Вы находитесь на странице: 1из 306

Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR O livro propicia uma reflexão sobre os temas relacionados à propriedade inte-

O GEDAI/UFPR busca a formação de uma rede nacional e in- lectual, realizada por pesquisadores e especialistas em Direito reconhecidos pela co-
ternacional de cooperação acadêmica na área de propriedade inte- munidade científica nacional e internacional.

MARCOS
lectual, contando em suas publicações com um Conselho Editorial Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial
composto por especialistas nacionais e estrangeiros. A obra é fruto de um intercâmbio acadêmico sólido realizado por pesquisa- – GEDAI/UFPR –

Organizador
Estudos de Direito
O GEDAI/UFPR possui como linhas de pesquisa as seguintes dores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI da Universidade

WACHOWICZ
O GEDAI/UFPR vinculado ao Programa de Pós-graduação
temáticas: Federal do Paraná – UFPR em parceria com grupos de pesquisa no Brasil, a saber: o
em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR tem
Propriedade Intelectual – Inovação e Conhecimento: anali- Instituto de Propriedade Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Socie- como seu principal objetivo estudar o desenvolvimento dos
dade - ITS do Rio de Janeiro e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da
sar a tutela jurídica dos novos bens intelectuais advindos da nova
Tecnologia da Informação com vistas ao desenvolvimento socioe- Universidade de Fortaleza – UNIFOR. da Direitos de Propriedade Intelectual na Sociedade da Informa-
ção, através da comparação do sistema internacional de direi-
conômico que promova inovação, inclusão tecnológica e difusão
do conhecimento.
Direito Autoral: Direitos Fundamentais e Diversidade Cultu-
A parceria internacional está capitaneada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual
e Industrial da Universidade de Valência – Espanha.
PROPRIEDADE INTELECTUAL tos autorais e industriais, da análise dos processos de concreti-
zação dos direitos e diversidades culturais e da reflexão sobre
a regulamentação dos direitos intelectuais frente aos desafios
ral: compreender os efeitos do direito fundamental à cultura sobre da Sociedade da Informação.
os limites do direitos autorais; a proteção e circulação da produção Além disso, a obra reúne o esforço de doutrinadores de renomadas universi-
cultural desenvolvida nas instituições públicas; os papéis da cidada- dade europeias: Universidade Clássica de Lisboa (Portugal), Universidade Complutense Para atingir essa finalidade por observa-se três objetivos
nia cultural no processo de inclusão social; a função do Estado em
matéria cultural, as políticas públicas de cultura e a regulamentação
de Madri (Espanha) e Universidade de Valência (Espanha).
MARCOS WACHOWICZ específicos:
(i) compreensão dos efeitos do direito fundamental à cul-

PROPRIEDADE INTELECTUAL
jurídica dos direitos culturais. Ressalte-se o apoio fundamental das agências de fomento à pesquisa, CAPES e ORGANIZADOR tura e diversidade cultural na sociedade contemporânea,

ESTUDOS DE DIREITO DA
Economia Criativa: Propriedade Intelectual e Desenvolvi- CNPq, imprescindível para a realização dos projetos de pesquisas que culminaram com analisando os limites dos direitos autorais na tutela dos
mento: estudar o Direito Autoral enquanto instrumento jurídico o lançamento da presente obra. bens imateriais;
capaz de servir como marco regulatório para a formulação de po- (ii) avaliação das consequências da revolução tecnológica
líticas públicas a fim de fortalecer as indústrias criativas e dinâmi- em andamento e do advento da cultura digital sobre a re-
cas, com vista a uma Economia Criativa sustentável para o país.
gulamentação dos direitos intelectuais; e
Regime Internacional de Propriedade Intelectual: Estudo dos (iii) identificação do conteúdo da proteção jurídica e o al-
Tratados e Organizações Internacionais (OMC, OMPI e UNESCO) com cance da circulação da produção intelectual/cultural de-
o escopo de avaliar o Sistema Internacional de Tutela da Propriedade Apoio e financiamento de: senvolvida nas instituições públicas.
Intelectual face a revolução tecnológica da informação, bem como,
das novas formas de comunicação, de expressão, de produção de Visando intensificar o intercambio da pesquisa no Brasil, o
bens intelectuais que com as novas redes sociais na Internet possibi- GEDAI/UFPR envolve-se em projetos com outras equipes aca-
litam a socialização do conhecimento. dêmicas de diversas instituições de ensino superior e de pes-
Sociedade da Informação: Democracia e Inclusão Tecnoló- quisas brasileiras. Desta forma com a finalidade de ampliar os
gica – analisar as novas formas de criação de bens intelectuais estudos sobre temas relacionados a Propriedade Intelectual e
(obras colaborativas), de transformação criativa (samplers), de seus desafios na Sociedade da Informação o GEDAI/UFPR faz
distribuição/compartilhamento advindas das redes sociais (P2P), um convite para que os pesquisadores venham integrar esta
e a socialização do conhecimento enquanto paradigma da cultura grande rede de presquisa e publicação acadêmica.
digital sobre a regulamentação dos diretos autorais.
As publicações do Grupo de Estudos em Direito Autoral e
Direitos das Novas Tecnologias da Informação e Comu- Industrial – GEDAI/UFPR – são espaços de criação e comparti-
nicação (TIC’s): identificar o conteúdo da proteção jurídica e o
lhamento coletivo, visando facilitar o acesso às pesquisas pela
alcance da circulação da produção cultural desenvolvida nas ins-
tituições públicas e do regime de concorrência aplicado às novas INTERNET, disponibiliza-as gratuitamente para download. É mais
mídias na Internet. uma alternativa para a publicação de pesquisas acadêmicas, for-
mando uma rede de compartilhamento aberta para toda a comu-
Propriedade Intelectual e Direito Concorrencial – com- nidade científica.
preender a interface do direito concorrencial e da propriedade
intelectual nos novos modelos de negócios na Sociedade da In- As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão dis-
formação com foco no desenvolvimento dos setores produtivos poníveis no site: www.gedai.com.br
da Economia Criativa.
As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponí-
veis no site: www.gedai.com.br
Estudos de Direito da
Propriedade Intelectual

Coordenador
Marcos Wachowicz

Colaboradores
Denis Borges Barbosa
Francisco Narcélio Ribeiro
Guillermo Palao Moreno
Heloisa Gomes Medeiros
José de Oliveira Ascensão
Karin Grau-Kuntz
Marcos Wachowicz
Patricia Carvalho da Rocha Porto
Pedro Alberto de Miguel Asensio
Sergio Branco
Vitor Augusto Wagner Kist
GEDAI
As publicações do GEDAI/UFPR são espaços de criação e compartilhamento coletivo. Fácil
acesso às obras. Possibilidade de publicação de pesquisas acadêmicas. Formação de uma
rede de cooperação acadêmica na área de Propriedade Intelectual.

Conselho Editorial
Allan Rocha de Souza – UFRRJ/UFRJ José de Oliveira Ascensão – Univ. Lisboa/Portugal
Carla Eugenia Caldas Barros – UFS J. P. F. Remédio Marques – Univ.Coimbra/Port.l
Carlos A. P. de Souza – CTS/FGV/Rio Karin Grau-Kuntz – IBPI/Alemanha
Carol Proner – UniBrasil Luiz Gonzaga S. Adolfo – Unisc/Ulbra
Dario Moura Vicente – Univ.Lisboa/Portugal Leandro J. L. R. de Mendonça – UFF
Denis Borges Barbosa – IBPI/Brasil Márcia Carla Pereira Ribeiro – UFPR
Francisco Humberto Cunha Filho – Unifor Marcos Wachowicz – UFPR
Guilhermo P. Moreno – Univ.Valência/Espanha Sérgio Staut Júnior – UFPR
José Augusto Fontoura Costa – USP Valentina Delich – Flacso/Argentina

Estudos de Direito da Propriedade Intelectual


/ organização de Marcos Wachowicz
Wachowicz, Marcos ...[et al.] – Curitiba:
GEDAI/UFPR, 2015.
302 p.

Vários colaboradores

Impresso: ISBN 978-85-67141-05-3

e-book: ISBN 978-85-67141-08-4

1. Propriedade Intelectual. 2. Direito Autoral. 3. Domínio Público. 4. Inovação.


5 Transferência de tecnologia. 6 Retaliação cruzada I. Wachowicz, Marcos
(org.). II. Título.

Endereço:
UFPR – SCJ – GEDAI
Praça Santos Andrade, n. 50
CEP: 80020-300 - Curitiba – PR
E-mail: gedai.ufpr@gmail.com
Site: www.gedai.com.br
GEDAI/UFPR
- PREFIXO EDITORIAL 67141 –
Capa Marcelle Cortiano

Diagramação Monica Ardjomand

Revisão Laura Rotunno


Luciana Bitencourt
Ruy Figueiredo de Almeida Barros
Heloisa Medeiros
Ana Luiza dos Santos Rocha

Endereço Universidade Federal do Paraná - UFPR


Faculdade de Direito
Praça Santos Andrade, n, 50
CEP. 80020 300
Curitiba - Paraná
Fone:(55) 41 33102750 / 41 3310 2688
E-mail: gedai.ufpr@gmail.com
Site: www.gedai.com.br

Esta obra é distribuída por meio da Licença


CreativeCommons 3.0
Atribuição/Uso Não-Comercial/Vedada a Criação de Obras Derivadas / 3.0
/ Brasil
Apresentação

O Estudo do Direito da Propriedade Intelectual na sociedade informa-


cional ganha relevo e novas dimensões teóricas, colocando o leitor, já desde
as primeiras páginas, no plano dos conflitos e inquietudes que são perceptí-
veis na sociedade contemporânea.
Percebe-se um grande movimento acadêmico, um crescente interes-
se sócio-político e econômico, que tem despertado nos estudiosos do direito
as questões que delineiam novos contornos da disciplina de Propriedade Inte-
lectual em suas mais variadas matizes doutrinárias.
Neste sentido é que a presente obra aglutina inúmeros estudos rea-
lizados por pesquisadores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Indus-
trial – GEDAI da Universidade Federal do Paraná – UFPR, em parceria com
outros grupos de pesquisa no país, tais como: o Instituto de Propriedade
Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Sociedade - ITS do
Rio de Janeiro e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da
Universidade de Fortaleza – UNIFOR. A parceria internacional está capitane-
ada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual e Industrial da Universidade de
Valência – Espanha.
A presente obra coletiva reúne o esforço de pesquisadores, estudio-
sos e doutrinadores de três renomados centros de pesquisas de excelência da
União Européia na pesquisa sobre os Direitos da Propriedade Intelectual, a sa-
ber: Universidade Clássica de Lisboa – Portugal, Universidade Complutense
de Madri – Espanha e Universidade de Valência – Espanha.
As pesquisas agora publicadas foram anteriormente apresentadas em
seminários, congressos e eventos realizados no Brasil e no exterior com apoio
das agencias de fomento a pesquisa CAPES e CNPq.
Os artigos agora publicados cumprem com excelência o aprofunda-
mento das pesquisas devotadas aos Direito da Propriedade Intelectual, bem
como provocam debates sobre seus fundamentos constitutivos e matizes ide-
ológicas que por certo influenciarão a evolução do pensamento jurídico.
A todos que contribuíram para a realização desta obra nosso muito
obrigado.
O resultado agora o leitor tem diante de si.
Marcos Wachowicz

5
SUMÁRIO

Prefácio ....................................................................................................... 9

REPRESENTATIVIDADE E LEGITIMIDADE DAS ENTIDADES DE GESTÃO


COLETIVA DE DIREITOS AUTORAIS | José de Oliveira Ascensão ............... 13

DERECHOS FUNDAMENTALES Y OBSERVANCIA DE LOS DERECHOS


DE AUTOR EN LA UNIÓN EUROPEA | Pedro Alberto de Miguel Asensio ... 41

PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO


NA UNIÃO EUROPEIA | Guillermo Palao Moreno .......................................... 67

O DOMÍNIO PÚBLICO VOLUNTÁRIO | Sérgio Branco ................................... 85

A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A PROTEÇÃO DAS COMPOSIÇÕES


DE PEÇAS DE VESTUÁRIO | Karin Grau-Kuntz .............................................. 105

DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL


DAS CELEBRIDADES | Denis Borges Barbosa................................................. 117

OS EFEITOS DA CUMULAÇÃO DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL –


Direitos autorais x Marcas | Patricia Carvalho da Rocha Porto ..................... 199

RETALIAÇÃO CRUZADA EM PROPRIEDADE INTELECTUAL: uma alternativa


aos países em desenvolvimento para a solução de disputas na organização
mundial do comércio | Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist ...... 233

INSTRUMENTOS JURÍDICOS DA ECONOMIA DA INOVAÇÃO: CONTRATOS DE


TRASNFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E DIREITO DA CONCORRÊNCIA NO DIREITO
BRASILEIRO | André Soares Oliveira e Heloisa Gomes Medeiros..................... 265

O DIREITO AUTORAL COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO


PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA
INCOMUNICABILIDADE DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DE
CADA CÔNJUGE | Francisco Narcélio Ribeiro ................................................ 289

7
Prefácio

É com satisfação que apresentamos a obra coletiva Estudos de Direito


da Propriedade Intelectual, fruto dos projetos de pesquisa desenvolvidos e re-
alizados pelo Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI, o
qual está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universida-
de Federal do Paraná – PPGD/UFPR.
O livro oferece ao leitor uma abordagem transversal sobre os temas
da Propriedade Intelectual na sociedade contemporânea, os desafios enfren-
tados em cada texto e no conjunto da obra cumprem com êxito a missão de
revelar novos caminhos para o Direito Intelectual, bem como, de buscar no
contexto social, político e econômico de um país com o Brasil, novos rumos
para o desenvolvimento tecnológico que efetivamente promova a inovação e
a inclusão social.
Os estudos que agora se apresentam ao leitores vão além das dis-
cussões teóricas sobre a tutela da propriedade intelectual, mas lançam novas
questões sobre o equilíbrio necessário à dimensão pública e privada que en-
volve a tutela jurídica do instituto a nível nacional e internacional.
Tais desafios ensejaram vários projetos de pesquisas articulados entre
diversas universidades brasileiras e estrangeiras, nos seus grupos de pesquisa e
de especialistas, cujo alcance não se restringiu a barreiras nacionais e regionais.
Juristas europeus dotados de grande sensibilidade científica, como os
catedráticos José de Oliveira Ascensão, Pedro Alberto de Miguel Asensio
e Guillermo Palao Moreno, contribuíram com a perspectiva do Direito da
União Europeia, ao trabalharem temas extremamente atuais, como: represen-
tatividade das entidades de gestão coletiva, direitos fundamentais e Direito
Internacional Privado. A reflexão desses juristas, ao buscarem respostas para
os desafios do Direito Intelectual, brindaram a obra com novas ideias e deline-
amentos para sua compreensão na sociedade contemporânea.
Contudo, boas surpresas não findaram. A participação de Sérgio
Branco, do ITS/Rio de Janeiro, analisa as questões relativas ao domínio públi-
co voluntário, revela o instituto do Direito Autoral sob a ótica do Direito Com-
parado, apresentando um amplo cenário internacional no qual se percebe a
necessidade do aperfeiçoamento da legislação brasileira atual.
Com o objetivo de oferecer elementos para a compreensão da pro-
priedade intelectual nos setores criativos da economia, mais especificamente
no tocante à moda e à proteção das composições de peças de vestuário, Karin
9
Grau-Kuntz busca estabelecer noções fundamentais para compreensão do
ato criativo que envolve a proteção da propriedade intelectual.
Por sua vez, Denis Borges Barbosa apresenta um estudo de fôlego
sobre o direito de propriedade intelectual das celebridades, no que toca o uso
dessas imagens no direito estrangeiro e brasileiro, propugnando pela elabora-
ção legislativa neste sentido, bem como, dos deveres resultantes da constru-
ção da notoriedade.
Numa abordagem ampla sobre a proteção jurídica dos institutos pro-
tegidos pela propriedade intelectual, Patrícia Carvalho da Rocha Porto, ana-
lisa o fenômeno e os efeitos da cumulação de direitos autorais e marcários, os
quais tem sido objeto de discussões e controvérsias em diversos países, apre-
ciando ações judiciais relativas ao tipo de cumulação comentada, com o ob-
jetivo de formular as bases técnicas que auxiliem a melhor compreensão dos
conflitos da cumulação em casos práticos no cenário nacional e internacional.
No tocante aos conflitos de que envolvem que envolvem a proprie-
dade intelectual no cenário internacional está situado o estudo realizado por
Estudos de Direito da Propriedade Intelectual

Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist, que analisam o instituto


de retaliação cruzada de propriedade intelectual como uma alternativa aos
países em desenvolvimento para a solução de disputas na Organização Mun-
dial do Comércio – OMC. A pesquisa realizada com base na jurisprudência
já existente na OMC revela que o instituto da retaliação cruzada se mostra
como uma alternativa legal que pode solucionar o problema da ineficácia dos
remédios usuais dos órgãos de solução de controvérsias, fazendo com que
as reclamações dos países mais pobres sejam ouvidas mais claramente pelas
potências mundiais.
Cabe referenciar a participação de uma nova geração de especialis-
tas em Direitos da Propriedade Intelectual que vem sendo reconhecida pela
comunidade acadêmica por seus trabalhos e prêmios merecidamente con-
quistados. Citem-se, por exemplo, André Soares Oliveira e Heloisa Gomes
Medeiros, que abordaram as questões relativas aos instrumentos jurídicos da
Economia da Inovação, numa análise profunda sobre os contratos de transfe-
rência de tecnologia e direito da concorrência no País. Num trabalho de rigor
técnico e científico, elucidam alguns procedimentos previstos nos arranjos
contratuais para que, efetivamente se alcance a inovação, de forma que ocor-
ra a circulação no mercado de forma competitiva no âmbito empresarial cada
vez mais globalizado.
Por fim, a participação de Francisco Narcélio Ribeiro, que desenvolve
a temática do Direito Autoral como instrumento de efetivação do princípio da
10
dignidade da pessoa humana e dos princípios dele decorrentes, adentrando à
discussão sobre a concepção do DIREITO CIVIL�CONSTITUCIONAL, necessá-
ria para entender o direito patrimonial do autor em suas questões relativas ao
regime de bens instituídos pelo Código Civil atual.
Assim, o leitor poderá perceber, nesta obra, além da reunião de juris-
tas e pesquisadores de distintas nacionalidades, a construção de novos funda-
mentos para interpretação dos temas mais atuais relativos ao estudo do Direi-
to da Propriedade Intelectual. Inequivocamente os trabalhos aqui coletados
revelam as inquietudes, curiosidades, análise, investigações; mas, sobretudo,
propostas e anseios de transformação da realidade para a solução dos conflitos
inerentes à tutela da propriedade intelectual na Sociedade contemporânea.
Por último, aproveito aqui para agradecer o amável convite do profes-
sor Marcos Wachowicz, que coordenou os estudos e organizou os trabalhos
que culminaram com a publicação desta obra, assim como a todos os seus
laboriosos autores.
Prof. Dr. Luis Fernando Lopes Pereira
Coordenador do PPGD/UFPR

11
propriedade intelectual
REPRESENTATIVIDADE E LEGITIMIDADE DAS
ENTIDADES DE GESTÃO COLETIVA DE DIREITOS
AUTORAIS
José de Oliveira Ascensão1

1. O recurso à gestão coletiva e os seus efeitos


Os titulares de direitos autorais – abrangendo nesta categoria os au-
tores e os titulares de direitos conexos – detêm, indiscutidamente, um direito
subjetivo, qualificado na generalidade dos casos por o conteúdo deste consti-
tuir um exclusivo.
O exercício do exclusivo é manifestação de autonomia. Veja-se a disci-
plina do direito de autor, que é paradigmática. O art. 40 do CDADC2 atribui ao
titular originário, bem como aos seus sucessores ou transmissários:
• autorizar a utilização da obra
• transmitir ou onerar, no todo ou em parte, o conteúdo patrimonial
do direito.
O titular tem assim a disponibilidade normalmente associada à titula-
ridade dos direitos, explorando diretamente o bem intelectual ou praticando
negócios jurídicos sobre ele. A liberdade outorgada é porém sempre relativa
– está cerceada pela função social e outras cláusulas gerais, bem como pelas
restrições especiais próprias do Direito Autoral.
O titular pode recorrer a terceiros para praticar atos jurídicos que se
repercutem sobre o objeto do seu direito. Pode, nomeadamente, mandatar
outrem para a prática desses atos. Nesses casos haverá um terceiro, além
do titular, que está igualmente legitimado para essa prática, nos termos do
mandato recebido.
O recurso a terceiros para a gestão dos direitos reveste feições diver-
sas, consoante a natureza das obras e o conteúdo do contrato.
No que respeita ao contrato de edição de obra científica, por exem-
plo, os autores, na grande maioria dos casos, contratam diretamente com as
editoras. Nem lhes passa pela cabeça inscrever-se para o efeito em entidade
1 Professor Catedrático da Universidade de Lisboa.
2 O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos português.
13
de gestão coletiva. Mas podem fazê-lo, se assim o entenderem.
Já no que respeita à obra musical a situação é a contrária. Se o autor
quer dar a obra à exploração comercial, particularmente se o quiser fazer pela
radiodifusão ou pelo audiovisual, o autor terá quase fatalmente de recorrer
a outrem para o seu exercício. Não pode controlar todas as emissões, nem
sequer é viável, na grande maioria dos casos, criar uma empresa para esse
efeito. Tem de recorrer a entidade gestora que mandata para o efeito.
Intervêm então as entidades de gestão coletiva. Neste caso, exer-
cem a gestão coletiva que chamamos forçosa. O autor ou outros titulares não
estão obrigados a recorrer a elas, mas na prática não têm outro remédio. A
adesão ou contratação com entidade de gestão coletiva supõe‑se livre, mas
eles fatalmente o terão de fazer para a eficácia da exploração dos direitos. O
fundamento da gestão coletiva está assim no serviço prestado aos titulares
dos direitos. É esta aliás a justificação sempre apresentada.
Mas o recurso a esta gestão ultrapassa muito os casos de gestão co-
letiva forçosa. Pode não haver este constrangimento e o titular, voluntaria-
José de Oliveira Ascensão

mente, entregar a obra ou prestação ao cuidado de uma entidade de gestão.


Este panorama será transtornado por uma figura anômala: a gestão
coletiva forçada ou obrigatória3. Pode a lei, atribuindo direitos sobre bens in-
telectuais, determinar que estes só podem ser exercidos por uma entidade de
gestão coletiva. Então todos os titulares de direitos daquela natureza ficam
automaticamente sujeitos a uma entidade de gestão coletiva, se porventura
quiserem explorar as suas obras ou prestações. É o que se passa no respei-
tante ao direito de autorizar ou proibir a retransmissão por cabo, que o art.
7/1 do Dec.-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, determina que “só pode ser
exercido através de uma entidade de gestão coletiva do direito de autor, que
se considere mandatada para gerir os direitos de todos os titulares, incluindo
os que nela não estejam inscritos...”.
É também o que é estabelecido pela Lei n.º 62/98, de 1 de setembro,
que regula o disposto no art. 82 CDADC. A cópia privada é livre (art. 75/2 a e
e CDADC), mas é sujeita a uma compensação equitativa a atribuir ao autor e,
3 Fizemos já esta distinção, aproveitando a diferença de sentidos das palavras forçosa e forçada na língua
portuguesa, no nosso Gestão colectiva: síntese dos trabalhos e perspectivas futuras, in “Gestão colectiva
do Direito de Autor e Direitos Conexos no ambiente digital”, Actas do Colóquio organizado pela Presidência
Portuguesa da Comunidade Europeia em 23 e 24 de março de 2000, Gabinete do Direito de Autor / Mi-
nistério da Cultura (GDA), 2001, 273-292; in Revista da ABPI (São Paulo), n.º 48, Set/Out 2000, 21-30; in
Derecho de la alta Tecnologia, Estudio Millé (Buenos Aires), ano XII, n.º 136/137, Dez/99-Jan/01, 25-35; in
“Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação”, Almedina, 2001, 289-309; e in Direito
da Internet e da Sociedade da Informação – Estudos, Editora Forense (Rio de Janeiro), 2002, com o título
Gestão colectiva: perspectiva do autor, 283-304.
14
propriedade intelectual
no âmbito analógico, também ao editor (art. 76/1b). A “compensação equita-
tiva” é cobrada, gerida e distribuída por uma “pessoa coletiva” (arts. 3/2 e 5),
que tem como associados os vários entes de gestão coletiva dos direitos dos
beneficiários da remuneração. E por sua vez estes têm como associados uma
classe de titulares específica.
Outro esquema consiste na extensão aos não associados dos acordos
coletivos celebrados por uma entidade de gestão. É o que se passa nos termos
do Dec.-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, no que respeita aos acordos cele-
brados por uma entidade de gestão coletiva do direito de autor e um organis-
mo de televisão, relativos a obras musicais, tendo por objeto a comunicação
por satélite.
A gestão coletiva forçada pode em certos casos ser justificada pela
natureza da relação em causa, quando não se vislumbra maneira de um regi-
me ser aplicável aos que forem membros de uma entidade de gestão coletiva
e não o ser aos que o não forem. Mas há que ter em conta que é um instru-
mento muito perigoso, que só se poderá aceitar em última análise. Subverte
o princípio da liberdade de associação. E a entidade de gestão coletiva benefi-
ciária perde todo o estímulo para defender os interesses dos titulares. Se eles
estão amarrados de toda a maneira às suas decisões, só os interesses próprios
dessas entidades passam a ser determinantes. Por isso, a gestão coletiva for-
çada é o El Dorado dos entes de gestão, que não precisam de agradar e atrair
os titulares não associados porque, de toda a maneira, os têm nas mãos.
Isto já revela como é complexa a teia de interesses que se debate à
volta da gestão coletiva de direitos de autor e conexos. Se ultrapassarmos a
hoje enganosa designação de “sociedades de autores”, divisamos pelo menos
seis categorias diferentes de interesses e interessados:
 2. Os titulares de direitos autorais: os criadores, os artistas e os ou-
tros titulares de direitos conexos, bem como os sucessores e trans-
missários.
 3. Os utilizadores (users), que são as entidades, tendencialmente em-
presariais, que fazem a exploração económica dos direitos intelec-
tuais, como adquirentes derivados dos direitos ou de faculdades
específicas.
 4. As entidades de gestão coletiva, como intermediários e agrega-
dores das posições dos titulares e intermediários na relação com
os utilizadores, mas que prosseguem também interesses próprios
muito relevantes.

15
 5. Os provedores de serviços na internete, indispensáveis no campo
cada vez mais vasto da exploração em linha.
 6. O consumidor ou utilizador final de obras intelectuais.
 7. Sobre tudo isto se situam os interesses coletivos, como o da Cultu-
ra, que tanto se invoca e a que tão pouco se atende.
Este interesse coletivo prolonga-se no interesse público, nomeada-
mente no interesse na supervisão por parte das instituições públicas, que é
hoje fundamental. Há pois motivo para acrescentar pelo menos uma sexta
categoria de interesses, de modo algum diminuída em relação às restantes.

2. A posição do titular perante o ente de gestão


Suscitou-se dissídio quanto a qualificar as entidades de gestão cole-
tiva como mandatárias ou como representantes dos seus associados. Supo-
mos que não vale a pena entrar nesta questão, porque os resultados são os
mesmos. O art. 73/1 CDADC determina que essas entidades desempenham
a sua função como representantes dos respetivos titulares. Efetivamente, os
José de Oliveira Ascensão

efeitos dos atos de gestão vão-se repercutir diretamente na esfera jurídica


dos titulares, como é próprio da representação. Não vemos interesse em pôr
em causa a qualificação legal, ou em discutir que neste caso haja um mandato
com representação.
Pode-se porém ir mais longe. Em países do centro e norte da Euro-
pa entidades de gestão coletiva exigem dos autores ou titulares de direitos a
cessão fiduciária dos seus direitos para que sejam integrados na gestão a que
procedem. O titular pratica uma autêntica cessão: a titularidade passa para
a entidade de gestão coletiva. Mas a cessão é fiduciária, no sentido que essa
entidade deve tipicamente exercer o direito no sentido da boa administração
no interesse do titular.
A situação resultante é muito gravosa para o titular. Assim, o autor
perde todo o contato com a obra. Conserva apenas o direito pessoal (ou “mo-
ral”); de resto, não pode praticar nenhum ato que atinja o aproveitamento
patrimonial. Não pode por exemplo autorizar uma utilização gratuita, para fins
beneficentes, a qualquer agremiação da sua simpatia, porque todo o poder de
autorizar passou para a entidade de gestão coletiva. Para ter acesso àquela
gestão coletiva, tem de abrir mão de todo e qualquer poder sobre a sua obra
ou prestação.
Não está previsto, em Portugal ou no Brasil, que as entidades de ges-
tão coletiva imponham a cessão fiduciária dos direitos. Mas também não está
16
propriedade intelectual
proibida. Pelo que paira sempre a ameaça de, na prática, alguma entidade o
vir, abertamente ou não, a estabelecer.
Por isso propusemos, nos trabalhos de preparação do CDADC, que
para defesa do autor ou demais titulares fosse expressamente proibida, dada
a gravidade da situação, a cessão fiduciária dos direitos. Mas a proposta en-
controu a oposição da Sociedade Portuguesa de Autores e não foi por diante.
Há assim o risco de uma expropriação na prática do direito patri-
monial do titular em contrapartida da adesão à entidade de gestão coletiva.
Expropriação que pode igualmente surgir mesmo quando se não preveja a
cessão fiduciária. Podem ser inseridas cláusulas que excluam que os titulares
realizem atos de gestão, nomeadamente quaisquer autorizações graciosas. O
titular ficaria então contratualmente impedido de as praticar. Mas a entidade
de gestão coletiva também o não poderia fazer, porque só tem poderes de
autorização no interesse (patrimonial) do autor; uma autorização gratuita não
serve por natureza esse interesse patrimonial. O que implica que nunca uma
obra ou prestação dada à gestão coletiva poderia então ter utilização benefi-
cente, ou gratuita em geral.
A distorção em relação às previsões legais é grave. O art. 68/3 CDADC
dispõe que “Pertence em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade
de escolher livremente os processos e as condições de utilização e explora-
ção da obra”. Quanto ao art. 41, sobre o “Regime da autorização”, impõe a
forma escrita (n.º 2), e dispõe que desta “devem constar, obrigatória e espe-
cificamente, a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem
como as respetivas condições de tempo, lugar e preço”. Mas a assinatura dum
contrato de adesão a uma entidade de gestão coletiva pode anular na prática
estas previsões da lei. O autor passa a ocupar uma posição de cliente duma
entidade de gestão, ficando vinculado por um contrato – que de contrato já
não tem quase nada.
A posição dos artistas intérpretes ou executantes é ainda mais frá-
gil. O art. 178/1 CDADC atribui-lhes o direito exclusivo de autorizar, por si ou
pelos seus representantes, a radiodifusão e a comunicação ao público, a fixa-
ção de prestações que não tenham sido fixadas e a reprodução das fixações
realizadas. Mas se o artista autorizar a fixação para fins de radiodifusão a um
produtor cinematográfico ou audiovisual ou videográfico, ou a um organismo
de radiodifusão, entender-se-á que transmitiu esses direitos em contrapar-
tida de uma remuneração inalienável, equitativa e única. Ainda por cima, a
gestão desta remuneração única será exercida através de acordo coletivo ce-
lebrado entre os utilizadores e a entidade de gestão coletiva representativa
17
da categoria, “que se considera mandatada para gerir os direitos de todos os
titulares dessa categoria, incluindo os que nela não se encontrem inscritos”
(art. 178/2). Essa remuneração única abrangerá igualmente a autorização para
novas transmissões, a retransmissão e a comercialização de fixações obtidas
para fins exclusivos de radiodifusão (n.º 3). Há então manifestação potenciada
de gestão coletiva forçada.
Só fica de fora a faculdade contida no art. 178/1 d CDADC: “A coloca-
ção à disposição do público, da sua prestação, por fio ou sem fio, por forma
que seja acessível a qualquer pessoa, a partir do local e no momento por ela
escolhida”. É a fórmula utilizada pela lei para caracterizar a colocação em rede
à disposição do público. Porém, mesmo esta é submetida à gestão coletiva
obrigatória, nos termos do art. 178/4. Donde resulta que a lei se preocupa
muito mais com uma proteção de interesses empresariais que com a proteção
dos artistas intérpretes ou executantes.
Outro aspecto deve ser preliminarmente esclarecido, para fixarmos
os contornos da gestão coletiva: qual o estatuto da obra ou prestação que é
entregue à gestão coletiva?
José de Oliveira Ascensão

Pensar-se-ia que a entidade de gestão negociaria cada obra ou pres-


tação, atendendo ao seu significado ou valia particular. Atuaria assim como o
faria o titular se não tivesse aderido à gestão coletiva.
Não está, evidentemente, impedida de assim fazer. Mas na realidade
é uma ocorrência meramente marginal.
Consideremos à obra musical, que ilustra a situação com muita niti-
dez. A entidade de gestão coletiva de direitos musicais licencia todo um re-
pertório. Pratica negócios de massa. Cada obra ou prestação individual é ten-
dencialmente englobada num conjunto, e é esse que é colocado à disposição
dos utilizadores.
Sendo assim, a individualidade da obra esbate-se. Tanto faz ser exce-
lente como medíocre. É objeto dos mesmos atos dispositivos.
Isso satisfaz os utilizadores, que querem ter as mãos livres, e a en-
tidade de gestão, que evita a discussão caso por caso. Mas cria numerosos
problemas, em particular:
• o da legitimidade das autorizações genéricas da entidade de gestão
• o da remuneração do autor ou artista, cujas obras ou prestações
são utilizadas.
Estes problemas terão de ser ulteriormente examinados.

18
propriedade intelectual
3. A representação dos titulares: sua relatividade
A gestão coletiva, na visão da lei, só se justifica pela defesa dos inte-
resses dos titulares de direitos autorais. E efetivamente, neste domínio, afir-
ma-se insistentemente que é esse interesse que é exclusivamente prossegui-
do por essas instituições. Elas apresentam-se como emanação dos autores e
outros titulares, cujo benefício é constantemente invocado como diretriz de
atuação.
Mas a realidade não é bem essa.
Por um lado, os quadros dessas entidades não são necessariamente
titulares de direitos. Pode recorrer-se a técnicos ou gestores, por exemplo,
que pouco ou nada tenham que ver com obras ou prestações. A categoria que
se invoca começa a ficar descolorida perante esta realidade.
Depois, porque os associados ou membros em geral não são necessa-
riamente os autores ou os artistas que se proclama defender.
Vejamos o que se passa com os “autores”. Os autores representados
pelas entidades de gestão não são apenas os criadores intelectuais. O próprio
art. 73/1 CDADC não refere “representantes dos autores”, fala antes em “re-
presentantes dos respetivos titulares”. Ora, os transmissários são também
titulares. Portanto, mesmo em vida do autor, o substrato pessoal do ente de
gestão pode exprimir interesses muito diferentes dos dos criadores intelectu-
ais. Repare-se que os transmissários são usualmente empresas que procedem
à exploração económica de bens intelectuais. Exprimem por isso interesses
empresariais e de modo algum os interesses culturais que as entidades de
gestão coletiva de direitos de autor se alegam defender.
Uma simples observação estatística demonstra bem que “sociedades
de autores” e associações ou cooperativas de criadores intelectuais não são
a mesma coisa. As entidades de gestão coletiva acabam por ser sensíveis a
outros interesses que não são os dos criadores intelectuais. Analogamente
poderíamos dizer em relação às entidades de gestão dos direitos dos artistas.
Acresce aquilo a que podemos chamar o drama do representado. É
uma questão geral, mas que tem aqui também a sua manifestação.
É uma decorrência da imperfeição humana. O poder do representan-
te tem a sua justificação na prossecução do interesse do representado. Mas a
natureza humana leva a que o representante pense mais no seu próprio inte-
resse que no interesse do representado. Isso acontece em todos os setores:
na representação política, como o demonstram os escândalos permanentes

19
que a comunicação social nos vai revelando em todos os países; na represen-
tação empresarial, em que representantes de uma maioria trabalham antes
de mais na preservação das suas posições e dos seus próprios interesses; em
relações simples de representação, como as que os emigrantes estabelecem
deixando as suas terras confiadas a parentes ou amigos, e afinal... A boa for-
mação humana, que permitiria que as finalidades da lei fossem asseguradas, é
na realidade ocorrência rara.
Mas há muito mais do que isto.
Mesmo excluindo os transmissários, somos levados a concluir que as
entidades de gestão não são agregados de criadores intelectuais ou de artis-
tas intérpretes ou executantes. Exemplifiquemos com o caso dos autores, que
é bem nítido.
O direito de autor vigora paradigmaticamente durante a vida do cria-
dor intelectual e mais setenta anos pós-morte.
Em vida, o criador intelectual terá no máximo uns 70 anos de prote-
ção. Mesmo admitindo que criou aos 20 anos e faleceu aos 90, o que toma
José de Oliveira Ascensão

já em conta o prolongamento progressivo da vida humana, é um cálculo de


duração máxima plausível. Mas o autor vai criando normalmente durante toda
a vida, logo o gozo médio de cada direito em vida é muito menor.
Após a morte do autor, os sucessores recebem o direito por um perío-
do normal de 70 anos. Aqui, período máximo e efetivo coincidem: são sempre
70 anos pós‑morte do autor.
Como os sucessores são também titulares, que são representados (tal
como os criadores) pelas entidades de gestão respetivas, temos de concluir
que entre os membros destas entidades haverá muito mais titulares não cria-
dores que criadores. Porque a soma dos transmissários e dos sucessores é mui-
to superior seguramente ao número dos criadores intelectuais representados.
Não há motivo para que isso se não repercuta fortemente sobre as
entidades de gestão coletiva de direitos autorais. Os entes de gestão coleti-
va justificam‑se como representantes dos criadores e os artistas, mas repre-
sentam-se antes de mais a si mesmos. Atuam como fortíssimos grupos de
pressão, que se apoiam normalmente nos abundantes recursos financeiros
de que dispõem. Isso permite-lhes manifestações faustosas, como saraus de
gala que só podem sustentar-se com dinheiros que deviam reverter para os
representados. A fidelidade destes entes é antes de mais aos interesses que
os amparam e conservam. O autor, ou os titulares em geral, são mais o objeto
da atuação que os sujeitos cujos interesses são efetivamente prosseguidos.
20
propriedade intelectual
4. A reversão de percentagens das receitas para interesses
que não são diretamente dos titulares
Esta situação é agravada pela atribuição, pela lei ou pela prática, de
percentagens em benefício dos próprios entes de gestão. Estas são retiradas
necessariamente das quantias cobradas como destinadas aos titulares.
Temos antes de mais as quantias destinadas à administração do pró-
prio ente. Têm sempre de existir, porque são a base para que a administração
se possa realizar. A alternativa seria o Estado tomar sobre si esse encargo, o
que acontece em certos casos, em países escandinavos e agora acontecerá na
Espanha, na remuneração dos autores pela cópia privada: mas é uma ocor-
rência insólita.
A questão está no volume desta percepção sobre os rendimentos.
A Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, que regula a gestão coletiva, não estabele-
ce nenhum limite. Deveria estabelecê-lo. Tão-pouco o estabelecia a lei sobre
compensação por cópia privada (Lei n.º 62/98, de 1 de setembro).
Na prática as percentagens variam muito, chegando a atingir 30%,
na previsão legal. Assim, a proposta de reforma da lei da cópia privada do
GPEARI4, de 2011, que continua pendente, limitava os custos de funciona-
mento a 30% das receitas globais obtidas com a cobrança das compensações
equitativas. Na versão da proposta de abril de 2011 o limite baixou para 20%,
então no art. 11/45.
Não é esta a única percepção que grava sobre as receitas arrecada-
das. O art. 13 da Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, atribui às entidades de gestão
coletiva uma “função social e cultural”. A esta devia ser afetada uma percen-
tagem não inferior a 5% das receitas.
O PJL 118-XII6, sobre a reforma da lei da cópia privada, previa por sua
vez que, das receitas líquidas apuradas para “compensação” da cópia privada,
fossem ainda destinadas:
 a) 10% a um Fundo Cultural
 b) do remanescente, 5% ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura
 c) do remanescente, 10% à entidade pública de fiscalização
Tudo isto é anômalo.

4 Do Ministério da Cultura.
5 E um projeto posterior do grupo do PSD na Assembleia da República baixava a percentagem para 15%.
6 Apresentado na Assembleia da República e discutido em comissão em 2012. Estava aliás muito mal
estruturado e foi retirado. Não avançamos na interpretação deste para nos não afastarmos do nosso tema.
21
Começando pela função cultural, essa está completamente desloca-
da. A “pessoa coletiva” prevista é uma entidade de arrecadação de receitas
e de distribuição subsequente pelas entidades de gestão coletiva suas asso-
ciadas. A isso se reduz a sua competência. Não tem nenhuma qualificação
especial que lhe permita arvorar-se em difusora cultural, e muito menos a
tem para o fazer à custa dos autores e outros beneficiários, mordendo nas
verbas a estes destinadas. A função cultural, prevista logo na epígrafe do arti-
go, equivaleria muito provavelmente a auto-promoção da entidade de gestão
coletiva.
O Projeto acima referido, sob a epígrafe “Fundo Cultural”, previa no
art. 12/1 que a entidade única de cobrança, como dissemos, destine 10% das
receitas líquidas à constituição dum Fundo Cultural, pressupõe-se que da en-
tidade única de cobrança. Reside aqui a grande falha desta entidade, que tem
atuado de modo rotunda e manifestamente ilegal. A prática foi ainda pior que
a lei: a entidade única, a AGECOP, não exerce a função cultural a que está
adstrita por lei, antes repassa os fundos a isso destinados a alguns dos entes
de gestão seus associados. Há assim uma dupla ilegalidade, a primeira por
José de Oliveira Ascensão

omissão, a segunda por disposição indevida de fundos consignados. E receia-


se que esses fundos sejam simplesmente arrecadados pelos entes associados
para que são remetidos, sem afetação efetiva a finalidades culturais, porque
não há satisfatória prestação de contas da destinação que se lhes atribui.
Apareceu também uma referência à função social. Esta é em Direito
uma categoria técnica, mas aqui tem um sentido completamente diferente.
Traduz-se na “prossecução de atividades sociais e de assistência aos seus asso-
ciados ou cooperadores”. Não se vê o que sejam “atividades sociais”: os titula-
res dos direitos agradeceriam decerto que o dinheiro para tal despendido lhes
fosse antes diretamente entregue. E também uma entidade de gestão coletiva
de arrecadação não tem nenhuma qualificação especial para tomar para si
funções de assistência aos seus membros. Tudo isto correria muito melhor
se as quantias eventualmente aplicadas seguissem o destino normal, sendo
repartidas diretamente pelos titulares dos direitos administrados7.
A seguir (art. 12/2) prevê-se que a mesma entidade única afete 5%
das receitas líquidas percebidas ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura,
consignada ao pagamento do Subsídio de Mérito Cultural. Há aqui um ób-
vio aproveitamento parasitário: uma percepção extraordinária de dinheiros
destinados aos autores vai reverter em benefício de um fundo público. É um

7 Não poderá deixar de se estranhar também que esta matéria venha submetida à epígrafe comum “Fun-
do Cultural”.
22
propriedade intelectual
imposto? De todo o modo, não se explica por que é atingida esta remunera-
ção, destinada a estes autores (e editores também), e não quaisquer outros
proveitos que aos titulares se destinem.
Com isto, já lá vão 35% das receitas, que são subtraídas aos seus des-
tinatários! Ultrapassam-se até os 30% que inicialmente haviam sido previstos
para os custos de funcionamento dos entes de gestão coletiva!
Enfim, o art. 13 prevê que a fiscalização caiba ao IGAC e que para isso
a entidade única pagará uma taxa correspondente a 10% dos custos de fun-
cionamento – portanto, da quantia até 20% das receitas previstas. Também é
anómalo que os custos da fiscalização no interesse público acabem por recair
sobre os próprios fiscalizados. E com isto lá se vai mais uma fatia da receita
que a lei justificara como compensação da cópia privada.

5. As autorizações globais de utilização dum repertório


Um ponto ainda mais delicado está na repartição dos proventos obti-
dos pelos titulares a quem a lei os destina. Para o esclarecer, seria necessário
apurar os critérios que presidem a essa repartição.
Mas aí, espera-nos uma surpresa: a lei, em geral, nada diz.
Procurando avançar, vamos distinguir os dois tipos fundamentais de
situações em causa.
Os direitos (ou faculdades) integrados no direito de autor podem ba-
sicamente ser:
• direitos exclusivos
• direitos de remuneração.
Abstraímos do direito pessoal (“moral”) e de outras faculdades pesso-
ais singulares que possam aparecer em certos direitos específicos.
Como os direitos intelectuais são em si exclusivos, as grandes faculda-
des correspondentes também são, como é natural, exclusivas. Nessa catego-
ria se integram os grandes direitos ou faculdades complexos de comunicação
ao público, reprodução, distribuição e transformação.
Mas também há ocorrência, como vimos, de direitos de remunera-
ção. Aí abre-se uma fresta no exclusivo, não podendo o titular impedir a uti-
lização por outrem, mas restando-lhe o direito de ser remunerado pela utili-
zação. Qualifica-se então a compensação ou remuneração como “equitativa”:
veja-se o art. 76/1 b CDADC.
23
Como se processa a autorização dos titulares, em ambos os casos,
quando os direitos são confiados à gestão coletiva?
Dissemos já que nos casos paradigmáticos a obra ou prestação, en-
tregue à entidade de gestão coletiva, é objeto de negócios de massa.
A obra perde a sua individualidade. Entra tudo no mesmo saco. É uma
mónada mais, dentro da categoria que é objeto de negócios de autorização
global. Abstrai-se completamente da índole de cada obra ou prestação ao se
concederem licenças globais de utilização de todo um repertório.
Os entes de gestão coletiva emitem tabelas ou tarifas, atendendo às
utilizações que se tiverem em vista e que são então precisamente caracteri-
zadas. Dependem de fatores externos e não da qualidade intrínseca de cada
obra ou prestação. Atende-se por exemplo ao tipo de estabelecimento, área,
função a desempenhar, época do ano, etc.
Vai-se ao ponto de se especificar igualmente a música ambiental, os
lares para idosos, os escritórios sem atendimento de público, a música que se
ouve durante as esperas telefónicas...8
José de Oliveira Ascensão

Mas nestas e noutras especificações, por vezes altamente contestá-


veis, não entra a ponderação da valia da obra ou prestação concreta. A licença
é dada tipicamente “a peso”, abrangendo todo o repertório ou fração dele.

6. A problemática da legitimidade


Isto cria, necessariamente, um problema grave de legitimidade. Como
podem as entidades de gestão coletiva dar licenças universais de utilização?
Isso suporia que representam todos os titulares do mundo.
Começamos pelos casos de gestão coletiva forçada: aqueles em que a
lei dispõe que certos direitos só podem ser exercidos por entidade de gestão
coletiva.
Vamos supor que há uma única entidade nesse setor, que essa enti-
dade está constituída e que não há dissídio sobre a respetiva legitimidade. A
entidade pode outorgar licenças globais.
Mas, mesmo então, há uma incongruência. As entidades de gestão
coletiva são territoriais, logo só podem autorizar para o território português.
Se pretendem dar licenças referentes a obras ou prestações que têm por país
de origem países estrangeiros, falta-lhes legitimidade para tanto.
Procura-se então ultrapassar a dificuldade mediante convênios de re-
presentação recíproca. Por acordo entre as entidades gestoras do tipo de direitos
8 Podemos dar como exemplo as tabelas da entidade de gestão coletiva de direitos dos artistas.
24
propriedade intelectual
em causa, uma entidade de país estrangeiro representa os titulares portugueses
daqueles direitos, enquanto a entidade portuguesa representa os desse país9.
Isto resolve alguns problemas, mas não resolve todos. Por um lado,
porque nem em todos os países do mundo há as entidades de gestão de to-
das as categorias; em certos casos não as há mesmo de categoria nenhuma.
A licença universal concedida não cobre pois toda a utilização que possa ser
realizada. A utilização que exceda esse limite constituiria possivelmente um
crime, à luz da ordem jurídica portuguesa.
Mas subsistem dificuldades, até quando há em Portugal uma repre-
sentação coletiva forçada (o que dá a segurança máxima possível mas que é
de ocorrência relativamente rara): basta que o mesmo não aconteça à luz da
ordem jurídica estrangeira. Uma vez que o grande princípio é, como não podia
deixar de ser, o de que cada entidade de gestão só representa os seus próprios
representados, temos mais uma vez uma ilegitimidade na autorização global
que for emitida. O usuário português estará em falta, porque não recebeu
afinal uma autorização universal. E como é também fatal (uma vez que racio-
nalmente não pode deixar de se concluir que é assim) pairam sobre ele todas
as consequências negativas da falta de título suficiente.
Passamos agora à situação meramente interna: a do utilizador que
recebe a “licença” de uma entidade nacional, e só se propõe utilizar música
ou em geral obras ou prestações que têm Portugal como país de origem: fado,
por exemplo. Mesmo então, se não houver gestão coletiva forçada, os proble-
mas de legitimidade persistem.
De facto, as entidades de gestão continuarão a não poder autorizar
universalmente aquele tipo de utilizações, porque a pertença a essas entida-
des é livre. Logo, o utilizador não fica universalmente garantido, mesmo nesta
hipótese. Poderá ser sempre atacado como infrator pelos titulares que se não
filiaram10.
9 Esses acordos podem ser de vários tipos. Podem as duas entidades:
a – guardar para si as receitas correspondentes às autorizações dadas em representação dos titulares
membros ou administrados pela outra entidade, o que pressupõe uma equivalência tendencial de valo-
res;
b – ou entregar as receitas correspondentes a titulares do país estrangeiro à entidade de gestão coletiva
estrangeira com quem contrataram.
É natural que neste caso se proceda à compensação de valores resultantes do exercício da representa-
ção recíproca.
10 De facto, as entidades de gestão coletiva não elaboram normalmente listas das obras ou prestações
dos associados que constam do seu repertório; e igualmente não as têm, ou não as têm atualizadas, das
dos titulares associados ou representados pelas entidades estrangeiras com quem celebraram acordos de
representação recíproca. A questão da legitimidade é real – tal como consequentemente o é o risco que
recai sobre o utilizador.
25
Concluímos assim que o sistema globalizante, fundado em licenças
referentes a toda uma categoria de obras, tem pés de barro. Salvo na hipótese
rara de ambos os contraentes beneficiarem de gestão coletiva forçada, não
garante representatividade que dê em todos os casos uma segurança comple-
ta ao usuário no gozo da licença obtida. Excluindo a hipótese de se fornecer
uma lista exaustiva de todas as obras ou prestações abrangidas pela represen-
tação, que não é na realidade praticável.

7. A repartição pelos titulares


As licenças globais criam também grandes problemas de repartição.
A repartição é uma fase extremamente delicada. Não há então, mes-
mo entre os titulares representados, solidariedade: há, sim, choque de inte-
resses. Para os afrontar, deve haver critérios que permitam a justificação com
transparência das posições adotadas pelo ente de gestão.
Mas, com surpresa, verificamos que a Lei n.º 62/98 é completamente
lacunosa neste ponto. Limita-se a remeter no art. 15/2  l para os estatutos
José de Oliveira Ascensão

de cada entidade, que deverão prever “os princípios e regras do sistema de


repartição e distribuição dos rendimentos”. Lava daí as suas mãos. Pelo que o
receio é grande de que se caia no domínio da arbitrariedade ou da subordina-
ção a certas maiorias.
Na realidade, como se pode saber quais as utilizações que efetivamen-
te foram feitas, se a autorização é global? É claro que não se pode seguir a
solução fácil de repartir igualmente por todos os titulares. Mas como também
se não fazem distinções pelo mérito intrínseco das obras ou prestações, fica o
campo aberto ao palpite – ou seja, à arbitrariedade. Se porventura se proce-
desse por amostragem já seria bem melhor, mas não cremos que seja habitual.
Acresce até que, quando a lei intervém nesta matéria, o resultado é
assustador. É o que acontece nos termos da Lei n.º 62/98, de 1 de setembro,
que regula a compensação por cópia privada. O art. 5 prevê incaracteristica-
mente a “Pessoa coletiva”: é a entidade única de cobrança e distribuição das
quantias destinadas a essa compensação. Esta é hoje em dia a AGECOP, que é
constituída por sua vez pelas entidades de gestão coletiva de direitos autorais
setoriais11. Ora bem, este art. 5/2 e determina que os estatutos da “pessoa
coletiva” deverão prever “critérios de repartição das remunerações entre os
Problema similar é o que respeita à legitimidade processual das entidades de gestão coletiva. Versámo-
-lo no nosso Direito Penal de Autor cit., n.os 25 e seguintes, e não o iremos retomar agora.
11 Incluindo dos editores, que todavia não são titulares de direitos autorais. É outra anomalia, que mostra
como o centro de gravidade do Direito Autoral se deslocou para a defesa dos direitos empresariais.
26
propriedade intelectual
membros dos associados, incluindo os modos de distribuição e pagamento
aos beneficiários que não estejam inscritos nos respetivos organismos mas
que se presume serem por estes representados”.
É espantoso. Não são sequer os estatutos das entidades represen-
tativas dos beneficiários que determinam os critérios de repartição: são os
estatutos da pessoa coletiva que as agremia, a AGECOP. A pessoa coletiva,
entidade de Direito Privado, vai comandar o modo de proceder das entidades
representativas dos setores compreendidos!
Não temos dúvida em afirmar a inconstitucionalidade de semelhante
previsão. A regulação geral desta matéria só poderia provir da lei. Colocar uma
entidade privada a “legislar” sobre os modos de proceder das entidades de
gestão que a compõem está fora de toda a legalidade institucional. A “pessoa
coletiva” é uma mera entidade de cobrança e distribuição dos dinheiros des-
tinados aos titulares12.
A lei atribui ainda à “pessoa coletiva” a gestão das quantias arrecada-
das, mas erradamente o faz. A pessoa coletiva é mera entidade de cobrança e
distribuição. Deve distribuir os proventos pelos seus associados e não retê-los.
Por isso, autonomizar ainda uma função de gestão dos dinheiros arrecadados
é muito perigoso, pois sugere que a pessoa coletiva tenha um domínio sobre
as receitas que só poderia funcionar em detrimento dos destinatários finais.
De facto, a lei não pode eximir-se de estabelecer os grandes funda-
mentos da repartição final. O que se espera que aconteça nos trâmites da
reforma da Lei n.º 62/98, atualmente em curso.
O problema está, como dissemos, na técnica a adotar, de maneira a
dar visos de credibilidade às repartições que se realizam. A questão é geral:
sempre que há uma autorização global é este o problema primeiro que se
defronta.
São porém inúmeros os desvios que vamos encontrar neste domínio.
Por vezes, as entidades não repartem, pura e simplesmente, os pro-
ventos recebidos ou certas classes destes. Assim, em Espanha, a AISGE, enti-
dade representativa dos artistas, recebe a compensação equitativa por cópia
privada, mas não a distribui pelos artistas: declara afetá-la a funções de tipo as-
sistencial em benefício dos artistas necessitados. A legitimidade de semelhante
tipo de destinação é altamente contestável, porque a lei prevê esta compensa-

12 Distinguimos distribuição e repartição, seguindo a terminologia tendencial da lei. A distribuição é rea-


lizada pela pessoa coletiva entre os seus associados, que são entidades de gestão coletiva; a repartição é
feita por estas últimas entre os beneficiários finais seus associados.
27
ção em benefício dos artistas, como pessoas individualizadas, e não em benefí-
cio de um coletivo abstrato. Os critérios de atribuição são por outro lado discri-
cionariamente fixados pelo AISGE, em termos de modo algum transparentes13.
Suponhamos agora os casos em que há repartição pelos titulares a
quem esta compensação se destina. O critério-base deveria ser o da utilização
efetiva da obra ou prestação. As técnicas modernas permitem até encarar
com otimismo a questão, através sobretudo do DRM, Digital Rights Manage-
ment. Independentemente de alguma ambiguidade na expressão (que não é
este o lugar para procurar esclarecer), temos que os meios digitais permitem
hoje, com uma certa segurança, progredir muito neste domínio. Permitem
nomeadamente apurar em muitos casos as utilizações efetivamente feitas: e
não só as utilizações através da internete, mas também utilizações radiodifun-
didas e outras. O palpite pode ser sucessivamente arredado em benefício de
métodos de segurança acrescida.
Com isto, o autor (ou o titular em geral) ganha um novo protagonis-
mo. Deixa de estar inerme perante a entidade de gestão, submetido passiva-
José de Oliveira Ascensão

mente aos entendimentos desta. Passa a poder controlar e participar ativa-


mente na repartição.
Os grandes titulares, como os grupos musicais de expansão mundial,
podem até ir mais longe: desligar-se das entidades de gestão coletiva para
passar a administrar diretamente os seus próprios direitos. Tal supõe eviden-
temente um investimento empresarial próprio, mas a digitalização é a arma
que permite afastar métodos clássicos onerosos e uma sujeição indesejada,
para estabelecer um sistema muito mais simples e transparente de gestão.
Passa a ser mera decisão financeira de cada titular recorrer à gestão coletiva
ou à gestão individual. Isto consolida o novo protagonismo do autor ou do
titular em geral.

8. Suavização da subordinação dos titulares


A situação do autor – ou mais amplamente, de todo o titular de direi-
tos autorais – quer esteja legalmente subordinado a entidade de gestão cole-
tiva, quer quando a elas voluntariamente adere, para gestão coletiva forçosa
ou não – é como se viu precária. Mas ocorre observar que esta precariedade
tem também os seus limites. Não a eliminam, mas suavizam-na.
13 Com a reforma da lei espanhola sobre cópia privada e a transferência para o Estado do encargo da atri-
buição da compensação, o volume desta compensação baixou radicalmente. A AISGE lamenta que, em vez
dos 110 milhões que eram recebidos anteriormente, tenha passado a receber apenas 5 milhões: veja-se
Celia Teijido, España da un paso atrás en la defensa de sus creadores, em ACTUA (Revista da AISGE), 80, jul/
set 12, 81.
28
propriedade intelectual
I – Os direitos não patrimoniais
São os autores quem tem direitos não patrimoniais bem qualificados14.
O primeiro, e mais importante e decisivo, é o representado pelos di-
reitos não patrimoniais (os impropriamente chamados direitos morais). Estes
vêm previstos nos arts. 56 a 62 CDADC, sob o galicismo “Direitos morais”. No
art. 56/2 dispõe-se, em relação às faculdades aí previstas, que são inaliená-
veis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Há uma evidente personalização do exer-
cício que impede que os direitos não patrimoniais possam ser dados à gestão
coletiva. Qualquer eventual intervenção das entidades de gestão coletiva nes-
te domínio só se poderia imaginar dentro dos limites muito apertados em que
é possível imaginar uma intervenção de terceiros em relação a faculdades que
têm uma estreita ligação com bens ligados à personalidade de outrem.
II – Limitação do conteúdo do contrato de gestão
O art. 12 da Lei n.º 83/01, de 3.VIII, que como dissemos regula a ges-
tão coletiva, restringe de vários modos o conteúdo do contrato de gestão.
O contrato de gestão:
 1. Não pode ser estabelecido para mais de 5 anos, embora se renove
automaticamente se as partes não lhe puserem fim
 2. Não pode impor a entrega à exploração coletiva de todas as obras
ou prestações protegidas do aderente
 3. Não pode prever que seja atribuída ao ente de gestão a produção
que o aderente realize de futuro.
Amacia-se, como se vê, a sujeição do titular. Há porém que observar
que o remédio é parcial e insuficiente. Se há gestão coletiva forçada, o autor
não pode discutir que obras entrega ou não à gestão coletiva: ou não as ex-
plora, ou se as pretende explorar ficam automaticamente abrangidas. E, se
há gestão coletiva forçosa, o autor acaba mesmo por entregar as suas obras
à exploração, mesmo que maldizendo interiormente o contrato que assina.
III – Os entes de gestão têm também obrigações
Não são muitas e a lei deixa inúmeros pontos por regular, mas é bom
que estejam contempladas algumas. Particularmente importante é o art. 11

14 Fala-se também por vezes em direitos não patrimoniais dos titulares de direitos conexos: estariam em
causa particularmente os artistas intérpretes ou executantes, que são pessoas físicas e podem assim invo-
car direitos ligados à personalidade. Mas independentemente da análise aprofundada do estatuto destes,
que não caberia neste trabalho, pensamos que o artista tem efetivamente faculdades não patrimoniais;
mas a estas não corresponde um direito não patrimonial, com a solidez que esta atribuição pressupõe. Por
isso a lei, pensamos que com razão, não distingue na titularidade dos artistas um direito pessoal.
29
da Lei n.º 83/01, que estabelece o “Dever de gestão”. Foi difícil fazê-lo incluir
na lei portuguesa, não obstante previsto em documentos internacionais15,
mas é fundamental.
Com efeito, se assim não acontecesse, os entes de gestão poderiam
excluir as pessoas non gratae, reduzindo-as a uma espécie de condição de
párias no seu universo. A expulsão dos recalcitrantes pairaria como ameaça
sempre presente, para reduzir ao silêncio os mais ousados.
De todo o modo, o desequilíbrio em benefício dos entes de gestão é
acentuadíssimo. Dissemos que o titular de direitos está reduzido a uma espé-
cie de posição de cliente do ente de gestão. Mas este cliente nem sequer tem
em seu favor a tutela do consumidor, que tem o cliente comum.
IV – A diminuição relativa dos poderes do representante em rela-
ção aos dos titulares
O último elemento de suavização da subordinação do titular está na
circunstância de a entidade de gestão coletiva não ter sobre a obra ou presta-
ção poderes idênticos aos que tem o titular. E isto mesmo deixando de parte
José de Oliveira Ascensão

o que dissemos já em relação a poderes não patrimoniais.


O titular tem em relação à obra ou prestação, em princípio, todos os
poderes. Pode por isso explorá-la ou não, abandoná-la, proibir o aproveita-
mento gratuito por terceiros...16
A entidade de gestão coletiva não. Tem apenas poderes funcionais.
Deve exercer a exploração da obra no interesse do titular. Não pode prescin-
dir dessa exploração, nem exercê-la para finalidade diversa daquela.
Em consequência, o titular pode admitir a utilização gratuita da obra
ou prestação por terceiros – por exemplo, para fins beneficentes ou por uma
causa a que particularmente se devote.
A entidade de gestão coletiva não. A utilização gratuita não se presu-
me ser do interesse do titular. Como ela está vinculada a servir este interesse,
deve recusar sistematicamente autorizações dessa índole.
Acontecendo então que, caso o titular fique contratual ou legalmente
excluído de interferir na utilização da obra, nem o titular nem o ente de gestão
poderão só por si autorizar utilizações gratuitas, ainda que seja manifesto o
interesse para a comunidade dessas utilizações.

15 Dada a oposição das entidades de gestão coletiva nacionais.


16 Salvo casos excecionais de deveres de exercício.
30
propriedade intelectual
9. A intervenção pública
É óbvio que há interesses coletivos ou públicos ligados aos direitos
intelectuais e ao exercício destes. Tais interesses coletivos justificam a inter-
venção de órgãos públicos na matéria e, consequentemente, a supervisão dos
organismos de gestão coletiva. Aí concorre até uma razão suplementar, por-
que além do interesse geral há a necessidade de tutela dos interesses dos titu-
lares representados por estes entes de gestão coletiva. Por isso, os países do
nosso sistema jurídico criaram organismos públicos a que atribuíram a super-
visão da matéria. Estes organismos estão normalmente incumbidos também
de coordenar a política nacional e internacional do país no domínio do direito
de autor e direitos conexos.
A conformação e as atribuições variam porém grandemente. E isto
resulta desde logo de as próprias entidades de gestão coletiva manifestarem
sentimentos contraditórios em relação à supervisão. Por um lado querem que
ela exista para centralizar a fiscalização e repressão das atividades lesivas dos
direitos autorais, aliviando-as dos esforços e custos de tais tarefas; mas por
outro lado não querem que as suas próprias atividades sejam controladas.
Neste último sentido foi paradigmática a posição tomada pelo Brasil com a
aprovação da Lei n.º 9610, de 19.II.98, que é a lei ainda vigente em matéria
de direitos autorais: o Conselho Nacional de Direito Autoral, órgão de super-
visão, foi pura e simplesmente suprimido, sem que nenhum outro órgão o
substituísse nas suas funções! Com isto o Brasil não só ficou sem entidade de
supervisão, como ainda na situação rara de não ter um órgão centralizador da
política pública no domínio autoral, o que tem inconvenientes manifestos que
só agora se tenta, penosamente, superar17.
Na situação legislativa normal, os entes de gestão coletiva estão sujei-
tos à supervisão por parte dos órgãos públicos. Esta supervisão destinar-se-ia
a afastar as irregularidades e a assegurar que as finalidades da lei fossem efe-
tivamente alcançadas.
Mas, como em toda a supervisão, o resultado final depende da efetivi-
dade como esta se exerça. Particularmente quando recai sobre entidades eco-
nómica e financeiramente poderosas como as entidades de gestão coletiva.
No limite, há sempre a ameaça da captura do regulador: a entidade
de supervisão pode ser capturada, de maneira a tornar-se um instrumento
dos interesses dos entes de gestão junto do governo, em vez de um promotor
do interesse geral – que inclui a proteção dos titulares representados.
17 A Proposta de lei em debate desde 2009 prevê a criação dum órgão com essas funções, mas a aprovação
tem sido sucessivamente postergada.
31
A falta ou inoperância do regulador é uma situação política e econo-
micamente inadmissível.
Como dissemos, os direitos autorais consubstanciam-se normalmen-
te em exclusivos. Os exclusivos, atuados na vida de negócios, constituem
monopólios. O facto de as entidades de gestão coletiva gerirem monopólios
bastaria já para tornar indispensável uma supervisão, para assegurar que as
regras mínimas da concorrência sejam respeitadas. Mas isto é ainda agravado
pela circunstância de em cada país as entidades de gestão coletiva serem elas
próprias únicas no seu domínio. Têm um monopólio de direito, se a lei impõe
que haja apenas uma entidade do seu tipo – é o caso da AGECOP em Portugal
ou do ECAD no Brasil; ou têm um monopólio de facto, quando as vicissitudes
históricas levaram a que num setor só uma entidade de gestão coletiva se
criasse ou só uma entidade subsistisse. Em qualquer caso, mas mais aguda-
mente quando elas próprias são monopolistas, têm de estar sujeitas às regras
da concorrência18.
Por isso, Schack pergunta se haverá um direito subjetivo público dos
José de Oliveira Ascensão

beneficiários a essa supervisão. Alinha com a posição dominantemente segui-


da, que é a afirmativa19. E isto permite ao público contestar tarifas despropor-
cionadas por parte dessas entidades monopolísticas.
E tem ainda outra consequência: é a que respeita à atuação dos tribunais.
Sabemos que os limites da intervenção dos tribunais no conteúdo dos
contratos são apertados. Mas aqui verifica-se uma situação particular, con-
sistente no caráter monopolista das entidades em presença. Há então uma
necessidade acrescida de regulação das atividades no mercado. Os tribunais
estão também legitimados para o fazer, para a resolução de litígios sobre re-
gras da concorrência.
Particularmente, dada a posição dominante que essas entidades de-
têm, é forte a tentação do abuso. Haverá que valorar o exercício à luz das
regras da concorrência.
Recentemente, as instâncias de supervisão têm tomado em vários pa-
íses uma posição ativa no controlo dos abusos de posição dominante e outros
desvios das entidades de gestão coletiva. É o caso da “Comisión Nacional de la
Competencia” em Espanha20. Efetivamente, a grandes entidades de gestão co-
18 Se uma entidade única detém direitos musicais para efeitos de radiodifusão, por exemplo, essa entidade
poderia impor as tarifas que quisesse, nas condições que determinasse, sem qualquer correlação com o
valor relativo dos bens intelectuais em presença.
19 Haimo Schack, Urheber- und Urhebervertragsrecht, 2.ª ed., Mohr Siebeck, 2001, n.º 1191.
20 Esta autoridade publicou em 2009, sob a designação de Un nuevo impulso, um “Informe sobre la gestión
32
propriedade intelectual
letiva, como a SGAE (autores) e a AISGE (artistas), têm sido aplicadas pesadas
multas por parte das autoridades reguladoras da concorrência.
Não é este porém o único fator relevante. As variações de país para
país são grandes, mas a matéria não escapa hoje (podemos afirmá-lo nestes
termos amplos) ao crivo do controlo judiciário.
As entidades de gestão, na normalidade dos casos, estabelecem as
suas tarifas, que não são sujeitas a discussão.
Estas tarifas, tecnicamente, representam cláusulas negociais gerais21.
Conduzem portanto àquilo a que se chamava e as leis ainda chamam o con-
trato de adesão.
Os utilizadores potenciais dos bens em questão, perante os entes
de gestão, são consumidores. Têm por isso um direito especial de proteção
perante as cláusulas negociais gerais. Tudo isto é controlável judicialmente,
se não for resolvido no nível da supervisão administrativa. Não é necessário
sequer haver uma previsão na lei da figura técnica da lesão: a proteção legal
da parte mais fraca, perante o abuso da entidade monopolista, dá hoje meios
de defesa muito efetivos. Em última análise, o recurso aos tribunais garante a
efetividade destes.

10. A integração econômica europeia e os exclusivos inte-


lectuais
Vimos que os direitos intelectuais constituem nuclearmente em ex-
clusivos; e que esses exclusivos são passíveis de estar confiados a entidades de
gestão coletiva que, paradigmaticamente, constituem elas próprias monopó-
lios. Mas ainda há outro exclusivo, de caráter universal, que não pode deixar
de ser referido – até pelos problemas que cria na União Europeia. Este último
é o exclusivo que resulta da territorialidade dos direitos intelectuais.
Não obstante todos os movimentos de harmonização / uniformização
dos direitos intelectuais, estes continuam a ter como ponto de partida a terri-
torialidade. Cada país é competente para regular estes direitos no seu próprio
território: não se admite que entidades exteriores pretendam estender a sua
disciplina a estas matérias. Por isso se harmoniza e se estabelecem mínimos
internacionais, mas não se arreda a competência interna de cada Estado. Por
mais densas que sejam (e são realmente) as vinculações internacionais.

colectiva de derechos de propiedad intelectual”, que é arrasador na descrição dos desvios das entidades de
gestão coletiva.
21 Ou “contratuais gerais”, como habitualmente são qualificadas, para retratar a situação mais frequente.
33
Isto arrasta consequentemente a territorialidade das entidades de
gestão coletiva. Elas emergem de determinado país e consequentemente têm
por limite as fronteiras desse país. Não podem pretender licenciar obras ou
prestações com eficácia em países estrangeiros22. Por isso dissemos já que
quando se querem estabelecer esquemas com eficácia extra-fronteiras as en-
tidades de gestão coletiva procedem por acordos de representação recíproca.
O princípio da territorialidade do direito autoral fica assim salvaguardado.
Mas como é possível compatibilizar estes princípios com o movimen-
to de integração económica europeia?
A reação da União Europeia aos exclusivos intelectuais atravessou
três fases: hostilidade, aceitação, promoção.
No início, o exclusivo, como obstáculo à livre circulação de bens ou
serviços, foi visto como um inimigo. Considerou-se que estava fora das com-
petências da Comunidade e procurou-se de várias maneiras limitar os efeitos
negativos sobre a integração económica.
Vencida esta primeira fase, de demolição das barreiras à integração,
José de Oliveira Ascensão

a atitude dos órgãos centrais da Comunidade muda. Aceita-se a existência


destes exclusivos e consequentes monopólios sob a cobertura do direito de
propriedade, que os tratados comunitários garantiam, e procura-se harmoni-
zá-los dentro do conjunto das previsões comunitárias.
A terceira fase, que é a atual, corresponde à maturidade da integração
comunitária e ao movimento de irradiação das potências dominantes sobre os
outros países. Os monopólios intelectuais são sucessivamente empolados por
vários instrumentos rotulados de harmonização, que reforçam a subordinação
económica dos membros menos desenvolvidos; estes ficam vinculados, em-
bora não estejam em condições de tirar deles proveito. A atual União passa
assim a ser promotora ativa da exacerbação dos monopólios intelectuais, a
nível interno e a nível internacional.
Por outro lado, na política europeia do digital há uma limitação pouco
compreensível.
O ciberespaço não conhece fronteiras. Todos comunicamos ou po-
demos comunicar com todos pela Net. Pelo que a regulação em matéria da
internete deve ser, por natureza, uma regulação universal.
Mas a União Europeia, regulando a matéria antes de mais pelo prisma
interno, da lógica do mercado interno e sua integração, omite frequentemen-
22 Tal como, reciprocamente, não se admite que entidades estrangeiras pretendam licenciar obras ou
prestações nesse território.
34
propriedade intelectual
te o que ocorre além das fronteiras da própria União. Não é o que fazem ou-
tras entidades, a começar pelos Estados Unidos da América. Porém, a União
Europeia invoca a comitas gentium, a velha “cortesia internacional”, para se
quedar aquém desse limite. Deixando a dúvida se não se tratará antes da po-
lítica, habitualmente praticada, de deixar o campo livre aos Estados Unidos da
América. Assim, há uma lacuna persistente na disciplina das repercussões dos
direitos intelectuais além do espaço europeu.
De facto, esta matéria foi discutida, justamente no domínio da ges-
tão coletiva. Assim, Ferdinand Melichar, em livro sobre gestão coletiva23, põe
a questão da necessidade duma “licença global”. Opõe-se a Hoeren, que se
posicionara, em estudo para a Comissão Europeia, no sentido da formação de
uma “Sociedade de Gestão Coletiva Internacional”. Considera que o confronto
das entidades nacionais de gestão coletiva será suficiente para defrontar esta
dificuldade. É pois um ponto em aberto.
A União Europeia evitou-o, limitando-se quase à regulação, sempre
fragmentária, do mercado único.

11. Territorialidade da gestão coletiva e construção do


mercado único europeu
Mas o empolamento dos direitos intelectuais e a territorialidade des-
tes suscitam problemas de compatibilidade com o movimento crescente de
integração económica europeia.
A questão põe-se em particular justamente no domínio da territo-
rialidade dos organismos de gestão coletiva. Como se compreenderia que no
mercado interno cada país guardasse o exclusivo da gestão coletiva no seu
próprio território? Não seria muito mais adequado abrir igualmente esta ma-
téria à concorrência? Permitindo que as entidades de gestão coletiva, que são
também empresas, entrassem em concorrência no espaço comunitário?
Esboçou-se então, a nível da Comissão Europeia, o que parecia ser
uma quarta fase: a da correção dos excessos monopolísticos no âmbito dos
direitos intelectuais, abrindo a uma visão mais solidária e concorrencial, e si-
multaneamente sensível ao interesse público. Foram produzidos vários docu-
mentos de grande interesse, no primeiro mandato de Durão Barroso como
Presidente da Comissão, que suscitaram esperanças.
A preocupação que desencadeou esta mudança de atitude foi a da
gestão coletiva transfronteiriça da música em rede, na sequência aliás de es-
23 Urheberrecht in Theorie und Praxis, Mohr Siebeck, 1999, 157.
35
forços e sugestões no sentido da criação dum guichet único e da preocupação
demonstrada perante a inexistência de licenças pan-europeias. Assim, a 18 de
maio de 2005 é emitida uma Recomendação da Comissão (2005/737/CE) “re-
lativa à gestão transfronteiriça coletiva do direito de autor e dos direitos co-
nexos no domínio dos serviços musicais em linha legais”. No mesmo ano, em
11 de outubro, é publicado um documento de trabalho da Comissão, sobre o
impacto da reforma24. Lueder, ao tempo diretor dos serviços, desdobrou-se
em declarações sobre essa política25.
Mas tudo foi estéril, afinal. Por mais ousadas que fossem as procla-
mações, as realizações foram sempre no sentido oposto. É nomeadamente
nessa altura que surge a ampliação da duração dos direitos dos artistas e dos
produtores de fonogramas para uns absurdos 70 anos!26
No segundo mandato de Durão Barroso dá-se uma nova investida,
na sequência da Agenda Digital27. A gestão coletiva volta a ser aí diretamente
considerada (n.º 2.11.): “O regime e a transparência da gestão coletiva devem
ser melhorados e adaptados ao progresso tecnológico”. Refere-se o “licen-
ciamento transfronteiras e pan‑europeu do audiovisual”. Mas acrescenta-se
José de Oliveira Ascensão

que as licenças poderão continuar a ser restringidas a um território apenas. A


posição é sustentada agora a um nível mais alto, que é o dos comissários: é a
comissária Kroes quem coloca abertamente as questões.
Mas o tempo passou e criou a dúvida: a História não se estará repe-
tindo? Os discursos são muito bons mas afinal as realizações desmentem-nos.
Vemos nomeadamente a Comissão da União Europeia participar ativamente,
com vários países tutelados pelos Estados Unidos da América, na negociação,
nada transparente, do Tratado ACTA 28; enquanto que, no sentido propugnado
pela Comissão, não resultava afinal nada.
Entretanto, é pronunciado um importante Acórdão do Tribunal de
Justiça da União Europeia, no caso Premier League.

24 SEC (2005) 1254. A 1.ª versão é de 7 de julho de 2005.


25 Veja-se sobre esta época o nosso O Direito de Autor e a Internete. Em particular as recentes orientações
da Comunidade Europeia, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VII, APDI/Coimbra Editora, 2008, 9-26.
26 Por evidente indução dos Estados Unidos da América.
27 COM (2010) 245 final. Já antes, em 3.I.08, a Comissão emitira outra comunicação, com o título Conteú-
dos criativos em linha no mercado único (COM (2007) 836 final, 03.01.2008), em que uma das ideias-base
era a criação de licenças multiterritoriais para conteúdos criativos. A Agenda Digital retoma estes objetivos,
apelando para o licenciamento transfronteiras e pan-europeu: observando que não existe na Europa um
mercado unificado no setor dos conteúdos (n.º 2.11.).
28 Que acabou rejeitado pelo Parlamento Europeu.

36
propriedade intelectual
Um pub britânico pagava, como todos os outros, 700 libras por mês
pela transmissão de jogos de futebol em que interviessem equipas inglesas. Re-
solve passar a comprá-los à Grécia, pagando apenas 800 libras por todo o ano.
A questão foi levada a tribunal e discutida com base na livre circula-
ção de serviços. Mas parece que não podia deixar de estar também em causa,
ao menos implicitamente, a territorialidade da gestão coletiva.
O Tribunal de Justiça (U.E.) acabou por dar razão à dona do pub29.
Fá-lo com uma certa ambiguidade, como aliás é frequente. Se bem interpre-
tamos, o Direito Autoral continuaria a ser territorial, mas os entes de gestão
poderiam oferecer os seus serviços onde quisessem. A ser assim, perderiam
a tranquilidade do exclusivo de gestão mas ganhariam um espaço muito mais
amplo de exercício, em termos de livre concorrência.
O Ac. procura não obstante moderar as consequências a que chega-
ra, invocando por outro lado que, embora o espetáculo não fosse objeto de
Direito Autoral, poderia haver nele elementos protegidos: seria o caso dos
logotipos visíveis ou dos hinos que fossem tocados. É um desvio fútil e pouco
convincente. A visão ou a audição destes elementos não é uma utilização ile-
gítima. No CDADC português estaria abrangida no art. 75/2 d (a comunicação
pública de fragmentos de obras, “quando a sua inclusão em relatos de aconte-
cimentos de atualidade for justificada pelo fim de informação prosseguido”) e
pela al. r (“a inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido nou-
tro material”). Destes retira-se seguramente que há um princípio que permite
excluir da proteção as obras que episodicamente possam ser vistas ou ouvidas
no curso de uma emissão radiodifundida. E afinal, é esse o princípio que cons-
ta, até com maior generalidade, do art. 10-bis/2 da Convenção de Berna30.
Este princípio foi expressamente acolhido pelo ADPIC/TRIPS, ao inte-
grar as regras substantivas da Convenção de Berna (com excepção dos direitos
não patrimoniais, art. 6 bis). E em nada contraria o teste dos três passos ou
mesmo princípios como o do fair use. A reserva do Tribunal terá servido ape-
nas o objetivo tático de prevenir que a decisão fosse criticada pelo facto de
dar razão total apenas a uma das partes.
29 Ac. de 4 de outubro de 2011, em que se determina que uma licença para retransmissão de jogos de
futebol, que interditasse a autorização para a utilização noutros Estados-membros, violaria o Direito Comu-
nitário.
30 Eis o texto: “Fica igualmente reservada às legislações dos países da União a regulamentação das con-
dições nas quais, por ocasião dos relatos de acontecimentos da actualidade por meio da fotografia ou da
cinematografia, ou por meio da radiodifusão ou de transmissão por fio ao público, as obras literárias ou
artísticas vistas ou ouvidas no decurso do acontecimento podem, na medida em que o objectivo de infor-
mação a atingir o justificar, ser reproduzidas e tornadas acessíveis ao público”.

37
12. A Proposta de Diretriz da Comissão Europeia sobre a
gestão coletiva
Era esta a situação quando foi publicada uma Proposta da Comissão
Europeia de uma Diretriz sobre a gestão coletiva: COM (2012) 372 final, de
11.VII.2012, sobre a gestão coletiva do direito de autor e direitos conexos e o
licenciamento multiterritorial de direitos sobre obras musicais para utilização
em linha no mercado interno31.
Não é, infelizmente, a altura adequada para examinar este documen-
to, que é muito importante e exige um estudo aprofundado. Limitamo-nos a
breves primeiras notas.
A Proposta culmina anos de trabalho da Comissão, preparando uma
intervenção neste domínio. Os esforços no sentido de autorregulação pelos
interessados não deram resultado, pelo que se envereda agora – finalmente –
pela proposta duma harmonização comunitária.
Essa diretriz versaria na realidade dois capítulos diferentes, sinteti-
camente referidos como os do quadro geral e do passaporte europeu da
José de Oliveira Ascensão

gestão coletiva.
Por um lado, disciplinaria a própria estrutura e atividade das entida-
des de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos dos Esta-
dos-membros. A situação atual é preocupante, dada a ausência de padrões e
limites satisfatórios. A proposta Diretriz harmonizaria aspetos como a transpa-
rência, os critérios de repartição, os acordos com outras entidades de gestão
coletiva, a não discriminação...
Por outro lado, a Diretriz interviria na distribuição de música on-line
na União Europeia, coroando muitos estudos e propostas anteriores. Procu-
ra-se assegurar condições técnicas, nomeadamente digitais, que suportem a
abertura desta frente. Fazem-se também exigências suplementares em nume-
rosos setores implicados: as obras, os autores e outros titulares, os critérios
de ponderação, a informação pública e atual, até a contabilidade dos entes de
gestão coletiva... É pois uma proposta de reforma integrada e vasta, que abre
um campo muito propício ao debate. Mantém-se a anomalia que anotamos já,
de uma distribuição em linha, logo sem fronteiras, ser regulada apenas para o
mercado único europeu.
Que futuro se poderá prognosticar para esta iniciativa? Era fácil au-
gurar que provocaria controvérsias acesas, tão fortes, crispados e múltiplos
31 Na mesma data foi publicado um documento de trabalho da Comissão, SWD (2012) 240 final, sobre o
impacto da Proposta. A própria Proposta conheceu já várias versões, embora mantenha a mesma numera-
ção. Isto exprime bem a intensidade do debate.
38
propriedade intelectual
são os interesses que se debatem32. E assim aconteceu de fato. À hora em que
encerramos a Proposta está em debate no Parlamento Europeu, não se vendo
que se consigam consensos ampliados33.
Mais surpreendentemente ainda, surge a notícia da preparação de
uma Proposta de decreto-lei do Governo português sobre a gestão coletiva,
destinada provavelmente a ficar desatualizada a curto prazo com a iminência
da aprovação da diretriz comunitária.
Mas terá êxito no final, mesmo que com maiores ou menores feridas
na coerência do articulado? É natural que sim, tanto foi o trabalho de prepa-
ração, tão prementes as necessidades sentidas e tão clara a lógica integracio-
nista da Proposta. Até porque o texto, não obstante a sua extensão, deixa logo
pontos importantes por regular. Mas mesmo que se limite a uma primeira
intervenção, já teria um sentido muito positivo.
Que perspectivas se abrem, no plano da territorialidade da gestão
coletiva?
Tudo o que se disser é muito arriscado, pois só agora surgirão reações
mais ponderadas. Imaginemos porém que se abria a livre concorrência no es-
paço europeu, no domínio da gestão coletiva. Muito provavelmente, tal como
nos outros domínios, as entidades mais fortes, como a SACEM ou a GEMA,
teriam condições de esmagar as outras. Para esse efeito poderiam criar fede-
rações pan-europeias (ou mesmo internacionais, se tivessem abertura para
tanto) que reforçariam o seu poder.
Por outro lado, porém, é também de supor que teriam de renunciar a
grandes vantagens, como as tarifas muito elevadas que o monopólio assegura
ou os custos exagerados de funcionamento. Doutra maneira arriscavam-se a
defrontar pequenas entidades nacionais mais combativas, que oferecessem
melhores condições aos aderentes.
Mas também aqui a História se pode repetir e cair-se num novo mo-
nopólio de facto, por via da eliminação progressiva de concorrentes ou de fu-
sões das atuais entidades nacionais. Neste caso, mais uma vez, a concorrência
mataria a concorrência.
Este receio, de o resultado de uma intervenção se traduzir numa he-
gemonia das entidades de gestão mais poderosas, parece confirmar-se. As
32 Pense-se por exemplo no que poderá implicar o art. 17/3 proposto: “As tarifas devem refletir o valor
econômico dos direitos no tráfego e do serviço prestado pela entidade de gestão coletiva, não discrimina-
rão entre os utilizadores sem justificação objetiva e serão determinadas com base em critérios objetivos”.
33 Simultaneamente estão em debate outros aspectos da harmonização do Direito Autoral mais ou menos
relacionados, como a chamada portabilité transfronteiras dos serviços de acesso aos conteúdos e a com-
pensação equitativa por cópia privada.
39
muitas exigências que são estabelecidas para que as entidades possam proce-
der ao licenciamento multiterritorial trazem seguramente esta consequência.
Às de menor porte restará a consolação de serem dispensadas de algumas
exigências gerais na sua atividade corrente, mas ficam limitadas ao mercado
interno do seu país de origem.
Tudo isto pode ter repercussões profundas sobre o próprio Direito
Autoral – a começar no âmbito europeu. Mas semelhante prospeção extrava-
sa já claramente o objeto deste estudo.
Vamos acompanhar o debate. Mas devemos também participar, por-
que os grandes movimentos resultam igualmente de pequenos contributos.
José de Oliveira Ascensão

40
propriedade intelectual
DERECHOS FUNDAMENTALES Y OBSERVANCIA DE LOS
DERECHOS DE AUTOR EN LA UNIÓN EUROPEA 34

Pedro Alberto de Miguel Asensio35

1. Planteamiento
Cuál debe ser el alcance de los derechos de autor y derechos conexos
y cómo han de configurarse los mecanismos que permiten a sus titulares exigir
su observancia a terceros resultan cuestiones esenciales en el debate actual
acerca del desarrollo de la llamada sociedad de la información. Los derechos
de autor son derechos subjetivos de carácter privado y alcance territorial que
el ordenamiento atribuye ex lege y al margen de cualquier formalidad y que
en Europa han sido objeto en las últimas décadas de un elaborado conjunto
de normas jurídico-privadas de armonización contenidas en directivas. Pese
a las características reseñadas de estos derechos, uno de los aspectos clave
en su evolución actual y que está llamado a marcar el futuro de la propiedad
intelectual – entendida aquí como referida a los derechos de autor y derechos
conexos – es la constatación de la importancia del equilibrio entre derechos
fundamentales o más exactamente entre la propiedad intelectual y otros de-
rechos fundamentales como elemento determinante del alcance y los límites
de los derechos de autor así como de las medidas que para su observancia
pueden ser adoptadas.
El debate acerca de la interacción entre la propiedad industrial e inte-
lectual y otros derechos fundamentales, como los vinculados a la libertad de in-
formación, la libertad de expresión, la intimidad, la educación o la salud, ha sido
ya intenso desde hace lustros36. Ese debate reviste gran importancia en el marco
de la reflexión acerca del riesgo de sobreprotección de la propiedad intelectual
y el alcance de los límites a los derechos de los titulares, que se encuentran bási-
camente destinados a satisfacer ciertos intereses sociales, como los vinculados
al acceso a la cultura, la investigación y la información, así como a asegurar el
equilibrio entre los intereses de los autores, titulares de derechos, competido-
res, proveedores de contenidos, usuarios y el conjunto de la sociedad.
34 Esta contribución se ha realizado en el marco del proyecto de investigación DER 2012-34086.
35 Catedrático de Direito Internacional Privado da Universidad Complutense de Madrid.
36 Vid. P.L.C. Torremans (ed.), Intellectual Property and Human Rights, Alphen aan den Rijn, Kluwer, 2008;
W. Grosheide (ed.), Intellectual Property and Human Rights: A Paradox Cheltenham, Edward Elgar, 2010;
y L.R. Helfer y G.W. Austin, Human Rights and Intellectual Property (Mapping the Global Interface), Cam-
bridge, Cambridge UP, 2011.
41
Ahora bien, la rápida transformación de los mecanismos de tutela de
la propiedad intelectual con el propósito de hacer frente a ciertos desafíos
derivados de algunas aplicaciones y usos de Internet plantea nuevos y muy in-
tensos conflictos entre los derechos de propiedad intelectual y otros derechos
fundamentales, tanto de los usuarios de Internet como de prestadores de ser-
vicios de la sociedad de la información. La presente contribución se centra
precisamente en el significado en el seno de la Unión Europea de los derechos
fundamentales como límite a la configuración y alcance de las medidas para la
observancia de la propiedad intelectual en el entorno digital.

2. Propiedad intelectual y derechos fundamentales: marco


básico en la UE
El Tratado de Lisboa37, en vigor desde el 1 de diciembre de 2009, in-
trodujo ciertas modificaciones de singular importancia en el ámbito de la pro-
piedad industrial e intelectual. Entre las disposiciones relativas a la aproxima-
ción de las legislaciones, el Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea
(TFUE) contempla ahora en su artículo 118 la competencia de la Unión para
Pedro Alberto de Miguel Asensio

establecer títulos europeos que garanticen una protección uniforme de los


derechos de propiedad intelectual e industrial en la Unión así como regíme-
nes de autorización, coordinación y control centralizados a escala de la Unión.
No obstante, en el ámbito de la propiedad intelectual –a diferencia de lo que
sucede en diversos sectores de la propiedad industrial- no se ha asistido ni
antes ni después del Tratado de Lisboa a la creación de derechos unitarios
mediante reglamentos,38 de modo que en este ámbito –en el que la existencia
de los derechos no está sometida a su previo registro- existen en el seno de
la UE únicamente derechos de exclusiva de carácter nacional, objeto a escala
37 Tratado de Lisboa por el que se modifican el Tratado de la Unión Europea y el Tratado constitutivo de la
Comunidad Europea, firmado en Lisboa el 13 de diciembre de 2007 (DO 2007 C 306, p. 1).
38 En ciertos sectores de la propiedad industrial como las marcas o los diseños esos logros se alcanzaron ya
antes del Tratado de Lisboa con base en la posibilidad prevista en los Tratados constitutivos de adoptar las
disposiciones adecuadas cuando se considere necesaria una acción de la Comunidad/Unión en el ámbito de
las políticas definidas en los Tratados para alcanzar uno de los objetivos fijados por éstos, cuando no se hu-
bieran previsto en ellos los poderes de actuación necesarios a tal efecto, posibilidad recogida previamente
en el artículo 308 TCE (antes 235) y ahora en el artículo 352 TFUE aunque éste no resulte ya determinante
en este ámbito como consecuencia de la inclusión como novedad del mencionado artículo 118 TFUE. De
cara al futuro la creación de derechos unitarios en el ámbito de los derechos de autor y derechos conexos
se contempla también como una posibilidad. Así, la Comisión en su documento de trabajo “Online services,
including e-commerce, in the Single Market” -SEC(2011) 1641-, que acompaña a su Comunicación “A cohe-
rent framework to boost confidence in the Digital Single Market of e-commerce and other online services”,
COM(2011) 942, menciona en la página 74 que valorará la posibilidad de establecer un “European Copyri-
ght Code” que podría codificar las diversas directivas adoptadas en la materia y proporcionar la oportuni-
dad de examinar la eventual creación de derechos de autor unitarios –para el conjunto de la UE- de carácter
facultativo. Se trataría sin duda de una transformación de gran alcance, habida cuenta de que la creación de
derechos unitarios se ha limitado hasta la fecha al ámbito de los derechos de propiedad industrial.
42
propriedade intelectual
europea de una significativa aunque fragmentaria armonización mediante di-
rectivas, que encuentran su base jurídica ahora típicamente en el artículo 114
TFUE (antiguo artículo 95 TCE).
Desde la perspectiva del significado de un adecuado equilibrio entre
derechos fundamentales como presupuesto de la fijación del nivel aceptable
de protección de la propiedad intelectual39 reviste gran importancia que ahora
el artículo 6 TFEU atribuye a la Carta de los Derechos Fundamentales de la
Unión Europea de 7 de diciembre de 200040 el mismo valor jurídico que los
Tratados. Además, el artículo 6.3 TFEU atribuye la consideración de principios
generales del Derecho de la Unión a los derechos garantizados en el Conve-
nio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades
Fundamentales (CEDH) y a los que son fruto de las tradiciones constituciona-
les comunes a los Estados miembros. Al derecho de propiedad va referido el
artículo 17 de la Carta que en su apartado segundo incluye expresamente la
propiedad intelectual en sentido amplio como modalidad de propiedad objeto
de protección. Asimismo, la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos
Humanos (TEDH) ha puesto de relieve cómo el Artículo 1 del Protocolo nº
1 CEDH –relativo al derecho de toda persona al disfrute pacífico de sus bie-
nes- resulta de aplicación a la propiedad intelectual e industrial, como reflejan
ciertas decisiones del Tribunal en materia de patentes41, marcas42 o el derecho
exclusivo a la utilización de un nombre de dominio43, pero también sobre de-
rechos de autor.44 En el seno de la Unión Europea la jurisprudencia del Tribunal
de Justicia también es reflejo de cómo los derechos de autor forman parte del
derecho fundamental de propiedad.45
La formulación del artículo 17.2 de la Carta ha sido objeto de críticas
en el contexto del debate acerca del nivel de protección adecuado de la pro-
piedad intelectual y los riesgos de sobreprotección.46 En concreto, mientras

39 C. Geiger, “Intellectual ‘Property’ after the Treaty of Lisbon: Towards a Different Approach in the New
European Legal Order?”, EIPR, 2010, pp. 255-257, at p. 256.
40 DO 2010 C 83, de 30.3.2010, p. 389.
41 Lenzing AG v. the United Kingdom (dec.) (no. 38817/97, 9 de septiembre de 1998), vid. ECHR (Research
Division), “Internet: case-law of the European Court of Human Rights”, 2011, <http://www.echr.coe.int/>,
p.18.
42 STEDH de 11 de enero de 2007, asunto Anheuser-Busch Inc. v. Portugal ([GC], no. 73049/01.
43 Paeffgen Gmbh v. Germany (dec.), nos. 25379/04, 21688/05, 21722/05 et 21770/05, 18 de septiembre
de 2007), ECHR (Research Division), “Internet…”, loc. cit., p.19.
44 En relación con los derechos de los traductores vid. STEDH de 13 de mayo de 2008, SC Editura Orizonturi
SRL v. Romania, no. 15872/03.
45 STJ de 12 de septiembre de 2006, Laserdisken, C-479/04, ap. 65.
46 Acerca de ese debate en relación con la legislación sobre derechos de autor de la UE, vid. K.J. Koelman,
“Copyright Law and Economics in the EU Copyright Directive: Is the Droit d’Auteur Passé?”, IIC, vol. 35, 2004,
43
que el apartado 1 con respecto al derecho de propiedad en general se refiere
a la posibilidad de regular el uso de los bienes “en la medida en que resulte ne-
cesario para el interés general”, el apartado 2 se limita a prever escuetamente
que “(s)e protege la propiedad intelectual”, sin hacer referencia a sus límites
o posibles restricciones. 47 No obstante, aunque ciertamente la redacción de
la Carta podría ser más precisa a este respecto, resulta ampliamente acep-
tado que también la propiedad intelectual puede ser objeto de restricciones
para proteger el interés general de conformidad con la función del apartado 2
como una simple aclaración de que dentro del ámbito del derecho de propie-
dad se halla también comprendida la propiedad intelectual como modalidad
específica de propiedad48, referida a bienes inmateriales y cuyo carácter exclu-
sivo resulta de su régimen legal de protección.
Junto al reconocimiento como derecho fundamental de la propiedad
intelectual, en el régimen establecido tanto en la Carta como en el CEDH re-
sulta esencial la exigencia de equilibrio con otros derechos fundamentales al
establecer el nivel de protección de la propiedad intelectual por parte del le-
gislador de la Unión Europea y de los legisladores de los Estados miembros,
pero también en su aplicación por los tribunales. En el caso concreto de los
Pedro Alberto de Miguel Asensio

mecanismos de tutela para la salvaguarda de la propiedad intelectual en el


entorno digital ya la jurisprudencia inicial del Tribunal de Justicia puso de re-
lieve que el adecuado equilibrio con otros derechos fundamentales resulta
un elemento básico para valorar el nivel de protección admisible así como los
límites a la configuración de las medidas de observancia.
En el contexto de un procedimiento civil para la tutela de la propie-
dad intelectual, en relación con la solicitud por parte del titular de derechos
de un mandamiento a un proveedor de acceso para que revelara la identidad
y la dirección de determinados clientes de los que la demandante conocía
la dirección IP así como que utilizaban programas de intercambio de archi-
vos P2P en relación con obras cuyos derechos de explotación correspondían
a titulares que la demandante representaba, el Tribunal de Justicia ya en su
sentencia de 2008 en el asunto Promusicae puso de relieve la necesidad de
conciliar las exigencias relacionadas con la protección de distintos derechos
fundamentales. En ese caso, por una parte, los derechos a la protección de
la propiedad intelectual y a la tutela judicial efectiva y, por otra parte, el de-
recho al respeto de la intimidad.49 También el Tribunal de Justicia destacó no
sólo que los Estados deben garantizar un justo equilibrio entre los distintos
pp. 603-638.
47 A. Peukert, “Intellectual Property as an End in Itself?”, EIPR, 2011, pp. 67-71, at p. 69.
48 C. Geiger, “Intellectual Property Shall be Protected!?- Article 17(2) of the Charter of Fundamental Rights
of the European Union: a Mysterious Provision with an Unclear Scope”, EIPR, 2009, pp. 113-117, p. 116.
49 STJ de 29 de enero de 2008, C‑275/06, Promusicae, ap. 65.
44
propriedade intelectual
derechos fundamentales protegidos por el ordenamiento jurídico comunitario
en su legislación relativa a las medidas de observancia de los derechos de pro-
piedad intelectual sino que también corresponde a sus autoridades y órganos
jurisdiccionales velar por que su aplicación no entre en conflicto con derechos
fundamentales o con principios generales del Derecho comunitario, como el
de proporcionalidad50.

