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"Despediramme por eu ser demasiado masculina"
22.05.17
Ontem fui mais uma vez entregar currículos aqui no Porto. Respirei fundo,
como todas as vezes que saio de casa à procura de emprego, mas ontem
devia de ter respirado mais.
Entrei numa loja de um shopping bastante conhecido em Santa Catarina, ia
entregar o meu CV. Mas logo que entrei reparei na farda da funcionária e
então tão depressa comecei a falar como já estava a ir embora. Como já tinha
dito “Boa tarde” com cara de quem ia continuar a conversa, achei por bem não
virar costas sem dizer o motivo de me ir embora tão de repente. “Vinha
entregar o meu CV mas já vi que usam farda” Disse eu.
A farda tinha um corte nada neutro e incluía um lenço no pescoço, de lado,
bastante feminino e formal.
A funcionária respondeume “O que tem a farda?”. Aqui fica a conversa:
Eu: Se eu viesse para aqui trabalhar e dissesse que não me sinto confortável
a usar a farda que a senhora tem vestida, por ser demasiado feminina para
mim, a sua supervisora mantinhame aqui a trabalhar?
Funcionária: Não.
Eu: Pessoas com uma expressão de género como eu, encontram muitas
dificuldades em encontrar emprego, porque não nos encaixamos nestas
normas da sociedade. Eu não me sinto confortável a usar a sua farda, mas
usaria, muito provavelmente a farda mais masculina.
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Eu: Então, mas os homens utilizam essa farda que tem vestida?
Funcionária: Não. Não é bem igual. Mas é assim, com isto (e apontou para a
peça de cima da farda), também tem estas coisinhas aqui. Só não usam assim
o lenço, como é óbvio! (Acentuou o “como é óbvio”)
Eu: Então, mas não rejeitaria a farda. Vestia a farda na mesma da empresa.
Mas seria a que vocês usam para homem.
Funcionária: (Abanou a cabeça a dizer que não)
Eu: Estou há 1 ano sem conseguir emprego porque não aceitam a minha
expressão de género. É muito difícil conseguir emprego quando existem
fardas que não são neutras.
Funcionária: Isso é problema seu.
Eu: O problema não é só meu… (Ela interrompeume)
Funcionária: São normas da empresa e nós temos que as respeitar. Existem
outras regras aqui. Não podemos usar brincos compridos, não podemos usar
as unhas como queremos, não podemos ter o cabelo como queremos, a
maquilhagem também é como eles querem. E não se pode usar tatuagens
nem piercings. Se é uma forma de exclusão? Talvez seja. Mas esta empresa é
assim.
Eu: Mas o que tem os brincos?
Sem querer alongar muito mais a conversa, tenho a certeza que o que aqui
está já é o suficiente para perceberem a maravilhosa conversa e o porquê de
eu inicialmente dizer que deveria ter respirado mais fundo.
De facto, estou há 1 ano no Porto a tentar arranjar emprego e a única vez que
me chamaram foi para uma loja de roupa. Despediramme depois de 1 mês à
experiência e disseramme “Tu pelo teu trabalho ficavas, mas a supervisora
não vai aceitar que uses roupa de rapaz”.
Despediramme por eu ser demasiado masculina.
Mais tarde, quando lhes disse que isso seria discriminação no trabalho e que é
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crime perante a lei, tentaram arranjar outro tipo de desculpas como “Não eras
aquilo que nós procurávamos”.
Já tive imensas discussões com pessoas que me dizem que trabalho é
trabalho e vida pessoal é vida pessoal. Não discordando com a frase, mas o
trabalho é o sítio onde passamos a maior parte da nossa vida, além da nossa
casa. É necessário que te sintas confortável para que consigas ser uma
pessoa produtiva.
Faria sentido eu mudar quem sou? Se me sinto confortável a usar roupas mais
masculinas e me obrigassem a vestir vestidos, iria estar a esconder o meu
“eu” e tornarme como a sociedade acha que é correto que eu seja.
Perguntome qual a necessidade que as empresas têm de ter fardas para
homens e para mulheres ao invés de fardas neutras, qual a necessidade de
excluir pessoas com tatuagens e piercings ao invés de avaliar a capacidade
de trabalho, qual a necessidade de associarem mulheres a uma expressão de
género feminina.
Perguntome que se o objetivo daquela empresa da loja onde entrei ontem é,
de facto, o cliente se centrar no produto e não na imagem, porquê tantas
regras de imagem? No final de contas não é a venda do produto que
interessa?
O nosso emprego é o que nos sustenta. É o que paga as contas no final do
mês, o que nos ajuda a manter uma casa ao lado de quem futuramente
queremos formar família. O nosso emprego está no topo da nossa pirâmide.
Ele é necessário. É uma das bases mais importantes na construção da
independência e bemestar.
Como estarei eu então? Como estarão a sentirse as pessoas
desempregadas? Vamos reforçar: Como estarão a sentirse as pessoas que
estão desempregadas porque ninguém lhes dá emprego devido à sua
expressão de género?
Seremos menos capazes?
Ora, ponhamnos à prova.
A Nike e Adidas fizeram campanhas contra a discriminação. Elas não sabem
que os seus produtos estão em lojas onde os donos dessas lojas são sexistas
e que discriminam pessoas com base na orientação sexual, na identidade e
expressão de género.
Portugal faz as leis. E o país inteiro acha que estamos a evoluir.
Para o país evoluir é preciso que se reconheçam essas leis e que sejam
cumpridas. Costumase dizer que “As ações é que contam. Não as palavras.”
Portugal não está a evoluir. Portugal está estagnado. E estamos todos iludidos
com estas leis que vão aparecendo e que não servem para mais nada a não
ser para disfarçar a nossa mentalidade conservadora.
Depois de tantos anos de luta, ainda não baixei os braços e nem pondero
baixar. Mas é desmotivador lutares pelos direitos que não são só para ti e
mesmo assim apontaremte o dedo e chamaremte de “anormal”.
A minha luta não se faz apenas atrás de câmaras ou atrás de teclados em
redes sociais. A minha luta fazse todos os dias, frente a frente com a
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sociedade, lá fora.
A minha mãe já me disse muitas vezes: “Só pensas nisso. A tua vida são só
essas coisas. Não pensas em mais nada. É só essas trenguices.”
Como ela, pensa muita gente. Estas “trenguices” são a minha luta constante
para fazer do mundo um lugar melhor.
É muito pouco motivador quando tentas lutar pelos direitos em nome de todos
e condenamte por isso. Afinal, querem realmente um mundo melhor?
Ultimamente ouço respostas como a funcionária da tal empresa: “ Isso é
problema seu.”
Todos dizem que sou uma pessoa extrovertida, bastante inteligente e com
grandes capacidades. Mas os patrões das empresas só vêm a inexistência do
meu “eu feminino”. Por isso, não posso pagar as minhas contas, ser
independente e pensar em construir uma família.
Sintome inútil. Sinto o meu coração apertado de tristeza e sufocado de
diferenças.
Cara sociedade, o problema não é só meu. É de todos.
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