expectativa
ou então a “esperança subjetiva”, seria um condicionante da “mortalidade escolar”. Ou, dito
com outras palavras, o desalento provoca a auto eliminação – ou a eliminação sem exame –, ou
ainda, a “resignação à exclusão”, ou como ouvimos em campo “meu tempo já passou” –
expressão revelada por um ex-aluno que interrompeu seus estudos no 2º ano do EM para
trabalhar, e com 20 anos diz que seu tempo já passou.
64
Para a elaboração do Gráfico, utilizei o programa SPSS.
154
Desse modo, cabe explorar algumas dessas condutas e posturas constituídas por práticas
subsumidas pelo próprio contexto escolar quando os próprios estudantes apontam as suas
dificuldades enfrentadas para estudar e, consecutivamente, os motivos para ir à escola. Estas
respostas foram verificadas no Censo escolar, por sexo e por ano/série. Assim, “não ter certeza
se vai ter algum ganho com estudar”, é uma assertiva real, principalmente entre os rapazes, e,
para aqueles que frequentam o 3º ano (46,8% dos respondentes) dos dois sexos. É exatamente
nesse último ano do ensino médio que vimos a queda no grau de expectativa, todas as
expectativas que poderiam existir, se dissolvem durante o último ano do ensino básico, como
demonstrado no gráfico acima.
Sim, é no último ano do ensino médio que o nível de perspectiva de futuro x escola, cai
bruscamente para ambos os sexos, com uma diferença quase imperceptível entre eles (3,199
para os rapazes – 3,195 para as meninas). Nossos olhares se voltam para este resultado e faz
com que interroguemos: o que acontece que os faz perder a vontade, o ânimo, a motivação?
Ou, o que os desanima? Ou, alguma coisa acontece durante o curso, mais especificamente para
eles, já na passagem do 1º para o 2º ano, e para ambos os sexos, na passagem do 2º para o 3º
ano?
Esse gráfico impressiona, talvez porque estaria indo na contramão da trajetória “natural”
das coisas. Dados da pesquisa permitiram verificar que, na medida que o processo do ensino
avança, as expectativas de futuro decrescem. O que escutaremos de alguns rapazes, como
veremos a seguir, corresponde às incertezas – inseguranças, dubiedades – quanto ao papel da
escola, ou seja, referem-se à ausência de diálogos de seus professores sobre projetos de futuro.
Para demonstrar objetivamente os “desencantos dos jovens pela escola”, escutamos
nossos interlocutores nas atividades propostas no campo, nas rodas de conversa, nos grupos
focais, que a escola é uma das referências básicas para os jovens, não só pela ideia de que é
necessária para o mercado de trabalho, mas também [e principalmente] pelas relações com os
colegas – sociabilidade de pares. A seguir, iremos passar a descrever as falas e os diálogos dos
interlocutores a partir de um grupo focal intitulado “Fui pra recuperação, mainha” (PÉ DE
PRANTA, 2013). O nome foi dado em alusão ao vídeo que serviu para introduzir o tema da
recuperação escolar/desempenho escolar. Ao pesquisar material para desenvolver esse Grupo
Focal, meu orientador me apresentou esse vídeo encontrado por ele na internet. Confesso que
meu estranhamento foi total.
Ao assistir ao vídeo, me deparei com um show de expressões populares baianas,
especificamente usadas pelos jovens daqui, com gírias bem específicas, todas reunidas, em
apenas 6min39s. Ali, o ator reproduzia com muito humor e graça as confusões vividas pelos
155
jovens estudantes ao terem de apresentar para os pais, nesse caso, a mãe, o resultado dos
estudos, as notas do boletim. A mãe do estudante do esquete, inclusive, é representada pelo
próprio ator.
João Pimenta, o ator – conhecido como “Pé de Pranta”, conta em entrevista
(ENTREVISTA..., 2011), que a ideia do canal de humor surgiu quando ele estava com vontade
de fazer uma peça, mas não tinha dinheiro. Em uma semana obteve 16 mil acessos do seu
primeiro projeto “Pé de Pranta”. Todo um glossário próprio do jovem baiano estava
representado descrito ali, caricaturado com muita criatividade, e muita agilidade vocal. Tudo
se passa em um só plano, em que o ator se comunica diretamente com o espectador jovem,
nesse caso específico, o jovem baiano, por explorar o dicionário “baianês”. Pimenta usa uma
boina preta, óculos escuros, calça preta na altura da cintura, uma medalha dourada pendurada
no pescoço e camiseta branca, e vai alertando ao espectador, já de início, das dificuldades da
tarefa de levar à mãe o boletim repleto de notas vermelhas. Alerta, ainda, que a mãe, ou as mães,
não são pessoas fáceis de serem engambeladas, e que todo pivete que apronta, não sabe
disfarçar, já chega em casa “todo escabreado”. Aí começa a representação do “pivete” chegando
em casa. Em seguida, nesse mesmo plano, entrando pelo lado oposto, a mãe, com um chapéu
de palha cobrindo os seus cabelos cor de rosa, uma capa branca, óculos escuros, logo diz “o que
foi, menino”? Tudo isso causa uma agitação geral na sala de aula cada vez que exibimos o
vídeo. Risos, exclamações, inclusive quando escutam o nome do estudante representado pelo
ator: Vanderlivison.
156
dentro desse universo particular, a relação deles com a escola e com seus pares, tanto
masculinos quanto femininos, como a descrição abaixo:
Assim, “uma escola cheia” é vista por eles como uma escola com mais possibilidades
de troca, inter-relações mais intensas. Além disso, a ideia de dispersar alunos e alunas – não os
manter em um prédio único, é um assunto que gera muitas reclamações: “esse ano... a galera da
resenha66 fica mais espalhada, o canto da resenha fica lá pra cima”; “aqui era cheio, tinha muito
mais galera pra resenha”. Com a exclusão do turno da tarde, a escola teve que aumentar o
número de turmas e, assim, está utilizando o prédio anexo, onde ficam a secretaria e o refeitório.
Por isso, os estudantes consideram que a resenha ficou mais espalhada.
Nessa perspectiva, para estabelecer interações entre si e em rede, “[...] não basta estar
com os outros homens. O que se faz com eles — beber, fumar, partilhar, conversar, competir,
brincar e discutir — são atividades coercivas. E não são feitas com qualquer homem, mas sim
com iguais sociais” (ALMEIDA, 1995, p. 176). Assim, mesmo espalhada, a resenha resiste.
Fazer parte, pertencer a essas redes interdependentes que são os pequenos mundos nos/com os
quais os indivíduos interagem, evidenciam, conforme Almeida,
65
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha”, na manhã do dia 30 de março de 2016, no
CERG, pela autora e pelo pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min – 11h10min.
66
Resenha na gíria significa festinha, baladinha, baguncinha, esquenta (período que antecede algum evento), juntar
os amigos pra se divertir, conversar, tocar, cantar juntos.
158
E lá na escola, no CERG, não era difícil ver grupos de amigos, independente do ano que
cursam, ou melhor, não necessariamente colegas da mesma turma, se reunindo no recreio para
conversar, compartilhar notícias, música, “trocar uma ideia”, ou então, para tocar instrumentos
em conjunto. Foi o caso daquela quarta-feira de novembro. Ao soar o sinal para o início do
recreio, um grupo de rapazes, decidiu pedir os instrumentos do acervo da escola. Instrumentos
concedidos, eles se dirigiram ao pátio, próximo ao prédio anexo.
a) Diário de Campo – 16 de novembro/2016:
● Quarta-feira. Circulando no recreio, observei os rapazes dos primeiros, segundos e
terceiros anos, com alguns instrumentos de percussão, tocando alguns temas
rítmicos. Esses instrumentos são do próprio acervo da escola. Esse foi um momento
muito importante, em que percebi que além de se tratar de um grupo de colegas, se
tratava de um grupo de amigos, companheiros e parceiros. Todos ali tocam juntos
em outras situações, não só situações escolares, mas fora dali, inclusive três deles
formavam, com outros amigos, um grupo de pagode. Simultaneamente, ou além do
ato de tocar, eles brincavam o tempo todo, conversavam entre si, e também alguns
dançavam, ensaiavam alguns passos já elaborados em outros momentos. Em certo
momento, chegou o coordenador pedagógico – e disse que o horário do recreio já
havia acabado. Eles pediram que ele deixasse mais um pouco, mas o coordenador
alegou que o som invadia a secretaria, que não se podia ouvir o telefone e que eles
não insistissem. Então foram deixar os instrumentos na sala da Direção. Eles
estavam no pátio, próximo à quadra, na frente do prédio anexo que esse ano está
fechado.
159
Quando eles interromperam a execução, perguntei se poderia tirar foto. Disseram que
sim, não teria problema. Assistindo e captando algumas imagens, escutava, obviamente, os
rapazes tentando se organizar. Um deles demonstrava liderança e assinalava a hora de iniciar e
finalizar a sequência de toques que estavam executando. Alguns estavam de bermuda, mas
todos usavam a camiseta da escola, a “farda” – o uniforme obrigatório a todos os estudantes.
Queriam utilizar aquele momento experimentando novas frases rítmicas, passando seus
162
das salas de aula e de outras dependências. Então, o que se observa são grades sobre grades,
cadeados, às vezes dois na mesma porta. Destaco o dia 12 de maio/2016.
b) Diário de Campo – 12 de maio/2016:
● “Tô louca pra ir pro rádio67”, disse a diretora. Pois é, cheguei à escola por volta das
8h00min. Ao me aproximar da escola, percebi alunos e alunas voltando em grupos;
pude reconhecer três grupos e estudantes do CERG. Estranhei, muito cedo para
estarem de volta. Que surpresa nos espera na escola, pensei. Ao chegar, o portão
aberto, escancarado, suspeitei que algo acontecia. O portão é vigiado, toda a manhã
por uma funcionária que está sentada atrás de uma mesa, e controla a saída e a
entrada de todo mundo. O portão é implacavelmente fechado por um cadeado. Já
relatei aqui o “caso” desse portão. Digo “caso” porque realmente o portão, sendo a
única entrada e saída da escola, é rigorosamente controlado. Mas não é só isso, os
estudantes se reúnem ali próximo ao portão, entre a mesa que está a funcionária e o
portão. Se, porventura, existir um descuido dela, existirá a “fuga” de um ou mais
jovens, ávidxs pela rua, ou melhor, pela liberdade.
● Entrei na sala dos professores, onde a diretora explicava para a professora de
matemática o que estava acontecendo. A situação é a seguinte, conforme relato da
diretora: as merendeiras não vieram. Consequentemente, não haverá merenda. “Eles
não estão recebendo”, disse ela à professora.
● Nos corredores, muitos estudantes com suas mochilas nas costas dizendo que vão
embora. “Então que vão, mas se decidam”, gritava um pouco depois a diretora para
os estudantes. O vice-diretor, quando me viu, saiu da cadeira do computador na sala
da direção e pediu que os estudantes voltassem para as salas de aula. Esse é um
comportamento que ele repete quando eu chego à escola e xs alunxs estão pelos
corredores. Parece-me que, em certo sentido, quer frisar que ali tem ordem ou que
ele assim justifica sua função de mantê-la. Ou, quem sabe, mostrar para mim que a
escola funciona – todos em aula, na santa paz (?). Não sei.
● A diretora circulava entre os estudantes, entrava na sala dos professores, saía,
entrava na sala da direção, estava muito agitada. Disse em alto e bom som que se
67
Fui saber depois, no início de junho, a partir de uma conversa com o estudante Caíque, nosso bolsista PET de
cinema, que a rádio “do poste” como disse ser chamada esta rádio – através de alto-falantes colocados nos postes,
em alguns de maneira estratégica, participam os acontecimentos da cidade, desde as ofertas e/ou os próprios
estabelecimentos comerciais, até a participação de falecimentos. Quando a diretora diz “Tô louca pra ir pro rádio”,
entendi: a Rádio também está disponível para os habitantes de São Félix para reclamações, denúncias, enfim, todo
e qualquer tipo de contestação, protesto. Nesse caso, interpreto esta colocação da Diretora como ter de ir a rádio
para se explicar, ou melhor, esclarecer a ida do grupo de estudantes ao fórum da cidade.
165
● E saímos, Joaci, Sávio e eu, de volta à Cachoeira, com a cabeça debaixo do sol,
queimando, escaldando. As ideias junto, escaldando, queimando, buscando
caminhos, saídas, um espaço para a esperança.
Como disse, a merenda mereceria um capítulo especial. Ao fim e ao cabo, a terceirização
engloba tanto funcionários da merenda quanto da limpeza, segurança, secretaria e serviços
gerais. Desde 3 de julho – dia da volta às aulas para o segundo semestre –, o cotidiano escolar
está sendo prejudicado pela falta de funcionários terceirizados, que são responsáveis pela
limpeza da escola, merenda, segurança, secretaria e serviços gerais – a questão do pagamento
desses funcionários ainda não foi resolvida. Desde o início do semestre, a Escola até tentou
minimizar a ausência, providenciando o deslocamento de outros funcionários concursados para
atender à demanda desses setores essenciais. Os estudantes, por várias vezes, se posicionaram
e pressionaram a Direção da escola, exigindo medidas mais efetivas para o problema que já se
arrasta há 8 meses – até agosto.
e) Diário de Campo – 16 de agosto/2016:
● Hoje os alunos decidiram não comparecer. Tiveram aula ontem, dia 15, entretanto,
no meio de tanta sujeira, resolveram que, a partir do dia seguinte, não iriam mais à
escola se as condições ainda continuassem as mesmas.
● Diretora e vice-diretor estavam na secretaria na minha chegada. Fui até lá. Comecei
a conversar com eles e quis saber o que se passava e me relataram isso: no dia
seguinte, a direção e os professores iriam conversar com os alunos para
“conscientizá-los da situação” e saber o que poderia ser feito, conforme disse a
diretora. Ela é cuidadosa e me repetiu que os alunos é que estão à frente desse
movimento de parar as aulas por causa das condições precárias.
f) Diário de Campo – 11 de maio/2016:
● Manhã de quarta-feira. Converso com o Professor Ivan, de Geografia, sobre várias
outras coisas, entre elas, a Reunião de Professores na qual ele, inconformado,
reclama da mesmice, dos temas – “resistências” que não avançam, que não se
desdobram. E porque resistem em se encontrar saídas, ficam tomando o tempo na
insistência impertinente de irem se arrastando esses temas tão básicos e seculares.
São eles no discurso de Ivan: a fuga dos estudantes – ou a saída sem autorização –,
o número de estudantes circulando nos corredores e nos espaços que não são a sala
de aula, “o que vamos fazer”? Mais muros, mais guardas, mais grades sobre grades?
E aqui, observa Ivan “Veja, Beatriz, pra que tem uma cerca aramada além das
grades, não parece um presídio”?
168
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política
das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus
elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia
política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela
define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que
se façam o que se quer, mas para que se operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim, corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis”. (...) Em uma palavra, ela dissocia o poder
do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura
aumentar; e inverte por outro ela a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz
dela uma relação de sujeição estrita” (FOUCAULT, 2004, p. 133-134).
68
Michel Foucault denomina essas instituições de instituições de sequestro, lugares de confinamento dos corpos
que serão submetidos ao processo disciplinador (VEIGA-NETO, 2011, p. 64-65). Integram, assim, o aparato
controlador do uso de uniformes, da vigilância, da regulação estrita do horário e das disciplinas, do controle sobre
o corpo, da realização de exames (provas) e revistas, a adoção de posturas e atitudes que integrem o sujeito no
modelo previamente estabelecido e desejado pela instituição. O propósito é converter o interno dócil e aproveitável
no sistema produtivo capitalista, que engendrou todo esse aparato por meio da disciplinarização da vida.
169
[...] apenas sujeitos a discursos. Isso equivale dizer que nunca foram sujeitos de dizer;
a escola não lhes permite subjetivar-se, trazendo o mundo da vida do qual provêm ao
ambiente escolar para dinamizá-lo e transformá-lo), mas apenas apaga pelo
silenciamento discursivo (ideológico e histórico) esse mesmo mundo. A escola cria
um mundo à parte, com a ilusão de neutralidade e univocidade do dizer, apoiada pelas
disciplinas que tornará os alunos dóceis e repetidores do sistema ideológico ao
regressarem à realidade da vida, num (suposto) futuro “mundo do trabalho”. Mascara-
se essa realidade com o discurso segundo o qual a escola é “promotora da ascensão
social” e “abertura das possibilidades de trabalho”, o que, sabemos, não corresponde
à realidade. O que ela faz é apenas atuar como mais um instrumento construtor do
sistema sócio-político-econômico vigente, apagando ideologicamente as diferenças e
desigualdades sociais (uso de uniformes [fardas], etc.) (PEREIRA, 2013, p. 85).
Paulo: - Comigo aconteceu ano passado, fui pra recuperação de tudo, véi.
Pesquisadora: - Por quê?
Paulo: - Só queria saber de bater baba69, ficar no corredor, namorar. Quando foi no
fim do ano, vi a bomba!
Mariano: - É um desestímulo. Eu acho que é falta de estímulo. Porque, no caso, a
gente tem um professor Massa70. O jeito que ele dá aula faz com que a gente queira
assistir a aula...
Paulo: - E, se a gente pegar a aula de um outro professor, a gente nunca vai deixar de
ficar no corredor, sentado, sem fazer nada, pra assistir a aula dele. Porque a turma
toda, se você perguntar, vai preferir ficar no corredor, sem ter o que fazer. (Informação
verbal)71.
Para eles, estudantes, o CERG poderia se resumir em um lugar para resenhar com os
amigos, bater baba e assistir aula do Professor Ivan. O professor, como já mencionei, participa
do nosso Projeto “Brincadeira de Negão” desde os seus primeiros passos, o que também quer
dizer que é o nosso elo com a escola, proporcionando mais agilidade na nossa inserção no
campo, interferindo junto à direção, inclusive quando é necessário efetivamente organizar um
evento nosso na escola, além de facilitar o próprio andamento. Ele é jovem, tem 33 anos.
Graduado em Direito e em Geografia pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL), e pela
Universidade Federal da Bahia, respectivamente. Magro, até bem pouco tempo ostentava
dreads72 compridos. Sua atuação em sala de aula, ou fora dela, faz que os alunos o admirem e
69
Bater baba significa jogar futebol.
70
“No Brasil, em conversas com pessoas mais jovens e/ou nos chats na internet, podemos perceber o uso da
expressão "que massa!" ou de suas variações com sentido de: bom, legal, chique, bonito, elegante, etc.” (DE
ONDE..., 2019).
71
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha”, na manhã do dia 30 de março de 2016, no
CERG, pela autora e pelo pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min – 11h10min.
72
Esse penteado surgiu muito forte com o movimento rastafari, onde o cabelo fica com aspecto de cordas. Os
primeiros a utilizarem os dreads foram os habitantes da Etiópia que começaram a ser utilizados por questões de
praticidade (PENTEADOS..., 2018). Os dreads são referência e foram popularizados pela religião e cultura
Rastafari, conhecida por membros famosos como o cantor Bob Marley.
170
Os maiores entraves para melhorar o fluxo educacional dessas crianças [jovens] são
internos ao sistema, e decorrem de uma série de procedimentos pedagógicos
extremamente autoritários, marcados por ‘desvios culturais’ que acabam por reforçar
as desvantajosas dificuldades sociais (CASTRO; ABRAMOVAY, 2008, p. 3).
Ainda conforme Castro e Abramovay (2008, p. 6), “[...] o risco da educação trair seus
princípios humanistas, convertendo-se em peça de violências, quer pela anuência passiva a um
estado de coerção, quer pela participação consentida tanto como instituição, ou por seus
agentes”, docentes em abusos de poder, e mesmo o ensino de baixa qualidade, mais se
caracteriza por um poder de capital simbólico.
Assim, volto a perguntar o motivo da recuperação:
Paulo: - A falta de interesse... só que, essas atitudes - de alguns professores-, leva que
alguns casos sejam dependentes da atitude do professor. Porque assim, nós somos
jovens, pra gente qualquer besteira já é um problema... E aí, por exemplo, a gente
brigou com a namorada, chega no colégio a gente quer alguma coisa pra distrair, pra
relaxar a mente... Aí você pega aquele professor naquela, naquele Império dele, que
só ele tem. Aí não dá, não tem, não funciona. (Informação verbal, grifo nosso) 73.
Argumenta-se aqui, desse modo, que mais do que censurar a omissão ou a relativa
participação de professores, é necessário e urgente atentar para as distintas dimensões, como:
as parcas condições materiais das escolas brasileiras, em especial, as públicas; “o não
reconhecimento da importância dos professores e a insatisfação de alunos em relação a sua não
participação como sujeitos de mudança na/da escola” (CASTRO; ABRAMOVAY, 2008, p. 2)
– a própria falta de investimentos por representação juvenil. Acrescentaria ainda nesse rol de
73
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”, realizado na tarde do dia 19 de agosto de
2015, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Paulo Roberto. Horário: 14h20min – 15h15min.
171
Joel: - Minha mãe... minha mãe fica no pé. A vida toda sempre foi minha mãe.
Mariano: - Às vezes eu deixo o caderno na mão das meninas. E daí chego sem
caderno. Aí descobre e tenho que ouvir.
Paulo: - Minha mãe diz que tem que ir por causa do bolsa família senão corta. Ela
agora tá desempregada, mas ela trabalha também. Quando ela tá desempregada só
dependia do bolsa família.
Hugo: - Vendo o vídeo eu lembrei da 5ª série quando eu perdi. Era pancadaria da
Porra.
Mariano: - Eu só penso assim: pô, como é que eu vou falar em casa? (Informação
verbal)74.
De modo geral, os rapazes relatam uma cobrança da família, principalmente da mãe, por
ela estar mais presente na vida diária. A ausência da figura paterna no discurso dos
interlocutores, muitas vezes, está relacionada à ausência física (e/ou afetiva) do pai, outras vezes
pela atribuição compulsória da mãe nesse caso de cobrar o empenho escolar dos filhos. Ou,
como na fala de Murilo, em entrevista semiestruturada: “- A minha mãe sempre foi o meu pai
e a minha mãe. Ela sempre conversou muito comigo, ela sempre me instruiu muito nas coisas”.
3.5 A escola como lugar de gênero: masculinidades & feminilidades, relações de gênero e
desempenho escolar
Voltamos assim para o Grupo Focal para buscar entender mais sobre os processos da
recuperação escolar. Querendo explorar melhor o tema entre os rapazes interlocutores,
perguntamos sobre quais os fatores, as causas envolvidas.
74
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”, realizado na tarde do dia 19 de agosto de
2015, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Paulo Roberto. Horário: 14h20min – 15h15min.
172
que estudá, chega aquela menina bonita. O cara tem que olhá. Dá ousadia... ousadia...
aí é “zica ... (Informação verbal)75.
Alberto, Odair, Sérgio e Carlos são os rapazes que gostavam de tocar em grupo na hora
do recreio – (conforme fotos 18, 19 e 20 deste trabalho.). Quarteto inseparável. Sempre que um
deles nos vê passar pelo corredor – refiro-me a nós, do BN, muitas vezes para conversar e
combinar uma atividade, um Grupo Focal ou uma Roda de Conversa –, se aproximam para
saber do que se trata ou qual o tema da conversa. Em seguida, chamam os demais. E todos os
quatro participam juntos. Disse antes que nem todos pertencem a uma mesma turma nem são
todos do mesmo ano/série. Constituem um grupo que está junto na escola e em outros espaços.
Sérgio é o mais falante deles e costuma se posicionar no plural como se fosse porta-voz do
grupo. Foi a primeira vez que ouvi a palavra “ousadia” nesse contexto. “Dar ousadia” significa,
nesse contexto, dar atenção, liberdade, importância. E quando isso acontece, na fala do Sérgio,
“é zica”, algo que é um problema, algo que sempre desencadeia confusão.
Rapazes e moças, de todo modo, estão separados no espaço da sala de aula, mas também
nos corredores, nos grupos da resenha, no pátio, no refeitório, quando se deslocam entre a sala
de aula e a quadra de esportes, na rua, indo ou voltando da escola, nas eventuais saídas por
razão de reivindicações, como já descrevemos, andam juntos com seus pares – rapaz com rapaz,
moça com moça.
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha”, na manhã do dia 30 de março de 2016, no
75
CERG, pela autora e pelo pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min – 11h10min.
173
O caso da sala de aula, que na grande maioria está dividida por sexo – moças de um lado
da sala, rapazes de outro –, tende a sugerir um contexto espacial que organizaria
minuciosamente os movimentos e os gestos, tornando a escola um território onde circulam
relações de poder (COUTO, 2011, p. 117). Nessa lógica, como é possível inferir através da
leitura dos textos de Guacira Louro (2004; 2003), e da nossa experiência de campo no CERG,
a escola é produtora de diferenças, distinções e desigualdades. A interação das professoras ou
dos professores é notadamente diferenciada segundo o sexo do estudante. Ou seja, na sala de
aula, o rapaz, quando abordado pelo(a) professor(a) é para ficar em silêncio, terminar com a
conversa. Já com as meninas, a abordagem é outra, requerem dela atenção para permanecer
conectada com as tarefas.
Conforme observado em sala de aula, meninas geralmente se sentavam em grupos de
meninas e os rapazes, igualmente. Alguns se sentavam em duplas do mesmo sexo, outros
preferiram ficar sozinhos. Eram raras as vezes que observei meninas e rapazes sentados juntos.
Quando isso acontecia era por interferência do/a professor/a, que incomodava com tumultos
muito exagerados.
Ainda através das observações em sala de aula, também é possível reiterar que existe
uma separação expressa entre meninas e rapazes nesse ambiente, bem como nos corredores, no
175
momento do recreio e em outros espaços. As relações de gênero ocorrem das mais variadas
formas e geralmente de forma sutil.
Para Auad (2006, p. 144), em sua pesquisa em escola de ensino fundamental I, isso
acontece como se as meninas tivessem de ser “boas alunas” e coubesse aos meninos apenas não
atrapalhar o bom desenvolvimento dos trabalhos. Como iremos ver a seguir no relato dos nossos
interlocutores sobre o desempenho das meninas, e que “[...] apesar das demandas por disciplina
diferenciadas para meninas e meninos e dos modos, por vezes distintos, de meninas e meninos
se expressarem” (AUAD, 2006, p. 144), as meninas não são, de modo geral, um grupo mais
acanhado, introvertido.
Tanto no que se refere às rotinas do cotidiano, quanto ao lazer ou à própria sexualidade,
rapazes e moças parecem habitar mundos coexistentes, mas divididos, como aponta Pinho no
artigo “A vida que vivemos: raça gênero e modernidade em São Gonçalo” (2006. p. 189). Para
o autor, “[...] o sistema dos gêneros determina com consistência os distintos universos de
sentido para garotas e garotos” (PINHO, 2006, p. 189), e que poderia representar, muitas vezes,
uma “guerra dos sexos”, porque mesmo que elas e eles, de alguma maneira, estejam expostos
a padrões socioculturais comuns, lidando com expectativas afins em relação ao trabalho, ao
consumo, por exemplo, as chances desses sonhos ou desejos parecem ser muito diferentes,
afirma Pinho (2006, p. 189-190).
Portanto, não se pode reconhecer essas diferenças entre meninas e meninos como
naturais, e sim efeitos do modo como as relações de gênero foram construídas na nossa
sociedade ao longo do tempo. A escola que a sociedade ocidental moderna herdou, além disso,
separa adultos de crianças, ricos de pobres e meninos de meninas, como os estudantes aqui nos
informam quando falam das meninas. Entretanto, da mesma maneira que também constato até
aqui por meio da pesquisa, Louro (1997, p. 61) sublinha que os sujeitos não são passivos
receptores de imposições externas. “Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas
aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente” (LOURO, 1997,
p. 61).
Ser corajoso e sair da sala quando essa está “muito chata”, tomar a iniciativa, infringir
as normas da escola corresponde a uma representação corrente do masculino, e de certa forma
essa representação permanece em conformidade com os meandros de gênero culturalmente
vigentes em nossa sociedade. “Ela tem mais paciência”, “O menino não”.
Os rapazes – Sérgio e Odair – relatam que as meninas têm um outro lado, são elas que
atrapalham a aula, que abusam77, até podem ser piores do que os meninos, “em vez dos meninos
brigarem, eram elas que brigavam”. Em pesquisa realizada com crianças das classes populares
em escola pública sobre a construção da subjetividade, Nara Bernardes (1992) revela que as
meninas não participam tão prontamente da bagunça porque sabem que isto não é considerado
apropriado para elas, mas muito reservadamente o fazem sem chamar a atenção da professora.
Embora seu repertório se mostre diferente do repertório de bagunças masculinas, continua a
autora, as meninas também são bagunceiras; porém, de forma menos ostensiva e visível
(BERNARDES, 1992). Em linhas gerais, e no caso do CERG, aquele “canto tenebroso”, onde
as meninas “dão tudo de todo mundo78”, descrito acima, é feito reservada e dissimuladamente,
sem conhecimento dos professores, na maioria das vezes, a ponto de os rapazes salientarem
isso com muita ênfase.
