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Brasil
2019
2
PREFÁCIO
A estar correto Hegel quando diz que “a coruja de Minerva só alça voo ao anoitecer”, ou
seja, que “nenhuma sociedade é capaz de se identificar conceitualmente”1, essas páginas nem
deveriam existir. Como o próprio significado etimológico da palavra indica, qualquer reflexão
só é possível depois de uma completa flexão, de sorte que refletir sobre um tempo que ainda
não acabou (e para ser exato, mal começou) é incorrer em algum tipo de futurologia ou
impostura intelectual. Contudo, não seja esse o nosso caso. O objetivo dessa investigação não
é explicar o tempo atual nem aquilo que se convencionou chamar Pós-modernidade, assunto
por demais sujeito a controvérsia e à indeterminação; por ela perspectiva-se apenas entender o
fenômeno religioso desse tempo de transição, que foi chamado por Kolakowski de “a revanche
do sagrado”2, em artigo que antecipou todo o interesse acadêmico no retorno da religião.
O ‘apenas’ aqui funciona como conectivo e não deve ser tirado desse contexto. Entender
a religião de nosso tempo nunca será ‘apenas’, como não seria em quaisquer outro contexto.
Mas a dificuldade singular que nos desafia é o fato de se tratar de uma religião que nasce de
uma esfinge de diversas cabeças, como é o caso da Pós-modernidade, cujas características
múltiplas são evidentes pela maneira variegada como é denominada: além de Pós-modernidade
ou Pós-modernismo, Sociedade de risco, Sociedade do Conhecimento, Sociedade Pós-
industrial, Capitalismo Tardio, Modernismo reflexivo, etc. A religião dessa raiz será de igual
modo um fenômeno multidimensionado, que pode ser abordado por diversas perspectivas:
econômica, social, cultural, ideológica, etc.
1
Leszek Kolakowski. Modernity on endless trial (Chicago: Chicago University Press, 1997), p. 3.
2
Idem. “The revenge of the sacred in secular culture. In Modernity on endless trial, p. 63.
3
desistir, mas duas coisas me convenceram a continuar: minha teimosia e a relevância do tema.
Não é possível permanecer indiferente à uma ambiência cultural e religiosa plural que atinge o
âmago do Cristianismo fingindo-lhe simpatia e receptividade.
O que lhes apresento aqui é um estudo amplo da matéria que por sua natureza complexa
obriga a um diálogo com outras áreas do conhecimento, cujo interesse vai muito além do que
geralmente se rotula como religião. A própria configuração holística da sociedade
contemporânea e a condição difusa e dispersa da religião nesses tempos, que a faz mais
encontrável em outros espaços e não nas próprias instituições presumidamente consideradas
seu lugar de abrigo e salvaguarda, ou seja, igrejas. Nesse contexto, a filosofia, a sociologia da
religião, a psicologia social, tornam-se disciplinas obrigatórias para quem está a caça de algo
que se apresenta com identidade tão amorfa a ponto de enganar por muito tempo os especialistas
que achavam que a religião estava em processo de recessão no Ocidente.
O projeto parece ambicioso demais? Contudo, não temos nem a sombra da intenção de
esgotar o assunto. Ao invés, o que intentamos é fornecer um guia teórico-prático para o
enfrentamento da ideologia pós-moderna, algo que fica a meio caminho entre um manual e um
tratado; não sendo nem uma coisa nem outra, mas agregando suas qualidades e seus vícios, as
qualidades sendo a manuseabilidade e a aplicabilidade de um manual; os vícios decorrem
exatamente do fato de o tema ter uma amplitude que vai além do adequado para este formato,
de sorte que em muitos trechos desdobram-se discussões muito específicas, que julguei
indispensáveis para entender o Tardo Capitalismo, a exemplo da discussão sobre a genealogia
filosófica da epistemologia fraca; não só pela importância da questão para a sustentação
ideológica da Pós-modernidade, mas também porque fundamenta a hermenêutica pós-moderna
que afeta diretamente o Cristianismo tradicional e sua própria hermenêutica. Ou seja, apesar da
abrangência da temática dessa obra, ela também não é a rigor um tratado, um trabalho
sistemático, o que significa várias coisas, a primeira e mais importante é que o leitor poderá aí
encontrar repetições (algumas até irritantes) que não pude evitar. Por exemplo, a segunda parte
do segundo capítulo e a segunda parte do terceiro. Parte da culpa não é minha. A epistemológica
da Pós-modernidade é mais práxis do que episteme e como a segunda parte do terceiro capítulo
trata de sua ética quase-religiosa não há como evitar que muitas vezes se fale as mesmas coisas.
Contudo, essa práxis e essa ética quase-religiosa, como a terminologia indica, relaciona coisas
diferentes: a filosofia e a religião, e, portanto, têm perceptivas e aplicações diversas.
4
Como já se pode de perceber, fiz questão de aqui fazer com que a Filosofia ou
Epistemologia e a Sociologia da Religião se pusessem à serviço da pregação, como não poderia
ser diferente em uma obra que se vê como prolegômenos de uma teologia. E a pregação sendo
a razão de ser de qualquer teologia, essa não pode se resumir a um empreendimento meramente
teórico, porque em o fazendo já terá deixado de ser teologia e se tornado outra coisa, quem sabe
se transformado em filosofia ou Sociologia como a ‘teologia’ de Troeltsch. Não gostaria de ver
meu trabalho interpretado dessa forma; não é esse seu objetivo e nem essa sua função.
Resumindo, todos os caminhos desse livro levam à busca de elementos para a constituição de
um guia para uma pregação apropriada e eficaz nesses dias, nos quais vivem aqueles que se
tornaram nosso principal campo missionário: os nossos vizinhos ‘sem religião’. Satisfazer a
exigência desse Ide àqueles que estão mais próximos e que, não obstante, estão muito distantes,
é a raison d’etre desse livro, por isso o resto merece apenas uma dedicação suficiente.
5
Sumário
1. Capítulo I
1. Introdução.............................................................................................................................5
1.a. Definição provisória de Pós-modernismo............................................................5
1.b. A Pós-modernidade e o Cristianismo....................................................................9
2. Capítulo II
2. As raízes ocultas da ideologia Pós-moderna.......................................................................16
2.a. Apresentando o problema..................................................................................16
2.b. Em busca da debilidade alheia............................................................................21
2.c. Buscando defender-se da própria debilidade.....................................................27
2.d. A epistemologia fraca e suas contradições.........................................................34
2.d.1. O anti-fundacionismo pós-moderno...................................................39
2.d.1.a. Crítica à verdade-doutrina...................................................43
a. Jacques Derrida................................................................44
b. Roland Barthes................................................................48
2.d.1.b. Crítica à verdade-arché.......................................................58
2.d.1.c. Crítica à verdade-objetividade.............................................66
2.d.1.d. Crítica à verdade-fato..........................................................74
2.d.2. O anti-fundacionismo ético-político....................................................84
2.e. Conclusão............................................................................................................89
3. Capítulo III
As religiões e a quase-religião da Pós-modernidade..............................................................91
3.a. A mudança de endereço da religião...................................................................91
3.a.1. Redesenhando os contornos da religião.............................................94
3.b. Massificação-individuação da sociedade..........................................................108
3.c. Religião de mercado e religião no mercado......................................................118
3.c.1. Religião de mercado..........................................................................119
3.c.2. Religião no mercado..........................................................................135
3.d. Dois casos paradigmáticos: a IURD e o Santo Daime........................................139
3.d.1. Sincretismo........................................................................................140
3.d.2. Ecletismo...........................................................................................147
3.e. Outras categorias religiosas pós-modernas......................................................156
3.e.1. Paródia..............................................................................................156
3.e.2. Ecletismo e inventividade religiosa...................................................163
3.e.3. Uma generalizada erosão de fronteiras............................................170
3.e.3.a. Erosão das fronteiras de classe.........................................173
3.a.3.b. Erosão de fronteiras institucionais....................................175
3.f. Quase-religiões pós-modernas..........................................................................177
3.f.1. Definições..........................................................................................180
3.f.2. Decifrando a quase-religião pós-moderna........................................183
3.f.2.a. A liberdade sempre é um valor?........................................188
3.f.2.b. As minorias sempre têm razão?.........................................195
4. Capítulo IV 199
Palavras Finais......................................................................................................................199
5. Referências Bibliográficas.....................................................................................................20
6
7
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
3
Tim Woods. Beginning Postmodernism (Manchester, U.K.: Manchester University Press, 1999), p. 9.
8
Em suma, sem querer simplificar aquilo que tem a complexidade como própria essência
e é por isso merecedora de muito mais espaço do que aqui é-lhe oferecido, deve-se a princípio
tentar entender como se agrupam as teorias interpretativas que se debruçam sobre a Pós-
modernidade, seus principais debatedores e onde essa investigação se insere nesse quadro de
discussões. De início diga-se que nossa perspectiva é tradicional, mas não é um tradicionalismo
cego e reducionista que clássica tudo sob o rótulo da inverdade pura e simples. As
reivindicações dos pós-modernos têm sua pertinência; algumas de suas críticas, também. É
preciso separar o trigo da pragana e delinear bem a linha fronteiriça entre repudiável e o
aceitável de uma ideologia que, ademais, já faz parte da cosmovisão da maioria das novas
gerações. Em suma, queremos considerar com seriedade o que dizem os pós-modernos.
A essas duas correntes principais é ainda possível agregar uma terceira que é formada
pelos críticos que negam a existência de um movimento pós-moderno específico e autônomo,
vendo-o apenas como extensão ou superlativação da Modernidade, como uma consequência
natural das contradições do Capitalismo; ou ainda como uma crítica, uma sombra da
Modernidade. Essa condição de crítica e sombra, no entanto, é seu maior trunfo. Como vive
4
Pauline M. Rosenau. Postmodernism and Social Science. Insights, inroads and intrusions (Princeton, NJ:
Princeton University Press, 1992), p. 15.
5
Ibidem, pp. 15-16.
9
uma ética lugar-comum, tão óbvia que as pessoas já pensam que sabem viver conforme a
vontade de Deus sem precisar consultar o que diz a Escritura que parece mesmo ter se tornado
supérflua. Muitos cristãos estão divididos quanto a como enfrentar o desafio pós-moderno. Há
cristãos que são propensos a adotar-lhe a linguagem e categorias ideológicas, articulando-as
mesmo com o Evangelho, p. ex. quando defendem o direito das minorias e a inclusão social dos
excluídos (LBGT, p. ex.) – sua ideologia lhes parece tão natural que é simplesmente espantoso
que alguém não a adote. Há aqueles que são contra qualquer aproximação, vendo em suas
propostas um perigo para a integridade da fé cristã6. Há ainda os que o ignoram, considerando-
o mais um modismo teológico passageiro.
Por sua própria natureza anti-dogmática promovem uma ambiência relativista que induz
as pessoas a uma adesão irrefletida ao seu programa ético-político, a princípios axiológicos que
por vezes contradizem a doutrina cristã. Não podemos, portanto, afastar a função apologética
desse empreendimento, tendo em vista o grande estrago que o ácido do ceticismo pós-moderno
e o mel de sua recepção à espiritualidade causam ao Evangelho. É preciso restaurar a confiança
do contemporâneo na razoabilidade da mensagem cristã e isso é uma operação delicada, já que
o Pós-modernismo em muitos aspectos é importante aliado contra um velho inimigo do
Cristianismo, o Iluminismo. Assim, é preciso rejeitar o niilismo pós-moderno sem, entretanto,
descartar seus argumentos contra as pretensões absolutistas da racionalidade moderna; afastar
suas mistificações teóricas relativas à ciência da incerteza e da indecidibilidade, sem deixar de
reconhecer sua crítica ao dogmatismo científico e à sua pretensão de ser a última palavra sobre
qualquer assunto.
Por tudo isso, não é difícil concluir que qualquer teologia ou missiologia necessita hoje
em dia de uma introdução, de um prolegômeno à Pós-modernidade, sob pena de perder sua
capacidade de se fazer entender aos contemporâneos. Já ficaram bem para trás os dias em que
Karl Barth erigia uma teologia embasada apenas na doutrina da Palavra de Deus, sem a
necessidade de um prolegômeno de qualquer natureza, dizendo, entre outras coisas que “não
existe uma propedêutica humana à fé, nenhum caminho à salvação, nenhuma escada para
ascender à fé. A fé é sempre o primeiro, o requisito prévio, a fundamentação.”7. Barth fala nessa
passagem a partir de Kierkegaard, pressupondo como ele a incompatibilidade entre a fé e a
razão. De fato, não é possível pela razão chegar a fé, mas, uma certa razão pode facilmente criar
6
Myron B. Penner. “Christianity and postmodern turn: some preliminaries considerations”. Myron B. Penner.
Christianity and Postmodern turn (Grand Rapids, MI: Brazos Press, 2005), p. 14.
7
Karl Barth. The Epistle to the Romans (New York, Oxford University Press, 1980), p. 148.
11
sérios obstáculos à fé, como se vê em nossos dias. Por esse motivo se uma propedêutica
meramente negativa com a demonstração da ilegitimidade dos excessos da razão moderna foi
suficiente para o projeto barthiano, não o será para nós. Além disso, uma propedêutica
sociológica também seria bem-vinda porque as mudanças sociais em curso tornaram as velhas
formas de missionamento antiquadas e contraproducentes quando aplicadas aos
contemporâneos. É preciso reaprender a dialogar, pois o diálogo de muitas denominações
cristãs atualmente é com as sombras do passado e não com os homens e mulheres que vivem
na sociedade das relações e das instituições instantâneas, aqueles para quem as igrejas se
tornaram entidades que funcionam em câmera lenta enquanto eles movem-se na velocidade dos
bytes.
Todas essas mudanças cobram uma urgente providência adaptativa. As contenções contra
o Cristianismo dos iluministas ficaram no passado, o formato da apologética cristã deve,
portanto, mudar. A nova ideologia pós-moderna permite o retorno da religião, mas em uma
condição enfraquecida, que não mais pode ser apresentada como Paulo sugere: “a fé vem pelo
ouvir e o ouvir da Palavra de Deus” (Rm 10: 17). Cabe pensar que a apresentação da Palavra
de Deus de que Paulo fala ocorre em um ambiente onde as pessoas sabem o que é essa Palavra
(haja vista que o programa missionário de Paulo foi realizado entre os Judeus da diáspora e seus
prosélitos), o mesmo ocorrendo ao tempo de Karl Barth, em contexto, pelo menos,
nominalmente cristão. O problema de Paulo e de Barth era ‘apenas’ a contenção de uma parte
de seus ouvintes quanto ao que dizem as Escrituras. No auditório de Paulo a hermenêutica cristã
dos textos que falavam do Messias e de seu cumprimento em Jesus Cristo estava errada para os
Judeus; na assistência de Barth, a hermenêutica reformada sobre os textos que tratavam da ação
sobrenatural de Deus em favor do ser humano estava equivocada, segundo os iluministas. No
ambiente pós-moderno nossa dificuldade é muito mais profunda. O que essa nova ideologia
promove é uma ressignificação completa da Palavra de Deus, em que o mesmo conceito
Escritura perde a referência porque os pós-modernos desconstroem a noção de livro e de
hermenêutica. O conceito de revelação está sob ataque tanto nos meios cristãos como nos não-
cristãos e seu rival já não é hoje o racionalismo iluminista, mas um outro inimigo que a ataca
por duas frentes: (a) uma ideologia cética e relativista que atinge a transmissão da revelação;
(b) uma espiritualidade que privilegia a iluminação como meio de comunicação com o sagrado,
ou então que defende a privilegiamento do carisma em detrimento da Palavra. De fato, no meio
cristão afetado pelas ideias pós-modernas, a Bíblia perde sua autonomia e sua capacidade de
definir a doutrina e a prática, tornando-se refém do carisma, como ocorre entre os
12
De fato, entre Barth e seus ouvintes não havia uma incompatibilidade tão grande como a
que existe hoje entre a teologia tradicional e os contemporâneos pós-modernos. A tendência
secularizante que Barth e outros teólogos enfrentaram no século passado era contrária ao
evangelho, enquanto a Pós-modernidade é-lhe contraditória. Era-o porque o processo de
secularização da cultura em meados do século XX era uma escatologia secular. Para o Nazismo
e o Comunismo, que eram messianismos seculares, não se tratava de destituir os valores
cristãos, mas transfigurá-los e levá-los a efeito por meio dos métodos brutais do coletivismo
compulsório (Comunismo) e da eugenia (Nazismo), tentando através da reordenação político-
econômica e de expurgos de elementos estranhos a harmonização do mundo humano e o
estabelecimento de um paraíso sobre o planeta. O Cristianismo, portanto, era rival, mas não era
estranho àquelas quase-religiões.
Hoje em dia o que existe é uma contradição entre essas partes. O ambiente pós-moderno
não preserva mais a mesma referência axiológica e epistêmica, portanto, não diz coisas
13
Muitos questionam a eficácia missiológica dessa tentativa de dialogar com essa nova
ambiência. Tendo em vista os parcos resultados evangelísticos obtidos na Europa e nos Estados
Unidos onde ela prevalece. Acham que é preferível destinar seus recursos às missões onde as
colheitas sejam mais fartas, ou seja, países mais pobres onde os conceitos de Palavra de Deus,
Cristianismo ainda não sofreram uma corrosão muito profunda. Mas, a ideologia pós-moderna
avança sobre o mundo subdesenvolvido, em suas grandes cidades (assim indicam os últimos
censos que atestam o crescimento dos sem religião). Tudo leva a crer que em breve não existirá
mais essa opção e o ambiente pós-moderno será, sem medo de errar, o maior desafio
missiológico do Cristianismo do século XXI, sempre criando sérios embaraços para a
evangelização e para a conservação de sua membresia, especialmente os jovens.
O erro daqueles que veem o problema restrito aos países secularizados setentrionais é
pensarem que a erosão da cultura religiosa tardo-moderna é um fenômeno exclusivamente
religioso, e, portanto, restrito àquela modalidade de Cristianismo europeu, afetado por
problemas que são particularidades de sua história. Por exemplo, as guerras religiosas que
devastaram a Europa no século XVII. Não é. O problema, como dizíamos, é multifatorial:
cultural, político, social e religioso. A origem de todos os grandes desafios à missiologia
contemporânea tem um fundamento comum: a ideologia pós-moderna. A expansão dos sem
8
M. Castellana. L’epistemologia debole. Bachelard, Desanti e Raymond (Verona: Bertani, 1985). Brian McHale.
Postmodern fiction (London: Routledge, 2004), p. 10.
14
religião, dos adeptos de religiões orientais, das religiões pós-modernas, do ecletismo religioso,
todos esses fenômenos estão em alguma medida correlacionados. Destrinchar essa
complexidade passa a ser para o Cristianismo uma luta de vida ou morte, cujo campo de batalha
são as grandes cidades do mundo. E ainda que isso fosse um fenômeno restrito às grandes
megalópoles, a elas, invadidas e inseminadas pelas ideias pós-modernas, também está dirigido
no Ide de Mateus 24.
Como Paulo no areópago, forcejando por tornar o evangelho um discurso com sentido
aos atenienses adeptos da Academia, do Jardim e do Liceu, obtendo como resultado apenas um
único converso, Dionísio, também estamos nós diante dessa nova sociedade e dessa cultura,
que muitos já chamam de pós-cristã, obrigados a confirmar na fé os que já conhecem a doutrina
cristã e discipular alguns a quem faltam mesmo os rudimentos do Evangelho. Não é fácil mudar
sem mudar, preservar os fundamentos quando são os próprios fundamentos que estão em
questão, quando a própria noção de doutrina sofre taxativo repúdio por parte dessa nova
epistemologia e dessa nova hermenêutica. Quando a liberdade e a diversidade apresentam-se
como os maiores valores desses tempos fica difícil defender uma coleção de artigos de fé
padronizados, custodiados por uma instituição religiosa constituída por religiosos profissionais
que, no exercício de suas funções, mostram-se portadores de uma autoridade que se pretende
inquestionável.
9
Blaise K. Muzembe. Le concept théologique de la postmodernité (Paris: Editions Connaissances et Savoirs,
2011), pp. 13-15.
15
Essa homogeneização não surgiu como resultado espontâneo da evolução das mídias e da
mudança de formato na apresentação do discurso religioso; é a consequência e não a causa dela.
As causas, como em geral ocorre às ciências humanas, são tão complexas como as
consequências e nesse caso decorrem de uma conjunção de fatores epistemológicos e sociais
interconectados e dialeticamente implicados, os quais pretendemos aclarar nessa exposição que
por sua natureza pede um tratamento interdisciplinar. Refiro-me à influência da crítica pós-
moderna sobre a epistemologia moderna e sobre a religião e quase-religião pós-modernas no
Brasil. Essas duas dimensões são indissociáveis por isso esse trabalho vem dividido em dois
grandes capítulos, além dessa introdução: o primeiro, voltado para a desconstrução da
“epistemologia fraca” e outras propostas epistemológicas fundamentais do Pós-modernismo: o
Ecletismo, o Relativismo, o Niilismo, etc. A discussão é, portanto, colocada em um quadro de
discussões filosóficas onde aparecem figuras como: Lyotard, Barthes, Derrida, Deleuze,
Foucault, etc. No segundo capítulo, que trata das religiões pós-modernas e de sua influência na
organização e no trabalho dos movimentos e instituições religiosas cristãs e não cristãs, bem
como em organizações políticas não partidárias que lutam por um mundo melhor. Aí se procura
fazer uma avaliação da influência das ideias pós-modernas nas religiões brasileiras,
especialmente onde manifestam-se de forma mais evidente: o Neopentecostalismo e as religiões
do espectro New Age; procurando identificar o comportamento institucional e individual no
tocante às missões com auxílio dos clássicos da Sociologia da Religião: E. Durkheim, Max
10
Antônio F. Pierucci. “Religiosidade, racionalização e desencantamento”, em palestra concedida à rede Cultura
em 2004, e está disponível na internet. Infelizmente, o aprofundamento da análise que vinha desenvolvendo foi
interrompida por sua morte prematura em 2012.
16
Weber, Peter Berger, etc. Na segunda parte desse mesmo capítulo procura-se examinar a quase-
religião pós-moderna e seus principais postulados, bem como a maneira como as denominações
cristãs se colocam diante desses postulados. Ainda nesse capítulo serão objeto de discussão
temas caros a esses pós-modernos afirmativos: homossexualismo, trâns-gênero e modelos
humanísticos alternativos, sempre em contraste com a doutrina cristã.
Poderia ter acrescentado um terceiro capítulo de cunho teológico para enfrentar a Pós-
modernidade que dá seus primeiros passos no campo da teologia sistemática e bíblica, mas isso
ficará para uma outra oportunidade, quando escrever uma obra só sobre a hermenêutica
teológica em confronto com a hermenêutica pós-moderna. O motivo para não o fazer é a
exorbitante complexidade que se apresenta só nessas duas primeiras partes que poderiam
tranquilamente ser duas obras separadas (e talvez fosse mesmo mais indicado apresentá-las
dessa forma, perdoem o açodamento).
17
CAPÍTULO II
Roland Barthes eram homossexuais assumidos, aquele até ativista; G. Deleuze participou da
insurreição de Maio de 1968; Michel Serres viveu grandes traumas com a guerra civil espanhola
e a Segunda Guerra Mundial em sua região, no Sul da França, etc. E aqui não vai nenhuma
intenção de vilipendiar essas figuras consagradas do pensamento pós-moderno francês, apenas
observar que a gênese de suas ideias está mesclada com suas lutas pessoais, o que só vem
corroborar com aquela ideia de que qualquer teoria será sempre fragmento de uma biografia. O
movimento de ’68 como um todo tem essa marca, questão ético-política mescla-se com a
discussão epistemológica e sem essas questões sua epistemologia da negação não teria qualquer
sentido; permanecendo, como ocorre, destrutiva sem a proposição de um modelo de
substituição ao que rejeita. Se a negação tem algum valor esse decorre do desvalor do que é
rejeitado, e, portanto, não podemos estar falando só de ideias.
11
Steven Connor oferece um modelo compreensivo da pós-modernidade pelo qual o movimento é entendido como
estando organizado em quatro fases: (1) a primeira que ele chama de “acumulação”, vai de 1970 até o começo dos
anos ’80, e se caracteriza por uma massa de autores e trabalhos que procuravam dar forma à pós-modernidade que
nascia; (2) a segunda fase chamada síntese, vai do meado de 1980 até o início da década de ’90, tem como principal
marca a construção de sincretismos e ecletismos na superfície da cultura; (3) a terceira fase, que começa com a
década de ’90, é a autonomia caracteriza pelo amadurecimento e institucionalização da pós-modernidade, com
resultados que agora se apresenta como “horizonte geral” da cultura, e não mais como análise particular, ou seja,
suas teorias começam a se tornar mais gerais; e por último (4) a dissipação a partir dos anos ’2000, a qual se tornou
tão onipresente e hegemônica que não é mais possível, sem esforço, separá-la dos objetos da cultura. Steven
Connor. “introduction”. Steven Connor (ed.) The Cambridge companion to Postmodernism (Cambridge:
Cambridge University Press, 2004), pp. 1-4.
12
Jürgen Habermas. El discurso filosófico de la modernidad (Madrid: Taurus Humanidades, 1993).
13
Terry Eagleton. As ilusões do pós-modernismo (Rio de Janeiro: Zahar, 1996), p. 7.
1414
Ihab Hassan. The dismemberment of Orpheus. Toward a postmodern literature (Madison, WI: The University
of Wisconsin Press, 1982).
19
Com efeito, agregar uma massa de manifestações culturais mais ou menos inovadoras e
um emaranhado de movimentos e submovimentos epistemológicos: pós-estruturalismo, pós-
marxismo, pós-colonialismo, etc. Estabelecer uma tendência estética para tão diversos campos
artísticos e culturais (arquitetura, artes plásticas, literatura, cinema, teatro, etc.) sob a única
rubrica de Pós-modernidade só pode ocorrer se adotamos a designação D. Harvey, que a
15
Zygmunt Bauman. Intimations of Postmodernity (London: Routledge, 1991), p. 187.
16
Fredric Jameson. “Postmodernism and consumer society”. In David H. Richter. The critical tradition. Classic
texts and contemporary trends (Boston/New York: Bedford/St. Martin, 2007).
17
Perry Anderson. “Modernity and revolution”. In Cary Nelson; Lawrence Grossberg (eds.). Marxism and the
interpretation of culture (Chicago, University of Illinois, 1988), p. 333.
20
No campo social vai de igual contraditória. Ainda que se defina por sua crítica à
Modernidade, o processo de institucionalização que vem sofrendo fá-la apresentar pares
contraditórios que a tornam paradoxalmente inimiga da Modernidade e cada vez mais
semelhante a ela. Ou seja, é um movimento popular e a um tempo também acadêmico;
contestatório, defensor do direito das minorias, mas igualmente ápice de um capitalismo de
consumo; defensor de um saber local, mas também tem uma tendência universalizante; inimiga
do dogmatismo por um antidogmatismo militante; desencadeia um processo de individuação
que procede de um de massificação. Enfim, um fenômeno sociocultural sobre o qual ignora-se
até o mais fundamental, pois ainda não se sabe se se trata de “um zeitgeist, um sistema, ou uma
situação corrente”22. O problema é que, como demonstrou Steve Connor, o movimento vem
sofrendo mutações ao longo das décadas, encontrando-se hoje no estágio da dispersão: uma
18
David Harvey. La condición de la posmodernidad. Investigación sobre los orígenes del cambio cultural (Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 1998), p. 369.
19
Steven Connor. “introduction”. Steven Connor (ed.) The Cambridge companion to Postmodernism, p. 3.
20
Ihab Hassan. The dismemberment of Orpheus, p. 264.
21
Allain Touraine. Crítica da modernidade (Petrópolis: Vozes, 2002), p. 266.
22
Fredric Jameson. Postmodernism, or the cultural logic of late Capitalism (Durham, NC: Duke University Press,
1991), p. x.
21
neblina espessa que cobre a visão dos homens, fazendo-os pensar que enxergam melhor dessa
perspectiva.
Assim, por falta de uma terminologia mais explicativa, decide-se denominar o movimento
por essa palavra muito usada e abusada: Pós-modernidade, que pode significar uma grande
quantidade de coisas e que por isso mesmo é inconveniente e conveniente. É conveniente
porque esse amorfismo conceitual representa bem o que ela é, apesar de pouco esclarecedora.
Assim, continuamos limitados a pensá-la como alguma coisa que vem depois da Modernidade,
o que também não é uma boa definição, como o seria se ambas convivem até agora? Além
disso, não é exatamente alguma coisa, mas várias coisas; não é exatamente um fenômeno
cultural, mas é também político, econômico e religioso. Ao fim, diante de tantas tentativas
fracassadas em defini-la percebe-se que não se pode abandonar o campo da descrição. Fixemo-
la simplesmente como “situação corrente”, com a ressalva de que também não se sabe até que
ponto é durável.
Modernidade: Pós-modernidade:
Romantismo/Simbolismo Patafísica/Dadaísmo
Forma (conjuntiva, fechada) Antiforma (disjuntiva, aberta)
Propósito Jogo
23
Ihab Hassan. “Pluralism in postmodern perspective”, Critical Inquiry (vol. 12, no. 3, Spring 1985), pp. 504-508.
24
Michael H. Whitworth (ed.). Modernism (Malden, MA/Oxford, U.K./Carlton, Aust.: Blackwell Publishing,
2007), p. 274.
22
Design Acaso
Hierarquia Anarquia
Domínio/Logos Exaustão/Silêncio
Objeto de Arte/Trabalho completado Processo/Performance/Acontecimento
Distância Participação
Criação/Totalização Descriação/Desconstrução
[...] [...]
A cruzada pós-moderna contra a Modernidade possui várias frentes, as quais não vão se
construindo de modo coordenado; a Pós-modernidade vai se espalhando como uma ameba
sobre a cultura, fagocitando-a; ao mesmo tempo destruindo-a, ao mesmo tempo se alimentando
dela. Pode-se, entretanto, dizer que seu primeiro ato de agressão contra os modernos é a rejeição
da disciplinaridade que eles construíram. Para os pós-modernos a própria pretensão
metodológica de disciplinar o campo do conhecimento, qualquer que seja, deve ser combatida,
por dois motivos básicos: o primeiro epistemológico, baseando-se em uma pressuposição
equívoca de que é possível um ponto de vista de Deus ou do sujeito transcendental, que
caracteriza toda a filosofia dogmática que faz da razão uma habitante de um planeta distante de
onde olha pesarosa para as vicissitudes humanas. Esse tipo de racionalidade que conhece o fim
23
desde o começo, como se fosse o Onisciente, e como Ele é capaz de discernir os limites de tudo,
é descartada pelos pós-modernos.
A unidade da história é uma farsa porque a cola usada para agrupar seus pedaços não é
uma neutra racionalidade, mas um discurso que fala de uma perspectiva e se destina a um
objetivo. A verdade de uma teoria, a verdade que surge como resultado de uma teoria, estará
sempre determinada por uma função política, a despeito de seus protestos em contrário.
Verdade e poder são duas coisas inseparáveis; não há discurso (poder) que não institua uma
verdade (saber), e não há poder sem a instituição correlata de um campo de saber que o
legitima27. Em suma, quanto à verdade, será sempre oportuno perguntar: cui bono? Cui prodest?
Ora, sendo a verdade sempre interessada e nunca neutra, são colocados em xeque todos os seus
subprodutos, todos os sistemas de pensamento, todas as doutrinas, todos os argumentos que a
ela se destinam, toda a história de sua constituição. A Pós-modernidade, reputando toda a
25
Michel Foucault. Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), p. 10.
26
Ibid., p. 9.
27
Michel Foucault. Vigiar e punir. O nascimento da prisão (Petrópolis: Vozes, 1999), p. 27.
24
organização do conhecimento a priori como ideológica e política, pretenderá ela somente, ser
a única legítima teorização, à medida que se apresenta como anti-teoria, anti-sistema e anti-
ideologia28, e nunca como um sistema positivo de pensamento29.
28
Max Charlesworth. “Postmodernism and Theology” (The way, July, 1996), p. 188.
29
A palavra nunca é sempre problemática, não seria diferente a esse respeito. Com efeito, a rejeição da
disciplinaridade moderna não significa necessariamente a completa rejeição da positividade. Michel Serres, por
exemplo, apesar de adotar a mesma visão crítica da ciência como discurso e das academias como sistemas de
controle, adota certa positividade, a qual está baseada na teoria do caos. Mais adiante retornaremos a essa questão.
30
Graham Ward. “Postmodern Theology”. In David F. Ford; Rachel Muers. The modern theologians. An
introduction to Christian theology since 1918 (Malden, MA: Blackwell Publishing, 2005), p. 322.
31
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A Thousand plateaus. Capitalism and schizophrenia (London: Continuum,
2004), p. 4.
32
Fredric Jameson. Postmodernism and consumer society, p. 1956.
33
Carl Bereiter. “Implications of Postmodernism for Science, or, Science as progressive discourse”, Educational
Psychologist (29, 1, 1994), p. 4.
25
deflagradas pela física quântica e a pesquisa do genoma, parece estar sendo superado (mais
adiante retomamos esta questão).
Por esse ecletismo os pós-modernos blindam-se contra quaisquer argumentos que lhes
pareça prejudiciais às pretensões, por assim dizer, colocando-se a si e a seus contendores fora
do jogo epistemológico e dentro do jogo político. Pelo argumento a priori de que toda
epistemologia faz parte do jogo de poder que serve apenas à justificação e à legitimação das
instituições sociais onde funcionam como jogos de linguagem34. E aqui provavelmente está a
principal referência epistemológica da Pós-modernidade, o segundo Wittgenstein, autor de
Investigações Filosóficas, livro cuja principal tese é a afirmação que todos os tipos de discurso
(inclusive o científico) estão inscritos em um sistema fechado de regras (“jogos de linguagem”),
de sorte que não se pode aderir a seus resultados uma validade universal, dados serem
perspectivos. Lyotard, como neomarxista, vai além, aventando que este sistema de regras foi
criado para iludir aqueles que pertencem à sociedade pós-industrial, e para legitimar suas
instituições.
A rejeição do discurso universal e dos limites disciplinares impostos pelo ponto de vista
de Deus são os responsáveis pela condição amorfa que caracteriza a Pós-modernidade, sendo
sua melhor representação “o rizoma” de Deleuze e Guattari, cujas características são a
multiplicidade e a conexão, bem como a rejeição da intersecção entre os diversos campos do
conhecimento 35 . No corpo do rizoma as distinções disciplinares são desenvolvimentos
atrofiados da multiplicidade cultural, porquanto aí os elementos vão crescendo à medida que
forças caóticas o impilam, sem nenhum modelo prévio de normatização, sem nenhum limite
34
Jean-François Lyotard. La condición posmoderna, p. 4.
35
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A Thousand plateaus, p. 7-8.
26
para seu confinamento. Pelo que, o modelo que serve para entender a cultura não é mais
nenhuma figura definida por traços simétricos e geométricos: um círculo, um retângulo, etc.,
ou qualquer outra figura geométrica. É um rizoma onde as ideias maturam-se à sombra da
imprevisibilidade; onde são jogados jogos de linguagem sem quaisquer universais, com seu
diversos dialetos, patoás, gírias e linguagens especializadas se entrecruzam e se entremesclam,
gerando um pensamento mestiço e anti-eurocêntrico. Parece que nas ideias pós-modernos,
como as de Deleuze e Guattari, querem afastar as ideias pasteurizadas da academia, propondo
em seu lugar um crescimento orgânico para o pensamento, na esperança de, afastada a
manipulação, daí brotar alguma verdade. Em síntese, por rizoma deseja-se significar “uma
realidade essencialmente heterogênea”36 que não aceita regras e regulamentos políticos para
gerir sua evolução, deixando-se guiar apenas pelas forças caóticas.
Michel Serres tem uma proposição semelhante ao oferecer como modelo para a evolução
das ideias uma teia de relações, “uma teoria geral das relações”37. Já que seu objetivo não é
territorializar a discussão, o que para ele significa a fossilização, a calcificação das ideias com
a definição de um vencedor e sua verdade. Ele não é cartesiano; sua preocupação não é a
definição clara de um problema e sua solução, mas “a substituição de um determinado problema
pelo conjunto de relações que o tornam possível”38, como se o que produzisse o conhecimento
verdadeiro fosse uma espécie de zapear pelas diversas regiões da cultura para assim dizer
escapar ao controle das polícias do conhecimento disciplinar e manter a questão aberta, a fim
de que a verdade possa ser achada em lugares invisitados, que estão fora do circuito; o que está
no circuito de visitação será apenas a verdade da conveniência de seus detentores, o que para
Serres é o cemitério do pensamento e não seu berçário.
Aqui temos uma grande nota dissonante entre esses dois modelos de pensamento.
Enquanto para os modernos a verdade está oculta na desordem, a qual cumpre desbravar para
fazê-la saltar à luz, justamente o que Descartes, Galileu, Bacon, Hobbes, Newton e outros,
parecem ter pretendido; para os pós-modernos ela está oculta na ordem, sob as regulamentações
da organização meticulosa, sob a lisura da pureza teórica, sob a angulosidade da
disciplinaridade rigorosa. O que justifica essa mudança de perspectiva parece ser a ascensão de
um modelo diverso da própria realidade, em que a previsibilidade e a constância da física
36
Ibid., p. 8.
37
Michel Serres. Diálogos sobre as ciências, Conversas com Bruno Latour (Lisboa: Instituto Piaget, 1996), p.
173.
38
Idem, ibid.
27
Não custa concluir que ambos estão errados, que ambos têm como projeto a aplicação
injustificada de um modelo geral de realidade, conforme uma ciência, à sociedade em que
vivemos. A primeira pergunta é: o que a natureza da realidade humana tem a ver com a realidade
dos fenômenos naturais? Por que deveríamos construir a sociedade por esses moldes? Uma vez
mais às ciências humanas é imposto um modelo de pensamento a priori, apenas que
abandonamos o modelo analítico da ciência newtoniana e agora adotamos o holismo da ciência
contemporânea. Parece que ninguém aí tem uma ideia muito clara sobre a humanidade e buscam
na física e na ciência elementos que lhe sirvam à construção de um modelo de humanidade. A
ciência e a epistemologia pós-moderna nesse caso funcionam como “publicidade” no sentido
que Serres deu à palavra39 tanto quanto teria funcionado no período moderno; ambos fazendo
uso de argumentos ético-políticos para encobrir sua real ignorância sobre o humano.
39
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 128.
28
Por que então a Pós-modernidade ainda não reuniu força para suplantar sua rival? Devido
a estar firmada sobre os frágeis alicerces de uma epistemologia fraca, que lhe garante apenas o
direito de criticar e desconstruir, mas não o de construir. Na obra de J.-F. Lyotard, A condição
pós-moderna, um de seus textos inaugurais, aparece a seguinte definição: a Pós-modernidade é
“uma incredulidade quanto aos grandes relatos” ou meta-narrativas 41 . Mas o que significa
suspeitar das meta-narrativas e dos grandes relatos? Basicamente colocar em questão a
possibilidade de um discurso que se entende como ‘meta- o que quer que seja’, muito menos
aqueles chamados metalinguagem; pelo simples fato de que tudo o que pode ser pensado já é
linguagem e não existe nada fora daí. J. Derrida escreverá “não há um fora-do-texto” (Il n’y a
40
Jean-François Lyotard, op. cit., p. 4.
41
Jean-François Lyotard. La condición postmoderna (Madrid: Ediciones Cátedra, 1987), p. 4.
29
pas de hors-texte), ou seja, “não há nada de real que não seja textualizado, construído,
simbolizado e contextuado – interminavelmente”42. Portanto, não podendo transpor a barreira
da linguagem, não podemos pensar fora dela, como que transportando-nos para fora dela como
um barão de Münchausen epistemológico, puxando-nos pelos cabelos de um pântano onde
estamos atolados. Daí a conclusão de que é impossível universalizar uma afirmação teórica
qualquer, não havendo, portanto, outra forma de pensar senão perspectivamente.
Aqui assiste-se a uma escorregadela lógica de Lyotard, pois, como observa J. Habermas,
ao propor o fim das meta-narrativas sua argumentação na verdade invalida o argumento, porque
a proposição ‘não há mais grandes narrativas’ também é uma meta-narrativa, que se pode
chamar ironicamente “a grande narrativa do fim das grandes narrativas” 43 . Nessa mesma
arapuca lógica caíram seus antepassados espirituais, os neopositivistas, que, em sua santa
cruzada contra a metafísica, pontificavam: ‘todo discurso não proposicional – aquele pelo qual
não se diz algo de algo – deve ser considerado metafísico’. Mas onde no mundo está a referência
para isso, para que tal afirmação seja considerada uma proposição? Como concluiu no Tractatus
o primeiro Wittgestein, no mundo não há valores, só há o silêncio da existência; pela mera
razão, nada se pode dizer nada além de é ou não é, portanto, não se pode afirmar a metafísica
ou negá-la. Voltando aos pós-modernos, de nada adianta chamar seu próprio discurso de
‘pequena narrativa’ e continuar agindo como fazem as grandes, tentando fazer calar as que não
concordam consigo.
42
Joseph Margolis. Interpretation radical but not unruly. The new puzzle of the arts and history (Berkeley CA:
University of California Press, 1995), p. 172.
43
Richard Rorty. “Habermas, Lyotard e a Pós-modernidade” (Educação e Filosofia, 4 (8), Jan – Jun), p. 76.
44
Dorothea E. Olkowski. Postmodern philosophy and scientific turn (Bloomington, IN: Indiana University Press,
2012), p. xiii.
45
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral (São Paulo: Editora Cultrix, 2006), p. 79.
30
Afirmação com que Wittgenstein concorda, embora, tanto quanto se saiba, não conhecesse a
obra de Saussure. Sua ênfase, contudo, não foi estrutural como no eminente linguista suíço, mas
pragmática, ou seja, as ações que realizamos com a linguagem (o contexto onde ela ocorre) são
o solo semântico de onde também o sentido decorre.
46
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen (U. S. A., The Macmillan
company, 1969), # 97.
47
David R. Griffin. God and religion in the postmodern world. Essays in postmodern theology (New York: State
University of New York Press, 1989), p. 4.
48
Wittgenstein o demonstra por meio de diversos estudos gramaticais que realizou sobre o problema filosófico da
dor, propondo-os em lugar de uma elucidação epistêmica. Se precisamos dominar a gramática da dor para
identificar algo tão íntimo – uma vez que não percebemos o Self sentindo dor: resmungos, gemidos, suspiros,
choro, apertar ou segurar com as mãos o local dolorido, percebe-se até onde penetram os jogos-de-linguagem;
necessitamos de “um conceito de dor”. Ludwig Wittgenstein. Zettel (Lisboa, Edições 70, 2000), # 547.
49
A linguística do século XIX era acima de tudo comparativa tal como sua antropologia, obcecada pela aspecto
histórico-evolutivo. Para se fazer qualquer estudo linguístico naquela época eram comparados os elementos
fundamentais dessas línguas, com o objetivo de identificar a origem e o parentesco entre as línguas humanas.
Saussure foi o primeiro a perceber que os elementos da linguagem “não existiam um ao lado do outro, mas um por
causa do outro”, trazendo à tona a natureza sistêmica e orgânica das línguas. Anna Morpurgo Davis. “Saussure
31
Como dizíamos, a razão moderna era dogmática e, portanto, tinha como objeto a verdade
absoluta e tinha como método, um único adequado a esse objeto; sendo a verdade única, só
existe uma forma correta de uso do raciocínio: o método analítico, ou seja, começar com ideias
claras e distintas, continuar com a divisão do problema em partes menores e finalmente agrupar
tudo de novo em uma visão totalizante54. Qualquer que seja o método utilizado, racionalista ou
empirista, a verdade pretendida pelos modernos era uma verdade objetiva que repudiava toda e
qualquer subjetividade ou dúvida, carregando a promessa de que finalmente seria estabelecido
and Indo-European linguistics”. In Carol Sanders. The Cambridge companion to Saussure (Cambridge: Cambridge
University Press, 2004), p. 26.
