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Pedro Duarte (PUC-Rio)
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Rio); Luiz Carlos Pereira (PUC-Rio)
Conselho Editorial
Abel Lassalle Casanave (UFSM); André Duarte (UFPR); André Lepecki (Tisch School of the Arts,
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França); Gregory Chaitin (UFRJ); Howard Caygill (Kingston Univerisity, Inglaterra); Markus
Gabriel (Universität Bonn, Alemanha); Marcelo Perine (PUC-SP); Marcia Cavalcante (Södertörn
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Gabriel Costa - formatação
Revisão e normalização
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Projeto Gráfico
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Imagem da capa
Nuno Ramos, Fruto Estranho/2010
Semestral
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1989) ; título da tela de informação
geral (em 11 de dez. 2017)
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e Adobe Acrobat Reader
Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/
ISSN: 0104-6675
CDD: 100
5 Apresentação
Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
entrevista
271 Conversa com Nuno Ramos
Pedro Duarte, Sérgio Bruno Martins e Luiz Camillo Osorio
resenhas
285 Walter Benjamin nos extremos
Rafael Zacca Fernandes
vária
305 Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre
Fernanda Alt
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
6 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
Apresentação 7
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
Virginia de Araujo Figueiredo*
Resumo
A decisão de abordar as relações entre arte, política e filosofia, a partir de uma
noção cunhada por Philippe Lacoue-Labarthe, a de “nacional-estetismo”, deveu-se
à ideia de que talvez, no nazismo, as relações entre arte e política tenham atingido
o seu ápice. Obedecendo a um modelo grego antigo, o nazismo pode ser considerado
como o momento histórico de fusão entre a arte e a política, momento no qual o
político se produziu enquanto obra de arte; ou, nas palavras de Schiller, o Estado
foi moldado como a maior de todas as obras de arte. Numa nítida operação de
deslizamento semântico, Lacoue-Labarthe pretendeu, com aquele termo “nacional-
estetismo”, designar a essência do nacional-socialismo e, por isso, foi inevitável
estabelecer uma discussão com a famosa fórmula dupla brecht-benjaminiana da
“estetização do político x politização da arte”. Um dos pontos mais importantes
dessa discussão foi justamente a questão do mito que, segundo Lacoue-Labarthe e
Nancy, escapara a Walter Benjamin, no seu não menos famoso ensaio sobre “A obra
de arte na época da reprodutibilidade técnica”. Ainda segundo os filósofos franceses,
foi o cinema de Hans-Jürgen Syberberg, sobretudo seu filme Hitler: um filme da
Alemanha, que chamou a atenção deles para a perspectiva fundamental do mito
para compreender o programa ou o projeto político do nacional-socialismo.
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10 Virginia de Araujo Figueiredo
Abstract
The decision to approach the relations between art, politics and philosophy on the basis
of Lacoue-Labarthe’s notion of “national-aestheticism” was inspired by the supposition
that the relation between art and politics reached its climax in nazism. Indeed,
national-socialism can be taken as following an ancient Greek model and, insofar, as
the historical moment of art and politics fusion, moment in which politics was shaped
as a work of art; or, in Schiller’s words, in which the State was molded as the greatest
of all works of art. As a clear case of semantic shift, Lacoue-Labarthe intended,
with the term “national-aestheticism”, to characterize the essence of national-
socialism, and this inevitably led to a discussion of the notorious Brecht-Benjaminian
formula of the “Aestheticization of Politics vs. Politicization of Art”. One of the most
important issues in this discussion was precisely the question about myth which,
according to Lacoue-Labarthe and Nancy, Walter Benjamin let go unnoticed in
his famous essay “The work of art in the age of mechanical reproduction”. Also
according to both, it was Hans-Jürgen Syberberg’s cinema, specially his film Hitler: a
film fromGermany, that drew their attention to the central role of myth´s perspective
in considering the national-socialistic program or its political project.