3. Evolución de las medidas de observancia de los dere-


chos de autor en la Unión Europea
La exigencia de un justo equilibrio entre la protección del derecho de
propiedad intelectual y otros derechos fundamentales, como es el derecho a
la vida privada y a la protección de datos personales, ha alcanzado especial im-
portancia como consecuencia de la evolución de las medidas adoptadas con
vistas a combatir ciertas prácticas comunes en Internet como las vinculadas al
intercambio o descarga de archivos con contenido protegido por la propiedad
intelectual.51 Ante el limitado alcance de normas comunes en el seno de la UE,
los diversos Estados miembros han reaccionado frente a la utilización masiva
de redes P2P para el intercambio de contenidos protegidos por la propiedad
intelectual y otros servicios que facilitan su descarga sin autorización de los
titulares de derechos adoptando normas que prevén mecanismos específicos
de sanción frente a esas conductas.52
El enfoque más extendido en el seno de la UE se basa en la implantaci-
ón de mecanismos de sanción frente a los usuarios que intercambian archivos
de ese tipo, que se fundan en el establecimiento de sistemas de respuesta
gradual. Dichos sistemas contemplan la eventual interrupción del servicio de
acceso a Internet de los usuarios que llevan a cabo esas prácticas, como me-
canismo paralelo y complementario de sanción a la tutela civil y penal fundada
en el ejercicio de acciones por la infracción de derechos de propiedad intelec-
tual. Se trata de un modelo incorporado en los ordenamientos de varios Esta-
dos miembros, habiendo adquirido especial notoriedad la legislación francesa
y la británica.
En Francia la Loi n° 2009-669 favorisant la diffusion et la protection de
la création sur Internet53 impone la obligación a los abonados a un servicio de
50 Ibid., ap. 68.
51 A. González Gonzalo, “El conflicto entre la propiedad intelectual y el derecho a la protección de datos de
carácter personal en las redes peer to peer”, Pe.i., nº 28, 2008, pp. 13-68.
52 Más ampliamente, vid. P.A. De Miguel Asensio, Derecho privado de Internet, 4ª ed., Thomson-Reuters
Civitas, Navarra, 2011, pp. 756-763.
53 JORF n°0135, de 13 de junio de 2009, p. 9666. Esta ley de 12 de junio de 2009 es conocida como Ley
Hadopi, en referencia a la Haute Autorité pour la diffusion des œuvres et la protection des droits sur Internet
45
acceso a Internet de velar por que la conexión no sea empleada para infringir
derechos de terceros, implantando un mecanismo de respuesta gradual bajo el
control de la Alta Autoridad o Hadopi que puede concluir con la interrupción del
acceso a Internet del abonado, si bien el Conseil constitutionnel, para salvaguar-
dar el derecho fundamental a la libertad de comunicación de ideas y opiniones,
declaró contrarias a la Constitución las normas que hacían posible la privación
del servicio de acceso a Internet sin una decisión judicial54. Determinante del
carácter gradual de la respuesta es que como primer paso se contempla el en-
vío de un mensaje por medio del proveedor de acceso a aquellos abonados res-
pecto de los cuales los titulares de derechos hayan presentado ante la Hadopi
elementos que revelen un incumplimiento de la obligación de que la conexión
no sea utilizada en el marco de actividades que constituyan infracción de los
derechos de propiedad intelectual. Este primer mensaje comunica al abonado
que se han detectado descargas ilegales a través de su conexión, le recuerda
sus obligaciones en relación con el uso del acceso a Internet y le ordena que las
respete, advirtiéndole de las sanciones previstas en caso de incumplimiento. Si
persiste en el incumplimiento, la ley contempla el envío de un segundo aviso
por un medio que permita acreditar la recepción por el abonado en el que se
Pedro Alberto de Miguel Asensio

le insta nuevamente a poner fin a las prácticas de infracción. Por último, en el


caso de perseverar en el incumplimiento, se contempla la posibilidad de acor-
dar la interrupción temporal del servicio de acceso a Internet del abonado y
la prohibición durante ese periodo de contratar el acceso con cualquier otro
operador. Uno de los aspectos más controvertidos de este mecanismo es el
relativo a la recogida y tratamiento de la información sobre las actividades de
los abonados, que plantea especiales riesgos desde la perspectiva de la protec-
ción de datos personales. La puesta en marcha de la respuesta gradual parte
de la comunicación por parte de los titulares de derechos a la Hadopi de ciertos
elementos que revelen las actividades de infracción -típicamente descargas de
contenidos con infracción de derechos- con respecto a direcciones IP, pudien-
do la Hadopi instar a los proveedores de acceso para que procedan a la identi-
ficación de los titulares de las direcciones IP en cuestión.
Por su parte la Digital Economy Act 2010 del Reino Unido55 adoptada
en abril de 2010 contempla la introducción de normas destinadas a reforzar la

(Hadopi), que se establece en dicha Ley


54 Decisión núm. 2009-580 DC de 10 de junio de 2009.
55 http://www.opsi.gov.uk/acts/acts2010/pdf/ukpga_20100024_en.pdf. Acerca de su interpretación revis-
te gran importancia la sentencia de 6 de marzo de 2012 de la England and Wales Court of Appeal (Civil Divi-
sion) en el asunto British Telecommunications Plc. y TalkTalk Telecom Group Plc. contra Secretary of State for
Culture, Olympics, Media and Sport, [2012] EWCA Civ 232, cuyas implicaciones en especial en relación con
la interacción de esta normativa con el derecho a la protección de datos personales son objeto de análisis
en apartados posteriores.
46
propriedade intelectual
protección de la propiedad intelectual fundamentalmente para luchar contra
el intercambio de archivos y otras actividades similares en Internet. Aunque
en su aplicación práctica podría llevar a resultados en buena medida similares
al criterio de los tres avisos del legislador francés, la legislación británica res-
ponde al menos en parte a un modelo propio. Sus disposiciones establecen
ciertos mecanismos tendentes a restringir la prestación de servicios de acceso
a Internet a quienes infrinjan derechos de propiedad intelectual, al tiempo
que contempla también la posibilidad de que los tribunales adopten medidas
para bloquear sitios de Internet a través de los que se infringen tales derechos.
Estos mecanismos de control y los establecidos en otras legislaciones
de Estados de la UE que han optado por modelos semejantes tienen en co-
mún el que su aplicación se basa en el desarrollo previo por parte de ciertos
particulares o entidades privadas -típicamente, los titulares de derechos o sus
representantes- de actividades de supervisión masiva del tráfico en Internet
que implican normalmente el control y almacenamiento de datos de tráfico
susceptibles de ser considerados datos personales, en circunstancias en las
que puede resultar controvertida la compatibilidad de tales actividades de
supervisión con la normativa comunitaria sobre protección de datos y, muy
especialmente, con los derechos fundamentales en esta materia.56 Se trata
además de un ámbito en el que entran en conflicto intereses muy diversos
y las opciones de política legislativa tienen un extraordinario impacto social
y económico, no sólo sobre la utilización de obras protegidas sino también
en especial al considerar la posición del conjunto de los usuarios de Internet
y otros actores implicados, muy especialmente, los proveedores de acceso a
Internet y otros prestadores de servicios de intermediación, sobre los que se
pretende hacer recaer la labor de supervisión.
La puesta en marcha de estos mecanismos de tutela de la propie-
dad intelectual puede basarse en el empleo de sistemas de supervisión de
las comunicaciones electrónicas de muy amplio alcance, pues en ocasiones la

56 Aunque en un ámbito material diferente como es el relativo a la retención de datos de tráfico de Inter-
net en relación con la investigación de delitos graves, cabe hacer referencia como reflejo de la importancia
del derecho fundamental a la protección de datos personales a la sentencia del Tribunal constitucional
rumano de 8 de octubre de 2009 - http://www.legi-internet.ro/english/jurisprudenta-it-romania/decizii-it/
romanian-constitutional-court-decision-regarding-data-retention.html.- y del Tribunal constitucional ale-
mán de 2 de marzo de 2010 -http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rs20100302_1b-
vr025608.html - acerca de la inconstitucionalidad de normas adoptadas en transposición de la Directiva
2006/24/CE sobre la conservación de datos generados o tratados en relación con la prestación de servicios
de comunicaciones electrónicas. Sobre las dudas acerca de la compatibilidad de esta Directiva con diversos
derechos fundamentales de la Carta y del CEDH –entre otros, los derechos al respeto a la vida privada, la
protección de datos de carácter personal y a la libertad de expresión- resulta muy relevante la petición de
decisión prejudicial planteada por la High Court of Ireland (Irlanda) en el asunto pendiente C-293/12, Digital
Rights Ireland.
47
aplicación de estas normas con respecto a los clientes de servicios de acceso
a Internet que intercambian archivos se funda en que los titulares de derechos
de propiedad intelectual llevan a cabo una actividad previa de fiscalización
del tráfico en la Red. Esa actividad de supervisión va referida en realidad con
gran frecuencia a datos personales pues precisamente son esos datos los que
hacen posible conocer la identidad del usuario (en particular, en la medida en
que incluyen la dirección IP), al tiempo que también comprende información
sobre el contenido de los archivos transmitidos y en ocasiones puede implicar
el tratamiento de información muy sensible incluso de personas que no co-
meten ninguna infracción pero cuyas actividades son también fiscalizadas en
busca de eventuales infracciones.
En España la llamada “Ley Sinde”57 -desarrollada por medio de RD
1.889/2011, de 30 de diciembre, por el que se regula el funcionamiento de
la Comisión de Propiedad Intelectual- optó por un modelo de regulación di-
verso al de la respuesta gradual y que no se centra en la persecución de los
usuarios. El legislador español al adoptar esta normativa rechazó esa última
posibilidad, lo que cabe entender que puede resultar razonable, no tanto por
Pedro Alberto de Miguel Asensio

el coste político de la introducción de tales mecanismos, sino porque precisa-


mente la experiencia de otros países europeos ilustra, de momento, su lenta
y muy escasa aplicación, así como los inciertos problemas legales asociados a
su introducción, en particular los que plantea su compatibilidad con el dere-
cho fundamental a la protección de datos personales (en todo caso, su escasa
aplicación efectiva no excluye que la mera introducción de ese tipo de meca-
nismos basados en la sanción de los usuarios haya podido producir un efecto
disuasorio). La “Ley Sinde” no modifica la legislación sobre propiedad intelec-
tual ni el Código Penal en lo que concierne a la determinación de qué activida-
des son ilícitas. Básicamente lo que crea es un mecanismo para que un órgano
administrativo pueda declarar acreditada la existencia de una vulneración de
derechos de propiedad intelectual por el responsable de un servicio de la so-
ciedad de la información y que dicho órgano pueda ordenar a ese prestador
“la retirada de los contenidos que vulneren derechos de propiedad intelectual
o la interrupción de la prestación del servicio de la sociedad de la información
que vulnere los citados derechos objeto del procedimiento”.
La función asignada en esta normativa a los Juzgados Centrales de lo
Contencioso Administrativo como encargados de autorizar la ejecución de las
57 Disposición final cuadragésima tercera de la Ley 2/2011, de 4 de marzo, de Economía Sostenible (BOE
núm. 55, de 05.03.11), por la que se modifican la LSSI, el RD legislativo 1/1996, por el que se aprueba el
Texto Refundido de la Ley de Propiedad Intelectual, y la Ley 29/1998, reguladora de la Jurisdicción Con-
tencioso-administrativa, para la protección de la propiedad intelectual en el ámbito de la sociedad de la
información y de comercio electrónico.
48
propriedade intelectual
medidas acordadas por un órgano como la Comisión de la Propiedad Intelec-
tual resulta insólita y poco apropiada. Tratándose de la defensa de derechos
privados en relación con supuestos que constituyen infracción de derechos
de la propiedad intelectual, la vía adecuada para obtener la cesación de esas
conductas debe ser el ejercicio de acciones civiles o, en su caso, penales. A
ese respecto, la gran aportación de este mecanismo parece ser que permi-
te a los titulares de derechos acudir a la mencionada Comisión para trami-
tar este procedimiento, dejando a un lado la vía civil o la penal (ciertamente,
supuestos en los que se prevé que actúe la Comisión conforme al art. 13.3
RD 1.889/2011pueden ser constitutivos de infracción penal, pero el art. 13.4
contempla que la Comisión siga actuando salvo que el órgano jurisdiccional
penal ordene lo contrario) y con ello el ejercicio de otras acciones frente a los
responsables como las indemnizatorias.
No sólo para los eventuales infractores sino también para los titulares
de derechos cabe entender que lo apropiado sería que en estos casos el titular
de los derechos acudiera –y pudiera encontrar cuando corresponda conforme
a Derecho- tutela efectiva por la vía civil y penal, como ocurre típicamente en
los países de nuestro entorno de la UE, en los que –dejando de nuevo a un
lado los mecanismos destinados a sancionar a usuarios- no ha tenido lugar una
creación de órganos administrativos con el fin específico de declarar las in-
fracciones de derechos de propiedad intelectual en estos casos (cuestión muy
distinta podría ser la introducción de mecanismos específicos con respecto a
la aplicación de sistemas de detección y retirada de contenidos por presta-
dores de servicios intermediarios). Como dice el artículo 13.3 RD 1.889/2011
reproduciendo el nuevo artículo 158.4 LPI, la actividad de la Comisión de la
Propiedad Intelectual en este ámbito se limita “a los casos de vulneración de
los derechos de propiedad intelectual, por el responsable de un servicio de la
sociedad de la información, siempre que dicho responsable, directa o indirec-
tamente, actúe con ánimo de lucro o haya causado o sea susceptible de causar
un daño patrimonial al titular de tales derechos” y las medidas que puede
adoptar se limitan a ordenar a ese prestador la retirada de los contenidos o la
suspensión del servicio (art. 22.2 RD 1.889/2011) y en caso de incumplimien-
to de tal orden la suspensión del servicio por el prestador intermediario que
corresponda (art. 22.3). Pero en nuestro ordenamiento el ejercicio de accio-
nes en la vía civil permite obtener (como en el resto de los Estados de la UE)
ordenes de ese tipo no sólo contra quienes infringen derechos sino también
contra prestadores intermediarios cuyos servicios son utilizados para la in-
fracción, incluso si el intermediario no puede ser considerado responsable de
infracción alguna y con independencia de que se beneficie o no de las normas

49
específicas sobre limitación de responsabilidad de los prestadores de servicios
de la sociedad de la información intermediarios.
Desde la perspectiva comparada cabe reseñar que las decisiones de
la High Court (Chancery Division) inglesa en el asunto Twentieth Century Fox
Film Corp v British Telecommunications PLC de 28 de julio de 201158 y 26 de
octubre de 201159. En este asunto la High Court accedió a la petición de seis
de los principales estudios cinematográficos estadounidenses de imponer al
proveedor de acceso a Internet British Telecom medidas de bloqueo a todas
las direcciones IP y URLs desde las que se pueda acceder al sitio web conoci-
do como Newzbin o Newzbin2 en el que se infringían derechos de propiedad
intelectual de los estudios demandantes. Antecedente de este asunto es una
decisión previa en la que los tribunales ingleses a petición de esos demandan-
tes habían ordenado la cesación de sus actividades infractoras de la propie-
dad intelectual a la sociedad Newzbin Ltd que operaba ese sitio de Internet.
Aunque el sitio web había cesado su actividad posteriormente volvió a estar
disponible con una actividad similar pero en circunstancias en las que sus res-
ponsables resultaban desconocidos y parecían operar desde el extranjero, lo
Pedro Alberto de Miguel Asensio

que obstaculizaba la posibilidad de hacer efectivo el mandato de cesación en


el Reino Unido. Ante esa situación, los estudios cinematográficos optaron por
solicitar al tribunal la imposición al principal proveedor de acceso a Internet
del Reino Unido de medidas para bloquear el acceso (de sus clientes) al sitio in-
fractor, poniendo de relieve que de tener éxito los demandantes se proponían
solicitar posteriormente medidas similares contra otros proveedores británi-
cos de acceso a Internet. Como ha quedado dicho, la High Court accedió a la
petición de los demandantes, lo que da pie a ciertas reflexiones.
Esta decisión refleja un importante mecanismo de reacción por la vía
civil frente a actividades de infracción de la propiedad intelectual llevadas a
cabo a través de servicios de la sociedad de la información que escapan al
alcance de la jurisdicción en la que los derechos resultan lesionados, que se
funda en una posibilidad semejante a la prevista en el ordenamiento español
en el artículo 139.1.h) LPI, según el cual las medidas de cesación de la activi-
dad ilícita pueden comprender: “La suspensión de los servicios prestados por
intermediarios a terceros que se valgan de ellos para infringir derechos de
propiedad intelectual, sin perjuicio de lo dispuesto en la LSSI”. En relación con
la situación en España, donde el potencial de nuestro ordenamiento para una
más eficaz tutela de la propiedad intelectual en Internet (antes ya de la nega-
tiva aportación que representa la llamada “Ley Sinde”) se ha visto lastrado por
58 [2011] EWHC 1981 (Ch).
59 [2011] EWHC 2714 (Ch).
50
propriedade intelectual
cierta confusión jurisprudencial en el ámbito civil en relación con el significa-
do de las acciones de cesación dirigidas contra intermediarios60, decisiones
como las reseñadas en el asunto Twentieth Century Fox Film Corp v British
Telecommunications PLC son muy significativas porque ilustran el potencial en
este entorno del ejercicio de acciones contra los intermediarios, pues deter-
minante en la decisión de la High Court es la aplicación del artículo 11 Direc-
tiva 2004/48 (y artículo 8.3 Directiva 2001/29/CE) a la luz de la interpretación
hecha por el Tribunal de Justicia en su sentencia de 2011 en el asunto L’Oreal.61
En la Sentencia L’Oreal el Tribunal de Justicia se pronunció sobre el
significado de la previsión del artículo 11 Directiva 2004/48 sobre la tutela de
los derechos de propiedad intelectual que impone a los Estados miembros la
obligación de garantizar “que los titulares de derechos tengan la posibilidad
de solicitar que se dicte un [requerimiento] judicial contra los intermediarios
cuyos servicios hayan sido utilizados por terceros para infringir un derecho de
propiedad intelectual”. Según el Tribunal se trata de una disposición que no
puede ser objeto de una interpretación restrictiva, derivándose de esa norma
la exigencia de que los Estados miembros garanticen que ciertos prestadores
intermediarios (en el asunto litigioso, un operador de un mercado electrónico
como eBay) pueden verse obligados a adoptar, además de medidas destina-
das a poner término a las infracciones de derechos de propiedad intelectual
causadas por los usuarios de sus servicios, medidas destinadas a evitar que
se produzcan nuevas lesiones de este tipo. Como ejemplo de las medidas
que pueden adoptarse, la sentencia menciona la imposición al operador del
mercado electrónico de la obligación de suspender la cuenta del usuario que
vulneró los derechos de marca para evitar que vuelva a cometer infracciones
en relación con las mismas marcas. Asimismo, la sentencia prevé que puede
dirigirse un requerimiento al operador de un mercado electrónico para que
adopte medidas que faciliten la identificación de sus clientes vendedores, des-
tacando que quien actúa en el tráfico comercial y no en el ámbito de la esfera
de su vida privada debe ser claramente identificable, de modo que en tales
circunstancias la protección de datos personales no debe ser un obstáculo
a su identificación (ap. 142) si bien debe reitera la necesidad de garantizar
el equilibrio entre los derechos y deberes implicados (ap. 143 con expresa
referencia a la sentencia Promusicae). En relación con la potencial repercu-
sión de esta sentencia, debe tenerse presente que la posibilidad de adoptar
requerimientos contra los prestadores intermediarios aparece además reco-
gida en el artículo 8.3 Directiva 2001/29/CE en relación con los derechos de
60 Vid. P.A. De Miguel Asensio, Derecho…, op. cit., pp. 776-780.
61 STJ de 12 de julio de 2011, C-324/09, L’Oreal.
51
autor. Desde la perspectiva de la práctica española se trata de una cuestión
de gran trascendencia –especialmente en el contexto de los derechos de au-
tor- que debe condicionar la evolución de la práctica de nuestros tribunales,
habida cuenta de que varias decisiones de tribunales españoles han negado la
posibilidad de ejercitar acciones de cesación o tendentes a la suspensión de
la prestación de algunos de sus servicios frente a tales intermediarios.62 En la
medida en que tal negativa se ha fundamentado en la circunstancia de que así
resultaba de la circunstancia de que esos intermediarios reunían los requisitos
para beneficiarse de la limitación de responsabilidad del artículo 14 DCE (16
LSSI) cabe considerar que la negativa a la adopción de las medidas no resulta-
ba justificada y contrasta abiertamente con el contenido y fundamento de los
artículos 8.3 Directiva 2001/29/CE y 11 Directiva 2004/48/CE (así como de las
normas españolas de transposición), lo que viene a quedar confirmado a la luz
del significado que según el Tribunal de Justicia debe atribuirse al mencionado
artículo 11 (y a su equivalente en el ámbito de los derechos de autor, el art.
8.3 Directiva 2001/29).
Ciertamente, para una efectiva tutela de los derechos de propiedad
Pedro Alberto de Miguel Asensio

intelectual en Internet resulta relevante la posibilidad de imponer a provee-


dores locales de acceso a Internet (en este caso españoles) el bloqueo (a sus
clientes) del acceso a ciertos servicios de Internet (en concreto, típicamente a
las URLs desde las que están accesibles), pues ello permite reaccionar frente a
prestadores de servicios (infractores) que se encuentran establecidos fuera del
país al que pertenece el tribunal pero cuyas actividades producen efectos sig-
nificativos en ese país, sin tener que proceder a la ejecución de la decisión en el
extranjero. En España, en el marco del mecanismo de la “Ley Sinde” el artículo
22.3 RD 1.889/2011 puede llevar a adoptar tales medidas, pero no cabe desco-
nocer que esto no resulta en realidad una innovación con respecto a lo que ya
previamente era posible –conforme a la LPI y la LSSI- en el marco del ejercicio
de acciones penales y civiles por infracción de la propiedad intelectual.
Sobre este punto precisamente cabe pensar que en la redacción del
RD 1.889/2011 se desliza –sin duda de manera involuntaria- una restricción
62 Vid. Sentencia de 20 de septiembre de 2010 del Juzgado de lo Mercantil número 7 de Madrid en el asun-
to Telecinco c. YouTube. En el Fundamento de Derecho 4º de esta sentencia se considera “de una evidencia
cegadora” que el texto de los artículos 138 y 139 LPI elimina de raíz la posibilidad de interponer una acción
de cesación frente a los intermediarios que queden exentos de responsabilidad conforme al artículo 16
LSSI. No obstante, cabe entender que en realidad es todo lo contrario. La posibilidad de adoptar medidas
de cesación frente a intermediarios que queden exentos de responsabilidad conforme al artículo 16 LSSI
(14 DCE) resulta una exigencia tanto de la Directiva 2001/29/CE como de la Directiva 2004/48/CE; al tiempo
que es algo que contempla expresamente el artículo 14.3 DCE y es bien conocido que resulta necesario
interpretar de conformidad con esta norma el artículo 16 LSSI, así como es necesario interpretar la LPI de
conformidad con la Directiva 2001/29/CE.
52
propriedade intelectual
para la posición de los titulares de derechos que no viene exigida por el Dere-
cho de la UE. En concreto, el último inciso del párrafo segundo del apartado
IV de la Exposición de Motivos del RD sólo contempla que se impida el acceso
“a servicios o contenidos… de prestadores establecidos fuera de la Unión Eu-
ropea y del Espacio Económico Europeo”. En realidad, habida cuenta de que
este mecanismo va referido únicamente a infracciones de la propiedad inte-
lectual carece de justificación excluir (si bien puede pretenderse encontrar
el origen de esta deficiencia en la propia LSSI) la posibilidad de bloquear el
acceso desde España a prestadores establecidos en la UE o en el EEE. Así re-
sulta de lo dispuesto en el artículo 3 y en el Anexo I de la Directiva 2000/31
sobre el comercio electrónico (que incorpora la LSSI) pues dicho Anexo prevé
de manera expresa que tales restricciones –las relativas al bloqueo del acceso
a los servicios de prestadores establecidos en un Estado Miembro- no operan
en el ámbito de la propiedad intelectual (lo que tiene su reflejo en el art. 3.1.a
LSSI). En todo caso, el alcance de la eventual afectación de otros derechos
fundamentales como consecuencia de tales medidas de bloqueo de acceso
refuerza la idea de que el ejercicio de acciones ante la jurisdicción civil y penal
resulta una vía más apropiada para la adopción de tales medidas que el diseño
de un mecanismo como el desarrollado en este RD.
Aunque el mecanismo que desarrolla el RD 1.889/2011 no esté des-
tinado a sancionar a los usuarios, el respeto al derecho a la protección de los
datos personales de tales usuarios puede presentar especial relevancia en re-
lación con su eventual tratamiento por los titulares de derechos de propiedad
intelectual de cara a acreditar la explotación de la obra o el ánimo de lucro
en el supuesto responsable o los daños causados al titular. En relación con
los mecanismos legales instaurados para combatir ciertas prácticas potencial-
mente infractoras de la propiedad intelectual en Internet y sancionar civil-
mente a los usuarios que participan en las misma reviste especial importancia
el control de los límites dentro de los cuales cabe requerir a prestadores de
servicios de intermediación que proporcionen los datos que puedan conducir
a la identificación de los usuarios a los que se pretende exigir responsabilidad.
A esos efectos la llamada “ley Sinde” introdujo en la legislación es-
pañola un nuevo apartado segundo en el artículo 8 LSSI, que prevé la posibi-
lidad de que los órganos competentes puedan requerir a los prestadores de
servicios de la sociedad de la información la cesión de los datos que permitan
identificar al responsable del servicio de la sociedad de la información que
está realizando la conducta presuntamente vulneradora de la propiedad in-
telectual. Ciertamente, no cabe desconocer que desde la perspectiva de los

53
titulares de derechos una aportación significativa de esta normativa es que
contempla un mecanismo específico para obtener la identificación del respon-
sable del servicio, lo que tiene su reflejo en el artículo 18 del RD 1.889/2011.
No obstante, precisamente a la luz del estado del Derecho de la UE sobre
protección de datos en la aplicación del texto de la LES y del RD sobre este
resulta de gran importancia valorar si contiene todos los elementos precisos
para asegurar un justo equilibrio entre la tutela de los derechos de propiedad
intelectual y el derecho fundamental a la protección de datos personales (que
sorprendentemente no aparece mencionado en el último párrafo del aparta-
do IV de la Exposición de Motivos del RD entre aquellos derechos fundamen-
tales con los que es preciso lograr tal equilibrio).

4. Dimensión internacional: ACTA


El desarrollo a escala internacional de estándares específicos en ma-
teria de observancia de la propiedad intelectual en las redes digitales ha sido
objeto de especial atención en el marco del Acuerdo Comercial contra la Fal-
sificación (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), más conocido como ACTA.63
Pedro Alberto de Miguel Asensio

Se trata de una cuestión acerca de la cual las negociaciones de este acuerdo,


que tuvieron lugar de manera reservada desde 2007, generó mucha preocu-
pación, hasta el punto de que cuando el 21 de abril de 2010 se hizo público ofi-
cialmente por primera vez el texto del Borrador del Acuerdo se presentó con
carácter previo una Declaración conjunta que destacaba que finalmente no se
preveía incluir en el Acuerdo ningún mecanismo de control de las infracciones
de derechos de autor en Internet del tipo del sistema de los tres avisos, como
el instaurado poco antes en Francia y en otros países.
La eventual inclusión de este tipo de medidas y su potencial impacto
sobre los usuarios de Internet era una de las cuestiones que habían suscitado
más expectación y polémica al hilo de las filtraciones previas sobre las nego-
ciaciones. A este respecto, cabe reseñar que el Supervisor Europeo de Protec-
ción de Datos puso de relieve en un Dictamen relativo a las negociaciones del
ACTA que una legislación de ese tipo puede resultar contraria a la normativa
comunitaria sobre protección de datos personales, destacando que impone
medidas de control generalizado sobre el conjunto de los usuarios que resul-
tan desproporcionadas, existiendo medidas alternativas a disposición de los
63 El texto final puede verse en la Propuesta de Decisión del Consejo relativa a la celebración del Acuerdo
Comercial de Lucha contra la Falsificación entre la Unión Europea y sus Estados miembros, Australia, Cana-
dá, la República de Corea, los Estados Unidos de América, Japón, el Reino de Marruecos, los Estados Unidos
Mexicanos, Nueva Zelanda, la República de Singapur y la Confederación Suiza, COM(2011) 380 final, de 24
de junio de 2011.

54
propriedade intelectual
titulares de derechos de propiedad industrial y de las autoridades competen-
tes que podrían resultar eficaces.64
Pese a que ciertamente el Acuerdo no impone el establecimiento de
mecanismos de respuesta gradual, su texto final contempla normas de gran
trascendencia con respecto a la regulación de las actividades desarrolladas a
través de Internet. Interesa detenerse en la Sección 5 del Capítulo II, dedicada
a la tutela de los derechos de propiedad intelectual en el entorno digital. Des-
de la perspectiva de la UE, cabe señalar que el ACTA no era el marco adecuado
para regular aspectos complejos que no han sido todavía objeto de armoniza-
ción en el seno de la UE. Por ello, debe ser bien valorado que finalmente no
se incluyeran en su texto normas que prevean la adopción de mecanismos
específicos frente a infracciones a través de ciertos servicios como los funda-
dos en una respuesta gradual o sistema de los tres avisos que puede concluir
con la terminación del contrato de acceso a Internet de los usuarios afectados.
En este sentido, la solución adoptada en el ACTA en lo relativo a la in-
teracción entre derechos de propiedad intelectual y derecho fundamental a la
protección de datos personales en el marco de los procesos por infracción en
el entorno digital y la eventual obligación de ciertos prestadores de servicios
de la sociedad de la información de proporcionar datos sobre usuarios de sus
servicios, se funda en atribuir en normas no vinculantes un amplio margen de
apreciación a los Estados miembros, como refleja la disposición más relevante
en la materia contenida en el artículo 27.4 ACTA65, que cabe entender que
se corresponde con los límites a la armonización de esta cuestión en la UE,
en línea con el criterio adoptado por el Tribunal de Justicia en el asunto Pro-
musicae, antes mencionado. No obstante, a la luz de la flexibilidad y falta de
precisión de los términos del texto final del Acuerdo, en su segundo Dictamen
sobre el ACTA66 el Supervisor Europeo de Protección de Datos ha insistido en
64 Dictamen del Supervisor Europeo de Protección de Datos sobre las negociaciones que mantiene la Unión
Europea sobre un Acuerdo Comercial de Lucha contra la Falsificación (ACTA), DO C 147 de 5.6.2010, p. 1.
65 En concreto, el artículo 27.4 ACTA establece: “Una Parte podrá establecer, conforme a sus leyes y re-
glamentos, que sus autoridades competentes estén facultadas para ordenar a un proveedor de servicios en
línea, que divulgue de forma expedita al titular de los derechos, información suficiente para identificar a un
suscriptor cuya cuenta se presume fue utilizada para cometer una infracción, cuando dicho titular de los
derechos haya presentado una reclamación con suficiente fundamento jurídico de infracción de marca de
fábrica o de comercio o derechos de autor y derechos conexos, y donde dicha información se busque para
efectos de protección u observancia de dichos derechos. Estos procedimientos serán implementados de
forma tal que eviten la creación de obstáculos para actividades legítimas, incluido el comercio electrónico y,
conforme a la legislación de cada una de las Partes, que preserven los principios fundamentales tales como
libertad de expresión, procesos justos y privacidad.”
66 Opinion of the European Data Protection Supervisor on the proposal for a Council Decision on the Con-
clusion of the Anti-Counterfeiting Trade Agreement between the European Union and its Member States,
Australia, Canada, Japan, the Republic of Korea, the United Mexican States, the Kingdom of Morocco, New

55
que muchas de las medidas previstas en el contexto de la observancia de los
derechos de propiedad intelectual en el entorno digital implicarían la super-
visión del comportamiento de los usuarios y sus comunicaciones electrónicas
en Internet y pueden llegar a interferir en los derechos a la intimidad, la pro-
tección de datos y la confidencialidad de las comunicaciones si no se aplican
de manera adecuada.
Cabe reseñar, en particular, su preocupación en relación no sólo con
el artículo 27.4 sino también con la referencia contenida en el artículo 27.3
ACTA a que “cada Parte procurará promover esfuerzos de cooperación dentro
de la comunidad empresarial, para tratar de forma eficaz las infracciones de
marcas de fábrica o de comercio y los derechos de autor o derechos conexos”;
en la medida en que su vinculación con el deseo expresado en el preámbulo
“de promover la cooperación entre los proveedores de servicios y titulares de
los derechos para enfrentar las infracciones pertinentes en el entorno digital”
pueda facilitar la puesta en marcha de una supervisión de amplio alcance del
tráfico de datos en Internet, para controlar ciertas conductas y poder conocer
el contenido de los archivos objeto de intercambio o de descarga por usua-
Pedro Alberto de Miguel Asensio

rios así como obtener la información que permita eventualmente identificar


a quienes introducen los archivos, los intercambian o descargan a través de
Internet. En el apartado 70 de dicho Dictamen el Supervisor concluye que
resulta preciso asegurar que las medidas de tutela que puedan adoptarse en
el seno de la UE como consecuencia de una eventual participación en el ACTA
respeten que la afectación a la protección de datos resulta proporcional al
objetivo perseguido de tutelar la propiedad intelectual, lo que considera que
excluye medidas amplias de supervisión de las actividades y comunicaciones
de los usuarios de Internet, en particular en relación con vulneraciones de la
propiedad intelectual de escasa entidad. En este contexto, mediante votación
celebrada el 4 de julio de 2012 el Parlamento Europeo rechazó la ratificación
por la UE de este Acuerdo.

5. Intimidad y protección de datos


En el debate sobre la tutela de la propiedad intelectual en Internet
y los posibles limites que para la configuración de las medidas de protección
a favor de de los titulares de derechos derivan del derecho fundamental a
la protección de los datos personales resultan de gran interés tres recientes
sentencias del Tribunal de Justicia. Por una parte, la sentencia en el asunto

Zealand, the Republic of Singapore, the Swiss Confederation and the United States of America 24 de abril
de 2012, <http://www.edps.europa.eu/>.
56
propriedade intelectual
SABAM67 debe ser analizada conjuntamente con la pronunciada un par de me-
ses antes también por el Tribunal de Justicia en el asunto Scarlet Extended68.
Ciertamente, la sentencia SABAM viene a confirmar en relación con los pres-
tadores de servicios de alojamiento de datos en general -y los proveedores
de redes sociales en particular- el criterio ya establecido por el Tribunal de
Justicia con respecto a los proveedores de acceso a Internet en su sentencia
Scarlet Extended en lo que concierne a ciertos límites que las medidas de tu-
tela de la propiedad intelectual deben respetar.
En el origen de estas sentencias se encuentran sendos litigios ante
los tribunales belgas entre una sociedad de gestión de derechos de propiedad
intelectual (SABAM) y un proveedor de acceso a Internet (en el asunto Scar-
let) y un proveedor de una red social (en el asunto SABAM). Tras constatar la
infracción de derechos respecto de las obras musicales del repertorio de la
demandante mediante la utilización por terceros de los servicios del prove-
edor de acceso a Internet y del proveedor de la red social, la parte deman-
dante pretendía en ambos casos la adopción de mandamientos judiciales que
exigieran a la parte demandada (proveedor de acceso a Internet o proveedor
de red social) la instauración de medidas de supervisión generalizada de am-
plísimo alcance. En concreto, en el asunto SABAM la demandante instaba un
mandamiento judicial que impusiera al prestador de servicios de red social la
instauración de un sistema de filtrado de la información alojada por sus usua-
rios aplicable con carácter preventivo a toda su clientela, exclusivamente a ex-
pensas del prestador de tales servicios y sin limitación de tiempo. Tal medida
tenía su origen en que la entidad de gestión de derechos demandante consi-
deraba que la red social ofrecía a sus usuarios la posibilidad de utilizar, a través
de su perfil, obras musicales y audiovisuales de su repertorio. El resultado
de ambas sentencias es que la imposición a esos proveedores intermediarios
de medidas de amplio alcance de supervisión del tráfico de sus usuarios con
el propósito de controlar si éstos intercambian contenidos que infringen los
derechos de propiedad intelectual pueden resultar contrarias al Derecho de
la UE. En particular, tales medidas de supervisión menoscabarían el derecho a
la a la protección de datos de carácter personal, ya que un sistema de filtrado
como ese implicaría, por ejemplo, un análisis sistemático de las informaciones
relativas a los perfiles de los usuarios de la red social que son datos protegidos
de carácter personal, ya que permiten identificar, en principio, a tales clientes,
al igual que las direcciones IP de los usuarios de los servicios de acceso a Inter-
net. Ciertamente, la sentencia SABAM destaca que las informaciones relativas

67 STJ de 16 de febrero de 2012, C-360/10, SABAM.


68 STJ de 24 de noviembre de 2011, C-70/10, Scarlet Extended.
57
a los perfiles de las redes sociales son típicamente datos personales ya que
permiten, en principio, identificar a sus clientes. Previamente, ya la sentencia
en el asunto Scarlet Extended había confirmado la condición de dato personal
de la dirección IP.
Reflejo de la importancia que tiene la protección de datos personales
como límite a las disposiciones específicas introducidas en los ordenamientos
de varios Estados miembros de la UE para proteger los derechos de propiedad
intelectual frente a sistemas de intercambio de archivos u otras vías utilizadas
supuestamente para la infracción de tales derechos en Internet, es la posterior
sentencia del Tribunal de Justicia en el asunto Bonnier.69 La aplicación efectiva
de esos mecanismos legales presupone el tratamiento (y la comunicación) de
datos personales de los supuestos responsables de las infracciones o incluso
de otros usuarios en general cuyas actividades puedan ser determinantes para
apreciar la infracción de tales derechos. La sentencia del Tribunal de Justicia
en el asunto C-461/10, Bonnier, aborda precisamente en relación con la legis-
lación sueca los límites dentro de los cuales la autoridad judicial en el marco
de un proceso civil por infracción de la propiedad intelectual puede requerir
Pedro Alberto de Miguel Asensio

a prestadores de servicios de intermediación que proporcionen los datos de


tráfico que puedan conducir a la identificación de los usuarios de sistemas de
intercambio de archivos que los han utilizado para la supuesta infracción de
derechos.
La aportación de la sentencia Bonnier debe ser apreciada en función
de su valor para precisar cuáles son los límites a la aplicación de esos mecanis-
mos que derivan de la interacción entre los derechos fundamentales en ma-
teria de protección de datos personales y de la vida privada, por un lado, y en
materia de protección de la propiedad intelectual por otro, desarrollando las
decisiones previas del Tribunal de Justicia al respecto, en particular, la senten-
cia Promusicae ya mencionada.70 Aspecto clave de la sentencia es la valoración
de si el contenido de la legislación sueca sobre este punto es compatible con
el derecho fundamental a la protección de datos personales y los límites que
eventualmente éste puede imponer a su aplicación.
La disposición básica sobre el particular de la normativa sueca anali-
zada en la sentencia, es decir, el artículo 53 c de la Ley sobre los derechos de
autor71 encuentra su fundamento en el Derecho de la UE principalmente en
69 STJ de 19 de abril de 2012, C-461/10, Bonnier.
70 Así como en el Auto TJ de 19 de febrero de 2009, C 557/07, LSG Gesellschaft zur Wahrnehmung von
Leistungsschutzrechten.
71 Un extracto de esa norma, reproducida en el apartado 19 de la Sentencia, es el siguiente: “Cuando el
demandante presente pruebas evidentes de que se han vulnerado los derechos de autor sobre una obra
58
propriedade intelectual
la previsión contenida en el artículo 8.1 de la Directiva 2004/48. Este precep-
to establece que los Estados miembros deben garantizar que en los procedi-
mientos por infracción de la propiedad intelectual las autoridades judiciales
con base en una petición proporcionada del demandante puedan ordenar que
faciliten datos sobre el origen y las redes de distribución de las mercancías
o servicios, entre otras, a cualquier persona que haya sido hallada prestan-
do a escala comercial servicios utilizados en las actividades infractoras. En su
sentencia Bonnier el Tribunal de Justicia se muestra en principio favorable a
considerar que una normativa como la sueca pueda ser compatible con el
derecho fundamental a la protección de datos y encontrar amparo en la Direc-
tiva 2004/48, en la medida en que las normas en cuestión permitan al tribunal
que debe decidir si adopta el requerimiento de datos personales ponderar
los intereses contrapuestos existentes, con especial referencia al principio de
proporcionalidad. Se trata de una conclusión que resulta sin duda coherente
con la jurisprudencia previa del Tribunal de Justicia en la materia –en particu-
lar, la sentencia Promusicae y en el auto LSG-Gesellschaft zur Wahrnehmung
von Leistungsschutzrechten- y deja claro que los mecanismos legales relativos
a la tutela civil de la propiedad intelectual pueden incluir la posibilidad de que
los tribunales competentes requieran a prestadores de servicios de Internet la
comunicación de datos personales que puedan ser relevantes para la tutela de
los derechos de propiedad intelectual supuestamente infringidos.
Ahora bien, tras la sentencia Bonnier quedan muchas cuestiones
abiertas y un marco normativo en el seno de la UE susceptible de generar
inseguridad jurídica. La más obvia de esas cuestiones abiertas se desprende
precisamente del párrafo del fallo que remite a la jurisdiccional nacional la
valoración en el caso concreto acerca de si la legislación en cuestión es respe-
tuosa con la exigencia de que “el fin perseguido por dicho requerimiento sea
más importante que el daño o perjuicio que se puedan causar a la persona
afectada o a otros intereses contrapuestos”. Esta exigencia resulta determi-
nante para asegurar el equilibrio a la luz de las circunstancias del caso concre-
to entre, de una parte, el derecho de propiedad intelectual y, de otra, el dere-
prevista en el artículo 53, los órganos jurisdiccionales podrán ordenar, so pena de sanciones, a las personas
mencionadas en el segundo párrafo que faciliten la información relativa a la fuente y a la red de distribución
de los bienes o servicios que infringen o vulneran un derecho (requerimiento judicial de revelación de infor-
mación).[…]
La obligación de revelación de información afecta a cualquier persona: 1º) autora o cómplice de la vulne-
ración o infracción del derecho; 2º) que haya dispuesto a escala comercial de un bien que vulnere o infrinja
un derecho; 3º) que haya utilizado a escala comercial un servicio que vulnere o infrinja un derecho; 4º) que
haya prestado a escala comercial un servicio de comunicación electrónica o de otro tipo utilizado para co-
meter la infracción o vulneración del derecho, o 5º) que haya sido identificada por una de las personas a las
que se refieren los apartados 2º) a 4º) supra como participante en la producción o distribución de un bien o
en la prestación de un servicio que vulnere o infrinja un derecho.[…]”
59
cho de protección de datos, sin que el Tribunal aporte criterios adicionales al
respecto. Se trata de un planteamiento que otorga una gran trascendencia a
la apreciación judicial, en términos alejados de la tradición continental y que
puede comprometer la seguridad jurídica así como la exigencia de interpreta-
ción vinculada a los objetivos de integración en el seno de la UE.
Pero, cabe destacar otros dos importantes elementos de incertidum-
bre que persisten en relación con la compatibilidad de ese tipo de legislacio-
nes y el derecho fundamental a la protección de datos personales (y la nor-
mativa que lo desarrolla). El primero de esos elementos se desprende de la
comparación de la sentencia con las conclusiones del Abogado General Jääski-
nen sobre este mismo asunto.72 Aparentemente las conclusiones resultaban
más restrictivas en lo que se refiere a los límites de ese tipo de legislaciones
para la tutela de la propiedad intelectual. En concreto, en el apartado 60 de
sus conclusiones el Abogado General consideraba que: “Para que sea posible
la comunicación de datos personales, el Derecho comunitario exige que la
legislación nacional establezca una obligación de conservación, con el fin de
precisar las categorías de datos que hay que conservar, el fin de la conser-
Pedro Alberto de Miguel Asensio

vación, su duración y las personas con acceso a los mismos. El uso de bases
de datos existentes para fines distintos a los establecidos por el legislador es
contrario a los principios de protección de datos personales”. En línea con
esta afirmación en el apartado 62 el Abogado General concluyó que: “…no
procede privilegiar a los titulares de derechos de propiedad intelectual per-
mitiéndoles el uso de datos personales legalmente recogidos o conservados
para fines ajenos a la protección de sus derechos. La recopilación y utilización
de dichos datos para tales fines respetando el Derecho comunitario en ma-
teria de protección de datos personales requeriría la previa adopción por el
legislador nacional de disposiciones detalladas, conforme al artículo 15 de la
Directiva 2002/58”. Se trata de una exigencia muy importante en la medida
en que determina que los requerimiento de comunicación de datos deban ir
referidos a datos conservados para esa finalidad de protección de la propie-
dad intelectual en virtud de obligaciones legales impuestas a los prestadores
de servicios de Internet en cumplimiento de lo dispuesto en el artículo 15
Directiva 2002/85/CE.73 La sentencia Bonnier aparentemente no hace referen-
cia a esta cuestión, de modo que cabría sostener que la compatibilidad con
el marco legal en materia de protección de datos de ese tipo de legislaciones
para la tutela de la propiedad intelectual no se subordina a la existencia previa
72 Conclusiones presentadas el 17 de noviembre de 2011.
73 Directiva 2002/58/CE, de 12 de julio de 2002, relativa al tratamiento de los datos personales y a la pro-
tección de la intimidad en el sector de las comunicaciones electrónicas (Directiva sobre la privacidad y las
comunicaciones electrónicas) (DO L 201/37, de 31.7.2002).
60
propriedade intelectual
de normas que impongan la obligación de retener los datos con la específica
finalidad de ser comunicados cuando medie requerimiento por ser relevantes
en procesos civiles relativos a la tutela de la propiedad intelectual. Ahora bien,
al inicio de su fundamentación jurídica, en el apartado 37 de la sentencia, el
Tribunal de Justicia incluye la siguiente afirmación como presupuesto del resto
de su análisis: “Interesa señalar, con carácter preliminar, por una parte, que el
Tribunal de Justicia se basa en la premisa de que los datos que son objeto del
procedimiento principal se han conservado con arreglo a la normativa nacio-
nal, respetando los requisitos establecidos en el artículo 15, apartado 1, de la
Directiva 2002/58, extremo que corresponde verificar al órgano jurisdiccional
remitente.” El Tribunal en la sentencia no aporta ninguna precisión adicional
acerca cómo deben ser interpretados los requisitos establecidos en ese artí-
culo y no descarta de manera expresa la interpretación de los mismos llevada
a cabo por el Abogado General. Conforme a la jurisprudencia del Tribunal Eu-
ropeo de Derechos Humanos el mero almacenamiento de datos personales
constituye una intromisión en el derecho a la vida privada de los afectados
que aunque puede llegar a estar legitimado en ciertos casos requiere en todo
caso la previsión en normas legales.74
Un último elemento de incertidumbre tiene que ver con que para la
adopción de medidas este tipo de legislaciones se basan típicamente en que
“el demandante presente pruebas evidentes de que se han vulnerado los de-
rechos de autor sobre una obra” –como dice la legislación sueca a la que va
referida esta sentencia- (por su parte en España el art. 17.2 RD 1889/2011,
de 30 de diciembre, por el que se regula el funcionamiento de la Comisión de
Propiedad Intelectual –si bien es cierto que se basa en un modelo distinto no
centrado en la sanción de los usuarios- hace referencia a que el titular de los
derechos debe aportar la información que acredite que la obra o prestación
está siendo objeto de explotación a través del servicio de la sociedad de la
información objeto de la solicitud, así como los datos de los que disponga que
coadyuven a identificar al responsable…). En relación con este presupuesto de
la aplicación de estas legislaciones de protección de la propiedad intelectual
parece resultar también muy relevante que en la medida en que el titular de
derechos aporte datos personales (por ejemplo, datos de los usuarios del ser-
vicio para acreditar que éste se usa para infringir derechos en España) dichos
datos deberán haber sido recopilados y tratados por el titular de los derechos
respetando el derecho a la protección de datos de los usuarios afectados.
No obstante, en la jurisprudencia nacional resulta de particular interés
la práctica reciente en el Reino Unido, en concreto la sentencia de la Court of
74 STEDH de 3 de abril de 2007, Copland v. the United Kingdom, no. 62617/00, ap. 44.
61
Appeal (Civil Division) de 6 de marzo de 2012, en el asunto British Telecommu-
nications Plc. y TalkTalk Telecom Group Plc. contra Secretary of State for Cultu-
re, Olympics, Media and Sport.75 Esta sentencia referida a la impugnación de
la normativa británica sobre la tutela de la propiedad intelectual en Internet
contenidas en la Digital Economy Act de 2010, aborda, entre otras cuestiones,
su compatibilidad con la normativa europea sobre protección de datos perso-
nales, proporcionando una respuesta afirmativa y cuestionando el Dictamen
del Supervisor Europeo de Protección de Datos sobre el particular antes rese-
ñado. Con base en la sentencia Promusicae del Tribunal de Justicia así como
que tratándose de datos de tráfico el artículo 15 de la Directiva 2002/58 debe
ser entendido en el sentido de que permite a los Estados miembros limitar los
derechos que en relación con el tratamiento de los datos de tráfico establece
el artículo 6 de la Directiva, cuando la limitación constituya una medida nece-
saria proporcionada y apropiada en una sociedad democrática para proteger
la propiedad intelectual.76

6. Actividades de supervisión y libertades de información,


Pedro Alberto de Miguel Asensio

expresión y empresa
Básico en el análisis que lleva a cabo el Tribunal de Justicia tanto en
Scarlet Extended como en SABAM es que la fijación de los límites dentro de
los cuales medidas de ese tipo fundadas en el objetivo de proteger los dere-
chos de propiedad intelectual son admisibles requiere una ponderación entre
diversos derechos fundamentales, atribuyendo una particular importancia no
sólo al derecho fundamental a la protección de datos de los usuarios, sino
también a la libertad de empresa de los prestadores de servicios de Internet
así como del derecho a la libertad de información, que considera que pueden
resultar menoscabados como consecuencia de la imposición de obligaciones
de supervisión de conductas en Internet tendentes a evitar ciertas infraccio-
nes de la propiedad intelectual.
En la sentencia SABAM el Tribunal confirma que tratándose de me-
didas de supervisión de ese tipo y alcance tan general también su imposición
con respecto a prestadores de servicios de alojamiento de datos resulta con-
traria al Derecho de la UE no sólo por infringir la prohibición de imponer una
obligación general de supervisión establecida en el artículo 15 de la Directiva
2000/31 sobre el comercio electrónico sino además por vulnerar la libertad
de empresa del prestador de servicios de alojamiento (red social), vulnerar
75 [2012] EWCA Civ 232
76 En esta línea resulta de interés la STEDH de 2 de diciembre de 2008, K.U. v. Finland, no. 2872/02, si bien
en el ámbito de la persecución de ilícitos penales.
62
propriedade intelectual
eventualmente la libertad de información de los usuarios en la medida en que
el sistema de filtrado no distinga adecuadamente entre contenidos lícitos e
ilícitos y el derecho fundamental a la protección de datos de los usuarios.
Punto de partida para valorar la ilicitud de las medidas objeto de las
cuestiones prejudiciales que han dado lugar a estos dos asuntos es que obligar
a un prestador de servicios intermediario, como los proveedores de acceso a
Internet o de alojamiento de datos, a proceder a una supervisión activa del
conjunto de datos de cada uno de sus clientes con el fin de evitar cualquier
futura lesión de los derechos de propiedad intelectual resulta incompatible
con el artículo 15.1 de la Directiva 2001/31, que prohíbe la imposición de una
obligación general de supervisar los datos que los intermediarios transmitan
o almacenen. Ahora bien, más allá de su incompatibilidad con esa prohibición
así como con la exigencia del artículo 3.1 Directiva 2004/48 sobre el respeto
a la propiedad intelectual de que las medidas para garantizar la tutela de los
derechos de propiedad intelectual no sean inútilmente complejas o gravosas,
de estas dos sentencias resulta ahora que una medida de supervisión tan am-
plia puede también vulnerar otros derechos fundamentales, ya que resulta
esencial que la configuración de las medidas asegure un justo equilibrio entre
la protección del derecho a la propiedad intelectual y la protección de los de-
rechos fundamentales de las personas afectadas por tales medidas.
Por una parte, resultaría vulnerado el derecho a la libertad de em-
presa que ampara a los prestadores de servicios de intermediación, habida
cuenta de que una supervisión de alcance tan amplio como la resultante de las
medidas objeto del litigio principal podría implicar una vulneración sustancial
de tal libertad, en la medida en que obliga al intermediario a establecer un
sistema de supervisión gravoso, permanente y exclusivamente a sus expensas
que abarca prácticamente la totalidad de la información almacenada en la red
del prestador de servicios afectado. Por otra parte, medidas de supervisión
de esa naturaleza menoscabarían la libertad de recibir o comunicar informa-
ciones en el caso de que la insuficiente distinción por parte del sistema entre
contenidos lícitos e ilícitos tenga como consecuencia el bloqueo de contenidos
lícitos. Con respecto a esta última libertad, cabe reseñar que la jurisprudencia
del TEDH ha destacado el importante papel de Internet –vinculado a su acce-
sibilidad y capacidad para almacenar y comunicar grandes cantidades de infor-
mación- para el acceso del público a información y para la difusión de ésta.77
Si bien en el litigio principal en el asunto SABAM, al igual que en el
asunto Scarlet, el mandato de supervisión tiene su origen en una decisión judi-
77 STEDH de 10 de marzo de 2009, Times Newspapers Ltd v. the United Kingdom (nos. 1 and 2), nos.
3002/03 and 23676/03, § 27.
63
cial, el análisis que lleva a cabo el Tribunal de Justicia resulta también relevante
con respecto a la valoración de la compatibilidad con el Derecho de la UE de
las iniciativas legales para combatir las infracciones de los derechos de propie-
dad intelectual en Internet mediante mecanismos de sanción frente a usuarios
de ciertos servicios (en particular en relación con el uso de servicios de Inter-
net para el intercambio de archivos) que se basan en la imposición de amplias
obligaciones de supervisión a los prestadores de servicios intermediarios.
No obstante, al valorar el significado de las sentencias en los asuntos
SABAM y Scarlet es muy relevante tener en cuenta que el resultado alcanzado
en ambos casos viene determinado por las características de las medidas de
supervisión que pretendían imponerse que presentaban un amplísimo alcan-
ce de modo que exigían “una vigilancia activa de los archivos almacenados
por los usuarios en los servicios de almacenamiento del prestador de que
se trata y que afecta tanto a casi la totalidad de la información almacenada
como a los usuarios de los servicios de ese prestador”.78 Cabe considerar, por
lo tanto, que estas sentencias dejan abierta la posibilidad de que otro tipo de
medidas que impliquen una supervisión de menor alcance sean plenamente
Pedro Alberto de Miguel Asensio

compatibles con el Derecho de la Unión, reiterando que corresponde a las


autoridades y tribunales nacionales asegurar el justo equilibrio entre la tutela
de los derechos de propiedad intelectual y la protección de los derechos fun-
damentales de las personas afectadas por tales medidas al concretar cuáles
son admisibles.
De hecho, en sus apartados 28 y 29 la Sentencia recuerda que los
artículos 8.3 Directiva 2001/29 y 11 Directiva 2004/48 permiten la adopción
de medidas cautelares contra prestadores de servicios intermediarios –como
las redes sociales- cuyos servicios puedan ser utilizados por sus usuarios para
infringir derechos de propiedad intelectual y que tales medidas pueden in-
cluir medidas preventivas destinadas a evitar lesiones futuras de sus dere-
chos, como en relación a la tutela de los derechos de marca en el contexto
de mercados electrónicos (sitios de subastas) puso ya de relieve el Tribunal
en su sentencia L’Oréal, ya reseñada. En este contexto, resulta relevante te-
ner presente que los considerandos 47 y 48 del Preámbulo de la Directiva
2001/31 destacan que la prohibición de obligaciones generales de supervisión
no excluye la imposición de obligaciones de supervisión en casos específicos
ni afecta a la posibilidad de exigir a los prestadores de servicios de alojamiento
que apliquen un deber de diligencia a fin de detectar y prevenir determinados
tipos de actividades ilegales.
78 STJ de 24 de noviembre de 2011, C‑70/10, Scarlet Extended, ap. 37; y STJ de 16 de febrero de 2012,
C-360/10, SABAM., ap. 36.
64
propriedade intelectual
7. Conclusión
Aunque la necesidad de ponderar los diversos derechos fundamen-
tales implicados para determinar el alcance de la protección de la propiedad
intelectual no resulta algo novedoso, la reciente evolución de los mecanismos
de tutela de la propiedad intelectual en el entorno digital va unida a la parti-
cular relevancia de la interacción entre dicha tutela y ciertos derechos funda-
mentales, especialmente el derecho a la protección de datos personales, el
derecho a la información y a la libertad de empresa. El limitado alcance de la
armonización de la legislación europea sobre el particular, así como el margen
de apreciación que resulta de la jurisprudencia del Tribunal de Justicia y del
TEDH determinan que el panorama europeo actual en este ámbito adolez-
ca de una significativa inseguridad jurídica, que puede menoscabar objetivos
básicos de la integración europea en un ámbito de especial importancia para
el desarrollo del mercado interior así como para la efectiva protección de los
importantes intereses implicados.

65
propriedade intelectual
PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITO INTERNACIONAL
PRIVADO NA UNIÃO EUROPEIA

Guillermo Palao Moreno79

1. A Propriedade Intelectual na União Europeia: uma


matéria e duas políticas
A regulação dos direitos de Propriedade Intelectual, quando estes
possuem uma natureza internacional, constitui uma matéria que desperta o
interesse de duas políticas diferentes da União Europeia (adiante, UE). Por um
lado, a Política de Mercado internacional e, por outro lado, a Política de Justiça
e Assuntos de interior – em concreto, Cooperação judicial em matéria civil -.
Esta acumulação de interesses se justifica pela estrita vinculação que possui a
regulação dos bens imateriais com a consolidação do mercado único e com o
fomento das liberdades europeias de circulação – principalmente de bens e de
serviços -. Assim como, pelo cada vez mais frequente caráter transfronteiriço
das relações vinculadas à regulação dos direitos de propriedade intelectual e,
em consequência, das ações judiciais destinadas à sua tutela desde o âmbito
do Direito privado.
Essa duplicidade, ainda que possa contar com uma plena justificativa
desde o ponto de vista do singular processo normativo europeu e da divisão
de competência em seu seno, também é suscetível de ocasionar sérias distor-
ções em seu tratamento legal quando os elementos possuem uma natureza
internacional. Uma circunstância que já se constatou na própria jurisprudên-
cia do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia (adiante, TJCE)80.
A partir dessa perspectiva é preciso conscientizar as instituições eu-
ropeias da necessidade de oferecer um tratamento à Propriedade intelectu-
al – tanto normativo quanto jurisprudencial – o mais homogêneo possível,
79 Catedrático de Direito Internacional privado, Universitat de València (España). Membro do GI+dPI
(Grupo I+D, Propiedad Intelectual e Industrial, Universitat de València). E-mail: Guillermo.palao@uv.es.
Este trabalho realizou-se através do Projeto I+D número DER2010-21327, financiado pelo Ministério de
Ciência e Inovação (Programa I+D): “Propiedad intelectual y Universidades y Centros de Investigación”. Tra-
duzido com a colaboração de Thiago Paluma (Doutorando em Direito Internacional Privado pela Universitat
de València, sob a orientação do Prof. Dr. Guillermo Palao).
80 A partir de 2009, Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Vid. a STJCE (Sala Primeira) de 13 de
julho de 2006, no caso C-539/03, Roche Nederland BV y otros y Frederick Primus, Milton Goldenberg; e a ST-
JCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no caso C-4/03, Gesellschaft für Antriebstechnik mbH & Co. KGy
Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG. Ambas disponíveis em: http://www.curia.eu [visitadas em 1
de Julho de 2013].
67
tratando de evitar tais problemas. Mais ainda, quando o caso conta com um
caráter internacional, fato este frequente nesse âmbito. O presente estudo
pretende abordar esta problemática, desde a ótica do Direito internacional
privado, centrando-se principalmente na regulação dos Direitos autorais.

1.1. Conceito de Propriedade intelectual


De forma prévia à análise da regulação da propriedade intelectual no
âmbito da UE em situações transfronteiriças, e apesar do exposto, cabe su-
blinhar como a assinalada duplicidade de políticas não comportou uma dife-
renciada delimitação dos direitos de propriedade intelectual na normativa eu-
ropeia. Assim, se pode comprovar como, em relação com ambas as políticas,
se chega a uma compreensão ampla e omnicompreensiva da matéria. Nesse
sentido, o conceito que os instrumentos europeus cultivam é coincidente com
o utilizado em outros centros de codificação internacional da propriedade in-
telectual – mais especificamente os utilizados pela Organização Mundial da
Propriedade Intelectual e a Organização Mundial do Comércio -.
Guillermo Palao Moreno

De tal modo que, ao que diz respeito ao tratamento deste instituto


por parte do Direito internacional privado, esta coincidência conceitual des-
peja grande parte dos problemas de delimitação que possam ser suscitados.
1) Assim, de uma parte e a respeito da Política de Mercado interior, o
art. 36 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (adiante, TFUE)
se refere a esta noção em termos gerais e amplos81. Algo que, devido às exi-
gências dos princípios e liberdades básicas do mercado interior, conduziu à
elaboração de uma extensa normativa que abarca com grande generosidade
esta matéria. Neste sentido, na própria página web da Direção Geral de Mer-
cado Interior e Serviços da Comissão Europeia, se adverte como esta man-
tém uma concepção ampla desta categoria, englobando os Direitos de autor
e conexos, assim como os Direitos relativos à propriedade industrial, incluindo
também o direito sui generis das bases de dados82.
2) Junto a ele, de outra parte, desde a perspectiva da Política de coo-
peração judicial em matéria civil, encontramos uma delimitação – igualmente
ampla – desta matéria no Considerando 26 do Regulamento (CE) n° 864/2007
do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de julho de 2007, relativo à lei

81 PLENDER, R./ WILDERSPIN, M., The European Private International Law of Obligations, Londres, Sweet
& Maxwell/ Thomson Reuters, 2009, p. 655.
82 Assim, http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/index_en.htm y http://europa.eu/legislation_
summaries/internal_market/businesses/intellectual_property/index_es.htm [visitadas em 1 de Julho de
2013].
68
propriedade intelectual
aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (adiante, Regulamento
Roma II)83. O qual, em referência ao seu art. 8 (“Infração dos direitos de pro-
priedade intelectual”), estabelece que:
“(…) Para efeitos do presente regulamento, a expressão direitos de
propriedade intelectual deverá ser interpretada como abrangendo, nomeada-
mente, o direito de autor, os direitos conexos, o direito sui generis para a pro-
teção das bases de dados, bem como os direitos de propriedade industrial”.
Pois bem, há que destacar que esta aproximação coincidente está
chamada a evitar uma grande parte dos problemas qualificatórios que pude-
rem surgir neste âmbito, principalmente a respeito de sua delimitação com
outras instituições próximas84.

1.2. Mercado interior e propriedade intelectual


Os direitos de propriedade intelectual interessam à política de merca-
do internacional, da que se ocupa a Direção Geral de Mercado Único e Servi-
ços da Comissão Europeia85, cuja regulamentação básica se situa nos arts. 26
e 27 TFUE. E ele, desde o momento em que sua tutela jurídica ingressa entre
as restrições permitidas pelo art. 36 TFUE, em relação com as liberdades de
circulação europeias, permitindo que se estabeleçam monopólios de explora-
ção para o território de cada Estado membro principalmente em atenção ao
tradicional caráter territorial desses direitos86. Este interesse deu lugar a um
frutífero processo codificador que, em última análise, conduziu à conclusão de
um nutrido conjunto de Diretivas e, em menor quantidade, de Regulamentos
vinculados a esta matéria87. O qual se viu revitalizado com a Comunicação de
2011 “um mercado único dos direitos de propriedade intelectual”88.
83 D.O.U.E. nº L 199/40, de 31 de julho de 2007.
84 Sobre esta questão, BASEDOW, J., “Foundations of Private International Law in Intellectual Property”,
en: BASEDOW, J./ KONO, T./ METZGER, A. (Eds.), Intellectual Property in the Global Arena, Tubinga, Mohr
Siebeck, 2010, p. 5-29, p. 11-12.
85 Vid. http://ec.europa.eu/dgs/internal_market/contact/index_en.htm e de forma particular http://
ec.europa.eu/internal_market/top_layer/intellectual-property/index_en.htm [visitadas em 1 de Julho de
2013].
86 A esse respeito, SABIDO RODRÍGUEZ, M., La creación intelectual como objeto de intercambios comer-
ciales internacionales, Cáceres, Universidad de Extremadura, 2000, p. 75 e ss. De interesse, a STJUE (Sala
Quarta) de 21 de junho de 2012, no caso C-5/2011, Titus Alexander Jochen Donner (disponível em: http://
www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013].
87 A esse respeito ver: COUTO GONÇALVES, L.M., “O espaço europeu da propiedade industrial”, Actas de
Derecho Industrial, nº 26, 2005-2006, p. 85-100; MOURA VICENTE, D., A Tutela Internacional da Propiedade
Intelectual, Coimbra, Almedina, 2008, p. 99 e ss.; UBERTAZZI, L.C., “Para una introducción al Derecho euro-
peo de la propiedad intelectual”, Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor 2004/2005, p. 305-321.
88 COM (2011) 287 final. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=-
COM:2011:0287:FIN:ES:PDF [visitada em 1 de Julho de 2013].
69
Em definitivo, com esta política como pano de fundo se alcançou um
corpus normativo com o que se buscou, de um lado, evitar o falseamento da
competência no interior da UE; assim como, de outro lado, se perseguiu al-
cançar uma adequada e similar proteção de tais direitos dentro do mercado
interior – sempre em conformidade com as obrigações internacionais assu-
midas e o processo de harmonização de tais direitos levado a cabo na Euro-
pa-. Todo ele, definitivamente, com o fim de favorecer a integração europeia
e, portanto, o respeito das liberdades de circulação89. Uns instrumentos que
permitiram uma destacável aproximação (ou unificação, em alguns casos) de
natureza substantiva (e em menor medida processual) dos direitos de pro-
priedade intelectual, ainda quando contam com limitações em seu alcance90.
Dessa forma, há que sublinhar como nos instrumentos que se em-
pregou essa base jurídica e, portanto, se elaborou no marco da política de
mercado interior, nos encontramos com normas pontuais de Direito interna-
cional privado. Neste sentido, apesar de contar normalmente com uma na-
tureza substantiva – seja harmonizadora ou unificadora -, em alguns desses
instrumentos elaborados se podem encontrar normas de competência judicial
Guillermo Palao Moreno

internacional, de determinação da lei aplicável e inclusive menções ao reco-


nhecimento e à execução de decisões judiciais estrangeiras.

1.3. Espaço Europeu de Justiça Civil e Propriedade Intelectual


Por sua parte, a consolidação do mercado interior –ad intra-, assim
como fenômenos como o da globalização –ad extra-, fomentaram o caráter
internacional dos direitos relativos à propriedade intelectual. Uma circunstân-
cia que, ao que diz respeito à UE, trouxe consigo o emprego cada vez mais
frequente de normas elaboradas desde a Direção Geral de Justiça91, no âmbito
da Cooperação judicial civil. Nesse aspecto, em atenção à base jurídica que
proporciona o art. 81 TFUE, com o objetivo de ordenar as relações relativas
à propriedade intelectual quando conte com uma natureza transfronteiriça
“quando resultar necessário para o bom funcionamento do mercado interior”.
Estas normas não vieram a substituir, senão a complementar, as já
existentes no âmbito da Política de mercado interior, sendo que precisamente
89 A esse respeito: http://ec.europa.eu/internal_market/top_layer/index_52_en.htm, e http://europa.
eu/legislation_summaries/internal_market/businesses/intellectual_property/index_es.htm [visitadas em 1
de Julho de 2013].
90 MOURA VICENTE, D., “Direito de autor e comercio electrónico. Aspectos internacionais”, en: WA-
CHOWICZ, M./ PALAO MORENO, G. (Coord.), Propiedade intelectual. Inovação e Conhecimento, Curitiba,
Juruá, 201, p. 83-101, p. 87-89.
91 Vid. http://ec.europa.eu/justice/contact/index_es.htm e singularmente http://ec.europa.eu/justice/
civil/index_es.htm [visitadas em 1 de Julho de 2013].
70
propriedade intelectual
seu objetivo final se concentra no bom funcionamento desse mercado. Não
obstante, faz-se necessário destacar como neste âmbito existem outros inte-
resses que qualificam de forma particular os instrumentos elaborados ao am-
paro desta política. Tal e como são: a livre circulação das resoluções judiciais
no território da UE, a promoção da segurança jurídica e a boa administração
da justiça.
Todavia e diferente do que sucedeu em relação com a Política de
mercado interior, nestes casos a atitude do legislador comunitário nem sem-
pre favoreceu a elaboração de instrumentos especialmente desenhados para
disciplinarem tais direitos, porém tão pouco se viram excluídos dos mesmos.
Assim, junto a disposições concebidas para atender às particularidades da
propriedade intelectual, este tipo de relações igualmente serão disciplinados
por instrumentos de carácter más geral, pois como assinalado não estão ex-
cluídas dos mesmos. Como consequência, frequentemente tem-se que recor-
rer também a soluções mais gerais, para regular certos litígios internacionais
em matéria de direitos de propriedade intelectual.

1.4. Problemas que explicam esta aproximação e perspectivas de futuro


Do exposto até agora, se deriva que a duplicidade de tratamento que
se dispensa aos direitos de propriedade intelectual no âmbito da UE, tanto por
parte da Direção Geral Mercado Interior e Serviços como por parte da Direção
Geral de Justiça, é suscetível de gerar uma série de problemas que é neces-
sário terem em conta. Assim, pode-se, exemplificativamente, menciona-los:
1) Incialmente, desde o ponto de vista das fontes aplicáveis, esta si-
tuação de duplicidade de bases jurídicas e de políticas involucradas, convida à
dispersão do sistema e, em definitivo, pode chegar a complicar o trabalho de
concretizar o sistema de fontes aplicável às situações internacionais nas que
se estão envolvidos direitos de propriedade intelectual.
2) Desde a perspectiva da colocação em andamento do ordenamen-
to jurídico europeu, este duplo interesse por esta matéria, não deu lugar –
nem de longe-, a uma codificação sistemática da mesma (o que se observa
claramente em relação com os casos transfronteiriços), carecendo o resul-
tado alcançado de lógica interna, sendo por sua vez, diversas as lacunas que
resultam.
3) Por sua vez, o fato de que se elabore cada norma de Direito inter-
nacional privado, dependendo da base jurídica aplicável, é possível que res-
ponda a uma lógica diferente e inclusive potencialmente contraditória; não

71
permitindo um tratamento homogêneo de tais direito em sua dimensão trans-
fronteiriça no âmbito da UE.
Ante esta situação, tal e como se adiantou, resultaria aconselhável
levar adiante uma rediscussão da questão. O qual poderia ir, desde a coorde-
nação do momento em que propõe um novo instrumento –seja com base em
uma política ou outra-, as eventuais respostas internacional-privatistas que
se colocaram, até derivar todo tratamento de Direito internacional privado a
uma de tais políticas –ex.: Justiça no âmbito da cooperação judicial civil-, ex-
cluindo seu tratamento nos instrumentos elaborados no marco da outra –isto
é, mercado interior-. Seja uma ou outra alternativa -ou outras que puderam
idealizar-se-, o certo é que uma maior coordenação resultaria imprescindível.
Frente a este complexo panorama normativo se apresentam iniciati-
vas de grande interesse como a dos Principles for Conflicts of Laws in Intellec-
tual Property (cuja versão definitiva “The Draft” está datada em 25 de Março
de 2011)92. Uns “Princípios” elaborados por um grupo de prestigiosos aca-
dêmicos especialistas na matéria que trabalha sob o nome de CLIP (European
Guillermo Palao Moreno

Max-Planck Group on Conflict of Laws in Intellectual Property), que constituem


um autêntico sistema aplicável aos direitos de propriedade intelectual quando
a relação possua uma natureza internacional. Tais textos se baseiam em uns
princípios comuns aplicáveis a esta matéria e possuem uma lógica interna. Um
modelo que, sem dúvida, é chamado a exercer sua influência sobre o legisla-
dor europeu e que, em linha de princípio, poderia permitir superar alguns dos
problemas que mencionaram.

2. Aspectos de competência Judicial Internacional e de


reconhecimento e execução de Resoluções Estrangeiras
Dois são os elementos característicos das normas de Direito interna-
cional privado, relativos aos setores de competência e reconhecimento aplicá-
veis aos litígios em matéria de propriedade intelectual que encontramos nos
instrumentos europeus.
1) Por um lado, a pluralidade e a existência, junto às soluções mais es-
pecíficas relativas a estes setores (principalmente para disciplinar direitos de
natureza unitária para toda a UE e baseados na política de mercado interior)
de textos de carácter mais geral no âmbito da justiça civil aplicáveis a um bom

92 Texto disponível em: http://www.cl-ip.eu/ [visitada em 1 de Julho de 2013]. Uma sucinta apresentação
dos mesmos pode ser vista em: KUR, A., “Are there any Common European Principles of Private Internatio-
nal Law with regard to Intellectual Property”, en: LEIBLE, S./ OHLY, A. (Eds.), Intellectual Property and Private
International Law, Tubinga, Mohr Siebeck, 2009, 1-14, p. 9-14.
72
propriedade intelectual
número de situações não cobertas pelos Regulamentos mais específicos.
2) Por outro lado, tais instrumentos estão previstos para cobrir prin-
cipalmente situações litigiosas intracomunitárias, definidas neste âmbito em
função da presença do domicílio (ou, em seu caso, do estabelecimento) do de-
mandado em um Estado membro. Uma limitação que obrigará a recorrer aos
sistemas autônomos de Direito internacional privado naqueles casos excluídos
de seu âmbito de aplicação.

2.1. A posição central do Regulamento Bruxelas I no sistema


São escassas as normas que, em relação com os setores da compe-
tência judicial internacional e do reconhecimento e execução de resoluções
estrangeiras, foram desenhadas de forma específica para ordenar os litígios
internacionais que se vinculem à matéria de propriedade intelectual. Uma cir-
cunstância que se converte ao Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22 de dezem-
bro de 2000, relativo à competência judicial internacional, o reconhecimento
e execução de resoluções judiciais em matéria civil e comercial93 - conhecido
como Regulamento Bruxelas I (adiante, Regulamento Bruxelas I)-, no instru-
mento central na hora de regulamentar os litígios internacionais relativos a
direitos de propriedade intelectual.
Este Regulamento foi recentemente modificado (ainda que sem afe-
tar de modo radical a matéria tratada neste trabalho), por meio do homôni-
mo Regulamento (UE) nº 1215/2012 (conhecido como Regulamento Bruxelas I
bis)94. Não obstante, dito Regulamento Bruxelas I bis será aplicado a partir de
10 de janeiro de 2015 (como dispõe seu art. 81), pelo que toda referência se
entenderá feita a respeito do texto de 2001. E ele, resguardadas as modifica-
ções que possam ser incorporadas pela versão de 2012.
Em definitivo, o Regulamento Bruxelas I constitui um importante ins-
trumento na hora de regulamentar os litígios internacionais em matéria de
propriedade intelectual no âmbito da UE. O qual encontra sua base jurídica
no art. 61 do tratado da Comunidade Europeia (antecedente do art. 81 TFUE),
constituindo a pedra angular da política de cooperação em matéria de justiça
civil. Esta posição central se vê reafirmada pelo fato de que os escassos instru-
mentos que, sobre determinados direitos de propriedade intelectual em par-
ticular, incluem disposições relativas a estes setores, coincidem em referir-se a
este concreto Regulamento, como texto supletivo aos mesmos, quando assim
se faz necessário. Algo que se manifesta no âmbito da propriedade industrial,
93 D.O.C.E. nº L 12, de 16 de Janeiro de 2001.
94 D.O.U.E. nº L 351/1 20.12.2012.
73
mais que no setor dos Direito autorais, aonde não se criou direitos com um
caráter unitário95.

2.2. Soluções previstas no Regulamento Bruxelas I


Desde a perspectiva da determinação da competência judicial inter-
nacional, o Regulamento Bruxelas I oferece a este tipo de litígios tanto nor-
mas que estabelecem foros atributivos de competência, como disposições
que contêm normas de aplicação do sistema. Um conjunto normativo que se
aplicará, em relação com os casos de direitos unitários e outros específicos,
também a litígios em que o demandado possua um estabelecimento em um
Estado membro, ainda quando não tenha ali seu domicílio.
1) Em uma rápida revisão, e se começar pelos foros de competência
judicial internacional e sua aplicação aos litígios em matéria de propriedade
intelectual96, deve-se destacar como o regulamento dispõe de foros exclusi-
vos a favor dos tribunais do Estado membro aonde se situa o registro público
para os litígios em matéria de inscrição ou validade de direitos de propriedade
Guillermo Palao Moreno

intelectual (art. 22.497). Assim como foros gerais baseados na submissão ex-
95 Assim, o art. 94 do Regulamento (CE) nº 201/2009, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comuni-
tária (D.O.C.E. nº L 78/1, de 24 de março de 2009); o art. 79 do Regulamento (CE) nº 6/2002, sobre os dese-
nhos e modelos industriais (D.O.C.E. nº L 3/1, de 5 de janeiro de 2002) e o art. 101 do Regulamento (CE) nº
2100/94, relativo à proteção comunitária das obtenções vegetais (D.O.C.E. nº L 227/1, de 1 de setembro de
1994. Modificado pelo Regulamento (CE) nº 873/2004 (D.O.C.E. nº L 162/38, de 30 de abril de 2004). Sobre
as respostas de competência judicial internacional previstas nestes instrumentos ver: DESANTES REAL, M.,
“La marca comunitaria y el Derecho internacional privado”, en: BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, A. (DIr.),
Marca y Diseño Comunitario, Pamplona, Aranzadi, 1996, p. 225-260; LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Li-
tigios transfronterizos sobre derechos de propiedad industrial e intelectual, op.cit., p. 64 e ss. e 143 e ss.;
PALAO MORENO, G., “La protección internacional de los dibujos y modelos comunitarios”, pe.i. revista de
propiedad intelectual 2002, nº 10, p. 65-95.
96 Vid. ESPLUGUES MOTA, C., “Normas de competencia judicial internacional en materia de propiedad
intelectual”, en AA.VV., Los derechos de la propiedad intelectual en la nueva Sociedad de la Información,
Granada, Comares, 1998, p. 191 e ss.; FAWCETT, J., “Special rules of Private International Law for special
cases: what should we do about Intellkectual Property?”, en: FAWCETT, J. (ed.), Reform and development
of private international law: essays in honour of Sir Peter North, Oxford, Oxford University Press, 2002,
pp. 137-166; FUMAGALLI, L., “Litigating Intellectual Property Rights disputes cross.botder: jurisdiction and
recognition of judgements under the Brussels I regulation”, en: BARIATTI, S. (ed.), Litigating Intellectual
Property Rights disputes cross.botder: EU Regulations, ALI Principles, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, pp.
15-37; LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Litigios transfronterizos sobre derechos de propiedad industrial e
intelectual, Madrid, Dykinson, 2008, p. 39 e ss, e 88 e ss.; MOURA VICENTE, D., A Tutela Internacional da
Propiedade Intelectual, op.cit., p. 369 e ss. También, el estudio elaborado por NUYTS, A./ SZYCHOWSKA, K./
HATZIMIHAIL, N., “Cross-border litigation in Intellectual Property matters in Europe” de 2006 (disponible
en: http://www.ulb.ac.be/droit/ipit/docs/HeidelbergBackgPaper1.pdf) [visitada em 1 de Julho de 2013].
97 Sobre o tema sobressai a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no caso C‑4/03, Gesellschaft für
Antriebstechnik mbH & Co. KGy Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG. Mais recentemente, a STJUE
(Sala Terceira) de 1 de dezembro de 2011, no Assunto C‑145/10, Eva-Maria Painer contra Standard Verlags
GmbH, Axel Springer AG, Süddeutsche Zeitung GmbH, Spiegel-Verlag Rudolf Augstein GmbH & Co KG, Verlag
M. DuMont Schauberg Expedition der Kölnischen Zeitung GmbH & Co KG.; e la STJUE (Sala Terceira) de 12 de
julho de 2012, no caso C-616/10, Solvay SA/Honeywell Fluorine Products Europe BV e outros, (D.O.U.E. nº C
89/9, de 19 de Março de 2011) (disponíveis em: http://www.curia.eu) [visitadas em 1 de Julho de 2013].
74
propriedade intelectual
pressa ou tácita (arts. 23 e 2498). De tal forma que, na ausência dos critérios
anteriores, o demandante poderá optar entre os tribunais do domicílio do de-
mandado (art. 2) e dos foros especiais do art. 599.
O que diz respeito aos foros atributivos de carácter específico que
contempla o Regulamento Bruxelas I, há que mencionar o idealizado para
atender aos litígios relativos aos direitos de propriedade em matéria contra-
tual, o qual se encontra baseado no lugar de cumprimento da obrigação que
sirva de base para a demanda (art. 5.1100); como também o incorporado para
as controvérsias em matéria não contratual, fundamentado no tradicional fó-
rum delicti commissi (art. 5.3), com uma complexa aplicação para os casos
de infração no meio digital101. Junto a ele e de especial interesse nos casos
de infração de tais direitos, também se contempla um foro para os casos de
pluralidade de demandados (art. 6.1102).
2) Vinculado ao anterior, cabe fazer referência às normas de aplicação
do sistema de competência judicial que se contemplam, em particular, para a
comprovação da competência e a admissibilidade (arts. 25 e 26), para os casos
de litispendência e conexão (arts. 27 a 30)103, igual a que –e de singular signi-
ficado para os litígios relativos a tais direitos- o estabelecimento de medidas
cautelares e provisórias (art. 31)104.

98 Ainda que com os limites que se estabeleçam para os direitos unitários, nos arts. 97.4 Regulamento
marca comunitária, 82.4 Regulamento Desenho comunitário e 102.2 Regulamento obtenções vegetais.
99 Em relação com estes três preceitos, há que se ter em conta os limites que, para os direitos unitários,
constituem os arts. 94.2 a) Regulamento marca comunitária, 79.3 a) Regulamento desenho comunitário e
102.1 Regulamento obtenções vegetais.
100 Este preceito foi interpretado pelo TJCE em relação com os contratos sobre direitos de propriedade in-
telectual na Sentencia (Sala Quarta) de 23 de abril de 2009, no caso C-533/07, Falco Privatstiftung, Thomas
Rabitsch y Gisela Weller-Lindhorst (disponível em: http://www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013].
101 ESTEVE GONZÁLEZ, L., Aspectos internacionales de las infracciones de derechos de autor en inter-
net, Granada, Comares, 2006, p. 133-163; LÓPEZ-TARRUELLA MARTÍNEZ, A, “Criterio de “focalización” y
forum delicti commissi em las infracciones de propiedad industrial e intelectual em internet”, Pe.i. revista
de propiedad intelectual 2009, nº 31, pp. 13-51; METZGER, A., “Jurisdiction in Cases Concerning Intellectual
Property Infringements on the Internet”, en: LEIBLE, S./ OHLY, A. (Eds)., Intellectual Property and Private
International Law, Tubinga, Moh Siebeck, 2009, pp. 250-257; TORREMANS, P., “Private International Law
Aspects of IP-Internet Disputes”, en: EDWRADS, L./ WAELDE, C. (Eds.), Law and the Internet. A framework
for Electronic Commerce, Oxford, Hart, 2000 (2ª ed.), pp. 225 e ss.
102 A respeito destaca a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no Caso C-539/03, Roche Nederland
BV e otros y Frederick Primus, Milton Goldenberg (disponível em: http://www.curia.eu) [visitada em 1 de
Julho de 2013].
103 HOLTMANN YDOATE, M., “Litispendencia y conexidad de procesos de propiedad industrial planteados
ante tribunales de diferentes Estados de la Comunidad Europea”, Diario La Ley, ref. D-252, Tomo 4, 1996.
104 Ter em conta, a STJUE (Sala Terceira) de 12 de julho de 2012, no Caso C-616/10, Solvay SA/Honeywell
Fluorine Products Europe BV e outros, (D.O.U.E. nº C 89/9, de 19 de Março de 2011) (disponível em: http://
www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013]. Vid., JIMÉNEZ BLANCO, P., “Cooperación internacional en
la práctica de pruebas y adopción de medidas cautelares en los derechos de propiedad intelectual” AEDIPr
2000, pp. 285-297.
75
No que tange ao reconhecimento e execução de decisões estrangei-
ras sobre direitos de propriedade intelectual, há que se mencionar a possibili-
dade de acudir ao estabelecido nos arts. 32 a 56105. Nesses casos, sem limita-
ção alguma de aplicação para os litígios sobre direitos unitários.
Ainda sendo certo que a existência do sistema geral que significa o
Regulamento Bruxelas I deve ser valorado de modo positivo, igualmente de-
ve-se criticar o fato de que precisamente dito caráter genérico pode chegar a
implicar uma resposta inadaptada para os litígios transfronteiriços em maté-
ria de direitos de propriedade intelectual. Por ele, seria recomendável contar
com um conjunto de disposições uniformes e adaptadas às particularidades
deste tipo de controvérsias, como sucederia com os “Princípios CLIP”.

3. Aspectos da lei aplicável


No que tange às normas de conflito de leis elaboradas pela UE para
regulamentar os direitos de propriedade intelectual destacam, de modo dife-
rente ao que sucede em matéria jurisdicional e de reconhecimento, três ex-
Guillermo Palao Moreno

tremos fundamentais.
1) Por uma parte, destaca o fato de que não existem instrumentos
que com um caráter geral regulem as questões de lei aplicável relativas aos
direitos de propriedade intelectual, e que se apliquem na ausência de textos
específicos. A este fato, soma-se a distinta aproximação dispensada a esta
matéria em cada política. Assim, enquanto as normas incorporadas nos ins-
trumentos relativos à cooperação judicial em matéria civil são, normalmente,
normas de conflito bilaterais, as próprias normas da política de mercado in-
terior consistem em normas de extensão baseadas no “princípio do país de
origem” com as que se fomenta o “reconhecimento mútuo” neste setor.
2) Por outra parte, na maior parte dos casos cobertos, as normas
europeias possuem uma natureza universal que as converte em aplicáveis à
situações tanto intra como extracomunitárias. Não obstante, há de destacar
como existem pontuais normas de conflito em importantes Convênios inter-
nacionais em matéria de propriedade intelectual – como o art. 5.2 do Convê-
nio de Berna de 1886, para proteção das obras literárias e artísticas106-. Uma
circunstância significativa devido a que os dois Regulamentos mais importan-
105 A respeito dessa questão: LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Litigios transfronterizos sobre derechos de
propiedad industrial e intelectual, op.cit., p. 233 e ss.
106 Vid. CARRASCOSA GONZÁLEZ, J., La propiedad intelectual en el Derecho internacional privado español,
Granada, Comares, 1994, pp.m 64-71; RICKETSON, S. y GINSBURG, J.C., International Copyright and nei-
ghbouring Rights. The Berne Convention and Beyond, Oxford, Oxford University Press, 2007 (2ª ed.), Vol. II,
pp. 1297-1327.
76
propriedade intelectual
tes nesse âmbito – os Regulamentos Roma I e Roma II que serão analisados
em seguida- preveem a aplicação de forma preferencial das normas de lei
aplicável contidas em tais Convênios, deslocando as respostas previstas em
tais Regulamentos dentro de seu âmbito de aplicação107.

3.1. A ausência de soluções gerais na matéria


Diferentemente do que sucede em matéria jurisdicional, não existem
instrumentos gerais em matéria de conflito de leis no marco da UE que, por
sua vez, resultem aplicáveis aos litígios internacionais sobre direitos de pro-
priedade intelectual; situando-se a regulação de aspectos significativos de lei
aplicável relativa aos direitos de propriedade intelectual nos sistemas autôno-
mos de Direito internacional privado108. Algo que não implica que as normas
do TFUE sejam alheias a esta questão, já que as soluções nacionais que se
elaboram para ordenar esta matéria não poderão contrariar os princípios e
liberdades fundamentais do Direito da UE109, de igual modo que as soluções
tradicionais na matéria como o recurso da lex loci protectionis devem ser exa-
minadas à luz de tais princípios e liberdades110.
Dessa ausência de soluções deriva que extremos de grande importân-
cia na matéria analisada, como a lei reguladora em matéria de sua inscrição ou
validade, os aspectos jurídicos-reais que se derivam dos mesmos ou questões
mais específicas tal qual como seria a questão de uma lei regulamentadora da
autoria e a titularidade de tais direitos, ficam nas mãos do legislador estatal111.
Uma remissão à normativa nacional, incluindo seu sistema de Direito Internacio-
nal privado, que se explicita em alguns instrumentos sobre direitos unitários112.
Essa circunstância não apresenta demasiadas dificuldade devido à
ampla utilização que se faz, desde um perspectiva comparada da lex fori – no
107 Arts. 25 e 28, respectivamente. Sobre sua incidência no Regulamento Roma II, BRIÈRE, C., “Réflexions
sur les interactions entre la proposition de règlement «Rome II» et les conventions internationales, J.D.I.
2005, p. 677-694.
108 Uma análise comparativa dessa matéria no âmbito europeu em: “Study on Intellectual Property and
the Conflict of Laws”, de 2000 (Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/docs/stu-
dies/etd1999b53000e16_en.pdf). Acesso em 1 de Julho de 2013.
109 Assim, o TJCE em sua Sentença (Sala Segunda) de 30 de junho de 2005, no assunto C-28/04, Tod’s SpA,
Tod’s France SARL y Heyraud SA (Disponível em: http://www.curia.eu). Acesso em 1 de Julio de 2013.
110 SABIDO RODRÍGUEZ, M., op.cit., pp. 209 e ss.
111 À respeito, TORREMANS, P., “Authorship, ownership and Works created by employees: which law
applies?”, E.I.P.R. 2005, pp. 220-224; VAN EECHOUD, M., “Alternatives to the Lex Protectionis as the Choi-
ce-of-law rule for initial ownership of Copyright”, ”, en: DREXL, J. y KUR, A. (Eds.), Intellectual Property and
Private International Law –Heading for the future, Oxford, Hart, 2005, pp. 289-307; XALABARDER, R., “La
protección internacional de la obra audiovisual: cuestiones relativas a la autoría y titularidad inicial”, Revue
Internationale du Droit d’Auteur, nº 193, 2002, p. 3-147.
112 Assim os arts. 101.2 Regulamento marca comunitária e 88.2 Regulamento desenho comunitário.
77
primeiro caso – à lex loci protectionis – no segundo. Todavia, maiores proble-
mas se apresentam com respeito à questão da titularidade dos direitos de
propriedade intelectual, ao dividir-se os Estados membros da UE, entre aque-
les que aplicam a lex originis e aqueles que optam pela lex loci protectionis.
Em todo caso, como já se há destacado, resultaria aconselhável que
se estabelecessem normas uniformes sobre a determinação da lei aplicável
em matéria de direitos de propriedade intelectual no âmbito europeu. E, com
o objetivo de evitar a disparidade nesta matéria que poderiam gerar distor-
ções no mercado interior. Uma vez mais, o caminho marcado pelos “Princípios
CLIP” ofereceriam um modelo que poderia ser explorado por parte do legis-
lador comunitário.

3.2. Revisão das soluções especiais presentes nos instrumentos europeus


Os poucos instrumentos comunitários que contêm normas de confli-
to de leis aplicáveis aos direitos de propriedade intelectual em sua dimensão
internacional se referem, em particular, a casos de infração aos mesmos; tais
Guillermo Palao Moreno

instrumentos são também aplicáveis àqueles conflitos em matéria contratual,


ainda quando não prevejam respostas especializadas para esses casos.
 a) Em matéria de infração de direitos
No que diz respeito à determinação da lei aplicável aos litígios inter-
nacionais de infrações de direitos de propriedade intelectual, possui-se um
especial protagonismo o art. 8 Regulamento Roma II113, vinculado à política
de cooperação judicial em matéria civil. Não obstante à posição central deste
preceito, não se pode esquecer a importância que para esta matéria terão as
soluções presentes em outros artigos como no art. 6, ao regular as questões
de lei aplicável relativas à matéria tão próximas como os referentes à livre

113 Vid. BARIATTI, S., “The law applicable to the infringement of IP Rights under the Rome II Regulation”,
en: BARIATTI, S. (Ed.), Litigating Intellectual Property Rights Disputes Cross-border: EU Regulations, ALI Prin-
ciples, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, pp. 63-88; BOSCHIERO, N., “Infringement of Intellectual Property
Rights. A commentary on Article 8 of the Rome II Regulation”, YbPIL 2007, pp. 87-113; DE MIGUEL ASENSIO,
P.A., “La lex loci protectionis tras el Reglamento “Roma II””, AEDIPr 2007, pp. 375-406; ILLMER, M., “Article
8”, en: HUBER, P. (ed.), Rome II Regulation. Pocket Commentary, Munich, Sellier, pp. 226-259; MICHINEL
ÁLVAREZ, M.A., “La regulación del derecho de autor internacional en España ante el Proyecto de Regla-
mento sobre ley aplicable a las obligaciones extracontractuales (“Roma II”)”, A.D.I. 2006-2007, pp. 275-308;
OBERGFELL, E.I., “Das Schutzlandprinzip und “Rom II”. Bedeutung und Konsequenzen für das Internationale
Urheberrecht”, IPRax 2005, pp. 9-13, pp. 10-11; PALAO MORENO, G., “La protección de los derechos de
propiedad intelectual en Europa: el art. 8 del Reglamento Roma II”, Revisa Aranzadi de Derecho de Depor-
te y Entretenimiento 2008-3, nº 24, pp. 557-571; PERTEGÁS, M., “Intellectual Property and choice of law
rules”, en: MALATESTA, A. (Ed.), The Unification of choice of law rules on Torts and other non-contractual
Obligations in Europe. The “Rome II” Proposal, Padua, Cedam, 2006, pp. 221-248; OBERGFELL, E.I., “Das
Schutzlandprinzip und “Rom II”. Bedeutung und Konsequenzen für das Internationale Urheberrecht”, IPRax
2005, pp. 9-13.
78
propriedade intelectual
concorrência e os litígios de concorrência desleal. Pois bem, o texto literal do
art. 8 prevê:
“Artigo 8º - Violação de direitos de propriedade intelectual:
1. A lei aplicável à obrigação extracontratual que decorra da violação
de um direito de propriedade intelectual é a lei do país para o qual a proteção
é reivindicada.
2. No caso de obrigação extracontratual que decorra da violação de
um direito de propriedade intelectual comunitário com carácter unitário, a lei
aplicável a qualquer questão que não seja regida pelo instrumento comunitário
pertinente é a lei do país em que a violação tenha sido cometida.
3. A lei aplicável ao abrigo do presente artigo não pode ser afastada
por acordos celebrados em aplicação do artigo 14”.
Desse singular preceito, com o que se regula esta matéria de forma
uniforme e com caráter universal para todos os Estados membros pela primei-
ra vez, destacam os seguintes extremos:
1) Para começar, no item 3º se situa como uma solução comum aos
princípios 1º e 2º. Um item onde se exclua a possibilidade que as partes pos-
sam eleger a lei aplicável para todo litígio de infração dos Direitos sobre bens
imateriais; evitando assim o jogo do art. 14 Regulamento Roma II nesses ca-
sos. Uma eliminação que se apresenta em termos absolutos, talvez de forma
excessivamente rígida114.
2) Junto a ele, o item 1º oferece a solução geral do sistema aplicável
aos litígios de infração transfronteiriça aos direitos de propriedade intelectual,
realizando uma opção a favor da lei “do país para cujo território se reclama
proteção”. Uma solução inspirada na tradicional e ampliadamente estendido
“princípio de territoriedade”, ainda que não isenta de problemas e críticas115.
Nesse sentido, não só dificulta uma plena coincidência entre as soluções de-
senhadas para os setores da competência judicial e a lei aplicável116, embora
isso suscite problemas complexos quando se reclama a proteção de diversos

114 MATULIONYTE, R., “Calling for Party Autonomy in Intellectual Property Infringement Cases”, Journal pf
Private International Law 2013, Vol. 9, nº 1, pp. 77-99.
115 Sobre essa questão, BERGÉ, J.-S., “Droit d’auteur, conflit de lois et réseaux numériques: rétrospective
et prospective”, Rev.crit.dr.internat.privé 2000, pp. 357-397; VAN EECHOUD, M., Choice of Law in Copyright
and Related Rights, La Haya, Kluwer, 2003, pp. 169-232.
116 Assim, o Considerando 7 do Regulamento Roma II. No mesmo sentido, FAWCETT, J., “Special rules for
Private international Law for special cases: what should we do about Intellectual Property?”, en: AA.VV.,
Reform and Development of Private International Law. Essays in honour of Sir Peter North, Oxford, Oxford
University Press, 2002, pp. 137-166, p. 166.
79
ornamentos, tal e como propicia a Internet117.
3) Por último, o 2º item regula os litígios de infração para o direito de
Propriedade Intelectual comunitários de caráter unitário118 por meio da “lei
do país em que se tenha cometido a infração”. Uma solução próxima à lex loci
delicti commissi – presente no art. 4.1 Regulamento Roma II -, favorecedora da
coincidência entre o fórum e o ius nos litígios, e que se fundamentaria no feito
de que a proteção que se garantiria aos mesmos é única e comunitária, assim
como porque sua infração unicamente poderia ter lugar no interior da UE119.
 b) Em matéria contratual
Ainda que não regule de forma particular os aspectos contratuais re-
lativos aos direitos de propriedade intelectual – por expresso desejo do le-
gislador europeu -, as questões da lei aplicável sobre a licença ou cessão dos
mesmos se encontram ordenadas de conformidade ao disposto no Regula-
mento Roma I. Em particular, resultarão de aplicação aos mesmos o estabele-
cido em seus arts. 3, 4 e 9 principalmente120.
1) Por uma parte e segundo seu art. 3, as partes poderão eleger o
Guillermo Palao Moreno

ordenamento regulamentador de seu contrato internacional na matéria de


propriedade intelectual, seja de forma expressa ou tacitamente.

2) A ausência de tal eleição, se acudirá ao previsto no art. 4121. Assim,


117 Vid. DESSEMONTET, F., “Internet, la propiété intellectuelle et le droit international privé”, en: AA.VV.,
Internet. Which Court Decides? Which Law Applies, La Haya, Kluwer, 2001, pp. 47-64; ESTEVE GONZÁLEZ,
L., “Infracción internacional de la propiedad intelectual en el medio digital: adaptación de las respuestas
del Derecho Internacional privado”, en: PALAO MORENO, G./ PLAZA PENADÉS, J. (Dirs.), Nuevos retos de la
Propiedad Intelectual, Aranzadi/ Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra) , 2009, pp. 93-154; GINSBURG,
J.C., “The Private International Law of Copyright in an Era of Technological Change”, R. des C. 1998 (273), pp.
239-406; OHLY, A., “Choice of Law in the Digital Environment –Problems and Possible Solutions”, en: DREXL,
J. y KUR, A. (Eds.), Intellectual Property and Private International Law –Heading for the future, Oxford, Hart,
2005, pp. 241-256; PALAO MORENO, G., “Internet e a determinaçao do lugar da infraçao da propiedade
intellectual na Uniao Europeia”, en: WACHOWICZ, M. (Org.), Propiedade intellectual & Internet, Curitiba,
Jurua, 2011, Vol. II, pp. 421-442.
118 Isto é, a marca comunitária, os desenhos e modelos industriais comunitários, as indicações geográfi-
cas e das denominações de origem dos produtos agrícolas e alimentício ou as variedades vegetais.
119 HUBER, P. y BACH, I., “Die Rom II-VO. Kommissionsentwurf und aktuelle Entwicklungen”, IPRax 2005,
pp. 73-84, p. 80.
120 Entre outros, PALAO MORENO, G., “Tendencias actuals en Europa, en material de contratación in-
ternacional sobre derechos de propiedad intellectual”, en: CÁRDENAS MUÑOZ, A. (Comp.), Derecho Inter-
nacional de los Negocios. Alcances, Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2012, T. IV, pp. 197-226,
pp. 212-220; PERTEGÁS, M., “Cross border litigation in intellectual property rights: choice of law rules in
IP rights under the Rome I Regulation”, en: BARIATTI, S (ed.), Litigating Intellectual Property Rights Dispu-
tes Cross-border: EU Regulations, ALI Principles, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, 55-61; TORREMANS, P.,
“Licenses and assignments of intellectual property rights under the Rome I Regulation”, Journal of Private
International Law 2008, pp. 397-420.
121 À respeito, DE MIGUEL ASENSIO, P.A., “Applicable law in the absence of choice to contracts relating to
intellectual or industrial property rights”, Yearbook of Private International Law 2008, pp. 199-219.
80
propriedade intelectual
seu item 2 permitiria localizar a regulamentação do contrato no ordenamento
do país de residência habitual da parte a que se exija a execução da ação que
caracteriza o contrato; enquanto que os itens 3 e 4 permitiria flexibilizar esta
resposta (em atenção ao princípio dos vínculos mais estreitos) para os litígios
nos quais, ou não é possível determinar a prestação característica do contra-
to, o existe ou exige um ordenamento mais vinculado ou próximo.
3) O art. 9 se refere às disposições de caráter imperativo, suscetíveis
de afetar ao regime legal estes contratos internacionais. Tal e qual sucederia
com a normativa protetora da Propriedade intelectual122, o Direito da Concor-
rência123 e as normas de controle das transferências de tecnologia124.
 c) Outras matérias
Junto aos aspectos mencionados, tem-se que fazer referência tam-
bém a uma solução de leis aplicáveis específicas de origem comunitária, em
distintos âmbitos especializados dos Direitos de autor que se encontram rela-
cionados com a Política de mercado interior.
1) Para começar, cabe referir-se a relativa aos supostos de proprieda-
de intelectual vinculados à radiodifusão via satélite125. Assim em atenção aos
dispostos no art. 1.2,a) da Diretiva 93/83/CEE, sobre coordenações de determi-
nadas disposições relativas aos direitos do autor e direitos afins aos direitos de
autor no âmbito da radiodifusão via satélite e da distribuição por cabo126, o le-
gislador europeu se decantou por sua regulação de conformidade com o orde-
namento do país de emissão – “princípio de origem” -127, encontrando-se esta
resposta complementada para litígios extra-comunitários – ex art. 1.2,d)- 128.
122 Relacionada com essa questão, ademais das disposições próprias da lex loci protectionis, se encontra
o Regulamento (CE) nº 1383/2003, relativo à intervenção das autoridades aduaneiras nos casos de mer-
cadorias suspeitas de vulnerar determinados direitos de propriedade intelectual e as medidas que devem
tomar-se à respeito das mercadorias que vulneram esses direitos (acompanhado do Regulamento (CE) nº
1891/2004, de aplicação do anterior.
123 Nesse âmbito, e desde uma perspectiva europeia, cabe referir – entre outras – o Regulamento (CE) nº
772/2004,, relativo à aplicação do apartado 3 do art. 81 do Tratado a determinadas categorias de acordos
de transferência de tecnologia.
124 Tem-se que citar, entre outras disposições, o Regulamento (CE) nº 428/2009 do Conselho, de 5 de
maio de 2009, por ele que se estabelece um regime comunitário de controle das exportações, a transferên-
cia, e o trânsito de produtos de uso dobrado. Por sua parte, a Diretiva 2009/43/CE busca precisamente, o
contrário, simplificar a transferência de produtos relacionados com a defesa dentro da UE.
125 Vid., MICHINEL ÁLVAREZ, M.A., La radiodifusión vía satélite en la regulación española de Derecho de
autor internacional, Granada, Comares, 1998, pp. 100-108; MOURA VICENTE, D., “Direito de autor e comer-
cio electrónico. Aspectos internacionais”, op.cit., p. 95.
126 D.O.C.E. nº L 248/15, de 6 de Octubre de 1993.
127 “b) A comunicação ao público por satélite verifica-se apenas no Estado-membro onde os sinais por-
tadores do programa são introduzidos, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão,
numa cadeia ininterrupta de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra;”.
128 “Sempre que um ato de comunicação ao público por satélite se verifique num país terceiro que não
81
2) Em outra ordem de ideias, também encontramos uma norma de lei
aplicável, baseada no “princípio de reconhecimento mútuo”, no art. 4 da re-
cente Diretiva 2012/28/UE, sobre certos usos autorizados das obras órfãs, ao
regular a questão relativa ao “Reconhecimento mútuo da condição de obras
órfãs” 129.
3) Por último, as mais recentes iniciativas neste âmbito igualmente
se baseiam no “princípio de origem”, com a finalidade de facilitar a concessão
de licenças multiterritoriais de direitos de autor em linha, válidas para todo o
mercado europeu. Tal e qual como se aprecia tanto o “Livro Verde de 2011
sobre a distribuição em linha de obras audiovisuais na União Europeia - Rumo
a um mercado único digital: oportunidades e desafios”130, como no art. 21 da
“Proposta de Diretiva de 2012 relativa à gestão coletiva dos direitos de autor
e direitos afins e a concessão de licenças multiterritoriais de direitos sobre
obras musicais para sua utilização em linha no mercado interior” 131.