50
Ludwig Wittgenstein. Das Blaue Buch und Eine Philosophische Betrachtung (Frankfurt am Main, Suhrkamp
Verlag, 1982), # 6.
51
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral, p. 16.
52
Se, p. ex., eu digo tal e tal ponto do campo visual é azul, eu não somente sei isto, eu sei também que o ponto não
é verde, não é vermelho, não é amarelo, etc. Eu tenho assim, simultaneamente, aplicado toda a escala de cores.
Esta é também a razão porque um ponto não pode ter diferentes cores ao mesmo tempo... É todo um sistema que
é comparado com a realidade e não uma única proposição (25.12.1929). Ludwig Wittgenstein. Wittgenstein und
die Wiener Kreis, Gespräche. Aufgezeichnet von Friedrich Waismann, B. F. McGuiness (org.), Schriften 3
(Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1969).
53
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 139.
54
René Descartes. Discurso do método (São Paulo: Nova Cultural, 1999).
32
o acordo entre todos os homens, desde que se deixassem orientar pelo método adequado
(restava saber qual fosse). Como vimos, o Positivismo, e, posteriormente, o Positivismo Lógico,
tentaram levar esta concepção ao ponto de decidir sobre a morte da religião e da metafísica,
pontificando que a palavra que não pudesse representar algo nesse mundo deveria ser
descartada como lixo metafísico, ou seja, tudo o que não fosse tecnicamente uma proposição,
predicação sobre algo da realidade física, deveria ser rejeitado como ideia metafísica.
55
Rebecca Goldstein. Incompleteness. The proof and paradox of Kurt Gödel (New York: W. W. Norton Co.,
2005), pp. 155 e 156.
56
Wikipedia. Teoremas da incompletude de Gödel, 2018.
57
Existe uma extensa relação de autores pós-modernos, das várias áreas do conhecimento, que cooptaram o
teorema de Gödel; Alain Badiou, Régis Debray, para citar apenas alguns. Sokal e Bricmont argumentam que na
maioria das vezes o uso do argumento é completamente gratuito, como é o caso dos citados, que o transportam
para o campo das ciências humanas, onde aparentemente o argumento parece ter um uso meramente metafórico,
como mais tarde, depois de receber críticas, reconhece o próprio Debray. Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable
non-sense, Postmodern intellectuals’ abuse of Science (New York: Picador, 1998), p. 177.
33
com abertura a uma certa espiritualização da vida (desde que não podemos provar nada contra
isso). Essa abertura pode ter como axioma a seguinte proposição: ‘desde que não podemos ter
certeza de nada, podemos experimentar de tudo’.
Como é óbvio, axioma e proposição não tem aqui um sentido rigoroso, só pode dar
nascimento a um ceticismo epistêmico que será melhor definido como uma descrença no
projeto da Modernidade e uma ânsia por um ceticismo que lhe é contrário. Não se trata,
entretanto, de um sentimento como os românticos o entendiam, quando propõem a substituição
do axioma racionalista cartesiano: ‘penso, logo existo’ por ‘sinto, logo existo’58. O sentimento
romântico ainda é moderno, pois pretende lançar os fundamentos da ética e da estética em um
conceito de natureza humana prévio à existência, posto que entende o sentimento como
fundamento da essência do homem e, portanto, o primeiro responsável por seu comportamento
(D. Hume e J.-J. Rousseau). A Pós-modernidade confirma o apego ao sentimento, mas esse já
não tem âncora epistemológica; o sentimento é induzido pelo afeto e é relativo ao grupo o ao
lugar a que o indivíduo pertence, ou seja, trata-se de uma coletivização do sentimento59. Em
outras palavras, ainda da fala de Maffesoli: é “o feeling de uma relação, do sentimento induzido
por um lugar, ou de outras categorias não menos vaporosas para descrever um situacionismo,
amoroso, profissional ou cotidiano”60.
Esse feeling, contudo, não é completamente desarrazoado. Sob sua aparente fragilidade
gnosiológica, existe uma base, um fundamento, dificilmente visibilizável, mas muito presente
e influente no mundo contemporâneo. É um ceticismo decorrente da erosão da epistemologia
moderna e nesse sentido uma desconfiança epistemo-ético-política que é a própria imagem da
Pós-modernidade, uma abertura a um “pan-experimentalismo” 61 , bastante aceite entre
professores universitários da área das ciências humanas, onde Foucault, Derrida, Lyotard,
Barthes, etc. dão as cartas em diversos campos do conhecimento e por meio de doutrinas-
matrizes correlatas: pós-estruturalismo, semiótica, ideologia de gênero, etc., que põe em xeque
todos os modelos de pensamento herdados à Modernidade, inclusive criticando a própria
ciência moderna, como fazem Latour e Serres, pela acusação de sofrer distorção resultante de
controle das academias. Mas, isso é só uma parte da verdade. A Pós-modernidade também
distorce usando aquele modelo de ciência já referido como justificativa para um vale-tudo tão
58
Floyd Merrell. Semiosis in the postmodern age (West Lafayette, IN: Purdue University Press, 1995), p. 7.
59
Michel Maffesoli. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa (Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998), prefácio.
60
Michel Maffesoli. O tempo das tribos, prefácio.
61
David R. Griffin. God and religion in the postmodern world, p. 5.
34
falseador quanto o controle das academias. Trata-se de um laxismo teórico que vem produzindo
o surgimento de material pseudo-científico de cunho meramente propangandístico.
Allan Sokal foi o estudioso que, para testar a proliferação de teorias-fake e a falta de
critérios epistemológicos da Pós-modernidade, submeteu um artigo a um periódico de estudos
culturais dos Estados Unidos, The social text. Submeteu, na verdade uma paródia do tipo de
texto científico que prolifera e tem larga aceitação nesses ambientes. O texto tratava de um tema
da Física e o título era: “Transgredindo os limites: rumo a uma hermenêutica transformadora
da gravitação quântica” (Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics
of Quantum gravity). Como o próprio título indica, o artigo está totalmente repleto de meias-
verdades, quartas-verdades, falsidades, non sequitures, expressões sem sentido”62. Mas tudo
vinha expresso por asserções que afirmavam um extremo relativismo cognitivo, zombando de
dogmas absurdos como, “a existência de um mundo exterior, cujas propriedades são
independentes de qualquer ser humano e da humanidade como um todo”63. O artigo foi aceito
e publicado como matéria especial e, com destaque, por sua originalidade e relevância. Por aí
se percebe a alienação ideológica dos editores da dita revista, já que secundaram a negação de
um truísmo que é o próprio fundamento do discurso científico: ‘o mundo exterior independente
de nossos sentidos’. O motivo para tão grande despautério editorial foi Sokal haver recheado
sua paródia com citações de nomes da moda: Deleuze, Derrida, Guattari, Irigaray, Lacan,
Latour, Serres e Verílio. A nata da intelligentsia pós-moderna francesa64. Após a revelação do
engodo, o editor da revista, Bruce Robbins, ainda se justificou evocando um velho argumento
pós-moderno: “a verdade científica tem sido utilizada para oprimir as mulheres, os
afroamericanos, gays, lésbicas”65; em outras palavras, ‘se um conceito é questionável sob o
aspecto ético-político, para que nos ocupar com seu significado epistemológico? Merece a lata
do lixo sumariamente, sem maiores formalidades’.
O tema escolhido para a paródia também merece uma glosa. Por que física quântica? Uma
das coisas que mais atraem os pós-modernos para a física quântica é sua indecidibilidade. Como
demonstrou Heisenberg, no mundo quântico é impossível determinar simultaneamente a
velocidade e a posição de uma partícula nuclear; definindo uma a outra resta indefinível. Ou
seja, no âmago da realidade mais fundamental existe uma incerteza ou uma indeterminação de
62
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense., pp. 268 e 269.
63
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 2.
64
Ibid., p. 3.
65
Dorothea Oikowski. Postmodern philosophy and scientific turn, p. 5.
35
tal monta que nenhuma observação quantitativa ou qualitativamente superior ao que se conhece
poderá suplantar. No mesmo campo, Niel Bohr decretou o fim da polêmica entre os físicos
sobre a natureza da luz (partícula ou onda?), entendendo-a como possuidora de ambas
naturezas. Gödel, Heisenberg, Planck, Niel Bohr, sendo entendidos integralmente ou não,
deram aos pós-modernos a munição que faltava para detonar o modelo epistêmico moderno e
trazer para o léxico de qualquer epistemologia palavras como “indeterminação, incompletude,
incerteza, ambiguidade, contingência e caos”66.
66
Steven Best; Douglas Kellner. The Postmodern turn (New York: Guilford Press, 1997), p. 256.
67
Hans Bertens. “The detective”. In Hans Bertens; Dowe Fokkema. International postmodernism. Theory and
literary practice (Philadelphia/Amsterdam: John Benjamin Publishing, 1997), p. 195.
68
Ressalve-se que não se questiona aqui a validade metodológica da transdisciplinaridade, em muitos campos do
conhecimento ela é legítima. Contudo, o que ocorre hoje em ambientes pós-moderno é um abuso e uma
generalização sem nenhuma justificativa.
36
(b) O empréstimo de conceitos das ciências naturais sem se dar ao trabalho de uma
justificação teórica.
69
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 87.
37
70
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 5.
71
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 26.
72
Steven Best; Douglass Kellner. The postmodern turn (New York: Guilford Press, 1997), p. 5.
73
Steven Best; Douglass Kellner. The postmodern turn, p. 5.
38
revela uma grande verdade sobre as pretensões desse movimento: ‘seja realista; peça o
impossível’, ou seja, queriam mudar, mas não sabiam o queriam no lugar do que rejeitavam;
era o anarquismo pelo anarquismo. Esse mesmo espírito permanece vivo até hoje, porque ainda
há teóricos que pensam daquela mesma forma, fundamentando sua rejeição ao modelo moderno
com base em razões ético-políticas, e sem serem capazes de apontar razões realmente
epistêmicas para a adoção de um novo modelo social, exceto a radicalização dos ideais da
Revolução Francesa.
Por tudo isso recai a suspeita de que a epistemologia fraca é um estratagema para a
obtenção de uma licença irrestrita para bricolar sem critério. Ora, se todas as verdades são locais
e perspectivas não há nenhum mal em juntar uma porção delas por um critério não muito
plausível para criar um mosaico de verdades locais que acabam obtendo um status universal,
uma vez que para negar o universal e permanecer coerente deveriam depois disso permanecer
calados. Embora negar o discurso universal com ensemblages que o imitam, mas não pretendem
esses status seja uma operação altamente contraditória é exatamente isso que ocorre; dane-se o
princípio da não contradição. É assim que os pós-modernos vêm misturando os assuntos mais
díspares sem o menor constrangimento, criando teorias franksteinianas, sem sequer darem-se
ao trabalho de uma justificativa74. E, se de algum modo essas construções teóricas parecerem
caóticas e capengas, eles ainda têm o álibi de atribuí-lo à própria condição humana e à realidade
que retratam e não à canhestrez de seus criadores75.
E assim o ecletismo domina hoje vastas áreas do conhecimento, podendo-se mesmo dizer
que hoje em dia isso seja um modismo teórico e quanto mais díspares forem as áreas do
conhecimento conectadas mais credibilidade e fama obtém o autor da proeza. Vejam o exemplo
de Fritjof Capra, físico que conectou a física com a religião védica hindu76 e angariou muitos
discípulos, como por exemplo, Marcelo Gleiser77, físico brasileiro. E isso não ocorre somente
com teóricos da física; além dela o ecletismo também domina vastas regiões do conhecimento.
Na Psicologia, a exemplo, atualmente é moda os terapeutas ecléticos que se negam a seguir
uma escola terapêutica específica, preferindo fazer uma combinação assistemática de diversas
correntes (até rivais), improvisando terapias de acordo com sua avaliação do cliente e da
74
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. x.
75
Marvin Harris. Cultural Materialism: The struggle for a science of culture (Walnut Creek, CA: Altamira Press,
2001), p. 290.
76
Fritjof Capra. Il tao della física (Milano: Adelphi Edizioni, 1989).
77
Marcelo Gleiser. A dança do universo. Dos mitos da criação ao Big-Bang (São Paulo: Companhia das Letras,
1997).
39
situação desse78. Na Arquitetura, de semelhante modo, o ecletismo hoje chega a ser opção
preferencial, especialmente pela adoção da diversidade de estilo como norma, o assim chamado
“ecletismo radical”, por não se restringir a diferentes estilos de arquitetura no ambiente coletivo,
mas indo além, defende o ecletismo em uma mesma edificação79, indo além do que defendia a
Carta do Novo Urbanismo (1996) quanto ao uso misto do espaço, ao adensamento, e à mistura
das classes sociais e estilos80.
Além desse ecletismo interno nas áreas do conhecimento, existe a invasão disciplinar que
afeta as ciências em geral, pelo ingresso nos domínios de uma transdisciplinaridade que se
desenvolve por influência do Pós-modernismo. Por exemplo, no campo da gestão e da
administração, muitos autores se locupletam da simbologia cristã para ensinar lições de
liderança 81 ; por essa mesma tendência existe uma Psicologia que usurpa a função dos
administradores, especialmente na área de gestão de pessoas e marketing 82 ; ocorrendo o
inverso, quando o assunto é coaching emocional, é a gestão que invade o campo da psicologia,
em que coachs atuam como psicólogos, tendo em vista que as técnicas de gestão invadem todas
as dimensões da vida, inclusive a das emoções 83 . Como veremos mais adiante, a religião
também se adianta de seus marcos originais e invade os domínios da gestão por meio de
diversos programas de aperfeiçoamento de relações inter-pessoais e liderança. Nada demais,
considerando-se que tudo na me generation gira em torno do Self e do auto-conhecimento.
Aqui justifica-se o que vínhamos dizendo sobre o grande desafio que a Pós-modernidade
lança ao Cristianismo. Por trás de seu aparente ecletismo e de uma espiritualização de diversos
setores da cultura (inclusive usando elementos próprios do Cristianismo), esconde-se uma
ideologia que aborrece a mensagem cristã em sua essência, pela recusa ao absoluto. Por esse
motivo, há necessidade de urgente exame dos fundamentos dessa epistemologia fraca que nada
mais deseja senão ser mais coerente com a opacidade da realidade, mas que em verdade produz
um niilismo tão destrutivo como insidioso. Como uma serpente que morde o próprio rabo, esse
78
Lois Shawver. Nostalgic Postmodernism. Postmodern Therapy, vol. 2 (Oakland, CA: Paralogic Press, 2006), p.
99.
79
Charles Jenkens. The story of Postmodernism. Five decades of ironic, iconic and critical in Architecture
(Chichister: John Wiley & Sons), 2011, p. 51.
80
Adilson C. Macedo. “A carta do Novo Urbanismo norte-americano”, Integração (Jan-Mar, ano XIII, no. 48).
81
James C. Hunter. O monge e o executivo. Uma história sobre a essência da liderança (Rio de Janeiro: Sextante,
2010).
82
Louise Kelly; Jay M. Finkelman. Psychologist manager. Success models for psychologists in executive positions
(Cambridge, MA: Hogrefe Publishing, 2013).
83
Hallina Brunning (ed.). Executive coaching. System-psychodynamics perspective (London/New York: Karnac
(Books), 2007).
40
niilismo uma vez gerado torna-se o fundamento de um laxismo epistemológico que não precisa
justificar-se senão por uma ilação tão frouxa quanto suas próprias convicções epistêmicas: “se
se aceita o relativismo epistêmico, então não há razão para ficar aborrecido com uma
apresentação não rigorosa das ideias científicas; de qualquer forma tudo está relacionado
(holismo); e além disso, tudo é discurso, até a própria ciência”84.
84
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. xi.
85
Stuart Sim. “Postmodernism and philosophy”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to postmodernism
(New York/London: Routledge, 1999), p. 3.
86
Nesse caso não podemos deixar de observar que, embora o projeto filosófico dos modernos tenha abandonado
o fundacionismo religioso e teológico, ele não se afasta muito do que tenta obliterar, pois há um paralelo perfeito
entre o fundacionismo teológico e o da filosofia dos modernos. O fundacionismo do livro está para a revelação
especial assim como o fundacionismo metafísico está para a revelação natural.
87
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 123.
41
Deus por outro nome. Os pós-modernos, percebendo-o, tentam ir além dos modernos rompendo
com essas práticas hermenêuticas arcanas, fundadas na ideia de Deus; abolindo todos os tipos
de fundacionismo, especialmente as citadas (natureza, história, livro, Self)88e adotando em seu
lugar o Niilismo. Seus inspiradores são especialmente Nietzsche e em certo sentido Heidegger;
seu objetivo, eliminar a teologia residual que ainda persiste no Ocidente. Depois que essa
teologia funcional for expulsa, o homem finalmente atingirá a maioridade espiritual e poderá
transcender para além de suas limitações (assim esperam).
Mas, para que lhes serve essa obra de destruição? Bem, aqui está a questão da verdade
novamente. Ela parece ser um valor absoluto, mas donde lhe vem essa valoração? Se é absoluto
não pode decorrer da realidade contingente. Daí concluirmos que para valorar, para afirmar
uma coisa em detrimento de outra, é necessário reconhecer que existe um modelo que está além
das contingências e circunstâncias. Os pós-modernos, entretanto, cegamente, deixam de
reconhecer que sua obra de destruição só tem algum valor à medida que representam a
substituição do erro pela verdade, e pensam sua iconoclastia como abertura de campo para algo
que ainda existe, uma transvaloração ou uma trans-humanização em nome de que o martelo da
crítica deve esmiuçar os ídolos da Modernidade:
O Pós-modernismo nos exorta que reconheçamos que não perderemos nada com o
desmoronamento dos fundamentos, salvo nossas cadeias. Agora podemos fazer o que
queremos sem ter que carregar por todas as partes um pesado e incômodo
88
Cf. Mark Taylor. Erring: A Postmodern A/Theology (Chicago: The University of Chicago Press, 1987), p. 7.
89
Entende-se por Cristandade aqui a organização social, econômica, cultural e política europeia que apareceu
como resultado do Cristianismo ter se tornado religião oficial do império romano. Durante mil e quinhentos anos
a Europa foi plasmada pelo pensamento cristão e a Modernidade não logrou desfazer esse legado, pois livrou-se
do conteúdo (a determinação teológica da civilização europeia e de seus resultados), mas conservou a forma.
42
Seria isso uma espécie de escatologia, a julgar pelo fato de aparentemente os novos
fundamentos estarem no futuro? A verdade permanece como fundamento, ainda que por
alicerces que ainda estão por ser lançados.
Mais adiante nos ocuparemos desse outro álibi da Pós-modernidade, agora o que nos toca
é a tarefa de desconstruir a epistemologia pós-moderna. Entretanto, não o faremos por
descontruir a desconstrução do Self, do livro, da história e da natureza em toda a amplitude
dessas questões. Isso demandaria muito mais do que as páginas que temos previsto. Não
podendo mover uma investigação completa sobre a anti-metafísica pós-moderna, preferimos ao
invés dimensionar o estrago produzido por essa ideologia na hermenêutica tradicional; e, tendo
em vista esta finalidade, resolvemos organizar a discussão no âmbito da questão da verdade,
que é como fundamento na metafísica, o sucedâneo mais imediato de Deus. Dividimo-la em
duas grandes classes: (a) a questão epistemológica e (b) a questão ético-política.
90
Terry Eagleton. Después de la teoría (Barcelona: Cultura libre, 2013), p. 68.
43
um fundamento político. O conhecimento científico não está apenas a serviço da verdade, mas
também das instituições que gerem essa verdade em proveito das instituições que os gerem. Por
outro lado, como vimos, a abordagem crítica também decorre da mudança de modelo da ciência
promovida pela nova física, pela alegação de que a própria forma de se fazer ciência também
deve mudar adotando um modelo mais consentâneo com aquilo que a nova ciência tem
revelado.
Mais uma vez deve-se ressalvar que todo o tratamento que vem em seguida traçado tem
função meramente pedagógica – o objetivo é demonstrar como é construída a argumentação
pós-moderna no tocante à questão. Porque, primeiramente, é impossível na Pós-modernidade
separar ética de epistemologia, a segunda perdendo a pureza com que era pensada pelos
modernos. Em segundo lugar, toda essa distinção e classificação da verdade atende o mesmo
objetivo, porque todas essas críticas lidam com objetos confluentes para a maioria dos
pensadores citados ou aludidos. Por exemplo, a distinção entre verdade-arché e verdade-
objetividade em Heidegger não faz o menor sentido. Seu projeto filosófico abarca os dois
conceitos, desde que para chegar à verdade-arché é necessário tirar do caminho a verdade-
objetividade, desde que para ele, “o erro da tradição metafísica Ocidental tem sido considerar
o Ser como como uma espécie de entidade objetiva totalmente separada do sujeito
91
Aristóteles. Metaphysics (Indianapolis, IN: Hackett Publishing Company, 2016), cap. IV, 7, 1011b25-29.
44
A segunda grande crítica é ético-política, sob sua rubrica estão (a) a crítica às instituições
e (a) opção ética pela diversidade. Para os pós-modernos esta organização da discussão está de
antemão condenada, porque, tal como a ética, também é impossível separar epistemologia de
política. Não lhes tiro de todo a razão, mas a prioridade de um texto deve ser a capacidade de
se comunicar, portanto, optamos por não misturar demais essas duas matérias: (a) epistemologia
e (b) ética, preservando à medida do possível a distinção entre elas.
A verdade-doutrina que aqui vem citada não diz respeito a uma verdade fundamental
específica, uma verdade geral da qual decorram as demais. Trata antes da possibilidade desse
tipo de verdade existir e de se ter acesso a ela, de se poder pensá-la a partir de um sentido
permanente. É, portanto, para a hermenêutica que a Pós-modernidade encaminha a questão. E
não só uma hermenêutica filosófica, mas uma hermenêutica do texto, debruçando-se sobre o
autor, o sentido do texto, a permanência desse sentido.
Para Lyotard, por exemplo, não é mais possível sustentar a univocidade de sentido em
nenhum texto 93 . Assim como ele, muitos outros teóricos pós-modernos pensam de forma
semelhante, baseando-se nos dois principais mestres da opacidade semântica: F. Saussure e L.
Wittgenstein, os quais têm linhas muito próximas, como já vimos. Lyotard segue a
argumentação de Wittgenstein, concluindo como ele que o modelo representacionista deve ser
rejeitado e a metafísica da representação, destituída94. A linguagem não é mais representação
dos pensamentos nem representação do mundo. Essa visão perdurou de Parmênides até o
Wittgenstein do Tractatus, fazendo da filosofia Ocidental apenas nota de rodapé à filosofia de
Platão95. Outros, como Derrida e Barthes, tomam como ponto de partida o Curso de Linguística
Geral de Ferdinand Saussure, e com ele concluem que o significado emerge da própria situação
linguística, chegando ao fim o antigo acordo entre a linguagem e o mundo. Toda a metafísica
que fora construída em torno disso perde o chão e a linguagem passa a ser definida como uma
92
Terry Eagleton. Una introducción a la teoría literaria (México: Fundo de Cultura Económica, 1998), p. 43.
93
Jean-François Lyotard. La condición postmoderna, p. xxiii.
94
Idem, ibid.
95
Alfred North Whitehead. Process and Reality (New York: Free Press, 1979), p. 39.
45
convenção social que deve sua existência exclusivamente ao que lhe acontece no próprio
interior.
a) Jacques Derrida
96
Stuart Sim. “Postmodernism and philosophy”, p. 4.
97
Jacques Derrida. Limited Inc. (Evanston, IL.: Northwestern University Press, 1988), p. 7.
98
Ibid., p. 9.
99
Idem, ibid.
100
Geoffrey Bennington. Jacques Derrida (Chicago: The University of Chicago Press), p. 85.
46
possuem várias camadas conceituais que vão se sobrepondo à medida que transcorre o tempo.
A linguagem, portanto, sofre uma evolução permanente que também afeta a inteligibilidade
automática de seu sentido original; embora as línguas que podem ser escritas sejam mais
estáveis do que as ágrafas, mas isso é apenas uma regra geral com inúmeras exceções101. A
linguagem sofre mudanças semânticas e sintáticas, que fazem com que o significado das
palavras não permaneça igual. Existe sempre algo que se perde ou é criado toda vez que um
texto é lido, donde a conclusão de que nenhum texto é unívoco e de que há tantos textos quanto
há leitores.
O texto na visão tradicional é uma comunicação com começo, meio e fim. Pode ser uma
narrativa, pode ser um discurso, um poema, um filme, e até um conjunto de aforismos e
conselhos, em que as ideias do autor são o elemento integrador. E, além disso, subjazem-lhe
outros elementos não menos fundamentais: o tema, a verdade, a tese, a narrativa, que,
entretanto, os pós-modernos veem como artifícios e ilusionismos construídos com o intuito de
enganar o leitor. Para eles, tudo o que fundamenta o texto está marcado pelo desejo de produzir
uma metafísica do discurso, e estão a serviço dos interesses culturais e políticos, de governos,
de instituições religiosas, de livreiros e editoras. Por esse motivo, todo o sistema que pressupõe
a ideia do livro é atacado impiedosamente, e, como resultado dessa desconstrução, o
conhecimento arrisca-se a ser engolfado por um niilismo onde perecem o sentido, o sujeito, a
intencionalidade da comunicação humana. E é interessante que o que negam aos outros não
negam a si próprios, pois não deixam de escrever livros, de se fazerem entender por meio de
textos, e, por seu teor polêmico, também querem ser considerados ‘verdadeiros’.
101
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 34.
47
primordial do autor quando trata de qual seja assunto não é nada além do que uma camisa-de-
força imposta ao texto, que faz o autor faltar com a verdade escondendo evidências que são
contrárias ao seu ponto de vista102.
Um livro não tem nem objeto e nem sujeito; é feito de assuntos diversamente
formados, pertencentes a épocas diferentes, escrito em velocidades diferentes.
Atribuir a um livro um assunto é passar por alto essa construção contínua porque
passam as matérias e a exterioridade de suas relações. É fabricar um Deus benevolente
para explicar os movimentos geológicos. Em um livro, assim como em todas as coisas,
há linhas de articulação e de segmentação, camadas e territórios; mas também há
linhas em voo, movimentos de desterritorialização e de desestratificação. Taxas
comparativas de fluxo sobre essas linhas produzem fenômenos de relativa lentidão e
viscosidade, ou, ao contrário, de aceleração e ruptura. Tudo isso, velocidades
mensuráveis, constituem uma assemblage. Um livro é uma assemblage desse tipo e
como tal é inatribuível103.
O excerto acima bem poderia figurar como modelo de texto pós-moderno, haja vista a
bela exposição de seus pontos primordiais. Derrida também faz sua incursão no
experimentalismo textual com Glas 104 , livro em que ele discute com Hegel e Jean Genet
simultaneamente em duas colunas; além disso, elementos textuais explicativos inseridos como
glosas no próprio texto transformam o livro em um labirinto de fragmentos colados por uma
metodologia de nenhum modo explícita 105 . Glas, portanto, por seu descentramento, é uma
metáfora da própria linguagem (e por extensão desse tipo de filosofia do texto). A rejeição da
unidade logocêntrica tão prezada na civilização Ocidental é atacada por Derrida na própria
composição da estrutura textual, ainda que a custa de tornar a expressão do autor mais difícil e
mais complicado o entendimento do leitor, que precisa localizar os marcadores do texto e os
102
D. Cheryl Echum; David J. A. Clines. The new literary criticism and the Hebrew Bible (Sheffield, U. K.:
Sheffield Academic Press, 1993), p. 19.
103
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A thousand plateaus, p. 4.
104
Jacques Derrida. Glas (Lincoln, NK: University of Nebraska Press, 1986).
105
Geoffrey H. Hartmann. ”Monsieur Texte: On Jacques Derrida, his Glas“, The Georgia Review (vol. 29, Winter
1975, no. 4), p. 761.
48
sinalizadores do sentido dispersos nesses fragmentos, ou então, em número bem menor do que
nos textos lineares.
O que Deleuze, Derrida e os demais não estão dispostos a admitir é que que a dissolução
desses elementos inviabiliza a comunicação e a inteligibilidade, ou então, torna a leitura mais
penosa. O objetivo deles é descontruir os truques textuais e estilísticos que servem para
constituir a ilusão da verdade: “um exército móvel de metáforas, metonímias e
antropomorfismos” 106 (Nietzsche). O que é muito óbvio, porém, é que eles jogam fora a criança
junto com a água suja, pois esses elementos tanto servem para iludir como para comunicar. Se
o sentido provém do sistema e o sistema é formado por certos elementos e por certa relação
entre esses elementos, se eles são destruídos ou se é destruída a relação em que estão
organizados, não resta mais nenhum sentido. Mas, como Saussure ensina, se o sentido também
é resultado de uma decodificação executada pela mente do leitor, eliminando esses elementos
ou esses sendo ocultados, a operação mental também ficará mais difícil.
Os pós-modernos não entendem corretamente Wittgenstein e leem por aquilo que ele
nunca diz. Quanto a Saussure, rejeitam a relevância da estrutura tripartite da semiótica da
linguagem: significante, significado e o signo, ou seja, o significante, que pode ser um sinal
106
Ibid., p. 764.
107
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 139.
49
vocálico ou gráfico; o significado que ele evoca; o signo, aquilo em que aparecem unidos os
antecedentes 108 . Para eles a semiologia de Saussure já está ultrapassada. Sua ênfase na
comunicação precisa ser superada para que um segundo e mais importante papel da linguagem
possa emergir: o político. Mais adiante analisamos um dos mais destacados pós-modernos que
se preocupou examine com essa questão, R. Barthes.
b) Roland Barthes
108
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral, p. 79 e 80.
109
Roland Barthes, Mitologias (Rio de Janeiro: Difel, 2009), p. 201.
110
Paul Ricoeur. Interpretação e ideologias (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990), p. 47.
111
Idem, ibid.
112
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 19.
113
Ibid., # 201.
50
Para exemplificar o segundo e o terceiro sentido, Barthes usa uma ilustração idílica: rosas
vermelhas. Quando um namorado as leva à namorada, elas são o significante, sua paixão é o
significado e o signo, transformado em terceiro objeto, é a união das flores com a paixão do
namorado116. Quanto às rosas em si mesmas, não têm qualquer importância (exceto para um
estudante de botânica): “o significante é vazio, e o signo é pleno, é um sentido”117. Tão pleno
que ainda há um terceiro sentido, um sentido político, que subsiste como parasita do significante
e opera sua deformação; nesse caso simboliza a fragilidade e a suavidade do gênero feminino,
qualidades que definem a mulher segundo um discurso normativo sexista. Por causa desse
terceiro sentido inevitável, que faz uso do segundo para constituir-se, os pós-modernos rejeitam
o discurso intencionado do autor e interpretam o signo livremente, evitando as restrições de
significado operado pela intenção ideológica; ou então, em uma leitura negativa, fazem uma
crítica textual do terceiro sentido. Barthes pergunta e responde: “toda linguagem primeira é
fatalmente cativa do mito? [Sim.] Não existe nenhum sentido que possa resistir a essa
captura.”118 Antes de começar a escrever o escritor já está roubado, pois parte do que vai dizer
não lhe pertence, mas à época em que nasceu e à cultura que o alimentou, pertence aos
preconceitos que o possuem, às obrigações morais que seu superego lhe impõe. Seu discurso
não é, portanto, seu; pelo menos não completamente. Daí que a decisão de semiólogos como
Barthes de abrir o signo, por meio de uma interpretação plural, que faz o intérprete entregar-se
a um pessimismo hermenêutico, não deixa de ter suas razões epistemológicas.
Para consolidar sua teoria, Barthes oferece a seus leitores uma imagem caricata do
conceito de texto, assim como entendido pela hermenêutica tradicional, fazendo-os crer que
essa ignora o fato de que o autor não tem total controle sobre os significantes que manipula,
tendo em vista a intrínseca polissemia dos signos. Julgando ser original, ele afirma que no texto
existe uma multiplicidade, um excesso de sentido, de sorte que “interpretar é dar-lhe o sentido
114
Roland Barthes, Mitologias, p. 205.
115
Idem, Ibid.
116
Ibid., p. 203.
117
Idem, ibid.
118
Ibid., p. 223.
51
plural de que é feito” 119 , é dar-se conta de “uma galáxia de significantes”, motivadores de
leituras diferentes que jamais encontram-se à disposição do leitor como totalidade: “não há um
todo do texto”120, no sentido de uma plenitude que, alcançada, impõe um fim ao processo de
interpretação. Nessas passagens entreolha-nos uma hermenêutica anárquica, uma hermenêutica
que se recusa a ser uma “filosofia do sentido” e quer instaurar em seu lugar uma hermenêutica
criativa, quer transformar o leitor em um transgressor que lê um texto com um sentido
deslizante, para que o texto não mais retorne à insípida “moral da verdade”. O objetivo de
Barthes é “desparafusar um pouco a teoria”121 para potencializar a fruição do leitor; a propósito
do que T. Eagleton faz a observação irônica de que para Barthes “ler é menos laboratório do
que boudoir”122. E aqui voltamos a repetir, o ideal não pode substituir o real, a crítica política
não pode definir o sentido às expensas do campo epistemológico, pois isto é faltar com “a moral
da verdade”, ironizando a expressão depreciativa do próprio Barthes.
Também concordamos que na interpretação também não deve haver excessiva rigidez.
Todo mundo sabe que existem textos clássicos que são inesgotáveis, a exemplo da própria
Escritura, mas isso não significa que não exista um sentido primeiro intencionado pelo autor.
E. D. Hirsch, hermeneuta norte-americano, que em seu livro Validity in interpretation defende
uma distinção útil para desfazer as fabulações pós-modernas. A multiplicidade do texto não está
no “significado” que lhe foi proposto pelo autor, mas na “significação” que nele encontra o
leitor123. Pode haver um grande número de significações válidas, mas elas devem mover-se no
interior de um sistema de significação razoável, ou seja, aquela que não entra em conflito com
aquela sugerida pelo significado do autor. A interpretação não é discricionária; de outro modo,
o texto poderá dizer qualquer coisa, inclusive o que nunca pretendeu e contra o que é
terminantemente contra. Imaginemos a constituição de um país sendo interpretada por juízes
que esposam a hermenêutica pós-moderna. Seria o caos jurídico. Mas, como já vimos, ainda
que o caos seja criativo, pelo menos por essa abordagem, um sistema pautado pela imaginação
dos leitores e que despreza os códigos da comunicação, torna impossível uma hermenêutica
com interesse coletivo. O texto por esse viés tornar-se-ia refém de um solipsismo de inspiração
cartesiana que, em vez de pensamentos singulares como ensina o solipsismo tradicional, haveria
leituras singulares, ignorantes quanto à compreensão do texto que outras pessoas leem.
119
Roland Barthes. S/Z (México: Siglo XXI, 2011), p. 3.
120
Idem, ibid.
121
Roland Barthes. O prazer do texto (São Paulo: Editora Perspectiva, 1987), p. 83.
122
Terry Eagleton. Una introducción a la teoría literaria, p. 54.
123
Ibid., p. 45.
52
Derrida diz algo parecido sobre a limitação imposta pelo conceito tradicional de livro, e
parece entender a Sagrada Escritura como seu arquétipo:
Também causa estranheza a conclusão de Barthes de que no “texto plural não pode haver
estrutura narrativa, gramática ou lógica do relato”, a menos que queiramos um texto com
pluralidade por medida e não um que realmente seja plural 125 . Disso decorre que uma das
características do texto pós-moderno é ser poligráfico, em contraste com a monográfico
tradicional. De fato, os pós-modernos promovem “uma proliferação de narrativas em seus
textos”126, tanto em sua leitura como em sua criação e redação. A diversidade é o ideal político
que interfere na percepção da realidade do texto. O Niilismo deve ser o alfa e o ômega. Alfa
porque o começo da narrativa é algo que padece de uma gratuidade absurda, como a conversa
dos personagens de Beckett em Esperando Godot; ômega, porque lá pelo meio do texto há
tantas narrativas que “o sentido do texto se torna indeterminado”127. Nada contra a poligrafia
como princípio estilístico que faz o leitor perder-se em um labirinto se esta for a mensagem do
texto (que, por sinal, retrata muito bem a condição existencial do homem pós-moderno), como
fazem Proust e Kafka. Porém, como princípio hermenêutico geral, é algo que não corresponde
ao que ocorre quando se escreve ou se lê um texto.
A esse respeito não se pode ignorar algo muito elementar. Para chegar a pluralidade do
excesso ínsito no símbolo e no texto é necessário começar pelo sentido que torna possível que
ele seja lido. Existe uma pressuposição básica aí que marca o nascimento do livro: para o leitor,
o autor é alguém que tem algo importante a dizer; para o autor, o leitor deveria saber sobre o
que tem a dizer. Se o texto é polissêmico e poligráfico ao ponto defendido pelos hermeneutas
pós-modernos então o texto se torna irrelevante e dispensável, pois nesse caso não há nada
importante a dizer ou a descobrir por sua leitura. O texto é múltiplo, mas para chegar a essa
multiplicidade precisa haver uma compatibilidade prévia de sistema que faculta ao leitor
entender o que o autor escreve; e esse sistema é formado pelo tema, pela narrativa, pelo estilo,
124
Jacques Derrida. Gramatologia (São Paulo: Editora Perspectiva, 1973) p. 22.
125
Idem, ibid.
126
Will Slocombe. Postmodern nihilism. Theory and literature (Cardiff, U. K.: Tese de doutoramento, University
of Wales, 2003), p. 290.
127
Idem, ibid.
53
pela estrutura (a forma ou gênero e subgêneros literários e seus códigos) e pelas regras de
retórica que abarcam tudo o que se diz, como se diz e o que é tácito. A interpretação da
multiplicidade é apenas uma segunda abordagem ao texto; a primeira é a busca pelo sentido
comum, que é a visada primeira de qualquer autor quando redige.
O principal motivo para Barthes rejeitar esta hierarquia na interpretação do texto não se
dá por motivos epistemológicos, de resto, inquestionavelmente contrários à sua posição; mas
por motivos políticos. Segundo ele, os filólogos fazem um círculo “ao redor da denotação (foco,
centro, custódia, refúgio, luz da verdade) [e isso] é fechar o discurso (científico, crítico e
filológico) em uma organização centralizada”128. É, portanto, por uma medida autoritária que
se cerceia os direitos de quem lê. A posição dos intérpretes pós-modernos me faz lembrar a
peça de Camus que retrata Calígula e sua titânica noção de liberdade absoluta129. A liberdade
ansiada pelo imperador romano o fazia agir sem nenhuma consideração prévia, como se ele
existisse sozinho no universo e suas ações não tivessem consequência sobre ninguém. Algo
parecido ocorre a esses intérpretes quando pensam no texto como uma cornucópia que existe
unicamente para o prazer dos leitores.
Coerente com essa ânsia de liberdade que recusa aceitar os elementos constitutivos do
texto, Barthes também recusa a hermenêutica tradicional porque para ele o autor e o leitor
também são fabulações. Eles nascem de um esquema epistemológico dualístico que dominou o
Ocidente por pelo menos dois mil anos. Seu grito de guerra é a supressão desse dualismo
sujeito-objeto, os sujeitos estando para o autor e o leitor, o objeto para o texto: “na cena do texto
não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor), diante dele ninguém
passivo (o leitor); não há sujeito e objeto”130. O texto deixa de ser livro e passa a ser leitura,
uma atividade que ganha autonomia em relação a ambos, porque a revolta dos signos se apodera
dele, e no campo da comunicação e da semiótica instaura-se a anarquia libertária da livre
significação que também não pertence ao leitor, mas ao seu tempo.
128
Ibid. p. 4.
129
Albert Camus. Caligula and 3 other plays (New York, Random House, 1958).
130
Roland Barthes. O prazer do texto, p. 24.
54
de uma época131, não podendo, a rigor, serem tributadas ao próprio Balzac. Ora se a elocução
de uma ideia pertence a uma comunidade e não ao indivíduo que a emite, do mesmo modo, a
interpretação não é feita pelo leitor, mas pelo Sitz im Leben onde está localizado, de modo que
cada nova interpretação pertence ao contexto social onde ocorre. A interpretação, portanto, liga-
se a uma cadeia sem fim de interpretações, onde não se pode nunca chegar aos fundamentos,
porque eles não existem. Foucault corroboraria dizendo que, para Nietzsche, “Não há,
absolutamente, uma primeira interpretação, porque, no fundo, tudo já é interpretação, cada sinal
não é em si mesmo uma coisa que se oferece à interpretação, mas é interpretação de outros
sinais”132. Portanto, o princípio não é realmente o começo, e qualquer princípio assim nomeado
já se encontra dentro de uma cadeia de interpretações, cuja genealogia é impossível perscrutar.
E mesmo a interpretação da interpretação já se torna uma operação difícil e impossível de levar
a cabo devido ao abismo que semânticas diferentes impõem a homens de épocas e lugares
diferentes, e que impede de ser entendido em sua integridade o que outros disseram133.
131
Roland Barthes. O rumor da língua (Brasília: Editora Brasiliense, 1988), p. 284.
132
Michel Foucault. “Nietzsche, Freud, Marx”, Cahiers de Royaumont (Paris, Éd. de Minuit, 1967) p. 183.
133
Rudi Visker. Michel Foucault. Genealogy as Critique (London: Verso, 1995), p. 12.
134
Ibid., p. 6.
135
Chaïm Perelman e Lucy Olbrechts-Tyteca. Tratado da argumentação (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 17.
55
Além dessa regra fundamental que regula o mundo humano, que podemos chamar de
etiqueta, há inúmeras outras regras tácitas que devem ser seguidas e que pressupõem a
intencionalidade do autor e do leitor enquanto componentes de uma comunidade comunicativa.
Trata-se de procedimentos que executados visam a pactuação que caracteriza o “discurso
prático-geral”, como o chama Alexy136, o qual se destina ao auditório universal, formado por
todos os que usam a linguagem. Esses procedimentos podem ser divididos em três partes:
“regras fundamentais”, “regras de razão” e “regras de carga de argumentação.”137:
(2.) Todo falante deve, se lhe for pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que
possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação.
(2.1.) Quem pode falar pode tomar parte no discurso.
(2.2.) (a.) Todos podem problematizar qualquer asserção.
(2.2.) (b.) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso.
(2.2.) (c.) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades. 139
(3.1.) Quem pretende tratar a uma pessoa A de maneira diferente de uma pessoa B
está obrigado a fundamentá-lo.
(3.2.) Quem ataca uma proposição ou uma norma que não é objeto da discussão, deve
dar uma razão para isso.
(3.3.) Quem aduziu um argumento, está obrigado a dar mais argumentos em caso de
contra-argumentos.
(3.4.) Quem introduz no discurso uma afirmação ou manifestações sobre suas
opiniões, desejos ou necessidades, que não se apresentem como argumento a uma
manifestação anterior tem, se lhe for pedido, de fundamentar porque tal manifestação
foi introduzida na afirmação.”140
Essas regras tácitas de comunicação não podem ser ignoradas. Elas são a essência da
comunicação humana e do que nela há de mais básico: há um falante, alguém que dirige um
136
Robert Alexy. Teoria da argumentação jurídica (São Paulo, Landy, 2005), p. 284.
137
Idem, ibid.
138
Idem, ibid.
139
Idem, ibid.
140
Idem, ibid.