76
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha”, na manhã do dia 30 de março de 2016, no
CERG, pela autora e pelo pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min – 11h10min.
77
Abusar: Significa perturbar, encher o saco, ficar no pé. Muito utilizado entre os jovens baianos.
78
Dar tudo de todo mundo: Significa contar pormenores da vida alheia, no caso, contar pormenores dos outros.
177
Já Marília de Carvalho (2009) aponta que a exigência feita para com os meninos/rapazes
não costuma ser a disciplina em si, haja vista que as representações de masculinidades das
professoras os incentivem a aceitar alguma dose de insubordinação como traço masculino. Na
verdade, ao mesmo tempo que os meninos e meninas – rapazes e moças – se apropriam de
princípios tradicionais de masculino e de feminino, por outro lado, também atravessam os
padrões habituais em suas brincadeiras, jogos e atitudes, e exercitam novos modos de ser.
Conforme Auad (2006, p. 144), “é possível afirmar que, de diferentes maneiras, a escola
parece utilizar, no caso das meninas, as habilidades produzidas pela educação fora da escola,
como na família, de modo a facilitar o rendimento na sala de aula”. O papel de “boa aluna que
ajuda os colegas” também é uma dessas demandas, com a qual as meninas angariam algum
poder ao assumir, diante das professoras e dos meninos, maior responsabilidade sobre o bom
funcionamento da classe. No CERG, é comum observar os rapazes solicitarem os cadernos das
meninas para atualizar, copiar conteúdos, como iremos abordar adiante. Esse tipo de fenômeno
pode ser percebido como reforço à tradicional socialização feminina e é um modo de perpetuar
uma determinada divisão sexual do trabalho, como revela Claude Zaidman (1994, p. 91).
A despeito dos futuros adultos que esse tipo de conceito prepara, é imprescindível
pensar nos efeitos desiguais causados por tais práticas aos alunos e alunas enquanto ainda são
crianças. Afinal, o problema das práticas desiguais não reside apenas nos seus malefícios
futuros, mas nas distinções e hierarquias que implementam no presente vivenciado pelas
crianças (AUAD, 2006, p.145).
Ora, como sabemos, o gênero surge como categoria de análise e se apoia na relação
entre duas proposições: "[...] gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de
significar relações de poder" (SCOTT, 1995, p. 34). A primeira ideia está conectada ao processo
de construção das relações de gênero e sublinha a importância dos procedimentos de
diferenciação pelos quais, em cada contexto histórico, são formulados e reformulados, em
termos dicotômicos, os conteúdos aparentemente fixos e coerentes do masculino e do feminino.
A segunda está relacionada à pertinência do gênero como categoria de compreensão histórica
de outras relações de poder. Por isso, a autora reforça uma utilidade analítica para o conceito
de gênero, para além de um simples instrumento descritivo, e chama a atenção para a
necessidade de se pensar na linguagem, nos símbolos, nas instituições, e sair do pensamento
dual que recai no binômio homem/mulher, masculino/feminino (SCOTT, 1995). Scott (1995)
desenhou uma nova maneira de se pensar gênero, a partir de uma crítica a outras concepções,
178
inclusive a do sexo/gênero, defendida por Gayle Rubin (1975) que, em sua opinião, eram
incapazes de historicizar a categoria sexo e o corpo.
Para os estudos de gênero “[...] não existe uma determinação natural dos
comportamentos de homens e mulheres, apesar das inúmeras regras sociais calcadas em uma
suposta determinação biológica diferencial dos sexos” (GROSSI, 1998, p. 4).
Com o exposto, podemos arguir que, desestabilizando a ideia normativa, e admitindo o
questionamento de sistemas, instituições e práticas, é possível avançar, desse modo, para a
compreensão de como o gênero é produzido e nomeado. O desafio, quem sabe, seja considerar
que não há posição imutável, que nenhuma é natural que não possa se mover e que ao mesmo
tempo não está afastado de relações de poder, historicamente implicados neste processo.
Não existe, assim, uma forma de “ser homem” ou uma forma de “ser mulher”, como
nos informam também nossos interlocutores : “elas brigam”, e muitas vezes são “piores que os
meninos”, parece ficar demonstrado por parte dos rapazes, uma outra compreensão/aprendizado
apoiada/o na pluralidade e na variabilidade dos significados produzidos nessa interação. Como
pontua Pinho: “[...] a relação entre as práticas de gênero e o exercício da sexualidade parece
clara e indica uma correlação entre os modos adequados de ser homem ou mulher,
essencialmente vinculados aos lugares estruturais de gênero” (PINHO, 2006, p. 188). Nesse
mesmo sentido, devemos imperiosamente evidenciar também o modo hierárquico e a clareza
na expressão das diferenças irredutíveis de gênero que nos remetem a um “[...] modo não
precisamente moderno, ou mais precisamente individualista de relações de gênero”, como
explica o autor (PINHO, 2006, p. 190). E interrogaríamos junto com ele:
Em que medida esse aspecto seria devido à determinada ‘demora cultural’ que faria
com que grupos populares apresentassem esse enigmático déficit de modernidade?
Tenderíamos a explicar essa diferença, que aparece como diferença cultural
irredutível, como o modo concreto de atuação de práticas de gênero em contextos
estruturados socialmente, nos quais as condições materiais de existência têm aspecto
determinante (PINHO, 2006, p. 190).
Em suma, a diferença entre homens e mulheres é um fato anatômico que não teria
nenhuma significação em si mesmo, não fossem os arranjos de gênero vigentes. O fato de
reconhecer a diferença – e hierarquizá-la, transformando-a em desigualdade – é um ato social.
A seguir, a fala de nossos interlocutores sobre as meninas, como percebem as relações de gênero
nas práticas escolares.
No segundo grupo focal, sobre a mesma questão, desempenho escolar, Álvaro revela:
179
Álvaro: - Às vezes tem meninas que se adaptam mais rápido, mas só que às vezes é o
interesse. Elas têm um interesse assim, mais desenvolvido que o menino. Os meninos
se preocupam mais com outras coisas, ou parou de estudar. Hoje o menino vai até o
[...] cada dia mais tá diminuindo, e as meninas tão crescendo já muito mais,
conquistando espaço. Porque elas tão tendo interesse e a gente não. O homem foca
numa coisa ali e esquece das outras, e a mulher não, ela é útil, ela faz muitas coisas
(Informação verbal)79.
Quanto à questão do interesse, e para refletir um pouco sobre esse ponto trazido pelo
Álvaro, nosso interlocutor do 3º ano, me parece pertinente citar pesquisas importantes nessa
área das relações de gênero e desempenho (SILVA; HALPERN; BARROS; SILVA, 1999
BERNARDES, 1992; ROSEMBERG, 1990; ANYON, 1990: CARVALHO; REZENDE, 2012;
CARVALHO, 2009) que reforçam a estreita relação de gênero e saber, na qual a vantagem do
interesse delas está anexada com base nos princípios tradicionais de masculino e feminino.
Na sua fala, Álvaro se refere, exatamente, a esses princípios tradicionais de masculino
e feminino, como esse, de os rapazes não encararem com muita facilidade dar conta de múltiplas
tarefas (“o homem foca em uma coisa ali e esquece das outras”); as meninas, ao contrário, “ela
faz muitas coisas”, “se adaptam mais rápido”.
Isso aponta para Connell (2000) no momento que ajusta suas críticas à teoria dos papéis
sexuais. Apesar de partir do pressuposto de que aprendemos esses papéis, e de que eles são
consequência de construções sociais, essa teoria se baseia em uma visão predeterminada do que
vem a ser o papel masculino e o papel feminino. Além disso, teoria dos papéis sexuais dificulta
a percepção de diferenças do grupo de homens e do grupo de mulheres, porque trabalha com
essas duas únicas possibilidades – o masculino e o feminino –, em tese, expressas em termos
de “estereótipos sexuais”. Essa teoria não dá conta das relações de poder entre os sexos, dentro
dos grupos de cada sexo, isso porque trabalha com ideias de diferença e complementariedade,
e não de desigualdade e subordinação, e, por fim, não fornece ferramentas para compreender
as mudanças e a história das relações de gênero.
O próprio e aguçado entendimento dos interlocutores sobre o desempenho e atuação das
meninas na escola, revela que “hoje em dia tá nivelado esse negócio aí”, quer dizer, a
interpretação deles ultrapassa as condutas e ações de obediência, são formas de oposição aos
padrões culturais. Feminilidades e masculinidades são construções culturais que se produzem
e reproduzem socialmente e devem ser definidas, compreendidas e analisadas dentro das
condições históricas e culturais em que o indivíduo se constitui. E, por isso, estão em
permanente processo de transformação, se relacionando entre si dentro de estruturas de poder,
79
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha! realizado na manhã do dia 7 de abril de
2016, no CERG, pela autora. Horário: 9h00min – 10h05min.
180
hierarquizando não somente homens de um lado e mulheres de outro, mas também, certos
homens frente a outros, de forma articulada às relações de poder, de classe, de raça, orientação
sexual, etc.
Como informa Carmen Silva, Fernando Barros, Silvia Halpern e Luciana Duarte da
Silva (1999), a partir de estudo analítico e interpretativo de dados estatísticos colhidos em
quatro escolas da rede municipal de Pelotas (RS), meninos e meninas recebem educação muito
diferente, apesar de estarem sentados na mesma sala, lendo os mesmos livros didáticos,
vivenciando as mesmas experiências, ouvindo o mesmo professor. A pesquisa entrevistou os
professores das escolas buscando investigar especificamente as representações sobre
desempenho escolar através de seus discursos. Assim, o trabalho pôde indicar que o baixo
rendimento estaria concentrado entre os estudantes negros do sexo masculino. Para os autores,
as escolas atuariam como agências reprodutoras de uma sociedade que reserva às meninas o
universo da obediência irrestrita, da passividade, da atenção e da aplicação – mas menos
inteligentes que os meninos (SILVA; BARROS; HALPERN; SILVA, 1999). Esses últimos,
por sua vez, tenderiam, portanto, a serem vistos como mais inteligentes, mas indisciplinados,
malandros, sem hábitos de estudo, sem tempo para estudar em casa.
O Censo Escolar também nos ajuda na busca de dados em relação ao que os move até a
escola e também em relação às dificuldades que enfrentam para estudar. Desse modo, cabe
explorar algumas dessas condutas e posturas apropriadas instituídas por práticas inseridas no
contexto escolar quando apontam as suas dificuldades enfrentadas para estudar e
consecutivamente os motivos para ir à escola. Estas respostas foram verificadas no Censo
escolar, por sexo e por ano/série. Essas questões eram de múltipla escolha – questões onde o
respondente pode assinalar todas aquelas que correspondem a sua realidade. Foram inseridas
as seguintes alternativas no caso da questão sobre as dificuldades que uma pessoa enfrenta para
estudar: cansaço; precisar trabalhar ; a escola é longe; ter que cuidar da casa, dos filhos, ter
outras obrigações; o ambiente da escola é ruim, desanima; não ter certeza se vai ter algum ganho
com o estudo; falta de dinheiro para passagens, livros, cadernos, etc.; falta de base, o ensino é
fraco; por outro motivo. Assim, “não ter certeza se vai ter algum ganho com o estudo”, é uma
assertiva real, principalmente entre os rapazes, e, para os que frequentam o 3º ano (46,8% dos
respondentes) dos dois sexos. É exatamente nesse último ano do ensino médio que vimos a
queda no grau de expectativa, todas as que ainda existiam, se dissolveram durante a última
jornada do ensino básico, como foi demonstrado nos gráficos 3 e 5 deste trabalho.
Por sua vez, o “trabalho” está entre os motivos mais apontados como dificuldade
enfrentada, mais para elas do que para eles (58,4% - 41,6% respectivamente). As moças
181
apontaram ainda mais duas dificuldades relevantes: “ter que cuidar da casa, dos filhos e outras
obrigações”, e o “cansaço”, esse último também reivindicado pelos rapazes, porém em menor
escala:40,4% x 59,6% para elas. A variável “não ter certeza se vai ter algum ganho, estudar” –
o que estou abreviando como “dúvida se estudar é um ganho” –, percebida como uma questão
maior pelos rapazes, é contraposta com a dificuldade da distância [entre a casa e a escola] para
elas. Fica evidente ainda que a escola não desanima as moças tanto quanto os rapazes. Vejamos
o quadro que aponta os motivos que dificultam frequentar a escola por sexo, em ordem
decrescente como descrito acima:
assim, que tanto os rapazes quanto as moças consideram que ir à escola teria como um dos
principais motivos ter uma vida melhor, conseguir um emprego melhor, portanto, o motivo está
na crença de alcançar uma vida melhor. Outros motivos, como obter o certificado, para não
ficar em casa, por causa dos amigos se mantêm em ordem decrescente. Os demais possíveis
motivos não são tão atrativos, como a importância dos professores, e se sentir obrigado a
frequentar o colégio. Vejamos o quadro que aponta os motivos que os levam à escola por sexo,
em ordem decrescente como descrito acima:
O aluno que perde o ano de estudo é aquele que não estuda e, também aquele que
desenvolve outra atividade que não é aquela que determina a escola. Nessa perspectiva, a
Sociologia da educação foi capaz de transcender o discurso da reprodução e da vitimização,
como expusemos acima através do pensamento de Bernard Charlot (2000). Essa questão foi
desvelada a partir de Paul Willis (1988), na sua obra “Aprendiendo a trabajar – cómo los chicos
de la classe obrera consiguen trabajos de classe obrera”. Nessa investigação com os estudantes
ingleses da classe operária, o pesquisador revela que os rapazes desconsideravam a escola,
favorecendo, dessa forma, a reprodução social (WILLIS, 1988). O autor demonstra, que se
queremos compreender os jovens, devemos compreender a escola, e vice-versa (WILLIS,
1988). Para ele, as culturas juvenis são, em grande medida, formas de resistência à opressão e
subjugação que exercem as autoridades (WILLIS, 1988). A escola, em sua perspectiva, é a
principal representante dessa repressão, especialmente no caso dos jovens britânicos da classe
trabalhadora.
O avesso da moeda, também explorado por Willis (1988), é que se a participação nesses
movimentos juvenis consolidados como atos de rebeldia, afirmação e insurreição, “alimenta
um processo local de resistência e de inversão simbólica, por outro lado, vai legitimando a
exclusão dos jovens no sistema e, logo, o fechamento nos círculos sociais e laborais pesados,
precários e explorados, em que já se encontram os seus pais” (ABRANTES, 2013, p. 65).
184
Bourdieu e Passeron (1992) conceberam uma metáfora ao relacionar os dois elementos, capital
cultural. Com uma visão basicamente pessimista, os autores colocam a escola não como um
ambiente mediador e justo com relação ao processo de ensino e aprendizagem, mas como uma
instituição carregada de parcialidade, na qual as diferenças são reafirmadas e toma-se partido
por um discurso dominante e tendencioso. Analisando a desigualdade visível na sociedade, os
escritores destacaram, já de início, o termo violência simbólico, que se tornará palavra-chave
para entender o caminho feito pelos autores, a fim de sinalizar a violência que ocorre na escola,
muitas vezes velada e sutil, quase imperceptível aos olhos dos atores escolares. Bourdieu e
Passeron vão assim discorrer sobre o tema: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo
poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações
de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente
simbólica, a essas relações de força” (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 19).
À vista disso, concordamos quando Collin (1992) afirma que a diferença sexual é uma
questão da práxis, e não uma questão teórica. Mulheres e homens só existem enquanto
categorias ou grupos, um em uma relação estrutural ao outro (WELZER-LANG, 2001). Existe
uma educação ainda diferenciada, a ponto de provocar efeitos nas relações sociais nas práticas
e nas representações do masculino e do feminino.
Welzer-Lang (2001) afirma que as relações sociais entre os sexos constituem um
sistema dinâmico. A dominação simbolicamente “[...] atribui aos homens e ao masculino as
funções nobres e às mulheres e ao feminino as tarefas e funções afetadas de pouco valor”
(WELZER-LANG, 2001, p. 461).
Desse modo, novos diálogos sobre desempenho escolar – recuperação escolar, qual o
significado que os estudos têm para eles, e as suas inter-relações com seus pares femininos –,
realizados em atividades em outros Grupos Focais, esclarecerão o que foi exposto anteriormente
através dos dados do Censo Escolar, inclusive as afirmações sobre as “funções nobres” do
masculino e aquelas “afetadas de pouco valor” do feminino.
No dia 11 de setembro de 2014, o colega-pesquisador Paulo Roberto e eu, realizamos
um Grupo Focal com oito estudantes do 3º ano da escola com idades entre 16 a 22 anos com o
mesmo tema da recuperação escolar, supracitado. Depois de dizer a eles que percebo muitas
vezes que os rapazes estão mais nos corredores do que na sala de aula, mesmo quando o
professor ou a professora está na sala, pergunto: por que razão?
César: - Menina em qualquer idade, mãe vai dando e já foi... Homem chegou aos 17,
mãe não quer dar mais nada!
Pesquisador: As meninas dividem o trabalho também... A escola e o trabalho de casa.
Vocês também fazem o trabalho de casa, arrumam lá... Varrem?
Tadeu: - Ah... Menina não faz nada... Trabalhar em casa, não tem essa, véi...
(Informação verbal)80.
Trabalho doméstico está explicitamente colocado como uma tarefa de pouco valor, ou
de nenhum valor, segundo os nossos interlocutores. As meninas estariam protegidas pelos seus
pais “menina em qualquer idade, mãe vai dando e já foi” ... O homem, ao contrário, “homem
chegou aos 17, mãe não quer dar mais nada!”. Muitos deles trabalham para si: “eu trabalho pra
mim”. O sentido já está expresso, uma vez que os pais já não irão mais provê-los, terão de correr
atrás para poder ter dinheiro para sair com a namorada, comprar roupa, outras necessidades.
Essa é a ideologia ou racionalização. Ora, o status de “ser homem”, está firmado pelos nossos
interlocutores através desse “trabalho” que se torna cada vez mais primordial para suprir suas
próprias necessidades, já que nessa idade (a partir dos 17 anos), eles passam a não contar com
o apoio dos pais. A tendência é distinguir também as formas de trabalho – o trabalho que eles
exercem x trabalho doméstico –, distinguir para dissociar desse oposto (ser mulher) que é igual
a exercer funções de menor valor.
Se é verdade que a diferença de gênero se faz na prática (COLLIN, 1992), um trecho
me parece útil para a compreensão da maneira como esses jovens vivem e experimentam as
relações de gênero.
Pesquisadora: - Mas vocês acham que o menino fica mais em recuperação, reprova
mais?
Kaian: - Sabe o que acontece – sabe o que acontece? [insiste]. O homem, ele vive no
senso comum.
Sóstenes: - Como assim?
Kaian: - Vive no senso comum. Desde que nasce. Porque eu falo isso: porque meu
pai... “Qual é a profissão do seu pai”? “Ah, meu pai é carpinteiro.” [Kaian vai
exemplificando e construindo diálogos na própria narração]. “Meu pai é armador”,
“Ah, minha mãe é doceira”, “Minha mãe é dona de..., ô, trabalha na casa dos outros”.
Então eu não mereço ser isso. A pessoa - homens e meninos, nunca pensam algo
maior. Eu me espelho no meu próprio pai, ali no chão, não encontra outra saída... (ele
tem estudo). Mas tu encontra o mundo das matérias e começa a vê dificuldade, porque
quando você chega num certo período de sua vida, você precisa acordá... dentro de
sua casa. Você começa a ter uma cobrança maior, porque você... Porque quando você
é o mais velho, você é o maior, você... É pior ainda, você tem que trabalhá pra poder
ajudar dentro de sua casa. Às vezes, em algumas situações, tem vários jovens que é
até humilhado dentro da sua própria casa. Então...
Pesquisadora: - Enquanto isso a mulher, na tua opinião - a menina, ela não vive no
senso comum, é isso?
Sóstenes: - A situação do Brasil primeiro é assim: o homem como cabeça, mais
provedor, entendeu?
80
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha, na manhã do dia 11 de setembro de 2014,
no CERG, realizado pela autora e o pesquisador Paulo Roberto. Horário: 9h10min – 10h10min.
186
Kaian: - É por isso que o homem, até o senso comum na nossa atualidade, tá assim,
quebrado. Entre o homem e a mulher o senso comum não tão junto.
Sóstenes concorda: - Não tão junto, com certeza!
Kaian: - Até a situação de trabalho: tá saindo na televisão, nos jornais - essas coisas,
que as mulheres estão sendo mais desenvolvidas. Ela tá ficando assim, com aquela
garra, com aquela de abrir um negócio. Só que os homens resta saber que, que tem
que... Nós homens temos que saber diferenciar, tem que saber diferenciar [repete].
Tem namoro, tem; tem casa de família, tem. Às vezes, por falta de cuidado, você acaba
tendo família cedo, que não era do seu plano (Informação verbal) 81.
Kaian tinha 18 anos em 2016 – na data dessa atividade, estava no 3º ano. Importante
registrar aqui que ele se mostra bastante persuasivo, rapaz eloquente. Seus colegas parecem
seduzidos pela sua desenvoltura, por sua força e facilidade com as palavras. Realizamos várias
atividades – Grupos Focais e Rodas de Conversa – com a turma dele, e em todas, sem exceção,
Kaian sempre fez questão de articular de forma bastante expressiva suas ideias e experiências.
Nesse caso, ele levantou um tema novo – “viver no senso comum”, o que, confesso, me
surpreendeu. “O homem vive no senso comum desde que nasce”, afirma ele. Complementou
com ideias do que ouve da mulher, “ficando mais desenvolvida”, “com aquela garra”. Portanto,
como Kaian mesmo concluiu, “homem e mulher não estão juntos, nessa ele está quebrado”,
enquanto ela (a mulher) já atingiu uma outra dimensão, se desprendendo, talvez, desse senso
comum cotidiano.
O tema poderia ser assunto para longas discussões. No entanto, nos interessa estabelecer
bases em dois sentidos que me parecem fundamentais no discurso de Kaian, ou seja, em
primeiro lugar, a vida cotidiana e o senso comum; e, em segundo lugar, o referido
distanciamento da mulher dessa condição de vitimização das circunstâncias do cotidiano. Sobre
a vida cotidiana e o senso comum – “a pessoa – homens e meninos, nunca pensam algo maior”,
conforme nosso agente Kaian no diálogo acima, estariam ali, imersos na vida cotidiana tomada
como “[...] um refúgio para o desencanto de um futuro improvável, de uma História bloqueada
pelo capital e pelo poder” (MARTINS, 1998, p. 1). Isto é, “o homem como cabeça, mais
provedor”, sendo “cobrado dentro de sua própria casa”. Uma realidade de todo o dia, quando o
homem se depara com “o mundo das matérias”, e “porque quando você é o mais velho, você é
o maior, é pior ainda, você tem que trabalhar pra poder ajudar dentro da sua casa”. Oportuno
seria considerar a afirmação abaixo:
81
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”, realizado na manhã dia 07 de abril de 2016,
no CERG, pela autora. Horário: 9h00min – 10h05min.
187
Todavia, os discursos dos rapazes não configuram uma completa ruptura com a tradição
que continua sendo valorizada como expressão de uma masculinidade autêntica (OLIVEIRA,
2004), “[...] o ethos guerreiro continua representando um conjunto de atributos que informa um
modo específico de construção do masculino, baseado em bravura, coragem, destemor e
disposição para o sacrifício da vida” (NATT; CARRIERI; ECCEL, 2015, p. 391).
De todo modo, essa construção do masculino, conforme os nossos interlocutores, está
também atravessada pelo mundo do trabalho (homem como provedor), pela racionalidade,
entendida como condição masculina. A partir de agora, iremos ouvir o que dizem os rapazes
sobre o trabalho e relações de gênero.
3.6 “Porque a vida é mais difícil pros homens – tem que trabalhar, tem que fazê os
‘corre’”: os rapazes, o trabalho e relações de gênero
Essa fala aconteceu em um Grupo Focal sobre recuperação escolar em agosto de 2015.
Reunimos os rapazes do turno da tarde, alunos tanto do 1° ano quanto do 2° ano do EM. O meu
colega, também pesquisador, Paulo Roberto, me acompanhava nessa atividade e, a certa altura,
disse ter percebido que na escola, pelo menos no período da tarde, a maioria dos estudantes são
mulheres. E perguntou aos rapazes: os meninos parecem que somem da escola, por que isso?
Claudemir: - Porque a vida é mais difícil pros homens... Tem que trabalhar... Tem
que “fazê os corre” ...
Pesquisador: E as meninas? Não vejo muitas meninas nos corredores!
Leonardo: Menina não trabalha, tem mãe e pai que sustenta.
Pesquisador: Mas tem menina que trabalha em casa... Ajuda na arrumação, na
limpeza.
Claudemir: [risos] não é trabalho! (Informação verbal)82.
Sim, “porque a vida é mais difícil para os homens!”. Uma frase, no mínimo,
emblemática que resume o sentimento de fragilidade masculina, algo que determina, na opinião
dos nossos sujeitos, que as meninas se encontram “protegidas” pela própria família. Portanto,
mesmo quando o pesquisador aponta os afazeres domésticos como trabalho no qual as meninas
82
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha, na manhã do dia 11 de setembro de 2014,
no CERG, realizado pela autora e o pesquisador Paulo Roberto. Horário: 9h10min – 10h10min.
188
estariam cumprindo em suas próprias casas, os rapazes os rejeitam não o considerando como
“trabalho”. Eles, sim, são levados a “fazê os corre”; mesmo não configurado como trabalho
fixo pela descrição dos jovens, são os meios pelos quais eles conseguem “algum”, não querem
depender dos pais, mesmo porque eles próprios sentem não ter mais esse apoio.
A “pressão” de sair à noite, ir às festas, sair com a namorada, tomar umas cervejas com
os amigos, faz com que os rapazes busquem algum tipo de trabalho, algo que possa dar certa
“independência”. Por outro lado, alguns poucos estão comprometidos com o trabalho
sistemático, tentando conciliá-lo com os estudos.
É comum encontrar registro de pesquisas sobre a escolarização e o trabalho doméstico
das meninas que apontam que, de modo geral, são mais as meninas do que seus irmãos que
participam das tarefas domésticas. No artigo “O sucesso escolar das meninas das camadas
populares”, os pesquisadores Marília P. de Carvalho, Adriano Senkevics e Tatiana Loges
concluem:
No que tange aos setores populares urbanos, temos indicações de que a socialização
de gênero no âmbito familiar favorece nas meninas e não nos meninos o
desenvolvimento de comportamentos frequentemente desejados pelas escolas, tais
como a disciplina, a organização e a obediência (ou formas de desobediência menos
visíveis); ao mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola tenha
significados diferentes para a maioria das garotas e garotos destes setores, uma vez
que elas têm muito menos oportunidades de circulação, sociabilidade e estímulo.
Essas mesmas restrições parecem fazê-las valorizar atividades extracurriculares com
formatos próximos ao escolar e desenvolver aspirações ligadas a uma escolarização
prolongada e a profissões qualificadas. A existência mesma desses planos ambiciosos,
realistas ou não, pode ser impulsionadora de maior empenho nos estudos,
realimentando a roda do sucesso escolar dessas meninas, que parece surgir de dentro
da própria subordinação de gênero (CARVALHO; SENKEVICS; LOGES, 2014, p.
732).
Claudemir: - Se não trabalhar a gente vai ficar a vida toda dependendo da nossa mãe
e do nosso pai, entendeu?
César: - Às vezes a gente quer sair com a namorada... Às vezes o pai não pode dar...
[que vai fazer?] Tem que ter o nosso dinheirinho... (Informação verbal) 83.
[...] a proporção dos jovens de 15 a 17 anos cursando o ensino médio é inferior a 51%
(2011); entre 1999 e 2011, mais que dobrou a proporção dos que abandonaram a
escola no ensino médio (de 7,4% para 16,2%); a proporção dos que nem trabalham,
nem estudam atinge 24% dos jovens com 18 anos de idade e 25% daqueles com 20
anos; 58,3% dos que não estudam e não trabalham estão entre as famílias com renda
familiar inferior a dois salários mínimos; os indicadores de desempenho escolar
praticamente não se alteraram na comparação entre 1999 e 2011, apesar dos esforços
realizados pelo setor público nesse campo. Dado esse quadro, pode-se afirmar que
83
Texto extraído da transcrição do GF “Fui pra recuperação, mainha, na manhã do dia 11 de setembro de 2014,
no CERG, realizado pela autora e o pesquisador Paulo Roberto. Horário: 9h10min – 10h10min.
190
muitas das mudanças introduzidas nos últimos anos não chegaram à sala de aula
(CASTRO; TORRES; FRANÇA, 2013, p. 4).