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A obra de arte na época da destruição da metafísica 11
Introdução brevíssima
1 Lacoue-Labarthe, Ph. La fiction du politique, Paris: Christian Bougois Editeur, 1987, p. 76.
2 Os dois textos de João Camillo Penna e Bruno Guimarães foram publicados em versões mo-
dificadas na Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
da UFRJ, Ano XI, nº 17, julho-dezembro de 2007. Número que prestou homenagem a Philippe
Lacoue-Labarthe. Na reformulação, o texto de J. C. Penna passou a intitular-se “Auschwitz como
tragédia”.
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aos quais tive acesso (seria vão citar uma longa lista sempre incompleta de
autores franceses com quem tenho convivido: Lyotard, Nancy, Deleuze, Der-
rida, Taminiaux, Badiou, e mesmo mais recentemente, Rancière), não tenho
dúvida de que foi a reflexão lacoue-labarthiana sobre esse tema especifica-
mente, de todas a mais aguda e a mais extrema. Corajosa! E se hoje, retorno
à expressão “Nacional-estetismo” ou, com outras palavras, ao problema da
apreensão estética da arte pelo nacional-socialismo, é porque fui convencida
pelo autor que, talvez tenha sido, na história filosófica do Ocidente, nunca
antes nem depois, durante o nazismo, o momento no qual a fusão entre arte e
política atingiu o seu ponto máximo! E isso pode ser elucidativo.
A relação umbilical entre arte, política e filosofia é muito antiga. Talvez, tão
antiga quanto a própria filosofia. E como é comum na relação fraternal, os
laços que ligaram essas irmãs foram mais frequentemente de rivalidade, con-
flito, ódio e inimizade, do que os laços serenos da afinidade, paz, amor e ami-
zade. À guisa de introdução, dentre os vários autores contemporâneos que se
dedicaram à questão, vou destacar Hannah Arendt, que situou a origem dessa
relação de rivalidade na Antiguidade Clássica, isto é, entre os Gregos e os Ro-
manos, e apontou como esses povos reagiram de maneira diferente. Segundo
a autora, se os Gregos se mantiveram ambíguos e nunca se decidiram defini-
tivamente a favor da arte ou da política, os Romanos tomaram uma decisão
clara e definitiva a favor da política em detrimento da arte. Já para nós, os
modernos (contemporâneos), como a nossa herança filosófica é muito mais
grega do que romana, como nosso modo de pensar é arraigadamente fabril,
tendemos a tomar partido da arte (ligada à técnica) em detrimento da política.
Ninguém duvida do privilégio de que goza a razão técnica e instrumental
no nosso mundo ocidental. E talvez seja dele, desse privilégio do fabricar, do
fazer (dentro do qual a arte se encontra, pois, num determinado sentido, ela é
uma poiesis entre outras), que pode ser mais ou menos próximo - dependendo
justamente da ênfase que se queira dar ao vínculo da arte com a política - do
agir (da práxis), que resulte o nosso desprezo pela coisa política, pelos negó-
cios (no Brasil de hoje então nem se fala... a política se tornou mesmo um ne-
gócio no sentido pejorativo, negativo do termo) políticos. Além disso, segun-
do um agudo diagnóstico da mesma Arendt, a respeito daquelas tumultuadas
relações, o político não deixou de ser filosoficamente desprezado ou recalcado,
como efeito de um preconceito metafísico, que herdamos do ressentimento
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3 Arendt, H. Filosofia e Política. In: ____. A Dignidade da Política, trad. Helena Martins e ou-
tros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p.91: “Para nós, é difícil captar a importância dessa
dúvida, porque “persuasão” é uma tradução muito fraca e inadequada para a velha peithein, cuja
importância política evidencia-se no fato de Peithô, a deusa da persuasão, ter tido um templo em
Atenas. Persuadir, peithein, era a forma especificamente política de falar, e como os atenienses
orgulhavam-se de conduzir seus assuntos políticos pela fala e sem uso de violência, distinguindo-
-se nisso dos bárbaros, eles acreditavam que a arte mais alta e verdadeiramente política era a
retórica, a arte da persuasão.”