4. Valoração
Guillermo Palao Moreno

A consolidação do mercado interior e o incremento das relações


transfronteiriças se situam detrás da paulatina elaboração de normas de Di-
reito internacional privado relacionadas com a ordenação dos Direitos de pro-
priedade intelectual. Este esforço legislativo se caracteriza por sua dispersão
em um significativo número de instrumentos europeus que têm encontrado
suas bases jurídicas na política de mercado interior ou na justiça em matéria
civil. O resultado alcançado tem sido um conjunto normativo assistemático

preveja o nível de proteção previsto no capítulo II da presente diretiva:


i) se os sinais portadores de programas forem transmitidos para o satélite por uma estação de ligação as-
cendente localizada num Estado-membro, considera-se que esse ato de comunicação ao público por satélite
ocorreu nesse Estado-membro, podendo ser exercidos os direitos previstos no capítulo II contra a pessoa que
opera a estação de ligação ascendente, ou
ii) se não for utilizada uma estação de ligação ascendente localizada num Estado-membro mas um orga-
nismo de radiodifusão constituído num Estado-membro tiver incumbido outrem desse ato de comunicação
ao público por satélite, considerar-se-á que esse ato ocorreu no Estado-membro em que a organização de
radiodifusão tem o seu estabelecimento principal na Comunidade, podendo ser exercidos os direitos previs-
tos no capítulo II contra o organismo de radiodifusão.”.
129 D.O.U.E. nº L 299/5, de 27 de Outubro de 2012. O texto do preceito dispõe: “As obras ou fonogramas
considerados obras órfãs num Estado- -Membro nos termos do artigo 2. o são considerados obras órfãs em
todos os Estados-Membros. Essas obras ou fonogramas podem ser utilizados e colocados à disposição do
público nos termos da presente diretiva em todos os Estados-Membros. Tal aplica-se igualmente às obras
e aos fonogramas referidos no artigo 2. o , n. o 2, no que se refere aos direitos dos titulares de direitos não
identificados ou não localizados.”.
130 COM (2011) 427 final. Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/consultations/docs/2011/
audiovisual/green_paper_COM2011_427_es.pdf. Acesso em: 1 de Julio de 2013.
131 COM (2012) 372 final. Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/docs/manage-
ment/com-2012-3722_es.pdf Acesso em: 1 de Julio de 2013.
82
propriedade intelectual
que suscita problemas de aplicação prática. Por ele, o objetivo deste estudo
tem sido elaborar um inventário de tais normas e algumas das dificuldades
que geram. À vista desse panorama pode-se afirmar que resultaria aconse-
lhável redefinir dito processo legislativo, para dotá-lo de coerência e caráter
sistemático. Nesse sentido, se entende que o modelo que oferecem os “Princí-
pios CLIP” se apresenta como uma interessante aproximação que poderia ser
levado em conta pelo legislador europeu neste âmbito.

83
propriedade intelectual
O DOMÍNIO PÚBLICO VOLUNTÁRIO

Sérgio Branco132

1. Introdução
A lei de direitos autorais brasileira estabelece critérios para uma obra
ingressar em domínio público, sendo o mais evidente o decurso do tempo. Em
regra, as obras de um autor entram em domínio público setenta anos após sua
morte, havendo contudo exceções para obras fotográficas e audiovisuais (en-
tre outras), que seguem curso cronológico distinto. Indaga-se, entretanto, se
seria possível a dedicação voluntária de uma obra ao domínio público, bastan-
to-se para isso a vontade do autor. Como o caso não é expressamente tratado
na lei, mas desperta interesse prático, julgamos relevante analisar a hipótese
a partir dos princípios hoje vigentes no sistema de direitos autorais brasileiro.
De maneira sintética, podemos entender o ingresso de uma obra no
domínio público como decorrência do esgotamento dos direitos patrimoniais
previstos na lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98, doravante designa-
da “LDA”). Como se sabe, a criação de uma obra intelectual passível de prote-
ção por direitos autorais confere a seu autor duas gamas de direitos, os morais
e os patrimoniais.
Os primeiros, elencados no art. 24 da LDA, são direitos não econômi-
cos. Apesar da falta de homogeneidade entre os sete incisos de referido arti-
go, são comumente compreendidos como direitos de natureza pessoal (não
patrimonial), o que justificaria o texto do art. 27 da LDA, que determina serem
os direitos morais de autor inalienáveis e irrenunciáveis.
Já os direitos patrimoniais têm, como o próprio nome nos faz perce-
ber, caráter econômico. Estão previstos no art. 29 da LDA, e incluem, entre
outros, os direitos de reproduzir a obra protegida, editá-la, adaptá-la para ou-
tros meios de comunicação, traduzi-la e distribuí-la.
Ao contrário dos direitos morais, que subsistem parcialmente após
a morte do autor e mesmo além do ingresso da obra em domínio público, os
direitos patrimoniais se extinguem, em regra, setenta anos depois da morte
do criador da obra protegida. Para fotografias e obras audiovisuais, contudo, o

132 Professor e pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Doutor em Direito Civil pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
85
prazo é de setenta anos contados de sua publicação. E é justamente ao cabo
desse prazo que a obra entra em domínio público. A partir desse momento,
qualquer pessoa pode praticar os atos previstos no art. 29 da LDA sem neces-
sidade de autorização de terceiros ou de pagamento pelo uso.
Ainda que o decurso do prazo de proteção seja a causa mais recor-
rente para o ingresso de uma obra em domínio público, não é a única. A LDA
determina, em seu art. 45, as hipóteses de extinção dos direitos patrimoniais
de autor. Prescreve o mencionado artigo:
Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de pro-
teção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:
I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;
II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhe-
cimentos étnicos e tradicionais.
Como se vê, as hipóteses legalmente previstas são três. A primeira (e
mais comum) é aquela da qual tratamos acima – o fim do prazo de proteção.
Sérgio Branco

A segunda diz respeito a autor que tenha falecido sem deixar herdeiros (e,
veja-se bem, sem ter transferido os direitos a terceiro, ainda em vida. Afinal,
mesmo que não tenha deixado herdeiros, pode ter celebrado contrato com
pessoa física ou jurídica, sendo necessário, em tal caso, aguardar-se o prazo
final do contrato, se de licença, ou o até mesmo o fim do prazo de proteção,
caso o contrato seja de cessão de direitos). A terceira e última hipótese legal-
mente enunciada diz respeito a obras de autoria desconhecida.
A LDA parece fazer distinção entre obra anônima e obra de autor
desconhecido. Por uma questão lógico-jurídica, obra de autor desconhecido
não é a obra anônima de que trata o art. 43. Se assim fosse, haveria uma in-
compatibilidade entre o previsto nesse artigo (que atribui proteção às obras
anônimas) e o previsto no art. 45, II, ao estabelecer que as obras de autor
desconhecido estão em domínio público. Assim, obra de autor desconhecido
é diferente de obra anônima (que a LDA melhor qualificaria como “obra de
autoria anônima”).
Que vem a ser obra de autor desconhecido, então? Enquanto as obras
anônimas são aquelas em que o autor optou pelo anonimato quando pode-
ria ter optado por publicá-la sob seu próprio nome ou pseudônimo, as obras
de autor desconhecido são aquelas cuja indicação de autoria se perdeu no
tempo, ainda que esse (atual) desconhecimento de autoria tenha se dado à
revelia do autor. Observamos que o tema é complexo e sua análise minuciosa
extrapolaria os limites deste trabalho.
86
propriedade intelectual
Avançamos, assim, para a hipótese de que cuidamos e que não está
expressamente prevista na LDA: a possibilidade de uma obra entrar em domí-
nio público pela vontade do autor.
A primeira indagação que se deve fazer é: faz sentido alguém dedicar
uma obra intelectual ao domínio público? O ingresso voluntário da obra no
domínio público não iria contra todo o esforço de se proteger as obras auto-
rais construído ao longo dos dois últimos séculos? Por que alguém desejaria
destinar sua obra ao domínio público?

2. Novas Perspectivas do Direito Autoral


Nos termos da LDA, as obras intelectuais são protegidas (se protegi-
das) independentemente da vontade do autor e mesmo contra a sua vontade.
Um autor pode ter interesse em ver sua obra circular livremente, pode querer
abrir mão do direito de autorizar individualmente a reprodução de sua obra,
pode, em síntese, querer que ela possa ser acessada e distribuída na íntegra,
diferentemente do que a LDA prevê como padrão.
A hipótese não é descabida. O homem sempre criou, independente-
mente de leis que assegurem monopólios e independentemente da percep-
ção de lucro pela exploração econômica da obra. Shakespeare, Dante, Chau-
cer, Cervantes, Montaigne, Milton, Gil Vicente, Bocage e Padre Antônio Vieira,
entre muitos outros que poderíamos citar, criaram obras-primas da literatura
sem que houvesse, à época, qualquer proteção a direitos autorais. Se o mo-
nopólio existe para estimular a criação, não é, entretanto, condição sine qua
non para esta.
Ademais, a internet veio, em meados dos anos 1990, pôr à prova não
apenas o papel dos direitos autorais como de todos os modelos de negócio de
cultura consolidados no século XX. Até os anos 1980, a produção e a difusão
da cultura de massa eram controladas, exclusivamente, pelos grandes con-
glomerados da mídia. À sociedade apenas se permitia acessar aqueles bens
físicos que eram tornados disponíveis por quem detinha o controle da obra.
Depois do ingresso da obra original no mercado, sua reprodução não autori-
zada era quase sempre difícil de ser obtida, muitas vezes a qualidade era baixa
e não raro o custo era alto133.
133 Até o início dos anos 1990, LPs e fitas de vídeo cassete eram copiadas apenas em outras fitas, sendo
que a qualidade da cópia era muitas vezes sofrível e seu desgaste se dava com bastante rapidez. Além
disso, seria indispensável ter acesso à obra original para dela se obter uma cópia, e o acesso nem sempre
era simples, pois em um mundo ainda não digital, o acesso se restringia às cópias físicas das obras que
houvesse em circulação. A propósito, cabe lembrar que até 1998, a cópia de qualquer obra na íntegra não
violava os direitos autorais nos termos da lei 5.988/73, em vigor até então, que permitia uma cópia integral
de qualquer obra, desde que para fins privados.
87
Após o surgimento da internet, os direitos autorais, que antes interes-
savam, em regra, apenas a produtores de música e de obras audiovisuais e aos
editores de obras literárias, passou a dizer respeito à vida de todos. Essa mu-
dança de abrangência na importância da matéria decorre muito certamente
da popularização dos meios de tecnologia e sua apreensão pela classe média
e pelas periferias globais.
Atualmente, é muito provável que qualquer pessoa munida de um
telefone celular e de um computador com acesso à internet possa distribuir
sua própria produção literária e audiovisual, além de acessar, modificar e dis-
tribuir a produção alheia. É isso o que ocorre diariamente em websites como
Youtube, Flickr, Blogger e Facebook, apenas para ficar com algumas das ferra-
mentas mais poderosas globalmente. Mas não só. Até canais outrora tradicio-
nais, como o jornal O Globo, vêm recebendo contribuição cada vez maior de
pessoas não profissionais, que submetem ao periódico fotos ou textos de sua
autoria para publicação.
A rede de acesso e distribuição de conteúdo que constitui a base da
Web 2.0134 não se ajusta ao modelo de direitos autorais forjado a partir da
Sérgio Branco

Convenção de Berna de 1886 e construído pelas diversas leis nacionais que


tratam do assunto. Pelo sistema legal vigente, copiar a foto de um amigo de
seu perfil do Facebook ou de qualquer outra rede social, sem sua autorização,
constitui violação de direitos autorais. Assim como, muitas vezes, baixar víde-
os do Youtube ou copiar textos hospedados em um dos blogs do Blogger ou
do Wordpress. Ainda que a conduta seja praticada sem fins lucrativos, com
correta indicação de autoria e de procedência e mesmo que o autor não se
incomode com a prática, o ato de fazer reprodução integral da obra seu auto-
rização do autor poderá ser visto como infração à LDA135.
É bem verdade que muitas vezes a obra objeto de reprodução não
tem qualquer ambição artística, não passando de um registro textual ou au-
diovisual de um momento. Nesses casos, o autor não tem interesse na explo-
ração da obra e ela se encontra disponível na internet tão somente para ser
acessada por seus amigos e conhecidos. É o que ocorre com boa parte das
informações constantes das redes sociais.
Por outro lado, pode o autor tornar sua obra disponível na internet exa-
tamente por acreditar em seu potencial econômico. Em tais casos, é comum o

134 O termo foi concebido em 2004 por Dale Dougherty e popularizado por Tim O´Reilly. Hoje, a conver-
gência de utilidades permitida a partir da conexão com a internet (é possível acessar vídeos, músicas, fotos
e textos de terceiros, manipulá-los e, do mesmo modo – porém em via oposta – disponibilizar vídeos, músi-
cas, fotos e textos) está se espalhando para além dos computadores, em celulares e, em breve, na televisão.
135 Basta confrontar o disposto nos artigos 28, 29 e 46 da LDA para a violação se tornar evidente.
88
propriedade intelectual
autor crer que a proteção conferida pela LDA serve de entrave à circulação da
obra e que esse entrave acaba por ser maléfico a seus interesses comerciais.
Para um autor estreante, talvez faça mais sentido que sua obra se tor-
ne disponível de graça na internet, podendo qualquer pessoa fazer cópia dela,
do que esperar por uma proteção que muitas vezes não se reverterá nem em
um público maior desfrutando da obra nem em benefícios financeiros.
Não apenas artistas iniciantes têm dispensado a proteção legal. Gru-
pos como Radiohead se valem de estratégias comerciais pouco ortodoxas (até
o momento) para promover seus novos trabalhos, tentando torná-los disponí-
veis por valores mais palatáveis ao público consumidor além de se aproximar
dos fãs por meio de contato direto em websites136.
A profusão de conteúdo existente na internet certamente contribuiu
para a busca de novos modelos de negócio. Novos porque se distinguem da-
queles desenvolvidos e consagrados ao longo do século XX e que, atualmente,
são insuficientes para distribuir obras culturais e remunerar artistas. Nesse
sentido, o modelo musical do tecnobrega137 e a produção audiovisual nigeria-
na138 são bons exemplos.
Tais modelos se caracterizam sobretudo pela renúncia a (ou pela flexi-
bilização de) determinados direitos autorais previstos pela LDA. No modelo do
tecnobrega, por exemplo, muitas vezes não se impede a reprodução da obra
(no caso, dos CDs). Ao contrário, a reprodução é estimulada para que o artista
se torne conhecido e passe a se remunerar por meio de shows, não apenas
pela venda de CDs139.
Ocorre que o simples fato de a obra estar disponível na internet não
significa que o autor tenha consentido com sua reprodução por quem quer
que seja140. Muito menos, evidentemente, que a obra esteja em domínio pú-
136 Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/10/01/297954778.asp.
137 Ver, de Ronaldo Lemos e Oona Castro, “Tecnobrega – o Pará Reinventando o Negócio da Música”. LE-
MOS, Ronaldo e CASTRO, Oona. Tecnobrega – o Pará Reinventando o Negócio da Música. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2008.
138 IGWE, Charles. A Indústria Cinematográfica Nigeriana e KUSAMOTU, Ayo. Um Olhar sobre o Cinema
Nigeriano. LEMOS, Ronaldo; SOUZA, Carlos Affonso Pereira de e MACIEL, Marília (orgs). Três Dimensões do
Cinema – Economia, Direitos Autorais e Tecnologia. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2010; pp. 107 e ss.
139 Desnecessário dizer que tais práticas devem ser encaradas como alternativas ao modelo tradicional
e não como imposições. Aos autores – e somente a eles – competirá decidir se devem se valer do direito
autoral previsto na LDA ou de práticas inovadoras. Ademais, cada setor da indústria cultural conta com suas
peculiaridades e, por hipótese, o que pode funcionar para a música pode ser inviável para livros. Final-
mente, uma coisa é a remuneração dos artistas – cantores e músicos. Outra, distinta, é a remuneração dos
autores. Para cada classe devem ser perseguidas as melhores soluções.
140 Sobre o tema, ver dissertação de mestrado: BRANCO JR., Sérgio Vieira. Direitos Autorais na Internet
e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. A obra pode ser acessada também em http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2832.
89
blico. Para as obras disponíveis na internet, vigoram exatamente as mesmas
regras jurídicas de direitos autorais para obras em meio físico, ainda que na
internet seja consideravelmente mais difícil dar eficácia a tais normas.
De fato, a (falta de) eficácia da LDA na internet é mais uma evidência
de como os modelos de proteção construídos a partir do final do século XIX
são hoje insuficientes para dar conta da revolução tecnológica que vivemos.
E nem se trata apenas do acesso a obras alheias, que pode se dar contra a
vontade do autor; mencionamos, aqui, o fato de a LDA proteger demais os
autores, mesmo quando eles dispensam a proteção.
Se um autor, por um motivo qualquer (porque entende que é inútil
proteger sua obra - que carece de importância econômica, ou porque pre-
fere vê-la difundida para auferir lucros por meio de outras modalidades de
negócio), deseja que sua obra seja copiada pelos usuários da internet, não
basta apenas não coibir a reprodução. Quem copia obra na íntegra, ainda que
o autor nada faça para impedir a cópia, viola direitos autorais. Por isso, tor-
nou-se necessário que o autor consinta expressamente com a reprodução de
sua obra. Surgiram, assim, as licenças públicas gerais, sendo a licença Creative
Sérgio Branco

Commons uma das mais notórias. Para entendê-las, devemos tratar primeiro
do conceito de commons.

3. As licenças públicas


O conceito de commons tem sido muito debatido atualmente. Au-
tores como Lawrence Lessig e James Boyle, em obras a respeito de direitos
autorais141, vêm delimitando o tema com bastante precisão.
Em síntese estreita, Lessig parte do princípio de “commons” como
algo a que as pessoas de determinada comunidade têm acesso sem a neces-
sidade de se obter qualquer permissão. Aponta o autor como exemplos de
“commons”: (i) ruas públicas; (ii) praças e praias; (iii) a teoria da relatividade de
Einstein e (iv) escritos em domínio público. Distingue, ainda, os dois primeiros
itens dos dois últimos a partir das seguintes considerações142:
A teoria da relatividade de Einstein é diferente das ruas ou praias pú-
blicas. A teoria de Einstein é totalmente “não-rival” [no sentido de que não há
141 “Cultura Livre” e “The Public Domain”, respectivamente.
142 LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World. New York:
Random House, 2001., p. 21. No original, lê-se que: “Einstein’s theory of relativity is different from the
streets or public beaches. Einstein’s theory is fully “nonrivalrous”; the streets and beaches are not. If you use
the theory of relativity, there is much left over afterward as there was before. Your consumption, in other
words, does not rival my own. But roads and beaches are very different. If everyone tries to use the roads at
the very same time (something that apparently happens out here in California often), then their use rivals
my own. Traffic jams; public beaches crowded”.
90
propriedade intelectual
rivalidade no uso por mais de uma pessoa]; as ruas e as praias não são. Se você
usa a teoria da relatividade, há tanto para ser usado depois quanto havia para
ser usado antes. Seu consumo, em outras palavras, não rivaliza com o meu
próprio. Mas estradas e praias são muito diferentes. Se todos tentam usar as
estradas ao mesmo tempo (algo que aparentemente acontece na Califórnia
com freqüência), então o seu uso das estradas rivaliza com o meu. Engarrafa-
mentos, praias públicas lotadas.
Na opinião de James Boyle, vivemos o que pode ser chamado de “se-
cond enclosure movement”. De acordo com o professor da Duke University143,
o “primeiro movimento de cercamento”, se pudermos assim nos expressar,
teria sido a tomada de terras pertencentes a todos (common land) para, por
meio de sua delimitação física, torná-la particular144. O segundo momento é o
do cercamento da propriedade intelectual.
A reação a esse aprisionamento da propriedade intelectual tem sido o
desenvolvimento de mecanismos de abertura do conteúdo, como o software
livre e as licenças Creative Commons145.
As licenças Creative Commons (assim como quaisquer outras licenças
públicas gerais que tenham a mesma finalidade) resolvem um dos grandes
problemas da nossa lei autoral: a impossibilidade de cópia integral da obra
sem prévia e expressa autorização do autor. A depender da vontade do autor
(que é quem determina a extensão da licença), outros direitos também po-
dem ser conferidos aos usuários, como o direito de modificar a obra original
e, inclusive (caso o autor assim deseje), o direito de explorar a obra economi-
camente.
Dessa forma, tem se tornado muito comum o licenciamento de obras
por meio de licenças públicas pelas quais o autor permite a cópia integral da
obra independentemente de autorização específica para cada usuário. Na ver-
dade, a própria licença é uma forma de autorização prévia.

143 BOYLE, James. The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain. Law
and Contemporary Problems – vol. 66; pp. 33 e ss. Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite.
pl?66+Law+&+Contemp.+Probs.+33+(WinterSpring+2003).
144 Este movimento de privatização foi bastante criticado por Rousseau, a ponto de fazê-lo afirmar que
“[o] primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: ‘isto é meu’, e encontrou pessoas bastan-
te simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”.
145 Para aprofundamento do tema, ver, entre outros, “Cultura Livre”, de Lawrence Lessig e “Direito, Tec-
nologia e Cultura”, de Ronaldo Lemos. LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: ed.
FGV, 2005. Já tivemos a oportunidade de escrevermos sobre o tema em BRANCO Jr., Sérgio Vieira. Direitos
Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, disponível em http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2832 e em LEMOS, Ronaldo e BRANCO, Sérgio. Copyleft, Sof-
tware Livre e Creative Commons: A Nova Feição dos Direitos Autorais e as Obras Colaborativas. Revista de
Direito Administrativo – vol. 243. São Paulo: ed. Atlas, 2006; pp. 148 e ss.
91
Em sua versão 3.0, de 2010, as licenças Creative Commons traduzidas
para o português e adaptadas a nosso ordenamento jurídico contam com qua-
tro elementos intercambiáveis que geram seis possíveis licenças. Os elementos
são atribuição (obrigatório, em respeito ao direito moral de paternidade); uso
não comercial (a obra somente pode ser usada sem fins comerciais); vedação
à criação de obra derivada (a obra deve ser usada sem qualquer alteração);
compartilhamento pela mesma licença (é permitida obra derivada, desde que
esta seja objeto de licenciamento idêntico ao da obra original)146.
Ao atribuir uma das licenças à sua obra, o autor informa à sociedade,
a priori, que tipo de uso pode fazer de seu trabalho: com ou sem fins comer-
ciais, permitidas ou não alterações etc. No mínimo – ou seja, pela licença mais
rigorosa –, deverá ser conferido o direito de se fazer cópia integral da obra
para uso privado.
Por outro lado, a licença mais ampla de todas, denominada apenas
de “Atribuição”, autoriza terceiros a fazerem qualquer uso da obra licenciada,
desde que sua autoria seja mencionada corretamente. Apesar de não ser uma
licença de domínio público, os efeitos produzidos por sua utilização dele se
Sérgio Branco

aproximam, tanto na esfera dos direitos morais quanto na dos direitos patri-
moniais147. Por tais motivos, esta a licença que por hora mais nos interessa.
A licença “Atribuição”, em sua versão atual, decorre da escolha do
autor em permitir uso comercial de sua própria obra e criação de obras deri-
vadas, renunciando expressamente ao recolhimento de direitos autorais. Por-
tanto, nos aspectos patrimoniais, já que pode ser explorada comercialmente
e livremente modificada, sem autorização ou licença específica por parte do
titular, existe aproximação dos efeitos gerados com o ingresso da obra em
domínio público148.
146 As licenças que resultam da combinação dos referidos elementos são: (i) atribuição; (ii) atribuição -
uso não comercial; (iii) atribuição - não a obras derivadas; (iv) atribuição - compartilhamento pela mesma
licença; (v) atribuição - uso não comercial - não a obras derivadas e (vi) atribuição - uso não comercial - com-
partilhamento pela mesma licença.
147 César Iglesias Rebollo classifica iniciativas como o software livre e as licenças Creative Commons como
“apoiadas no domínio público voluntário”. REBOLLO, César Iglesias. Software Libre y Otras Formas de Domí-
nio Público Anticipado. Coord.: Carlos Rogel Vide. Madri: Réus, 2005; p. 200.
148 Prevê o texto da licença: 3. Concessão da licença. O Licenciante concede a Você uma licença de abran-
gência mundial, sem royalties, não-exclusiva, perpétua (pela duração do direito autoral aplicável), sujeita
aos termos e condições desta Licença, para exercer os direitos sobre a Obra definidos abaixo: Reproduzir
a Obra, incorporar a Obra em uma ou mais Obras Coletivas e Reproduzir a Obra quando incorporada em
Obras Coletivas; Criar e Reproduzir Obras Derivadas, desde que qualquer Obra Derivada, inclusive qualquer
tradução, em qualquer meio, adote razoáveis medidas para claramente indicar, demarcar ou de qualquer
maneira identificar que mudanças foram feitas à Obra original. Uma tradução, por exemplo, poderia assina-
lar que “A Obra original foi traduzida do Inglês para o Português” ou uma modificação poderia indicar que
“A Obra original foi modificada”; Distribuir e Executar Publicamente a Obra, incluindo as Obras incorporadas
em Obras Coletivas; e, Distribuir e Executar Publicamente Obras Derivadas. O Licenciante renuncia ao direi-
to de recolher royalties, seja individualmente ou, na hipótese de o Licenciante ser membro de uma socieda-
92
propriedade intelectual
Na verdade, os efeitos produzidos pela aplicação da licença “Atribui-
ção” muito se assemelham aos do domínio público, mas ambos não se equiva-
lem. De acordo com o texto da licença, sua abrangência é mundial. O ingresso
da obra em domínio público, por outro lado, depende da lei de cada um dos
países onde a proteção é demandada. Além disso, o domínio público afeta
diretamente o exercício de determinados direitos morais149, enquanto que o
texto da licença “Atribuição” expressamente informa que “na extensão em
que reconhecidos e considerados indisponíveis pela legislação aplicável, direi-
tos morais não são afetados por esta Licença”.
Do ponto de vista do direito autoral patrimonial, a licença “Atribui-
ção” produz os mesmos efeitos decorrentes da entrada de determinada obra
em domínio público, só que em âmbito mundial. Além disso, um outro efeito
idêntico ao do ingresso de obra em domínio público é que as licenças Creative
Commons são outorgadas em caráter perpétuo. A rigor, a licença confere ao
titular o direito de difundir a obra sob outros termos ou de cessar a distribui-
ção da obra licenciada a qualquer momento. No entanto, nenhuma dessas
condutas será considerada revogação da licença e naturalmente os direitos
adquiridos durante o período em que a obra esteve em circulação por vonta-
de do titular deverão ser respeitados150.
Por tudo isso, a outorga da licença Creative Commons do tipo “Atri-
buição” a determinada obra em muito se assemelha a dedicá-la ao domínio
público por conta da proximidade de seus efeitos151.
de de gestão coletiva de direitos (por exemplo, ECAD, ASCAP, BMI, SESAC), via essa sociedade, por qualquer
exercício Seu sobre os direitos concedidos sob esta Licença. Os direitos acima podem ser exercidos em
todas as mídias e formatos, independente de serem conhecidos agora ou concebidos posteriormente. Os
direitos acima incluem o direito de fazer as modificações que forem tecnicamente necessárias para exercer
os direitos em outras mídias, meios e formatos. Todos os direitos não concedidos expressamente pelo Li-
cenciante ficam ora reservados. Disponível em http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/legalcode.
149 Ver Branco, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9137.
150 Prevê ainda o texto da licença: 7. Terminação. Esta Licença e os direitos aqui concedidos terminarão
automaticamente no caso de qualquer violação dos termos desta Licença por Você. Pessoas físicas ou jurídi-
cas que tenham recebido Obras Derivadas ou Obras Coletivas de Você sob esta Licença, entretanto, não te-
rão suas licenças terminadas desde que tais pessoas físicas ou jurídicas permaneçam em total cumprimento
com essas licenças. As Seções 1, 2, 5, 6, 7 e 8 subsistirão a qualquer terminação desta Licença. Sujeito aos
termos e condições dispostos acima, a licença aqui concedida é perpétua (pela duração do direito autoral
aplicável à Obra). Não obstante o disposto acima, o Licenciante reserva-se o direito de difundir a Obra
sob termos diferentes de licença ou de cessar a distribuição da Obra a qualquer momento; desde que, no
entanto, quaisquer destas ações não sirvam como meio de retratação desta Licença (ou de qualquer outra
licença que tenha sido concedida sob os termos desta Licença, ou que deva ser concedida sob os termos
desta Licença) e esta Licença continuará válida e eficaz a não ser que seja terminada de acordo com o dis-
posto acima. Disponível em http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/legalcode.
151 Amy J. Benjamin e John LaBarre defendem que, para os que querem permitir o uso de suas obras
por terceiros, as licenças públicas são uma solução melhor do que o domínio público voluntário. Segundo
os autores, as licenças públicas permitem ao autor ter um controle mínimo sobre o modo como a obra é
93
Ainda assim, o projeto Creative Commons conta com uma licença es-
pecífica para que autores dediquem suas obras ao domínio público, a licença
CC0. Em razão das diversas especificidades legais, que variam de país para
país, a CC0 permite que autores dediquem ao domínio público suas obras “no
limite permitido por lei”152. Ou seja, os efeitos da licença seriam distintos a
depender de como a lei local regula a possibilidade de os autores abrirem mão
de seus direitos autorais.
Dessa forma, pelo menos assim nos parece, no Brasil, a licença CC0
seria admissível desde que respeitados os direitos morais que subsistem após
o ingresso da obra em domínio público, já que quanto aos direitos patrimo-
niais não há nada que impeça sua renúncia. Afinal, assim como se dá com o
uso da licença “Atribuição”, a licença CC0 apenas antecipa os efeitos do domí-
nio público sobre a obra licenciada. Há que se atentar, entretanto, para o fato
de que a licença CC0 automaticamente promove o ingresso da obra licenciada
no domínio público de todos os países do mundo, não apenas naquele onde
se dá o licenciamento.
Mesmo que eventualmente venha a se considerar que a licença CC0
Sérgio Branco

não pode ser utilizada para licenciar obras no Brasil, em razão de incompatibi-
lidade com os direitos morais previstos na LDA, é importante apontarmos que
o texto da própria licença determina que “se qualquer parte da licença for con-
siderada legalmente inválida ou ineficaz de acordo com a lei aplicável, então
a licença deverá ser preservada no limite máximo permitido de acordo com
a manifestação de vontade do licenciante”153. Como os direitos patrimoniais
são normalmente aqueles sobre os quais versam as maiores controvérsias – e
quanto à sua disponibilidade parece não haver contestação significativa – ain-
da que a licença CC0 viesse a ser considerada parcialmente inválida diante
do ordenamento jurídico brasileiro, os efeitos decorrentes da disposição dos
direitos patrimoniais já nos parecem suficientes para atender tanto a vontade
do autor-licenciante quanto a vontade do usuário-licenciado.
utilizada, inclusive obrigando que obras derivadas também sejam licenciadas. No caso do domínio público,
entretanto, terceiros podem modificar a obra original e impedir sua circulação em sua versão modificada, já
que a nova obra estará protegida por direitos autorais. BENJAMIN, Amy J. e LABARRE, John. Donating Works
to the Public Domain Isn’t Always the Best Way to Provide the Public Access to Your Work. Disponível em:
http://www.accessmylibrary.com/article-1G1-148278643/donating-works-public-domain.html.
152  Disponível em http://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/. Para maiores informações, ver
http://wiki.creativecommons.org/CC0_FAQ e http://creativecommons.org/choose/zero/. De acordo com
informações no website de questões frequentemente propostas (FAQ, ou frequently asked questions), a
diferença entre a licença “Atribuição” e a licença “Domínio Público” seria que a adoção da segunda não
obrigaria ao terceiro, ao usar a obra, que indicasse sua autoria. No entanto, em razão da LDA, essa obriga-
ção resistiria por força do disposto no art. 24, I.
153 Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[s]hould any part of the Waiver for any reason be jud-
ged legally invalid or ineffective under applicable law, then the Waiver shall be preserved to the maximum
extent permitted taking into account Affirmer’s express Statement of Purpose”. Disponível em http://creati-
vecommons.org/publicdomain/zero/1.0/legalcode.
94
propriedade intelectual
Em outubro de 2010, o projeto Creative Commons anunciou o lança-
mento do Creative Commons Mark, ferramenta que permite que trabalhos
em domínio público sejam facilmente identificados e encontrados na internet.
A iniciativa foi saudada com bastante entusiasmo e a rede Europeana154, que
contém mais de 14 milhões de itens de imagens, textos, arquivos em áudio e
em vídeo155, comunicou a adoção da marca a partir de 2011 para indicar obras
em domínio público156.
A grande vantagem da adoção do Creative Commons Mark é a iden-
tificação de obras em domínio público, uma vez que não existe um sistema
de registro de obras mundial que possa ser consultado. Se o sistema não é
infalível, sua adoção por grandes museus, galerias e arquivos públicos pode-
rá, entretanto, ser fundamental para dar maior segurança jurídica ao uso de
obras culturais por parte de terceiros.

4. O Domínio Público Voluntário


Caso não se deseje usar uma licença pública geral, seria possível dedi-
car obra ao domínio público de outra maneira? Entendemos que sim.
Em detalhado estudo de análise das leis de Argélia, Austrália, Brasil,
Chile, China, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos, França,
Itália, Quênia, Malásia e Ruanda, Séverine Dussolier aponta que países como o
Chile e Quênia autorizam, de alguma forma, o domínio público voluntário157. A
lei chilena158, por exemplo, prevê expressamente que pertencem ao patrimô-
nio cultural comum, entre outras hipóteses, as obras cujos titulares renuncia-
ram à proteção outorgada pela lei159 (ainda que a lei silencie sobre a forma da
renúncia, bem como a precisa abrangência de seus efeitos).
Por sua vez, a legislação do Quênia determina que pertencem ao do-
mínio público, entre outras, as obras cujos autores renunciaram a seus direi-
154 Disponível em http://www.europeana.eu/portal/index.html.
155 Disponível em http://www.europeana.eu/portal/aboutus.html.
156 Disponível em http://creativecommons.org/press-releases/entry/23755.
157 DUSSOLIER, Séverine. Scoping Study on Copyright and Related Rights and the Public Domain; p. 33.
Disponível em http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/news/2010/news_0007.html.
158 Cabe lembrar que o Chile adota o sistema legal romano-germânico, tal qual o Brasil, e se filia ao droit
d’auteur, de modo que tais características não podem ser consideradas, em si mesmas, obstáculo à existên-
cia de um domínio público voluntário.
159 Artículo 11º- Pertenecen al patrimonio cultural común: a) Las obras cuyo plazo de protección se haya
extinguido; b) La obra de autor desconocido, incluyéndose las canciones, leyendas, danzas y las expresiones
del acervo folklórico; c) Las obras cuyos titulares renunciaraon a la protección que otorga esta ley; d) Las
obras de autores extranjeros, domiciliados en el exterior que no estén protegidos en la forma establecida en
el artículo 2°, y e) Las obras que fueren expropiadas por el Estado, salvo que la ley especifique un beneficia-
rio. Las obras del patrimonio cultural común podrán ser utilizadas por cualquiera, siempre que se respete la
paternidad y la integridad de la obra. Disponível em http://www.leychile.cl/.
95
tos. A seguir, prevê que a renúncia por parte do autor ou de seu sucessor
deve se dar por escrito e tornada pública, não podendo contrariar obrigações
contratuais prévias160.
Exceto pelos casos previstos em lei, a possibilidade de dedicar obras
ao domínio público pode ser de fato controvertida. Séverine Dussolier afirma
que em algumas legislações não está claro se o titular do direito pode renun-
ciar ao exercício completo de seus direitos exclusivos. E se por um lado a dis-
cussão acerca da disponibilidade dos direitos patrimoniais é menos duvidosa
(exatamente por conta da possibilidade de disposição de bens patrimoniais
em geral), dúvida maior se põe acerca dos efeitos do domínio público voluntá-
rio em relação aos direitos morais161.
Quanto ao aspecto patrimonial, a possibilidade se verifica quer se en-
tendam os direitos autorais como objeto de propriedade, quer se entendam
como objeto de monopólio. Sendo propriedade, o Código Civil brasileiro (Lei
10.406/02, doravante “CCB”) é expresso em determinar que perde-se a pro-
priedade pela renúncia162. Nesse caso, não se trataria de uma renúncia em
Sérgio Branco

favor de terceiro específico, mas em favor de toda a sociedade. Sendo mo-


nopólio, deve vigorar, por analogia, o mesmo sistema da Lei de Propriedade
Industrial (lei 9.279/96, doravante “LPI”), que autoriza a extinção das patentes
pela renúncia de seu titular, ressalvado o direito de terceiros163.
Em qualquer caso, trata-se de renúncia a direitos. Será, portanto,
consumada pela simples declaração do titular, por se tratar de ato unilateral.
A renúncia deverá ser irrevogável164 (assim como a cessão, assim como a do-
ação, exceto em casos especialíssimos, como o de manifestação de vontade
viciada). Finalmente, a renúncia deve ser interpretada restritivamente.

160 45.(1) The following works shall belong to the public domain: (a) works whose terms of protection
have expired; (b) works in respect of which authors have renounced their rights; and (c) foreign works
which do not enjoy protection in Kenya. (2) For the purposes of paragraph (b), renunciation by an author
or his successor in title of his rights shall be in writing and made public but any such renunciation shall not
be contrary to any previous contractual obligation relating to the work. Disponível em http://portal.unesco.
org/culture/en/files/30229/11416612103ke_copyright_2001_en.pdf/ke_copyright_2001_en.pdf.
161 DUSSOLIER, Séverine. Scoping Study on Copyright and Related Rights and the Public Domain; p. 33.
Disponível em http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/news/2010/news_0007.html.
162 Código Civil brasileiro, art. 1.275, II. Em tal caso, seria necessário observar as peculiaridades de se
tratar de uma propriedade que, embora renunciada por seu titular, não poderia vir a integrar o patrimônio
de terceiro com exclusividade, ao contrário do que acontece em regra com as res derelictae corpóreas.
163 LPI, art. 78, II.
164 “O ingresso no domínio público em cada sistema jurídico é incondicional, universal e definitivo; a
criação passa a ser comum de todos, e todos têm o direito de mantê-la em comunhão, impedindo a apro-
priação singular. Não se trata de abandono da obra, res nullius ou res derelicta, suscetível de apropriação
singular por simples ocupação” (grifos do  autor).  BARBOSA,  Denis  Borges,  Domínio  Público  e  Patrimô-
nio Cultural; p. 12. Disponível em http://www.denisbarbosa.addr.com/bruno.pdf..
96
propriedade intelectual
Uma vez que a lei não exige forma especial para a renúncia de di-
reitos, bastaria a vontade inequívoca do autor. Dessa forma, o autor poderia
publicar a obra com manifestação expressa no sentido de que sua obra se
encontra, por sua vontade, em domínio público. Poderia, ainda, registrar sua
manifestação de vontade em registro de títulos e documentos ou publicá-la
no Diário Oficial. A forma nos parece indiferente, desde que seja inequívoca165.
Nos Estados Unidos, é possível a um autor dedicar sua obra ao domí-
nio público. Sem que haja uma forma específica de fazê-lo, basta, por exem-
plo, que o autor mencione expressamente “esta obra é dedicada ao domínio
público”. É possível também fazer a declaração oralmente, mas haveria uma
dificuldade em se constituir prova inequívoca da intenção do autor166.
Ainda que se alegue que a LDA, ao contrário da LPI, não é expressa
em prever a possibilidade de renúncia ao direito autoral, também é de se con-
siderar que não a proíbe, e tratando-se de direito patrimonial, deve vigorar o
princípio geral do ordenamento jurídico brasileiro, que prevê a possibilidade
de sua disposição desde que observados determinados limites (como os que
veremos a seguir).
Além disso, uma vez que a própria LDA autoriza aos autores que cele-
brem contratos de cessão de direitos sobre suas obras a terceiros específicos
– o que acarreta o fim do monopólio do autor sobre a exploração econômica
da obra, ou ao menos o transfere a outrem – não nos parece haver qualquer
motivo jurídico que impeça o autor de abrir mão dos direitos autorais não em
favor de um terceiro determinado, mas em favor de toda a sociedade.
Ainda assim, é importante, neste momento, indagarmos se haveria
aqui alguma limitação relacionada aos artigos 549167, 1.789168, 1.846169, 1.967170
165 Conforme observa BAINTON, Toby. The Public Domain and the Librarian. Intellectual Property – The
Many Faces of the Public Domain. Cheltenham: 2007; p. 128.
166 FISHMAN, Stephen. The Public Domain – How to Find & Use Copyright-Free Writings, Music, Art &
More. Berkeley: Nolo, 2008; p. 58. David Lange dedicou seu texto “Reimagining the Public Domain” ao
domínio público ao publicá-lo com a seguinte informação: “Copyright in this work is hereby disclaimed and
abandoned”. LANGE, David. Reimaginig the Public Domain. Law and Contemporary Problems – vol. 66; pp.
463 e ss. Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?66+Law+&+Contemp.+Probs.+463+(Win-
terSpring+2003).
167 Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da
liberalidade, poderia dispor em testamento.
168 Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.
169 Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, cons-
tituindo a legítima.
170 Art. 1.967. As disposições que excederem a parte disponível reduzir-se-ão aos limites dela, de con-
formidade com o disposto nos parágrafos seguintes. § 1o Em se verificando excederem as disposições
testamentárias a porção disponível, serão proporcionalmente reduzidas as quotas do herdeiro ou herdeiros
instituídos, até onde baste, e, não bastando, também os legados, na proporção do seu valor. § 2o Se o tes-
97
e 2.007171 do CCB, que tratam do contrato de doação e da legítima.
Seria a antecipação dos efeitos do domínio público equivalente à do-
ação à sociedade? Nesse caso, deveria ser observado o limite da meação pre-
visto no art. 1.789 acima mencionado?
O art. 549 do CCB estabelece que será nula a doação quanto à parte
que exceder àquilo que o doador poderia doar no momento da celebração do
ato.
Imaginemos a hipótese de autor que tenha antecipado os efeitos do
domínio público sobre sua obra para a data de sua morte. No entanto, quando
de seu falecimento, deixou herdeiros necessários, mas não qualquer bem ma-
terial. Considerando-se, ainda, que sua obra venha sendo comercializada com
relativo sucesso, poderiam os sucessores se valer do art. 1.789 do Código Civil
para anular a manifestação da vontade do autor por analogia ao princípio de
que ultrapassou o que poderia dispor em testamento?
Ou, de outra maneira, o fato de os bens imateriais serem não-rivais
simplesmente não autorizariam que os sucessores assim procedessem? O
Sérgio Branco

tema é instigante e não comporta uma resposta óbvia. Afinal, se por um lado
estariam prejudicados em seu direito de uso exclusivo da obra pelo prazo le-
gal, por outro poderiam se valer da obra economicamente, ainda que em con-
corrência com todas as demais pessoas interessadas.
A bem da verdade, a hipótese é altamente improvável e bastante ex-
cepcional. Primeiro, um autor deveria se dispor a fazer determinada obra in-
gressar em domínio público antecipadamente. A obra – no momento em que
entra em domínio público pela vontade de seu criador – deve ter um valor que
ultrapasse a parte disponível do patrimônio do autor. Finalmente, herdeiros
necessários deveriam contestar judicialmente o ato praticado. Teoricamente,
nos parece possível, nesse caso, que seja questionada a inserção da obra no
domínio público, a despeito de todas as improbabilidades.

tador, prevenindo o caso, dispuser que se inteirem, de preferência, certos herdeiros e legatários, a redução
far-se-á nos outros quinhões ou legados, observando-se a seu respeito a ordem estabelecida no parágrafo
antecedente.
171 Art. 2.007. São sujeitas à redução as doações em que se apurar excesso quanto ao que o doador pode-
ria dispor, no momento da liberalidade. § 1o O excesso será apurado com base no valor que os bens doados
tinham, no momento da liberalidade. § 2o A redução da liberalidade far-se-á pela restituição ao monte do
excesso assim apurado; a restituição será em espécie, ou, se não mais existir o bem em poder do donatário,
em dinheiro, segundo o seu valor ao tempo da abertura da sucessão, observadas, no que forem aplicáveis,
as regras deste Código sobre a redução das disposições testamentárias. § 3o Sujeita-se a redução, nos
termos do parágrafo antecedente, a parte da doação feita a herdeiros necessários que exceder a legítima e
mais a quota disponível. § 4o Sendo várias as doações a herdeiros necessários, feitas em diferentes datas,
serão elas reduzidas a partir da última, até a eliminação do excesso.
98
propriedade intelectual
Já com relação aos direitos morais, as dificuldades decorrem do texto
do art. 27 da LDA, que estipula que “os direitos morais do autor são inalie-
náveis e irrenunciáveis”. Tal dispositivo seria suficiente para impedir que um
autor dedicasse sua obra ao domínio público? Parece-nos que não. Ao fazê-lo,
o que ocorre é simplesmente a antecipação dos efeitos que o domínio público
acarretaria de qualquer maneira aos direitos morais do autor.
Por isso, caso o autor coloque sua obra em domínio público ou ante-
cipe seu ingresso no domínio público para o momento de sua morte (ainda
que conte com sucessores), por exemplo, o que estará fazendo, de fato, é
renunciar aos direitos patrimoniais do autor bem como antecipar os efeitos do
domínio público sobre os direitos morais. Assim, quanto aos direitos morais,
podemos afirmar:
(i) o direito de paternidade, previsto no art. 24, I e II, da LDA, permane-
ce intocado. Afinal, trata-se não apenas de direito moral do autor, mas de verda-
deiro direito de personalidade. Nesse sentido, é realmente indisponível. Há tam-
bém outras questões envolvidas: ordem pública, atribuição de responsabilidade
pela autoria, vedação à apropriação de obra alheia. O direito de paternidade
deve inclusive ser tutelado pelo Estado após o ingresso da obra em domínio pú-
blico. Não é direito que se extinga e permanece intocado ainda que o autor faça
a obra ingressar em domínio público exclusivamente por sua vontade;
(ii) o direito de inédito, previsto no art. 24, III, da LDA, está sendo
exercido pelo autor no sentido de não manter a obra inédita. Afinal, sua deci-
são de colocar a obra em domínio público apenas faz sentido na medida em
que a obra pode ser acessada por terceiros. Do contrário, não há razão para
determinar que a obra passará a integrar o domínio público. Por isso, uma vez
em domínio público, não há mais que se discutir o direito de inédito.
(iii) o direito de assegurar a integridade da obra, previsto no art. 24,
IV, da LDA, é frontalmente atingido pelo domínio público. Afinal, esgotados os
direitos patrimoniais, pode qualquer terceiro fazer da obra o uso que desejar.
Ocorre que este direito moral de autor se relaciona diretamente às faculdades
patrimoniais, de modo que a extinção destas justifica o fim daquele.
Por outro lado, mesmo que o autor dedique sua obra ao domínio pú-
blico, continua protegido nos termos do art. 24, IV, in fine, da LDA. Qualquer
ato que possa prejudicar a obra ou atingir o autor em sua reputação ou honra
poderá ser proibido pelo autor, por seus sucessores ou pelo Estado.
Este direito moral subsiste após o autor ter feito sua obra ingressar
em domínio público por dois motivos. Em primeiro lugar, porque trata-se aqui
99
também de preservar direitos da personalidade. Em segundo lugar, porque
mesmo após ter sido atingido o prazo legal de proteção, competirá ao Estado
defender a integridade da obra. Se este direito permanece após a obra entrar
em domínio público pelo decurso do prazo, então também deve permanecer
se o motivo da entrada da obra em domínio público for a vontade do autor. É
o mesmo princípio a reger o direito de paternidade.
(iv) o direito de modificar a obra, previsto no art. 24, V, da LDA, conti-
nua existindo, ainda que em concorrência com toda a sociedade. Esse direito
não é transmitido aos sucessores nos termos do art. 24, §1º, porque os suces-
sores, pela sucessão, não se convertem em autor e portanto não podem agir
como se ele fossem, modificando a obra. Mas com a obra ingressando em
domínio público pela vontade do autor, este – se ainda vivo – poderá continu-
ar a modificar a obra, garantindo o direito consubstanciado no art. 24, V, da
LDA. No entanto, por se tratar de obra em domínio público, qualquer terceiro
também poderá modificá-la.
(v) o direito moral de retirar a obra de circulação, previsto no art.
24, VI, da LDA, é o único que poderia, em um primeiro momento, apresentar
Sérgio Branco

óbice ao ingresso antecipado, pela vontade do autor, da obra em domínio


público. Trata-se de direito personalíssimo a ser exercido pelo autor, já que
não se transmite aos herdeiros. No entanto, pela redação da LDA, infere-se
que esse direito é condicionado. Prevê a lei que o autor tem o direito moral
de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização
já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua re-
putação ou imagem.
Vê-se que a lei trata aqui da proteção, mais uma vez, a direitos de per-
sonalidade travestidos de direitos morais do autor. Pode, portanto, o autor de-
dicar sua obra ao domínio público. No entanto, se a circulação da obra acabar
por implicar afronta a sua reputação ou imagem (seus direitos de personalida-
de), o direito de retirar a obra de circulação poderá ser exercido. Parece claro
que a LDA não autoriza a retirada de circulação da obra por simples capricho;
é necessário que haja justificativas para a decisão do autor172.
Por isso, não apenas por se tratar de direito moral, mas especialmen-
te por serem atingidos direitos de personalidade, o autor não pode ser dele
privado. No entanto, por se tratar de direito personalíssimo, não poderão os
sucessores do autor, nem tampouco o Estado, invocar tal direito para fazer
172 Em outras legislações, a razão também é relevante para se proceder à retirada da obra de circulação.
A lei alemã prevê, em seu art. 42 (1), que o autor pode revogar o direito de exploração no caso de a obra
não mais refletir suas convicções. A lei italiana, por sua vez, estabelece no art. 142 a necessidade de “sérias
razões morais” para que a retirada da obra de circulação se efetive.
100
propriedade intelectual
retirar obra de circulação se não o fez o autor, quando vivo. No máximo, po-
derão os sucessores se valer do art. 24, IV, que igualmente visa a proteger a
reputação e a honra do autor quando houver modificação em sua obra.
Subsiste, contudo, a dúvida quanto aos direitos de terceiros e às obras
derivadas que, à época do recolhimento da obra original dedicada ao domí-
nio público, estejam em circulação, gozando de proteção autoral. Em tal caso,
somente a hipótese concreta poderia oferecer elementos suficientes para a
decisão. Por exemplo, quanto mais a obra derivada se afasta da original (por
conter mais elementos próprios de criatividade de seu autor), talvez menos
implique afronta à reputação ou imagem do autor. Por outro lado, quanto me-
nos criativa a obra, mais próxima do original e, assim, mais sujeita aos efeitos
do art. 24, VI, da LDA.
Aqui também tratamos de um caso bastante excepcional em que um
autor tenha dedicado obra ao domínio público e depois deseje exercer seu
direito moral porque a circulação ou utilização da obra implica afronta à sua
reputação ou imagem. Como é direito personalíssimo e tratado por lei como
irrenunciável, sua previsão legal pode parecer um obstáculo ao ingresso vo-
luntário de obra em domínio público, já que dele o autor não poderia abrir
mão. No entanto, essa impressão nos soa equivocada.
O mesmo problema acima apontado se apresenta em outra situação,
muito mais corriqueira: se um autor celebra contratos de licença ou cessão
permitindo o uso de sua obra em obras derivadas e depois decide retirar sua
obra original de circulação (pelo exercício de seu direito moral), terceiros te-
rão seus direitos afetados e, dependendo dos limites dos contratos, vai ser
bastante difícil controlar o uso da obra por parte de outras pessoas. É certo
que a inserção da obra em domínio público potencializa os efeitos de seu uso
e dificulta – ainda mais – o exercício deste direito moral especificamente. De
toda forma, a hipótese aqui prevista não é de todo inexistente diante do texto
em vigor da LDA e o ingresso voluntário da obra em domínio público não cria-
ria uma dificuldade, relacionada aos direitos morais de autor, que já não possa
existir na prática.
(vi) finalmente, o direito moral de o autor ter acesso a exemplar único
e raro de obra sua, previsto no art. 24, VII, da LDA, é visto como personalíssi-
mo, já que não pode ser exercido pelos herdeiros. Entretanto, aqui é impor-
tante levarmos em consideração a função social da propriedade, que autori-
zaria o acesso ao suporte físico das obras intelectuais ainda que a obra em si
estivesse em domínio público. A antecipação dos efeitos do domínio público
não seria, portanto, prejudicial ao autor uma vez que por conta da função so-
cial da propriedade ele ainda teria direito de acesso à obra.
101
Uma vez que a obra ingresse em domínio público, não se torna mais
passível de apropriação, quer pelo particular – mesmo seu autor, quer pelo Es-
tado. A única exceção à regra seria promulgação de lei que prorrogasse o pra-
zo de proteção dos direitos autorais e devolvesse ao domínio privado obras
em domínio público, ato que imputamos inconstitucional de acordo com o
ordenamento jurídico brasileiro. O fenômeno ocorreu nos Estados Unidos e
na União Europeia, mas a LDA repudiou expressamente tal possibilidade ao
prever, em seu art. 112, que uma vez em domínio público, as obras não pode-
riam retornar ao domínio privado pela dilação no prazo de proteção.

5. Conclusão
Regidos pela lei 11.484/07, os circuitos integrados173 são protegidos
por meio de registro, que extingue-se, entre outras hipóteses, pela renúncia
de seu titular, mediante documento hábil, ressalvado o direito de terceiro.
Acresce a referida lei que, “extinto o registro, o objeto da proteção cai em
domínio público”174. Aqui, faz-se uma analogia.
Sérgio Branco

Os circuitos integrados também figuram na grande classe da proprie-


dade intelectual, conforme disposto pelo tratado TRIPs175. A seus titulares é
conferido um monopólio legal, assim como ocorre com o direito autoral. Esse
monopólio, entretanto, pode ser renunciado, o que tem como consequência
o ingresso da obra no domínio público.
A LPI tem dispositivos semelhantes a respeito de patentes176, mar-
cas177 e desenhos industriais178. O dispositivo que trata das patentes, art. 78,
173 Circuito integrado “é um aparelhinho com um circuito eletrônico completo, funcionando como tran-
sistores, resistências e suas interconexões, fabricado em uma peça de material semicondutor, como o si-
lício, germânio ou arsenídio de gálio, folheados em wafers de 8 ou 12 camadas”. BARBOSA, Denis Borges.
Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003; p. 765.
174 Lei 11.484/07, art. 38, parágrafo único.
175 Acordo internacional que dispõe sobre propriedade intelectual no âmbito da OMC – Organização
Mundial do Comércio, TRIPS significa Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights.
Em Português, “Acordo sobre Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”.
Seu texto foi incorporado a nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 1.355 de 30 de dezembro
de 1994.
176 Art. 78. A patente extingue-se: I - pela expiração do prazo de vigência; II - pela renúncia de seu titular,
ressalvado o direito de terceiros; III - pela caducidade; IV - pela falta de pagamento da retribuição anual,
nos prazos previstos no § 2º do art. 84 e no art. 87; e V - pela inobservância do disposto no art. 217. Pará-
grafo único. Extinta a patente, o seu objeto cai em domínio público (grifamos).
177 Art. 142. O registro da marca extingue-se: I - pela expiração do prazo de vigência; II - pela renúncia,
que poderá ser total ou parcial em relação aos produtos ou serviços assinalados pela marca; III - pela
caducidade; ou IV - pela inobservância do disposto no art. 217 (grifamos).
178 Art. 119. O registro extingue-se: I- pela expiração do prazo de vigência; II- pela renúncia de seu titular,
ressalvado o direito de terceiros; III - pela falta de pagamento da retribuição prevista nos arts. 108 e 120;
102
propriedade intelectual
também prevê que poderá a patente se extinguir pela renúncia de seu titular,
ressalvado o direito de terceiros e, uma vez extinta a patente, seu objeto in-
gressará no domínio público. Marcas e desenhos industriais também podem
ser objeto de renúncia e, ainda que a lei nada preveja nesse sentido, enten-
demos que – em regra – a consequência da renúncia será a entrada da obra
intelectual na seara do domínio público.
Acreditamos que a mesma disciplina existente na propriedade indus-
trial deve se aplicar aos direitos autorais, neste particular. Se é possível ao titu-
lar da patente renunciá-la, não há motivo para se negar tal direito ao titular de
uma obra artística. Naturalmente, direitos de terceiros devem ser respeitados.
Os direitos autorais patrimoniais podem circular por meio de licença
ou de cessão. Entendemos que, no primeiro caso, há apenas autorização de
uso da obra, sem que haja, entretanto, transferência da titularidade dos direi-
tos – que ocorre apenas na cessão.
A LDA não trata com profundidade dos aspectos contratuais dos direi-
tos autorais. Por isso, conceber o que vem a ser, em seu âmbito, “ressalvado o
direito de terceiros” é bastante difícil in abstracto. Em regra, no caso de licen-
ças, seria necessário aguardar até que seu prazo expirasse para que, voltando
a ser titular pleno dos direitos patrimoniais da obra, pudesse o autor dedicá-la
ao domínio público. O fato de a licença ser gratuita ou onerosa também pode
ser um fato a ser levado em conta.
Por outro lado, tendo havido cessão dos direitos patrimoniais, não
teria mais o autor legitimidade para dispor de sua obra. Dessa forma, apenas
com a anuência do titular dos direitos se poderia fazê-la ingressar no domínio
público. Acreditamos que a cessão opera em definitivo a transferência dos
direitos patrimoniais do autor. Por isso, tendo havido cessão, o autor não po-
derá mais dispor de seus direitos patrimoniais, o que o impediria de dedicar
sua obra ao domínio público.
Finalmente, indagamos: mas por que alguém dedicaria sua obra ao
domínio público?179 Parece-nos que são vários os motivos. De pronto, confor-
me sempre mencionado, lembramos o fato de vivermos uma fase de criação
ou IV - pela inobservância do disposto no art. 217 (grifamos).
179 O fenômeno já vem se verificando e por isso não pode ser ignorado. A internet facilita a difusão de
canais para obras em domínio público voluntário serem publicadas. Algumas obras audiovisuais licenciadas
em Creative Commons se iniciam com o texto: “no limite permitido em lei, [nome] renunciou a todos os
direitos autorais, direitos morais, direitos a bases de dados e quaisquer outros direitos que possam ser
alegados sobre o filme que se segue”. Parece-nos que é o quanto basta para que o autor demonstre de
modo irrefutável seu desejo de dedicar a obra ao domínio público. Ver, entre outros, websites como Vimeo
(http://vimeo.com/publicdomain), que contam com seções específicas onde obras em domínio público vo-
luntário podem ser encontradas.
103
colaborativa, com a redefinição do papel do autor individual. Além disso, po-
demos citar180:
(i) alguns criadores não têm interesse na exploração econômica de
sua obra e, em troca, buscam outras metas: autopromoção, divulgação de
ideias, contribuição com o bem comum;
(ii) o uso das obras permite o desenvolvimento de modelos de coope-
ração que favorece aqueles que cooperam;
(iii) o uso público das obras é um método de criação, como se dá com
a Wikipedia;
(iv) o interesse geral justifica que determinadas obras, como as cien-
tíficas, sejam publicamente acessíveis.
Sérgio Branco

180 REBOLLO, César Iglesias. Software Libre y Otras Formas de Domínio Público Anticipado. Cit.; p. 201.
104
propriedade intelectual
A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A PROTEÇÃO DAS
COMPOSIÇÕES DE PEÇAS DE VESTUÁRIO

Karin Grau-Kuntz181

1. Introdução
Na versão online da revista americana Forbes de abril de 2011 foi
editado um artigo sobre um jovem advogado americano – Charles “Chuck”
Colman – e sua atuação em um campo da propriedade intelectual ali deno-
minado como fashion law, para o qual vem-se reclamando contornos de área
especializada. Especificamente sobre a tal fashion law, assim disse Colman:
I think most practitioners who work in this area would agree with me that
intellectual property protection— specifically, trademark protection —
is at the heart of fashion law. Counterfeiting, a central concern for the
fashion industry, is one type of trademark infringement. But a ‘fashion
lawyer’ will regularly encounter legal issues in many other areas of the
law, from relatively straightforward contract disputes to arcane rules go-
verning the importation and taxation of garments and textiles; from regu-
latory restrictions on advertising and labeling to fashion industry-specific
quirks in real estate and employment. With greater frequency, people are
using the term ‘fashion law’ as a sort of shorthand for all of these issues. 182

Enquanto o advogado identifica no direito de marcas o eixo da tal


fashion law, a OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual – des-
taca, em um manual sobre propriedade intelectual e indústria têxtil, a especial
importância do sistema legal de proteção de desenho industrial para a indús-
tria da moda:
A moda é o epicentro das indústrias têxtil e de tecidos. Novos designs são
apresentados em cada estação. Entre as diversas formas de proteção por
PI a de desenhos industriais – também referidos simplesmente como de-
signs – é claramente a mais relevante para a indústria da moda. Registrar
um design ajuda o proprietário a impedir que outros explorem seus or-
namentos novos, originais ou seus aspectos estéticos, sejam elas carac-
terísticas tridimensionais, tais como formas atraentes, ou características
bidimensionais, tais como impressões têxteis esteticamente agradáveis.183

181 Doutora em Direito - Ludwig Maximilian Universität (2005) e Mestre em Direito - Ludwig Maximilian
Universität (1996). Coordenadora acadêmica e pesquisadora na Alemanha (Estudos Europeus) do Instituto
Brasileiro de Propriedade Intelectual.
182 J. Maureen Henderson, Meet The Man Who Upholds The Laws Of Fashion, Forbes 10/04/2011.
183 Um ponto no tempo – o uso inteligente da propriedade intelectual por empresas do setor têxtil, OMPI
– Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
105
WESTIN (2013), por sua vez, considerando estar “a indústria da moda
(…) intrinsecamente ligada à inovação e à criatividade”, explora a questão que
envolve os chamados designs apenas em consideração a uma possível proteção
pelo instituto do direito de autor. A autora conclui que a Lei de Direitos Autorais
brasileira não é capaz de cumprir com o fim cogitado e destaca a necessidade
de uma “proposta [legislativa] específica para proteger os designs de moda”.184
Se as três fontes citadas têm em comum tratarem de um mesmo
tema, cada uma delas adota uma perspectiva própria de enfoque de proteção
– direito de marcas, proteção dos desenhos industriais e proteção autoral.
Cum grano salis, isto é deixando de considerar traços próprio do direi-
to americano, que poderiam ter inspirado o advogado citado a ver no direito
de marcas o eixo da chamada fashion law, e ainda ignorando as razões que
levaram WESTIN a não mencionar a possibilidade de proteção dos “design de
moda” por meio do registro como desenho industrial, é necessário esclarecer
a situação: qual é o instituto adequado – ou quais institutos são mais ou me-
nos adequados e em que circunstâncias – para proteger as composições185 de
Karin Grau-Kuntz

peças de vestuário? Especificamente em relação ao direito de autor, seria ele


um instrumento adequado de proteção?.
Isto posto resta delineado o objetivo deste ensaio, que pretendo atin-
gir propondo uma linha própria de percepção do problema, que permitirá vin-
cular o tipo de proteção – direito de marcas ou proteção por meio de registro
de desenho industrial – a categorias funcionais, bem como recusar a proteção
pelo direito de autor.

2. Noções fundamentais
A palavra vestuário – ou peça de vestuário186 – reporta necessaria-
mente ao corpo humano como espaço definitório, isto é, só é vestuário aquilo
que veste, enquanto vestir pressupõe um corpo a ser vestido.
A seu turno a expressão moda, ao contrário da forma como é empre-
gada usualmente, não reporta, sob uma perspectiva científica, diretamente às
peças de vestuário, mas antes a padrões – ou códigos – comunicativos apro-
vados socialmente.

184 WESTIN, Roberta. Design de moda: a legislação de direitos autorais brasileira está adequada à realida-
de desta indústria?, in Boletim da ASPI Nr. 40, Abril/Junho de 2013, (28-37).
185 A expressão composição é empregada no contexto deste ensaio como soma das formas, cores, linhas,
aplicações etc. que, quando consideradas em conjunto, resultam na aparência da peça de vestuário.
186 Empregarei neste ensaio a expressão de forma ampla, não limitada a roupas, mas abrangendo sapa-
tos, bolsas, luvas etc.
106
propriedade intelectual
A aprovação social é um aspecto essencial da definição proposta. Pela
negativa, a reprovação social de um padrão comunicativo faz impossível falar-
se em moda.
O recurso a um exemplo auxiliará a compreensão da proposição.
LOSCHEK (2007)187 menciona um modelo da estilista Rei Kawakubo
denominado “Body Meets Dress” e datado de 1997, onde almofadas aplica-
das a um vestido justo de lycra na altura dos ombros e costas imitavam uma
deformação semelhante a uma corcunda.
Com o recurso aos enchimentos a estilista, de acordo com sua própria
explicação, visava oferecer uma nova dimensão de percepção do corpo. Neste
sentido ela propôs à coletividade a composição em referência como um pa-
drão comunicativo que, a seu turno, foi recusado socialmente como tal, o que
é evidente quando temos em mente não ter o recurso aos enchimentos nos
ombros e costas imitando uma corcunda determinado um padrão “moda” nos
anos 90 do século passado.
Pois bem, o efeito bizarro que a descrição da peça de vestuário dese-
nhada por Kawakubo pode despertar no leitor perderá força ao lembrarmos
dos vestidos com “enchimentos”188 nos quadris, comuns nas décadas de 70
a 90 do século XIX.189 Naquela época, de forma inversa ao que ocorreu na
década de 90 do século passado, o recurso a “enchimentos” na composição
de vestidos foi aprovado socialmente como um padrão criando, assim, moda.

187 LOSCHEK, Ingrid. Wann ist Mode? Strukturen, Strategien und Innovationen, Dietrich Reimer Verlag,
Berlin (2007)
188 O volume aqui não resultava da costura de pedaços de espuma ao vestido, mas era antes alcançado
por meio de pregas de tecido.
189 Peço atenção especial ao último vestido da última linha. O desenho, que foi retirado da página ele-
trônica Wikipédia, apresenta o desenvolvimento dos padrões de vestuário (moda) no século XIX.

107
As razões que explicam a reprovação e a aprovação da transformação
da silhueta do corpo humano são simples: em 1997 a composição da peça de
vestuário apresentada por Kawakubo foi associada à ideia de uma deformação
física (uma mensagem – comunicação - negativa); nos anos 70-90 do século
XIX, uma época que correspondeu a uma fase de desenvolvimento econômi-
co na Europa, o recurso de transformação da silhueta foi associada a ideia de
fartura (uma mensagem – comunicação – positiva)190, criando moda.
Neste ponto vale mencionar as palavras de Yohji Yamamoto,191 no
sentido de que se moda fosse peça de vestuário, então ela seria supérflua,
mas se antes ela for uma forma de possibilitar a compreensão do nosso coti-
diano, então será dotada de importância.
Se bem compreendido o conteúdo comunicativo a que reporta a ex-
pressão “moda”, então é possível compreender não ser o estilista quem cria
a moda. Estilistas criam composições de peças de vestuário. Eles poderão192,
por meio de suas composições, propor novos padrões comunicativos. Esses
padrões propostos estão sujeitos a aprovação social para que permitam se-
Karin Grau-Kuntz

rem vinculados a ideia de moda. No mesmo sentido a moda também não é


criação da indústria têxtil (ou, em outras palavras, criação do capital), como
produto de um esforço de renovação constante da indumentária individual193.
Não há, assim, “indústria da moda”.
Tendo o elemento comunicativo como ponto de referência de defi-
nição, e seguindo a proposição geral do trabalho de LOSCHEK194 que, por sua
vez, inspira-se na conhecida Teoria dos Sistemas de Luhmann, identifica-se um
sistema funcional moda, caracterizado como auto-referencial, organizado e
reproduzido pela dinâmica interna de seus próprios elementos constitutivos.
190 Infelizmente não posso oferecer a fonte da informação sobre a simbologia das pregas de tecido (trans-
formação da silhueta) nos anos 70-90 do século XIX. Impulsionada por um grande interesse em iconografia
leio com frequência trabalhos sobre o tema, e pela leitura de um deles aprendi sobre a simbologia dos
vestidos. Porém, não sendo possível localizar o trabalho no momento, e tendo em vista a riqueza da infor-
mação como ferramenta para a compreensão do valor comunicativo dos padrões que fazem moda, decidi
reproduzir a informação, mesmo sem poder fornecer ao leitor a fonte exata de onde as retirei.
191 Na forma como oferecida por LOSCHEK, ob. cit, pág. 159: “Wenn Mode Kleidung ist, dann ist sie
entbehrlich,. Aber wenn Mode eine Form ist, unseren Alltag zu begreifen, dann ist sie wichtig.” Yohji Yama-
moto é um estilista japonês.
192 Digo “poderão” porque, como demonstrarei a seguir, a proposição de novos padrões comunicativos
não é característica necessária da composição de peças de vestuário. Pelo contrário, e sem ignorar os
traços de preocupação estética, grande parte das composições oferecidas ao mercado é produzida em
observância a padrões já aprovados socialmente, isto é, essas composições “seguem” a moda, ao invés de
pretenderem “fazer moda”.
193 Vide LOSCHEK, ob. cit., pág. 159 ss. Pelo contrário, como se verá adiante, a indústria, aqui, atua geral-
mente no âmbito dos padrões já aprovados socialmente, posto a aprovação anterior resultar em determi-
nado grau de segurança em relação ao risco vinculado aos investimento de capital.
194 LOSCHEK, ob. cit..
108
propriedade intelectual
Em miúdos, a expressão moda reporta a sistema social comunicativo.195

3. Ato criativo
Invertendo a perspectiva adotada no curso desse ensaio – até o mo-
mento tive a moda em foco, tratando da composição da peça de vestuário em
função dela – deito agora minha atenção a composição da peça de vestuário,
para então relacioná-la com o sistema moda, o que permite detectar duas
situações distintas196:
a) a composição da peças de vestuário apresentada pretende expres-
sar um padrão estético-comunicativo diferente daqueles vigentes no momen-
to. As palavras-chave aqui é intenção de transformação, ou
b) a composição corresponde – isto é, é produzida em atenção – aos
padrões válidos no momento. A palavra-chave aqui é adequação.
Partindo do pressuposto que o leitor já tenha tido em mãos alguma
revista que se ocupa com os padrões de vestuário em voga, ou que tenha lido
nos jornais notícias sobre os desfiles “de moda”197, penso restar evidente se-
rem distintos os espaços criativos em uma ou na outra situação.
Para ilustrar o afirmado peço ao leitor que se recorde da linha de
composição das peças apresentadas pelos estilistas de ponta, isto é, por aque-
les que, gozando de grande liberdade criativa, procuram “fazer moda”, em
comparação com as composições das peças da linha do prêt-à-porter198.
Ainda, também são distintos os objetivos atrelados ao ato criativo.
Enquanto a preocupação daqueles primeiros está centrada no valor iconográ-
fico199 (= comunicação por meio de linguagem simbólica) da peça de vestuário,
o que implica relegar a um segundo plano (se não as excluem completamente)
195 No que toca comunicação por meio de linguagem simbólica (iconográfica) vide GRAU-KUNTZ, Karin.
Domínio público e Direito de Autor: do requisito da originalidade como contribuição, in Revista Eletrônica
do IBPI, Nr. 6, 2012, (5-67), http://www.wogf4yv1u.homepage.t-online.de/media/fc1a1cbd42ddbd27ffff-
8033ffffffef.PDF. No que tange a proposição da moda como um sistema nos termos da teoria proposta
por LUHMANN, vide LOSCHEK, ob.cit., especialmente págs. 29 ss. Por fim, noto que no momento em que
afirmo ser a moda um sistema, tomo distância de sua consideração como um fenômeno.
196 Apesar de LOSCHEK, ob.cit. não oferecer uma distinção deste tipo, os elementos que deram suporte a
minha proposição estão fortemente vinculados a tese defendida pela autora.
197 O termo é empregado aqui em sua concepção usual. Sob uma perspectiva técnica, nos moldes da
forma de compreensão da expressão proposta neste ensaio, não haverá “desfile de moda”, mas desfile de
peças de vestuário. A eventual e posterior incorporação dos padrões oferecidos nesses desfiles é que fará
deles moda.
198 Deve agora restar clara a razão de não ser rara a apresentação nos desfiles dos estilistas de ponta de
peças de vestuário ousadas, provocativas, bizarras ou até mesmo chocantes, isto é, de peças que a maioria
das pessoas não vestiria.
199 Isto é, pela comunicação por meio de linguagem simbólica.
109
considerações que envolvam o valor (e não a função) da peça como vestimen-
ta ou, ainda, como mercadoria, os segundos concentram-se no valor da peça
como vestuário e como mercadoria, o que explica a adequação aos padrões
estéticos em vigor, uma estratégia eficiente quando se trata de minimalização
de riscos no mercado200.
Por certo não estou aqui negando caráter criativo aos modelos da
linha prêt-à-porter, mas postulando que o espaço criativo é limitado pelos fa-
tores indicados (adequação aos padrões do sistema moda, adequação a fun-
cionalidade da peça, isto é, valor como vestimenta).
Influenciada pela teoria apresentada por SIMMEL (1957)201 e assim
considerando a dualidade imitação-individualidade, ressalto a adequação aos
padrões já aprovados socialmente (=moda), mas não nego a expressão indivi-
dual (= criativa) nesse âmbito.
De forma muito breve, especialmente porque não pretendo aqui ex-
plorar a vertente da teoria que considera as classes sociais, o sociólogo encon-
tra na imitação um fator de adaptação social. O indivíduo que imita identifica-
Karin Grau-Kuntz

se com o grupo social e, tirando as consequências da compreensão da moda


como um sistema social comunicativo, eles expressam adaptação social pela
adequação (imitação) dos padrões de vestuário aprovados.
Um exemplo auxiliará na compreensão da proposição complexa. Nos
anos 60, e em especial atenção ao movimento hippie, as pessoas vestiam-
se de uma forma determinada202. Hoje as lojas na Alemanha oferecem espe-
cialmente na época de carnaval como fantasia203 peças de roupa que seguem
aqueles padrões que vigoraram nos anos 60.
Por meio do exemplo procuro demonstrar que nós, mesmo que de
forma inconsciente, nos curvamos aos padrões relacionados ao sistema comu-
nicativo moda. Quem iria hoje a uma festa de casamento vestido com peças
200 Por exemplo, o agente de mercado que tivesse investido na produção em peças de vestuário que
seguissem a proposta comunicativa de Kawakubo acima mencionada – de enchimentos nos ombros e nas
costas – provavelmente não teria logrado vender suas peças e, consequentemente, teria sofrido um pre-
juízo econômico. De outra forma, o agente de mercado que adequa a produção de suas peças de vestuário
aos padrões já aprovados socialmente, que são inclusive fornecidos às indústria de vestuário compilados na
forma de guias de estilo (vide aqui LOSCHEK, ob.cit.), evita assumir um risco considerável. .
201 Simmel, Georg. Fashion, in The American Journal of Sociology, Volume LXII, Nr. 6, May 1957 (541- 558).
Especificamente: “Fashion is the imitation of a given example and satisfied the demand for social adapta-
tion; it leads the individual upon the road which all travel, it furnishes a general condition, which resolves
the conduct of every individual into a mere example”. (S. 543).
202 Presumo que o leitor já tenha visto alguma fotografia vinculada ao movimento hippie. Nelas as pes-
soas aparecem vestidas de uma forma bem característica.
203 Note o leitor que o que foi padrão de moda nos anos 60 hoje reporta a um conteúdo comunicativo
diverso (fantasia).
110
propriedade intelectual
adequadas aos padrões que vigoraram como moda no tempo dos hippies?
Os noivos não se sentiriam afrontados com a indumentária? O sistema moda
produz assim um tipo de convenção social204.
Considerando a outra faceta da teoria de SIMMEL, qual seja a indivi-
dualidade, noto que apesar dos convidados em uma festa de casamento ves-
tirem-se de uma forma adequada em relação aos padrões do sistema moda,
cada um deles estará vestido de uma maneira própria. Ou seja, os convida-
dos expressam suas individualidades por meio das indumentárias escolhidas,
porém, a liberdade de escolha vem condicionada ao desejo de adequação
social, que se expressa pela reprodução (imitação) dos padrões aprovados
socialmente. Isso faz compreender porque uma festa de casamento, aos con-
trário de um desfile de peças de vestuário de estilistas que denominei como
de ponta, não é ocasião adequada para a proposição de padrões comunica-
tivos inovadores, que expressem a pretensão de serem transformados em
moda.
Aqui a essência da dualidade imitação-individualidade, de onde reti-
ra-se, por fim, dois aspectos que merecem destaque.
Primeiramente, além da composição da peça de vestuário poder,
como indicado acima, ser empregada a) como meio de proposição de padrão
comunicativo (transformação), b) como suporte de reprodução (imitação) de
padrões aceitos socialmente (adaptação), determino uma terceira função,
quando c) o individuo lança mão da composição como meio de individuali-
zação. Esta terceira função é exercida nos limites do mesmo espaço criativo
relacionado a função b).
A segunda consequência reporta àquilo que denomino como “mitifi-
cação do criador”. No que toca a propriedade intelectual, e em especial refe-
rência à retórica vinculada ao direito de autor, o sujeito individual é considera-
do como um tipo de semideus, como se criasse do nada205.
Ao termos em conta a importância do fator imitação no âmbito do
sistema comunicativo moda, a criatividade dos seres humanos ganha conota-
ção ordinária (no sentido de comum). A perspectiva da moda como sistema e
a determinação das funções exercidas pela composição da peça de vestuário
204 Trata-se de um tipo de convenção social porque nem toda convenção social de vestimenta reporta
ao sistema da moda. Por exemplo, nós não vamos a uma festa de casamento vestidos como se fossemos a
praia, e isso nada tem a ver com a moda.
205 Vide aqui GRAU-KUNTZ, Karin, ob.cit. Ainda, com a tônica centrada na idealização em torno da figura
do autor, vide GRAU-KUNTZ, Karin, A quem pertence conhecimento e cultura? Uma reflexão sobre o discur-
so de legitimação do direito de autor, in LiiNC em Revista, Nr.7, 2011; http://revista.ibict.br/liinc/index.php/
liinc/article/view/437.
111
como uma forma comunicativa, bem como a delimitação de âmbitos criativos
distintos a elas vinculados, permite adotar em relação ao tema proteção das
composições de peças de vestuário uma atitude sóbria

4. A expressão fashion law


O raciocínio até aqui apresentado já basta para indicar a inadequação
da expressão fashion law206 Um direito que protege a moda seria aquele que
teria por objeto a proteção de padrões socias comunicativos. Esses padrões,
porém, não são passíveis de proteção pela propriedade intelectual, da mesma
forma que ideias também não o são.
Ilustrando, uma abordagem coerente entre o denominador fashion
law e o objeto fashion, levaria a concluir haver proteção exclusiva em relação
a um padrão como o de calças de cós baixo, ou de blusas com babados.
É necessário ainda tratar da expressão design, que sob uma perspec-
tiva jurídica nada mais é do que sinônimo de desenho industrial207.
O artigo 95 da Lei de Propriedade Industrial (LPI/96) assim define o
Karin Grau-Kuntz

desenho industrial:
Considera-se desenho industrial a forma plástica ornamental de um obje-
to ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um
produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configu-
ração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial.

No que toca o requisito novidade, o Artigo 96 do mesmo diploma


legal determina ser considerado novo o desenho quando não compreendido
no estado da técnica. Por sua vez estado da técnica é constituído „por tudo
aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido, no
Brasil ou no exterior, por uso ou qualquer outro meio.“
O requisito da originalidade vem definido no Artigo 97 nos seguintes
termos: „o desenho industrial é considerado original quando dele resulte uma
configuração visual distintiva, em relação a outros objetos anteriores“. Ainda,
segue disposto, „o resultado visual original poderá ser decorrente da combi-
nação de elementos conhecidos“.
206 Trata-se aqui de uma expressão em língua inglesa, e o correto seria adotar a referência corresponden-
te em português, isto é direito da moda. Porém, levando em conta a tendência de adoção de termos estran-
geiros no Brasil, mesmo quando reportem a conteúdos jurídicos típicos do direito pátrio, mesmo quando
os conteúdos estrangeiros e nacionais não correspondam exatamente uns aos outros, não me preocuparei
em traduzi-la.
207 SILVEIRA, Direito de Autor no Desenho Industrial , São Paulo: Revista dos Tribunais (1982), pág. 27
ensina que “a expressão desenho industrial deriva da expressão inglesa “industrial design,” e complementa
“cujo significado, por sua vez, não coincide com o do Código de Propriedade Industrial”.
112
propriedade intelectual
Por fim, no Artigo 98 vem traçada a linha distintiva entre desenhos
industriais e obra artística, objeto de proteção do direito de autor: „não se
considera desenho industrial qualquer obra de caráter puramente artístico.“
Das definições percebe-se estar o desenho industrial (design) vincula-
do a duas condições, quais sejam a) funcionalidade (no contexto deste ensaio
funcionalidade como vestuário) e b) efeito estético.
Nesta linha resta evidente não ser possível vincular desenho indus-
trial (design) a ideia de obra de arte, posto, por um lado, uma peça de ves-
tuário só poder ser transformada em obra de arte quando destacada de sua
funcionalidade como vestuário e, por outra, a transformação de uma peça de
vestuário em obra de arte independe de eventuais traços criativos aplicados
à peça.
Em outras palavras, não interessa o quanto original possa vir a ser a
composição de um vestido; enquanto composição do vestido a proteção pos-
sível será sempre aquela vinculada ao registro como desenho industrial. Ao
contrário, o vestido – e a referência aqui recai sobre o objeto vestido, sem
reporte necessário a composição do vestido – por menos original que sua apa-
rência possa vir ser, poderá ser transformado em obra de arte quando vincu-
lado a um contexto que induz o receptor208, isto é aquele que tem contato
com a peça, a adotar uma postura diversa daquela que ele adotará quando
tem em mente o objeto em sua função comum de vestimenta (vestido). 209 Por
esta razão o vestido apresentado no museu gozará, no âmbito desse contexto
estético (e apenas nesse contexto), de proteção autoral, enquanto em relação
a apresentação estética do vestido nunca reporta a ideia de obra de arte, mas
antes a um desenho industrial (design)210.
O raciocínio desenvolvido suporta concluir pelo não cabimento de
proteção autoral para proteger composições aplicadas a peças de vestuário,
posto tratar-se em uma ou outra hipótese de objeto distinto de proteção (o
vestido expressando uma contribuição reflexivo-transformadora = proteção
autoral; a composição nova ou original do vestido = proteção por meio de
registro como modelo industrial). Nesse sentido a coincidência com a posição
defendida por WESTIN (2013) acima mencionada, sem que isto implique em
concordância com o raciocínio desenvolvido pela autora.

208 A arte, a exemplo da moda, também consiste em um sistema comunicativo e nesse sentido faço refe-
rência ao receptor, isto é, o receptor da mensagem embutida na linguagem simbólica (iconográfica).
209 Vide a análise procedida em GRAU-KUNTZ, Karin, em http://www.wogf4yv1u.homepage.t-online.de/
media/fc1a1cbd42ddbd27ffff8033ffffffef.PDF.
210 Feita a distinção de objetos é possível entender não haver possibilidade de dupla proteção
113
5. A expressão design
Se a expressão design reporta a uma composição nova ou original,
isto é, a um desenho industrial211, então a composição estético funcional que
não satisfaça as condições da novidade ou da originalidade não deverá, sob
uma perspectiva jurídica, ser indicada pelo emprego da expressão design (ou
pela expressão desenho industrial) 212.
Mas mesmo as composições que não satisfaçam os requisitos da no-
vidade ou da originalidade, portanto que não satisfaçam as condições que
permitem serem denominadas como design (ou como desenho industrial), e
consequentemente que não possam gozar de proteção por esta via, poderão
ser protegidas pela propriedade intelectual. Isto ocorrerá quando, indepen-
dentemente do grau ou da presença de considerações relacionadas a aspira-
ções estéticas213, a aparência da peça de vestuário for capaz de desencadear
na mente dos consumidores um processo associativo que culmina na indivi-
dualização e, consequentemente, na diferenciação da peça em relação a ou-
tras peças oferecidas no mercado por outros produtores214. Neste caso caberá
Karin Grau-Kuntz

proteção pelo direito da concorrência em estrito senso (isto é, coibição de


atos de concorrência desleal) ou, ainda, quando um ou alguns elementos da
composição for ou forem empregados como “ponte” (e não de forma direta)
de significação de individualização e diferenciação do produto peça de vestuá-
rio, caso em que, pressuposto haver sido procedido registro, caberá proteção
pelo direito de marcas.

6. Conclusões
A título de conclusão e em síntese, as composições das peças de ves-
tuário poderão gozar de proteção pela propriedade intelectual
a) se pressuposta a satisfação do requisito novidade ou originalidade
e procedido o devido registro, como desenho industrial:
b) se pressuposta função identificadora no mercado, seja pela própria
composição expressiva da peça de vestuário, seja pela utilização simbólica de
seus elementos (pressuposto aqui registro como marca), pelo direito da con-
211 Não pretendo me ater no âmbito deste ensaio na análise dos requisitos vinculados ao registro de de-
senho industrial, quais sejam novidade e originalidade. Para um aprofundamento na matéria vide SILVEIRA
(1982), ob. cit.
212 Do ponto de vista legal a referência a design de marca e tão incorreta quanto a referência a design
como obra de arte.
213 Note-se que aspirações estéticas nada tem a ver com originalidade. O belo não depende de originali-
dade.
214 Trata-se aqui da proteção concorrencial do trade dress.
114
propriedade intelectual
corrência e pelo direito de marcas, respectivamente.
O direito de autor não consubstancia instrumento jurídico adequado
de proteção.
Às composições que não satisfaçam os requisitos da novidade ou da
originalidade, isto é, que não possam ser protegidas como design (desenho
industrial), e que ainda não sejam capazes de reportar a uma função identifi-
cadora no mercado, não se há cogitar proteção qualquer.

115
propriedade intelectual
DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DAS
CELEBRIDADES

Denis Borges Barbosa215

A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à


força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que
antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição.
(Machado de Assis, A Teoria do Medalhão)
Melius est nomen bonum quam unguenta pretiosa. Eclesiates, 7.1.

1. Introdução
Como notava David Vaver em 1978:
As pessoas que adquiriram fama e chamam a atenção e a imagina-
ção do público descobriram que eles podem transformar a sua celebridade
em dinheiro. Os anunciantes os querem para endossar seus produtos. Grupos
como os Beatles ou, mais recentemente, Abba descobriram que sua capacida-
de de se vender vai muito além além da esfera de discos e shows ao vivo, e se
estende a parafernália como brinquedos, camisetas, cosméticos, emblemas,
pingentes e cartazes - na verdade a faixa de bens e serviços possíveis é limita-
do apenas pela imaginação de empresário 216.
Conforme publicação da Organização Mundial da Propriedade Inte-
lectual :217

215 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela
Columbia University School Law, Nova York. Docente do Programa de Pós-graduação em Direito da Proprie-
dade Intelectual e Inovação do INPI e em Políticas Públicas (PPED) do Instituto de Economia da UERJ.
216 “People who have acquired fame and caught the public attention and imagination have found that
they can turn their celebrity into cash. Advertisers want to endorse their products. Pop singing groups
such as the Beatles or, more recently, Abba have found their marketability extends well beyond the sphere
of records and live shows and into such assorted paraphernalia as toys, T-shirts, cosmetics, badges, pen-
dants and posters - indeed the range of possible goods and services is limited only by the imagination of
entrepreneurs” VAVER, David, The Protection of Character Merchandising- A Survey of Some Common Law
Jurisdictions, IIC 1978 Heft 6 541
217 “Using someone’s image for commercial benefit. Many countries recognize that individuals have a
right of publicity. The right of publicity is the direct opposite of the right of privacy. It recognizes that a
person’s image has economic value that is presumed to be the result of the person’s own effort and it gives
to each person the right to exploit their own image. (…) Although the right of publicity is frequently asso-
ciated with celebrities, every person, regardless of how famous, has a right to prevent unauthorized use of
their name or image for commercial purposes. However, as a matter of practice, right of publicity suits are
typically brought by celebrities, who are in a better position than ordinary individuals to demonstrate that
their identity has commercial value”. VERBAUWHEDE, Lien, Legal Pitfalls in Taking or Using Photographs of
117
Usando a imagem de alguém para benefício comercial.
Muitos países reconhecem que os indivíduos têm o direito de publici-
dade. O direito de publicidade é o oposto direto do direito de privacidade. Ele
reconhece que a imagem de uma pessoa tem valor econômico que se presu-
me ser o resultado do esforço da própria pessoa e dá a cada pessoa o direito
de explorar sua própria imagem. (...)
Embora o direito de publicidade seja freqüentemente associada com
celebridades, todas as pessoas, independentemente de quão famosas, têm
o direito de impedir o uso não autorizado de seu nome ou imagem para fins
comerciais. No entanto, como uma questão de prática, o direito de ternos
publicidade são geralmente trazidos por celebridades, que estão em melhor
posição do que os indivíduos comuns para demonstrar que a sua identidade
tem valor comercial. (...)
E, ainda218:
Sugerindo que alguém está autorizando ou endossando um produto
ou serviço.
Denis Borges Barbosa

A estrela do golfe Tiger Woods atua em comerciais de Buick, a tenis-


ta Anna Kournikova promove Omega Relógios e Nicole Kidman é o rosto da
Chanel n º 5. As empresas têm muito apreciado o valor que as celebridades
trazer para a promoção de seus produtos. A presença de uma celebridade
parece ser uma ferramenta eficaz de rapidamente atrair a atenção do consu-
midor para um produto ou serviço e criação de valor percebido alto e credi-
bilidade219.
Copyright Material,Trademarks and People, encontrado em http://www.wipo.int/export/sites/www/sme/
en/documents/pdf/ip_photography.pdf; e VERBAUWHEDE, Lien, Savvy Marketing: Merchandising of Intel-
lectual Property rights, 2004, http://www.wipo.int/sme/en/documents/merchandising.htm.
218 Suggesting that someone is authorizing or endorsing a product or service. Golf star Tiger Woods acts
in Buick commercials, tennis player Anna Kournikova promotes Omega Watches and Nicole Kidman is the
face of Chanel No 5. Businesses have long appreciated the value that celebrities bring to the promotion of
their wares. The presence of a celebrity seems to be an effective tool of quickly attracting consumer atten-
tion to a product or service and creating high-perceived value and credibility. However, before using the
photograph of a person in an advertisement to sell products or promote services, it is strongly advisable to
get prior explicit permission of that person. Without authorization, that person would have grounds to take
action against you for “passing off” or for “unfair trade practices.”
219 Outra incursão da OMPI neste campo é o seu relatório sobre merchandising de imagens de 1991,
Document AB/XXII/2.: RUIJSENAARS, Heijo E., The WIPO Report on Character Merchandising, IIC 1994 Heft
4 532. The International Bureau observes that no country has enacted sui generis legislation and that there
exists no international treaty dealing specifically with the protection of character merchandising. Therefo-
re, for this protection one has to rely on the legislation on copyright, trade or service marks and industrial
designs, together with protection against unfair competition and passing off, whereas other areas of law
concerning personality or “publicity” rights are relevant to personality merchandising. After a short intro-
duction of the characteristics of the intellectual property law involved, the Report explains which aspects
of the particular law are relevant and under what circumstances a character will be considered as protec-
118
propriedade intelectual
Como diz a publicação, “muitos países” teriam algum tipo de prote-
ção para esses interesses específicos de quem detém celebridade o suficiente
para carrear o interesse do público para os bens ou serviços a que eles se
associam. Esse interesse encontra descrição precisa em obra brasileira con-
sagrada220:
“Há outra figura que, comumente, participa da publicidade e que in-
fluencia diretamente na decisão do consumidor. Trata-se dos artistas, pessoas
públicas famosas, ou dos especialistas de produtos e serviços, que, sem dúvi-
da, exercem grande influência sobre os consumidores ou sobre determinado
grupo deles, dando-lhes, às vezes, uma falsa segurança sobre as qualidades do
produto ou do serviço, seja por afirmações, conselhos, recomendações, seja
pela simples vinculação de sua imagem ou nome ao bem ou serviço. Assume,
assim, a celebridade, diante do consumidor, uma posição de ‘garante’. Este
tipo de publicidade desencadeia ‘um comportamento no consumidor, em nível
consciente e inconsciente, gerando uma resposta imediata devido ao conceito
preexistente que se tem daquela pessoa ou grupo que está testemunhando a
favor do produto, agregando-lhe valores como admiração, sucesso, riqueza,
beleza, juventude, alegria, internacionalidade, tradição, notoriedade etc.”.

2. A criação do herói


Em trabalho no mesmo sentido, já no campo do direito argentino221,
traz-se uma interessante distinção entre a cultura popular, que tem criação
autóctone – por exemplo, no folclore – e a cultura de massa. Aquela cria seus
próprios heróis 222, enquanto essa escuta as celebridades, esperando que es-
table according to that law. Whereas most fictional characters would be protectable under copyright and
trade mark law statutes, real personalities usually would have to rely on protection by unfair competition
law, including passing off, and by personality or “publicity” rights. (...) The Report mentions the advantage
of copyright protection, as it would cover all unauthorized uses, irrespective of the goods or services and
the question whether the work is used in a different medium, in a different dimension or for decorative or
promotional use. Also, the availability of moral rights, in particular the right with respect to the integrity of
the work, could be useful for licensing agreements. Under trade mark law, the rights conferred to registered
trade or service marks would cover situations of confusion. If the mark is well known or famous, extended
protection against the use of the mark for non-similar goods or services causing prejudice to the owner
of the mark or taking unfair advantage of the reputation of the mark is or will be available in a number of
countries.”
220 Guimarães, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades
que dela participam, ed. RT, v. 16, 2001, p. 155. Note-se que o texto, como alguns outros, trata da eventual
responsabilidade da celebridade sobre o endosso que faz de produtos ou serviços alheios; nossa análise se
volta ao elemento antinômico dessa responsabilidade, que é o poder de negar tal endosso. Mas o núcleo
dos dois interesses jurídicos é um só fenômeno, o descrito por Scatezzini.
221 ALVAREZ LARRONDO, Federico M., La responsabilidad de las celebridades por su participación en pu-
blicidades, RCyS 2010-II, 44.
222 “Uma das manifestações mais fortes do mito, também presente em quase todas as áreas da cultura de
massa, é o herói. Seja no cinema, na literatura, na televisão ou nas histórias em quadrinhos, o herói surge na
119
tas ensinem e liderem seus gostos e preferências. São elas os novos heróis
olímpicos223.
Assim se nota, em texto de tal trabalho argentino:
“Em geral, os resultados desses estudos têm mostrado que as celebri-
dades são mais eficazes do que as não-celebridades. A razão principalmente
usada para explicar por que isso acontece é que os anúncios com as cele-
bridades são mais distintivos e chamam mais nossa atenção do que aqueles
que utilizam pessoas menos conhecidas. Os famosos são considerados mais
dinâmicos, mais atraentes e são dotados de qualidades pessoais que não são
atribuídas a pessoas menos conhecidas. Isso pode afetar, entre outras coi-
sas, a confiança atribuída à fonte, as respostas emocionais geradas por esses
anúncios e, em última análise, a forma como eles são processados.”224
vida dos povos como guardião de seus valores mais nobres e justos e como responsável, não só pela defesa
dos homens, mas pela transmissão, através de suas narrativas, de ensinamentos para as gerações futuras.
(...) Assim, a função primordial do herói, seja qual for sua origem ou época, seria servir, velar, defender,
vigiar. Ele é, portanto, aquele que põe o interesse coletivo acima de seus próprios, que se sacrifica por uma
causa, um ideal, por um mundo justo onde o bem-comum está acima de tudo. O sociólogo Ronaldo Helal
faz uma comparação entre os ídolos da mídia, colocando os do futebol mais próximos do herói clássico
Denis Borges Barbosa

que os demais, como os da música. Segundo Helal, a trajetória do herói do futebol, ligada à luta, à disputa,
ao sucesso em virtude da derrota de um oponente, é semelhante às batalhas dos mitos da Antigüidade.
Segundo ele, “esta característica do ‘ídolo-herói’ acaba por transformar o universo do futebol em um ter-
reno extremamente fértil para a produção de mitos e ritos relevantes para a comunidade”. (HELAL, 1999)
Para ele, o herói atual tem sua narrativa “construída” segundo um padrão midiático para corresponder aos
anseios do público. (...) Assim, se por um lado as qualidades colocam o ídolo acima do público, os defeitos
os identificam. Isto, ao invés de enfraquecer a couraça do ídolo, apenas a reforça, pois é por meio deste
lado “humano” que o herói deixa de ser uma figura inatingível, abrindo a qualquer fã a possibilidade de, um
dia, ser como ele.” VIEIRA, Marcos Fábio, Mito e herói na contemporaneidade: as histórias em quadrinhos
como instrumento de crítica social, Contemporânea, no. 8, 2007, [Revista on-line do grupo de pesquisa
Comunicação, Arte e Cidade da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.} http://www.contemporanea.
uerj.br/pdf/ed_08/07MARCOS.pdf
223 MORIN, Edgar, L’esprit du temps, Editions Grasset Fasquelle, 1962, «Les olympiens sont: stars de ci-
néma, champions, princes, rois, play-boys, explorateurs, artistes célèbres, Picasso, Cocteau, Dali, Sagan.
L’information transforme ces olympiens en vedettes de l’actualité. Elle porte à la dignité d’événements
historiques des événements dépourvus de toute signification politique. Ce nouvel Olympe est le produit le
plus original du cours nouveau de la culture de masse. Les nouveaux olympiens sont à la fois aimantés sur
l’imaginaire et sur le réel, à la fois idéaux inimitables et modèles imitables; leur double nature est analogue
à la double nature théologique du héros-dieu de la religion chrétienne: olympiennes et olympiens sont
surhumains dans le rôle qu’ils incarnent, humains dans l’existence privée qu’ils vivent. Ils sont des conden-
sateurs énérgétiques de la culture de masse. Ils sont des modèles de culture au sens ethnographique du
terme, c’est-à-dire des modèles de vie qui tendent à détrôner les anciens modèles (parents, éducateurs,
héros nationaux).»
224 RODRIGUEZ M. A. - del Barrio S. - Castañeda J.A., “Procesamiento diferencial entre la publicidad com-
parativa y la publicidad con famosos en condiciones de baja implicación”, Universidad de Granada, http://
www.ugr.es/~jalberto/Investigacion/Del%20Barrio_Rodriguez_Casta%25eda_2003.pdf. ““en general, los
resultados de estos trabajos han demostrado que los famosos son más efectivos que los no famosos. La
razón que principalmente se utiliza para explicar por qué esto es así se encuentra en que los anuncios con
famosos son más distintivos y llaman más la atención que los que usan a personas menos conocidas. Los
famosos se consideran más dinámicos, más atractivos y están dotados de cualidades personales que no se
atribuyen a personas menos conocidas. Esto podría afectar, entre otras cosas, a la confianza atribuida a la
fuente, a las respuestas afectivas que generan estos anuncios y, en definitiva, al modo en que se procesan”.
120
propriedade intelectual
O autor argentino nota, especialmente, que o endosso da celebridade
induz uma reação do público de massa de caráter mais emocional, e não racio-
nal como no caso da propaganda comparativa, com um resultado mais eficaz:
Mas o interessante do estudo em questão, é que, como resultado dos
testes empíricos realizados, conclui-se que em casos de baixo envolvimento
são as mais comuns (concentração, ou seja baixo do que você está ouvindo ou
assistindo), “... a publicidade famosa é processado em uma publicidade com-
parativa mais periférica, que se traduz em uma maior atitude em relação à
marca anunciada e, portanto, a intenção de compra”.
Claro assim o interesse econômico, cabe, no entanto, determinar o
vínculo de juridicidade que permite aos sistemas nacionais conferir proteção
a esse fenômeno. Mais ainda, como vincular tal proteção ao sistema de pro-
priedade intelectual.

3. Do uso dessa imagem no direito estrangeiro e brasileiro


Na verdade, há alguns fundamentos diversos utilizados pelos sistemas
nacionais para conferir alguma, ou mesmo extensa proteção a esse valor eco-
nômico específico.

3.1. A construção pretoriana do direito americano do right of publicity


O mais notável desses sistemas é a construção pretoriana de um di-
reito de publicidade, de que já dava notícia na segunda edição de meu Uma
Introdução à Propriedade Intelectual:
O Direito Americano abrange, além das formas tradicionais, dois sis-
temas de patente de plantas, a proteção às topografias de semicondutores,
a repressão específica à publicidade enganosa, os direitos de publicidade e o
princípio da submissão de idéia, seja como criação legal ou jurisprudencial225
Neste sistema, em bibliografia que é extensa 226, assim se define tal
225 [Nota do original] Chisum e Jacobs, Understanding Intellectual Property Law, Matthew Bender 1992,
p. 6-1 a 6-90.
226 ROTHMAN, Jennifer E., Copyright Preemption and the Right of Publicity. UC Davis Law Review, Vol. 36,
p. 199, 2002. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=309659 or doi:10.2139/ssrn.309659; MCKENNA,
Mark P., The Right of Publicity and Autonomous Self-Definition (December 30, 2010). University of Pitts-
burgh Law Review, Vol. 67, 2005. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=794844; KWALL, Roberta Ro-
senthal, The Right of Publicity vs. The First Amendment: A Property and Liability Rule Analysis. Indiana Law
Journal, Vol. 70, p. 47, 1994. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=849745; BARNETT, Stephen R.,
‘The Right to One’s Own Image’: Publicity and Privacy Rights in the United States and Spain. American Jour-
nal of Comparative Law, Vol. 47, P. 555, Fall 1999. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=224628 or
doi:10.2139/ssrn.224628; KARCHER, Richard T., The Use of Players’ Identities in Fantasy Sports Leagues: De-
veloping Workable Standards for Right of Publicity Claims. Penn State Law Review, Vol. 111, p. 557, Winter
2007. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=964295; BARTOW, Ann, Trademarks of Privilege: Naming
121
direito227:
O direito de publicidade é, em essência, um direito de natureza em-
presarial de controlar o uso de uma identidade no comércio. Embora os tribu-
nais e comentaristas tenham oferecido vários fundamentos para tal direito, as
decisões judiciais mais modernas defendem alguma combinação de incentivo,
justa compensação, e enriquecimento sem causa: as celebridades devem ter
um incentivo para desenvolver as suas valiosas personas públicas, seus esfor-
ços devem ser recompensados, e os terceiros que se aproveitam dos benefí-
cios financeiros decorrentes das identidades valiosas devem pagar por isso.
Os direitos de publicidade surgem mais frequentemente em casos de endosso
de celebridades, mas o direito se estende a qualquer uso da imagem de uma
celebridade, chamando a atenção para os interesses comerciais ou produtos.
O direito de publicidade era originariamente aplicado apenas para o uso do
nome de uma celebridade, ou sua fotografia; ao longo do tempo, no entanto,
os tribunais ampliaram-no para o uso de “identidade”, refletindo que limitar o
uso de determinados aspectos específicos de uma celebridade iria prejudicar
o objetivo de dar a elas “um interesse pecuniário protegido na exploração
Denis Borges Barbosa

comercial de [sua] identidades]228.”