Pelo exposto, é impossível não citar a relevante pesquisa de Artes e Carvalho (2010),
sobre os resultados quantitativos com base nos coeficientes resultantes do PNAD 2006, com
foco no Suplemento Aspectos complementares e trabalho infantil. Envolvendo unicamente
meninos e meninas entre 10 e 14 anos, divididos(as) em brancos(as) e negros(as), residentes
em locais com diferentes Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), a pesquisa transpassa o
argumento linear de que a maior defasagem dos meninos se deve a sua participação no mercado
de trabalho. “Tudo é mais complexo do que explicações do senso comum: no Brasil, os
diferenciais de distorção idade-série de meninos e meninas em prol das meninas são mais
intensos em regiões com IDH mais baixos – os diferenciais são flexionados por cor/raça”
(ROSEMBERG; MADSEN, 2011, p. 416).
E então o que se passa no CERG, em relação aos rapazes [e moças] e o mercado de
trabalho? Nossa próxima seção.
Partimos agora de outros dados do Censo Escolar para analisar questões como trabalho
e estudo, instrução dos pais e renda da casa/familia. A questão número 9 do Censo está
relacionada à constituição dos moradores do domicílio do estudante – a constituição familiar
dele(a). A renda familiar ou da casa é a soma financeira bruta de cada membro de uma família
– moradores de um mesmo domicílio. Os números revelam que metade dos respondentes, nesse
caso, 107 estudantes reside com seus pais – mãe e pai e/ou irmãos; 17,6%, com a mãe e/ou
irmãos; 8,9%, com mãe, avós e/ou irmãos; 4,7%, com pai e/ou irmãos; sendo que em outras
configurações familiares estão 18,8% dos alunos respondentes. Quanto ao perfil dos estudantes
relativo à renda da casa/familiar, 57,3% dos respondentes disseram que a renda da família (da
casa onde moram) é de até um salário mínimo; 30,0% de um a dois salários mínimos; 7,2% de
dois a três salários mínimos; 3,3% de três a quatro salários mínimos: 1,1% de quatro a cinco
salários mínimos; 1,1% mais do que cinco salários mínimos. Portanto, um pouco mais da
metade das famílias tem renda na faixa de até um salário mínimo – mais da metade delas.
Quanto à questão profissão dos pais, o resultado indica ocupações que variam entre
comerciário, domésticas, trabalhadores braçais – construção civil, limpeza pública, setor
informal, ou na pesca, como autônomos predominantemente.
191
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados do Censo Escolar/CERG (2017).
Entre os que estudam e trabalham ou estudam e fazem bicos, e entre os que estudam e
já trabalharam, os rapazes lideram em relação às moças, como se vê nitidamente no Gráfico
acima. Ainda dentre esses que trabalham, a maioria revela trabalhar sem carteira assinada.
Existem diferenças de inserção no mundo do trabalho entre homens e mulheres,
independentemente do tipo de ensino em que estejam. Em todas as modalidades há mais
homens que estudam e trabalham. Na condição dos que só estudam e nunca trabalharam, as
moças são as que mais se destacam em relação aos rapazes. O importante aqui seria levar em
conta a razão “[...] pela qual alguns jovens têm no trabalho uma categoria essencial, se bem que
se saiba que trabalhar possibilita a essa parcela da população recursos para o lazer e o consumo,
bem como um aumento do grau de autonomia – que significa a passagem para a vida adulta”
(CASTRO; ABRAMOVAY; WAISELFISZ, 2015, p. 39).
Pois iremos justamente observar nos diálogos abaixo que as necessidades materiais e de
consumo estão no foco, e, sendo assim, os estudantes entrevistados acabam ocupando postos
de trabalho precários, muitas vezes esporádicos e de baixa remuneração, para “ajudar a família”,
“se manter”. A seguir alguns diálogos do Grupo Focal “Fui pra recuperação, maínha”! - suas
análises.
192
Dos cinco rapazes do Grupo Focal apresentado acima e realizado em 2017, somente um
trabalha no supermercado local em “serviços gerais”, dois trabalham de vez em quando – como
pedreiro, ajudante de feira –, um deles é bolsista do nosso grupo de pesquisa “Brincadeira de
Negão”, e o outro já trabalhou na padaria em Cachoeira, cidade vizinha (hoje em dia decidiu se
dedicar somente aos estudos). Como pudemos perceber, empregam o dinheiro em roupas,
ajudar em casa; Denis procura economizar quando sobra algum.
Em outro grupo, um rapaz que trabalha como ajudante de pedreiro faz questão de dizer
que não tem vergonha em dizer em que trabalha. Existem aqueles que estão economizando para
comprar uma moto em um futuro próximo, comprar as roupas que desejam para poder “andar
no padrão”, e para ser independentes dos seus pais. Outros ainda dizem que procuram um
emprego, mas não está muito fácil de conseguir. A centralidade da figura da mãe é recorrente.
Aqui, podemos perceber apenas uma passagem na qual Almir se “espelha” na sua mãe, na forma
aguerrida e determinada com que lutou, seu desejo expresso é retribuir e poder proporcionar
uma vida melhor. Almir, desse modo, tem a intenção de permanecer na escola, por acreditar
nesse caminho para atingir o seu objetivo. Em entrevista individual, Jadson ressalta os
ensinamentos da sua mãe e diz:
84
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha”, realizado na manhã dia 07 de abril de 2016,
no CERG, pela autora. Horário: 9h00min – 10h05min.
193
É... Você me perguntou da minha trajetória. Eu vejo minha trajetória assim, não foi
muito bom, no começo eu pisei na bola, não que eu tenha me misturado com nada
ilícito, não, tipo drogas... Porque, graças a Deus... Porque a minha mãe sempre me
ensinou, né? Porque tem sempre o ensinamento da mãe, né? A minha mãe sempre me
ensinou o que era Deus, e isso é que é importante. E o importante é ensinar sobre
Deus, não só sobre Deus, mas ensinar seu filho também ser... É... Ter caráter. Porque
hoje parece que não existe mais honra. Hoje não existe mais palavra, não existe mais
honra, né? É tudo liberado, e nada proibido, né? (Informação verbal) 85.
85
Texto extraído da transcrição da Entrevista semiestruturada com o ex-aluno Jadson, na tarde do dia 21 de março
de 2018, no Centro Cultural Dannemann na cidade de São Félix, realizada pela autora e com o pesquisador Joaci
Conceição.
194
José: - Já carreguei feira, mas eu tirava onda, fia, carregava feira e botava o dinheiro
no bolso. (Informação verbal)86.
Carregar a feira é uma função bastante praticada pelos rapazes daqui, até mesmo porque
levam na brincadeira esse tipo de “bico”, como muitos também chamam. Entretanto,
encontramos Edu, que trabalha com o pai. Ao longo do trabalho de campo, igualmente,
localizamos outros estudantes que trabalham com o pai, na pesca, na roça, como tratorista. As
meninas, como vimos, se ocupam com trabalhos de manicure e, junto à mãe, na fábrica de licor,
no caso da Maíra, ou na função de marisqueira.
Convém situar a cidade de São Félix a partir da sua produção econômica dentro do
Recôncavo e também no Estado da Bahia. Na esfera estadual subsistiam zonas de atividades
agropecuárias e agroindustriais, como as de açúcar e fumo no Recôncavo Baiano, sisal e gado
no Sertão e cacau no Sul, como informa Brito (2008). Entre os anos de 1890 a 1930, São Félix
foi um centro de comércio e redistribuição de mercadorias entre o Alto Sertão da Bahia e a
capital, Salvador.
Sua geografia privilegiava o acesso marítimo e terrestre com os principais pontos de
produção econômica da região, uma produção de gêneros agrícolas a serem exportados (fumo,
algodão, gado, peles, borracha) e produtos manufaturados e artigos de luxo (maquinário,
ferramentas, insumos, enlatados, tecidos, chapéus, entre outros) que eram importados para
suprir a demanda interna da região. Dessa maneira, São Félix se consagrou a partir da
articulação com o cenário internacional e uma rede de cidades interioranas, que se beneficiava
da produção agrícola regional e da importação de produtos. Sua principal zona de influência
era o Alto Sertão (SANTANA, 2016, p. 107).
Com a redução e a extinção de uma imensa rede de serviços, atividades comerciais e
industriais, a oferta no mercado de trabalho local experimentou uma grande retração,
aumentando gradualmente o número de desempregados na cidade. Com o declínio econômico,
tanto São Félix, como sua cidade-irmã Cachoeira, perderam importância como centros de
fluência migratória ao mesmo tempo em que sua população começou a migrar para as cidades
economicamente ativas – Salvador, Feira de Santana, Candeias, Camaçari, entre outras.
Entretanto, além das atividades comerciais, o Recôncavo se destaca pela grande
diversidade de atividades religiosas, artesanais, artísticas e de sabedorias ancestrais, que embora
sofrendo ameaças de folclorização, são significativas. Percebe-se aqui a marca dos mais
86
Texto extraído da transcrição do GF: “Igualdade de oportunidades” realizado na manhã do dia 1 de setembro de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 9h10min – 10h13min.
195
variados aspectos culturais, presentes na arquitetura, língua, nas artes, destacando-se as danças
e a capoeira. Na culinária, as influências dos antepassados deixaram de herança deliciosos
pratos, como o acarajé, vatapá, e o beiju. A capoeira, o candomblé, as irmandades religiosas, a
exemplo da Boa Morte em Cachoeira, revelam o forte sincretismo religioso existente no Brasil,
no qual cultos católicos são unidos aos de religiões africanas, mantendo ”vivos elementos da
cultura afro-brasileira, divulgados através da transmissão de conhecimentos, da prática de
rituais religiosos, da indumentária, da culinária, do samba de roda” (CIDREIRA, 2015, p. 31).
Voltando para o nosso Grupo Focal sobre Igualdade de Oportunidades, apresentamos nosso
interlocutor Edu que, além de estudante, também é professor de Capoeira. Conhecemos outros
professores de capoeira que são alunos do CERG, e que, depois das aulas, assumem a condução
de grupos de Capoeira espalhados tanto pela cidade de São Félix, como de Muritiba e
Cachoeira, cidades vizinhas. Edu é um rapaz de estatura mediana, cabelo com miçangas, todo
cacheado, comprido até a nuca, cor parda. Fiz alguns contatos com ele, pois o grupo BN
precisava organizar o Seminário Anual e uma das ideias era acrescentar algumas apresentações
de grupos locais. Primeiro disse que teria de resolver com o seu mestre. Depois pediu desculpas
devido à recusa do mestre. O seu grupo se apresentou na Feira de Conhecimento, o que me
chamou atenção devido à precisão do seu toque no pandeiro.
As opções de trabalho, como pudemos constatar, são mínimas, tanto em São Félix, como
em Cachoeira e cidades vizinhas. Esse dado se constatou não somente agora com o GF, mas
em geral, nas conversas, em observação participante. Cachoeira, cidade maior, poderia suprir a
falta de emprego. Entretanto, como vimos, a retração na rede de serviços e de oportunidades é
quase igual. São empregados na padaria e supermercado da cidade ou das cidades vizinhas, no
“lava-jato”, moto-táxi, pedreiro ou ajudante de pedreiro, em supermercado, como feirante,
comprando e vendendo na feira, como temos um caso já relatado no segundo capítulo. E, se
estudassem, se libertariam desses trabalhos pesados, subalternos? Transformando a afirmação
de José em interrogação. Sem chance para reflexão, John responde: “mesmo assim tem esse
preconceito”.
Lançamos, então, nesse final da atividade do GF, um outro trecho do vídeo que aborda
as qualificações necessárias na busca de emprego, ou o que está – estaria – por trás da exigência
de uma “boa aparência”? Decidimos por exibir sete minutos do vídeo, o seu começo.
Maria: - Assim, uma boa aparência pra esses caras aí, todo mundo falou. Dizem
assim, que quando é negro, tipo assim, ele vê bem diferente. Se caso eu sou branca,
tiver um cabelo liso, tiver bem arrumada, aí sim, tem uma boa aparência. Agora assim,
se ela for negra, tiver um cabelo black, assim, tiver toda jogada, aí não é boa aparência.
Pesquisadora: - Concordam com a colega?
[Silêncio]
Pesquisadora: - Pra ti, o que é boa aparência? [Me dirijo a Débora].
Débora: - Ai, meu deus.
[Novamente silêncio]
Pesquisadora: - Então vamos perguntar pra um menino agora. Ali... Bom, o que tu
me dirias se estivesses procurando emprego e visse um anúncio que precisavam de
um rapaz de boa aparência. Como iria interpretar essa “boa aparência”?
Edu: - Um cara com cabelo cortado assim normal...
Pesquisador: - O que é um cabelo cortado normal?
Edu: - Assim... baixo... Se eu tiver um cabelo assim black, vai tê que cortar.
Pesquisador: - Então está dizendo que se não for assim, nem concorre ao emprego?
Edu: - É, cabelo influencia muito.
Pesquisadora: - O que mais entra na tal da boa aparência?
Mauro: - O Modo de vestir.
Flávio: - Terno ou um paletó. É. Se a gente for assim de bermuda, uma camisa de
manga, eles não vão aceitar.
Éder: - O andar.
Pesquisador: - Sim, o andar. [Joaci repete].
Flávio: - Talvez se o rapaz assim tiver com muita tatuagem... [Essa questão da
tatuagem fica no ar].
John: - Modo de falar (Informação verbal)87.
Quando José calcula “se estudar não vai precisar fazer esses trabalhos”, John afirma que
“mesmo assim tem esse preconceito”. O racismo é um elemento de estruturação do mercado de
trabalho. Sob qualquer perspectiva que se analise, a raça pesa, é um condicionante que
influencia o lugar do negro nas categorias de trabalho. [O negro] “só consegue carregar peso,
carregar feira... ladrão”, como sentencia o estudante Edu. Faz sentido dizer que Edu percebe
que “[...] ser negro é ser um corpo negro que emergiu simbolicamente na história como o corpo
para o outro, o branco dominante. Assim, o corpo negro masculino é fundamentalmente corpo-
para-o-trabalho [...]” (PINHO, 2004b, p. 67). De imediato, Joaci e eu nos entreolhamos e, a
partir daí provocamos o grupo lançando o desafio de encenar, de representar. Joaci assim
pergunta: “Quem pode representar aqui o cara que vai conseguir emprego e aquele que não vai
conseguir o emprego? [percebemos que pode ser interessante a representação corporal]”.
Burburinho, quase uma confusão generalizada. Apontam para o rapaz que é professor
de capoeira (Edu), pois sua aparência vai contra tudo o que os colegas disseram ser uma “boa
aparência”. Ele tem o cabelo com miçangas, todo cacheado, usa óculos, mas que não são de
grau – ele usa só para “tirar onda”, como revelou, chinelo de dedo, anda arrastando os pés.
87
Texto extraído da transcrição do GF: “Igualdade de oportunidades” realizado na manhã do dia 1 de setembro de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 9h 10min – 10h13min.
197
Edu resolve aceitar o “desafio”, representar aquele rapaz que não tem “boa aparência”.
Outro colega representa o rapaz de boa aparência, é Mauro: tem o cabelo cortado bem rente,
está de calças compridas, ao contrário do outro colega. “Desfilam” pela sala e a turma parece
se divertir muito com a “brincadeira” de representar.
Para finalizar o GF peço que falem sobre a discriminação entre negros e brancos, sobre
“ter boa aparência”, e se essa boa aparência estaria vinculada a um padrão normativo que exclui
a população negra pela cor, se ser negro estaria vinculado a tudo de mais pejorativo.
Nesse momento, os alunos começam a citar situações de discriminação especificamente
em um supermercado local. Muitos ali descreveram a mesma cena, em que são perseguidos
pelo segurança do estabelecimento, intimados a dizerem o que estão fazendo ali, o que
procuram, se tem dinheiro para comprar, etc.
Dizer que as culturas e as políticas atravessam as práticas escolares (MELO; SANTOS;
LOUREIRO; CALVENTE, 2017, p. 96) é afirmar que a escola é um espaço social, no qual
diferentes subjetividades são constituídas a partir do modelo posto socialmente, nos diferentes
espaços-tempos de convivência de crianças e jovens, ela própria se estabelece como lugar
privilegiado para promover essa constituição, já que ali estão dispostas múltiplas problemáticas
referentes às experiências vividas pela infância e pela juventude, como essas que descrevemos.
Mais que isso:
Por isso, a nossa escolha por uma perspectiva que implica uma mudança no eixo de
análise, isto é, passa da perspectiva institucional para uma outra, a dos sujeitos – jovens
estudantes do sexo masculino. E é a partir destes últimos, que a nossa investigação se centra,
desde sempre, na ótica juvenil masculina na nossa observação contínua e privilegiada dos seus
modos e projetos de vida, da sua cultura.
Reflito aqui sobre o espaço privilegiado de discussão que estamos construindo em
diálogo com os alunos e, em algumas situações com as alunas. É possível dizer que não vemos
88
A counter-school culture no CERG será abordada em seguida, no próprio capítulo.
198
comumente em sala de aula com a presença do(a) professor(a) uma abertura para o debate,
principalmente sobre temas como masculinidades, feminilidades, relações de gênero e
sexualidade, por isso aponto a nossa inserção no campo como particular e propositiva.
Consideraríamos o inegável: diferenças, desigualdades e contradições fazem parte do cotidiano
escolar, como vimos na fala dos nossos interlocutores, e suas falas importam sobremaneira
pelos significados que estão empiricamente problematizados nas culturas presentes na escola e
fora dela.
Ao construir esse texto, depois de ler e reler as transcrições dos GFs, de selecionar os
trechos que iria enfatizar para análise, volto a interrogar, por exemplo, como seria possível
explorar de maneira proveitosa a noção de gênero em sua articulação com a de raça para analisar
a avaliação escolar? Ou ainda, considerando a eficiência dessa articulação, buscaria aprofundar
questionando quais pressupostos de masculino e feminino estariam atravessando os sistemas de
avaliação? Será que os estudantes – jovens homens negros do Ensino Médio do Colégio Rômulo
Galvão – abandonam a escola em maior número ou vão sendo, no cotidiano pedagógico,
progressivamente “abandonados” por ela? Pois bem, são esses e outros múltiplos e novos
questionamentos que nos levam a seguir em frente e encarar novas estratégias e metodologias
para desvelar a caixa branca que é a escola e o seu sistema de relações.
199
Chamei tanto a atenção desse dia explosivo, que – realmente – o nome de insurreição é
apropriadíssimo. Difícil descrever o que foi na verdade esse dia.
a) Diário de Campo – 20 de outubro de 2017:
● Cheguei à escola de táxi porque havia combinado com o Felipe e a Tatyane, nossos
novos integrantes do Projeto BN, e, por isso, não queria me atrasar. Felipe cursa a
graduação em Ciências Sociais (UFRB) e está “desenhando” o seu TCC. Taty cursa
o 1° semestre da graduação em História (UFRB). Os dois igualmente com muita
vontade e desejo de participar do nosso Projeto (BN). Conversamos bastante, Felipe
e eu, antes de visitarmos as dependências da escola e de sermos apresentados
oficialmente aos professores e direção – esse era um dos intuitos. Logo em seguida
chegou o Professor Ivan– e também BN –, que se dispôs a visitar conosco a escola.
Nesse caso, o Professor Ivan passou a ser o anfitrião. Passamos pelo primeiro
corredor, dos terceiros e segundos anos. Como de hábito, os alunos estavam nos
corredores, as salas sem muito quórum. Fomos até o fim do corredor onde está o 3°
ano (14M3), junto ao banheiro feminino, e depois voltamos. Na porta do outro 3°
ano, a 14M2, pedi para falar com o estudante Edu, o capoeirista – também professor
de Capoeira. Queria que ele me desse uma resposta sobre a participação do Grupo
de Capoeira no nosso evento que já se iniciaria na segunda, e a participação deles
seria na segunda mesmo, fim de tarde. Ele veio até a porta e me disse que o mestre
solicita um auxílio financeiro ou mesmo uma “mercadoria” para a Rifa que serviria
para angariar fundos para o batizado do alguns capoeiristas do grupo. Fiz questão
de conversar com ele naquele momento, pois estava com o Professor Ivan, que
poderia ajudar na difícil negociação. Falei que iria levar essa resposta ao grupo do
BN para decidir o que faríamos a partir daí.
● Fomos até o outro corredor que fica próximo à saída, ao lado do portão da escola.
Ali estão as salas dos primeiros anos (3 turmas). Voltamos em direção à sala de
informática. Ivan falou que havia 20 computadores sem utilidade, por estarem
estragados, mas que a sala servia para a projeção de filmes e vídeos. Era um espaço
diferenciado. Felipe estava admirado com o tamanho da escola. Dali, passamos para
o outro prédio, hoje desativado, ao qual já me referi anteriormente quando descrevi
o espaço escolar. Ano passado ali estavam os (terceiros) anos, alocados em 3 das 7
200
salas existentes. Inclusive, em uma das 7 salas, está a biblioteca nomeada “Walter
Fraga”, historiador e professor da UFRB, ex-aluno do CERG. Ivan lamenta a
desativação do prédio, principalmente pelo fato de incluir a desativação da
biblioteca, um rico espaço, considerando os livros ali existentes, como clássicos da
literatura brasileira e estrangeira, romances, e livros como os volumes da História
da África. A falta de um(a) funcionário(a) para administrá-la fez com que a
Biblioteca do CERG ficasse inoperante.
● Seguimos até o Ginásio de Esportes. É ali que os estudantes gostam de estar com
muito prazer, segundo o Felipe.
● Disse aos dois que precisava ir ao banheiro. Ao voltar para o hall da escola onde
fica o banheiro, no caminho passei pelo portão onde estão sete estudantes, 5 meninos
e 2 meninas. Eles carregavam na mão um pedacinho de papel e acenavam com ele.
Curiosamente, perguntei o que é aquilo. Quase gritando, com tom de revolta, me
disseram que só poderiam entrar no dia seguinte no colégio com a presença dos pais.
Perguntei, então, a razão do bilhete. Falaram que estavam jogando baralho na sala,
mas estavam quietos, não incomodavam ninguém. E porque estavam sem
professor(a). “Qual o problema, tia?”, uma das meninas me perguntou. Entrei para
o hall e senti o clima pesado: ainda não é recreio e “quase” todos os alunos e alunas
estavam fora da sala, sentados no chão dos corredores, alguns ouviam música, outros
conversavam, outros dançavam ao som do que escutavam. Tinham rodinhas
formadas por meninos, outras só de meninas.
● Na volta, entrei na sala da direção. A diretora estava na sala mais reservada, e o vice
sentado em frente ao computador. A sala dos professores estava lotada de
professores e professoras conversando. Eram 9h30min. Percorri o corredor dos
terceiros e segundos anos. Alvoroço. Entrei na sala da turma de um dos segundos
anos (13M2) e perguntei onde estava o professor. Eles me disseram que ele estava
atendendo mais 2 turmas para “adiantar” a aula. Assim, eles sairiam mais cedo.
● Tatyane chegou à escola. Ela perguntou se era hora do recreio. Disse que não,
sorrindo. Ela sorriu também, mas logo disse que sabe muito bem como é esse clima.
Foi estudante do Ensino Público. “É assim mesmo”, afirma.
● 9h40min – Vi uma agitação vinda desse corredor. A diretora saiu correndo da sala
em direção ao corredor. Passou por mim correndo muito. O vice ficou na porta da
sala da direção. Não querendo atrapalhar o fluxo que se instalou, saí em direção aos
bancos de concreto. A diretora apareceu e convocou uma reunião com todos os
201
professores(as) para “já”. Ela havia acabado de suspender as duas turmas do 2° ano.
Imediatamente, fui até a sala de onde ela saiu. Presas ao madeiramento do teto da
sala, ao centro, estava uma mochila e uma cadeira penduradas, como um móbile.
Quis puxar o meu celular da bolsa para o registro, mas deixei para lá, pois a ocasião
não era propícia.
● Todos os professores e professoras na sala com a diretora. Fiquei na porta sem saber
o que fazia. Não queria perder nada, mas também não podia sair “entrevistando” ...
Não era propício.
● 10h30min – O sinal tocou para a 4ª aula. O primeiro professor que saiu da sala foi o
Ivan. Sorriu para mim e disse “vai sobrar para você também”. E foi direto para sala
de aula, sem me dizer mais detalhes. Gelei. Comentei com o Felipe e a Taty, que
estavam assistindo a tudo perplexos. Os professores e professoras foram saindo aos
poucos em direção às salas de aula. Calados. A última a sair foi a diretora com a
cara muito fechada. Olhou para mim e disse: “E você, também, não saia, quero falar
com você”. Foram os momentos mais longos que eu já vivi nos últimos tempos.
Juro. Durante a reunião dos professores e a diretora, entrei por um segundo apenas
para retirar a minha bolsa da sala. E saí imediatamente. Mas pude ouvir a diretora
dizer que, de agora em diante, não teria mais a alternativa de “adiantar” as aulas.
● Eu, de pé, na soleira da porta dos professores, do lado de fora, esperava a conversa
com a diretora.
● Quando ela voltou, pediu que eu ainda aguardasse. Meu Deus. Alguns segundos
depois ela me chamou na sala da direção. Disse, então, que uma professora reclamou
que costumo entrar na sala de aula sem pedir licença, ou seja, que me dirijo aos
alunos sem ao menos pedir permissão, enfim, que eu costumo ignorar a presença
dos professores na sala de aula. Me defendi dizendo que isso nunca aconteceu, e, de
verdade, isso nunca aconteceu. Ela concordou comigo, dizendo que ficou espantada
com tal declaração de uma das professoras.
● O fato de a pesquisadora ter entrado na confusão foi devido à resposta dada por uma
professora quando a diretora questionou os professores(as) sobre o motivo de tanta
desordem generalizada. Segundo a docente, eu causava tumulto ao entrar na sala de
aula sem a necessária autorização de quem estava no comando da turma.
● Depois ainda fiquei na antessala da direção. O vice escrevia em um caderno de atas
as ocorrências que ainda borbulhavam por ali. Vários outros casos aconteceram
paralelos a esse maior – o caso do móbile. Por exemplo, o caso de jogarem futebol
202
Numa outra sala jogaram futebol com caderno dos colegas (Informação online).89
Entre os estudantes, o clima era de revolta. Alguns saíram das suas salas de aula com
suas mochilas nas costas, chutando tudo pela frente: lixeiras, as bolinhas de papel que estavam
no chão e o próprio lixo. Outros, falavam alto pelos corredores. Alguns seguiam para o portão
da escola, outros para a sala da direção. Não havia muita conversa entre eles. Passavam por
mim com pressa. Aqueles que saíam da sala da direção tinham um papel: o bilhete da diretora.
Esse bilhete era dirigido aos pais ou responsáveis do aluno(a) – o mesmo que receberam sete
estudantes mais cedo por estarem jogando cartas na sala de aula onde aguardavam o professor
– e os convocava para se apresentarem no dia seguinte. Sem a presença deles, o aluno(a) não
entraria na escola. O grupo de alunos que esperava na fila indiana na frente da sala da direção
só aumentava. Fui saber depois que os que foram convocados para a sala da direção e assinariam
uma ata redigida pelo vice-diretor, que descrevia o caso de indisciplina. Esse lia a ata em voz
alta, perguntando ao aluno(a) se concordava com o que estava relatado. Depois, pedia que
89
Trecho retirado de uma conversa no chat, via Facebook, dia 20 de outubro de 2017 – 11h13min - O dia da
insurreição.
203
assinasse. Entendi que nesse grupo – o grupo da sala da direção – estavam os alunos ou alunas
que teriam sido os responsáveis diretos pela insurreição.
Na fila, eles(as) conversavam entre si, reclamando que era injusto, que não tinham sido
eles que teriam começado a confusão, ou que provocaram tudo, ou que tivessem pendurado os
objetos no ventilador. A mochila de Paulo incomodava o rosto de Marcela na fila. Ela deu um
soco na mochila dele. Ele se virou e, com raiva, gritava com Marcela. Os ânimos estavam
alterados. Tadeu devolveu o tapa na cabeça que recebeu de Paulo Roberto. Yuri disse que não
ia ficar e saiu da fila em direção ao portão. Eram apenas duas turmas que estavam em aula. O
livro de ata em que estavam sendo registradas as ocorrências, um livro grande de capa dura, é
o livro que os alunos chamaram de livro dos BOs (Boletins de Ocorrências). Todas as infrações
mais graves, como as que ocorreram hoje, são oficializadas como nas delegacias de polícia,
através desses registros. Ou seja,
Ora, como vimos no CERG, o tratamento através dos BOs – assim descrito pelos nossos
interlocutores –, constitui uma punição disciplinar extrema, haja vista a similaridade com o
dispositivo das delegacias de polícia. Os livros de ocorrência, o livro de capa dura mencionado
acima, o “livro preto”, é uma das formas mais tradicionais de controle e disciplinamento
instituídas pelas escolas. A literatura aponta a existência de outras denominações: Livro de
Penalidades de Alunos, Termo de Censura, Livro de Sanções e outros, objetivando o
cumprimento das normas das escolas pelos alunos, professores e funcionários, como relata
Neiva de Oliveira Moro (2002).
