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Escrita em 1523 em resposta a um desafio, a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bemacabada
de Gil Vicente, dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito
popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo em Portugal.
Anote!
Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu
tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas
domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos morais.
O género
Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias
estruturas da arte estavam se transformando. O auto, género muito popular até então, caracterizava
se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou
moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa
de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça
não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo género para o qual não havia um
nome na época, a farsa.
Anote!
A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida quotidiana,
apelando para a caricatura e os exageros, a fim de fazer o espetador rir, mas, ao contrário da
comédia, não tem um fundo moralizante.
Desafio: um dito popular
A popularidade de Gil Vicente despertou em seus inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas
peças. Em resposta a um desafio do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como mote o ditado
popular "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A resposta veio com
a Farsa de Inês Pereira, de 1523.
O equilíbrio da ação, a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem
acabada do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários setores da
sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além daquela inerente ao próprio mote
que deu origem ao enredo.
Enredo
Inês Pereira é uma jovem sonhadora que se sente entediada com o trabalho doméstico. Despreza
Pero Marques, um pretendente rico e grosseiro, em nome de um ideal de marido sensível, mesmo
que pobre. Casase com Brás da Mata, um escudeiro galante que a conquista com belas palavras,
semelhantes às das cantigas de amor.
Antes que mais diga agora
Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora.
Que bem vejo
nesse ar, nesse despejo,
mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma
aquela
que eu busco e que desejo."
Mas após o casamento, ele a explora e maltrata. Vai para a guerra no Marrocos, onde morre, depois
de se revelar um covarde. Com essa experiência, Inês percebe que a realidade funciona muito mais
na base da conveniência do que da idealização e põe em prática a máxima "mais quero asno que me
carregue do que cavalo que me derrube"
lhe dá, chegando a, literalmente, carregála nas costas para atravessar um rio.
Anote!
Com essa peça, Gil Vicente quer mostrar que a sociedade da época é corrupta: a experiência de
Inês Pereira mostra que o mundo é dos espertos e quem se dá bem são os mais hábeis na
manipulação do contraste entre ser e parecer, entre essência e conveniência.
Personagens
Depois que se casa com o Escudeiro e descobre quem ele realmente é – a essência por trás da
aparência –, Inês se vê obrigada a reavaliar seus ideais. O resultado dessa sua desilusão é expresso
no modo como trata Pero Marques, seu segundo marido.
Pero Marques (um Parvo) → representa o asno servil e é a personagem cómica da peça, por seu
caráter estúpido, ingénuo e honesto.
Brás da Mata (um Escudeiro) → encarna os oportunistas, abundantes na época de Gil Vicente, e é
a personificação do contraste entre aparência e essência.
Lianor Vaz (uma Alcoviteira) → essa personagem se diferencia das demais alcoviteiras do teatro
vicentino, na medida em que se transforma numa confidente honesta e bemintencionada. É uma
figura com moral apreciável e bons conhecimentos na "arte" de promover casamentos. Assim como
em Pero Marques, sua honestidade e boa fé se aliam à falta de agudeza crítica.
Mãe de Inês → luta pela felicidade da filha iludida, mas, tendo dado seus conselhos, deixa a
aprender por si mesma, como mostram estes versos, logo após o casamento de Inês com o
Escudeiro:
"Mãe Ficai com Deus, filha
minha,
não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais
vos dou, e voume à casinha."
Dois judeus casamenteiros (Latão e Vidal) → aparentam uma atitude bajuladora, mas na verdade
suas afirmações constituem críticas severas e justas tanto a Inês quanto ao Escudeiro. Conhecem
bem os defeitos do pretendente que arranjaram para a moça, mas também sabem da preguiça, da
vaidade e da leviandade de Inês. Por isso, zombam dos dois, expondo seus defeitos.
Moço → é uma versão plebeia do próprio Escudeiro e é por ele que se conhecem os sentimentos e
as intenções de Brás da Mata. Após a partida do patrão para o Marrocos, Inês fica aos cuidados do
Moço, que a vigia o tempo todo.
Um Ermitão → essa personagem serve como pretexto para mostrar concretamente o "asno"
transportando Inês. Devia haver um caminho a percorrer e, como os er
mitães viviam retirados, a verossimilhança era preservada. Além disso, por se tratar de uma jornada
religiosa, o marido pode acompanhar Inês sem desconfiar de suas reais intenções. Gil Vicente
servese ainda dessa personagem para criticar os maus padres de sua época, corrompidos pelos
interesses materiais. Ao grupo deles pertence o clérigo que teria assediado Lianor Vaz.
Estrutura
Construída a partir do ditado "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube", a
peça incorpora em sua estrutura a simetria existente entre os dois termos dessa comparação: Pero
Marques encarna o asno que carregará Inês, enquanto o Escudeiro é o cavalo que a derruba.
Para pôr em cena esses elementos, Gil Vicente utilizou na caracterização de Pero Marques aspectos
que o aproximam de um asno: é parvo, teimoso, deselegante e servil. O Escudeiro, ao contrário,
assemelhase ao cavalo, pois se apresenta como um nobre e elegante cavaleiro. Entretanto, essa
semelhança se esgota na aparência, pois quaisquer outras características que se poderiam atribuir
aos cavalos (como lealdade, generosidade, valentia) ele não tem: é mentiroso, cínico, preguiçoso e
covarde.
Podese dizer que Lianor Vaz reforça o grupo de Pero Marques, a considerar seus valores: não tem
interesses financeiros, é honesta, sensata e preocupada com o futuro de Inês, ao contrário dos judeus
Latão e Vidigal, que são desonestos, mentirosos, mercenários e indiferentes ao futuro da moça.
Para seguir à risca a comparação de superioridade que subjaz ao enredo ("mais quero asno que me
carregue do que cavalo que me derrube"), é necessário mostrar que Pero Marques tem valores
autênticos, os valores medievais, enquanto Brás da Mata se move por interesses materialistas, como
os que predomin
am na época de Gil Vicente.
O dito popular é cumprido literalmente nessa farsa: o asno não é melhor do que o cavalo, mas se
torna preferível na medida em que não oferece perigo.
Recursos linguísticos
a) A ironia, que é utilizada na peça como instrumento de crítica e motivadora do riso, aparece
em inúmeras formas, ora as palavras expressando seu sentido oposto, ora jogando com o
duplo sentido, ora acentuando a desproporção entre uma ação e sua finalidade. São exemplos
de ironia nessa farsa:
"Inês Mas eu, mãe, são aguçosa e vós daivos de
vaga
Ou seja, Inês tem vontade de se casar e a mãe, que a chama de preguiçosa, é quem tem resistido em
consentilo, dados os ideais de marido expressos pela filha.
"Mãe Mana, conheciate ele?
Lianor Mas queria conhecer
me!"
Aqui, o efeito cómico é construído a partir do duplo sentido do verbo conhecer: saber e relacionar
se sexualmente.
"Mãe Que siso, Inês, que siso tens debaixo desses
véus."