Aqui – como em outros sistemas – a raiz histórica do direito se encon-
trou na noção de privacidade229, mas, como nota o estudo da OMPI, em sua
Rights and the Physical Public Domain. UC Davis Law Review, Vol. 40, p. 919, 2007. Available at SSRN: http://
ssrn.com/abstract=981199; DOGAN, Stacey L. and LEMLEY, Mark A., What the Right of Publicity Can Learn
from Trademark Law. Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.com/abs-
tract=862965; KWALL, Roberta Rosenthal, Preserving Personality and Reputational Interests of Constructed
Personas through Moral Rights: A Blueprint for the Twenty-First Century; 2001 U. Ill. L. Rev. 151 (2001);
KLINK, Jan, 50 Years of Publicity Rights in the United States and the never-ending Hassle with Intellectual
Property and Personality Rights in Europe, [2003] I.P.Q.: NO. 4 © Sweet & Maxwell LTD and contributors
2003, encontrado em http://www.ruger-patent.de/downloads/publicity_rights.pdf. LIPTON, Jacqueline D.,
Celebrity in Cyberspace: A Personality Rights Paradigm for Personal Domain Name Disputes. Washington
and Lee Law Review, Forthcoming. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1124596
227 “The right of publicity is, at core, a business right to control use of one’s identity in commerce. Al-
though courts and commentators have offered various rationales for the right, most modern cases defend
it on some combination of incentive, just deserts, and unjust enrichment grounds: celebrities should have
an incentive to develop valuable public personas, their efforts should be rewarded, and others deriving
financial benefits from those valuable identities should pay. Publicity claims arise most often in celebrity
endorsement cases, but the right extends to any use of a celebrity image calling attention to commercial
interests or products. The publicity right originally applied only to the use of a celebrity’s name or photo-
graph; over time, however, courts extended it to the use of a celebrity’s “identity,” reasoning that to limit
the right to the use of particular features of the celebrity would defeat the objective of giving celebrities
“a protected pecuniary interest in the commercial exploitation of [their] identities].” DOGAN, Stacey L.,
An Exclusive Right to Evoke. Boston College Law Review, Vol. 44, 2003. Available at SSRN: http://ssrn.com/
abstract=410547 or doi:10.2139/ssrn.410547
228 [Nota do Original] Carson v. Here’s Johnny Portable Toilets, Inc., 698 F.2d 831, 835 (6th Cir. 1983) (“If
the celebrity’s identity is commercially exploited, there has been an invasion of his right whether or not his
‘name or likeness’ is used.”).
229 DOGAN, op. Cit.,: “The right emanated originally from the common-law right to privacy. See Samuel
D. Warren & Louis D. Brandeis, The Right to Privacy, 4 Harv. L. Rev. 193, 213–20 (1890). In the middle of
122
propriedade intelectual
vertente inversa: já não um interesse de preservação, mas a contemplação de
um valor econômico que a privacidade torna suscetível de reserva e, no plano
econômico, de escassez230.
A análise econômica desse interesse revela dois elementos comple-
mentares: o primeiro, de conter o uso indiscriminado da imagem, que reduzi-
ria, pela vulgarização, a capacidade do retorno do favorecido231; o segundo, de
assegurar o retorno personalizado do potencial econômico da fama.

3.2. Das celebridades em outros direitos


Como já mencionado, alguns aspectos do interesse relativo à celebri-
dade como constructo tem merecido proteção nos vários sistemas jurídicos
com base na tutela da personalidade232.
the last century, however, courts decided that the general right of individuals to be left alone was not well
suited to remedying uses of celebrity identities (because the celebrities had deliberately cast themselves
into the limelight) and accordingly developed the modern right of publicity. See Haelan Labs., Inc. v. Topps
Chewing Gum, Inc., 202 F.2d 866, 868 (2d Cir. 1953) (holding that “in addition to and independent of . . .
right of privacy . . . , a man has a right in the publicity value of his photograph”); see also Melville Nimmer,
The Right of Publicity, 19 Law & Contemp. Probs. 203, 215–23 (1954) (advocating publicity rights).”
230 Num texto crucial para nosso estudo, diz COOMBE, Rosemary J., Authorizing the celebrity: publicity
rights, postmodern Politics, and unauthorized genders, in WOODMANSEE, Martha and Peter Jaszi Editors.
The Construction of Authorship - Textual Appropriation In Law And Literature. United States of America:
Duke University Press, 1994, p.101-122: “Anglo-American legal jurisdictions recognize the right of individ-
uals to protect publicly identifiable attributes from unauthorized and unremunerated appropriation by
others for , commercial purposes or economic benefit. Originally developed primarily to deal with an un-
authorized use of a person’s name or picture in advertising that suggested the individual’s endorsement of
a product, the right of publicity has been greatly expanded in the twentieth century. It is no longer limited
to the name or likeness of an individual, but now extends to a person’s nickname, signature, physical pose,
characterizations, singing style, vocal characteristics, body parts, frequently used phrases, car, performance
style, mannerisms, and gestures, provided that these are distinctive and publicly identified with the person
dal1m’mg the right. Although most cases still involve the unauthorized advertising of commodities, rights
of publicity have evoked to prohibit the distribution of memorial posters, novelty souvenirs, magazine par-
odies, and the presentation of nostalgic musical reviews, television docudramas, and satirical theatrical
performances, Increasingly it seems that any publicly recognizable characteristic will be legally recognized
as having a commercial value that is likely to be diminished by its unauthorized or unremunerated appro-
priation by others. The right is recognized as proprietary in nature and may therefore be assigned, and the
various components of an individual’s persona may be independently licensed. A celebrity could, theoreti-
cally at least, license her signature for use on fashion scarves, grant exclusive rights to reproduce her face to
a perfume manufacturer, her voice to a charitable organization, her legs to a pantyhose company, particular
publicity stills for distribution as postcards, and continue to market her services as a actor, and composer.
The human persona is capable of almost infinite commodification, because exclusive, non-exclusive and
temporally, spatially, and functionally limited licenses be granted for the use of any aspect of the celebrity’s
public presence. Furthermore, the right of publicity has been extended the celebrity, her licensees, and
assignees, to protect the ‘s descendants and their assignees and licensees”.
231 LANDES, William M. e POSNER, Richard A., “Indefinitely Renewable Copyright, 70 University of Chicago
Law Review 471 (2003). Para não fugirmos a uma citação integral, vale mencionar um desses autores num
texto pertinente: “Geralmente, somente a forma verbal exata é totalmente protegida: um autor é livre para
utilizar o mesmo gênero, técnica, estilo e até – em determinada extensão, mas não ilimitadamente – o
enredo e personagens de outro autor” (Richard A. Posner – Law and Literature, Harvard University Press,
Cambridge, USA, 1988, p. 340).
232 Vide para uma comparação da casuística pertinente, FROTA, Hidemberg Alves da. Os limites à liberda-
de de informação jornalística em face dos direitos da personalidade, à luz do Direito brasileiro e da jurispru-
123
No direito espanhol, por exemplo, a Constituição prevê no seu art.
7 algumas instâncias de proteção à personalidade, com especial ênfase no
direito positivo de controlar o uso publicitário da persona233, o que faz certa
doutrina considerar tal disposição como comparável ao publicity right234.
Na Alemanha, a casuística construiu, a partir de 1956, a doutrina da
autodeterminação econômica em face da persona, ou seja, que se expressaria
num poder geral de determinar quais elementos da personalidade de uma
pessoa, ou se quaisquer aspectos dessa personalidade, venham a ser utiliza-
dos para os propósitos econômicos de terceiros235. Mais recentemente, aos
tribunais vêm conferindo tal posição jurídica aos sucessores da pessoa236, o
que, incidentalmente, tem merecido discussão normativa – já não mais cons-

dência estrangeira. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 8, n. 15, p. 191-227, jan.-jun. 2006, encontrado
e em http://www.unigran.br/revistas/juridica/ed_anteriores/15/artigos/10.pdf, visitado em 6/12/2011.
233 Art. 7.5 “La captación, reproducción o publicación por fotografía, filme, o cualquier otro procedi-
miento, de la imagen de una persona en lugares o momentos de su vida privada o fuera de ellos . . . “ e,
particularmente, Art. 7.6“[L]a utilización del nombre, de la voz o de la imagen de una persona para fines
publicitarios, comerciales o de naturaleza análoga.”
234 “Thus Article 7.6, with its requirement of a “commercial” purpose, seems comparable to the Ameri-
Denis Borges Barbosa

can right of publicity; while Article 7.5, with its focus on “private life,” seems analogous to the U.S. right of
privacy”, BARNETT, Stephen R., ‘The Right to One’s Own Image’: Publicity and Privacy Rights in the United
States and Spain. American Journal of Comparative Law, Vol. 47, P. 555, Fall 1999. Available at SSRN: http://
ssrn.com/abstract=224628 or doi:10.2139/ssrn.224628
235 “At its heart, the right prevents deception or confusion as to the identity of the name holder. Thus,
infringement means the designation of someone else but the name holder by the holder’s name. Accor-
dingly, the mere mentioning of the holder’s name in an advertisement may not constitute any deception
or confusion about his identity. But German courts have held that in these cases the general public might
assume that the holder gave his consent to being connected with the advertised item. If in fact no consent
was given or the name holder does not support the advertised products and maybe does not even have
economic, organisational or other links with the advertising company, such advertising misleads about the
way he has chosen his identity to be used—namely, not being connected with the advertised items. Stret-
ched this way, the name right has proved able to cover all forms of unauthorized use of popular names: be
it on t-shirts, on book and film titles or for fictional characters. (...) In addition, and since 1956 (Mephisto
(1968) N.J.W. 1773, BGH.), the German Federal Supreme Court has recognized the commercial interests in
personality as a part of the general personality right and called it a right of economic self-determination
(Rennsportgemeinschaft (1981) G.R.U.R. 846, 847, BGH.). This right provides the freedom to decide if and
how one’s personality or personality features are used for the business interests of others (Paul Dahlke
(1956) N.J.W. 1554, BGH; Carrera (1981) N.J.W. 2402, BGH; Marlene Dietrich (2000) N.J.W. 2195, BGH.).”
KLINK, Jan, 50 Years of Publicity Rights in the United States and the never-ending Hassle with Intellectual
Property and Personality Rights in Europe, [2003] I.P.Q.: NO. 4 © Sweet & Maxwell Ltd And Contributors
2003, encontrado em http://www.ruger-patent.de/downloads/publicity_rights.pdf.
236 “However, the German Federal Supreme Court, in an attempt legally to reflect business reality, in the
more recent Marlene Dietrich judgment (Marlene Dietrich (2000) N.J.W. 2195, BGH.) made another effort
to read some aspects of a typical publicity right into the general personality right. The daughter of Marlene
Dietrich wanted to prevent a musical producer from granting unauthorized licenses of the likeness and
name of the deceased famous actress for cars, cosmetics and merchandise articles. The District Court and
the Court of Appeal followed the traditional interpretation and only granted an injunction to the daughter.
Damages were denied because human rights neither are transferable nor inheritable and thus the daughter
could not have obtained any rights. The Federal Supreme Court went further and granted damages on the
grounds of a renewed economic personality right which not only provides the right to control the economic
use of one’s personality features but also to earn the profits of its commercial value”. Id. Eadem.
124
propriedade intelectual
trução pretoriana – no direito americano237.
Na França e Itália, a julgar-se dos estudos sobre a questão, igualmente
a proteção dos interesses das celebridades em sua persona tem encontrado
fundamento nos direitos da personalidade, ainda que, atentando a sua mani-
festação econômica, enfatizando a ponderação devida com outros interesses
constitucionais, em particular, o da informação238.
No Canadá239, Índia240 e, com certo retardo, no Reino Unido241, tam-
237 Sobre a consolidação do right of publicity como norma legal, vide ZUBER, Thomas F., The Statutory
Right of Publicity for Deceased Celebrities in California and the Impact of Sb 771, encontrado em http://
www.articlesbase.com/intellectual-property-articles/the-statutory-right-of-publicity-for-deceased-celebri-
ties-in-california-and-the-impact-of-sb-771-574762.html, visitado em 26/11/2011.
238 “France has strong laws enabling individuals to prevent the unauthorized exploitation of their name
and image. As in most countries with a publicity right, this right has stemmed from the right of privacy
for individuals – something which English law has never had. Prior to 1970, when the right of privacy was
enshrined in the French Civil Code, the Courts were prepared to protect the unauthorized use of images.
Protection of a person’s privacy protects their identity, their health, and their private and social relations.
(...) One of the first French cases involved Petula Clark [Paris 15 Dec 1965, JCP 66 II, 14711. 8. Paris 10.10.96,
Gazette 18.22/05/99 p28] who had authorized an agency to interview and photograph her for a particular
publication. The agency concerned, however, sold the photographs to another agency who used them in a
weekly publication. Petula Clark was successfully awarded damages by the French Court proportional to the
loss of her opportunity to earn revenue from the publication of the photographs. This has been followed
consistently in France. One of the more recent cases concerned a photograph of Eric Cantona on the front
cover of a weekly sports publication without his consent. The Court held that the absence of any authori-
zation had prevented Cantona from being able not only to control how his image was used in the magazine
but also to earn money for its use. Publicity rights are provided in statute in Italy, Germany and the Nether-
lands similar to those granted under French law. The legal framework in these territories, however, provide
for the right to use the name and image of people in public life without consent when it is in the interests
of free speech to do so. Case law provides a balance between the protection of a celebrity’s image and the
right of free speech, i.e. a biographical work of a well-known individual. The use of a well-known individ-
ual’s image for advertising purposes, however, without authorization, would be unlawful”. OWEN, Mark e
PENFOLD, Richard, IP Protection For Personalities - From Elvis To Eddie, les Nouvelles, Volume XXXVIII No. 1
March 2003
239 “Canadian common law recognizes the right to personality on a limited basis. This was first acknowl-
edged in Krouse v Chrysler Canada Ltd. [Krouse v Chrysler Canada Ltd (1971), 5 C P R (2d) 30] The court held
that where a person has marketable value in their likeness and such a likeness has been used in a manner
that suggests an endorsement of a product then there are grounds for an action in appropriation of person-
ality. This right was later expanded upon in Athans v Canadian Adventure Camps,[Athans v Canadian Adven-
ture Camps, (1977), 17 O.R. (2d) 425.] where the court held that the personality right included both image
and name.” AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan, Celebrity Rights: Protection under IP Laws (January
30, 2011). Journal of Intellectual Property Rights, Vol. 16, pp. 7-16, January 2011. Available at SSRN: http://
ssrn.com/abstract=1940926
240 “The Hon’ble Delhi High Court, in ICC Development (International) Ltd v Arvee Enterprises [Smt Manu
Bhandari v Kala Vikas Pictures Pvt Ltd and another 1986( 2) Arb L R 151 (Delhi)] , gave a statement on pub-
licity rights, which is the only authoritative discussion of publicity rights in Indian legal jurisprudence. ‘The
right of publicity has evolved from the right of privacy and can inhere only in an individual or in any indicia of
an individual’s personality like his name, personality trait, signature, voice etc. An individual may acquire the
right of publicity by virtue of his association with an event, sport, movie, etc. …. Any effort to take away the
right of publicity from the individuals, to the organizer /non-human entity of the event would be violative of
Articles 19 and 2l of the Constitution of India - No persona can be monopolized. The right of publicity vests
in an individual and he alone is entitled to profit from it.’.” AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan,op. cit.
241 “ (…) the concept of publicity rights was settled in the case of Irvine v Talksport. [Irvine v Talksport
[2003] EWCA Civ 423.] In this case a successful Formula I driver, Edmund Irvine’s image was used without his
125
bém se nota tal proteção.

4. A construção brasileira


A construção brasileira relativa à proteção dos interesses positivos
patrimoniais da personalidade é bem estabelecida. Ilustra-o julgado do Tribu-
nal paulista:
“As pessoas famosas pagam um preço pela fama, o que explica cons-
tantes reclamações sobre desrespeito dos direitos de privacidade e intimida-
de. Ocorre que as pessoas destacadas são titulares de uma tutela diferenciada
quando a lesão de seus direitos decorre de exploração parasitária da celebri-
dade que alcançaram por conquistas meritórias A fama é utilizada para vender
o programa que ofende a honra e a reputação e foi isso o que se sucedeu”
TJSP, AC 315 678-4/0, Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justi-
ça do Estado de São Paulo, por votação unânime, voto de Ênio Zuliani, 28 de
agosto de 2008.
Por algum tempo derivado diretamente do texto constitucional, este
Denis Borges Barbosa

interesse ganha mais proximidade com o Código Civil de 2002. Assim dispõe
o Código Civil:
Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propa-
ganda comercial.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da
justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a trans-
missão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem
de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabi-
lidade, ou se se destinarem a fins comerciais242
Como nota Guilherme Calmon243:
consent in an advertisement for a radio station. The court held that he had a property right in the goodwill
attached to his image, and he was entitled to compensation on the basis of a reasonable endorsement fee..”
AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan,op. cit.
242 Assim disciplina o artigo 79 (Direito à imagem) do Código Civil Português: 1- O retrato de uma pessoa
não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da
pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º2 do artigo 71.º, segundo a ordem
nele indicada. 2- Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua
notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas
ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos
de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. 3- O retrato não pode, porém, ser reproduzido,
exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro
da pessoa retratada.
243 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, Direitos da personalidade e código civil de 2002: uma abor-
dagem contemporânea, Revista dos Tribunais | vol. 853 | p. 58 | Nov / 2006 | DTR\2011\1503. Quanto
126
propriedade intelectual
No que pertine ao art. 18, do CC/2002, a imagem da pessoa é prote-
gida contra a exploração em propaganda comercial dentro da noção de ima-
gem-atributo.244
O direito à imagem, sob o prisma da imagem-retrato e da imagem-
-atributo, vem tratado no art. 20 do CC/2002. Mais uma vez o legislador não
se preocupou apenas com o direito à imagem, mas também com o direito à
informação, realizando um juízo de ponderação da imagem de uma pessoa
quando não lhe macule a honra ou quando tenha finalidade lucrativa.
“Deve-se notar que, apesar do artigo fazer referência à divulgação de
escritos e à transmissão da palavra, estes devem ser entendidos somente em
relação ao que representam para a construção da imagem de uma pessoa e
não para outros aspectos de sua personalidade, como a sua privacidade, por
exemplo”.245

5. Da personalidade ao atributo


Fixemo-nos aqui na noção de imagem-atributo246. Dos muitos exem-
plos de interesses jurídicos atinentes à personalidade, é o que mais se aproxi-
ma ao nosso tema de análise247. Diz Maria Helena Diniz que tal seria:
à noção de imagem-atributo, vide RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos
Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563: “Daí poderem-se destacar dois aspectos da ima-
gem: o físico e o moral, ou, falar em duas espécies de imagem, a imagem-retrato e a imagem-atributo. A
primeira referente à representação do corpo da pessoa, pelo menos por uma parte que a identifica, e, a
segunda, representada pela imagem construída pela pessoa diante da sociedade ou, em outras palavras,
pelos seus modos de operar na vida de relação humana e profissional (...) A imagem-atributo, isto é, a
imagem construída não se confunde com a honra, embora dela se aproxime, pois os atributos associados à
pessoa, sejam por conhecidos ou desconhecidos, nem sempre derivam de sua reputação. Ser retraído, por
exemplo, embora seja uma característica da imagem construída, nada tem a ver com a honra, a reputação
da pessoa. Em sentido contrário: MORAES, Walter. “Direito à própria imagem”. Revista da ABPI 9/25, São
Paulo, 1993, para quem a imagem moral nada mais é do que a reputação pessoal.”
244 [Nota do original] BARRETO, Wanderlei de Paula, op. cit., p. 158 [BARRETO, Wanderlei de Paula et alii.
Comentários ao Código Civil brasileiro. v. 1. coord. Arruda Alvim e Thereza Alvim. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 111-116]
245 [Nota do original] DONEDA, Danilo, op. cit., p. 52 [DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no
novo CC. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 40.]
246 Segundo decisão do STJ, a imagem-retrato seria “a projeção dos elementos visíveis que integram a
personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individua-
lizam. (...) a sua reprodução, consequentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence,
por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com
a sua própria utilização indevida”. STJ, REsp 58101-SP, Quarta Turma, Min. Cesar Asfor Rocha, 16/09/1997.
247 Pertinentes à essa linha de ponderação, vide GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, Direitos da per-
sonalidade e código civil de 2002: uma abordagem contemporânea, Revista dos Tribunais | vol. 853 | p.
58 | Nov / 2006 | DTR\2011\1503; RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos
Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563 ; FERREIRA, Ivette Senise, A intimidade e o direito
penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 5 | p. 96 | Jan / 1994 | DTR\1994\6; SILVA NETO, Mano-
el Jorge E,A proteção constitucional à imagem do empregado e da empresa, Revista de Direito do Trabalho
127
(...) o conjunto de atributos cultivados pela pessoa, reconhecidos so-
cialmente. É a visão social a respeito do indivíduo, hipótese em que se confi-
gura a imagem atributo, imagem social, ou, ainda, imagem moral, protegida
pelo art. 5º, V, da CF/1988, sendo distinta da honra (CC, arts. 20, in fine, e
953), que envolve a pessoa no círculo social, indicando suas qualidades, como,
por exemplo, de hábil advogado, de médico competente, de mestre dedicado,
etc. (ESTF, 1801:284). Enfim, é personalidade moral (reputação, fama, etc.) do
indivíduo no mundo exterior.248
Enfatizando, na imagem-atributo, exatamente o aspecto do construc-
to, e sua propensão à utilização publicitária:
[a imagem-atributo] se faz caracterizar pelos traços próprios, cons-
truídos por seu titular ou com o seu consentimento; não se está falando de
qualquer traço físico ou de composição da fisionomia. Estamos falando, na
verdade, da figura pública que é assumida pelo indivíduo. (essa imagem tem
um caráter (mesmo que longínquo) de fundo publicitário. (...) Criamos nossa
imagem, apresentamos nossa imagem, vivemos com a nossa imagem e ima-
ginamos que as pessoas nos procurem profissionalmente pela imagem que
Denis Borges Barbosa

construímos.249

6. Da elaboração brasileira do direito das celebridades es-


portivas
Num campo específico do direito das celebridades, a elaboração le-
gislativa, doutrinária e jurisprudencial tem tido vasta extensão250. Por suas ca-
| vol. 112 | p. 157 | Out / 2003 | DTR\2003\560; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel, A liberdade de expressão e
de imprensa. Homem público. Político. Limites frente à função social da informação, Revista dos Tribunais |
vol. 884 | p. 111 | Jun / 2009 | DTR\2009\719; BASTERRA, Marcela I, El Derecho a la Intimidad como límite
a la Libertad de Información. A propósito del caso “V., J. s/medidas precautorias”, DFyP 2011 (octubre),
243; BENJAMIN, Antonio Hermen de Vasconcellos e, A repressão penal aos desvios do “marketing”, Revista
Brasileira de Ciências Criminais | vol. 6 | p. 87 | Abr / 1994 | DTR\1994\507; CARRANZA LATRUBESSE, Gus-
tavo, La intimidad de los hombres públicos, LA LEY 19/11/2004, 1; PALHARES, Cinara, Direito à informação e
direito à privacidade: conflito ou complementaridade? Revista dos Tribunais | vol. 878 | p. 42 | Dez / 2008 |
DTR\2008\727; ADLERS, Leandro Bittencourt, O cabimento da tutela inibitória na defesa de direitos funda-
mentais e da personalidade violados por excesso na liberdade de expressão e informação, Revista de Direito
Privado | vol. 31 | p. 303 | Jul / 2007 | DTR\2007\446.; RODRIGUES JUNIOR, Álvaro, A responsabilidade civil
dos apresentadores de programas de rádio e televisão pela publicidade enganosa ou abusiva, Revista de
Direito do Consumidor | vol. 46 | p. 305 | Abr / 2003 | DTR\2003\
248 DINIZ, Maria Helena. Estudos de direitos de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e
anos morais. 1. ed. Forense Universitária, 2002. p. 79.
249 ARAÚJO , Luiz Alberto David de, O conteúdo do direito à própria imagem: um exercício de aplicação de
critérios de efetivação constitucional , Revista do Advogado, São Paulo, v. 23, n. 73, p. 119-126, nov. 2003.
250 EZABELLA, Felipe Legrazie. O direito desportivo e a imagem do atleta. IOB Thomson, 2006. MELO
FILHO, Álvaro . Direito desportivo: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: IOB Thomson, 2002 ; ALMEIDA
, Silmara Chinelato e, Direito de Arena, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, v. 3,
p. 127-134, p. 127. SANTOS, Roberto Martinho dos, SCHAAL, Flavia Mansur Murad, O direito à imagem no
128
propriedade intelectual
racterísticas e principalmente pelas complexidades de sua pragmática, pejada
de problemas tributários e trabalhistas, a questão foge claramente ao escopo
desta análise.
No entanto, a evolução do instituto, tão notadamente nacional, é cru-
cial como parâmetro de legitimdade da construção que vimos fazendo. Como
se sabe, o direito de arena iniciou seu trajeto histórico como um instituto inse-
rido na norma autoral251. O instituto, como tal, mereceu análise específica de
Antonio Chaves 252 e combate acérrimo de Walter Moraes253.
A questão – num tema que ecoará nessa análise -, repassa a natu-
reza criativa ou não da prestação da celebridade esportiva no imaginário da
sociedade; e pelo aceso da discussão, chegou a suscitar a comparação dos
direito desportivo: suas virtudes comerciais e publicidade, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 11 |
p. 147 | Jun / 2007 | DTR\2011\2157. SÁ FILHO, Fábio Menezes de, A teoria zainaghiana do direito de arena
e suas influências na remuneração do empregado futebolista na renovada lei dos desportos, Revista de Di-
reito do Trabalho | vol. 142 | p. 275 | Abr / 2011 | DTR\2011\1728. BRAGA, Hugo Albuquerque, O contrato
de trabalho do atleta profissional de futebol, Revista de Direito do Trabalho | vol. 137 | p. 143 | Jan / 2010
| DTR\2010\68. SANTIAGO, Mariana Ribeiro, Direito de arena, Revista de Direito Privado | vol. 22 | p. 224 |
Abr / 2005 | DTR\2005\919 MOTA, Mateus Scisinio, Direitos de imagem e de arena: reposicionando ques-
tões controvertidas, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 18 | p. 88 | Jul / 2010 | DTR\2010\957. SÁ
FILHO, Fábio Menezes de, Aspectos sobressalentes da remuneração do empregado futebolista, Revista de
Direito do Trabalho | vol. 135 | p. 53 | Jul / 2009 | DTR\2009\439. SANTOS, Roberto Martinho dos, O Direito
à Imagem no Direito Desportivo: Suas Virtudes Comerciais e Publicidade, Revista Brasileira de Direito Des-
portivo | vol. 11 | p. 147 | Jun / 2007. PINTO FILHO, José Alexandre Cid, A Utilização do Contrato de Licença
de Uso de Imagem do Atleta Profissional Como Mecanismo de Violação da Legislação Trabalhista Brasileira,
Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 12 | p. 116 | Dez / 2007 | DTR\2011\2243.
251 “O direito de arena esteve estatuído na antiga Lei de Direitos Autorais (de 1973), inserido dentre os
direitos conexos, o que provocou inúmeras críticas entre renomados autoralistas, que não consideravam os
“atletas” como “autores, artistas, intérpretes ou executantes”, ao negar a existência, no espetáculo despor-
tivo, de produto intelectual semelhante à obra ou à execução artística. Por conta de suas peculiaridades,
o direito de arena foi previsto na primeira lei específica para tutela sistemática e ampla dos desportos, a
denominada “Lei Zico” ( Lei 8.672, de 06.07.1993) em seu art. 24. Tal lei, no entanto, foi posteriormente
revogada pela Lei 9.615, de 24.03.1998, mais conhecida como “Lei Pelé”, atualmente vigente, que agora
consagra o referido direito em seu art. 42.” MOTA , Mateus Scisinio, Direito de Imagem, op. Cit. O texto ori-
ginal era o seguinte: Art. 100: À entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou
proibir a fixação, transmissão, retransmissão, por quaisquer meios ou processos, de espetáculo desportivo
público, com entrada paga. Parágrafo único: Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da au-
torização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo. Art. 101: O disposto
no artigo anterior não se aplica à fixação de partes do espetáculo, cuja duração, no conjunto, não exceda a
três minutos para fins exclusivamente informativos, na imprensa, cinema ou televisão.
252 CHAVES, Antônio. Direitos conexos. LTr, p. 607 e seguintes. No campo autoral, vide ainda, entre mui-
tos, ASCENSÃO , José de Oliveira, Direito Autoral, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.503 e RABELLO ,
José Geraldo de Jacobina, Do “Direito de Arena”, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,
São Paulo, v. 5, p. 53-59, p. 56. De outro lado: “Esta teoria parte do pressuposto de que o direito à imagem e
o direito do autor são semelhantes. [...] A existência de um vazio legislativo em relação ao direito à imagem
possibilitou o surgimento desta teoria. Assim, por muito tempo aplicou-se no Direito brasileiro a norma
do art. 666, inciso X, do Código Civil, para solucionar questões pertinentes ao direito à imagem.” FACHIN,
Zulmar Antonio. A proteção jurídica da imagem. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p.61
253 MORAES , Walter, Questões de Direito Autoral, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977.

129
jogadores de futebol aos grandes artistas da raça 254
, e aos pensadores da
humanidade255.
Há que se distinguir, nesse contexto, o interesse jurídico relativo à
imagem coletiva, e aquele atinente à imagem individual, como nota Alvaro
Melo Filho256:
Direito de arena: (a) decorre da lei; (b) é coletivamente usufruído; (c)
não se reveste de periodicidade; (d) ocorre dentro do contexto do evento des-
portivo transmitido; (e) tem natureza salarial; (f) Deve ser limitado a 20% do
que recebe o clube, valor este rateado entre todos os atletas participantes do
evento transmitido. Direito de Imagem: (a) decorre de contrato; (b) é individu-
almente usufruído; (c) normalmente reveste-se de periodicidade; (d) ocorre
fora do contexto do evento desportivo transmitido; (e) não tem natureza sa-
larial; (f) gera 100% para o atleta cedente do uso da imagem, sem rateio para
os demais atletas.
Assim, tem-se o direito de arena, relativo à imagem coletiva, o direito
pertinente à celebridade individual do esportista, desvinculada do espetácu-
Denis Borges Barbosa

lo257. A doutrina aponta, inclusive, matriz constitucional diversa para a prote-


ção jurídica dos dois interesses.
O direito de arena, com base explícita em lei ordinária 258, se fundaria
no art. 5º., XXVIII, num dispositivo topologicamente dedicado aos interesse

254 Em obra anterior especializada, Antonio Chaves dizia que “de alguma forma, o desempenho dos gran-
des atletas aproxima-se ao de verdadeiros artistas”. Antônio Chaves, Direito de Arena, Campinas: Jurulex,
1988.
255 No que se convenciona indicar como o primeiro acórdão quanto ao direito das celebridades entre nós:
Ap. Cív. nº 26.108, Rel. Des. Rui Domingues, j. em 27.6.74, in Revista Forense, vol. 250, abr./jun. 75, pp. 269-
273. “A escola de futebol criada pelo Brasil tem raízes humildes, vem do povo humilde, assim como a co-
reografia e cânticos carnavalescos, modelos de organização, de disciplina, de espírito de equipe. Os heróis
do futebol são admirados e contemplados pelas massas e pelos seus representantes, inclusive pelas mais
altas autoridades federais. Não há assunto mais sério no Brasil . (...) Um grande jogador de futebol como
Jairzinho é tão importante para o povo brasileiro como Kant ou Heidegger para um estudante de filosofia
na Alemanha. Tais nomes, tais imagens, não podem ser tomadas em vão, nem a troco de nada.”
256 MELO FILHO, Álvaro, Direito desportivo.... op. Cit.
257 MOTA, Mateus Scisinio, Direito de Imagem ... op. Cit. , “O que se tutela com o direito de arena é a
exploração da imagem coletiva dos atletas durante a participação em eventos e espetáculos esportivos,
enquanto o direito à imagem se refere ao uso da imagem individual do atleta, desvinculada do espetáculo
desportivo.”
258 Lei 9.615/1998, Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na
prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a re-
transmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que
participem [Redação dada pela Lei 12.395/2011]. § 1.º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário,
5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repas-
sados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais
participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil [Redação dada pela Lei 12.395/2011].
130
propriedade intelectual
autorais259. Ainda que assim ancorado, distinguir-se-ía sua raiz no direito geral
de imagem, mas restrito e especializado:
“Direito de Arena – Limitação – Direito de Imagem – O direito de
Arena é uma exceção ao direito de imagem, e deve ser interpretado restri-
tivamente. A utilização com intuito comercial da imagem do atleta fora do
contexto do evento esportivo não está por ele autorizado. Dever de indenizar
que se impõe (...)” STJ, AgRg no AI nº 141987 – SP, 3ª. Turma, Rel. Min. Eduardo
Ribeiro, j. 15/12/1997; v.u..
Levando em conta a distribuição legal de verbas, a doutrina distingue
o direito de arena patronal daquele desigando como profissional, que se des-
tina aos esportistas em caráter individual, mas não em consideração de sua
celebridade individual260.
De outro lado, o interesse à imagem pessoal, como celebridade es-
portiva, teria radicação, além do dispositivo citado, no Art. 5.º, V e X da Cons-
tituição261.
A distinção é possível, não obstante o tecimento confuso e por vezes
fraudulento dos dois institutos no campo empírico:

259 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi-
leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a pro-
teção às participações individuais em obras coletivas e à produção da imagem e voz humanas, inclusive nas
atividades desportivas;
260 Como distingue SÁ FILHO, Fábio Menezes de, A teoria..., op. cit. : “Em síntese, a titularidade do direito
de arena pertence aos clubes de futebol. Em contrapartida, a titularidade do direito de imagem, em virtude
do seu caráter personalíssimo, pertence a cada pessoa, quer seja física ou jurídica. Quando houver a reali-
zação da transmissão, por exemplo, de uma partida de futebol, o clube é responsável pela negociação an-
tecipada desta exibição. Nos termos do caput e § 1.º do art. 42, da Lei dos Desportos, com a redação dada
pela Lei 12.395/2011, clube negociante terá direito a 95% (noventa por cento) do valor total da autorização
negociada por ele mesmo, em virtude da exposição da sua imagem coletivizada, equivalendo ao direito
de arena patronal. O que é negociado, conforme disposição do supracitado artigo da Lei dos Desportos, é
a imagem coletiva, cuja titularidade pertence aos clubes de futebol. A partir desta negociação é que um
percentual do valor total negociado será destacado e repassado aos atletas profissionais, os quais são, nes-
ta oportunidade, representados pelos sindicatos profissionais da categoria. Sendo assim, pode-se afirmar
que o direito de arena profissional e o direito de arena patronal são espécies do gênero direito de arena.
Assim, o direito de arena profissional diz respeito apenas ao percentual de 5% (cinco por cento) devido aos
empregados futebolistas a título de repasse dos clubes de futebol daquele montante total da autorização
negociada (pacote de partidas a serem disputadas), em virtude de contribuírem participando do espetáculo
ou evento desportivo, durante o exercício das funções oriundas das obrigações pactuadas no contrato de
emprego.”
261 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi-
leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional
ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação; (...)
131
“DIREITO AUTORAL – Direito à própria imagem – Uso de fotografias de
jogadores de futebol para compor ‘álbum de figurinhas’ – Inadmissibilida-
de – Hipótese em que o direito de arena atribuído às atividades esportivas
limita-se à fixação, transmissão e retransmissão do espetáculo desportivo
público – Inteligência das leis 5.989/73, art. 100 e 8.672/93 (‘Lei Zico’)”.
STJ, Resp 46.420-0-SP-J. 12.9.94, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar – DJU 5.12.94.262
E, autonomamente de qualquer direito de arena:
“DIREITO AUTORAL. DIREITO À IMAGEM. PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA
E VIDEOGRÁFICA. FUTEBOL. GARRINCHA E PELÉ. PARTICIPAÇÃO DO ATLE-
TA. UTILIZAÇÃO ECONÔMICA DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA, SEM AUTORIZA-
ÇÃO. DIREITOS EXTRAPATRIMONIAL E PATRIMONIAL. LOCUPLETAMENTO.
FATOS ANTERIORES ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS VIGENTES. PREJUDI-
CIALIDADE. RE NÃO CONHECIDO. DOUTRINA. DIREITO DOS SUCESSORES À
INDENIZAÇÃO. RECURSO PROVIDO. UNÂNIME.
I - O direito à imagem reveste-se de duplo conteúdo: moral, porque direito
de personalidade; patrimonial, porque assentado no princípio segundo o
qual a ninguém é lícito locupletar-se à custa alheia.
II - O direito à imagem constitui um direito de personalidade, extrapatri-
Denis Borges Barbosa

monial e de caráter personalíssimo, protegendo o interesse que tem a


pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em circunstâncias concer-
nentes à sua vida privada.
III - Na vertente patrimonial o direito à imagem protege o interesse mate-
rial na exploração econômica, regendo-se pelos princípios aplicáveis aos
demais direitos patrimoniais.
IV - A utilização da imagem de atleta mundialmente conhecido, com fins
econômicos, sem a devida autorização do titular, constitui locupletamento
indevido ensejando a indenização, sendo legítima a pretensão dos seus
sucessores”. STJ, Resp. 74473-RJ. 4a. Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figuei-
redo Teixeira. Julgamento ocorrido em 23.02.1999. DJU, 21 jun. 1999.

7. A Persona como constructo


Qual o núcleo desse interesse jurídico de que se trata? A noção de
persona, como sinônimo de imagem de celebridade 263, ou seja, a exterioriza-
ção de um constructo que não se identifica com a pessoa natural264. Seria o
262 Curiosamente, o caso judicial americano que detonou a criação dos publicity rights versou exatamente
sobre figurinhas de esportistas: Haelan Laboratories Inc. v. Topps Chewing Gum, Inc. 202 F.2d 866, 868 (2nd
Cir. 1953). Tal caso foi objeto de análise por NIMMER, Melville B. , The Right of Publicity, 19 Law & Contemp.
Probs. 203 (1954).
263 COOMBE,Rosemary J.: “I will use the term “celebrity image” to designate not only the celebrity’s visual
likeness, but rather, all elements of the complex constellation of visual, verbal and aural signs that circulate
in society and constitute the celebrity’s recognition value. The term “persona” will also refer to this config-
uration of significations. I will also use the terms “celebrity” and “star” interchangeably.”
264 “Persona é uma palavra de origem latina que pode designar tanto ‘máscara’ quanto ‘pessoa’. Goffman
[GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1999.] cita Robert Ezra Park
132
propriedade intelectual
valor de reconhecimento da celebridade.
A possível definição deste objeto de direito seria o seguinte265:
A persona pode representar um personagem inteiro, imagem e estilo
de vida, enquanto obras escritas de um autor consistem em apenas expres-
sões específicas. Por outro lado, um romance pode ser uma representação
mais precisa da personalidade de alguns escritores porque o trabalho é uma
expressão intencional do criador, enquanto a persona é ações intencionais e
não intencionais do indivíduo combinada com a reação popular a essas ações.
De fato, é difícil encaixar em ambos a persona seja na teoria laboral, seja na
teoria da personalidade, que explicam a propriedade intelectual. Às vezes a
persona é o resultado de trabalho árduo no sentido de garantir uma imagem
pública com base em uma visão interna. Mas muitas vezes ela é uma criações
de puro acaso, talvez a única “propriedade intelectual” sem intencionalidade.”
Como se verá, ao focarmos nossa atenção ao constructo, à persona
resultante do trabalho árduo no sentido de garantir uma imagem pública com
base em uma visão interna, nos fixaremos no produto de uma intencionalida-
de, muitas vezes longa e contínua, na ereção de um personagem da história
corrente.
Alguns analistas da economia da cultura apontam que, tomando, por
exemplo, o autor literário transformado em celebridade, essa celebridade cria
uma espaço de atuação, de performance, que transcende até mesmo a figura do
autor romântico como gênio266: seria como um direito conexo à autoria literária.
para dizer que não é por acidente histórico que “a palavra pessoa, em sua acepção primeira, queria dizer
máscara”, pois, conforme ele, em todos os lugares estamos desempenhando papéis. Na vida, ainda segun-
do Goffman, os papéis desempenhados revelam “o nosso mais verdadeiro eu”. (1999: 27-29). Conforme
Ryngaert [RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.], no
teatro grego da Antigüidade Clássica, a máscara era exatamente a instância que cabia ao papel desempe-
nhado pelo ator, papel este que não se confundia com quem o interpretava. A máscara distanciava o ator do
personagem, resguardando sua individualidade, de forma que um e outro não se confundiam (1996: 126)”.
PIMENTEL,Márcia Cristina,, op. cit.
265 Tomamos aqui a definição de um dos textos clássicos da propriedade intelectual, Hughes, Justin, The
Philosophy of Intellectual Property, 77 Geo. L.J. 287, December, 1988: “Persona” is a term used when dis-
cussing the right of publicity and the right to one’s image, name, or likeness. Hengham & Wamsley, The
Service Mark Alternative to the Right of Publicity: Estate of Presley v. Russen, 14 PAC. L.J. 181, 182 (1983).”
Indeed, it is hard to say whether an author’s writing or an author’s persona is the better medium for ex-
pressing personality. The persona may be more important because it represents a whole character, image,
and lifestyle, while an author’s written works consist of only specific expressions. On the other hand, a novel
may be a more accurate representation of personality for some writers because the work is an intentional
expression of the creator, while the persona is the individual’s intentional and unintentional actions com-
bined with popular reaction to these actions. Indeed, it is difficult to fit personas into both the labor and
personality theories of intellectual property. They are sometimes the result of hard work towards securing
a public image based on an internal vision. But quite often they are creations of pure chance, perhaps the
only “intellectual property” without intentionality.”
266 “Há direito conexo ao de autor (ou seja, o direito de interpretação), quando caracterizada a pessoa
na representação de um determinado personagem (como um ator ou humorista enquanto vive um papel).
133
8. O do sujeito desse interesse
Quem é o sujeito desse direito cuja existência se alvitra? É certamen-
te “aquele que detém celebridade o suficiente para carrear interesse do públi-
co para os bens ou serviços a que eles se associam”; não é a simples condição
de celebridade por quinze minutos a que celebrizou Andy Warhol267, mas a
relativa perenidade que permite captar e manter o endosso268.
Voltaremos abaixo a essa questão.

9. Do conteúdo econômico do constructo


Vale estabelecer aqui qual o núcleo econômico dessa construção,
que, como nota Newton Silveira em estudo relativo à noção de personagem
Ambos não se confundem com o direito de autor propriamente dito, que incide sobre a obra intelectual,
estética, de cunho literário, artístico ou científico (assim, na fotografia, na pintura, na cinematografia, na
obra publicitária)” (CARLOS ALBERTO BITTAR, ob. cit., pág. 90)”. TJSP, Ac 199.530-1, Segunda Câmara Civil
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, J. Roberto Bedran, 19 de outubro de 1999.LEX - JTJ - Volume
243 - Página 201
267 “The expression was coined by Andy Warhol, who said in 1968 that “In the future, everyone will be
Denis Borges Barbosa

world-famous for 15 minutes.” http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame. Na verdade a própria


frase ilustra a noção de celebridade. Andy Warhol não criou coisa alguma. Na verdade, sem o benefício
da celebridade, mas com a doação maior do talento, já dizia muito antes Lima Barreto: “Anedotas deste,
casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que
parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu
quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido” Clara dos Anjos. E, também: “Houve um
em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade” O triste fim de Policarpo Quaresma. Mas também
se encontra, por exemplo, em Gide: « Le vieux savant, théoricien buté, avait eu son heure de célébrité » (Si
le grain ne meurt, 1924, p. 415).
268 O requisito da perenidade foi analisado em ANDACHT, Fernando, Uma proposta analítica da ima-
gem da celebridade na mídia, encontrado em http://revistas.utfpr.edu.br/ct/tecnologiaesociedade/index.
php/000/article/view/20/20, visitado em 6/12/2011. Quanto a diferença entre a celebridade relativa ou
efêmera, e a que constitui o objeto de nossas cogitações, lembra o TRF2: “Ressalte-se, também, que há
alguns anos, quando ainda não havia um acesso maciço aos meios de comunicação de massa, quando
uma pessoa se celebrizava, havia um destaque imenso em torno dela, já que poucas eram as personagens
realmente celebrizadas. Atualmente, há multiplicação de meios de telecomunicação. Há o youtube, a TV
a cabo, tantos outros meios em acréscimo àqueles existentes, por exemplo, em meados da década de 80
do Século passado, que até mesmo o conceito de celebridade vem um tanto diluído na mídia, posto que
vem ao lado de talvez uma ou mais centena de pessoas, também celebrizadas pela mesma mídia.” TRF2,
AC 2003.51.01.540786-9, Primeira Turma Especializada do TRF 2ª Região, por unanimidade, JFC Marcello
Ferreira de Souza Granado, 29 de março de 2011. Celebridade não é, e nunca foi, criação da mídia contem-
porânea. Como se lê num capítulo exatamente denominado “Celebridades” do livro Filomena Borges, de
Aluísio Azevedo: “”Que frenesi! Todos queriam ser o primeiro a vê-la. O cais Pharoux parecia diminuir sob a
multidão que o coalhava. Viam-se enormes grupos, esparsos, por aqui e por ali, galgando a muralha, inva-
dindo as lanchas e os escaleres. Nas ruas faziam-se comentários a respeito da baronesa de Itassu; os jornais
pregavam na parede notícias a respeito dela; vendia-se o seu retrato em todas as proporções; inventavam-
se biografias. Uns afirmavam que Filomena Borges era um modelo de virtudes; outros que era uma grande
velhaca. Este jurava que a vira já muito por baixo, num hotel; aquele dizia que ela fora sempre riquíssima,
e que só trabalhava em público por amor à arte. Aqui afiançavam havê-la visto, em tal época dançar uma
habanera em casa de tal figurão; logo, ali, negavam: - Que não! que essa Filomena era outra, falecida havia
já coisa de cinco anos, e que esta, a nova, a do teatro, não tinha absolutamente nada de comum com a
outra, com a tal Filomena, cujos bailes, por tão luxuosos e originais, ainda se conservavam na memória de
toda a gente!”
134
propriedade intelectual
gráfico, se traduz no valor da notoriedade. Os elementos simbólicos da fama,
naquilo que capturam a boa vontade do público, representam um dos mais
relevantes potenciais de mercado da sociedade contemporânea.269
Sobre tal fenômeno, e seus efeitos jurígenos no campo da Proprieda-
de Intelectual, discutimos seu impacto no direito de marcas270:
Curiosamente, o fluxo simbólico interage com o econômico, mas com
efeitos jurígenos. Uma marca solidamente registrada pode perder a exclusi-
vidade, pelo fenômeno da generificação, ou seja, no fluxo de comunicação a
marca deixa de ser daquele produto ou serviço, originário do titular, e passa
a ser um descritor funcional (celofane e fórmica são casos consagrados pela
jurisprudência), que emigra para o domínio comum. Tal fenômeno será uma
patologia da notoriedade, como sugere Faria Correa271, usando extensa e ade-
quadamente da metáfora:
A notoriedade, no seu sentido mais amplo, é o fenômeno pelo qual a
marca, tal qual um balão de gás, se solta, desprendendo-se do ambiente em
que originariamente inserida, sendo reconhecida independentemente de seu
campo lógico-sensorial primitivo. A notoriedade é correlata à genericidade.
A genericidade é o negativo (= imprestabilidade universal para servir como
elemento de identificação de um produto ou serviço, por refletir, no plano
lógico-sensorial, o próprio produto ou serviço). A notoriedade é o positivo (=
idoneidade universal, absoluta para servir de elemento de identificação de um
produto ou serviço). Notoriedade é magia e magia é a capacidade de se criar
o efeito sem a causa, produzindo do nada. Notória a marca, e a sua utilização
impregna de magia qualquer produto, tornando-o vendável. A vendabilidade
do produto emerge do poder de distinguir, do poder de atrair o público.
A construção da imagem-de-marca, em especial pelas técnicas persu-
asórias e de sedução, cria eficácia simbólica além do alcance da concorrência
269 COOMBE, op. cit.: “It is impossible to deny the potential value of the celebrity persona in an age of
mass production and communications technologies. The aura of the celebrity is a potent force in an era
in which standardization, rationalization and the controlled programming of production characterize the
creation and distribution of goods and the capacity of mass media communications to convey imagery and
information across vast distances is harnessed to ensure consumer demand. As mass market products be-
come functionally indistinguishable, manufacturers must increasingly sell them by symbolically associating
them with the aura of the celebrity - which may be the quickest way to establish a share of the market. It is
suggested that fame has become the most valuable (and also the most perishable) of commodities and that
celebrity will be the greatest growth industry in the nineties.
270 Proteção de Marcas, Lumen Juris, 2008, 3.1.2. Uso simbólico da marca e criação de direito. Vide, aliás,
o texto de Dogan e Lemley, citado neste estudo, em que os autores correlacionam o interesse jurídico das
celebridades sobre seu endosso como correlato ao interesso marcário de evitar a diluição das marcas, ou
seja, o da notoriedade que, no nosso sistema jurídico, encontra guarida no art. 125 da Lei 9.279/96.
271 [Nota do original] CORREA, José Antonio B. L. Faria. “O Fenômeno da Diluição e o Conflito de Marcas”,
Revista da ABPI, Nº 37, nov/dez 1998, p. 31.
135
e dos direitos de exclusiva. Ou seja, o significante da marca significa – aponta
origens – que não necessariamente correspondem à circulação de produtos e
serviços. O símbolo extravasa o mercado, o vinculum juris, ou ambos.
Convencionalmente, dá-se a esse fenômeno o nome de notoriedade,
eis que a marca capaz de ter esse efeito é descrita como notória272.
Já falando do mesmo efeito, na construção de personagens no campo
autoral, disse Newton Silveira, nos seu Ensaios e Pareceres273
A revista jurídica italiana “IL DIRITTO DI AUTORE”, de março/98, publi-
ca interessante artigo de Luciano Menozzi, sob o título “IMMAGINE E NOTO-
RIETÀ NELLA COMUNICAZIONE ICONICA”.
Embora o autor do texto se refira ao direito à imagem (direito de per-
sonalidade), e não ao direito de autor do fotógrafo (como no caso em exame),
suas considerações têm plena aplicação ao tema da presente consulta.
Referindo-se à notoriedade adquirida pela imagem de determinada
pessoa, afirma:
Denis Borges Barbosa

“Siamo qui all’estremo grado di oggettivazione dell’immagine di una


persona, che arriva fino al punto di staccarla dalla persona reale.”
E acrescenta:
“In sostanza, può dirsi che il diritto positivo considera tradizionalmente
l’immagine della persona prendendo come riferimento l’immagine nella sua
realtà immediata e nei suoi riflessi morali, senza soffermarsi particolarmente
su altri riflessi, che possano avere carattere diverso e valore prevalentemente
commerciale.
Le situazioni alle quali ci riferiamo sono ben diverse: sono situazioni
che riguardano immagini non dirette della realtà, ma immagini che potremmo
dire “di secondo grado”, rispetto alle quali la “notorietà” costituisce un elemen-
to costitutivo dell’utilizzo delle immagini stesse.”
Para concluir que:
“Le immagini a cui ci referiamo... esistono solo in fuzione della loro
“circolazione” e specialmente della loro utilizzazione per fini pubblicitari... Sono
quindi situazioni nelle quali l’elemento economico è in primo piano e l’immagi-
ne notoria è trattata alla stregua di un bene commerciale.”

272 Id. Ead., 4.3.3. O extravasamento simbólico.


273 SILVEIRA, Newton, Direito autoral sobre “Mamíferos” Parmalat, 08/10/1998, Estudos e pareceres de
propriedade intelectual, Lumen Juris, 2009.
136
propriedade intelectual
A seguir, afirma:
“...l’immagine con i mezzi di comunicazione di massa è diventata “un
vero e proprio prodotto di consumo”.”
destacando que:
“immagine notoria” è infatti un “plus valore”
E finaliza:
“In conclusione, ci sembra di poter affermare che “l’immagine notoria”
costituisce un bene immateriale autonomo rispetto all’immagine-ritratto; bene
che per le sua caratteristiche e la sua funzione travalica l’ambito dei diritti della
personalità come regolati dal diritto positivo e trova più consona collocazione
fra i segni distintivi commerciali.
Tutta la materia della publicità andrebbe comunque rivista in un’ottica
che tenga conto dell’evoluzione sociale e del costume, con riconoscimento e
regolamento di quel “right of publicity” del quale da tempo si parla.”
Nessas condições, sem outras considerações acerca de obra coletiva,
ou direito à paternidade, ou exploração comercial de obra artística, parece
claro que, face ao contrato com a PARMALAT, as ilustrações de TOM ARMA
assumiram, no território do contrato, uma importância comercial e uma capa-
cidade de licenciamento com que não contavam antes, o que liga TOM ARMA
à PARMALAT, obrigando o autor das ilustrações, da mesma forma que a PAR-
MALAT no contrato, a não proceder de maneira que diminua ou prejudique a
força publicitária com que as figuras e ilustrações agora contam.
No campo dos direitos da personalidade, a questão da notoriedade
introduz um diferencial específico274:
O mesmo fenômeno também pode ser notado na publicidade que ex-
plora a imagem de pessoas notórias no Brasil. Segundo constatação de Carlos
Alberto Bittar Filho:
“O fenômeno ganha vulto em nossos tempos, em que a vinculação
publicitária de pessoas bem-sucedidas em suas atividades representa estímu-
lo ao consumo mediante a atração que exercem junto ao público; assim acon-
tece com grandes estadistas, políticos, artistas, escritores, esportistas. Explo-
ra-se, nesse passo, a ânsia do espectador de se identificar com os seus ídolos,
com os seus hábitos, os seus gostos, as suas preferências, levando-o, pois, ao

274 SOUZA, Carlos Affonso Pereira de, Contornos atuais do direito à imagem, Revista Forense – Vol. 367
Doutrina, Pág. 45
137
consumo do produto anunciado, direta ou indiretamente, conforme o caso.”275
Note-se que ambos os perfis do direito à imagem podem ser envol-
vidos em uma campanha publicitária, uma vez que se poderá explorar: (i) a
fisionomia de determinada pessoa, com acento em particularidades físicas es-
peciais que atraiam a atenção do consumidor; e/ou (ii) atributos de uma pes-
soa notória que estejam em consonância com as características do produto ou
com o público-alvo da publicidade.
A exemplificação do uso da imagem-retrato no âmbito da publicidade
não apresenta maiores dificuldades, uma vez que basta apontar as obras publi-
citárias que exploram, como visto acima, celebridades para a divulgação de pro-
dutos pelo simples fato de as mesmas gozarem de notoriedade. Outras hipóte-
ses poderiam ser indicadas, como a extensiva utilização de mulheres esculturais
(ou, mais notadamente, de partes específicas de seus corpos) para a promoção
de produtos cujo público-consumidor seja majoritariamente masculino.
A imagem-atributo, por sua vez, encontra grande utilidade na produ-
ção de obras publicitárias, dado que a publicidade visa à persuasão do con-
Denis Borges Barbosa

sumidor através de uma operação de reconhecimento, gerando, por fim, a


necessidade de consumo. Com efeito, a publicidade busca proporcionar esse
resultado através da identificação do consumidor com determinadas qualida-
des do produto ou atributos da pessoa utilizada na obra publicitária.
Assim, introduzir em um comercial de curso de línguas estrangeiras
para jovens um ator que possua expressividade junto ao público juvenil cum-
pre a função de identificação do consumidor com o produto. Da mesma for-
ma, a utilização de um jogador de futebol conhecido pelo seu temperamento
explosivo, e por vezes agressivo, em um anúncio de inseticida, ressalta a sua
ação eficaz e mortífera no combate aos insetos. Trata-se de uma exploração
de características da pessoa, não necessariamente físicas, que podem ser no-
tadas através de seu comportamento nas relações sociais.

10. Da titularidade desse interesse


Enfatizemos, por amor à precisão doutrinária, que o titular desse in-
teresse será, em princípio, a celebridade a quem se imputam os atributos no-
tórios do constructo276.
275 [Nota do original] Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho, Tutela dos direitos da personalida-
de e dos direitos autorais nas atividades empresariais, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 58.
276 Vale lembrar que o right of publicity americano tem sido categoricamente separado dos direitos pes-
soais, como notou Nimmer no texto doutrinário inaugural dessa nova categoria jurídica: “Moreover, since
animals may be endowed with publicity values, the human owners of these non-human entities should
have a right of publicity in such property . “ NIMMER, Melville B. , The Right of Publicity, 19 Law & Contemp.
138
propriedade intelectual
Quem será seu originador? Oferecemos a hipótese de que – dentro
de certos limites muito precisos - a celebridade se constrói a si mesma; sua
persona dela mesma se origina como fulcro na deliberação de um constructo
que se aliena de si mesmo para afirmar um valor de reconhecimento que seja
autônomo do individuo tangível e sofrível.
Provavelmente de um self-made man como Sílvio Santos isso será
verdade. Num universo de image consultants, cujo ofício é, como descreve
o Decreto dec. 82.385 de 05 de outubro de 1978 para o diretor de arte na
obra cinematográfica, a construção plástico-emocional de cada personagem
dentro do contexto geral, possivelmente em algum momento se verificará a
cesura entre titularidade e autoria com que o direito tanto se debate.
Voltaremos a essa questão ao discutirmos quem é o autor da persona
no campo do direito autoral.

11. Dos ônus e dos benefícios de ser celebridade


É parte dos direitos fundamentais o direito à informação277. Há, no
entanto, uma barreira à informação, que é a esfera da intimidade, que a todos
atine; dela se distingue, porém, a privacidade, que se esgarça na proporção
em que a pessoa se faz ou se torna pública.
Em muitos casos, como no dos políticos e servidores, essa redução
é correlativa ao interesse público no acesso à informação a que lhes diz res-
Probs. 203 (1954). Como nota Husband, B. Paul Husband, Horses In Entertainment, Sports And The Law,
encontrado em http://www.husbandlaw.com/~/media/Firm%20Galleries/Organizations/6/9/1/0/69102/
horses-entertainment.ashx, visitado em 26/11/2011, há alguma justificativa jurisprudencial, naquele direi-
to, para tal afirmação.
277 “O direito à informação considera o ser humano tanto na dimensão coletiva, que se refere ao direito
difuso do povo de receber informações, para que possa participar efetivamente da esfera pública, quanto
na dimensão individual, que se refere ao direito de cada pessoa de receber e transmitir as informações ne-
cessárias para a formação das suas convicções, bem como o de expressar as suas opiniões.” (...) No direito
nacional, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à informação em diversos dispositivos. Na
perspectiva interna, tem-se a proteção da liberdade de consciência e de crença [art. {5.º, VI}, : “é inviolável
a liberdade de consciência e de crença (...).”],e na perspectiva externa tem-se a proteção da livre manifes-
tação do pensamento [art. {5.º, IV}: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;
e Art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”],do livre
exercício dos cultos religiosos e proteção aos locais de culto e a suas liturgias [art. {5.º, VI}: “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”],da liberdade de expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação [art. {5.º, IX}: “é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; e Art. 220: “A manifes-
tação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não
sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”] e da liberdade de acesso à informa-
ção [art. {5.º, XIV}: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando ne-
cessário ao exercício profissional.”].PALHARES, Cinara, Direito à informação e direito à privacidade: conflito
ou complementaridade? Revista dos Tribunais | vol. 878 | p. 42 | Dez / 2008 | DTR\2008\727
139
peito278. De outro lado, nota-se essa redução de proteção no caso das ce-
lebridades, agora também por entender-se que teria havido um construção
voluntária dessa notoriedade279.
“(...) o grau de resguardo e de tutela das pessoas famosas e notórias
não pode ser o mesmo do homem comum, até porque a fama e o prestígio
costumam ser a meta optate de certas pessoas e celebridades e, assim, o
meio e modo pelo qual obterão esse desiderato”5 Portanto, pode-se afirmar
que essa invasão de privacidade por parte dos meios de comunicação (im-
prensa ou mídia) é consentida, ainda que de forma tácita, na medida em que
não há fama se a imagem não é exteriorizada e divulgada pelos meios que a
tecnologia dispõe.”280
E o repete a casuística:
“Por ser ator de televisão que participou de inúmeras novelas (pessoa
pública e/ou notória) e estar em local aberto (estacionamento de veículos),
o recorrido possui direito de imagem mais restrito, mas não afastado; - Na
espécie, restou caracterizada a abusividade do uso da imagem do recorrido
Denis Borges Barbosa

na reportagem, realizado com nítido propósito de incrementar as vendas da


publicação;” STJ, REsp 1082878/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi,
j. 14.10.08
“É certo que uma das conseqüências da fama é a perda da privacida-
de, já que uma coisa implica na outra, reciprocamente: da notoriedade decor-
re uma maior exposição pública e desta exposição obtêm-se maior notorieda-
de. Assim, atores, cantores, jogadores de futebol e qualquer pessoa privada
que se torna publicamente conhecida faz da exposição da imagem seu instru-
mento de trabalho, devendo estar mais acostumados a uma maior ingerência
278 “Assim sendo, é possível afirmar que a intimidade de uma pessoa não representa qualquer interesse
público que justifique a sua violação, salvo raríssimas exceções, como para a apuração da prática de crime
(caso seja necessário, por exemplo, escuta telefônica ou violação de correspondência e de domicílio). a
privacidade, uma vez que envolve necessariamente uma face pública, comportará maior flexibilização em
razão do interesse público envolvido. Portanto, dependendo da relevância social de determinado fato, ou
de uma qualidade especial de um indivíduo, como é o caso das pessoas públicas (políticos, pessoas que
exercem cargos públicos) ou famosas (artistas, cantores, pessoas notórias em razão da sua profissão), a
esfera privada poderá ser reduzida (...)Pessoas famosas ou notórias no seu campo de atuação, consideradas
“pessoas da história do tempo em sentido absoluto”, também sofrem maiores restrições à sua privacidade.
Quanto às pessoas famosas, cuja atividade requer necessariamente a exposição à mídia (artistas, canto-
res, apresentadores de programas televisivos, participantes de reality shows etc.), a esfera privada sofre
restrições por razões óbvias. Esses indivíduos construíram a sua imagem e a sua personalidade à custa da
exposição pública, de maneira que, quando estiverem em locais públicos, é natural que ocorra interferência
na sua vida privada. PALHARES, Cinara, op. Cit.
279 O consentimento é um elemento, mas não determinante, na delimitação dos interesses das celebrida-
des quanto a sua persona. Como se verá mais adiante, há outros condicionantes que se impõem indepen-
dentemente da vontade expressa ou tácita da pessoa famosa.
280 STOCO, Rui, Tratado de Responsabilidade Civil, Revista dos Tribunais, 7a edição, p. 1663
140
propriedade intelectual
da mídia em suas vidas particulares, inclusive com uma interpretação negativa
de atos e fatos que as envolva. No entanto, isso não significa que essas pesso-
as não sejam dotadas de intimidade, privacidade e honra, pelo simples fato de
estarem sujeitas à maior exposição.” AC TJSP, 0287205-74.2009.8.26.0000, 9ª
Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, unanimidade,
Des. João Carlos Garcia, 24 de maio de 2011
Neste último caso, distingue-se o interesse público na informação,
quando tais personalidades atuam em espaço ostensivo281, daquela informa-
ção a que preside o interesse privado, por exemplo, o uso como endosso de
serviços ou produtos282.
A questão aqui é claramente a da ponderação do interesse público283,
que não se dissolve no interesse do público284: este, que deriva da notorie-
dade, pode ou não preponderar sobre o interesse à privacidade. Em quais-
quer circunstâncias, distingue-se o interesse das celebridades no seu núcleo
essencial de intimidade, a ser defendido com base na dignidade285, e o uso
281 “Portanto, duas são as situações a serem observadas: a) admite-se a utilização da imagem de pessoas
famosas ou notórias em razão do direito à informação, presente o interesse público, caso em que a face
pública da esfera privada poderá sofrer limitações (assim ocorre quando esses indivíduos comparecem em
eventos sociais, espetáculos públicos, festas, teatro, ou seja, quando são fotografados ou filmados em locais
públicos, pois a sua simples presença já denota interesse público)”. Idem, Eadem.
282 “ (...) quando a utilização da imagem comportar alguma finalidade, seja ela comercial ou até mesmo
filantrópica, como a promoção declarada de alguma causa social, deverá, necessariamente, ser precedida
de autorização, podendo ou não ser ajustada uma contraprestação.” Idem, Eadem.
283 “ (…) in any given case, the determination of appropriate relief should be made by balancing the
relevant harms triggered by allowing unauthorized uses of publicity rights against the benefits that society
derives from such uses.” Kwall, Roberta Rosenthal, The Right of Publicity vs. The First Amendment: A Proper-
ty and Liability Rule Analysis. Indiana Law Journal, Vol. 70, p. 47, 1994. Available at SSRN: http://ssrn.com/
abstract=849745. No direito brasileiro, vale a observação: “A admissibilidade dessa limitação voluntária está
ligada à interpretação dos direitos da personalidade a partir dos três extratos que os compõem: (i) núcleo
duro: é sempre indisponível e inegociável, estando demarcada pelo princípio da dignidade da pessoa hu-
mana e pela ética; (ii) a periferia: as limitações são admitidas apenas no caráter patrimonial, tendo como
ponto de vista a relação de um terceiro como o titular do direito; e (iii) a orla: aceita-se as limitações, a partir
de um ato de disponibilidade de vontade do titular do direito no exercício do mesmo, dentro da autonomia
de cada um.” FREITAS, Luciana da Silva, Estudo de caso: a técnica da ponderação na colisão entre o direito
à imagem e o direito de informação dentro da sociedade de informação, Trabalho publicado nos Anais do
XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010,
p. 3943.
284 “Não se pode confundir, no entanto, interesse público com interesse popular ou do público, que é
mera curiosidade coletiva, muitas vezes movida pela maledicência ou até pela bisbilhotice mórbida.” D’El-
boux, Sonia Maria, A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade: tensões e limites, Tese de Dou-
torado, FDUSP, 2005.
285 “Portanto, em todos os casos nos quais o interesse público não for de tal forma relevante, e não tendo
a própria pessoa dado ensejo à informação depreciativa, o direito à informação não poderá significar uma
violação da honra do indivíduo. A exibição da imagem de uma pessoa famosa em situação constrangedora,
pelo simples prazer mórbido de se deleitar com a desgraça alheia, não pode ser admitida. É certo que entre
essas situações extremas surgirão situações duvidosas, que exigirão a ponderação no caso concreto.” PA-
LHARES, Cinara, op. Cit. Mas mesmo antes dos limites extremos, se garante por vezes a reserva da intimida-
de, por exemplo, quanto aos paparazzi: “Direito Constitucional. Direito Civil. Embargos Infringentes. Direito
141
parasitário para fins comerciais ou publicitários, que tende a recair na esfera
de negativa ou interdição da celebridade286.
Assim, a celebridade incorre primordialmente num ônus perante o
dever geral de informação; como contrapartida da sua notoriedade, que se
supõe lhes ser consentida e favorável287, ela deve suportar uma maior pene-
tração.

12. Os deveres resultantes da construção da notoriedade


A celebridade não eventual, mas deliberada, se faz pública, que se faz
como pessoa da história tem sido onerada com esse acréscimo de exposição
necessário, resultante do aumento do interesse público em sua atuação na
sociedade288. Distingue-se ela, pela construção contínua e intencional, da pes-

à privacidade. Art. 5º, X da Constituição Federal. Artigo 20 do Código Civil. Exposição de atriz e sua filha
menor, com cinco anos de idade, em matéria jornalística expressamente desautorizada antes da publica-
ção. Violação do direito à privacidade e intimidade das autoras. Fotos clandestinas que destacam detalhes
privados da vida da atriz e de sua filha com revelação do nome da escola em que estuda a pequena. Direito
ao respeito e à preservação da imagem da menor. Infração ao disposto nos artigos 15 e 17 do Estatuto da
Denis Borges Barbosa

Criança e do Adolescente. A editora vende informação ao público e incontáveis vezes se vale de fotos tira-
das por “paparazzi” para ilustrar suas reportagens que são lidas por um enorme público, cada dia mais fiel e
ávido por conhecer detalhes sobre aspectos íntimos e privados da vida das celebridades. O confronto entre
direitos fundamentais de índole constitucional tem sido decidido através de critérios de ponderabilidade,
mas nunca é demais registrar que perante a Constituição Federal não há direitos absolutos ou ilimitados –
nem mesmo os da mídia de qualquer natureza. Recurso desprovido.” TJRJ, Embargos Infringentes 0080274-
36.2006.8.19.0001, Vigésima Câmara Cível, Des. Marco Antonio Ibrahim, 24 de agosto de 2011.
286 “Two types of publicity claims have raised particular problems for the courts. The first involves mer-
chandising claims, in which individuals claim violation of their publicity right not by the use of a name
in advertising, but by people who sell products that bear their name or likeness. Courts have generally
resolved these claims by making a distinction between news or art, on the one hand, and merchandise, on
the other - but as art and information become increasingly commodified, this distinction - if it ever made
sense - has become ever harder to sustain. The second type of problematic claim involves cases in which a
use draws attention away from the celebrity, or arguably sullies the celebrity’s reputation in some way that
harms the overall value of her identity.” Dogan, Stacey L. and Lemley, Mark A., What the Right of Publicity
Can Learn from Trademark Law. Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.
com/abstract=862965
287 Aqui, a distinção da notoriedade involuntária, que restringe o acesso da informação da pessoa ao
evento que a tornou objeto do interesse público, mas não justifica o excesso além desse. “Pessoas comuns
podem, em determinados fatos da vida, tornar-se pessoas da história do tempo “em sentido relativo”.
[BARROSO, Luís Roberto, Colisão entre liberdade de expressão e direitos de personalidade. Critérios de
ponderação. Interpretação constitucional adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Os princípios
da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 270.] São pessoas envolvidas em aconteci-
mentos da atualidade que revelam interesse à coletividade, como catástrofes naturais, graves acidentes,
descoberta de algum fato importante para a humanidade, vítimas de perseguição racial ou social, conflitos
sociais. Nesses casos, há redução da esfera de privacidade, mas que deve se limitar ao acontecimento no-
tório e enquanto perdurar o interesse da coletividade.” PALHARES, Cinara, op. Cit.
288 “Segundo Manuel da Costa Andrade, “a doutrina e a jurisprudência maioritárias propendem hoje a
subscrever, tanto no plano categorial como prático-normativo, a distinção proposta por Neumann-Dues-
berg entre pessoas da história do tempo em sentido absoluto e em sentido relativo (absolute e relative
Personen der Zeitgeschichte). Pertencerão à primeira categoria as pessoas que na sua época lideram a
vida política, econômica, social, cultural, científica, tecnológica, desportiva, do mundo do espetáculo, etc.
142
propriedade intelectual
soa apenas colhida pela eventualidade de um acidente, de um momento em
que sua atuação, ainda que involuntária, a faz objeto obrigatório do direito de
informação.
Assim, essa construção da notoriedade tem uma dupla projeção no
campo do direito: a celebridade não fica impune, no campo social, de obri-
gações perante o direito de todos à informação, que lhe tolhem o exercício
da privacidade. Parafraseando o dizer da constituição alemã, a celebridade
obriga.
Assim, a construção de si mesma como pessoa da história tem claras
implicações jurídicas. A celebridade não desfruta de uma posição de privilé-
gio imoderado ou irresponsável. O seu constructo é multidimensional, ainda
quando a visão pública de sua projeção no tempo seja elaborada como fabu-
lação, como uma deliberado tecimento de uma persona distinta de si mesma.

13. A distinção entre a pessoa e a persona


Num importante acórdão, o STJ chegou por si à noção desse cons-
tructo distinto da pessoa, ainda que para discutir a questão no plano do di-
reito de personalidade. Assim, ao discutir se Maitê Proença tinha o direito de
desvincular-se de uma publicidade que acabou por apor-se a uma séria infra-
ção do Direito do Consumidor, o relator chegou a entender que a atriz como
pessoa poderia – sim – ficar afetada pelo empréstimo de fama numa função
de celebridade:
Na publicidade, há a utilização, não só da imagem física, a chamada
imagem-retrato, mas, também da imagem-atributo, que é reconhecida pela
doutrina como sendo o conjunto de atributos de uma pessoa identificados no
meio social.
O Procurador Regional da República, Luiz Alberto David Araújo, assim
a conceitua:
“A imagem-atributo é conseqüência da vida em sociedade. O homem mo-
derno, em seu ambiente familiar, profissional ou mesmo em suas relações
de lazer, tende a ser visto de determinada forma pela sociedade que o cer-
ca. Muitas pessoas não fazem questão de serem consideradas relaxadas,
meticulosas, organizadas, estudiosas, pontuais ou impontuais. São carac-
terísticos que acompanham determinada pessoa em seu conceito social. É
importante verificar que tal característico não se confunde com qualquer

e em relação às quais subsiste um interesse público de informação particularmente alargado. Um interesse


que cobre toda a esfera da publicidade e se estende a muitos dos domínios em geral considerados como
pertinentes à esfera da privacidade, stricto sensu” (Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal: uma
perspectiva jurídico-criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 262)”. PALHARES, Cinara, op. Cit.
143
outro bem correlato à imagem, como a honra, por exemplo, como será
visto adiante.
A palavra imagem, portanto, tem apresentado sentido diferente do utiliza-
do inicialmente (e analisado pelos civilistas apontados acima). Trata-se de
concepção moderna do termo.(...) Dessa maneira, podemos afirmar que
existem duas imagens no texto constitucional: a primeira, a imagem-retra-
to, decorrente da expressão física do indivíduo; a segunda, a imagem-atri-
buto, como o conjunto de características apresentados socialmente por
determinado indivíduo.” (“A proteção constitucional da própria imagem”,
Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p. 31).

Associar o nome ou a imagem de uma pessoa pública, seja desportis-


ta ou artista a produtos e serviços, prática comum e cotidiana na publicidade
atual, permite agregar ao produto ou serviço as características positivas dessa
personalidade que, graças ao seu prestígio e bom conceito, por certo, contri-
buirá na valorização do produto e/ou de seu fabricante.
A propaganda, não raro, vincula um produto à imagem de uma pes-
soa. O que se busca é fazer crer que a coisa anunciada tenha as vantagens
Denis Borges Barbosa

apregoadas pela pessoa que as afirma. E o efeito positivo do anúncio em mui-


to dependerá do prestígio público de quem faz a propaganda.
Compulsando os autos, verifica-se que a autora, ora recorrente, foi
escolhida justamente por sua aceitação junto ao público. E principalmente o
feminino, à conta da credibilidade conquistada, não só como atriz, mas pela
participação em campanhas sociais, como “Ação da cidadania contra a fome e
a miséria”; “O câncer de mama no alvo da moda”; “Ação criança” e “Pró-crian-
ça” (fls.555). Logo, não há como negar que a campanha promovida pela ré, na
busca do resgate de seu nome junto ao público feminino, valeu-se do prestígio
da atriz e, defeituoso o produto, pela qualidade ou quantidade, a imagem da
autora foi atingida.
Com efeito, em situações que tais, a credibilidade das pessoas ou da
celebridade que faz o anúncio é transferida para o produto. O argumento de
inocorrência de dano moral pelo fato de não haver vinculação do nome da
autora ao produto é frágil. Não resiste, principalmente in casu, ante o fato
de o próprio contrato prever o caráter testemunhal pelo qual a atriz devia
garantir a segurança do produto e o conceito de seu fabricante, o que acabou
por converter a atriz em intermediária de uma “ propaganda enganosa”. STJ,
Resp 578.777 - RJ (2003/0162647-7), Terceira Turma do Superior Tribunal de
Justiça, voto do relator, Ministro Humberto Gomes de Barros, 24 de agosto
de 2004.

144
propriedade intelectual
Porém a maioria desvinculou enfaticamente a pessoa da atriz da-
quela imagem elaborada e ficcional da celebridade. Na distinção que veio
a prevalecer, enfatizou-se o elemento emocional, mítico, que – como nota
a análise argentina já citada – tem maior efeito do que qualquer vinculação
racional:
A campanha testemunhal foi contratada pela recorrida com o intuito
de estimular os espectadores usuários a creditar, sob a nova embalagem de
tom azul, segurança e confiança no produto MICROVLAR, cuja credibilidade
estava abalada.
Para tanto, a imagem-atributo da atriz recorrente foi utilizada, tão-so-
mente, com o intuito de apresentar o novo produto e, assim, angariar simpatia
dos espectadores para o novo padrão qualitativo do produto, então simboliza-
do pela troca da cor da embalagem.
Neste contexto considerado, a vinculação da atriz ao produto se dá
em estrita observância aos parâmetros eleitos pela publicidade divulgada, a
saber, utilização de pessoa leiga no tema relacionado aos efeitos terapêuticos
do fármaco (a atriz não é médica ou farmacêutica) , o que autoriza concluir
que:
a) a mensagem emitida pela campanha televisiva limitou-se tão-so-
mente a estimular, mediante o uso da publicidade protagonizada pela atriz, o
público a retomar sua crença no produto;
b) no sentido prestado pela atriz, leiga quanto ao produto e todos os
riscos de fabricação, condições de assegurar ao público, com rigor técnico e
científico, as qualidades terapêuticas e segurança nos métodos de fabricação
do medicamento; e
c) como resultado dos itens ‘a’ e ‘b’: a campanha testemunhal não
assegura ao público as qualidades do produto, apenas estimula-o a confiar nos
novos parâmetros de qualidade.
Conclui-se, assim, nos termos da fundamentação adotada pelo TJRJ,
não ser factível a vinculação da honra-profissional de atriz, leiga no tema téc-
nico, à credibilidade nos componentes qualitativos do produto MICROVLAR,
porquanto o espectador reconhece na pessoa da atriz, tão-somente, o apelo
artístico no afã de resgatar a credibilidade do anticoncepcional. (voto vence-
dor da Ministra Nancy Andrighi)
A distinção entre a pessoa (objeto do direito de personalidade) e o
constructo fica clara no mesmo voto:

145
Nesse contexto, distinção importante a ser feita é aquela estabele-
cida entre a pessoa da recorrente - no que concerne aos seus sentimentos,
isto porque sempre esteve muito comprometida com campanhas sociais ou
governamentais em prol da cidadania - e a atriz, profissional cujo conceito
continua intacto no meio artístico e na opinião pública.
Em conclusão, a análise de ofensa, ou não, à honra profissional cons-
titui, nesses termos, a única questão a ser apreciada neste processo. E, pe-
los motivos expostos, inexiste dano moral à honra-profissional da recorrente,
porquanto ausente a alegada vinculação entre ela e as características farma-
cológicas do anticoncepcional.
Em outro voto, o Ministro Humberto Gomes de Barros enfatizou que
o empréstimo de celebridade era apenas uma persona, e não punha em jogo
a atriz, ela mesma:
Por outro lado, se eu pudesse revê-los, pediria novamente vênia para
dizer que, na verdade, a eminente, respeitada e querida recorrente fez um
contrato de propaganda, no qual funcionou exercendo sua profissão de atriz.
Denis Borges Barbosa

Há circunstâncias – não me lembro de a recorrente haver atuado como mege-


ra – em que várias atrizes exercem o papel de vilãs, por contrato profissional.
Nem por isso, elas são contaminadas pelo personagem que estão encarnando.
A recorrente continua a ser uma das grandes damas do teatro brasileiro.
No caso em exame, a atriz reconhece que não garantiu a qualidade
do produto, mas que simplesmente agiu como atriz. Se o personagem que re-
presentou não traduzia a realidade, a culpa não é dela, tanto que não perdeu
prestígio ou credibilidade.
Verdade é que Maitê Proença representou um papel, a de Maitê
­ roença, mas não a da pessoa natural, a que sofre, e sim a que corresponde à
P
imagem pública – a persona da celebridade.
A natureza do contrato de celebridade, a que se vinculou Maitê Pro-
ença, aliás, se precisa e aresto paulista289:

289 Tive ocasião de discutir a figura em texto anterior : BARBOSA, Denis Borges, Nota sobre o Contrato
de Patrocínio, in A Eficácia do Decreto Autônomo, Estudos de Direito Público, Lumen juris, 2003. “Não
encontro no chamado “Contrato de Patrocínio” (não obstante as citações que lhe faz a Lei Rouanet) tipici-
dade que o caracterize como categoria jurídica a parte. No caso, quando o chamado patrocínio importa em
compra antecipada dos exemplares, é pelas regras do contrato de compra e venda que se deve governar
o negócio jurídico. Não me parece impossível o contrato de compra e venda de coisa futura, inclusive nas
modalidades emptio spei e emptio rei speratae a que se refere a doutrina civilista clássica. Uma vez que
realmente há uma apreciação qualitativa da obra, tal modalidade de compra se aproxima da coedição, dela
só se distinguindo, por sua vez, pelo fato de que o Município não assume os riscos pela edição. Pagará, se
e quando receber a edição. O que distingue este “patrocínio” da simples compra e venda de coisa futura é
a consignação, nos exemplares a serem impressos, do endosso do Município, o que empresta talvez maior
146
propriedade intelectual
“Como assinalei em meu voto lançado nos autos do AI ns 0230698-
59.2010.8.26.0000 (990.10.230698-4), julgado nesta mesma oportunidade, o
contrato de patrocínio, segundo doutrina do Dr. ALEXANDRE LIBÓRIO DIAS
PEREIRA (da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), “designa uma
série de contratos identificada e caracterizada pela sua função económico-so-
cial, a saber: a realização de uma forma especial de publicidade”.
Ainda a respeito do tema, diz o ilustre estudioso da matéria: “Trata-
se, com efeito, de um instrumento de promoção da “imagem empresarial” do
patrocinador, isto é, de um “instrumento da política de imagem” das empre-
sas, mediante associação de um seu sinal distintivo, maxime a marca, à fama
ou celebridade de uma pessoa e/ou à notoriedade do evento patrocinados,
participando na repercussão mediática do seu êxito (“Imagetransfer”)”. TJSP,
AC 0222466-83.2009.8.26.0100, 25a Câmara de Direito Privado do Tribunal
de Justiça de São Paulo, unânime, Des. Amorim Cantuária, 01 de março de
2011.
Como dizem os votos, no caso de um endosso como a de Maitê Pro-
ença, transfere-se a imagem da celebridade, mas a imagem da persona cons-
truída290.

peso de prestígio à edição, assim como o propósito específico de viabilizá-la, mais do que de obter a coisa
em si mesma. Este último ponto é que nos obriga a ponderar se o patrocínio, expressando o apoio do ente
público, não seria sujeito à regra da isonomia, da transparência, da publicidade e da impessoalidade. O que
se tem por inexigível é a satisfação de uma necessidade do Município pela aquisição de uma obra cuja fonte
é única. Neste caso, não há, como se notou, demanda do produto em si mesmo, mas a verificação de uma
eventual conveniência de que a obra venha à luz. Ocorre que quando a obra está por fazer-se, não existe a
unicidade de fonte que torna inexigível a licitação. Pelo contrário, no mundo das possibilidades conceber-
se-ia um dicionário com desenho de Oscar Niemayer e texto de João Cabral de Mello Neto. O que indicaria
a Constituição como caminho reto e límpido é a abertura de concurso, com o desígnio do Município sendo
aberto à satisfação dos mais aptos. Pois quando os príncipes Esterhazy exerciam o mecenato subvencio-
nando a obra de Haydn, faziam-no com patrimônio próprio. Exercer o mecenato com fundos públicos exige
cuidados outros, que são os que o art. 37, caput, da Carta de 1988 aponta. O poder, quando público, e
quando democrático, não admite o fulgor de um Vaux le Vicomte, e certamente marca menos a História
com o alcance da visão dos administradores. Tais providências, que tendem a assegurar o princípio radical-
mente democrático de que “todos devem ter acesso às oportunidades conferidas pela Poder Público”, têm
toda a aparência de estulta burocracia. É esta natureza própria da Administração, por mais fúria que cause
aos grandes espíritos.”
290 «Sous quelque titre que ce soit - droit des interprètes comme droit voisin en Europe, droit à l’image
aux Etats-Unis et en Europe aussi -, les traditions juridiques protègent une double réalité : - l’acteur comme
personne physique : James Dean, Alain Delon, Elisabeth Taylor comme individus. - l’acteur dans un rôle :
Humphrey Bogart dans son imperméable du Faucon Maltais, Nicolaï Tcherkassof comme Ivan le Terrible,
Marylin Monroe dans «Some Like It Hot». 9. Cette double réalité n’appelle pas les mêmes mesures de pro-
tection légale. Les considérations relatives au droit de publicité portent sur l’usage de l’image personnelle
de l’acteur dans la commercialisation de produits («merchandising»)». DESSEMONTET, François, Les droits
des acteurs face à la digitalisation, http://www.unil.ch/webdav/site/cedidac/shared/Articles/Dt%20des%20
auteurs%20digitalisation.pdf
147
14. Dos benefícios econômicos do constructo
O principal resultante da notoriedade, ou pelo menos o que seria na-
tural, é o que recai sobre a atuação célebre. O cantor famoso adquire seu pró-
prio fundo de comércio, sua clientela, que lhe vem em retorno pelos ingressos
e discos adquiridos; a socialite obtém acesso a meios e a facilidades que os
obscuros precisam conquistar a grandes ônus291.
Mas o objeto desse estudo é o valor econômico que resulta da trans-
feribilidade da fama, seja pelo endosso de produtos e serviços de terceiros,
seja pelo merchandising de imagens, seja pelas múltiplas oportunidades a que
se referia David Vaver na citação inicial deste trabalho.
Seja como tutela da imagem-atributo no âmbito do direito de perso-
nalidade, seja como elemento integral da exclusiva autoral, reconhece-se ao
titular do direito sobre a persona um poder de negar, daí de autorizar, o uso
comercial do objeto de seu interesse.
Como se expôs, o próprio fundamento do interesse econômico que
se discute, a notoriedade, garante à sociedade um uso público que lhe é veda-
Denis Borges Barbosa

do no caso da pessoa privada292.


Os interesses contrapostos, aqui da sociedade como um todo, preva-
lecem frequentemente quando a personalidade famosa recai sob a atenção
de todos, ou atua num sentido público. A não ser em limites muito estrei-

291 Tal notoriedade não importa só em poder econômico. O mais célebre sociólogo das celebridades, o
ALBERONI, Francesco que escreveu L’élite senza potere, Bompiani, Milano, 1963, recentemente notou: “Ma
a decidere chi arriverà sullo schermo e prenderà la parola è una élite formata dai grandi conduttori, divi,
cineasti, cantanti, giornalisti, comici che si cooptano fra di loro. Essi si presentano come modelli da imitare,
poi giudicano, danno consigli, lanciano slogan, animano e dirigono i dibattiti. Il tutto poi viene ripreso dai
quotidiani, dai settimanali e da internet. Non esistono perciò più una élite del potere ed una élite senza po-
tere, ma due élite del potere: quella politica e quella dello spettacolo. La prima si forma attraverso il dibat-
tito politico e le elezioni, la seconda attraverso la cooptazione e l’audience. Inoltre le due sfere della politica
e dello spettacolo spesso si sovrappongono e, nel campo del costume e dei valori, l’élite dello spettacolo
tende a prevalere su quella politica. L’audience ha più peso del voto.” Lo spettacolo e la politica, sono le élite
del potere, ‘il Corriere della Sera’ del 6 luglio 2009, pag. 1. Reagan, Schwarzenegger e Tiririca se elegem.
292 “Y es que no le falta razón al Juez Cabral Barreto cuando incide en el hecho de que Carolina de
Mónaco ejerce, de hecho, un importante rol en la vida pública europea, que, creo también, justifica so-
bradamente su calificación como personaje público. Es más, a mi juicio, a los efectos que nos ocupan, en
esa categoría estarían integradas incluso las personas que sin profesión conocida, hacen de la exhibición
pública de su vida privada auténtica dedicación profesional, en definitiva, las personas -cada vez más nu-
merosas- que se dedican al ejercicio de una auténtica “profesión”, la de famoso. (...) En esta línea, el propio
TC ha entendido que personaje con notoriedad pública, es además del que “expone al conocimiento de
terceros su actividad profesional”, el que “difunde habitualmente hechos y acontecimientos de su vida
privada”. En ambas hipótesis, se corre el riesgo de que, tanto su actividad profesional, como la información
revelada sobre su vida privada se pueda ver sometida a una mayor difusión de la pretendida por su fuente
o a la opinión, refutación y crítica de terceros. Cfr. STC 134-1999, de 15 de julio (RTC 1999- 134).” PASCUAL
MEDRANO, Amelia, Personajes públicos y derecho a la propia imagen, Puntolex, Santiago,Chile 2009-11-20
14:47:08.352248-03.
148
propriedade intelectual
tos293, a celebridade tem menos poderes sobre si mesma do que a pessoa
comum; ela é pública.
Mas se reconhece a ela certos interesses que toda a pessoa tem294,
mas que são economicamente mais significativos quanto às pessoas famosas.
Essencialmente, se reconhece a elas o poder de não endossar com sua celebri-
dade determinadas atuações de cunho econômico 295. Neste caso, não vigora
a limitação que impede as pessoas famosas de resistir à própria notoriedade
em face do interesse de informação296. Dá-se assim, às celebridades, o poder
293 “Sin duda, la decisión final del magistrado se enrola en la doctrina que entiende que aún siendo muy
elevado el nivel de notoriedad que posea una persona, no implica desconocer que goza de la prerrogati-
va del derecho a la intimidad. Efectivamente, el carácter de celebridad de un determinado individuo, no
autoriza la publicidad indiscriminada, ni suprime la protección de su esfera privada. Máxime cuando las
fotografías difundidas, en modo alguno revistan carácter de interés público. Ciertamente, esta tesis parece
la más adecuada a fin de garantizar una convivencia armónica entre dos derechos fundamentales, que se
encuentran en constante antagonismo.” BASTERRA, Marcela I., El Derecho a la Intimidad como límite a la
Libertad de Información. A propósito del caso “V., J. s/medidas precautorias” Publicado en: DFyP 2011 (oc-
tubre), 243.
294 SANTOS, Roberto Martinho dos, O Direito à Imagem no Direito Desportivo: Suas Virtudes Comerciais
e Publicidade. Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 11 | p. 147 | Jun / 2007 | DTR\2011\2157:
EZABELLA, Felipe Legrazie. O direito desportivo e a imagem do atleta. Monografia (Mestrado) – Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, USP. IOB Thomson, 2006. “O consentimento quanto a utilização
da imagem não se presume unicamente pelo fato da pessoa retratada ser famosa ou atuar no mundo
artístico, ou por não auferir-se vantagem econômica, ou mesmo pela ausência de resistência do retratado
no momento da captação da imagem, devendo-se levar em conta uma conjunção de fatores, tais como a
habitualidade da pessoa consentir na sua retratação, a sua notoriedade, a sua ausência de relação com
a vida privada ou violação à honra, a finalidade de utilização e outros, nem sempre sendo tarefa simples
dirimir-se tal controvérsia havendo arrependimento posterior do retratado. Admitindo-se a possibilidade
de haver consentimento tácito quanto à utilização da imagem, aquele somente se evidenciará pela atitude
de tolerância do retratado, e o ônus da sua demonstração compete àquele que dela se utiliza” ( A pessoa
pública e seu direito de imagem: políticos, artistas, modelos, personagens históricos. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2002. p. 42).
295 A questão do consentimento presume na aceitação do vínculo de algum aspecto da pessoa a um en-
dosso de atuação publicitária. Vide o Código Civil da California, em dispositivo incluído em 1971: CAL. CIV.
CODE § 3344 : California Code- Section 3344- (a)Any person who knowingly uses another’s name, voice, sig-
nature, photograph, or likeness, in any manner, on or in products, merchandise, or goods, or for purposes
of advertising or selling, or soliciting purchases of, products, merchandise, goods or services, without such
person’s prior consent, or, in the case of a minor, the prior consent of his parent or legal guardian, shall be
liable for any damages sustained by the person or persons injured as a result thereof. (...) (d)For purposes
of this section, a use of a name, voice, signature, photograph, or likeness in connection with any news,
public affairs, or sports broadcast or account, or any political campaign, shall not constitute a use for which
consent is required under subdivision (a).(e)The use of a name, voice, signature, photograph, or likeness in
a commercial medium shall not constitute a use for which consent is required under subdivision (a) solely
because the material containing such use is commercially sponsored or contains paid advertising. Rather
it shall be a question of fact whether or not the use of the person’s name, voice, signature, photograph,
or likeness was so directly connected with the commercial sponsorship or with the paid advertising as to
constitute a use for which consent is required under subdivision (a). (...)
296 “Igualmente, para uso de imagem fotográfica de jogadores de futebol ou de artistas em figurinhas
para colocar em álbuns (RJTSSP, 11:71), ante o intuito especulativo, será preciso a autorização dos retrata-
dos, não vingando o argumento de que são personagens da história contemporânea. Tal argumento só seria
admitido em favor de imprensa falada, escrita ou sonora, a título de informação jornalística (RJTJSP, 44:61;
RT, 519:3). Assim, se alguém quiser reproduzir fotografia de um cantor famoso em propaganda de alguma
promoção, desfile, campanha ou produto, deverá pedir sua autorização e remunerá-lo sob pena de ter de
149
de autorizar ou negar esse uso297
Assim, a falta da autorização, ou o excesso em face do uso consentido
importa, no plano do direito de personalidade, ao poder de interditar298, e ao
direito à indenização299.
O extrato jurídico desse poder pode ser encontrado em duplo funda-
mento: tanto no direito de personalidade quanto, o que cobre também uma
pretensão autoral, o simples locupletamento:
“Direito a imagem. Fotografia. Publicidade comercial. Indenização. A
divulgação da imagem de pessoa, sem o seu consentimento, para fins de pu-
blicidade comercial, implica em locupletamento ilícito a custa de outrem, que
impõe a reparação do dano. Recurso extraordinário não conhecido. (...) “Aí é

pagar uma indenização. A divulgação da imagem de uma pessoa, sem o seu consentimento, para fins de
publicidade comercial, implica locupletamento ilícito à custa de outrem, que impõe reparação do dano (RT,
568:215).” DINIZ, Maria Helena. Novo Código Civil Comentado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, p. 89.
297 O que não significa que esse consentimento deva ser formal e explícito: “Todos os famosos que se
hospedam na ilha convivem com ações de marketing de empresas privadas, eis que o projeto “ilha de caras”
somente pode ser viabilizado em razão das empresas que patrocinam os eventos realizados na ilha. Restou
Denis Borges Barbosa

comprovado que, embora não houvesse autorização escrita da parte autora, havia autorização tácita da
mesma, tendo em vista que a apelante, bem como todas as celebridades que se hospedam na ilha de caras
sabem que as fotos tiradas serão publicadas na revista e que as mesmas podem eventualmente contemplar
alguma marca de empresa que patrocina o evento. O artigo 20 do código civil brasileiro e o artigo 79 do
código civil português não exigem que a autorização seja expressa, podendo ser tácita.” TJRJ, AC 0422349-
46.2008.8.19.0001, Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Des. Marco
Aurélio Bezerra de Melo, 09 de fevereiro de 2011.
298 ADLERS, Leandro Bittencourt, O cabimento da tutela inibitória na defesa de direitos fundamentais e
da personalidade violados por excesso na liberdade de expressão e informação, Revista de Direito Privado
| vol. 31 | p. 303 | Jul / 2007 | DTR\2007\446. “A doutrina é uníssona em reconhecer a utilidade da tutela
inibitória em casos de ofensa ao direito à imagem por meios de comunicação, até porque isso está previsto
no art. 12 e 21, do Código Civil, valendo mencionar a obra de EDUARDO TALAMINI, Tutela relativa aos de-
veres de fazer e de não fazer, RT, 2001, p. 440, que sugere aplicação da multa para dissuadir o ofensor. No
campo da informática, destaca-se a doutrina autorizada de DEMÓCRITO RAMOS REINALDO FILHO [Respon-
sabilidade por publicações na Internet, Forense, 2005, p. 149] e RICARDO LUIZ LORENZETTI [Comércio Ele-
trônico, RT, 2004, p. 435]. ELIMAR SZANIAWSKI afirmou [Direitos de personalidade e sua tutela, 2ª edição,
RT, p. 2005]: “A vítima terá por escopo obter, por parte do Judiciário, a cessação da execução da violação. A
interdição da perturbação dar-se-á através de tutela inibitória, que além de fazer cessar o atentado atual e
contínuo, removendo os efeitos danosos que são produzidos e que se protraem no tempo, possui natureza
preventiva contra a possível prática de novos atentados pelo mesmo autor. As ações típicas destinadas para
tutelar preventivamente a vítima de atos atentatórios ao seu direito de personalidade, consiste na ação ini-
bitória antecipada, na ação de preceito cominatório, da tutela antecipada e das medidas cautelares atípicas,
como a busca e apreensão e o seqüestro, e das medidas cautelares atípicas”. TJSP, Ag 472.738-4, 4ª Câmara
Direito Privado, Ênio Zuliani.
299 “São, basicamente, três as formas de violação do direito à imagem: quanto ao consentimento, quanto
ao uso e quanto à ausência de finalidades que justifiquem o uso da imagem sem o consentimento do titular.
O primeiro caso, como nos parece elementar, é quando a imagem de alguém é utilizada sem autorização de
seu titular; o segundo caso é quando, muito embora tenha havido tal consentimento, o uso feito da imagem
extrapola os limites da autorização concedida; e o terceiro caso é quando, embora se trate de imagem de
pessoa célebre, ou fotografia de interesse público, a maneira como a imagem é utilizada não permite que
seja invocada a exceção.” FAVA, Irineu Jorge, O (abuso) do direito à própria imagem na publicidade. Disser-
tação (Mestrado em Direito Civil) – PUC/SP, São Paulo, out. 2004, p. 139.
150
propriedade intelectual
que se surpreendeu a ilicitude e se estabeleceu o fundamento para a repara-
ção. Tirando proveito econômico da utilização da imagem da sambista, sem
o seu consentimento e sem que se lhe retribua por uma apropriação que é
significante economicamente, e portanto, pagável, o Recorrente incorreu em
mácula de locupletamento ilícito à custa de outrem, ou de enriquecimento
injusto, princípios consagrados que impõem a reparação do dano”. STF, RE
95.872.RJ(DJ 1º.10.82), Ministro Rafael Mayer
“o direito à imagem reveste-se de duplo conteúdo: moral, porque direito
de personalidade; patrimonial, porque assentado no princípio segundo o
qual a ninguém é lícito locupletar-se à custa alheia. A utilização da imagem
de cidadão, com fins econômicos, sema sua devida autorização, constitui
locupletamento indevido, ensejando a indenização. O direito à imagem
qualifica-se como direito de personalidade, extrapatrimonial, de caráter
personalíssimo, por proteger o interesse que tem a pessoa de opor-se à
divulgação dessa imagem, em circunstâncias concernentes à sua vida pri-
vada. Em se tratando de direito à imagem, a obrigação da reparação de-
corre do próprio uso indevido do direito personalíssimo, não havendo de
cogitar-se da prova da existência de prejuízo ou dano. O dano é a própria
utilização indevida da imagem, não sendo necessária a demonstração do
prejuízo material ou moral.”
STJ, REsp 267529/RJ, Quarta Turma, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira,
03/10/2000, DJ 18/12/2000 p. 208, JBCC vol. 187 p. 407.
“Na lição de Jacqueline Sarmento Dias, “a falta de consentimento para a
divulgação da imagem, o merchandising sem autorização, o desrespeito
dos limites acordados entre as partes são formas de violação do direito
à imagem. Podemos acrescentar, ainda, o simples fato da usurpação do
poder de exclusividade que cabe à pessoa, com relação à sua imagem,
mesmo diante da não caracterização de conseqüências danosas.” (O Di-
reito à Imagem, Del Rey, p. 143). No presente caso, a violação do direito
à imagem da autora ainda é mais evidente, pois o seu uso não autorizado
teve inequívoco intuito comercial, para fins de publicidade. De nada adian-
ta a apelante insurgir-se contra tal assertiva, pois é óbvio que se valeu
da boa figura da autora para aumentar a venda de roupas e produtos de
beleza e estética. As fotografias dos painéis publicitários que instruem a
inicial constituem provas veementes da utilização ilícita de imagem alheia
para fins comerciais.”
TJSP, AC 469.161.4/0-00, Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, Des. Francisco
Loureiro, 10 de abril de 2.008.