O espaço escolar pode ser examinado como um constructo cultural que expressa e
reflete, para além de sua materialidade, determinados discursos, dotados de significados,
disseminando uma importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do chamado
currículo oculto, ao mesmo tempo em que impõem suas leis como organizações disciplinares,
como nos revela Escolano (2000, p. 26-27). Em outras palavras, esse lugar é um mediador
204
cultural em relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, uma
fonte de experiência e de aprendizagem (FRAGO; ESCOLANO, 1998, p. 26).
De uma maneira ou de outra, a escola, assim como recebe, produz e ressignifica culturas,
produz identidades, subjetividades que são levadas para fora de seus muros uma dinâmica
constante das ações e relações sociais, motor de seu funcionamento (COUTO, 2011, p. 17).
Meninos e meninas, rapazes e moças, ali se envolvem ativamente, reagem, recusam, criam
estratégias e também assumem os conceitos e atitudes imbricados nesse contexto social e
cultural em que se encontram incorporados, se produzem e reproduzem, e devem ser analisados
dentro desse contexto histórico no qual se constituem.
O relato evidenciado na introdução do capítulo expõe os limites e fronteiras simbólicas
nos processos das relações sociais que ocorreram em outubro de 2017, nas dependências do
CERG, como em outros fatos que derivaram da observação e da interlocução com nossos
interlocutores. Considero oportuno, desse modo, apontar a valiosa contribuição nesse campo da
obra de Paul Willis (1988)90 na qual um dos aspectos mais relevantes e inovadores foi,
inequivocamente, conceber as culturas juvenis na sua indelével relação com o sistema
educativo. Na sua perspectiva, em linhas gerais, as culturas juvenis são, em grande medida,
formas de resistência à opressão e subjugação que exercem as autoridades, sendo a escola o
principal modelo dessa repressão, especialmente, no caso dos lads, os inconformados,
autodesignação dos jovens britânicos da classe trabalhadora. Em contrapartida, e também
tratado na obra, a participação nesses movimentos alimenta um processo local de resistência e
de inversão simbólica, o que também legitimaria a exclusão dos jovens no sistema e, assim, o
fechamento dos círculos sociais e laborais pesados, precários e explorados, em que já se
encontravam seus pais. Esse ponto revela, sem dúvida, uma continuidade das teorias da
reprodução91.
90
A grande repercussão da obra “Learning to Labour” de Paul Willis (1978), já tratada brevemente no terceiro
capítulo, é visível se considerarmos a diversidade de localização acadêmica e de campos disciplinares. Sem dúvida,
os estudos culturais da Universidade de Birmingham, aos quais a investigação de Willis (1978) se une, renovaram
a discussão existente sobre os universos culturais dos setores populares, ao produzirem estudos microssociológicos
com forte base empírica a lhes oferecer sustentação, principalmente, pela escolha de uma etnográfica de longa
duração para enriquecer a análise. Ao incluir a resistência cultural na teorização sobre a reprodução escolar das
desigualdades sociais, o autor demonstra como é contraditória e tensa tal reprodução no desenrolar do mundo
relacional dos jovens alunos entre si e com os adultos.
91
Sobre o tema “Teorias da reprodução”, sugiro a leitura das obras “Les Héritiers. Les étudiants et la culture”
(BOURDIEU; PASSERON, 1964) e “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”
(BOURDIEU; PASSERON, 1970).
205
No caso dos estudantes do CERG, nesse dia específico, ficou demonstrado, dentre
outras, a capacidade de agência do grupo, entendendo que a compreensão das experiências
escolares juvenis, de forma alguma, se restringe aos conteúdos e às normas, mas devem ser
consideradas à luz das relações de dominação, subordinação e de transgressão que se declaram
em distintos contextos escolares, como também nas formas de socialização entre pares frente à
autoridade docente.
Ora, é nesse período da vida que os jovens da classe trabalhadora – em uma referência
à investigação de Paul Willis (1988) – e os jovens do nosso campo em São Félix, “[...] vão
construindo um conjunto de relações, disposições e valores que, ao provocar e subverter a
ordem dominante, os vai excluindo das vias de promoção social” e os coloca na direção dos
trabalhos menos qualificados, reproduzindo, assim, a oposição e a cultura operária dos seus pais
(ABRANTES, 2013, p. 69). Tal como a manifestação/reação insurgente, outras se formam no
dia a dia com menos efeito explosivo como o que relatamos. Nesse dia mesmo, por volta das
8h30min, presenciei a suspensão de sete estudantes (cinco meninos e duas meninas). Por
estarem sem aulas, jogavam cartas em grupo na sala de aula na mesa do professor, como
relatado no início do capítulo. Em outros momentos, pude observar que alguns estudantes têm
o costume de jogar no recreio, ou mesmo quando estão sem aulas. No entanto, no dia 20 de
outubro ocorreram essas suspensões por esse motivo, e, portanto, um fato atípico, deve-se dizer,
uma hora antes da insurreição.
Insisto que quase que diariamente estamos observando turmas sem aulas, falta de
professores, ou mesmo, no caso de algumas disciplinas, não há professor(a) designado(a). Já
escutamos nos Grupos Focais ou nas Rodas de Conversa também relatos ou depoimentos dos
rapazes e das moças se referindo à falta de aula e de professores(as).
Suponho, porém, não pretensiosamente, que a minha presença alterava a atitude da
diretora e do vice-diretor. Isso porque, por vezes, principalmente nesses dias, quando a falta de
aula ou professores era aguda, e, consequentemente, alunos e alunas estavam dispersos nos
corredores, eles tratavam logo de colocá-los para dentro das salas de aula. “Bora, bora pra sala”
gritavam a diretora e seu vice, batendo palmas. A minha presença causaria um constrangimento,
um receio de que eu relatasse o movimento intenso de estudantes nas dependências da escola?
Entrei na sala dos professores para terminar os meus escritos e a professora de Matemática
sentada à mesa comentou que os alunos deveriam ter mais liberdade no ensino médio, iriam
para a sala se quisessem, nem do portão com cadeado precisariam. Entretanto, fora da sala dos
professores, mesmo com toda a insistência da diretora e do seu vice, os alunos permaneciam no
206
hall e nos corredores. Com seus fones nos ouvidos e conversando, não ligavam para os apelos
insistentes. Realmente eles tomavam qualquer outro caminho, menos o da volta à sala de aula.
A mesma coisa aconteceu naquela quarta-feira, mas com a professora Eva, nesse ano de
2015 como coordenadora pedagógica. Percebi que convinha a ela justificar para mim o grande
número de alunos circulando nos corredores, ou sentados nos bancos do hall principal da escola,
ou mesmo no portão sem o controle do funcionário – hoje remanejado como porteiro. Estava
na escola, circulava pelos corredores. Como a Professora Eva disse, aquele foi um dia atípico,
que antecedia o feriado de 7 de setembro, era bom deixar os alunos mais descontraídos, com
menos conteúdo, “propor algo mais light” – palavras dela.
Outra passagem interessante referente à constante circulação de alunos nos corredores
e, portanto, um problema recorrente enfrentado pela direção, aconteceu naquela manhã de
agosto de 2016. Estava na sala de vídeo com os pesquisadores Thais e Joaci do BN, quando
resolvi ir à sala da direção para me desculpar com a diretora porque, afinal, ocupei a sala de
vídeo sem considerar o que ela tinha me dito ontem, da reserva da sala para o estagiário. Ao
chegar na sala, fui logo dizendo que não queríamos causar conflito, mas não tínhamos visto o
estagiário na escola, por isso assumimos a sala de informática. E assim me respondeu: “Que
conflito, menina? Não vê que tá tudo como no particular [como na escola particular]?”,
fechando a mão direita e erguendo-a para o alto, querendo que eu percebesse que conseguira
aquele “feito”, ou seja, colocar todos os estudantes dentro da sala de aula. Tudo, afinal, estava
como na escola particular. Estava contente, muito contente, diria que estava radiante. Sorri e
voltei para a sala para me juntar à Thaís e ao Joaci.
Evidentemente, por um tempo relativamente longo, participei em níveis diferenciados,
da vida cotidiana da escola. Etnógrafos são criadores ativos e não passivos de narrativas ou
eventos (THOMAS, 1993). Ou seja, o próprio gênero de pesquisa, nesse caso a etnografia
crítica, além de exigir um envolvimento pessoal e/ou intelectual com os sujeitos, demanda um
engajamento do pesquisador com a realidade pesquisada, bem como a permanente busca de sua
compreensão em uma perspectiva de totalidade. Ao estabelecer relações intersubjetivas,
colaborativas e dialógicas com os sujeitos envolvidos, é fundamental recusar a redução da
etnografia como mera coleta de dados.
Enfim, por meio da cultura cotidiana observada, é possível chegar a dimensões que não
são ditas, mas encenadas pelos atores sociais. Paul Willis (1988) percebe essa cultura cotidiana
como um termo de mediação entre indivíduos e estruturas, o que o levou a produzir uma visão
alternativa às teorias da reprodução em educação, no seu trabalho pioneiro na área,
evidenciando também as possibilidades de resistência.
207
Assim como observa Araújo (2016), há outros grupos que se destacam pelo fato de se
distanciarem dos que foram descritos acima, ou seja, por serem rapazes focados na realização
das tarefas escolares, com gestuais reservados, não presos às formas incorporadas das
masculinidades tradicionais92. Esses rapazes manifestam certas especificidades. Como diz o
autor, “[...] o silêncio atua sobre seus corpos, como algo que os resguardam como sua fala,
formas de andar” e suas atitudes (ARAÚJO, 2016, p. 25). Observo que esse grupo também se
diferencia por ficarem mais tempo com as moças, conversando, interagindo, distintamente do
grupo hegemônico, o modelo de masculinidade que converge com a expectativa normativa da
escola. Vale dizer que, ao utilizarmos aqui o conceito de masculinidade hegemônica, estamos,
92
Dentre outras concepções de masculinidade existentes, existe o conceito de masculinidade hegemônica,
compreendido como “a configuração de uma prática de gênero que incorpora a resposta aceita ao problema da
legitimidade do patriarcado, que garante (ou que se ocupa em garantir) a posição dominante dos homens e a
subordinação das mulheres” (Connell, 1995, p. 77). Este conceito de masculinidade foi configurado através de
modelos tradicionais de homem, segundo os quais se deseja que este homem seja machista, viril, que
comprove regularmente sua masculinidade através de comportamentos agressivos em seu cotidiano.
211
da experiência de ser aluno, aproximando-a da condição juvenil. À vista disso, relato outro fato
referente ao caso de Clóvis:
b) Diário de Campo – dia 1º de dezembro de 2015:
● Afinal, entrei na sala onde se encontrava a professora Ceres. Precisava que três
estudantes respondessem a pesquisa do Censo Escola. Um desses três era Clóvis. E
ele se encontrava ali, no final da sala. Fui até ele e lhe entreguei o questionário. Ele
respondeu que agora “não pode responder”. Acho que nesse caso não poderia insistir
mais. Estava atrás dele há várias semanas. A professora me chamou e perguntou se
eu conheço o histórico dele. Respondi que não. Então ela me disse que ele é usuário
de drogas e traficante, e ela disse que ele não se sentiria à vontade para responder
qualquer pergunta sobre qualquer situação de vida ou escolar. Ela continuou e me
falou que o conselho de classe, provavelmente, iria aprová-lo para que ele seguisse
sua vida e não transitasse mais pelo colégio que, poderia ser um local de venda, disse
a professora.
O CERG se caracteriza por ser uma escola na qual quase todos – senão todos – se
conhecem, sabem onde e com quem moram, sobre seus pais ou responsáveis, o que fazem, e
gostam de fazer, incluindo os professores, os funcionários e a direção. Clóvis não quis participar
da pesquisa, assim como não participava ativamente das aulas, como observei em várias
oportunidades. Em sala de aula estava muitas vezes com os fones de ouvido. Tem o cabelo
curto, raspado, meia estatura. Customiza suas camisetas da escola – a camiseta da farda –
cortando as mangas. Usa corrente no pescoço e sustenta uma tatuagem no lado interno do
antebraço esquerdo, a cara de um tigre. Tem a cor da pele parda. No recreio, na maioria das
vezes, fica no portão da escola conversando com um ou dois colegas. Assim, em 2017, Clóvis
foi aprovado pelo Conselho de Classe, como disse a Professora Ceres. No ano de 2018, cruzei
por ele, no Centro de São Félix ou transitando próximo ao Dannemann 93 ora de moto, ora de
bicicleta. Em uma dessas vezes, quis conversar com ele, mas como no colégio, disse que não
podia conversar, que estava com pressa.
93
Centro Cultural Dannemann: fábrica de charutos Dannemann, fundada na segunda metade do século XIX pelo
alemão Gerhard Dannemann ainda hoje está em funcionamento. A fabricação de charutos ainda é feita de forma
artesanal para preservar a cultura e os costumes da fábrica. Localizada na Av. Salvador Pinto, 29, no Centro de
São Félix, a fábrica também é um centro cultural. O Centro Cultural Dannemann foi criado em 1989 por Hans
Leusen, Presidente da tradicional Fábrica de Charutos Dannemann. É considerada a mais antiga fábrica de charutos
da Bahia e promove palestras, exposições dos mais variados tipos (pinturas, esculturas) e a cada dois anos a Bienal
de Artes Plásticas do Recôncavo da Bahia. Possui diversas obras de arte de artistas do Brasil e do exterior, sendo
bastante visitado por turistas do Brasil e de várias partes do mundo. (SANTANA, 2012).
213
Relato outra passagem que diz respeito ao mundo externo à escola, mas que permanece
um debate interdito.
c) Diário de Campo – dia 2 de dezembro de 2015:
● Tocou o sinal para o recreio. Estava no hall e vi um rapaz com uma linda regata com
as cores verde, amarela e vermelha com algumas folhas da cannabis. O cabelo é
impecável, com um corte que ostenta alguns desenhos geométricos. Ele estava na
frente da sala da direção. A diretora e a secretária passaram dois envelopes para ele.
Perguntei, então, se ele foi estudante do Rômulo. Ele disse que sim, que interrompeu
os estudos e precisava do histórico escolar. Perguntei, ainda, qual o ano que ele saiu
do colégio. Pensou e depois disse que achava que tinha sido em 2014. Pensei
comigo, “então ele pode ter participado de alguma atividade do BN, será que não?”.
● Este era quem estava buscando para minhas entrevistas – estudante que abandonou
os estudos. Preciso te entrevistar, eu lhe disse. Ele respondeu que naquele momento
não poderia. Insisti com ele para me passar o número de seu celular. Ele ficou mudo.
Bem, eu poderia passar o número do meu celular para que me chamasse quando
puder e assim faríamos a entrevista. Ele não disse nada, mas levou o número de
celular. Achei que não me ligaria. Foi embora. Nesse momento o vice e a diretora
me chamaram na sala da direção. Falaram do rapaz. Ele é ex-aluno e traficante, um
perigoso traficante do bairro, conhecido da polícia. E mais, a família não sabe mais
o que fazer com ele e, segundo os dois, está insistindo que vá embora para outra
cidade para não dar mais problemas para eles. Na opinião deles, eu poderia correr
perigo se o entrevistasse.
De todo modo, a juventude como forma de expressão identitária e geracional penetrou
na escola, nos últimos 50 anos, diversificando as relações dos jovens com a escola. O ganho de
autonomia marcou a visibilidade social dos jovens alunos e desestabilizou a hierarquia adultos-
jovens94, manifesta, em maior ou menor grau, no interior das escolas. Em meio a essas
mudanças sociais, incluindo a educação escolar tornada compulsória no mundo ocidental, do
ponto de vista formal, estamos diante da obrigação de se haver com um mundo
94
“O mundo moderno instituiu uma escola que delimita bem o lugar do discente, construindo uma relação de
hierarquia e, portanto, de poder. Nessa relação, são preestabelecidas as formas do discente ser e agir no interior da
escola e também da sociedade. A delimitar as fronteiras geracionais, acentuando a diferenciação social de maneira
a ampliar a assimetria de poder entre as gerações, o processo histórico de constituição da escola moderna acabou
por constituir a cultura dos alunos, formas coletivas de crianças e adolescentes lidarem com o poder adulto docente.
A cultura dos alunos só se tornou possível em decorrência do processo histórico de separação dos mundos de
adultos e dos segmentos infanto-juvenis, bem como da forma assumida por essa separação no interior da escola”
(SANT’ANNA, 2013, p. 33-34).
214
aluno dizer a palavra “Larica”. Não entendi rapidamente o sentido da palavra naquele contexto.
Somente depois que eu relacionei. Larica, segundo o dicionário é um termo coloquial utilizado
pelos jovens e adolescentes para fome, é uma gíria da língua portuguesa que tem origem incerta
(LARICA, 2016).
São muitas as pessoas que relacionam o termo com o uso de drogas, como, por exemplo,
a maconha. Porém, ter larica (fome, vontade de comer algo) não significa necessariamente que
uma pessoa consumiu drogas. Sempre que possível levamos uma merenda para os participantes
das atividades do Projeto. Naquele dia, infelizmente não tínhamos providenciado. Na verdade,
com toda essa confusão que se viu frente a nossa dificuldade para realizar as atividades, nos
esquecemos. Retomaremos a prática. Larica, nesse caso, significa isso, a merenda ao final das
nossas atividades. Esses rapazes que falaram a palavra têm lembrança desses momentos, pois
como estão no 3º ano (14M3) já devem ter tido a experiência de participar de um ou mais grupos
focais ou outros. Em outros momentos, quando saíamos de alguma atividade, era comum nos
depararmos com um grupo de estudantes para ver se sobrou parte da “larica”. Nunca sobrava.
Conforme os relatos e as narrativas transcritas do Diário de Campo, e concordando com
outros autores, a escola participa, sim, na formação da identidade juvenil efetivamente e para
além daquela de aluno (ZANTEN, 2000). Para Willis (1991), ao mesmo tempo que seus
interlocutores, os rapazes anti-escola, consideram a escola como uma imposição a qual devem
resistir, eles se apropriam de seu espaço para afirmação de suas identidades e culturas. No
CERG, os discursos de alguns de nossos interlocutores parecem recusar o estatuto social de
subalternidade ao qual se sentem submetidos no contexto escolar, como a autoridade que
sustenta as relações entre eles e os professores, entre eles e os adultos ali constituídos. A
diferenciação geracional e a maneira austera de um ou outro professor acabam criando um
embate como esse:
Augusto: - Tem alguns professores que levam o problema de dentro de casa pra sala
e acaba prejudicando. E aí acaba discutindo e aí... Manda pra diretoria e aí vai dizer
que o fulano não soube respeitar. E vai dizer que desrespeitou. Mas não foi
desrespeitar. Traz o problema de dentro de casa pra escola. E a escola não tem nada a
ver com problema de professor nenhum de dentro de casa. (Informação verbal) 95.
O que se desprende dessa fala parece corresponder à ideia que culturas juvenis são, de
modo geral, “formas de resistência à opressão e subjugação que exercem autoridades, sendo a
escola o principal representante” (ABRANTES, 2013, p. 65). O arbítrio e a subjugação, no caso
95
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha!” realizado na manhã do dia 30 de março de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min - 11h10min.
216
acima, fazem parte das práticas de um sistema dominante no qual a escola está inserida, por
óbvio. Vejamos uma outra resposta, quando perguntamos se a escola estimula a continuação
dos estudos:
Flávio: - Olha, véi, eu fui pra diretoria, eu e ele [o professor de matemática] o ano
passado, porque ele disse pra mim que eu só podia ser gari, limpar o chão, e nada
mais. Aí ele falou que era brincadeira. Ele pegava e disfarçava. Mas não era
brincadeira, não. Até chamá a gente de mendigo ele já chamou. Parece que o dono do
colégio era ele. (Informação verbal)96.
Na análise de Saraví, “[...] se a educação é a chave para a igualdade, ela mesma deve
ser democrática e cada vez mais inclusiva” (SARAVÍ, 2013, p. 84). Entretanto, Paul Willis
(1988) nos diz que a passagem dos jovens rapazes da classe trabalhadora pela escola só os
conduziu a reafirmar seu destino e sua condição de classe. Quer dizer, as práticas e estilos
contraculturais desses jovens são expressões de uma resistência cultural em oposição a um
sistema dominante do qual a escola é parte, porém, contraditoriamente se constituem, ao mesmo
tempo, nos mecanismos que reproduzem sua posição de classe na estrutura social. A própria
resistência à cultura escolar os exclui da educação formal e os afasta das ocupações mais
precárias do mercado de trabalho.
A análise de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron (1964) nos conduz da classe
trabalhadora britânica aos estudantes universitários franceses, mas, do mesmo modo,
desmistificam a educação como motivação ou fonte de igualdade de oportunidades. A
eliminação, o atraso e a estagnação são mecanismos através dos quais a escola reproduz as
desigualdades sociais pré-existentes: eliminando do sistema educacional os jovens e as crianças
das classes desfavorecidas, relegando-os a disciplinas menos demandadas e mais mal
remuneradas, ou condenando-os ao atraso ou à estagnação na carreira escolar. Tanto em Willis
(1988) como em Bourdieu e Passeron (1964), a educação formal reafirma suas posições de
classe e reproduz as desigualdades preexistentes na estrutura social. Além da escola não ser
uma fonte de igualdade, como já afirmamos, ela também é fundamental para legitimar e se
fazerem justas as desigualdades sociais.
Bourdieu (2004; 1989; 1983; 1990) define o campo educacional como um misto de
disputa de poderes, mas com posições já delimitadas pelo capital econômico e simbólico
herdados, e tendendo sempre à estabilidade. Na obra “Les Héritiers”, Bourdieu e Passeron
(1964) demonstram de que maneira as posições acadêmicas estão estreitamente relacionadas às
96
Texto extraído da transcrição do GF: “Fui pra recuperação, mainha!” realizado na manhã do dia 30 de março de
2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Júlio Araújo. Horário: 10h05min - 11h10min.
217
origens socioculturais dos jovens. Seus “gostos de classe e estilo de vida” parecem ser mais
determinantes de seu desempenho universitário do que sua dedicação acadêmica (BOURDIEU;
PASSERON, 1964). Os referidos autores não chegam a explicar as exceções — tratando-as
como “confirmadores da regra” (BOURDIEU; PASSERON, 1964). Este campo perde, assim,
sua especificidade, correspondendo sempre à disputa estrutural entre dominantes e dominados.
Aliás, como nos lembra Silva, existe uma “[...] quase ausência da visão macro histórica
sobre educação na sociologia atual” (SILVA, 2002, p. 74) o que nos leva a trazer, para finalizar
essa sessão, a contribuição de Anthony Giddens (1984), justamente quando utiliza o trabalho
de Paul Willis, com o qual temos lidado até agora. Na obra “A constituição da sociedade”,
Giddens (1984) afirma que as escolas modernas se apresentam como organizações disciplinares
mais ou menos autônomas, que influenciam e são influenciadas pelas regiões onde se situam.
Entretanto, se Giddens (1984) costuma salientar a ação individual sobre a educação, sua ênfase
está na reprodução social, por mais que exista espaço para a resistência, em uma referência ao
estudo de Willis (1988).
Acentua, em sua breve análise, que essa investigação empírica a respeito da cultura
contra educacional permite um denso debate sobre o constrangimento e a contradição estrutural.
Pesquisas como a de Willis (1988) seriam, sem dúvida, segundo Giddens (1991), um modelo
da união entre teoria estrutural, teoria crítica e pesquisa empírica. O constrangimento estrutural
na etnografia em questão surge como algo que opera mediante a participação ativa dos atores
envolvidos, produzindo efeitos não esperados. Os lads – os rebeldes ou inconformados – são,
em realidade, atores conscientes de sua posição na sociedade, não fruto de uma sociedade
deficiente. São conscientes do funcionamento da escola e talvez os maiores críticos da falta de
perspectiva de sua realidade socioeconômica, diz Giddens (1984), mas toda essa reflexibilidade
não provém da educação escolar. Na dualidade da estrutura, a escola parece pertencer mais ao
lado estrutural do que ao lado da ação (GIDDENS, 1991).
Os estudantes sabem muito bem, tácita e discursivamente, o contexto no qual fazem
parte além de estarem cientes dos limites reais e de suas oportunidades na vida, como diz Ângela
Paiva (2009), em particular os lads. À vista disso, poderíamos pensar,
Da parte dos estudantes as coisas mudaram esse ano e eu vejo isso com muita satisfação.
Explico:
e) Diário de Campo – abril/2016:
● Estava ali esperando Júlio, colega pesquisador do BN, que viria para a realização do
GF sobre Identidade Negra. Chovia muito naquele momento. Júlio apareceu,
afobado, se justificando. A nossa presença contínua no campo é primordial para
(a)firmar nosso compromisso com os estudantes. Tanto isso é verdade que os(as)
estudantes começam agora a perguntar se vai ter atividade do projeto. Pedem para
que eu abra o caderno e os coloque em uma lista daqueles(as) que irão participar da
próxima atividade. Isso é muito bom. Contudo, o problema continua sendo buscar
não atrapalhar as aulas, o andamento das aulas. Com a saída dos meninos e meninas
da sala de aula, os professores reclamam. É importante frisar que aqueles(as) que
têm vontade de participar são, na maioria das vezes, aqueles que ficam nos
corredores, aqueles que nos relatam nas atividades que fazemos, que as aulas
poderiam ser mais dentro da realidade deles(as).
O problema continuava sendo buscar não atrapalhar as aulas, o andamento das aulas.
Com a saída dos meninos e meninas da sala de aula, os professores reclamam. Um grande
dilema. Entre os sujeitos observados e o etnógrafo, está a instituição escolar.
f) Diário de Campo – maio/2016:
● Hoje não pudemos realizar nenhuma atividade. Circulei pelos corredores e tive a
grata surpresa ao ouvir de um aluno do 1º ano que a turma dele estava esperando o
meu retorno. No semestre passado eu comecei a desenvolver uma Roda de Conversa
com eles sobre Gênero e Sexualidade. Chegamos a construir o “boneco” que fez
parte do segundo momento da atividade, quando os alunos materializam um menino
e uma menina no papel pardo para depois colocar as características, palavras que
identificam/caracterizam para eles(as), uma menina e um menino. A atividade até aí
foi muito bacana, me pareceu naquela ocasião que realmente eles(as) tinham curtido
muito.
Entretanto, a nossa atenção viva e continuada em campo tem nos permitido enxergar
certa ordem nas coisas, fazer com que certas informações se transformem em material
significativo para a pesquisa. Por exemplo, relaciono essa reflexão à questão do “atípico”, do
“imprevisto”, do “improviso” que acaba se tornando, em minha opinião, evidente e constante
nesse cotidiano escolar. Claramente, estamos subordinados à rotina do colégio. O termo
“atípico” foi mesmo relatado pela coordenadora da escola com um significado determinado –
220
anômalo, raro, incomum. Não diria isso. A professora coordenadora, no dia 6 de setembro, me
pediu que eu a desculpasse: não poderia me ceder alguns estudantes para o Grupo Focal, pois
“hoje é um dia atípico, dia que antecede o feriado de 7 de setembro, era bom deixar os alunos
mais descontraídos, com menos conteúdo, propor algo mais light”.
Não é a primeira vez que escuto nesse mesmo contexto a frase: “Gente, esse é um ano
atípico”, com suas variantes circunstanciais, “dia atípico”, “semana atípica”, “trimestre
atípico”. O atípico, assim como o improvisado e o assimétrico, caracteriza de forma sistêmica
também esse cotidiano escolar, funciona como uma constante justificativa para algum tipo de
rearranjo (dias letivos, greves, paralisações, verbas), e pode ser percebida, muitas vezes como
“razoável”, mas também como “irresponsável”. Ou seja, é “razoável” quando se percebe que
ela é dita depois que todas as possibilidades se esgotam, quando há esforço de não repetir “hoje
é um dia atípico”.
Atípico, aquilo que se afasta do normal, aquilo que constitui o raro, o incomum. Porém,
o “atípico”, quando se repete, perde sua excepcionalidade e se torna comum. O atípico acaba
atravessando o cardápio da merenda, a limpeza das salas de aula, a falta d’água, a falta de gás
na cozinha, as condições climáticas e assim por diante. Existe uma fronteira entre a banalização
do uso do termo e o recurso legítimo. Qualquer uso é legitimo em seu contexto, é preciso
reconhecer e reconstruir esse contexto.
