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adoece professores do RS
Alberto* é professor da rede estadual do Rio Grande do Sul desde 2008. Apesar de estar
acostumado a fazer empréstimos no Banrisul e utilizar o cheque especial, decidiu, em
2014, ter um filho junto com a companheira da época. “O salário já era baixo, mas eu
tinha crédito na praça, não estava negativado nem nada”, diz. Ele começou a perder o
controle das dívidas após a filha do casal nascer, no início de 2015. Precisou retirar um
novo empréstimo já para pagar a cesária. A situação foi se agravando à medida que a
menina foi crescendo. Do salário de cerca de R$ 2,2 mil que recebia do Estado por 40
horas de trabalho, quase 80% eram consumidos pelo aluguel e pela escolinha da filha. A
partir daí, começou a tirar um empréstimo atrás do outro. “Começou com um
empréstimo pessoal, depois crédito especial, crédito do minuto, empréstimo automático,
depois consignado. O Banrisul foi o grande algoz disso tudo”, diz.
Ele conta que, quando começou a atrasar o pagamento do aluguel e do condomínio,
passou a ir a pé do apartamento em que morava, na Av. Anita Garibaldi, em Porto
Alegre, até a escola estadual Oscar Tollens, localizada na Rua Vidal de Negreiros, um
trajeto de mais de seis quilômetros que ele levava uma hora para fazer todas as manhãs.
Na hora do almoço a caminhada era ainda maior, quase oito quilômetros até outra
escola estadual localizada no bairro Floresta, onde dava aulas pela tarde. Ao final do
dia, mais uma caminhada, agora um pouco mais curta, de cerca de 2,5 km, até voltar
para casa. Uma rotina de mais de 15 quilômetros e duas horas de caminhada por dia.
“Para não gastar, eu acordava mais cedo, escondido da mãe da minha filha, e saía de
casa caminhando às 6h, para chegar na escola às 7h. Eu não ia a pé para economizar, era
porque eu não tinha mesmo como ir. E era essa a maneira de não faltar na escola”,
afirma.
Em 2018, Alberto foi nomeado professor municipal de uma cidade do Vale dos Sinos.
Ele diz que, com o novo salário, conseguiu reequilibrar suas contas, ainda que
permaneça pagando empréstimos. O contracheque cedido pelo professor à reportagem
(abaixo) mostra que o salário dele no último mês de março foi de R$ 1.695,51,
incluindo vantagens e o completivo do Piso do Magistério. Contudo, descontadas
contribuições e as despesas fixas em folha, seu salário líquido foi de R$ 661,10.
Além dos juros, há a perda do poder de compra. Há quatro anos, Thaís gastava cerca de
R$ 50 por semana com gasolina em um trajeto que inclui deixar Bruno na escola
estadual Guilherme de Almeida, onde ele é vice-diretor. Como ela se divide entre a
escola Margot Giacomazzi, em Canoas, e uma escola em Nova Santa Rita, fica com o
carro até o final do dia. Hoje, o combustível consome cerca de R$ 90 semanais. A TV a
cabo foi cancelada, mesmo que gostassem de ver o noticiário dos canais fechados.
Também deixaram de ir ao cinema e a shows. Eliminaram tudo o que poderia ser
considerado supérfluo e ainda trocaram as marcas de produtos que gostavam por opções
mais baratas. “A gente acaba tendo que se privar porque hoje não sobra absolutamente
nada do salário”, diz.
Os dados disponíveis no Portal mostram que, entre 2014 e 2018, as despesas do Estado
com educação cresceram bem abaixo da média dos demais gastos públicos. Em 2014, as
despesas efetivas registradas pelo governo do Estado — isto é, o que de fato foi gasto
— somaram R$ 51.456.405.949. Em 2018, os gastos atingiram R$ 68.827.702.798, uma
alta de 33%. Levando em conta apenas o governo Sartori, entre 2015 e 2018, as
despesas aumentaram 25%. Já os gastos efetivos em educação saltaram de R$
7.717.758.872,41 para R$ 8.192.221.361,56, alta de apenas 6%. Contudo, considerando
apenas o período do governo Sartori, os gastos com educação caíram 0,34%, uma vez
que, em 2015, foram empenhados R$ 8.219.349.814,50 na área.
A queda nas despesas da educação pode ser explicada, em parte, pela redução do
número de alunos e, consequentemente, de professores no Rio Grande do Sul, dada a
redução na contratação de professores em caráter emergencial. De acordo com o Censo
Escolar de 2006, o mais antigo disponibilizado pela Secretaria de Educação (Seduc) em
sua página, o Estado tinha naquele ano 1.369.452 alunos matriculados e 67.845
professores em sala de aula. Em 2014, no último ano do governo Tarso Genro, o
número de alunos matriculados na rede havia caído para 1.013.582, enquanto o de
professores tinha sido reduzido para 49.248. O Censo Escolar de 2017, o último
finalizado, registrou 930.616 matrículas e 43.712 professores em sala de aula, reduções,
respectivamente, de 33% e 36%.
Clarice Dal Médico começou a trabalhar no Colégio Estadual Cândido José de Godói,
no bairro Navegantes, de Porto Alegre, em 2003. Ela recorda uma conversa que teve
com um colega algum tempo depois. “Uma noite a gente estava conversando e um dos
professores disse: ‘Eu não me assusto se chegar um dia que o professor vai ganhar por
20h um salário mínimo’. Eu pensei: ‘esse cara deve estar fora de si’. Pelo salário que era
e pelo que era o salário mínimo”.