56
discurso; há uma audiência, que pode ser uma ou mais pessoas; há um discurso e as regras de
interpelação do discursante. Não importa se o discurso é declamado ou escrito, essas regras
servem como baliza sociolinguística dentro das quais a permuta de signos circula e a
comunicação acontece. A intencionalidade do autor que institui o discurso e a intencionalidade
do leitor que ‘acredita’ no discurso e todos os demais elementos (o tema, a narrativa) criam um
primeiro sentido que não pode ser simplesmente varrido para fora da hermenêutica em nome
de uma anarquia pseudolibertadora que faz desaparecer em suas águas turbilhonosas tudo o que
poderia constituir-se como sentido de um discurso.
Mas donde vem essa epistemologia que faz o sentido do texto desaparecer? Ela provém
de uma interpretação radical da linguística de Saussure e das ideias de Wittgenstein, pelas quais
a linguagem se resolve por si mesma sem ajuda do falante humano. Grosso modo, a sintaxe
sozinha produz a semântica ou o sentido, já que o contexto, a atividade em que está imersa a
comunicação, revela o sentido das palavras142. As palavras ou as expressões linguísticas são
peças de um jogo que se jogam sozinhas: “nenhuma palavra ou ato pode ser verdadeiro ou falso
e ninguém é responsável pelas consequências de qualquer palavra ou ato porque não há autores.
Ninguém está jogando, todos são jogados.”143. Nem mesmo a comunidade onde transcorre esse
jogo tem papel preponderante; ela também é determinada pela história de relações que se
constroem a seu despeito, por sistemas discursivos que visam o controle institucional, como
veremos mais adiante na discussão com Foucault.
141
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy, p. 15.
142
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 2.
143
Dorothea E. Olkowiski. Postmodern philosophy and scientific turn, p. xx.
57
peculiar hermenêutica criativa. Entretanto, não atentam para o fato de que recaem em velhos
vícios, por exemplo, aquele velho hábito epistemológico dos modernos, condenado, por ex.,
por L. Wittgenstein: a generalização indevida dos fenômenos linguísticos, “as dietas
unilaterais”144, que os faz esquecerem do fato fundamental de que não existe uma linguagem
em geral, apenas jogos de linguagem e se são jogos é impossível que se joguem sem que sejam
seguidas regras, Não podemos simplesmente descartá-las e ainda pensar que preservamos o a
comunicação e sua inteligibilidade. Ora, se não existe sentido transcendental, o sentido sendo
imanente e sendo construído pelos próprios utentes da linguagem, a única forma de construir
esse sentido são as regras e o seguimento delas. Os pós-modernos cometem muitos equívocos
epistemológicos aqui, mas o principal é que não aplicam os princípios básicos da linguística a
seu próprio discurso. Mutatis mutandis, quando universalizam seu próprio discurso e proíbem
aos outros de fazerem o mesmo, agem como os neopositivistas, quando esses rejeitam a
metafísica por meio da ‘metafísica da rejeição da metafísica’, ou então, criticam os discursos
universais através do ‘discurso universal da rejeição dos discursos universais’. Pode-se até
concordar com eles de que em certas circunstâncias as práticas discursivas funcionam de uma
maneira política, reforçando a terceira significação. Contudo, isto não é tudo o que constitui um
texto.
Ora, para o que não é política (porque não posso dizer que tudo é política), existe a
hermenêutica, os estudos filológicos, históricos e arqueológicos, etc. O pessimismo
hermenêutico pós-moderno é injustificado em face de tantas ciências auxiliares que pelejam
pelo esclarecimento tendo como objetivo a interpretação. Parece que segundo seu ponto de vista
a sociedade deveria destituir essas áreas do conhecimento já que seus esforços são vãos e até
parciais, seja por ser impossível superar o abismo semântico interposto entre nós e os homens
na Antiguidade Clássica, por exemplo; seja porque o objetivo do discurso é basicamente
enganar e iludir. Não se pode deixar de reconhecer que houve maus exemplos entre aqueles que
tentaram fazer essa transposição do homem de hoje para o mundo do texto no passado;
estudiosos que manipularam os fatos; teses ardilosamente ocultaram informações que não as
favoreciam. Mas, será isso razão suficiente para destituir boa parte da cultura erudita e artística
humana? E o que colocam em seu lugar, se não parecem ser capazes de oferecer outra
alternativa senão o nonsense ou o silêncio? Como já foi observado o principal impulso estético
e epistemológico pós-moderno é um impulso ao silêncio e esse constituído por duas naturezas
144
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 593.
58
145
Hans Bertens. “The Postmodern Weltanschauung and its relation to Modernism: An introductory survey”.
Joseph Natoli; Linda Hutcheon. A Postmodern reader (New York: State University of New York Press, 1993), p.
43.
146
Andrew K. M. Adam. What is the postmodern biblical criticism (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1995), p.
19.
147
François-Xavier Amherdt. “Apresentação”. in Paul Ricoeur. A hermenêutica bíblica (São Paulo: Loyola, 2006),
p. 53.
59
paradoxalmente, por causa de sua polissemia e porque sempre “ultrapassa o horizonte subjetivo
da interpretação”148, a obra de gênio torna-se universal e, por esse motivo, é possível ter dela
uma interpretação compartilhável.
Heidegger também esteve preocupado com a diferença (se bem que outra diferença) e
provavelmente deve ter sido a primeira inspiração da desconstrução de Derrida. Foi da boca do
filósofo da Floresta Negra que saiu o primeiro brado de revolta contra a ocultação do Ser e de
148
Hans-Georg Gadamer. Verdade e Método (Petrópolis: Vozes, 1999), p. 18.
149
Terry Eagleton. Después de la teoría (Barcelona: Cultura Libre, 2003), p. 113.
150
Jacques Derrida. A escritura e a diferença (São Paulo: Perspectiva, 1995), p. 208.
60
sua verdade. Desde Platão e antes dele (Tales de Mileto e os outros pré-socráticos preocupados
com a physis) a filosofia tem se ocupado em falar dos entes quando pensa em falar do Ser. E
quando menos fala de Deus entendendo-se ateia, mas fala de Deus enquanto ente (já que a Deus
ela está referida, embora não o reconheça), no que que é duplamente equívoca, quando O nega
e em negá-Lo fazendo-O de forma errada. A superação da metafísica onto-ontológica só
ocorrerá na medida em que for ressaltada a diferença entre os entes e o Ser151, ou seja, em
ascender à completude do Ser no fundo de sua vacuidade152, porque o Ser é um fundamento e
não um ente entre outros.
Heidegger, portanto, está muito longe de ser niilista, porque apesar da recepção
acolhedora ao pensamento de Nietzsche (que é reconhecidamente um niilista convicto), o
niilismo para ele é também uma grande promessa, prenúncio de uma nova era, à medida que é
afastado todo o lixo acumulado por dois milênios de onto-metafísica153. Despir o Ser de falsos
ornamentos e proclamar a morte dos entes, não é de modo algum uma glorificação do nada,
mas daquilo que daí emerge, pois para ele:
O nada não é nunca nada, tampouco é algo no sentido de um objeto; é o Ser mesmo,
de cuja verdade se apropria o homem quando supera a si mesmo como sujeito, isto,
quando já não se representa o ente como objeto. [Em suma], o que quer colocar em
relevo é o Ser como não-ente, o Ser como ontologicamente diferente do ente 154.
Mas, como o próprio Heidegger reconhece é muito difícil falar do Ser sem recorrer ao
ente. Mas se todas as línguas ocidentais já estão tão impregnadas de metafísica, marcadas tão
indelevelmente pelo pensamento onto-teológico, tem muita pertinência a pergunta se seria
mesmo impossível falar do Ser sem falar dos entes? Se existem outras possibilidades de
expressar o “silêncio do Ser”?155 Com efeito, todas as vezes que usamos o verbo de ligação
‘ser’ a relação do Ser com o ente já está pressuposta, ainda que negada. E ainda quando
completamente ausente, como na afirmação: “Deus não existe!’, em certo sentido, está aí “a
metafísica da presença”, porque a referência da afirmação é Aquele que nunca se ausenta.
Heidegger quer construir um novo caminho para falar do Ser sem recorrer à onto-teologia.
Perseguindo esse propósito procura fazer com que a própria existência fale do Ser
151
Martin Heidegger. Identity and difference (New York: Harper and Row, 1969), p. 62.
152
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 53.
153
Gianni Vattimo. El fin de la modernidad. Nihilismo y hermenéutica en la cultura posmoderna (Barcelona:
Gedisa, 1987), p. 106.
154
Modesto B. Villalibre. Superación de la metafísica en Martin Heidegger (Oviedo, España: Universidad de
Oviedo, 1991), p. 142.
155
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 73.
61
Heidegger pretende falar do Ser indiretamente a partir da existência que é seu espelho.
Contudo, para Derrida o filósofo de Marburg ainda não atingira a questão com a radicalidade
necessária, porque para se falar da experiência fundamental do Dasein é necessário fazer uso
de uma linguagem, de modo que é impossível concretizar o projeto heideggeriano por meio de
um discurso estritamente filosófico. Para Derrida, a linguagem estaria inteiramente
contaminada pelas concepções metafísicas. É preciso, portanto, dar um passo atrás em relação
ao lugar em que Heidegger se colocou, e no que F. Saussure vem em seu socorro. O insight
fundamental saussuriano de que a linguagem não é representação do mundo, mas um sistema
arbitrário e diferencial de símbolos que, como convenção social, do ponto de vista da semântica,
não tem nenhuma âncora metafísica. Nenhum signo tem relação de essência com aquilo que
156
Martin Heidegger. A caminho da linguagem (Petrópolis, RJ/Bragança Paulista, SP: Vozes/Editora Universitária
São Francisco, 2003), p. 199.
157
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 47.
62
significa, embora tenhamos essa impressão quando falamos nossa língua materna (porque essa
associação foi repetida milhares de vezes em nossa vida); e é diferencial porque da perspectiva
da sintaxe, o significado dos signos decorre de sua estrutura sistêmica composta por dicotomias
ou pares de oposições binárias: mente/corpo, bem/mal, homem/mulher, branco/negro,
cidade/campo, etc., uma parte do significado de um desses pares está em sua contraparte
binária158. Uma parte do significado das palavras está em um elemento que ao mesmo tempo
está ausente e presente; por exemplo, uma parte da significação de mal está na palavra bem,
que embora esteja ausente, de algum modo também está presente159. Derrida leva Saussure às
últimas consequências concluindo com base nesse argumento que o pensamento logocêntrico
constrói-se como aporia fundamental, ao a pergunta transcendental sobre as suas condições de
possibilidade ser respondida da seguinte forma: “essas condições de possibilidade incluem
precisamente o que a presença, a fala e o sentido tentam excluir [porque se constitui como
sistema de oposições binárias]”, de sorte que “as condições de possibilidade do logocentrismo
também são suas condições de impossibilidade”160.
Embora Saussure seja um importante suporte teórico ele ainda tem um vício de princípio
que o impede de superar completamente a “metafísica da presença” de Heidegger e
predecessores, que se apresenta em sua linguística por ainda permanecer ligada à metafísica da
presença por dois motivos: (a) está ainda implícita a concepção hierárquica de que os objetos
são superiores ao signo; (b) o conceito de signo é entendido de modo estático, fixo; servindo,
assim, de ancoragem à metafísica. Derrida chama-o de “significado transcendental, um conceito
independente da língua” 161 , que contraria sua afirmação fundamental de que a relação do
significante com o significado é arbitrária e convencional. Assim, em Saussure, o processo de
significação é de fato anti-metafísico, mas o resultado, não. Ele pensa a linguagem pela
perspectiva de uma inocência que ela não possui. Em suma, embora tenha demonstrado a
autonomia dos processos linguísticos e sua auto-referencialidade, inadvertidamente, esqueceu
em seu interior um resíduo metafísico que é esse significado, esse conceito que é resultado da
significação.
158
Jacques Derrida. “A diferença”, p. 42.
159
Cf. Jacques Derrida. “Semiologia e Gramatologia”. Entrevista a Julia Kristeva. In Jacques Derrida. Posições
(Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2001), p. 24.
160
Simon Critchley. “The ethics of deconstruction: the argument”. In Zynep Direk; Leonard Lawlor. Jacques
Derrida. Critical assessments of leading philosophers, vol. II (London: Routledge, 2002), p. 291.
161
Jacques Derrida. “Semiologia e Gramatologia”, p. 26.
63
A série de argumentos propostos por Derrida contra essa ideia começa com (a) a rejeição
da própria relação significante-significado porque o significado também é significante de outro
significado e assim sucessivamente 162 . Essa é uma cadeia sem fim e sem começo, cujos
elementos estão se reciclando continuamente. Saussure não ignora esse dinamismo da
linguagem, mas pensa-o de forma estrutural: a linguagem evolui em bloco. Derrida aponta a
necessidade de se turvar essa clareza processual e para descontrui-lo começa por apontar para
um excesso natural entre o significante e o significado. Ele rejeita com Saussure que exista
alguma semelhança essencial entre o significante e o significado, uma relação onomatopeica,
por exemplo, em que o significante, ou o som da palavra, se pareça com aquilo que ela quer
representar163. Contudo, tampouco existe uma diferença tão marcada como Saussure quer fazer
crer. Derrida cria uma terceira opção, a que chama de diferança (differance) para designar uma
diferença que não é pura, que é portadora de um espaçamento, de uma demora, que turva o
conceito. A diferença fundamental entre o significante e o significado não é pura. Entre eles há
um espaçamento, uma demora, que faz aí de entremeio se imiscuírem outros significados.
162
Ibid., p. 26.
163
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 83.
164
Jacques Derrida. Posições, p. 32.
165
Idem, ibid.
64
Diferir, portanto, é “esse movimento (ativo) (da produção da diferença) sem origem”170,
que não poderia ser chamado meramente de diferenciação, porque aí se perderia a significação
da temporização, do desvio. Para Derrida, no princípio era a linguagem, mas uma linguagem
com logos quebrado, sobre o qual é impossível fundar uma ontologia, porque a lógica de seu
funcionamento (da linguagem) oscila sobre a areia movediça de um mundo humano perturbado
por inúmeras ocasionalidades responsáveis por esses desvios sobre os quais nada se pode dizer
a priori, exceto que não são a priori. Ou seja, existem diferenças e não uma diferença, “forças
e diferenças no plural”171.
166
Ferdinand Saussure, Curso de Linguística Geral, p. 83.
167
Derridex. Index des termes de l’œuvre de Jacques Derrida. Différance.
168
Jacques Derrida, “A diferança”, p. 53.
169
Derridex. Index des termes de l’œuvre de Jacques Derrida. Différance.
170
Jacques Derrida. “A diferança”, p. 45.
171
Geoffrey Bennington. Jacques Derrida, p. 84.
65
O próprio Derrida reconhece que falar de diferença no singular reporta em alguma medida
a algumas perguntas legítimas dentro do discurso: “o que difere? Quem difere? O que é a
diferença?”. Contudo, não pode responder a nenhuma delas, porque fazendo-o estaria a
reconhecer a derivação do conceito. Ou seja...
Se, de fato, aceitássemos a forma da questão, no seu sentido e na sua sintaxe ("o que
é", "o que é quem", "quem é quem"...) seria necessário admitir que a diferança é
derivada, acidental, dominada e comandada a partir do lugar de um ente-presente,
podendo este ser qualquer coisa, uma forma, um estado, um poder no mundo, aos
quais seria possível atribuir qualquer espécie de nome, um quê ou um ente-presente
como sujeito, um quem. Neste último caso, particularmente, admitir-se-ia
implicitamente que esse ente-presente, por exemplo, como ente-presente a si 172.
172
Ibid., p. 47.
173
“Deus – Mundo, Eternidade – Tempo, Ser – Vir a ser, Repouso – Movimento, Permanência – Mudança,
Presença – Ausência, Um – Muitos, Sagrado – Profano, Ordem – Caos, Significado – Absurdo, Vida – Morte,
Infinito – Finito, Transcendente – Imanente, Identidade – Diferença, Afirmação – Negação, Verdade – Erro,
Realidade – Ilusão, Certeza – Incerteza, Claridade – Confusão, Sanidade – Loucura, Luz – Trevas, Visão –
Cegueira, Invisível – Visível, Espírito – Corpo, Espiritual – Carnal, Mente – Matéria, Bem – Mal, Inocência –
Culpa, Pureza – Imundície, Próprio – impróprio, [...]”. Mark C. Taylor. Erring: a postmodern A/ Theology, p. 8.
174
Jacques Derrida. “A diferença”, p. 44.
66
O erro de Derrida foi ignorar que esses milênios de desvios metafísicos constatados por
Heidegger não estão aí por acaso e nem refletem uma decadência do pensamento pela falta de
um método próprio para limpar o assoreado solo da filosofia, método pelo qual teriam que
esperar até o século XX, quando do nascimento da fenomenologia. Sofremos de uma compulsão
à metafísica, que segundo a definição de Wittgenstein é o desejo irrefreável de ir “além do que
sabemos”175 ou do que podemos saber. Nossa linguagem está repleta dos sinais dessa moléstia,
porque no momento em que decidimos não crer mais em Deus, como os modernos e iluministas
fizeram e em que persistem os pós-modernos, estamos fadados a constituir outros deuses ou
ídolos (nem que esses sejamos nós mesmos), pois não somos humanos sem acreditar 176 .
Nietzsche vai ficar esperando na tumba o dia quando o homem se livrará das “sombras de
Deus”, quando ele houver finalmente se naturalizado por completo177, ou seja, dando as costas
para o discurso metafísico e teológico e se confrontar com sua natureza mais crua e humana.
Não há nada mais humano do que crer em Deus e não nada menos humano do que a
naturalização de nossas ações e da realidade; deveríamos cair de quatro e não levantar mais
para chegar a isso. O que explica o fato de a metafísica haver dominado o pensamento humano
por tanto tempo se não for porque isso é parte intrínseca do ser humano? Esse é o substrato
rochoso onde estão ancorados todos os sistemas linguísticos, dos mais avançados aos mais
primitivos.
175
Ludwig Wittgenstein. Das Blaue Buch und Eine Philosophische Betrachtung (R. Rhees (org.), Schriften 5,
Frankfut am Main, Suhrkamp Verlag, 1982), p. 45.
176
Sto. Agostinho. Confissões (São Paulo: Abril Cultural, 1980), Livro I, capítulo 1.
177
Friedrich Nietzsche. “A gaia ciência”. In Obras incompletas (São Paulo: Nova Cultural, 1999), p. 184.
67
significado dependa apenas dela mesma e de sua condição originária; em suma, todas as
verdades são relativas ao sistema no interior do qual operam e não há nada originário nele,
nenhum arché revelador. A conclusão de Derrida, portanto, faz eco ao niilismo nietzschiano,
pois com a dissolução da verdade-arché da onto-teologia os valores que aí se fundamentam
também desaparecem, dando lugar a “vertiginosas potencialidades [até então] bloqueadas pelo
valor supremo Deus” 178 , pois somente libertos dessas amarras os valores podem tornar-se
geradores de novos valores, “por meio de indefinidos processos”179. Contudo, Derrida, ou quem
quer que seja de seu grupo, deu um passo sequer além do lugar onde Nietzsche deixara a
Filosofia europeia quando de sua morte. Os valores cristãos se perderam e nenhum outro foi
criado. Vaga-se à deriva: “perdemos o estímulo principal; até agora foi tudo em vão”180. A pós-
modernidade como herdeira da transvaloração de Nietzsche até agora ficou só na promessa.
Nem apareceram “os processos indefinidos” nem deram em alguma coisa de “vertiginosas
potencialidades”. Os valores pós-modernos simplesmente recuaram rumo a tempos pré-tribais
(porque os primitivos também têm metafísica), onde o afeto é o principal argumento para sua
manutenção; ou então estamos criando pequenas metafísicas grupais para justificar nossas
ações.
Mas estamos nos adiantando; deixemos esta discussão para mais pra frente quando
pusermos em tela a questão ético-política. Mantendo-nos no plano conceitual, embora já
estejamos discutindo essa questão, é hora de analisar como Foucault critica a verdade objetiva
de Aristóteles entendendo-a como exercício de poder.
178
Gianni Vattimo. El fin de la modernidad, p. 25.
179
Idem, ibid.
180
Friedrich Nietzsche. “Niilismo”. In Obras incompletas, p. 430.
181
Michel Foucault. A arqueologia do saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), p. 20.
68
relação sujeito-objeto por ele suposto. Foucault observa que a relação entre o sujeito e o objeto
não é algo dado desde sempre, mas uma construção social, decorrente de condições históricas,
estabelecidas por “modos de objetivação” e “modos de subjetivação”182. Tratando-se, portanto,
de sujeitos e objetos cambiantes, que se modificam de acordo com as instituições que os
operacionalizam, no interior de um projeto de poder e situação históricas específicas. A verdade
por correspondência neste caso pressupõe um discurso que descreve uma relação desencarnada
entre um sujeito e um objeto, a abstração irreal que tem como referência uma realidade social,
permeada por outras relações simultâneas e concorrentes ínsitas em uma complexa gramática
de poder. Para ele, a assim chamada relação sujeito-objeto, é uma abstração, é uma ilusão
produzida por várias linhas discursivas, por prescrições veritativas, que impõem modos de
subjetivação e objetivação, consideradas adequadas pela instituição que é a guardiã dessas
verdades. Essas verdades são operacionais e exercem por isso um papel regulador que
possibilita a manutenção de um dado sistema de conhecimento, que, por sua vez, é uma técnica
de controle social. São aquilo que Foucault chama de “jogos de verdade”183, no interior dos
quais são usados vários tipos de técnicas veritativas, nas mais diversas áreas do conhecimento:
psicologia, psiquiatria, direito, sexualidade, história, etc. Em suma, a objetividade é apenas um
disfarce que oculta processos discursivos que servem a certas atividades e certas operações para
a manutenção do poder.
182
Michel Foucault. Dits et écrits, IV (Paris: Gallimard, 1994), p. 632.
183
Michel Foucault. Dits et écrits, p. 533.
184
Michel Foucault. A arqueologia do saber, p. 49.
69
A mesma tese permeia uma obra em que Foucault põe em discussão a verdade jurídica,
A verdade e as formas jurídicas, onde recapitula a evolução da verdade no contexto jurídico,
no modo como as penas evoluíram de castigos corporais e expiatórios para a supressão da vida;
do castigo como privação da liberdade à submissão a trabalhos forçados e a reflexão racional
sobre as consequências das ações delituosas187. Nesse contexto a transgressão como pecado
desaparece para dar lugar ao delito, que não é um conceito religioso, mas racional; é
transgressão que é paga por meio de um serviço à sociedade ofendida (trabalhos forçados) e
não com a expiação (sofrimento físico) para sanar uma falta de natureza religiosa. Não houve
humanização da pena, apenas surgiu um processo de instrumentalização dos presidiários pelo
sistema capitalista188, por meio da implantação do sistema de vigilância panóptico, idealizado
pelo filósofo empirista inglês Jeremy Bentham, que em maior ou menor grau foi adotado pelo
mundo euro-americano189.
185
Idem, ibid.
186
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 54.
187
Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997).
188
Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas (Rio de Janeiro: Nau editora, 2002).
189
Jereny Bentham. O panóptico (Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2008).
70
É interessante que Foucault use sua prodigiosa capacidade de análise e de pesquisa para
concluir que o processo de construção das ciências humanas é uma ordenação que mascara a
irracionalidade de seus objetos, sem haver, contudo, uma ordenação prévia, uma busca pela
estrutura do discurso ou de ‘leis’ que secretamente coordenam as inflexões do discurso ao longo
da história dos objetos; porque ele rejeita o estruturalismo190. A única lógica do discurso é a
lógica do poder, que apenas toma ocasião da história para dar-se a si mesmo maior
plausibilidade. Todas as inflexões do discurso são como teias que se entrecruzam infinitamente
em todas as direções, revelando sua real irracionalidade. Os objetos da psiquiatria, por exemplo,
não são definidos apenas por essa ciência, mas “por textos jurídicos, por expressões literárias,
por reflexões filosóficas, por decisões políticas e por opiniões comuns que são parte integrante
da formação discursiva”191. Foucault é hobbesiano; o discurso que instituiu esses objetos são
maquinaria autônoma que funciona movida pelo instinto de autopreservação dessas instituições,
ou seja, não têm sujeito e nem referência192; dimanam da necessidade do exercício de uma
função e seu significado decorre do conjunto de regras que se auto-instituem. Nisso segue
também o modelo linguístico de Saussure, mas também difere dele à medida que rejeita uma
lógica que precede sua instituição. A estrutura vai sendo montada à medida que se necessita
enquadrar novos objetos; ademais, ela nunca está acabada porque os objetos nunca cessam de
nascer e morrer em seu seio. Devido à essa percepção, a análise de Foucault está atravessada
por elementos híbridos provenientes da Linguística e da História, mas que não chegam a definir-
se pela metodologia ou pelo objeto como disciplina no campo das ciências humanas.
190
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 233.
191
Gilles Deleuze. Foucault (Barcelona: Paidos Editora, 1987), p. 45.
192
Gilles Deleuze. Foucault, p. 43.
193
Idem, Ibid.
71
desse estágio inicial; enfim, só o futuro dirá. Em sua atual condição, é como se tivessem
formulado uma disciplina que é mais um antídoto para as ilusões do pensamento moderno do
que um campo teórico capaz de gerar um conhecimento positivo, o que provavelmente faz dela
um conhecimento sem outra expectativa senão a esterilidade, pois será incapaz de deixar
descendentes194.
O que foi falado linhas acima sobre o projeto crítico de Barthes vale também para
Foucault, ou seja, sua crítica serve para desnudar as motivações ideológicas do discurso de dada
ciência, portanto, é uma abordagem epistemológica segunda. Como ele mesmo diz: “estudando
a formação dos objetos, os campos nos quais emergem e se especificam, estudando também as
condições de apropriação do discurso, depara-se com a análise das formações sociais”195. Em
resumo, as formulações teóricas de Foucault padecem da mesma moléstia de seu conterrâneo
Barthes, porque, como nesse também naquele, o que chama a atenção não é a formação do
conceito, mas a distorção do conceito; de sorte que sua crítica atinge a psiquiatria apenas em
um segundo momento epistemológico, quando seu objeto já está distorcido pelos interesses do
sistema do sistema capitalista. Isso induz seus leitores a pensar que ela se reduz a essas
distorções, o que não é verdade. A cooptação ideológica da psiquiatria sempre existiu e subsiste
até hoje (como poderemos perceber nas definições da normatividade sexual a ser discutida mais
adiante), mas a psiquiatria não é só isso. O que Foucault consegue com sua crítica é substituir
uma ilusão por outra, a saber, retira a ilusão de que as formulações da psiquiatria são uma
verdade completamente objetiva, substituindo-a por outra ilusão, a de que a psiquiatria não tem
nenhuma objetividade real, devendo a ilusória ser desconstruída, dado que sua intenção é
marginalizar os sujeitos que estuda e classifica.
194
Michel Foucault. A arqueologia do saber, p. 234.
195
Ibid., p. 235.
72
uma operação positiva que vise a construção de uma ciência, exceto se eu pensar a partir de
uma generalização: ‘todo discurso científico distorce os objetos de que trata’. Mas, se o declaro,
adoto a posição do sujeito transcendental que crítico e invalido meu próprio projeto crítico,
coisa que Foucault sagazmente não faz, ao menos não positivamente. Contudo, deixar como
legado uma ciência em estado de esboço é um ardil que se sustenta apenas porque depois de
atirar todas as pedras no telhado dos outros ele pode afirmar: ‘não me atirem pedras, eu não
tenho teoria’.
O que fica, de resto, óbvio, é que Foucault coloca todos os homens na prisão do discurso,
retrata-os como coagidos pelas malhas de suas regras, mas dá-se a si mesmo uma rara liberdade,
e não menos rara capacidade de analisá-lo e perceber o que ninguém mais vê. Não seria esse o
álibi do sujeito transcendental tão difamado pela Pós-modernidade? O fato de Foucault não
chegar a concluir sua análise com um capítulo positivo e não se sentir confiante para arriscar
uma qualificação para sua teoria, significa que não se trate de uma teoria? Parece que Foucault
fica no meio do caminho, eis o motivo porque chama os resultados de sua reflexão de “teoria
envolvente”198. Contudo, a que conclusão nos leva a descoberta das astúcias do discurso? A
expropriação do sujeito de sua soberania, como Foucault sugere? Não me parece. Um sujeito
196
Ibid., p. 236.
197
Idem, ibid.
198
Ibid., p. 235.
73
que é capaz de perceber os limites de sua soberania é tanto mais soberano quanto mais é capaz
de fazê-lo.
199
Hans-George Gadamer. Verdade e método, p. 17.
200
Idem, ibid.
201
Jacques Bouveresse. “Herméneutique et linguistique” (Berlin: Walter de Gruyter, 1981), p. 118.
202
Idem, ibid.
203
Richard Palmer, Hermenêutica (Lisboa: Edições 70, 1985), p. 66.
74
não dá a devida atenção à historicidade do texto nem ao que ele diz, por estar mais preocupada
com hermenêutica do homem. Em síntese, para Betti, Gadamer “perdeu-se em uma
subjetividade existencial sem quaisquer regras”204. Mas o discípulo de Heidegger não aceita a
invectiva e responde afirmando que sua hermenêutica não pode satisfazer as expectativas de
Betti porque o que lhe interessa é o que há de comum em todas as hermenêuticas específicas e
não uma em especial, ou seja, sua intenção não era “desenvolver um sistema de regras que
conseguisse descrever o procedimento metodológico das ciências do espírito, ou até guia-
las.”205; pelo contrário, o que lhe interessa é a análise fenomenológica da experiência estética:
“o que está em questão não é o que fazemos, ou o que devíamos fazer, mas o que, ultrapassando
nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece”206.
Quanto a Foucault, sua investigação tem importância à medida que expõe os mecanismos
disciplinadores dos sujeitos e dos objetos, revelando os limites da imparcialidade do discurso e
de sua objetividade, mas peca por negar qualquer legitimidade aos empreendimentos racionais,
recomendando o silêncio à maioria das ciências contemporâneas, porque, como discurso, já
estão de antemão condenadas à sujeição aos interesses políticos. Desse modo trocamos uma
visão a priori por outra, a preconceituosa e marginalizadora de certos grupos pela
preconceituosa e marginalizadora de certas instituições; a total confiança nas instituições que
produzem essas verdades pela total desconfiança. Se na maior parte do tempo é isso mesmo que
ocorre, conforme demonstrou T. Kuhn, no período de transição entre um paradigma e outro, a
204
Ibid., p. 67.
205
Hans-George Gadamer. Verdade e método, p. 14.
206
Idem, Ibid.
75
O recurso aos fatos como cavalo de batalha para a mais recente eliminação da metafísica
tem sua raiz histórica no empirismo de David Hume. Esse notório cético escocês, empirista,
contemporâneo dos iluministas franceses, mas que, diferente de Locke, seu conterrâneo e
predecessor, não concedeu aos fatos aquela mesma dignidade epistêmica, por não concordar
em chamá-los de fundamentos da certeza. Segundo Hume só existe dois tipos de ciência: (a) a
ciência dos fatos, empíricas e contingentes, para cuja descrição é utilizada uma linguagem
sintética e por isso a posteriori; (b) as ciências das ideias, formais e necessárias, tais como a
matemática e a lógica, para as quais se utiliza uma linguagem analítica e portanto a priori207;
não havendo nem sinal de ciência moral, psicológica, metafísica, etc. Esses dois grupos de
ciências também não são lá grande coisa para ele porque as primeiras são prejudicadas pela
psicologia humana, responsável pela ideia de causa e efeito; e as segundas não passam de mera
tautologia. Para concluir, existe um abismo tão grande entre elas que é impossível haver
qualquer cooperação. Contudo o ácido humeano não conseguiu corroer a ciência newtoniana, a
qual veio a servir de modelo para a reação posterior de I. Kant.
Além de Hume houve naquela época toda uma estirpe de filósofos iluministas mais ou
menos materialistas (Holbach, La Mettrie, Diderot, por exemplo) que procuraram dar combate
às ideias metafísicas de Descartes, Espinosa e Leibniz, com relativo sucesso. No século XIX a
tradição empirista fortalece-se ainda mais com a proposta de A. Comte de aproximar as ciências
do espírito das ciências da natureza, emulando-lhe o método e, consequentemente, levando a
verdade-fato a ser entronizada como fundamento último da realidade e do mundo, ou seja,
assentando o fundamento do conhecimento verdadeiro sobre uma nova metafísica, a da ciência.
Toda essa seda rasgada pelas descobertas científicas do século XVII não tardarão em fazer
surgir um de seus críticos mais aguerridos que também é um dos pais fundadores da Pós-
modernidade, Friedrich Nietzsche, o primeiro a torcer o nariz para mais essa ilusão moderna,
chamando a atenção da intelligentsia europeia para o fato de que os fatos são tão ilusórios
quanto as execradas entidades metafísicas dos racionalistas. Ele afirmava: “não existem fatos,
apenas interpretações”208, ou seja, qualquer fato não chegaria a sê-lo sem que primeiro fosse
207
Anthony Flew. A dictionary of philosophy (New York: St. Martin’s Press, 1984), p. 156.
208
Friedrich Nietzsche, The Will to Power (New York: Random House, 1967), p. 481.
76
interpretado, já que é uma interpretação que opera sua transformação de fenômeno em fato.
Nietzsche foi a primeira voz pós-moderna perdida no final do século XIX; contudo, os pós-
modernos contemporâneos não foram além dele, apesar do esforço que fazem para parecer
atualizados, adotando a linguagem científica, por exemplo.
Imre Lakatos, por sua vez, rejeita a ideia de “racionalidade instantânea”212 implícita no
conceito de observação ou experimentação. Qualquer tipo de experimento já está impregnado
teoricamente desde seu início, pois nenhum fato é interpretado isoladamente; os fatos são
explicados por teorias explanatórias 213 . Quando há conflito entre um fato e uma teoria, na
verdade, o que ocorre é o confronto entre uma teoria explanatória e uma teoria mais geral, que
ele chama de interpretativa. Experimentar, portanto, é comparar os resultados de uma teoria
mais limitada com uma mais ampla que a abrange. Por isso normalmente não existe uma
refutação de teorias quando fatos entram em conflito com elas. Existem muitos motivos que
podem ser evocados para explicar o ocorrido. Ademais, o que normalmente ocorre é que os
209
Paul Feyerabend. Contra o método (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977), p. 17.
210
Paul Feyerabend. Contra o método, p. 17.
211
Idem, Ibid., p. 21.
212
Imre Lakatos. “O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica”. In Imre Lakatos; Alan
Musgrave. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento (São Paulo, Cultrix, 1979), p. 190.
213
Ibid., p. 158.
77
fenômenos que não se enquadram são descartados214, pois não têm serventia: não podem ser
lidos ou interpretados. Discordando de Popper e de sua teoria falsibilista, Lakatos conclui,
portanto, que “as experiências simplesmente não derrubam teorias”215.
Mesmo uma função fisiológica básica como enxergar, resultante da percepção de um dado
sensorial, acaba significando da mesma forma que as palavras têm significado no interior de
uma linguagem. Kant no final do século XVIII já havia percebido isto ampliando a função da
mente na constituição da percepção, posto que todo objeto ao ser visto é instantaneamente
enquadrado no espaço e no tempo e nas categorias. Psicólogos que estudam a percepção
humana concordam (Gestalt). Ninguém vê objetos isolados. Bruner, por exemplo, reconhece o
acerto do entendimento de nossa percepção como sistêmica: “dada a presença de certas
evidências de forma, tamanho e textura, inferimos que o objeto diante de nós é uma maçã, ergo,
pode ser comida, cortada com uma faca, relacionada com outras frutas e classificada ou não
entre elas” 217 . A conclusão de Hanson, acompanhando Wittgenstein, é a de que “o
conhecimento do mundo não é um monte de pedras, paus, manchas de cor e ruídos, antes um
sistema de proposições”218, e essa é muito plausível, apesar dos protestos dos realistas.
214
Ibid., p. 159.
215
Imre Lakatos. “O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica”, p. 159.
216
Norwood R. Hanson. Patrones de descubrimiento. Observación y Explicación (Madrid, Alianza Universidad,
1977), p. 91 e 92.
217
Floyd Merrell. Semiosis in the postmodern age, p. 80.
218
Norwood R. Hanson. Patrones de descubrimiento, p. 107.
78
219
Michela Massimi; Duncan Pritchard. “What is this thing called Science? A very brief philosophical overview”.
In Michela Massimi (org.). Philosophy and the sciences for everyone (Abingdon, U.K.: Routledge, 2015), p. 9.
220
Ludwig Wittgenstein. Da Certeza, # 105.
221
Thomas S. Kuhn. The structure of scientific revolutions (Chicago: The University of Chicago Press, 2012).
79
partículas”, equipamentos que demonstram por seu funcionamento a verdade das teorias
científicas que os fundamentam222 não podem simplesmente ser descartados como ilusionismos
teóricos.
Tudo o que é complicado pode ser reduzido a uma equação simplificadora que trabalha o
que lhe é mais fundamental, mas o que é complexo, não. O conceito de sistema complexo põe
222
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to
postmodernism (New York/London: Routledge, 1999), p. 51.
223
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex systems. Emergence, information and prediction
(Singapore: World Scientific Publishing, 2012), p. 1.
224
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex systems, p. 2.
225
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism. Understanding complex systems (London: Routledge, 1998), p.
4.
80
Por exemplo, pode-se fazer manipulação genética sem saber exatamente como os genes
interagem entre si e com o ambiente. Sabe-se que apenas 2 % do Genoma humano são genes
codificantes, cerca de 25 mil genes que irão resultar após a tradução na produção de proteínas;
o resto é DNA não codificante constituído por dois bilhões de elementos basais, chamados
nucleotídeos. Até pouco tempo se pensava que esta quantidade imensa de genes replicados, de
aminoácidos sinalizadores, empregados na expressão gênica “(liga-desliga genes)” 229 , não
tivessem nenhuma função, compreensão também reforçada por não existir uma
correspondência padrão na relação entre os genes e os nucleotídeos que compõem uma
sequência230. O DNA não codificante já foi chamado de lixo porque no início das pesquisas
com o GH utilizava-se a metáfora errada para entendê-lo; o GH não é uma estante de livros
com as proteínas funcionando como códigos que definem o fenótipo do indivíduo e o
funcionamento de seu corpo. Hoje sabe-se que muito provavelmente desempenhem papel
fundamental no processo adaptativo dos organismos, quando por causa de mudanças ambientais
precisam passar por mutações ou então quando, buscando essa mesma adaptação, o organismo
precisa ‘expressar’ o que já se apresenta em seu GH, mas aí permanece em estado latente. O
226
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism, p. x.
227
Ibid., p. 1.
228
Ibid., p.
229
Alice T. Ferreira. “A bioética e os avanços da Genética, da Biologia Celular e Molecular” . In Dalton L. P.
Ramos. Bioética. Pessoa e vida (São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2009), p. 193.
230
Alice T. Ferreira. “A bioética e os avanços da Genética, da Biologia Celular e Molecular”, p. 192.
81
genoma humano não é estante é um sistema complexo em permanente mutação à medida que
conversa com o ambiente onde o organismo do qual é regulador vive. Se o genoma fosse fixo
como um códice poucos organismos teriam sobrevivido sobre a superfície desse planeta, haja
vista as alterações climáticas pelas quais já passou o planeta.
Deu para suspeitar, não é? As teorias da ciência complexa têm feito a cabeça dos pós-
modernos. As razões não parecem ser difíceis de identificar, a principal delas é o fato de
confrontarem o modelo epistemológico da Modernidade, destituindo-o de todas as suas
qualidades e pretensões: a analiticidade, a previsibilidade, a racionalidade, etc. Pensadores pós-
modernos nunca perdem a oportunidade de exibir essas teorias como troféus de suas vitórias no
campo das ideias e até as usam de forma ostensiva e muitas vezes até irresponsável, porque são
apresentadas sem fundamentação e sem justificação; havendo até quem não veja nisso nada
senão impostura, porque servem-se desses conceitos para impressionar seus leitores. Como a
Pós-modernidade é um sistema político-ideológico com um braço ativista, essas alusões à
ciência também funcionam como propaganda. Há até um pouco de bravata, quando, por
231
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism, pp. 3-5.
232
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex system, p. 8.
82
exemplo, Latour se pergunta muito seriamente se não teria ensinado alguma coisa a Einstein no
campo das ciências se o tivesse conhecido233.
Michel Serres não fica atrás na pretensão enciclopédica, excessiva para alguns (a despeito
de suas qualidades intelectuais, com formação em Letras Clássicas, Matemática, Física e
Filosofia), porque seu objeto de estudo tem uma abrangência simplesmente estupefaciente.
Basta uma vista de olhos na relação de seus interesses para se ter uma ideia, aparecem aí em
um mesmo fôlego, a matemática, a história da ciência, a literatura, religião, teoria da
informação, física, etc.; e os mestres dessas áreas de todas as eras: Idade Antiga – a física de
Lucrécio, Modernidade – ele escreve exaustivamente sobre a ciência de Leibniz,
Contemporaneidade – também escreve sobre Zola e é considerado também excelente crítico
literário 234 . Serres constrói seus textos pulando de um para o outro, ignorando quaisquer
demarcações cronológicas: “o corte temporal equivale a uma expulsão dogmática” 235 ; ou
disciplinares: “eu defendo que existe tanta racionalidade em Montaigne e Velaine quanto na
Física e na Bioquímica”236. A pista para entender o que leva Michel Serres tão longe em sua
revolta contra a disciplina moderna e a associar elementos tão díspares quanto ao tempo e aos
campos do conhecimento foi a intuição de que a academia limita a ciência e a ciência
transformada em academia busca tão somente impor sua metodologia e seus resultados.
Quando, por exemplo, compara a física de Lucrécio com a de Leibniz ou Newton percebe que
a primeira está muito mais próxima da física contemporânea do que essas que estão situados
mais próximos dela na escala cronológica237. Para ele Lucrécio não falava de leis, nem buscava
uma lei geral “que fosse a garantia da estabilidade do universo”238 como faziam os modernos
citados; sua física tratava de “fluidos, de turbulência e do caos”239. Para os últimos uma vez que
Deus já não é uma hipótese relevante (Laplace) deve-se substitui-lo por outros legisladores que
são as leis da Física. Mas uma “legislação significa prisão – lei, ordem, estabilidade, prisão”240;.
Portanto, toda a produção de Serres dos primeiros anos tem como objetivo denunciar esse erro
233
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 5.
234
Michel Serres. Hermes. Literature, Science and Philosophy, Josué V. Harari; David F. Bell (eds.) (Baltimore,
ML: The John Hopkins University Press, 1982).
235
Michel Serres. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo. Conversas com Bruno Latour (Lisboa: Instituto
Piaget, 1996), p. 74.
236
Idem, ibid.
237
Ibid., p. 69.
238
Josué V. Harari; David F. Bell. “Journal à plesieurs voies”. In M. Serres. Hermes. Literature, Science and
Philosophy, p. vi e vii.
239
Michel Serres. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 69.
240
Idem, ibid.
83
da ciência moderna, sua ânsia pelo controle e o poder que se refletia nas teorias explicativas do
mundo.
Ilya Prigogine, físico-químico russo, tornou-se famoso por seus estudos sobre o tema241,
que são música aos ouvidos pós-modernos: “flutuações, emergência e indecidibilidade”242 –
não só aos ouvidos de Michel Serres. Prigogine é o grande responsável pelo nascimento do
interesse na capacidade criativa das forças caóticas. Segundo sua conclusão, os processos
caóticos são responsáveis pela ocorrência de novos fenômenos e de novas relações entre
fenômenos. Esses processos são capazes de gerar uma nova ordem, e, portanto, apontam para
“a fecundidade intrinsicamente incontrolável da aleatoriedade”243.