Teríamos muito mais o que contar, todavia escolho relatar apenas mais uma questão,
porque a vejo como imprescindível para entender, pelo menos, algumas das dificuldades que
enfrentamos no diálogo com a instituição propriamente. Farei, então, referência ao meu
primeiro contato com a nova diretora – ano passado, os professores, funcionários, estudantes e
pais, escolheram a nova direção da escola. O professor Ivan já havia me apresentado a ela, mas
pensei que seria necessário que eu revelasse o meu Projeto de Tese, que, embora se alinhe aos
propósitos do BN, tenta evidenciar uma outra inflexão relacionada com as questões de
defasagem dos rapazes em relação às moças. E foi exatamente quando me referi a esse
fenômeno (do abandono dos rapazes no Ensino Médio), que a diretora da escola me surpreendeu
com a sua “indignação”. Utilizo-me do meu diário de campo para narrar precisamente esse
acontecimento:
g) Diário de Campo – março/2016:
● Cheguei à escola e me dirigi prontamente à sala da Direção97. O meu objetivo era
me apresentar à diretora e lhe falar sobre a minha pesquisa. Lá estava a Diretora e o
97
A sala da Direção é constituída de duas salas (a antessala, vamos dizer assim, seguida da sala onde a diretora
tem sua mesa de trabalho e um banheiro). A antessala possui uma mesa retangular, um armário-arquivo de metal,
221
É algo nato, natural! Não sabe? O menino é protetor e provedor. Ele, quando chega
aos 14, 15 anos, ele sai da escola pra trabalhar. As meninas vão ficar com os meninos
que podem pagar um lanche, um refrigerante pra elas. Se ela vê que ele não tem, ela
escolhe outro. Ele não vai querê ficá sem mulher, ele precisa da mulher. A mulher não
precisa de homem, não precisa pra nada, e agora nem mesmo pra tê filho – ela vai no
banco de sêmen e pronto. Eles precisam da mulher pra tudo. Os pais não vão querer
dar dinheiro pro filho. Famílias desajustadas, muitas vezes não tem pai. Quando chegá
a hora, eu mesma vou dar dinheiro a meu filho pra ele sair com as meninas e continuar
estudando. Meu marido, na época, meu namorado, me dava ficha de telefone (sabe
aquelas fichas pra falá no telefone público?). Pois é, ele me dava um pacote inteiro de
ficha. Pra eu ligar pra ele – pra saber onde estava. (Eu não tinha telefone em casa, ele
tinha). Não tinha celular na época. Depois, quando veio o celular, ele comprou um
celular pra mim (sic) (Informação verbal)98.
Como revela Geertz, “[...] há um número de razões pelas quais tratar o senso comum
como um corpo organizado de pensamento deliberado [...] pode levar a algumas conclusões
bastante úteis” (GEERTZ, 2012, p. 79). E uma dessas conclusões, talvez a mais importante, diz
o antropólogo, seja aquela cujo pensamento, derivado do senso comum, se configure através
das opiniões restauradas diretamente da experiência, e não uma decorrência de argumentos
determinados sobre essa experiência. Entretanto, temos que convir que no seio do senso comum
acontece o bom senso, que é justamente o resultado de fragmentos de criticidade que emergem
no contexto dessas configurações (LUCKESI, 1994, p. 96).
A reação da diretora ao meu objeto de investigação foi para além do que poderíamos
chamar de senso comum, ou até mesmo do que entendemos por bom senso. Estaria eu
exagerando? Seria um consenso entre os docentes? Isso encerraria de antemão o meu
investimento na pesquisa. Sua experiência de vida já encerra o projeto de antemão. Ou seja,
um computador ligado a uma impressora e a uma copiadora. Lugar este, em geral, onde os professores/as circulam,
buscam seus cadernos de chamada, solicitam cópias para desenvolverem seus trabalhos, etc. Na maioria das vezes,
é ali que o vice-diretor fica trabalhando. A sala da Direção, a meu ver, é utilizada pela diretora para conversas
privadas, confidenciais, ou algo similar.
98
Trecho extraído do Diário de Campo – manhã do dia 10 de março de 2016. CERG.
222
isso nos remete à afirmação de que “[...] o senso comum com o seu rolo compressor, que nos
envolve, nos retira a possibilidade do questionamento em tudo, inclusiva nas questões
pedagógicas e educacionais” (GEERTZ, 2012, p. 97).
Como o meu interesse não é o ponto de vista dos docentes, da equipe diretiva, a fala
retro mencionada, nesse contexto, se transforma em uma ilustração, na intenção mesmo de
iluminar o nosso campo, trazer alguns elementos para compor o nosso contexto escolar, porque,
e concordando com Geertz, mesmo se quisermos,
Não será viável esboçar algum tipo de estrutura lógica que seria adotada pelo senso
comum onde quer que esse se apresente, pois essa não existe. Nem sequer poderemos
elaborar um sumário de conclusões substantivas a que o senso comum sempre nos faz
chegar, pois nesse caso tampouco existe um padrão. O único procedimento que nos
resta, portanto, é o de tomarmos o desvio específico de evocar o som e os vários tons
que geralmente são reconhecidos como pertencentes ao senso comum, aquela
ruazinha paralela que nos leva a construir predicados metafóricos – noções
aproximadas (GEERTZ, 2012, p. 96).
Nossa estreia no campo com o Projeto Brincadeira de Negão em 2013 foi marcada por
um constrangimento estrutural e moral. Era a nossa primeira visita à escola (CERG), e já fomos
testemunhas de um “microdrama no qual valores masculinos estiveram em cena”, como
descreve o antropólogo Osmundo Pinho (2014b, p. 14). Chegamos à escola, o coordenador do
projeto, professor Osmundo, e eu, por volta das 14h30min. Nesse ano ainda havia o turno da
tarde, que era destinado ao Ensino Fundamental II – do 6º (sexto) ao 9º (nono) ano.
Na primeira visita formal que fizemos ao campo, no caso a escola em São Félix,
testemunhamos espetacularmente um microdrama no qual esses valores masculinos
estiveram em cena. No dia em que fomos nos apresentar à direção da escola, eu e
Beatriz, pesquisadora no projeto, e discutir o trabalho, a nossa reunião com o atencioso
vice-diretor foi intempestivamente interrompida. Enquanto conversamos, um conflito
invadiu a sala. Um garoto de aproximadamente 14 anos, pele muito escura e um pouco
acima do peso, foi conduzido à sala, discutia com um colega de idade semelhante.
223
Haviam brigado, ele e mais três, ao que parece. O adolescente repetia: “Isso é homem?
Vir de galera?”. E seguiu, muito suado e agitado, ameaçando o oponente, que estava
fora da sala, sem se preocupar com a nossa presença, muito menos com o vice-diretor.
“Vou pegar ele lá fora, o morro vai descer”. Então o vice-diretor, para o nosso espanto,
passou a questioná-lo: “cadê a faca?”. E pede que o garoto de 13, 14 anos que levante
a camisa – na sala de direção de uma escola pública do ensino fundamental – para
mostrar que não está armado. O segurança da escola foi prontamente chamado. E sim,
na escola há um segurança, e o vice-diretor relatou que às vezes é necessário chamar
a polícia para que os professores possam deixar a escola à noite, porque presumidos
bandidos, do morro ao lado, esperam do lado de fora. O vice-diretor pede ao segurança
que procure a faca, enquanto observávamos incrédulos. Logo ele retorna com o objeto
mortal: “achei jogada no chão” (PINHO, 2017, p. 47).
Cores e valores
Conspiração funk
226
International in
Jamaica Queens
Fundão, Sabin
Função pra mim
Se Deus me fez assim
Fechou, neguinho
Eu trouxe o do "verdim"
Estava tudo pronto para darmos início ao Grupo Focal. Assim que o pesquisador
Gimerson deu as boas-vindas aos rapazes e falou qual era a proposta do encontro:
Gimerson: - A ideia dessa atividade é ouvir vocês mesmo. A gente vem aqui, eu,
Felipe e Beatriz, não pra falar, mas para ouvir vocês. A gente vai mostrar um vídeo
do “Preto Zica”, que vocês sabem que é dos Racionais, de 2014. E vamos discutir
algumas letras deles como “Preto Zica”. A gente então vai ver o clip do Preto Zica
agora, pra gente discutir depois. Como a gente vai falar de consumo, a gente vai ver
nas letras, várias marcas de carro, moto, relógio. Vocês ouvem rap aqui?
Rapazes respondem juntos: - Demais! Todo dia! (Informação verbal)99
A seguir, reproduzo a letra de duas músicas do Grupo “Racionais MCs” que foram
levadas para a discussão proposta pelo GF.
Preto Zica
99
Texto extraído da transcrição do GF: “Cores & Valores”, realizado no dia 22 de novembro, no CERG,
coordenado pelos pesquisadores Gimerson e Felipe, com apoio da autora. Horário: 10h05min - 11h20min.
227
Eu Compro
● Gimerson passou a rodar o clip do Preto Zica (2019). Depois perguntou se eles
sabiam o que é Preto Zica: - “um cara embaçado, cara foda100”, responderam alguns.
Gimerson: - Zica virou uma gíria muito usada na favela, na periferia, é mesmo o que
você falou, um cara foda, um cara fodão.
Felipe: - Às vezes, um cara que é zica, é um cara que vai e provoca o azar.
Gimerson: - Vocês vão ver também que no cd as músicas Cores e valores e Eu
compro são totalmente interligadas, termina uma e começa a outra. Fala da mesma
narrativa em todo o cd, sacou?
Felipe: - A letra do Preto Zica tem muita reflexão. Como um grupo preto de rap se
sente nesse meio social, de consumo. Eles contrapõem toda essa ideia de exclusão, de
não poder [comprar, consumir]. A comunidade preta não tem acesso. O preto zica da
música vai se juntar com outros pretos zica para tentar organizar essa fuga, essa fuga
do “não ter”, tá ligado? Esse clip é o momento da reunião pra resolver essa fita, um
momento preparatório para organizar ou fazer a vida, é o que a foto da capa mostra, a
fita de um assalto ao banco. O que vocês acham desse consumo, dessas grifes? Vocês
acham que algo acessível pra gente? Tô falando do consumo imaginado, né?
Imaginam isso nos clipes, nas músicas.
Odair: - Não, porque a gente não tem oportunidade de nada. Tem que vencer na vida.
Sérgio: - É isso, sempre os brancos tá em primeiro lugar.
Gimerson: - E o que seria vencer na vida pra você?
Odair: Tipo o cara estudar bastante. Tipo um preto sair da favela e ir na faculdade.
Emprego bom. Ganhar dinheiro. Ou então virar político.
[risos]
Gimerson: - Virar político por quê?
Sérgio: - Pra fazer a fita...
[risos]
Gimerson: - E então a gente percebe esse negócio da contradição como a gente tá
falando aqui, do capitalismo e do racismo. A letra da música, já diz101 “Olha só aquele
shopping, que da hora! /Uns moleques na frente pedindo esmola/De pé no chão,
malvestido, sem comer/Será que alguns que estão ali irão vencer”? E daí segue falando
da coisa do consumo mesmo: “Minha ambição tá na pista, pode pá que eu encosto/
BM branca e preta/M3 com as roda cinza eu gosto/Os nego chato no rolê de
Mercedes/Apenas dois, três, quatro é foda poucos pensam/Que seu sonho de ter a
Fireblade vermelha/Repsol CBR, uma VMAX, um apê”. Isso é aquela coisa da
ostentação: “agora eu tenho, e posso ter melhor que você” [se referindo ao branco de
elite].
Odair: - Tem uma coisa também, na favela a gente sempre pensa: “será que a gente
vai conseguir”? “Sou preto, não vou conseguir nada, vou entrar no tráfico”.
Gimerson: - E então, vocês acreditam mesmo que estudar bastante, entrar na
faculdade, um bom emprego, é realmente um meio pra subir na vida?
Márcio: - Teoricamente sim. Mas tipo assim... de cem pessoas que passou ali, no
máximo três são negros.
Sérgio: - É só uma questão de você correr atrás, insistir mesmo. Se você quer ser um
juiz, um advogado, tem que insistir mesmo, porque muitas barreiras vão aparecer
mesmo. Se você para no primeiro degrau...
Márcio: - Já ouviu Baco?
Gimerson: - O Exu do Blues?
Márcio: - É. Ele diz: "Escravizaram meu povo por dinheiro, quero dinheiro pra não
ser escravo."
Odair: - Acho que o Brasil tem uma porção de culpa aí, porque vários países fora aí
incentivam a pessoa a estudar. Ensinam a pessoa a estudar. No Brasil não ensinam
isso. Tu vai pra escola, tu fica 4 horas de relógio na escola, o governo não liga. Podia
100
Um cara embaçado significa na gíria uma pessoa que não deu certo, complicada ou que causa problemas. Um
cara foda significa na gíria uma pessoa que deu certo, foda em alusão ao que é muito bom, ou o máximo em
referência.
101
Música “Eu compro” (2019).
229
Para além da violência simbólica – cujos parâmetros também determinam a ideia de que
existe uma cultura superior e uma inferior, uma escola para uma classe mais elevada social e/ou
financeiramente e uma outra mais popular, por exemplo – existe a agência dos sujeitos e suas
contradições, e a formação da counter-school culture como em outros termos já foi analisado
anteriormente a partir do trabalho de Willis (1988). O que gostaríamos de salientar aqui é
justamente a existência de agência dos sujeitos apoiada em bases objetivas em relação aos
processos culturais subjetivos que de todo modo caracterizam a cultura contra escolar.
102
Texto extraído da transcrição do GF: “Cores & Valores”, realizado no dia 22 de novembro, no CERG,
coordenado pelos pesquisadores Gimerson e Felipe com apoio da autora. Horário: 10h05min - 11h20min.
230
9), como resume um dos nossos interlocutores quando diz que o branco está sempre em primeiro
lugar.
Em outro lugar transcrevi uma fala de outro interlocutor – estudante de 9 anos da escola
pública –, que representou a figura padrão na qual “o branco correndo é esportista, o negro
correndo é ladrão” (GIUGLIANI, 2013, p. 113); ou “de cem pessoas que passam [na
universidade], três são negras” – ver acima na conversa com os interlocutores. Como afirma
Pinho, “[...] essa ego-centralidade da epistemologia cartesiana ocidental demanda um
situacionamento historicamente definido no âmbito da revisão ou refundação epistemológica”
(PINHO, 2016a, p. 10). Na concepção do autor, os estudos afro-brasileiros, ao constituir o negro
como objeto de ciência, impediram sua constituição como sujeito político da representação.
(PINHO, 2010, p. 302).
Conforme Walsh (2009), a perspectiva decolonial tem como possibilidade transcender
a colonialidade, a violência epistêmica da modernidade e de seu padrão mundial de poder, que
permanecem se atualizando em nossas ações diárias. Sem dúvida, uma posição complexa que
poderia ser pensada através da construção de relações sociais traçadas por meio da superação
das opressões da modernidade/colonialidade/racialização e, evidentemente, no processo de suas
interseccionalidades.
A hegemonia significa um objetivo político que, atravessando instituições, relações e
consciência, é menos uma ação unilateral do dominador e mais a produção do senso comum,
algo em que a naturalização de práticas parece dominar a totalidade do espaço e tempo
existentes. A própria ideia de hegemonia, como resultado de um processo de “saturação” da
consciência subordinada em determinado momento é, para Raymond Williams (2011), a melhor
aplicação da noção de totalidade tão proclamada pelo marxismo, que abandonaria, portanto, o
reino da abstração e se tornaria materializável:
Uma vez situadas, nossas práticas localizadas, “[...] em conjunção a uma consideração
mais ampla sobre a antropologia crítica e engajada, levada a efeito por pesquisadores [Projeto
231
BN], eles próprios excêntricos com a relação a posições de sujeitos identificadas com a matriz
da supremacia branca global, o patriarcado e a heteronorma” (PINHO, 2016a, p. 2), nos movem
efetivamente para reflexão, compreensão e a própria definição da produção das subjetividades
racializadas, destacando as categorias e estruturas de sentimento que encadeiam, de forma
problemática e contraditória, os interlocutores com quem interagimos e as estruturas do Estado
(PINHO, 2016a, p. 2).
A noção de “estruturas de sentimentos” pode garantir ao pesquisador aproximar as
manifestações emergentes, de resistência e oposição às práticas e às ideologias hegemônicas na
ordem social existente (MIGLIEVICH, 2016). A “estrutura de sentimentos” é um tipo de
articulação material e histórica: “[...] é a articulação do emergente, do que se escapa à força
acachapante da hegemonia que certamente trabalha sobre o emergente nos processos de
incorporação, através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a
centralidade de sua dominação” (CEVASCO, 2001, p. 158).
b) Diário de Campo - 18 de abril de 2017:
● Não quero deixar de relatar a fala da Professora de Matemática, mesmo que
sinteticamente. Estávamos ainda na sala dos professores no intervalo, e assim que
Ivan apresentou os nossos convidados aos presentes, a professora contou que ontem
(17), ela e mais outra professora foram visitar um ex-aluno que está com depressão,
Fabrício, que mora, segundo ela, em um lugar “bem difícil”. O rapaz terminou o EM
há cerca de três anos. Na época da escola, o jovem era superativo, dinâmico,
participava de tudo, ajudava a todxs, resolvia problemas, etc. Saiu da escola, não
conseguiu emprego e, além disso, a família passava por muitos problemas, razão
pela qual entrou em depressão. Está bem mais gordo, disse ela. No último domingo
tomou 18 comprimidos de diazepan e os familiares o levaram para o hospital, onde
fez a lavagem no estômago. Voltando para casa, esperou 24h e repetiu, tomou
novamente 18 comprimidos desse medicamento. E revelou às professoras visitantes
que irá, em breve, voltar a tomar. A professora relatou isso a todos que estavam na
sala, sentada à mesa. Para terminar, comentou ainda que ao sair da casa do ex-aluno,
viu o movimento da polícia subindo em direção à Maragogipe em alta velocidade.
Mais tarde soube que policiais haviam matado alguns jovens em Maragogipe e
também em São Félix.
O professor Ivan, uma semana mais tarde, quando comentei desse relato, me falou que
Fabrício, depois que concluiu o EM, começou a frequentar uma Igreja Evangélica. Lá, foi
232
vítima de vários episódios de discriminação por causa da sua orientação sexual (Fabrício seria
gay). Segundo Ivan, a partir daí o jovem começou seu processo depressivo.
Infelizmente não foi possível uma entrevista com Fabrício, dado o momento em que se
encontrava o jovem, considerando que buscava se recuperar do que lhe sucedeu. Ora, o
significado [...]“de ser homem, e a forma socialmente estruturada de constituir e de objetificar
os valores e ideais de masculinidade, estão definidos pela interação” (PINHO, 2016b, p. 242)
dos nossos interlocutores com as várias agências pelas quais são
ressignificadas/produzidas/transformadas certas práticas atribuídas à conduta masculina
(PINHO, 2016b, p. 242). Como vimos na descrição acima, a escola é somente um dos tantos
lócus no qual os sujeitos aprendem a separar homens e mulheres; a igreja, o contexto em questão
– a cidade de São Félix, cidade histórica-colonial, e a própria “[...] perspectiva socialmente
enraizada desses sujeitos, justamente assujeitados pelos discursos e práticas raciais e de classe,
são a máquina de produção de subjetividades e identidades sociais em nossa sociedade”
(PINHO, 2016b, p. 233).
Uma vez concluídos os estudos, Fabrício tentou ingressar no mercado de trabalho, tanto
em São Félix quanto em Cachoeira. Já ressaltei a escassez de postos de trabalho na cidade, ou
mesmo em Cachoeira. Pode-se dizer que, enquanto estudante, o jovem mantinha uma relação
que lhe permitia agir com os seus pares, com os adultos – professores e professoras –, de forma
a criar laços de amizade e de solidariedade, razão pela qual permaneceu como líder de turma
por anos consecutivos. Ao relatar o que se passou com o aluno, pude perceber que além da
professora de Matemática, outras professoras também guardavam ótimas lembranças da época
na qual conviveram com ele. Porém, a sexualidade de Fabrício foi somente revelada na voz do
Professor Ivan, assim como o que aconteceu na Igreja.
Por outro lado, alunos e alunas são sujeitos assexuados no olhar da instituição, num
olhar mais amplo. E como salienta Miskolci “[...] quando menos se espera, aparece alguém que
destoa da maioria” (MISKOLCI, 2005, p. 13). Portanto, o que se mostra diferente, nessa cultura
que generaliza os sujeitos, tende a ser visto como desvio, algo que causa perturbação, mas não
só nas escolas, nos espaços sociais – como naquele que acabamos de descrever –, gerando
discriminação e preconceito. Ou como aquela frase de Evandro que ouvimos na Roda de
Conversa realizada no dia 2 de agosto de 2015 sobre Relações de Gênero e Sexualidade – aliás,
duas frases complementares: “homem que é sensível é veado”, portanto, “homem que é homem
não é sensível”. Assim, para finalizar a sessão, consideraria ainda descrever o campo, um dos
tantos eventos que resultaram em êxito.
c) Diário de Campo - 7 de junho/2016:
233
103
Professor Ivan, à esquerda, palestrante professora Elis e Valter.
237
sociais e culturais da qual fazem parte, e que gênero é mais do que uma identidade
aprendida, é uma categoria imersa nas instituições sociais.
● Usou o seu estilo para exemplificar e dizer que “os gordinhos e as gordinhas podem
também ser sexy”. Desfilou pelo auditório dizendo que é uma “gordinha básica” e
tem muito orgulho. Tocou no seu corpo desfilando como uma modelo de passarela.
● Um estudante que estava bem próximo do espaço deixado para a palestrante circular,
brincou com ela e disse: “eu também sou um gordinho básico”. Muitos risos. Elis
parecia gostar da interação. Aliás, todos os alunos estavam fixos na fala e na
performance da Elis.
● Até que chegou um momento crucial: Elis se apresentou como Érik. Silêncio de
espanto de todos – alunos, a diretora, pesquisadores, bolsistas. Mostrou um slide em
que estavam sua mãe, sua avó e ela, ainda pequena. E falou do constrangimento que
passou na infância e, mais ainda, na adolescência no colégio e em outros sítios. Com
o passar dos anos, assumiu-se como mulher e colocou silicone nos seios e na bunda.
Mas seu nome permanecia Érik. E aí diz que quando chegou ao Rômulo Galvão
como professora, solicitou à diretora – frisando que não era esta direção – era outra,
que gostaria de usar seu nome social. A diretora não concordou dizendo que no papel
estava escrito “Érik” e que ela continuaria com esse nome para fins legais. Ela
mostrou então a lei que foi promulgada para que as pessoas, como ela, pudessem
legalmente passar a usar seu nome porque mudaram de sexo. E concluiu essa parte
da palestra perguntando: “alguém sabe o que eu tenho no meio das pernas”?
● Depois de um tempo desmentiu. Disse ser mulher bissexual. Atualmente é casada
com uma mulher.
● Valter falou sobre ser gay, as dificuldades da aceitação na adolescência até os dias
de hoje, na Universidade. A necessidade do empoderamento. A necessidade de lidar
com as diversidades.
● Depois vieram as perguntas para os palestrantes. Júlio pediu que Sylvio recolhesse
as perguntas, que não precisavam ser assinadas. Aproximadamente 8 perguntas.
Uma delas:
Elis: “Eu não sofri racismo, lesbiofobia, mas sofri com intolerância religiosa. – Elis é
candomblecista”. (Informação verbal)104.
Questões como essas, diz Júlio Araújo (2016, p. 90), já haviam sido abordadas em Rodas
de Conversa na escola. Em uma dessas, um estudante usa a religião como a estrutura na vida
de um homem; noutra, a diretora enfatiza que era possível se fazer o seminário sobre
diversidade, sim, entretanto sem “aberração como nas paradas gays”, como relata o
pesquisador, “justificando sua preocupação com pais e seus condicionantes”. Bom, Elis
responde que é preciso
104
Texto extraído da transcrição do “Seminário Diversidade na Escola”, no CERG, coordenado por Júlio Araújo
com o apoio da autora e do Professor Ivan, na manhã do dia 8 de junho de 2016. Horário: 8h45min - 11h40min.
105
Texto extraído da transcrição do “Seminário Diversidade na Escola”, no CERG, coordenado por Júlio Araújo
com o apoio da autora e do Professor Ivan, na manhã do dia 8 de junho de 2016. Horário: 8h45min - 11h40min.
106
Texto extraído da transcrição do “Seminário Diversidade na Escola”, no CERG, coordenado por Júlio Araújo
com o apoio da autora e do Professor Ivan, na manhã do dia 8 de junho de 2016. Horário: 8h45min - 11h40min.
239
para levar o ex-aluno para entrevista. Ela me indicou uma sala ociosa, a primeira do
primeiro corredor, onde ficam as salas de dois primeiros anos. Hora do recreio.
● Entramos na sala. Das telhas vinha o som estridente de passarinhos que voavam de
um lado ao outro, em profusão. As cadeiras da sala estavam um pouco empoeiradas
e por isso eu passei um papel em duas delas para que pudéssemos sentar e começar
a entrevista. Agradeci mais uma vez por ter vindo, e, enfim, nos sentamos. Procurei
o celular para gravar e o roteiro da entrevista. Começamos.
● Logo fui perguntando sobre como ele via os jovens da sua geração. Foi falando sem
“pestanejar”.
Jair: - Os homens hoje em dia eles estão preocupados não é pelo seu próprio bem-
estar, eles estão preocupados em viver a vida deles de qualquer maneira. Por isso...
Eles vivem uma vida repleta de “ah, vamo viver, né” ... Não importando o amanhã. E
aí, alguns se perdem, se perdem, né? E a criminalidade é um fator muito pessoal. Tá,
os jovens... Muitos querem colocar a culpa até no governo. Mas isso, eu acho que isso
é uma coisa que vem não só do governo, vem de outros fatores. Entendeu? Eu vejo
homens, homens negros... principalmente negros que dizem: “eu vou lutar e vou
vencer, não importa o lugar onde eu nasci” ... “não importa a situação que eu vivi” ...
“não importa, eu vou lutar e vou vencer”. E aí, o que acontece aqui é que os jovens
querem muitas mulheres, se acham homens só porque estão com um copo de cerveja
na mão, né? Se envolve muitas vezes com o tráfico, se envolvem nas drogas, e, por
isso... que as mulheres têm mais foco, né? Tem mais objetivo: “não, eu vou estudar”.
Ainda que namorem, que saiam, seja lá o que for, mas elas... “não, eu vou estudar” ...
Na minha sala, só as mulheres que tomavam a frente dos trabalhos, tomavam a frente
das pesquisas, né? E aí, fica difícil, né? O homem tem aquele negócio de “querer ser
homem”, que querer mostrar pro outro que é “homem”, só que de uma maneira errada,
não de uma maneira positiva.
Eu sempre pensei “ah, quando eu puder beber, quando eu puder ter aquelas coisas de
sair, isso e aquilo”. Mas depois fui percebendo que isso não me leva nada. Tá com um
copo de cerveja na mão, as pessoas muitas vezes se prostituem. Tipo, a prostituição...
eu sei que a pessoa faz do seu corpo o que quiser, mas o sexo não é tudo. É só um
prazer..., mas existem prazeres maiores do que aquilo, prazer de ter uma família, de
ter uma estabilidade. Não..., mas eles não têm essa consciência, querem viver
escravos, escravos do quê... do próprio sistema. “Ah, é o sistema, é o governo, é o
Brasil que coloca isso”. Não é só o pensamento deles de querer ser aquilo ali. Tipo,
eu não quero ter dinheiro pro meu sustento, pra uma estabilidade. Não, “tá bom isso
aqui pra mim”, um trabalho... Não, “qualquer coisinha pra mim, tá bom”. E aí, perto
de estar no 3º ano, estando no 3º ano, muitos desistem... Pra que fazer isso?! Desistiu,
é? “Ah, não vou estudar mais não, vou fazer supletivo, vou fazer supletivo”. “Oh,
rapaz, desiste não...”. “Eu já decidi”. Ou, “vou trabalhar, não vou estudar mais não”.
E aí, o que que acontece... Né? Eu não entendo. (Informação verbal) 107.
Quando falei que Jair era quieto, falava pouco, me surpreendi com a sua desenvoltura
ao responder a primeira questão. Na época em que o conheci, não apresentava toda essa
eloquência. Estava à vontade para desenvolver o raciocínio, para expressar suas ideias. E assim
107
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h55min.
243
foi até o final. Jair, por exemplo, deixa claro na sua fala que os jovens rapazes da sua geração,
mesmo que expressem a vontade de lutar para vencer na vida – “não importa, eu vou lutar e
vou vencer” –, decidem ficar no meio do caminho. Conforme o interlocutor, só porque ostentam
um copo de cerveja na mão, se acham homens, querem mulheres, ou “se envolve muitas vezes
com o tráfico, se envolvem nas drogas”, e acaba comparando, descrevendo o exemplo das
meninas, com mais foco, mais dedicadas aos estudos. Para Jair, em síntese, o “querer ser
homem” e “mostrar para o outro que é homem”, prejudica a ideia inicial de “lutar e vencer”.