4 Nos três parágrafos a seguir, retomei sem muitas modificações meu ensaio: Figueiredo, V. Por
que Hannah Arendt não quis tornar-se filósofa? In: Mulheres, filosofia ou coisas do gênero. Orga-
nizadoras: Márcia Tiburi e Bárbara Valle. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2008, pp. 87-100.
Nele, argumento que uma das alegações possíveis, um pouco banal, diga-se de passagem, para
Arendt não querer tornar-se filósofa, era aquele famoso lugar-comum: “os filósofos vivem no mun-
do da lua”. Conclui também que, para ela, ao contrário da tradição metafísica, valiam os sinais
invertidos: positivo, para a política, para os afazeres empíricos e mundanos; e, negativo, para o
mundo puro das ideias e dos conceitos a priori. Por isso, ela não quis ser chamada de “filósofa”, a
ela bastava ser política sem aspas (refiro-me ironicamente ao modo desdenhoso como Heidegger
costumava diferenciar sua própria noção de política, do conceito politológico, i.e., do conceito
do senso-comum, proveniente da “ciência política”, ao qual sempre, com muito desprezo, ele
acrescentava as aspas).
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5 Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: _________Homens em Tempos Sombrios. Tra-
dução de Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 230.
6 Ibidem, p. 228. Embora a tradução em português não nos dê o termo “imaginar”, mas sim “o
poder de se espantar”, o original em inglês diz “the faculty of wondering”.
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7 Lembro aqui um dos “lemas” do pensamento heideggeriano. Trata-se de versos nos quais o
poeta Hölderlin definiu a linguagem: “lá onde se encontra o perigo/ lá também cresce o que salva”.
Heidegger recorreu a eles de modo obsessivo.
8 Só pode ser porque todo pensamento dispõe uma armadilha e um paradoxo que Heidegger, O
pensador do conceito de “mundo”, que situou, como todos sabem, o Dasein no mundo, que desig-
nou a “estrutura” Ser-no-mundo como “ontológica e existenciária”, que escreveu: “a arte era pura
e simplesmente a instalação de um mundo”, que considerou a prova da existência do mundo um
“escândalo da filosofia” (Cf. Heidegger, M. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2012, p. 571) e poderíamos estender infinitamente a lista das ocorrências
da (das múltiplas variações desta) noção de mundo, cuja importância em sua obra filosófica é ine-
gável. Portanto, só pode ser o efeito irônico e até perverso de um paradoxo que Heidegger tenha,
junto com toda a tradição metafísica, caído de novo na armadilha do outro mundo, e se refugiado
numa espécie de “mundo das ideias” ou mundo dos “conceitos”.
11 Ibidem, p. 140: “Como se deu, mais genericamente, que tenha sido em nome do que a fi-
losofia, no momento de sua instauração, delimitou como o político, que a poesia e a arte, pela
primeira vez, tenham sido visadas na essência, no alcance e na função delas? E que a filosofia,
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querendo-se legisladora acerca do político, e de antemão acerca da educação do corpo social, viu-
-se obrigada a legiferar prioritariamente em matéria de arte”.
12 Hölderlin, Fr. Observações sobre Édipo. In: Hölderlin & Beaufret. Tradução de Pedro Süs-
sekind, org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 80. Para um desenvolvimento
desse tema da história da filosofia como tragédia ou catástrofe, ver Penna, J.C. Auschwitz como
tragédia. Terceira Margem, nº 17, p. 222-249, Rio de Janeiro, julho-dezembro de 2007.
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16 Cf. Lacoue-Labarthe, Ph. La fiction du politique. Op.cit. p. 114-115. Segundo nosso autor, foi
certamente Hannah Arendt quem percebeu que o nacional-socialismo, diferentemente do despo-
tismo de tipo stalinista, resistia aos “meios da análise política e ideológica”. Foi ela que “mostrou
de maneira luminosa [...] que o nacional-socialismo, em nenhum momento, apresentou-se como
uma política determinada [...] mas como a verdade do político. E por isso mesmo, ele expôs com
muita clareza, e logo a obscureceu, a essência não política do político que nenhuma ‘politologia’,
nem mesmo nenhuma filosofia política está à altura de compreender. Mas se se deve buscar essa
essência do político do lado da arte, nenhuma estética nem tampouco qualquer filosofia da arte,
são capazes de destrinçar o elo indissolúvel (intranchable) da arte e do político, porque suas cate-
gorias, praticamente todas extraídas do platonismo, tem o pressuposto, logo de saída, dominante
em toda a tradição, que o político (a ‘religião’) é a verdade da arte.”