Tomando Prigogine como guia, Michel Serres faz uma interpretação ético-estética da
teoria do caos 244 , colocando-a em contraponto com o modo costumeiro da metodologia
científica, incluindo nessa consideração aquilo que a ciência não costuma tratar: valores. Com
efeito, para ele oculto no conceito de caos está uma grande gama de valores até agora
“injustamente negligenciados”: “abertura, anti-exclusivismo, multiperspectivismo,
heterogeneidade, indecidibilidade.”. Serres não foi o único a fazer esse tipo de apologia do caos
prigoginiano. O próprio título do livro de Prigogine, Ordem a partir do caos, tornou-se com o
tempo “uma metáfora básica da retórica pós-moderna” 245, transformando-se em mote na defesa
do anarquismo. E Serres não está sozinho, mas faz-se acompanhar com inúmeros outros
teóricos pós-modernos que compartilham a mesma opinião de que “a ciência é uma construção
social e linguística”: Derrida, Lacan, Latour, Aronowitz, Haraway, etc.
241
Ilya Prigogine; I. Stengers. Order out of chaos. Man’s dialogue with nature (Toronto/New York: Bantam,
1984).
242
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy (Ciudad de México: Universidad Autónoma de México,
1998), p. 21.
243
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy, p. 22.
244
Idem, ibid., p. 15.
245
Idem, ibid., p. 21.
246
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable nonsense, p. 6.
84
pela aplicação da topologia à psicanálise, no uso que Júlia Kristeva faz da matemática de
Kantor247. E de uma forma menos sutil e mais abusiva, há o caso de alguns cientistas pós-
modernos que Lyotard tomou sob sua proteção: René Thom e Benoit Maldebrot. O primeiro
pratica uma ciência híbrida bem ao gosto pós-moderno que mescla matemática, física,
antropologia e semiótica248; Maldebrot, outro explorador da teoria do caos, pretendeu inventar
uma ciência nova: a geo-metria, com que quer escrever um novo capítulo da história das
ciências da Terra, mas, infelizmente, só consegue repetir Comte, já que suas conclusões híbridas
o levam a concluir evolutivamente que a terra já foi plana (pré-moderna), já foi esférica
(moderna) e agora é fractal e infinita249.
Essas distorções do discurso científico não ocorrem por uma especial malignidade da
intelligentsia pós-moderna. Não se trata como se tem aventado, de “fraude consciente”,
“autoengano”250, ou de pura charlatanice praticada com o intuito de enganar os desavisados.
Ocorre que para os subversivos pós-modernos e sua ideologia todo-englobante, a distinção entre
a ciência e os outros discursos não é realmente importante. O primeiro impulso da pós-
modernidade é desmistificar a ciência, subverter seus campos de trabalho, relativizar os
resultados da experimentação. Notar como os cientistas pós-modernos são transdisciplinares
em um nível quase surreal, observar como lhes agrada o pensamento complexo que põe em
xeque o valor da experimentação e das teorias científicas. O que serve como pano de fundo para
essa forma de abordar a ciência é a crítica de Foucault sobre o saber-poder que contamina os
ambientes da ciência. Além disso, percebe-se que embora a intenção dos intelectuais pós-
modernos seja desmistificar a ciência, o que acaba ocorrendo com esse uso frouxo do discurso
científico é uma tentativa de automistificação. Talvez por razões históricas e por sua própria
fragilidade epistemológica a Pós-modernidade sinta essa necessidade; ou seja, passada a fase
crítica, tenha que justificar a que veio.
Como ficou evidente nas páginas precedentes, boa parte da gnosiologia pós-moderna não
resulta de razões propriamente epistemológicas, mas daquelas que originariamente são ético-
políticas, as quais, de acordo com muitos analistas, acabam tornando-se seu fundamento e não
247
Joanne Morra. Julia Kristeva 1966-1996. Aestetics, Politics, Ethics (Parallax, Jul-Sept, 1998), p. 117.
248
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to
Postmodernism (New York/London: Routledge, 1999), p. 99.
249
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”, p. 99.
250
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable nonsense, p. 6.
85
seu resultado, como era de se esperar em se tratando de epistemologia. Contudo, como se sabe,
não se pode inverter essa ordem, ou mesmo desconectar ética de epistemologia sem evitar a
impressão de superficialidade que essa nova ética carrega, porque assim a ética perde sua
capacidade de universalizar suas reivindicações e se torna um relativismo que não vê como
sustentar sua exigibilidade, decorrendo daí a questão se se trata ainda de uma ética251. É assim
engraçado que uma epistemologia pessimista produzida por uma série de contenções éticas
tenha produzido como resultado uma ética otimista ou um “otimismo moral”, como prefere
Joseph Margolis, em que a racionalidade é substituída pela razoabilidade e a autonomia e
objetividade do sujeito é destituída por “um pontual e contingente” consenso de grupo252.
Esse pessimismo epistemológico de viés ético teve como ponto de partida a crítica à
Modernidade, uma crítica dirigida à sociedade e a seus valores. Crítica conhecida e reconhecida
na atividade dos assim chamados mestres da suspeita da Europa central: Marx, Nietzsche e
Freud. Contudo, não é apropriado dizer que a crítica pós-moderna esteja definida por seus
limites teóricos; eles são os inspiradores, mas não os formuladores. Até porque em muitos
sentidos sua teoria já se acha envelhecida pelas mudanças sociais transcorridas desde então.
(1) O Capitalismo de produção que Marx analisou e criticou perdeu força no Ocidente, e
isto deu-se por vários motivos: (a) os conflitos de classe tendem a desaparecer porque os
processos de automação mudaram o perfil do trabalhador industrial em geral, diminuindo a
oferta de postos de trabalho pela indústria, o operariado fabril decresce, e também se
transforma; antes semianalfabeto, agora altamente qualificado, operarando máquinas
computadorizadas; antigamente ganhava salários baixos, hoje, elitizado, passa a receber
salários mais altos, compatíveis com sua nova condição de “trabalhador do conhecimento”253.
(b) O poder do baronato industrial recuou em face de uma mudança estrutural da
macroeconomia. Hoje prevalece o entendimento de que vivemos sob o signo da sociedade do
conhecimento. O principal fator de produção de riquezas não é mais a indústria, mas a
tecnologia, o conhecimento e a inovação tecnológica que é resultado desses. A economia hoje
não estar mais voltada para o produto, sim para o mercado; a indústria não pode mais impor
seus produtos ao consumidor como ocorria no passado, mas deve curvar-se à sua vontade, a
qual vem sendo fortalecida pela internet e pelas redes sociais. Hoje quem dá as cartas é o
251
Cf. Gary B. Madison; Marty Fairbairn (orgs.). The Ethics of Postmodern. Currents trends in continental
Thought (Evanston, IL: Northwestern University Press, 1999), p. 1 e 2.
252
Joseph Margolis. “Moral optimism“. In Gary B. Madison; Marty Fairbairn. The Ethics of Postmodern, p. 36.
253
Peter Drucker. O melhor de Peter Drucker (São Paulo: Nobel, 2001), p. 45.
86
(2) O moralismo protestante atacado por Nietzsche está hoje moribundo. A teologia
liberal que nesse moralismo se fundamentava e que foi criadora de uma plataforma ideológica
importante na Europa do século XIX e na primeira metade do século XX, perdeu relevância;
não pela crítica de Nietzsche, mas por ter abandonado a única coisa que tinha o poder de
transformar moralmente o ser humano: a `Palavra de Deus. A transvaloração e trans-
humanização como projeto nietzscheano de reforma da humanidade virou um abortivo. A
transvaloração falhou fragorosamente com o fracasso das quase-religiões totalitárias, e a trans-
humanização só persiste como projeto viável no campo das ciências biológicas, onde defende
um futuro aberto para a humanidade, haja vista sua alegada capacidade de transmudá-la para
algo melhor e mais evoluído. Ninguém sabe ao certo o que seria essa evolução, sendo entendida
muito restritivamente a um prolongamento e um melhoramento da vida biológica do ser
humano por diversos meios biotecnológicos: transformismo sexual, manipulação genética,
manipulação somática, biomecatrônica, bioengenharia, nanoengenharia, etc. Nesse contexto
Nietzsche e Darwin ficam lá atrás servindo apenas como símbolos, como precursores, dessa
nova compulsão prometeica da humanidade256 de ir para além do homem.
(3) Alguns autores pós-modernos partem de Freud, mas também promovem a superação
de Freud e seu modo de pensar ainda enraizado na Modernidade. J. Lacan propõe o abandono
do modelo conceitual representacional, recomendando entender o inconsciente por meio de
categorias conceituais da Linguística e do Estruturalismo. O desejo, por exemplo, para Freud
composto por dois elementos: (a) a realidade uma vez possuída no passado e agora faltante, (b)
a imaginação, a fantasia, como mera representação do objeto faltante. De acordo com Lacan o
desejo tem uma estrutura mais complexa; em vez de bipartite, será tripartite, representado pela
famosa fórmula lacaniana: RSI, realidade, símbolo e imaginação. E esse terceiro elemento
acrescentando, o símbolo, é originário da linguística de Saussure, e é o verdadeiro substituto da
254
Domenico de Masi. O futuro do trabalho. A fadiga e o ócio na sociedade pós-industrial (Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 2001), p. 181.
255
Richard L. Brandt. Nos bastidores da Amazon. O jeito Jeff Bezos de revolucionar mercados com apenas um
clique (São Paulo: Saraiva, 2011).
256
Nick Bostrom. “A history of Transhumanist thought” (Journal of evolution and technology (14 (1), April,
2005), pp. 1-25.
87
Ainda há que se agregar a essa discussão a nova ruptura proposta por Deleuze-Guattari,
a saber, a crítica que aparece no Anti-édipo contra o conceito lacaniano de desejo, a qual é
denunciada como pouco radical, já que permanece a subscrição às grandes narrativas, conforme
é perceptível pela fundamentação estruturalista do pensamento de Lacan. Deleuze-Guattari
baseiam-se em Foucault para concluir que o desejo não é como propõe Lacan uma ausência,
com satisfação por substituição oblíqua, simbólica, metonímica: a parte pelo todo, produzido
pela idiossincrática gramática do ente desejante. A perversão do desejo não resulta apenas de
uma singularização do processo de simbolização, pode ser também a perversão do desejo
gregário, produzida por certas condições históricas nas quais vive o indivíduo. Em síntese, a
falta que nos faz desejantes “é arrumada, organizada, na produção social”, e “a produção social
é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”260. Portanto, cabe aí a
crítica de Marx sobre a historicidade dos fatos humanos, até dos psíquicos, revelado por célebre
passagem sempre muito citada: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem
de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela
é feita, mas essas lhes foram transmitidas assim como se encontram”261. Contudo, como prefere
Foucault, essa história não é uma evolução linear, nem está construída apenas sobre o
fundamento dos fatos econômicos, ela é um conjunto de linhas discursivas que decorrem, ora
paralelas, ora subversivas, e que servem acima de tudo para classificar as ações e ideias
257
Jacques Lacan. Seminar XXII: R.S.I. 1974-1975 (livro não publicado: Gagoa.free.fr.
258
Scott Lash. Sociology of Postmodernism (New York: Routledge, 1992), p. 67.
259
“Para abordar a R.S.I. , nada melhor do que começar pelas negativas: o real não é a realidade, o imaginário não
é a imaginação, o simbólico não é uma simbólica. A realidade é constituída por uma trama simbólico-imaginária”
Marco A. Coutinho Jorge; Nadiá P. Ferreira. Lacna, o grande freudiano (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005),
p. 32. Por isso para Lacan os anéis entrelaçados do nó borromeano é sua melhor ilustração.
260
Gilles Deleuze; Félix Guattari. O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1 (São Paulo: Editora 34, 2010), p.
46.
261
Karl Marx. O 18 Brumário de Luís Bonaparte (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), p. 25.
88
humanas, para definir o que é normal e o que é patológico, para revelar o que é desejável e o
que não é desejável, socialmente falando.
Essa questão que se inscreve sob a crítica de Marx não se aplica só à explicação do desejo.
Toda a psicanálise freudiana cai sob o peso de uma Modernidade contaminada da epiderme até
a medula. As neuroses atacadas por Freud, provenientes de conflitos de valores de uma
sociedade cristã e uma sociedade secularizada da Viena do início do século XX, já ficaram
muito lá para trás. Será que faz ainda algum sentido a inversão do senso comum religioso
promovida por Freud: “os criminosos não se sentem culpados porque são criminosos, mas são
criminosos porque já se sentem culpados” 262 , entendida como principal motivação do
psicocriminoso, quando a questão da culpa se torna cada vez mais irrelevante como categoria
psicopatológica, estando a própria noção de pecado a perder espaço no mundo contemporâneo?
262
Roger Horrocks. Freud revisited: Psychoanalitics themes in the postmodern age (New York: Palgrave
Publishers, 2001), p. 5.
263
Richard Rorty. Contingency, irony and solidarity (New York: Cambridge University Press, 1993), p. xiii.
264
Gilles Deleuze; Felix Guattari. O anti-édipo, p. 16.
89
dos indivíduos, passa a ser uma ruptura 265 ou um conjunto de micro-histórias que se
interpenetram enquanto discorrem e não decorrem, porque são narrativas e seus sujeitos não
estão indo a lugar algum. Pelo que, hoje assistimos a desaparição do sentido da história na
cultura, como deixa claro o emblemático trabalho de Fukuyama266. A história acabou; não há
mais telos. Basta observar como eventos de nosso passado recente vão sendo apagados da
memória coletiva ao ponto de as novas gerações ignorarem quase por completo o que ocorreu
há dez, quinze anos atrás. Os eventos tornaram-se objetos de consumo que estão destinados ao
esquecimento. Os eventos e sua narrativa desaparecem e são substituídos por imagens a compor
o caleidoscópio da vida instantânea em que passamos em alta velocidade.
Na Pós-modernidade não há solução para esse dilema, que na verdade é melhor entendido
como aporia. A única forma de solucioná-lo é destruindo-o como fez Alexandre, o Grande,
quando em vez de desatar o nó górdio cortou-o com sua espada, ou seja, isto significa rejeitar
o problema considerando-o insolúvel; do contrário a falta de alternativas a que nos obriga o
niilismo pós-moderno não nos permitiria a realização de qualquer ação, qualquer projeto,
porque uma vez destruídos a verdade, o indivíduo e a coletividade, não resta nada que seria
discernível ou preferível. Para fugir dessa aporia paralisante, só restou uma liberdade sem telos,
uma liberdade sem para, que se esgota em si mesma, uma vez que é pressuposta sua
benignidade, assim como é pressuposta a malignidade da privação dela, de sorte que liberdade
definida como “a infindável realização e proliferação da liberdade”268 é a única norma ética do
mundo pós-moderno.
265
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 4.
266
Francis Fukuyama. O fim da história e o último homem (Rio de Janeiro: Rocco, 1992).
267
Fredric Jameson. El giro cultural. 38.
268
Richard Rorty. Contingency, irony and solidarity, p. xvi.
90
2.e. Conclusão
Em síntese, a pós-modernidade está sendo construída sobre dois pilares que são totais
autocontradições. A primeira, nasce da rejeição das metas-narrativas por meio da meta-
narrativa do fim das meta-narrativas. A desconstrução das meta-narrativas origina-se, portanto,
de um paralogismo e só seria possível se eles possuíssem um padrão racional transcendente, ou
seja, se conseguissem pensar como Deus, fora da linguagem; caem, assim, vítimas de seu
próprio argumento. Ora sendo toda e qualquer teoria imanente a determinado sistema nada
pode-se dizer sobre as outras teorias no campo veritativo senão como opinião. A segunda
grande autocontradição é a rejeição de todos os absolutos por meio de uma liberdade absoluta,
ou seja, defendendo dogmaticamente um anti-dogmatismo. A criação de um absoluto privado
visto como algo positivo, tira das mãos das instituições sua força e empodera o indivíduo,
tornando, ao menos teoricamente, a sociedade humana mais harmoniosa e menos propensa a
conflitos, visto, nesse contexto, as instituições religiosas não terem como coagir os que se
desviam do padrão por elas imposto. Observe-se, entretanto, que o conflito apenas mudou de
lugar. Agora antagoniza os partidários da meta-narrativa do fim das meta-narrativas com os
sequazes de alguma meta-narrativa específica, que posiciona a liberdade absoluta contra os
proponentes de outros absolutos.
269
Max Charlesworth. “Postmodernity and Theology”, p. 190.
270
Ibid., p. 191.
91
que sugira que os direitos humanos e a liberdade de escolha não são os mais altos valores da
humanidade é imediatamente suspeito de Fascismo ou Nazismo”271.
Atentem para a diferença entre o discurso e a prática. Na prática os pós-modernos são tão
absolutistas como quaisquer outros ismos e tão xiita como aqueles que são denunciados como
tais por eles. Por essa franqueza não os culpo. A humanidade não pode viver sem o absoluto e
esta é uma boa interpretação de Sto. Agostinho quando em suas Confissões reconhece que é da
essência humana é estar em busca do absoluto. Assim, a intercorrência do absoluto no discurso
pós-moderno era mais do que esperada. Paradoxalmente, o relativo foi tão enfatizado e
defendido que acabaram por absolutizá-lo. Agora quem não pensa da mesma forma é
estigmatizado como retrógrado, obscurantista, maniqueísta e outros termos pouco elogiosos. E,
o que é pior, o Pós-modernismo usa argumentos tão poderosos que compelem o cristão a sentir-
se em um grande dilema acerca de sua fé. Como se sua fé fosse em alguma medida eticamente
defeituosa por defender pontos de vista absolutistas, quando deveria ser mais aberta às ideias
dos que dela não compartilham. Agora o politicamente correto é: ‘não sou muito assertivo; não
sou uma pessoa dogmática’. Dizendo isso, contudo, está a trocar um discurso absoluto por outro
e se torna assertivo em sua inassertibilidade, visto esse anti-dogmatismo ter se tornado hoje em
dia uma quase-religião e pouco falta para se poder afirmar que se tenha tornado a religião civil
dos países desenvolvidos em sua maioria. Esse é o assunto que vamos colocar em discussão no
próximo capítulo.
271
Andrew K. M. Adam. What is the postmodern biblical criticism, p.17.
92
CAPÍTULO III
A religião não desapareceu nem está em vias de desaparecer, apenas passa por um
processo de desinstitucionalização e fragmentação; o Cristianismo está ameaçado, mas não
acuado; e tudo o que se pensou sobre a natureza e os estímulos da experiência religiosa mostra-
se incapaz de explicar os fenômenos religiosos contemporâneos. Como demonstrou
Kolakowski, basear-nos em estatísticas para postular o declínio da religião em nossa sociedade
é metodologicamente simplista e simplório. O fato de as pessoas estarem deixando de ir à Igreja
nos países desenvolvidos Ocidentais e não responderem afirmativamente nas pesquisas sociais
quanto a crenças tradicionais e à pertença religiosa a dada instituição272, pode significar muitas
coisas, inclusive que a religião está a tornar-se mais presente (dado que as pessoas não precisam
mais ir à igreja para ter acesso a ela), embora que também mais difusa e ambígua. Assim,
entretém nossa atenção um oximoro paradoxal e, entretanto, muito instrutivo: levar em conta a
ambiguidade desses tempos é fundamental para entender o papel hodierno da religião. De modo
que a atitude do analista que com seriedade se debruça sobre o tema não é esclarecer e
simplificar, mas evidenciar essa ambiguidade ou ambivalência, revelar a troca de ambiente e
linguagem que a substituição de um paradigma moderno pelo pós-moderno pode implicar para
a religião.
272
Leszec Kolakowski. “The revenge of the sacred in secular culture. In Modernity on endless trial, p. 63.
93
lugar próprio da vida religiosa legados pela Modernidade, que são: (a) o modelo europeu, com
uma religião de Estado única que atinge o indivíduo em sua vida privada e serve de mediação
entre as esferas política e a sociedade civil 273; (b) o modelo norte-americano, em que uma
religião civil fundamental e genérica274, estruturante de todas as demais, que é impedida de
interferir na esfera política, mas preserva a sociedade civil como seu domínio. Essa
compartimentalização e separação institucional entre o público e o privado, que é mais intensa
no modelo europeu, embora esteja presente em ambos os casos, vem sendo substituída por uma
visão de mundo que as aproxima em vez de distanciá-las275.
Mas a retirada do senhorio da ideologia moderna sobre o espaço público não é um eclipse,
antes um refluir de maré. Não é um desaparecimento, mas uma erosão paulatina, que começa
onde o império das leis o permite, ou seja, naquelas dimensões sociais não governadas
diretamente pelo Estado: o mercado e a sociedade civil. O Estado laico permanece como dogma
político das sociedades contemporâneas ocidentais, mas a influência da religião nas questões
273
Pier Paolo Donati. “Religion and Democracy in the postmodern world: the possibility of a ‘religious qualified’
public sphere”, Democracy, reality and risponsability, Pontifical Academy of Social Science (acta 6, Vatican City,
2001) p. 316.
274
Cf. Robert N. Bellah. The Broken Covenant. America Civil Religion in Time of Trial, Chicago: The University
of Chicago Press, 1975; Phillip Harmon. “Civil Religion”. In Gary Laderman; Luís D. León (edts.). Religion and
American Cultures. An Encyclopedia of Traditions, Diversity and Popular Expressions (Santa Barbara, CL: ABC
Clio, 2003.
275
William D’Antonio; Anthony J. Pagorelc. “Sociologia da Religião”. In Masamishi Sasaki et alia (eds.). Concise
encyclopedia of comparative sociology (Leiden: Brill, 2014), p. 160.
94
políticas está cada vez mais presente, especialmente a partir da década de 80, que não por
coincidência foi coetâneo com o enfraquecimento do controle político da URSS e a perda de
persuasão de que seu sistema político-econômico era à prova de corrupção, findando com sua
dissolução em 1991. Casanova aponta quatro grandes sinais do retorno da religião ao espaço
público naquela década: a revolução dos aiatolás no Irã; a ascensão do movimento solidariedade
na Polônia (instigado pela Igreja Católica); a revolução sandinista na Nicarágua, também
insuflada pela Igreja Católica; e o surgimento do Fundamentalismo protestante como força
política nos Estados Unidos276.
Essa avaliação não é pacífica. No contexto globalizado, há quem veja a religião isenta de
combinação com o mercado, preservando apenas a conexão da política com o mercado 277 .
Contudo, isso é um erro. O mundo mudou. As instituições não possuem mais jurisdições
exclusivas na estrutura social. A Modernidade minguante dá lugar a um ambiente cultural mais
híbrido e permeável, com fronteiras menos marcadas. A religião torna-se mais difusa, porém
também mais presente; o mercado, idem. Eles podem inter-influirem-se sem mais causar
escândalo. Ademais, a sociedade contemporânea em geral não tem mais esfera disso ou daquilo,
nem há uma distinção muito clara entre o público e o privado. Hoje ninguém mais sente prurido
por um candidato à presidência da república fazer campanha com o nome de Deus nos lábios
e/ou por ter como slogan de campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”; ele pode
até ganhar o pleito, como de fato ocorreu com a vitória de Jair Bolsonaro. E um candidato que
mais parece um pregador no púlpito pode obter mais votos do que a maioria dos políticos
profissionais com quem concorre, como ocorreu ao cabo Daciollo. A religião é tema de
campanha política; a prova são as centenas de pastores com algum cargo eletivo nos municípios,
estados e no Congresso Nacional.
A religião passa a fazer parte da vida pública, porém tem que arcar com o ônus dessa
nova condição. Apresenta-se mais diluída, fragmentária, descentrada e é também por isso que
passa a ser admitida na esfera pública porque permanece infensa, destituída da capacidade
produzir uma lealdade fanática, é incapaz de sobrepujar-se à lealdade que o cidadão deve à
Pátria. O poder religioso que antes espelhava-se no poder político, dado que desde os tempos
imemoriais estas duas coisas caminham juntas (a verdade sempre foi a detentora do poder; e os
poderosos sempre, os donos da verdade), agora imita as artes, quer seduzir em vez de conquistar
276
José Casanova. Public religions in the modern world (Chicago: Chicago University Press, 1994), p. 3.
277
Pier Paolo Donati. “Religion and democracy in the postmodern world”, 316.
95
e comandar. Abandonou seus paramentos sacerdotais e enverga agora um figurino variado meio
civil meio religioso, que a torna capaz de atrair uma diversidade de novos participantes, que se
engajam na execução de novas falas e novas liturgias do sagrado, sacralidade mais leiga e
estética e menos hierárquica. A vida privada do indivíduo não é mais sua exclusividade, porque
se reveste de outras possibilidades identitárias, baseadas em seu gosto estético, i. e. as tribos
urbanas e de novas espiritualidades ao alcance de um clique. A religião vê-se obrigada a invadir
o espaço público para disputar ali seus futuros adeptos. Ocorre agora “uma desprivatização da
religião”278, passando a frequentar a mass media, a religião é assunto de cientistas sociais, de
políticos profissionais, de marqueteiros e aparece agora como mais um produto do mercado. De
fato, pelo contubérnio de religião e mercado, hoje a religião emula o mercado e o mercado imita
a religião; ambos buscam conquistar novos fidelizados pela sedução e não mais pela força,
entendendo força aqui como as razões (doutrinas) e os decretos. A Igreja hoje é uma
comunidade de crentes que compartilham experiências religiosas e não uma corporação munida
de instrumentais coercitivos, como no passado. Ela busca pela sedução atrair e manter seus
adeptos também porque em nossos dias não é politicamente correto atentar contra a liberdade
de ninguém.
É ainda muito difícil ter certeza sobre para onde tudo caminha. Na contemporaneidade a
massa social ainda está a fermentar e a adquirir novas cores e estados sem perder completamente
aqueles elementos mais antigos. Essa condição ambígua decorre de estar em transição de uma
coisa para outra, entre a Pós-modernidade nascente e a Modernidade moribunda; de convocar
uma nova ordem sem despedir a antiga; de rejeitar o exclusivismo das religiões dando-lhes ao
mesmo tempo as boas-vindas. Por esses sinais trocados confundem-se os manuais,
especialmente quando conduzem a avaliação do estado atual das coisas usando parâmetros e
instrumentos de análise antigos.
278
José Casanova. Public religions in modern world, p. 5.
96
um papel fundamental e que com isso adentremos a uma nova era axial da religião279. O que se
apresenta aos nossos olhos não é nada semelhante às manifestações religiosas que nasceram
entre o segundo e o sétimo século a. C. 280., quando os profetas do AT denunciavam a opressão
das viúvas e aos órfãos pelos poderosos e Sidartha Gautama ensinava o desapego em relação
aos bens materiais. A religião hoje está mais para a Florença renascentista, onde cardeais e
banqueiros sustentavam com seu mecenato as artes e fomentavam o casamento entre o mercado,
a arte e a religião. Há uma legião de gurus invadindo o Ocidente a bordo de rolls royces
dourados (Shri Bragwan Raynesh/Osho), pregando a meditação e o consumo, e deixando o
ascetismo para os monges semidesnudos que perambulam pelas margens do Ganges; há uma
falange de pastores vestindo Armani e gravata italiana bordada a mão distribuindo a bênção da
prosperidade para quem a possa comprar.
279
William Keepin. Belonging to God. Spirituality, Science & a universal path of divine love (Woodstock, VT:
Skylights Paths Pub., 2016), p. xviii.
280
Karen Armstrong. Uma história de Deus. Quatro milênios em busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo
(São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 43.
281
George D. Chrysades. Exploring new religions, p. 2.
97
Com efeito, o ambiente está marcado por uma diversidade aparentemente inconciliável
de religiões. Aí há movimentos religiosos cristãos, a maioria é neopentecostal e pentecostal
inovador que engloba um profusão de igrejas e denominações282; há os de tendência ecumênica,
abertos ao diálogo, como p. ex. a Legião da Boa Vontade, Fé Bahai, Vale do Amanhecer, etc.;
há aqueles esoterismos mais sectárias como é o caso da Cientologia; há religiões de natureza
mais filosófica, que baseiam a salvação no conhecimento, com o é a Teosofia. Sem contar que
nesse ambiente prevalece o sincretismo e o ecletismo, de sorte que até mesmos as afirmações
acima podem ser questionadas. Não causa espanto haver tantas propostas tipológicas entre os
que se dão a tarefa de organizar o campo religioso contemporâneo, que, entretanto, falham em
esclarecer seus leitores, porque utilizam metodologias equívocas, confusas, fundamentadas em
sua origem histórica e/ou em certo tipo teológico283 que não faz sentido, dada sua natureza
variegada e sincrética. Andrew Dawson resume bem a situação:
A única coisa que eles têm em comum é que têm sido rotulados como NRM [NMR].
Os movimentos diferem uns dos outros tanto quanto são diversas: sua origem, suas
crenças, suas práticas, sua organização, sua liderança, suas finanças, seu estilo de vida,
suas atitudes acerca das crianças, das mulheres, da educação, questões morais, etc. 284
Enfim, existem muitas formas de tentar organizar o campo religioso atual. Nenhuma delas
nos serve. Senão vejamos. (a) A perspectiva matricial que é baseada em uma alegada tradição
originária: cristã, xamanista, hindu, etc., é inadequada por causa do elevado grau de sincretismo
e ecletismo prevalecente, pois trata-se de movimentos religiosos que são combinações de
tradições e não tradições solitárias e monolíticas, sendo, por isso muito complicado adotar essa
metodologia sem cair em conceitos reducionistas que ignoram sua complexidade. Exceto os
movimentos pentecostais, para a maioria não seria possível identificar uma matriz originária
(experimentem tipologizar dessa maneira a comunidade Vale do Amanhecer). Ademais, (b)
uma perspectiva cronológica ou histórica é igualmente confusa pelos motivos apresentados. Se
a escolha metodológica recair sobre (c) os aspectos puramente teológicos a confusão não
diminui, pelo mesmo motivo apresentado acima. Existem muitas inovações religiosa hoje no
mundo evangélico que tem um formato de culto e de indumentária não convencional, mas com
282
Cf. a longa lista de neopentecostais que surgiram por essa mesma época: Casa da Benção, Cristo Vive, Cruzada
Profética Mundial Sinais e Prodígios, Igrejas em Obra de Restauração, Igreja Evangélica Maranata, Igreja
Evangélica da Renovação, Salão da Fé (Cruzada do Caminho Eterno), Igreja Internacional da Graça de Deus,
Igreja de Nova Vida. Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado. Comunicación y marketing de los nuevos
pentecostales en América Latina (Quito, Abya-Yala, 2000), p. 17.; além dessas ainda há denominações mais
recentes como Igreja Evangélica Bola de Neve, Igreja no Cinema, Igreja United, etc.
283
Cf. George D. Chryssades. Exploring New Religions, pp. 23 a 33.
284
Andrew Dawson. New Era – New Religions. Religious transformations in contemporary Brazil (Abingdon, U.
K.: Routledge, 2016), p. 2.
98
um corpo doutrinário completamente tradicional, como é caso da Bola de Neve, ou seja, a Igreja
Evangélica Bola de Neve, do ponto de vista doutrinário, não se distingue das outras tradicionais,
mostrando-se até mais radical na doutrina do que elas, porque pretende disciplinar até as
posições sexuais que seu adepto mantém ao copular com sua (seu) companheira (o)285. Contudo,
é uma denominação pós-moderna pelo modo como se constrói sua técnica de missionamento e
sua lógica religiosa ou teológica.
Portanto, como conclusão preliminar parece ser mais viável tipologizar baseando-nos não
propriamente na teologia, mas na lógica teológica. Ou seja, não na doutrina ou na teologia em
si – sua origem matricial, por meio de um estudo comparativo, porque estão todas muito
sincretizadas ou ecletizadas nesse ambiente. A convivência de dois paradigmas antagônicos de
pensamento, a Modernidade e a Pós-modernidade, tornam a manifestação de uma das duas
formas de hibridização (sincretismo e ecletismo), totalmente plausível. É melhor, portanto,
analisar a mecânica da construção teológica, a qual pode revelar o modo como a influência do
pensamento, da ideologia e da experiência pós-moderna atuam na formulação dos motivos
religiosos. Para isso as categorias do pensamento pós-moderno que identificamos no capítulo
anterior são mais úteis do que uma infinidade cronológica ou matricial que um estudo
comparativo poderia nos fornecer286. Ainda que no passado essa metodologia da história das
religiões tenha sido útil para um Mircea Eliade e para outros de inspiração estruturalista, quando
trabalham com ambientes menos voláteis do que aquele pretendemos analisar, para nós hoje já
não se prestam.
285
Isto é. O que a Bola de Neve quer esconder (25/12/2013).
286
Como algo que queremos evitar aqui, isto é, essa abordagem histórico-comparativa Cf. Elijah Siegler. Nuevos
Movimientos religiosos (Madrid: Ediciones Akal, 2008).
99
287
John Anton. “Theourgia – De miourgia: a controversial issue in Hellenistic thought and religion. in Richard T.
Wallis (ed.). Neoplatonism and Gnosticism (Albany: State University of New York Press, 1992), p. 28.
288
Eric Voegelin. Science, politics and Gnosticism (Washington, D.C.: Regnery Publishing, 1997), p. 3.
100
humanidade a um novo ciclo evolutivo 289 ; Alice Ann Bailey (1880-1949), teósofa inglesa
autora de diversos livros e fundadora das sociedades Lucis Trust (1922), Arcane School (1923),
World Goodwill (1932), New Group of World Servers, The men of good will (1950); Jane
Roberts (1929-1984), médium e psíquica norte-americana, que recebia mensagens de um
espírito chamado Seth, autora de diversas obras, assim chamadas psicografadas290.
289
Peter B. Clarke. New religions in global perspective: A study of religious change in the modern world
(Abingdon, U.K.: Routledge, 2006), p. 28.
290
Peter B. Clarke. New religions in global perspective, p. 29.
291
Idem, ibid.
292
Jean Ellen Petrolle. Religion without Belief. Contemporary allegory and the search for postmodern faith
(Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2008), p. 22.
101
as quais são ainda mais eficazes em dificultar a distinção entre a realidade e a virtualidade. O
mundo está dominado por forças e poderes que nos tornam extensão da tecnologia e do sistema
econômico-político (Nova Era), de forças espirituais malignas (Neoliberalismo). Nossa única
salvaguarda é a vida interior.
De certa forma toda a filosofia tem estado a pavimentar o caminho para o ressurgimento
do Gnosticismo, ou pelo menos de uma tendência gnóstica. E não só a filosofia, mas toda a
ciência contemporânea. Pierre T. de Chardin, por exemplo, o padre e paleontólogo francês que
formulou uma teoria evolucionista que conjuga a biologia e o mundo espiritual, à medida que
vê o elemento evolutivo por ambas as perspectivas, sinteticamente manifestas pela evolução da
mente, cujo ápice é a tomada de consciência, chamada por ele de “ponto ômega”, cuja
manifestação terá lugar no fim dos tempos295. Os teóricos da Nova Era interpretam que esta
plenificação na evolução humana será o começo de uma nova era porque a partir daí a luz da
consciência brilhará em todo o planeta, a partir de uma “noosfera” plenificada, que é a soma de
todas as psiques humanas que escaparam da lei da entropia, do começo das eras até o fim296.
Outro cientista importante para o pensamento neognóstico foi James Lovelock, médico e
ambientalista inglês que formulou uma teoria para explicar o comportamento sistêmico
293
Ellis Sandoz. “Introdução”. In Eric Voegelin. Science, Politics and Gnosticism, p. xi.
294
Ibid
., p. xii.
295
Pierre T. de Chardin. The phenomenon of man (New York: Harper, 1959), p. 272.
296
Idem, ibid.
102
planetário a que deu o nome de Gaia297, teoria hoje a base do pensamento holístico da Nova
Era298. A teoria de Lovelock defende entre outras coisas que o equilíbrio planetário, equilíbrio
da taxa de gases, de calor, de perda e ganho de energia, da temperatura, é realizada
continuamente por uma ação sistêmica e deliberada do próprio planeta, sem a qual a vida aqui
já teria se extinguido. A vida, portanto, não se trata de uma questão quantitativa, de haver uma
composição x de gases em quantidade e proporcionalidade y, mas de uma constante adequação
dessas taxas pela redistribuição interna e pela transformação desses recursos tendo como
objetivo o equilíbrio 299 : “a atmosfera não é um produto biológico, mas uma construção
biológica”300. A entidade que coordena todas essas ações para a manutenção da vida, Lovelock
chamou de Gaia, “o sistema vivo”301. Isto significa que tudo o que é vivo faz parte de um mesmo
sistema e que todos os seres vivos e processos vitais estão relacionados e conectados. fazendo
nascer dessa cosmovisão holística o Neopaganismo.
297
James Lovelock. A new look at life on earth (Oxford: Oxford University Press, 2000).
298
Michel York. The A to Z of New Age movement (Lanham, ML: Rowman & Littlefield, 2004), p. 138.
299
James Lovelock. A new look of life, pp. 6 e 7.
300
Ibid., p. 9.
301
Idem, ibid.
103
É fácil perceber como é genérica essa teologia e está presente em um sem número de
movimentos esotéricos na atualidade, das espiritualidades hindus às sincresias brasileiras.
Alguns dos temas aí presentes são universais: a ideia dos avatares que são manifestações de um
espírito de luz enviado para guiar os homens de volta ao Uno; a metáfora do despertar do
espírito e seu final retorno ao Uno, com o fim dos ciclos reencarnacionais; a ideia da salvação
pelo conhecimento, que implica uma série de exercícios ‘espirituais’ para ampliar a
consciência; o paraíso como retorno ao mundo da luz e união com a unidade última (Deus); a
presença de guias espirituais femininas que representam Sofia (a sabedoria), como é conhecida
a ambígua emanação divina que foi a criadora do demiurgo e indiretamente criadora do mundo
físico, etc.
Além dessas sincresias mais ou menos absorvidas pelos movimentos esotéricos atuais,
existem outras concepções controversas e doutrinas estranhas que as religiões dessa matriz
procuram ocultar de seu público-alvo, os cristãos nominais: (a) a completa rejeição da tradição
bíblica, pois se o Judaísmo tem alguma influência no Gnosticismo é apenas por meio da cabala.
De fato, em seus livros madame Blavatsky faz várias releituras desgraciosas das tradições da
302
Stephan Hoeller. Gnosticism. New light on the ancient tradition of the inner (Wheaton, IL: Theosophical
Publishing House, 2002), pp. 188-189.
104
303
Helena P. Blavatsky. The secret doctrine: the synthesis of science, religion and phisolophy (London: The
theosophical publishing, 1888), pp. 452-474.
304
Helena P. Blavatsky. Isis unveiled. A master-key to the ancient and modern science and theology (New York:
J. W. Boulton, 1877), p. 434.
305
Helena P. Blavatsky. The secret doctrine, p. 234.
306
Michael York. The A to Z of the New Age movements, p. 54.
307
Helena P. Blavatsky. Isis unveiled, p. 11.
308
Michael York. The emerging network. A sociology of New Age and New Pagans movements (London: Rowman
and Littlefield Publishers, 1995), p. 64.
105
por Alziro Zarur; a capacidade de comunicação com um público menos erudito de Jane Roberts,
que praticamente criou uma literatura espiritualista acessível, hoje chamada de autoajuda e que
hoje faz a fortuna de muitos, Paulo Coelho que o diga; a capacidade de relacionar a doutrina
gnóstica com a os problemas atuais de Shirley MacLain309, foi responsável pela popularização
de conceitos gnósticos na sociedade.
Quando Marilyn Fergunson fez a pesquisa que aparece em seu livro A conspiração de
Aquário descobriu o que já era suspeitado, que apesar do número de adeptos das diversas seitas
e organizações esotéricas não ser tão elevado a penetração dessas ideias na sociedade é grande,
porque muitas pessoas sem professar este tipo de religião adota sua teologia em sua vida
privada:
A maior parte das pessoas consultadas diz-se cristã (embora não sejam mais
praticantes311, o que é inteiramente normal na sociedade secularizada pesquisada) e, como a
própria Marilyn Ferguson enfatiza, para elas não se trata de uma crença, mas de algo que faz
parte de sua experiência, ou seja, é uma ideologia aceita e tida como verdade, como por
exemplo, é o caso da paranormalidade, que para a maioria é uma mescla religião com ciência.
309
Shirley MacLain tinha uma etiologia diferente (afastava a causa da doença de ser causada por maus hábitos
sexuais) para a epidemia de Aids: “a doença apareceu em nossa ordem social para chamar nossa atenção para o
problema do estresse sobre o sistema imunológico”. Michael York. The emerging network, p. 76.
310
Marilyn Ferguson. The aquarian conspiracy. Personal and social transformation in the 1980s (London:
Routledge/Kegan Paul, 1981), p. 420.
311
Marilyn Ferguson. The aquarian conspiracy, p. 419.
106
Os protestantes, por seu turno, são unânimes em declarar a Nova Era obra de Satanás. Os
Neopentecostais, entretanto, mostram-se mais inclinados a adotar alguns elementos dessa
ideologia314 que, ademais, apresenta-se na população que querem missionar. Pode-se pensar em
alguns pontos de aproximação: o Neopentecostalismo acompanha a mudança paradigmática
implementada pelo Gnosticismo à medida que transforma completamente a perspectiva
religiosa do Cristianismo. Por exemplo, quando perde sua qualidade de religião histórica que
enfatiza os atos salvíficos de Deus (história), que abandona a ênfase sobre o que dizem as
Escrituras (hermenêutica do texto), e quando já não espera a salvação que vem de fora do
homem (transcendência); passando a ser aquela que prega a salvação aqui e agora
(presentismo), que quer interpretar os fatos da vida espiritualmente pela ação de Deus ou de
demônios (hermenêutica da vida), e que apresenta a salvação como ato originário do homem à
medida que proveniente da fé (imanência)315.
É evidente que essa nova percepção religiosa ainda convive com a antiga no mundo plural
hodierno. Nem todos os credos e confissões cristãs têm sofrido essa influência e em a sofrendo,
não será na mesma medida; outro ponto é que o campo religioso atual é confuso, albergando
em seu seio uma infinidade de vertentes religiosas que apresentam diversos graus de
sincretismo. Em suma, as manifestações religiosas e religiosidades pós-modernas podem
312
Lísias N. Negrão. “Pluralismo e multiplicidades religiosas no Brasil contemporâneo”, Sociedade e Estado (v.
23, no. 2, Mai-Ago, 2008), pp. 273-274.
313
Correspondance européene. Église Catholique qui saura s’opposer à la réhabilitation de Teilhard de Chardin ?
314
Michael York. The emerging network, p. 85.
315
Cf. Andrew Dawson. New Era – New Religions, p. 6.
107
apresentar-se em graus e modos diferentes e até simultâneos que classificaremos aqui como:
(a) religião-religiosidade e (b) a quase-religião. A raiz é sempre o Neognosticismo, havendo
apenas um único remédio para os males da humanidade, a revelação da realidade por trás da
realidade e a capacidade de lidar com ela através da ampliação dos poderes psíquicos. Essa
ideia fundamental se mescla com três tradições originárias em dois troncos: (a) religião-
religiosidade de onde florescem no ramo cristão, o Pentecostalismo; no ramo pagão, os
movimentos esotéricos; (b) no campo filosófico, a quase-religião pós-moderna, que substituiu
o marxismo e o freudismo, como ideologia mais influente. Assim, esse capítulo como o anterior
está dividido em dois grandes blocos, o primeiro tratando do primeiro tronco: a religião-
religiosidade; o segundo, do primeiro tronco: a quase-religião pós-moderna.
316
Cf. Émille Durkheim. Formas elementares da vida religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2000) p. 32: “religião
é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e
práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderem.”
317
William D’Antonio; Anthony J. Pagorelc. “Sociologia da Religião”, p. 157.
108
influídos pelos mesmos fatores sociais que também as influenciaram. Em seguida procuramos
apresentar alguns dessas estratégias de sobrevivência da religião nesse novo ambiente pós-
moderno.