15. A responsabilidade pelo endosso


Parte da doutrina, de outro lado, aponta que o aproveitamento da
notoriedade pelo endosso de produtos e serviços de terceiros, que é um po-
151
der que se reconhece300, importa em responsabilidade. Tal responsabilidade
é distinta do simples ônus de tolerar a perda de privacidade; como a notorie-
dade é utilizada para proveito próprio, e de cunho econômico muitas vezes
diverso da simples prática da atividade célebre, se estabelecem parâmetros e
contenções em favor do público que sofre e frui dos efeitos passivos da fama.
Do ponto de vista do ordenamento privado do mercado publicitário,
o Código de Ética do CONAR (Anexo Q)301 impõe tais obrigações à atividade de
uso do endosso:
Testemunhais, Atestados, Endossos
2. Testemunhal de pessoa famosa: é o prestado por pessoa cuja ima-
gem, voz ou qualquer outra peculiaridade a torne facilmente reconhecida pelo
público. (...)
“(a) o anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais
do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código;
(b) o anúncio apoiado em testemunhal de pessoa famosa não deverá
ser estruturado de forma a inibir o senso crítico do consumidor em relação ao
Denis Borges Barbosa

produto;
(c) não será aceito o anúncio que atribuir o sucesso ou fama da teste-
munha ao uso do produto, a menos que isso seja comprovado e;
(d) o anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa de-
verá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua
responsabilidade para com o público.”
De outro lado, ressalta-se o entendimento de certa doutrina pela
responsabilização da celebridade, ela mesma302. Essa responsabilidade pode
300 O endosso é uma das formas de aproveitamento econômico da persona da celebridade; como repre-
senta uma atuação consensual em face de um produto ou serviço, induz a um empréstimo específico de
notoriedade. Outra forma seria o merchandising de imagem: RUIJSENAARS, Heijo E., The WIPO Report on
Character Merchandising, IIC 1994 Heft 4 532. “Character merchandising is defined by the Report as “the
adaption or secondary exploitation, by the creator of a fictional character or by a real person or by one of
several authorized third parties, of the essential personality features of a character in relation to various
goods and/or services with a view to creating in prospective consumers a desire to acquire those goods
and/or to use those services because of the consumers’ affinity to that character”. The following examples
are given by the Report:- A toy being the three-dimensional reproduction of the fictional character “Mickey
Mouse”; - a T-shirt bearing the name or image of the fictional characters “Ninja Turtles”; - a perfume bottle
labelled with the name “Alain Delon”;- tennis shoes bearing the name “André Agassi”;- an advertising movie
campaign for the drink Coca Cola Light showing the popstar Elton John drinking Coca Cola Light.”
301 Encontrado em http://www.conar.org.br/html/codigos/todos%20os%20capitulos.htm, visitado em
28/11/2011. Para as regras americanas, vide http://www.ftc.gov/os/2009/10/091005revisedendorsement-
guides.pdf, visitado em 30/11/2011.
302 O já citado Guimarães, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das ce-
lebridades que dela participam, ed. RT, v. 16, 2001, p. 155. Mas também ALVAREZ LARRONDO, Federico
M., La responsabilidad de las celebridades por su participación en publicidades, RCyS 2010-II, 44 e, num
152
propriedade intelectual
chegar à esfera penal303.

16. Da construção da persona no campo da propriedade


intelectual
Do que já se citou, parece pelo menos razoável entender que a per-
sona, como constructo, tenha proteção em direito, e em particular, no nosso
direito. Tanto a elaboração no campo do direito de personalidade, quanto, no
caso brasileiro, a relevância da construção específica do direito das celebri-
dades esportivas apontam para um direito absoluto304, ainda que não como
fruto de direitos exclusivos da propriedade intelectual.
sentido diverso, RODRIGUES JUNIOR, Álvaro, A responsabilidade civil dos apresentadores de programas de
rádio e televisão pela publicidade enganosa ou abusiva, Revista de Direito do Consumidor | vol. 46 | p. 305
| Abr / 2003 | DTR\2003\. Este último nota: “Contudo, ao vincularem a sua imagem ao produto, visando
tão-somente ao lucro, sem qualquer preocupação com a qualidade do produto ofertado ao consumidor,
os apresentadores “assumem, diante do consumidor, uma posição de garante”, pois a credibilidade que
as pessoas têm no apresentador é imediatamente transferida para o comercial, acarretando em grande
credibilidade ao produto anunciado. É evidente que nesses casos o apresentador do programa torna-se
parceiro, ou melhor, verdadeiro aliado do fornecedor, pois transforma-se no principal meio de propagação
dos produtos do fornecedor.”
303 O CDC considera crime “fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa” (art.
67). “Ademais, o juízo de enganosidade levará em conta, além das informações falsas propriamente ditas,
outras que sejam ambíguas e até aquelas que, embora sendo literalmente verdadeiras, emanem um enten-
dimento global - a impressão total - capaz de induzir em erro o consumidor.” BENJAMIN, Antonio Hermen de
Vasconcellos e, A repressão penal aos desvios do “marketing”, Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol.
6 | p. 87 | Abr / 1994 | DTR\1994\507. Embora a doutrina não venha citando a celebridade, veja o CDC:
“Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste Código, incide nas penas a
esses cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa
jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou
manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas”.
304 Há uma certa alergia, mas atécnica, em se classificarem certos interesses jurídicos como absolutos.
Em no fazendo, apenas seguimos a mansa acepção de que esses interesses não são relativos. Classificando
esses interesse de que falamos como absolutos: “Converge a doutrina em estabelecer que são os direitos
da personalidade absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, necessá-
rios, inatos, vitalícios, indisponíveis e irrenunciáveis. Diante dessas características e por sua própria natu-
reza podemos dizer que estes são oponíveis erga omnes, implicando em dever de abstenção geral, sendo
imposto à generalidade dos homens e, inclusive, ao Estado. “ MOTA, Mateus Scisinio, Direitos de imagem
e de arena: reposicionando questões controvertidas, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 18 | p.
88 | Jul / 2010 | DTR\2010\957. “Considerando que a imagem constitui um direito de personalidade, inato,
absoluto, extrapatrimonial, imprescritível, impenhorável, vitalício, necessário, oponível erga omnes e de ca-
ráter personalíssimo, protegendo o interesse que tem a pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em
circunstâncias concernentes à sua vida privada, deve-se destacar que a imagem de pessoas notórias, como
a dos atletas, não pode ser utilizada com fins econômicos, sem a devida autorização do titular.” EZABELLA,
Felipe Legrazie, , Direito de Arena, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 3 | p. 84 | Jun / 2003 |
DTR\2011\2028. O mesmo se dirá dos direitos “morais” do campo estritamente autoral: ESPÍRITO SANTO,
Marcelo do, Omissão e inclusão indevida de créditos autorais: aspectos peculiares da autoria e coautoria
das criações intelectuais, Revista de Direito Privado | vol. 32 | p. 201 | Out / 2007 | DTR\2007\626: “Essa
assertiva se fortalece quando se percebe que determinadas características emanam dos direitos morais,
quais sejam: i) é irrenunciável- o autor não pode renunciar, abandonar, desprezar os seus direitos morais; ii)
é imprescritível- não prescreve e pode ser reclamado por via judicial a qualquer tempo; é perpétuo- não se
esvai com o tempo; iii) é inalienável- mesmo na hipótese de cessão ou licença de seus direitos patrimoniais,
os direitos morais se conservam íntegros; é impenhorável- não pode ser alienável; iv) é absoluto- é oponível
contra todos ( erga omnes); v) é extrapatrimonial - não pode ser quantificado em termos pecuniários.”
153
No entanto, cabe-nos apontar para uma faceta específica da prote-
ção da persona das celebridades, que é a sua deliberada construção como
personagem de si mesmas, como um dos heróis de nossa contemporaneida-
de, mas herói ficcional ou pelo menos fabular305.
A par da construção de um direito sui generis das celebridades, tem
sido adiantada a proposta de subsumir tal interesse jurídico tanto ao campo
autoral, quanto ao direito de marcas306. Quanto este último, é de se notar que
já Gama Cerqueira já o consignava307; mas não será objeto de nossas cogita-
ções neste texto308, muito embora ilustrada doutrina milite no sentido de ser
305 Na observação acima, “o herói atual tem sua narrativa “construída” segundo um padrão midiático
para corresponder aos anseios do público.”, Vieira, M., op. Cit.
306 O direito britânico tem sido algo reticente na consagração dos interesses das celebridades. No entan-
to, anteciparam-se a muitos outros regimes no campo da proteção das marcas de pessoas famosas, para as
quais permitem um efeito similar a do art. 125 da lei brasileira, ou seja, proteção em múltiplas atividades.
“The Notice recognises that, in many cases, the famous name attached to any product will indicate to
consumers that the product is “about the person whose name it is rather than as an indication that the
goods/services are supplied by, or under the control of, one undertaking.”25 In this situation, any use of
the celebrity’s name in relation to the product will not be taken as an indication of the origin or quality of
the goods, the purposes usually performed by trade marks, but as descriptive of the subject matter of the
Denis Borges Barbosa

goods. Where the use is purely descriptive it will of course fall within the absolute grounds for refusal set
down in section 3(1)(c) of the Act.” DAVIES, Gillian, Celebrity and Trade Marks: the next installment, Script-
ed, Volume 1, Issue 2, June 2004, DOI: 10.2966/scrip.010204.230
307 É de se notar a curiosa apreensão de Gama Cerqueira, no no. 174 de seu Tratado, ao cuidar do per-
sonagem e da celebridade no tocante às marcas, denotando sempre a autonomia do personagem em face
da simples representação gráfica: “Tratando-se do retrato de pessoas célebres, de personagens históricas,
ou da representação de personagens fictícias, quem primeiro o tiver adotado como marca está no direito
de impedir o uso do retrato da mesma pessoa ou personagem para distinguir artigos similares, ainda que
a pessoa seja representada em atitude diferente ou que o retrato se diferencie por detalhes diversos, pois,
nesses casos, o que constitui ou caracteriza a marca é mais a personalidade representada do que o próprio
retrato.” Note-se que tal consideração é ainda mais pertinente a luz da atual lei, a respeito da qual disse-
mos: “8.1.7.1. Conciliação com outros tipos de proteção: direito autoral. Como vimos, não podem incorpo-
rar-se à marca registrada obra literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos
pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do
autor ou outro titular. Assim, protege-se, no caso, direito exclusivo alheio. Superaram-se no texto vigentes
algumas notáveis omissões do dispositivo anterior. Com efeito, somente era irregistrável o nome da obra;
não havia referência, por exemplo, a seus personagens característicos, ou (o que é especialmente relevante
no caso de marca) ao seu próprio texto. (...) Não pode integrar marca um desenho artístico, um nome,
personagem ou texto de terceiros, salvo autorização, desde que haja possibilidade de proteção por direito
autoral.”. Proteção da Marcas, Lumen Juris, 2008.
308 Nota-se também a hipótese de proteção da persona pela concorrência desleal, desde que haja con-
corrência. Como se lê em outro trecho deste estudo, Hermano Duval menciona mesmo a hipótese de uma
proteção extra-concorrencial das personas através da chamada concorrência parasitária. Este parecerista
não subscreve essa hipótese. Como notou sobre nossa posição um aresto paulista: “Discorrendo acerca
do parasitismo, Wilson Pinheiro Jabur, citando o Professor Denis Barbosa, leciona que “...apenas no caso
de que se possa induzir confusão entre o público quanto à origem dos produtos ou serviços, ou quando
possa ocorrer o denigramento do titular original, ou ainda diluição de sua marca no mercado, se teria algo
contra o que se poderia argüir, no caso, alguma iniqüidade da regra da livre concorrência. Ou seja, não é
o parasitismo, mas a lesão sobre o parasitado que se visaria prevenir e compor” (BARBOSA, 2003, p.321)
(Criações Industriais, Segredos de Negócio e Concorrência Desleal, Ed.Saraiva, série GVlaw). “Frise-se que
a cópia servil ou o aproveitamento parasitário, ou seja, a imitação dos elementos característicos de um
produto ou serviço ou estabelecimento, do aviamento de uma empresa, quando feito em seus aspectos
154
propriedade intelectual
sua topologia mais adequada309.
Nossa tarefa é sugerir a construção desse interesse no campo autoral.
Por que fazê-lo? Dir-se-ia que a simples proteção da imagem-atributo
no campo do direito da personalidade o bastaria. Mas não é fato. Na verdade,
como se viu, a casuística distingue a proteção da pessoa da celebridade e o
interesse relativo à persona como constructo. Esse constructo não necessa-
riamente terá o abrigo dos direitos de personalidade.
De outro lado, o constructo da persona tem características de criação
intelectual, minuciosamente análogos a de uma personagem. Há índices, que
este parecerista sente como relevantes, que fazem da persona uma obra de
fabulação310, se não de ficção.
Muitas razões há para prevenir a extensão de novos objetos de di-
reito autoral; mas tais razões são essencialmente ligadas à expansão das ex-
clusivas, sem consentânea contrapartida dos direitos de acesso do público às
obras protegidas. Quando se postula o reconhecimento de novos objetos, no

funcionais, necessários para o funcionamento de um negócio semelhante, ou para a elaboração de um


produto, ou prestação de um serviço, até pratica um ato de concorrência parasitária, mas este ato não é
per si um ato ilícito nem de concorrência desleal.” “A concorrência parasitária será a concorrência desleal,
quando constatada neste ato a possibilidade de confusão entre produtos, serviços e estabelecimentos de
origens distintas.” TJSP, APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 648.585-4/9-00, Sexta Câmara de Direito Privado
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Des. Reis Kuntz, 06 de agosto de 2009.
309 “Yet a review of the cases and literature reveals that no one seems to be able to explain exactly
why individuals should have this right. A right of privacy can’t justify it, for the right of publicity has been
applied in a wide range of situations that don’t implicate privacy at all. Some commentators have proposed
a natural or moral right of control over one’s name or likeness, but there seems no policy justification for
giving such control, and the absence of such a right in most of the world and indeed throughout most of
U.S. history should make us skeptical of claims based on some consensus moral belief. The moral claim to
own uses of one’s name also seems inconsistent with the absence of natural or moral rights justifications for
other forms of intellectual property. Of late, and particularly in the merchandising and dilution-like cases,
courts and commentators have turned to the incentive-based rationale underlying copyright law in search
of both a justification for and limitations on the right of publicity. Reasoning that the right of publicity gives
individuals the incentive to develop valuable personas, courts reason that depriving them of the fruits of
their labors will interfere with those economic incentives. Some courts have even gone so far as to create a
fair use doctrine, importing from copyright law judicially created limits on the enforcement of the right. This
approach turns the right of publicity into a new form of intellectual property, one based explicitly on ana-
logies to and justifications for real property. (…)A proper understanding of the right of publicity would draw
more completely on trademark principles, limiting the right to circumstances in which the use of an indivi-
dual’s name or likeness is either likely to confuse consumers or is likely to dilute the significance of a famous
name.” DOGAN, Stacey L. and LEMLEY, Mark A., What the Right of Publicity Can Learn from Trademark Law.
Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=862965. Note-se,
porém, que na análise de Posner, essa perspectiva apenas atenderia a um dos interesses econômicos das
celebridades, e não a ambos.
310 .Quint. 2, 4, 2 : haec res agetur nobis, vobis fabula, Plaut. Capt. prol. 52 : peregrino narrare fabulas,
id. Men. 5, 1, 24 : num igitur me cogis etiam fabulis credere? quae delectationis habeant quantum voles ...
auctoritatem quidem nullam debemus nec fidem commenticiis rebus adjungere, etc., Cic. Div. 2, 55, 113 ;
cf.:fictis fabulis, id. Mil. 3, 8 : antiquitas recepit fabulas, fictas etiam nonnumquam incondite, id. Rep. 2, 10;
cf.: a fabulis ad facta venire, id. ib. 2. LEWIS, SHORT, Ed. A Latin Dictionary, Claredon Press, 1879.
155
entanto, com aplicação dos limites e condicionantes do exercício, que garan-
tem a legitimidade desse exercício, no entanto, não há que se ver lesão, mas
enriquecimento dos interesses somados, públicos e privados, que incidem so-
bre o objeto em questão.
Assim é que, após propugnar pela hipótese do direito autoral da fabu-
lação das celebridades, nos demoraremos nos condicionantes de seu exercí-
cio, em minucioso cuidado por seus limites e sua função social.

17. Do constructo como criação intelectual


 a) O que é criação intelectual
Como já mencionado acima, definimos “criação intelectual” da se-
guinte forma:
Para os fins de nosso estudo, é a “criação intelectual”. Um corpo de
conhecimentos tecnológicos, ou texto literário, musical ou científico, ou um
desempenho de intérprete suscetível de fixação, ou um artefato (escultura,
quadro...). Algo que, sempre intelectual (pois distinto de qualquer materiali-
Denis Borges Barbosa

zação), seja:
 b) destacado do seu originador, por ser objetivo, e não exclusivamen-
te contido em sua subjetividade;
 c) tendo uma existência em si, reconhecível em face do universo cir-
cundante.
Assim, o atributo capital da criação intelectual é sua objetividade311.
Criações intelectuais existem em muitos campos, inclusive no campo da pro-
priedade intelectual:
311 “Já Tulio Ascarelli, em sua Teoria de la Concurrencia y de los Bienes Inmateriales (ed. espanhola de
1970), estabelece a diferenciação entre o ato de criação e a criação intelectual objetivamente identificável
(pp. 264 e ss.), a qual, por sua vez, se contrapõe às coisas nas quais se exterioriza. (...) Ascarelli emprega a
expressão bem imaterial para indicar a criação intelectual individualizada e tutelada, objeto de um direito
absoluto, e não em contraposição às coisas corpóreas (p. 286).” SILVEIRA, Newton, Propriedade imaterial
e concorrência, Revista dos Tribunais | vol. 604 | p. 264 | Fev / 1986 | DTR\1986\66. De outro lado, pode
argumentar-se que a ato intelectual não seja pressuposto de proteção pela propriedade intelectual: “(...)
em relação às marcas e outros sinais distintivos, que não podem ser considerados como concepções ou
criações intelectuais. (...) tratando-se de marcas que se distingam pelo seu cunho artístico, como verdadeira
criação ou concepção intelectual, o direito resultante dessa criação constituiria propriedade artística de seu
autor e, como tal, deveria colocar-se na primeira categoria das produções intelectuais.” GAMA CERQUEIRA,
João da, Tratado, no. 127. Por isso distinguimos como elemento inaugural do direito sobre a marca a criação
como marca. Como noto em nosso Proteção (2007): “Neste sentido, a criação não se identifica com a cria-
ção no conceito do direito autoral, por exemplo, do elemento figurativo (inventio). Essa “criação” de que se
fala aqui é a concepção de que um signo, nominativo ou figurativo, seja empregado para os fins de distinção
de um produto ou serviço no mercado. Ou seja, não é da criação abstrata, mas da afetação do elemento no-
minativo ou figurativo a um fim determinado - é a criação como marca. Assim, pode-se simplesmente - por
exemplo - tomar um elemento qualquer de domínio público e dedicá-lo ao fim determinado, ou obter em
cessão um elemento figurativo cujo direito autoral seja de terceiros, e igualmente afetá-lo ao fim marcário,
em uso real e prático.
156
propriedade intelectual
“Abrange, portanto, os direitos autorais e os direitos de propriedade
industrial, num reconhecimento à interrelação entre as todas as formas de
criação intelectual. Cada uma destas espécies, porém, cuida de proteger tais
criações de modo diverso, respeitando a singularidade de seus formatos e
aplicações. Assim é que, no Brasil, possuem seus próprios princípios e discipli-
nas - regendo-se os direitos de propriedade industrial pela Lei nº 9.279/96 e os
direitos autorais pela Lei nº 9.610/98, seguindo, aliás, orientação internacional
firmada pelas Convenções de Paris e de Berna, respectivamente. Vale trans-
crever pequenos trechos de especialistas destes dois ramos do direito: Denis
Borges Barbosa, já citado, e José Carlos Costa Netto. (...)
E o segundo oportunamente enfatiza, em sua obra “Direito Autoral
no Brasil” (2ª ed. - FTD - 2008 - pp.29/30): “Não há como contestar que a
criação intelectual é a peça fundamental na descoberta de uma invenção, de
um determinado modelo industrial original, ou de um desenho - ou arte grá-
fica - de uma ‘marca’ para identificar um produto, uma empresa industrial
ou comercial..” TJSP, AC 0021455-57.2010.8.26.0006, Câmara Reservada de
Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. José Reynaldo, 16
de agosto de 2011.
E há criação intelectual, sensível ao direito, fora do campo da proprie-
dade intelectual312.
Quem cria, em qualquer campo ou forma, deve ter sua intervenção
reconhecida pela imputação necessária do ato inaugural a um originador. Sin-
gular ou coletiva, autor de obra certa ou comunidade a quem se deve a cons-
trução imemorial, a ação humana é vinculada à coisa criada.
Assim é que em nada lesa o direito, e em tudo o prestigia, quem
aponta de uma descoberta quem a fez; quem honra o cirurgião, que precisou
um novo método de curar, designando-o com seu nome; quem aponta de
uma receita gastronômica o seu inventor. Fora de qualquer exclusiva, o Tra-
tado de Genebra de Registro de Descobertas Científicas cuida apenas dessa
imputação313.
312 BARBOSA, Denis Borges, O que o direito tem a ver com a criação, in In: Marcos Wachowicz. (Org.).
Propriedade Intelectual e internet. 1ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2011.
313 [Nota do original] “Scientific discoveries, the remaining area mentioned in the WIPO Convention, are
not the same as inventions. The Geneva Treaty on the International Recording of Scientific Discoveries
(1978) defines a scientific discovery as “the recognition of phenomena, properties or laws of the material
universe not hitherto recognized and capable of verification” (Article 1(1)(i)). Inventions are new solutions
to specific technical problems. Such solutions must, naturally, rely on the properties or laws of the material
universe (otherwise they could not be materially or “technically” applied), but those properties or laws
need not be properties or laws “not hitherto recognized.” An invention puts to new use, to new techni-
cal use, the said properties or laws, whether they are recognized (“discovered”) simultaneously with the
making of the invention or whether they were already recognized (“discovered”) before, and indepen-
157
Assim, a criação em geral – e no criar se presume aqui um quid novum
que será abaixo discutido – deflagra-se automaticamente uma pretensão: a de
que se impute ao criador a coisa criada.
 b) Mas nem toda criação intelectual cabe no campo autoral
Mas, no texto mais recente citado, tivemos de precisar que nem toda
criação intelectual se aduna no campo autoral:
Como regra, a simples criação, desde que expressa ou fixada (ou seja,
objetivada), pode deflagrar um conjunto de consequências jurídicas. Entre tais
consequências pode acontecer - como ocorre no direito autoral brasileiro vi-
gente - a constituição de um direito de exclusiva, se este direito específico
não for denegado pela lei para o tipo específico de criação. Em outros casos, a
criação apenas deflagra uma faculdade de obter posteriormente o direito de
exclusiva, sem a automaticidade do direito autoral (como no caso de cultiva-
res, topografias de semicondutores, patentes, etc.)
Essa criação objetiva e autônoma, assim, capaz de deflagrar seja um
direito de exclusiva, sejam outras consequências jurídicas diferentes de um
Denis Borges Barbosa

direito de exclusiva, constitui uma criação intelectual.


Além do filtro de entrada, todos os sistemas vigentes de propriedade
intelectual ainda tem pelo menos dois requisitos complementares (e alguns
mais outros): que a criação intelectual não seja copiada; e de que haja um
mínimo de contribuição diferencial à sociedade que justifique uma exclusiva.
Como suscitado pela Suprema Corte americana no caso Feist314, não é o sim-
ples trabalho que merece exclusiva, é preciso (pelo menos para se ter uma
exclusiva, que não se identifica obviamente com o retorno material) que a
criação intelectual represente uma contribuição à sociedade.
Em primeiro lugar, é necessário que a criação intelectual passe em
um filtro positivo, qual seja ela, que ela seja resultante de um ato humano es-
pecífico de instauração de uma nova ordem simbólica: a originação, metafo-
ricamente assimilada à geração de um novo ser315. Esse elemento não é típico
dently of, the invention”. Encontrado em http://www.wipo.int/about-ip/en/iprm/pdf/ch1.pdf, visitado em
15/3/2011. Vide Friedrich-Karl Beier & Joseph Straus, Der Schutz Wissenschaftlicher Forschungsergebnisse:
Wugleich eine Würdigung des Genfer Vertrages über die Internationale Eintragung Wissenschaftlicher Ent-
deckungen (1982) (F.R.G).
314 [Nota do original] Feist Publications, Inc., v. Rural Telephone Service Co., 499 U.S. 340 (1991)
315 “Portanto, diversamente da tutela constitucional e da civil, a tutela autoral tem como finalidade a
proteção não da imagem em si mesmo considerada, mas sim da obra resultante do uso da imagem por
meio de processo de criação intelectual.” RODRIGUES, Cláudia, op. cit. “Portanto, para o Direito de Autor a
noção de obra sempre pressupõe um processo de criação, considerado tanto no seu aspecto dinâmico (ato
criativo) quanto no aspecto do resultado do esforço intelectual. Pierre-Yves Gautier compara-o à geração
humana:“En suite, le processus de création artistique ne serait autre qu’un enfantement, analogue à celui
158
propriedade intelectual
da criação autoral, mas preside a todo ato de originação316.
Assim, ela deve ser ... uma criação... do espírito. Sobre isso, notamos317:
3. O que a lei diz ser protegido
A construção legal é particularmente defectiva:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, ex-
pressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intan-
gível, conhecido ou que se invente no futuro (...)
Ora, obras intelectuais – pelo menos em tese - são todos os objetos
da Propriedade Intelectual. Com efeito, este ramo do Direito somente protege
criações intelectuais e não elementos naturais, ou seja, o que existe na natu-
reza sem ter sofrido a intervenção humana. Igualmente, “criações do espírito”
são marcas, patentes, enfim, tudo aquilo que resulta da operação intelectual
criativa. Assim o diz texto oficial da OMPI:
Le terme “propriété intellectuelle” désigne les créations de l’esprit, à
savoir les inventions, les œuvres littéraires et artistiques et les symboles, noms,
images et dessins et modèles utilisés dans le commerce318.

de l’être humain: l’oeuvre est conçue – c’est l’ <idée>; puis intervient la gestation: préparation, assem-
blement, coordination (plan) croissance – c’est la<composition>; enfin, l’oeuvre vient au monde: écriture
du roman, de lapièce, du scénario – c’est l’<expression>; l’ art. L. 112-1 C. prop. Int., employant les mots
<forme d’expression>irait en ce sens”. No entanto, como muito bem observa Zara Algardi, o momento da
existência da obra intelectual é juridicamente distinto do processo da criação intelectual na medida em que
este somente produz efeito jurídico para o Direito de Autor no momento em que a obra é concretizada.
Isto porque nem “todo trabalho conclui-se como obra”. Dessa noção decorre a preceito de que objeto da
tutela legal é a obra intelectual enquanto realidade objetiva, embora imaterial, e não o processo de criação
intelectual em si, seja como uma abstração, seja como projeto.” SANTOS, Manoel J. Pereira dos, BARBOSA,
Denis Borges, A questão da autoria e da originalidade em direito de autor, in SANTOS, JABUR e BARBOSA,
Org., Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012
316 E certamente distingue o campo do direito de personalidade em face do direito de autor: “Pretender
classificar o direito à imagem dentre os direitos do autor é ignorar o traço essencial que um invento deve ter
para ser considerado obra intelectual, qual seja, a criatividade. Somente as obras intelectuais são passíveis
de proteção pelo direito autoral. Todavia, a imagem humana carece de qualquer ato de criação por parte de
seu titular. Sendo assim, não há como sustentar a teoria de que o direito à imagem seja espécie de direito
autoral. [...] Não tem mérito e nem participação na produção de sua imagem, mas apenas a recebeu como
dádiva divina.” FACHIN, Zulmar Antonio. A proteção jurídica da imagem. São Paulo: Celso Bastos, 1999,
p.61 Ainda: “A imagem não pode ser protegida pelo direito autoral, porque este se ocupa em proteger as
criações intelectuais, enquanto aquela é uma expressão da personalidade humana, sem ser criação intelec-
tual”. op. cit., p.62).
317 BARBOSA, Denis Borges e SANTOS, Manoel J. P. dos, Os requisitos da forma livre e da originalidade na
proteção de textos técnicos e científicos, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org., , Direitos Autorais, Publica-
ções GVLaw, Saraiva, 2012.
318 [Nota do original] http://www.wipo.int/about-ip/fr/, visitado em 28/7/2010. O texto correspondente
em outros idiomas é: “Intellectual property (IP) refers to creations of the mind: inventions, literary and ar-
tistic works, and symbols, names, images, and designsused in commerce”; “ La propiedad intelectual (P.I.)
tiene que ver con las creaciones de la mente: las invenciones, las obras literarias y artísticas, los símbolos,
los nombres, las imágenes y los dibujos y modelos utilizados en el comercio”.
159
Escrevendo no sec. XIX, Eugène Pouillet descrevia o campo de paten-
tes da seguinte forma: “a lei não protege as descobertas, as criações intelec-
tuais científicas e artísticas, senão, exclusivamente, as criações do espírito que
se operam no domínio das indústrias...”319.
A fórmula legal, assim, é particularmente infeliz320. Na verdade, a Con-
venção de Berna, ao definir seu campo próprio, usa o mesmo procedimento
que a lei brasileira: renunciando a definir positivamente seu objeto, o texto
internacional cita uma multiplicidade de criações que lhe fariam objeto. Tal
procedimento terá a virtude, se virtude o é, de relacionar uma soma de ob-
jetos que historicamente se reconhece como o campo próprio da proteção
autoral. É uma taxonomia que renuncia a um conceito de obra autoral, mas
resolve problemas práticos, e permite distinções entre obras que têm prazos
de proteção ou requisitos diversos321.
Para entrar no campo autoral, além disso, é preciso passar num filtro
negativo específico322:
Ao contrário das nossas leis anteriores, a norma de 1998 explicita
Denis Borges Barbosa

quais são os objetos excluídos da proteção autoral:


Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que
trata esta Lei:
I - as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos
ou conceitos matemáticos como tais;
II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou
negócios;
III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer
tipo de informação, científica ou não, e suas instruções323;

319 [Nota do original] Traité Théorique Et Pratique Des Brevets D’invention 1899, n. 15
320 [Nota do original] A lei anterior dispunha de forma similar: “ Art. 6º. São obras intelectuais as criações
do espírito, de qualquer modo exteriorizadas...”
321 [Nota do original] PILA, Justine, Copyright and Its Categories of Original Works, Oxford J Legal Studies,
2010, 30 (2), p. 229, demonstra que até agora os sistemas jurídicos não conseguem superar a essa constru-
ção pragmática.
322 BARBOSA, Denis Borges e SANTOS, Manoel J. Pereira, Os requisitos da forma livre e da originalidade
na proteção de textos técnicos e científicos, op. Cit. .
323 [Nota do original] Embora se pudesse argumentar que a proibição de proteger tais formulários ma-
nifestasse mais uma instância de falta de originalidade, na verdade entendo ter-se aqui uma restrição de
política pública. Pode haver originalidade em formulários, como nota CHISUM, Donald S. & JACOBS, Micha-
el. Understanding Intellectual Property Law . United States of America. Ed. Matthew Bender & Company
Incorporated, 1995, p. 26-31: In Harcourt; Brace & World, [Harcourt, Brace & World Inc. v. Graphic Controls
Corp., 329 F. Supp. 517, 171 U.S.P.Q. 219 (S.O. N.Y. 1971)] 73 the district court upheld the copyrightability of
printed answer sheets for standardized tests designed to be corrected by optical scanning machines. The an-
160
propriedade intelectual
IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamen-
tos, decisões judiciais e demais atos oficiais;
V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas,
cadastros ou legendas;
VI - os nomes e títulos isolados;
VII - o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas
obras.
A listagem, também aqui, tem uma irrazoabilidade digna de Borges:
as coisas mais disparatadas são postas num só lugar. As leis de patentes de
1945 a 1971 incorriam igualmente em recitais parecidos, que juntavam ele-
mentos de definição de que sistema aplicar (a noção de “invenção”), noções
gerais de contributo mínimo e proibições diretas por razão de política pública.
A lista, além de desconexa, é também incompleta: mesmo sem constar da
relação, seriam denegados direitos autorais para um novo satélite de Saturno,
um padrão monetário, ou um golpe de estado.
Mas a listagem aponta para exemplos de hipóteses que manifestam
princípios de não-proteção subjacentes. A soma das “idéias, procedimentos
normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais;
esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; o
aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras” aponta
para uma regra geral segundo a qual não se protegem idéias, mesmo se su-
jeitas a uma formalização que fosse classificada entre os tipos consagrados.
Na intuição de Camões, Mas esta linda e pura semidéia (...) Está no
pensamento como idéia/ O vivo e puro amor de que sou feito/ Como a ma-
téria simples busca a forma. É certamente um princípio básico de direito de
autor324:

swer sheets embodied original expression: “(T) he area for originality of design is limited by the requirements
of the optical scanning machine used .... However, within these confines the designer may structure the
division of response positions across the page, may ask what information (name, age, date, etc.) the student
should record on the face of the answer sheet, may devise the symbolic code indicating what question is
being asked and what possible alternative answer slots may be selected, may insert any instruction explain-
ing how to use the answer sheet in conjunction with an examination, may set forth examples illustrating
such use, etc. . . . The creation of an answer sheet requires the skill, expertise and expertise and experience
together with the personal judgment and analysis of the designer or author.”
324 [Nota do original] Claude Colombet, Grands Principes du Droit d’Auteur et des Droits Voisins dans le
Monde, 2a. Ed. LITEC/UNESCO, 1992, p. 10 « En effect, le droit d’auter créant un monopole au profit du crea-
teur, droit qui est vigorseumente sanctioné, il serait paralysant de tolerer cette mise sous tutelle des idées;
les créations seraient entravées par la necessité de réquérir l’autorisation des penseurs: on imagine, par
example, que dans le domaine scientifique, toute narration des progrès serait difficile puisqu’elle imposerait
l’accord des savants, dont les idées auraient été à la base de decouvertes (…) Aussi cette exclusion des idées
du domaine d’application du droit d’auteur este-elle une constante universelle ».
161
Com efeito, criando o Direito de Autor um monopólio em proveito do
criador, direito este que é sancionado com vigor, tornar-se-ía paralisante tole-
rar que esta tutela recaísse sobre as idéias; as criações seriam entravadas pela
necessidade de requerer a autorização dos pensadores: pode-se imaginar, por
exemplo, que, no domínio científico, toda narração dos progressos seria difícil
por que elas imporiam a concordância dos pensadores, dos quais as idéias
seriam a base das descobertas. Também esta exclusão das idéias do domínio
do direito do autor é uma constante universal.
Tais exemplos também apontam para outro princípio de não-prote-
ção: qualquer instância não expressiva está fora do alcance da proteção au-
toral: realizar atos mentais, jogos ou negócios; o aproveitamento industrial
ou comercial. Não temos aqui uma recusa quanto à destinação da obra: será
igualmente um princípio geral do direito de autor que não se denega prote-
ção, por exemplo, ao texto de propaganda política ou comercial ou às instru-
ções de como empinar uma pipa325, desde que dotadas dos requisitos gerais
de arbitrariedade e contributo mínimo. O exemplo sempre lembrado do Rela-
tório Municipal de Graciliano Ramos vem à memória:
Denis Borges Barbosa

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em


pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos
vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável.
Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.
A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contra-
to para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade,
julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua
nos dá. (...)326
O que se recusa a falar das realizações e aproveitamentos são as ins-
tâncias pragmáticas de aplicações de idéias, em tudo que ultrapasse a con-
formação expressiva. Na vedação de dar exclusivas às informações de uso
comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas e aos nomes e
títulos isolados se têm exemplos da exigência geral de contributo mínimo. No
direito comparado tais hipóteses são excluídas seja sob a regra de minimis non
curat praetor, seja diretamente pela aplicação do “nível mínimo de criativida-
de”, originalidade, etc., sobre o que discorreremos logo adiante. Aqui também
a regra de não-proteção não é literal, mas manifestação de um requisito de
proteção.
325 [Nota do original] Colombet, op. cit., p. 16.
326 [Nota do original] Encontrado em http://novoirisalagoense.blogspot.com/2006/03/primeiro-relatrio-
graciliano-ramos.html, visitado em 29/7/2010. Desses relatórios nasceu o convite de Augusto Frederico
Schmidt, que levou Gracialiano a escrever e publicar Caetés (1933).
162
propriedade intelectual
Ao dizer que não incide direito autoral nos textos de tratados ou con-
venções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais
mais uma vez se aponta para uma regra geral, pelo menos do direito brasilei-
ro: os textos originados do Estado, com caráter oficial, não podem ser dene-
gados à comunicação ao público com base em exclusiva autoral.
Note-se que nenhuma dessas hipóteses é de exceção ou limitação
dos direitos autorais. O princípio de proteção da expressão - não das idéias - é
uma norma positiva de incidência. O sistema autoral não incide no âmbito das
idéias; não se excepciona ou limita o que nem sequer se inclui. Não se excep-
cionam ou limitam a ações pragmáticas ou aproveitamentos não expressivos:
apenas eles não se inserem no campo de incidência do sistema autoral, seja
para entrar em outro sistema, seja para permanecerem de livre utilização.
A regra do contributo mínimo igualmente não é exceção ou limitação:
os objetos que não alcançam o nível mínimo de proteção destarte não inci-
dem no campo de proteção.
Assim, não cabe aplicar interpretação restritiva às enunciações do
art. 8º. da lei autoral, para reduzir sua aplicação às hipóteses nominais lista-
das; trata-se aqui de um estilo normativo pars pro toto, em que se usam exem-
plos como manifestação de hipóteses de não incidência do sistema autoral, ou
de um requisito de limiar mínimo de acesso.
As regras de interpretação restritiva da lei autoral de alcance são uni-
laterais, eis que se se dirigem ao autor (que se presume hipossuficiente327); e
são regras relativas aos negócios jurídicos e não à aplicação do texto norma-
tivo. O próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu que mesmo o capítulo
das exceções ou limitações permite interpretação não restritiva328.
E ilustramos a eficácia desse filtro de entrada em julgado do STJ:
327 Art. 4º Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais. Art. 49. Os
direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucesso-
res, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais,
por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as
seguintes limitações: (...)VI- não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será
interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao
cumprimento da finalidade do contrato.
328 Tendo em vista a natureza do direito de autor, a interpretação extensiva da exceção em que se traduz
o direito de citação é admitida pela doutrina. Essa admissão tanto mais se justifica quanto é certo que o
inciso III do artigo 49 da Lei 5988/73 é reprodução quase literal do artigo 666 do Código Civil, redigido este
numa época em que não havia organismo de radiodifusão, e que, na atualidade, não tem sentido que o que
é lícito, em matéria de citação para a imprensa escrita, não o seja para a falada ou televisionada. A mesma
justificativa que existe para o direito de citação na obra (informativa ou crítica) publicada em jornais ou
revistas de feição gráfica se aplica, evidentemente, aos programas informativos, ilustrativos ou críticos do
rádio e da televisão. Recurso extraordinário não conhecido”. Recurso Extraordinário N° 113.505-1 – Rio de
Janeiro – 1° Turma – S.T.F. – 28.2.1989 – Ministro Moreira Alves.
163
O acórdão embargado não negou que a autora, ora embargante, te-
nha sido a criadora do estilo denominado “fragmentismo”. Nem poderia fazê-
-lo, porque tal fato foi estabelecido no acórdão recorrido.
Ocorre que, mesmo tendo a autora criado o “fragmentismo”, tal téc-
nica é “apenas um meio, um procedimento, para a formação de obras artísti-
cas”. É “maneira de fazer arte”, como está na inicial (fl. 8).
Exatamente por isso não está albergado pela Lei dos Direitos Autorais.
Como constou do acórdão embargado:
“O resultado da utilização da técnica é que tem guarida legal: somen-
te se sujeita à proteção intelectual a obra formada pela utilização do estilo
(v.g., quadros, telas, fotos, filmes etc.), individualmente considerada.”
Em palavras diretas: fragmentismo não é obra (não no sentido jurídico
do termo, que não se confunde com outras acepções admitidas e conhecidas).
Trata-se de método, técnica, procedimento para a criação de obras,
estas sim cobertas pelo direito previsto no Art. 5º, XXVII, da Constituição Fe-
Denis Borges Barbosa

deral.
Pelas carregadas palavras da embargante, fica claro que ela gostaria
que a Lei protegesse, também, os criadores de estilos, de técnicas.
É uma posição defensável, bastante razoável. Mas não é a opção da
Lei, à qual devo obediência.” EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 906.269 - BA
(2006/0248923-0)
A questão chave de nossa tarefa é assim demonstrar o porquê a cria-
ção de uma persona por uma celebridade caberia no campo autoral. Para isso
é preciso demonstrar que há originação e que não se exclui a criação do cam-
po autoral.

18. A construção doutrinária da persona no direito autoral


pátrio
Não parece haver qualquer discussão de que as criações de imagem –
aqui no sentido de “retrato”, como distingue a doutrina dos direitos de persona-
lidade – se acha no âmbito autoral. No entanto, para postular que a construção
de uma persona, que em muito excede as lindes do simples retrato, também
possa ter uma tessitura no mesmo direito, é preciso alguma demonstração329.
329 Pelo contrário, autores há que expelem categoricamente a imagem-atributo do campo autoral. “Na
lei civil a proteção à imagem é feita por meio de limitações impostas ao seu uso. Já na lei autoral o que se
protege não é a imagem em si mesmo considerada, mas sim qualquer forma de reprodução da imagem
164
propriedade intelectual
18.1. A questão da proteção autoral dos personagens
Parte respeitável da doutrina autoral brasileira se inclina pela prote-
ção aos personagens como elemento pertinente ao campo autoral330.
Há que distinguir-se aqui, no entanto, o personagem como imagem-
-retrato, como o define a doutrina dos direitos de personalidade; o persona-
gem como objeto de uma encenação, ou seja, como construção imanente aos
direitos conexos; e a personagem como persona, ou elemento autoral e não
de direitos conexos.

18.2. Da personagem-retrato
A discussão judicial relativa aos personagens-retrato é vasta, e muito
condicionada à questão do merchandising de elementos de ficção, como as
figuras de quadrinhos ou de desenho animado331.
que se assente em ato criador. O traço distintivo entre a imagem enquanto direito da personalidade e como
direito de autor assenta-se no ato criador, bastando que falte o elemento da criação intelectual para que o
direito à imagem não pertença a este. Ao direito autoral interessa apenas a imagem-retrato, isto é, a ima-
gem enquanto representação gráfica da figura humana mediante um procedimento técnico ou mecânico
de reprodução.” RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais | vol. 827 |
p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563. D’ Elboux, Sonia Maria, A liberdade de imprensa e os direitos da perso-
nalidade: tensões e limites, Tese de Doutorado, FDUSP, 2005 também manifesta crítica quanto à noção de
imagem-atributo como objeto singular de direitos.
330 Sobre a questão, disse Bittar: “26. Acentue-se, de outro lado, que recebem proteção tanto as obras
em si como os títulos, os personagens, os nomes, as expressões e elementos outros que as integram, pois o
Direito de Autor protege a forma externa e a interna da criação (V. na doutrina, dentre outros tantos auto-
res: Mário ARE. “L’oggetto del Diritto di autore”. Milano: Giuffrè, 1963, p. 130 e s.; Tullio ASCARELLI, “Teoría
de la concurrencia y de los bienes inmateriales”. trad., Barcelona: Bosch, 1970, p. 34 e s. e 163 e s.; Roben
PLAISANT. «Le droit des auteurs et des artistes exécutants». Paris: Delmas, 1970, p. 15 e s.; LE TARNEC. op.
cit., p. 193 e s.; François VALANCOGNE. «Le titre de roman, de journal, de film, sa protection». Paris: Sirey,
1963, p. 59 e s. e 305 e s. 27. Ficam, então, proibidos quaisquer usos que não provenham de autorização e
que importem, de outra pane, em modificação ou alteração unilateral da expressão da obra, ou de seus per-
sonagens, ou de seu título, ou, enfim, de qualquer componente ou pane criativa de seu contexto.” (BITTAR,
Carlos Alberto, Direitos Autorais Sobre Personagens de Desenho Animado). O Autor aponta - como apoian-
do a proteção de personagens - Henri JESSEN. “Derechos intelectuales”. Santiago: Tipografia Stanley, 1970,
p. 39 e s.; em seus próprios livros, “Direito de Autor”. Rio: Forense Universitária, 1992, p. 14 e s.; “Contornos
atuais do Direito de Autor”. SP: RT, 1992, p. 13 e s.; e “A Lei de Direitos Autorais na jurisprudência”. SP: RT,
1989, p. 13 e s. e 16 e s.). Mais recentemente, e tomando a questão do personagem no âmbito do direito
conexo, vide ABRÃO, Eliane Y., Personagem: algumas considerações à luz do direito, Revista da ABPI nº 90
- Set/Out 2007 p. 3-8.. No direito estrageiro, vide Vide KRISHNAWAT, Dharmveer Singh, ‘Protection of Car-
toon Characters under Intellectual Property Law Regime: An Analysis of Copyright and Trademark Laws(May
29, 2007). Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=989577.
331 Vide, além dos julgados citados adiante neste estudo, sempre no tocante a imagens: ““É indubitável
que o alegado conflito de normas alegado pela culta magistrada é apenas aparente, na medida em que
o fato apontado nas indagações policiais consistiu, a priori, na reprodução desautorizada de figuras de
desenho animado e histórias em quadrinhos concebidas e criadas pelo engenho intelectual de seu autor,
diferentemente do que ocorre com um nome ou uma marca industrial ou comercial, cujo objeto é apenas
o da obtenção do lucro pelo uso da marca ou nome .O produto da criação intelectual, embora secunda-
riamente possa vir a ser objeto de lucro, originalmente consiste em uma necessidade vital de exprimir
através de qualquer sinal externo as concepções, pensamentos, ideias e ambições de seu autor, indepen-
dentemente de sua aceitação ao meio ao qual se dirige. (...) As criações intelectuais representadas pelos
desenhos de Walt Disney, que aparecem em filmes, na televisão, em revistas, jornais, confecções, etc.,
165
A imagem-retrato, em geral, e não só como personagem, como ob-
jeto de direitos autorais, inclusive a pictórica e fotográfica, em particular na
difícil relação entre a criação e seu eventual modelo humano, tem sido objeto
de considerável elaboração332, que, no entanto, deixamos de lado para os pro-
pósitos deste estudo.

18.3. Da personagem encenada


A relação do intérprete e o personagem suscita interessantes ques-
tões jurídicas não só no campo exato dos direitos conexos, como também na
intercessão sutil entre os direitos morais conexos333, e os direitos de persona-
constituem criações do respectivo autor que mantém direito sobre elas e que não podem ser reproduzidas
sem ordem expressa de quem as pode emitir.[Incorporando o parecer do MPF). “ STJ, Resp 19.866-0,Quin-
ta Turma, Ministro Costa Lima, DJ, 18.05.1992.” Dessarte, antes de tudo, personagens como os anotados
pelas empresas que aqui se entendem prejudicadas (Pernalonga, Patolino, Piu-Piu, Frajola, Flintstones etc.)
não seriam representativos de simples marcas registradas, postos sob a proteção da Lei nº 9.279/96. É
que, na essência, quando da utilização de imitações fraudulentas ligadas a tais figuras, colocando-as em
produtos destinados à venda, com evidente intuito de lucro e sem dispor de autorização a cargo de quem
lhes detenha a titularidade, o agente não está, propriamente, visando violar a marca da mercadoria, mas
sim valer-se da atração que ditos personagens exercem sobre clientes em potencial.” TJMG, Conf. Neg.
Denis Borges Barbosa

de Jurisd. nº 1.0000.05.429471-5/000(1), 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas


Gerais, Des. Beatriz Pinheiro Caires, 25 de janeiro de 2007. Revista Forense - Vol. 395 Jurisprudência Penal,
Pág. 598. Apelação Cível - Direito Autoral - Ação de reparação de prejuízos decorrentes da comercialização
não autorizada de tecidos estampados com personagens registrados(...) Substrato probatório que confirma
a ocorrência de lesão aos direitos autorais - Teoria Da Circulação - Exegese Dos Arts. 6o, Viii, 21, 30, Iv, 123
E 124, da então vigente lei N. 5.988/73, Superada Pela Lei N. 9.610/98, que manteve o mesmo grau de
proteção - Decisão Mantida - recurso conhecido e desprovido. TJSC, AC 2002.014193, 3ª. Câmara de Direito
COMERCIAL, Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, 2/06/2005. “..os desenhos do Patolino, Piu-Piu, Frajola, Taz entre
outros, cujos direitos autorais as recorrentes são detentora não se tratam de marcas do produto, e sim fi-
guras empregadas no comércio com o intuito de aumentar as vendas, pela chamatividade dos personagens
das historietas, mas nem por isso deixam de ser a expressão intelectual de seu autor, gozando da proteção
da Lei dos Direitos Autorais” (TJSP - RSE 329.175-3/8 -SP, Rei. Pedro Gagliardi, j. 19.04.2001, v.u.). “Destarte,
é possível entrever que os personagens, cujos direitos pertencem às empresas já mencionadas, não são
marcas, tendo em vista que esses desenhos são inábeis para apontar distinção dos produtos ou mercado-
rias que carregam suas estampas, ou mesmo para diferenciar seus fabricantes”, TJSP, HC 00970836.3/5-
0000-000,13a Câmara do 7o. Grupo da Seção Criminal, Des. Rene Ricupero, 24 de agosto de 2006Ainda:
TJRS, AC 596062497.Quinta Câmara Cível, Araken de Assis, 03/04/1996 e TJRS, AC 595175720, Quinta Câ-
mara Cível. Des. Clarindo Favretto, 03/04/1996. E um caso particularmente picaresco: TJSP, AC 293.386-4/9,
Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, Des.
Carlos Teixeira Leite Filho, 14 de junho de 2007,
332 Vide, por exemplo, RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais |
vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563.
333 Cabe questionar-se na verdade se existe a plenitude de direitos morais sobre os personagens, aqui
tratados no campo estritamente autoral. Num acórdão onde se negaram direitos morais sobre persona-
gens, disse o tribunal paulista: “Considera-se que os autores, de um modo geral, não aceitam alterações
de suas obras artísticas, porque isso representaria um golpe intelectual e de consciência. Porém, nos casos
das telenovelas, os autores não desconhecem as imposições de mercado, sabido que os rumos das histó-
rias são guiados pelo interesse popular, existindo empresas que são contratadas para coletar informações
dos telespectadores, exatamente para sentir, mediante pesquisa de campo, a atmosfera do drama que se
desenrola no dia a dia das pessoas. Quando a opinião pública interage com determinado personagem, a
direção aumenta sua figuração e quando as pessoas cansam de um deles, é momento de fazê-lo desapare-
cer. Portanto, o enredo muda para cumprir uma lógica de mercado que é medido pelo Ibope, o que obriga
celebrar cláusula que reserva a palavra final à direção artística e administrativa.” TJSP, AC 258.236-4/9-00,
166
propriedade intelectual
lidade. Discute-se, inclusive na casuística brasileira, os eventuais direitos do
intérprete em face de seu personagem, entre os quais o de aceitação de papel
e o de manutenção do cunho de interpretação334.
Tem-se recente e valioso estudo de Eliane Y. Abrão335, no tocante à
personagem como fato da construção dos direito autorais dos intérpretes:
Um personagem não existe, portanto, apenas em função da repre-
sentação do ator. O seu criador original parte de uma idéia que se materializa
em um texto, delineando um caráter a esse “ser de papel” que na pele do
artista, além dos elementos intrínsecos à sua personalidade - imagem e voz -,
recebe, por interferências do diretor, inflexões próprias, gestos, movimentos,
expressões, maquiagem, figurino e adereços. Sem contar que, geralmente, o
personagem é insertado em um cenário onde também exercem influência a
iluminação e a música de fundo (trilha sonora). Todos esses elementos com-
põem um personagem na representação ao vivo ou na gravação. Filmes há,
outrossim, em que a personagem é uma câmera, ou um terceiro invisível, pro-
tagonista da trama.
De outro lado, a alternância dos elementos e das pessoas físicas que
interferem na composição de um mesmo personagem faz com que se tornem
(paradoxalmente) inconfundíveis. O personagem Othelo, criado textualmen-
te por William Shakespare e interpretado do por Richard Burton, não possui
as mesmas características do Othelo shakespeareano representado tempos
depois por Lawrence Fishburne. Do mesmo modo que a personagem Isaura
- criação textual de José de Alencar vivida nas telas por Lucélia Santos em “A
Escrava Isaura” e dirigida por Herval Rossano (Globo) - não se confunde com
a Isaura interpretada por Bianca Rinaldi e dirigida pelo mesmo Herval Rossano
(Record). Esses aspectos garantem, de outra vertente, a inconfundibilidade, a
independência, das respectivas obras audiovisuais.
E, agora notando a autonomia jurídica do personagem em face da
pessoa do ator:
Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, unânime, Ênio Zuliani, 15
de fevereiro de 2007.
334 François Dessemontet, tratando do direito suíço, mas mencionando o contexto europeu do direitos do
interprete em relação a “seu” personagem, assim descreve: “12. Deux principes s’en dégagent avec netteté
: a) «L’acteur a le droit de ne paraître que dans des films et sous des aspects ou personnalités qu’il estime
conformes à ses convenances artistiques ou à l’intérêt de sa carrière, sans qu’il puisse lui être opposé un
usage quelconque». 13. b) Il s’ensuit que «les artistes interprètes sont fondés à exiger que leur interpré-
tation ne reçoive pas d’autre utilisation que celle par eux autorisée». DESSEMONTET, François, Les droits
des acteurs face à la digitalisation, http://www.unil.ch/webdav/site/cedidac/shared/Articles/Dt%20des%20
auteurs%20digitalisation.pdf. O tema central deste autor, aliás, é a interessantíssima questão dos direitos
dos intérpretes em face da manipulação digital de seus personagens.
335 ABRÃO, Op. Cit.
167
Dois outros artigos da atual Lei Autoral, Lei 9.610/98, são igual­mente
importantes na análise jurídico-autoral do personagem. O art. 83, em uma
demonstração da preferência de tratamento jurídi­co concedido ao autor do
texto em que se baseou o personagem em detrimento ao do ator que o inter-
preta, autoriza a lei a substituição do ator pelo diretor quando aquele tenha
de interromper temporá­ria ou definitivamente sua atuação. Mas o persona-
gem tem assegu­rada sua continuidade na obra, audiovisual ou radiodifundida,
não importando o ator que o represente. Diferencia-se, assim, o perso­nagem
intelectual do personagem representado e resguarda-se os direitos patrimo-
niais de todos: da produtora/emissora que conti­nuará a veicular a obra; do
diretor, a quem cabe dar continuidade artística a ela; do ator substituído, que
fará jus à percepção de di­reitos patrimoniais proporcionais à duração de sua
participação (o que se repete no § único do art. 92); do ator substituto, que
rece­berá salários e que, igualmente, participará proporcionalmente dos rendi-
mentos patrimoniais nas futuras reexibições da obra gravada336.
Neste ponto, e ainda em outros segmentos da legislação em vigor,
enfatiza-se o personagem como constructo, como algo definido pelas suas
Denis Borges Barbosa

características pessoais, identificáveis, autônomas em face da pessoa a que


ele se apõe337.
A verdade, outra consideração, ainda que estranha ao campo autoral,
é que personagens em face dos quais se constrói uma clientela338, como no
336 A autora ainda nota um pronunciamento judicial sobre a autonomia de personagem como objeto
singular de direitos: “Em recente demanda que teve lugar na cidade de São Paulo (23ª Vara Cível, autos nº
643.118-2), em que co-titulares de marca de personagem, na qualidade de sócios de empresa, disputavam
a autoria intelectual de um determinado personagem humorístico, a sentença julgou improcedente o pedi-
do de declaração de coautoria, baseada em provas, e declarou autor do personagem apenas um dos coau-
tores. Voto do relator em sede de Agravo de Instrumento (190.997-4/6), apreciando pedido de concessão
de tutela antecipada, condiciona-a à declaração de autoria em função da valoração das provas: “Em sendo
controvertidos e dependentes de apuração judicial os direitos de criação e de utilização do personagem
e da marca ‘Homem Cueca’, não era caso de deferimento da medida prevista no artigo 273 do Código de
Processo Civil- Mínimos os benefícios com a cessão pretendida de uso do personagem pelo autor - Se a lei
especial prevê, como penalidade a quem tenha direito de coautor e utilize personagem sem autorização
do outro autor, perdas e danos, inadmissível vedação de sua utilização, se inexistentes motivos sérios para
suspeitar de insolvência do requerido - Recurso não provido”.
337 Em adição à precisa análise da autora, vale notar que, no anexo ao dec. 82.385 de 05 de outubro de
1978, consta como elemento da definição doa profissão de diretor de arte cinematográfico: “Diretor de
Arte: Cria, conceitua, planeja e supervisiona a produção de todos os componentes visuais de um filme ou
espetáculos, traduz em formas concretas as relações dramáticas imaginadas pelo Diretor Cinematográfico e
sugeridas pelo roteiro; define a construção plástico-emocional de cada cena e de cada personagem dentro
do contexto geral do espetáculo (...). O mesmo decreto ainda menciona a construção de personagem, mas
como imagem gráfica, quanto aos desenhos animados. Ainda, lê-se na Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978:
Art . 10 - O contrato de trabalho conterá, obrigatoriamente: (...) IV - título do programa, espetáculo ou pro-
dução, ainda que provisório, com indicação do personagem nos casos de contrato por tempo determinado;
338 Lembre-se que não pareceria impossível classificar esse aproveitamento de personagens típicos, do-
tados de suficiente poder distintivo (o que adiante se caracterizará como o núcleo da persona como obra),
como parasitismo. DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 314-319.”Final-
168
propriedade intelectual
caso de novelas, constituem elementos de fundo de comércio, com a tutela
que se reserva a tais elementos de aviamento339.

18.4. Da personagem como obra autoral


A questão dos personagens como obra, no entanto, valeu-nos suscitar
pesquisa complementar340. Segundo André Andrade e Carolina Tinoco Ramos,
No Brasil, não há consenso a respeito da questão da proteção autoral
a personagens. A própria Lei n.º 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais - LDA) apre-
senta, tanto para o que é protegido quanto para o que não é, apenas um rol
exemplificativo. Como a personagem não está incluída em nenhuma das listas,
a questão é deixada para a interpretação sistemática da lei pela doutrina e
pela jurisprudência. Contudo, nem a doutrina tem desenvolvido o tema, nem
os tribunais têm se ocupado do assunto, posto que as controvérsias e as ações
judiciais ainda são raras.
Outra dificuldade encontrada é que o inciso VIII do artigo 7º da LDA
determina expressamente que “obras de desenho, pintura, gravura, escul-
tura, litografia e arte cinética” são protegidas por direito autoral. Isso faz
com que, muitas vezes, se confunda o desenho da personagem (imagem da
personagem) com a personagem341 em si. Quando se trata de personagens,
mente, passando ao Direito Autoral, a imitação de personagens típicos, dotados de suficiente poder dis-
tintivo, como Buffalo Bill, Nick Carter, os Quatro Mosqueteiros, Sherlock Holmes, o whisky Johnny Walker,
Topolino, Charles Chaplin, o Tigre da Esso etc., podem, como desenhos artísticos, ser protegidos contra a CP
(Fusi, op. cit., n9 28). Do exposto, resulta que a autonomia da Concorrência Parasitária, segundo conhecido
trabalho do especialista Yves st. Gal, define-se como “a imitação da criação alheia” com que se está em
relação de concorrência ou dos “processos de aproveitamento dos esforços, do renome ou da reputação
alheios, mesmo fora da relação de concorrência” (consulte-se “Conc. déloyale et conc. parasitaire”, in Rev.
Int. Prop. Int., 1956, pág. 36). De tal conceituação aproximou-se, no ano seguinte, o erudito Tullio Ascarelli
quando referiu-se ao nódulo do “aproveitamento da fama” ou do “aviamento” alheios (Teoria della conc.,
Milano, 1957, pág. 193). Pela mesma época, Franceschelli, grande especialista na CP, estendeu-a “à adoção
mais ou menos imediata, se não integral, de qualquer iniciativa de terceiro” (consulte-se “Conc. parassita-
ria”, in Riv. Dir. Ind., 1956, voI. I, pág. 265).”
339 Como nota precedente judicial de Hong Kong: “I see no reason why that should not be applied to
a case where a character is created not by the actor but by the script writer or by others responsible for
the production. The advent of radio and televison has given us numerous examples of parts in serial pro-
grammes which have been played for a time by one actor and subsequently by another actor. No doubt the
newcomer has brought his own interpretation to the part (not always with the approval of the listeners or
viewers) but the character remains essentially the same. If that character still attracts the listener or viewer
and induces him to watch the programme, there is the goodwill which has attached to the programme and
constitutes the property in the character.” Shaw Bros (HK) Ltd v. Golden Harvest (HK) Ltd [1972] R.P.C. 559.
340 ANDRADE, André; RAMOS, Carolina Tinoco. Proteção autoral de personagens na era da informação.
Revista Criação do Instituto Brasileiro da Propriedade Intelectual, n. 2, ano 1, p. 103-114, 2009. Parte de um
pleito de interesse acadêmico pessoal deste parecerista, o estudo em questão representou contribuição
pessoal, independente e valiosa de seus autores.
341 [Nota do original] “Personagem: [Do fr. personnage.] S. f. e m. 1. Pessoa notável, eminente, importan-
te; personalidade, pessoa. 2. Cada um dos papéis que figuram numa peça teatral ou filme, e que devem ser
encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramática. 3. P. ext. Cada uma das pessoas que figuram em
169
deve-se ter em mente a construção de um ser fictício que irá desenvolver re-
lações e comportamentos. E será dessas personagens que o presente artigo
se ocupará.
Fixado o problema, assim se configura a questão:
Dentre os doutrinadores que se posicionam no sentido de proteção
de personagens encontra-se Antônio Chaves:
O fato de alguém se apropriar de personagens criados por outrem,
para, sem a indispensável licença, utilizá-los em outras histórias, para finalida-
des diferentes, ou mesmo para degradá-los para a propaganda de produtos
comerciais, não constitui apenas ilícito civil: pode caracterizar verdadeiro cri-
me, em casos que se apresentam cada vez com maior freqüência. (CHAVES,
1987, p. 188) (...)342
Já entre os que se posicionam contrariamente à proteção de persona-
gens encontra-se Eliane Abrão:
E há, finalmente, um campo de verdadeira imunidade a qualquer pro-
Denis Borges Barbosa

teção de caráter autoral: é o das idéias, dos conceitos, dos métodos, dos sis-
temas, dos cálculos. O resultado material dessas idéias, métodos, etc., isto é,
sua expressão fixada em base corpórea, concreta, palpável é que é protegido
pela lei autoral e não as idéias, os métodos, os cálculos em si. Exemplifica-se:
o livro de ensino de matemática é de criação de determinado autor, mas não
os cálculos embutidos em cada exercício. O direito autoral não cobre qualquer
idéia ou conceito existente por detrás da obra criada nem qualquer persona-
gem nele retratado (in Circular 45, Copyright Office, EUA).343
A questão tomaria outra concretude, porém, em face de evento juris-
prudencial especifico:
Por este ser um tema que pouco chega aos tribunais, há apenas uma
decisão , do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que aborda a questão e
344

uma narrativa, romance, poema ou acontecimento. 4. P. ext. ser humano representado em uma obra de
arte.” (FERREIRA, 1999). [FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira/Lexicon Informática, 1999]
342 Nota do parecerista: Antonio Chaves refere-se à questão em outro texto, “A lei não protege apenas a
criação literária ou artística como um todo; ampara também cada um dos seus elementos constitutivos: de-
nominação, idéia central, roteiro e desenvolvimento, personagens, cenários, música, diálogos, descrições,
criações de moda, etc.“(Antônio Chaves, “Direito de Autor”, Forense, 1987, . 174/175).
343 ABRÃO, E. O que é propriedade imaterial. A disciplina: Seu conteúdo e limites. Disponível em: <http://
jusvi.com/artigos/1177>. Acesso em 26 mai. 2008
344 [Nota do original] Outras decisões a respeito de proteção de personagens foram encontradas: STJ,
Resp 19866/RS, Min. Rel. Jesus Costa Lima, Quinta Turma, julgado em 04/05/1992, DJ 18/05/1992, p. 6988;
e TJES, AgI 035.06.900077-2, Des. Rel. Rômulo Taddei, Terceira Câmara Cível, julgado em 16/05/2006, DJ
170
propriedade intelectual
que acaba por reconhecer a proteção de personagens por direito autoral, no
caso a personagem ‘Harry Potter’:
A autora escreveu as obras literárias centradas no personagem “Harry Pot-
ter”, seus companheiros e professores de uma escola inglesa bruxaria. Isso
é fato notório (artigo 334, inciso I, do CPC).
A empresa produtora de espetáculos teatrais – Jotaelle Ltda. – organizou a
peça “Harry Potter – o aprendiz de feiticeiro” (ut - fls.36), inclusive convo-
cando candidatos à representação do personagem principal (fls.32 e 38).
Depois de um contato dos advogados da escritora, o nome “Harry Potter”
foi retirado dos cartazes de propaganda (fls.99/100).
Contudo, a produtora manteve, nos anúncios do espetáculo teatral, todas
as características físicas dos personagens, bem como o enredo básico da
história dos jovens aprendizes de magia negra. Isso está bem claro nos do-
cumentos juntados pela primeira apelante (Jotaelle Ltda.), quando de sua
contestação.
O fato de o roteiro da apresentação teatral afastar-se da versão dos livros
da autora-apelada não exclui a existência de plágio. As características
físicas dos personagens são iguais, bem como os figurinos e até o título
“Aprendiz de feiticeiro” que neste contexto, evidenciam a violação de di-
reitos autorais. A Lei Federal 9610, de 19 de fevereiro de 1998, protege o
autor das adaptações de suas obras (artigo 29, inciso III) com o intuito de
garantir-lhe a integridade (artigo 24, IV).
A divulgação da peça (fls.32, 36, 38 e 50) está demonstrada inclusive pela
documentação trazida com a contestação da Jotaelle Ltda. (fls.99 e 100).
O simples confronto entre o anúncio de um filme autorizado (fls.39) e os
cartazes da peça produzida pela primeira apelante evidencia a violação aos
direitos autorais. Isso tem como conseqüência a obrigação de indenizar,
conforme artigo 186 da Lei Federal 9610.
(TJRJ, ApC 2008.001.05609, Des. Rel. Bernardo Moreira Garcez Neto, Dé-
cima Câmara Cível, julgado em 02/04/2008, DJ 28/04/2008, p. 29)

A contribuição dos autores, porém, é tanto mais relevante quanto se


propõem critérios para essa protectibilidade dos personagens:
A partir desse ponto será adotada a nomenclatura personagens-cons-
tructos para as que aqui defendemos que devem receber o tratamento de
obras e personagens-idéias para as que, como o próprio nome diz, não passam
de meras idéias, não merecendo, portanto, proteção.
Entretanto, deixamos de adotar a nomenclatura literária, posto que a
mesma não apresenta o grau de precisão necessária. Mesmo na literatura en-

29/05/2006. Entretanto tratavam da imagem das personagens e não das personagens em si e, portanto,
não foram consideradas.
171
contramos outras nomenclaturas que são passíveis de confusão345. Portanto,
justifica-se assim a adoção da terminologia personagens-constructos e perso-
nagens-idéias.
Os autores propõem dois testes para distinguir o que é um persona-
gem-constructo – a persona:
 a) Personagens são Obras?
É a partir da análise do conjunto de características que se pode deter-
minar se uma personagem possui ou não proteção por direito autoral. Em ou-
tras palavras, se a personagem chega a ser um constructo ou se é mera idéia.
Para que a personagem-constructo seja considerada obra literária
protegida por direito autoral, dela tem que ser possível criar obras deriva-
das346. Cabe ressaltar que não se trata de mera derivação das imagens das
personagens e sim das personagens como um todo.
Outro teste que precisa ser feito para determinar se a personagem
pode ser objeto de proteção por direito autoral diz respeito ao plágio. Pode
Denis Borges Barbosa

uma personagem ser plagiada?


A objetivação do constructo como requisito da obra
Entenda-se: há personagens inexpressivos, incapazes de se transfor-
marem em objeto destacado da obra na qual elas se inserem347. A objetivação
da personagem é crucial para se transformar em objeto singular de direitos.
Assim notamos em nosso Tratado da Propriedade Intelectual:
The poet’s eye, in a fine frenzy rolling,
doth glance from heaven to earth,
345 [Nota do original] Antonio Candido ainda apresenta a distinção entre personagens de costumes e
personagens de natureza: “As ‘personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços
distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos
de fora. Estes traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ação,
basta invocar um deles. (...) As ‘personagens de natureza’ são apresentadas, além dos traços superficiais,
pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente
identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma caracterização
diferente, geralmente analítica, não pitoresca.” (CANDIDO, 2007, p. 119).
346 Ilustram os autores: “Ainda que tal conceito possa, à primeira vista, parecer estranho, é possível uma
obra derivada de personagem e o universo da ficção está repleto de exemplos. As personagens “Looney
Tunes” possuem vários exemplos de personagens derivadas de outras cuja existência lhes antecede, man-
tidas suas características principais, ainda que sejam, por sua vez, inseridos em contextos e enredos novos.
Exemplos desses são a personagem ‘Perninha’, versão (derivação) mais jovem da personagem ‘Perna Lon-
ga’, e ‘Plucky’, personagem derivada de ‘Patolino’ . Essas derivações das personagens “Looney Tunes” da
Warner Brothers chamam-se “Tiny Toons” e são a versão adolescente das primeiras, que já se encontravam
em fase adulta.”
347 A observação, aliás, é do Juiz Learned Hand: “ It follows that the less developed the characters, the less
they can be copyrighted; that is the penalty an author must bear for marking them too indistinctly.” Learned
Hand, Nichols v. Universal Pictures, Corp 45 F. 2d 119, 121 (1929).
172
propriedade intelectual
from earth to heaven;
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shape, and gives to airy nothing
A local habitation and a name.
(Sonhos de uma noite de Verão)
O ponto crucial para fixação do resultado de um processo de pro-
dução intelectual, para que tenha relevância jurídica, é a transformação que
Shakespeare descreve com precisão: a pena do poeta transmuda a imagina-
ção em forma e lhe dá um espaço preciso e identificável. O texto poético é,
aliás, extremamente interessante ao distinguir os elementos mais abstratos da
massa intelectual (“forms of things”) da sua expressão (“shape”, dicionarizada
como “a perceptual structure”)
É assim que, para que haja “criação intelectual”, é preciso que o re-
sultado da produção intelectual seja destacado do seu originador, por ser ob-
jetivo, e não exclusivamente contido em sua subjetividade; e, além disso, que
tenha uma existência em si, reconhecível em face do universo circundante.348
 b) O que se origina, neste processo?
Para os fins de nosso estudo, é a “criação intelectual”. Um corpo de
conhecimentos tecnológicos, ou texto literário, musical ou científico, ou um
desempenho de intérprete suscetível de fixação, ou um artefato (escultura,
quadro...). Algo que, sempre intelectual (pois distinto de qualquer materiali-
zação), seja:
 c) destacado do seu originador, por ser objetivo, e não exclusivamen-
te contido em sua subjetividade;
 d) tendo uma existência em si, reconhecível em face do universo cir-
cundante.
Assim, um poema que se enuncia em público, ainda que não levado a
papel, ou gravado, é um ente em si, provavelmente capaz de ser memorizado
e repetido, distinto da subjetividade do poeta, e distinto também de uma infi-
nidade de outros poemas.
Como regra, a simples criação, desde que expressa ou fixada (ou seja,
objetivada), pode deflagrar um conjunto de consequências jurídicas. Entre tais
consequências pode acontecer - como ocorre no direito autoral brasileiro vi-

348 BARBOSA, Denis Borges, Tratado da Propriedade Intelectual, Lumen Juris, 2010, vol. I, Cap. , [ 4 ] § 1.
4. - O estatuto jurídico das criações não objetivizadas
173
gente349 - a constituição de um direito de exclusiva, se este direito específico
não for denegado pela lei para o tipo específico de criação350. Em outros casos,
a criação apenas deflagra uma faculdade de obter posteriormente o direito de
exclusiva, sem a automaticidade do direito autoral (como no caso de cultiva-
res, topografias de semicondutores, patentes, etc.)
Essa criação objetiva e autônoma, assim, capaz de deflagrar seja um
direito de exclusiva, sejam outras consequências jurídicas diferentes de um
direito de exclusiva, constitui um bem imaterial351.
O que propõem os autores para distinguir o personagem que é obra,
ou constructo, do que é seja elemento integrante, mas indissociável da obra,
ou ainda (o que os autores não consideraram) mera pertença352 da obra em
que se insere, são os testes de derivação e de plágio.
Se for possível tomar a personagem (não a obra na qual ela é atuante)
como base de criação de outras obras, tem-se um constructo. Se for possível
plagiar as características singulares e destacadas da personagem, e dela se
remeter à obra plagiada, ter-se-ia um índice de constructo.
Denis Borges Barbosa

19. Como se faz o constructo como obra


Voltando agora ao texto de Tinoco e Andrade, e concluindo:
Através dos testes propostos é possível analisar, no caso concreto, a
possibilidade de proteção de personagem como obra autoral. Mas é impor-
tante deixar claro que em momento algum se defende, aqui, que todas as
personagens sejam obras e, portanto, merecedoras de tal proteção. Esta pro-
teção deve ser conferida tão somente as que designamos como constructos,
ou seja, as personagens esféricas de que trata Antonio Candido.

349 [Nota do original] Lei 9.610/98, Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, ex-
pressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se
invente no futuro.
350 [Nota do original] O filtro de qual bem incorpóreo nasce dotado de exclusiva autoral, e o que não tem
exclusiva, é dado, essencialmente, pelo art. 8º da mesma Lei.
351 Op. Cit. Loc. Cit., [ 4 ] § 1. 2. - Os pressupostos da criação intelectual: originador e criação
352 Como dizia Vicente Rao, O direito e a vida dos direitos., v. 2, n. 195: “Chamam-se pertences as coisas
destinadas e emprestadas ao uso, ao serviço, ou ao ornamento duradouro de outra coisa, a qual, segundo
a opinião comum, continuaria a ser considerada como completa, ainda que estes acessórios lhe faltassem:
tais são as coisas imóveis por destino, os acessórios que servem ao uso das coisas móveis como o estojo
das joias, a bainha da espada etc.”. “Pertença não é parte integrante, nem essencial, nem não-essencial (5.
Umrath, Der Begriff des wesentlzchen Bestandtes, 74 s.). O que não é parte integrante da coisa, mas se des-
tina a servir ao fim, econômico ou técnico, de outra coisa, inserindo-se em relação especifica, (...)” PONTES
DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. II, § 143. Pertenças.

174
propriedade intelectual
Carolina Tinoco Ramos, por sua vez, definiu em obra à parte353 as ca-
racterísticas desse personagem que se torna obra:
Em outro trabalho, tratamos, em co-autoria com André Andrade, da
proteção de personagens por si só, independentemente das histórias de que
fazem parte, como criação objeto de direito de autor, isto é, como obra354. Lá
propomos a divisão dos personagens em duas categorias: personagens-cons-
tructos e personagens ideias.355 Chamamos de personagens-constructo aque-
las que pelo seu conjunto de características podem ser consideradas obra e de
personagens-ideias aquelas que, por não possuírem um conjunto marcante de
características não podem ser identificadas de maneira isolada das histórias
que as contêm e, assim, destas não podem se desprender para ganhar vida
própria como obra.
Portanto, quando se fala em personagem protegida por direito au-
toral deve-se ter em mente o conjunto de características dessa personagem
(esta é a obra), e não apenas sua imagem ou seu nome. Até porque, a imagem
de uma personagem é indiscutivelmente protegida por direito autoral, na con-
dição de desenho (art. 7º, inciso VIII, da LDA), enquanto que o nome de uma
personagem (art. 8º, inciso VI, da LDA) só é protegido em associação com a
obra.
De modo a deixar essa diferença bem clara: qualquer um pode mon-
tar uma peça de teatro com uma personagem chamada ‘Mônica’, pois este
nome, isoladamente, não possui qualquer proteção. No entanto, não poderia
montá-la com uma personagem que se chame ‘Carla’ e que possua todas as
outras características da personagem ‘Mônica’. É essa a personagem como
constructo: o conjunto de todas as características de uma personagem, tais
como seu modo de se comportar, de se vestir, de se relacionar com outros,
de agir de determinada maneira perante determinadas condições, seus senti-
mentos, suas características físicas etc.; tudo isso de forma independente de
sua imagem e seu nome, sem, contudo, deixar de se considerar sua imagem e
seu nome como características.

353 BARBOSA, Denis Borges ; RAMOS, C. T. ; MAIOR, R. S. . O Contributo Mínimo na Propriedade Intelectu-
al: Atividade Inventiva, originalidade, Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010
354 ANDRADE, André; RAMOS, Carolina Tinoco. Proteção autoral de personagens na era da informação.
Revista Criação, n. 2, ano 1, p. 103-114, 2009.
355 [Nota do Original] Essa divisão encontra amparo na literatura específica e encontra correspondência
no que Antonio Candido aponta que é chamado de personagens esféricas e personagens planas, ou ainda
personagens de costumes e personagens de natureza. CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emílio Salles;
PRADO, Décio de Almeida; ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007. p.
61-63.

175
20. A celebridade como personagem autoral
Em outro exercício separado, este parecerista induziu a pesquisa so-
bre a construção da noção de uma celebridade como obra no direito brasilei-
ro. No ensaio de Maria Angélica Teixeira Barbosa 356, a questão era a personi-
ficação de Sílvio Santos – como uma personagem de si mesmo.

21. A fabulação do personagem-celebridade


Em essência, o que afirma o ensaio é que a construção da persona é
uma fabulação, uma construção deliberada, contínua, e ficcional, no sentido
de que se destaca da pessoa real, viva, e objeto de uma personalidade como
ser humano357.
Nota a autora:
Antes de tratarmos dos aspectos literários e teatrais da personagem
é importante verificarmos o seu conceito. No dicionário Aurélio (; 1316) assim
se define personagem: 1.Pessoa notável, eminente, importante; personalidade
Denis Borges Barbosa

pessoa.2. Cada um dos papéis que figuram numa peça teatral ou filme, e que
devem ser encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramática. 3 P. ext.
Cada uma das pessoas que figuram em uma narrativa, romance, poema ou
acontecimento. 4. P. ext. Ser humano representado em obra de arte.
Note-se que o dicionário apenas relaciona personagem com pessoa
e, apesar desse ser o aspecto fundamental da monografia, devemos ressaltar
que representa uma limitação à sua concepção, posto que personagem pode
referir-se a uma animal, um objeto, uma paisagem - vide a Combray de Proust,
no Caminho de Swann. Dito isso, é nossa preferência a definição do Wikipédia
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Personagem), elemento vivo de uma obra narra-
tiva, com uma pequena modificação, em vez de obra narrativa, obra ficcio-
nal. Desse modo, personagem seria elemento vivo de uma obra ficcional.
“Elemento vivo” porque esse elemento transmite sensações, sentimentos ao
destinatário daquela obra; “obra ficcional” no sentido de criação de um mun-
do imaginário.
É a “ilusão do real”, ou seja, a impressão da “presença real” do obje-
356 BARBOSA, Maria Angelica Teixeira. A Constituição de Auto-Traço Personagens Famosos. 2007. Mono-
grafia. (Aperfeiçoamento/Especialização em Especialização Em Propriedade Industrial) - Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Denis Borges Barbosa
357 “Imagem, forma de certo modo desconcertante por situar-se a meio-caminho entre o concreto e o
abstrato [porque pode ser inventada, criada, falsificada pelo interesse de seu emissor], é um princípio gera-
dor de real – mas o real do “quase”: quase-presença, quase-mundo, quase-verdade.’ SODRÉ, Muniz. Pensar
como Debord. In: GUTFRIEND, Cristiane Freitas; SILVA, Juremir Machado da (org.). Guy Debord: antes e
depois do espetáculo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.
176
propriedade intelectual
to, no qual se insere o leitor, em termos literários, ou espectador, no caso da
autoconstrução de uma personagem pela celebridade. Tanto o leitor como es-
pectador participam dessa “ilusão do real”. Assim como o leitor anima através
de sua imaginação o personagem de um livro de um autor de ficção, nós, es-
pectadores da “vida real”, tendemos humanizar, vivificar aquilo que nos é apre-
sentado pela celebridade como sua “realidade”, quando, na verdade, é apenas
sua personagem. Melhor explicando, a pessoa à que se refere a personagem
é vivificada perante os olhos do espectador, o que cria a ilusão mencionada.358
A fabulação da celebridade é construir-se como um personagem que,
no entanto, mantém verossimilhança359:
A ficção, portanto, é o lugar no qual o homem pode viver e con-
templar, através das personagens, a plenitude de sua condição, em que se
transforma imaginariamente no outro, vive outros papéis, destaca-se de si
mesmo, distancia-se de si mesmo360. O espectador –participante de uma
celebridade, através da personagem criada por ela, “se transforma” nessa
personagem, “vive” outra vida que não a sua, distancia-se de si mesmo, cons-
truindo uma identidade não original, mas fabricada sob o prisma de um sím-
bolo, uma criação.
Sobreleva notar que há uma diferença fundamental entre a ficção li-
terária e a auto-ficção criada por uma celebridade. A primeira ajuda você a
compreender melhor a si próprio enquanto a última ajuda você a enganar a
si próprio.
Resumindo as idéias até então apresentadas, podemos afirmar que a
personagem é elemento vivo de uma obra ficcional, o que causa a “ilusão do
real”; é limitada e fragmentada; possibilita ao leitor de um romance ou espec-

358 [Nota do original] ROSENFELD, Anatol e outros. A personagem de ficção. Perspectiva: 2007, p. 27..
p.27 a 31.
359 “Pode-se ilustrar as consequências deste deslocamento com o conceito de verossimilhança, da teoria
literária. A figura histórica de Napoleão, um homem nascido na Córsega e falecido em Santa Helena, que foi
imperador da França, preenche o personagem Napoleão de Tolstoi, em Guerra e Paz. O reconhecimento da
pessoa empírica, histórica, contribui para a atmosfera do romance, mas o Napoleão de Tolstoi só existe no
texto literário, e é construído para os fins literários. A tentativa de fazer corresponder o homem com o per-
sonagem resultaria em enfraquecimento do efeito estético; reversamente, um estudo histórico baseado no
personagem seria um absurdo epistemológico. A verossimilhança vem a ser exatamente o aproveitamento
estético desta presença de um mesmo elemento no mundo empírico e no universo romanesco. A fruição
de um texto de ficção necessita de pontos de apoio, de pontes entre o mundo do leitor e o do romance; ao
atravessar a ponte, e ao ter consciência que na outra margem, o Napoleão dos livros de História tem um
outro valor, o valor que lhe atribui o sistema ficcional do livro, o leitor percebe que este sistema é diferente
da estrutura do universo empírico. A eficácia da obra depende exatamente deste reconhecimento, pelo
leitor, de que a narrativa é criação, e não descrição de fatos históricos.” BARBOSA, Denis Borges, A Causa e
a Autoridade (Porque Direito não é Ciência), in Estudos de Direito Público, Lumen Juris, 2003.
360 Idem.Ibidem,p.48.
177
tador de uma celebridade contemplar e participar, através da personagem, de
situações e sensações que o fazem se destacar de suas realidades imediatas,
cotidianas.
Acrescente-se, ainda, mais uma idéia: o personagem é um ser fictí-
cio. Tal paradoxo ocasiona o problema da verossimilhança, o qual pode ser
expresso na seguinte indagação: como pode existir o que não existe, já que a
personagem é fruto do mundo imaginário do ser humano?361
Antes de nos imiscuirmos na resposta de tal questão, averigüemos o
significado de verossimilhança. Verossimilhança, segundo o Dicionário Auré-
lio,(;1768) é aquilo que parece verdadeiro, é algo que contém a aparência de
verdade.
Vamos à resposta. A personagem, apesar de ser uma criação da fan-
tasia, provoca essa impressão de verdade existencial (verossimilhança). Reside
justamente nessa palavra a chave de toda questão: verdade.
A verdade está nos olhos de quem vê, de quem lê. É o espectador-
participante, o leitor, que imprime existência à personagem, seja ela criada
Denis Borges Barbosa

por um autor de uma obra literária, seja ela criada por um showman como
Silvio Santo ou qualquer outra celebridade. É a conhecida e referida “ilusão do
real” do início de nosso texto362.
No entanto, somente o trabalho desse leitor ou espectador não é o
bastante para configurar esse sentimento de realidade, de verdade, o qual
necessita também da contribuição do autor, romancista ou celebridade, por-
quanto uma personagem nos parece real quando esse criador sabe tudo a seu
respeito ou, pelo menos, dá essa impressão363. Sendo assim, no caso de uma
autoconstrução de uma personagem por uma celebridade, não há ninguém
melhor do que ela própria, a celebridade, para dar essa impressão.
Assim, a celebridade torna-se personagem:
Em termos literários, a autoconstrução de uma personagem por uma
celebridade apresenta similitudes com a personagem de um romance. Ambos
são elementos vivos de uma obra ficcional, porém esta vida ou verossimilhan-
ça é criada de modo diverso pelo autor de um livro e por uma celebridade. No
caso da personagem de uma pessoa famosa é a conjunção de três fatores, os
quais possibilitam aquela sensação de realidade: espectador, a celebridade-
-autora e o contexto.

361 [Nota do original] CANDIDO, Antonio e outros. Personagem de Ficção. Perspectiva: 2007, p. 55.
362 [Nota do original] ROSENFELD, Anatol e outros. A personagem de ficção. Perspectiva: 2007, p. 27.
363 [Nota do original] CANDIDO, Antonio e outros. Personagem de Ficção. Perspectiva: 2007, p. 58 e 59
178
propriedade intelectual
O espectador tende a humanizar, vivificar aquilo que é apresentada
pela celebridade como sua verdade, quando nada mais é que uma personagem,
um elemento de ficção. Isso é o que chamamos ilusão do real. São seus próprios
olhos que o enganam. Por isso, em vez de olhar, vejamos o que se significa aque-
la máscara, na qual nos fixamos, a fim de apreendermos o seu real valor.

22. Da verossimilhança e da pessoa real


Saindo da análise literária, a autora vale-se da teoria de Stanislavski para
distinguir a personagem construída e a pessoa em torno da qual ela se constrói:
Não se pode querer proteger a criação de uma personagem por uma
pessoa em si própria pelo direito de personalidade, uma vez que esta se man-
tém intacta364. À imagem externa criada pela pessoa correspondem faculda-
des interiores que se adaptam a ela, porém sem perder o seu eu interior365.
Assim, o ator reconhece não o seu eu interior, mas a sua criação, O
Crítico, assim como há celebridades as quais somente se referem a si próprias
na terceira pessoa, como, por exemplo, o Pelé, pois a sua personalidade não
se confunde com sua personagem366.
As celebridades são fábricas de sonhos para seus espectadores. Elas
criam e vendem sonhos através de suas personagens e ao mesmo tempo bus-
cam, na verossimilhança, a concretização dessa fantasia.
Em relação ao segundo aspecto, a verossimilhança precisa de três ele-
mentos: autor, o espectador e a mídia.
O autor é a própria pessoa famosa, que, no ato de criar sua persona-
gem, acredita na sua verdade e assim a transmite ao público, o qual também
participa desse processo, posto que o espectador vivifica aquele ser fictício,
a personagem.
E a mídia cumpre seu papel ao fornecer elementos fictícios ou não
que auxiliam a produzir essa sensação de realidade.
A criação da personagem, portanto, resulta de uma realidade circun-
dante, ou seja, a personagem nasce de uma celebridade, sua fonte criadora, e,
além disso, essa pessoa famosa, juntamente com o público e a mídia, ajudam
na aparência de veracidade existencial dessa personagem.

364 [Nota do original] STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira 2006,p.30 e 31.
365 [Nota do original] Idem.Ibidem.p.30 e 31.
366 [Nota do original] Idem.Ibidem.p.44 e 45
179
E aplicando a caso concreto a análise:
Celebridades como Silvio Santos construíram a partir de si próprios
personagens. Eles encarnam tais personagens (suas criações) e transmitem
uma sensação de realidade, de verossimilhança, auxiliados pela mídia e pelo
próprio espectador.
 a) A celebridade pessoa real?
Silvio Santos é o autor de sua criação, e a compõe através de carac-
teres físicos, psíquicos, gestuais, comportamentais. Personalidade e persona-
gem não se confundem, porém o segundo tem sua fonte no primeiro. A perso-
nalidade faz parte da estrutura interna do indivíduo, seu íntimo, e se exprime
nas suas emoções, reações, caráter, enquanto a personagem é criação, uma
invenção do ser humano.
A mídia envolve tal personagem em fatos e o espectador, ante sua
credulidade, vivifica aquela criação perante seus olhos, acredita piamente que
a ficção, a personagem é real, é aquele ser vivo que se apresenta nos meio
de comunicação. Para o espectador não há diferença entre personalidade e
Denis Borges Barbosa

personagem.
É interessante aqui notar a distinção entre personagem e heterôni-
mo ; as celebridades não são necessariamente heterônimas, muito embora
367

Silvio Santos, sob seu nom de plume, ou nome de antena, por caso o seja.
A autora, examinando as várias formas de inserção desse persona-
gem-celebridade no sistema jurídico brasileiro, termina por classificá-lo no
âmbito autoral:
Nesse contexto, o direito autoral tem muito a oferecer, pois caso acei-
te-se que se trata de criação de uma auto-personagem, então a pessoa estaria
admitindo que aquilo que os outros vêem dela é uma ficção, a ser protegida
pelo Direito Autoral.

367 “Invocando Charles Baudelaire: “Le poète jouit de cet incomparable privilege, qu’il peut à sa guise être
lui-même et autrui”, distingue o heterônimo, não somente do pseudônimo como do personagem de um
romance ou de uma peça de teatro: o personagem é a criação de um autor, o heterônimo é um persona-
gem que é um autor. Não basta que o autor nos diga que Barnabooth, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são
poetas, como Balzac nos diz que Canalis é um poeta; é necessário que nos mostre suas obras e que essas
obras possuam individualidade e caráter próprios.” CHAVES, Antonio, Obras Pseudônimas. Heterônimas.
Anônimas., Revista dos Tribunais | vol. 695 | p. 7 | Set / 1993 | DTR\1993\635

180
propriedade intelectual
 b) A celebridade é obra do espírito?
O ato de engendrar uma persona, como algo distinto da pessoa priva-
da, pode incorrer em verossimilhanças, points de rattachement com a pessoa
tangível que se dotou de certidão de nascimento, e não registro na Biblioteca
Nacional. Verossimilhança, porém não previne a fabulação, e mais, não previ-
ne a ficção que – legitimamente – faz de um récit uma obra literária.
Na observação de Teixeira Barbosa, Pelé se refere a si mesmo na ter-
ceira pessoa. Na verdade, Édson Arantes do Nascimento contempla e identifi-
ca num espelho lacaniano uma imagem que sendo a sua, não é de si mesmo.
Não é essa desidentificação que faz de Pelé uma criação do espírito, mas sim
sua deliberação criadora, o processo contínuo de construção e manutenção
do constructo, zelando inclusive para que a artificialidade que o público co-
nhece e que seduz a clientela não se esbata, dilua e dissipe.
A pessoa privada, no entanto, subsiste, como outra. Essa terá, no
campo da personalidade, o resguardo da intimidade. Quando a notoriedade
se constitui como algo distinto e objetivizado, haverá obra.
Exige-se, assim, que o constructo seja expressivo368:
Não existe no direito vigente nenhuma exigência de qualidade estéti-
ca (e muito menos de valor estético369).
Assim a noção de “expressivo” não se esgota no estético. Abrange o
que mais? Todas aquelas criações intelectuais cujo propósito central é propi-
ciar a instrução, a informação, ou o prazer no processo de comunicação370.
Central, vale dizer: nem acessório nem subsidiário: o processo de fruição do
público se volta para o elemento comunicativo. A função diferencial desta mo-
dalidade de objeto da Propriedade Intelectual é promover a criação de obje-
tos de construção simbólica voltados à instrução, à informação, ou ao prazer
num processo de comunicação humana.

368 BARBOSA e SANTOS, op. Cit.


369 [Nota do original] Quanto a isso, note-se a eminente discussão da impossibilidade de avaliação do
“mérito” das obras no direito francês, tema que tanto tem a ver com a liberdade de expressão e a negativa
de censura. Vide CARREAU, Caroline. Mérite et droit d’auter. Paris: Librairie Générale de droit et de jurispru-
dence, 1981.
370 [Nota do original} Citando aqui o acórdão do tribunal britânico: “intended to afford instruction, or in-
formation, or pleasure in the form of literary enjoyment”. Exxon v Exxon Insurance Corp, [1982] Ch 119 (Ch).

181
23. De novo a autoria e a titularidade da persona
Uma questão crucial não apenas para definição de titularidade dos
interesses resultante da criação da persona, mas também para extensão dos
limites destes, no entanto, é a noção de que – como ocorre na construção
da imagem de marca371 – a celebridade pode ser um atuante central na cons-
trução, mas grande parte do valor de reconhecimento deriva da interação do
público e de outros agentes.
 a) A construção da persona
Como acontece no caso da imagem de marca372, a construção da
persona por múltiplas fontes não impede a titularidade por aquele a quem
a deliberação e o intuito de construção do mito acede. É no fim das contas
uma escolha do sistema jurídico como um todo, a quem imputa os interesse
jurídicos relativos a um fato jurígeno.
Haverá, em princípio, no caso de uma celebridade que se propõe sê-lo
e atua contínua e deliberadamente nesse sentido (por oposição à celebridade
eventual e espontânea), uma construção decisória que direciona elementos
Denis Borges Barbosa

essenciais da fabulação que aponta para o fulcro autoral373.

371 BARBOSA, Denis Borges, Developing New Technologies: A Changing Intellectual Property System. Pol-
icy Options For Latin America, SELA (1987): Some authors have remarked that the building up of a trade-
mark by means of massive advertisement has much in common with the construction of a character in a
novel; in both cases only sometimes the result is a “roman a clef” bearing any resemblance to reality.” Mas
quem é o autor da marca? BOSLAND, Jason. The Culture of Trade Marks: An Alternative Cultural Theory
Perspective, Intellectual Property. Research Institute of Australia The University of Melbourne Intellectual
Property Research Institute of Australia. Working Paper No. 13/05..: “Stephen Wilf suggests that by as-
sociating a symbol with an object, the public contributes to the authorship of trade marks. Because the
meaning of a mark results not from the efforts of an individual trader but the interpretive acts of the pub-
lic, Wilf argues that the public should be attributed ownership. Trade mark law, on the contrary, is said to
incorrectly formalise the trade mark originator as the arbiter of meaning by recognising only the efforts of
the originator in generating the meaning and interpretation of a trade mark”. Numa análise mais informal,
vide Gunnar Swanson: “For instance, in many ways Coca Cola does not own their brand. They own the
trademark but the brand resides in the minds of a billion or so people around the world. The brand is what
people think of the fizzy sugar water, what people feel when they see old red vending machines, thoughts
of Santa Claus paintings, reactions to Mexican kids wearing t-shirts that say “Come Caca” in a script simi-
lar to the trademark, associations with American culture and politics. . .”, http://lists.webtic.nl/pipermail/
infodesign-cafe/2004-June/1010478.html, visitado em 26/10/2006. A referência se faz a Steven Wilf , Who
Authors Trademarks? http://www.law.uconn.edu/academics/ip/wilf.html.
372 ““In determining whether to grant a property right in a celebrity’s persona, we might consider tradi-
tional liberal justifications in support of private property. The idea that people are entitled to the fruits of
their own labor, and that property rights in one’s body and its labor entail property rights in the products of
that labor, derives from John Locke [john locke. second treatise of civil government. ch. 5 (Wm. B. Eerd-
mans Publishing Co. 1978) (1690)] and is persuasive as a point of departure. It does not, however, advance
the argument in favor of exclusive property rights very far. As Edwin Hettinger [Edwin Hettinger, Justifying
Intellectual Property, 18 PHIL. & PUB. An. 37 (1989)] remarks, “assuming that labor’s fruits are valuable, and
that laboring gives the laborer a property right in this value, this would entitle the laborer only to the value
she added, and not to the total value of the resulting product.” COOMBE, op. Cit
373 BARBOSA, Denis Borges, O orientador é coautor?. Revista da Associação Brasileira de Direito Autoral,
Rio de Janeiro, v. 1o., 2004: “Assim, pode-se entender que é autor aquele que exerce a liberdade de esco-
182
propriedade intelectual
Lidando com uma matéria prima, a mídia e público, a celebridade –
sempre a deliberada e contínua – molda seu próprio valor de reconhecimento.
A matéria é resistente, e pode rejeitar a direção. A persona pode não resultar;
a persona pode falhar, como tantas obras de outro gênero. Mas é a escolha
última da celebridade que determina a construção da persona374.
Assim, ainda que se identifique na construção da persona um espaço
de construção de obra, não se deve contaminar tal noção, essencialmente
técnica, de qualquer excesso no sentido de apoderamentos excessivos em
face da função social deste constructo: a saciedade do desejo da sociedade
por heróis e pessoas da história corrente375. Embora possivelmente o estigma

lha entre alternativas de expressão. O exercício dessa liberdade não só configura a criação, mas indica seu
originador. A liberdade aqui é de escolha dos meios de expressão e não do objeto da expressão. Lembram
Lucas e Lucas, Traité de la Propriété Litteraire et Artistique, Litec, 1994, p. 67 : « L’oeuvre de l’esprit peut-elle
se limiter à un choix ? L’article L. 112-3 CPI (L. 1957, art. 4) incline à répondre par l’affirmative en accordant
le bénéfice du droit d’auteur aux «auteurs d’anthologies ou recueils d’oeuvres diverses qui, par le choix et la
disposition des matières, constituent des créations intellectuelles». On observera toutefois que, dans une in-
terprétation littérale, le choix ne suffit pas ici à fonder la protection puisque l’activité créative doit également
se manifester dans la «disposition des matières».-De manière générale, l’originalité de l’oeuvre se révèlera
parfois dans les choix effectués par l’auteur, par exemple dans le domaine de la photographie, mais il n’est
pas possible d’admettre que le seul choix constitue une oeuvre. On ne saurait donc en principe accorder
protection à des objets trouvés (ready-modes) revendiqués par leur «inventeur» en tant qu’oeuvres d’art. »
374 “Giorgio Vasari, a contemporary of Michelangelo, explained how Michelangelo destroyed valuable
works that he believed to be of inferior quality: [H]e often abandoned his works, or rather ruined many of
them . . . just before his death he burned a large number of his own drawings, sketches, and cartoons to
prevent anyone from seeing the labours he endured or the ways he tested his genius, for fear that he might
seem less than perfect . . . .[Giorgio Vasari, The Lives Of The Artists 418, 423-24 (Julia Conaway Bondanella
& Peter Bondanella trans., Oxford Univ. Press 1998, supra note 7, at 472)]. Michelangelo could certainly
have sold off these inferior drawings and sketches in order to benefit himself or his friends. Instead, where
his reputational interests and financial interests appeared to diverge, he protected his reputation. Some
might lament the loss of those destroyed drawings, and see Michelangelo’s pursuit of a perfect reputation
as excessive. But the paradox is that the reputation dynamic that drove Michelangelo to destroy his work
was also the dynamic that drove him to strive for perfection and to create his most celebrated works. Mi-
chelangelo decided that only a certain quality of artistic work would further his reputational interests, and
it was this type of work that he struggled to produce.” Lastowka, The Trademark Function Of Authorship,
Boston University Law Review [Vol. 85:1171, encontrado em http://www.bu.edu/law/central/jd/organiza-
tions/journals/bulr/volume85n4/Lastowka.pd, visitado em 1/12/2011.
375 COOMBE, op. Cit. “Star images must be made, and, like other cultural products, their creation occurs
in social contexts and draws upon other resources, institutions, and technologies. Star images are authored
by studios, the mass media, public relations agencies, fan clubs, gossip columnists, photographers, hair-
dressers, body-building coaches, athletic trainers, teachers, screenwriters, ghostwriters, directors, lawyers,
and doctors. Even if we only consider the production and dissemination of the star image, and see its value
as solely the result of human labor, this value cannot be entirely attributed to the efforts of a single author.
Moreover, as Richard Dyer shows, the star image is authored by its consumers as well as its producers; the
audience makes the celebrity image the unique phenomenon that it is [See Richard Dyer. Heavenly bodies:
film stars and society (1986); Richard Dyer. Stars (1979)].] Selecting from the complexities of the images
and texts they encounter they produce new values for the celebrity and find in stars sources of significance
that speak to their own experience. These new meanings of the star’s image are freely mined by media
producers to further enhance its market value. As Marilyn Monroe said in her last recorded words in public,
“I want to say that the people-if I am a star-the people made me a star, no studio, no person, but the people
did.” [Dean MacCannell, Marilyn Monroe Was Not a Man, 17 DIACRITlCS 114, 115 (1987)]. .. “O autor da
fábula de uma ‘celebridade’ midiática é sempre coletivo. Afinal, o padrão de reconhecimento propiciado
183
da celebridade seja irrenunciável, pode toda celebridade optar pelo destino
de Greta Garbo376, de ser um ponto cego no discurso da fama.
 b) A celebridade é excluída pelo rol do art. 8º?
A persona não é uma ideia; é um conjunto de apreensões pelo pú-
blico, resultantes da formalização de uma imagem pública; há uma práxis ex-
pressiva e voltada especificamente ao ato de comunicar. Como se notou, não
é a destinação da obra que a exclui do âmbito autoral, eis que nele se inclui o
texto de propaganda política ou comercial ou às instruções de como empinar
uma pipa, desde que dotadas dos requisitos gerais de arbitrariedade e contri-
buto mínimo.
Da lista do art. 8º. (e do requisito primordial da novidade) não se en-
contra nenhuma rejeição em abstrato que permita a uma determinada cele-
bridade valer-se da proteção autoral. Quem pretende a celebridade por uma
cópia dos agissements de outra celebridade consagrada não terá, perante a
anterior, sequer a alteridade, que lhe destaca como obra.
E só mais um requisito essencial de proteção – que não se julga em
Denis Borges Barbosa

abstrato -, dirá se uma celebridade específica não é tão fugaz, tão irrelevante
para o tecimento das comunicacionais demandas do público, que chega a me-
recer a tutela de que se fala377:
A questão é simples: basta que a criação, para ser objeto de uma pro-
teção exclusiva pelos sistemas da Propriedade Intelectual, seja nova? A noção
de novo, neste caso, é simplesmente aquilo a que a sociedade ainda não tinha
acesso. O pressuposto deste requisito é que, em cada modalidade dessas ex-
clusivas, uma exigência de fundo constitucional se impõe, para exigir, como
um elemento objetivo da criação, um aporte à sociedade de algo a mais do
que o simplesmente novo. Numa destilação ainda mais incisiva do problema, a
pergunta é: o direito exclusivo que se atribui ao criador – ou àquele que deriva
seu título do criador, por cessão ou operação de lei – é proporcional ao acesso
obtido pela sociedade? Há uma correlação razoável entre os benefícios que o

pelas mídias tem dimensão histórico-social. A trama e a intriga da narrativa vão, assim, sendo alimentadas
e tecidas junto com as revelações pessoais da própria ‘celebridade’, as opiniões do jornalista, do amigo e
do inimigo, as estratégias comunicacionais e os flagrantes dos paparazzi. Não se pode esquecer ainda que
o folhetim da vida de uma celebridade é escrito também pelo público em geral. PIMENTEL, Márcia Cristina,
A construção da celebridade midiática,, Contemporânea, no. 4, 2005, [Revista on-line do grupo de pesquisa
Comunicação, Arte e Cidade da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.] http://www.contemporanea.
uerj.br/pdf/ed_04/contemporanea_n04_17_MarciaCris.pdf
376 Que optou por isolar-se na impossível solidão de sua casa na 450 East 52nd Street em Manhattan, em
frente à qual este parecerista, como todo mundo a quem o caso favoreceu, a viu em 1982. Veja-se http://
en.wikipedia.org/wiki/Greta_Garbo, visitado em 1/12/2011.
377 BARBOSA e SANTOS, op. Cit.
184
propriedade intelectual
criador obtém do sistema jurídico pela criação que fez, em face daquilo que
todos demais tem de benefício?
Enfim, é a exigência de originalidade378.

