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Link: https://www.deviante.com.br/noticias/antropologia-viagens-para-fronteiras-e-
bacurau/#disqus_thread
Renata Lacerda
27/09/2019
A brevíssima descrição acima das minhas viagens para Novo Progresso foi
inspirada na introdução do livro “Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922), do
antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942). Por um lado, sua proposta
teórico-metodológica de conhecer o “ponto de vista nativo” e sua habilidade literária de
fazer leitoras(es) dos grandes centros se imaginarem em sua pesquisa nas ilhas entre a
Austrália e Nova Zelândia, tornou mais compreensível a vida dos “selvagens” para os
“civilizados”. Por outro lado, a sua descrição da extenuante viagem até lugares
radicalmente diferentes da civilização europeia, onde se formou, dava continuidade à
visão vigente de que o objeto de estudo dos antropólogos se limitaria à análise de
sociedades “outras”.
Apesar de toda a reformulação da Antropologia contra a visão colonialista que a
fundou – graças em grande parte à publicação póstuma do diário pessoal do próprio
Malinowski (ver figura abaixo) – as cicatrizes desse olhar para os “outros não civilizados”
se reproduzem na prática de muitos antropólogos. Esse é o argumento da antropóloga,
nascida e criada em Santarém, Telma Bemerguy no artigo Antropologia em qual cidade?
Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”: mesmo depois de
reformulações teóricas a partir da crítica pós-colonial, antropólogos dos grandes centros
continuaram fazendo pesquisas como se o “urbano” (que anda ao lado da ideia de
civilização) não pertencesse à paisagem amazônica. Ou como se fosse restrito a Belém
ou Manaus. Como mostra, isso só começou a mudar na prática com as políticas (hoje
ameaçadas) de expansão de vagas e de interiorização das universidades em direção às
periferias, sertões e fronteiras.
Diário pessoal de Malinowski publicado em 1967. Com isso, foram revelados não só
seus afetos, preconceitos e desejos sexuais na solitária convivência com os “nativos”, mas sua
dificuldade de realizar na prática o método da observação participante, que o consagrou na
disciplina. O diário impulsionou um debate nos anos 1970 e 1980 sobre a importância da
explicitação das condições de produção da etnografia e da teoria antropológica.
Tentando não dar spoilers, uma possível sinopse de Bacurau diz muito: faroeste
sobre um povoado fictício retratado como abandonado em termos de políticas públicas,
cuja população é tratada como matável, à margem da cidadania, mas contabilizada como
voto. Fazendo jus ao seu nome (um pássaro "brabo") e provando ser gente, os
desconfiados bacurauenses se unem contra forasteiros – uma carioca e um paulista vistos
eles mesmos como “outros” pelos gringos americanos liderados por um alemão – que
querem exterminá-los e o prefeito que incentivou sua chegada. Na rebelião, contam com
os jagunços locais ao fazerem uso da memória de lutas passadas, materializada nas armas
guardadas no museu do povoado – aquele que os estrangeiros não se prestam a visitar.
Muito distante, mas nem tanto, em Progresso – nome que revela o sonho
colonizador de seus “fundadores”, para quem o projeto de futuro é o agronegócio mato-
grossense – ouvi muitas vezes que são pacíficos até se revoltarem por causa do “abandono
do governo”. Muitos repetiam que violento é o Rio de Janeiro, onde tiroteios matam
qualquer um, enquanto na BR-163 a bala tem alvo certo – porém, para os ameaçados de
morte de lá, isso é muita covardia, como dizem3. Nas mobilizações por políticas públicas
e variadas formas de acesso à terra e recursos naturais (que reúnem agentes bastante
desiguais socialmente, diferentemente de Bacurau), ou nas resistências dos pequenos à
pistolagem, recorrem a memórias de lutas transmitidas na reconstrução contínua de suas
histórias em conversas, livros biográficos, fotos, entrevistas etc.
Com suas insistentes perguntas sobre o que diabos eu fazia lá reafirmavam que,
pequenos ou grandes, grileiros, pistoleiros ou ameaçados de morte, todos já vivenciaram
a tensão entre “eles” e pessoas como eu, que para lá viajariam apenas para retornar aos
grandes centros. Ao passo em que desconfiavam de mim por vir de um dos lugares onde
é produzida sua representação enquanto “outros”, confiavam que eu poderia, quem sabe,
levar o “conhecimento da realidade” deles para o centro. Quem sabe assim deixariam
enfim de estar à margem da cidadania ou do progresso?
***
Disclaimer básico: esse é um primeiro texto sobre minha pesquisa para o Deviante
e está longe de dar conta do que é a situação dos progressenses, de Bacurau ou do que é
antropologia. Espero continuar escrevendo mais – mesmo em meio a incêndios de
museus, florestas, direitos, políticas públicas e financiamento de pesquisas. Me ajudem
mandando perguntas e comentários
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