única religião, uma religião sem transcendência que se esgota nessa imanência; uma quase-
religião que em muitos sentidos descende das quase-religiões do século XX, do Nazismo e do
Comunismo, p. ex., ou seja, secularizada e com forte teor político-ideológico.
318
Jan Pakulski. Postmodern social theory. In Brian S. Turner. The New Blackwell companion to social theory
(Oxford: Wiley/Blackwell, 2009), p. 252.
319
Jean-François Lyotard. La condición post-moderna, p. 4.
110
Alguns teóricos pós-modernos negam o processo. Lyotard, por exemplo, prefere pensar
que está em curso uma massificação atomizada que acontece quando, por exemplo, “uma massa
de átomos individuais é lançada a um absurdo movimento browniano”. Essa metáfora extraída
da física, embora não explique o que quer dizer exatamente “movimento browniano” (parece
ter se tornado um hábito dos pós-modernos o uso frouxo do vocabulário e de conceitos da
ciência), dá a entender um processo semicaótico governado pelos interesses variegados dos
321
indivíduos . A meu ver essa explicação é muito pobre sociologicamente porque
‘massificação’ necessariamente implica um coletivo; e é perceptível que a principal
preocupação de Lyotard é esconder o fato de que a Pós-modernidade já dá mostras de
esgotamento, de uma estandardização esterilizante de seus ideais; e que, por outro lado, indica
que ainda está em atividade uma Modernidade oculta; uma continuidade que justifica
denominar o Pós-modernismo de Capitalismo Tardio.
Com efeito, os processos econômicos e políticos da globalização, que fazem com que a
cultura reflita em seu nível a massificação institucional que já vinha ocorrendo nessas esferas.
320
Anthony Giddens. Modernity and self-identity. Self and society in the late modern age (Cambridge: Polity Press,
2008), p. 1.
321
Ibid., p. 15.
111
Giddens aponta para o surgimento da corporação que em muitos sentidos é até mais
massificante do que as empresas que as precederam. A corporação promove “um controle
regularizado das relações que atravessa as indefinidas distâncias do tempo e do espaço”322, nova
conformação que dá a essas organizações a capacidade subsistir em um ambiente globalizado.
A formação dessas corporações ocorreu por as empresas buscarem a competitividade global,
daí todo o processo aglutinação empresarial por meio de fusões, joint-ventures, holdings, que
vai tomando conta da economia mundial. As empresas vão se tornando enormes conglomerados
com vasta carteira de negócios mais ou menos monopolistas, que constituem cartéis porque não
mais de meia dúzia de empresas controlam segmentos inteiros da indústria, como é o caso da
aviação, dos alimentos, da mineração, produtos de higiene, etc.; enfim, as corporações estão
cada vez mais poderosas, algumas com faturamento igual ou superior a muitos países
desenvolvidos, com isso sua capacidade de influenciar a vida das pessoas está cada vez maior.
Essas corporações para satisfazer suas próprias necessidades de expansão e controle de
mercados fazem surgir o consumidor planetário que sofre de uma compulsão por novidades
gastronômicas, fonográficas, filmográficas, etc., mas tem uma cultura deficitária para apreciar
esses produtos devidamente, daí a indústria oferecer o regional de outras partes do mundo
podado de idiossincrasias mais esdrúxulas, ou seja, a massificação combinada à singularização.
Não podemos esquecer que a cultura é hoje a principal riqueza econômica do Capitalismo
pós-industrial no Ocidente, e não mais as manufaturas e maquinofaturas, antes bens intangíveis
que se apresentam como a principal pauta de exportação de países desenvolvidos como os
Estados Unidos 323 . Filmes, livros, música, games, ganham importância à medida que a
sociedade se torna pós-industrial e pós-ocupacional, onde o desemprego e a subocuparão se
alastram à medida que a indústria substitui o trabalho vivo do operário pelo trabalho morto das
máquinas. A automação faz nascer no Ocidente um tempo ocioso que precisa ser ocupado. A
massificação da cultura, portanto, é consequência direta da massificação econômica e das
políticas laborais geradas pela globalização (trabalho de meio período, trabalho intermitentes,
etc.)324.
322
Anthony Giddens. Modernity and self-identity, p. 16.
323
Peter F. Drucker. Post-capitalist society (Oxford: Butterworth-Heinemann, 1993), p. 165. Cf. também Peter
Drucker. Managing the next society (Oxford: Butterworth-Heinemann, 2002).
324
Cf. Domenico de Masi. O futuro do trabalho. A fadiga e o ócio na sociedade pós-industrial (Rio de Janeiro:
José Olímpio, 2001).
112
Além disso, a internet concedeu ao consumidor maior poder de decisão, por não estar
mais obrigado a comprar o que a indústria lhe oferece. Por exemplo, não se pode compelir
ninguém a comprar um cd por causa de uma única faixa. É possível baixar a faixa desejada pela
Itunes no Ipod e pagar uma ninharia por ela, ou então, simplesmente ouvi-la quando e como
quiser pelo Spotfy. Assim, os produtores ganham muito mais com as milhares de escolhas
singulares dos navegadores do que com os antigos arrasa-quarteirões que nem existem mais
(quase a totalidade dos cinquenta maiores sucessos da música e do cinema de todos os tempos
foram produzidos no período pré-internet); é aquilo que no marketing chama-se a cauda longa,
ou seja, em um gráfico pode-se perceber como essas milhares de preferências batem no
conjunto os artigos culturais criados para serem sucesso por tentarem atingir o gosto da
média326. O subtítulo da obra de C. Anderson fala por si sobre o que está acontecendo em nossos
dias: “como as escolhas infinitas estão criando demandas ilimitadas” que o ecommerce e a
cultura digital só se dão ao trabalho de atender.
Portanto, quem pensa que essa massificação possa ser entendida como “homogeneização”
completa e dominante da cultura, está olhando a indústria cultural muito lá trás327, ainda pela
lente marxista da Escola de Frankfurt, por cuja teoria a indústria cultural era entendida
basicamente como o braço direito do Capitalismo para alienar o trabalhador, fazendo dele um
consumidor passivo dos produtos e da cultura da elite, imaginando-se por isso dela partipante,
etc. Ainda que isso fosse verdade e por mais que quisesse, a indústria cultural não pode mais
325
John Fiske. “Global, national, local? Some problems of culture in a postmodern world”, The velvet light trap
(vol. 40, fall, 1997), p. 56.
326
Chris Anderson. The long tail. How endless choice is creating unlimited demand (London: Random House
Business, 2006).
327
Paul Hopper. Understanding globalization (Cambridge: Polity Press, 2007), p. 87 a 90.
113
Parece bem razoável a conclusão de que está em curso hoje no mundo um processo de
“homogeneização-hibridização”; tendo concluído que a cultura também faz parte desse
processo, cabe perguntar se não faz sentido colocar também a religião nessa mesma condição?
A esse respeito Pierre Sanchis chama nossa atenção para a “mundanização” da religião, pela
qual a rejeição do mundo perde cada vez mais espaço329. Essa mundanização enquadra-se muito
bem no relativismo e anti-dogmatismo pós-moderno, responsáveis pelo eclipse ou ofuscamento
da questão da verdade. A parte disso, há também um prejuízo para um conceito religioso
fundamental do Protestantismo brasileiro: a ideia de conversão, com a ideia correlata de
separação do mundo e de suas concupiscências330, que nesse novo ambiente cai alguns degraus
na escala de prioridades da pregação evangélica. Outro fator ainda é a formação de um
Protestantismo cultural que promove a homogeneização da mensagem em função da
homogeneização do público que a recebe, público que sofre de um raquitismo quanto à cultura
religiosa que torna tudo igual, mormente sob o rótulo de ‘evangélico’ ou ‘gospel’.
Essa mudança na perspectiva religiosa é o principal fator para a inclusão da religião nesse
novo processo de massificação. Com a atenuação da ideia de conversão, o que resta às
denominações e igrejas senão a tentativa de se presentificar, ou, em outras palavras, de
328
Jan Naderveen Pieterse. Globalization and Culture. Global mélange (Lanham, ML: Rowman & Littlefield
Publishing Group, 2009).
329
Pierre Sanchis. “Desencanto e formas contemporâneas do mundo religioso”, Ciencias Sociales y
Religión/Ciências Sociais e Religião (Porto Alegre, ano 3, no. 3, 2001), p. 29.
330
Antônio Gouvêa Mendonça; Prócoro Velásquez Filho, Introdução ao Protestantismo no Brasil (São Paulo/ São
Bernardo do Campo: Edições Loyola e Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia e Ciências da Religião,
1990), p.109.
114
aparecer? A relevância religiosa não está mais marcada pela diferenciação, mas pelo poder de
invadir os espaços público e privado com suas mercadorias simbólicas. Há uma mudança do
locus da religião. Ela abandona o lugar da religião institucionalizada e da moral, que
prevaleceram desde o Iluminismo até a primeira metade do século XX, e o transferem a partir
do final do século para a êxtase, o transe, a experiência religiosa imediata e intensa, em geral
obtida por meio coletivo, que necessita de uma grande quantidade de pessoas reunidas para que
o processo de auto-sugestionamento dos indivíduos possa ocorrer. O serviço do culto também
sofre uma mudança profunda, ele transita de uma reunião baseada na exposição moralista da
Palavra para uma reunião em que o ponto alto é a adoração e a experiência limite. Assim quanto
maior o número de pessoas reunidas, maior o efeito do coletivo no indivíduo e suas emoções.
O que todas essas mega-igrejas têm em comum, além de seu gigantismo congregacional,
é o fato de serem protestantes, a maioria ser pentecostal e se organizarem e trabalharem como
grupos pequenos 334 . Existe exceção, mas essa não prejudica nossa conclusão. É o caso de
331
Kate Bowler. Blessed. A history of the American prosperity gospel (New York: Oxford University Press, 2013),
p. 5.
332
Timothy S. Lee. “Belegueared success: Korea evangelicalism in the last decade of the Twenty Century”. In
Robert E. Buswell Jr; Thimoty S. Lee (orgs.). Christianity in Korea (Honolulu, HW: Haway University Press,
2006), p. 349.
333
Mário Escobar. Los sapatos del predicador (Nashville/Valls, Espanha: Nelson/Noufront, 2013), p. 271.
334
Idem, ibid.
115
Willow Creek Comunity, que se diz não-denominacional e com efeito, parece sê-lo desde que
se nega a fazer da doutrina um ponto importante de seu missionamento. O modo de discipular
de Willow Creek não se prende ao compartilhamento de experiência espiritual como ocorre
com aquelas que adotam o modelo dos grupos pequenos. Ela tem um outro pressuposto de
discipulado: “conforme uma pessoa afastada de Deus participe das atividades da igreja ela
eventualmente se tornará uma pessoa que ama a Deus e a ama aos outros”335, ou seja, uma
espécie de “fé por osmose”336. Contrariando essa premissa, ultimamente seus dirigentes têm
notado insatisfação entre os membros mais antigos no tocante ao crescimento espiritual, dado
que essa não é a ênfase de seu ministério.
A experiência de Willow Creek também é mais uma evidência do que vem sendo
sustentado de que há um processo complexo de massificação-singularização ou hibridização
que mesmo as mega-congregações precisam oportunizar aos membros efetiva participação. E
as igrejas e congregações pentecostais veem respondendo melhor a essa necessidade de
singularização dos indivíduos porque são elas as que mais crescem. Pode-se apontar vários
motivos para isso. Seus cultos são mais participativos, as pessoas têm mais liberdade de se
expressar, de interromper a sequência racionalizada da pregação da Palavra por meio de
erupções de aleluias, glossolalia, profecias, testemunhos e até manifestações corporais
estranhas ao ambiente de culto, como gritar, chorar, rir, urrar, etc.; em muitas dessas igrejas
qualquer pessoa pode dirigir o culto, como é o caso da Deus é Amor (IPDA)337. Por outro lado,
elas possuem maior capacidade de mobilização e controle sobre os membros porque muitas
delas são organizadas em grupos pequenos e com seu dirigente respondendo diretamente ao
pastor. Dos três grandes paradigmas religiosos para o Cristianismo mundial, o ramo pentecostal
é o que mais cresce, superando a marca de meio bilhão de pessoas 338 . No Brasil o
Pentecostalismo já deglutiu aquele de onde é originário, o Protestantismo Histórico, e agora
avança resolutamente sobre o território católico, ainda que haja uma zona de intersecção entre
ambos que é o Movimento Carismático dentro da Igreja Católica, o qual é ainda é uma grande
incógnita: pode ser encarado de três formas, como estratégia de sobrevivência do Catolicismo,
como cavalo de Troia do Pentecostalismo dentro do Catolicismo, ou como sincretismo que será
responsável pelo surgimento de um Catolicismo mais brasileiro e menos romano.
335
Michael Craven. “A confissão de Willow Creek”, Música Sacra e Adoração.
336
Idem, ibid.
337
Cecília L. Mariz. “Católicos da libertação, católicos renovados e neopentecostais”, Cadernos Ceris (ano 1, no.
2, Outubro, 2001), p. 32.
338
Mário Escobar. Los sapatos del predicador, p. 270.
116
Lembrando que esses espaços não são os únicos usados para congregar os fiéis; existem
templos locais, com um serviço de culto e funcionamento que provê a satisfação das
necessidades de singularização dos adeptos. Pode-se argumentar que a razão para a construção
desses imensos espaços para a fé deva-se à necessidade de a massa ter acesso ao seu líder
carismático maior. Não está errada a conclusão, mas não esgota a explicação. Além disso existe
um elemento competitivo nessas mega-construções, especialmente em relação às
neopentecostais. Não se pode esquecer que é um componente importante de sua pregação a
teologia da prosperidade, a ideia de que Deus favorece com bênçãos materiais aqueles que têm
fé Nele: quanto maior a fé, maiores as bênçãos, de sorte que esses grandes templos são também
símbolos e sinais da possessão desse poder de mover a mão de Deus. Não é por acaso que o
templo que a Universal ergueu é o Templo de Salomão, rei de Israel cuja sabedoria é proverbial,
assim como a riqueza.
339
Wikipédia. Templo da Glória de Deus.
340
Wikipédia. Templo de Salomão (IURD).
341
Veja São Paulo. Igreja Mundial do Poder de Deus, o templo do caos (Janeiro, 2016).
342
G1 Vale do Paraíba e Região. Igreja Católica ganha novo santuário em Cachoeira Paulista, SP (04/12/2014).
117
343
José J. de Carvalho. “Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea”. In Maria C.
Bingemer. O impacto da modernidade sobre a religião (São Paulo: Loyola, 1992), p. 16. Cf. José J. de Carvalho.
“An enchanted public space: Religious plurality and modernity in Brazil”. In Vivian Schelling. Through the
kaleidoscope. The experience of modernity in Latin America (London/New York: Verso, 2000).
344
Andrew Dawson. New Era – New Religions, p. 6.
118
variar, mas a origem é a mesma e a realidade por trás de tudo é uma só. Como se diz nesses
meios: ‘as lamparinas podem ser diferentes, mas a luz é a mesma”.
Um aspecto que não pode passar despercebido nessa consideração é o fato de que essa
massificação-individuação na sociedade contemporânea é resultado direto das modificações
porque tem passado o mercado, por conta de processos informacionais, por exemplo. Com a
internet o conhecimento é uma mercadoria de fácil aquisição, já não está restrito às elites, e não
só satisfaz como também potencializa o desejo. Quando se introduz um produto no mercado
cria-se em seus frequentadores a ideia de que podem comprá-lo, bem como a ideia de que
podem ser produzidos produtos novos para competir com os existentes345, a partir daí forma-se
toda uma linha comportamental que explica a avalanche de produtos religiosos oferecidos
atualmente: do rock cristão à produtos esotéricos, passando por livros de auto-ajuda, romances
espíritas, viagens a Terra Santa, azeite do Monte das Oliveiras (que muitas vezes vem do Chile
mesmo), etc.
Com isso estão dadas as condições para o surgimento de um profundo contubérnio entre
religião e mercado que serve de pedra de toque para entender nossos tempos: “a sociedade pós-
moderna é orientada para o consumidor, os indivíduos são socialmente formados sob os
auspícios dos papéis de quem procura e acumula sensações”346. O que Bauman aí afirma explica
o sucesso das redes sociais, onde os indivíduos postam suas viagens, alimentos exóticos,
situações inusitadas. Esse é o principal papel do contemporâneo no Ocidente: um colecionador
de sensações. Em um ambiente holístico, produto da globalização, onde a experiência religiosa
é uma das sensações mais intensas e onde “as organizações religiosas com sua mensagem de
perpétua insuficiência do homem” já não estão mais adaptadas à comunicação da experiência
máxima”347, cabe ao mercado, cujo objetivo é vender, e não à religião, cuja meta é levar o ser
humano à uma reflexão, a fruir a experiência.
345
Mara Einstein. Brands of faith. Marketing religion in commercial age (Abingdon, U. K.: Routledge, 2008), p.
xi.
346
Zigmunt Bauman. O mal-estar da Pós-modernidade (Rio de Janeiro: Zahar, 1998), p. 222.
347
Ibid., p. 224.
119
A muitos pode parecer estranho e inadequado o título desse tópico ou qualquer outro que
com ele se parecesse: “religião e negócio”, “fé e comércio”348, marketing religioso, etc. Torna-
se ainda mais repulsivo e até insuportável se a leitura avançar, percebendo o leitor que o autor
do presente trabalho apresenta críticas modestas a essa mistura indecorosa. Como observa
Leonildo Campos. Para muitos essa mescla é uma “profanação do território religioso e de
sagradas entidades”349. Para quem tem formação protestante vem logo à memória o relato de
Jesus expulsando os vendilhões do templo, que faziam comércio dentro da casa de Deus (Lc.
19: 46); ou então a reprovação de Pedro, dirigida a Simão, o mago, por tentar comprar os dons
que Deus concede por Sua graça (At. 8: 18-19); ou ainda, o conflito de Lutero com os
vendedores de indulgências enviados pelo papa Leão X. Não faltam argumentos para condenar
essa prática e não há aqui nenhuma disposição de justificar o que já está sobejamente condenado
pela Escritura. Só não é nosso propósito nesse capítulo fazer à questão uma abordagem
normativa ou axiológica. Pelo contrário, nosso objetivo é analisar a atual condição do ambiente
religioso brasileiro, tendo como objetivo o esclarecimento do campo para um eventual traçar
de estratégias de missionamento.
Ademais, quando se fala de religião e mercado não se está tratando exatamente da mesma
coisa a que ser referem os textos citados. Na situação contemporânea, a rigor, não há
propriamente uma venda ou comercialização de bens e de serviços religiosos, que é do que
tratam os textos probatórios acima. Existem duas situações diferentes no quadro atual: (a) há
grupos religiosos que vendem ou comercializam certos bens ou serviços em cuja composição
está presente uma filosofia ou um conceito religioso que singulariza aquele produto (um
produto conceitual), p. ex., os produtos alimentícios da Superbom, indústria alimentícia
pertencente aos Adventistas do Sétimo Dia – naturais e sem aditivos químicos; ou as
consultorias de autoconhecimento promovidas por filosofias esotéricas – provenientes de uma
sabedoria arcana. (b) Existem produtos religiosos que são vendidos, contudo a comercialização
não é do produto religioso em si, esse é gratuito e interessa às religiões que o seja; o que é
repassado ao consumidor são os custos de sua produção e/ou veiculação, p, ex., livros religiosos
têm um custo de produção que é repassado para as pessoas. Sob o tópico Religião e mercado
da perspectiva contemporânea não se fala strito sensu da mercantilização do evangelho, mas
em geral do modo e do lugar de apresentação desses bens religiosos para a sociedade.
348
Leonildo S. Campos. “Marketing y religión. Las estrategias de supervivência de organizaciones religiosas en
América Latina”. In Elio M. Kan et al. Religión y Postmodernidad. Las recientes alteraciones del campo religioso
(Quito: Abya-Ayala, 2002), p. 19.
349
Idem, ibid.
120
Por último, os indivíduos que estão sendo socializados nesse tipo de sociedade não são
conscientes do que lhes ocorre, e ainda que fossem conscientes poucos teriam condições de
alterar o estado de coisas que favorece essa ligação da religião com o mercado. Em síntese,
tendo os indivíduos seu comportamento religioso condicionado por circunstâncias sociais que
ignoram e não lhes sendo possível socializar-se de outra maneira caso tivessem consciência,
resta encontrá-los onde já se acham e alcançá-los pelos meios que aí se mostram eficazes; não
sendo de nenhuma valia a utilização de instrumentos e estratégias funcionais para outros
tempos. É tarefa da teologia verificar o que nas estratégias missiológicas pode ser considerado
legítimo e, portanto, viável; e o que é inautêntico e condenável à luz da Escritura e, portanto,
não viável. Nada disso é ocupação específica dessa investigação, embora não seja possível
evitar essa perspectiva, que faremos na parte final da presente. Enfim, de tudo a suma é, esse
contexto de religião mesclada ao mercado será sempre o único ponto de partida para uma
abordagem missiológica (qualquer que seja) do homem contemporâneo ocidental.
Peter Berger foi um dos primeiros grandes teóricos a apontar para o ingresso da religião
no mercado. A causa fundamental para a penetração de uma lógica de mercado na religião foi
o fim do monopólio religioso decorrente do surgimento do pluralismo na sociedade ocidental350.
O pluralismo intercorrente, obrigou a religião a sair de sua confortável função de administradora
de símbolos e de bens religiosos aos adeptos territorialmente garantidos (no tempo da fundação
do Protestantismo Histórico e da partição territorial da Europa entre católicos e protestantes e
seus respectivos territórios, modelo também repetido nas Treze Colônias Americanas), para
uma situação de disputa mercadológica por novos adeptos, a gênese desse acontecimento
transformador tem duas origens:
350
Peter Berger. O dossel sagrado, p. 149.
351
Robert N. Bellah. “Civil Religion in America” (Daedalus, vol. 96, no. 1, Winter, 1967), p. 1.
121
confessionalidade acima mencionada que não vingou na América 352; terceiro, por causa do
maior dinamismo da economia norte-americana, com o crescimento explosivo do setor
industrial da segunda metade do século XIX em diante, as denominações existentes
(presbiteriana, episcopal, Quaker, puritana) não foram capazes de integrar nos adventícios353,
tendo origem com a vinda de metodistas e batistas a uma explosão de novas denominações e
dissenções que continuam se multiplicando à medida que novas populações vão aportando em
terras americanas.
(b) A revolta baby-boom, depois da II Grande Guerra, que tornou comum às novas
gerações questionar as escolhas religiosas das gerações anteriores e fez com que deixasse de
ser um escândalo à sociedade o fato de os filhos não seguirem a religião dos pais354.
(d) O desenvolvimento de mídias modernas como tvs a cabo e via satélite, com centenas
de canais, e internet, tornaram aos consumidores os produtos religiosos acessíveis 24 hs, muitos
desses canais são exclusivamente religiosos e veiculam programação 100 % religiosa, aos quais
se tem acesso sem se sofrer nenhum tipo de repressão social e com total liberdade. A religião
não está mais controlada pelo tempo e pelo espaço.
352
Philip Schaff. A Sketch of the Political, Social and Religious Character of the United States of America, in two
Lectures (New York: C. Scribner, 1855), p. 87.
353
Katie Oxx. The Nativist Movement in America. Religious Conflict in the Nineteenth Century (New
York/Abingdon, U. K.: Routledge, 2013), p. 23.
354
Mara Einstein. Brands of faith, p. p. 5.
355
Peter Berger, O dossel sagrado, p. 149.
122
alguns nomes que não por acaso foram os primeiros arautos da teologia da prosperidade: Jimmy
Sweeggart, James Robinson, Joel Oesteen, T. D. Jakes, Creflo Dollar, Frederik Price, etc. Na
América a razão para o crescimento destas tele-igrejas e de denominações da prosperidade foi
o desdobramento do “sonho americano” 356 , que agora só ocorre por intervenção divina; a
mobilidade social de afrodescendentes e hispânicos estacionou em níveis muito baixos; e por
não conseguirem romper as barreiras sociais que só aumenta conforme seu número vai
aumentando, Deus torna-se sua única saída. De certa forma, a experiência da salvação para esse
grupo populacional estar ligada à experiência da ascensão social é algo natural, tal como o era
para os israelitas do AT a guerra e as vitórias militares tendo em vista a constante ameaça
produzida por seus muitos inimigos. Não podemos menosprezar os séculos de humilhação,
desconsideração e injustiças sociais sofridas especialmente pelos afroamericanos e tampouco
acusá-los de profanar a história sagrada por fazerem esse tipo de vindicação espiritual de suas
lutas, mas devem ser evitados os exageros, que ocorrem, por exemplo, quando sai de cena a
busca pela dignidade e surge a avidez por ostentação e pelo poder, que, infelizmente, é o que
geralmente ocorre nesses meios.
Em terras brasílicas este movimento ganhou grande impulso na década de 80, com
crescimento das igrejas pentecostais de segunda geração que pregava primariamente a cura e
secundariamente a prosperidade (Deus é amor, Brasil para Cristo, Evangelho Quadrangular).
Na década seguinte surgem as neopentecostais que invertem a ordem de prioridades
missiológicas, pregam primariamente a prosperidade e secundariamente a cura (Universal,
Mundial, Internacional, Renascer em Cristo, etc.). No Brasil e na América Latina em geral, o
boom da teologia dos milagres e coincide com a ascensão do Neoliberalismo, sob o qual se deu
a falência do sistema público de saúde por causa do inchaço da população urbana e do aumento
da parcela da população que não contribui para o sistema de saúde (desemprego e sub-emprego,
informalidade). A teologia da prosperidade aparece nesse mesmo contexto, em uma época de
incerteza econômica e desemprego, na década de 90, enquanto o Brasil seguia a agenda
econômica do FMI e a rede de proteção social se deteriorava.
356
John MacArthur. Strange fire. The danger of offending the Holy Spirit with counterfeit worship (Nashville, TN:
Nelson Books, 2013), p. 59.
123
conhecedor da doutrina, até porque não tem muito interesse nela: ela não faz parte de suas
prioridades espirituais. Basta observar como a Escritura tem pouca relevância no culto da IURD
(os membros sequer levam Bíblias aos cultos) e/ou é usada apenas como fonte de oráculos,
como também ocorre na Deus é Amor; em ambas não existe o programa de escola dominical
ou similar 357 . Esse novo adepto quer adorar a Deus e ter uma experiência renovadora, a
explicação da Bíblia e a participação nos ritos não são os primeiros itens de sua agenda religiosa.
Esse novo adorador vem a Igreja porque está intoxicado com informações, estressado com uma
sua imensa agenda, cujos itens parecem multiplicar-se como bactérias. Aquilo de que necessita
é uma seção de catarse, que o ajude a purgar-se de todos esses excessos da vida
contemporânea358. Essa catarse, entretanto, é um tanto diferente daquela definida por S. João
da Cruz; ela carece das outras duas etapas da jornada espiritual proposta pelo santo católico: a
iluminação e a união com Deus359, as quais ficam adiadas para o tempo das calendas gregas,
porque nesse contexto o que existe é a catarse pela catarse, uma experiência religiosa mais
superficial e instantânea que produz uma espécie de satisfação não duradoura, mas que lhe dá
forças para seguir adiante. Também precisa de um serviço de culto em que os produtos
religiosos sejam expostos de modo mais racionalizado, de maneira clara e econômica, porque
não pode perder mais tempo e quer ter acesso àquilo que responde à sua exata necessidade,
como se a Igreja fosse para ele um grande supermercado da fé. Por isso a grande marca desse
tempo é o surgimento de religiões privadas, onde os indivíduos, visando suas próprias
necessidades, produzem uma combinação de crenças e práticas não muito coerentes que passam
a ser sua religião singular.
357
Cecília L. Mariz. “Católicos da libertação, católicos renovados e neopentecostais”, p. 32.
358
“Catarse, purgação ou purificação espiritual refere-se aos eventos e processos pelos quais um indivíduo é limpo
e libertado de todos esses impedimentos – sensível, intelectual e espíritual – que bloqueia sua busca por autêntica
existência em união com Deus”. John D. Jones. “Catharsis”. In Gordon S. Wakefield. Westminster Dictionary of
Christian Spirituality (Philadelphia: Westminster Press, 1983), p. 79.
359
John D. Jones. “Catharsis”, p. 79.
360
Robert N. Bellah. “Implications for religion”. Palestra aprensentada em 21 de Fevereiro de 1986 em St. Mark
Catholic Church, Isla Vista, CA.
124
não lhe tenha acontecido361. Não existe uma ‘religião natural’. Outro ponto sobre a questão é o
fato de essas religiões privadas estarem tornando-se comum, mesmo entre os ‘com igreja’, os
frequentadores habituais ou esporádicos de algum culto religioso. Bellah cita para sustentar sua
opinião a pesquisa recente (naquele então) do Instituto Gallup que apontava a taxa de 80 % da
população religiosa norte-americana que concordava com a declaração: “o indivíduo pode
chegar às suas próprias crenças religiosas independente de qualquer igreja ou sinagoga”362.
Provavelmente, o resultado dessa pesquisa se feita no Brasil seria diferente. A liberdade com
que o brasileiro está afeito não chega a tanto. Além disso, o Protestantismo brasileiro é de uma
linha mais tradicional do que o norte-americano. É mais provável no Brasil a prática da
biconfessionalidade e da multiconfessionalidade e combinações religiosas mais discretas,
donde pensarmos que o número de shelaistas no Brasil seja menos expressivo.
Mas isto não nos exime de problemas com a individualização da fé. Dadas essas
necessidades singulares do novo adorador, as igrejas veem-se forçadas a se engajarem em uma
luta pela sobrevivência no mercado globalizado tal como ocorre com as empresas: uma
multidão de igrejas disputa uma multidão de (in)fiéis que as sustentam. Elas começam a investir
em marketing para aprender a diferenciar seus produtos e oferecê-los de maneira mais adequada
às diversas faixas de interesse. Não há tempo para longas exposições doutrinárias; o ensino é
mais aplicado à vida e à experiência e deve ser vertido através de temas simples e objetivos: o
poder da fé para a percepção da bênção esperada, o poder de Deus para repreender o mal, Deus
na vida familiar, etc. A comunicação deve ter formato ágil, tipo a la carte, como é o caso da
IURD: Segunda-feira a corrente dos empresários e da prosperidade, na Terça-feira a saúde, na
Quarta-feira a da busca do Espírito Santo; na Quinta a corrente da família, na Sexta a da
libertação363, etc.
Além disso, por causa do avanço tecnológico o gap entre as gerações se aprofunda e
ocorre cada vez mais rapidamente, a cada dez ou quinze anos uma nova linguagem e uma nova
forma de pensar e de viver surgem junto com a nova tecnologia da informação, sendo necessário
adequar o formato de apresentação do evangelho a cada nova geração. Pelo mesmo motivo dá-
se a multiplicação de igrejas no mercado religioso; sempre surge uma nova Igreja para explorar
esses nichos de consumo específicos. Um exemplo disso é a Igreja Evangélica Bola de Neve
(doravante IEBN) que se especializou no público que ainda não se tornou ‘inta’ (ou seja,
361
Ibid.
362
Ibid.
363
Cecília L. Mariz. “Católicos da libertação, católicos renovados e neopentecostais”, p. 34.
125
daqueles que ainda estão na casa das dezenas e das vintenas)364, oferecendo-lhe um produto
religioso adequado à sua faixa etária. Nessa mesma linha atuam outras mais recentes e não
menos ambiciosas inovações religiosas, que tentam explorar o mesmo público jovem-juvenil.
Trata-se da Igreja United, com sede na Barra da Tijuca, pastoreada por Joshua Adams, norte-
americano que trabalha no Brasil como designer e fotógrafo, e sua esposa. O louvor é rock
pauleira; os paramentos do pregador, uma calça skinner rasgada e uma camiseta básica. A
juventude se aglomera a sua frente enquanto ele ministra uma mensagem bíblica, mas eivada
de gírias e metáforas que falam de surf e shopping, mas com o objetivo de chegar finalmente
ao ‘Jesus morreu por você e quer te salvar’. A Igreja tem três anos e já possui três unidades365.
O outro exemplo é a Igreja do Cinema (INC) que literalmente funciona em um cinema com
distribuição de pipoca e lanche e com um sermão modernoso e tem a sede da franquia em
Curitiba (isto mesmo, é uma franquia). Ambas não fazem caso de piercing no nariz, tatuagem
no rosto, calça rasgada, cabelo pintado de vermelho; nelas também não existe a encrenca de
disciplina eclesiástica. No mais é igual. Sexo só depois do casamento, sem drogas lícitas ou
ilícitas e recomenda o estudo diário da Bíblia. Em suma, foram feitas para acolher o público
jovem evangélico que já se sente deslocado em meio ao rebanho de origem e já não se adapta
àquela formalidade e linguagem.
É a religião sendo invadida pela sociedade do consumo, mas o que fazer? A vida de hoje
em dia o exige. Nesse contexto de evangelização por presentificação, sobre um pano de fundo
de um Protestantismo cultural, que funciona sobre o ambiente religioso de modo semelhante ao
Catolicismo até a primeira metade do século XX366; ou seja, a evangelização deve obedecer a
uma outra lógica que não a lógica da conversão. No Protestantismo cultural brasileiro há
algumas unanimidades: a Escritura, o dízimo, não prestar culto a imagens, aceitar a Cristo como
Salvador pessoal, etc. Contudo, há outros elementos que já foram características básicas do
evangelicalismo que aportou no Brasil vindo dos Estados Unidos, mas que não mais compõem
o quadro cultural de nosso evangelicalismo:
364
Bruna S. A. Dantas. “A dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve”, Religião e Sociedade
(Rio de Janeiro, 30 (1), 2010),
365
O globo. Igrejas diferentonas atraem jovens evangélicos (26/06/2017).
366
Samuel Escobar. “It’s Your Turn, Young Ones – Make Me Proud! Evangelical Mission in Latin America and
Beyond”. In Miguel Alvárez(org.). The Reshaping of Mission in Latin America.
126
aceita a Jesus como seu Salvador pessoal. O Ativismo é mais ou menos sinônimo de
evangélico e evangelizar, ou seja, disseminar a mensagem cristã [...]. E o
desproporcional foco em Jesus Cristo – o crucicentrismo – é um evidente aspecto do
Evangelicalismo367.
As igrejas, por seu turno, adotam atitudes levianas ao lidar com esse novo fiel e com suas
necessidades, entre os principais produtos religiosos oferecidos estão a prosperidade, o sucesso
profissional e empresarial, que podem ser trocados por uma prova de fé proporcional a 10 %
do bem ou da graça visada, o que é uma inversão do que costumeiramente é prática nas igrejas
evangélicas, em que o dízimo é pago depois de recebida a graça e não antes. A IURD é a que
mais se notabiliza nesse quesito que pode ser chamado de extorsão espiritual 370 . A saúde
também é vendida de forma irresponsável, estimulando a ignorância do leigo, por meio de
diagnósticos demonísticos pelos quais se atribui todo e qualquer tipo de patologia à obra do
diabo, prática na qual todas as neopentecostais se assemelham. Aqui entra em ação a lógica do
367
Katie Oxx. The Nativist Movement in America, p. 9.
368
Cecília L. Mariz. “Católicos da libertação, católicos renovados e neopentecostais”, p. 33.
369
Idem, ibid.
370
Ibid., p. 34.
127
Aqui gostaríamos de fazer um adendo para explicar alguns termos. Religiões do espectro
Nova Era (RENE) é uma designação genérica que serve para agregar a maioria dos movimentos
religiosos sincréticos que adotam o esoterismo como principal linha teológica no Brasil. Como
já foi esclarecido, essa definição não coincide completamente com a de novos movimentos
371
Paul Heelas. “Prosperity and the New Age movements: The efficacy of spiritual economics”. In Brian R.
Wilson; Jamie Creswell. New Religions movements: Challenge and Response (London/New York: Routledge,
1999), p. 52.
372
Ibid., p. 53.
373
Zigmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade, 225.
128
religiosos (NMR ou NRM, em inglês), porque apesar de uma coincidência cronológica, tendo
surgido todos nas últimas quatro décadas374, teologicamente oferecem quadros muito diversos.
O termo representa um conceito algo mais amplo e ao mesmo tempo um tanto mais restrito do
que NMR, daí a escolha ter recaído em religiões do espectro Nova Era (RENE). Mais amplo
porque cremos que a afinidade teológica é mais importante do que a cronológica, de sorte que
entendemos deverem alguns movimentos mais antigos ser classificados da mesma forma que
os presentes; e mais restrito por excluirmos desse grupo os movimentos neo e novi pentecostais
ou pentecostais inovadores.
374
Brian Wilson. “Introdução”. In Brian R. Wilson; Jamie Creswell. New Religions movements, p. 1.
375
Paul Freston. Protestantismo e política no Brasil: da constituinte ao impeachment, Tese de doutoramento,
Campinas: Unicamp, 1993.
376
Leonildo S. Campos (“Why Historic Churches are Declining and Pentecostal Churches are Growing in Brazil:
A sociological perspective”. In B. F. Gutierrez; D.A. Smith (eds.). In the Power of the Spirit: The Pentecostal
Challenge to Historic Churches in Latin America (Louisville: KT: Aipral-Kelef/Presbyterian Church, 1996).
377
Jesus Hortal. “Um caso singular de pentecostalismo autônomo: a Igreja Universal do Reino de Deus”
(Congresso Internacional: As novas religiões–missões e missionários, Recife, 1994).
378
Ricardo Mariano. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (São Paulo: Edições Loyola,
1999).
129
A imersão da religião no mercado, bem considerado, é algo espantoso, pois nada disso
estava presente nas origens desses movimentos religiosos, seja nas denominações de matriz
cristã ou naquelas do espectro New Age. Como se sabe, estes novos pentecostalismos são ramos
que nasceram das pentecostais históricas que professavam a ética do trabalho honesto e
abençoado por Deus do Protestantismo histórico e que não via com bons olhos a preocupação
excessiva com a prosperidade material. Como já foi dito, a maior parte das RENE surgiu na
onda da contracultura norte-americana na década de 60, que inspirou toda uma geração a
desapegar-se dos bens materiais e a retirar-se da cidade para viver em harmonia com a natureza
em comunidades pequenas (hippies).
379
Sébastien Fath. “Un eldorado évangélique en Amérique latine? Le cas Carlos Annacondia”. In Bertrand Badie
et Dominique Vidal (org.) La fin du monde unique: l’état du monde (Paris: La Découverte, 2010), p. 197.
380
Cesar R. Jacob; Dora R. Hees; Philippe Waniez. Religião e Território no Brasil: 1991-2010 (Rio de Janeiro:
Editora Puc Rio, 2013), p. 13.
381
Bruna S. A. Dantas. “A dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve”, p. 55.
382
Augustus Nicodemus Lopes. “Entendendo a bênção de Toronto”, Ultimato (1996).
130
383
Brian Morris. Religion and Anthropology. A critical introduction (New York: Cambridge University Press,
2006), p. 307.
384
Osho. Auto-biografia de um místico espiritualmente incorreto (São Paulo: Cultrix, 2000), p. 7.
385
Osho. Auto-biografia, p. 15.
386
George D. Chryssides. Exploring new religions (London/New York: Continuum, 2001), p. 211.
387
George D. Chryssides. Exploring new religions, p. 210-211.
388
Osho. Sex matters. From Sex to superconsciousness (New York: Osho International Foundation, 2000).
131
O mundo com o qual ambos movimentos religiosos estão lidando é um mundo caótico,
governado por forças incompreensíveis e incontroláveis. Pessoas fragilizadas e vulneráveis
social e emocionalmente necessitam sentir-se mais seguras e esses rituais mágicos dão-lhes essa
sensação. Não se trata de uma racionalização, como que originária de uma má ciência, como
afirma Frazer em sua obra magna, O ramo dourado, que ele sintetiza por meio das famosas três
leis da magia: a similitude, o contraste e a vizinhança390. Em plena era da tecnologia seria insano
afirmar que o que está a ocorrer é uma espécie de “neoarcadismo”, uma revalorização do
pensamento mágico391. É uma bobagem explicar o efeito dos rituais dessa forma. O mundo em
que vivemos é um mundo inseguro, instável. A tecnologia longe de nos colocar no controle
aumentou nossa sensação de insegurança, a globalização longe de melhorar nossa vida
aumentou a desigualdade local e planetária. Foi chamado por isso de “um mundo em fuga” por
389
Georges D. Chryssides. Exploring new religions, p. 211.
390
James G. Frazer. O Ramo de ouro. Magia e religião (Rio de Janeiro, Zahar editores, 1982).
391
Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado, p. 313.
132
392
Anthony Giddens. The runway world. How globalization is reshaping our world (New York: Routledge, 2003).
393
Paulo Coelho. O alquimista (Rio de Janeiro, Rocco, 1990), p. 48.
394
Andrew Dawson. New Era – New Religions, p. 6.
395
Gilles Lipovetsky. “Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna” in Gilles Lipovetsky e Sébastien
Charles. Os tempos hipermodernos (São Paulo: Editora Barcarolla, 2004), pp. 60 e 61.
396
Zigmunt Bauman, Vida a crédito. Conversas com Citlati Rovirosa-Madrazo (Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
2010),, p. 211.
133
novas gerações como ‘ficar’. Vivemos imersos na “Modernidade líquida”, onde existe uma
“cultura descartável da gratificação instantânea”397. E nada parece estar imune a isso. Anthony
Giddens observa que “a modernidade altera radicalmente a natureza do cotidiano social os
aspectos mais íntimos de nossa experiência”398. De sorte que nossas expectativas relativas à
satisfação instantânea parecem invadir tudo, então, por que não haveria de ocorrer o mesmo
com a experiência religiosa?
O pensamento de René-Girard vai também nessa direção. Para ele está a ocorrer uma
fetichização, não da mercadoria conforme conceituação marxista já um tanto ultrapassada, mas
uma “fetichização do desejo”, ou seja, hoje em dia quem consegue satisfazer seus desejos é
quem é, quem tem uma existência digna de nota. Com efeito, essa fixação na satisfação do
desejo tornou-se algo tão importante hoje que foi gerada uma confluência de satisfações nesse
mesmo locus, uma equivalência da experiência religiosa com a do consumo por meio de seus
resultados (e o desejo da experiência religiosa tem hoje relevância no mercado). Ele diz que
nossa vida emocional, espiritual, possuem a mesma estrutura de nossa vida econômica” 399;
estão ambas estão baseadas na mesma satisfação. “Se o dinheiro tem se tornado o centro da
vida humana, também se converte no centro de um sistema análogo que reproduz às avessas a
estrutura da redenção cristã”400. Em suma, quando um membro da Universal recebe uma graça
financeira, para ele isso quer dizer o mesmo que falar em línguas na Assembleia de Deus, ou
superar más inclinações morais para os protestantes tradicionais, ou seja, significa uma
satisfação pela certeza que Deus opera em sua vida, que Deus manifesta Seu favor a ele e o
resgata de seu desvalimento e restaura sua condição de filho de Deus. Não seria isso o
equivalente à salvação?
397
Zigmunt Bauman. Vida a crédito, p. 211.
398
Anthony Giddens. Modernity and self-identity, p. 01.
399
René Girard. “El deseo mimético de Paolo y Francesca”. In René Girard. Literatura, mimesis y antropología
(Barcelona: Gedisa, 1984), p. 25.
400
Idem, ibid.
401
Ludwig Wittgenstein. Remarks on Frazer’s Golden Bough. Remarks on Frazer's Golden Bough. In C. G.
Lukhardt. Wittgenstein, Sources and Perspectives (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1979), p. 64.