24. Das limitações ao direito


Protegido pela tutela autoral, ou classificado como direito de perso-
nalidade, o exercício dos direitos de celebridade estão severamente contidos
por limitações intrínsecas. O que são tais limitações? Dissemos em outro tex-
to379, falando de patentes, mas em tudo pertinente ao nosso assunto:
Natureza da limitação.
A lei de 1996 assim considera fora da exclusividade da patente uma sé-
rie de atos que podem ser praticados sem a permissão do titular do privilégio.
Da mesma forma que ocorre na Lei Autoral , trata-se de um rol de limitações
legais (daí, involuntárias), objetivas e incondicionais à exploração da patente .
Interpretação das limitações.
Tratando-se de restrições a uma norma excepcional, como é a das pa-
tentes, as limitações são interpretadas extensamente, ou melhor, com toda a
dimensão necessária para implementar os interesses que pretendem tutelar.
De forma alguma as limitações deste artigo são exceções380, a serem interpre-
tadas restritamente.
378 Vide BARBOSA, Denis Borges; RAMOS, C. T. ; MAIOR, R. S. . O Contributo Mínimo na Propriedade Inte-
lectual: Atividade Inventiva, originalidade, Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. Dessa visão societal de originalidade como um valor objetivo, não discrepa a hipótese da marca pessoal
do autor: “The practice of artistic signature persists today. It is neither a recent nor an exclusively Western
phenomenon. Even where works are not signed by artists, one might argue that all artistic works are intimately
bound up with the artist’s identity, making the work itself a form of personal signature. Works of artistic pro-
duction generally bear traces that may betray the true identity of the creator.7 In various small details, authors
leave unconscious “fingerprints” on their works that, like handwriting, reveal their personal involvement with
the creation.8 Just as an actor’s facial expressions, style of walking, or manner of speech may be unconsidered
yet potentially expressive, so an artist’s efforts at self-expression are at least partially governed by unconscious
mannerisms.And obviously, there are some conscious mannerisms that appear in authorial styles – certain
skills, themes, interests, and ideologies are reliably associated with particular authors.” Lastowka, op. cit.
379 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes, e BARBOSA, Denis Borges, O Código da Propriedade Industrial Con-
forme os Tribunais, Comentado com Precedentes judiciais, Lumen Juris, 2012. Vide, em particular, LEWICKI,
Bruno Costa. Limitações aos direitos de autor: releitura na perspectiva do direito civil contemporâneo.
2007. 299 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Centro de Ciências Sociais, Faculdade de Direito, Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RISE, Maria Elaine , Das Limitações Aos Direitos Autorais,
Lumen Juris 2008, LOPES, Cláudia Possi, Limitações aos Direitos de Autor e de Imagem. Utilização de Obras
e Imagens em Produtos Multimídia, Revista da ABPI, (35): 27-35, jul.-ago. 1998. SANTOS, Manoel J. Pereira
e BARBOSA, Denis Borges, As Limitações Aos Direitos Autorais, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org.,, Direitos
Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012.
380 Narra SANTOS, Manoel J. Pereira dos, Objeto e Limites da Proteção Autoral de Programas de Compu-
tador, Ed. Lumen Juris, 2008: “ Eduardo Vieira Manso designa como “exceção” o gênero do qual as derroga-
ções e limitações são as espécies (cf. Direito autoral: exceções impostas aos direitos autorais (derrogações
e limitações), São Paulo: Bushatsky, 1980, p. 42/43), José de Oliveira Acensão entende que “ os limites não
são exceções ” porquanto não há direitos absolutos e os limites são apenas regras negativas (Direito Auto-
ral, 2ª. ed., ref. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 256; “O fair use no Direito Autoral”, in Anais do XXII
Seminário Nacional da Propriedade Intelectual da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual,
185
Para que fique claro: a interpretação dessas limitações leva em conta
– simultaneamente- a máxima eficiência no alcance da função de cada uma
delas e o mínimo de ônus ao titular necessário para o plena satisfação de tais
objetivos .
Isto se dá porque aslimitações aos direitos exclusivos representam,
no nosso sistema jurídico, uma ponderação de interesses constitucionais in-
corporada ao direito normativado.
Tais limitações podem ocorrer em todo caso que os interesses dos
titulares de exclusivas colidem com interesses ou princípios constitucionais,
em especial:
quando se colidem interesses privados do criador ou investidor e di-
reitos fundamentais;
quando há que se conciliar tais interesses privados com interesses
públicos;
quando outros interesses competitivos na economia também mere-
Denis Borges Barbosa

cem proteção do Direito.


Limitação não é licença obrigatória.
Note-se que em todos casos deste artigo 43, não se tem licença obri-
gatória, pela qual não se precise autorização, mas seja necessário pagar. Ao
contrário, em todos os casos deste artigo, os atos declarados livres de consen-
timento também serão livres de pagamento ou qualquer outro ônus. Os atos
são livres.
E, em nosso Tratado381:
As limitações legais em matéria de propriedade intelectual – paten-
tes, registro de cultivares, direitos autorais, etc. - representam uma concilia-
ção entre interesses constitucionais fundamentais. De um lado, a esfera moral
e patrimonial da criação humana, protegida pelo texto básico; de outros, inte-
resses tais como a tutela à educação, o direito de citação, o direito à informa-
ção, o cultivo das artes no ambiente doméstico, etc.
Argumentar-se-ía, talvez, que tais limitações seriam tomadas sempre
como exceções, a serem restritamente interpretadas. Mas exceções não são,
e sim confrontos entre interesses de fundo constitucional. Como já tive tam-

2002, p. 94). Mas essas limitações aos direitos patrimoniais de autor eram classificadas como exceções,
entre outros, por Henri Desbois (Le Droit d’Auteur en France, 3e. ed., Paris: Dalloz, 1978, p. 312, 351)”
381 BARBOSA, Denis Borges, Tratado da Propriedade Intelectual, vol. I, Cap. II, Lumen Juris, 2010, [ 4 ] §
5.7. (C) Da razoabilidade como limitação legal aos direitos
186
propriedade intelectual
bém a oportunidade de considerar, citando Canotilho: “As idéias de ponde-
ração (Abwängung) ou de balanceamento (balancing) surge em todo o lado
onde haja necessidade de “encontrar o Direito” para resolver “casos de ten-
são” (Ossenbühl) entre bens juridicamente protegidos.
Assim, não é interpretação restrita, mas equilíbrio, balanceamento e
racionalidade que se impõe.
De uma forma particular, mas não menos presentes, as limitações se
aplicam aos direitos de personalidade. Diz Guilherme Calmon382:
Os direitos da personalidade integram-se em nosso ordenamento ju-
rídico com outras proposições e outros poderes jurídicos de conteúdo diver-
so. Assim sendo, tais direitos são dotados de certa finitude, condicionando sua
existência, validade e, com maior razão, seu exercício.
O primeiro desses limites que pode ser apontado diz respeito ao abu-
so de direito. Embora seja a liberdade um bem essencial da personalidade e
verdadeiro alicerce da própria dignidade da pessoa humana, o espaço deixa-
do à autonomia privada deve ser sempre restringido quando houver excesso
manifesto dos limites impostos pelo fim social ou econômico desse direito,
conforme previsão contida no art. 187, do CC/2002 . Na própria dicção do
art. 5.º, II, da CF/1988 , observa-se que a liberdade pode sofrer restrições tais
como outros bens jurídicos, daí a função do princípio da dignidade da pessoa
humana como restrição ao direito da liberdade.
“Assim, no exercício dos diferentes poderes, faculdades e simples li-
berdades de agir que integram o direito geral de personalidade, o respectivo
titular não está sujeito a realizar uma determinada e tipificadora função legal,
podendo exercê-los dentro da sua autonomia privada. Todavia, em tal exercí-
cio, não pode exceder manifestamente o fim sócio-econômico do direito geral
de personalidade, ou seja, o objetivo de permitir, igualitária e harmonicamen-
te, a cada um e a todos os homens a preservação e o desenvolvimento das
suas personalidades individuais”.383
Em particular no tema de nosso estudo, diz Sonia Maria D’Elboux384:
Esses limites decorrem do fato de que, em determinadas circunstân-
cias, sobre o direito à imagem prevalecem o direito à informação, a necessi-
dade de manutenção da ordem pública e/ou da segurança nacional, o aten-

382 Op. Cit.


383 [Nota do original] SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de, op. cit., p. 520-521. [SOUSA, Rabindranath V.
A. Capelo de. O Direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.]
384 Op. Cit.
187
dimento do interesse público ou social. Como ensina Maria Helena Diniz, “há
uma relativização do direito à imagem, que sofre algumas restrições em prol
da coletividade”385.
Assim, conforme construção doutrinária e jurisprudencial, é dispen-
sada a anuência da pessoa retratada para a divulgação de sua imagem (desde
que sem conotação comercial), nas seguintes situações:
 a) Acontecimentos da atualidade – notícias.
Essa limitação é motivada pelo direito coletivo à informação jornalís-
tica:
 b) Se o tema da foto for paisagens, cenas de rua e eventos públicos e
as pessoas retratadas sejam apenas parte do cenário. (...)
 c) Se as pessoas retratadas forem vultos da história contemporânea
(políticos, escritores famosos, artistas, modelos, atletas etc.), des-
de que não sejam retratados em momentos de intimidade. (...)
 d) Caso a divulgação da imagem vise atender à administração ou ser-
viço da Justiça, Polícia ou segurança pública. (...)
Denis Borges Barbosa

 e) Se a divulgação do retrato tiver a finalidade de atender ao interes-


se público, aos fins culturais, científicos e didáticos.
Postulando a hipótese de tutela dos interesses das celebridades sobre
sua persona no duplo aspecto dos direitos de personalidade e dos direitos
autorais, passemos assim a pormenorizar as limitações que recaem sobre tais
interesses.

25. Das limitações inerentes ao estatuto autoral


A distinção que já se mencionou, entre o interesse público, motor das
limitações e o interesse do público, é aqui crucial386.
Cabe aqui ressaltar uma distinção que a doutrina estabelece entre o
interesse público, ou seja, o interesse de todos de caráter mais geral, e o inte-
resse do público no sentido do destinatário da obra intelectual, que é mais par-
ticular, mas que deve refletir sempre um interesse coletivo387. A questão que
se coloca é se o interesse privado do autor contrapõe-se ao interesse público

385 [Nota do original] “Direito à imagem e sua tutela”. In: Estudos de direito de autor, direito da persona-
lidade, direito do consumidor e danos morais, pp. 98-99. [In: Estudos de direito de autor, direito da perso-
nalidade, direito do consumidor e danos morais: Homenagem ao professor Carlos Alberto Bittar. Coord. de
Eduardo C. B. Bittar e Silmara Juny Chinelato. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.]
386 SANTOS, Manoel J. Pereira e BARBOSA, Denis Borges, As Limitações Aos Direitos Autorais, in SANTOS,
JABUR e BARBOSA, Org.,, Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012
387 [Nota do Original] Vide CARRE, Stéphanie, op. cit., p. 30. [CARRE, Stéphanie. L’Interet du Public en
Droit d’Auteur. Tese (Doutorado em Direito). - Universidade de Montpellier, Montpellier, 2004]
188
propriedade intelectual
ou ao interesse do público? O exame desta matéria não se exaure no interesse
direto do usuário, mesmo como um direito difuso, uma vez que é necessário
considerar que a criação intelectual integra o patrimônio cultural do povo e,
assim, há um interesse público não só na criação de obras para desfrute do
usuário, mas também no acesso e na preservação do acervo intelectual.
Assim sendo, a exclusividade reconhecida ao autor não deve impedir
o exercício de outros direitos fundamentais, em especial o direito de acesso
à informação e à cultura388. Imbricada com esse ponto é a teoria de “livre
utilização” da Lei Autoral alemã, segundo a qual um autor pode se inspirar em
obra preexistente, desde que não se aproprie de sua essência criativa389. Esta
doutrina favorece a conciliação de outro direito fundamental – a Liberdade de
Expressão – com o Direito de Autor.
Assim, a celebridade é parte da cultura e deve à cultura sua criação390.
Os interesses econômicos e pessoais relativos aos objetos dos direitos autorais
devem sujeição genérica - ou ponderação específica - aos direitos fundamen-
tais à cultura391, e ao admitir-se tutela autoral à persona faz-se concentrar-se
sobre ela o impacto dessa consideração.
Parte central do dito a celebridade obriga vem da demanda de que,
como expressão cultural singularizada em obra, impõe-se à persona a fruição
cultural da sociedade392 e o dever de – como parte do fluxo cultural – não se

388 [Nota do original] Zechariah Chafee Jr., em seu estudo sobre os seis pressupostos para o Direito Au-
toral, afirmava que, embora ninguém pudesse comercializar a obra de um autor, todos deveriam poder
utilizá-la. Vide CHAFEE JR., Zechariah. Reflections on the Law of Copyright, Columbia Law Review, vol. 45, n.
4, pp. 503-529, 1945.
389 [Nota do original] Vide Adolf Dietz, Germany, § 8[2][b][ii], in: GELLER, Paul Edward (coord.), op. cit..
[GELLER, Paul Edward (coord.). International Copyright Law and Practice. New York: Lexis Nexis, 2010]
390 COOMBE, op. cit. “The Marx Brothers themselves might be seen as imitative or derivative works,
whose creation and success as icons in popular culture derive from their own creative reworkings of the
signifying repertoire of the vaudeville community. Contemporary stars are authored in a similar fashion.
How much does Elvis Costello owe to Buddy Holly, Prince to Jimi Hendrix, or Michae1 Jackson to Diana
Ross? Take the image of Madonna, an icon whose meaning and value lie partially in its evocation and ironic
reconfiguration of several twentieth-century sex-goddesses and ice queens (Marilyn Monroe obviously, but
also Jean Harlow, Greta Garbo, and Marlene Dietrich) that speaks with multiple tongues to diverse audienc-
es. Descriptions of the Madonna image as semiotic montage abound.”
391 Vide FERNANDES, José Ricardo Oriá. A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos
e perspectivas. In: Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira. vol.
1. Brasília, 2008. SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura.
Coimbra: Almedina, 2007.PEREIRA, Larissa Alcântara. Direitos fundamentais mitigados: em busca de um
novo direito de autor. Curitiba: UniBrasil, 2010. SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos culturais e as obras
audiovisuais cinematográficas: entre a proteção e o acesso. Rio de Janeiro: UERJ, 2010.
392 “Nas modernas sociedades democráticas todas as pessoas devem ter acesso à cultura, pelo que, para
além do direito fundamental de criação cultural, é preciso garantir igualmente o direito fundamental de
fruição cultural. O direito de fruição cultural surgiu, assim, ligado à afirmação da necessidade do Estado
criar condições de acesso de todas as pessoas aos bens culturais, ou seja, como um direito à actuação dos
poderes públicos para obter tal resultado (com a “segunda geração” de direitos fundamentais), mas, nem
189
excluir de sua reelaboração393.
Em particular, o uso da persona como elemento da própria ação criadora
da sociedade não pode ser contida desponderamente, em particular quando há
a transformação criativa que legitime o uso da persona como insumo394. Como
nota certo precedente estadual americano, uma coisa é o uso da imagem da ce-
lebridade como centro da obra a qual se examina a eventual contaminação395;
outra é utilizá-la como matéria de partida para obra nova396. Neste último caso, as
por isso, ele deixa de possuir igualmente uma dimensão negativa, enquanto direito de defesa contra agres-
sões de entidades públicas e privadas na “liberdade” individual de fruir tais bens (na lógica da “primeira
geração dos bens culturais).” SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e
cultura. Coimbra: Almedina, 2007.
393 “Num processo muito conhecido pelos economistas da propriedade intelectual e pelos constitucio-
nalistas, o criador sempre consome elementos da criação de autores precedentes, muitas vezes, mas não
sempre, já em domínio público. Tal reaproveitamento - como transformação criativa - caracteriza longo pe-
ríodo da história, pelo menos até a consolidação dos direitos de exclusiva. No contexto de uma produção
expressiva para o mercado de consumo de massa, como maximização de mercado e compressão do con-
teúdo inovador das obras, esse reaproveitamento de material prévio toma a forma de cópia de segmentos
narrativos, de desenho de personagem, de situações já testadas perante o público. Mas essa figura de
direito é particularmente importante para descrever ou conceituar a mudança introduzida por um origi-
nador sobre material intelectual preexistente, como ocorre no aperfeiçoamento das invenções , derivação
Denis Borges Barbosa

das obras autorais ou de software , ou dos cultivares. Em cada um desses casos, aplica-se o princípio que
a modificação constitui propriedade do modificador, sendo que no caso das leis autorais se exige para que
tal se dê a autorização do titular da obra originária. Assim, é particularmente relevante na geração de bens
incorpóreos relativos a criações intelectuais este reprocessamento de material alheio.” BARBOSA, Denis
Borges, Prefácio, in BARBOSA, D.B. (Org.) ; Lélio Denicoli Schmidt; Elisabeth Kasznar Fekete; Letícia Provedel;
Marissol Gómez Rodrigues, Reivindicando a Criação Usurpada (A Adjudicação dos Interesses relativos à
Propriedade Industrial no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
394 “Nesse sentido, Jed Rubenfeld afirma que não se deve tomar o método do fair use como substituto
da análise sobre os limites do direito autoral frente à liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda
à Constituição norte-americana, pois o fair use seria “econocêntrico” ao direcionar os seus elementos para
uma apreciação dos efeitos econômicos que o uso da obra causa ao seu autor ou titular dos direitos auto-
rais. Segundo o autor: “A exceção do fair use ao direito autoral é largamente econocêntrica; ela é organizada
em grande parte em torno da idéia de adequação aos interesses econômicos do titular do direito autoral.”
(“The freedom of Imagination: copyright´s constitutionality”, in Yale Law Journal , v.112, nº 01 (oct/2002);
p. 19).” SOUZA, Carlos Affonso Pereira de Souza, O Abuso Do Direito Autoral, Tese apresentada ao Programa
de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do Grau de Doutor em Direito Civil. Rio de Janeiro 2009.
395 “Saber se uma obra é originária ou derivada passa pela análise da quantidade criativa da segunda em re-
lação à primeira. Em outras palavras, cabe saber se houve de fato uma transformação da obra primígena ou se
há apenas a utilização de alguns de seus elementos pela obra derivada. Dessa forma, o que determinará se uma
determinada obra é originária ou derivada será o quantum de grau mínimo criativo (contributo mínimo) que
uma possui em relação à outra.” RAMOS, Carolina Tinoco, Contributo ... op. cit. ”In reviewing the U.S. Court of
Appeals for the Sixth Circuit’s rejection of 2 Live Crew’s fair use defense, the Supreme Court [Campbell v. Acuff-
Rose Music, Inc., 510 U.S. 569 (1994)] emphasized the lower court’s error in giving essentially conclusive effect
to the fact that the defendants had profited financially. The Court stated that the first fair use factor, the purpose
and character of the use, focuses on determining “whether the new work merely supersede[s] the objects of
the original creation . . . or instead adds something new, with a further purpose or different character, altering
the first with new expression, meaning, or message; it asks, in other words, whether and to what extent the
new work is transformative.” The Court noted that the more transformative the use, the less important other
considerations such as commercialism will be.” LANGVARDT e LANGVARDT, op. cit.
396 “We developed a test to determine whether a work merely appropriates a celebrity’s economic value,
and thus is not entitled to First Amendment protection, or has been transformed into a creative product that
the First Amendment protects. The “inquiry is whether the celebrity likeness is one of the ‘raw materials’
190
propriedade intelectual
obrigações perante a cultura não comportam oposição categórica397.
Um exemplo importante, ainda que tirado do campo das marcas, foi
o uso do nome de Ginger Rogers no filme de Fellini Fred e Ginger, título que
foi objetado nos Estados Unidos pelos titulares dos direitos relativos à atriz398.
Mesmo considerando os interesses mais ingentes da integridade de marca,
entendeu-se que a necessariedade estética superava qualquer interesse da
persona399.

from which an original work is synthesized, or whether the depiction or imitation of the celebrity is the very
sum and substance of the work in question. We ask, in other words, whether a product containing a celebri-
ty’s likeness is so transformed that it has become primarily the defendant’s own expression rather than the
celebrity’s likeness. And when we use the word ‘expression,’ we mean expression of something other than
the likeness of the celebrity.” Winter v. DC Comics, supra note75, at 888 (Cal. 2003) (quoting Comedy III, 25
Cal. 4th at 406). Assim, justifica-se a crítica de COOMBE, op. cit., às hipóteses em que se utiliza a celebridade
como marco de cultura ou de época: “In Groucho Marx Productions, Inc. v. Day and Night Co., [523 F. Supp.
485 (S.D.N.Y. 1981), rev’d, 689 F.2d 317 (2d Cir. 1982] those who held rights in the Marx Brothers made a suc-
cessful publicity rights claim against the creators of the play A Day in Hollywood, A Night in the Ukraine. The
play’s authors intended to satirize the excesses of Hollywood in the thirties and invoked the Marx Brothers
as characters playfully imagined interpreting a Chekhov drama. The defendants were found liable, and their
First Amendment claim was dismissed on the ground that the play was an imitative work.” Como diz a autora,
sem essa percepção aguda, “Publicity rights enable stars to “establish dynasties on the memory of fame.”
397 “I believe the answer to the question of justification turns primarily on whether, and to what extent,
the challenged use is transformative. The use must be productive and must employ the quoted matter in
a different manner or for a different purpose from the original. A quotation of copyrighted material that
merely repackages or republishes the original is unlikely to pass the test; in Justice Story’s words, it would
merely “supersede the objects” of the original. If, on the other hand, the secondary use adds value to the
original--if the quoted matter is used as raw material, transformed in the creation of new information,
new aesthetics, new insights and understandings-- this is the very type of activity that the fair use doctrine
intends to protect for the enrichment of society.” A noção de transformação criativa como uma forma es-
pecífica de limitação – forma essa que à luz do precedente do STJ não careceria de previsão normativa – se
encontra originalmente neste texto de LEVAL, Pierre N., Toward a Fair Use Standard 103 Harv. L. Rev. 1105
(1990), encontrado em http://docs.law.gwu.edu/facweb/claw/LevalFrUStd.htm, visitado em 7/12/2011.
Sobre a relevância de tal texto, vide KELLER, Bruce P., e TUSHNET, Rebecca, Even more parodic than the
real thing: parody lawsuits revisited, Trademark Reporter, Vol. 94 TMR 979. Dentro desse pressupostos, a
transformação criativa resulta direta e inexoravelmente da liberdade de criação constitucional.
398 A construção das marcas, inclusive pelo aspecto de autoria plúrima e difusa, tem muito em contato
com a das celebridades. “Having embarked on that endeavor, the originator of the symbol necessarily - and
justly - must give up some measure of control. The originator must understand that the mark or symbol or
image is no longer entirely its own, and that in some sense it also belongs to all those other minds who have
received and integrated it. This does not imply a total loss of control, however, only that the public’s right
to make use of the word or image must be considered in the balance as we decide what rights the owner is
entitled to assert.” KOZINSKI, Alex, Judge, United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, Trademarks
Unplugged, New York University Law Review, October 1993, 68 N.Y.U.L. Rev. 960. De outro lado, vide Jason
Bosland, The Culture of Trade Marks: An Alternative Cultural Theory Perspective, http://papers.ssrn.com/
sol3/papers.cfm?abstract_id=771184, vistado em 26/10/2206: “The underlying difficulty with shaping a
dilution right is balancing the competing interests in allowing the public to use a mark as an expressive
resource through criticism or commentary, while at the same time, preventing harm which is adverse to a
trade mark’s continued cultural use. To balance these interests, I propose that the expressive use of a mark
should be protected from dilution in the context of trade, that is, where a plaintiff ’s mark is being used in
the advertising context to market a defendant’s goods or services. This is to be compared with a commercial
situation where the defendant’s expressive use of a trade mark forms part of the goods on offer, such as in
the title or lyrics of a song, or where the trade mark is used in a poster or on a t-shirt.”
399 “In Rogers v. Grimaldi [875 F. 2d 994?2d Cir. N.Y. 1989], the Second Circuit adopted a balancing test for
trademark infringement in cases implicating artistic expression to accommodate these dual interests: “The
191
Note-se que nem sequer é um interesse comercial subsidiário que
impede o uso do valor de reconhecimento da celebridade na construção da
cultura e da sociedade, inclusive como expressão política.
Como já se enfatizou, a camiseta que inclui a facies de uma celebridade
apoiando ou rejeitando algum elemento da ideologia política ou social em re-
lação a qual a fama da estrela é notória não pode ser coarctada com base em
direitos autorais, ou em direito da personalidade. Os jornais são pagos, e nem
por isso se retira a eles a plenitude da livre informação, e uma camiseta, ou ban-
ner terá função igual enquanto discutindo fatos ou ideias400. Coisa diversa, sem
dúvida, é usar a mesma imagem para apoiar a venda de um produto ou serviço.
Tratamos aqui das limitações em abstrato. Não só se reconhece a
impropriedade da listagem corrente da Lei 9.610/98, objeto de proposta le-
gislativa em curso, como o fato, que sempre afirmamos, que as limitações da
propriedade intelectual são exercícios de ponderação. Cristalizam certas pro-
postas de equilíbrio de interesses de guarida constitucional, sem proscrever
outros401, observadas - no pertinente e enquanto compatíveis com a Consti-
tuição - as restrições oriundas dos tratados.
Denis Borges Barbosa

26. Das limitações relevantes do confronte de interesses


públicos
Muitas das limitações pertinentes ao objeto protegido pelo direito
autoral resultam do antagonismo entre interesses relativos às criações da
Lanham Act should be construed to apply to artistic works only where the public interest in avoiding con-
sumer confusion outweighs the public interest in free expression. . . . It insulates from restriction titles with
at least minimal artistic relevance that are ambiguous or only implicitly misleading but leaves vulnerable
to claims of deception titles that are explicitly misleading as to source or content, or that have no artistic
relevance at all.” MCDERMOTT, John, Permitted Use of Trademarks in the United States, 〈日本知財学会
誌) Vol.5 No.4 2009 : 23 43, encontrado em http://www.ipaj.org/english_journal/pdf/5-4_Mcdermott.pdf,
visitado em 3/12/2011.
400 GARON, Jon M., Beyond the First Amendment: Shaping the Contours of Commercial Speech in Vi-
deo Games, Virtual Worlds and Social Media (November 20, 2011). Available at SSRN: http://ssrn.com/
abstract=1962369. COTTER, Thomas F., DMITRIEVA, Irina Y., Integrating the Right of Publicity with First
Amendment and Copyright Preemption Analysis, http://works.bepress.com/thomas_cotter/5, visitado em
30/11/2011.
401 “Necessidade de interpretação sistemática e teleológica do enunciado normativo do art. 46 da Lei
n. 9610.98 a luz das limitações estabelecidas pela própria lei especial, assegurando a tutela de direitos
fundamentais e princípios constitucionais em colisão com os direitos do autor, como a intimidade, a vida
privada, a cultura, a educação e a religião. O âmbito efetivo de proteção do direito a propriedade autoral
(art. 5o, XXVII, da CF) surge somente apos a consideração das restrições e limitações a ele opostas, devendo
ser consideradas, como tais, as resultantes do rol exemplificativo extraído dos enunciados dos artigos 46,
47 e 48 da Lei 9.610.98, interpretadas e aplicadas de acordo com os direitos fundamentais. Utilização, como
critério para a identificação das restrições e limitações, da regra do teste dos três passos (‘three step test’),
disciplinada pela Convenção de Berna e pelo Acordo OMC.TRIPS.” Superior Tribunal de Justiça, Recurso Es-
pecial , No 964.404- ES (2007.0144450-5), Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,
Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, 15 de março de 2011.
192
propriedade intelectual
cultura (paródia e citação, por exemplo) e o do contraste entre o direito de
acesso da sociedade aos frutos da sua cultura e o interesse em reservar singu-
larmente os frutos morais e materiais da criação cultural. Assim, as limitações
são instrumentos de coerência e eficácia do próprio direito autoral como ins-
trumento da cultura.
Esses interesses, mas em pesos diversos, atuam no tocante a outros
exercícios de direitos individuais que fujam ao escopo autoral. Quando se as-
segura o direito de reproduzir o texto integral de notícia ou artigo informativo
em outro órgão de imprensa a lei autoral vai bem além de garantir o conteúdo
da informação veiculada, o que em tese bastaria para atender o direito funda-
mental ao acesso à história402; garante-se, pela sua relevância perante o direi-
to fundamental, ao acesso à informação a real expressão do informe original.
Aqui, não temos uma relação interna à coerência do sistema jurídico autoral,
mas sua permeação entre outros interesse constitucionais.
Por isso, a pertinência da lista de vulnerações necessárias aos interes-
ses das celebridades, mesmo sem apelo ao estatuto autoral, a que se refere
Sonia D’Elboux: acontecimentos da atualidade em que o constructo da cele-
bridade aceda; as aparições inconspícuas da celebridade, que sejam apenas
parte do cenário; o uso da imagem da celebridade para fins da administração
ou serviço da Justiça, Polícia ou segurança pública; ou quando, de resto, o uso
tiver a finalidade de atender ao interesse público, aos fins culturais, científicos
e didáticos.
Em cada um desses casos, não se veja uma legitimação absoluta, ou
à outrance. Trata-se sempre de um ajuste entre interesses constranstates,
em que o interesse privado não pode inexoravelmente preponderar, nem ser
eliminado irremissivelmente. Essa ponderação necessária encontra, às vezes,
voz constitucional explícita403; mas dela não carece.

27. Das limitações inerentes ao princípio da veracidade


O uso da persona, mesmo em atuações consentidas, não pode descu-
rar de interesse outros, a que se dedica a tutela pública. O uso é lícito, mesmo
se não estritamente exercício de direito de personalidade, mas de titularidade
402 Lei 9.610/98 Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária
ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do
nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de
discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;
403 Constituição espanhola, Art. 8.1. “No se reputarán, con carácter general, intromisiones ilegítimas . .
. cuando predomine un interés histórico, científico o cultural relevante.” “2. En particular, el derecho a la
propia imagen no impedirá: (a) Su captación, reproducción o publicación por qualquier medio, cuando se
trate de personas que ejerzan un cargo público o una profesión de notoriedad o proyección pública y la
imagen se capte durante un acto público o en lugares abiertos al público.”
193
da persona, quando haja empréstimo de verossimilhança, mas não sanção de
verdade inexistente.
Assim é porque, não obstante a persona ser resultado de uma fabula-
ção, que exatamente por isso adquire sedução, o emprego desse fascínio para
associar-se a venda de produtos e serviços não pode ser atraído para o plano
de um engano; a fama pode conotar por empréstimo a operação comercial,
mas não pode nunca romper a barreira da verossimilhança.
Como lembrou a maioria do STJ no caso Maitê Proença,
 a) a mensagem emitida pela campanha televisiva limitou-se tão-so-
mente a estimular, mediante o uso da publicidade protagonizada
pela atriz, o público a retomar sua crença no produto;
 b) no sentido prestado pela atriz, leiga quanto ao produto e todos
os riscos de fabricação, condições de assegurar ao público, com
rigor técnico e científico, as qualidades terapêuticas e segurança
nos métodos de fabricação do medicamento; e
Denis Borges Barbosa

 c) como resultado dos itens ‘a’ e ‘b’: a campanha testemunhal não
assegura ao público as qualidades do produto, apenas estimula-o
a confiar nos novos parâmetros de qualidade.
Na verdade, o limite aqui é manter o estranhamento404, a consciên-
cia do público que se tem um enredo fabular, um empréstimo conotativo de
valores, e não um endosso denotativo, ainda que isso se dê num fio sensível
de faca. Como se nota quanto a este dever da arte, e de todo constructo405:
404 “A arte tem como procedimento o estranhamento das obras e da forma de acesso difícil que aumenta
a dificuldade e o tempo da percepção, visto que, em arte, o processo perceptivo é um fim em si mesmo
e deve ser prolongado”. Chklovski, Victor. “A arte como procedimento”. Tradução de Ana Maria Ribeiro
Filipouski et al. In: Toledo, Dionísio (org). Teoria da Literatura: Formalistas russos. 1.ed. Porto Alegre: Globo,
1973, p. 39-56. “Um juízo do tipo “Deus é bom”, expresso em linguagem verbal, é reelaborado em poesia,
através de imagens, rima, efeitos, etc., de tal forma que a proposição universal se resuma em particular
- Deus é bom neste poema. Desta forma, a visão de mundo (proposição universal) fica reduzida ao texto
poético e sua ação na linguagem específica (verbal) se torna evidente.” Danusia Bárbara e BARBOSA, Denis
Borges. In Revista Littera Rio, Ed. Grife, 1972, no. 6, setembro/ dezembro, p. 38. No sentido mais próximo
ao que se fala neste contexto: Los formalistas rusos, especialmente Víktor Shklovski usaron la palabra ots-
tranenie (отстранение) para referirse a aquellos modos de proceder en el lenguaje literario que tiene como
fin el de dar una nueva perspectiva de la habitual visión de la realidad al presentarla en contextos diversos
a los acostumbrados o al representarla de un modo en el cual se nota que la representación es una ficción
-por ejemplo mediante la exageración, el grotesco, la parodia, el absurdo etc.-. Esto generalmente puede
ser experimentado en tres niveles: el lingüístico (por ejemplo al recurrir a palabras o formas estilísticas
inusuales, anormales); el nivel de los géneros literarios ya definidos pero insertos en esquemas insólitos y
el nivel de la percepción de la realidad creando situaciones o relaciones imprevistas.
405 MIRANDA, Álvaro Guilherme, A visão pessimista da literatura brasileira do século XIX sobre o Direito,
Resenha sobre o ensaio “Direito e Literatura”, de Denis Borges Barbosa, in Da Tecnologia à Cultura: Ensaios
e Estudos de Propriedade Intelectual Lumen Juris (2011), Tópicos Especiais em Propriedade Intelectual:
Semiologia e Propriedade Intelectual (INPI / PPED)
194
propriedade intelectual
Denis Barbosa observa que a questão da verossimilhança e da retó-
rica de sistemas desempenha papel ordenador do Direito: “A coerência do
sistema jurídico corresponde à ordem natural e também à ordem da ciência.
(...) há uma verossimilhança de autoridade científica, resultante do poder in-
trínseco da logicidade e da correspondência.” (2011, pp: 726-727). O sistema
da construção literária também tem sua ordenação, mas a diferença é que o
Direito, segundo ele, se vende como fazendo parte da ordem “imutável e se-
rena da Natureza, enquanto que a eficácia da obra literária ficcional se baseia
na consciência do leitor de que o universo que se lhe apresenta é (...) artificial,
obra do homem – no mecanismo mágico do estranhamento.” (2011: 727).
A questão, porém, desse estranhamento é que a literatura ficcional
pode nos fazer compreender de forma mais aguda as profundezas da natureza
humana, se é que existe uma natureza humana, do que um tratado científico
de neurociência ou psicanálise. Denis Barbosa observa que:
como notou Lukacs, a ideologia burguesa refletida nos romances de
Balzac teria uma pungência e clareza mais veemente do que todo o corpo crí-
tico da ciência social contemporânea a Eugene Grandet. Exatamente como
Jhering, Marx sentiu que a clareza da visão literária ultrapassaria de muito a
crítica científica de então. Claramente se evoca aqui a noção de estranhamento
(...). Para essa perspectiva marxista, o Direito seria outro dos discursos da ideo-
logia, caracterizado por uma ilusão de que a instância do jurídico predominaria
sobre outras práticas sociais. (2011, pp: 730-731).
Se determinadas situações da arte podem requerer o caráter de ve-
rossimilhança, esta pode ser pensada como elemento convincente, mas sem-
pre deixando claro tratar-se da não realidade.
É nesse sentido que se deve entender os critérios do CONAR ou de
outras fontes em face dos deveres das celebridades.

28. Da responsabilidade contida no tocante ao direito de


marcas
Curiosamente, pode-se notar que a possível vinculação da celebrida-
de por seu endosso, no campo do direito de personalidade ou no campo au-
toral, talvez não encontrasse igual agravo, se se tratasse a questão no campo
das marcas. Em análise sobre a questão406, tivemos ocasião de notar quanto a
julgado da Corte Européia:
406 BARBOSA, Denis Borges, Pode uma pessoa “vender” seu nome para uma marca da qual não exerce
controle de qualidade? (2008), Encontrado em http://denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/
pode_uma_pessoa.pdf
195
16.15 Dúvidas têm sido suscitadas perante a ECJ concernentes a ces-
são de marcas que consistem em nomes de indivíduos famosos. Em particu-
lar se quando tal cessão ocorre, mas o indivíduo não permanece envolvido
com o negócio, se resultaria em engano ao consumidor. Elizabeth Emanuel v
Continental Shelf (Elizabeth Florence Emanuel v Continental Shelf 128 Case
C-259/04, AG Opinion para 63) relativamente a concessão, por Elizabeth Ema-
nuel, da marca portando seu nome junto com o logo formado por dois ‘E’s de
costas para o outro. Após a titularidade da marca ter mudado diversas vezes, a
Sra. Emanuel fez uma oposição quanto à uma mudança na marca registrada e
pediu sua revogação baseando-se que deixar a marca permanecer registrada
seria como enganar o público nos termos do Artigo 3 (1) g da Diretiva. Foi ar-
gumentado, que uma significativa proporção do público relevante acreditaria
que o uso da marca indicaria que o indivíduo permanecia envolvido com o
design ou criação dos produtos em relação com os quais a marca era usada,
e ao usar assim a marca em um negócio em que o indivíduo não estivesse
envolvido seria enganoso. A ECJ não aceitou o argumento. A corte decidiu
que a marca que corresponde ao nome da designer e primeira produtora dos
Denis Borges Barbosa

produtos não, por tal razão, passível de revogação com base em que levaria o
público a se enganar. Isto se dava particularmente onde o fundo de comércio
associado com a marca tenha sido cedido juntamente com o negócio que pro-
duz os bens relacionados à marca.
Portanto uma marca consistindo em um nome famoso pode ser ce-
dida mesmo se o indivíduo não permaneça posteriormente associado com o
negócio. Ainda que isso pareça um estranho resultado sob a ótica de que um
consumidor pode confundir-se achando que o designer em questão não tenha
de fato participado do design dos produtos, é indubitavelmente um reflexo do
que ocorre na vida comercial. Até que ponto, por exemplo, a Naomi Campbell
participa do desenvolvimento dos perfumes vendidos sob seu nome? Como
o Procurador Geral argumentou: ‘o usuário tem ciência da possibilidade de
divergências entre nomes pessoais usados como marcas e a participação de
tais pessoas na produção dos bens ou serviços por ele abrangidos: Todos os
consumidores sabem que um designer de moda pode transferir seu negócio
a qualquer tempo’407

407 MACQUEEN, Hector & Charlotte Waelde & Graeme Laurie. Contemporary Intellectual Property: Law
and Policy. OXFORD: Oxford University Press, 2008, p. 669-670. 16.15 Questions have been raised before

196
propriedade intelectual
Ou seja, não há lesão ao consumidor quando o titular da fama deixa
a sociedade; na economia presente a flutuação dos nomes e dos signos é es-
perada e faz parte da sensibilidade do consumidor. Ninguém espera que os
produtos da “Xuxa” sejam manufaturados pela artista pessoalmente, como
não espera que a Mônica – que endossa miríades de produtos – incorpore-se
em pessoa física e exerça controle de especificações408.
Num outro plano, mas igualmente relevante, vale mencionar a decisão
da Suprema Corte dos Estados Unidos ao repelir o uso da marca para afirmar
a subsistência de direitos exclusivos em obras autorais de domínio público409.

the ECJ concerning the assignation of trade marks which consist of the names of well-known individuals. In
particular as to whether where such an assignation occurs, but the individual does not remain involved with
the business, whether consumer deception would result. Elizabeth Emanuel v Continental Shelf (Elizabeth
Florence Emanuel v Continental Shelf 128 Case C-259/04, AG Opinion para 63) concerned the assignation,
by Elizabeth Emanuel, of the trade mark bearing her name along with a crest made up of two ‘E’s back
to back. After ownership of the trade mark had changed hands several times, Ms Emanuel opposed a
proposed amendment to the registered trade mark and applied for revocation of the existing mark on the
grounds that to let the mark stay on the register would be to deceive the public within the meaning of Arti-
cle 3 (1) (g) of the Directive. It was argued ,that a significant proportion of the relevant public would believe
that use of the trade mark indicated that the individual remained involved with the design or creation of the
goods in relation to which the marks was used, and so using the name mark in a business in which the indi-
vidual was not concerned would be deceptive. The ECJ did not accept this argument. The court ruled that a
trade mark which corresponds to the name of the designer and first manufacturer of the goods is not, for
that reason, liable to revocation on the ground that that mark would mislead the public. This was particu-
larly so where the goodwill associated with that mark has been assigned together with the business making
the goods to which the mark relates. Thus a trade mark consisting of a well-known name can be assigned
even if the individual does not thereafter remain associated with the business. Although this might seem
an odd result if the view is taken that a consumer might be confused that the named individual designer
had not actually had a hand in designing the goods, it undoubtedly reflects what happens in commercial
life. To what extent, for example, does Naomi Campbell have a hand in developing perfumes sold under her
name? As the AG had argued: ‘a user is aware of the possibility of divergences between personal names
used as trade marks and the participation of those persons in the production of the goods or the provision
of the services which they cover: All consumers know that a fashion designer is entitled to transfer his or
her business at any time’.
408 Não assim na economia de há 90 anos atrás: MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 99-100.” Se na marca há nome de pessoa, que figura como o titular,
não pode ser transferida, porque passaria a conter indicação inverídica (certo, o Tribunal de Justiça de São
Paulo, 1.° de julho de 1918, R . dos T., 26, 370, cf. 27, 19)”.
409 “The consumer who buys a branded product does not automatically assume that the brand-name
company is the same entity that came up with the idea for the product, or designed the product – and
typically does not care whether it is. The words of the Lanham Act should not be stretched to cover matters
that are typically of no consequence to purchasers.” (...) The problem with this argument according special
treatment to communicative products is that it causes the Lanham Act to conflict with the law of copyright,
which addresses that subject specifically.” Dastar Corp. v. Twentieth Century Fox Film Corp., 539 U.S. 23,
34 (2003). Vide, igualmente, a nota que se faz neste estudo sobre o caso relativa ao filme de Fellini, Fred e
Ginger.

197
propriedade intelectual
OS EFEITOS DA CUMULAÇÃO DE DIREITOS DE
PROPRIEDADE INTELECTUAL – Direitos autorais x Marcas

Patricia Carvalho da Rocha Porto410

1. Introdução
A cumulação de direitos de propriedade intelectual é uma questão
comum a todos os institutos protegidos por estes direitos. Esse fenômeno e
seus possíveis problemas têm sido objeto grandes discussões e controvérsias
em diversos países, inclusive, no Brasil. Por essa razão, o tema tem sido de-
batido de forma intensa no âmbito internacional. A ação judicial envolvendo
o maior valor já discutido no Brasil sobre o pagamento indevido de royalties
pela exploração de direitos de propriedade intelectual tem como objeto cen-
tral o questionamento da cumulação de direitos de propriedade intelectual e
seus efeitos deletérios para os interesses nacionais e para o desenvolvimento
econômico e tecnológico do país411. Entretanto, em que pese a relevância,
controvérsia e a urgência do tema, as quais dão causa à ações judiciais e a es-
tudos em busca da solução do problema. Ainda não se chegou a um consenso
acerca da abordagem adequada da questão, nem sobre os critérios apropria-
dos para a resolução ou compatibilização dos problemas originados por essas
cumulações disfuncionais.
Em vista do acima exposto, o objeto do presente artigo é realizar uma
análise introdutória sobre o fenômeno da cumulação de direitos de proprieda-
de intelectual, particularmente no tocante aos diretos de marcas cumulados
com os direitos autorais. Iniciaremos a nossa análise examinando de forma
introdutória o fenômeno da cumulação de direitos de propriedade intelectual.
Nessa etapa, definiremos o tema, discutiremos sobre a sua relevância, exami-
naremos as razões apresentadas pela doutrina para a evolução desse fenô-
meno e os motivos que contribuíram para que essa questão, em alguns casos,
se tornasse uma ameaça ao equilíbrio do sistema de propriedade intelectual.
Posteriormente, concentraremos nosso estudo sobre a cumulação de direitos
de marcas e direitos autorais. Examinaremos alguns tipos de cumulação entre

410 Doutoranda em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (UFRJ), Mestre em Propriedade Inte-
lectual e Inovação (INPI) e Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-RJ)
411 A ação encontra-se em curso no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº 001/1.09.0106915-
2 /Autores: Sindicato Rural de Passo Fundo-RS e outros /Réus: Monsanto do Brasil Ltda. e Monsanto Techo-
nology LLC /Natureza: Ação Coletiva.
199
esses dois institutos e em cada seção pertinente discutiremos ações judiciais
relativas ao tipo de cumulação comentada. A partir da matéria discutida nos
casos judiciais, tentaremos levantar elementos e questões a serem objetos de
estudos posteriores, com o objetivo de auxiliem no melhor entendimento das
questões que permeiam o fenômeno da cumulação de direitos de PI.

2. Cumulação de Direitos de Propriedade Intelectual - Dpi

2.1. Definição
Derclaye & Leistner (2011, p. 3) definem a cumulação de direitos
como “the situation where two or more IPRs apply to the same physical object,
where they have partially or fully the same legal subject matter”. Tomkowikz
(2012, p. 5-7) divide o tema em duas dimensões para melhor defini-lo. Para
esse autor, existem dois tipos de cumulação de direitos: (a) overlaps in fact,
que segundo o autor são as tensões entre direitos de propriedade intelectual
que protegem diferentes bens intelectuais inseridos ou fixados em um bem
material e; (b) overlaps in Law, que em sua concepção são as cumulações de
Patricia Carvalho da Rocha Porto

diferentes DPI sobre um mesmo bem imaterial, devido ao fato deste exercer
duas funções distintas protegíveis por diferentes direitos.

200
propriedade intelectual
Em estudo anterior sobre a questão assim ilustramos a incidência de
vários bens intelectuais distintamente funcionalizados em um bem corpóreo
e a incidência da dupla ou múltipla funcionalidade de um mesmo bem intelec-
tual que coexiste em um bem corpóreo:
“Sobre um mesmo corpus mechanicum pode existir um ou vários corpus
mysticum, ou seja, sobre um mesmo bem material podem coexistir um ou
vários bens incorpóreos.
Cada corpus mysticum coexistente em um mesmo suporte pode ser412 tute-
lado por um direito de propriedade intelectual que, de acordo com a natu-
reza daquele direito, gera uma forma determinada de proteção exclusiva.
Assim, sobre um mesmo corpus mechanicum pode existir a cumulação de
diversos direitos de exclusivas oriundos da proteção do corpus mysticuns
sobre ele existente.
Por exemplo, uma garrafa de refrigerante (corpus mechanicum) pode ter
uma criação plástica e ornamental (corpus mysticum) que pode ser pro-
tegida por desenho industrial; pode ter um sinal formado por um nome
estilizado (corpus mysticum) aposto em sua garrafa, distinguindo a garrafa
e seu conteúdo de produtos idênticos ou similares, que pode ser objeto de
proteção marcária; e a garrafa pode ser feita de um material cuja compo-
sição é uma invenção (corpus mysticum) que pode ser objeto de proteção
patentária.
O corpus mysticum, normalmente exerce uma única função sobre o bem
corpóreo e por conseqüência é tutelado por um único direito de proprie-
dade intelectual, que, de acordo com a natureza daquele direito, gera uma
forma determinada de proteção exclusiva.413
Entretanto, há situações em um mesmo corpus mysticum existente sobre
um corpus mechanicum exerce duas ou mais funções distintas, ou seja, ele
passa a ser dois objetos de PI distintos, a natureza intrínseca do bem de
divide em duas.414
Por exemplo, um bem é originalmente criado para ser era uma obra de
desenho tutelado pelo direito autoral e passa a ser também uma marca,
sem deixar de ser uma obra artística.

412 [Nota do original] “Outro fundamento de grande importância do direito de participação reside na di-
ferença entre “corpus mysticum” e “corpus mechanicum”. O primeiro elemento é o espiritual, imaterial, in-
corpóreo. O segundo, é o suporte material, o mundo físico onde a obra se exterioriza. ”MORAIS, Rodrigo. O
Direito Autoral do Artista plástico na revenda de suas obras. Artigo publicado no Jornal de Cultura da Bahia,
http://www.rodrigomoraes.adv.br/artigos.php?cod_pub=32&pagina=1. Acesso em 1 de fevereiro de 2009.
413 [Nota do original] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual, v. III. Rio de
Janeiro, Lumens Juris, 2010: Em primeiro lugar, não é todo bem incorpóreo resultante da produção intelec-
tual. Há alguns desses bens que não são protegidos por nenhum sistema de exclusiva. Alguns desses bens
são protegidos por algum desses sistemas, sob certas condições. Assim, esses bens incorpóreos são susce-
tíveis de proteção jurídica mesmo quando não o são (ou ainda não são) pelas exclusivas concorrenciais
414 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual, v. I. Rio de Janeiro, Lumens Juris,
2010, p. 87.
201
O Mickey Mouse sempre foi conhecido por ser o personagem de um dese-
nho dos Estúdios Disney, com o passar do tempo, essa empresa investiu na
imagem do personagem como símbolo da Disney e a imagem do ratinho
simpático passou à identificar os produtos e serviços do conglomerado
Disney, tornando-se marca dessa empresa.
Verifica-se na situação acima, que em um primeiro momento o desenho
do ratinho simpático (corpus mysticum) era uma expressão artística, este
ratinho estava funcionalizado como um desenho que representava um
personagem em uma obra artística, função esta tutelada pelo regime de
direito autoral. Com essa tutela, incidia sobre o desenho uma exclusiva
cuja característica é uma proteção ampla, mas limitada no tempo.
Com o passar dos anos, o mesmo desenho do ratinho simpático passou à
ser associado à imagem da Disney e passou a identificar produtos e servi-
ços desse conglomerado empresarial. Com isso, além da função de obra
protegida pelo direito autoral, ele passou a funcionar como signo distinti-
vo e, por essa razão, quando estava cumprindo esse papel de sinal distin-
tivo, era tutelado pelo regime jurídico marcário e passou a ter proteção,
naquelas circunstâncias, por tempo indeterminado, dentro das classes que
protegem as atividades exercidas pelas indústrias Disney.
Patricia Carvalho da Rocha Porto

Isso ocorre em situações especiais, quando um mesmo bem incorpóreo


tem a capacidade de exercer duas ou mais funções distintas. Cada função
é tutelada por um regime jurídico diferente.
Na hipótese de um mesmo bem incorpóreo exercer duas funções tutela-
das por regimes jurídico distintos, podemos ter uma cumulação de direitos
(Porto, 2010, p. 4 e 5).”

2.2. Relevância do tema
A cumulação de direitos de propriedade intelectual não é uma ques-
tão nova. No entanto, o debate acerca do tema e de seus efeitos tornou-se ur-
gente. Tal se dá, em grande parte, por causa das mudanças ocorridas no siste-
ma de propriedade intelectual nas últimas décadas. O aumento da relevância
financeira dos direitos de propriedade intelectual tem estimulado a criação de
novos tipos de DPI, bem como incentivado ampliação do escopo de proteção
de DPIs já existentes. Essa ampliação de proteção gerou mais oportunidades
para a ocorrência de cumulações de DPI disfuncionais. Essas disfunções afe-
tam de forma deletéria o arranjo cuidadosamente desenhado de um ou mais
DPI, a ponto de um direito anular a eficácia e os limites do outro. As patologias
advindas de uma cumulação disfuncional podem trazer inúmeras consequên-
cias negativas para a sociedade, entre elas, o aumento do tempo no qual esta
é privada do livre acesso ao um bem intelectual.
Os sérios problemas gerados pelas cumulações disfuncionais já são
objeto de importantes litígios judiciais no país. Para melhor ilustrarmos alguns
202
propriedade intelectual
dos danos possíveis de cumulações patológicas, expomos abaixo os fragmen-
tos de recentes decisões nacionais que ilustram de forma clara e objetiva a
relevância do tema e a sua atualidade:
“. Forçoso é reconhecer que, em tais circunstâncias, impedir o plantio, ou
condicioná-lo a que os orizicultores assinem contratos de pagamentos de
royalties à cessionária, é causar dano irreparável ou de difícil reparação
tanto à economia do Estado do RS, por ser um de seus principais pilares,
quanto à cadeia produtiva, e bem assim à população em geral que ne-
cessita do produto para se alimentar.
(...)
A meu ver, porém, o que aqui importa é estabelecer a respeito da dupla
proteção e respectivos atos que se entendem legais para o fim de evitar
que os recorrentes pratiquem aqueles antes referidos como direito seu
decorrente que são de seu direito de propriedade atento ao fim social a
que se destina também.
Não se pode admitir a prefalada dupla proteção modo a autorizar o proce-
der que se pretende com este recurso obstaculizar. Até porque pela Lei da
Propriedade Industrial, tendo por objeto tecnologia, no caso, denominada
Clearfield e pela Lei de Cultivares, tendo por objeto variedade de arroz,
no caso, denominada IRGA 422CL (mutagenia) porque daí decorre que,
em princípio, também não se pode admitir dupla cobrança de royalties
pelo detentor dos direitos da Carta-Patente pelo detentor do Certificado
de Proteção de Cultivar, isso porque os cultivares incorporam a tecnolo-
gia, como é sabido, e não sendo outro o motivo por que o art. 2º da Lei
9.456/97, estabelece que o Certificado é a “única forma de proteção de
cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de
suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no País.” TJRS,
AI Nº 70021344197, Primeira Câmara Cível, Des. Irineu Marian, 12 de de-
zembro de 2007. (grifo nosso)
“... Saliento, outrossim, que as questões debatidas na presente deman-
da transcendem os interesses meramente individuais, uma vez que es-
tamos tratando de bem imprescindível para própria existência humana,
o ALIMENTO, cuja necessidade é urgente e permanente. (grifo nosso)
...
... imprescindível a análise histórica das duas legislações ora em comento
(Lei de Proteção de Cultivares nº 9.456/97 e Lei de Propriedade Industrial
nº 9.279/96), especialmente sobre a possibilidade ou não da dupla prote-
ção, passando pela UPOV de 1978 (opção brasileira), o modelo TRIPS, bem
como pela possibilidade de duplicidade (ou triplicidade) de cobrança pelas
requeridas consistentes em cobrar royalties, taxa tecnológica ou indeniza-
ção por ocasião do licenciamento da tecnologia Roundup Ready (RR) para
que terceiros desenvolvam cultivares de soja com a tecnologia, no forne-
cimento das sementes geneticamente modificadas (tecnologia RR) e, após

203
ao plantio, cultivo e colheita, nos royalties (2%) sobre o total da produção;
e, por fim, a análise individualizada das patentes trazidas pelas requeridas
(fls. 605/1002), inclusive sobre a eventual inconstitucionalidade ou não
dos arts. 230 231 da Lei de Patentes (denominadas patentes pipeline) por
força da ADIN Nº 4234-3/600. (grifo nosso)
...
O Brasil, mesmo pinçando aspectos das duas Atas (78 e 91), optou pela
revisão de 1978 que proíbe explicitamente a dupla proteção dos direitos
de exclusiva. No entanto, existem possibilidades de proteção por patentes
de invenção em aberto no quadro jurídico da Lei de 9.279/96, por força
do artigo 18, inciso III, para organismos geneticamente modificados. CO-
MARCA DE PORTO ALEGRE – 15ª VARA CÍVEL – 1º JUIZADO / Processo nº
001/1.09.0106915-2 /Autores: Sindicato Rural de Passo Fundo-RS e outros
/Réus: Monsanto do Brasil Ltda. e Monsanto Techonology LLC /Natureza:
Ação Coletiva /Data da Sentença: 04.04.2012 /Juiz Prolator: GIOVANNI
CONTI” (Grifo nossos.).

A doutrina igualmente se mostra sensível ao tema e enumera os da-


nos que a cumulação deletéria pode causar para a sociedade e para o sistema
Patricia Carvalho da Rocha Porto

de PI. Dentre eles podemos citar a mitigação do domínio público, a extensão


indevida de diretos exclusivos sobre bens em detrimento dos interesses so-
ciais, do direito à livre concorrência, da exaustão de direitos de propriedade
intelectual415, o desestímulo na criação de mais ativos intelectuais devido ao
alto custo para a obtenção de direitos que já deveriam estar em domínio pú-
blico, etc:
“Overlapping copyright and trademark protection for these two
characters not only means that their creators receive all the benefits
flowing from both the copyright regime and the trademark system,
but it also means that many of the benefits that would otherwise
flow to the public—to consumers, competitors, later creators, and
the public domain are withheld (Viva Moffat 2004)”.

“regardless of whether creative works can theoretically fit under
both sets of copyright and trademark protection, extending trade-
415 Irene Calboli (2014b), da universidade de Singapura, dedica-se neste momento a ao estudo dos impac-
tos da cumulação de direitos de PI nos princípios da exaustão de direitos e importação paralela. The Impact
of Overlapping Rights on Intellectual Property Exhaustion and Free Movement of Products: A Comparative
Analysis of the EU (EEA) and NAFTA: This project explores the impact that overlapping intellectual property
rights on the same products (or on separate components of the same products) may have on the applica-
tion of the principle of intellectual property exhaustion to parallel imports across, respectively, member
countries of the EU (EEA) and NAFTA. In particular, this project criticizes how the exercise of overlapping
intellectual property rights can be used by intellectual property owners in order to restrict free trade in
free trade areas, both in brick-and-mortar world as well as online trade, especially with respect to physical
products that are purchased online in one country and shipped and delivered in another country of the
same free trade area.
204
propriedade intelectual
mark protection to creative works may inevitably result in breach-
ing the societal bargain upon which copyright law and policies were
originally built (Calboli, 2014a)”.
“This expansion has erased the clear delineation between patent,
copyright, and trademark law. It has also led to overprotection of
intellectual property in the form of overlaps that allow multiple bod-
ies of intellectual property law to simultaneously protect the same
subject matter. Such overlapping protection is problematic because
it interferes with the carefully developed doctrines that have evolved
over time to balance the private property rights in intellectual cre-
ations against public access to such creations. These overlaps, argu-
ably, are the unintended consequence of the fragmented nature of
the field of intellectual property law. Few attorneys practice across
the broad spectrum of intellectual (Beckerman-Rodau, 2010)”
Constatamos pelo exposto acima que a cumulação de DPI, quando não
compatibilizada com as regras e as finalidades do sistema propriedade intelec-
tual e com o interesse público, além de afetar os direitos dos sujeitos envolvidos
diretamente no conflito, atinge direitos e interesses fundamentais de terceiros,
inclusive, enquanto coletividade, relacionados ao uso e ao acesso do bem inte-
lectual protegido. A cumulação de direitos se não ponderadas e cotejadas com
os limites e as funções de cada instituto, muitas vezes limitam o acesso a um
bem que já deveria estar livre para a sociedade, em virtude da expiração de um
regime de exclusividade, pela existência de outro regime de exclusividade ainda
em vigor, que coexiste neste bem devido a múltiplas proteções. Na prática, veri-
fica-se a pertinência e a conveniência de estudos mais aprofundados acerca dos
impactos das cumulações de DPI para o equilíbrio do sistema de proteção de
propriedade intelectual e para a preservação e proteção dos interesses sociais e
do desenvolvimento econômico e tecnológico do país.

2.3. Cumulação DPI: um fenômeno sempre deletério ao sistema de pro-


priedade intelectual ou nem sempre?
Ao pesquisarmos sobre a cumulação de direitos na literatura corren-
te, encontramos autores que entendem que esta é danosa ao equilíbrio do
sistema de PI, e, por essa razão, deve ser sempre evitada:
“Given the likelihood that intellectual property rights will continue to ex-
pand, those rights are likely to continue to overlap, and to do so in more ins-
tances and in more significant ways unless a more systematic approach is
taken and more thought is given to the federal intellectual property system
as a whole. Because overlapping protection presents a variety of challen-
ges to the intellectual property system, disrupts the intellectual property
balance, and impoverishes the public domain, we should work to eliminate
205
the overlaps that do exist and, perhaps more importantly and more realisti-
cally, attempt to avoid creating overlaps in the future (Moffat, 2004).

Já outros autores, com os quais concordamos, entendem que o fenô-


meno não é por si só um problema que sempre terá que ser evitado ou resol-
vido (Kur, 2009). Para esses autores, tal fenômeno é consequência da própria
natureza intangível do bem intelectual que permite a existência de múltiplas
funções a serem exercidas por um mesmo bem intangível. O que deve ser
analisado e compatibilizado são os casos de desequilíbrio no sistema de pro-
priedade intelectual e de danos ao interesse público, causados por disfunções
apresentadas em alguns casos de cumulação de DPI. Algumas vezes a multipli-
cidade de funções exercidas por um bem desequilibra o sistema. Em outras, os
titulares de direitos intelectuais aproveitam-se da natureza das características
do bem intelectual e do pouco conhecimento da sociedade, sobre as particu-
laridades e funções de cada bem protegido, bem como, acerca das estruturas
e limite de cada instituto de PI, para burlar os limites do sistema, prolongando
seus direitos de exclusiva indevidamente (Kur, 2009, 159).
Annette Kur, em notável análise de padrões que tornam as cumula-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

ções de direitos de propriedade intelectual - DPI deletérias estabeleceu os


seguintes critérios:
O fenômeno da sobreposição não será deletério se:
a) os requisitos de proteção ao abrigo de regimes legais são formulados e
aplicados de modo a justificar plenamente a proteção concedida; e
b) cada um dos direitos aplicados é adequado e equilibrado em si mesmo,
em especial, no que se refere à relação entre os requisitos, o alcance geral
de proteção e suas limitações. (Kur, 2009, p. 159)

Portanto, para Kur (2009) fora das hipóteses acima, as cumulações de


DPI serão deletérias e devem ser compatibilizadas.

2.4. O fenômeno e a causa da sua evolução para um problema em potencial


Pouillet(1903, nº 64), já discutia a questão com relação aos desenhos
industriais, marcas, patentes e os direitos autorais. Mesmo que as primeiras
discussões acerca da cumulação de direitos de propriedade intelectual não
sejam recentes, estudos indicam (Derclaye & Leistner, 2011; Moffat, 2004)
que seus efeitos deletérios ocorriam com menor frequência e gravidade. Uma
das principais explicações para tal fato se encontra no restrito número de DPI
criados inicialmente para tutelar de forma específica os bens intelectuais. No
início da criação de um arcabouço legislativo para a proteção dos direitos ima-
teriais não existiam tantos institutos de propriedade intelectual como hoje
206
propriedade intelectual
existem e, por esta razão, os limites entre eles não eram cruzados com tanta
frequência.
Inicialmente, havia a regulamentação e/ou proteção dos institutos
das patentes, das marcas, dos direitos autorais e dos desenhos industriais.
Hoje, existem novos institutos de propriedade intelectual como o de softwa-
re, nome de domínio, topografia de circuitos integrados, entre outros. Esses
institutos têm funções diversas e – em seus primórdios – pouca intercessão
se verificava entre esses direitos. A doutrina acerca do assunto se preocupava
em justamente definir o tema e delimitar o seu alcance, de forma a impedir a
transposição dos limites dessa proteção para ser uma exceção, não uma regra.
Nas últimas três décadas o cenário mudou radicalmente. Desde os
anos 80 verifica-se a constante criação de novas formas de proteção para o
bem intelectual, bem como a ampliação do escopo de proteção dos direitos
já existentes. Tais práticas dificultam cada vez mais o livre acesso ao conhe-
cimento (Coriat& Orsi, 2006, p. 4 e ss). Duas são as razões principais da mo-
dificação do sistema de PI e seus objetivos, as quais também são as causas
do aumento de casos de cumulação de direitos de DPI e de suas disfunções.
A primeira e, para a doutrina (Moffat, 2004, p. 1496; Dinwoodie, 2001, p. 9),
a de menor influência, é a necessidade de adequação do sistema de PI às
mudanças geradas pelo desenvolvimento econômico e tecnológico mundial.
A segunda, e essa sim, a razão maior, tem se dado pela crescente valorização
econômica dos bens intelectuais, alçados a bens de interesse fundamental
para o comércio mundial. Os interesses políticos e financeiros de titulares e
de grupos que se beneficiam com os direitos exclusivos de exploração desses
bens416 motivaram buscas desmedidas pela expansão do escopo de proteção
exclusiva do bem intelectual, assim como pela perpetuação de seu monopó-
lio. Verdadeiras cruzadas foram planejadas e executadas, segundo Dinwoodie
(2001, p. 9-10), por uma “advocacia oportunista” em detrimento dos interes-
ses sociais e da mitigação dos princípios que criaram e delimitaram cada ins-
tituto de propriedade intelectual.417 Importante fazermos uma breve retros-
pectiva histórica da mudança comentada para melhor contextualizar o tema.
416 Análises dos motivos e razões por trás das mudanças no cenário da propriedade intelectual, bem
como informações fático-históricas de como tais mudanças foram articuladas para convencer Governo,
Legislativo, Judiciário e Órgãos internacionais a apoiar e viabilizar o recrudecimento desproporcional dos
direitos de propriedade intelectual podem ser obtidas em Sell (2003), Coriat & Orsi (2006), Coriat, Orsi, &
D`Almeida (2007) e Maskus & Reichman (2005),
417 Crítica também endereçada por Anner Kur (2001, p.1): Furthermore, there is a human factor adding to
the structural changes addressed in the previous paragraph. Rising awareness of the opportunities offered
by IP rights and growing sophistication among IP lawyers – plus, not to forget, the sometimes rather forceful
lobbying activities of interest groups – have created a climate where the possibilities inherent in each type
of IP right are put the to test and pushed to their limits with more confidence and liberty than previously .
If copyright is too weak – why not try trademark law? (and vice versa).
207
Internacionalmente, a Convenção de Paris, criada em 1884 - assim
como a Convenção de Berna, no campo dos direitos autorais - permitia as
assimetrias entre os regimes de propriedade intelectual dos países membros
e regulava um número limitado de direitos industriais. Entretanto, em meados
do século XX, as funções, os limites e o alcance patrimonial desses direitos
expandiram418. Com o advento do Acordo TRIPS, os países passaram a ser obri-
gados a garantir um patamar mínimo de tutela para os direitos de propriedade
intelectual e novas possibilidades de salvaguarda para novos institutos foram
estabelecidas por esse tratado. Com isso, as questões a serem solucionadas
tornaram-se mais complexas419. Houve ainda um deslocamento da proprieda-
de intelectual de uma gestão técnica liderada pela Organização da Proprieda-
de Intelectual (OMPI), para uma gestão comercial e econômica, dirigida pela
Organização Mundial do Comércio (OMC)420. Essa mudança estratégica vincu-
lou a adesão de TRIPS por todos os países que quisessem participar do trata-
do geral de comércio internacional. A propriedade intelectual foi posicionada,
então, como uma questão de estratégia político-econômica mundial.
Portanto, percebemos que o movimento expansionista é causa cen-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

tral para aumento dos casos de cumulação de DPI. Verificamos ainda que este
aumento que está acontecendo de forma não planejada. A consequência é
o crescimento de casos de cumulações disfuncionais, com efeitos deletérios
para o sistema de PI e para toda a sociedade moderna.421
418 Com o recrudescimento dos direitos de propriedade intelectual, com o aumento de objetos protegi-
dos pelo mesmo direito, com a criação de novos institutos de propriedade intelectual, com os escopos ini-
ciais de proteção alargados, com legislações que geravam interpretações errôneas, e com a livre utilização
do instituto da concorrência desleal como argumento comum para a extensão da proteção exclusiva, novos
problemas envolvendo sobreposição de direitos entre institutos de propriedade intelectual apareceram.
DERCLAYE & LEISTNER. ( 2011, p. 5).
419 Dentre elas podemos citar o aumento do escopo das proteções já existentes, a criação de mais formas
de proteção dentro de um mesmo instituto, o aumento do tempo de proteção, à relevância dessa proteção
para os titulares do direito, a ampliação geográfica dessa proteção.
420 “With the signing of the TRIPS5 in 1994, the international protection of IPR, until then organized ex-
clusively under the aegis of the World Intellectual Property Organization (WIPO), moved into the sphere of
competence of the WTO (Zhang, 1994) This adoption of IPR protection into the domain of the WTO was of
considerable importance. It signified the enforcement, for and on behalf of the WTO, of international stan-
dards largely based on the ones established in the most advanced countries. Coming after the considerable
reinforcement of IPR in the Northern countries, the signing of the TRIPS heralded the enforcement of this
new, stricter patent regime on a worldwide scale (Remiche and Desterbecq,1996; Reichman and Lange,
2000). The new treaty, by implementing so-called minimum standards, insured a dramatic worldwide up-
ward harmonization and has introduced a radical break with some of the foundations and rules which had
hitherto shaped international IPR protection.”CORIAT, ORSI, & D`ALMEIDA (2007, p. 07).
421 Tal conclusão é corroborada pela análise de autores que pesquisam extensamente o tema, como Viva
Moffat e Dinwoodie, que atribuem o aumento dos tipos de cumulação de direitos sobre um bem intelec-
tual, assim como a maior incidência de cumulações deletérias muito mais ao expansionismo indevido dos
direitos de DPI do que a uma necessidade de evolução do sistema para se adequar às mudanças econômi-
cas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas: “… overlapping protection has arisen mostly by accretion,
as a result of the expansion of intellectual property rights, rather than by design. An examination of the
208
propriedade intelectual
Para finalizarmos essa seção, achamos importante também para a
contextualização da questão aqui estudada ponderamos que a propriedade
intelectual e seu regime de exclusão são criações artificiais, um direito que
nasce da Lei e não um direito natural. Os direitos de exclusividade foram cria-
dos artificialmente pelo Estado para reequilibrar o mercado e beneficiar a so-
ciedade. Uma das teorias econômicas que justificam o sistema de exclusiva
hoje vigente é a defensora do equilíbrio da falha de mercado.422 Entretanto,
o que deve ser observado nesta teoria é que o objetivo principal da criação
artificial de um regime jurídico e econômico de propriedade intelectual, que
gera a restrição ao acesso desses bens pela sociedade, é justamente a geração
de mais bens intelectuais com base nos conhecimentos gerados pelos bens já
criados e a livre utilização deles pela sociedade, ao final de um determinado
período, após o razoável retorno do investimento gasto pelo titular do bem
intelectual.423
reasons for the expansion of intellectual property rights supports the notion that the overlapping protection
that has arisen has been less intentional and more likely a byproduct of a general expansionist, pro-property
rights trend. Interest group politics, resource disparities, and, to some extent, rent-seeking account for the
growth of intellectual property rights in almost all directions. Some expansion certainly can be attributed
to the demands of changing technology, but the overwhelming influence of powerful interest groups can-
not be discounted in examining the nature of the expansion that has occurred (Moffat, 2004, p. 1496).”.
“To these theoretical explanations of the causes underlying the increased overlap of different intellectual
property rights, there must be added two practical, historical reasons: the inter-relationship of different in-
tellectual property rights, and the role of opportunistic lawyering. The expansion of trade dress protection in
the United States beyond packaging and the shape of containers can be traced to 1976, when the long-awa-
ited revision of the U.S. copyright statute occurred. Up until the last minute, the copyright statute contained
two titles. The first was what became the Copyright Revision Act of 1976. The second was a copyright-like
design law, which would have offered design protection to original ornamental designs. At the last minute,
that second title was dropped.29 The same year saw the first recognition by a federal appellate court that
the design or shape of a product could itself be protected as a trademark.30 These events are probably not
unrelated: the pressure to grant trademark protection to product designs starting in 1976 would surely have
been less intense had Congress enacted an appropriate form of design protection. This highlights an impor-
tant point, namely that the expansion of protection in one intellectual property regime is often a product as
much of external developments than reforms internal to that regime. And, perhaps, the normative validity of
those expansions should also take account of such external considerations (Dinwwodie, 2001, p. 9).
422 Essa teoria, resumida de forma livre, sustenta que a regra é a livre concorrência de mercado e a
liberdade de cópia. No entanto, tais regras para os bens intelectuais acabam por gerar uma eliminação
do valor econômico desses, pois quando um bem intelectual é colocado no mercado, sem a devida re-
gulação, a liberdade de cópia elimina o retorno do investimento feito para a criação dessa obra deses-
timulando o investimento e a inovação na geração de novos bens desta natureza, que muito auxiliam o
desenvolvimento de nossa sociedade. Como o que gera valor em nossa economia de mercado é a escas-
sez, a tendência é que esses bens de livre e ampla utilização percam o seu valor econômico, levando, por
consequência, ao não desenvolvimento da sociedade, uma vez que tanto criadores quanto investidores
não inovarão mais na geração de conhecimentos para melhorar a qualidade de vida de todos. Tal falha
desequilibra o mercado e a livre iniciativa, forçando o Estado a intervir e criar uma limitação artificial para
o acesso aos bens intelectuais, o que torna o abundante escasso, aumentando assim, o valor do bem.
Vide neste sentido: Denis Barbosa, Op. Cit, 2003; GORDON, Wendy. Fair Use as Market Failure: A Structural
and Economic Analysis of the Betamax Case and Its Predecessors, Columbia Law Reviw. n. 82, 1982, p.
1600-1657 .
423 Como colocamos em texto anterior: “A propriedade intelectual seria um remédio para o desbalance-
amento do mercado, estimulando os inventores a criarem e os comerciantes a investirem para beneficio
209
Para atender ao objetivo e finalidade do sistema de propriedade in-
telectual, cada instituto foi criado com fundamento em uma justificativa po-
lítico-econômica e, no caso de alguns países, como o Brasil, também cons-
titucional. Cada um deles tem uma função determinada, devendo respeitar
o princípio da especificidade das proteções424. Seus domínios devem ficar
adstritos aos limites, principalmente ao de espaço e tempo, criados por essa
justificativa e delimitados por essas funções e especificidades.425 É o que de-
monstra a discussão sobre a superação do paradigma “One size fits all” para
um sistema “Self Taylored” para cada bem tutelado por PI, que se discute a
necessidade de tratamento personalizado para cada bem de PI (Kur & Miza-
ras, 2011; Dinwoodie, 2011).

3. A cumulação do Regime de Direito Autoral - da com o


Regime do Direito Marcário
Concentraremo-nos agora a analisar algumas questões que envol-
vem a cumulação de DPI a partir do recorte da cumulação dos regimes de
proteção das marcas e dos direitos autorais. É importante demonstrarmos
Patricia Carvalho da Rocha Porto

e discutirmos algumas das formas de cumulação de direitos autorais com o


direito marcário, pois nem sempre estas cumulações são óbvias e de fácil
percepção. Inclusive,como já falado, nem todas desvirtuam a finalidade dos
institutos em comento e, por consequência, não geram efeitos deletérios.
Algumas são, inclusive, previstas pela lei. Outras, por ter seus efeitos nocivos
patentes, já são vedadas pelo diploma legal pertinente. Temos ainda outras
formas danosas que, por permaneceram em uma zona cinzenta e sem legisla-
ção que as proíba, são utilizadas por titulares para estender seus monopólios
de forma indevida.

final da sociedade e da economia de mercado no caso das marcas. Entretanto, o sistema de proteção de
PI se torna um veneno se utilizado em excesso e a consequência desse excesso de direitos é o desequilíbrio
novamente do sistema. É exatamente o que acontece com a sobreposição de direitos de PI, que acaba por
dar mais direitos para o titular e diminuir a contrapartida justa que a sociedade deveria receber.” PORTO.
Patricia Carvalho da Rocha. Limites à Sobreposição de Direitos de Propriedade Intelectual. Revista da ABPI
nº 109, 2010, p. 6.
424 Denis Barbosa (v. II, 2010) em notável contribuição à discussão acima, estabeleceu o princípio da
especificidade do bem intelectual com relação à necessidade de se individualizar o modelo de proteção
de cada criação enquanto objeto de um direito de exclusiva, levando em conta as características singulares
desta. Segundo Barbosa (v. II, 2010), tal princípio poderia ser assim expresso: “Cada direito de propriedade
intelectual terá a proteção adequada a seu desenho constitucional e ao equilíbrio ponderado dos interesses
aplicáveis, respeitado a regra de que só se pode apropriar o que não está no domínio comum”. Verificamos,
portanto, que é tarefa difícil, e, em alguns casos, impossível, tratá-los e regulá-los, protegê-los, incentivá-los
de forma homogênea.
425 Vide maiores explicações sobre esta ponderação em: BARBOSA (2010, v. 1 p. 84-85 e 310 a 311).

210
propriedade intelectual
3.1. Justificativas para a existência do sistema de propriedade das marcas
e dos direitos Autorais426
O regime marcário objetiva a proteção ao investimento do titular e a
sua posição na concorrência, bem como a proteção ao consumidor contra a
confusão e redução do custo de informação que esse consumidor terá para
escolher o produto ou serviço desejado427. A marca tem como funções prin-
cipais a o assinalamento e a distinção do produto ou do serviço pelo signo
individualizando-os e diferenciando-os de outros da mesma espécie, mas de
origens distintas, evitando assim a confusão quanto a esta origem no merca-
do. Essa distinção garante à sociedade uma informação que a protege quanto
ao erro de origem do produto ou serviço e proporciona uma percepção por
parte do consumidor de qualidade e consistência do produto consumido, ge-
rando assim, um vínculo de confiança entre marca e consumidor, mesmo que
esses efeitos sejam somente mercadológicos.428 Por conta de seus objetivos e
finalidades, o regime geral de proteção marcária oferece uma tutela exclusiva,
em teoria, eternamente prorrogável, desde que os requisitos para a proteção
da marca continuem presentes. Entretanto, essa proteção é restringida ao ter-
ritório onde a marca foi requerida ou atua economicamente e somente nas
áreas de atuação econômica do objeto assinalado pela marca. Levando em
conta a justificativa acima, é razoável o recorte de proteção escolhido para
a marca, possibilitando uma proteção sem limitação no tempo, pois a ma-
nutenção de sua distinção e a sua vinculação constante a uma única origem
beneficiam tanto o seu titular quanto a sociedade.
A justificativa atual do sistema de proteção dos direitos autorais é
a retribuição econômica ao autor por sua criação intelectual para que este
tenha meios e estímulos para continuar com a sua produção criativa. Objetiva-
se por meio da difusão das obras intelectuais o aumento do acesso por parte
da sociedade ao conhecimento e à cultura, estimulando, assim, a produção de
novas criações (Souza, 2006, p. 284 e ss).
A tutela autoral teve suas raízes em dois objetivos e justificativas de
proteção distintos. Na Inglaterra, com o estatuto da Rainha Anna em 1710, ini-
426 Mais informações sobre a justificativa jurídica e político-econômica dos regimes marcário e de direito
autoral podem ser obtidas nas obras: LANDES, William & Richard Posner The Economic Structure of Intel-
lectual Proprety Law. Cambridge: Belknap Press, 2003; Souza, Allan Rocha. A Função Social dos Direitos
Autorais. Campos: Faculdade de Direito de Campos. 2006; ASCENSÃO. José de Oliveira. Direito Autoral. Rio
de Janeiro: 2007,
427 Assim entendeu o Senado Americano ao estabelecer o propósito da Lei de Marcas dos Estados Unídos
em 1946. SEN. REP. No. 1333, 79th Cong., 2d Sess. 3 (1946).
428 Mais informações sobre a percepção da qualidade nas marcas pelos podem ser obtidas na obra:
Quando a propriedade industrial representa qualidade. Patricia Carvalho da Rocha Porto. Rio de Janeiro:
Lumens Juris, 2011.
211
cialmente deu-se ao autor o privilégio sobre a reprodução material da obra,
com o objetivo de proteger os investimentos dos editores e impedir a reprodu-
ção não autorizada das obras por eles impressas publicadas (Ascensão, 2007,
p. 4-5;Souza, 2006, p. 284 e ss). Logo após, ainda no sec. XVIII, principalmente
na França, por causa da Revolução Francesa, a proteção passou a recair sobre
produção literária em sua essência, esta como propriedade do Autor, e não so-
mente na sua materialidade. (Ascensão, 2007, p. 4-5). Estabeleceram-se então
dois sistemas de proteção vigentes simultaneamente em diferentes países.
O atual regime geral de proteção dos direitos autorais garante a exclu-
sividade ao autor ou ao titular da obra na exploração desta em todo o mundo.
Todavia, essa proteção tem um tempo limitado, devendo após o seu término
ser franqueada a utilização da obra ao domínio público. Segundo a justificativa
do sistema de DPI, a proteção autoral por ser uma limitada no tempo atende
às necessidades tantos dos autores, quanto da sociedade.
Verifica-se do exposto, que os objetivos do sistema de proteção mar-
cária e autoral são distintos em seu modelo de tempo e escopo de proteção,
Patricia Carvalho da Rocha Porto

pois diferentes são seus objetivos e finalidades quando da criação e do uso do


bem. Ressalta-se que a não observância quanto aos limites e objetivos de cada
sistema quando da cumulação desses direitos pode trazer sérios danos para a
sociedade, pois tem-se o risco de que a suplementação de um modelo de pro-
teção sobre o outro beneficie somente interesses individuais e em detrimento
dos direitos da coletividade.

3.2. Razões para o aumento da cumulação dos regimes de proteção de


marca e de direito autoral em obras intelectuais
Muitos dos elementos passíveis de proteção exclusiva pelo direito au-
toral podem ser os mesmos habilitados para a proteção do regime marcário,
caso atendam os requisitos de proteção de cada instituto e sejam funciona-
lizados para se adequar à finalidade de proteção de cada modelo429. Dessa
429 A questão do que se apropria exclusivamente por direitos de propriedade intelectual é uma das ques-
tões cruciais para o melhor entendimento da questão da cumulação de direitos. Como o nosso objetivo no
presente artigo é abordar de forma introdutório o tema geral e nos concentrarmos nos tipos de cumulação
de marca e DA apresentaremos aqui para fins de esclarecimento, o que Denis Borges Barbosa (2010, p. 54
e ss expõe sobre o que se protege pela exclusiva intelectual: “Quando o bem incorpóreo se faz propriedade
Cada um desses bens pode ter existência autônoma em direito. Por exemplo, a criação de uma nova solu-
ção técnica, por si só, legitima o poder de requerer patente, e gera um direito autoral de nominação. Mas
não é objeto de propriedade. Se-lo-á, no entanto, se o inventor requerer e obtiver a patente; neste caso,
passa a ter um título de exclusividade do uso do bem imaterial, na concorrência. Essa exclusividade não
recai sobre o mercado, nem sobre o bem imaterial, mas tão somente na intercessão dos dois fenômenos,
ou seja, quando o bem incorpóreo é trazido ao mercado (ou seja, ele se torna um bem-de-mercado). Assim,
a possibilidade de uma propriedade intelectual surge quando se produz, se conforma, ou se transforma o
bem intelectual com vistas ao mercado.”
212
propriedade intelectual
forma, por exemplo, as palavras, os desenhos, a música430 e elementos olfa-
tivos431, as esculturas, as obras plásticas, podem, quando funcionalizadas e
usadas no mercado, dentro de determinados parâmetros, gozar de proteção
por um ou outro instituto e, muitas vezes, pelos dois.
Muitas vezes uma obra protegida inicialmente pelo direito autoral
pode vir a ser utilizada como parte figurativa de uma marca e acaba, nesse
contexto, passando a também exercer funções distintivas e marcária. O con-
trário também ocorre. Os desenhos, elementos verbais e visuais e demais
elementos simbólicos (Barbosa, 2013, p.2 )432 que constituem uma marca re-
gistrada podem também exercer funções passíveis de tutela também pelo
direito autoral, desde que observem determinadas condições que veremos
a seguir.
Essa dupla proteção é possível, como explica Denis Barbosa (2013),
visto que “ a criação intelectual de um elemento qualquer, que seja caracteri-
zável como obra intelectual433, mesmo que legalmente suscetível de ser pro-
tegido como marca, é, de origem, plausível de proteção pelo direito autoral.”
A dinâmica expansionista do sistema de PI tem aumentado as possi-
bilidades de apropriação exclusiva da criação intelectual pelos direitos mar-
cários e autoral aumentando significativamente os casos de sobreposição de
direitos de marca e de DA.
Veremos agora alguns elementos que, ao longo dos últimos anos, têm
colaborado para a expansão das possibilidades de dupla proteção e para o
efetivo aumento de número de casos de cumulação entre esses direitos.

430 No caso das marcas sonoras.


431 Na França as essências dos perfumes são objeto de tutela por direito autoral. Nos Estados unidos as
marcas olfativas gozam de proteção.
432 “O ponto sensível aqui é: por exemplo- a criação de elementos simbólicos de uma embalagem terá ca-
ráter autoral? Segundo doutrina relevante, não será a aplicação em um fim industrial (embalagem) que lhe
tirará o caráter da criação: “Aparentemente, suprimiu a norma do art. 6o, XI, da lei revogada, que tutelava
as obras de arte aplicada. Mas, se não as excluiu expressamente, é que continuam tuteladas, com a ressalva
do art. 8o, VII, que considera não objeto de proteção da lei “o aproveitamento industrial ou comercial das
ideias contidas nas obras”. A norma não diverge da anterior, que protegia as obras de arte aplicada, “desde
que seu valor artístico possa dissociar-se do caráter industrial do objeto a que estiverem sobrepostas.”
Assim, o plágio, a cópia, o uso não autorizado em geral dos elementos cobertos pelo direito autoral, cons-
tantes da embalagem, mereceriam tal proteção. (Barbosa, 2013, p. 2)
433 [Nota do autor] “A “obra intelectual” de que tratam as leis de Direitos Autorais configura uma criação
humana concretizada em determinada forma, exteriorizada de alguma maneira e resultante do aporte in-
dividual ou da contribuição coletiva de determinadas pessoas. Outras criações humanas existem que não
estão compreendidas na noção legal de obra seja em virtude da tradicional dicotomia forma-conteúdo ou
idéia-expressão, seja em face da natureza da criação que constitui objeto desta disciplina, distinguindo-a
de outros ramos da Propriedade Intelectual.”SANTOS, Manoel J. Pereira dos. A Questão da Autoria, Direitos
Autorais. São Paulo: Direito Autoral - Propriedade Intelectual - Série Gvlaw - Manoel J. Pereira dos Santos,
Wilson Pinheiro Jabur Editora: SARAIVA 2014
213
A marca como gênero tem ampliado sua abrangência de proteção e, a
cada dia, é subdividida em mais espécies que permitem a apropriação de ele-
mentos ou, melhor, do uso desses elementos no mercado434. Esses elementos,
até então, não eram tutelados por direito de exclusiva, somente, em certos
casos, contra atos de concorrência desleal.
Hoje temos no Brasil novos tipos de marcas, como a marca tridimen-
sionais, as marcas em movimento e as holográficas435. Alguns países aceitam
o registro do tradress como marca436, assim como as chamadas marcas não
tradicionais, como a sonora e a olfativa.
Dessa forma, atualmente já é possível o registro como marca437 de
roupas e acessórios, de móveis, de embalagens, de músicas e fragrância, pra-
ticamente tudo o que assinale, distinga e indique a origem e não esteja nas
proibições legais.
Nos últimos, apesar de quase não ter sofrido alterações no seu mo-
delo de proteção, ao contrário do modelo de tutela marcária, o direito autoral
também tem protegido obras que antes eram consideradas sem originalida-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

de artística (Dinwoodie, 2001, p. 2 e 11; Kur, 2001, p 2). Com o desenvolvi-


mento cada vez maior da criatividade na elaboração de produtos voltados
para indústria, artigos como vidros de perfume, embalagens, elementos de
ornamentação hoje gozam também da proteção do direito autoral.438
434 “Essa exclusividade não recai sobre o mercado, nem sobre o bem imaterial, mas tão somente na
intercessão dos dois fenômenos, ou seja, quando o bem incorpóreo é trazido ao mercado (ou seja, ele
se torna um bem-de-mercado). Assim, a possibilidade de uma propriedade intelectual surge quando se
produz, se conforma, ou se transforma o bem intelectual com vistas ao mercado (Barbosa, 2008, p.217).”
435 Com relação a proteção dessas marcas no país vide artigo “Marcas em movimento: proteção possível
em direito brasileiro (Barbosa, 2013,b)”
436 Desde que sejam distintivos e não funcionais The Supreme Court held that “the breadth of the defi-
nition of marks registrable under §2, and of the confusion-producing elements recited as actionable by
§43(a), has been held to embrace not just word marks, such as “Nike,” and symbol marks, such as Nike’s
“swoosh” symbol, but also “trade dress”–a category that originally included only the packaging, or “dress-
ing,” of a product, but in recent years has been expanded by many courts of appeals to encompass the de-
sign of a product. See, e.g., Ashley Furniture Industries, Inc. v. Sangiacomo N. A., Ltd., 187 F.3d 363 (CA4
1999) (bedroom furniture);Knitwaves, Inc. v. Lollytogs, Ltd., 71 F.3d 996 (CA2 1995) (sweaters); Stuart Hall
Co., Inc. v. Ampad Corp., 51 F.3d 780 (CA8 1995).” [5].(Prasannam., 2011): http://legalonline.blogspot.com.
br/2011/04/lanham-act-scope-of-trade-dress.html
437 Desde que atendam aos requisitos de proteção marcária de cada país, que são diferentes. No Brasil,
por exemplo, só se permite registro de signo distintivo visualmente perceptível, mas muitos países prote-
gem também signos não visualmente perceptíveis..
438 “(…) the efforts vested in the development of new product designs, new labels, logos and even word-
marks – and certainly also slogans and jingles – are regularly considerable to enormous. And there is no
reason in general to look down on such efforts and their results – what may look quite banal to the uned-
ucated eye, like a plastic yoghurt container, may be, and often is, the result of intense labour, professional
skill and – why not? – artistic inspiration of one or several top designers. Of course, this does not mean
that copyright is or should be granted indiscriminately to all the items mentioned before. However, there is
no doubt that they are eligible for copyright protection in principle, their actual entitlement to protection
214
propriedade intelectual
Outro elemento importante que influenciou na ampliação do nú-
mero de obras protegidas foi a mudança na interpretação do que deve ser
considerado para a concessão de direitos sobre um bem. Nos dias atuais a
interpretação dos requisitos de proteção de um bem por DPI não é mais ca-
tegorizada, levando em conta se o bem se encaixa em categorias protegíveis.
O que é levado em consideração atualmente é a funcionalização do bem.
A proteção está sendo avaliada de forma mais conceitual, calcada no nível
de originalidade apresentada pela obra e ligada à finalidade do uso da obra,
independente desta se encaixar em uma categoria. Essa interpretação atual
não se restringe ao sistema de direito autoral, vem sendo também aplicada
para avaliar a proteção de criações pelos demais institutos de propriedade
intelectual.439
Por último, é importante considerar que o aumento das possibilida-
des de usos do bem para diferentes finalidades no mercado, em conjunto com
o maior potencial de exploração econômica dessas finalidades, têm incenti-
vado os titulares a buscarem todas as formas de proteções disponíveis para
esses usos. Como cada instituto de propriedade intelectual protege somente
determinadas funções, os titulares buscam a guarida em diferentes institutos
para garantirem todas as possibilidades de proteção.
O resultado do somatório das modificações acima descritas é um
crescimento exponencial no número de casos de cumulação de direitos au-
torais e de direitos marcários em um mesmo bem intelectual. E, como dis-
semos anteriormente, exponecial também tem sido o aumento de casos de
cumulações disfuncionais, que desvirtuam a finalidade do sistema e causam
enormes danos à sociedade. Pois o aumento dessas proteções está sendo
realizado de forma desordenada. Ele não é calcado no desenvolvimento de
novos tipos de criações intelectuais, mas sim na gana de proteção do maior
número de usos possíveis para aumentar a rentabilidade com a exploração
exclusiva do bem.

being only subject to the level of originality required. And it is submitted here that there is a certain ten-
dency to lower that threshold, not least in view of the fact that also the notion of creativity and the attitude
towards creative achievements worthy of protection nowadays tends to be somewhat different – i.e. more
materialistic (and realistic?) – than before.” (Kur, 2001, p. 2-3)
439 “In this climate, the scope of protection under a particular intellectual property regime is defined
conceptually and purposively, rather than categorically. For example, the limits of copyright protection will
now be set by the concepts of originality and fixation, rather than by inclusion within classifications such
as “work of art.”17 In the United States, the standard of originality requires only that the work be inde-
pendently created and possess a minimal degree of creativity.18 The limits of trademark subject matter will
be set by notions of distinctiveness: does the design serve to identify the product as that of one undertaking
as opposed to another? Design protection will be available if the design is new and differs sufficiently from
what has gone before (Dinwoodie, 2001, p. 5-6)
215
3.3. A dupla proteção no ordenamento nacional
Passamos a expor agora os dispositivos nacionais que versam de for-
ma geral sobre a possibilidade de dupla proteção de um mesmo bem pelo
regime das marcas e dos direitos autorais e os limites.
O artigo 7º, VIII da Lei 9610/98 – LDA prescreve que as obras de dese-
nho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética são passíveis de pro-
teção pelos direitos autorais. O artigo 8º da mesma lei esclarece, entretanto,
que o aproveitamento comercial e industrial das ideias contidas nas obras não
gozam dessa proteção.
Observamos que as obras intelectuais que consistam em desenhos,
esculturas, pinturas, gravuras, artes cinéticas - todos eles elementos que po-
dem constituir parte ou todo de marcas registradas, incluindo marcas tridi-
mensionais - podem ser protegidos pelo direito autoral desde que (1) atendam
aos requisitos de proteção pelo direito autoral; (2) não constituam aproveita-
mento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras
Com relação à proteção como signo distintivo, o artigo 124, XVII da
Patricia Carvalho da Rocha Porto

Lei 9279/96 – LPI estipula que não são registráveis como marca as obras lite-
rária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo
direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo
com consentimento do autor ou titular.
Ao interpretarmos o conteúdo da norma acima, verificamos que as
obras intelectuais e seus títulos protegidos pelo direito autoral podem ser re-
gistrados como marca desde que (1) atendam aos requisitos gerais para aqui-
sição da proteção marcária; (2) não sejam suscetíveis de causar confusão ou
associação; e (3) que o autor ou titular da obra intelectual dê autorização para
o registro desta como marca.
As diretrizes de análise de marcas do INPI, de 11/12/2012, na seção
3.4.11, interpretam as disposições do inciso XVII da LPI e estabelecem parâ-
metros – inclusive com exemplos - que devem ser seguidos pelos técnicos
quando do exame para a concessão de registro para esse tipo de marca.
Após o a análise das normas acima, notamos que elas, dentro de cer-
tas condições, permitem a dupla proteção de uma obra como marca e como
direito autoral. Entretanto, não verificamos em tais normas e diretrizes dispo-
sições que estabeleçam limites ou parâmetros que devam ser observados em
caso de conflitos relativos a esta dupla proteção.

216
propriedade intelectual
4. D.A. X Marcas: tipos de cumulação
Veremos agora algum dos tipos de cumulações possíveis entre DA e
marca, assim como seus limites. Quando pertinente, indicaremos na legisla-
ção pátria os dispositivos que regulam o tipo específico de dupla proteção.
Apresentaremos também alguns casos judiciais relativos às cumulações aqui
identificadas.

4.1. A forma escrita e o desenho


Um dos tipos mais comuns de dupla proteção por marca e pelo di-
reito autoral o que incide sobre criações fixadas por meio de palavras e de
desenhos. As diretrizes de análises de marcas do INPI (2012), no item 1.3,
especifica que as marcas no ordenamento jurídico nacional podem ser apre-
sentadas sob a forma nominativa, figurativa, mista e tridimensional. Como já
discutido acima, desenhos, palavras e expressões que compõem as marcas
mistas, verbais e figurativas podem, em alguns casos, gozar também da pro-
teção autoral.
Ilustrando como pode ocorrer potencial cumulação de direitos de
marca e direitos autorais em desenhos, trazemos caso decidido pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo. Nesse julgado, o juízo resolveu a contenda definindo
e delimitando o escopo do direito do titular de um logotipo que teve este
utilizado por terceiro como marca, sem sua autorização. No caso em questão,
ficou comprovado nos autos que o Autor da ação contratou uma empresa
para desenhar o logotipo para que ele utilizasse em sua marca. No entanto, o
INPI não deferiu o registro para a marca do Autor. O Réu, posteriormente, uti-
lizou o logotipo em sua marca mista “Personna”. Indignado, o Autor promoveu
ação para que o Réu se abstivesse de utilizar a marca “Personna”, alegando
que ela seria de sua titularidade. Em sua decisão, o Juízo determinou que o
Réu se abstivesse de utilizar em sua marca somente o logotipo na exata forma
criada pelo Autor. Interessante destacar que o Tribunal entendeu que o Réu
poderia continuar utilizando sua a marca “Personna” - ou seja, o uso comercial
do conteúdo protegido poderia continuar sendo comercializado e assinalado
pela marca “Personna”, desde que sem a criação gráfica.
“Ora, na espécie, o logotipo Personna na forma evidenciada nos autos, foi
obra de encomenda do autor e, sem embargo do registro tardio peran-
te a Escola Nacional de Belas Artes, dúvida não há que foi idealizada por
encomenda do autor. Assim, ainda que não tenha eficácia como marca,
na medida em que não logrou o autor a obtenção de seu registro junto

217
ao INPÍ, vale como obra artística e, assim, prospera também em parte a
reconvenção ofertada pelo autor (fls. 241), apenas para condenar a recon-
vinda a abster-se do uso do logotipo Personna na forma idealizada pela
empresa Dap Design - Projeto e Consultoria S/C Ltda, sob pena de multa
diária de R$ 5.000,00. (...)
No mesmo diapasão, a ação, nos termos em que foi posta, é proceden-
te apenas em parte, na medida em que fica condenada a ré a abster-se
do uso do logotipo Personna, na forma idealizada pela empresa de design
contratada pelo autor em sua atividade comercial, sem embargo do uso da
marca Personna da qual é titular, empresa da qual a ré é sócia, sob pena
de multa diária de R$ 5.000,00.” Décima Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, AC
61.692-4/8, Des. Ruy Camilo, 24 de novembro de 1998.

Percebemos que o Tribunal delimitou o direito do titular do logotipo


aos limites previstos pelo direito autoral, não ampliando o direito deste para
impedir que o Réu utilizasse a sua marca já registrada, mas somente conce-
dendo ao Autor o que ele realmente tinha direito, qual seja, o direito de impedir
que a sua obra fosse reproduzida para fins comerciais sem sua autorização. Ao
Patricia Carvalho da Rocha Porto

analisar a decisão que comentamos acima Denis Barbosa assim se manifesta:


“Assim, não viola o direito autoral quem “importa, exporta, vende, ofe-
rece ou expõe à venda, oculta ou tem em estoque: produto assinalado
com marca ilicitamente reproduzida ou imitada, de outrem, no todo ou em
parte; ou II - produto de sua indústria ou comércio, contido em vasilhame,
recipiente ou embalagem que contenha marca legítima de outrem” (art.
190 do CPI/96) – ou seja, quem usa a marca no comércio, mas somente
quem assinala a marca no produto. Pois o assinalar, como ato de repro-
dução coberto pela lei autoral, é contrafação autoral.(Barbosa, 2013. p. 2)

Nesse sentido, verificamos que coube ao Autor da ação somente o


direito de requerer a abstenção do uso da obra para fins comerciais na forma
protegida pelo direito autoral. Não gozou o titular do direito de se opor ao uso
comercial dessa obra como marca (Barbosa, 2013). Com relação ao reconheci-
mento da proteção do direito autoral a elementos já protegidos como marca,
Denis Barbosa (2013, p.3), esclarece que esta proteção pelo direito autoral só
é possível e subsistirá nos elementos da marca que assim atenderem os requi-
sitos para essa segunda tutela: “no que tais elementos constituam elemento
de marca registrada, a incorporação da criação figurativa no registro não lhe
elimina a independência da criação autoral, no que ela existir. Mas só no que
existir.” (grifo nosso). Este autor esclarece ainda que a proteção autoral “não
se estende ao uso comercial do elemento como marca” (Barbosa, 2013, p.3).
Verificamos que o caso narrado acima não chegou a versar sobre
cumulação de direitos de marca e de DA, pois o Autor da ação não chegou a
218
propriedade intelectual
ter direitos marcários sobre o desenho. Ele tentou ter o desenho de sua titula-
ridade registrado como marca pelo INPI, mas conseguiu. O titular do logotipo
gozava somente de tutela pelo direito autoral. Entretanto, a decisão proferida
pelo Juízo no caso acima também versa sobre a identificação de direitos, seus
limites e o que por ele deve ser tutelado em uma relação onde, de início, se
tentou reivindicar duplo direito sobre o bem violado. Esta reivindicação só não
foi levada em consideração na demanda, segundo se pode depreender de tre-
cho citado acima, porque o titular do bem teve negado o pedido de concessão
do segundo direito relativo ao bem. Dessa forma, entendemos que essa deci-
são é pertinente ao assunto aqui discutido e pode nos fornecer informações
relevantes para tentarmos entender o fenômeno, bem como o que deve se le-
var em consideração para se compatibilizar conflitos sobre cumulação de DPI.

