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Análise 09 - Farsa de Inês Pereira

Escrita em 1523 em resposta a um desafio, a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bem­acabada 
de Gil Vicente, dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito
popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo em Portugal.

Anote!
Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu
tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas
domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos morais.

O género

Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias 
estruturas da arte estavam se transformando. O auto, género muito popular até então, caracterizava­
se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou 
moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa 
de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça
não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo género para o qual não havia um 
nome na época, a farsa.

Anote! 
A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida quotidiana,
apelando para  a caricatura e os  exageros, a  fim de  fazer o espetador rir, mas,  ao contrário da
comédia, não tem um fundo moralizante.

Desafio: um dito popular

A popularidade de Gil Vicente despertou em seus inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas 
peças. Em resposta a um desafio do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como mote o ditado 
popular "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A resposta veio com 
a Farsa de Inês Pereira, de 1523.

O equilíbrio da ação, a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem­
acabada do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários setores da 
sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além daquela inerente ao próprio mote
que deu origem ao enredo.  

Enredo
Inês Pereira é uma jovem sonhadora que se sente entediada com o trabalho doméstico. Despreza 
Pero Marques, um pretendente rico e grosseiro, em nome de um ideal de marido sensível, mesmo 
que pobre. Casa­se com Brás da Mata, um escudeiro galante que a conquista com belas palavras, 
semelhantes às das cantigas de amor.

Antes que mais diga agora
Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora.
Que bem vejo
nesse ar, nesse despejo,
mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma 
aquela
que eu busco e que desejo."

Mas após o casamento, ele a explora e maltrata. Vai para a guerra no Marrocos, onde morre, depois 
de se revelar um covarde. Com essa experiência, Inês percebe que a realidade funciona muito mais 
na base da conveniência do que da idealização e põe em prática a máxima "mais quero asno que me 
carregue do que cavalo que me derrube"

 lhe dá, chegando a, literalmente, carregá­la nas costas para atravessar um rio.   

Anote!
Com essa peça, Gil Vicente quer mostrar que a sociedade da época é corrupta: a experiência de
Inês   Pereira   mostra   que   o   mundo   é   dos   espertos   e   quem   se   dá   bem   são   os   mais   hábeis   na
manipulação do contraste entre ser e parecer, entre essência e conveniência.

Personagens

Inês Pereira → a personagem central dessa farsa apresenta­se de duas maneiras distintas, segundo 


suas experiências. Primeiro, enquanto é solteira, gosta de se divertir, é alegre e pouco afeita aos 
afazeres domésticos. Não dá importância ao luxo, preferindo uma vida prazerosa, mesmo que 
pobre. 

Depois que se casa com o Escudeiro e descobre quem ele realmente é – a essência por trás da 
aparência –, Inês se vê obrigada a reavaliar seus ideais. O resultado dessa sua desilusão é expresso 
no modo como trata Pero Marques, seu segundo marido. 

Pero Marques (um Parvo) → representa o asno servil e é a personagem cómica da peça, por seu 
caráter estúpido, ingénuo e honesto. 

Brás da Mata (um Escudeiro) → encarna os oportunistas, abundantes na época de Gil Vicente, e é
a personificação do contraste entre aparência e essência.

Lianor Vaz (uma Alcoviteira) → essa personagem se diferencia das demais alcoviteiras do teatro
vicentino, na medida em que se transforma numa confidente honesta e bem­intencionada. É uma
figura com moral apreciável e bons conhecimentos na "arte" de promover casamentos. Assim como
em Pero Marques, sua honestidade e boa fé se aliam à falta de agudeza crítica.

Mãe de Inês →  luta pela felicidade da filha iludida, mas, tendo dado seus conselhos, deixa ­a
aprender   por   si   mesma,   como   mostram   estes   versos,   logo   após   o   casamento   de   Inês   com   o
Escudeiro:

"Mãe Ficai com Deus, filha 
minha,
não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais
vos dou, e vou­me à casinha."