134
alguma maneira nosso deslocamento, e assim nos sentimos aquietados e satisfeitos. Pelo mesmo
processo nos sentimos aquietados quando performatizamos alguns rituais que, do ponto de vista
racional, não têm o menor efeito: beijar um objeto sagrado e queimar algo considerado anátema,
por exemplo. A satisfação religiosa pode, portanto, teoricamente, decorrer de qualquer coisa
que uma pessoa deseje fazer para expressar sua devoção ou sua piedade402, sua ligação com
algo ou alguém que é objeto de sua adoração ou veneração. É a expressão de um ato ou o
proferimento de palavras que não servem para nada exceto para expressar um conteúdo
simbólico e emocional (papel performático).
Como mais adiante veremos, o fato de o consumo e o dinheiro produzirem esse tipo de
satisfação é indício de que o sagrado e o profano estão mudando de lugar. Em outras palavras,
a satisfação religiosa está convergindo para o mesmo lugar onde circula o dinheiro e a compra
e venda de produtos e serviços, ou seja, o mercado. A estrutura holística da vida contemporânea
tem favorecido essa conflação. Contudo, seria legítimo esse resultado? Não seria mais adequado
dizer que existe aí uma contrafação da satisfação religiosa, resultado da manipulação das
reações humanas por técnicas de marketing, e não religião real? Sim, porém não só. Com efeito,
a ilusão da satisfação religiosa produzida pelo marketing religioso não tem dado bons frutos
porque não tem bons fundamentos. Ela é invertida. Seu foco não está em um processo de
comunhão com Deus, de que a satisfação religiosa é apenas o gran finale; começa pelo final e
termina aí. O mesmo ocorre à satisfação sexual instantânea mencionada por Bauman, que
também tem seu epicentro no finalmente, no instante orgástico ansiado, e por isso é apenas
viciante; a gratificação por nada e a gratificação fácil tornam-se vazias e pouco satisfatórias em
relação ao que quer que seja, requerendo uma dose cada vez mais forte para surtir algum efeito.
Uma das consequências dessa gratificação vazia que a experiência religiosa hoje assume
imitando outras gratificações instantâneas da vida atual é o ecletismo religioso. Uma
experiência religiosa sem doutrina, sem fundamentos, gera uma necessidade sem fim de
consumo porque os itens são tão variados e sem nenhum critério de escolha (porque não existe
doutrina). Não é por isso improvável que esse ecletismo tenda a produzir afinal uma
“intoxicação religiosa”, ou um fastio à religião, que pode ser um dos motivos porque o número
dos sem-religião vem crescendo vertiginosamente no mundo Ocidental403; isso pode resultar de
uma aversão a esse excesso.
402
Ibid., p. 66.
403
Os sem religião crescem nos Estados Unidos (Candy G. Brown; Mark Silk. The Future of Evangelicalism in
America, New York, Columbia University Press, 2016.p. x); no Brasil em 30 anos (1980 a 2010) os sem religião
135
Isso nada tem a ver com a secularização do Ocidente no sentido de perda de plausibilidade
do pensamento religioso devido à ascensão do discurso científico, como foi apontado por P.
Berger406, ou então devido a um “déficit de experiência”, como prefere E. Schillebeeckx407. A
secularização é causada pelo pensamento científico de forma indireta, ou seja, não significa que
as pessoas estejam deixando de crer e ter fé porque as teorias científicas sobre a vida e a morte
tornaram-se mais plausíveis do que as religiosas. A secularização tornou a religião menos
visível socialmente, e tendo-a tirado de certos espaços da vida social, com isso diminuiu a
possibilidade de se buscar aí por seu socorro408. A ciência tornou-se concorrente da religião não
por ser proponente de um sistema teórico totalizante e autônomo de compreensão da realidade,
mas porque recomenda outro conjunto de soluções para os problemas da vida, ou seja, trata-se
de problemas práticos e não teóricos; por exemplo, a solução de problemas inerentes ao sustento
de uma coletividade será pelas técnicas de gestão na agroindústria e não pela oração. Por esse
motivo os espaços dominados pela ciência: a medicina, a educação, a política, o mercado,
tornaram-se impérvios à religião. Em suma, era a secularização produzida pelo império de uma
ideologia dominante que impedia a penetração da religião. Quando a Modernidade começa a
ser superada (ou pelo menos enfraquecida) pela crítica pós-moderna, a secularização dos
subiram de 1.6 % para 8 % da população (Cesar R. Jacob; Dora R. Hees; Philippe Waniez. Religião e Território
no Brasil: 1991-2010, p. 10).
404
Chögyam Trungpa. Cutting through spiritual materialism (Boston: Shambhala, 2008), p. 13.
405
Ibid., p. 19.
406
Peter Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião (São Paulo: Paulinas, 1985),
p. 137.
407
Edward Schillebeeckx. Jesús, la historia de un viviente (Madrid: Ediciones Cristianidad, 1981), p. 58.
408
Steve Bruce. Secularization in the West (Oxford: Blackwell, 2002), pp. 106-107.
136
A religião está em todo lugar, porém, é pouco visível. Como institucionalmente tem se
mostrado decadente, porque também afetada pela crítica pós-moderna, aparentemente esteve
prestes a se extinguir, como foi a conclusão de alguns. Contudo, o que ocorre é que os temas
‘religiosos’ – aqueles que pertencem ao quadro de experiências extraordinárias e/ou situações
liminares: nascimento, casamento, morte – não são mais os mesmos. Na sociedade
contemporânea, segundo Luckmann, por exemplo, a morte e o que vem após ela409, perderam
preponderância como temas religiosos, sendo substituída pela sexualidade e a família410; sem
falar em outros temas de não menor importância: as finanças pessoais, o trabalho, a saúde
(intensamente exploradas pela teologia da prosperidade neopentecostal) e a relação consigo
mesmo e com a natureza (explorada pelos esotéricos). Em nossos dias... Quem poderia
imaginar? Também se tornam temas religiosos (ou pelo menos loci da religião), o consumo e o
mercado. Sim, o mercado está a imitar a religião. As estratégias de marketing atuais aproximam
as duas experiências fazendo com o que a experiência do consumo se assemelhe à religiosa e
vice-versa, levando a linguagem e elementos simbólicos da experiência religiosa ao mercado,
desde que as grandes marcas oferecem produtos cada vez mais semelhantes a produtos
religiosos, ou que pelo menos tentam imitá-la na satisfação que a utilização desses produtos
provoca.
Basta ver como a Apple lida com seus clientes, oferecendo-lhes produtos caros, mas que
que vão além de suas expectativas, tanto em termos tecnológicos como em atendimento, com
uma pós-venda que é considerada uma das melhores do mundo. Está escrito no credo da Apple:
409
Corroborando com essa percepção de Luckman, Leonildo chama atenção para o silêncio da literatura iurdiana
acerca desse tema. Ele relata que examinando mais de cinquenta números da Folha Universal não encontrou um
único que aludisse à morte de algum membro da Igreja, enquanto os necrológicos chegam a ocupar até 30% do
espaço das publicações de outras igrejas. Pode-se argumentar que se trate de uma denominação relativamente
nova, mas vinte anos de existência já dá direito a alguns defuntos. A questão é que a morte, um tema-tabu hoje em
dia, não é bom para o marketing da Igreja: “A morte, a dor e o sofrimento, situações-limite da vida humana, na
cosmovisão pentecostal estão associadas à atuação de forças demoníacas” que não podem ter qualquer espaço em
uma Igreja que se diz portadora do poder de Deus. Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado, p. 346.
410
Roberto Cipriani. Sociologia da religião (São Paulo: Paulus, 2007), p. 241.
137
A Amazon não fica atrás como criadora de fascínio do consumo. O site da Amazon está
cheio de surpresas agradáveis para quem nele navega. Também dotado da mesma onisciência
informacional, pois quando a pessoa entra, se é costumer, o ambiente virtual vai se
transformando com o papel de parede de fundo refletindo os gostos e as opções de leitura dos
clientes, de acordo com as informações de que a empresa dispõe em seu banco de dados. Além
disso, quem escreve as resenhas dos livros são os próprios leitores: os desenvolvedores confiam
no cliente e dão-lhe toda credibilidade a ponto de lhes facultar a última palavra sobre seu
produto. E além de tudo, algo que seria considerado suicídio comercial em outros tempos, o
site também informa onde se pode comprar um produto mais barato do que o que é oferecido
pela própria Amazon, mas isso só acontece devido às comissões que a Amazon recebe dos
patrocinados 413 ; ‘não existe almoço grátis’. Mas, a impressão que a Amazon passa para o
usuário é que lá existe justiça, confiança, lealdade e outros valores cristãos.
411
Carmine Gallo. A experiência Apple. Segredos para tornar clientes incrivelmente fiéis (São Paulo: Leya, 2013).
412
Cf. Carmine Gallo. A experiência Apple.
413
Cf. Richard L. Brandt. Nos bastidores da Amazon (São Paulo: Saraiva, 2014).
138
despertadas quando as pessoas têm experiências religiosas intensas414. Não se trata mais de
consumir artigos de necessidade e seguir vivendo como sempre, o consumo está se convertendo
em uma religião e ‘converter’ aqui deve ser entendido em sentido religioso. O objetivo das
grandes marcas hoje em dia é vender uma experiência de satisfação, não um produto; essa
experiência é muito similar à satisfação religiosa, porque, sem entrar no mérito da intenção do
fabricante, essa experiência humaniza as pessoas.
Este processo de humanização ocorre também aos que estão do lado de lá do balcão,
porque por meio de um eficiente marketing interno que visa convencer os colaboradores de que
estão engajados em uma missão humanizadora, porque produzem ou ofertam um produto
realmente essencial e não meramente um produto para gerar lucro415. Seus funcionários devem
sentir-se úteis e relevantes oferecendo produtos que vão revolucionar a vida das pessoas e não
as enganar, induzindo-as a comprar produtos e serviços de má qualidade ou coisas e/ou serviços
de que realmente não necessitem. Essa necessidade muitas vezes faz altos executivos do sistema
financeiro abrirem mão de salários interessantes em grandes bancos, preferindo trabalhar em
fintechs, pois nessas empresas não terão que lograr seus clientes como fazem os gerentes dos
bancos convencionais.
Outra maneira pela qual a religião penetra no mercado são os treinamentos especiais
promovidos por entidades religiosas ou quase-religiosas, que obviamente exploram conteúdo
religioso. A partir de 1984, Werner Erhard colocou em operação um sistema de treinamento
baseado na conexão do Self-espiritualidade com os negócios, chamado “tecnologias
transformacionais” com o objetivo de incrementar as habilidades profissionais através do
despertamento espiritual416. Também é bem conhecido o sistema WISE (World Institute of
Scientology Interprises), que usa as técnicas de gestão de L. Ron Hubbard, fundador da
Cientologia, por cujos treinamentos altos executivos pagam pequenas fortunas. Em seu site os
organizadores se gabam de que essas técnicas baseadas na psicologia de Hubbard estão sendo
aplicadas com sucesso em mais de 140 mil companhias ao redor do mundo417. A lista é imensa
e a tendência atual é a especialização do serviço, com promessas de potencializações espirituais
específicas de acordo com a ocupação profissional dos interessados: Stearling Management
System, voltado para dentistas e outros profissionais da saúde; David Singer Consultant,
414
Cf. Carmine Gallo. A experiência Apple.
415
Geraldo Duarte. Dicionário de Administração e negócios (Kindlebook BR, 2011), verbete marketing interno.
416
Paul Heelas. “Prosperity and the New Age movement”, p. 56.
417
Site oficial da WISE.
139
Fazemos neste espaço uma comparação entre dois movimentos religiosos específicos
pertencentes a matrizes religiosas bem distintas para demonstrar quanta coisa em comum
possuem todas as vertentes religiosas atuais. Trata-se da IURD e do Santo Daime. A escolha
não é aleatória, mas triplamente qualificada: (a) o primeiro motivo é a representatividade desses
dois movimentos em relação às suas matrizes originárias: o Cristianismo e as esotéricas
(RENE), respectivamente; ou seja, a diversidade que eles representam, já que se localizam nos
extremos de uma escala religiosa pós-moderna, que porventura pudesse ser criada. (b) São
ambos movimentos bastante longevos ou longevos o suficiente para através de seu exame
demonstrar a inflexão na transição da Modernidade para a Pós-modernidade, ou seja,
movimentos que começaram no sincretismo e depois evoluíram para o ecletismo, que são,
respectivamente, a lógica de transformação teológica moderna e pós-moderna. (c) O terceiro
motivo é a perspicuidade como se apresenta essa transição na IURD e no Santo Daime, pois,
mutatis mutandis, experimentam essas transformações da mesma maneira, por volta da mesma
época.
418
Paul Heelas. “Prosperity and the New Age movement”, p. 56.
419
Cf. o site oficial da WISE.
140
É interessante que tantas mudanças não tenham produzido no Daime nenhum daqueles
cismas traumáticos que se vê na Modernidade, quando grupos rivais dentro da mesma
instituição se desfraternizavam com acusações mútuas de heresia. Não se descarta o fato de
algumas igrejas ainda viverem sua fé dessa maneira, contudo, no contexto pós-moderno a
questão da verdade não é mais categoria religiosa importante, daí não servir mais como
justificativa para fratura institucional violenta. A verdade é uma energia, não uma doutrina e
como energia afeta as pessoas de forma diferente. Como segundo fator para as cisões amistosas
do Daime está o holismo. O Santo Daime desde o começo de sua trajetória é um colecionador
de tradições de matrizes religiosas diversas que convivem mais ou menos harmonicamente no
interior do movimento:
A transição entre um modelo teológico mais antigo a outro adventício ocorre de maneira
menos violenta entre as religiões sincréticas como o Daime e mormente baseiam-se em motivos
pessoais, o recebimento de outra missão, por exemplo. Para ter sido esse o caso da primeira
divisão interna do Santo Daime ocorreu quando Daniel Pereira de Matos decidiu seguir uma
orientação espiritual para criar um novo movimento, a Barquinha, em 1945. Mais tarde
aconteceu o mesmo com José Gabriel da Costa ao fundar em 1960 a União do Vegetal. Ambos
eram discípulos de Raimundo Irineu421 e se separaram amigavelmente, cada um seguindo sua
linha, Daniel Pereira aproximando-se mais da Umbanda e José Gabriel, do Kardecismo. Em
1971 foi o ano em que de fato houve a única divisão no Daime (as outras foram novas
germinações); quando morreu Leôncio Gomes da Silva, o dirigente da Ciclu (Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal), que ele presidia desde o falecimento de padrinho Raimundo
Irineu, seu fundador, a presidência foi transmitida a Francisco Fernandes Filho (Tetéu), mas a
viúva de Raimundo Irineu não aceitou e arrastou consigo cinco igrejas da Ciclu no Acre422. Pela
mesma época o padrinho Sebastião Mota Melo fundava a Cefluris (Centro Eclético da Fluente
Luz Universal Raimundo Irineu Serra), que é hoje o Daime majoritário, Já nessa organização
420
Roberto Hyppolito. O Santo Daime e os espíritos da floresta (Extrema, MG, 2016), p. 66.
421
Andrew Dawson. New Era – New Religions, p. 27.
422
Site Oficial do Santo Daime.
141
houve a tranquila passagem de um sistema teológico sincrético para o eclético, como na citação
acima está o registro, sob a rubrica do ecletismo cada ponto escolhe sua linha, só se exige que
mantenha-se o ‘sacramento’ do Daime e honre-se a missão dos fundadores: mestre Irineu e
padrinho Sebastião. Nunca mais houve divisão no Daime423. Não há mais ruptura; até porque
em uma estrutura teológica holista não há como romper com nada porque tudo já está lá desde
de seus primórdios.
3.d.1. Sincretismo
A primeira fase atravessada por essas religiões pós-modernas mais longevas, como é o
caso da IURD e Santo Daime, começou pelo sincretismo. Em se tratando de movimentos
religiosos neopagãos, nada demais ser sincrético, mas se a referência é um movimento
alegadamente cristão então tudo muda de figura. Primeiramente, porque sincretismo está
marcado pela má fama na teologia tradicional, atrelado a um sentido pejorativo e negativo,
associado à inautenticidade, contaminação ou desvirtuamento da doutrina pura. Foi usado como
categoria interpretativa para entender a evolução e as transformações das religiões não-cristãs,
mas nunca para o Cristianismo, ou para a Religião de Israel ou ainda para o Judaísmo. No
transcurso dos séculos a tradição católica admitiu o sincretismo por um motivo prático, devido
às dificuldades para evangelizar apropriadamente uma imensa população gentílica que vivia
nas terras colonizadas pela Ibéria católica. Mas, os católicos nunca aceitaram que o Catolicismo
oficial tenha se sincretizado e muito menos que tenha nascido de um sincretismo que
amalgamou o Cristianismo ao Paganismo greco-romano. O olhar indulgente da Igreja Católica
para os processos sincréticos que atravessaram sua história e durou até a Romanização do século
XIX, atingindo o movimento carismático atual, deve-se ao fato de a os seus fundamentos
estarem firmados em sua eclesiologia e não no texto bíblico ou na doutrina bíblica.
No caso protestante a rejeição é mais radical porque o fundamento de sua fé repousa sobre
a Escritura e a doutrina que dela promana e deve ser a todo custo isenta de corrupção. Não pode
haver sincretismo na religião revelada, se isso vem a ocorrer implica na desaprovação divina,
pois significa algum grau de perda da verdade. Por isso, inicialmente, pode causar espanto que
423
Hoje o grupo da Ciclu acusa os daimistas da Cefluris de terem abandonado os princípios puramente cristãos,
admitindo outras tradições em sua base doutrinária e práticas; enquanto o grupo do Alto Santo, como é chamado
o grupo de daimistas da Ciclu permanecem alegadamente praticando uma dotrina e um ritual cristão, o que é falso.
O primeiro grupo permaneceu no estágio sincrético, enquanto o novo, depois da morte do padrinho Sebastião,
adotou o ecletismo, que significou a inclusão de novas tradições religiosas acrescidas àquelas originais que ambas
as vertentes do Daime já tinham sincretizado: Cristianismo, culto afro-brasileiro e xamanismo. Site oficial do Santo
Daime.
142
a IURD tenha feito vista grossa para o sincretismo de sua doutrina e o tenha mesmo negado.
Ocorre que o fundamento eclesiológico da IURD não é a Escritura, mas a posse do carisma, o
qual é o verdadeiro fiador de suas pretensões de divinamente agenciada. Assim, enquanto a
IURD operar milagres de cura, expulsar demônios e se fizer portadora das chaves que dão
acesso aos tesouros da prosperidade e da felicidade, então ela é portadora da verdade divina e
sua organização é agenciada por Deus.
Na matriz protestante a IURD foi a primeira a admitir em seu corpo doutrinário práticas
incompatíveis com o ensino da Escritura e mais adequadas a outras matrizes religiosas
concorrentes. Com efeito, a IURD começou a despontar como instituição portando as marcas
escandalosas de um sincretismo religioso intenso e assustadoramente contemporâneo,
combinando elementos originários do Protestantismo, em que a Bíblia e seu acervo doutrinário
(Soteriologia, Pneumatologia, Cristologia, Eclesiologia) aparecem combinados com elementos
de um Catolicismo popular já sincretizado com as religiões de matriz afro-brasileira e com o
Kardecismo. O sal grosso, o descarrego, “a água abençoada, óleo ungido, o manto consagrado,
a mesa branca com energia, a rosa ungida”424, todos esses elementos religiosos originários do
imaginário religioso popular; além de muitos outros que resultaram da inventividade de seus
pastores. Além disso, na cosmologia adotada (e reforçada por textos probatórios do Novo
424
Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado, p. 40.
143
425
Humberto R. Oliveira Jr. “Igreja Universal do Reino de Deus. Peculiaridades de seu sincretismo e suas
consequências para o campo religioso brasileiro”, Plura (vol. 5, no. 2, 2014), p. 69.
426
Ibid., p. 70.
427
Idem, ibid.
428
Leonildo S. Campos, Teatro, templo e mercado, p. 40.
144
elementos afro-brasileiros que conheciam429. Para mim o raciocínio parece óbvio. Se houve
sincretismo programático voltado para as religiões afro foi porque antes disso já havia
elementos compatíveis que o possibilitassem e a partir dos quais a estratégia foi reconhecida
como viável. A visão de mundo do iurdiano e do candomblecista são muito parecidas, ambos
creem que entidades espirituais são, em última instância, as causadoras dos eventos mundanos
(mundo físico). Para o iurdiano ela é causadora apenas dos eventos negativos, porque são
demônios; para o candomblecista é a causa de todos os eventos, porque são entidades. Ambas
teologias trabalham, portanto, em território comum. Acresça-se a isso o fato de o iurdiano ler
sua Bíblia de forma diferente do protestante ou pentecostal tradicional. O óculos do iurdiano é
o carisma. As entidades da Umbanda, do Candomblé, são reais; as forças atuantes também o
são; os agentes é que diferem. Enquanto lá o agente é o diabo, na IURD o agente é Deus. Os
instrumentos para transmissão desse carisma: sal grosso, arruda, banho de cheiro, etc. pouco
importam, o importante é o poder atuante de que é originário. Ora, sendo o fundamento
teológico da Universal o carisma, o poder, de que se veem detentores, nada mais natural do que
a busca pelo confronto e procurar vencer o inimigo em seu próprio território, para obter uma
vitória inquestionável.
A questão da verdade já não é mais definida como adequação ao que está escrito, mas
como adequação entre uma autodeclarada potência espiritual e aquelas maravilhas e sinais que
seu portador deve operar. Assim, se há compatibilidade entre essas duas coisas: a Igreja e sua
pretensão de agenciamento do divino, então a Igreja é verdadeira e tudo o que ela declara
também será verdadeiro. Não por acaso o nome oficial da instituição é “...do Reino de Deus”
que, emulando o que diz o Novo Testamento, significa que ‘se os demônios são expulsos, as
doenças curadas e a prosperidade é derramada, então é chegado o reino de Deus’. Entretanto,
essa forma de construção teológica abre uma grande brecha para que uma teologia pós-moderna
se estabeleça, pois é uma metodologia completamente discricionária, ou quase. Enfim, embora
o uso da Bíblia ainda seja importante como fonte de confirmação, ela exerce um papel
secundário.
A questão sobre os instrumentos de transmissão de carisma, que a IURD alega não terem
a menor importância, pelo menos considerando a forma como manipula os instrumentos de
outras tradições religiosas, na verdade esconde um outro elemento sincretizado para o qual nos
chama a atenção Leonildo S. Campos. A Universal também fez aliança com um esoterismo
429
Humberto R. Oliveira J. “Igreja Universal do Reino de Deus. Peculiaridades de seu sincretismo [...]”, p. 70.
145
mais refinado da New Age, não em suas práticas e teologia, mas em sua filosofia de transmissão
de carisma e sua cosmologia. A IURD não adotou essas ideias diretamente da fonte esotérica,
mas de teólogos cristãos que beberam dessa fonte. Com efeito, se considerarmos a cadeia de
transmissão de ideias, os elos mais próximos foram os tele-evangelistas fundadores da teologia
da prosperidade: Keneth Hagin, T. L. Osborn, Jimmy Sweeggart, Keneth Copeland, Benny
Hinn, etc., o próximo elo rumo à origem de tudo foi Norman V. Peale430, o pai do pensamento
positivo no mundo evangélico norte-americano, que, por sua vez, bebeu diretamente na fonte
da New Age. A influência do esoterismo na Universal foi sintetizada por Leonildo da seguinte
forma:
1. A vida material é uma manifestação de um Espírito Eterno, uma energia que inter-relaciona a todos
e a tudo sob sua influência e se manifesta por meio de objetos. O locus privilegiado, para eles
alojamento dessa força, é o interior de cada um.
2. Os seres humanos são de dupla natureza, material e espiritual. Os males vêm de fora produzem
um Eu inferior, por isso devem ser exorcizados pela força do Eu superior – Jesus Cristo,
representado fisicamente pelo pastor-exorcista.
3. O mundo caminha para um novo período no qual as contradições serão superadas. Para uns, é a
Nova Era; para a IURD, é “o reino de Deus”.
5. O sofrimento é estranho à lógica da vida e deve ser evitado, já que não há nenhum valor
pedagógico na enfermidade, no mal-estar, na pobreza e na dor431.
O ato de descobrir e oferecer um produto religioso de acordo com um público pode ser
intencionado, nisso refletindo o predomínio da lógica do mercado que prevalece no ambiente
religioso atual; e, reconheça-se, pode indicar uma pré-disposição ao sincretismo; mas não
permite afirmar que isso já seja o próprio sincretismo: o sincretismo pertence a uma etapa
anterior da formação religiosa. Enfim, os pastores da IURD deveriam estar incorporados com
o espírito de Max Weber para provisionar o púlpito iurdiano com uma mescla adequada de
crenças e práticas religiosas harmônicas, capazes de produzir um sistema coerente, que
pressupõe a ideia de sincretismo. Por mais que se possa elogiar o tino marqueteiro dos líderes
da Universal sua capacidade de manipulação das massas, eles nunca chegariam a tanto. O
430
Ibid., p. 312.
431
Ibid., p. 43; Cf. também Rubem César Fernandes. Pentecostes e Nova Era. Fronteiras e passagens (Rio de
Janeiro: Iser, 1994).
146
sincretismo é muito mais complexo do que a mera acomodação de elementos religiosos com
intenção missiológica. Além da religião estão aí também combinados elementos econômicos,
sociais, históricos e ideológicos. Ou seja, já é difícil analisar a sincresia que está diante de
nossos olhos, imagine-se intencionar e controlar o desenvolvimento de toda uma teologia.
Preferimos, portanto, pensar que o processo sincrético que a Universal experimentou foi
espontâneo e não intencionado; decorreu pela conjunção de fatores sociais, econômicos,
religiosos e culturais 432 . Todas as linhas teológicas da IURD estão conectadas com a
religiosidade popular que, pode-se dizer, é sua matriz originária. Ou seja, não foi a Universal
que produziu o sincretismo, ele já estava pronto no veio social onde foi garimpado, ele nasceu
como resposta sistêmica a demandas já existentes, como sói acontecer no surgimento e
desenvolvimento das religiões.
Pode-se até questionar a eticidade da liderança maior da IURD por deixar que a
exploração dessa religiosidade popular ocorresse de maneira tão desbragada e oportunista. Mas
quem pode controlar a lógica expansionista dessas instituições cuja legitimidade é o próprio
crescimento? Além disso, a teologia originária da IURD favorecia o sincretismo porque, tal
como a Igreja Católica, ela nunca colocou a Escritura em lugar de destaque. A Escritura é usada
primariamente como fonte motivacional, secundariamente como fonte apologética da “guerra
santa” contra o Catolicismo e o Candomblé, mas nunca é a autoridade final para definir as
doutrinas e as práticas da Igreja. A fonte da autoridade na Igreja Universal é o carisma e ponto
final.
432
Levando em conta apenas o aspecto econômico percebe-se claramente a relação dos diversos tipos de
Pentecostalismo com os momentos econômicos pelos quais o Brasil passou. As denominações pentecostais que
nasceram a partir da década de setenta, todas elas explorando a questão da saúde (Deus é amor, Evangelho
Quadrangular e Brasil para Cristo), promovendo curas e milagres, surfaram na onda dessa demanda produzida no
auge da falência do sistema de saúde que precedeu a criação do sistema SUS no final da década de 90. A IURD, a
Internacional da Graça e a Mundial do Poder de Deus, nasceram com a crise do emprego com a implantação do
arrocho neoliberal dos anos 90, cuja pregação tentava satisfazer essa demanda.
433
Andrew Dawson. Santo Daime. A new world religion (London/New York: Bloomsbury Academic, 2013), p. 9.
434
Ibid., p. 15.
147
435
Cefluris, Site official. Origem do Santo Daime.
436
Idem.
437
Andrew Dawson. Santo Daime, p. 16.
438
Cefluris, site official. Normas de rituais.
439
Andrew Dawson. Santo Daime, p. 28.
440
Emerson Giubelli. “Amerindian and Priest in Brazilian Umbanda”. In Rui Blanes; Diana Espírito Santo. The
social life of the spirits (Chicago: Chicago University Press, 2014), p. 196.
441
Cefluris, site oficial. Normas de rituais.
442
Umbanda, Site oficial. Cruz de Caravaca.
443
F. Rivas Neto. Umbanda, a proto-síntese cósmica (São Paulo: Pensamento, 2007), p. 332.
148
Padrinho Sebastião, como também é conhecido Sebastião Mota Melo, foi o responsável
pelo início da institucionalização do Daime. Ele criou uma instituição denominada Cefluris
(Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra)444, como o próprio nome
indica, ‘Eclético’, estava surgido uma nova metodologia de pensamento religioso. A partir daí
o Daime vai ganhar o mundo e cair nas graças da classe média do Centro-Sul do Brasil. A
instituição do Centro Eclético já dá a senha para as mudanças pelas quais vai passar o Daime a
partir daí. O filho de Sebastião, o padrinho Alfredo vem dar continuidade ao processo de
branqueamento do Daime pela introdução de diversas inovações provenientes da matriz da
Nova Era, mas aí já não é mais sincretismo, mas ecletismo que passamos a esclarecer em
seguida.
3.d.2. Ecletismo
Com isso percebe-se aquilo de que mais acima dizíamos sobre o processo de
massificação-individuação que está em curso nesses tempos de globalização. As instituições
têm um controle menos rígido sobre o adepto e isto não é algo que ela tenha decidido, o mercado
religioso decidiu assim. Contudo, se de um lado perdeu pelas vias institucionais parte do
controle sobre o indivíduo, por outro aumentou sua capacidade de sedução e manipulação de
seus desejos. Essas instituições desenvolveram a capacidade de “combinar elementos de outras
444
Andrew Dawson. Santo Daime, p. 20.
445
Anthony D’Andrea. Reflexive religion: The New Age in Brazil and beyond (Leiden: Brill, 2019), p. 70.
446
Paul Oliver. New religious movements: A guide to the perplexed (London/New York: Continuum, 2012), p.
167.
149
tradições religiosas com a moderna comunicação de massa”447 dessa forma compensando sua
perda de controle sobre os indivíduos.
447
Enzo Pace. “Una possibile tipologia”. In Eugenio Fizzotti (ed.). Setti e nuovi movimenti religiosi (Milano:
Paoline, 2007), p. 20.
448
Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado, p. 195.
449
Leonildo S. Campos. Teatro, templo y mercado, p. 196.
450
Ibid., p. 201.
451
Paulo Barrera Rivera. “Pentecostalism in Brasil”. In Bettina Schmidt; Steven Engler. Handbook of
contemporary religions in Brazil (Leiden: Brill, 2017), p. 127. Cf. Ronaldo de Almeida. A Igreja Universal e seus
demônios (São Paulo: Terceiro Nome, 2009), pp. 47-53.
150
disso, a IURD a estratégia de venda da IURD não fica prisioneira dos templos, pois os obreiros
vão também de casa em casa encorajando os interessados e conhecendo suas necessidades. (g)
Não basta induzir o consumidor visado a adquirir seu produto, é necessário fidelizá-lo,
transformá-lo em um custumer. Para isso é preciso que ele tenha vantagens adicionais ao
consumir os produtos religiosos da IURD. Por exemplo, vantagens sociais que advém da
fidelização e do aumento da contribuição, como se vê quando o pastor iurdiano elogia
publicamente o irmão que aumentou seu dízimo para vinte por cento de seus ingressos
financeiros452. (h) Sem falar no uso da mídia em que a Universal foi pioneira no Brasil, com
forte veiculação televisiva e com um periódico, Folha Universal, que é atualmente o de maior
tiragem na América Latina, com 2,5 milhões de exemplares por semana 453 . A estratégia
midiática adotada foi mesclar o secular com o religioso: na tevê com uma programação secular,
seguindo o mesmo formato das emissoras não religiosas, e um adendo religioso na madrugada,
ou ainda por uma adaptação religiosa da programação secular através de histórias bíblicas no
formato de novelas. Na Folha Universal ocorre a mesma bipartição secular-religioso, com
matérias parte seculares e parte religiosas, com especial dedicação a matérias de cunho político
ou então que possam ser exploradas politicamente, ou seja, de acordo com os interesses do
projeto de poder da Universal454.
Essas e outras deliberações administrativas são indicativos de que a IURD não estava
mais inteiramente consentânea com o modelo denominacional importado dos Estados Unidos,
o que ela importava dos Estados Unidos era um modelo empresarial trazido por Robert
McLister ao Brasil e que como bispo da Igreja Pentecostal Nova Vida, incorporou no cotidiano
evangélico pentecostal brasileiro: rádio, televisão, mídia impressa455, do qual também fazia
parte a teologia da prosperidade e a teologia dos milagres. Em suma, a lógica do mercado
penetrou tão profundamente no DNA da IURD que o trânsito para o paradigma missiológico
pós-moderno, caracterizado pelo ecletismo, foi apenas mais uma etapa na marketização de sua
mensagem.
452
Leonildo S. Campos. Templo, teatro y mercado, p. 201.
453
Gospel Prime. Folha Univesal chega à sua milésima unidade (04/06/2011).
454
Danilo Rothberg; Mariane B. Dias. “Religião, política e eleições na Folha Universal”, Intexto - UFRG (no. 27,
Dez, 2012), p. 22.
455
Nova Vida, site oficial. A biografia do bispo Robert McLister.
151
e práticas heterógenas que não visam a manutenção de um sistema teológico orgânico e coerente
como era o caso do sincretismo, anteriormente praticado; pelo contrário, é a combinação desses
elementos heterógenos é uma bricolagem de tradições e filosofias diferentes, sem nenhuma
preocupação em criar um todo harmônico e sistêmico. A combinação desses elementos
teológicos funciona por justaposição, pelo compartilhamento do mesmo espaço e do mesmo
tempo, sem necessariamente serem teologicamente compatíveis os elementos religiosos. A
compatibilidade teológica ou racional deixa de ser importante, sendo substituída pela
compatibilidade afetual, ou seja, se faz sentido para o adepto ou para o grupo a que ele pertence
então está bem.
Nesse sentido os contemporâneos voltam a apresentar a mesma forma de pensar que uma
vez os ocidentais atribuíram aos ‘selvagens’, pois pelo menos no aspecto religioso, o
contemporâneo abandona a fixação por conceitos e definições e adota os símbolos como forma
preferível de pensamento, tendo como critério de escolha de elementos religiosos não aquilo
que pode caber em um sistema, mas o que fica “a meio caminho entre o percepto e o conceito”,
isto é, o simbólico456. O objetivo não é mais a elaboração de um conjunto auto-coerente de
doutrinas com princípio, meio e fim; mas, um sistema de símbolos justapostos que ampliam o
alcance das ideias religiosas. Não existe mais um projeto prévio à tarefa de reunir doutrinas e
técnicas espirituais. Tudo é válido e em algum momento poderá ser usado, até aquilo que se
apresenta como “resíduos de construções e destruições anteriores”457 merece ser colecionado.
O objetivo agora é renovar e enriquecer o estoque de símbolos, o resultado pode ser até
contraditório porque por mais que dado elemento seja diferente e até heterógeno, na essência
nada se altera, pois agora prevalece uma visão holística da realidade, onde tudo está em conexão
com tudo.
456
Claude Lévy-Strauss. O pensamento selvagem (Campinas, SP: Papirus, 1989), p. 33.
457
Idem, ibid.
152
mil metros quadrados, com pedras que vieram de Israel e cuja construção custou aos cofres da
458
Igreja 680 milhões de reais . Evidentemente, os iurdianos como pentecostais e
dispensacionalistas valorizam as coisas de Israel, cuja refundação como Estado consideram uma
obra divina e um sinal do fim dos tempos. Contudo, a construção da réplica de um templo que
segundo essa mesma escatologia será palco do engano final do mal, com a entronização do
Anticristo nesse mesmo lugar (templo de Jerusalém reconstruído no lugar onde está hoje a
Mesquita da Rocha), segundo a interpretação que alguns fazem de II Tessalonicenses 2: 4 (“[...]
de sorte que se assentará como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus”), é quase
como um tiro no pé do ponto de vista teológico. Tanto assim que começa a ser conhecido entre
outros dispensacionalistas como “o templo do Anticristo”.
458
Exame. “Vinte coisas surpreendentes sobre o templo da Igreja Universal” (Julho, 2014), online.
459
O globo. “Censo: Igreja Universal perde adeptos e Poder de Deus ganha (26/06/2012).
460
Veja. “Detalhes exclusivos do templo de Salomão, nova sede da Igreja Universal” (Junho, 2017), online.
153
Judeus ortodoxos no muro de Jerusalém original. A construção haver começado logo após a
divulgação dos números do censo de 2010 é o maior indício de que a queda nos números da
IURD era sinal de que seu marketing devia mudar. Além disso, a magnificência do templo,
assim como a de todas as outras construções suntuosas que lhe servem de local de culto, pode
ser interpretada como símbolo de riqueza, de sucesso, de ascensão social, que pela outorga de
Deus, são acessíveis a todos os que a busquem (embora a um preço).
Atualmente o Santo Daime é uma religião que guarda pouco parentesco com suas origens,
perdendo quase por completo sua identidade como religião sincrética, fundamentalmente
brasileira que mesclava o Xamanismo, o Catolicismo popular brasileiro, o Esoterismo, a
461
Idem, ibid.
462
Andrew Dawson. Santo Daime, p. 28.
154
(i) equilíbrio corporal: biodança, meditação (transcendental e zen), tai chi e yoga; (ii)
técnicas divinatórias: astrologia, cristais, I-ching, numerologia, quiromancia, runas,
contas, tarô; (iii) terapêutica: acupuntura, bioenergia, harmonização, realinhamento
de chakra, terapia crômica, integração crânio-sacral, homeopatia, iridologia, hipnose,
psicodinâmica jungiana, massagem (ayurvédica, riki, shiatsu), regressão 463.
As religiões sincréticas esotéricas, por sua própria natureza, são mais inclinadas ao
ecletismo porque dizem respeito principalmente a experiências religiosas e não a doutrinas
religiosas. A experiência religiosa é um evento solitário que não precisa ser compartilhado com
uma comunidade464. O indivíduo nesse contexto pode não ser propenso a seguir uma única
tradição, até porque tem a liberdade de compor sua experiência com elementos de outras
tradições sem por isso dever explicações a ninguém. Sua experiência tem um conteúdo privado
que ele pode decidir revelar apenas àqueles que lhe são mais próximos, de sorte que ele tende
a consultar um largo leque de possibilidades e selecionar as que melhor satisfaçam suas
demandas espirituais.
(b) Por não ter um governo centralizador e não ter uma liderança propriamente
carismática, como é o caso da IURD, o Daime vai se fragmentando em um hibridismo que
escapa ao controle da CEFLURIS, a qual dentre as daimistas é a instituição mais forte. O
ecletismo que o fundamenta é mais importante que o anterior, pois é mais estrutural e diz
respeito à filosofia e à teologia da comunidade sincrética local. O ecletismo coordenado pelo
padrinho Alfredo manifesta um Daime cada vez menos cristão e mais esotérico, como
demostram os novos hinos do Padrinho Zé Ricardo que aparecem no Hinário Harmonia
Cósmica465 (a teologia prevalente do Daime é musicada). Saem os atabaques africanos entra a
tabla indiana e o Daime do Centro-Sul sofre uma transmutação que o faz pender para a Índia,
originando uma forma de ecletismo que vem sendo chamado de Haredaime (Hare Krishna)466,
463
Ibid. pp. 37-38.
464
Paul Oliver. New religions movement, p. 172.
465
Zé Ricardo. Céu da Arca. Hinário Harmonia Cósmica.
466
Glauber L. Assis. Encanto e desencanto: um estudo sociológico sobre a inserção do santo Daime no cenário
religiosos contemporâneo (Dissertação de Mestrado em Sociologia, UFMG, 2013), p. 82.
155
que é adequado à demanda mais cosmopolita da classe média dessa região. Há ainda outras
modalidades de ecletismos como o Umbandaime467, que hibridiza a Umbanda com o Daime e
em que vão se tornando comuns as incorporações espirituais, embora a política do Daime
sempre tenha sido reprimir essas manifestações por meio dos fiscais de mesa; outro ecletismo
é o Rafadaime, que faz o mesmo com o Rastafári e o Daime. O ecletismo como processo de
mudança não significa que os indivíduos ignoram os parâmetros ideológicos institucionais,
antes quer dizer que esses parâmetros se dilataram e se tornaram muito mais flexíveis, os limites
de sua identidade passam a ser tão amplos que ele pode ser o que quiser sem com isso deixar
de ser o que acha que sempre foi.
467
Idem, ibid.
468
Andrew Dawson. Santo Daime, p. 36.
469
Ibid., p. 41.
470
Silas Guerriero. “New Hindu religion in Brazil: The Hare Krishna movement”. In Bettina Schmidt; Steven
Egler. Handbook of contemporary religions in Brasil, p. 299.
156
associada aqui no Brasil com Satanás471, o que é algo completamente equívoco em se tratando
de Hinduísmo, regida como é pela lei do Karma e do Darma, onde o Bem e o Mal não estão
relacionadas a essências independentes e causais, senão a essas leis cósmicas.
Enfim, existem muitas razões para o surgimento do ecletismo; o mais importante é o fato
de que não há mais nenhuma que justifique encarar as religiões como sistemas fechados, em
formato combo: doutrina, ritual e instituição. O aderente quer ter a liberdade de combinar os
elementos que são para ele mais relevantes474. O clero nesse novo contexto perde o papel de
guardião da pureza da fé e da verdade e se transforma em um facilitador da experiência religiosa
por se considerar que seja o detentor do poder de facultar essa experiência, seja por dotação
espiritual, seja por portar dons psíquicos ou segredos que possibilitam essa ampliação da via
ordinária que abre as portas do extraordinário.
3.e.1. Paródia
471
Ibid. p. 300.
472
Folha de São Paulo. O maior templo Hare Krishna na América Latina é refúgio para quem quer sossego em
SP, online.
473
Silas Guerriero. “New Hindu religion in Brazil”, p. 300.
474
Paul Oliver. New religious movements, pp. 166 e 167.
157
Como já pudemos observar no tópico anterior, uma das características mais fundamentais
da cultura nesses novos tempos é o holismo, e já que tudo está relacionado com tudo isso nos
permite começar esse tópico falando de uma técnica de produção literária quando nosso tema é
religião. Já dissemos que a paródia é peculiar da estética de todas as artes desse tempo, por uma
deficiência que lhe é intrínseca (e a religião padece da mesma deficiência), a saber, a escassez
permanente de grandes narrativas, que leva o artista pós-moderno a construir paródias por
intermédio de duas técnicas fundamentais: (a) parasitando as grandes narrativas alheias,
imitando as linhas-mestras de uma obra da literatura universal; (b) ou então mimetizando o
estilo e os maneirismos de alguma autor clássico475 para também dessa forma engrandecer sua
pequena narrativa´; por conta da opção filosófica da contemporaneidade essas duas são, fora o
talento, as únicas maneiras de transformar a literatura em banalidade. De uma forma ou de
outra, por “sua ubiquidade em todas as artes” a paródia merece “uma reconsideração tanto de
sua natureza como de sua função”476 no âmbito religioso.
475
Fedric Jameson. “Postmodernism and consumer society”. David H. Richter (ed.). The critical tradition. Classic
texts and contemporary trends (Boston/New York: Bedford/St. Martin, 2007), p. 1957.
476
Linda Hutcheon. A theory of parody. The teachings of twentieth century art forms (Chicago: University of
Illinois Press, 2000), p. 1.
477
Margaret A. Rose. Parody: Ancient, modern and Post-modern (New york: Cambridge University Press, 1995),
p. 8.
478
Linda Hutcheon. A theory of parody, p. 15.
479
Linda Hutcheon. “Theorizing Postmodern: toward a poetics”, p. 1997.
158
escondida sob a capa de um uso indigno. Duchamp criou várias obras de arte por meio desse
recurso irônico, cuja intenção é negar que em estética haja algum material ou forma a priori
mais nobre do que a outro, ou mais belo que o outro; a beleza está no conjunto, na forma, e não
na coisa em si.