4.2. Dupla proteção de personagens


Não obstante também versarem sobre criações gráficas, discutimos
em seção específica a dupla proteção de personagens como obras resguarda-
das pelo direito autoral e pelo regime marcário. Esse tipo de dupla proteção é
um dos apresenta os casos mais analisados pela doutrina que estuda o tema.
Duas razões podem ser apontadas para tanto. Geralmente esses casos envol-
vem personagens famosos e conhecidos pelo grande público, repercutindo,
assim, mundialmente. Além disso, as decisões proferidas nesses casos judiciais,
normalmente, têm rico suporte teórico e traçam critérios interessantes de se-
rem analisados e discutidos como estudos de caso e em artigos acadêmicos.
Como vimos na seção que discute os aspectos gerais dessa dupla pro-
teção, a LPI veda o registro desses personagens sem a autorização do titular
por força no disposto no art. 124, VII.440
Por serem famosos, os personagens objeto dos litígios geralmente
são um dos maiores ativos das empresas titulares. Estas, visando a máxima
proteção desses ativos, buscam todas as proteções possíveis (e muitas vezes
impossíveis) para que a exploração exclusiva dessas obras seja estendida ao
máximo. Essas empresas ganham anualmente enormes quantias de dinheiro
a título de royalties proporcionados pela exploração desses personagens. Por
conseguinte, elas estão dispostas a gastar milhões e fazer o que tiver ao alcan-

440 As diretrizes de análise de marcas (2012) assim se manifestam acerca da proteção dos personagens;
“Os nomes de personagens não estão protegidos pelo inciso XVII do Art.124 da LPI e nem pela lei de Direi-
tos Autorais, não merecendo proteção excessiva. O que se protege é o desenho do personagem (por ser
obra artística), que esteja associado ou não ao seu nome. Entretanto, em casos que o nome do persona-
gem remeta apenas à obra e seja suscetível de causar confusão ou associação com aquela, será formulada
exigência para que seja apresentada autorização do detentor do direito autoral, caso não seja o próprio ou
terceiros por ele autorizados.”
219
ce para impedir que o fim de um direito signifique o fim da possibilidade da
exploração exclusiva da obra. Portanto, ao fim da proteção de algum dos direi-
tos de propriedade intelectual relativos aos seus personagens, essas empresas
travam intermináveis batalhas judiciais para de alguma forma ter reconhecido
outros direitos que as possibilitem estender o tempo e o escopo da proteção
exclusiva sobre o personagem.
O comportamento incisivo, persistente e, por vezes, desleal e agressi-
vo das empresas titulares dos direitos de personagens famosos também pode
vir a prejudicar a livre e lícita concorrência. Em muitos dos casos nos quais a vi-
gência de algum dos direitos sobre os personagens expira, os titulares atacam
seus concorrentes ao menor uso por estes obras na modalidade já expirada.
A alegação desses titulares é a de que a proteção que lhes resta é suficiente
para coibir o uso do bem mesmo na função já livre. O que resulta em agressi-
vas ações judiciais contra seus concorrentes. Os titulares, ainda, utilizam-se de
inúmeros expedientes para convencer o juízo a impedir o acesso de terceiros
a obra. E, em não conseguindo em primeira instância, perpetuam o litígio com
os recursos judiciais possíveis. O objetivo é tornar a defesa judicial do concor-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

rente inviável e, dessa forma, forçar a desistência do uso da obra por este.
Algumas das consequências do cenário destacado é o desbalanceamento do
sistema de PI, a mitigação do domínio público, o desequilíbrio da livre concor-
rência, a limitação do acesso da sociedade à cultura entre outros danos. Por
conseguinte os autores encontram nesse tema rico material para discussão e
de grande relevância, dado ao potencia lesivo do assunto.
Trazemos como exemplos três casos que versam sobre personagens
mundialmente conhecidos. Ao que pese uma das ações ter acabado em acor-
do entre as partes, todos os casos proporcionam relevantes reflexões.
A primeira diz respeito aos direitos do coelhinho Peter Rabbit, que
ilustra obra de autoria de Beatrix Potter. A autora criou o desenho do simpá-
tico coelhinho Peter Rabbit para ilustrar a história de sua autoria denominada
“The Tale of Petter Rabbit”, a qual tinha o coelhinho como personagem cen-
tral. Em 1902, a Editora de Frederick Warne editou a história de autoria de
Beatrix, bem como adquiriu os direitos materiais relativos à obra e ao coelhi-
nho. Anos depois, mesmo com os direitos autorais sobre as obras já expirados
a empresa Waner ingressou na Justiça contra um concorrente441 que estava
utilizando o desenho do coelhinho em domínio público para ilustrar obras de
sua autoria. Warner pediu na justiça a proibição da utilização do desenho de
Petter Rabbit alegando que detinha sobre tal desenho, além de direitos auto-

441 Frederick Warne & Co. v. Book Sales, Inc., 481 F.Supp. 1191, 1195 (S.D.N.Y. 1979)
220
propriedade intelectual
rais, direitos marcários. Por tal razão, mesmo que os direitos autorais já tives-
sem expirados o concorrente não poderia utilizá-los, pois estaria violando o
seu direito marcário.
Em audiência preliminar o Tribunal competente se manifestou no sen-
tido de permitir a cumulação subsequente de direitos, caso a Warne conse-
guisse comprovar que o personagem Peter Rabbit passou a ser associado pelo
público como marca da empresa por meio de significação secundária. O caso
terminou em acordo (Moffat, 2004), mas a manifestação preliminar do juízo
acenou para uma aceitação da proteção subsequente do bem como marca,
e seu uso exclusivo por parte da Warne, sob o argumento de que o uso por
terceiro do desenho, mesmo que fossem em livros, violaria o direito de mar-
ca por causar confusão nos consumidores.442 Ao comentar o caso em artigo
sobre cumulação de direitos, Viva Moffat (2004) argumentou que se tal deci-
são por parte do Tribunal se concretizasse, esta configuraria uma ampliação
indevida dos direitos exclusivos sobre esse bem, em detrimento do interesse
da sociedade ao livre acesso da obra após a expiração da sua proteção por
direito autoral.443
Apresentamos outro caso de enorme repercussão mundial, dessa
vez recente, o qual teve início em 2013 e decisão final proferida em junho de
2014. O referido caso versa sobre a proteção exclusiva do personagem Sher-
lock Holmes. Os direitos sobre as primeiras obras de autoria de Connan Doyle
(falecido em 1930), onde o personagem aparece, já se encontram em domínio
público. Entretanto, os herdeiros do autor se insurgiram contra a o Editor Les-
lie Klinger que estava para publicar uma antologia sobre as obras com o perso-
nagem. Os herdeiros exigiram o pagamento de direitos autorais pela utilização
do personagem alegando direitos cumulados subsequentes relativo às obras
cuja data de criação ainda estava dentro do prazo de tutela pelo direito auto-

442 Vide trecho da decisão na parte pertinente: “fact that a copyrightable character or design has fallen
into the public domain should not preclude protection under the trademark laws so long as it is shown to
have acquired independent trademark significance, identifying in some way the source or sponsorship of the
goods.” (…) “It would not be enough that the illustrations in question have come to signify Beatrix Potter as
author of the books; [Warne] must show that they have come to represent its goodwill and reputation as
Publisher of those books.” Frederick Warne & Co. v. Book Sales, Inc., 481 F.Supp. 1191, 1195 (S.D.N.Y. 1979)
443 Frederick Warne & Co. sought to establish and maintain its trademark rights in the pictures of Peter
Rabbit while the copyright was in effect and then continued to press those trademark rights after the copy-
right expired. Here as well, the drawings of Peter Rabbit initially were the product, or part of the product, and
then became, at least according to the plaintiff, a trademark signifying the source of the product. Frederick
Warne demonstrates the way in which the expanded notion of trademarks and trademark rights has led to
overlap. The conclusion that Peter Rabbit has risen to trademark status is a stretch, yet the court did not
appear reluctant to confer trademark rights on Frederick Warne & Co. It is hard to believe that the picture of
Peter Rabbit has come to function as a trademark or that there is really a significant risk of confusion in this
instance. Indeed, it is only if the trademark rights are granted here that people will come to associate Peter
Rabbit with a single source rather than believing that he is part of the public domain (Moffat, 2004. p. 1509).”
221
ral. Após ameaças concretas dos herdeiros no sentido de impedir, inclusive na
justiça o uso das obras, Klinger se viu obrigado a propor ação declaratória de
não violação de direitos de exclusiva e de reconhecimento do domínio público
das obras. Os autores perderam em primeira instância, mas recorreram argu-
mentando que as características do personagem não poderiam ser divididas
em aspectos protegidos ou não protegidos. Alegaram ao juízo que permitir
que terceiros utilizem o personagem de forma livre em outras obras acarreta
a alteração nas características intrínsecas do personagem criado por Doyle
e que essa alteração viola os direitos morais sobre o personagem, devendo,
assim, serem estes resguardados.
Os argumentos dos herdeiros não prosperaram. O juízo entendeu
indevida a requerida cumulação subsequente de direitos em detrimento do
direito principal em domínio público. Ademais, deixou claro em seu julgado
que constatou que a real intenção da oposição dos herdeiros aos usos livres
da obra não residia na proteção moral das características do personagem,
mas sim no objetivo de perpetuar os ganhos com a utilização exclusiva dos
mesmos em detrimento da sociedade. O juízo ainda esclareceu que permitir
Patricia Carvalho da Rocha Porto

naquela circunstância a extensão da proteção da obra prejudicaria a socieda-


de, frustrando o objetivo final do sistema de direitos autoais e violando as dis-
posições da Constituição americana. Dessa forma, os direitos sobre o perso-
nagem Sherlock Holmes foram considerados em domínio público nos Estados
Unidos de forma definitiva. Abaixo trazemos as passagens que consideramos
mais relevante da decisão:
“.. We cannot find any basis in statute or case law for ex-tending a copyri-
ght beyond its expiration. When a story falls into the public domain, story
elements—including charac-ters covered by the expired copyright—beco-
me fair game for follow-on authors, as held in Silverman v. CBS Inc., 870
F.2d 40, 49–51 (2d Cir. 1989), a case much like this one.
(…)
More important, extending copyright protection is a two-edged sword
from the standpoint of inducing creativity, as it would reduce the incentive
of subsequent authors to create derivative works (such as new versions
of popular fictional characters like Holmes and Watson) by shrinking the
public domain. For the longer the copyright term is, the less public-domain
material there will be and so the greater will be the cost of authorship,
because authors will have to obtain li-censes from copyright holders for
more material—as illus-trated by the estate’s demand in this case for a
license fee from Pegasus.
Most copyrighted works include some, and often a great deal of, public
domain material—words, phrases, data, en-tire sentences, quoted mate-

222
propriedade intelectual
rial, and so forth. The smaller the public domain, the more work is involved
in the creation of a new work. The defendant’s proposed rule would also
en-courage authors to continue to write stories involving old characters in
an effort to prolong copyright protection, ra-ther than encouraging them
to create stories with entirely new characters. The effect would be to dis-
courage creativity.
(...)
Anyway it appears that the Doyle estate is concerned not with specific al-
terations in the depiction of Holmes or Watson in Holmes–Watson stories
written by authors other than Arthur Conan Doyle, but with any such story
that is published without payment to the estate of a licensing fee.
(..)
The spectre of perpetual, or at least nearly perpetual, copyright (perpe-
tual copyright would vio-late the copyright clause of the Constitution,
Art. I, § 8, cl. 8, which authorizes copyright protection only for “limited
Times”) looms, once one realizes that the Doyle estate is seeking 135 years
(1887–2022) of copyright protection for the character of Sherlock Holmes
as depicted in the first Sher-lock Holmes story” Klinger v. Conan Doyle
Estate, Ltd., US 7th Cir. June 16, 2014 as written by Jude Richard Posner.

Nota-se que a primeira decisão apresentada nessa seção versa acer-


ca da cumulação subsequente entre marca e DA. Já segunda diz respeito à
proteção subsequente de um direito autoral por outro, em razão de alegada
existência de direitos subsequentes sobre elementos diferentes de um perso-
nagem. Entretanto, as duas decisões lidam com a mesma questão de forma
distinta: a possibilidade de se estender a proteção exclusiva sobre um bem
cujo direito sobre uma determinada função já expirou.
Com relação a esse ponto, verificamos que a manifestação do juízo no
caso Sherlock Holmes diferiu do entendimento firmado no caso Petter Rabbit.
Tal fato reforça nossas suspeitas de que a justiça ainda se encontra dividida
sobre a questão da cumulação de direitos, notadamente no que concerne a
discussão sobre a tutela dos direitos privados x a tutela do interesse público. O
que nos faz perceber a necessidade de maiores discussões acerca dos direitos
e consequências em jogo em casos como esses.
Não obstante serem necessários maiores estudos para averiguar a
questão nos casos concretos, seguimos os entendimentos esposados por Mo-
ffat (2004, p. 1509) e pelo Juiz Posner. Tais seguem no sentido de que em
casos cuja proteção cumulada é arguida com a manifesta intenção de ampliar
o tempo da exclusividade sobre o bem, e cujo direito já tenha expirado devem
ser rechaçado.

223
A terceira decisão apresentada nos permite perceber alguns elemen-
tos que podem auxiliar também futura investigação acerca da correta identi-
ficação de direito a ser protegidos em casos de cumulação de DPI. O caso em
questão versa sobre a violação por um terceiro de personagens em quadrinho
de titularidade das empresas Warner, Hanna Barbera e Disney. Inconformadas
com tal uso não autorizado, as empresas titulares entraram na justiça pedindo
a abstenção do uso da obra por parte do terceiro e a condenação deste por
violação de direitos autorais e de marca, bem como respectiva indenização.
O juízo, em sede de Recurso Adesivo, entendeu que o uso se tratava de uso
como marca e não de uso dos personagens como objeto de direitos autorais.
Restou para o juízo comprovada a contrafação marcária e o Réu foi condena-
do a indenizar os Autores na forma da LPI. Entretanto, as Autoras recorreram
da decisão requerendo não só a indenização prevista na LPI acerca da contra-
fação marcária, mas também a indenização prevista no artigo 103 da LDA, sob
a alegação de serem titulares também dos direitos autorais dos personagens.
Ou seja, as Autoras queriam o reconhecimento da dupla proteção para fazer
jus a uma “dupla indenização”.
Patricia Carvalho da Rocha Porto

Nesse caso, o Tribunal entendeu ainda que no âmbito do conflito, os


personagens só foram utilizados pela empresa Ré como marca e, que, portanto,
as Autoras titulares só gozavam de um direito a ser tutelado pela Corte. Nesse
sentido, a Décima Câmara Cível proferiu a decisão abaixo, utilizando, ao que
nos parece, os critérios do uso funcionalizado do bem no âmbito do conflito em
conjunto com os critérios da proporcionalidade e razoabilidade para identificar
qual direito assistia ao autor e qual o escopo e limite da sua proteção:
“... 1. Incabível, no caso, a pretensão de que a indenização seja calculada,
cumulativamente, com base nos parâmetros fixados pela Lei de Proteção In-
dustrial e pela Lei de Direitos Autorais, na medida em que a aplicação de uma
exclui a aplicação da outra, além de que a cumulação pode implicar em enri-
quecimento indevido, ferindo padrões de proporcionalidade e razoabilidade.
2. Não fora isso, a própria Lei de Direitos Autorais, que as apelantes que-
rem ver aplicada em “adição” à Lei de Proteção à Propriedade Industrial,
prevê que o direito autoral protegido é o oriundo da experiência ou espí-
rito humano, excluindo expressamente de sua tutela o aproveitamento in-
dustrial ou comercial das idéias contidas em cada obra, que é o que fazem
as autoras em praticamente todo o mundo. 
Versa sobre a aplicação não só da  Lei de Propriedade Industrial
(9.279/96),mas também da Lei  9.610/98 ao caso, mais precisamente no
que se refere à indenização.
Segundo as recorrentes adesivas, o desenho de seus personagens é obra
intelectual, protegida pela Lei de Direitos Autorais, não se referindo a de-

224
propriedade intelectual
senhos industriais, “mas sim, a marca registrada, nos termos do art. 129 da
LPI”, de sorte que, “os atos das Recorridas decorreram tanto em violação
das obras intelectuais ..., como em infração de marca registrada e de con-
corrência desleal, ...” (f. 2295). Por isso entendem que à indenização já fixa-
da na sentença deve ser acrescida a indenização prevista na Lei 9.610/98,
em especial quanto à previsão de seu art. 103 e seu parágrafo único.
(...)
3. A despeito desse necessário intróito, tenho que o recurso adesivo não
merece provimento.
3.1. Nem sempre é fácil distinguir direito autoral de direito à propriedade
industrial, o que dificulta, na prática, a definição da tutela legal incidente.
A propósito, veja-se o que anota o doutrinador português José de Oliveira
Ascensão, tratando da legislação brasileira: “A Propriedade Industrial refe-
re-se a diferentes bens, como as marcas e os inventos. Neste último caso é
máximo o seu parentesco com o direito de autor, pois o autor da invenção
também é protegido (...).
Noutros casos pode haver dúvidas sobre a atribuição de certa matéria ao
Direito de Autor ou à Propriedade Industrial. (...)”4.
Esse parece ser bem o caso dos autos.
A sentença, no que se refere à indenização, determinou a aplicação da Lei
de Proteção à Propriedade Industrial (artigos 208 a 210), e as apelantes
adesivas querem que também seja aplicada a Lei de Proteção ao Direito
Autoral (artigos 102 e 103), em “adição” (f. 2.296).
Com a devida vênia, não vejo como aplicar referidas leis em conjunto, no
caso, para fins de fixação da indenização devida.
O autor acima citado fez esse questionamento ao tratar de obras de arte
aplicadas:
“E pode recorrer [o prejudicado] cumulativamente a ambos [tutela do di-
reito autoral e tutela do direito industrial]?”
E assim respondeu:
“Embora o ponto seja duvidoso, inclinamo-nos para a resposta negativa.
Cada qualificação traz um sistema completo de proteção ...”.5
Assim, já tendo sido aplicadas as disposições da Lei de Proteção Industrial,
é de se repelir a incidência cumulativa das disposições da Lei de Proteção
ao Direito Autoral, até para afastar o risco de”bis in idem”.
3.2. Além disso, a indenização também deve se nortear por critérios de
proporcionalidade e razoabilidade. E isso inegavelmente foi observado
pela sentença, posto que a aplicação da Lei de Propriedade Industrial, no
caso, mostra-se suficiente para o ressarcimento das apelantes, na medi-
da em que elas não demonstraram, concretamente, o contrário (o que,

225
inclusive, traz o risco de eventual enriquecimento indevido, a ser sempre
evitado). 
E veja-se o que também ensina a doutrina ao comentar essas disposições: 
“Na verdade, o sistema brasileiro de reparação civil não tem o caráter puniti-
vo; e tal característica é tão arraigada e central, que merece, a nosso ver, pro-
teção da cláusula do substantive processo of Law da Constituição de 1988.
Assim, para não infringir a Constituição, o juiz tem de escolher em cada caso
o método mais adequado a corrigir o dano, ainda que não seja o mais favo-
rável ao titular (...). As regras do art. 210 do CPI/96 permitem, certamente,
tal aplicação prudente do princípio da plena indenização, desde que se mo-
dere o excesso do dispositivo, ajustando-o ao standard constitucional” 6. 
(...)
3.3. Não fora isso, parece mesmo não ser o caso de aplicar a Lei do Direito
Autoral. 
(...)
3.4. Por fim, também a Lei de Proteção Autoral é expressa ao prever que
escapam de sua proteção, dentre outros, o”aproveitamento industrial ou
comercial das idéias contidas nas obras” (inc. VII, do art. 8º). No caso, é
Patricia Carvalho da Rocha Porto

inegável o caráter industrial e comercial das autoras, que reproduzem seus


personagens praticamente no mundo todo. 
DIANTE DO EXPOSTO, VOTO pelo provimento parcial da apelação, apenas
no que se refere aos honorários advocatícios (15% sobre o valor da conde-
nação em relação a cada um dos réus), e pelo não provimento do recurso
adesivo. 
Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná por una-
nimidade de votos em DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO E NEGAR
PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO, nos termos do voto do relator. 
Apelação Cível nº 0604332-5. Décima Câmara Cível do Tribunal de Jus-
tiça do Estado do Paraná Relator Des. Valter Ressel. Julgamento dia
04/02/2010.

No caso exposto, fazemos a ressalva de que entendermos que na re-


alidade o uso dos personagens feito pelo terceiro se tratava de uso protegido
pelo direito de autor. A finalidade de se apor os personagens aos artigos de
varejo não foi vincular estes à origem do terceiro, e sim valorizar os produtos
incitando nos consumidores as características dos personagens como obra
intelectual. Entretanto, em que pese a identificação errônea do direito viola-
do444, o que é importante para a nossa análise, porém, é verificar o enten-

444 *Fato que só corrobora com o nosso entendimento de que endereçar corretamente a solução de um
conflito de cumulação de DPI é tarefa complexa e que demanda análise cuidadosa das partes e suas rela-
ções com o bem. E, inclusive, esta dificuldade de entendimento do tema pelas partes envolvidas no conflito
e, até mesmo, pelos magistrados, é um dos elementos que facilitam atos oportunistas dos titulares.
226
propriedade intelectual
dimento do Tribunal de que “já tendo sido aplicadas as disposições da Lei de
Proteção Industrial, é de se repelir a incidência cumulativa das disposições da
Lei de Proteção ao Direito Autoral.

4.3. Proteções de títulos de obras intelectuais como DA e MARCA


No Brasil, tanto a legislação marcária quanto a legislação autoral per-
mitem e dispõem acerca da a proteção de títulos de obras intelectuais, impon-
do, entretanto alguns requisitos e ressalvas.
A LDA dispõe em seu artigo 8º, VII que nomes e títulos isolados não
são protegidos pelo direito autoral. Já o artigo 10º da mesma lei esclarece que
a proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e inconfundível
com o de obra do mesmo gênero divulgada anteriormente por outro autor.
Dessas duas disposições verificamos que o título isolado não é passí-
vel de proteção pelo DA. Entretanto, este gozará de proteção se (1) for parte
integrante de uma obra intelectual445; (2) se original; e (3) inconfundível com
o de obra de mesmo gênero446 divulgada anteriormente.
Com relação à proteção de título como marca, conforme verificamos
no item acima, o artigo 124, XVII da LPI, permite o registro de títulos como
marca desde que (1) não sejam suscetíveis de causar confusão ou associação
e (2) que o autor ou titular da obra intelectual dê autorização para o registro
desta como marca.
As diretrizes de análise de marcas do INPI, de 11/12/2012, na seção
3.4.11, dedicam trecho específico sobre títulos de obra.

4.4. Dupla proteção de produtos, rótulos e embalagens


A princípio, a dupla proteção de rótulos e embalagens como marca e
como direito autoral é possível e, inclusive, regulada em nosso ordenamento
jurídico. Esses elementos, se distintivos, encontram possibilidade de proteção

445 José de Oliveira Ascensão (2002) guarda entendimento que alguns títulos, em casos relativamente
raros, têm originalidade, significado e estrutura complexa o suficiente para serem considerados por si só
pequenas obras. Nesses casos, o autor entende que essas obras seriam passíveis de proteção pelo direito
autoral, inclusive, isoladamente.
446 Acerca da interpretação dos termos “original”, “inconfundível” e “gênero” no âmbito do artigo 10 da
LDA, vide decisão proferida pela Juíza Fernanda Rosado Sousa, no processo nº 2001.001.0203867, em trâ-
mite na 26ª Vara Cível da cidade do Rio de Janeiro, em 31/01/2012. Com relação ao requisito da originalida-
de, a juíza entendeu que um título para ser considerado original não pode ser reconhecido como expressão
comunmente associada ao tema da obra. A Juíza entendeu que para ser considerado “inconfundível” o
título deve e ser distinto de outros títulos já existentes. Por fim, acerca da expressão “gênero” a magistrada
informou que esta expressão se refere à categorização da obra segundo o seu gênero, ou seja, obra do
gênero se literária, audiovisual, musical, etc.
227
na LPI. De forma geral a LPI no artigo 122 garante proteção marcária para si-
nais visualmente perceptíveis não compreendidos nas proibições legais, bem
como, no artigo 123, I que protege as marcas de produtos. As embalagens e
os produtos são protegidas como marcas tridimensionais.
As diretrizes de análises de marca do INPI (2012), no item 1.3.4, con-
ceitua a marca tridimensional como o sinal constituído pela forma plástica
distintiva do produto ou do seu acondicionamento ou da sua embalagem.
Cabe observar a ressalva feita pelo artigo 124, XXI da LPI que proíbe o
registro como marca da forma necessária, comum ou vulgar do produto ou de
acondicionamento, ou, ainda, aquela que não possa ser dissociada de efeito
técnico. Ou seja, a marca tridimensional não pode (a) ser uma forma comum
ou vulgar e (b) deve ser capaz de ser dissociada de efeito técnico.
Cumpre observar, acompanhando as lições de Denis Barbosa (2008),
que os produtos, as embalagens e seus rótulos não são de forma primígena
obras criadas para distinguir e criar um vínculo entre o produto e a sua ori-
gem, mas sim para se presentificar como produtos, acondicioná-los e funcio-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

narem como objeto propaganda, tornando o produto mais atrativo447. Tal


indicativo nos informa que originalmente a função exercida por produtos,
embalagens e rótulos se encaixa nos recortes de proteção de DA, no que
tiverem de caráter artístico e de desenho industrial – DI, no que tiverem de
aplicáveis à industria. Nesse sentido, entendemos que um produto, uma em-
balagem ou um rótulo só pode gozar de proteção marcária de forma legíti-
ma, se ficar comprovado que tal elemento adquiriu na percepção do público
consumidor um significado secundário de signo indicativo da sua origem ou
da origem do produto que acondiciona ou evidencia. Portanto, seguindo as
lições de Barbosa (2008), entendemos ser inconstitucional o registro de pro-
dutos, embalagens e rótulos como marca sem a aquisição de uma função
distintiva secundária.
A LDA também protege esses elementos pelo direito autoral (art, 7º,
VIII), desde que eles atendam aos requisitos para a proteção pelo DA, dentre
eles, a originalidade.
Abaixo trazemos interessante caso envolvendo a alegação de dupla
proteção da embalagem do perfume Dior como marca e como DA para impe-
dir uso da embalagem por revendedor autorizados em encarte promocional
de farmácia.

447 Vide leading case sobre a questão: Wal-Mart Stores, Inc. V. Samara Brothers, Inc.. Caso decidido em
22 de março de 2000 pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
228
propriedade intelectual
4.5. Caso Dior x Evora
A empresa Christian Dior além de titular dos direitos autorais dos de-
senhos dos frascos de seus perfumes é titular de marcas constituídas por tais
elementos. Os perfumes Dior são bens destinados ao segmento de luxo e são
vendidos para um público diferenciado. Em 1996, a Rede de farmácias Évora
vendia os perfumes da Dior. Os produtos em questão eram importados, mas
adquiridos de forma legal. A Rede Évora anunciou alguns dos perfumes da Dior
que revendia em seu encarte promocional de natal. Para ilustrar a sua propa-
ganda, utilizou a imagem dos frascos dos perfumes que estava vendendo. As
imagens dos perfumes indicavam fielmente os produtos pela rede licitamente
vendidos e a publicidade foi realizada de forma compatível com o costume do
segmento mercadológico. Não obstante, a Dior não aprovou a utilização da
imagem das embalagens de seus perfumes em um encarte proporcional de
farmácia. Ela entendia que tal uso denegria a imagem da marca prejudicava o
seu prestígio perante aos clientes de luxo.
Inconformada por não poder se opor à exposição da imagem dos fras-
cos com base no direito marcário, visto que a Rede Évora tinha o direito de
vender os produtos, assim como anunciá-los em seus veículos de promoção.
A empresa Dior entrou com uma ação no Tribunal de Benelux pedindo que
a rede Évora fosse impedida de publicar as imagens dos seus perfumes com
base nos direitos autorais que a Dior detinha sobre os desenhos dos frascos.
Um conflito de interpretação acerca de uma norma da Comunidade Europeia
fez com que o caso fosse encaminhado para ser decidido pela Corte de Justiça
dessa Comunidade.
A Corte entendeu que independente de reconhecimento cumulati-
vo ou não de direitos, a proteção conferida pelo direito de autor, no que diz
respeito à reprodução de obras exibidas em publicidade de revendedor não
pode, em qualquer caso, ser mais ampla do que aquela que é conferida pelo
direito marcário nas mesmas circunstâncias:
“...there being no need to consider the question whether copyright and
trade mark rights may be relied on simultaneously in respect of the same
product —, it is sufficient to hold that, in circumstances such as those in
point in the main proceedings, the protection conferred by copyright as
regards the reproduction of protected works in a reseller’s advertising
may not, in any event, be broader than that which is conferred on a trade
mark owner in the same circumstances.” Case C-337/95 (Parfums Chris-
tian Dior SA and Parfums Christian Dior BV v. Evora BV). – ECR 1997, p.
I-06013.

229
No caso presente entendemos que, não obstante a Corte entender
não haver necessidade de entrar no mérito da possibilidade ou não da dupla
proteção, a presente decisão apresenta interessante índice de compatibiliza-
ção em casos com potencial capacidade de desequilibrar o balanceamento de
institutos de PI. E acreditamos que tal índice possa ser melhor examinado em
futuros estudos para verificar a possibilidade de sua aplicação em casos de
cumulações deletérias de DPI. Ao estipular que proteção conferida por um di-
reito não pode ser mais ampla do que a conferida a outro direito que proteger
bens idênticos ou semelhantes (perfumes) em uma mesma situação (propa-
ganda em encarte de loja de departamento, farmácia, ou afins), a Corte Euro-
peia impediu que em casos idênticos ou similares os titulares se utilizassem de
expedientes oportunistas para obter de forma indevida maior ou melhor pro-
teção de seus direitos e interesses optando em utilizar um sistema ou outro.

4.6. Considerações sobre as decisões


As decisões acima expostas nos forneceram informações relevantes
e suscitam questões que consideramos pertinentes investigar na continuida-
Patricia Carvalho da Rocha Porto

de do estudo sobre o tema. Dentre os questionamentos já apresentados ao


longo das seções acima, outra questão que entendemos relevante maiores
investigações para responder é: em que casos a cumulação de direitos deve
ser permitida e quais os limites que devem ser observados para que ela não
viole direitos e interesses de terceiros?
Em que pese em abstrato a cumulação de direitos não ser um proble-
ma por si só (Kur & Dinwoodie, 2001), constata-se a existência de muitos casos
nos quais disfunções ocorrem e suas consequências apresentam riscos subs-
tanciais para o equilíbrio do sistema de PI e para o interesse público. Como
por exemplo, como vimos, casos em que os titulares de obras vão além dos
direitos que gozam para tentar estender sua exclusividade, bem como para
aumentar os seus ganhos fazendo uso das ferramentas disponíveis em cada
modelo de proteção para excluir terceiro do uso do bem utilizando a ferra-
menta que melhor lhe servir (Dinwoodie, 2001)448. Essas atitudes acabam
448 “…- These developments pose dangers as well as opportunities for authors. While trademark law can
easily be seen as a means by which copyright owners can fill gaps in the fabric of copyright protection, it is by
no means certain that the doctrinal (and theoretical) integration of separate intellectual property regimes
will effect the transposition only of “filling” principles that accord more expansive protection. Instead, the
“limiting” principles of trademark law (and design law and patent law) may as easily come to shape the
contours of intellectual property protection of works of authorship, to the detriment of both the body of
copyright law and the rights of authors. Moreover, the balance intentionally infused into copyright law (from
which authors benefit) may inappropriately be disrupted by opportunistic exploitation of the differences
between copyright and trademark (and design) law (Dinwoodie, 2001,p.2)”…“…Opportunistic litigation is
also a practical cause of these recent developments: trademark can fill the holes in the fabric of copyright
protection that a plaintiff receives. (Dinwoodie, 2001,p.9)” …
230
propriedade intelectual
por gerar disfunções nos casos de cumulação de direitos que devem ser com-
patibilizados.

5. Conclusão
Verificamos que a cumulação de direitos de propriedade intelectual,
a princípio, ao sistema de PI. Entretanto, abusos de direito por parte dos titu-
lares na busca pela expansão e perpetuação de seus direitos exclusivos têm
o potencial de gerar cumulações disfuncionais. Verificamos que nas últimas
décadas, com as mudanças no sistema de PI, as cumulações criadas de for-
ma desordenada e não ponderadas estão gerando cada vez mais resultados
danosos. As cumulações deletérias podem ser extremamente lesivas para o
interesse público e para o equilíbrio do sistema de PI. Dentre as consequências
indesejadas desse acúmulo de direitos podemos elencar a expansão indevida
de direitos exclusivos, a mitigação do domínio público, a violações de direitos
adquiridos da sociedade ao acesso de bens intelectuais que já deveriam estar
livres, dentre outros resultados que devem ser evitados.
Nesse sentido, entendemos que se cumulação de direitos não for de-
vidamente analisada, balanceada e limitada segundo as funcionalidades e os
objetivos constitucionais de cada instituto de propriedade intelectual, aqui,
particularmente quanto aos institutos marcário e de direito autoral, haverá
danos de difícil reparação para a o sistema de PI e para o interesse público.
Como o tema ainda é recente e controverso acreditamos ser de cru-
cial importância a realização de estudos mais aprofundados sobre esse tema,
bem como sobre as suas consequências para a sociedade e para o equilíbrio
do sistema de PI.

Wilhelm Grosheide has described this as the rise of the “ipr entrepreneuer” as a right owner, seeking indis-
criminately to obtain an advantage over rivals through application of whatever legal rights it can find.36
Annette Kur has described this as the “human factor” in modern intellectual property litigation.37 But how-
ever, we describe it, it is important to recognize that while we may rationalize and theorize the reasons for
the convergence in the different intellectual property regimes, it is in large part attributable not to universal
truths about the nature of the different property rights but rather to historical circumstance ((Dinwoodie,
2001,p.10 e 11).

231
propriedade intelectual
RETALIAÇÃO CRUZADA EM PROPRIEDADE INTELECTUAL:
uma alternativa aos países em desenvolvimento para a
solução de disputas na organização mundial do comércio*

Marcos Wachowicz449 e
Vitor Augusto Wagner Kist450

1. Introdução
Com a criação da Organização Mundial do Comércio surgiu também o
Órgão de Solução de Controvérsias, que apesar de trazer incisivas melhoras ao
sistema de solução de conflitos ainda é bastante deficiente quando estão em
jogo os interesses de países economicamente díspares, o que gera grandes
dificuldades aos Estados em desenvolvimento. A alternativa para suprir essa
deficiência, aumentando a efetividade das decisões favoráveis aos países mais
pobres, é a utilização da chamada Retaliação Cruzada em direitos de Proprie-
dade Intelectual, regulados pelo acordo TRIPS, mais precisamente na área de
patentes industriais. Essa medida é assegurada pelo próprio Entendimento re-
lativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias que regula
o Órgão de Solução de Controvérsias e nunca foi utilizada devido a pressão
exercida pelos Estados detentores dos direitos de propriedade intelectual,
mas a simples ameaça de utilização do dispositivo já gerou efeitos favoráveis a
países em desenvolvimento no momento de negociação sobre a resolução da
controvérsia, como no caso Equador – Bananas III e Brasil – Estados Unidos,
Caso do algodão.
Esse trabalho visa tratar sobre a Retaliação Cruzada como uma al-
ternativa legal aos países em desenvolvimento nos casos em que litigam no
Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio.
Aborda-se a problemática na efetivação das retaliações e dos demais
remédios habitualmente utilizados no âmbito do Órgão de Solução de Contro-
vérsias, indicando a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual,
* Este artigo foi produzido mediante apoio da Capes e CNPq.
449 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre em Direito pela Universidade
Clássica de Lisboa, Portugal. Professor de Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UFPR e docen-
te do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Coordenador do Grupo de
Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR. E-mail: marcos.wachowicz@gmail.com.
450 Especialista em Propriedade Industrial e Biotecnologia pela Justus-Liebig University Giessen, Alema-
nha. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Pesquisador do Grupo de Estudos de
Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR. E-mail: vitorkist@gmail.com.
233
regulados pelo TRIPS451, como uma alternativa legal e mais proveitosa aos pa-
íses em desenvolvimento.
Por fim, com o intuito de dar maior esclarecimento ao assunto, trata-
se dos casos em que essa alternativa foi autorizada pelo Órgão de Solução de
Controvérsias e suas peculiaridades, bem como os acordos que decorreram
dessas disputas.

2. O Órgão de Solução de Controvérsias da Organização


Mundial do Comércio
O Órgão de Solução de Controvérsias é um dos pilares da Organização
Mundial do Comércio e visa promover a segurança e previsibilidade nos acor-
dos multilaterais. Criado durante a Rodada do Uruguai, propicia aos membros
a resolução de seus conflitos de forma pacífica, com base em regras predefi-
nidas e aceitas livremente pelos países em questão.
Essa resolução se dá por meio de abertura de procedimentos chama-
dos de consultas e painéis junto ao OSC. Tais procedimentos visam averiguar
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

se os Estados membros da OMC agem de maneira diferente àquilo que se


comprometeram. Quando comprovado esse desvio, recomenda-se ao mem-
bro irregular que modifique sua conduta, a fim de se enquadrar aos ditames
da OMC. Quando o Estado se nega a cumprir a decisão da OSC surgem os
remédios e contramedidas.
Os remédios oferecidos pelo Órgão de Solução de Controvérsias são
a recomendação, sugestão e compensação. A primeira, prevista no artigo 19
do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Con-
trovérsias (ESC), se resume a uma recomendação sem força coativa para que
o país infrator adeque sua conduta.
A Sugestão é um acréscimo à Recomendação, pois sugerem um cami-
nho a ser tomado pelo membro desviante. A Compensação, por sua vez, deve
ser efetivada de imediato e apresentada em uma reunião do OSC, que deve
ser realizada em até 30 dias após a adoção do relatório. Nos casos em que
nenhum desses remédios surtam efeitos, a Organização Mundial do Comércio
defere a utilização das contramedidas.
As contramedidas, são a Retaliação e a Retaliação Cruzada, esta últi-
ma que será mais profundamente analisada neste artigo. Por retaliação deve
451 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, em inglês
Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, é o instrumento internacional mais
importante para a globalização das leis de propriedade intelectual, visto que prevê padrões mínimos de
proteção de direitos de Propriedade Intelectual e regula de forma geral o sistema.
234
propriedade intelectual
ser entendido a suspensão temporária de vantagens comerciais negociadas
na OMC, ou, como explicou Schefer452, medidas que discriminatoriamente co-
locam o membro sucumbente em piores condições de competição quando
comparado aos demais membros da organização.
As contramedidas devem ser adotadas preferencialmente no mesmo
setor em que o OSC tenha constatado a infração453. Se ainda assim a parte
considerar impraticável aplicar a contramedida no mesmo acordo, “pode-
rá procurar suspender concessões e outras obrigações abarcadas por outro
acordo abrangido”454, é o que chamamos de Retaliação Cruzada.
Contudo, as contramedidas comumente oferecidas pela OMC vêm se
demonstrando ineficientes quando estão em jogo os interesses de países com
economias assimétricas, como se passará a analisar abaixo.

2.1. Dificuldades na efetivação das disputas entre jogadores assimétricos


O maior problema do sistema de solução de controvérsias é, e sem-
pre foi, o seu modo de implementação. É verdade que 83% das disputas
comerciais são cumpridas, e sem dúvida esse é um número expressivo para
um sistema internacional455. Contudo, esse índice mascara alguns pontos
cruciais.
Primeiramente, leva em consideração as decisões que foram apenas
parcialmente cumpridas, tendo o restante de seu conteúdo sido modificado
por negociações entre as partes. Essas negociações geralmente se dão em
uma situação de hipossuficiência dos países com economias menores, o que
leva a um abrandamento no cumprimento da decisão.
Em outras palavras, sob o risco de ver a decisão não cumprida pela
parte reclamada, o país reclamante aceita um cumprimento parcial e se dá por
satisfeito, ficando o caso como encerrado, a decisão como cumprida, e sendo
computado desse modo nos índices da OMC.
Desde a data de sua criação em 1995 até abril de 2012 o OSC havia
lidado com exatos 436 disputas internacionais. Dessas, apenas 8456 chegaram

452 SCHEFER, Krista Nadakavuraken. Social Regulation in the WTO: Trade Policy and International Legal
Development. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. P. 147.
453 Artigo 22.3 a, do ESC.
454 Artigo 22.3 c, do ESC.
455 DAVEY, William J. The WTO Dispute Settlement System: the first decade. In: Journal of International
Economic Law. Vol. 8, Oxford University Press. 2005. P. 17-50.
456 EC-Bananas, EC-Hormones, US–Gambling, US-Cotton Subsidies, US-FSC, US-Byrd Amendment, Bra-
zil-Aircraft e Canada-Aircraft.
235
a ter a retaliação aprovada.457 Aliado a essa relativa falta de efetividade na im-
posição das decisões do OSC está o fato de que as medidas autorizadas visam
apenas o reequilíbrio comercial entre os países litigantes.
A OMC não tem o objetivo de sancionar o país violador. Ou seja, só
permite que seja retaliado o montante gerado como prejuízo ao reclaman-
te. Ainda, é importante ressaltar que as autorizações para retaliações só são
obtidas após anos de trâmites legais junto ao OSC, e que neste interim o país
afetado negativamente pode ter sido prejudicado de uma forma irreversível.
Devido à falta de caráter sancionador das decisões da OSC, pode-
se dizer que o país que puder arcar economicamente com as contramedidas
pode simplesmente pagá-las e continuar violando o acordo. Para reforçar o
argumento faz-se imprescindível a declaração dada em 2004 pela Mesa Con-
sultiva ao Diretor Geral da Organização Mundial do Comércio:
It has been argued by some that WTO member finding itself in a losing po-
sition in the WTO dispute settlement system has a free choice on whether
or not to actually implement the obligations spelled out in the adopted
Appellate Body or panel reports: the alternatives being simply to provi-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

de compensation or endure retaliation. This is as erroneous belief. (…) To


allow governments to “buy out” of their obligations by providing “compen-
sation” or enduring “suspension of obligation” also creates major asym-
metries of treatment in the system. It favors the rich and powerful coun-
tries which can afford such “buy outs” while retaining measures that harm
and distort trade in a manner inconsistent with the rules of the system.458

Pascal Lamy, comissário de comércio internacional da Comunidade


Europeia, no mesmo sentido, afirmou em 2000 ao tratar do assunto que,
“contanto que se pague a penalidade, você pode continuar como está” 459.
Em uma analogia simplista, e utilizando-se da metáfora de Rudolf
von Ihering “(...) a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa
o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A
espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência
do direito”.460.
457 VARGAS, Renata. 2012. P. 97-102.
458 SUTHERLAND, Peter, BHAGWATI, Jagdish, BOTCHWEY, Kwesi, FITZGERALD, Niall, HAMADA, Koichi,
JACKSON, John H., LAFER, Celso, MONTBRIAL, Thierry de. The Future of the WTO: Addressing Institution-
al challenges in the new millennium. Report by the Consultative Board to the Director-General Supachai
Panitchpakdi. World Trade Organization. Switzerland, 2004 P. 54 Disponível em http://www.ipu.org/splz-e/
wto-symp05/future_WTO.pdf acessado em 03/09/2014.
459 MATSUSHITA, Mitsuo, Schoenbaum, Thomas J. and Mavroidis, Petro C. The World Trade Organization:
Law, Practice, and Policy. New York: Oxford University Press, US, 2003. P. 93. Livre tradução de “As long as
you pay the penalties, you can go as you are”.
460 IHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. Coleção a obra-prima de cada autor. Tradução de Pietro Nas-
seti. 2ª Edição, Editora Martin Claret Ltda. São Paulo - SP, 2000. Título original “Der Kampf um’s Recht. P. 27.
236
propriedade intelectual
A falta de caráter sancionador e a ausência de força impositiva das
decisões da OSC, devido a questões de soberania Estatal, fazem com que a
justiça da Organização Mundial do Comércio seja uma Themis sem espada,
que espera que suas decisões sejam cumpridas por opção dos países mem-
bros.
Nos subtítulos que seguem serão analisados mais detalhadamente os
fatores que geram esta problemática, bem como as possíveis opções legais
oferecidas pelo ESC para que os países em desenvolvimento vejam seus direi-
tos efetivados.
O Órgão de Solução de Controvérsias como uma instituição pauta-
da em regras preestabelecidas e legalmente acordadas trouxe a promessa de
que seria ampliado o âmbito de participação dos países em desenvolvimento
junto à OMC.
A participação dos países com menor capacidade econômica no con-
texto do GATT era bastante reduzida, visto que o sistema de resolução de con-
trovérsias no qual era pautado o acordo anterior era puramente diplomático e
sofria pesadas limitações devido as diferenças de peso político dos envolvidos.
Essa situação vem melhorando com a criação da OSC. Dados estatís-
ticos comprovam que no período de 1995 até 2001 um terço das reclamações
junto ao órgão foram feitas por países em desenvolvimento, número maior do
que no período do GATT461.
Contudo, insta salientar que apesar desse crescente número de ações
intentadas por países menos desenvolvidos, até 2007 apenas dez países em
desenvolvimento haviam se utilizado do sistema de resolução de controvér-
sias. Ademais, em 76% desses casos a iniciativa foi dada por um grupo de seis
países, sendo eles Brasil, Argentina, Índia, México, Coréia do Sul e Tailândia462.
Isto posto, pode-se afirmar que apesar da existência de um aumento
na participação dos países em desenvolvimento das disputas junto ao OSC,
o sistema está longe de ser equitativo e oferecer iguais condições a todos os
membros. É patente a existência de assimetrias relativas ao tamanho dos mer-
461 BUSCH, Marc L. REINHARDT, Eric. Developing Countries and GATT/WTO Dispute Settlement. Journal of
World Trade. Edição 37(4). Países Baixos: Kluwer Law International. 2003. P. 719-721. Disponível em: http://
www.researchgate.net/publication/228559226_Developing_countries_and_general_agreement_on_tari-
ffs_and_tradeworld_trade_organization_dispute_settlement/links/00b495230a0305ec8c000000. Acessa-
do em 04/09/2014.
462 NORDSTROM, Hakan; SHAFFER, Gregory. Acces to Justice in the World Trade Organization: The Case
for a Small Claims Procedure? A preliminary Analysis. Issue Paper number 2.International Centre for Trade
and Sustainable Development: Genebra, 2007, p. V. Disponível em http://www.ictsd.org/themes/glob-
al-economic-governance/research/access-to-justice-in-the-wto-the-case-for-small-claims e http://ictsd.
org/i/publications/11306/. Acessado em 04/09/2014.
237
cados e de poder político entre os países membros da OMC. O que gera um
grande problema quando o assunto é o Órgão de Solução de Controvérsias,
como passará a ser explicado adiante.

2.2. Custos legais e carência de capacidade técnica


Como primeiro ponto, deve-se levar em consideração que os custos
para se participar de um procedimento junto ao OSC são bastante elevados e
requer profissionais treinados na área, o que é um empecilho aos países mais
pobres.
Como analisado por Busch e Reinhardt463, os países necessitam de um
time de advogados treinados e com experiência na área, instituições formadas
para participar e monitorar o comércio, bem como representantes que jul-
guem a viabilidade do procedimento, por último, os membros devem dispor
de uma equipe em Genebra para acompanhar o processo de perto.
Esse tipo de mão de obra especializada é rara em todo mundo, mais
ainda em países pobres, que possuem menos capacidade de formação de uma
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

equipe preparada para lidar com tais demandas, visto que são obrigados a
gastar seus limitados recursos com necessidades mais básicas, como alimen-
tação e saúde.
Segundo Norstrom e Shaffer464, os custos para se levar uma causa até
o órgão de apelação variam de 300 a 900 mil dólares, sendo que em alguns ca-
sos, como o do Japão – Filmes Fotográficos, o montante chegou a 10 milhões
de dólares. Esses valores, podem parecer ínfimos quando se pensa em eco-
nomias como os Estados Unidos e União Europeia, mas 10 milhões de dólares
corresponde a aproximadamente 15% das exportações anuais de membros
como Burundi, Gambia ou Guiné Bissau465.
Evidentemente esses requisitos não podem ser supridos de forma efi-
caz pelos países menos abastados. Dessa feita, fica evidente que as economias
mais desenvolvidas estão muito mais aptas a obter êxito nas disputas do OSC.
Analisando a situação dessa forma, vê-se que na grande maioria dos casos

463 BUSCH, Marc L. Reinhardt, Eric. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries.
In: Trade Brief on the WTO Dispute Settlement. Sida: Department for Infrastructure and Economic Cooper-
ation. Stockholm: Edita Sverige AB, 2004.
464 NORDSTROM, Hakan; SHAFFER, Gregory. Acces to Justice in the World Trade Organization: The Case
for a Small Claims Procedure? A preliminary Analysis. Issue Paper number 2.International Centre for Trade
and Sustainable Development: Genebra, 2007, p. 10. Disponível em http://www.ictsd.org/themes/global-e-
conomic-governance/research/access-to-justice-in-the-wto-the-case-for-small-claims e http://ictsd.org/i/
publications/11306/. Acessado em 04/09/2014.
465 NORSTROM, SHAFFER. P. 1.
238
propriedade intelectual
não é economicamente viável a países pequenos entrar em disputas junto ao
OSC, pois o montante em discussão seria superado pelos custos judiciais. Ain-
da, tem-se que colocar na balança o tempo de demora até que uma possível
retaliação ou outra solução seja autorizada, que em alguns casos leva até 3
anos466.
Feita essa brevíssima análise do problema de falta de recursos e ca-
pacidade técnica por qual passam os países subdesenvolvidos para promover
uma disputa comercial, passar-se-á a análise dos problemas de efetivação pro-
priamente dita das retaliações autorizadas pelo OSC.

2.3. Danos colaterais ao país reclamante


Primeiramente, deve-se ter em conta o paradoxo que representa a
figura da retaliação comercial na OMC. A organização tem como princípio
basilar, a liberalização do comércio internacional, enquanto a retaliação tem
o sentido oposto, tendo como parâmetro a tomada de medidas protecionis-
tas467.
Segundo as teorias clássicas de Adam Smith e David Ricardo, adeptos
da teoria econômica liberal, reduzir barreiras é positivo, uma vez que gera
ganhos de eficiência no mercado, através da promoção da concorrência e oti-
mização da produção e distribuição de bens e serviços.
É aliás o que diz o primeiro parágrafo do acordo que estabelece a
OMC, “reconhecendo que as relações nos campos de trocas e esforços eco-
nômicos devem ser conduzidas visualizando o aumento do padrão de vida, a
assegurar o pleno emprego e o aumento real de lucros e eficiência além de
expandir a produção de bens e serviços ao mesmo passo que permite a otimi-
zação do desenvolvimento sustentável.”468
E continua no parágrafo terceiro afirmando que os países membros
“são desejosos em contribuir para esses objetivos por meio de reciprocas e
mutuas negociações dirigidas para a redução substancial de tarifas e outras
barreiras (...)”. Nessa lógica, aumentar as barreiras geraria o efeito contrário,
prejudicando a eficiência do mercado e a livre concorrência, causando preju-
ízos ao membro.

466 NORSTROM, SHAFFER. P. 1.


467 SPADANO, Lucas Eduardo F. A. Cross-agreement retaliation in the WTO dispute settlement system: an
important enforcement mechanism for developing countries? World Trade Review. Oxford. Oxford Press,
2008. P. 521.
468 Acordo que estabelece a Organização Mundial do Comércio. P.9. Disponível em: http://www.wto.org/
english/docs_e/legal_e/04-wto.pdf. Acessado em: 09/09/2014.
239
A teoria que rege a retaliação é a de que se um país aumentar as
barreiras tarifárias em face de outro os agentes internos do membro retaliado
exercerão pressão sobre o governo para que se enquadre no previsto pela
OMC, a fim de fazer com que as contramedidas cessem.
Uma boa estratégia para o membro reclamante é adotar a contra-
medida em um setor dominado por pessoas com influência política, pois isso
geraria maior pressão, aumentando a eficácia da medida.
Ainda, o membro reclamante pode optar por um setor que gere me-
nos dano para si mesmo, visto que em última análise o aumento das taxas de
importação encarece o preço do produto para os seus cidadãos.
Contudo, essa análise pressupõe uma disputa ideal entre dois mem-
bros com poder econômico equiparável, o que raramente acontece. Na gran-
de maioria dos casos as retaliações ocorrem em acordos envolvendo mem-
bros com economias muito discrepantes, surtindo mais danos ao país em
desenvolvimento do que ao desenvolvido.
Isso ocorre por alguns motivos chaves. Primeiramente, pode-se afir-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

mar que normalmente o montante retaliado por um país em desenvolvimento


é insignificante para o membro desenvolvido, não gerando pressão para que
este implemente a decisão. Em segundo lugar, a medida causa danos cola-
terais ao país retaliante, pois aumenta os custos de importação de produtos
advindos do país retaliado.
O que pode ser um montante de vital importância para um país me-
nos favorecido, representando seu principal setor de exportação ou importa-
ção, pode não fazer diferença para o membro com maior poder econômico.
Isso faz com que a retaliação seja simplesmente inefetiva, visto que não é
capaz de exercer pressão.
Segundo Bown469, as motivações para que os países levem os casos
ao OSC são de natureza econômica. A decisão se baseia na probabilidade de
sucesso e a efetiva ameaça de retaliação que resultará da disputa. Dessa for-
ma, os países em desenvolvimento, após breve sopesamento, não se sentem
encorajados a levar as disputas nem ao Órgão de Solução de Controvérsias,
menos ainda a efetivar uma retaliação.
Busch e Reinhardt470 tem uma opinião semelhante. Segundo os auto-
res, a carência de capacidade jurídica combinada com a limitada capacidade
469 BOWN, C.P. (2004), “Developing Countries as Plaintiffs and Defendants in GATT/WTO Trade Dis-
putes,” The World Economy, 27: P. 59-80. Disponível em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.
1467-9701.2004.00588.x/abstract. Acessado em 05/09/2014.
470 BUSCH,Marc L; REINHARDT, Eric. The WTO Dispute Settlement Mechanism and developing countries.
SIDA, 2004. Disponível em: http://faculty.georgetown.edu/mlb66/SIDA.pdf . Acessado em 09/09/2014.
240
propriedade intelectual
de retaliação faz com que os países desenvolvidos sejam capazes de induzir
os membros menos privilegiados a firmarem acordos antes que o OSC seja
provocado.
Ainda, tem-se que pensar nos danos colaterais causados por uma re-
taliação na economia do país retaliante. O aumento das taxas alfandegárias
gera o aumento do preço de importação, o que encarece o preço dos produ-
tos ao consumidor. Tome-se o exemplo de um país em desenvolvimento que
tem como base econômica a exportação de produtos agrícolas, e que depen-
de diretamente de insumos agrícolas advindos do país desenvolvido.
Um impasse comercial que resulte em uma retaliação por parte do
país com menor potencial econômico encareceria o preço de produção de seu
principal produto, tornando-o menos competitivo no mercado internacional e
reduzindo os seus lucros com exportação.
Nesse caso o produtor do país retaliante sairia severamente preju-
dicado, além de que o país acabaria, em última análise, por arrecadar menos
impostos com a cadeia produtiva, um ato prejudicial para si mesmo.
Pode-se cogitar a possibilidade de retaliação em serviços como uma
solução para esse problema, supondo-se que os competidores internos sai-
riam beneficiados com a retirada, ou ao menos a diminuição da capacidade
competitiva, do prestador estrangeiro.
Contudo, essa precariedade de competição fará com que os compe-
tidores internos aumentem seus preços ou diminuam a qualidade do serviço,
devido simplesmente ao desequilíbrio imediato no binômio oferta e procura,
o que gerará malefício aos consumidores finais.
Somado ao argumento acima, importante frisar que é muito provável
que a suspensão de concessões na área de serviços não seja forte o suficiente,
por não envolver valores significativos quando comparada às suspensões na
área de bens.
O fato é que, tanto nas suspensões das concessões sobre importa-
ções de bens, quanto no setor de serviços, os maiores lesados serão os consu-
midores do país em desenvolvimento. Em última análise, as suspensões nessas
áreas acabam por ser um ato contraproducente para o país com economia
mais fraca, causando muito mais dano do que benefícios econômicos.
Pelas razões acima expostas, as retaliações comerciais nos campos de
bens ou serviços não são remédios efetivos para a proteção das economias
em desenvolvimento quando em face de membros com mercados mais de-
senvolvidos.

241
2.4. Retaliação cruzada em patentes como alternativa a jogadores assimé-
tricos
Tendo em vista o quadro de ineficiência das medidas usuais de reta-
liação, os países em desenvolvimento devem buscar soluções que possibilitem
a efetivação de seus direitos.
Segundo Spadano471, os países em desenvolvimento devem buscar
entender as regras da OMC da melhor forma possível para que possam utilizá-
-las a seu favor. Ou seja, os países em desenvolvimento devem se utilizar das
possibilidades legais da forma que lhes provenha mais benefícios. Se o jogo é
desfavorável, deve-se procurar um modo de reverter essa situação.
A alternativa que se demonstra mais suscetível a cumprir esse papel
já é prevista no próprio ESC, porém muito pouco utilizada. É a retaliação cru-
zada em propriedade intelectual.
O maior exemplo dessa efetividade é o medo com que a medida é vis-
ta pelos países desenvolvidos, junto com a pressão destes para que elas não
sejam tomadas. Indícios de sua efetividade prática. Os membros que ameaçam
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

exercer contramedidas dessa feita são usualmente referidos como “piratas”,


que não ocorre quando as contramedidas são tomadas nos campos usuais.472
Esse tipo de linguagem hiperbólica reflete o medo e a pressão exerci-
da pelas indústrias detentoras de direitos de Propriedade Intelectual para que
a retaliação não ocorra no TRIPS, e é exatamente esse um dos motivos pelos
quais essa medida deve ser seriamente considerada, pois, somente afetando
um segmento com força política que se pode convencer o membro desviante
a se enquadrar aos compromissos assumidos perante a organização.
Segundo essa propaganda das indústrias, as medidas legais que limi-
tam o exercício de monopólio de direitos de Propriedade Intelectual são com-
paráveis ao furto, enquanto o aumento dos preços de bens importados é visto
meramente como atividade regulatória usual.473 As razões para esse temor
passarão a ser explicadas nos subtítulos que seguem.

471 “... developing countries should seek to understand the rules of the game properly so that they can
be used in their favour.” SPADANO, Lucas Eduardo F. A. Cross-agreement retaliation in the WTO dispute
settlement system: an important enforcement mechanism for developing countries? World Trade Review.
Oxford: Oxford Press, 2008. P. 523.
472 ABBOT, Frederick M. – Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing Countries. P. 9-11.
473 ABBOT, Frederick M. – Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing Countries. P. 9-11.

242
propriedade intelectual
2.5. Diferenças da Retaliação Cruzada no TRIPS
As retaliações sobre o acordo TRIPS, primeiramente, por não promo-
verem o aumento dos preços de importação, deixariam de gerar efeitos nega-
tivos ao país retaliante, o que pode ser o principal problema da retaliação no
setor de bens e serviços. Isso ocorre pois a suspensão de direitos de proprie-
dade intelectual faria com que o país vencedor da disputa deixasse de pagar
os royalties sobre o produto, diminuindo o preço final ao invés de aumenta-lo,
como ocorre na retaliação em outros setores.
Tal suspensão elevaria a prosperidade do mercado do membro em de-
senvolvimento, ao mesmo tempo que exerceria uma pressão real e forte o sufi-
ciente para que o país sucumbente mudasse seu comportamento desviante.474
A retaliação cruzada no TRIPS eliminaria a maior desvantagem da re-
taliação comum, ao mesmo tempo que afetaria de forma incisiva os detento-
res de direitos de Propriedade Intelectual do país sucumbente, aumentando
a eficácia da contramedida de uma forma muito significativa. Contudo, essa
medida radical também tem suas desvantagens. Afirma Abbot475 que retaliar
no TRIPS pode provocar uma ruptura nas relações comerciais em andamento
entre os membros envolvidos.
Alguns detentores de direitos de Propriedade Intelectual podem op-
tar por não mais exportar os bens sujeitos a royalties durante o período da
suspensão ao mesmo passo que pode ocorrer o desencorajamento de novos
investimentos no país vencedor, visto seu posicionamento perante as políticas
de fomento a inovação.
Pode-se arguir, também, que a suspensão de direitos de propriedade
intelectual podem afetar de modo adverso o sistema de pesquisa e desenvol-
vimento do país desviante, ocasionando um empecilho ao desenvolvimento
de novas tecnologias ao redor do mundo.
Visto que todas as modalidades de retaliação trazem algum tipo de
desvantagem ao país retaliante, resta a esse o sopesamento dos benefícios e
ônus de cada uma delas.
Calculando as desvantagens entre a retaliação no TRIPS e a dos se-
tores comuns, fica evidente que os efeitos negativos da primeira são prefe-
ríveis aos preços cobrados por uma retaliação no setor de bens ou serviços.
474 BOWN , Chad P. PAUWELYN, Joost. The Law, Economics and Politics of Retaliation in WTO Dispute
Settlement. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. P. 14.
475 ABBOT, Frederick M. P. 9-12.

243
Enquanto a contramedida tradicional gera prejuízos a ambas as partes, esta
nova, gera, em primeira análise, muito mais prejuízos ao membro desviante e
relativamente poucos ônus ao reclamante, além de vantagens no que tange a
redução de preços.
Mesmo que a empresa opte por deixar de exportar seus produtos ao
país requerente, ela estará sofrendo prejuízos muito maiores, pois nesse caso
não se está colocando na balança as economias de ambos os países, e sim a eco-
nomia de um país inteiro em contraponto ao poder econômico de uma empresa.
A empresa, na grande maioria dos casos, não tem poder o suficiente
para exercer uma pressão efetiva sobre o estado membro. Utiliza-se nesse
caso a mesma lógica de jogadores assimétricos apresentada anteriormente.
No que tange a problemática de possível desencorajamento a novos
investimentos, esta pode ser facilmente contornada por incentivos governa-
mentais a empresas que se demonstrem interessadas a investir em pesquisa e
desenvolvimento no país reclamante.
A própria decisão de suspender uma patente farmacêutica, por exem-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

plo, ocasionaria a produção desse medicamento pelo país reclamante, geran-


do lucros à indústria que seriam reinvestidos em pesquisa.
Quanto à ultima possível desvantagem cogitada por Abbot, de que a
retaliação no TRIPS desencorajaria a pesquisa e desenvolvimento mundial, po-
de-se afirmar que esta hipótese é muito improvável, visto que retaliações de
países subdesenvolvidos simplesmente não teriam força para afetar o sistema
de incentivo e, ainda assim, caso ocorresse, não seria de todo o mal.
Se após seguidas retaliações no TRIPS esse sintoma surgir, ele afetaria
todos os países desenvolvidos, que detém a grande maioria dos direitos de
propriedade intelectual. Sendo assim, por serem os maiores interessados em
manter o acordo nos moldes em que está, exerceriam pressão política para
que o membro desviante ajustasse sua conduta, mantendo o status quo.
Tendo em vista o disposto acima, pode-se afirmar seguramente que
a retaliação no TRIPS é a melhor opção prevista no ESC a ser adotada por
países em desenvolvimento quando litigarem com membros de maior poder
econômico.

2.6. Legalidade da retaliação em direitos de propriedade intelectual


A retaliação cruzada é prevista no artigo 22, parágrafo 3º, alínea “c”
do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Con-
trovérsias.
244
propriedade intelectual
(c) se a parte considera que é impraticável ou ineficaz suspender
concessões ou outras obrigações relativas a outros setores abarcados pelo
mesmo acordo abrangido, e que as circunstâncias são suficientemente graves,
poderá procurar suspender concessões ou outras obrigações abarcadas por
outro acordo abrangido;
Supridos os requisitos do ESC, a retaliação em setor diverso do que
ocorreu a disputa deve ser autorizado quando requerido. Contudo, apesar de
já ter sido autorizada algumas vezes, a retaliação cruzada no setor de pro-
priedade intelectual, por ser relativamente nova e nunca utilizada, gera várias
dúvidas, como passar-se-á a dissertar a seguir.
O acordo TRIPS incorpora outros acordos anteriores que tratam do
tema da Propriedade Intelectual, entre eles as convenções de Berna e de Paris.
Em seu artigo 2.2, o TRIPS476 afirma que nada constante nas partes I a
IV do acordo pode derrogar as obrigações assumidas na Convenção de Berna,
de Paris, a de Roma e o Tratado de Propriedade Intelectual sobre Circuitos
Integrados.
A primeira vista, essa cláusula poderia dar a entender que a retaliação
cruzada seria vetada no setor de propriedade intelectual, pois a suspensão das
concessões de PI derrogaria as obrigações assumidas previamente ao TRIPS.
Contudo, o Entendimento Sobre Solução de Controvérsias e o me-
canismo do Órgão de Solução de Controvérsias são previstos na parte V do
TRIPS477, motivo pelo qual uma medida autorizada pelo órgão não desrespei-
taria tal cláusula.
Para Abbot478, ao passo que o acordo engloba os demais tratados so-
bre propriedade intelectual, que ainda são vigentes, poderia se pensar que
uma suspensão no TRIPS abriria uma brecha para que o membro reclamado
pudesse separadamente litigar em face do reclamante no âmbito da Conven-
ção de Berna ou de Paris junto ao Tribunal Internacional de Justiça.
Para o próprio autor esse raciocínio é falho na medida em que a Con-
venção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, dispõe que nos tra-
tados sucessivos assinados pelas mesmas partes, como é o caso, o posterior
derroga o anterior na medida de suas incompatibilidades.

476 Acordo disponível em: http://www.inpi.gov.br/images/stories/27-trips-portugues1.pdf. Acessado em


05/10/2014.
477 Acordo disponível no site da OMC http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips.pdf. Acessado
em 06/10/2014.
478 ABBOT, Frederick M. P. 13-16.
245
Além disso, o Tribunal Internacional de Justiça iria chegar à conclusão
de que o estado reclamante estaria agindo em desacordo com o previamente
acordado, visto que expressamente aceitou o regime do OSC, caracterizando
o chamado venire contra factum proprium.
Afirma ainda Abbot479 que a utilização do Tribunal Internacional de
Justiça seria inconsistente com o artigo 23.1 do ESC, que dispõe que “os Mem-
bros deverão recorrer e acatar as normas e procedimentos do presente En-
tendimento.”
É importante perceber que quando se trata de contramedidas no
TRIPS está se lidando com direitos privados, em contraponto às medidas usu-
ais que dizem respeito a classes de produtores, e que consequentemente afe-
tam todos os operadores econômicos que participam da produção ou comer-
cialização de determinado bem ou serviço, não pertencendo a nenhum deles
especificamente.
Até se tentou argumentar de forma diferente no caso europeu, em
que os produtores alemães de banana uniram esforços na esperança de coibir
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

o Conselho Europeu de aumentar as tarifas e regulamentação com base em


direitos de propriedade e expectativas legítimas, tese que foi rejeitada480.
Na retaliação no TRIPS o alvo é específico. Quando um governo deci-
de por suspender os privilégios de determinadas patentes ele está afetando
direta e especificamente um detentor de direitos.
Isso pode fazer com que esses detentores apresentem reclamações
quanto à legalidade da medida devido ao desrespeito ao direito de proprieda-
de previamente concedido.
Contudo, segundo Abbot481, tendo em vista que os governos histori-
camente modificaram e ainda modificam direitos de propriedade intelectual,
as suspensões baseadas no TRIPS devem ser tratadas como formas de modifi-
cação na regulação, tal qual a regulação de tarifas em geral.
Superados esses pontos, faz-se necessário uma análise da constitucio-
nalidade da medida no ordenamento jurídico brasileiro, visto que os direitos de
PI são garantias constitucionais consagradas no artigo 5º de nossa Carta Magna.
Como se pode ler na redação do inciso XXIX do artigo 5º “a lei asse-
gurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua uti-

479 ABBOT, Frederick M. P. 13-16.


480 Ver European Court of Justice (1994), Federal Republic of Germany v Council of the European Union –
Bananas – Common Organisation of the Markets – Import Regime.
481 ABBOT, Frederick M. P. 13.
246
propriedade intelectual
lização (...) tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico
e econômico do País.”
Esses dois requisitos são um vetor interpretativo para o sistema de
propriedade intelectual e devem balizar as decisões do legislador e do execu-
tivo quando tratarem da matéria.482
É de clareza solar o interesse social em suspender as patentes nos casos
de retaliação cruzada, principalmente quando se trata de patentes farmacêuti-
cas, visto que essa medida trará benefícios econômicos e de saúde pública ao
País, além de proporcionar um incremento no desenvolvimento tecnológico.
Aliás, os pedidos de licenciamento compulsório de remédios também
se baseiam nessa cláusula de restrição aos privilégios dos inventores e, apesar
de serem consideradas medidas mais radicais, são plenamente constitucionais.
Desse modo, não há espaço para se falar em inconstitucionalidade
das medidas de suspensão de direitos de propriedade intelectual, em especial
no caso de patentes farmacêuticas, visto a ressalva do artigo 5º, inciso XXIX da
Constituição Federal.
Sendo assim, pelas regras acordadas no ESC e de acordo com a Cons-
tituição Brasileira, do TRIPS, da Convenção de Berna, Paris e Viena, bem como
com os princípios e regras da OMC, a retaliação cruzada no TRIPS é uma me-
dida claramente legal.
Não assiste razão ao raciocínio que entende como ilegal a retaliação
cruzada no setor de direitos de propriedade intelectual e nesse sentido é a
jurisprudência do OSC, como veremos em capítulo próprio.

2.7. Facilidades trazidas pela retaliação em patentes


Existe um grande problema no campo de PI quanto à quantificação
do impacto causado por modificações na legislação que regula o campo das
patentes.
Para Abbot483, isso acontece por três principais motivos. Primeira-
mente não se consegue quantificar a extensão da influência que a proteção
da propriedade intelectual traz para a área de pesquisa e desenvolvimento.
Em segundo lugar não se consegue estudar os impactos causados
pela modificação no regime de proteção aos direitos de PI isoladamente. Isso
482 LEONARDOS, Gustavo Starling; SOUTO MAIOR, Rodrigo de Azevedo. Retaliação Cruzada e Propriedade
Intelectual: o Projeto de Lei Número 1893, de 2007. Disponível em: http://www.iabnacional.org.br/IMG/
pdf/doc-1249.pdf acessado em 16/09/2014. Acessado em 01/10/2014.
483 ABBOT, Frederick M. P. 21-27.
247
porque elas fazem parte de um quadro político muito mais amplo que ajuda a
determinar as direções da atividade econômica.
Por último, tecnologias se modificam e são criadas a cada dia, modifi-
cando o cenário do mercado, o que faz com que seja difícil predizer o impacto
de novas tecnologias no mercado econômico, além de afetarem de modos
diferentes os grupos envolvidos, seja de empresas ou de consumidores, o que
torna o cenário ainda mais complexo e ilegível.
Contudo, diferentemente da quantificação dos resultados advindos
da mudança de critérios de patenteabilidade ou outras modificações nas leis
de PI que tenham projeções futuras, o resultado econômico da suspensão de
direitos de patentes já concedidas é de fácil constatação.
Esse tipo de análise é feito diariamente por instituições que prestam
serviços ao mercado de aquisição e fusão de empresas. Quando se analisa
o valor de uma empresa é necessário analisar o seu portfólio de direitos de
propriedade intelectual.484
No caso específico de uma suspensão em direitos de patentes farma-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

cêuticas, o cálculo do nível de suspensão se daria pela simples análise da per-


da de valor em vendas do remédio em questão após a introdução do genérico
nacional no mercado.
Ao contrário do que se pode pensar a primeira vista, devido à dificul-
dade de análise dos impactos causados por possíveis modificações na regula-
mentação dos direitos de propriedade intelectual, a suspensão de direitos já
previamente concedidos não apresenta o mesmo problema.
Além disso, presumivelmente o titular da patente teve que revelar sua
invenção e seus detalhes no momento em que patenteou o produto, propi-
ciando a terceiros que à reproduzam em um caso de retaliação, o que faz com
que o país reclamante poupe esforços para conseguir tais informações.
Por fim, vale lembrar que a nacionalidade do detentor da patente é
de banal constatação, pois elas são registradas e concedidas pelos órgãos na-
cionais que regulam a matéria.
O único problema aqui seria nos casos de empresas multinacionais que
registraram a patente em país diverso do logradouro da controladora. Nessa
hipótese a suspensão deve ser direcionada ao beneficiário final da patente.485
Por ser de fácil mensuração e aplicação, tem-se que uma retaliação
cruzada no TRIPS, em especial na área de patentes, gera o maior benefício
484 ABBOT, Frederick M. P. 21-27.
485 ABBOT, Frederick M. P. 21-27.
248
propriedade intelectual
ao país em desenvolvimento e deve passar a ser utilizada por eles para que
consigam efetivamente exercer pressão sobre os membros desenvolvidos, ou
obter a reparação dos danos causados.

3. As Experiências sobre Retaliação Cruzada em Proprieda-


de Intelectual na Organização Mundial do Comércio
3.1. Jurisprudência da Organização Mundial do Comércio
A jurisprudência sobre retaliação cruzada no TRIPS é bastante escas-
sa, tendo sido autorizada em apenas três casos. Contudo, a medida nunca foi
aplicada, visto que as disputas que deram origem à autorização foram finaliza-
das prematuramente, mediante acordos.
Os três casos em comento são: Equador versus Comunidade Europeia,
Bananas III; Antígua e Barbuda versus Estados Unidos da América, Jogos de
Azar; e Brasil versus Estados Unidos da América, Algodão, que serão estuda-
dos em títulos próprios.
Importante perceber que a retaliação cruzada foi requisitada por
países em situação de clara desproporção econômica. Em todos os casos o
membro reclamante tem significativamente menos poder econômico que o
reclamado, e somente a partir dessa constatação de assimetria econômica,
somada às sérias situações de infringência, que causaram prejuízos bastante
significativos ao desenvolvimento dos membros menos favorecidos, é que a
retaliação cruzada foi autorizada pelos árbitros do OSC.

3.2. Equador versus Comunidade Europeia, Bananas III


O caso Equador versus Comunidade Europeia sobre o regime de im-
portação, venda e distribuição de bananas contou também com a participa-
ção dos Estados Unidos, Guatemala, Honduras e México como demandantes.
No dia 5 de fevereiro de 1996 os autores requisitaram uma consulta
com a União Europeia, alegando o descumprimento dos artigos I, II, III, X, XI e
XIII do GATT no regime europeu de importação, venda e distribuição de bana-
nas.
Após a consulta os interessados requereram a abertura de um Painel
(DS27), no dia 11 de abril do mesmo ano. O painel486 teve decisão favorável
aos requerentes, o que fez com que a União Europeia optasse por apelar da
decisão.

486 Disponível no site da Organização Mundial do Comércio em: http://www.wto.org/english/tratop_e/


dispu_e/cases_e/ds27_e.htm. Acessado em 08/10/2014.
249
Em sede de recurso, confirmando quase todas as conclusões do pai-
nel, ficou decidido que o sistema de importação de bananas, bem como o de
concessão de licenças para importação, adotado pela Comunidade Europeia
era inconsistente com o GATT de 1994. Foi revogada apenas a decisão que
determinava a incompatibilidade com o artigo XIII, por entender que existia
uma exceção às regras da OMC dada pelo Convênio de Lomé487.
Iniciada a fase de implementação, a União Europeia deixou de im-
plementar as decisões do OSC, o que fez com que o Equador requeresse um
pedido de retaliação cruzada.
Esse pedido de retaliação cruzada se baseou no artigo 22.3 (c) do ESC,
visto que não era prático nem eficaz a aplicação de retaliação no mesmo setor
da disputa. O setor escolhido pelo Equador foi o de propriedade intelectual,
regulado pelo TRIPS, com o intuito de suspender direitos de PI pertencentes a
membros da Comunidade Europeia.
Esse foi o primeiro caso em que um membro da OMC requisitou uma
retaliação cruzada no TRIPS, surpreendendo os demais Estados e abrindo espa-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

ço para uma ampla discussão sobre a legalidade e moralidade das medidas488.


Os árbitros da disputa entenderam que o pedido era legalmente em-
basado, e que, tendo em vista que o objetivo da retaliação é induzir o membro
desviante a implementar a decisão, combinado com a extrema dificuldade de
fazê-lo em casos de disparidade econômica entre os membros litigantes, o
requerimento de retaliação cruzada no TRIPS se demonstrava uma alternativa
viável à resolução do caso concreto.489
Se entendeu também que, uma retaliação em bens de importação
advindos da União Europeia seria contra produtiva ao Equador, visto que au-
mentaria os custos para os produtores locais, que são dependentes de produ-
tos estrangeiros. Além de ter ficado demonstrado a importância econômica
do comércio de bananas para o país reclamante e os resultados nefastos das
medidas tomada pela UE, que, segundo o painel, somavam um prejuízo de
pouco mais de U$ 201 milhões ao ano.
Todos esses fatores demonstraram aos árbitros que as circunstâncias
eram sérias o suficiente para que fosse autorizada uma retaliação cruzada,
que, como visto ao longo desse trabalho, só deve ser utilizada como última
alternativa.
487 Convênio de Lomé IV regulava o comércio e cooperação entre a União Europeia, Ásia, Caribe e Pacífico
(ACP), determinando condições especiais para o comércio de bananas, rum, carne e coco, e contava com a
participação de 40 países. Foi substituído pelo Acordo Cotonou, de 2000.
488 ABBOT, Frederick M. 2009. P 5-7.
489 ABBOT, Frederick M. 2009. P 5-7.
250
propriedade intelectual
Apesar de não estar expresso no artigo 22 que os árbitros devem dar
sugestões sobre como o país membro deve implementar sua retaliação, tendo
em vista que foi a primeira suspensão no setor do TRIPS, o Equador expressou
seu interesse em conhecer o ponto de vista dos árbitros.
Estes, por sua vez, esclareceram que o reclamante deveria se asse-
gurar que a suspensão em direitos de PI afetasse somente membros da Co-
munidade Europeia, podendo ser de difícil constatação a nacionalidade dos
detentores dos direitos.
Para tanto, os árbitros sugeriram que a contramedida se desse em di-
reitos que passem por um sistema de licenciamento governamental, tais quais
direitos protegidos por copyright, designs industriais, indicações geográficas,
o que seria mais fácil do que simplesmente abolir direitos de PI genericamen-
te e coloca-los em domínio público em seu território. Direitos de PI sujeitos
a um sistema de licenciamento permitiriam ao Equador monitorar o nível de
suspensão, e retirá-la quando se demonstrar apropriado.
Além disso, os árbitros informaram que o retaliante não deveria ex-
portar produtos que tivessem sido produzidos sob a suspensão dos direitos de
propriedade intelectual, para evitar distorções em outros mercados. A autori-
zação de suspensão do Equador não dá direito a outros membros da OMC de
se furtar de suas obrigações perante a organização, o que impediria a impor-
tação de produtos sem o desrespeito aos direitos de propriedade intelectual.
É evidente que uma autorização do OSC para o Equador suspender certas
obrigações do TRIPS se referem somente a ele. Esta autorização não exo-
nera outro membro da OMC de suas obrigações, incluindo as referentes
ao acordo TRIPS.490

Apesar de ter sido autorizado a suspender os direitos de propriedade


intelectual de origem da Comunidade Europeia, o Equador nunca implementou
essa medida, pois firmou um acordo de resolução de conflito com a outra parte.
Um estudo feito pelo Professor James McCall Smith491, sobre a experi-
ência equatoriana, revela que a simples ameaça de retaliação no setor de pro-
priedade intelectual induziu a União Europeia a concordar com termos substan-
cialmente mais favoráveis ao acesso das bananas advindas do país tropical, além
de ter influenciado positivamente nas renegociações de sua dívida externa.

490 Arbitragem do DS27. WT/DS27/ARB/ECU. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dis-


pu_e/cases_e/ds27_e.htm. Acessado em 09/10/2014.
491 SMITH, James McCall. “Compliance Bargaining in the WTO: Ecuador and the Banana Dispute.” In. Ne-
gotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, ed. J. Odell, 257. Cambridge University Press,
2006. Disponível em: http://vi.unctad.org/digital-library/?act=show&doc_name=ecuador-wtocompbarg.
Acessado em 09/10/2014.
251
Conclui-se, portanto, que o requerimento de suspensão no TRIPS e a
ameaça de executar a medida, feita pelo Equador em face da União Europeia,
trouxe vantagens significativas ao país em desenvolvimento que não teriam
sido possíveis sem a utilização desses recursos.

3.3. Antígua e Barbuda versus Estados Unidos da América, Jogos de Azar


No dia 13 de março de 2003, Antígua e Barbuda (Antígua), um peque-
no país caribenho constituído por 27 ilhas e com a economia dependente ba-
sicamente do turismo, requereu a abertura de uma consulta com os Estados
Unidos da América.
Antígua alegava o descumprimento dos artigos II, VI, VIII, XI, XVI, e
XVII do GATS, por parte dos Estados Unidos com relação ao suprimento de
jogos e apostas. De acordo com o reclamante, os Estados Unidos adotavam
práticas protetivas inconsistentes com o GATS, com o intuito de evitar o forne-
cimento dos serviços supramencionados por outros membros da OMC.
Após a consulta, deu-se início ao painel, que no dia 10 de novembro
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

de 2004 decidiu pela inconsistência das leis americanas com o GATS, sagrando
Antígua como vencedora da disputa.
Veiculada a decisão por parte do Órgão de Solução de Controvérsias,
ambas as partes apelaram. Contudo, o veredicto foi mantido pelo Corpo de Ape-
lação para declarar que os EUA infringiam os artigos XVI, 1; XVI, 2 subparágrafos
(a) e (c), mantendo limites de acesso ao mercado não previstos em sua agenda.
Entendeu também o Corpo de Apelação que os Estados Unidos tomaram como
compromisso dar acesso total a jogos de azar e serviços de apostas492.
Visto que os Estados Unidos não estavam cumprindo a decisão do
OSC, o que foi reconhecido pelo órgão no dia 30 de março de 2007, em um
painel próprio. Antígua requisitou a retaliação cruzada no TRIPS, em valor
equivalente a seu prejuízo, que era de U$21 milhões anuais.
Segundo Abbot493, os árbitros, analisando a disparidade econômica
entre os Estados membros, a dependência do país em desenvolvimento da in-
dústria de serviços, combinado com a necessidade de Antígua diversificar sua
economia, entenderam que a situação era suficientemente séria para permitir
uma retaliação cruzada.
Entenderam ainda, que seria extremamente difícil para o governo de
Antígua induzir o cumprimento da decisão com retaliações no GATS, por dois
492 AMARAL, Renata Vargas. P 188-189.
493 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8.
252
propriedade intelectual
principais motivos: (i) o mercado de importação de serviços de Antígua era
muito pequeno, e uma retaliação nessa área seria inefetiva contra os Estados
Unidos e; (ii) as suspensões no setor de serviços iriam causar custos adicionais
ao consumidor do país caribenho, prejudicando os setores de viagens e turis-
mo, bem como outras áreas de prestação de serviços.
Ainda segundo o autor, esses fundamentos levaram os árbitros a dar
provimento ao pedido do país caribenho, permitindo a retaliação cruzada no
TRIPS, de acordo com o artigo 22.6 do ESC.
Após o provimento, Antígua indicou sua intenção de suspender direi-
tos de copyright, marcas, design industrial, patentes, e proteção de informa-
ções não reveladas. Contudo, segundo alegações dos EUA, deixou de detalhar
o modo como procederia com as suspensões, o que impossibilitaria o país a
controlar o nível das contramedidas, possibilitando um verdadeiro paraíso à
pirataria de produtos.494
Os árbitros, por sua vez, entenderam que não estava em seu âmbito
de competência considerar a natureza específica da obrigação a ser suspendi-
da, de acordo com o artigo 22.7 do ESC. O painel assim afirmou:
Ao mesmo tempo, é importante que a forma escolhida para aplicar a suspen-
são possa assegurar que, uma vez autorizada, a equivalência na efetivação
dessa seja respeitada. A forma deve ser também transparente, a fim de per-
mitir a avaliação se o nível da suspensão não excede o nível da nulificação.
Nós também notamos que as suspensões de obrigações sob o Acordo TRIPS
pode envolver meios mais complexos de implementação que, por exemplo,
a imposição de maiores taxas de importação em bens, e a avaliação exata
do valor dos direitos afetados pela suspensão é também mais complexa.495

Por fim, invocaram a decisão do caso Bananas III496, indicando que as


mesmas considerações se aplicariam ao regime de suspensão de Antígua.
Apesar de ter sido autorizada a retaliar no dia 28 de janeiro de 2013
e ameaçado utilizar-se da medida no dia 26 de março do mesmo ano, até o
momento em que este trabalho é escrito, o país caribenho não suspendeu os
direitos sob a proteção do Acordo TRIPS.

494 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8.


495 Tradução livre de “At the same time, it is important that the form that is chosen in order to enact the
suspension is such as to ensure that equivalence can and will be respected in the application of the suspen-
sion, once authorised. The form should also be transparent, so as to allow an assessment of whether the
level of suspension does not exceed the level of nullification. We also note that the suspension of obliga-
tions under the TRIPS Agreement may involve more complex means of implementation than, for example,
the imposition of higher import duties on goods, and that the exact assessment of the value of the rights
affected by the suspension is also likely to be more complex. WTO (2007 US – Gambling, para.5.3)
496 Ponto 3.1.1 desse trabalho.
253
Segundo Abbot497, a adoção da medida é mais preocupante aos EUA
por se tratar de um precedente aberto que pode encorajar outros membros a
utilizar-se da contramedida, do que efetivamente com as consequências eco-
nômicas resultantes, visto o minúsculo mercado do país caribenho.
Essa preocupação americana sobre a ameaça de uma retaliação cru-
zada no TRIPS faz com que Antígua se encontre em uma posição mais favo-
rável na mesa de negociações, exercendo mais pressão sobre o Estado norte
americano do que seria possível sem a utilização da medida.
Apesar de a ameaça de retaliação cruzada no TRIPS não ter surtido,
até então, nenhum efeito concreto no caso Antígua versus EUA – Jogos de
azar, visto que foi autorizada há pouco mais de 1 ano, entende-se que o temor
causado pela medida pode influenciar de maneira decisiva as negociações, e
essas tendam a ser vantajosas ao país em desenvolvimento.

3.4. Brasil versus Estados Unidos da América, Algodão


O último e mais importante caso em que a retaliação cruzada no TRIPS
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

foi permitida é o do Brasil versus Estados Unidos da América – Algodão. O caso


envolve dois países com grandes mercados e cifras significativas em jogo.
A controvérsia se estendeu de 2002 a 2014, e tratou sobre a legalida-
de dos subsídios americanos aos produtores de algodão de seu país frente aos
acordos da OMC, culminando com um acordo entre as partes que foi come-
morado pelos produtores de algodão brasileiros como uma vitória.
 a) Um breve panorama do mercado mundial de algodão
O algodão é um commodity muito importante para o mercado global,
sendo sua produção anual estimada em 25 milhões de toneladas498 concentra-
da em basicamente em China, Índia, Paquistão, Uzbequistão, Brasil, Turquia e
Estados Unidos, sendo esse último responsável por 40% do comércio mundial
do produto.
Segundo Watkins499, um bilhão de pessoas em países em desenvolvi-
mento estão direta ou indiretamente envolvidas com a produção e comércio
de algodão, sendo assim, o mercado mundial do commodity é de crucial im-
portância para as necessidades dessa população.
497 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8.
498 Dado fornecido pela CONAB. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/cama-
ras_setoriais/Algodao/27RO/App_Propespec%C3%A7%C3%A3o_safra_Algod%C3%A3o.pdf. Acessado em
12/10/2014.
499 WATKINS, K. 2002. Cultivating proverty: The impact os US cotton subsidies on Africa. Oxfam Briefing
Paper 30. Oxford, UK: Oxfam.
254
propriedade intelectual
Por se tratar de um produto com alto custo de produção, os países
com mais tecnologia e poder econômico são capazes de influenciar com maior
eficácia os preços do mercado global.
Atualmente os estoques de algodão mundial estão muito altos, e isso
vem ocorrendo desde a década de 90, por causa de um excesso de oferta,
protagonizado notavelmente pelos Estados Unidos. Esse excesso de oferta
ocasionado por incentivos à produção faz com que os preços baixem, por efei-
to lógico da lei da oferta e procura.
Segundo o sistema de medição de preços de algodão Cotlook Index,
o preço do algodão chegou a U$ 0,46 por libra no ano de 2002, enquanto o
mesmo peso do produto era vendido por U$ 0,97 no ano de 1995.
Na safra 2001/2002, os Estados Unidos produziram o recorde de 20.3
milhões de toneladas métricas de algodão, representando um aumento de
42% se comparado ao ano de 1998.
Para o autor Fuzhi Cheng, esses dados deveriam comprovar que os
Estados Unidos têm a produção de algodão mais eficiente que a de seus con-
correntes, visto que, quando os preços baixam, somente aqueles com preços
de produção muito mais baixos estariam aptos a expandir a produção.500
Contudo, o Estado norte americano não é um produtor eficaz como
se poderia imaginar. Segundo o International Cotton Advisory Committee
(ICAC), países como Benim e Burkina Faso produzem algodão ao custo de U$
0,30 por libra, enquanto os Estados Unidos gastam U$ 0,70 para produzir o
mesmo peso do produto.
Apesar disso, os Estados Unidos foram capazes de aumentar sua área
de cultivo, bem como sua produção, ao passo que países com uma produção
muito mais barata foram forçados a diminuir os seus investimentos em plantio
devido aos baixos preços.
Segundo o autor501, o motivo disso são os subsídios oferecidos pelo
governo americano aos produtores de algodão. No ano de 2001 os gastos do
governo com subsídios ao algodão passaram de U$ 4 bilhões, maior que a
própria produção do país, que foi de U$ 3 bilhões.

500 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S.
Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Govern-
ment in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 3.
501 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S.
Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Govern-
ment in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 3.
255
Com o Farm Act de 2002 os agricultores americanos o preço garanti-
do a no mínimo U$ 0,52 centavos por libra, sem contar outros incentivos para
aumentar seus lucros. O resultado disso foi que os algodoeiros americanos re-
ceberam na safra 2001/2002 U$ 0,72 por libra, enquanto a média de mercado
mundial era de U$ 0,46.
Esse tipo de subsídio impede uma concorrência justa por parte dos
demais países, fazendo com que os demais Estados produtores de algodão
sofram sérios prejuízos. Foi nesse contexto de insatisfação e desequilíbrio do
mercado que o Brasil requereu a abertura de uma consulta com os Estados
Unidos da América junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, no
ano de 2002.
 b) Relatório do procedimento do OSC no caso DS267
A controvérsia teve início no dia 27 de setembro de 2002, quando o
Brasil requisitou uma consulta com os Estados Unidos da América questionan-
do os subsídios governamentais para os produtores de algodão do país norte
americano.
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

Segundo o Brasil, alguns dos subsídios eram proibidos ou acioná-


veis502, sendo inconsistentes com os artigos 5 (c), 6.3 (b), (c) e (d), 3.1 (a), (b), e
3.2 do Acordo de Medidas de Subsídios e Compensação (ASCM); Artigos 3.3,
7.1, 8, 9.1e 10.1 do Acordo de Agricultura503; e Artigo III:4 do GATT de 1994.
O painel foi criado no ano seguinte, tendo seu relatório circulado aos
membros no dia 8 de setembro de 2004, decidindo favoravelmente ao Brasil
na medida que:
1. As garantias de crédito para a exportação agrícola são sujeitas à
disciplina de subsídios da OMC, e três programas americanos de
garantia de crédito para a exportação, que não tem Cláusula de

502 Os subsídios dentro da OMC são regulados pelo Acordo em Subsídios e Medidas Compensatórias
(ASMC), que disciplina os subsídios específicos em três formas: os subsídios proibidos, elencados no artigo
3º; os subsídios acionáveis do artigo 5º, e os subsídios permitidos, dispostos no artigo 8º. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/conheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controver-
sias/mais-informacoes/texto-dos-acordos-da-omc-portugues/1.1.11-acordo-sobre-subsidios-e-medidas-
compensatorias/view. Acessado em 14/10/2014.
503 Segundo o documento, “o objetivo de longo prazo cima mencionado consiste em proporcionar re-
duções progressivas substanciais em matéria de apoio e proteção à agricultura, a serem mantidas duran-
te um período acordado de tempo, resultando na correção e prevenção de restrições e distorções em
mercados agrícolas mundiais. “Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/co-
nheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controversias/mais-informacoes/
texto-dos-acordos-da-omc-portugues/1.1.2-acordo-sobre-agricultura/view. Acessado
em 14/10/2014.
256
propriedade intelectual
Paz504, são proibidos e estão violando a disciplina da OMC.
2. Os Estados Unidos proporcionam aos produtores de algodão vários
outros subsídios proibidos.
3. Os programas de suporte doméstico dos Estados Unidos em rela-
ção ao algodão não são protegidos pela Cláusula de Paz, e alguns
desses programas resultam em sérios prejuízos aos interesses bra-
sileiros na forma de supressão de preços no mercado mundial.505
Circulada a decisão, os EUA recorreram ao Corpo de Apelação, que,
por sua vez, manteve a determinação do painel em todos os pontos atacados
pelo país norte americano.
Em outubro de 2006, o então Diretor Geral da OMC Pascal Lamy abriu
um painel de observação, a pedido de ambos os Estados. Esse painel decidiu
que:
Os Estados Unidos agiram de forma inconsistente com o Artigo 10.1 do
Acordo de Agricultura ao aplicar subsídios de exportação numa forma que
resultou na evasão de compromissos de subsídio de exportação dos EUA
com respeito a certos produtos programados e não programados, tendo
como resultado atos inconsistentes com o Artigo 8 do Acordo de Agricul-
tura.
Com relação ao GSM102 (Garantia de Crédito para Exportação) emitido
depois do dia 1 de julho de 2005, também agiu de forma inconsistente
com Artigos 3.1(a) e 3.2 do ASCM ao dar subsídios de exportação a produ-
tos não programados e dar subsídios em excesso a produtos programados,
de acordo com o Acordo de Agricultura.
Ao agir inconsistentemente com os artigos 10.1 e 8 do Acordo de Agricul-
tura e Artigos 3.1(a) e 3.2 do ASCM, os EUA falharam em trazer suas me-
didas em conformidade com o Acordo de Agricultura e falharam também
em retirar o subsídio sem demora.506
504 A Cláusula de Paz teve vigência até o ano de 2003, e protegia os subsídios agrícolas dos países desen-
volvidos contra reclamações junto à OMC desde que atendam aos compromissos nacionais de redução de
subsídios negociados na Rodada do Uruguai.
505 Resumo da decisão do painel dada pela OMC. Disponível em http://www.wto.org/english/tratop_e/
dispu_e/cases_e/ds267_e.htm. Acessado em 14/10/2014.
506 Livre tradução de: ―Regarding GSM 102 export credit guarantees issued after 1 July 2005 the United
States acts inconsistently with Article 10.1 of the Agreement on Agriculture by applying export subsidies
in a manner which results in the circumvention of US export subsidy commitments with respect to certain
unscheduled products and certain scheduled products, and as a result acts inconsistently with Article 8 of
the Agreement on Agriculture. Regarding GSM 102 export credit guarantees issued after 1 July 2005 also
acts inconsistently with Articles 3.1(a) and 3.2 of the SCM Agreement by providing export subsidies to uns-
cheduled products and by providing export subsidies to scheduled products in excess of the commitments
of the United States under the Agreement on Agriculture. By acting inconsistently with Articles 10.1 and 8
of the Agreement on Agriculture and Articles 3.1(a) and 3.2 of the SCM Agreement the United States has
failed to comply with the DSB recommendations and rulings. Specifically, the United States has failed to
257
Dessa decisão do painel de observação ambas as partes apelaram ao
Corpo de Apelação, que, por sua vez, manteve quase que integralmente a sen-
tença, afirmando que o programa de suporte aos produtores de algodão não
havia sido criado com o intuito de cobrir custos e perdas dos agricultores, e
sim, subsidiar a exportação do setor, prejudicando a livre concorrência.
 c) Da efetivação da decisão
No tocante a efetivação da decisão do OSC no caso DS267, envol-
vendo Brasil e Estados Unidos da América, apesar de as discussões sobre
o cumprimento ou não das decisões do primeiro painel se estenderem até
2009, os pedidos de autorização para suspensão de concessões se deu ainda
em 2005. Esses pedidos tratavam dos subsídios proibidos e subsídios acio-
náveis
O Brasil, alegando que o período razoável de tempo já havia então
expirado, requisitou a suspensão de concessões de obrigações tarifárias regu-
ladas pelo GATT 1994, impondo custos adicionais aos produtos advindos do
país norte americano.
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

Ainda, por entender que não era prático e efetivo aplicar exclusiva-
mente as medidas de retaliação no GATT, o Estado membro requereu ainda
que fossem autorizadas suspensões em direitos de propriedade intelectual
regulados pelo TRIPS, bem como impostos de serviços regulados pelo GATS.
Os Estados Unidos, assim como fizeram no caso Antígua e Barbuda,
desafiaram o requerimento de retaliação cruzada, tanto no nível das suspen-
sões requisitadas, como alegando que o artigo 22.3 do ESC não havia sido
respeitado.
Em agosto de 2005, antes de serem julgadas os contra argumentos do
país norte americano, ambos os litigantes requereram a suspensão do pedido
de retaliação cruzada do artigo 22.6 por estarem em negociações para a reso-
lução da controvérsia.
Essa suspensão durou até agosto de 2008, quando o Brasil requereu a
continuidade do processamento dos pedidos, que foram decididos em agosto
do ano seguinte.
Os árbitros entenderam que, no tocante a subsídios proibidos, o Brasil
poderia retaliar os Estados Unidos em bens de consumo regulados pelo GATT
em um valor que não excedesse U$147.7 milhões no ano de 2006, e para os
bring its measures into conformity with the Agreement on Agriculture and has failed to withdraw the sub-
sidy without delay – Site da OMC, DS267. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/
cases_e/ds267_e.htm. Acessado em 12/10/2014.
258
propriedade intelectual
anos subsequentes, uma quantia a ser determinada mediante a metodologia
apresentada na decisão.
Os árbitros entenderam ainda, que no caso de o nível total de con-
tramedidas para os anos subsequentes viessem a exceder o limite descrito na
decisão, o Brasil poderia suspender obrigações protegidas pelo TRIPS e GATS,
desde que não excedessem o limiar determinado.
No tocante aos subsídios acionáveis, os árbitros entenderam que o
Brasil poderia retaliar o estado norte americano em U$147.3 milhões, nos
mesmos termos da decisão dos subsídios proibidos, podendo utilizar-se da
retaliação cruzada no caso do valor passível de retaliação nos anos subse-
quentes se tornar maior que o valor homologado na decisão.
Com essas decisões, o Brasil se encontrou em posição bastante van-
tajosa em face aos EUA, que se viram obrigados a entrar em negociações. Esse
diálogo teve início em 2010, e fez com que o país sul americano requeresse a
suspensão da aplicação das medidas, que durou até o ano de 2014, quando
os países finalmente chegaram a um acordo, como passará a ser tratado no
item seguinte.
3.5 Os acordos resultantes dos casos tratados
Os acordos resultantes dos casos em que a Retaliação Cruzada no
TRIPS foi autorizada foram significativamente proveitosos aos países em de-
senvolvimento, se comparados a casos similares em que as medidas não fo-
ram requeridas.
O estudo apresentado por McCall Smith507 demonstra claramente
que o Equador obteve uma vitória histórica no caso em que litigou em face da
União Europeia, que ficou conhecido como Bananas III, como já explicado em
título próprio.
No mesmo sentido, Brasil e Estados Unidos vinham tentando chegar
a um acordo sobre o caso do algodão desde o início da controvérsia, pois são
importantes parceiros de negócios, o que proporciona vantagens múltiplas a
ambos os Estados. Um procedimento junto ao Órgão de Solução de Contro-
vérsias era um fator que atravancava as relações entre os países.
Ocorre que os Estados Unidos obtêm vantagem por meio de seus
subsídios do algodão, retirando vários países produtores do commodity do

507 SMITH, James McCall. “Compliance Bargaining in the WTO: Ecuador and the Banana Dispute.” In. Ne-
gotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, ed. J. Odell, 257. Cambridge University Press,
2006. Disponível em: http://vi.unctad.org/digital-library/?act=show&doc_name=ecuador-wtocompbarg.
Acessado em 09/10/2014.
259
mercado global, além disso a capacidade de retaliação do Brasil é limitada,
pelo tamanho de sua economia e pelos efeitos adversos que essa medida po-
deria causar ao país em desenvolvimento.
Como demonstrado acima, o Brasil, seguindo o precedente aberto
pelo Equador no caso Bananas III, optou por requerer a retaliação cruzada em
direitos de propriedade intelectual, de acordo com o Artigo 22.6 do ESC.
Existe certa dose de ironia nesta situação, como mencionado por Ka-
rin Klempp Franco508, pois os Estados Unidos foram os principais incentivado-
res do acordo TRIPS, exercendo enorme pressão para que este se tornasse
um acordo imprescindível aos membros que quisessem aderir à Organização
Mundial do Comércio, como visto acima. Agora, é exatamente a partir do
TRIPS que o Brasil consegue forçar uma negociação favorável no contencioso
do algodão.
A autorização dada ao Estado sul americano pelo OSC fez com que o
seu poder de retaliação aumentasse substancialmente, pois essa modalidade
de retaliação traz diversos benefícios ao país retaliante, como já demonstrado
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

nesse trabalho.
Com a finalidade de evitar uma efetiva retaliação, o Estado norte
americano se viu obrigado a se sentar junto ao Brasil na mesa de negociações
para dar fim ao litígio.
As negociações entre os Estados se estenderam do ano de 2010 até o
dia 1º de outubro de 2014, quando, em Washington, o ministro das Relações
Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, o ministro da Agricultura, Pecuária e Abas-
tecimento, Neri Gelller e o secretário de Agricultura dos Estados Unidos, Tom
Vilsack juntamente com o representante americano do Comércio, Michael
Froman, firmaram um acordo resolvendo o contencioso do algodão.
No acordo ficou estabelecido que o governo americano fará o pa-
gamento de US$ 300 milhões, no prazo de 21 dias, ao Instituto Brasileiro do
Algodão. Esses recursos serão destinados a investimentos em tecnologia, in-
fraestrutura e logística para o produto. O montante será somado aos US$ 505
milhões pagos ao instituto entre 2010 e 2013 para que o Brasil não exercesse
o direito de retaliação.
Além disso, o programa de créditos à exportação (GSM102) será re-
visto pelo governo americano, os agricultores que até então podiam exportar

508 FRANCO, Karin Klempp. Dois criadores e duas criaturas – Da relação entre a proteção à propriedade
intelectual no Brasil e os Subsídios governamentais americanos aos produtores de algodão.