O tempo passou, ela segue na escola, o colega está em outra, mas ainda no Estado, e há
professores com 20 horas que ao fim do mês, ou quando recebem, não tiram um salário
mínimo limpo. “Uma pessoa que tem uma faculdade, que tem uma pós-graduação, que
se dedica a ensinar. Sabe o que é o mesmo salário de 2014? O que tu compra com R$ 10
e compra hoje?”
Clarice Dal Médico é responsável pelo setor de recursos humanos do colégio estadual
Cândido José de Godói | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Desde 2014, ela é responsável pela área de recursos humanos da escola, além de
também atuar na direção e como supervisora. Nesse período, nenhum professor da
escola conseguiu ter uma promoção de nível pelo governo do Estado, o que deveria
ocorrer à medida que eles vão se aperfeiçoando na profissão. Mas o que acontece, na
prática, é que sequer são avaliados em termos de publicações e cursos que fazem. “A
última avaliação que foi feita na escola foi em 2014, referente a 2013. Depois que
entrou o Sartori, não teve mais nada”.
Em março, a Assembleia Legislativa aprovou o fim da licença prêmio, que permitia que
os professores que não conseguissem usufruir de um tempo de aperfeiçoamento fora de
sala de aula pudessem converter períodos a que tinham direito em vantagens
financeiras. Os únicos avanços que os professores ainda recebem são os triênios, mas o
governo Leite fala abertamente da necessidade de revisão do plano de carreira da
categoria, o que pode levar a cortes também desse benefício. “Não tem mais o que tirar.
Só se ele não quiser pagar, quiser que a gente faça um trabalho de missão. Daí a gente
vai para a África, que é mais chique”.
Precarização das escolas
A Cândido José de Godói conta hoje com 51 servidores ativos, entre professores e
funcionários. Clarice diz que, dos 17 professores que foram nomeados para trabalhar na
escola após o concurso realizado em 2013, seis já deixaram o Estado. “Nós tivemos os
melhores professores saindo. Um porque foi trabalhar na Prefeitura, outro foi trabalhar
em Santa Catarina. Outra foi trabalhar no circo”, conta.
Ela diz que, entre os contratados mais jovens, que não têm estabilidade garantida, o
normal é ficarem até dois anos, antes de irem fazer outra coisa. “Ou é alguém que está
fazendo mestrado, aí convém ficar”, diz. No entanto, ela conta que também há casos de
professores há muitos anos na rede estadual pedindo exoneração. “Um excelente
professor de história tinha 16 anos de Estado e saiu no início do ano passado”, diz.
“Quando eu entrei nessa escola, tinha aquelas professoras antigonas, que tinham entrado
no início do magistério e seguiam. Agora não é mais assim, tem uma grande
rotatividade, o que é péssimo para a educação”.
Thaís concorda que a imagem do professor vem se deteriorando cada vez mais à medida
que a condição financeira da categoria vai se precarizando. “O professor está numa
situação de humilhação tão grande, que a gente não consegue ter o respeito absoluto do
aluno. A gente passa a imagem de coitado, de miserável. Eu lembro de quando
começaram os parcelamentos, os alunos chegaram a falar de fazer uma vaquinha para
comprar cesta básica”, conta. Para ela, apesar de muitos professores não abordarem o
assunto em sala de aula, os alunos sabem que eles passam por problemas financeiros.
Eles veem, por exemplo, os professores levando marmita para a escola porque não têm
condições de pagar uma refeição.
“Além de sofrer uma perda do poder de compra, ter o salário parcelado, fica feio tu
admitir isso. Tua moral parece que vai ser atingida. O professor tem que ter uma
formação muito segura para ir para frente de uma turma, fazer com que ela não o
desrespeite e dizer: ‘Olha, eu não recebi o meu salário, estou com a minha conta de luz
para ser cortada’. Não é qualquer um que consegue dizer isso. Porque a gente vive numa
sociedade que condena o pobre, condena aquele que não tem um bom salário”, diz
Clarice. “Como que eu vou chegar na frente dos colegas e dizer que estou mal?”
Ela própria sente isso na pele, na comparação que é feita por familiares. “Se tu me
pergunta porque eu sou professora. Eu sou filha de agricultor e, para nós, lá fora, ser
professor era uma grande coisa. Tive que sair de casa. Eu não me arrependo de ser,
porque é algo que gosto. Eu tive um irmão mais novo que nunca quis estudar, sempre
fez bagunça. Agora ele trabalha com marmoaria e diz assim: ‘tá aí, tu estudou, fez
faculdade, eu não, e agora ganho o teu salário longe’. Então, dentro da própria família, o
pessoal percebe”.
Diante de tantos problemas, é impossível que a situação financeira não acabe afetando o
trabalho em sala de aula. “O nosso planejamento regular já não seria suficiente para dar
conta de todas as atividades. Obrigada a trabalhar 60 horas, esse tempo fica mais
resumido ainda”, diz Thaís.
Clarice diz que se pergunta o porquê de, apesar dessa situação, muitos professores ainda
buscarem fazer carreira no Estado. “Eu acho que no trabalho tem alguma coisa de
gostar. Agora, não é porque os professores gostam de serem professores que o governo
tem que fazer isso”.