A paródia não é recurso formal exclusivo da estética pós-moderna. Ela já estava presente
entre os antigos, entre os medievais e entre os quinhentistas e seiscentistas. Nessas paródias
existe a evidente intenção cômica, porque o autor da paródia torna manifesto quem está sendo
parodiado para criar um efeito estético pela comparação. Ele valoriza algumas qualidades mais
características do parodiado, tal como fazem os chargistas, com a intenção de satirizar pelo
exagero; ou então produzir graça pela debochada incongruência. A vida de D. Quixote de la
Mancha, personagem criado por Cervantes, o herói louco, transtornado pela leitura de romances
de cavalaria, é completamente incongrunte com os romances de cavalaria que parodia em vários
níveis. Primeiramente, os ideais cavaleirescos no começo dos tempos modernos não parecem
fazer qualquer sentido, ele e o ambiente onde suas ações transcorrem não congruem. Ele é um
pequeno senhor de baixa fidalguia, sempre às voltas com o baixo estrato popular: bodegueiros,
cabreiros, arrieiros, lavradores, barbeiros, curas, etc., cuja visão de mundo e valores não são de
nenhum modo compatíveis com a ética e o modus vivendi dos cavaleiros andantes. Sua musa
inspiradora, Doña Dulcineia del Toboso, em nada se assemelha a uma dama casta e cheia de
nobreza a quem esses cavaleiros juravam amor eterno; ela era uma lavradora comum chamada
Aldonça Lourenço, transformada em dama pelas alucinações e devaneios do cavaleiro da triste
figura.
A paródia pós-moderna não pretende causar o mesmo efeito cômico ou irônico, como
observa L. Hutcheon480, pois o jogo da incongruência entre o verdadeiro e o patentemente falso
já não tem mais o mesmo efeito satírico; transmudar o contexto já não produz um erro que pela
discrepância faz rir, pois a verdade realista perdeu a obviedade. Na estética pós-moderna resta
apenas uma ponta de ironia pela rejeição da epistemologia pós-moderna das certezas modernas,
porque a própria ideia de autoria e, portanto, de originalidade, é abandonada481. Mas essa ainda
não é a principal impressão do leitor. Basta perceber como conhecidos truísmos são negados de
várias maneiras por um Jorge Luíz Borges que com mistificações literárias, geográficas e
históricas, nega o que pode haver de mais seguro na história da literatura: o autor de D. Quixote
480
Linda Hutcheon. A theory of parody., p. 5.
481
Nil Korkut. Kinds of parody from the Medieval to the Postmodern (Frankfurt am Main, Germany: Peter Lang,
2009), p. 61.
159
não é Miguel de Cervantes, mas Pierre Menard, e a Ilíada quem a escreveu foi Pope e não
Homero. Porém, o tom irônico de colocar em dúvida coisas tão certas não é a maior virtude da
paródia borgeana; ele desloca o homem contemporâneo para os dias da Antiguidade,
produzindo não o riso, mas uma espécie de dolorosa melancolia482. T. S. Elliot produz o mesmo
efeito na poesia, imitando a métrica e a rima de Dante em um melancólico poema que fala de
amor usando imagens e metáforas prosaicas e mesmo assim estranhamente belas em Love Song
of J. Alfred Prufrock483. A importância paradigmática dessa obra de Elliot ainda tem como
reforço o fato de ser considerada obra divisora de águas entre a lírica romântica do século XIX
e a moderna, na língua inglesa. A mesma pungência sentimos ao lermos a obra-prima de James
Joyce, Ulisses, ao evocar a Odisseia de Homero, seus valores e sua nobreza, por intermédio de
tudo aquilo que ela não é: uma pequeno-burguesia repleta de valores menores da Dublin do
começo do século. O herói é Leopold Bloom/Ulisses, que se notabiliza por ser glutão
pantagruélico; Molly/Penélope é uma matrona licenciosa e nada pudica, nas palavras ou nos
gestos, e todo aquele palavreado coprofílico que Joyce prodigaliza com não disfarçado prazer
(há sérias razões para se pensar que ele realmente padecia desse mal – suas cartas pessoais),
mesclado com centenas de citações e alusões literárias, produz uma impressão de perda no
leitor484.
Com efeito, a paródia pós-moderna causa-nos a impressão de que o ser humano perdeu
algo muito importante; alguma coisa irrecuperável: o sentido da própria existência humana. Daí
todo esse “culto à incoerência, à pura insensatez e à falta de propósito” 485 como retrato da
contemporaneidade. A forma é o espelho do conteúdo, de sorte que essa desintegração da forma
que a paródia representa aponta para a perda de conteúdo significativo, conteúdo que
inexistindo só pode ser expresso pelo nonsense, cuja intensidade é aumentada quando
comparada às grandes narrativas do passado. Sobre o pano de fundo das viagens de Ulisses de
retorno ao lar, o leitor enfrenta o excesso da stream of conciousness que Joyce aprendeu com
Freud, pelo qual o autor valendo-se do excesso exasperante de sua imensa erudição literária
tenta de algum modo preencher o vazio histórico do homem contemporâneo, de que a jornada
de Leopold Bloom/Ulisses pelas ruas de Dublin em um único dia da existência é uma parábola.
A paródia é um recurso estilístico muito útil quando não se tem muito a dizer sobre essa nova
civilização pós-industrial e suas realizações, se é que as há. É apenas uma outra maneira de
482
Cf. o conto de abertura da obra, “Los imortales” in Jorge Luís Borges. El Aleph (Barcelona: Emecê, 1989).
483
Thomas S. Elliot. Profruck and other observations (London: The Egoist, 1917).
484
Cf. James Joyce. Ulisses (Lisboa: Difel/Civilização Brasileira, 1983).
485
Erich Kahler. The disentegration of form in the arts (New York: Brasiler, 1968), p. 96.
160
atenuar o nonsense e a insensatez decorrentes dessa perda existencial, por sua feliz conjunção
com a grand récit do passado, a qual têm tanto a forma quanto o conteúdo transfigurado, para
não dizer desfigurado, mantendo apenas a alusão a esse mundo perdido que ainda nos serve de
referência. O efeito é uma ponta de tristeza e nostalgia, talvez as responsáveis pelo charme
trágico dessas obras.
A paródia religiosa funciona mais ou menos da mesma forma. O grande relato é deslocado
perdendo contexto e sua grandiosidade originais. Mas isso não é intencionado ou parcialmente
intencionado, como na literatura. Ocorre que a superficialidade do contemporâneo o impede de
contar a história completa, sua neofilia o induz a estar sempre em busca de novos episódios
para locupletar sua vida incompleta. Essa propensão pós-moderna é fundamentalmente diversa
daquilo que Mircea Eliade observou sobre o vivenciar religioso da história sagrada, pelo qual
o indivíduo se sente compelido a repetir os eventos sagrados originais e a legitimar o
comportamento social pelos exemplos da história sagrada 486 . Do homem primitivo até à
Modernidade existia uma preocupação com a verdade. Obviamente a verdade primitiva não é
tão refinada como a moderna, mas é uma categoria importante para selecionar o que se deve
aprender e repetir e aquilo que deve apenas divertir, histórias para entreter, essencialmente
falsas 487 . Se um relato tem a propriedade de ser verdadeiro ele merece ser conhecido
profundamente, em todas as suas minúcias; e, de outra sorte, aqueles que são falsos ou tem a
função de divertir, não merecem tanta atenção. Ademais, se os dois relatos contam coisas
diferentes sobre o mesmo objeto, apenas um será verdadeiro. Quando, como faz o discurso pós-
moderno, é destruída a capacidade humana de conhecer o mundo e, consequentemente, de toda
e qualquer certeza, não resta mais nenhuma serventia para a verdade religiosa. Assim, o
ceticismo promovido pela guinada linguística acaba sendo o responsável pelo relativismo da
me generation. O que ficou de resto ao indivíduo dessa geração foram seus sentimentos e sua
experiência, porém como sua vivência religiosa é rasa e ele precisa contar uma história, ele
então lança mão de paródias religiosas que passa a conjugar com sua existência para ter o que
falar sobre si, além da banalidade. Contudo, ainda como corolário dessa perda da verdade, os
grandes relatos não são parâmetros aos quais essas experiências devem se ajustar, são apenas
recortes aos quais as experiências específicas se justapõem, onde a alusão funciona como
legitimação, porque a experiência original é tudo o que importa, seu conteúdo ético e teológico
são desprezados.
486
Mircea Eliade. O mito do eterno retorno (São Paulo: Mercuryo, 1992).
487
Mircea Eliade. Mith and reality (Long Grove, IL: Waveland, 1963), p. 8.
161
É bem isso que ocorre ao Neo e Novipentecostalismo. Com um léxico religioso reduzido
por uma falha de socialização religiosa, esse Pentecostalismo periurbano, formado por massas
populacionais novas e desenraizadas (sem contato com igrejas mais bem institucionalizadas) é
induzido a criar paródias religiosas superficiais, geralmente agenciadas por igrejas inovadoras
e recentes. A chegada dessas populações desenraizadas, advindas de outras regiões do perímetro
urbano, onde os assentados pagavam aluguel, fornece a matéria-prima para essas paródias que
relacionam a as grandes ações de Deus na Escritura com as experiências vividas por esses
indivíduos. Por exemplo, a vinda para o novo assentamento está conectada à travessia do Mar
Vermelho; a sobrevivência em tempos de desemprego e subemprego, à travessia do deserto; a
construção de um barraco ou um emprego com registro em carteira, à conquista de Canaã. O
suposto materialismo neo e novipentecostal nada tem de materialismo, é a história da salvação
de pessoas que vivem às bordas da miséria e veem seu livramento como obra divina, porque
não contam com outro recurso.
488
Mergulho na Luz. Mestre Irineu era Jesus e padrinho Sebastião era São João? (10/09/2014).
489
Há muitos outros exemplos que pode achar quem se dispuser a consultar a hinódia Daime, que é vastíssima,
porque os hinos são a Escritura deles e vão sendo mediunizados pelos padrinhos com o passar do tempo. Não há
coerência interna entre os hinos e por isso sua análise é a melhor forma para se perceber como as diversas doutrinas,
originárias de matrizes religiosas diferentes, e que seguindo várias “linhas” teológicas vão sendo sincretizados e
sobrepostos em no corpo doutrinário daimiano.
162
Com relação a ideia de que o padrinho Sebastião é a encarnação de S. João Batista a coisa
é ainda mais controversa, havendo muitos argumentos e hinos pró e contra. Os defensores dessa
interpretação são:
O Padrinho Sebastião era São João? Evidências que seria São João: a) Por sua própria
estória de liderar um povo para o interior da floresta; b) Por sua conduta enérgica e de
clamor a Deus; c) Por seu ar “profético” constantemente inspirado; d) Por seu hinário
se chamar O Justiceiro e seguir a linha da verdade, lealdade e da justiça, a mesma
linha de São João; e) Em seu Hino 28 (“Sou Eu”), ele afirma na penúltima estrofe: A
minha mãe é tão formosa/ E o meu Mestre também é/ Ele (Jesus) é Filho de Maria/ E
eu sou filho de Isabel (São João); f) Em seu Hino 90 (“A justiça está na Terra”) do
seu Hinário O Justiceiro, na penúltima estrofe:- São João e Jesus Cristo/ Passaram
morte cruel/ Jesus é Filho de Maria/ E eu (São João) sou filho de Isabel 490.
a) Hinário O Justiceiro, Hino 39, “Meu Mestre Está Comigo”, primeira estrofe: - Meu
mestre está comigo/ No mundo de ilusão/ Dou viva ao Pai Eterno/ A Jesus Cristo e a
São João...
b) Hinário O Justiceiro, Hino 77, “A Verdade Está Comigo”, terceira estrofe: - Eu
estou lembrado/ Ainda sinto a mesma dor/ De Jesus Cristo e São João (Ele e não eu)
/ Pela amargura que passou...
c) Hinário Nova Jerusalém, Hino 09, “Voz do deserto”, primeira estrofe: - Estou aqui
(Eu, Padrinho Sebastião) / Ouço a voz do deserto (São João) / Todo mundo esteja
alerta/ Não se sabe aonde vai...491
E a conclusão é que segundo uma “linha” (de sincretismo), padrinho Sebastião é São João
Batista; e segundo outra “linha”, não é. Sobre Sebastião a conclusão é de que ele manifestava a
energia de S. João (mediunidade), mas não era João; sobre mestre Irineu, ambas as linhas são
verdadeiras: Irineu como Juramidan e Jesus Cristo, pois ambas manifestam “a energia do
espírito da verdade” 492 . Por último, o articulista pontifica que é improvável que padrinho
Sebastião seja São João Batista porque sucedeu mestre Ireneu e não o precedeu, e se você pensa
que ele está aludindo à tradição bíblica está enganado; o argumento é baseado no comentário
de Paramahansa Yogonanda, um guru hindu que afirma que João Batista foi mestre de Jesus,
portanto, não pode ter vindo depois dele.
Várias coisas nos chamam a atenção aqui: (a) o conceito de verdade como energia, que,
obviamente evoca a experiência, e não um texto ou uma tradição como fundamento: se eu
sentir que é verdadeiro então é; e o contrário da mesma forma. O próprio hino evocado como
texto probatório tira sua autoridade da experiência, pois os médiuns que os escreveram de certa
490
Mergulho na Luz. Mestre Irineu era Jesus e padrinho Sebastião era São João? (10/09/2014).
491
Idem, ibid.
492
Idem, ibid.
163
forma os psicografaram. (b) quem dá a palavra final sobre um tema da tradição judaica é um
guru indiano que despreza tudo o que está escrito na Escritura e afirma que João foi maior do
que Jesus porque foi seu mestre. (c) a doutrina daimista é uma mixórdia que demonstra sua
incapacidade de legitimar o que quer que seja; sua legitimidade está na própria experiência: o
acólito escolhe “a linha” que quiser seguir; se for cristão, Irineu foi encarnação de Jesus Cristo;
se for da Umbanda foi Juramidan; se for esóterico falará de energia; se for espírita dirá que
Sebastião era médium de João Batista.
493
Fedric Jameson. “Postmodernism and consumer society”, p. 1958.
494
Roberto Cipriani. Manual de Sociologia da Religião (São Paulo: Paulus, 2007), p. 241.
164
conquista da terra prometida, porém não mais como resultado do trabalho honesto e abençoado
por Deus; é antes uma conquista literal, em que se deve vencer os demônios da precarização do
trabalho e do desemprego para tomar posse de sua herança prometida. A conquista da saúde,
de igual modo, não resulta da prática da temperança e das bênçãos cotidianas, mas é um ato de
força de Deus que expulsa o demônio da doença da vida do crente. A vida se povoa de novo de
forças espirituais que são confrontadas diretamente por Deus e pelos seus ministros. A vida
desses trabalhadores marginalizados pelo subemprego não pode esperar a calma revolução das
leis humanas ou a serena revolução do evangelho na transformação de suas vidas, não pode
esperar a formação de uma cultura bíblica que é a base da sabedoria do crente para enfrentar os
desafiadores fatos da existência. O Deus otiosus do Protestantismo tradicional não lhe serve às
necessidades; esse novo crente precisa do Senhor dos Exércitos que lhe repreenda o mal prestes
a fazê-lo desaparecer da face da terra.
Claro que essa outra forma de ver os ensinos da Bíblia não são inteiramente decorrentes
de razões pragmáticas. O imaginário religioso desses cristãos também está fecundado pelas
tradições afro-brasileiras e, portanto, resultam ainda de um sincretismo que se formou nas áreas
periurbanas onde o candomblé e a umbanda se mesclaram com uma matriz pentecostal muito
rarefeita, produzindo o sincretismo neopentecostal. Em que medida esses elementos se mesclam
e se acomodam em cada uma de suas manifestações é algo extremamente idiossincrático.
Quanto aos aspectos empíricos e organizacionais a variegabilidade não decresce; há as que se
organizam como seita ou cult, o que significa elevado controle institucional sobre os aderentes,
há aquelas que quase não têm controle institucional, funcionando mais como uma ideologia
difusa, visto terem se originado de um processo sincrético tão genérico.
495
Aldo N. Terrin. Nova Era. A religiosidade do pós-moderno (São Paulo: Edições Loyola, 1996), p. 10.
496
Andrew Dawson. New Era – New Religions. Religious transformations in contemporary Brazil (Abingdon, U.
K.: Routledge, 2016), pp. 46-47.
166
As pessoas constroem credos particulares a partir das experiências que colecionam sem
se preocupar com a coerência interna deles. O processo envolvido é a bricolagem, e não
racionalização mediante um raciocínio dedutivo. Hoje qualquer coisa faz sentido desde que o
faça para quem a experimenta. Osho pode ensinar a meditação oriental sem ascetismo, pelo
contrário estimulando as pessoas a fazerem meditação e yoga sem necessariamente desapegar-
se do material; pode-se crer em horóscopos e em reencarnação497 e ainda assim se autodeclarar
cristão; um cidadão mexicano pode ser católico da renovação carismática e crer em astrologia
maia 498 . Pela mesma razão, entre os protestantes, nos países mais pobres, são encontrados
cristãos biconfessionais e multiconfessionais (essas palavras também já não são muito úteis),
sem verem nada de errado nisso499. O censo de 2010 revelou que cerca de 0,34 % da população
brasileira não tem religião definida ou adota múltipla confessionalidade, o que em números
absolutos significa 643 mil pessoas500; entretanto, existem muitos que não o declaram, por
terem vergonha de confessar que nos momentos de maior dificuldade (doença, desemprego,
traição do cônjuge, etc.) procuram auxílio espiritual fora de sua religião familiar, o que é
geralmente interpretado como sinal de fraqueza, especialmente se a segunda opção do indivíduo
é uma religião de matriz afro-brasileira. A tendência, porém, é a confessionalidade tornar-se
cada vez mais uma experiência privada, sem enquadramento religioso institucional. Assim, as
palavras e conceitos religiosos no mundo contemporâneo perdem sua função identitária. O
vocabulário religioso torna-se cada vez mais genérico e multiconfessional.
497
Philippa Berry. “Postmodernism and post-religion“. In Steve Connor. The Cambridge companion to
postmodernism (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), p. 174.
498
Cristina Gutiérrez Zúñiga. “Más allá de la pertinência religiosa: católicos en la era de Acuario”. In Elio
Masferrer Kan (org.). Sectas o iglesias. Viejas e nuevas religiones (México: Aler/Plaza y Valdés editores, 2000),
p. 345.
499
Franz Damen. “Panorama das religiões no mundo e na América Latina”, in ASETT (org.). Pelos muitos
caminhos de Deus (Goiás: Editora Rede, 2003), p. 45 e 46.
500
René Somain. “Religiões no Brasil em 2010”, Revista Franco-brasileira de Geografia (no. 15, 2012).
501
Daniele Hervieu-Léger. Religion as a chain of memory (Cambridge: Polity Press, 2000).
167
família é de matriz pentecostal, mas ele foi mal doutrinado e mal socializado em sua religião
ou denominação. Para contar sua história ele lança mão do material de que dispõe, suas
experiências, cristãs, pseudocrístãs e até não cristãs.
Além disso, a comunidade que nasceu como movimento espiritualista kardecista foi
ampliando em suas práticas e teologia, até chegar a incluir em seu panteão espíritos de tantas
categorias e origens que hoje é inadequado chamar o movimento de espiritualista, muito menos
de kardecista. Os aparás (como são chamados os médiuns aparelhados pelos espíritos)504 que
vivem na comunidade podem ser consultados em nome de um enorme número de entidades,
benéficas e maléficas, para realizar curas espirituais, para orientação, para revelações, etc. Por
exemplo, pretos velhos e caboclos da Umbanda; espíritos de Luz do Kardecismo (Dr. Fritz e
Dr. Ralph, etc.); antigos espíritos de entidades extraterrestres, como o próprio Seta Branca,
originários de um planeta chamado Capela, que tem vindo à Terra para realizar missões de
proteção e preservação da humanidade e que são os verdadeiros fundadores das avançadas
civilizações do passado (qualquer semelhança com os devaneios de Erich von Däniken505 não
é mera coincidência); e finalmente, entidades benignas, protetoras da OEC, que nunca
encarnaram: Mãe Yara, Sta. Clara de Assis, Jurema, Janaína, Jandaia, Iracema, etc. 506 . É
502
José J. Carvalho. “Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea”, p. 15.
503
Andrew Dawson. New Era – new religions: Religions transformation in contemporary Brazil, p. 217.
504
Massimo Introvigne. “The Vale do amanhecer. Healing and spiritualism in a globalizing brazilian new religious
movement, Sociologia (Universidade do Porto, vol. Xxvi, 2013), p. 194.
505
Erich von Däniken. Sim, os deuses eram astronautas. Novas interpretações sobre antigos legados (Rio de
Janeiro: Record/Nova Era, 2004). Cf. A publicação mais antiga, à qual Tia Neiva teve acesso e a partir da qual
teria criado sua própria teoria, apenas fazendo algo que Däniken nunca ousou fazer, ou seja, dando nomes e
revelando de onde vinham esses extra-terrestres.
506
Massimo Introvigne. “The Vale do amanhecer, p. 195.
168
importante enfatizar que os últimos nunca são mediunizados, são os espíritos-guia dos
doutrinadores507, assim como ninguém jamais foi aparelhado por Seta Branca, exceto Neiva508.
507
Grupo de ‘sacerdotes’ da OEC que disciplinam o trânsito dos espíritos e traduzem suas mensagens e ações
quando mediunizados pelos aparás. São os responsáveis pela doutrina e pela ordem cúltica da Vale do Amanhecer,
não permitindo a intromissão de espíritos obscuros e entidades malévolas, de sorte que quando algumas delas se
manifestam são severamente repreendidas pelos doutrinadores e por eles longamente admoestadas a buscar a
iluminação. Ou seja, mais ou menos como ocorre na Universal quando o pastor repreende o espírito imundo.
508
Ibid., p. 196.
509
Andrew Dawson. New Era – New Religion, pp. 18 e 19.
510
Mássimo Introvigne. “The Vale do amanhecer”, p. 192.
511
Andrew Dawson. New Era – New Religions, pp. 18 e 19.
512
“À guisa de mito de criação, a cosmologia da Vale do Amanhecer remonta a 32 mil a. C., como projeto
energético, físico e de reorganização planetária. O mitológico planeta Capela ou planeta monstro é o ponto
originário de todas as espécies humanas, de onde todas as antigas civilizações vieram e para onde todos os espíritos
convergirão a partir do terceiro milênio, fazendo do planeta Terra um território de transição e expiação. (1) No
princípio havia uma falange missionária de Equitumanos, que eram gigantes andróginos e que depois de dois mil
anos desapareceram como resultado de uma cataclisma causado pela aproximação de uma nave espacial alienígena,
a estrela candente, originária do planeta Capela. O retorno desse artefato ao nosso planeta produziu mudanças,
mesmo no lugar onde os missionários viviam, junto ao lago Titicaca, o qual de acorco com o plano espiritual de
169
pela indumentária e pelos figurinos usados pelos asseclas da OEC, mais ou menos como
civilizações-totens, tal como nas religiões xamânicas existem os animais-totens. Essa
ancestralidade mitológica extraterrena está representada em todo o espaço da comunidade;
edifícios e construções, contam essa história: a cachoeira do Jaguar, o oráculo de Delfos, a
pirâmide, o Turigano, o templo da mãe, o solar dos médiuns ou a Estrela Candente, etc.513 Tal
como no Templo da Boa Vontade, esses espaços são independentes entre si e neles podem ser
performatizados rituais em grupos maiores ou menores, envolvendo aqueles que pertencem às
mesmas falanges ou então em grupos maiores no solar dos médiuns ou no Templo da Pedra.
Enfim, a riqueza da mitologia da Vale do Amanhecer possibilita grande diversidade de material
para adaptações pessoais de seu sistema teológico, o qual, por essência é sincrético e pan-
ecumênico, de tal modo que seria muito difícil errar em tão amplo quadro teológico:
colonização foi criado pelos capelianos. Pai Seta Branca, como mestre equitumaniano, comandou a estrela
candente nessa missão. O extermínio da falange [de gigantes] é explicado pela distorção dos princípios da missão;
os gigantes tornaram-se ambiciosos e competitivos entre si”. Essa história é muito parecida com o relato bíblico
sobre a existência de gigantes nos primórdios do planeta Terra (Gn. ¨: 4). “ (2) O segundo grupo a chegar foram
os Temuchis, que chegaram do planeta Capela cinco mil anos depois dos equitumanos. Eles colonizaram uma área
que hoje se encontra coberta pelo oceano Pacífico. Seu objetivo era continuar os preparativos iniciados pelos
Equitumanos para receber uma nova civilização, à medida que manejassem as energias cósmicas com sua avançada
ciência. As pedras da ilha de Páscoa, a cidade de Machu Pichu e as pirâmides do Egito estão entre as conquistas
dos Tumachis. Seta Branca foi o líder dessa missão, como grande Tumuchi. (3) E finalmente, vinte mil anos, tendo
a mesma estrutura física de agora e estando densamente populada, a Terra deu as boas-vindas aosjaguares. Eles
vieram com a missão de regular a população do mundo. Os jaguares são originadores de um grande número de
civilizações: caldeus, sírios, persas, fenícios, astecas, gregos e incas e outras formas civilizatórias atuais, cujos
destinos irão convergir de novo graças à atuação da Vale do Amanhecer, em Capela, seu planeta natal. Seta Branca
tomou parte também dessa missão como Jaguar Chefe”. Deis E. Siqueira. “Unconventional religiosities and the
New Age in Vale do Amanhecer (The Valley of the Dawn, Brasília”. In Reneé de la Torre; Cristina G. Zúñiga;
Nahayeilli B. J. Huet. New Age in Latin America. Popular variations and ethnic appropriations (Leiden: Brill,
2016), p. 249 e 250.
513
Idem, ibid.
514
Deis E. Siqueira. “Unconventional religiosities and the New Age in Vale do Amanhecer (The Valley of Dawn),
p. 252.
170
Não acredito na autenticidade desse tipo de experiência religiosa. Não que duvide das
necessidades espirituais daqueles que a praticam; a necessidade é real, mas a satisfação, não. O
conhecimento que uma pessoa mediana pode adquirir dessas tradições que tão ciosamente
procuram representar (à custa de muito dinheiro porque a indumentária das falanges é cara), é
limitado, por isso não podemos definir de outra forma essas manifestações senão pelo termo
kitsch, ou pastiche; nem paródia aqui é adequado. Essa experiência religiosa não está
suficientemente atada à vida, não tem raízes, pelo que são apenas sintomas do grave problema
social de nossos dias: a falta de integração e regulação social do indivíduo.
Também não é casual que Brasília seja a capital esotérica do país. Não existe nenhum
outro lugar em que uma alta e bem escolarizada classe média que é responsável pelo
funcionamento da máquina administrativa da nação, seja ao mesmo tempo tão bem informada
e tão influente sobre os estratos sociais inferiores. Até porque é sob suas ordens que trabalha a
massa de trabalhadores semi-qualificados que vive nas cidades-satélite; Brasília é uma capital
administrativa, sem indústrias ou qualquer outro tipo de atividade econômica importante. Onde
Neiva aprendeu sobre Ufologia, Espiritismo e História das Civilizações, tudo isso tão
fundamental para a evolução de sua doutrina? Seguramente não foi no sertão do Piauí onde
nasceu. Toda a cultura religiosa cosmopolita que aprendeu com os tecnocratas de Brasília
(inclusive com aquele que foi seu companheiro por vinte anos) serviu-lhe bem para resolver-se
religiosamente em uma cidade nova e sem tradições, assim como serve a tantos outros nas
mesmas condições. Agregue-se a isso a prevalência da ideologia pós-moderna em nosso tempo
então terá a receita completa do crescimento da OEC, que tem mais popularidade entre os
membros da classe média baixa e graças a ela é hoje a maior religião de matriz esotérica do
Brasil, contando já com 500 mil adeptos (dos quais só em Brasília são 150 mil), e possuindo
ainda 680 templos, espalhados pelo Brasil e alguns países516. Qualquer pessoa com mediana
instrução religiosa percebe que a Vale é um grandíloquo pastiche de diversas religiões:
515
Ibid., p. 261.
516
Mássimo Introvigne. “The Vale do amanhecer”, p. 191.
171
Umbanda, Candomblé, Kardecismo, Cristianismo, Ufologia, etc., mas ela confere às pessoas
uma pseudo-ilustração bastante convincente, identidade, liberdade, cura para seus males
psicossomáticos, etc. O que mais podem querer?
Dissemos mais acima que a religião contemporânea não padece de nenhum déficit ou
carência, mas sim de um excesso. Primeiramente, porque como vimos, ela ganha capilaridade
na sociedade contemporânea, extrapolando seus limites sociais, estando também presente no
mercado e outras dimensões societárias. Segundo, porque também se vê invadida por essas
dimensões, e de tal sorte estão geminadas que não faz mais sentido em nossos dias essas
distinções. Essa percepção compartimentada da sociedade, do ponto de vista teórico, é algo
novo, passando a existir do século XVI para cá. Na Idade Média e em período mais recuados
era comum viver-se em uma sociedade mais holística, onde a economia, a cultura, a religião,
as leis, etc., faziam parte de um conjunto naquela época era chamado de Cristandade. A
diferença entre aquele holismo e o nosso é que o nosso é mais amplo e engloba também outras
tradições religiosas, o que era inconcebível naquele tempo. A distinção entre esses três
paradigmas foi descoberta e exposta por Raimundo Panikkar: Cristandade, unidade cultural e
sociopolítica da Idade Média; Cristianismo, uniformidade doutrinal da Idade Moderna e
Cristiânia, a solidariedade espiritual cósmica. A conclusão de Panikkar de que o Cristianismo
exerce um papel de liderança nessa ampliação espiritual e religiosa é generosa, mas não é
verdadeira517. A realidade não se coaduna com o nome de batismo oferecido por Panikkar:
Cristiânia. Não há unidade, nem solidariedade espiritual baseada no Cristianismo, mas uma
expansão espiritual pós-cristã, mesclada com o holismo social da Cristandade medieval que em
nosso caso não é produzido pela força e autoridade da Igreja Católica, mas ocorre sob a
liderança do mercado. Panikkar parece ter confundido o holismo pós-moderno com aquele do
medievo por uma razão muito simples: ele retrata um ideal, não a realidade.
Essa nova percepção holista que não vê distinção entre a religião e as outras dimensões
societárias é tão radicalmente nova que pode nos induzir a pensar que alguns elementos até
pouco considerados básicos na sociologia da religião estão ultrapassados. Penso no que E.
Durkheim ensinava sobre a separação entre o sagrado e o profano ser um dos comportamentos
517
R. Panikkar. “Cristiania, dimensione nascosta del Cristianesimo”, Micromega (2, 2001), p. 278.
172
sociais mais elementares 518 . Essa questão já levantaram outros 519 , percebendo como eu a
dificuldade de relacionar esse conceito com a realidade atual. A conclusão desses autores que
a situação social atual cobre essa distinção básica com uma nuvem de opacidade que pode
induzir a pensar que a separação entre o sagrado e o profano não existe mais é correta, à medida
que é apenas aparente. A distinção permanece, embora mais tênue pelo enfraquecimento das
instituições religiosas, que sempre aturaram como guardiães do sagrado, mas agora estão
parcialmente subtraídas dessa capacidade. De uma forma ou de outra, as instituições religiosas
que sobrevivem nesse ambiente são aquelas que ainda possuem mecanismos de controle. O
Neopentecostalismo é um exemplo520. Sua ênfase na Escritura como guardiã do sagrado não é
tão forte como entre os protestantes tradicionais, porém, em compensação, a força do clero
iurdiano como detentor do carisma e do poder de Deus inibe os excessos. O mesmo ocorrendo
com os movimentos subscritos à Nova Era, onde a palavra dos fundadores ainda tem peso e são
usados institucionalmente para exercer esse controle depois que morrem.
518
Émille Durkheim. As formas elementares da vida religiosa. O sistema totêmico na Austrália (São Paulo:
Martins Fontes, 2000).
519
Ricardo Bitun; João Clemente de S. Neto. “Formas elementares da vida religiosa: apontamentos de uma
abordagem durkheimiana para compreensão da atualidade do fenômeno neopentecostal no Brasil”, Estudos de
Religião (v. 26, no. 42, 2012), pp. 63-82.
520
Ibid., p. 70.
521
Mary Douglas. Introdução ao Ramo de Ouro. In James G. Frazer. O Ramo de ouro (Rio de Janeiro, Zahar
editores, 1982), p. 14.
522
Émille Durkheim. As formas elementares da vida religiosa, p. 27.
173
do líder carismático falecido e só posteriormente cair nas mãos da instituição. Isso aconteceu
com todas as novas religiões brasileiras analisadas nessa investigação: Santo Daime e Vale do
Amanhecer.
Por vivermos em uma época que se caracteriza pela contestação em todos os sentidos,
inclusive religiosa, é normal que ao menos aparentemente o sagrado e o profano sejam
indistinguíveis. É um tempo de formação de nova matriz religiosa e o processo é deflagrado
por líderes carismáticos que ainda estão construindo o caminho de sua fé. Portanto, E.
Durkheim não falhou em sua conceituação da forma elementar da religião entendida pela
distinção entre o sagrado e o profano. Ele apenas retratou a religião em tempos de estabilidade
religiosa, enquanto atualmente vivemos tempos convulsivos, em que essas fronteiras se
mostram lábeis e indistintas, por conta da mudança ou questionamento de paradigmas.
Quanto à profanização do sagrado esse processo ocorre na medida em que, tendo sido
transferida uma parte da sacralidade para o campo ético e político, os indivíduos sentem-se
livres para construir uma sacralidade idiossincrática sobre aspectos da vida até pouco tempo
considerados profanos: saúde, casamento, sexualidade, finanças, vida profissional, etc. Os
novos movimentos religiosos que não estão limitados por essa antiga forma de viver, pautada
pelos limites institucionais oferecem hoje aos contemporâneos a oportunidade de sacralizar
eventos da vida só agora bafejados pelo sagrado. Essa é a generalizada erosão de fronteiras em
curso em nosso tempo. Como vimos no tópico anterior, a primeira erosão é a distinção entre
523
Peter Berger. O dossel sagrado, p. 38.
174
mercado e religião, a segunda aqui considerada ocorre na conflação entre o sagrado e o profano.
Mas, além dessas ainda há outras que lhes são subsidiárias, as quais passamos a examinar.
Na literatura e nas artes plásticas esta erosão dá-se de forma a negar algo que sempre foi
afirmado e reafirmado pelos humanistas defensores da distinção entre cultura erudita e cultura
popular. Ou seja, que a cultura é uma pedagogia para a elevação da humanidade de outro modo
impossível, por isso sempre foi pensada como ocupação de uma elite de homens e mulheres de
educação superior, criadores de um instrumento capaz de tornar o homem melhor do que aquilo
que lhe deu a natureza no momento de seu nascimento: a obra de arte. Essa ideia vem
acompanhando a humanidade desde os primórdios da civilização, mas agora o Pós-modernismo
deseja, destitui-la. Como diz E. Said “cultura é o reservatório onde cada sociedade conserva o
que há de melhor do que se tem conhecido e pensado”524, mas não para ajudar seus concidadãos
a se tornarem melhores também, como ensinavam os antigos humanistas, mas para diminuir o
mal-estar do imperialismo, induzindo a população das nações imperialistas a ver-se por uma
luz mais favorável 525 , à medida que as obras de arte funcionam como refinadas peças de
propaganda. Tome-se por exemplo a Eneida de Virgílio, escrita com o objetivo de dar aos
romanos uma origem mais nobre do que a dos outros povos itálicos: sabinos, úmbrios, etc.,
fazendo-os remontar aos troianos que fugiram do cerco e destruição de Troia. Do mesmo modo
524
Edward Said. Culture and Imperialism (New York: Random House, 1994), p. xiii.
525
Idem, ibid.
175
526
Fredric Jameson. “Postmodernism and consumer Society”, p. 1956.
176
A paródia religiosa não anda longe de sua congênere literária, fora o gosto pelas alusões
eruditas. Para aqueles originários de matriz protestante, também para ela está perdida a grand
récit, não possuindo uma grande figura religiosa fundadora nem sendo resultado dos grandes
movimentos avivalistas como os que comoveram a América entre os séculos XVIII e XIX. A
conexão com as grandes narrativas originárias da Escritura dá-se por ligação direta do indivíduo
com os grandes atos salvíficos de Deus, perpassados pela experiência religiosa que emerge de
prosaicas lutas cotidianas em que a salvação deixa de ser um tema apocalíptico e universal para
tornar-se um tema menor, a salvação da miséria do aqui e agora e dos demônios que as
provocam. A vida do indivíduo torna-se uma paródia das grandes narrativas fundantes do
Cristianismo.
O filtro institucional torna-se cada vez menos importante para a interpretação desses fatos
salvíficos. Os Neo e Novipentecostalismos mais recentes resultam de experiências individuais
que se tornam coletivas por justaposição e não por compartilhamento. O que define se uma
pessoa é religiosa ou não, não é mais um determinado lugar de reunião frequentado por ela, mas
uma crença difusa e uma bricolagem de experiências que o indivíduo vai construindo com sua
vida, e com aqueles com quem ele as compartilha. Em alguma medida isso ocorre como
527
Andrew Dawson. Santo Daime. A new world religion (London/New York: Bloomsbury Academic, 2013), p.
7.
528
Folha de São Paulo. Podem me criticar diz Frank Aguiar por ser adepto do Santo Daime (01/09/2017).
529
Quem. Santo Daime: agora pode (Nov. 2004).
177
Segundo dados estatísticos da Receita Federal a cada hora surge uma nova organização
religiosa do Brasil531. Os motivos são diversos, alguns deles até já foram discutidos: a lógica
do mercado; a corrosão institucional; a corrosão do conceito de verdade; a condição econômica
do fundador da religião, que, muitas vezes acossado pelo desemprego, vê a condição de chefe
religioso como uma forma de sobrevivência, etc. Muitas dessas novas congregações são
compostas por pessoas provenientes de outras denominações e ex-católicas, ou seja, são
indivíduos que estão em trânsito de uma denominação para a outra532. Por isso Freston externou
a opinião de que os evangélicos já estão batendo em seu teto de crescimento533e que a Igreja
Católica pode estar parando de sangrar.
Com efeito, esse processo de fragmentação parece não ter limite na modernidade líquida.
Como comentou Giddens, essa busca contínua por uma identidade fugidia é uma das chaves
para compreendermos a religião-religiosidade atual. A religiosidade já não é algo dado ou
definido de uma vez por todas, a contínua necessidade de reorganizar o espaço e o tempo
transformado pela realidade social atual (fragilidade institucional, fragilidade das redes sociais,
vida em permanente risco) leva o indivíduo a uma constante atividade de reflexão e recriação
para assimilar e reciclar as experiências que o atravessam no decurso da vida534. Elas são, por
assim dizer, um passo adiante no processo de secularização de que fala Weber. Secularização
530
Richard Stivers. The illusion of freedom and equality (New York, State University of New York Press, 2008),
p. 48.
531
O Globo. Desde 2010 uma nova organização religiosa surge por hora (23/03/2017).
532
Idem, ibid.
533
Paul Freston. “As duas transições futuras: católicos, protestantes e sociedade na América Latina”. Ciencias
Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião (ano 12, no. 12, Outubro, 2010), p. 24.
534
Anthony Giddens. Modernity and self-identity, pp. 52-53.
178
não significa o declínio da religião como vulgarmente se pensa, mas sua desinstitucionalização,
pela radicalização do individualismo que aparece, por exemplo nas denominações pentecostais.
Nesse contexto torna-se mais fácil dissentimento individual, os comportamentos
idiossincráticos e desviantes, visto agora a religião não estar mais atrelada a formas mais
tradicionais de socialização religiosa, ex. a família, a profissão, etc.535 A relação do adepto com
Deus dá-se de forma imediata e não mais referida a tradições anteriormente determinantes da
conduta. Isto, é claro, gera uma solidariedade entre todos aqueles que foram tocados pelo
carisma, resultando em um conflito das estruturas carismáticas com as estruturas sociais
tradicionais; ou seja, sempre que as profecias de salvação gerem congregações religiosas, o
poder natural e institucionalizado será o primeiro a se chocar com elas536, não sendo o caso
dessas congregações novipentecostais porque elas estão em ambientes degradados muito
distantes das igrejas já institucionalizadas.
535
Max Weber. Essays in Sociology (New York: Oxford University Press, 1946), p. 329.
536
Ibid., p. 330.
537
Karen Armstrong. The battle for God (New York: The Random House Publishing, 2000), p. 169.
538
William D’Antonio; Anthony J. Pagorelc. “Sociologia da Religião”, p. 157.
179
Secularismo539. Com o passar dos anos, entretanto, essa quase-religião vem se transformando,
adquirindo, primeiro, um duplo formato político, como Comunismo e atinge o poder na Rússia
por meio da Revolução de Outubro de 1917; e como Nazismo, a quase-religião assume o
governo da Alemanha em 1933, na pessoa de seu maior fomentador: Adolf Hitler. Com o fim
da Segunda Guerra Mundial desaparece na Alemanha e tem o mesmo destino na União
Soviética em 1991, com a dissolução da União Soviética,
539
Karen Amstrong. The battle for God, p. 170.
540
Chamsy El-Ojeili. Theory, utopia and the world-system. Arguments in political sociology (New York:
Palgrave/Macmillan, 2012), p. 17.
541
Herbert H. Haines. Black racicals and the civil rights mainstream, 1954-1970 (Knoxville: The University of
Tennessee Press, 1988). Cf. Imanuel Ness (ed.). Encyclopedia of American social movements (London/New York:
Routledge, 2015), pp. 173-202.
542
John M. Bozeman. “Hippies“. In Broadus Browne; Pat Browne (eds.). The guide to United States popular
culture (Madison, WI: The University of Winsconsin Press, 2001), pp. 386-387.
180
movimento estudantil se esvaziou 543 . Porém, mesmo sem ter conseguido atingir nenhuma
conquista objetiva, o movimento estudantil tornou-se um marco, um divisor de águas, pela
mudança de comportamento e pelas ideias que defendiam terem se consolidado como ideologia
dominante. Em Junho de 1969 um novo desdobramento da revolução dos estudantes de Paris,
dessa vez em Nova Iorque, com a sublevação da comunidade LBGT da cidade e as violentas
batalhas campais deflagradas em volta do bar Stonewall, que depois de servir de palco veio a
se tornar o nome pelo qual o movimento é conhecido até hoje. O objetivo era fazer valer também
àquela comunidade os direitos civis que assistem a todos os cidadãos: liberdade de ir e vir, a
liberdade de expressão, etc. Tudo começou com batidas policiais que constrangiam os
indivíduos da comunidade, obrigando-os a se despirem para serem identificados – drag queens,
o que revoltou a comunidade LBGT e simpatizantes. No ano seguinte, começaram as famosas
paradas gays, sempre no mês de Junho em homenagem à revolta de Stonewall. As primeiras
paradas foram em Nova Iorque, Los Angeles, Chicago e San Francisco, daí se espalharam pelo
mundo544.
3.f.1. Definições
O termo quase-religião aqui usado segue de perto o conceito criado por Eric Voegelin em
suas obras seminais: Religiões políticas e Ciência, Política e Gnosticismo que afirmam entre
outras coisas, respectivamente, que as religiões políticas ou “religiões de substituição”
543
Chris Reynolds. Memories of May ’68. France’s convenience consensus (Cardiff, U.K.: University of Wales
Press, 2011), p. 2-4.
544
David Carter. Stonewall. The riots that sparked gay revolution (New York: St. Martin’s Griffin, 2004).