Por outro lado, Jair percebe a certa altura que precisava encontrar um sentido pessoal possível,
transcender o “medo do futuro”, ainda quando frequentava a escola. Vejamos:
Jair buscava elaborar um sentido para sua vida. O medo do futuro talvez estivesse
relacionado com o assédio moral que vivia na escola, a “humilhação”. Até os 11 anos
108
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h 55min.
244
frequentava uma escola cristã. Aos 12 anos começou a frequentar o CERG. Pergunto então
sobre a sua convivência na escola, como se sentia na escola.
Jair: - É... eu sofria muito bullying. Mas depois que eu fui tomando consciência, mais,
eu não deixei mais pisar em cima de mim, né? Eu comecei, assim, eu fui dizendo,
“olhe, me respeite que eu não sou moleque”. Se eu deixasse deixando aquelas pessoas
fazerem aquilo comigo, né. Na minha fé (vou falar em relação a minha fé): se na
minha fé diz que o maior homem do mundo, o único, me ama e me amou, por que eu
vou deixar os outros vir pra cima de mim? (Informação verbal) 109.
Jair: - A escola significou pra mim... [baixo o tom de voz], o que eu posso dizer da
escola? Ela significou pra mim um momento, passagem, descobrir... interagir, né?
Interagiu com as pessoas... Não interagi muito, mas algumas amizades eu fiz, né?
Descobri aqui melhor o senso do que era certo e errado... Como eu era da escola da
Igreja Batista UEB, você não conhece muito a maldade, porque lá não existia maldade,
maldade no sentido que eu estou dizendo do mal, do que você vai engolir. Eu entrei
no Rômulo com uns 12 anos, eu conheci a malícia, no sentido do que é certo e errado,
o que pode, o que não pode fazer, foi mais aqui. (Informação verbal) 110.
Segui perguntando à Jair do que mais gostava na escola. Disse que não sabia, eram
poucas as coisas das quais gostava. De uma maneira descontraída, quis provocar o jovem,
perguntei a ele se não seria a merenda o que mais gostava. Ele sorri então e diz repetindo: “nem
a merenda, nem a merenda, nem a merenda”. Mas eu insisti:
109
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min-10h55min.
110
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h-10h55min.
245
Saber do cotidiano de Jair, agora que já se formou, poderia ser importante para buscar
compreender o significado do futuro, da mudança social. Em outras palavras,
Nosso entrevistado, então, fala do seu cotidiano, do que o anima na/para vida:
Jair: - Eu acordo... Basicamente... Depende. Como eu falei pra senhora, tem dias que
eu acordo e vou pra igreja. Por isso que eu falei pra senhora que eu não tô disponível
tal dia, tal dia, tal dia, tal dia, porque eu posso estar, no caso, na igreja. Tem vezes que
eu vou falar [na igreja]. Terça, quarta, sexta e sábado eu estou lá. Tem vezes que eu
fico pensando, minha vida tá assim, da casa pra igreja, da igreja pra casa.
Pesquisadora: E no teu tempo livre?
John: Oh... Como eu faço a obra [do Senhor ou de Deus]112”, falo na igreja... Ajudo o
pastor no negócio dele, tá entendendo? E eu sou um obreiro, né? Tem os obreiros
evangelistas, né? E eu não sou muito de sair pra muitos lugares... Minha vida é... Não
tenho muito mais que fazer, mas eu tenho que incrementar né? Mas todo mundo tá na
minha mente: tenho que cuidar da minha saúde.
Pesquisadora: - O que mais te anima na vida?
Jair: - Estar na igreja, mais do que em casa, basicamente.
Pesquisadora: - Tu mesmo disseste que precisas incrementar um pouco a tua rotina.
Jair: - Não, não, não. Não estou dizendo que eu não tenha prazer nisso, entenda. Eu
gosto. Não me entenda mal – tá gravando tudo aqui, e vai ficar como eu esteja enjoado
da igreja. (aumenta um pouco a voz). (Informação verbal)113.
O fato de estar com o gravador ligado fez com que Jair se preocupasse com interpretação
errônea que eu pudesse fazer da sua narrativa. Alterou a voz negando veementemente que ele
111
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h 55min.
112
Conforme diz o próprio entrevistado, “fazer a obra do Senhor” significa desenvolver tarefas como: cantar no
coral, fazer parte do grupo de música servir como obreiro, dar dízimos e ofertas, enfim, estar envolvido em alguma
função dentro desse ambiente religioso.
113
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h55min.
246
estivesse afirmando que não estivesse satisfeito, de alguma maneira em “servir o Senhor”.
Respondi imediatamente que, de nenhuma maneira, a minha intenção fosse essa. Queria apenas
saber sobre seu tempo livre.
Jair mora com a sua mãe, o padrasto e a tia. Conta que o padrasto mora na casa há mais
ou menos dois anos. Vê muito pouco seu pai. Quando perguntado sobre qual a expectativa dos
pais quanto a seu futuro, responde:
114
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h55min.
247
você, você não pode dar um tapa no filho que é crime, você pode ir preso. Hoje em
dia o Estado tá interferindo demais na educação das crianças, o que é para os pais
fazerem. (Informação verbal)115.
Já no final, lhe perguntei: “qual o teu maior pesadelo”? Disse que seria ter lutado e,
mesmo assim, morrer na praia, “lutar e não conseguir nada”. Falou ainda que precisa expulsar
certas coisas que o atrapalham na vida, esquecer, “tirar esse pensamento de incapacidade, que
eu não posso”, enfim, precisa esquecer o que sofreu, as discriminações, o bullying no colégio.
Como indica Pinho, a submissão da subjetividade tal como a sua produção, “[...] faz do
poder, como sabemos, uma dimensão constitutiva das agências e das subjetividades, e ao
mesmo tempo algo que a isso se lhe impõe” (PINHO, 2006, p. 8). Mesmo não sendo uma visão
unicamente negativa do poder, e nessa perspectiva “[...] uma economia que distribui recursos e
regula fluxos, passagens, define centralidades e mascara interesses particulares como verdades
universais” (PINHO, 2016a, p. 9).
Se somos o sujeito diferente devemos recusar com vigor as representações negativas
que pesam sobre nós, como deseja nosso interlocutor quando fala que precisa expulsar certas
coisas que o atrapalham na vida, esquecer, “tirar esse pensamento de incapacidade”. A
resistência se apresenta como parte constitutiva dessa relação, ela está sempre presente e se
conforma como um grito de descontentamento anunciando o exercício da liberdade.
Certas aparições como a “epidermização da inferioridade” e o “sentimento de
inexistência” do negro – para citar apenas duas de uma série de “aparições impingidas aos
homens negros da diáspora” (RIBEIRO; FAUSTINO, 2017, p. 167) – determinam, sem dúvida,
a articulação da raça, evidentemente, com as de gênero, classe e sexualidade na construção de
uma análise parcial sobre como os jovens homens negros são masculinizados e racionalizados.
Para os autores de “Negro tema, Negro vida, Negro drama: estudos sobre
masculinidades negras na diáspora”, acima citados, essa forma de interdito, “aprisionamento
simbólico, acontece dentro de um esquema de pensamento colonial, “aquele círculo infernal”
do qual fala Fanon (2008), que articula categorias de diferenciação diversas para apresentar um
corpo de um (homem) negro sem ontologia própria”, ao redor do qual perdura uma aura coberta
de incertezas, como comentam Ribeiro e Faustino (2017, p. 167).
Como, então, falar de masculinidades negras sem fazer referência à narrativa da
modernidade cujo fato fundante atravessa uma estrutura histórica de acumulação primitiva e
que se define pela escravidão e pela conquista colonial, utilizando os termos do antropólogo
115
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jair, no dia 12 de abril de 2018. Local: CERG.
Horário: 10h00min - 10h 55min.
248
Osmundo Pinho (2016a, p. 9)? Como falar de masculinidades negras de maneira “a perseguir o
sujeito e não fugir dos predicados”? (RIBEIRO; FAUSTINO, 2017, p. 165). Já nos referimos à
biopolítica antes, às tecnologias de governo de regulação dos processos vitais da população –
natalidade, fecundidade, mortalidade, etc. – que, de toda forma, buscam e procuram
fortalecer/incrementar/potencializar as condições de vida dos segmentos produtivos a serviço
do capital. A biopolítica dos Estados modernos (FOUCAULT, 1996) constitui uma tecnologia
de “fazer viver” aquela parte da população que é considerada o ideal; e “deixar morrer”, aquela
parte da população estigmatizada na irônica democracia racial.
Convém, ainda, buscar [...] “compreender como diferenciais de poder determinam a
construção social” (VARGAS, 2005, p. 93) das periferias, evidenciando as próprias práticas da
sociedade mais ampla.
semestre do ano de 2018 tive a oportunidade de cruzar com ele na Praça Grande em Cachoeira,
em uma tarde de terça-feira. Levava na mão um menino que aparentava três anos. Na ocasião
lhe perguntei quem era e ele me disse que se tratava do primo. Perguntei se me daria uma
entrevista. Não respondeu de imediato. Levou algum tempo para aceitar. Anotei seu celular e
fiquei de combinar com ele.
Em agosto de 2018, liguei para César e combinamos o encontro para a entrevista, tudo
pelo WhatsApp. Depois de acertarmos onde seria – o deixei escolher o local e também o horário
–, César perguntou sobre o que se tratava especificamente. Disse que conversaríamos sobre a
sua trajetória escolar, sobre seus planos de vida, etc. Acertamos para terça-feira, dia 7 de agosto,
às 14h00min, no Dannemann – Centro Cultural, em São Félix.
Ainda antes de sair de casa, falei com ele, disse que já estava me deslocando para o
local. Imediatamente me avisou que estava indo. Ao chegar no Dannemann, me dirigi à
secretaria e fiquei sabendo que não haveria possibilidade para que eu realizasse a entrevista ali,
pois o local abrigaria três atividades naquela tarde. No início do ano, fiz a entrevista com outro
ex-aluno pela manhã, sem problemas. Sim, esperaria César na porta do Centro. Já estavam, na
verdade, acontecendo atividades. Observei que logo no hall, na frente da secretaria, um grupo
de Capoeira estava aquecendo. A roda estava formada com meninos de 10 ou 12 anos e quem
conduzia o grupo também era um ex-aluno do CERG. Cumprimentei-o com um suave gesto de
cabeça e ele respondeu do mesmo modo. Pude perceber que vários alunos e alunas do CERG
que estavam no interior do Centro agora se deslocavam para o hall para assistir a Roda de
Capoeira. Outros ex-alunos e ex-alunas ou até alunos e alunas passavam pela frente do local, e
seduzidos(as) pelo som do berimbau e do canto, espiavam, outros até adentravam para assistir
o “aquecimento” da roda. Outros estudantes ou ex-estudantes circulavam pela orla –
Dannemann se localiza à beira do Rio Paraguaçu –, em grupo, mais perto da mureta ao lado do
rio; reconheci mais dois que andavam de bicicleta também pela mesma margem.
Já passava das 14h00min. Preocupada, liguei para César. Ele atendeu e disse que estava
próximo, que chegaria logo. Procurei algum lugar por perto para fazer a entrevista. Nessa faixa
da Beira-Rio, tinham algumas árvores, e um calçadão. Um pouco mais distante tinha um
quiosque que vendia pastéis. Pensei ali, no quiosque, que estava fechado. Havia algumas mesas
e cadeiras empilhadas e alguma sombra. O calor era forte. Às 14h34min, César chegou
acompanhado pelo mesmo menino que estava com ele em Cachoeira, quando tivemos a
primeira conversa, como citei anteriormente. Ele veio ao meu encontro. Depois de agradecer e
cumprimentá-lo, fui perguntar sobre o menino. “Quem é”? “Meu primo”, me respondeu meio
acanhado. “Cuido dele para a minha prima”. “Com que frequência”? “Sempre, todo dia, menos
250
fim de semana”. Disse-me que o menino Bernardo estuda no Jardim de Infância na parte da
manhã. César pegava o menino na escola e levava para casa. Mora com sua avó, cuida dela.
Expliquei sobre a impossibilidade de fazermos a entrevista dentro do Dannemann, e
pedi que sugerisse um local. Apontou um banco no calçadão mais próximo ao quiosque. Nesse
mesmo instante, a Rádio da Cidade recomeça a sua programação. Ele me mostrou que tinha um
alto-falante bem ali, colocado de forma improvisada, bem no alto de um prédio abandonado.
Visualizei. Mas o som estava alto demais e a gravação da entrevista, com certeza, ficaria
prejudicada. Concordou comigo e apontou um banco mais próximo ao Dannemann. Sentamos.
César colocou Bernardo no colo dele. O pequeno não quis. Queria ficar brincando na terra,
junto à árvore. César imediatamente disse que não, que ele ia se sujar, sujar a roupa e isso não
podia. Explicou-me que depois dali, iria com o menino à Cachoeira, tirar foto 3x4. Começamos
a entrevista.
César tem 19 anos e mora em São Félix, no Alto do Hospital, bairro que se localiza do
lado direito de quem chega de Cachoeira pela Ponte, quer dizer, lado oposto do CERG.
Explica que sempre morou com sua avó mesmo quando seus pais moravam em São
Félix. Antes, morava com a avó, seu irmão e mais um menino que a avó pegou para criar, como
ele mesmo informou. Perguntei se tinha contato com o pai. Disse que conversava com ele, mas
não muito. Não tem muita proximidade. “Ele não era um pai presente”, me diz. Não tem
também muito contato com a mãe. Depois que foi para Rondônia ficou mais difícil ainda. “Ano
passado fui pra lá, nas férias. Mas não tenho nenhuma proximidade.”
O celular do Carlos toca. Ele logo desliga. Digo que posso interromper e depois retomar.
Ele diz que não quer. O telefone toca de novo, e eu insisto para que ele atenda. É a mãe de
Bernardo. Ele atende e diz que não pode falar.
116
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
251
Continuo a entrevista.
César fez o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Esperava ser chamado para
cursar matemática ou outra faculdade das Ciências Exatas e Tecnologia.
Nesse momento, César começou a rir. Acabamos rindo juntos. Depois comentou sobre
o salário que recebia – motivo dos nossos risos.
117
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
118
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
252
119
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Danemmann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
253
César: Eu comecei na escola infantil com 3 anos de idade. Teve alguma parada e
perdi. Na 2ª série eu caí e tive que engessar o pé todo, e tive que ficar em casa. Quando
eu voltei eu tive que repetir. Se eu não tivesse repetido eu já tinha concluído [o EM]
em 2016.
Pesquisadora: E tua opinião sobre o Rômulo Galvão?
César: Eu achei o Rômulo um ótimo Instituto Educacional, e alguns professores
pegam no pé como o professor de Língua Portuguesa. E... é isso. Acho que tem mais
que puxar no pé ali.
Pesquisadora: Quem tu destacarias como ótimo professor?
César: Apesar de eu não gostar muito do professor de Língua Portuguesa - achava ele
uma pessoa muito arrogante, incrédula -, na metade do ano, eu já comecei a olhar ele
de uma outra forma. De que realmente é um professor que quer uma melhora do aluno.
E quando ele vê que o aluno realmente quer... ele pega no pé, mas pra ele aprender.
César continua: Também a professora de Matemática e o professor de Geografia.
Pesquisadora: O que tu menos gostavas na escola?
César: Era de acordar cedo. No 3º ano, logo no início eu queria parar de estudar. Logo
no início.
Pesquisadora: Aconteceu alguma coisa?
César: É que me deu um desânimo mesmo, queria parar de estudar... Aí... Eu até ia
pra escola, mas eu ia sem vontade de fazer... Eu caí nas notas.
Pesquisadora: Você tem uma galera da escola que te acompanha até hoje?
César: Quando termina a escola, cada um vai pro seu canto, e mais nada. Só “oi, oi”,
e mais nada. Tenho uns quatro amigos da escola.
Pesquisadora: O que tu achas de estudar?
César: Eu acho que essencial pra nossa vida. Hoje nem adianta mais ter o EM.
Pessoas mesmo que saem da UFRB não tá nem trabalhando. Mas é necessário estudar.
Pesquisadora: Qual área que tu gostas, além da Matemática?
César: Pensei em fazer Teologia, mas a matemática é o meu foco.
Pesquisadora: O que tu fazes no teu tempo livre?
César: Cuido da minha vó [baixa o tom da voz].
Pesquisadora: Então, o que tu gostarias de fazer no teu tempo livre?
César: Faria a mesma coisa.
Pesquisadora: O que você faz bem?
César: Acho que é comida.
Pesquisadora: Qual o teu plano de vida?
César: Eu já fiz vários planos, que acabou não dando muito bem...
Pesquisadora: Me dá um exemplo?
César: De morar fora de São Félix. [fala com um sorriso tímido e acanhado]. Quero
ir embora daqui. Mas... Acabou não acontecendo. Mês passado mesmo eu disse pra
mim mesmo “Ah, eu vou embora mesmo... Vou pra Amargosa”. Mas, na verdade, eu
não ia arriscar ir pra um lugar que eu não conhecia ninguém. Acabei ficando aqui. Fiz
254
O sentido de realidade de César parece adquirir forma quando toma certas decisões, mas
logo as aborta. Suas incertezas em relação ao futuro estão em conjunção com o presente, o
cuidado com a avó, e a dúvida de poder contar com o apoio de outros familiares. E então
pergunto: “Pesquisadora: Qual a sua dúvida? César: De como eu vou trabalhar, de que forma
eu vou viver. Eu fico analisando isso, porque eu não sei, né, como é que vai ser, como é que vai
ser daqui pra frente.” (Informação verbal)121.
César parece não ver possibilidade de ter como correr atrás dos seus sonhos, esse
“discurso individualista, que depende de cada um”, permanece limitado pelas condições de vida
que lhe são impostas.
Pesquisadora: Você acha que a escola poderia ter contribuído mais para concretizar
os teus planos? Como?
César: O ensino poderia ser melhor. É... Tipo... A gente tem aula de Biologia, só que
a gente não tem uma sala, assim... um laboratório pra gente analisar como é o processo
mesmo. Como é que acontecem algumas coisas... É porque tem um lugar que tem
assim um vidro que eu acho que é um objeto, um animal morto. Na matemática
mesmo, poderia, poderia sair, ir pra natureza. O ensino tá mais centrado em ficar na
sala. Mas eu até entendo os professores, porque quando sai, o pessoal fica gritando,
fazendo baderna, aí não tem como também. (Informação verbal) 122.
Pesquisadora: Você conhece alguns colegas teus, amigos, que abandonaram o ensino
médio?
César: Conheço. Conheço vários.
Pesquisadora: E o que eles estariam fazendo hoje?
César: Alguns estão no tráfico de drogas. E outros começaram a trabalhar, porque já
tem filhos.
Pesquisadora: Qual o teu maior pesadelo?
César: Já falei. É não saber o meu futuro. (Informação verbal) 123.
120
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
121
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
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Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
123
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
255
Sabemos que os indivíduos são livres para fazer escolhas, as quais são guiadas e
demarcadas pelo habitus. A teoria do habitus indica que o indivíduo não se encontra à sombra
das estruturas a executar mecanicamente um esquema preestabelecido, “[...] não havendo
espaço para a transgressão, o improviso e a inventividade” (SANT’ANNA, 2014, p. 519).
Concomitantemente, não somos completamente livres para agir segundo operações racionais,
sempre em uma ótica de maximizar resultados. O agente social, além de racional, é igualmente
também produto dos processos de socialização desde a tenra idade na família, que continua em
outras instituições, como a escola e os meios de comunicação de massa.
O que Bourdieu (2003) adverte é que à maneira de um jogador em um jogo, mas de
modo “inconsciente” e “natural”. Desse modo, o habitus, nas palavras de Bourdieu, deve ser
“[...] entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas
as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de
apreciações e de ações [...]” (BOURDIEU, 2003, p. 57). À vista disso, o habitus vai
conformando nos indivíduos um conjunto de estruturas perceptivas e valorativas, moldando um
esquema de conduta e comportamento sociais, que funciona como filtro para as experiências
futuras (SOUZA, 2003), como parece se inscrever no nosso interlocutor.
César: Ah, também porque eu frequentava o Candomblé. Também por conta do meu
corpo. Que eu sou afeminado. Começaram a fazer palhaçada..., mas o que me
estressava mais era ser do Candomblé mesmo.
Pesquisadora: Você acha que em sua cidade existe racismo?
César: E como!
Pesquisadora: E no Bairro?
César: Tem também.
Pesquisadora: Em sua opinião, o que é racismo?
César: É a pessoa não tolerar o outro, por conta de... Do jeito. Porque até se a pessoa
for aleijada, capenga, a pessoa começa a criticar, falar... Até teve ontem na Fátima
Bernardes, dela criticar a mulher pelo fato de ser nova e ter o cabelo grisalho... E as
pessoas não aceitavam a pessoa do jeito que ela é. Isso é uma forma de racismo.
Pesquisadora: Que tipo de discriminação tu sente que tem mais aqui? Em relação à
religião?
César: Antes tinha muito em relação a religião, só que é mais a cor da pessoa. Porque
mais que a gente fala que não... Tem. Se uma pessoa branca passar, você não tá nem
aí, nem vai esconder a bolsa. Mas se for uma pessoa negra fica com receio. Isso já
aconteceu comigo. Isso é por conta da sociedade mesmo. (Informação verbal)124.
César percebe que a discriminação em relação à cor/raça está mais acentuada agora do
que a discriminação em relação à religião. No caso específico da questão racial, é preciso
lembrar que a ambiguidade continua sendo uma das maneiras enganadoras do racismo brasileiro
se perpetuar e se manifestar.
124
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
257
César: A minha cor (risos). A minha cor é negra, mas não... Eles falaram que é parda.
Mas eu me vejo como moreno. Mas eu não entendo essa cor: que é amarela. Eu não
sei. Eu não queria ser pardo não, eu queria ser negro. [Risos]. Eu queria que a minha
cor fosse negra, não parda.
Pesquisadora: Por quê?
César: Eu acho mais bonito. Eu até fiz um papel de escravo na época que eu fazia
teatro com o pessoal aqui [aponta para o Dannemann]. Sempre no mês de novembro
eles fazem uma apresentação sobre a fuga dos escravos. Aí eu fiz um papel de escravo.
Aí ele pegou e me pintou, pra ficar mais escuro. (Informação verbal)125.
Do mesmo modo que, aos poucos, uma geração de negros e negras brasileiros participa
de um movimento de inserção profissional, intelectual e política em setores historicamente
negados a esse grupo étnico-racial e vive um processo de ascensão social, a discriminação e o
racismo permanecem atuando como alicerce da estrutura social do Brasil especificamente
desigual, como denuncia Gomes (2010, p. 101).
125
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante César, no dia 7 de agosto de 2018. Local: Em
frente o Centro Cultural Dannemann em São Félix. Horário: 14h45min -16h00min.
259
De formas diferentes, tanto Agamben (2002) quanto Foucault (1976; 2003) têm
argumentado que o Estado é constituído na modernidade através da “[...] implicação da vida
natural do homem nos mecanismos e nos cálculos de poder” (AGAMBEN, 2004, p. 125).
Ambos autores parecem, da mesma forma, preocupados com uma aparente contradição
da concepção do estado biopolítico, quer dizer, como um Estado cuja função é organizar a vida
produz uma categoria capaz de ser julgada assassinável? O que une a biopolítica com as
políticas de morte, diz Agamben (2004), é o recurso ilimitado que o Estado utiliza do estado de
exceção. Utilizamos essa comparação não para analisá-las em profundidade, mesmo sabendo
de sua importância, mas para chamar a atenção da maneira como o método etnográfico nos
proporciona tratar da precariedade da vida nas margens. “Para Foucault, o referente negativo
da biopolítica parecia ser o ponto no qual se produz um corte entre aqueles cujas vidas são
administradas e valoradas, e aqueles cujas vidas são julgadas como sem valor, aqueles que,
portanto, se ‘deixam morrer’” (DAS; POOLE, 2008, p. 40).
Agamben (1998) ressuscitou a figura do homo sacer, uma obscura figura da lei
arcaica, como encarnando a “vida nua’, para repensar o exercício da soberania não
sobre um território senão sobre a vida e a morte. Mas, esta vida é “nua” porque pode
ser tomada por qualquer sem nenhuma mediação da lei e sem incorrer na culpa do
homicídio. (DAS; POOLE, 2008, p. 27).
126
Aqui faz-se menção ao projeto de um mundo comum apoiado nos princípios da “igualdade das partes”, como
se refere Mbembe (2018, p. 305). E para construir esse mundo que nos é comum será necessário eliminar o racismo
da vida do nosso tempo, será necessário combater com todas as forças pelo surgimento de um mundo além das
raças, um mundo aberto à questão da partilha, do comum, considerando, como segue o autor, não termos saído
plenamente de uma mentalidade dominada até agora pela ideia da distinção entre diferentes tipos de humanos.
Enquanto continuarmos a acreditar que o colonialismo e a escravidão foram grandes acontecimentos da
“civilização”, o tema da reparação seguirá sendo mobilizada pelas vítimas históricas do crescimento europeu e da
sua barbárie pelo mundo.
127
Ver Das (1995).
260
muito triste. Quando soube da notícia, escrevi no Facebook, no grupo do BN, sobre
o falecimento. Não imaginei etnografar, porém nosso coordenador/orientador
recomendou a descrição do momento. Lembro-me que ainda espantada escrevi no
Messenger: “Diário de campo e etnografia?”; “Do velório?”. Conhecia o rapaz.
Várias vezes travamos contato, seja por ocasião dos Grupos Focais, ou outras
atividades correlatas, ou pela minha ida ao concerto da Orquestra em homenagem à
cidade de São Félix. Sentia-me triste e consternada pela perda do estudante e me
solidarizei com os mais próximos, como os colegas de sala de aula. Depois, no
mesmo dia à tarde, na reunião do BN, tive oportunidade de falar do meu espanto
quanto à sugestão do coordenador de etnografar o momento. Mas a minha
indignação não era solitária. Todos os outros pesquisadores(as) da equipe também
queriam entender. E aí entendi a importância de observar esses momentos que
envolvem a comunidade, em que se pode ver a interação entre as famílias e a escola,
um momento em que podemos reconhecer o sofrimento e a dor das pessoas desse
grupo.
Veena Das no seu artigo “Ato de testemunhar”, já nas primeiras páginas, aponta o
questionamento de alguns antropólogos quanto ao lugar analítico da noção de testemunho,
porque alegam que o forte fundamento “[...] cristão desse conceito o torna uma categoria
inadequada, quando não suspeita, para o trabalho antropológico” (DAS, 2011, p. 11). De
alguma maneira, a minha estranheza de descrever a situação desses momentos de luto e
comoção, podem estar circunscritas nesse “forte substrato cristão do conceito” como uma
categoria suspeita/inadequada.
Para a autora, essa colocação é deveras limitada, como se outras culturas não detivessem
noções de testemunho, a exemplo do Islã e do Hinduísmo (DAS, 2011). O que se destaca nessa
perspectiva é a forma com que as noções de testemunho se apresentam, ou seja, as noções de
testemunho são expostas para afirmar a criatividade da vida, e não afirmar a fé diante do corpo
mutilado. Mesmo concordando com Das (2011), que nem todas as formas de violência e
lembrança possam ser recontadas por meio desse modelo, penso que a morte de Tauã – assim
como outros lutos que se tornaram notícia na primeira hora do turno da manhã na escola –, são
pontos de inflexão tanto na vida daqueles que a sofreram de maneira direta, como daqueles
outros que são histórica e imaginariamente alcançados por ela (CARVALHO, 2008, p. 11).
No meu lugar de observação, naquela fatídica manhã, mal pude ouvir qualquer palavra
dita, era só pesar nos olhos e nos corpos dos jovens colegas de Tauã, comoção. Das (2011),
inspirada em Wittgenstein (1996), diz que a violência que não tem lugar nas palavras, só poderá
269
Uma nova maneira de olhar para o sofrimento – e para aqueles que sofrem –, além de
problematizar as dinâmicas a partir das forças sociais como pobreza, racismo, diferenças de
gênero, migração, heranças coloniais e exclusão social, deve ser incorporada como fator de
risco, “[...] recusando um relativismo extremo como resposta fácil a um universalismo ingênuo
e problemático” (PUSSETTI; BRAAZZABEN, 2011, p. 472). Para uma antropologia crítica,
social e politicamente engajada, conexões entre história, política e sociedade precisam,
necessariamente, ser incluídas. Em suma, uma leitura antropologicamente sensível do
sofrimento é, por assim dizer, uma questão política e uma responsabilidade ética em referência
aos agentes sociais, muitas vezes silenciados como sujeitos políticos e morais, e que,
continuamente, apresentam sintomas causados pela estrutura social e suas desigualdades, ou
pelas imensas feridas da história.