260
propriedade intelectual
o produto com prêmio-seguro de 36 meses, passarão a ter esse benefício por
apenas 18 meses, o que deve causar um aumento de competitividade para os
demais países509.
Para o presidente da Abrapa Gilson Pinesso510, essas alterações no
programa de créditos à exportação americana foram as maiores conquistas
do acordo, pois não valem apenas para os incentivos ao algodão, e sim ao
agronegócio americano como um todo.
Em contrapartida, o Brasil se compromete a não recorrer à OMC para
discutir a questão dos subsídios americanos no setor algodoeiro até o ano de
2018, quando acaba a vigência da lei agrícola americana (Farm Bill).
Welber Barral511, que assessorou Abrapa no contencioso, afirmou que
esse é um acordo histórico, por dar uma solução ao principal entrave comer-
cial entre Estados Unidos e Brasil, segundo o autor é possível que as relações
entre os países melhorem daqui para frente.
O acordo está sendo comemorado como uma vitória também pelos
algodoeiros nacionais, visto que após 12 anos de contencioso conseguiram
uma compensação pelos prejuízos causados pelas políticas de subsídio ame-
ricanas.
Não há dúvidas de que a negociação só chegou a termos tão benéfi-
cos aos agricultores brasileiros devido, em grande parte, ao receio americano
de que a retaliação cruzada no TRIPS fosse utilizada pelo governo brasileiro.
Assim como nos outros casos estudados neste trabalho, a mera ame-
aça de retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual leva os países
desenvolvidos a negociar com os menos abastados, por saberem dos resulta-
dos que a contramedida pode trazer.
O único caso em que ainda não se chegou a um acordo é o de Antígua
e Barbuda versus Estados Unidos, visto que Antígua requereu a autorização
para retaliação cruzada apenas em 2013. Contudo, analisando os outros ca-
sos, em que as negociações levaram anos, pode-se supor que os Estados che-
garão a um acordo em médio prazo.

509 Notícia veiculada pelo Correio Braziliense em 02/10/2014. Disponível em http://www.correiobrazi-


liense.com.br/app/noticia/economia/2014/10/02/internas_economia,450189/ministro-diz-que-pagamen-
to-de-us-300-mi-pelos-eua-zera-debitos-do-algodao.shtml. Acessado em 12/10/2014.
510 Notícia veiculada pela revista Veja em 02/10/2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/
economia/eua-e-brasil-acertam-fim-de-disputa-em-mercado-de-algodao. Acessado em 12/10/2014.
511 Notícia veiculada pela revista Veja em 02/10/2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/
economia/eua-e-brasil-acertam-fim-de-disputa-em-mercado-de-algodao. Acessado em 12/10/2014.

261
4. Considerações finais
O OSC é tido como uma inovação muito positiva e importante para o
comércio mundial, pois traz um sistema baseado em regras preestabelecidas
e muito menos suscetível a pressão exercida pelos Estados membros. Isso faz
com que diminuam as diferenças de poder entre os membros, e as decisões
sejam pautadas nas normas, e não no poder dos Estados membros512.
No entanto, o problema do OSC se dá no momento de implemen-
tação de suas decisões. Pode-se afirmar que falta eficiência aos veredictos
dados no âmbito do comércio mundial, quando estão em jogo os interesses de
países com diferentes potenciais econômicos, o que prejudica principalmente
os países em desenvolvimento.
Esse problema ocorre devido à falta de coercibilidade das decisões
tomadas pelo órgão, tendo em vista a soberania estatal de seus membros. Isto
é, o Estado membro, por ser soberano, pode optar por enquadrar ou não sua
conduta tida como desviante em face o acordado com a OMC.
Os remédios normalmente oferecidos pelo OSC, quais sejam, a reco-
Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

mendação, sugestão e compensação, sofrem do mesmo problema. Os países


desviantes podem optar por cumpri-los ou não. O que torna essas medidas
ineficazes em significativo número de casos.
O único remédio que independe da livre decisão do membro desvian-
te é a retaliação, mas como visto neste trabalho, essa medida causa severos
efeitos colaterais, aumentando os preços dos produtos importados do mem-
bro retaliado, elevando os custos para os consumidores, além de ser ineficaz
como ferramenta para exercer pressão sobre o membro desviante, fim último
dos remédios do OSC.
Esses defeitos da retaliação são potencializados quando estão em
jogo os interesses de países economicamente assimétricos, tornando o remé-
dio inócuo em inúmeros casos.
Contudo, existe uma solução legal, prevista no artigo 22.6 do ESC,
para esses sérios problemas da retaliação. A solução proposta por esse traba-
lho é a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual, mais preci-
samente na área de patentes, por diversos motivos:
1. Ao passo que a retaliação em bens de consumo ou serviço aumenta
o preço dos produtos e serviços oriundos do país retaliado, preju-
512 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S.
Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Govern-
ment in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 1.
262
propriedade intelectual
dicando o consumidor do Estado retaliante, a retaliação cruzada no
TRIPS diminui os preços de importação, fomentando a economia.
2. A retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual causa
uma pressão muito forte sobre os países desenvolvidos, principais
detentores desses direitos, obrigando esses a se enquadrar aos di-
tames da OMC ou oferecer acordos generosos aos países vencedo-
res da disputa.
3. As patentes têm registro nacional, o que facilita a investigação so-
bre sua origem, evitando possíveis erros de retaliação a direitos
pertencentes a empresas ou pessoas que não sejam nacionais do
membro retaliado.
4. A mensuração econômica de patentes é relativamente simples,
este tipo de avaliação é feito diariamente por empresas especia-
lizadas em compra e venda de ativos intangíveis, ou fusão e incor-
poração de empresas.
5. Os dados protegidos pela patente estão previamente publicados,
portanto, para que se tenha acesso ao produto protegido a fim de
que seja produzido pelo país retaliante, não é necessário qualquer
tipo de processo de requerimento de dados.
6. A produção dos produtos retaliados pelo membro em desenvolvi-
mento geraria lucros que poderiam ser reinvestidos em pesquisa e
fomento à indústria nacional, promovendo o desenvolvimento do
membro mais pobre, princípio balizador da Organização Mundial
do Comércio.
Por fim, os casos concretos apresentados neste trabalho513 dão indí-
cios da eficiência dessa modalidade de retaliação, visto que, tanto no caso bra-
sileiro quanto no caso equatoriano, os acordos firmados para que se desse fim
ao contencioso foram muito positivos aos países com economias mais frágeis,
ao contrário do histórico dos outros remédios fornecidos pelo OSC.
Por todos esses motivos acima expostos, a retaliação cruzada em
direitos de propriedade intelectual se monstra como a alternativa legal que
pode solucionar o problema da ineficácia das decisões e remédios usuais do
Órgão de Solução de Controvérsias, fazendo com que as reclamações dos paí-
ses mais pobres sejam ouvidas mais claramente pelas potencias mundiais.

513 O segundo caso apresentado, Antígua e Barbuda versus Estados Unidos, teve a retaliação no TRIPS
autorizada recentemente, motivo pelo qual ainda não é possível saber o seu desfecho.

263
propriedade intelectual
INSTRUMENTOS JURÍDICOS DA ECONOMIA DA INOVAÇÃO:
CONTRATOS DE TRASNFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E
DIREITO DA CONCORRÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO*

André Soares Oliveira514 e


Heloisa Gomes Medeiros515

1. Introdução
O conhecimento – enquanto inovação – é a base de um novo paradig-
ma econômico: a economia da inovação. A presente investigação teve como
objetivo demonstrar o modo de circulação da inovação neste paradigma eco-
nômico por meio dos contratos de transferência de tecnologia. Os resultados
foram que para o pleno desenvolvimento da economia da inovação é neces-
sário que os contratos de transferência de tecnologia se submetam aos princí-
pios relacionados ao direito concorrencial, sob pena de causarem prejuízos ao
mercado, e, consequentemente, à sociedade.
Inserido em um contexto de economia globalizada e alta competivi-
dade, o empresário vai tomando consciência que a concorrência e a posição
que ele conquista no mercado são baseadas não apenas no quesito ‘menor
preço’, mas também em melhores serviços e melhores produtos, ou seja,
numa concorrência denominada de non price.
De certo, o elemento central desta concorrência são os conhecimen-
tos que ele gera e o diferenciam no mercado. Esses conhecimentos, denomi-
nados de inovação, fazem parte do modo de produção capitalista que não
sobrevive sem se reinventar constantemente.
O objetivo da presente investigação é elucidar alguns procedimentos
que os contratos e arranjos destinados a fazer com que a inovação – especial-
mente aquela protegida por meio de títulos de propriedade industrial –circule
no mercado de forma competitiva, seja por meio de arranjos contratuais den-
tro do âmbito empresarial.

* Este artigo foi produzido mediante apoio da Capes e CNPq.


514 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG).
515 Doutoranda e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora
do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: medeiroshg@gmail.com.
265
Para tanto, divide-se o texto em três partes. Na primeira parte, será
evidenciada a importância que a inovação possui para a economia contempo-
rânea, em especial para o inovador empresário, enquanto tática de concor-
rência non price, assim como a proteção do conhecimento gerado por meio
de títulos de propriedade intelectual.
No segundo momento, será evidenciado como esses títulos de pro-
priedade intelectual podem circular no ambiente empresarial por meio de
contratos de transferência de tecnologia, em especial os licenciamentos. E
em terceiro lugar, os contratos de transferência de tecnologia serão analisa-
dos tendo em vista o direito de concorrência brasileiro estabelecido pela lei
8.884/1994.

2. Economia da inovação e propriedade intelectual


A tecnologia, entendida como inovação ou aplicação econômica/co-
mercial de conhecimentos, representa uma condição essencial para o pro-
gresso econômico e é um elemento crítico na luta concorrencial das empresas
e nações.
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

De fato, a inovação fomenta um aumento da riqueza das nações, mo-


dificando a qualidade de vida dos indivíduos ao permitir que os mesmos façam
coisas que apenas imaginavam fazer. Sobretudo, a inovação deve ser uma pre-
ocupação daqueles que desejam mudar a direção do avanço econômico em
busca de melhor qualidade de vida, principalmente estimulando inovações no
sentido de economizar recursos naturais, uma demanda tão em voga na socie-
dade atual. (FREEMAN; SOETE, 2008).
Hoje, a propriedade imaterial corresponde por, pelo menos, cerca de
30% dos ativos econômicos das empresas, sendo que isso tende a ser maior
principalmente em empresas cuja base é essencialmente tecnológica, como
empresas de software, biotecnologia, entre outras (BARROS, 2007).
Contudo, até pouco tempo atrás, os economistas pouco preocupa-
vam-se com a inovação tecnológica, sendo
vítimas de seus próprios pressupostos e da devoção a sistemas aceitos de
pensamento que tendiam a encarar os fluxos de novos conhecimentos,
das invenções e inovações como fatores externos ao arcabouço dos mo-
delos econômicos ou, mais estritamente, como variáveis exógenas (FREE-
MAN; SOETE, 2008, p.20).

Apesar disso, considerações sobre o papel da inovação-tecnologia no


modo de produção capitalista aparecem já em obras fundamentais. Analisan-
do aspectos relativos à divisão do trabalho, Adam Smith (1985), em A Riqueza
266
propriedade intelectual
das Nações – obra escrita em 1776 – já sinalizou, ainda que não fosse uma
preocupação central sua, a importância que a inovação tem no processo eco-
nômico, em especial no âmbito do capitalismo.
Em algumas páginas dessa sua obra, Smith (1985) observa que o au-
mento da quantidade de trabalho, em consequência de sua divisão, seria devi-
do a três circunstancias. As duas primeiras estão relacionadas à especialização
do trabalhador e à poupança de tempo que a divisão do trabalho levaria. Uma
terceira característica que Smith aponta é o próprio maquinário que abrevia
e facilita o trabalho.
Smith (1985) ainda observa que o próprio processo de invenção de
um maquinário mais eficiente para a realização do trabalhado seria uma con-
sequência da própria divisão do trabalho, pois assim o indivíduo, ao ficar con-
centrado na realização de determinada tarefa, conseguiria antever meios de
fazê-la de modo mais rápido do que se estivesse ocupado com todo o proces-
so de produção.
Mesmo com essa observação, Adam Smith (1985) ressalta que muito
do maquinário não era apenas originado da intuição dos operários que, em
função da divisão do trabalho, procurariam realizar suas tarefas de modo mais
rápido e, com isso, produziriam inovações. Elas provinham também, e princi-
palmente, dos fabricantes das máquinas, cujo trabalho seria exatamente ob-
servar e combinar conhecimentos. Com isso surge um novo ofício, de pessoas
destacadas exclusivamente para a pesquisa ou, como chama Adam Smith, de
um trabalho filosófico também sujeito à divisão do trabalho.
Hoje, há uma tendência que enxerga o sistema capitalista como um
processo evolutivo e impulsionado pela inovação. Inovação, em sentido lato,
que engloba a criação (geração de uma nova ideia) e a inovação em sentido
estrito (o aproveitamento econômico da criação). A inovação, deste modo,
importa numa diferenciação da oferta que o empresário faz no mercado,
constituindo-se em uma nonprince competition. A origem da compreensão da
inovação como elemento central do sistema capitalista e, em especial, como
novo paradigma para o direito da concorrência, provém da recuperação das
teses de Schumpeter sobre a concorrência em termos de inovação e não mais
de preços (MOURA E SILVA, 2003).
Séculos depois da obra de Adam Smith, em 1942, o economista aus-
tríaco Joseph Alois Schumpeter, na obra ‘Capitalismo, socialismo e democra-
cia’ reaviva algumas ideias já presentes na literatura de economia política –
principalmente em Marx e Engels – e formula novos conceitos sobre o papel
da inovação no desenvolvimento econômico.
267
Schumpeter (1961) salienta ao longo de sua obra que o “[...] capitalis-
mo é, por natureza, uma forma ou método de transformação e não, apenas,
reveste caráter estacionário, pois jamais poderia sê-lo” (SCHUMPETER, 1961,
p.105). Segundo o autor, o desenvolvimento do capitalismo implica em um
processo de transformação em termos qualitativos e não apenas quantitati-
vos, decorrentes de uma acumulação de capital. Nesse sentido, o que susten-
ta o capitalismo é o impulso de inovação, ou seja, são “os novos bens de con-
sumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados e
das novas formas de organização industrial criadas pela empresa capitalista”
(SCHUMPETER, 1961, p.105).
Schumpeter (1961) chama esse processo de destruição criadora, sen-
do essencial para a compreensão do capitalismo que dele decorre e para o
qual toda a empresa capitalista – e como tal o empresário – deve estar pre-
parada. De fato, esse processo de destruição criativa pode ser compreendido
como um “[...] processo de mutação industrial – se é que podemos usar esse
termo biológico – que revoluciona incessantemente a estrutura econômica a
partir de dentro, destruindo incessantemente o antigo e criando elementos
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

novos” (SCHUMPETER, 1961, p.106).


Crítico dos modelos vigentes, Schumpeter (1961) salienta que as pes-
quisas econômicas de sua época voltavam-se mais sobre o modo como o ca-
pitalismo administrava as estruturas vigentes do que sobre o modo como ele
cria e destrói essas estruturas. Nesse sentido, por exemplo, a concorrência
era compreendida apenas em termos de preço. Apenas algum tempo depois
outras variáveis como a concorrência de qualidade entram na teoria, mas a
concorrência de preços continua dominando a atenção dos economistas. Po-
rém, esse tipo de concorrência tinha limitações e que não seria, na verdade, a
concorrência mais importante.
Schumpeter (1961) afirma que a concorrência mais importante é
aquela que provém da novidade da organização dos fatores de produção, ou
seja, na inserção da inovação no processo produtivo. Essa concorrência se
sente na empresa capitalista e pode ser mensurada não apenas em termos de
preço e aumento de lucro, mas no sentido dos alicerces de sua própria exis-
tência. Esse tipo de concorrência é muito mais importante que qualquer outro
tipo, de modo que não importa se seu impacto é imediato ou não, porque
seus efeitos apenas são sensíveis a longo prazo quando expande a produção
e reduz preços.
Como se pode constatar, economistas como Adam Smith e Schum-
peter já reconheciam o papel que o conhecimento tinha na formação da so-
ciedade capitalista, contudo um exame econômico mais acurado do papel da
268
propriedade intelectual
inovação dentro da economia é algo recente. Até os anos 80, os economistas
estavam voltados a modelos econômicos que encaravam a inovação como
algo externo.
Novas teorias do crescimento, desenvolvidas sobretudo a partir dos
anos 80, tendem a colocar a mudança técnica mais ao centro de suas análi-
ses sistemáticas, reconhecendo ideias defendidas por economistas históricos,
como Schumpeter. Na esteira desse reconhecimento, modifica-se o próprio
conceito de investimento, que passa a ser definido “tanto em termos da dis-
tribuição e produção de conhecimento como pela produção e uso de bens
de capital, os quais incorporam os avanços da ciência e da tecnologia” (FREE-
MAN; SOETE, 2008, p.22).
Hoje, não apenas a participação percentual da indústria na economia
vem diminuindo, ao mesmo tempo que aumente a participação do ramo de
serviços, mas deve-se assinalar que a maioria da mão de obra empregada seja
na indústria ou nos serviços está crescentemente voltada para a produção de
conhecimento e não de produtos. Nessa indústria da informação, por assim
dizer, assume um papel central os sistemas de Pesquisa e Desenvolvimento
(P&D) já que é deles que emanam os conhecimentos aplicados ao processo
produtivo. Nesse sentido:
Os esforços para gerar descobertas e invenções têm sido crescentemente
centrados em instituições especializadas, como as entidades de Pesquisa e
Desenvolvimento Experimental [...] A expansão dessas entidades foi talvez
a mudança social e econômica mais importante para a inovação no século
XX [...] A interação deste sistema com outras indústrias do conhecimento e
com a produção industrial e o marketing tem uma importância crucial em
qualquer economia. (FREEMAN; SOETE, 2008, p.25).

Há algum tempo, a economia americana já registra uma explosão


de crescimento relacionado a serviços e produtos de base tecnológica mais
sofisticada. Porém, a impossibilidade de uma avaliação financeira direta dos
bens intelectuais desestimula algumas empresas a investir neles tais como o
fazem com maquinário e outros bens tangíveis. Com isso elas acabam per-
dendo elementos preciosos que comporiam seu acervo patrimonial e, além
do mais, estimulariam seus negócios e as posicionariam melhor em termos de
concorrência que, cada dia mais, se faz em termos outros que não de preço
(BOUCHOUX, 2001).
A princípio sempre houve, pelo menos é que se depreende pelos
mencionados trechos de Adam Smith, que sempre houve uma ligação clara
entre ciência e produção. As estruturas de inovação, mais exatamente pesqui-
sa e desenvolvimento (P&D), e que hoje constituem a chamada ‘indústria da
269
inovação’, nem sempre operam no sentido unidirecional, mas mediante uma
interação entre produção e ciência (FREEMAN; SOETE, 2008).516
Hoje as grandes empresas de base tecnológica mantem profissionais
e laboratórios de P&D dentro de suas estruturas, ou seja, profissionais que
atuam não apenas nas funções técnicas, mas também na pesquisa, além do
contato com a universidade.
Ao longo do século XIX, a inovação ocorria principalmente por obra
de inventores individuais. Foi no início do século passado que começaram a
surgir grandes laboratórios dedicados à pesquisa de aplicação industrial e,
mesmo na primeira década, foram surgindo grandes departamentos nas em-
presas dedicados à P&D, ou mesmo no âmbito do governo – principalmente
forças armadas e universidades (FREEMAN; SOETE, 2008).
Essa realidade mudou até mesmo o quadro de empregados das em-
presas que lidavam com tecnologias de base científicas, já que a maioria do
quadro de funcionários pode estar voltado não para a produção de bens e
produtos, mas dedicados à produção, processamento e aplicação de conhe-
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

cimentos. Nesse sentido, a inovação é uma atividade interativa que implica


reconhecimento de um mercado potencial e disponibilidade de conhecimen-
tos, pelo menos iniciais, além daqueles que serão desenvolvidos em pesquisa.
Pode-se sintetizar em dez pontos as características das firmas bem
sucedidas em termos de inovação durante o século XX:
1.Uma forte P&D profissional interna; 2. Execução de pesquisas básicas ou
vínculos próximos com os que faziam tais pesquisas; 3. O uso de patentes
para obter proteção e para negociar com os concorrentes; 4. Um tamanho
suficientemente grande para poder financiar gastos relativamente pesa-
dos de P&D por um longo período de tempo; 5. Menores períodos de ex-
perimentação que os dos concorrentes; 6. Disposição para correr altos ris-
cos; 7. A identificação precoce e imaginativa de um mercado potencial; 8.
Uma atenção cuidadosa com o mercado potencial e esforços substanciais
para envolver, educar e proporcionar assistência aos usuários e consumi-
dores; 9. Um empreendedorismo suficientemente forte para coordenar
a P&D, a produção e o marketing; 10. Boas comunicações com o mundo
cientifico externo, assim como com os consumidores (FREEMAN; SOETE,
2008, p.353).

516 As analises propostas pela teoria da inovação, em especial aquela revista por Freeman e Soete na obra
que se utiliza nesta pesquisa, pode ser dividida numa análise macroeconômica e microeconômica da inova-
ção. As análises macroeconômicas centram-se, sobretudo, no papel do Estado enquanto indutor de inova-
ção, por meio de sistemas e políticas de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Já as análises microeconômicas
têm como principal núcleo de análises a firma, ou seja, a inovação na escala empresarial. Considerando que
na sua segunda parte a presente investigação abordará os contratos como meio de circulação de inovação
no ambiente empresarial, procurar-se-á dar mais relevância às abordagens microeconômicas.
270
propriedade intelectual
Contudo, a inovação não é uma exclusividade de firmas grandes. De
fato, a mesma ocorre também em firmas pequenas. Pode-se dar como exem-
plo aquelas que começaram para desenvolver ou explorar uma nova invenção;
aquelas altamente especializadas, com habilidades específicas e sustentadas
por programas de pesquisa em um âmbito bem delimitados e aquelas que se
esforçam em permanecer em mercados com novos produtos, devendo elas
também se esforçarem em investigar em P&D.
Ainda assim, uma das dificuldades que o empresário tem no que toca
à inovação é a sua mensurabilidade imediata, por assim dizer. De fato, quan-
do a inovação é inserida em um determinado produto, existe uma tendência
para a agregação de um potencial poder de mercado. Porém, esse poder de
mercado só poder aferido ex post, ou seja, depois de realizado o investimento,
caracterizado por um grau de incerteza sobre o investimento feito em inova-
ção (MOURA E SILVA, 2003).
Contemporaneamente ainda existem empresas que não protegem
seu capital intelectual como deveriam porque elas normalmente sequer com-
preendem que elementos até mesmo simples podem ser protegidos. De fato,
até os anos noventa, o capital de uma empresa era composto essencialmente
de bens materiais. Contudo, nos últimos anos tem se assistido um aumento
vertiginoso de atenção a outro tipo de capital, àquele capital decorrente das
atividades intelectuais da criatividade humana, inventividade e inteligência.
Mesmo que intangível, a propriedade intelectual possui um valor igual ou
maior que os bens tangíveis (BOUCHOUX, 2001).
São vários os desafios às empresas no contexto de uma economia
globalizada de inovação industrial, talvez o mais atroz deles seja exatamente
“identificar os ativos ocultos e as pesquisas chaves, a fim de valorizá-los para
aperfeiçoar e melhorar suas performances e, por conseguinte, a sua competi-
vidade no mercado” (BARROS, 2003, p.53).
Contudo, uma das características relacionadas à inovação, como bem
foi salientado, é a produção não de produtos necessariamente tangíveis, mas
na produção de conhecimento, de informação. Esse conhecimento ganha um
tratamento jurídico especial ao ser protegido por meio de direitos de proprie-
dade, os assim denominados de direitos de propriedade intelectual (direitos
de propriedade industrial e direitos de autor) que garantem ao seu proprietá-
rio uma posição privilegiada no mercado e uma segurança jurídica para a ex-
ploração, por determinado tempo, da inovação por ele realizada (BOUCHOUX,
2001; MOURA E SILVA, 2003).

271
Títulos de proteção que conferem exclusividade para a exploração e,
por isso mesmo, o procedimento para sua concessão segue requisitos com-
plexos e fixados em lei. Contudo, diferentemente do direito de propriedade
comum, a sua exclusividade é assegurada apenas um determinado tempo.
Isso confere, como foi abordado, uma posição privilegiada no mercado ao de-
tentor daquela patente (PARANAGUÁ; REIS, 2009).
Nesse sentido, principalmente as grandes firmas atribuem um papel
fundamental às patentes – o título de propriedade industrial mais conheci-
do – e dispõem de grandes departamentos dedicados ao patenteamento das
inovações produzidas nos seus laboratórios de P&D ou em conjunto com o
governo e/ou universidade. Isso garante a elas um título de propriedade que
elas podem negociar mediante cessão (venda) ou mesmo por licenças (FREE-
MAN, SOETE, 2008).
Contudo, não basta a uma empresa deter direitos de propriedade in-
telectual – patentes e outros títulos – se eles não forem devidamente e con-
temporaneamente explorados mediante táticas de mercado adequadas. De-
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

ve-se evitar aquilo que os especialistas chamam de patentes de prateleira, ou


seja, não exploradas. Além disso, a não-exploração econômica de um título de
propriedade intelectual também pode, de certa forma, ser uma tática – ainda
que moralmente censurável – de exploração econômica, já que a detenção
do título impede que outros agentes econômicos realizem aquela exploração
(BARROS, 2003).
Porém, o papel do direito de propriedade industrial em conferir esses
direitos de exclusividade sofre algumas considerações, sendo que
Desde logo, cabe informar que não há consenso entre os estudiosos quan-
to à relação direta entre inovação, patentes e desenvolvimento. Alguns
autores destacam a importância da inovação para impulsionar a competi-
tividade ampliando os mercados, enquanto outros sustentam que o exces-
so de proteção pode desacelerar as inovações (PARANAGUÁ; REIS, 2009,
p.14).

São inúmeras as vantagens do sistema de proteção dos conhecimen-


tos gerados por meios títulos de propriedade intelectual. Contudo, também
existem críticas a esse sistema. Os próprios economistas salientam que, ao
contrário do que pode parecer, a proteção patentária pode prejudicar o livre-
comércio e os consumidores, em especial dos países em desenvolvimento, ao
propiciar a criação de monopólios. (PARANAGUÁ; REIS, 2009).

272
propriedade intelectual
3. Contrato de transferência de tecnologia como
instrumento jurídico da economia da inovação
A transferência de tecnologia pode ser entendida como um processo
que compreende a permissão dada pelo titular do direito da inovação para
vender ou ceder a terceiros o produto de sua criação. Deste modo, trata-se
de uma negociação que deve atender a determinados preceitos legais e que
não implica na transferência da propriedade dos direitos de inovação, mas
favorece o fluxo de comércio e disseminação de novas tecnologias (SANTOS
et al, 2007).
Entre os objetivos da transferência de tecnologia, ressalta Maurício
Prado (1997), deve-se destacar, para o transferente, a maximização da remu-
neração da tecnologia mediante a otimização de sua exploração, recuperando
os investimentos empreendidos em pesquisa e desenvolvimento; além de ser-
vir de porta de entrada em outros mercados.
Já para o receptor/licenciado de uma tecnologia/patente busca com
esse negócio, basicamente, obter inovação tecnológica e capacitação tec-
nológica. Com isso, ele pode manter-se no mercado, ocupando novos es-
paços, aperfeiçoando processos e produtos que já comercializa, atendendo
exigências do mercado consumidor ou mesmo da legislação. Entre os riscos
do processo de transferência de tecnologia está a criação de uma relação de
dependência do receptor para com o transferente. Essa situação decorre de
uma incapacidade técnica do receptor para a exploração da tecnologia e se
materializa por serviços de prestação de assistência técnica do transferente
para o receptor que podem ser incluídos nas cláusulas dos contratos de trans-
ferência, de um modo geral (PRADO, 1997).
A transferência de tecnologia aparece em duas situações: a) Transfe-
rência como finalidade: tecnologia incorporada em produtos e compra e ven-
da de equipamentos e projetos de pesquisa e desenvolvimento e b) Transfe-
rência como objeto: contratos de licenciamento e de know-how propriamente
dito (SANTOS et al, 2007).
Silvio Venosa (2004) assinala que o termo ‘contratos de transferência
de tecnologia’ reúne um conjunto de instrumentos, com características pró-
prias, cujo o objeto é o conhecimento – passível ou não de proteção por um
título de propriedade intelectual – produzido/detido por uma das partes, que
pode genericamente ser denominada de transferente, para que outra parte,
genericamente denominada de receptora, explore empresarialmente esse co-
nhecimento por sua conta e risco.

273
Deste modo, o transferente disponibiliza para o receptor um título
de propriedade industrial (patentes, marcas, modelos de utilidade, etc.) e/
ou conhecimento técnicos, procedimentos e formulas não protegidos ou não
protegíveis por esses títulos (mediante o que se denomina de segredo indus-
trial, know-how) para que o mesmo o incorpore a sua atividade empresária.
Na verdade, trata-se de um conjunto de contratos atípicos que ainda provo-
cam dubiedade na doutrina nacional e comparada, quer sobre a nomencla-
tura mais adequada ou mesmo sobre o conteúdo caraterístico de cada um
(VENOSA, 2004).
Entretanto, o conceito amplo de transferência de tecnologia pode en-
globar tipos contratuais nos quais pouco ou mesmo nada contém de efetiva
transmissão de tecnologia. A redação de tais contratos exige do profissional
entendimento para as necessidades estratégicas do cliente e para auxiliá-lo a
eleger a melhor tática de proteção dos seus bens intangíveis; conhecimento
e sensibilidade, seja a elaboração dos documentos necessários e sua averba-
ção junto ao INPI ou para a participação em negociações nem sempre fáceis
(VIEGAS, 2007).
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

O objeto contratual é conhecimento ou conjunto de informações


confidenciais de teor tecnológico, ocorrendo a transmissão de dados técni-
cos não confidenciais sob condição de cláusulas estritas de confidencialidade.
Uma característica dos processos de negociação dos contratos de transferên-
cia de tecnologia é que a parte geradora da tecnologia procura disponibilizar
à parte receptora a menor quantidade possível de informações sob o maior
preço possível, impondo as denominadas cláusulas restritivas nos contratos
de transferência de tecnologia, que “restringem ou limitam os direitos da em-
presa receptora de exigir da empresa cedente informações referentes à tec-
nologia descrita como objeto contratual” (SANTOS et al, 2007, p.48).
Os contratos devem ser claros, completos e, se possível, individualiza-
dos. Clareza e completude são características desejáveis em todos os contra-
tos, de modo geral, e remetem a um documento objetivo, compreensível às
partes sem necessidade de intermediação, principalmente porque eles são os
executores das avenças. A completude, por sua vez, remete à ideia que todos
os termos pactuados devem estar expressos. A individualização pede que, no
mesmo contrato, não se unam diferentes objetos com tratamentos cambiais e
tributários distintos (VIEGAS, 2007).
Silvio Venosa (2004) sinaliza aquelas cláusulas que para ele são co-
muns aos mais variados contratos de transferência de tecnologia, além daque-
las relacionadas à natureza do conhecimento objeto da avença, deve-se estar
274
propriedade intelectual
atento às obrigações do transferente e do receptor; o caráter definitivo ou
temporário; a modalidade de pagamento de royalties; responsabilidade fiscal
sobre o negócio; prazo de duração (que, no caso dos conhecimentos protegi-
dos por títulos de propriedade industrial, deve ter, no máximo, o período de
proteção conferido pela lei), limitação de uso e designação do foro competen-
te ou instituição de juízo arbitral.
O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), por meio do Ato
Normativo nº 135, de 15.4.1997, tratando sobre averbação e o registro de
contratos de transferência de tecnologia e franquia, define como contratos de
transferência de tecnologia “assim entendidos os de licença de direitos (explo-
ração de patentes ou de uso de marcas) e os de aquisição de conhecimentos
tecnológicos fornecimento de tecnologia e prestação de serviços de assistên-
cia técnica e científica), e os contratos de franquia”.
Contudo, é a Lei nº 10.168/2000 que, no artigo 2º, §1º, define como
contratos de transferência de tecnologia os relativos à exploração de paten-
tes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de
assistência técnica.
Entre esses variados contratos de transferência de tecnologia, encon-
tram-se os contratos de licenciamento, sendo que nesses contratos:
o licenciante, titular de patente, desenho ou modelo industrial, concede do
licenciado, por tempo determinado ou indeterminado, autorização para
a utilização, sob exclusiva responsabilidade deste, segundo a forma con-
vencionada, mediante o pagamento de um preço. Há figuras semelhantes
que se aproximam da licença, como a cessão de patente de invenção, que
implica alienação do direito (VENOSA, 2004, p. 600).

No contrato de licença, o titular de uma patente, denominado licencian-


te ou licenciador, autoriza outrem, o licenciado, a usá-la ou explorá-la empresa-
rialmente, sem que isso implique a transferência da titularidade (VENOSA, 2004)
Assim, o contrato de Licenciamento “é o documento jurídico em que
uma parte autoriza a utilização de ativos de propriedade intelectual mediante
remuneração (royalties). Há duas partes envolvidas: o licenciador, que conce-
de a licença, e o licenciado, que paga pela licença” (SANTOS et al, 2007, p.49).
O licenciante deve ser titular da propriedade intelectual a ser transfe-
rida ou ter autorização do titular para celebrar tal avença. A tecnologia deve
ser protegida por um título ou passível de proteção (licenciamento do pedido),
sendo que a patente depositada apenas poderá constituir objeto de licença
depois da publicação do pedido de privilégio e quando já requerido o pedido
de exame (DINIZ, 2002).
275
Deve-se notar que o licenciamento distingue-se substancialmente da
cessão pelo fato que, na primeira, ocorre apenas a transferência de um desdo-
bramento do direito de propriedade, ou seja, o seu uso e exploração, enquan-
to na cessão ocorre a transferência do direito por inteiro (SANTOS et al, 2007).
Entre as vantagens do contrato de licenciamento para o licenciante
deve-se ressaltar a possibilidade de retorno dos investimentos realizados com
atividades em Pesquisa & Desenvolvimento (SANTOS et al, 2007). Entretanto,
observa Prado (1997), dificilmente o preço acordado na transferência de tec-
nologia será suficiente para suprir a inteireza dos investimentos realizados e
ainda prover lucro ao licenciante/transferente. De fato, os custos do desenvol-
vimento vão além da manutenção das estruturas de laboratórios e pagamento
de técnicos, mas inclui também os revesses ao longo do caminho das pesqui-
sas até chegar ao conhecimento desejado
Outros benefícios são a possível ampliação da entrada daquela tecno-
logia em um nicho onde o licenciante não poderia ele mesmo explorar, além
da possibilidade de obter vantagens de uma melhoria técnica realizada pelo
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

licenciado. Ao colocar a patente em circulação, o licenciante também fomen-


ta o investimento contínuo em atividades de desenvolvimento e evita litígios
pela contrafação de patente (SANTOS et al, 2007).
Ainda que se trate de um contrato para transmissão de dados já pro-
tegidos formalmente por um título de propriedade intelectual, é salutar, assim
como nos Acordos de P&D, que seja firmado um acordo de confidencialidade,
principalmente quando trafegam também dados sobre a utilização da patente
(um know-how do titular não abrangido no título). Porém, mais uma vez, deve-
se atentar que acordo não é garantia de segurança se não for adequadamente
redigido, podendo provocar mais problemas que soluções em um eventual
litígio (OLIVEIRA, 2014).
A licença pode ser total ou parcial, geograficamente delimitada ou
não, com ou sem exclusividade. O licenciante não se responsabiliza pelos ne-
gócios de produção e comercialização do licenciado, mas este se responsa-
biliza perante o licenciante “se fizer mal uso da patente ou desenho, trazen-
do prejuízo para a credibilidade e imagem do produto ou serviço” (VENOSA,
2004, p.600).
A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) trata ao longo dos seus
dispositivos sobre o licenciamento de patentes, ao qual este trabalho irá se ater.
De fato, bem salienta Barros (2003), a patente é instrumento legitimo para a
garantia de direitos sobre a invenção (20 anos) ou modelo de utilidade (15 anos).

276
propriedade intelectual
O seu detentor poderá explorá-la ou conferir o direito de exploração a terceiros,
mediante contrato de licença ou cessão (exploração no direito patentário).
São previstas pela Lei de Propriedade Industrial (LPI) dois tipos de li-
cença: a licença voluntária e a licença involuntárias, que ocorrem ambas me-
diante contrato bilateral e oneroso.
A Licença Voluntária é promovida mediante iniciativa das partes ou
oferta publicada pelo INPI, podendo ser simples ou exclusiva. Na licença sim-
ples, o titular do direito pode licenciá-la outras vezes, ao passo que na exclu-
siva isso não pode ocorrer. Nas patentes estrangeiras, além da averbação no
INPI, deve haver registro no Banco Central, para fins tributários e de entrada e
saída de divisas (BARROS, 2003).
Por sua vez, a licença não-voluntária ocorre nas hipóteses previstas
na lei e também materializa-se por meio de um contrato bilateral e oneroso.
Nessa situação, o titular da patente exerceu os direitos dela decorrentes de
forma abusiva, ou por meio dela praticou abuso de poder econômico, com-
provado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.
Como situações que ensejam a licença não-voluntária, ou compulsó-
ria, o art. 69 destaca quando não ocorre a exploração do objeto da patente no
território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do pro-
duto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados
os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação ou a
comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado.
A licença voluntária materializa-se mediante um contrato, no qual o
titular pode delegar ao licenciado todos os poderes relativos à defesa da pa-
tente, ou seja, a permissão de uso ou exploração do objeto por prazo ajustado
entre as partes, mas não transfere o direito real sobre a patente ou pedido de
patente.
Contrato atípico, o licenciamento voluntário segue as regras do Có-
digo Civil quanto aos elementos do objeto, preço, prazo, território e partes
capazes, sendo necessária a averbação no INPI para que tenha eficácia, não
interferindo em sua validade de prova de uso.
O titular pode, no contrato de licenciamento, transferir apenas alguns
direitos sobre a patente ou pedido de patente. Esses direitos podem ser os de
“proibir que terceiros utilizem, ponham à venda, vendam ou importem produ-
to ou processo patenteado. As exceções, decerto, referem-se aos direitos de
usuário anterior, atos com finalidades experimentais e os comerciais, ainda,
aos medicamentos individuais” (BARROS, 2003, p.271).
277
Ao licenciado cabe defender a patente das contrafações, além de pro-
por ações que protejam a patente, caso o titular não o faça, promovendo uma
exploração correta e legítima da patente, pedido de patente ou modelo de
utilidade licenciada. Além disso, o licenciado está obrigado a explorar a pa-
tente em nome próprio e sob sua conta e risco. A remuneração do licenciado
que pode ser fixo, ajustado previamente ou flexível, de acordo com o lucro
auferido pelo licenciado.
São obrigações do licenciante a de pagar as taxas perante o INPI, a ga-
rantia da evicção e vícios pré-existentes, a garantia da exploração e comunicar
os aperfeiçoamentos. Sobre essa última obrigação, ela possui um desdobra-
mento relevante. De modo geral, o entendimento consolidado está no sentido
de que, ao momento da assinatura do contrato, sob pena de responsabilidade
civil, o licenciante deve transmitir ao licenciado todas os aperfeiçoamentos
disponíveis, porém “quanto ao aprimoramento posterior, já que tanto o licen-
ciante quanto o licenciado pode desenvolvê-lo, ele pertence ao autor, assegu-
rando-se à parte não-autora a preferência no licenciamento” (BARROS, 2003,
p.274).
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

Maurício Prado (1997) relaciona cláusulas que considera centrais aos


contratos de transferência de tecnologia como aquelas que lidam diretamen-
te com a tecnologia: sua transferência e exploração. Nesse âmbito estão rela-
cionadas aquelas que determinam o objeto que está sendo transferido e sua
definição. As partes também devem acordar sobre os melhoramentos tecno-
lógicos eventualmente desenvolvidos ao longo do contrato, havendo ou não a
obrigação que as mesmas sejam transmitidas entre as partes.
Cláusula interessante na transferência de tecnologia é aquela sobre de
garantia de resultado. Nesta cláusula deverá ser determinada a responsabilida-
de – ou não – do transferente pelos resultados econômicos que o licenciante
deseja obter. Quando uma patente é licenciada, juntamente com ela podem
estar inclusivos no objeto do contrato, a transmissão de conhecimento que
não estão descritos no documento da patente, ou seja, um know-how sem o
qual não será possível o proveito econômico do negócio. Vale saber assim que:
[...] as cláusulas usualmente designadas como garantias de resultado fi-
xam obrigações, ao transferente, de fazer com que o receptor alcance
determinados objetivos mediante a exploração da tecnologia, atestando
sua transferência. Essas disposições são de extrema relevância para o re-
ceptor, pois o fato de atingir metas objetivamente estabelecidas constitui
forma de constatar a adequada absorção da tecnologia e comprovar sua
autonomia na gestão do processo tecnológico, ou seja, sua capacitação
tecnológica (PRADO, 1997, p.100).

278
propriedade intelectual
Entre as cláusulas sobre exploração, encontram-se aquelas que po-
dem limitar o uso da patente territorialmente. Nesse sentido, é interessante
notar um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação
Cível nº 7011675337, julgada em 14.07.2005 de relatoria do Desembargador
Dorval B. Marques. Entre outros assuntos de cunho processual, discute-se
nesse caso um contrato de licenciamento em que o titular de uma patente
de invenção (PI 9103071-4 B1) licencia o uso em uma determinada jazida de
propriedade da licenciada. Em suas alegações, o autor da ação – o titular da
patente – alega que o licenciado ter tomado utiliza-se de outro equipamento,
de processo similar ao da patente de invenção (contrafação), extrapolando e
desvirtuando o contrato avençado, causando-lhe inúmeros prejuízos.
No mérito, o relator observa que não há comprovação da contrafa-
ção. Além disso, os contratos de licença devem ser específicos, caso contrário,
a licença deve ser interpretada no sentido mais amplo, beneficiando o licen-
ciado. Sobre o caso, o relator conclui, analisando os termos da licença, que
[...] tal cláusula autoriza à empresa ré a utilização de forma ampla da pa-
tente de invenção, havendo, como única limitação, o local de seu uso, qual
seja, na jazida descrita na cláusula primeira, denominada “Cerro dos Pei-
xotos”.
Assim, ante a não limitação da licença concedida à empresa ré, deve-se
entender que a mesma estava autorizada a explorar a patente de forma
ampla, desde que nos limites da jazida mencionada (TJRS. Décima Quarta
Câmara Cível. Apelação Cível nº 7011675337, de Mineração Serra Geral
Ltda. vs. Geraldo Antunes Cacique e Sistop Granitos Ltda. Relator: Desem-
bargador Dorval B. Marques. Julgado em 14 de julho de 2005).

Deste modo, o relator julga procedente o apelo da empresa licencia-


da contra a sentença do juiz monocrático que deu ganho de causa ao titular
da patente.
Por fim, ressalte-se a necessidade de registro do contrato de licen-
ciamento no INPI, por força do art. 62 da Lei nº 9.279/1996, para que pro-
duza efeitos em relação a terceiros. Do mesmo modo, por força da Lei nº
4.131/1962, disciplinada pela Resolução nº 3.844/2010 do Banco Central do
Brasil, ficam sujeitos a registro no BCB os contratos que versem sobre uso
ou cessão de patentes, de marcas de indústria ou de comércio, fornecimento
de tecnologia ou outros contratos da mesma espécie, para efeito de transfe-
rências financeiras ao exterior a título de pagamento de royalties. Além dis-
so, o registro é necessário para permitir a dedutibilidade fiscal prevista nas
leis nº 4.131/1962 e nº 8.383/1991, Decreto nº 3.000/1999 e Portaria MF nº
436/1958.
279
Sobre a extensão e finalidade do registro no INPI é interessante men-
cionar o Recurso Especial nº 1.046.324/RJ, de relatoria do Ministro Sidnei Be-
neti e julgado em 14 de setembro de 2010. Nesse caso, uma sociedade empre-
sária (Videolar Ltda.) acionou outra (Koninklijke Philips Eletronics), juntamente
com o INPI, na Justiça Federal do Rio de Janeiro, demandando a revisão de
contratos de licença de patente de invenção, discutindo, entre outros assun-
tos, o pagamento de royalties.
O que se sobressai nesse caso e o fez chegar ao Superior Tribunal de
Justiça é a discussão da competência da Justiça Federal para o feito, já que o
INPI também fora acionado. Em resposta ao recurso, o INPI ressalta sua com-
petência quando registra contratos de transferência de tecnologia, entre os
quais se encontram os licenciamentos, afirmando que:
Dito de outra forma, em realidade o INPI não interfere nem participa na
pactuação de cláusulas contratuais, mas não averbará contratos ou cláu-
sulas de contratos que firam normas legais brasileiras. O INPI só analisa
a questão quando ela é apresentada em sede administrativa, através de
contratos, de aditamento aos contratos (ou, no presente caso, também
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

quando a concessão das patentes, daqueles pedidos de patentes que são


objetos do contrato em discussão) ou, ainda, de ofício, se verificar algum
contrato, mesmo já averbado, está afrontando alguma de tais normas le-
gais (STJ, RESp nº 1.046.324/RJ, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti e
julgado em 14 de setembro de 2010).

No julgamento, o relator observa que a discussão cinge-se a cláusulas


contratuais sobre licenciamento de patente e pagamento de royalties e, nesse
sentido, sobre a observância da Portaria do Ministério da Fazenda nº 436/58.
Não há debate sobre uma norma emanada do INPI, cuja atuação no feito é ex-
traprocessual e de natureza registral, sendo a causa de interesse totalmente
particular. Não havendo interesse no feito pela autarquia, o relator conclui,
ratificando a decisão a quo, que o INPI deve ser excluído da demanda e o feito
processado apenas na Justiça Estadual.
Além da interação com o INPI, os contratos de transferência de tec-
nologia guardam estreita relação com o direito da concorrência quando inci-
de em algum dos casos previstos pela lei 8.884/1994, que trata do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e dispõe sobre a prevenção e a
repressão às infrações contra a ordem econômica.

280
propriedade intelectual
4. Contrato de transferência de tecnologia frente ao
direito da concorrência

4.1. Propriedade intelectual e concorrência


A propriedade intelectual consiste no direito de exclusividade sobre
bens imateriais, uma propriedade privada temporária, garantida pelo Estado
que a concede, para aquele que cria uma obra técnica ou estética, desde que
em conformidade com os balizamentos legais, possa usufruir exclusivamente
de tal obra durante o prazo de proteção.
Tal direito de exclusiva (ASCARELLI, 1970) é o desenho forjado, dentre
outras possibilidades, como o patronato (BARBOSA, 2010), para a organização
econômica de bens imateriais, como meio de estimular a criação, e, conse-
quentemente, promover o desenvolvimento tecnológico, cultural e econômi-
co.
Observa-se que a propriedade intelectual quanto ao seu caráter ex-
clusivista, proibindo terceiros não titulares da exploração patrimonial do bem
protegido, possui as mesmas características estruturais do instituto da pro-
priedade. O Código Civil brasileiro não conceitua a propriedade, mas estabe-
lece no art. 1.228 que: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha”. Nesse sentido, a propriedade intelectual estruturalmen-
te assemelha-se à propriedade em geral.
Por outro lado, a propriedade intangível, por não ser passível de apro-
priação direta como a propriedade tangível, uma vez colocada no mercado
permite sua reprodução e uso por qualquer pessoa que tenha acesso ao bem,
o que é considerado uma falha de mercado. Essa situação ignora o fato de
que, na maioria das vezes, uma criação intelectual é precedida de significati-
vos investimentos de ordem financeira, temporal e laboral.
Em seu aspecto econômico, o instituto da propriedade intelectual é
uma forma artificial, juridicamente criada, para corrigir essa falha de merca-
do, permitindo que o criador de um bem intelectual, científico, literário ou
artístico, possa ter seu investimento e esforço recompensados pelo direito
exclusivo de o explorar e impedir que terceiros não autorizados o explorem.
A exclusividade, como salienta Denis Borges Barbosa, incide no momento em
que o bem imaterial adentra o mercado, tornando-se um “bem-de-mercado”
(BARBOSA, 2010, p. 58).

281
Por um aspecto moral, a propriedade intelectual funciona como uma
premiação ao inventor de ter seu nome vinculado a sua criação (CERQUEIRA,
2010). Defende-se que a falta desses reconhecimentos acarretaria num de-
sestímulo a novas criações.
Assim, classicamente a propriedade intelectual é tida como um direi-
to de propriedade, porém, recentemente, a propriedade intelectual tem sido
concebida como um monopólio.
Conceber a propriedade intelectual e os instrumentos oriundos de
sua exploração simplesmente como propriedade pura, muita das vezes, peca
por aferir àquela um sentido privatista absoluto, já a visão concorrencial traz
a este direito uma perspectiva de interesse coletivo (BARBOSA, 2010). Assim,
se estruturalmente os direitos de propriedade intelectual são semelhantes ao
instituto da propriedade, é propício dizer que funcionalmente tais direitos se
relacionam com a disciplina da concorrência (ASCARELLI, 1970), que regula o
uso do bem no mercado para que este mantenha-se de forma competitiva.
Nesse sentido, Calixto Salomão Filho (2003, p. 131) expõe que:
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

A superação desse tipo de justificativa e raciocínio decorre menos de uma


evolução do Direito Industrial e mais de uma nova concepção de concor-
rência. Evoluindo o Direito Concorrencial de uma defesa privada do con-
corrente para uma defesa pública da instituição “concorrência” (o que rigo-
rosamente passa a ocorrer desde a promulgação da primeira lei de direito
antitruste no sentido publicista, o Sherman Act, em 1890), o tratamento de
qualquer instituto que a restrinja tem de ser modificado. Monopólios devem
ser admitidos na menor extensão possível e, mesmo quando admitidos, é de
ser reconhecida sua função social. A essa luz, a função econômico-jurídica
dos institutos de Direito Industrial muda substancialmente de figura.

A relação entre propriedade intelectual e direito antitruste não surgiu


desde o momento da criação desses dois institutos, que possuem escopos e
justificativas diversas (BRANCHER, 2010). Cabe recordar que o direito da con-
corrência contemporaneamente possui como marco relevante o Sherman Act,
dos Estados Unidos, que entrou em vigor em 1890; e na Europa este direito
teve surgimento nos idos de 1920. O que ressalta que o tratamento do direito
da concorrência é até mesmo posterior, em pelo menos 100 anos, ao da pro-
priedade intelectual.
Assim, esta interseção é fruto de uma construção doutrinária e juris-
prudencial em resposta a supremacia intocável com que era tida a proprieda-
de intelectual, que não se submetia as normas anticoncorrencias pelo simples
fato de serem consideradas um exclusivo legal que permite qualquer uso rea-
lizado por seu titular (LESLIE, 2011).
282
propriedade intelectual
Referida confusão decorria também da falta de uma distinção ade-
quada entre o monopólio legal ou jurídico (SALOMÃO FILHO, 2003), de que
trata a propriedade intelectual e que exclui esse direito da seara concorren-
cial, do monopólio econômico, que deve ser evitado sob pena de causar pre-
juízos ao mercado. Com a confusão desses dois termos acreditava-se numa
forte tensão entre os direitos de propriedade intelectual e o direito antitruste,
já que a primeira visa garantir direitos de exclusividade para um concorrente
em detrimento dos outros e as políticas de concorrência objetivam o controle
da concentração de mercados. Como explica Luís Pinto Monteiro (2010, p.41):
Os objetivos do direito de concorrência estão à partida associados à pro-
moção da eficiência alocativa a curto prazo. Isto é, estão ligados à promo-
ção de condutas tendentes a trazer os preços dos bens e serviços para o
seu custo marginal e assim, maximizar os recursos sociais existentes. Este
propósito pode vir a conflituar com os exclusivos conferidos através dos
direitos de propriedade intelectual. Tal deve-se ao facto de a utilização da
informação correspondente aos direitos de propriedade intelectual ter um
custo marginal igual a zero. A informação, devido à sua natureza imaterial,
pode ser usada por um número infinito de pessoas, múltiplas vezes e em
simultâneo sem que isso conduza à sua escassez ou exaustão.

O monopólio legal de que trata a propriedade intelectual não está


relacionado diretamente ao controle da concentração de mercados. Com a
exclusiva da propriedade intelectual podem ser encontrados casos em que
essa concentração exista ou não, e na primeira situação algumas serão legais
e outras ilegais. Quanto a estas últimas - concentração de mercado ilegal por
meio de direitos de propriedade intelectual - o direito antitruste deverá coibir
tais práticas.
Além do que, um exclusivo nem sempre irá significar dominação de
mercado tendo em vista muitos produtos protegidos por direitos de proprie-
dade intelectual possuem substitutos. Como explica Calixto Salomão Filho
(2003, p. 133-134):
A demonstração da instrumentalidade da utilização do termo “monopólio
legal” e a evidenciação do tipo de direito que se pretende conferir por
meio das marcas e patentes ficam também claras, uma vez analisado o
dado econômico. Como destaca a doutrina, já vai longe o tempo em que
se acreditava que marcas e patentes conferiam verdadeiro monopólio
no sentido econômico. Em um mundo que se sofistica e se especializa,
as marcas e patentes nem sempre conferem poder no mercado. A não
ser nos ramos de alta tecnologia, em que a patente efetivamente gera
monopólio, ao menos temporário, praticamente todos os produtos, mes-
mo quando substituíveis, são dotados de patentes. Produtos patenteados
concorrem com outros produtos patenteados ou até sem patentes.

283
A partir da expansão do direito antitruste em todo o mundo obser-
vou-se também o avanço da leitura conjunta deste instituto com a proprie-
dade intelectual, numa tentativa de equilibrar os interesses dos titulares de
direitos de propriedade intelectual e os interesses do mercado competitivo.
Assim, a propriedade intelectual assume um perfil eminentemente concor-
rencial, com a maximização do bem-estar social por meio do desenvolvimento
econômico e tecnológico (MONTEIRO, 2010; SALOMÃO FILHO, 2003)
A aplicação do direito antitruste na propriedade intelectual tem ob-
tido grande realce nas questões envolvendo contratos de transferência de
tecnologia, em especial nos licenciamentos, caso que será analisado a seguir
neste trabalho.

4.2. Contratos de transferência de tecnologia e direito concorrencial no


Brasil
Os contratos de transferência de tecnologia, como qualquer contra-
to, são capazes de provocar problemas concorrenciais ao mercado, e, conse-
quentemente, estão também sujeito ao regime do direito antitruste.
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

Esta relação é inclusive destacada pelo próprio Acordo TRIPS (artigo


40), no qual os Membros concordam que algumas práticas ou condições de
licenciamento relativas a direitos de propriedade intelectual que restringem a
concorrência podem afetar adversamente o comércio e impedir a transferên-
cia e disseminação de tecnologia, e, em razão deste reconhecimento, permite
que os mesmos possam adotar medidas apropriadas para evitar ou controlar
tais práticas.
No Brasil, coube a lei 8.884/1994, com atuação do Conselho Adminis-
trativo de Defesa Econômica (CADE), regular sobre os contratos que possam
ter efeitos adversos no mercado, incluindo os que versam sobre transferência
de tecnologia.
As condutas qualificadas como anticompetitivas estão presentes nos
artigos 20 e 21 da referida Lei. O artigo 20, de forma geral, estabelece que:
Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa,
os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou pos-
sam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou
a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros;

284
propriedade intelectual
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.

De forma mais específica o artigo 21 exemplifica vinte e quatro com-


portamentos que se encaixam na formulação geral do artigo 20, dos quais
se destacam (ASSAFIM, 2005) – sem excluir a possibilidade de incidência dos
demais – no caso dos contratos de transferência de tecnologia:
- fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, pre-
ços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços (inciso I);
- dividir os mercados de serviços ou de produtos, acabados ou semi-a-
cabados, ou as fontes de matérias-primas ou de produtos intermediários
(inciso III);
- impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas,
equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição (inciso
VI);
- regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limi-
tar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção
de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos desti-
nados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição (inciso X);
- dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações co-
merciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em
submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticon-
correnciais (inciso XIV);
- subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um
serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou
à aquisição de um bem (inciso XXIII);
- impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem
ou serviço (inciso XXIV).

Luciano Benetti Timm (2009, p. 104), com base nas condutas do arti-
go 21, lista como cláusulas tipicamente problemáticas nos contratos de trans-
ferência de tecnologia:
- cláusulas de licença reversa (grant back) - é a cláusula por meio da qual
um dos contratantes (geralmente o licenciado) deve conceder os diretos
em relação a qualquer melhoria introduzida na tecnologia negociada;
proibições de utilização de tecnologia após a expiração do contrato (post
expiry);
- cláusulas proibindo o questionamento administrativo ou judicial a respei-
to da validade do direito de propriedade intelectual (no challange) - cláu-
sulas que vedam o questionamento, quando o licenciado se compromete
a não questionar a validade dos direitos de propriedade intelectual objeto
do contrato;

285
- vendas casadas (tying arrangements) – cláusula de condicionamento é o
acordo pelo qual o licenciado é obrigado a comprar, do cedente, bens ou
serviços vinculados ao objeto principal do contrato;
- proibição ou de restrição à concorrência (non-competition clauses),
- fixação de preços (price fixing) – fixação de preço ocorre quando o ce-
dente impõe ao licenciado o preço que o produto deve ser vendido no
mercado;
- restrições de quantidade (volume restrictions),
- restrições de utilização (field-of-use restrictions) – restrição de finalidade
significa uma limitação de propósitos pelos quais o licenciado pode explo-
rar a tecnologia licenciada;
- licenças-pacote (package license) – licença conjunta ocorre quando o ce-
dente confere, na mesma transação, ao licenciado o direito de explorar
dois ou mais direitos de propriedade intelectual separados.
- cláusulas de não-concorrência;
- restrições de exportação (export restrictions);
André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

- licença cruzada (cross licensing) – licença cruzada é uma forma específica


de contrato, no qual dois ou mais agentes econômicos licenciam, um para
o outro, o uso de suas respectivas tecnologias;
- acordo de patentes (pooling patents) – Acordo de patentes é uma forma
horizontal de acordo em que dois ou mais agentes econômicos pactuam
dividir sua tecnologia proprietária.

Assim, todos os contratos de transferência de tecnologia que pos-


suam cláusulas cujo conteúdo trate dos atos que configurem o disposto no
artigo 20 ou 21 devem ser submetidos a apreciação do CADE.
Para tanto, a Lei 8.884/1994 estabelece no artigo 54 o procedimento
a ser seguido. O contrato deve ser apresentado para exame, no prazo máxi-
mo de quinze dias úteis de sua realização, em três vias à Secretaria de Direito
Econômico (SDE), que imediatamente enviará uma via ao CADE e outra à Se-
cretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE). Da análise dos documentos
a SDE deverá proferir parecer técnico e remeter para o CADE, que deverá
tomar decisão final em até 60 dias sob implicação de autorização automática
(§§ 6º e 7º).
No entanto, o CADE poderá autorizar atos que possa limitam a livre
concorrência, ou que resultem na dominação de mercados relevantes de bens
ou serviços, desde que: a) tenham por objetivo, cumulada ou alternativamen-
te: aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviço, ou
propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; b) os
286
propriedade intelectual
benefícios decorrentes sejam distribuídos equitativamente entre os seus par-
ticipantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro, c) não
impliquem eliminação da concorrência de parte substancial de mercado rele-
vante de bens e serviços; d) sejam observados os limites estritamente neces-
sários para atingir os objetivos visados (art. 54, §1º).
Também poderão ser considerados legítimos os atos previstos no
artigo 54, desde que atendidaspelo menos três das condições previstas nos
incisos do §1º, quando necessários por motivo preponderantes da economia
nacional e do bem comum, e desde que não impliquem prejuízo aoconsumi-
dor ou usuário final.
A aprovação do contrato poderá ser revista pelo CADE, de ofício ou
mediante provocação da SDE, se a decisão for baseada em informações falsas
ou enganosas prestadas pelo interessado, se ocorrer o descumprimento de
quaisquer das obrigações assumidas ou não foremalcançados os benefícios
visados (art. 55).

5. Considerações finais
Em tempos de economia da inovação, o conhecimento adquire im-
portância central enquanto elemento de uma concorrência non price entre as
empresas. A geração, proteção e aquisição de conhecimentos – protegidos ou
não por títulos de propriedade industrial – ganha destaque na agenda de pre-
ocupações não apenas dos grandes conglomerados industriais, mas também
dos pequenos empresários, sobretudo daquelas pequenas empresas de base
tecnológica.
Não se pode esquecer que a geração e circulação de conhecimentos
ocorre também sem a presença do Estado. Por meio de contratos de transfe-
rência de tecnologia, em especial os de licenciamento, o empresário impulsio-
na, por meio de arranjos contratuais atípicos, a circulação desse conhecimen-
to e movimenta a economia da inovação.
Contudo, tais contratos devem também ser submetidos a análise
pelo direito concorrencial, visto que existe um interesse de ordem pública na
concessão e circulação de direitos de propriedade intelectual: o incentivo a
inovação, ao desenvolvimento e ao progresso científico e tecnológico que só
podem ocorrer dentro de um ambiente concorrencial saudável.

287
propriedade intelectual
O DIREITO AUTORAL COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NA INCOMUNICABILIDADE DOS PROVENTOS DO
TRABALHO PESSOAL DE CADA CÔNJUGE

Francisco Narcélio Ribeiro517

1. Introdução
O presente estudo tem como objetivo analisar, à luz do fundamento
constitucional da dignidade da pessoa humana e dos princípios dele decorren-
tes, quais sejam, igualdade, integridade física e moral (psicofísica), liberdade
e solidariedade, a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de
cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens. Para tan-
to, necessário entender a função instrumental da família na concepção do
direito civil-constitucional, bem como a importância do princípio da unidade
da família. Nessa medida, destaca-se decisão do Superior Tribunal de Justi-
ça (STJ), que afasta a aplicação literal do inciso VI do artigo 1.659 do Código
Civil e realiza interpretação restritiva para mantê-lo em consonância com os
ditames da Constituição Federal de 1988. Entretanto, ponto importante para
a questão é o caminho adotado pela lei autoral brasileira para determinar a
incomunicabilidade do direito patrimonial de autor, em virtude de afirmar que
os rendimentos de tal direito são comunicáveis. Ou seja, o direito patrimonial
de autor é incomunicável, mas os rendimentos que dele decorrem não. As
normas civilista e autoral muito se assemelham, só que a segunda tem reda-
ção mais adequada aos ditames constitucionais que a primeira. Dessa forma,
a lei 9.610 de 1998 pode ser utilizada, por analogia, para preservar a constitu-
cionalidade do dispositivo da norma civilista que trata dos proventos pessoais
de cada cônjuge.
A problemática da constitucionalidade, ou não, dos proventos do tra-
balho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal
de bens é algo que merece a devida análise. Como se admitir, por exemplo,
a comunicabilidade quando um dos cônjuges utiliza seus proventos de traba-

517 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Especialista em Direito
Processual Civil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Professor substituto da Universidade
Estadual Vale do Acaraú – UVA, na área de Direito Civil, no período de 2005 a 2007. Professor da Faculdade
Luciano Feijão em Sobral (CE) das disciplinas de Introdução à Ciência do Direito e Direito do Consumidor.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais – UNIFOR.
289
lho para a família e a incomunicabilidade quando o outro os utiliza para seus
investimentos pessoais? Observa-se, claramente, a inadequação e a injustiça,
tendo em vista a possibilidade do enriquecimento indevido de um consorte
em detrimento do outro, quando do encerramento da relação.
Entretanto, a pergunta a ser devidamente realizada é a seguinte: o in-
ciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil, é inconstitucional? Ora, o enlace conju-
gal é fulcrado, principalmente, nos princípios da igualdade e da solidariedade
econômica, que são corolários do princípio da dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, percebe-se, logo de início, que a interpretação literal indicando
a incomunicabilidade patrimonial não é constitucional.
Importante se torna situar os caminhos a serem trilhados no presente
trabalho. Inicia-se com uma abordagem na perspectiva do princípio da digni-
dade da pessoa humana que, por sua vez, traz à baila os princípios da igual-
dade, da solidariedade social e da unidade da família. Em consonância com
tais princípios, abordam-se as relações conjugais, bem como o princípio da
solidariedade econômica, à luz da solidariedade familiar.
Francisco Narcélio Ribeiro

Na sequência, passa-se a analisar a questão patrimonial nas relações


conjugais, os bens adquiridos na constância da união e a sua divisão no caso
de dissolução do enlace. Depois, analisa-se a (in)constitucionalidade do inciso
VI do artigo 1.659 do Código Civil, haja vista a possibilidade de ofensa ao prin-
cípio da dignidade da pessoa humana.
Em seguida, colaciona-se recente decisão do Superior Tribunal de Jus-
tiça (STJ), na qual restou consignada a comunicabilidade dos proventos do tra-
balho pessoal de cada cônjuge, afirmando-se ainda que a incomunicabilidade
residia apenas no direito. Tal solução do problema merece críticas, haja vista
que não enfrenta a situação como deveria e estabelece uma interpretação
irrazoável e inverossímil da norma legal.
Logo após, realiza-se um estudo do artigo 39 da norma autoral bra-
sileira, qual seja, lei 9.610 de 1998, que estabelece um caminho que melhor
efetiva a dignidade da pessoa humana nos casos de comunicabilidade ou não
de bens na relação conjugal, ao afirmar que o direito de autor é incomunicá-
vel, mas seus rendimentos não. Ressalta-se a relevância do tema em virtude
da necessidade do Código Civil estar em consonância com os ditames da Cons-
tituição Federal de 1988, portanto, dentro da linha do direito civil-constitucio-
nal. Para a realização do trabalho, utiliza-se do método qualitativo, pautada
em doutrina nacional e estrangeira, bem como em decisão de Tribunal Supe-
rior pátrio.

290
propriedade intelectual
2. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
Fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da CF/88),
o princípio da dignidade da pessoa humana é a base para a construção de uma
sociedade em que o ser humano é colocado como um fim em si mesmo, in-
clusive de toda ordem jurídica. O imperativo categórico de Kant introduz tal
máxima como algo essencial à humanidade. Sobre o assunto, discorre Maria
Celina Bodin de Moraes (2010, p. 81):
Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano jamais
seja visto, ou usado, como meio para atingir outras finalidades, mas sem-
pre seja considerado como um fim em si mesmo. Isto significa que todas
as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter
como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. O imperati-
vo categórico orienta-se, então, pelo valor básico, absoluto, universal e
incondicional da dignidade humana. É esta dignidade que inspira a regra
ética maior: o respeito pelo outro.

Para Kant, o homem é um ser racional e isso o diferencia dos animais.


Devido a essa racionalidade é que era chamado de pessoa humana. Disso re-
sulta que ele possui uma essência superior a qualquer ser vivo, surgindo daí
a ideia de dignidade (HOLANDA, 2014, p. 21). Percebe-se a valorização do ho-
mem enquanto pessoa, merecedor de dignidade, jamais podendo ser objeto,
e sim, fim. A sociedade, a economia, o direito, a política, dentre outras, exis-
tem para realizar o valor maior, qual seja, dignidade ao ser humano.
O homem, assim como todo ser racional, existe como fim em si mes-
mo, jamais podendo ser meio para satisfação arbitrária desta ou daquela von-
tade. No entanto, o valor dos objetos materiais que se pode adquirir é sem-
pre condicional. Assim, observa-se que tudo tem uma dignidade ou um preço.
Quando uma coisa tem um preço, pode ser substituída por outra equivalente;
mas quando uma coisa está acima de todo preço, então ela tem dignidade.
Esta apreciação dá a conhecer como dignidade o valor de uma disposição do
espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço (SARLET, 2004, p. 33-34).
Segundo José Afonso da Silva (1998, p. 90), essa concepção kantiana
tem natureza filosófica:
A filosofia mostra que o homem, como ser racional, existe como fim em
si, e não simplesmente como meio, enquanto seres, desprovidos de razão,
têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis porque se lhe cha-
mam coisas; ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas,
porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que
não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguin-

291
te, limita na mesma proporção o nosso arbítrio por ser objeto de respeito.
(…) do mesmo princípio racional que vale para mim, é, pois, ao mesmo
tempo, um princípio objetivo que vale para outra pessoa.

A doutrina nacional é unânime em afirmar a importância e a signifi-


cação do fundamento do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
Neste diapasão, esclarece Flávia Piovesan (s/d, p. 05) que o valor da dignidade
humana, elevado à condição de princípio constitucional, impõe-se como nú-
cleo básico do ordenamento jurídico pátrio, sendo parâmetro de valoração
para orientar a interpretação e compreensão de sobredito ordenamento.
Afirma ainda Flávia Piovesan que a dignidade humana e os direitos
fundamentais conferem suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasilei-
ro. Portanto, ambos têm um papel singular na ordem jurídica. Diante disso,
pergunta-se: qual a relação entre dignidade humana e direitos fundamentais?
Sobre o assunto, Ana Maria D’Ávila Lopes (2001, p. 35), ao definir
direitos fundamentais “como os princípios jurídica e positivamente vigentes
em uma ordem constitucional que traduzem a concepção de dignidade hu-
Francisco Narcélio Ribeiro

mana de uma sociedade e legitimam o sistema jurídico estatal”, estabele-


ce uma relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana
numa perspectiva de que os primeiros são instrumentos de efetivação do
segundo, haja vista que se começa a constatar um conteúdo no fundamento
constitucional. É através dos direitos fundamentais que se realiza a dignidade
humana.
O conceito acima exarado possibilita um caminho para se estudar a
problemática situação da efetivação do princípio da dignidade da pessoa hu-
mana. Ora, não resta dúvida acerca de sua importância; no entanto, diante
da generalidade que lhe é inerente, são necessários instrumentos para sua
concretização. Sobre o assunto, afirma Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 563):
A despeito das inúmeras tentativas formuladas ao longo dos tempos, no-
tadamente (mas não exclusivamente) no âmbito da fecunda tradição fi-
losófica ocidental, verifica-se que uma conceituação mais precisa do que
efetivamente seja esta dignidade, inclusive para efeitos de definição do
seu âmbito de proteção na esfera do Direito, continua a ser um desafio
para todos os que se ocupam do tema. Tal dificuldade, consoante exausti-
va e corretamente destacado na doutrina, decorre certamente (ao menos
também) da circunstância de que se cuida de conceito de contornos vagos
e imprecisos, caracterizado por uma ‘ambiguidade e porosidade’, assim
como por sua natureza necessariamente polissêmica.

Assim, os direitos fundamentais são as linhas orientadoras para a rea-


lização do fundamento da dignidade da pessoa humana, posto que traduzem
292
propriedade intelectual
sua concepção. Nesse contexto, insere-se o tema do mínimo existencial para
concretização do referido postulado.
Ana Paula de Barcellos (2008, p. 288), no campo dos direitos sociais,
identifica o mínimo existencial como núcleo da dignidade da pessoa humana.
Esse mínimo é composto de quatro elementos: educação fundamental, saúde
básica, assistência aos desemparados e acesso à justiça. Tal identificação é
pautada numa visão sistemática, integradora, em que os direitos fundamen-
tais se destacam. Dessa forma, constata-se um mínimo possível, o qual, uma
vez afrontado, será atingida a própria dignidade humana.
Isso não quer dizer que o postulado constitucional ora em estudo se
limite ao referido núcleo existencial, mas sim que esse núcleo é a base mínima
de percepção e realização do fundamento. Lembra-se, para tanto, que todos
os direitos fundamentais traduzem a concepção da dignidade humana, e não
somente um núcleo mínimo.
Em concepção semelhante, no campo do direito civil-constitucional,
Maria Celina Bodin de Morais (2010, p. 85) afirma a existência de um substrato
material ao princípio expresso no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal
de 1988. Tal substrato se encontra nos seguintes postulados:
O substrato material da dignidade deste modo entendida pode ser desdo-
brado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a exis-
tência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo
respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade
livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual
tem a garantia de não vir a ser marginalizado.
São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da in-
tegridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade. De
fato, quando se reconhece a existência de outros iguais, daí dimana o prin-
cípio da igualdade; se os iguais merecem idêntico respeito à sua integridade
psicofísica, será preciso construir o princípio que protege tal integridade;
sendo a pessoa essencialmente dotada de vontade livre, será preciso garan-
tir, juridicamente, esta liberdade; enfim, fazendo a pessoa, necessariamen-
te, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da solidariedade social.

Assim, conforme ensina a professora Maria Celina, são corolários de


tais postulados os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e mo-
ral (psicofísica), da liberdade e da solidariedade. A integridade psicofísica, con-
forme se percebe, é uma decorrência do princípio da igualdade, mas também
busca garantir o direito a uma vida digna. Para a autora, o fundamento consti-
tucional ora comentado será minimamente atendido se, diante das situações
concretas, buscarem-se efetivar tais direitos fundamentais.

293
O Código Civil de 2002, que teve importante influência do jusfilóso-
fo Miguel Reale, estabeleceu suas bases nos princípios acima destacados; ou
seja, foi uma tentativa de consolidar a visão da dignidade da pessoa humana
nos ditames do direito civil-constitucional. Francisco Amaral ensina o seguinte
(2005, p. 11):
A influência de Miguel Reale, culturalista e anti-positivista crítico, foi deci-
siva no processo de elaboração do novo Código Civil brasileiro. Nesta obra
está a marca da concepção axiológico-experiencial desse jurista-filósofo,
com a sua idéia de modelo jurídico, in casu, modelos hermenêuticos que
se ligam, direta ou indiretamente, à existência de determinados valores,
como o da pessoa humana, o da liberdade, o da igualdade, o da solidarie-
dade, valores esses considerados “invariantes axiológicas” (REALE, 1994,
p. 115), que fundamentam as diretrizes básicas do Código Civil (a socialida-
de, a eticidade e a operabilidade) e influenciam o processo metodológico
de sua interpretação.

É na perspectiva acima que se pauta o presente estudo, ou seja, na


visão do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana efetiva-
do através dos princípios da igualdade, da liberdade, da integridade psicofísica
e da solidariedade. Dessa forma, em qualquer estudo que se faça no sentido
Francisco Narcélio Ribeiro

de interpretar e aplicar as normas jurídicas, é necessário observar a efetiva-


ção do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, sob pena
de inconstitucionalidade de tais normas. Neste diapasão, a interpretação e
aplicação do inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil devem atentar para tal
mister, sob pena de se tornar inconstitucional.

3. Família instrumento
Na perspectiva do direito civil-constitucional, a família deve ser ins-
trumento de realização e construção da dignidade humana de cada um dos
seus membros. Isso ocorrerá, conforme visualizado nas lições de Maria Celina
Bodin de Morais, na medida em que forem preservados e defendidos, dentro
do núcleo familiar, os princípios da igualdade, da liberdade, da integridade psi-
cofísica e da solidariedade.
Na visão da família instrumento, ensina Pietro Perlingieri (2007, p. 179):
Este interesse não exclusivo ora resta individual, ora assume o papel de
interesse coletivo, no sentido de realizar diretamente a tutela de todos os
componentes da família. Em uma e em outra hipótese, a titularidade do di-
reito compete aos membros da família e não à família como tal. Esta não é
uma pessoa jurídica, nem pode ser concebida como um sujeito com direi-
tos autônomos: ela é formação social, lugar-comunidade tendente à for-
mação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de
maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização
dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes. (Grifo nosso.)
294
propriedade intelectual
Dentro das relações familiares está a conjugal. Esta, hodiernamente,
pauta-se no princípio da igualdade. O texto constitucional de 1988 abraça tal
princípio nos artigos 5º, I e 226, § 5º, e o Código Civil de 2002 o estabelece no
artigo 1.511. Exige-se, portanto, a igualdade material entre os cônjuges.
Os demais princípios também devem ser objeto de observação entre
o casal, haja vista a preservação dos sentimentos, do afeto e da harmonia
do núcleo familiar. Assim, a relação desenvolvida e construída deve ser tal
que preserve a liberdade de cada um, inclusive o respeito à individualidade,
tendo por pressuposto que a liberdade está sempre associada à responsabi-
lidade; bem como o respeito à integridade psicofísica, ou seja, um relaciona-
mento que desenvolva o ser humano em seus aspectos psicológico e físico e,
finalmente, a plenitude da solidariedade familiar, tanto no aspecto existencial
quanto no patrimonial, haja vista que, nesse contexto, a solidariedade econô-
mica é consequência da familiar.
Essa nova concepção de família supera completamente aquela exis-
tente no Código Civil de 1916, que tinha como características: superioridade
masculina (mulher submissa e incapaz), pautada na família tradicional, prote-
ção do patrimônio (valores patrimoniais acima dos valores existenciais), desi-
gualdade entre os filhos (filhos legítimos e ilegítimos), dentre outras. Tal visão
defendia a família como instituto jurídico. Entretanto, hodiernamente, confor-
me já relatado, a família é instrumento de efetivação da dignidade da pessoa
humana de cada um de seus membros, e, nessa medida, deve atentar para os
princípios atrás consignados.

4. Unidade da Família
O parágrafo segundo do artigo 29 do Código Civil italiano expressa
que “o casamento é ordenado sobre a igualdade moral e jurídica dos cônju-
ges, com os limites da lei como garantia da unidade familiar”. Constata-se a
garantia do princípio da igualdade e a preservação da unidade familiar. Entre-
tanto, alerta Pietro Perlingieri (2007, p. 250-252), que “é necessário colocar
em evidência que ‘unidade da família’ não deve ser confundida nem com ‘in-
dissolubilidade do casamento’ nem com ‘unidade do casamento’”.
Na verdade, a unidade da família é uma concepção consciencial de
preservação do princípio da dignidade da pessoa humana dos membros do
núcleo familiar, aplicando-se mesmo no caso de dissolução do casamento. É
algo que estabelece o enfrentamento de problemas vividos na realidade da
família, em nome da união que deve pautar os seres humanos entre si, mes-
mo quando discordam, posto que esta discordância resulta da própria família
democrática, em que todos os membros são individualmente considerados.
295
Cotejando o que se afirmou acima com as normas do Código Civil
brasileiro, principalmente os artigos 1.511, 1.565, 1.567 e 1.568, percebe-se
que a unidade da família está caracterizada de forma implícita no ordenamen-
to pátrio, abrangendo situações que devem pautar a relação conjugal, ainda
que no processo de sua dissolução, notadamente na preocupação com o bem
estar psicofísico e econômico-financeiro dos dois membros de sobredita re-
lação. Destaca-se, também, da referida análise, a obrigação dos cônjuges de
concorrerem, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para
o sustento da família, qualquer que seja o regime patrimonial.

5. O princípio da solidariedade e a questão patrimonial na


relação conjugal
O princípio da solidariedade é um dos subprincípios efetivadores do
fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, e dele resulta
o princípio da solidariedade familiar. No presente estudo, tal solidariedade
familiar perfaz-se na materialização do patrimônio do casal em benefício da
família, tanto no aspecto da relação conjugal, quanto nas relações de paren-
Francisco Narcélio Ribeiro

tesco. Tem-se, com isso, a solidariedade econômica como consequência da


solidariedade familiar. Corrobora tal entendimento Pietro Perlingieri (2007, p.
266), que afirma:
A solidariedade familiar, longe de apresentar-se como expressão de uma
concepção publicista ou como fundamento da família como célula pro-
dutora, traduz-se em uma nova solidariedade econômica fundada não
somente na propriedade mas, sobretudo, no trabalho dos componentes,
que legitima uma mais justa proporcionalidade no cumprimento do de-
ver de contribuição. Os cônjuges devem contribuir também em relação à
própria capacidade de trabalho, levando em consideração que para eles o
trabalho é um dever.

Perlingieri destaca o instituto da propriedade como fundamento da


solidariedade econômica, juntamente com o trabalho dos componentes da
família. Trabalho esse que se torna uma obrigação, haja vista a qualidade de
vida dos membros do grupo familiar, bem como a possibilidade de aquisição
de bens móveis e imóveis, títulos e valores, entre outros, razão pela qual se
constata a existência de um patrimônio comum do casal, nos regimes de co-
munhão parcial e universal de bens.
Esse patrimônio comum, resultado da solidariedade econômica, de-
verá ser partilhado igualmente, caso haja dissolução da sociedade conjugal.
Entretanto, conforme reza o artigo 1.659 do Código Civil, existem bens que

296
propriedade intelectual
são incomunicáveis, dentre eles destaca-se os proventos do trabalho pessoal
de cada cônjuge. Tal dispositivo foi inovação da norma civilista de 2002 e está
expresso no inciso VI do artigo citado.

6. A questionada incomunicabilidade


Tendo-se por base a efetivação do fundamento da dignidade da pes-
soa humana através dos subprincípios já mencionados e a unidade da família,
insere-se a questão da (in)constitucionalidade do dispositivo legal constante
no inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil pátrio. Ora, tornar incomunicável
os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, além de poder configurar
enriquecimento indevido de um dos consortes em detrimento do outro, pode
ensejar um completo desrespeito aos princípios da igualdade e da solidarie-
dade familiar, ou, em última análise, do próprio fundamento constitucional da
dignidade da pessoa humana.
Merece o devido cuidado a incomunicabilidade questionada, posto
que se um dos cônjuges utilizar seus proventos em benefício da família, a lei
determina a comunicabilidade; ao passo que se o outro consorte utilizar os
frutos do seu trabalho para seus investimentos pessoais, a mencionada nor-
ma veda a comunicabilidade. Acerca do assunto, leciona ainda Maria Berenice
Dias (s/d, p. 3):
Flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação
pecuniária, mas não converte suas economias em patrimônio, seja privi-
legiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal
lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. Des-
cabido premiar o cônjuge que se esquiva de amealhar patrimônio, prefe-
rindo conservar em espécie os proventos do seu trabalho pessoal.

Dessa forma, resta equivocada a aplicação da interpretação literal do


inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil, posto que absolutamente irrazoável.
Por conseguinte, é necessária a realização de uma interpretação que possa
preservar a constitucionalidade de tal dispositivo legal ou, de forma mais con-
tundente, considerá-lo inconstitucional, por ofensa ao fundamento da digni-
dade da pessoa humana, em especial no que pertine aos princípios da igual-
dade e da solidariedade econômica no seio familiar.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente decisão datada de 17
de abril de 2013, enfrentou a questão. A ementa do recurso especial núme-
ro 1.295.991-MG, tendo como relator o ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
será destacada e analisada adiante.

297
7. Decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ): proventos
dos trabalhos pessoais
Ressalte-se aqui o acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça,
em foco:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.295.991 - MG (2011/0287583-5)
RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
RECORRENTE : A C F
ADVOGADOS : ALEXANDRE MIRANDA OLIVEIRA
ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA E OUTRO(S)
RECORRIDO : E G M
ADVOGADOS : MARCELO SOARES E OUTRO(S)
MATHEUS DANTAS DE CARVALHO E OUTRO(S)
MOZART VICTOR RUSSOMANO NETO E OUTRO(S)
THIAGO DOS SANTOS BARRAL
Francisco Narcélio Ribeiro

EMENTA
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535
DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMU-
NHÃO PARCIAL. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA
UNIÃO. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE CONTRIBUIÇÃO DE AMBOS OS CONVI-
VENTES. PATRIMÔNIO COMUM. SUB-ROGAÇÃO DE BENS QUE JÁ PERTEN-
CIAM A CADA UM ANTES DA UNIÃO. PATRIMÔNIO PARTICULAR. FRUTOS
CIVIS DO TRABALHO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INCOMUNICABILIDA-
DE APENAS DO DIREITO E NÃO DOS PROVENTOS.
1. Ausência de violação do art. 535 do Código de Processo Civil, quando o
acórdão recorrido aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamen-
to da lide, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível.
2. Na união estável, vigente o regime da comunhão parcial, há presunção
absoluta de que os bens adquiridos onerosamente na constância da união
são resultado do esforço comum dos conviventes.
3. Desnecessidade de comprovação da participação financeira de ambos
os conviventes na aquisição de bens, considerando que o suporte emocio-
nal e o apoio afetivo também configuram elemento imprescindível para a
construção do patrimônio comum.
4. Os bens adquiridos onerosamente apenas não se comunicam quando
configuram bens de uso pessoal ou instrumentos da profissão ou ainda
quando há sub-rogação de bens particulares, o que deve ser provado em
cada caso.

298
propriedade intelectual
5. A interpretação restritiva preserva o conteúdo da norma, não a desna-
tura, simplesmente restringindo sua aplicação.
6. Interpretação restritiva do art. 1.659, VI, do Código Civil, sob pena de se
malferir a própria natureza do regime da comunhão parcial.
7. Caso concreto em que o automóvel deve integrar a partilha, por ser pre-
sumido o esforço do recorrente na construção da vida conjugal, a despeito
de qualquer participação financeira.
8. Sub-rogação de bem particular da recorrida que deve ser preservada,
devendo integrar a partilha apenas a parte do bem imóvel integrante do
patrimônio comum.
9.RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (Grifo nosso)

Propedeuticamente, observa-se que o recurso especial trata de al-


guns assuntos importantes, tais como: a presunção absoluta na união estável
de que os bens adquiridos onerosamente na constância de sobredita união
são resultado do esforço comum dos conviventes; desnecessidade de com-
provação da participação financeira de ambos os conviventes na aquisição de
bens, considerando que o suporte emocional e o apoio afetivo também con-
figuram elemento imprescindível para a construção do patrimônio comum.
Entretanto, o presente trabalho tem como objetivo analisar a incomunicabili-
dade dos proventos do trabalho pessoas de cada cônjuge.
Dessa forma, atendendo ao objetivo estabelecido, importa conside-
rar na ementa acima a questão da comunicabilidade ou não dos proventos do
trabalho pessoal de cada consorte. E, nesse sentido, verifica-se, de imediato,
que o tribunal buscou fugir da literalidade do inciso VI, do artigo 1.659 do Có-
digo Civil. Ora, isso ocorre porque, conforme já atrás consignado, a interpre-
tação literal de tal norma é absolutamente inaceitável, por não atentar para o
princípio da igualdade e da solidariedade familiar.
Conforme aduz o item seis daquela ementa, foi realizada uma interpre-
tação restritiva da norma, sob pena de se malferir a própria natureza do regime
da comunhão parcial. No entanto, tal atitude do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) merece crítica, haja vista que não se trata de uma interpretação restritiva,
mas sim de uma interpretação contra legem. Consigne-se que a interpretação
restritiva preserva o conteúdo da norma, não a desnatura, ela simplesmente
restringe sua aplicação. O entendimento do STJ, contudo, é completamente
contrário ao conteúdo do inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil.
Quanto ao assunto, o ministro relator em seu voto registra o seguinte:
Ressalto, ademais, que, embora o Código Civil preveja, em seu art. 1.659,
inciso, VI, excluírem-se da comunhão os proventos do trabalho pessoal de
299
cada cônjuge, a interpretação desse dispositivo deve sofrer temperamen-
tos. Com efeito, tanto a doutrina como a jurisprudência tem interpretado
esse enunciado normativo de forma restritiva, entendendo que a incomu-
nicabilidade se restringe ao direito ao recebimento dos frutos civis do tra-
balho, mas não aos valores em si, de modo que, uma vez percebidos, eles
passam a integrar o patrimônio comum.
(…)
A interpretação literal do dispositivo em questão não se coaduna com
o regime da comunhão, conduzindo inevitavelmente a uma situação de
injustiça, ainda mais evidente na hipótese em que um dos cônjuges não
exerce atividade laboral.

Veja-se claramente a questão: o inciso citado dispõe que se excluem


da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, ao passo que
o Superior Tribunal de Justiça, afirmando utilizar interpretação restritiva sobre
tal inciso, sustenta que a incomunicabilidade é do direito e não dos proventos.
Ora, no caso, não é possível separar as duas coisas. O disposto na ementa re-
dunda no abandono da lei.
Francisco Narcélio Ribeiro

Na verdade, o tribunal tenta criar uma situação jurídica que permita


a continuidade da norma civilista com a comunicabilidade dos proventos, sem
tecer considerações sobre sua constitucionalidade ou não. Porém, tal situa-
ção, como se viu, é contraditória. Dessa forma, entende-se que não há como
fugir do debate da constitucionalidade do mencionado inciso.
A interpretação adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) não foi
capaz de resolver o problema. Por sua vez, a interpretação literal é inconstitu-
cional, pelos motivos já comentados. Assim, pelas razões até aqui expendidas,
imperioso que se declare a inconstitucionalidade do inciso VI, do artigo 1.659
da norma civilista, por manifesta ofensa aos princípios da igualdade e da soli-
dariedade econômica nas relações familiares.

8. Um caminho possível: a incomunicabilidade na lei


autoral brasileira
Retornando ao problema da constitucionalidade ou não da norma ci-
vilista, merece destaque o caminho adotado pela lei autoral brasileira acerca
da incomunicabilidade do direito de autor. O artigo 39, da lei 9.610 de 1998,
afirma que “os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos re-
sultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em
contrário”. Conforme se percebe, o direito patrimonial de autor é também
incomunicável, mas os seus rendimentos não o são. Nessa linha, a norma au-
toral é mais clara e não suscita dúvidas ou questionamentos de uma possível

300
propriedade intelectual
ofensa ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, posto
que preserva a importância da família no atual panorama constitucional.
Ora, a lei autoral, ao contrário do artigo 1.659 do Código Civil, expli-
cita claramente o que é comunicável. Assim, embora o direito patrimonial
de autor não o seja, por suas peculiares características, os seus rendimentos
se comunicam. Tal visão preserva os cônjuges numa possível dissolução da
união, em virtude de impedir que haja distorções e injustiças decorrentes de
ofensas aos princípios da igualdade, da solidariedade familiar e da unidade
da família.
Discorrendo sobre as peculiaridades do direito patrimonial de autor e
de seus proventos, Fernanda Ferrarini Cecconello (2001, p. 5) ensina:
Os rendimentos resultantes da exploração da criação, ou seja, a fruição
patrimonial que a obra lhe traz, sim, é comunicável. É devido aos rendi-
mentos, ao proveito econômico, resultado do comércio, visto ser profis-
são lucrativa, não se relacionando com o ato criativo em si, que o cônjuge
não-autor pode defender a obra de engenho, cuja aquisição dos direitos é
pessoal. Mas utilizar patrimonialmente a obra intelectual não compreen-
de o poder de decidir a oportunidade, o modo, a forma e qualquer outra
modalidade da primeira publicação.
Caso ocorra uma ruptura do matrimônio, estes rendimentos devem ser
arrolados na partilha dos bens. Embora com repercussões patrimoniais,
este poder de autoria intelectual constitui um direito moral do autor, que
segundo a Lei nº 9.610-98, é inalienável e irrenunciável.

Corroborando com os argumentos acima exarados, José de Oliveira


Ascensão (1980, p. 86) afirma que “diverso é o regime dos proventos obtidos
pelos cônjuges na exploração do direito. Como frutos separados, entram sem
ressalva na comunhão”. Por sua vez, Plínio Cabral (2003, p. 63), discorre:
Mas, além disso, o patrimônio autoral é um bem cuja aquisição originária
se dá, basicamente, pela ação pessoal do autor. Sem esta ação criadora o
bem inexiste. Ele não pode, pois, ser adquirido na constância do casamen-
to pela ação comum dos cônjuges, mas sim da atividade criadora de dois
autores que, eventualmente, são casados. O ato criador é uma particulari-
dade pessoal e um atributo individual.
(…)
Já os rendimentos que resultam da exploração das obras de criação
e engenho fogem ao caráter pessoal desse tipo de propriedade. Re-
sultam do comércio e nada tem a ver com o ato criador em si.
Fazendo-se um cotejo entre a norma civilista e a norma autoral,
constata-se que a segunda pode ser utilizada, por analogia, em benefício da

301
primeira. Ora, o direito patrimonial de autor pode se configurar como um
provento pessoal de um dos cônjuges da relação; e, nesse contexto, não ser
comunicável, conforme determinam as duas normas. Entretanto, isso, por si
só, não basta! É necessário especificar que os rendimentos de tais proventos
pessoais entram na comunhão. Tal especificação é realizada pela norma auto-
ral e negligenciada pela norma cível.
Por outro lado, comparando-se os argumentos do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), no recurso especial acima colacionado, com a lei autoral, che-
ga-se à conclusão que o Superior Tribunal utilizou-se de interpretação restriti-
va que resultou numa decisão contra legem. Enquanto que na norma autoral é
a própria lei quem determina a comunicabilidade dos rendimentos. Na primei-
ra, a interpretação restritiva foi utilizada indevidamente; na segunda, a mera
interpretação literal é suficiente. Com isso, confirma-se que a lógica autoral
é a que melhor realiza o fundamento constitucional da dignidade da pessoa
humana nas relações familiares e, em particular, na relação conjugal.

9. Conclusão
Francisco Narcélio Ribeiro

O inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil brasileiro estabelece inco-


municabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regi-
mes de comunhão parcial e total de bens. No entanto, tal dispositivo legal gera
questionamento, haja vista a possibilidade de enriquecimento indevido de um
dos consortes em detrimento do outro.
Dessa forma, imperioso analisá-lo estabelecendo uma interpretação
que permita a preservação da integridade existencial e patrimonial dos inte-
grantes da relação conjugal. Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça
(STJ), ao julgar recurso especial em abril de 2013, utilizou intepretação restriti-
va para afirmar que a incomunicabilidade reside no direito, e não nos proven-
tos do trabalho em si mesmos. Entretanto, tal forma de interpretar resta equi-
vocada, posto que se trata de uma solução contra legem. Ou seja, o tribunal,
buscando solucionar o problema, acabou por agravá-lo.
Por sua vez, o artigo 39 da lei autoral (9.610/1988) estabelece que o
direito patrimonial de autor é incomunicável, mas os seus rendimentos não.
Dessa forma, a lei autoral possibilita um caminho para a constitucionalidade
do inciso VI, do artigo 1.659, do Código Civil. Para tanto, necessário utilizar
a analogia legal. O direito patrimonial de autor pode se configurar como um
provento pessoal de um dos cônjuges da relação, e, nesse contexto, não ser
comunicável; entretanto, isso, por si só, não é suficiente, haja vista ser neces-
sário especificar a comunicabilidade dos rendimentos de tais proventos pes-
302
propriedade intelectual
soais. Assim, preservam-se a igualdade e a solidariedade dos cônjuges numa
possível dissolução da relação.
Sabendo-se da inconstitucionalidade da interpretação literal do inciso
VI, do artigo 1.659 da norma civilista, por ofensa aos princípios da igualdade
e da solidariedade familiar, impõe-se ou a busca de caminhos que preservem
as normas constitucionais ou a declaração de inconstitucionalidade de tal
dispositivo. Dois caminhos se apresentam, quais sejam, o posicionamento do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o artigo 39 da lei autoral brasileira, ambos
devidamente apresentados anteriormente.

303
Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR O livro propicia uma reflexão sobre os temas relacionados à propriedade inte-
O GEDAI/UFPR busca a formação de uma rede nacional e in- lectual, realizada por pesquisadores e especialistas em Direito reconhecidos pela co-
ternacional de cooperação acadêmica na área de propriedade inte- munidade científica nacional e internacional.

MARCOS
lectual, contando em suas publicações com um Conselho Editorial Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial
composto por especialistas nacionais e estrangeiros. A obra é fruto de um intercâmbio acadêmico sólido realizado por pesquisa- – GEDAI/UFPR –

Organizador
Estudos de Direito
O GEDAI/UFPR possui como linhas de pesquisa as seguintes dores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI da Universidade

WACHOWICZ
O GEDAI/UFPR vinculado ao Programa de Pós-graduação
temáticas: Federal do Paraná – UFPR em parceria com grupos de pesquisa no Brasil, a saber: o
em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR tem
Propriedade Intelectual – Inovação e Conhecimento: anali- Instituto de Propriedade Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Socie- como seu principal objetivo estudar o desenvolvimento dos
dade - ITS do Rio de Janeiro e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da
sar a tutela jurídica dos novos bens intelectuais advindos da nova
Tecnologia da Informação com vistas ao desenvolvimento socioe- Universidade de Fortaleza – UNIFOR. da Direitos de Propriedade Intelectual na Sociedade da Informa-
ção, através da comparação do sistema internacional de direi-
conômico que promova inovação, inclusão tecnológica e difusão
do conhecimento.
Direito Autoral: Direitos Fundamentais e Diversidade Cultu-
A parceria internacional está capitaneada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual
e Industrial da Universidade de Valência – Espanha.
PROPRIEDADE INTELECTUAL tos autorais e industriais, da análise dos processos de concreti-
zação dos direitos e diversidades culturais e da reflexão sobre
a regulamentação dos direitos intelectuais frente aos desafios
ral: compreender os efeitos do direito fundamental à cultura sobre da Sociedade da Informação.
os limites do direitos autorais; a proteção e circulação da produção Além disso, a obra reúne o esforço de doutrinadores de renomadas universi-
cultural desenvolvida nas instituições públicas; os papéis da cidada- dade europeias: Universidade Clássica de Lisboa (Portugal), Universidade Complutense Para atingir essa finalidade por observa-se três objetivos
nia cultural no processo de inclusão social; a função do Estado em
matéria cultural, as políticas públicas de cultura e a regulamentação
de Madri (Espanha) e Universidade de Valência (Espanha).
MARCOS WACHOWICZ específicos:
(i) compreensão dos efeitos do direito fundamental à cul-

PROPRIEDADE INTELECTUAL
jurídica dos direitos culturais. Ressalte-se o apoio fundamental das agências de fomento à pesquisa, CAPES e ORGANIZADOR tura e diversidade cultural na sociedade contemporânea,

ESTUDOS DE DIREITO DA
Economia Criativa: Propriedade Intelectual e Desenvolvi- CNPq, imprescindível para a realização dos projetos de pesquisas que culminaram com analisando os limites dos direitos autorais na tutela dos
mento: estudar o Direito Autoral enquanto instrumento jurídico o lançamento da presente obra. bens imateriais;
capaz de servir como marco regulatório para a formulação de po- (ii) avaliação das consequências da revolução tecnológica
líticas públicas a fim de fortalecer as indústrias criativas e dinâmi- em andamento e do advento da cultura digital sobre a re-
cas, com vista a uma Economia Criativa sustentável para o país.
gulamentação dos direitos intelectuais; e
Regime Internacional de Propriedade Intelectual: Estudo dos (iii) identificação do conteúdo da proteção jurídica e o al-
Tratados e Organizações Internacionais (OMC, OMPI e UNESCO) com cance da circulação da produção intelectual/cultural de-
o escopo de avaliar o Sistema Internacional de Tutela da Propriedade Apoio e financiamento de: senvolvida nas instituições públicas.
Intelectual face a revolução tecnológica da informação, bem como,
das novas formas de comunicação, de expressão, de produção de Visando intensificar o intercambio da pesquisa no Brasil, o
bens intelectuais que com as novas redes sociais na Internet possibi- GEDAI/UFPR envolve-se em projetos com outras equipes aca-
litam a socialização do conhecimento. dêmicas de diversas instituições de ensino superior e de pes-
Sociedade da Informação: Democracia e Inclusão Tecnoló- quisas brasileiras. Desta forma com a finalidade de ampliar os
gica – analisar as novas formas de criação de bens intelectuais estudos sobre temas relacionados a Propriedade Intelectual e
(obras colaborativas), de transformação criativa (samplers), de seus desafios na Sociedade da Informação o GEDAI/UFPR faz
distribuição/compartilhamento advindas das redes sociais (P2P), um convite para que os pesquisadores venham integrar esta
e a socialização do conhecimento enquanto paradigma da cultura grande rede de presquisa e publicação acadêmica.
digital sobre a regulamentação dos diretos autorais.
As publicações do Grupo de Estudos em Direito Autoral e
Direitos das Novas Tecnologias da Informação e Comu- Industrial – GEDAI/UFPR – são espaços de criação e comparti-
nicação (TIC’s): identificar o conteúdo da proteção jurídica e o
lhamento coletivo, visando facilitar o acesso às pesquisas pela
alcance da circulação da produção cultural desenvolvida nas ins-
tituições públicas e do regime de concorrência aplicado às novas INTERNET, disponibiliza-as gratuitamente para download. É mais
mídias na Internet. uma alternativa para a publicação de pesquisas acadêmicas, for-
mando uma rede de compartilhamento aberta para toda a comu-
Propriedade Intelectual e Direito Concorrencial – com- nidade científica.
preender a interface do direito concorrencial e da propriedade
intelectual nos novos modelos de negócios na Sociedade da In- As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão dis-
formação com foco no desenvolvimento dos setores produtivos poníveis no site: www.gedai.com.br
da Economia Criativa.
As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponí-
veis no site: www.gedai.com.br

Вам также может понравиться