Dois judeus casamenteiros (Latão e Vidal) → aparentam uma atitude bajuladora, mas na verdade 
suas afirmações constituem críticas severas e justas tanto a Inês quanto ao Escudeiro. Conhecem 
bem os defeitos do pretendente que arranjaram para a moça, mas também sabem da preguiça, da 
vaidade e da leviandade de Inês. Por isso, zombam dos dois, expondo seus defeitos. 
Moço → é uma versão plebeia do próprio Escudeiro e é por ele que se conhecem os sentimentos e 
as intenções de Brás da Mata. Após a partida do patrão para o Marrocos, Inês fica aos cuidados do 
Moço, que a vigia o tempo todo.

Moços e moças amigos de Inês → Fernando e Luzia são uma espécie de ideal de vida, encarnam a 


bondade e a pureza, a simplicidade e a ternura. Entretanto, é a morte e o desencanto presente em 
suas canções que desperta um vago pressentimento em Inês, anunciando o futuro que a espera.

Um Ermitão → essa personagem serve como pretexto para mostrar concretamente o "asno" 
transportando Inês. Devia haver um caminho a percorrer e, como os er
mitães viviam retirados, a verossimilhança era preservada. Além disso, por se tratar de uma jornada 
religiosa, o marido pode acompanhar Inês sem desconfiar de suas reais intenções. Gil Vicente 
serve­se ainda dessa personagem para criticar os maus padres de sua época, corrompidos pelos 
interesses materiais. Ao grupo deles pertence o clérigo que teria assediado Lianor Vaz.

Estrutura

Construída a partir do ditado "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube", a 
peça incorpora em sua estrutura a simetria existente entre os dois termos dessa comparação: Pero 
Marques encarna o asno que carregará Inês, enquanto o Escudeiro é o cavalo que a derruba.

Para pôr em cena esses elementos, Gil Vicente utilizou na caracterização de Pero Marques aspectos 
que o aproximam de um asno: é parvo, teimoso, deselegante e servil. O Escudeiro, ao contrário, 
assemelha­se ao cavalo, pois se apresenta como um nobre e elegante cavaleiro. Entretanto, essa 
semelhança se esgota na aparência, pois quaisquer outras características que se poderiam atribuir 
aos cavalos (como lealdade, generosidade, valentia) ele não tem: é mentiroso, cínico, preguiçoso e 
covarde.

Pode­se dizer que Lianor Vaz reforça o grupo de Pero Marques, a considerar seus valores: não tem 
interesses financeiros, é honesta, sensata e preocupada com o futuro de Inês, ao contrário dos judeus
Latão e Vidigal, que são desonestos, mentirosos, mercenários e indiferentes ao futuro da moça.

Para seguir à risca a comparação de superioridade que subjaz ao enredo ("mais quero asno que me 
carregue do que cavalo que me derrube"), é necessário mostrar que Pero Marques tem valores 
autênticos, os valores medievais, enquanto Brás da Mata se move por interesses materialistas, como
os que predomin
am na época de Gil Vicente. 

O dito popular é cumprido literalmente nessa farsa: o asno não é melhor do que o cavalo, mas se 
torna preferível na medida em que não oferece perigo.

Recursos linguísticos

a) A ironia, que é utilizada na peça como instrumento de crítica e motivadora do riso, aparece
em inúmeras formas, ora as palavras expressando seu sentido oposto, ora jogando com o
duplo sentido, ora acentuando a desproporção entre uma ação e sua finalidade. São exemplos
de ironia nessa farsa:

"Inês ­ Mas eu, mãe, são aguçosa e vós dai­vos de 
vaga

Ou seja, Inês tem vontade de se casar e a mãe, que a chama de preguiçosa, é quem tem resistido em
consenti­lo, dados os ideais de marido expressos pela filha.

"Mãe ­ Mana, conhecia­te ele?

Lianor ­Mas queria conhecer­
me!"

Aqui, o efeito cómico é construído a partir do duplo sentido do verbo conhecer: saber e relacionar­
se sexualmente. 

"Mãe ­ Que siso, Inês, que siso tens debaixo desses 
véus."

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