Consideraria as situações descritas acima como violência social. São violências, ambas,
da mesma forma, geradas pela própria história, à luz das experiências intersubjetivas. Ora, a
visão dos bairros da cidade de São Félix representa a mais perversa revelação por não se tratar
de
[...] bairros que o tempo veio a corroer ou as guerras vieram abalar, são bairros que
nem puderam nascer para o tempo e a história. As formas de um bairro pobre não
figuram como destroços [...] em suas linhas corroídas e em suas formas parcialmente
quebradas pode persistir a memória de muita gente. [...] No bairro pobre, menos de
ruína, o espetáculo mais parece feito de interrupção – as linhas e as formas estão
incompletas, não puderam se refazer. [...] A montagem de novas formas de vida fica
emperrada (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 5-6).
Nos dois casos, tanto Tauã como Wesley moravam no morro situado praticamente acima
da escola, chamado Alto da Cruz.
272
Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo,
marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe
uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele.
É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. (FOUCAULT, 1995, p. 235).
128
Subtítulo inspirado nas palavras do filósofo camaronês Achille Mbembe: “Essas são algumas das questões que
levantamos neste livro [A crítica da razão negra (2018)], que, não sendo nem uma história das ideias nem um
exercício de sociologia histórica, da história se serve, no entanto, para propor um estilo de reflexão crítica sobre o
mundo do nosso tempo. Ao privilegiar uma forma de reminiscência, meio solar e meio lunar, meio diurna e meio
noturna, tínhamos em mente uma única questão: como pensar a diferença e a vida, o semelhante e o dessemelhante,
o excedente e o em comum? A experiência negra resume bem essa indagação, preservando na consciência
contemporânea a posição de um limite fugaz, uma espécie de espelho móvel. Será ainda necessário nos
perguntarmos por que razão esse espelho móvel não para de girar sobre si mesmo. O que o impede de parar? O
que explica essa recuperação infinita de cisões, uma inescapavelmente mais estéril que a outra”? (ACHILLE...,
2018).
274
reconhece como sua (FOUCAULT, 1995). Sua análise tem início, na verdade, nos processos
de objetivação e subjetivação que antecedem a formação tanto do indivíduo quanto do sujeito.
Sujeito é um enunciado social.
Tivemos oportunidade de realizar entrevista semiestruturada com Jorge. Vejamos:
a) Diário de Campo – 21 de março de 2018:
● Hoje, 21 de março, quarta-feira, marquei uma entrevista com o egresso que concluiu
o Ensino Médio no CERG, em 2015. Hoje, ele está com 20 anos. Para chegar até
aqui tive ajuda do ex-estudante do CERG, também ex-bolsista PIBIC do Projeto
BN. Sempre disposto, perguntei a ele se poderíamos marcar uma conversa na escola.
Queria saber se ele estaria disponível para me ajudar na “busca” por egressos. Tarefa
difícil. Muito difícil. Por isso a minha preocupação em obter ajuda para essa tarefa.
Temos as redes sociais. Enfim, ele topou a colaboração. Pois foi através do
Facebook que estabeleci contato com Jorge, nosso entrevistado de hoje.
● Conversei com Joaci, também pesquisador do BN, para me acompanhar na
entrevista. Combinamos de nos encontrar na frente do Dannemann – Centro Cultural
–, em São Félix. Cheguei um pouco mais cedo, temendo me atrasar por qualquer
contratempo. Lembrava de Jorge, um rapaz muito gentil, participativo nos nossos
encontros e atividades lá em 2015. Esperei alguns minutos, e logo avistei Jorge
cruzando a Rua do Porto – assim também chamada a Beira Rio. Chegou na hora
marcada. Magro, alto – com altura aproximada de 1m78cm –, cor preta, cabelo
Black grande e muito sorridente. Vestia calça jeans, um tênis social/casual, uma
camiseta polo vermelho escuro. O chamado Porto de São Félix é uma avenida
bastante larga que costeia o Rio Paraguaçu. A avenida possui um canteiro no meio.
São vários canteiros gramados e arborizados. É pouco frequentado, pelo menos pela
manhã. Dali se avista Cachoeira na outra margem. Existem várias diferenças
(também na paisagem) de uma margem para outra. Nesta, de São Félix, existe uma
mureta que acompanha todo o porto que separa o rio da avenida. Já do outro lado,
em Cachoeira, a avenida (a beira-mar) é um pouco mais estreita, não existindo
canteiros no meio e também sem a mureta. Ali, de três em três metros, existem
árvores circundadas por bancos de concreto bem na beira do rio, dando um ar
diferenciado às duas irmãs.
● Nos tempos do colégio, o cabelo era cortado rente à cabeça. Cumprimentando-o,
disse que teríamos companhia, Joaci viria para nos acompanhar na entrevista. Nos
cumprimentamos e disse que estava contente que tivesse vindo. Disse que
275
- Eu tive uma boa trajetória escolar. Eu perdi dois anos. Uma vez foi tipo... por pirraça
mesmo, eu me arrependo muito disso. Porque todos os meus amigos mudaram de
escola e eu queria mudar também, pra estudar lá no CERG, inclusive. Que...
antigamente tinha 5ª série lá também. Aí eu queria ir, só que minha mãe não deixou,
eu fiquei até a 8ª no outro colégio. Aí na 5ª série eu perdi, porque eu tive dificuldades
realmente e porque eu queria ir pra outro lugar – o CERG - e não pude. Meus amigos
estavam todos lá. Perdi dois anos. Depois disso comecei a focar nos meus estudos,
comecei a tomar mais consciência das coisas.
Pesquisadora: - Esse ano que tu perdeste... tu estavas estudando... na 6ª série? [não
tinha entendido muito bem].
Jorge: - Na 5ª. Nos dois: primeiro, na primeira vez que repeti a 5ª série, eu tive
dificuldade mesmo; na segunda, eu não queria, porque eu queria ir pro outro colégio.
Fiquei bem resistente, aí acabou que eu perdi. Propositalmente.
Pesquisadora: - E aí nessa segunda vez, tu foste pro CERG?
Jorge: - Não, no mesmo colégio. Aí eu dei o braço a torcer mesmo.
Pesquisadora: - E aí entrou no CERG?
Jorge: - Só no 1º ano do ensino médio. (Informação verbal)129.
Como já vimos nos capítulos anteriores, o exemplo de Jorge reforça que a sociabilidade
é essencial no processo de formação e maturação. O jovem, quando desejou mudar de escola
129
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
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para acompanhar seus amigos, “propositalmente” – a palavra é dele próprio – perdeu o ano. A
estratégia não deu certo, pois a mãe o manteve na escola. Indubitavelmente, a escola é um lugar
privilegiado de socialização, “[...] apesar das críticas [que fazem] sobre a perda de sua
centralidade, assim como a da família, em tal processo” (CASTRO; ABRAMOVAY, 2003, p.
89). A necessidade do convívio com o outro, a necessidade de confiar, de se deparar com
interesses análogos aos seus, de encontrar outros que agem e pensam de forma semelhante são
as principais características que definem o relacionamento entre alunos (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2003).
Atualizei Joaci dizendo a ele o que Jorge já havia colocado em conversa anterior a
entrevista. Digo a ele que o Projeto que Jorge participa é um projeto de Educação Física nas
praças, em Cachoeira. Ele foi indicado por um professor do CERG para trabalhar como bolsista.
130
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
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Jorge: - Isso... era basicamente a casa. Era até menos do que eu recebo agora. Mas
aí era uma situação até melhor, porque todo mundo trabalhava, todo mundo
empregado era melhor, meu padrasto estava trabalhando, e então eu podia usar mais
comigo. Entendeu? (Informação verbal)131.
Jorge começou a trabalhar quando cursava a 6ª série do Ensino Fundamental II, quando
tinha 13 anos, na Padaria em Cachoeira. Lá permaneceu até os 15 anos. Aí parou, para se
concentrar mais nos estudos. Aos 19 anos, retomou o trabalho no Projeto de Educação Física
nas Praças, já como estudante universitário. Enfatizou que com o dinheiro que recebe, a
primeira providência é suprir as necessidades da casa, contribuir com as despesas. Foi assim
também quando trabalhava na Padaria.
A partir de pesquisa amostral realizada com jovens de 15 a 24 anos, de famílias com
renda de até três salários mínimos per capita, muitos provenientes de famílias de pais e mães
desempregados, residentes em capitais do país e em alguns outros municípios, Mary Castro e
Miriam Abramovay (2002) analisam temas associados ao trabalho, o grau de formalidade, o
uso do dinheiro, etc. As autoras concluem que o trabalho para esses jovens consiste em um
meio de sobrevivência individual e também de suas famílias, assim como uma forma de
alcançar a independência financeira tão importante “[...] para se sentirem pessoas e construírem
sua autoestima, ou seja, como meio de inspirarem respeito na comunidade” (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2002, p. 152). No caso de Jorge não foi nem é hoje diferente. Várias vezes o
jovem diz que consegue se organizar para atingir seus propósitos: ajudar em casa, sair com a
namorada, comprar algo para si mesmo, sempre calculando suas despesas, que são o transporte,
as cópias do material da faculdade, algum lanche, etc.
Quanto à escolaridade de seus pais, conta que sua mãe estudou até a 8ª série do Ensino
Fundamental, seu pai e seu padrasto completaram o Ensino Médio. Perguntei, então, sua
opinião sobre estudar e trabalhar ao mesmo tempo.
Jorge: - Antigamente era mais tranquilo, considerando que antigamente eu tinha mais
tempo, agora eu tenho menos. Que agora tem a questão de estágio, mas antigamente,
eu conseguia conciliar as duas coisas, porque eu era interessado, sempre fui bem
interessado. Então eu não tinha problema com isso. Eu me organizava e dava pra
estuda, tipo, professora passava alguma coisa, eu me organizava e à noite conseguia
fazer tranquilo. Era cansativo, bastante cansativo, mas eu conseguia fazer. Nunca tive
problema. Diferente dos meus colegas, tinha colegas que não faziam as coisas - ah,
não dava tempo... tipo, não faziam nada.
Pesquisadora: - Como foste na escola?
Jorge: - Tirava notas boas. Tinha algumas disciplinas que eu tinha maior dificuldade,
a gente sempre tem dificuldade em alguma coisa. Mas...
Pesquisadora: - O que teus pais esperam de ti no futuro?
131
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
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Jorge: - Eu sempre falei com minha mãe sobre isso. Ela espera que eu me forme, que
consiga um bom emprego, que tenha uma vida boa, uma vida estável, e que consiga
me manter, tranquilo. Ela sempre lutou por isso, admiro muito ela por isso.
(Informação verbal)132.
Jorge contou do seu gosto pela leitura, do incentivo da sua mãe para ler. “Minha mãe
sempre me incentivou muito desde pequenininho”, disse com um sorriso. “- Eu tinha uma
coleção de gibi. Só que tipo quando eu cresci, eu ainda tinha uma caixa lá. Só que meu irmão
destruiu tudo. Ela sempre me incentivava muito, lia pra mim, lia comigo. Então foi muito por
aí. Aí eu comecei mais, pegar livros maiores, gostei bastante. E gosto até hoje”.
Acho que o incentivo da família no caso de Jorge – centrada na figura materna, por
óbvio –, ficou evidente e refletiu em toda a sua trajetória escolar. A família é responsável pela
aprendizagem de seus filhos, uma vez que os pais são os primeiros que ensinam, como se
observa pelo cuidado e a atenção da mãe de Jorge no incentivo à leitura, na aquisição dos gibis,
na interação com o filho. Sobre a escola, a literatura especializada fala muito propriamente que
“[...] existem as famílias possibilitadoras de aprendizagem, e nesse sentido se tenderia a “excluir
as famílias de classes menos favorecidas, já que estas não podem fornecer uma qualidade de
vida satisfatória”, o que não condiz com a realidade expressa pelo nosso entrevistado (PAULIN,
2013, p. 15).
Avançando na entrevista, perguntamos sobre sua rotina diária. Jorge sai de casa às
4h30min. As aulas do Projeto Educação Física nas Praças começam às 5h00min, na verdade,
são duas aulas, duas turmas que têm em Cachoeira. Retorna para casa às 8h30min mais ou
menos. A partir daí, estuda um pouco, almoça e descansa. Às 18h20min pega o ônibus e vai
para faculdade, voltando às 23h00min para casa. Chegando em casa, toma banho e se alimenta,
indo dormir por volta da 1h00min da manhã.
O sonho de Jorge é se formar logo: “quero formar logo, falta um ano, doido pra chega a
hora, quero formar, ter essa estabilidade mesmo, conseguir me manter com o meu trabalho, e
desenvolver um bom trabalho. Formar uma família e dar uma vida boa para eles”.
132
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
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pretendo fazer minha pós na Federal, mas fica mesmo, eu queria ficar aqui, não vejo
lugar melhor do que aqui, não, aqui é muito bom. (Informação verbal) 133.
Jorge: - Já, sim. Uma vez no supermercado, aí... não foi aqui, foi em Salvador. Eu
estava com a mochila, e aí eu entrei e não tinha aqueles guardadores pra pôr a mochila,
sabe? Aí, tinha um segurança na porta e eu perguntei se eu podia deixar a mochila em
algum lugar ou podia entrar com ela. Que que ia fazê... Ele disse que não, que podia
entrar. Beleza. Aí eu entrei e o pessoal ficô me seguindo, sabe? Naquela de... Aí eu
fiquei desconfortável e saí. (Informação verbal)134.
133
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
134
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
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- A gente tem essa falta de professores, às vezes isso é falta de investimento de quem
está no poder. Acho que é falta de políticas públicas de pessoas pra pessoas, tá tudo
voltado para coisas hoje, pra capital, essas questões de rendimentos e de dinheiro. Aí
eles investem em segurança – que a gente tá vendo muito agora aí, e não investem em
educação. Acho muito contraditório, mas... Por que a educação está assim? Por que
se investir em segurança se não se investe em saúde, em educação? Porque armar a
polícia é mais importante do que armar o aluno com livro, com o saber mesmo. Por
que tirar aulas de educação física, filosofia das escolas? Por que... privar os alunos da
educação? E... depois, eu acho que como consequência da não educação, investir em
segurança... (Informação verbal)135.
Revelou, ainda, que ele e seus colegas da Graduação brincam muito com essa questão:
- A gente sabe como funciona a lógica [das escolas públicas], a gente sabe que há um
desinteresse [dos estudantes] muito por conta das questões que acontecem na escola.
Então a gente busca sempre instrumentos, busca ludicidade, busca dinamizar nossas
aulas, pra chamar o aluno pra gente, ser amigo dos alunos, porque a gente conhece a
realidade deles. Então tem que ser mais maleável, tem que saber que o aluno trabalha,
tem que sabe que ele pode ter dificuldade em algumas coisas, tentar ajudar de alguma
forma. Ah, você tem 30 alunos, vai na casa de cada um, não dá. Mas tenta ajudar no
que você pode, às vezes o aluno precisa disso e não tem, não tem.
Pesquisadora: - O que significou, pensando no CERG e na outra escola, a escola pra
ti?
Jorge: - Ah... Assim, lá [no CERG] a gente foi bem acolhido pelos professores, então,
significa que a gente estava lá com o propósito de aprender, que a gente tinha
professores capacitados... dos professores que tinha, das disciplinas que tinha, porque
a gente sabe que a gente tinha disciplinas que não tinha professor, tipo aula de
química... tinha disciplina que não tinha professor. Tinha professor que não era
especializado naquela disciplina, mas davam aula daquela disciplina também. A gente
tinha muito disso. Mas os professores nos tratavam superbem, tratavam ao máximo
cobrar da gente, e também sempre tinha sempre esses projetos, os professores
colocava a gente nesses projetos e a gente tinha discussões sobre o que a gente vivia
no dia-a-dia, nas questões que a gente vivenciava mesmo. Então acho que é... mais ou
menos por aí. (Informação verbal)136.
Jorge demonstra que estava certo em querer mudar de escola. Diz que não tinha aula de
química, por exemplo, mesmo assim, gostava dos projetos que havia na escola, porque era
quando se discutiam coisas da vida cotidiana. Na verdade, na época que iniciamos o Projeto
Brincadeira de Negão no CERG, a escola mantinha projetos que visavam justamente criar uma
conexão entre a história dos alunos, a vida vivida, a cultura negra e o contexto escolar. Como
diz Jorge, os professores naquela época, “tratavam ao máximo cobrar da gente”, e “colocavam
a gente nesses projetos e a gente tinha discussões sobre o que a gente vivia no dia-a-dia, nas
questões que a gente vivenciava mesmo”.
135
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
136
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
281
Retomo a fala de Jorge, e pergunto o que esse modo de aprendizagem significou para
ele naquele momento, essas discussões sobre a vida vivida, a vida do cotidiano. Disse que foi
“superimportante, até porque agora eu tô cursando o ensino superior e sem ela eu não
conseguiria. Acho que foi um caminho”.
O reconhecimento do professor pela metodologia utilizada e a forma de ensinar é
constantemente revelada pelos jovens, como foi destacado em vários trechos já descritos. Em
contrapartida, em um Grupo Focal reportado anteriormente, Sérgio, outro interlocutor, disse
que o professor de Ciências era um bom professor, “mas... o método dele ensinar é ruim, é
chato”! Então, sintetizando, alguns métodos de ensino fazem com que os alunos fiquem na
sala, outros fazem com que eles se afastem. Saber cobrar resultados é também uma qualidade
importante do professor, diz respeito à atenção e, no caso de Jorge, alguns merecem
reconhecimento por isso.
No seu tempo livre, Jorge diz que geralmente sai com os amigos ou fica em casa, diz
que não tem muito tempo livre. Divide seu tempo livre, na verdade, em sair com a namorada,
com os amigos e estudar. Em seguida, perguntei sobre a convivência dele na escola:
Jorge: - Eu acho por eu ser mais engajado, conversava com todo mundo, com o
pessoal da cantina, com os professores, de ser mais engajado na questão desses
projetos que aconteciam, eu sempre estava em tudo, acho que eu tinha uma boa
convivência com todo mundo, eu conhecia todo mundo. (Informação verbal) 137.
Como vimos, a trajetória escolar de Jorge foi marcada também por ter vivenciado novas
metodologias na qual os professores acolhem, dialoga, propõem novas técnicas de
comunicação, como sentar em círculo, mas principalmente falar da realidade, trocar ideias sobre
o dia a dia, ver vídeos – como foi por vezes colocado por outros estudantes –, facilitando a
própria compreensão dos conteúdos.
Portanto, foi privilegiando esta linha qualitativa de pesquisa que se pretendeu focar na
compreensão das representações do próprio sujeito e das construções assumidas na
complexidade dos contextos que o enquadram, assim como das suas formações discursivas e
das relações de poder subliminares.
Para abordar a relação dos jovens do Ensino Médio com suas trajetórias escolares, a
construção da(s) masculinidade(s), suas experiências, seus projetos de vida e as contribuições
da escola para sua realização, considerou-se pelo menos duas questões: a sua vivência
137
Texto extraído da transcrição da Entrevista com o ex-estudante Jorge, na manhã do dia 21 de março de 2018.
Local: Centro Cultural Dannemann em São Félix. Apoio do pesquisador Joaci Conceição.
282
Ângelo: - Primeiro é fazer minha Faculdade, depois restaurar tudo que minha família
tinha! Depois disso eu fico sossegado...
Tadeu: - O estudo é a única forma que pode me levar a isso!
Marcos: - Não tem outra saída, eu tenho um exemplo dentro de casa. Meu pai... meu
pai não tinha nada, agora tem tudo. Graças ao estudo. Mesmo na correria pra lá e pra
cá e não desistiu e, hoje tá aí, o maior exemplo que eu podia ter!
Valter: - Rapaz, eu quero ser engenheiro, porque eu tenho um tio meu que também é
engenheiro, pretendo também entrar na Marinha, algumas forças armadas aí. Ainda tô
decidindo ainda.
André: - Pretendo terminar minha faculdade e trabalhar, pra eu ter minhas coisas!
Mário: - Vou para Marinha e farei faculdade de Música na UFBA. (Informação
verbal)138.
138
Texto extraído da transcrição do Grupo Focal “Fui pra recuperação, mainha!”, realizado no CERG, no dia 19
de agosto de 2015. Horário: 9h10min-10h10min, pela autora.
283
Diogo: - No caso meu, é isso, mas... pra mim é mais a falta de domínio. Eu não tenho
domínio em matemática, não consigo de jeito nenhum assimilar. Consigo algumas
coisas. Cem por cento da matemática, 97% não sei nada, os outros 3, eu sei.
Francisco: - Acho que isso aí a gente não pode dizer que gostou ou não gostou de
nenhuma matéria, entendeu? É mais a dificuldade; ou às vezes o professor me ensina,
entendeu? As informações... Eu gosto de matemática. Assim, quando o professor puxa
muito no pé, eu vou desgostando. E outras matérias, o professor fazer eu gostar, de eu
tá aqui sentado e olhar ali pro quadro e ir aprendendo, eu vô gostar dessa matéria,
entendeu?
Marlon: - A gente fica com medo de alguns professores. E o aluno fica meio com
medo de falar com ele, entendeu? Ele entra na sala e acaba generalizando umas coisas,
entendeu?
Cláudio: - Só por aquele jeito dele falar, de ele escrever no quadro... ele é bom
professor, mas eu não entendo nada. E ele podia, tipo, ele explica na frente e escreve
no quadro. Ele podia trabalhar outras coisas, entendeu? (Informação verbal, grifo
nosso)139.
- O ensino é totalmente diferente. Ó, a gente aí, ó o ensino como tá, tá uma porcaria.
Um dia tem aula, a outra semana não tem. Chega aqui tem duas aulas, as outras não
tem. Olhe a do branco pra você vê: todos os dias têm aula, os professores de qualidade,
olha os professores da gente? (Informação verbal)140.
O tema das faltas dos professores também é ressaltado em outras pesquisas de campo
como em Castro, Abramovay e Waiselfisz (2015, p. 109), em que os alunos costumam reclamar
“que não são previamente avisados e reclamam que ficam muitas horas ociosos nas escolas”.
139
Texto extraído do GF “Fui pra recuperação, mainha!” realizado no CERG, no dia 8 de setembro de 2016, pela
autora com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 10h35min - 11h23.
140
Texto extraído da transcrição do GF: “Igualdade de oportunidades” realizado na manhã do dia 1 de setembro
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 9h10min – 10h13min.
284
No ponto de vista de Rafael, “isso depende muito do Estado, o Estado que dá mais
oportunidade é Estado grande, cidade grande que tem mais oportunidades”.
Em que pese a objetividade e a qualidade das aulas, o exemplo positivo de um modelo
mais relevante para os alunos se enquadra no formato de projeto. Essa modalidade está até hoje
na lembrança de Jorge, na fala de muitos outros interlocutores, como Hércules em um GF sobre
recuperação escolar.
Pesquisadora: - O que mais a gente podia listar como fator que atrapalha, e a gente
acaba ficando em recuperação?
Hércules: - Também pode ser assim também o domínio da matéria. Tem disciplina
que o aluno tem dificuldade de entender.
Pesquisadora: - E não se entende [a matéria] por que fatores?
Hércules: - Às vezes é por não se interessar. São informações que a pessoa recebe
que são meio assim... fora do ambiente... fica desestimulado. (Informação verbal,
grifo nosso)142.
Do ponto de vista dos nossos interlocutores, o conteúdo transmitido em sala de aula, por
vezes, é visto como conhecimento que não tem muito sentido, não faz muito sentido: “[...] é um
saber mais ou menos estranho aos alunos, repleto de obstáculos a serem ultrapassados”
(DUBET, 2001, p. 25). Essa cultura apoiada na ausência de diálogo e no abuso de relações de
poder entre estudantes e adultos da escola, “[...] se reveste de importância quando a educação é
analisada, posto que esse tipo de perspectiva afeta as relações com os alunos e reforça uma série
de estigmas e estereótipos” (ABRAMOVAY; CASTRO; WAISELFISZ, 2015, p. 233).
141
Texto extraído do GF “Fui pra recuperação, mainha!” realizado no CERG, no dia 8 de setembro de 2016, pela
autora com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 10h35min - 11h23min.
142
Texto extraído da transcrição do GF: “Igualdade de oportunidades” realizado na manhã do dia 1 de setembro
de 2016, no CERG, pela autora, com apoio do pesquisador Joaci Conceição. Horário: 9h10min – 10h13min.
285
Mas de que juventude estamos falando? Quer dizer, quando Dubet afirma que esse
conhecimento/conteúdo escolar “é um saber mais ou menos estranho aos alunos” (DUBET,
2000, p. 25), nós, provocativamente, perguntamos: a quais alunos, a quais jovens? Sim, aos
jovens homens negros do interior da Bahia, estudantes do EM entre 2015 a 2018. Assim,
Podemos, a partir desse ponto, direcionar o discurso para além da dialética, apoiados na
convicção de que as abordagens dialéticas são descabidas às condições de opressão, tanto no
sentido moral quanto no sentido político, no sentido da descolonialidade como direito à história,
para além da narrativa eurocêntrica, e da “[...] renegociação das definições do ser e dos seus
sentidos [...] que contesta a compreensão exclusiva e imperial do conhecimento” (MENESES,
2009; 2016).
No seu artigo “A questão negra entre continentes: possibilidades de tradução
intercultural a partir das práticas de luta?” Meneses (2016, p. 186) esclarece que, para debelar
a condição epistêmica eurocêntrica, e para também atravessar a condição de exclusão abissal
produzida pela relação colonial, interessa alargar o nosso conhecimento da diversidade de
experiência no mundo.
A partir daí, parece ficar claro que o reconhecimento dos saberes do Sul Global é
primordial para demonstrar que a realidade do mundo é mais ampla do que nos é oferecido pelo
conhecimento dominante. Para Boaventura de Souza Santos (2006), o diálogo entre saberes só
287
pode ser explorado e valorizado se forem comparados com outros em situações análogas de
poder, um diálogo, por suposto, potencialmente horizontal, que ampliaria visões e concepções
sobre o saber, o poder e o ser para além dos estigmas coloniais. (SANTOS; MENESES, 2010,
p. 7-10).
Em outros termos, o diálogo entre saberes viabiliza o caminho para uma reflexão sobre
a diversidade de processos de descolonização do ser e dos seus saberes, condição fundamental
para traduções interculturais143 como alternativas a uma teoria geral (SANTOS, 2006). Esse
posicionamento, evidentemente, articula a deliberada interrelação entre diferentes sujeitos e
grupos socioculturais de uma determinada sociedade e, dessa maneira, posiciona-se em
confronto com as perspectivas diferencialistas e assimilacionistas, bem como rompe com a
visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Vivemos, sim, em uma sociedade
cujos
Fidel Tubino (2005), em seu texto sobre interculturalidade crítica como projeto ético-
político, distingue duas perspectivas fundamentais: a interculturalidade funcional e a crítica. A
afirmação se apoia no discurso oficial dos Estados e organismos internacionais que não
questionam o modelo sociopolítico vigente na maioria dos países latino-americanos, a maioria
circunscrita pela lógica neoliberal, quer dizer, "[...] não questiona as regras do jogo", (TUBINO,
2005, p. 3). Dito com outras palavras, "promover o diálogo e a tolerância sem afetar as causas
da assimetria social e cultural atualmente vigentes" (TUBINO, 2005, p. 5).
As relações de poder e os diferentes grupos socioculturais não são colocados em foco,
minimizando, assim, as áreas de tensão. Em contrapartida, por óbvio, está a perspectiva da
interculturalidade crítica que justamente expõe as relações de poder, questionando as diferenças
e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos socioculturais, étnico-
raciais, de gênero, orientação sexual, religiosos, entre outros. Assume-se que a
interculturalidade aponta para a construção de sociedades nas quais as diferenças sejam
constitutivas da democracia e possam, assim, ser capazes de construir relações novas e
143
Para Boaventura de Sousa Santos (2006), a tradução intercultural corresponde aos procedimentos de busca de
proporção e correspondência que permitam aproximações entre saberes, de modo recíproco, onde saber algum
ocupa um lugar dominante.
288
igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o que supõe empoderar aqueles que foram
historicamente inferiorizados (CANDAU, 2012). Ou como afirma Tubino:
às suas ações e lhes autorizam interpretar significativamente as ações alheias e o mundo que os
cerca (HALL, 1997).
Vale agora relacionar duas questões que penso serem fundamentais para nos remeter ao
foco de nossa análise. A primeira delas diz respeito às interações que vão dando sentidos à
cultura estudantil, como as crenças, valores e preferências assimilados em casa, nos meios de
comunicação, com os professores e com outras pessoas e grupos. Esses sentidos e significados
são dinâmicos, vivos, próprios da linguagem, das práticas de representação, vividos nas relações
que consolidam, desafiam e modificam esses sentidos.