181
Paul Tillich é movido por semelhante percepção quando chama Karl Marx de “o teólogo
que teve mais êxito desde a Reforma” 546 e quando entende seu pensamento pela mesma
perspectiva do profetismo bíblico, ainda que um profetismo e uma escatologia secular, já que
procura restaurar a harmonia edênica por meio de uma justiça social econômica e politicamente
construída. Tillich usa o termo “quase-religião” para nomear as mesmas organizações
denominadas por Voegelin como “religiões políticas”, negando-lhes, entretanto, o qualificativo
‘religião’, porque falta-lhes “a linha transcendental” 547, ou como também Tillich a denomina,
“a preocupação última”, que caracteriza as religiões. Com efeito, o tipo de fidelidade que
produzem as quase-religiões é completamente mundana e depende unicamente da capacidade
dessas ideologias de se manterem no poder, de fazerem executar seus comandos e de
demonstrar sua capacidade de atingir seus objetivos pelo perfeito conhecimento das leis que
subterraneamente regem a realidade: a história, no caso soviético e a genética, no nazista. Uma
vez que falhem em algum desses pontos não haverá ninguém que se disponha a morrer como
mártir por seus ideais, como acontece com a religião. Hannah Arendt, observa que a eclipse
instantânea do Nazismo na Alemanha, logo depois da derrocada final do exército alemão nos
arredores de Berlin, os aliados por mais que investigassem não conseguiram encontrar um único
alemão que se autodeclarasse nazista548; poucos dias depois do suicídio de Hitler o Nazismo
praticamente evaporou.
545
Eric Voegelin. Political Religions, in Modernity without restraint (Columbia: University of Missouri Press,
2000), p. 24.
546
Paul Tillich. Pensamiento cristiano y cultura en Occidente. De la Ilustración a nuestros dias (Buenos Aires:
Editorial La Aurora, 1977), p. 499.
547
Paul Tillich. Pensamiento cristiano y cultura en Occidente, p. 509.
548
Hannah Arendt. Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), p. 417.
182
também porque a quase-religião atual não tem a mesma natureza política nem o mesmo vínculo
institucional que tinha no meado do século XX. Como já foi observado, na atual conjuntura não
há necessidade de um partido político para intermediar a relação do indivíduo com o Estado. O
modelo de democracia representativa tem demonstrado não ser mais adequado à nova realidade
social porque os interesses da população e dos partidos políticos já não coincidem e pior que
isso, sequer interagem, daí as redes sociais estarem assumindo esse papel na sociedade de
indivíduos espacialmente atomizados. Essa nova “quase-religião” permanece desempenhando
a antiga função de unificadora da visão de mundo dos indivíduos, mas sem necessariamente ser
a porta de entrada para sua atuação no mundo.
(2) De Voegellin tomo de empréstimo o que disse sobre as “quase-religiões” terem uma
percepção de realidade semelhante ao Gnosticismo, na medida que se veem detentoras de uma
verdade sobre a realidade que ninguém mais consegue enxergar, dessa maneira elas podem ser
consideradas empreendimentos ‘religiosos’, já que como as religiões possuem uma chave
hermenêutica indisponível para os não iniciados. A crítica básica dos teóricos pós-modernos
pretende revelar as vísceras da sociedade até então ocultas: os interesses do discurso, o conluio
entre a verdade e o poder, os mecanismos de opressão sob a capa de legitimações variadas:
religiosa, política, econômica, etc. Além disso, acompanhando a análise de I. Hassan, existe
uma confluência entre o pensamento pós-moderno e o Gnosticismo à medida que ambos
compartilham a convergência dos fundamentos da sociedade na consciência, que agora substitui
outras palavras-chave de nosso passado recente: “honra, fé, razão, sensibilidade”549. Também
por uma espiritualização da realidade material que faz com que, pela ampliação da consciência,
mais e mais os fatos e a fantasia convirjam, e sensação e pensamento tornem-se uma única
coisa550.
549
Ihab Hassan. “The New Gnosticism. Speculations on an aspect of the postmodern mind”. In Paul Bové. Early
Postmodernism. Foundational Essays (Durham, NC: Duke University Press, 1995), p.79.
550
Ibid., p. 98.
183
551
Lome L. Dawson. “Privatisation, globalization and religious innovation: Giddens’ theory of modernity and the
refutation of the secularization theory”. James A. Beckford; John Walliss. Theorising religion. Classical and
contempory debates (Aldershot, U. K.: Ashgate Publishing, 2006), p. 105.
184
absoluto” 552 . Com efeito, o corolário dessa liberdade defendida por Rorty (que podemos
denominar liberdade absoluta) é a rejeição de quaisquer absolutos ideológicos; o papel crítico
do Pós-modernismo, portanto, reduzir-se-ia à defesa intransigente dessa liberdade. Não
podendo ser “crítica, negativa, contestatória, subversiva, opositora” 553 à sociedade à qual
pertence como foi a Modernidade do século XX: Nazismo, Comunismo, etc., porque ela não
tem mais os mesmos referenciais axiológicos, os quais, embora sem reconhecer, a Modernidade
havia herdado do Cristianismo. Em nossos dias nenhuma mudança social ou revolução política
reais serão possíveis, e nem mesmo um dos mais importantes itens da pauta ética
contemporânea, os direitos humanos, é um item válido, por que sequer sabemos o que é o ser
humano, ainda menos quais sejam seus direitos. Em suma, é inútil buscar aqui um fundamento,
somente lhe cabe a radiografia irônica de Jean Baudrillard acerca da superficialidade de sua
ética:
552
Paul F. Knitter. “Christian Theology in the Post-modern era” (Pacifica, 18, Out, 2005), p. 324.
553
Idem, ibid.
554
Jean Baudrillard. Cool memories (London/New York: Verso, 1990), p. 223.
185
abrangente e irrestrita possível: moral, social, ética e esteticamente, pois ‘a riqueza de um povo
está na diversidade de sua gente...’, etc. E todos esses clichês que oferecidos como pensamento
“progressista” para estimular o respeito à singularização. A outra ideologia, corolário da
primeira, é a rejeição do absoluto, manifesto pela repulsa por qualquer pretensão a uma verdade
única, um único Deus, único rito, uma única-qualquer-coisa que se torne obstáculo à prática da
diversidade, religiosa, moral, etc. Não se trata mais de tolerância porque a própria ideia de uma
concessão, de liberdade religiosa da maioria a uma minoria não seria o caso porque essa maioria
já não existe, o que há em seu lugar é a pluralidade.
R. Andrew Chesnut. Competitives spirits. Latin America’s New Religions Economy (New York: Oxford
556
agora imoral e autoritário. A lei suprema é a liberdade que cada um tem para dispor de seu
corpo e de sua vida como lhe apraz, para atingir um objetivo que é a lei por trás da lei: a
felicidade, por causa da qual não se deve refrear nenhum desejo, nenhuma carência, nenhum
impulso. O cristão nesse contexto sente-se tentado a reconsiderar ou, ao menos,
‘contextualizar’ aquilo que conhece da Palavra de Deus e sua exigibilidade, das doutrinas que
aprendeu, do próprio conceito de humanidade que lhe foi ensinado. Muitas igrejas que
abraçaram a teologia liberal que desfigura a Escritura por meio de uma crítica histórica já não
sabem se estão no campo político ou no religioso. Tentam conciliar esses dois domínios
adotando uma posição que indica uma total perda de identidade, pois a Palavra de Deus por sua
própria natureza, não admite meio termo: ou é Palavra de Deus ou não é. Se é, deve ser
considerada autoritativa; se não, virou uma coletânea do folclore judaico que pode fornecer
estórias ilustrativas à verdadeira palavra autoritativa da atualidade: a ideologia liberal pós-
moderna; ou seja, estar sobre o muro já significa estar do lado de lá. Os paramentos e as
formalidades litúrgicas podem ser as mesmas de há séculos, mas o espírito já não é mais o
mesmo.
Como se pode perceber, não se trata de aqui negar a legitimidade de uma abordagem a
estes problemas da perspectiva da caridade cristã, da tolerância aos diferentes, tendo em vista
que é possível defender os parâmetros bíblicos para essas coisas e ainda assim conceder aos
desviantes o benefício da caridade cristã. O problema ético atual não está mais nesse patamar,
já desceu para um novo degrau. Não estamos falando de tolerar e amar os diferentes porque
também são objeto do amor de Deus, mas de negar qualquer normatividade; não existe mais
padrões e normas e, portanto, também não existe mais o normal e o anômalo. Toda a
normatividade é decorrência de um desejo de poder e domínio, para essa ideologia a
heteronormatividade é um exemplo claro disso. Por essa razão, o que muitos setores da
sociedade pós-moderna negam é algo central para o cristão, é a legitimidade da Escritura na
determinação da relação macho-fêmea como normativa, enquanto a relação homoafetiva é
apenas secundária, alternativa e, portanto, tolerável, à medida que isso seja dever da caridade
cristã aborrecer o pecado, mas amar o pecador e estender a ele o convite ao arrependimento.
Hoje não só não é mais aceitável que seja estendida aos heteronormativamente inadequados
uma posição secundária na sociedade, como também nenhuma sexonormatividade ou
generonormatividade é em qualquer grau adequada. Toda e qualquer normatividade, mesmo
aquela que apenas sugere uma classificação, benigna como seja, cai sob o rótulo de
188
Aqui nota-se a essência do problema. Atingimos um patamar político, todos os que não
se enquadram nos padrões cristãos para a construção da família e da sociedade já não aceitam
ser meramente tolerados, tratados com condescendência ou piedade. Anunciam que é chegado
o tempo da normatividade da diversidade e o direito à opinião da normatividade contrária
começa a se tornar algo repreensível, faltando pouco para que se torne proibida. O que querem,
na realidade, é inverter os padrões, subverter a ordem social fundada no Cristianismo e
estabelecer uma outra normatividade, a normatividade da não normatividade. Ingressamos em
uma disputa pelo poder que, obviamente, só ocorre pelo estado lamentável do Cristianismo na
Europa, que rapidamente se transforma em pós-cristã, ingressando em uma nebulosa zona que
mescla espiritualidade com o consumismo, hedonismo, e centenas de outros ismos particulares
com uma espiritualidade anódina, incapaz de vincular o comportamento do indivíduo. O
problema é que não sabemos onde vamos parar. Essas conquistas do anomalismo são gradativas
e parecem nunca estar satisfeitas com seus avanços sobre a assim chamada sociedade normal.
Se não vejamos sua história.
Quando conjugam-se essas duas leis supremas da Pós-modernidade: (a) a liberdade e (b)
a sociedade igualitária sua combinação gera um processo hobbesiano. Ou seja, assim como o
557
Luís Paulo M. Lopes. “Sexualidades em sala de aula: discurso, desejo e teoria queer” (Petrópolis: Vozes, 2008),
p. 139.
558
Ramona F. Oswald; Libby B. Blune; Stephen R. Marks. “Decentering heteronormativity: a model for family
studies. Vern L. Bengtson. Sourcebook of family theory research (Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 2005),
p. 148.
189
Estado autoritário não pode ser detido e nem seja possível que atue em consonância com uma
lógica externa a ele, na mesma situação encontra-se a sociedade contemporânea dominada pela
quase-religião pós-moderna.
559
Kayt Sukel. This is your brain. The science behind the search for love (New York: Simon & Schuster
paperbacks, 2012), p. 72.
560
D. F. Swaab e M. A. Hoffmann. “Sexual differentiation of the human hypothalamus in relation to gender and
sexual orientation” (Trends in neurosciences, June, 1995), pp. 264 a 270.
190
Sobre a questão acima há os que não concordam esse estudo e apontam outro conjunto de
células como parâmetro de comparação. No primeiro caso, um grupo de células do hipotálamo,
chamada de INAH1, descoberta em 1985 por um grupo de pesquisadores holandeses, segundo
estudos mais recentes, não tem a ver com sexo, mas com o sono561. O conjunto de células que
é três vezes maior nos homens do que nas mulheres é o INAH3562. Esse mesmo estudo revelou
que o tamanho do INAH3 também varia quando homens heterossexuais são comparados a
homens homossexuais, nos últimos INAH3 “é significativamente menor”563.
Por conta destas certezas biológicas e fisiológicas e da pressão da opinião pública (GBLT)
baseada nelas, em 1974 (após a revolta de Stonewall de 1969), a Associação Americana de
Psiquiatria (APA) retirou a homossexualidade do quadro das doenças psicológicas e
psiquiátricas; as idiossincrasias sexuais eram chamadas de “desvios sexuais” (DSM II). Treze
anos mais tarde, em 1987 (DSM IV), o termo ‘perversão’ deixou de existir na terminologia
psiquiátrica, sendo substituída pela designação de ‘parafilia’ e a homossexualidade assim passa
a ser classificada 566 . A mudança do termo de classificação denota um juízo de valor mais
benigno em relação a estas anormalidades, o que indica também o comportamento sexual
abnormal ter deixado de ser estudado no capítulo das neuroses, passando a ser qualificada como
transtorno. O amor pelo mesmo sexo passa a gozar da mesma legitimidade que o amor pelo
sexo oposto, estando devidamente sancionado pelo comportamento de inúmeras outras espécies
561
Simon LeVay. Gay, Straight and reason why. The science of sexual orientation (Oxford: Oxford University,
2017), pp. 107 e 108.
562
Ibid., p. 26.
563
Ibid. p. 109.
564
D. F. Swaab. "Sexual differentiation of the human brain: relevance for gender identity, transsexualism and
sexual orientation" (Gynecological Endocrinology, December, 2004), pp. 301-12.
565
Suzana H. Houzel. “Adolescência é coisa do cérebro” (Folha de São Paulo, 12 de Abril de 2007).
566
Elisabeth Roudinesco. Nuestro lado oscuro. Una historia de los perversos (Barcelona: Editorial Anagrana,
2009), p. 207.
191
Uma coisa é certa, o modo como a cosmovisão contemporânea está sendo afetada por
estas descobertas é desproporcional ao seu real significado. A intenção desses estudos é óbvia.
Demonstrar que esses comportamentos desnaturados são bastante frequentes, logo possuem
uma base orgânica que biólogos, neurologistas procuram indicar. É possível que muitos dos
casos relatados sejam realmente de origem neurológica ou endócrina, contudo, seriam essas
ocorrências tão frequentes a ponto de se poder atribuir a elas a epidemia de problemas dessa
ordem que grassa na humanidade? O problema do hermafroditismo, por exemplo, hoje chamado
de transexualidade natural, pode servir como parâmetro de comparação. Os casos são
relativamente fáceis de serem identificados e, portanto, geram estatísticas muito seguras; o
problema é que são extremamente baixas: 1 para cada 20 mil nascimentos 570 . Os casos de
567
Aldo Poiani. Animal homossexuality. A biossexual perspective (New York: Cambridge University Press, 2010).
Vale ressalvar que a homossexualidade entre bonobos e outros primatas não merece este nome, posto que estas
relações não estão calcadas numa espécie de homoerotismo animal. Entre os animais não existe homoerotismo
porque não existe erotismo de espécie alguma. O erotismo é uma qualidade humana, que significa revestir as
relações carnais de um conteúdo simbólico (fantasias sexuais), algo que obviamente inexiste entre os animais; o
que induz seu comportamento são disfunções fisiológicas.
568
In Olavo de Carvalho. Cem anos de pedofilia (O Globo, 27 de Abril de 2002).
569
Idem, ibid.
570
Fernando Regateiro. Manual de genética médica (Coimbra, Universidade de Coimbra, 2007), p. 334.
192
Com efeito, esta multiplicação de sujeitos sexuais hoje responde mais a uma demanda
social de satisfação de necessidades específicas e de identidade, dada a falha generalizada das
agências socializadoras (família, Igreja, escola, etc.), do que a variações fisiológicas. Isto tem
como principal efeito um exacerbamento do individualismo e a busca frenética pela
571
“A idade média da menarca humana reduziu-se nos últimos cem anos. Alguns estudos epidemiológicos sugerem
como possíveis causas a abundância de alimentos gordurosos e de hormônios em nossa alimentação. Mas, igual
número de pesquisas enfatizou o papel do ambiente social. Abuso sexual, a presença de uma figura masculina não
aparentada, como por exemplo, um padrasto morando na casa, a exposição à estímulos sexuais, tudo isto está
relacionado à menarca precoce”. (Kayt Sukel. This is your brain, p. 66).
193
diferenciação. As pessoas na verdade estão buscando uma identidade que a sociedade lhes nega
e por isso voltam-se para a neurociência na baldada esperança de se definirem de alguma forma,
quiçá, biologicamente. Existe um sentimento generalizado de desajustamento, que vem sendo
chamado de bovarysmo, estado psicológico caracterizado por uma insatisfação crônica, decorre
de uma falta de lugar e de papel em uma sociedade que falha em socializar adequadamente os
indivíduos. A neurociência atende a essa demanda respondendo a perguntas como: ‘o que deu
errado comigo?’ ou: ‘por que sou homem, mas me sinto uma mulher’.
A passagem de um gênero para outro está mais fácil do ponto de vista médico e mais
aceitável do ponto de vista social e, na medida que o comportamento anômalo é estimulado
pela condescendência social, ele vai se reforçando. Este estado de confusão quanto ao papel dos
gêneros gerado pelo permissivismo tem sido atestado pelo grande número de crianças que
apresentam o que os psicólogos vêm chamando de “desordens de identidade de gênero” (DSM
IV). Ora, se a sociedade falha em definir o gênero das crianças, elas ficarão mesmo confusas,
manifestando a doença e, posteriormente, comportamento sexual anômalo.
É óbvio que uma prática que consome anos da vida de um indivíduo e talvez o acompanhe
desde a infância ou da adolescência deixe uma marca indelével em seu comportamento e até
194
em seu cérebro. Por isso, não presta nenhum serviço aos homoafetivo ou a biafetivos a
banalização condescendente de sua condição, que passa a ser utilizada como rota de fuga para
suas contradições: “você é assim desde que era um feto, quando recebeu uma violenta carga de
androgênio”. Estamos lidando com coisas por demais complexas e a saída deste labirinto só
poderá encontrar quem está perdido nele. Além disto, a preferência ou orientação sexual
anômala não significa necessariamente transformar isto em prática. Embora os LBGT digam
que faz parte da liberdade natural dos indivíduos a prática de suas inclinações, ocorre que em
geral não existe uma única inclinação e neste caso é preferível confiar na natureza, reforçando
seu legado, a se entregar a emoções conflituosas, que muitas vezes não significam uma escolha
ou atitude sexual, mas algum outro medo ou insegurança existencial.
É nestas horas que uma pergunta atribuída a Bertold Brecht torna-se bem oportuna: “que
tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?” O que pode ser mais óbvio de que por
natureza os homens nas versões macho e fêmea? É só olhar a anatomia. Ou seja, ainda que haja
problemas com a repressão e o preconceito, e com pessoas maldosas que se comprazem em
machucar os desajustados, jamais se poderia afirmar que por isso seria melhor abolir a distinção
para não constranger ninguém. Se distinguir é constranger, não distinguir é confundir, e gerar
um dano ainda maior, como hoje se vê. Neste caso o politicamente correto não deveria dominar
este debate porque ele pode dar nascimento a um tipo de alienação que impede as pessoas de
verem até o óbvio e o mundo se tornar refém de uma nova ideologia de pretensões hegemônicas:
o gayzismo. Além do evidente prejuízo religioso de atribuir ao Criador uma obra imperfeita,
195
existe o risco de inviabilizarmos a sociedade humana por motivos também óbvios, já que de
duas pessoas do mesmo sexo é impossível levantar uma prole. Que fazer se os alienados
contemporâneos que se pensam vanguardistas negam-se a admitir que sua perspectiva não
encontra correspondência na realidade há milênios e isto só ocorre hoje porque a sociedade está
doente.
essência humana por três motivos muito óbvios: (a) como Durkheim já observava, a liberdade
humana não tem limites. Nunca haverá um ponto a partir do qual o indivíduo se refreará, porque
o homem não tem freios naturais como os animais; nosso freio só pode ser social, repressivo
ou ideológico. (b) A sociedade humana é essencialmente classificadora porque nosso papel nela
não é geneticamente constituído como no caso das formigas e das abelhas; em nosso caso são
as ideologias que nos definem os papeis e nossa importância social (c) Como nossas ações
ocorrem no interior de grupos e instituições, por mais que compartilhemos a ideologia
igualitária da Pós-modernidade (que pode ser equívoca, mas não é errônea) temos nossas ações
limitadas pelos grupos no interior dos quais agimos e as instituições são essencialmente egoístas
e cruéis.
As instituições, quaisquer que sejam, estão em disputa pelo poder, poder que visa
primordialmente sua autopreservação e secundariamente o progresso da coletividade. Assim,
não existe nada mais ilusório do que o igualitarismo. A sociedade só muda de um centro de
gravidade para outro pela força e pela força permanece onde se acha (Hobbes). O natural
comportamento político é se empoderar cada vez mais e diminuir as chances dos rivais. Por
isso todas as ações políticas são pendulares, sempre vão de um extremo a outro. Se a sociedade
é patriarcal e tem arcabouço ideológico construído sobre esse fundamento, vindo a sofrer um
processo de mudança social em que esse modelo seja questionado por outros gêneros e venha
a ser erodido por ações políticas, como hoje se vê, a tendência não será atingir um patamar de
igualitarismo de gênero. Ressalve-se que o uso da força, que em uma sociedade democrática
não significa necessariamente força repressiva, quer dizer usar a opinião pública, traduzida nas
diversas formas midiáticas, para induzir a sociedade as decisões políticas; significa desaparelhar
as instituições públicas exonerando aqueles indivíduos que defendem aquela ideologia que se
pretende destituir; quer dizer criar leis que favoreçam o grupo oprimido; significa, em suma,
empoderar os antes marginalizados e oprimidos. Ocorre que uma vez transmitido o poder para
esse grupo os papeis hegemônicos apenas se invertem; não há dissolução desses papeis, como
romanticamente se poderia pensar; a neutralidade é impossível para a humanidade.
Por essas palavras não se presuma que sou contrário ao ativismo que busca mudanças no
centro gravitacional social. Creio que a luta pelos direitos civis deve continuar para coibir os
abusos e ampliar a proteção dos vulneráveis. Entretanto, não penso que haja solução à vista.
Pelo contrário, o que se percebe é que essa transmissão de poder para os oprimidos já começa
a produzir vícios. No Brasil, treze anos de poder nas mãos da esquerda foram suficientes para
demonstrar a correição das teses apresentadas. O Igualitarismo, de ideologia-instrumento, posto
197
em processo para diminuir a desigualdade social brasileira, passou a ser ideologia-fim, uma
doutrina legitimadora das ações de um partido político. As ações afirmativas em favor dos
excluídos rapidamente se degradaram transformando-se em privilégios, e, o que é pior, muitas
vezes usufruídos por quem nem necessita; a reforma agrária do MST degenerou-se para a
categoria de invasão de terra alheia, defendendo um modelo agrário insustentável no atual
contexto tecnológico que a atividade requer; a reforma da ocupação urbana promovida pelo
MTST degenerou-se em ocupação e grilagem de terra; dos ideólogos, a classe que liderava
essas ações, é melhor nem dizer nada, levando em conta a quase destruição da economia
nacional em nome de um projeto de poder. Em suma, os valores são bons, mas a capacidade
humana de tirar deles sua potencial bondade é limitada pela essencial maldade humana. E
ademais, atualmente, o tempo de validade dos agentes humanos que intentam levar a efeito
esses valores está cada vez mais curto, ou seja, a degeneração deles chega muito mais rápido
do que os efeitos benéficos das ações implementadas.
Tudo o que aqui vem dito serve a uma única conclusão. Os direitos humanos não podem
ser transformados em uma nova Bíblia, nem os ativistas em profetas, nem as ONGs em Igrejas.
O Cristianismo inda preserva sua capacidade de transformar o mundo exatamente porque sua
mensagem sobre a maldade essencial do homem serve como antídoto para nos precaver dessas
escatologias seculares que nunca poderão cumprir o que prometem. Além disso, o modelo de
humanidade que propõem em essência contrariam a natureza, apesar de buscarem nela
argumentos quando isso lhes interessa, por exemplo, a defesa de um homossexualismo por
natureza. A natureza nos ensina que as crianças precisam de muita atenção; também nos ensina
que dos progenitores quem mais está disposto a lhes dar essa atenção são as mães, porque os
laços de amor que une uma mãe ao seus filhos são muito mais fortes do que os que vinculam
um pai; e, por último, ensina-nos, que os pais sentem-se mais inclinados a prover do que a
cuidar. Isto não é cultural, é biológico. Obviamente, há excessos nesse arranjo e deve ser
preservada a liberdade dos indivíduos de se autogerirem de acordo com o papel que melhor lhes
pareça adequado. O que não pode ocorrer é a mudança do modelo, que, ademais, é universal,
sendo praticado em todas as sociedades, até nas matriarcais. O modelo familiar deve ser
ensinado para a prática e o alternativo deve ser ensinado para a tolerância. Há garantia de que
não vão ocorrer abusos? Não há garantias, assim como não há em relação a nenhum outro
modelo. Se um homem agride sua mulher e seus filhos o problema não é o modelo, mas o ser
humano. O modelo tradicional de família não significa a subordinação da mulher, mas a divisão
de papeis e tarefas, porque a educação é a função mais importante da família.
198
envolvam disputa pelo poder, pois não crê que uma mudança estrutural seja possível, posto os
agentes serem sempre os mesmos.
200
CAPÍTULO III
Palavras Finais
Se o resultado dos esforços de emancipação dos modernos foi apenas uma teologia de má
qualidade, uma teologia de segunda mão, sob a capa de uma moralidade travestida de ciência e
racionalidade572; agora que os pós-modernos revelaram que o rei está nu, expondo sua nudez
em praça pública, os resultados não são mais agradáveis. Eles revelam que o solo debaixo de
nossos pés já não existe e estamos em queda vertiginosa rumo a um destino desconhecido,
porque o niilismo que escancara as fauces para nos engolir é de proporções aterradoras;
572
O imperativo categórico kantiano é uma grande prova disso porque assim como formulado: “age de tal forma
que a máxima de tua ação seja uma lei universal”, nada mais é do que a regra de ouro com roupagem iluminista:
“fazei aos outros o que quereis que vos façam” (Lc 6: 31). As realizações teóricas de Marx nada além de
messianismo sem Messias (os trabalhadores ficam no lugar de Deus) e a realização de um paraíso terreno sem
Deus, mas com todas as suas qualidades éticas de uma aparente justiça social. O ensino de Hegel sobre o progresso
da humanidade rumo à verdade e ao conhecimento é a atualização iluminista do otimismo cristão a esse respeito e
teve como primeira realização a reforma protestante: “a vereda do justo é como a luz da aurora que vai brilhando
mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4: 18); ou então que a manifestação do Espírito Absoluto não é mais do que
o cumprimento da promessa do Paráclito: “[...] quando vier aquele Espírito da Verdade, Ele vos guiará em toda a
verdade” (Jo 16: 13). Heidegger com seu projeto de desobstrução dos penduricalhos metafísicos agregados ao Ser
pelos séculos não faz mais do que uma teologia negativa, tanto quanto é teologia negativa o nome de Deus no
Êxodo, o Eu Sou sem predicados: “o Eu Sou me enviou a vós” (Ex 3: 14).
201
Contudo, diga-se em favor dos pós-modernos que esse Niilismo está filosoficamente
correto (o que não quer dizer teologicamente correto), pois quem quer que se ocupe de sondar
os fundamentos da Modernidade nada encontrará aí exceto a teologia e o Deus que lhe falta. E
foi só por extremo orgulho e vaidade que até agora ninguém havia se dado conta disso, porque
não há outro fundamento possível para a ética senão a Palavra de Deus. Não existe nada no
mundo que sirva de referência às ações éticas, porque na realidade fática não existem valores
absolutos573. Ainda sem considerar esse plano fático, no âmbito da mera idealidade, não há
como buscar um fundamento natural, a natureza humana também se esvaiu diante de nossos
olhos, desde que os existencialistas colocaram os olhos nela e os trans-humanistas, suas mãos
(porque não dizer, suas patas). Mas, voltando ao argumento de Wittgenstein, o valor só pode
vir de fora do contingencial, de Deus, do único Absoluto. O resto é pura palra pseudointeligente
na qual também deveriam estar incluídos os pós-modernos e sua preocupação com o
empoderamento dos grupos minoritários. Se quisessem ser coerentes com o Niilismo que
proclamam deveriam calar-se, porque do ponto de vista que adotam não devemos respeito a
quaisquer humanidades, nem ainda as minoritárias. O único princípio que serve para esse efeito
é o que eles desprezam, nisso sendo afins daqueles que tanto criticam e a cuja sombra vivem,
573
Ludwig Wittgenstein. Conferência sobre ética (Barcelona: Paidos, 1989), p. 38.
202
os modernos. O princípio é a origem comum de todos os homens e a filiação comum dos filhos
de Adão: Deus, o Criador. A crítica pós-moderna está, portanto, correta; mas, estão errados em
não reconhecer que seu Niilismo por medida também é uma falsificação, que se quisessem um
pouco de ética no mundo humano não deviam olhar para os textos de Marx, mas para as
Escrituras.
E o que os cristãos têm a dizer sobre esse estado de coisas? Enquanto a Modernidade e a
Pós-modernidade se engalfinham na arena política do mundo, que posição os cristãos devem
assumir? Devemos manter-nos alheios ao que se passa e continuar pregando como se o mundo
não estivesse experimentando uma transformação quiçá inaudita e como se a sociedade
permanecesse como era antes do advento da Pós-modernidade?
Existem três maneiras de responder essa pergunta: (a) o mundo não é mais o mesmo e se
devemos a ele o cumprimento da missão do Ide devemos nos adaptar e promover uma mudança
na forma como a Igreja se colocar diante desse desafio, transformando-a para que ela possa
permanecer sendo um refúgio de fé e esperança. E se no mundo dominado pelo Capitalismo
tardio a fé vai ao mercado e o consumismo toma conta da dimensão religiosa da vida, a Igreja
deve atuar de acordo com as últimas estratégias de marketing: ‘a igreja ao gosto do freguês’,
disputando suas fiéis com as armas do Evangelho e com as da comunicação de massa,
oferecendo toda a comodidade àqueles que buscam a experiência religiosa. (b) Outra
abordagem seria rejeitar integralmente a marketização do evangelho, descartar a possibilidade
de a religião ingressar no mercado, postulando uma estratégia que pode ser chamada: ‘a igreja
ao gosto do Evangelho’. (c) A terceira abordagem é uma terceira via que nem advoga a
transformação da Igreja à imagem do mercado, mas tampouco defende uma Igreja à imagem
do passado. Não é a Igreja de Bill Hybels, Willow Creek Community Church, perto de Chicago,
com suas 9.500 igrejas-membro e seus milhares de pastores associados, com seu luxo e
opulência, suas dependências cheias de entretenimento (Igreja-shopping), com boliche, “cisnes
deslizando sobre um lago cristalino”, suas pesquisas sobre a comodidade de seus membros para
assistirem aos cultos, suas praças de alimentação com telão para o adepto assistir o serviço do
culto enquanto come, sua livraria de obras de auto-ajuda, etc.574; mas também não é uma igreja
de idosos, que se deliciam em ouvir o Evangelho nas velhas palavras de sua mocidade e cantar
os velhos hinos do tempo de sua conversão.
574
T. A. McMahon. ”Igreja ao gosto do freguês”. In Música sacra e adoração.
203
Essa ‘Igreja ao gosto do Evangelho’ é uma falácia. O Evangelho não é estático, mas
dinâmico; se assim fora deveríamos estar pregando em grego ou hebraico. Seu objetivo é salvar
os pecadores, transformá-los em santos, ou seja, também não existe para deliciar a velha guarda
nem para preservar velhas tradições. Então qual a Igreja que necessitamos para esses tempos?
Uma Igreja que fale a língua de seus ouvintes, que reconheça que o marketing pode ser uma
importante ferramenta à medida que melhore a comunicação e torne mais acessível sua
mensagem. É o que Jesus quer dizer com colocar a lâmpada no velador e não debaixo da cama
(Mc. 4: 21). O texto de Habacuque 2: 2 nunca foi tão atual: “Então o Senhor me respondeu, e
disse: Escreve a visão e torna-a bem legível sobre tábuas, para que a possa ler quem passar
correndo”. Quem pode negar que isso aí é marketing da melhor qualidade? Paulo pregando aos
prosélitos e Judeus nas sinagogas da Ásia Menor também não era uma estratégia de marketing?
Ou seja, um lugar para onde acorriam gentios que simpatizavam com a doutrina bíblica, mas
tinha algum impedimento para abraçar o Judaísmo; os Judeus que precisavam ouvir que Jesus
era o Messias esperado. Não havia um lugar melhor para começar a pregação do Evangelho.
Alguns alegam que o próprio Paulo não dá a mínima para o fato de o Evangelho parecer
“loucura para os Gregos e escândalo para os Judeus” (I Co. 1: 23). Loucura para os Gregos
porque ensina sobre a ressurreição da carne e escândalo para os Judeus porque proclama que
Jesus morreu na cruz sendo Messias, estando a sua vinda esperada como a coroação do reino
de Deus e não como humilhação de Seu enviado. Mas essa necessidade de incluir o marketing
na pregação não significa diminuir ou excluir o escândalo da pregação, quer dizer apenas que
precisamos encontrar nosso ouvinte onde ele está, fazer com que a mensagem seja clara o
suficiente para que a possa entender, sem aumentar desnecessariamente o escândalo. Levando
em conta o processo de massificação-individuação da sociedade para permitir certa adaptação
à situação do ouvinte, por exemplo, usando formatos e linguagens que fazem parte de seu
cotidiano, promovendo a possibilidade de maior participação e interatividade nos cultos e na
vida religiosa, etc. Enfim, não se trata meramente de entregar um produto e tampouco de
entregar uma mensagem quer nossa assistência ou a ouça ou a deixe de ouvir. A comissão
evangélica é para discipular e não meramente pregar. Não se deve confundir a missão de um
pastor com a de um publicitário e tampouco com a de um profeta.
Pós-modernidade não pode ser rejeitada in toto. Há nela alguns valores que podem ser
admitidos em quadro de ideias cristão e evangélico. Por exemplo, a rejeição da epistemologia
da Modernidade de que falávamos a princípio. Outro ponto é a rejeição do modelo de Igreja
produzido pela era da burocracia e da racionalidade denunciadas por M. Weber. A Igreja não é
uma organização funcional que transforma sua missão em um check list de tarefas e onde os
ministérios são conduzidos por funcionários sem alma e sem coração que funcionam como
máquinas. A principal missão da Igreja é ser Igreja. Ser a luz do mundo (Mt. 5: 14) não significa
uma pregação intencionada, voltada para o missionamento. É antes ser um modelo para a
sociedade, à medida que seu propósito é a proteção e o cuidado uns dos outros. No momento
em que começamos a falar da Igreja de forma impessoal, p. ex., ‘a Igreja de alcançar os
perdidos’, ‘a Igreja deve ajudar os necessitados’, nesse mesmo instante ela deixou de ser Igreja
e se tornou uma instituição.
A típica Igreja tradicional não é absolutamente um lugar para os ‘sem igreja’. Para
alguém inconvicto o serviço religioso regular parecerá algo muito estranho. Não terá
sentido para aqueles que não cresceram em uma Igreja, para aqueles que não
conhecem suas práticas. A música que cantamos, os títulos que escolhemos, o jeito
que vestimos, a linguagem que usamos, o assunto de nossos discursos, a baixa
qualidade do que fazemos – tudo isto levaria um ‘sem igreja’ normal a dizer, isso
definitivamente não é para mim575.
575
Lynne Hybels; Bill Hybels. Redescovering Church. The Story and vision of Willow Creek Community Church
(Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995), p. 32.
205
em Hiroshima e Nagasaki. Nesse sentido essas teologias podem ser chamadas de pós-modernas,
à medida que também abraçaram seu projeto crítico de desconstruir a soberba da modernidade.
A diferença entre eles e os pós-modernos é que não ficaram no resultado da crítica, mas
evoluíram para uma positivação axiológica sem a qual a própria existência de uma sociedade
humana não é possível. Deus é a única fonte de transcendência da qual promanam os valores.
Todas as outras fontes, mostraram-se com o passar do tempo enganosas e vulneráveis à
cooptação ideológica. Muitas das críticas que a Pós-modernidade faz ao discurso da ciência,
das disciplinaridade são válidos e oportunos. O próprio Niilismo pós-moderno que eles
aprenderam com Nietzsche tem um valor à medida que procura combater a falsificação de uma
filosofia que não reconhece que seus fundamentos se assentam sobre as bases axiológicas do
Cristianismo. Sim, os ídolos da Modernidade tinham pés de barro e merecem ser derribados de
seus nichos. Só não podemos transformar o vazio de sua vacuidade em um novo ídolo: “Tudo
o que a filosofia pode fazer é destruir ídolos. Isto significa não criar um novo, por exemplo, ‘na
ausência de um ídolo’”576.
Foi nosso propósito que a partir desse trabalho de desconstrução se possa erigir uma
teologia que realmente devolva a glória que só a Deus pertence. Karl Barth foi um dos que
tentou realizar essa reconstrução, não o pode porque estava inoculado pelo vírus do Iluminismo.
Alguns têm procurado aproximá-lo de Jacques Derrida e outros pós-modernos 577 , mas as
convergências cessam na rejeição da metafísica, contra a qual Barth também moveu uma guerra
sem trégua. Com efeito, criticando a teologia cooptada pela Modernidade, ele trouxe de volta a
lugar de proeminência a Escritura, varrendo para fora do campo teológico a influência
iluminista, muito embora sua tarefa tenha sido apenas parcialmente cumprida por causa de seus
interesses apologéticos (por exemplo, sustentar uma sorte de teologia processual). Parece que a
reação à metafísica clássica levou Barth a propor uma ruptura com a rigidez dos conceitos
metafísicos tradicionais, ainda que sem abrir mão dela, pois é bíblica: “Nele existimos e nos
movemos” (At. 17: 8). Ele defende uma ontologia atualista, muito próxima da teologia do
processo, que embora não seja declarada expressamente panenteísta, induz a assim pensar,
desde que a liberdade humana é seriamente ameaçada, a origem autônoma do mal negada
(porque de algum modo Deus é responsável por seu surgimento – para o teólogo de Basel,
quando Deus rejeita o mal cria-o inadvertidamente) e a distinção entre os atos ad intra e ad
576
Ludwig Wittgenstein. Big Typescript TS 213 (London: Blackwell Publishing, 2005), p. 305.
577
Walter Lowe. Theology and difference: The wound of reason (Bloomington and Indianapolis/Indiana
University Press, 1993); Graham Ward. Barth, Derrida and the language of theology (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995).
206
extra de Deus é descartada. Deus está no fluxo de seus atos e tudo está em fluxo. A dogmática
cristã está em fluxo, pois é um dandum construído na Igreja pelo ministério do Espírito Santo
e não algo dado e acabado. O problema dessas ideias é que elas também, em certa medida, são
antifundacionistas, já que o fundamento bíblico da doutrina é acomodado a essa ontologia e não
o contrário.
Karl Barth deu algumas escorregadas pós-modernas em sua teologia, mas em uma coisa
ele merece ser congratulado, tentou basear sua doutrina na Escritura. Não é o caso da teologia
de John Cobb e David Griffin, autores fundamentais para a teologia do processo578. Esse é mais
um exemplo da influência existencialista na teologia de Deus. Assim como Barth, os dois
teólogos citados rejeitam a rigidez da metafísica dos modernos, mas dessa feita baseiam suas
ideias, mais na filosofia de Whitehead do que nas Escrituras. Parece que a principal motivação
desses teólogos foi criar uma cosmologia que fizesse sentido pela luz de uma compatibilidade
entre a realidade mundana e as tradicionais doutrinas sobre a onipotência e a onisciência de
Deus, uma cosmologia que reconciliasse Deus com o mundo. Ora se Deus é onipotente por que
o poder do mal é tão devastador? E se Ele é onisciente por que não se antecipa ao mal com a
intercorrência de sua provisão e previsão. Olhando com o olhar humano é patente a inapetência
de Deus face às grandes catástrofes que tem ceifado milhões de vida: genocídios, guerras
devastadoras, acidentes naturais que levam as pessoas a questionarem seriamente a ideia de um
Deus Todo Poderoso.
Quanto ao niilismo pós-moderno que não deixa qualquer fundamento para as escolhas
humanas, que faz o mundo mergulhar no relativismo mais absurdo. E isso em nome das
minorias marginalizadas e oprimidas pelo discurso religioso, cooptado pelos donos do saber e
do poder. Qual será o resultado dessa libertação? Durkheim afirma em seus escritos que os
homens não podem experimentar essa liberdade absoluta que os pós-modernos lhes querem dar
porque não saberia o que fazer com ela. Ora se o homem é o produto da sociedade, na medida
que não nasce predeterminado a nada (exceto a ser criatura); se é a sociedade que o forma; se
quando nasce é o nada, tal como de Locke a Jean Paul Sartre se vem afirmando; destruir a
Cristandade, e com ela todos os pesos e contrapesos morais que foram aderidos a um ser
absolutamente propenso ao excesso, significa destruir o homem, porque fatalmente operará sua
própria autodestruição pela falta de marcos definitórios. Não se pode negar que a Cristandade
578
John B. Cobb; David R. Griffin. Process Theology. An introductory exposition (Louisville: The Westminster
Press, 1976).
207
está enferma, e isso já de algum tempo; a moral tornou-se hipócrita? Alguém o nega? As
minorias estão sendo oprimidas pelo Cristianismo nominal? Alguém duvida disso? O que não
podemos fazer é jogar fora a água suja da banheira com a criança dentro. Pois não há nada a
nos esperar no pós-subversão de tudo. O que propõem em substituição à Cristandade?
Infelizmente, até agora ninguém se apresentou com as respostas; o discurso da Pós-
modernidade é apenas destrutivo. E parecem mesmo crer que o simples fato de desconstruir
tudo o que nos foi legado pela Cristandade vai de si gerar uma outra sociedade, uma nova era,
um novo homem, como vaticinava o profeta da destruição que é também o maior arauto do Pós-
modernismo: Friedrich Nietzsche.
Esse novo homem sobre o qual fala Nietzsche é também o tema principal daquela famosa
peça do teatro do absurdo de Samuel Beckett: Esperando Godot, que retrata dois papalvos
falando insanidades, a entremear vez por outra em sua conversa a única coisa que nela faz algum
sentido, o fato de estarem esperando naquele lugar, sem razão aparente, sem prévio acerto, a
aparição de um tal Godot, para fazer não se sabe o quê aos que o esperam. Esse é o retrato da
humanidade em tempos pós-modernos, estão à espera do novo homem de Nietzsche, o
übermensch, o trans-humano, aquele que se libertou das amarras da moral cristã e se
transvalorizou. A peça ‘termina’ em um epílogo absurdo, com os mesmos dois personagens
esperando indefinidamente um Godot que nunca entra em cena. A promessa de Zaratustra não
se cumpriu e nunca se cumprirá já que as forças caóticas não podem perfazer um homem, nem
agora nem daqui a um milhão de anos. O homem é criatura e jamais poderá abandonar essa
condição. A sua salvação só pode vir de cima.
208
Referências
Referências eletrônicas:
Exame. “Vinte coisas surpreendentes sobre o templo da Igreja Universal”, Julho, 2014, online.
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/20-coisas-sobre-o-enorme-novo-templo-da-
igreja-universal/ Acessado em: 19/12/2018.
Folha de São Paulo. O maior templo Hare Krishna da América Latina serve de refúgio para
quem quer sossego em SP (25/08/2013). Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/08/1331678-maior-templo-hare-krishna-da-
america-latina-e-refugio-para-quem-quer-sossego-em-sp.shtml Acessado em 03/01/2019.
_____________. Podem me criticar diz Frank Aguiar por ser adepto do Santo Daime
(01/09/2017). Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2017/09/podem-me-
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