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2017­5­24 "Despediram­me por eu ser demasiado masculina" ­ dezanove ­ notícias e cultura LGBT

"Despediram­me por eu ser demasiado masculina"
 22.05.17

Ontem  fui  mais  uma  vez  entregar  currículos  aqui  no  Porto.  Respirei  fundo,
como  todas  as  vezes  que  saio  de  casa  à  procura  de  emprego,  mas  ontem
devia de ter respirado mais.
 
Entrei  numa  loja  de  um  shopping  bastante  conhecido  em  Santa  Catarina,  ia
entregar  o  meu  CV.  Mas  logo  que  entrei  reparei  na  farda  da  funcionária  e
então tão depressa comecei a falar como já estava a ir embora. Como já tinha
dito “Boa tarde” com cara de quem ia continuar a conversa, achei por bem não
virar  costas  sem  dizer  o  motivo  de  me  ir  embora  tão  de  repente.  “Vinha
entregar o meu CV mas já vi que usam farda”­ Disse eu.
A  farda  tinha  um  corte  nada  neutro  e  incluía  um  lenço  no  pescoço,  de  lado,
bastante feminino e formal.
A funcionária respondeu­me “O que tem a farda?”. Aqui fica a conversa:

Eu: Se eu viesse para aqui trabalhar e dissesse que não me sinto confortável
a  usar  a  farda  que  a  senhora  tem  vestida,  por  ser  demasiado  feminina  para
mim, a sua supervisora mantinha­me aqui a trabalhar?

Funcionária: Não.

Eu:  Pessoas  com  uma  expressão  de  género  como  eu,  encontram  muitas
dificuldades  em  encontrar  emprego,  porque  não  nos  encaixamos  nestas
normas  da  sociedade.  Eu  não  me  sinto  confortável  a  usar  a  sua  farda,  mas
usaria, muito provavelmente a farda mais masculina.

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A  funcionária  começou  a  ficar  extremamente  arrogante  e  passou  a


defender a “sua” empresa: Estas  são  as  normas  da  empresa. Esta é farda
deles  e  eles  oferecem  a  farda  e  tudo.  Então  se  já  oferecem…  É  uma  norma
deles para se trabalhar aqui. É igual para todos.

Eu: Então, mas os homens utilizam essa farda que tem vestida?

Funcionária: Não. Não é bem igual. Mas é assim, com isto (e apontou para a
peça de cima da farda), também tem estas coisinhas aqui. Só não usam assim
o lenço, como é óbvio! (Acentuou o “como é óbvio”)

Eu: Então, mas não rejeitaria a farda. Vestia a farda na mesma da empresa.
Mas seria a que vocês usam para homem.

Funcionária: (Abanou a cabeça a dizer que não)

Eu:  Estou  há  1  ano  sem  conseguir  emprego  porque  não  aceitam  a  minha
expressão  de  género.  É  muito  difícil  conseguir  emprego  quando  existem
fardas que não são neutras.

Funcionária: Isso é problema seu.

Eu: O problema não é só meu… (Ela interrompeu­me)

Funcionária: São normas da empresa e nós temos que as respeitar. Existem
outras regras aqui. Não podemos usar brincos compridos, não podemos usar
as  unhas  como  queremos,  não  podemos  ter  o  cabelo  como  queremos,  a
maquilhagem  também  é  como  eles  querem.  E  não  se  pode  usar  tatuagens
nem piercings. Se é uma forma de exclusão? Talvez seja. Mas esta empresa é
assim.
 
Eu: Mas o que tem os brincos?

Funcionária: Porque  não  é  esta  a  imagem  que  a  empresa  quer.  A  empresa


quer que o cliente se concentre no produto, não na imagem.