A segunda questão faz referência precisamente ao estudante negro, o jovem rapaz negro
que se constitui em um contexto em que sua cultura não é valorizada, justamente por ser negro
e por ser jovem, entre outras especificidades. Além de tudo, seu pertencimento racial, percebido
ou não, produz uma série de situações de constrangimento, discriminação, isolamento e outras
formas de violência, como as descritas ao longo dessa tese,
influenciando/controlando/induzindo/atuando decisivamente na sua formação. Podem ser
diferentes as maneiras de percepção e expressão em relação ao negro em tempos e locais
distintos, assim como baseadas nas várias relações que atravessam simultaneamente os sujeitos.
Se é verdade que não “[...] podemos produzir entendimento, uma interpretação, uma
leitura, uma zona de contato sem objetivar os nativos ou a produção de suas práticas” (PINHO,
2016a, p. 6), estamos firmando esse discernimento sistemático na prática etnográfica de gerar
conexão da/na interpretação, e reprisando esse dualismo “[...] entre o sujeito que objetiva e esse
outro objetivado” (PINHO, 2016a, p. 6), inerente à toda política interpretativa, como afirma o
antropólogo. Assim, à medida que avançamos em nossa abordagem interpretativa, percebemos
a cultura negra sendo negada a todo custo, o tempo todo, negada e barrada - como no caso
descrito abaixo:
a) Diário de Campo – 22 de novembro de 2017:
● Hoje, quarta-feira (22), falei com a diretora do CERG sobre a palestra do Professor
Edvaldo. Gimerson – pesquisador BN – já havia falado com ela sobre essa atividade
do BN, um encontro com o professor Edvaldo sobre a história das religiões afro-
brasileiras e o Candomblé na região do Recôncavo Baiano. Na ocasião, Gimerson
sentiu certa rejeição da diretora em aceitar a atividade, talvez o tema – religiosidade
afro-brasileira. Gimerson havia levado essa questão para a reunião do BN (ontem à
tarde) para discussão. Ao fim e ao cabo, o coordenador do BN perguntou se
deveríamos recuar ou insistir com a vinda do Professor Edvaldo. Todos foram
unânimes em continuar insistindo. Então chegamos à conclusão que o melhor seria
290
que o Professor fosse até lá para reivindicar a atividade. Como não poderia ir devido
à sua agenda, pediu que eu fosse intermediar e “convencê-la” da necessidade de
debates como esse, etc.
● Em um primeiro momento, percebi que a diretora estava ocupada com a elaboração
do PPP144. Deixei passar aquele momento (8h00min). Depois, fui falar com os
professores questionando se poderiam me ceder alguns minutos em sala de aula, a
fim de solicitar que alguns alunos respondessem o questionário do Censo. Passei
novamente na sala da direção e observei que o momento era propício. Entrei na
salinha privada da diretora, pedindo licença a ela para conversar. Iniciei a conversa
sobre a vinda de um professor para falar sobre São Félix e Cachoeira como berço do
candomblé, das religiões afro-brasileiras. Imediatamente ela olhou para mim com
um olhar de quem não iria aprovar a atividade, mas insisti dizendo que se tratava de
um professor que tinha estudado no CERG, que tinha, inclusive, sido ex-professor
do turno noturno alguns anos atrás. Isso provocou uma curiosidade, e ela perguntou:
“Mas como é o nome dele”? Edvaldo, respondi. Ela abriu um sorriso e demonstrou
grande satisfação (alegria mesmo) em reencontrar o colega querido. “Sim, sim,
claro, podemos combinar, vou organizar tudo por aqui”. Então estava tudo certo.
Seria quarta-feira da próxima semana, dia 29/11. Confirmado. Saí dali surpresa, ou
melhor, surpreendida pela mudança de opinião da diretora.
● Gime e Felipe já se encontravam na escola. Dei a notícia a eles e, individualmente,
para cada um dos pesquisadores. Eles se surpreenderam e ficaram supercontentes.
● A palestra/conversa do professor Edvaldo estava confirmada para o dia 29/11, às
9h00min, mas o professor Aldo sugeriu que fosse depois do recreio.
● O professor Edvaldo chegou à escola. Ele encontrou com o professor de Língua
Portuguesa, Redação e Sociologia, seu colega de escola e também seu professor de
cursinho. Não desejei interromper e, por isso, aguardei terminarem a conversa.
● O sinal tocou o final do recreio. Gimerson então correu para o hall da escola para
chamar os alunos para o encontro com o professor Edvaldo. Enquanto isso, o
professor Edvaldo e eu verificamos uma sala e organizamos uma roda de cadeiras
para a conversa. Não havia mais ninguém na escola além do coordenador
pedagógico e do vice-diretor, O coordenador pedagógico estava visivelmente
abatido com a situação. “Já mandei uma foto da escola para a diretora”, disse ele ao
144
PPP: Projeto Político Pedagógico, documento esse que deve ser produzido por todas as escolas, segundo a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
291
a religiosidade afro-brasileira no espaço escolar do CERG. Sempre. Dessa vez foi Joaci,
também pesquisador do BN, que teve a ideia de promover o debate sobre o tema, exibindo o
filme do IPAC sobre os terreiros de Candomblé em São Félix e Cachoeira (BA).
● Cheguei ao colégio às 9h45min. Os pesquisadores Joaci e Gimerson já estavam em
uma sala de aula juntamente com aproximadamente 20 alunos. O professor Ivan
estava presente. Na verdade, foi ele que possibilitou, agilizou a exibição do filme.
Oficializamos a nossa participação e a viabilidade da atividade através do professor,
também membro do BN. Haviam planejado rodar o vídeo do IPAC sobre os terreiros
de candomblé em São Félix e Cachoeira. A discussão estava baseada na
discriminação e preconceito, racismo e relações raciais em torno das religiões afro-
brasileiras. Quando entrei na sala, os pesquisadores já tinham passado o vídeo e
discutiam com os rapazes e moças sobre os temas. Depois, soube que um grupo –
antes da apresentação do vídeo e ao saber do que se tratava –, saiu, gritando frases
como “vai baixar o santo”, “não vou assistir porque é coisa do demônio”. Pipoca e
refrigerante foram oferecidos por Gime e Joaci. Falar sobre religiões afros no
colégio sempre causa certa resistência, tanto da parte da direção quanto dos
estudantes.
A violência continua, pois, tão forte hoje quanto no passado. Se antes era física e
direta, hoje é-o muitas vezes de forma mais dramática, porque apostada na destruição
e aniquilação cultural do epistemicídio, mesmo dentro das realidades pós-coloniais
(SANTOS; MENESES; NUNES, 2005, p. 14).
“Não podemos esquecer que qualquer comunidade humana trata sempre de salvaguardar
sua cultura, já que é dessa maneira que se assegura sua continuidade” (SANTOMÉ. 2011, p.
163). Segundo o autor, a cultura de cada povo traduz seus constructos conceituais, seus sistemas
simbólicos, suas pautas de comportamento, seus valores e suas crenças, como já foi sublinhado
anteriormente (SANTOMÉ, 2011, p. 163). As ideologias raciais são empregadas como álibi
para a perpetuação de situações de privilégio de um grupo social sobre outro, e são
frequentemente acompanhadas de uma linguagem com aparência de cientificidade, com a
finalidade de dificultar, ou mesmo impedir, que as raças oprimidas exijam alteração “[...] das
294
estruturas sociopolíticas que perpetuam seu atual estado de inferioridade” (SANTOMÉ. 2011,
p. 164).
Na década de 1980, Gonçalves (1985) chamou a atenção para o lugar de silêncio sobre
a questão racial na escola. O autor enfatizava o fato de que a presença da cultura na escola e na
sala de aula é conflituosa e tensa. Como já foi descrito na situação acima com a situação do
encontro com o professor Edmar – e também como veremos no relato que vem agora,
revelou que as duas alunas fazem parte de um grupo de break que se apresenta, inclusive, em
Cachoeira, no Jardim Grande.
O desafio que se impõe é saber como descolonizar o pensamento e a produção de
conhecimento. Sandra Harding (2000), no seu artigo intitulado “Should philosophies of science
encode democratic ideals?”, propõe uma provocação quando se refere à crença de que por trás
da democratização do saber vem o diálogo entre diferentes conhecimentos. Para ela, “[...] a
busca de ideais universais limita a diversidade cognitiva que é e sempre foi uma fonte
importante de crescimento do saber” (HARDING, 2000, p. 134). Portanto, faz sentido “[...]
avaliar os contextos históricos e culturais de produção de conhecimento, pondo de lado
hierarquias de capacidade de produção de conhecimento, incessantemente criados pelas grandes
instituições e universidades do Norte global” (KHAN; MORGADO, 2013, p. 4).
145
A letra impressa foi distribuída no momento da apresentação da música pelo Grupo liderado por Igor.
298
Chamo atenção, entretanto, para o fato de que as narrativas são cruzadas pelas linhas do
poder e, por isso mesmo, não existem em um campo tranquilo de imposições. Dito de outro
modo:
O currículo pode ser considerado como uma narrativa porque traz tacitamente a trama
do mundo social, seus agentes e personagens. Aliás, além de uma narrativa própria, o currículo
comporta muitas narrativas: da Razão, da História, da Ciência, etc. Se consideramos e
reconhecemos o currículo constituído de várias narrativas, podemos, sim, falar da possibilidade
de desconstruí-las como narrativas prediletas ou dominantes. Podemos, sim, “[...] romper a
trama que liga as narrativas dominantes, as formas dominantes de contar histórias, à produção
de identidade e subjetividades sociais hegemônicas” (SILVA, 2011, p. 199). Podemos, sim,
mirá-las como narrativas abertas, sujeitas a serem subvertidas, abertas à produção de
identidades e subjetividades contra hegemônicas.
O entendimento da ciência como atividade que é parte da cultura – que possui história
– constitui uma questão central para dar sentido às ações desenvolvidas nessa tese, e pelos
pesquisadores e pesquisadoras. Com efeito, mesmo que se objetive persistentemente a
investigação, essa nunca será neutra, tendo em vista que a formulação das hipóteses, a seleção
das abordagens, as linguagens e imagens utilizadas para realização, interpretação e análise dos
resultados da investigação são inexoravelmente indissociáveis das influências que os cientistas
encarnam, e que as “[...] instituições e políticas científicas contribuem para reproduzir ou
transformar”, como afirmam Boaventura Santos, Maria Paulo Meneses e João Arriscado Nunes
(2005, p. 40).
O estudo realizado para essa tese assumiu a forma de Projeto. Como vimos, insistindo
através do próprio Diário de Campo e das análises realizadas, neste momento é importante
retirar conclusões sobre o diagnóstico realizado e finalizar esse texto com algumas
301
Queremos defender o argumento de que as escolas são formas sociais que ampliam as
capacidades humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervir na formação de suas
próprias subjetividades e a serem capazes de exercer poder com vistas a transformar
303
Querer defender o argumento de que as escolas são formas sociais que estendem as
capacidades humanas, com o intuito de habilitar as pessoas a intervir na formação de suas
próprias subjetividades, é também dizer que a cultura popular é, ou melhor, representa, não só
um contraditório terreno de luta, mas também um poderoso espaço pedagógico em que são
sugeridas questões primordiais que organizam a base da subjetividade e da experiência do
aluno-sujeito.
Por outro lado, no seu polo oposto, sabemos que o controle e a distribuição das
oportunidades educacionais para as classes subalternas têm sido instituídos em uma ordem
social racialmente hierárquica. Ora, nos parece que esse controle e a própria promoção da
exclusão racial dos negros, no que diz respeito às oportunidades educacionais, estão diretamente
relacionados e instituídos por meio – e a partir – das formas de ensinar ancoradas em um único
discurso dominante e que exige um silenciamento de uma multiplicidade de vozes e de formas
subjetivas de ser que compõem a vida vivida, cotidiana, e não aquela pautada em uma “[...]
sólida ética que denuncie o racismo, o sexismo e a exploração de classes como ideologias e
práticas sociais que convulsionam e desvalorizam a vida pública” (GIROUX; SIMON, 2011,
p. 121).
A escola contemporânea enfrenta um dos mais dramáticos desafios em tempos de
globalização, diz Gimeno Sacristán (2001). Ele destaca, ao mesmo tempo que interroga: como
abordar a diversidade quando o processo de globalização se apresenta tão rígido quanto às
normas igualadoras, ou seja, “[...] uma escola comum que satisfaça o ideal de uma educação
igual para todos [...] na paisagem social das sociedades modernas, parece uma contradição ou
uma impossibilidade” (SACRISTÁN, 2001, p. 71-72).
É de se registrar que nas nossas atividades desenvolvidas em campo – no CERG -
através dos Grupos Focais, Rodas de Conversas, Oficinas, e até em Seminários como já
descrevemos, os alunos ficam surpresos por estarem vivenciando uma atividade diferente, em
304
que eles podem falar, se expressar livremente, e que, inversamente, não se trata de ter de
escrever, solucionar, ouvir, escrever de novo, memorizar, e outras tantas operações mentais.
Como descreve Pinho, a nossa proposta é que
[...] a partir do universo cultural que eles conhecem, pedimos que eles próprios nos
expliquem e esclareçam as categorias que informam sua própria sensibilidade ou
“estruturas de sentimento”, a atitude então se transforma e os rapazes e moças parecem
perceber, e ver, o que não está claro, e não apenas refletem sobre, por exemplo, a
relação entre a mulher e o dinheiro, o “valor” do corpo e o significado de “respeito”,
mas entendem que podem eles próprios se debruçar, e objetivar, as categorias de seu
cotidiano de modo reflexivo. E essa é uma prática de poder. (PINHO, 2016a, p. 20).
estudantes de Cinema do CAHL, que na época eram bolsistas do Projeto. Ele protagonizou o
audiovisual do “Quem é o Patrão”? representando o personagem do título.
Pesquisador: E sobre o conteúdo que você tem na escola, o que você aprende?
Leo: Tem professores que não dá vontade de entrar na sala. Rapaz... algumas matérias.
Sim. Alguns professores passam pra você um... eles têm uma forma de ensinar que
você aprende rápido, que você toma pra si aquilo ali.
Pesquisador: Esses professores que tu falas que “você toma pra si as ideias”, como
é?
Leo: Eles falam da realidade... Tá faltando muito isso... Tem professores que dão aula
em cima da realidade do mundo. Tem o professor Ivan, que é amigo de vocês. Ele fala
sobre coisas que acontece há muitos anos e pergunta pra você o que você faria pra
mudar. Ele te coloca na situação, tá ligado? Eu acho massa isso. O professor dá uma
aula e... dialoga com os alunos. Relaciona com o presente, com o nosso viver... Da
periferia. (Informação verbal)146.
146
Texto extraído da transcrição da Entrevista semiestruturada do ex-estudante do CERG Leo organizada pelo
pesquisador Gimerson, realizado nas dependências do Centro de Artes, Humanidades e Letras, no dia 21 de
março/2014. Horário: 14h - 15h, com apoio da autora.
306
pardo do cartaz. O clipe dos “Remanescentes” – Banda de Reggae de Cachoeira – dava o “tom”,
enquanto a plateia, composta de estudantes, professores da escola e o vice-diretor, chegava e
procurava um lugar para assistir.
O palco, com a cortina fechada, servia nesse momento de coxia – espaço reservado para
a preparação e concentração do atores-estudantes. Termina o clipe e começa o show de dança
e depoimentos. Sim. O grupo programou um espaço para o depoimento de alguns alunos(as)
sobre o preconceito sofrido. Os relatos foram de duas meninas. A primeira descreveu
preconceito sofrido dentro do Shopping Center em Feira de Santana. Ela e sua mãe entraram
em uma loja, pois a menina gostou da bolsa da vitrine. No entanto, a funcionária as ignorou.
Por sua vez, a estudante reclamou e pediu firmemente que essa a atendesse, perguntando em
seguida se a razão da falta de atenção estaria na cor de sua pele e, por isso, não ter possibilidade
de comprar, ou porque “sendo negra eu não poderia ter cartão de crédito”, relembra. A outra
aluna relatou uma experiência de preconceito ainda na infância. “Sabe aquela foto que todos
nós tiramos na escola numa mesa com a bandeirinha da escola ao lado”, interroga ao público
para chamar a atenção para a sua fala. “Pois essa foto eu não tenho, porque a diretora disse que
por ser negra eu não podia tirá-la”. A plateia parou de respirar naquele momento, tal a força
que o seu relato causou. Depois, olhares se entrecruzaram. Silêncio.
A apresentadora, então, quebrou o silêncio e, de forma enfática, perguntou com voz
segura e determinada: “Quem aqui já sofreu preconceito”? “Você”? – indicando um menino da
plateia. O menino encabulado fez sinal com a cabeça que não. Aí veio o depoimento
improvisado do membro da nossa equipe, Paulo Roberto. Disse que frequentemente passa por
situações de preconceito. Citou, então, quando foi abordado por um policial que, o intimidando
na frente de sua casa, lhe pediu documento. Logo em seguida, o professor Ivan falou sobre
preconceito sofrido por ter o cabelo rastafari. Só depois de dizer que ele é professor e estudante
universitário é que ele deixa de ser suspeito ou usuário de drogas, conta.
Na sequência vieram as danças dos orixás. Uma menina e um rapaz dançaram e
dialogaram corporalmente ao som do atabaque percutido por outro colega. Todos os três eram
candomblecistas e praticavam a religião.
307
O pertencimento de raça e o lugar social ocupado por esse grupo de jovens – rapazes e
moças –, nesse contexto urbano racializado, emergiram de toda forma, para marcar um caráter
distinto de suas experiências escolares. Portanto, mesmo partilhando impedimentos e vivendo
em um contexto de pobreza, em bairros populares distantes dos grandes centros urbanos e com
dificuldades para acessar direitos sociais, “[...] percebiam-se sujeitos capazes de construir
dispositivos para superar uma condição socioeconômica menos favorável” (SOUZA, 2010, p.
128).
O âmago do racismo está em uma sociedade hierárquica que se recusa a reconhecer o
negro e sua verdadeira história, pois ele é visto como não produtor de conhecimento, tecnologia
e civilização (NASCIMENTO, 2009). Como afirma Huey P. Newton, “[...] o negro dos estratos
socioeconômicos inferiores é um homem de confusão. Ele enfrenta um meio-ambiente violento
308
e não tem certeza se não são os próprios pecados que atraem a hostilidade da sociedade”
(NEWTON, 2014, p. 1).
Assistimos, depois, o jogo da capoeira. Na verdade, era a vez de Silvia apresentar seu
jogo em uma perspectiva individual, mas o improviso e a criatividade imperaram, para a
surpresa de todos, tais foram os olhares do grupo de atores/estudantes. Quer dizer, depois de
um tempo, Analice entrou no jogo de Silvia e a dupla começou a interagir.
Para finalizar, o grupo todo protagonizou uma dança coreografada por eles mesmos.
Como uma ciranda, eles se revezavam no centro da roda para que, assim, cada um deles
apresentasse seus passos e movimentos. Ao final, abraçados como elos em uma corrente,
cantaram juntos a música “A carne” composição de Marcelo Yuka, Ulisses Cappelletti e Seu
Jorge.
Com toda a sua força, a música escolhida marcou esse momento de denúncia e protesto,
expressando as realidades preconceituosas sofridas pelo povo negro. Mais ainda, porque a
turma cantou à capela147, destacando a singularidade das vozes juvenis, não só pela sua
amplitude e pureza, mas pela sua força e poder. Minha observação estaria afinada com a fala
entusiasmada e orgulhosa do professor Fabiano ao final da apresentação dos seus alunos: “eles
transcenderam a escravidão”. Os estudantes testaram, ali, naquele cenário, formas de produzir
significados e representações de si mesmos, suas relações com os outros e com o ambiente em
que vivem. Ou também uma forma de se preparar para reconhecer as possibilidades ainda não
concretizadas e de considerar o que não mais desejamos ser.
Portanto, se compreendermos o que nos demonstra Frantz Fanon (1968), que as
estruturas sociais coloniais – vividamente instaladas no nosso país –, são introjetadas na
subjetividade do colonizado e a mudança radical dependeria de uma transformação, igualmente
radical das estruturas da sociedade, podemos inferir de modo direto que (e por óbvio), uma
simples observação nos leva a dizer que a escola persiste em manter um discurso conservador,
deixando clara a forma como evidencia esse poder, implicado nos vários processos pelos quais
o conhecimento, a identidade e a autoridade atuam no interior de seus projetos sociopolíticos
particulares.
Ora, a escola é, efetivamente, também, o lugar da raça, quando vemos em campo, o
jovem rapaz negro obrigado a elaborar (ou não) para si um projeto identificatório incompatível
com as singularidades e subjetividades do seu corpo, a do “menino exemplar”, por exemplo,
que são as condições adequadas e sincronizadas com o entendimento e a legitimação de uma
147
Cantar em coral sem acompanhamento.
311
única forma de ser homem. Portanto, assim é que a escola se apresenta, de maneira hegemônica,
em prejuízo da cultura experiencial, que tem raízes socioculturais.
O que acabamos de descrever foi único e não foi mais observada a criação de um espaço,
nem para examinar por meio do diálogo, por exemplo, as vias pelas quais as injustiças sociais
contaminam os discursos e as experiências que compõem a vida cotidiana e as subjetividades
dos alunos. A cultura negra, suas religiões, suas representações raciais, sexuais e de gênero,
estão para além dos muros da escola. Censurados e censuradas, os contextos, o escolar e o
cultural, estão apartados, isentos de conexões. E, portanto, não seria descomedimento falar,
acima de tudo, em desigualdade, desigualdade produzida, reproduzida e aprendida através da
escola.
Por fim, aponto o estudo etnográfico como particular e propositivo. A diferença, essa
que constitui um problema e não um fato da realidade, como nos alerta Mbembe (2018), é, em
verdade, um problema político e cultural no tempo em que “[...] o contato violento entre povos,
por meio da conquista, do colonialismo e do racismo, levou alguns a acreditarem que eram
melhores que outros” (RUCKTESCHELL-KATTE, 2016). A diferença, assim, aliada às
desigualdades e às contradições fazem, sim, parte do cotidiano escolar, como vimos na fala dos
interlocutores. Suas falas importam sobremaneira pelos significados que estão empiricamente
problematizados nas culturas presentes na escola e fora dela.
São múltiplos os questionamentos que se colocavam desde a fase inicial da pesquisa,
como, por exemplo, por que os estudantes – jovens homens negros do Ensino Médio do Colégio
Rômulo Galvão – abandonam a escola em maior número ou vão sendo progressivamente
“abandonados” por ela? Destaco, assim, a importância de se considerar as pessoas que tomamos
como interlocutores de nossas pesquisas como sujeitos que se constituem na cultura, na
linguagem, em contextos históricos dos quais não podem ser prescindidos. Neste sentido, a
escolha do método etnográfico se revelou importante e funcional à pesquisa. Conforme
DaMatta, a antropologia é a “[...] disciplina onde necessariamente se estabelece uma ponte entre
dois universos de significações caracterizando-se como uma ciência interpretativa, destinada
antes de tudo, a confrontar subjetividades” (DAMATTA, 1978, p. 27).
Nesta perspectiva metodológica, é importante considerar análises que deem conta da
complexidade das interações entre relações de gênero e raça, e questionar a produção dessas
desigualdades educacionais, dando vez ao que dizem os nossos sujeitos sobre seus próprios
percursos e experiências. Dessa forma, tentou-se perceber a singularidade e a complexidade das
suas vidas, ou então “quem são os meninos [rapazes] que fracassam na escola, quem são os
meninos que se ‘mantém’ nesse desafio”? De que maneira eles interpretam e enfrentam os
312
escala societal para mostrar como se modelam mutuamente” (VIVEROS VIGOYA, 2018, p.
179). Ao descrever alguns desses modos de ser homem em um mesmo território, nesse contexto
escolar, pode-se observar que as identidades masculinas se apresentavam vigorosamente
articuladas ao contexto social em que se constroem, assim como aos novos cenários
econômicos, culturais e políticos que a globalização faz surgir.
Os desafios se acumulam na experiência de sala de aula, como ouvimos na fala dos
nossos interlocutores, desde os interditos de onde parte o meu sentimento de crise, até a vontade
de recomendar um grande debate sobre epistemologia, saberes periféricos, saberes marginais,
dos editados e daqueles reeditados ao longo do acirramento do capitalismo. Temos, aqui, a
emergência de um campo de tensões e de relações de saber e poder atravessadas pelas relações
de gênero que nos coloca a questionar as representações e estereótipos, e ainda desafiar crenças
e pressupostos sobre o povo negro e sua cultura a partir da construção histórica e social de
processos de dominação, colonização e escravidão.
Minha recomendação, portanto, é avançar nos debates pós-coloniais, nos processos de
desconstrução que autorizem exibir as realidades por trás da cortina de fumaça das propostas
hegemônicas (SANTANA, 2017, p. 119). Segundo Maria Paula Meneses (2007, p. 57), essa
postura requer uma história responsável, estreitamente relacionada com a pedagogia anti-
hegemônica, isto é, explicar a persistência da relação colonial na construção da história
mundial, ao mesmo tempo que se constroem narrativas contextuais que, conectadas em rede,
facilitem uma visão cosmopolita sobre o mundo.
314
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que "Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional", dispondo sobre a duração
mínima de 09 anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 06 anos
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1. NOME DO ALUNO/A:
2. ANO DE NASCIMENTO:
3. ANO QUE CURSA: _
4. SEXO: (1) FEMINIMO (2) MASCULINO
5. CIDADE ONDE NASCEU:
6. BAIRRO ONDE MORA: _
7. ESTADO CIVIL: (1) SOLTEIRO/A (2) CASADO/A
8. COR/RAÇA: IBGE - (1) PRETA (2) PARDA (3) BRANCA (4) INDÍGENA (5)
AMARELA
9. COM QUEM MORA: (MARQUE UMA DAS COMBINAÇÕES ABAIXO)
(1) PAI, MÃE E IRMÃO(S)
(2) MÃE E IRMÃO(S)
(3) PAI E IRMÃO(S)
(4) MÃE
(5) PAI
(6) PAI E MÃE
(7) MÃE E AVÓ(S)
(8) MÃE, AVÓ(S) E IRMÃO(S)
(9) OUTRO: ____________________________
10. VOCÊ TEM FILHOS? (0) Não (1) Sim
11. QUANTOS? ____________________________
12. QUAL SUA RELIGIÃO?
(1) CATÓLICA
(2) EVANGÉLICA
(3) CANDOMBLÉ
(4) ESPÍRITA
(5) SEM RELIGIÃO
(6) OUTRA:
13. ESTUDO E TRABALHO: (Se marcar 1, siga para a questão 16).
(1) SÓ ESTUDA E NUNCA TRABALHA
(2) ESTUDA E TRABALHA
(3) ESTUDA E FAZ BICOS
352
7. IR A ATIVIDADES RELIGIOSAS
8. TOCAR ALGUM INSTRUMENTO
9. CONVERSAR COM AMIGOS
10. CONVERSAR COM FAMILIARES
11. CONVERSAR NA INTERNET
12. FICAR NA RUA COM AMIGOS
13. FICAR SEM FAZER NADA
14. FAZER CURSOS
Fonte: Adaptado de Abramovay, Castro e Waiselfisz (2013).
(8) 8º ANO
(9) 9º ANO
(10) 1º ANO DO EM
(11) 2º ANO DO EM
(12) 3º ANO DO EM
25. MARQUE NÃO ou SIM PARA CADA ÍTEM, DE ACORDO COM OS FATORES
RESPONSÁVEIS PELA SUA REPETÊNCIA:
1. FIQUEI DOENTE
2. TIVE PROBLEMAS FAMILIARES
3. MEUS PROFESSORES FORAM INJUSTOS
4. NÃO ESTUDEI O SUFICIENTE
5. TIVE DIFICULDADE DE ORGANIZAR OS ESTUDOS
6. NÃO ENTENDI A MATÉRIA
7. ESCOLA CHATA/DESINTERESSANTE
8. QUAL?
Fonte: Adaptado de Abramovay, Castro e Waiselfisz (2013).
PARA ESTUDAR?
(3) MENINAS
41. QUAL A IMPORTÂNCIA DA ESCOLA PARA O SEU FUTURO?
(1) NÃO POSSUI IMPORTÂNCIA
(2) POSSUI POUCA IMPORTÂNCIA
(3) É IMPORTANTE
(4) É MUITO IMPORTANTE
42. QUAIS SEUS MAIORES DESEJOS/AMBIÇÕES EM RELAÇÃO AO FUTURO?
(MARQUE PARA CADA ITEM, SE DICORDA TOTALMENTE, DISCORDA EM
PARTE, NÃO CONCORDA NEM DISCORDA, CONCORDA EM PARTE,
CONCORDA TOTALMENTE).
DESEMPREGADO
7. SUSTENTAR A
FUTURA
FAMÍLIA
8. ESCOLHER EM
QUE VAI
TRABALHAR
9. SER
RESPEITADO/A
10. MELHORAR A
VIDA DA
FAMÍLIA
11. TER DINHEIRO
12. MELHORAR A
POSIÇÃO
NO TRABALHO
Fonte: Adaptado de Abramovay, Castro e Waiselfisz (2013).
361