Sem  querer  alongar  muito  mais  a  conversa,  tenho  a  certeza  que  o  que  aqui
está já é o suficiente para perceberem a maravilhosa conversa e o porquê de
eu inicialmente dizer que deveria ter respirado mais fundo.
De facto, estou há 1 ano no Porto a tentar arranjar emprego e a única vez que
me chamaram foi para uma loja de roupa. Despediram­me depois de 1 mês à
experiência  e  disseram­me  “Tu  pelo  teu  trabalho  ficavas,  mas  a  supervisora
não vai aceitar que uses roupa de rapaz”.
Despediram­me por eu ser demasiado masculina.
Mais tarde, quando lhes disse que isso seria discriminação no trabalho e que é
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crime perante a lei, tentaram arranjar outro tipo de desculpas como “Não eras
aquilo que nós procurávamos”.
Já  tive  imensas  discussões  com  pessoas  que  me  dizem  que  trabalho  é
trabalho e vida pessoal é vida pessoal. Não discordando com a frase, mas o
trabalho é o sítio onde passamos a maior parte da nossa vida, além da nossa
casa.  É  necessário  que  te  sintas  confortável  para  que  consigas  ser  uma
pessoa produtiva.
Faria sentido eu mudar quem sou? Se me sinto confortável a usar roupas mais
masculinas  e  me  obrigassem  a  vestir  vestidos,  iria  estar  a  esconder  o  meu
“eu” e tornar­me como a sociedade acha que é correto que eu seja.
Pergunto­me  qual  a  necessidade  que  as  empresas  têm  de  ter  fardas  para
homens  e  para  mulheres  ao  invés  de  fardas  neutras,  qual  a  necessidade  de
excluir  pessoas  com  tatuagens  e  piercings  ao  invés  de  avaliar  a  capacidade
de trabalho, qual a necessidade de associarem mulheres a uma expressão de
género feminina.
Pergunto­me que se o objetivo daquela empresa da loja onde entrei ontem é,
de  facto,  o  cliente  se  centrar  no  produto  e  não  na  imagem,  porquê  tantas
regras  de  imagem?  No  final  de  contas  não  é  a  venda  do  produto  que
interessa?
O nosso emprego é o que nos sustenta. É o que paga as contas no final do
mês,  o  que  nos  ajuda  a  manter  uma  casa  ao  lado  de  quem  futuramente
queremos  formar  família.  O  nosso  emprego  está  no  topo  da  nossa  pirâmide.
Ele  é  necessário.  É  uma  das  bases  mais  importantes  na  construção  da
independência e bem­estar.
Como  estarei  eu  então?  Como  estarão  a  sentir­se  as  pessoas
desempregadas?  Vamos  reforçar:  Como  estarão  a  sentir­se  as  pessoas  que
estão  desempregadas  porque  ninguém  lhes  dá  emprego  devido  à  sua
expressão de género?
Seremos menos capazes?
Ora, ponham­nos à prova.
A Nike e Adidas fizeram campanhas contra a discriminação. Elas não sabem
que os seus produtos estão em lojas onde os donos dessas lojas são sexistas
e  que  discriminam  pessoas  com  base  na  orientação  sexual,  na  identidade  e
expressão de género.
Portugal faz as leis. E o país inteiro acha que estamos a evoluir.
Para  o  país  evoluir  é  preciso  que  se  reconheçam  essas  leis  e  que  sejam
cumpridas. Costuma­se dizer que “As ações é que contam. Não as palavras.”
Portugal não está a evoluir. Portugal está estagnado. E estamos todos iludidos
com estas leis que vão aparecendo e que não servem para mais nada a não
ser para disfarçar a nossa mentalidade conservadora.
Depois  de  tantos  anos  de  luta,  ainda  não  baixei  os  braços  e  nem  pondero
baixar.  Mas  é  desmotivador  lutares  pelos  direitos  que  não  são  só  para  ti  e
mesmo assim apontarem­te o dedo e chamarem­te de “anormal”.
A  minha  luta  não  se  faz  apenas  atrás  de  câmaras  ou  atrás  de  teclados  em
redes  sociais.  A  minha  luta  faz­se  todos  os  dias,  frente  a  frente  com  a
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sociedade, lá fora.
A minha mãe já me disse muitas vezes: “Só pensas nisso. A tua vida são só
essas coisas. Não pensas em mais nada. É só essas trenguices.”
Como ela,  pensa  muita  gente. Estas  “trenguices” são a  minha  luta  constante
para fazer do mundo um lugar melhor.
É muito pouco motivador quando tentas lutar pelos direitos em nome de todos
e  condenam­te  por  isso.  Afinal,  querem  realmente  um  mundo  melhor?
Ultimamente  ouço  respostas  como  a  funcionária  da  tal  empresa:  “  Isso  é
problema seu.”
Todos  dizem  que  sou  uma  pessoa  extrovertida,  bastante  inteligente  e  com
grandes capacidades. Mas os patrões das empresas só vêm a inexistência do
meu  “eu  feminino”.  Por  isso,  não  posso  pagar  as  minhas  contas,  ser
independente e pensar em construir uma família.
Sinto­me  inútil.  Sinto  o  meu  coração  apertado  de  tristeza  e  sufocado  de
diferenças.
 
Cara sociedade, o problema não é só meu. É de todos.

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