17 Ibidem. P. 115.
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20 Ibidem. P. 77.
21 Heidegger, “Die Zeit des Weltbildes” in Holzwege, p. 69, apud NUNES, B., “A Poética do Pensa-
mento” in Artepensamento, org. Adauto Novaes, São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 397.
22 Dou-me o direito de indicar ao leitor outro ensaio, no qual desenvolvi esse tema. Cf. Figueire-
do, V. Heidegger e a desestetização da arte. In: Heidegger: a questão da verdade do ser e sua incidência
no conjunto de sua obra. João Mac Dowell (org). Rio de Janeiro: Ed. Via Verita, 2014
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20 Virginia de Araujo Figueiredo
O nacional-estetismo
24 Idem: “[O termo nacional-estetismo] está para a filosofia heideggeriana da arte e do político
(ou do histórico [historial]) do mesmo modo que uma fotografia (mais ou menos bem) revelada
está para o seu negativo. Sendo que aqui o sinal em direção à negatividade é excessivo.”
26 Lacoue-Labarthe, Ph. La Fiction politique. Op.cit., p. 91: “on peut risquer le mot national-
-esthétisme.”
27 Idem: “O discurso heideggeriano sobre a arte, no seu projeto historial (político), lança uma luz
precisa sobre a essência, que permaneceu mais ou menos velada nos discursos dominantes sobre
o tema, do nacional-socialismo”
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28 Provavelmente este é um dos filmes mais longos da história do cinema! São mais de sete horas
de projeção! Se tivéssemos de resumi-lo numa só frase, escreveria que o filme trata da ascensão e
queda do 3º Reich e que pressupõe uma polêmica relação de identidade entre Alemanha e Hitler.
Ele está dividido em 4 partes: O Graal; Um sonho alemão; O fim de um conto de inverno e Nós,
filhos do inferno. Por ocasião de sua reapresentação na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, 2008,
Hitler: um filme da Alemanha foi assim (aliás, muito bem) descrito num texto anônimo: “o filme
caminha de maneira radical na contramão das técnicas tradicionais da linguagem cinematográfica.
Com um estilo de representação antinaturalista, o filme retoma de forma original a tradição esté-
tica de Méliès e Eisenstein, a música de Wagner e o teatro épico de Bertolt Brecht para escancarar
as artimanhas do espetáculo nazista. No filme, atores e bonecos representam as personagens-
-chave da história num cenário de circo macabro, de paisagens kitsch e de cinejornais silenciosos
projetados como pano de fundo. Syberberg procura desvendar o fenômeno nazista em suas raízes
e contextos mitológicos, confrontando-o com Ludwig II, Karl May e Richard Wagner, marcos da
história e da cultura alemãs. Proibido na Alemanha, Hitler… foi exibido no Festival de Londres
em 1977 e no Festival de Cannes em 1978. Celebrado pela crítica e por grandes personalidades
da história da cultura – Susan Sontag dedicou a ele um longo e elogioso artigo – foi distribuído
nos Estados Unidos sob os cuidados de Francis Ford Coppola que o considerou ‘uma obra que faz
com que todos os filmes de hoje em dia pareçam triviais ou fora de moda’.” Texto sem indicação
de autor. Disponível em: < https://hannaharendt.wordpress.com/2008/08/26/hitler-um-filme-da-
-alemanha>. Acesso em: 7 set. 2017.
29 Lacoue-Labarthe, Ph. e Nancy, J.L. Le mythe nazi. Paris: Editions de l´Aube, 1991.
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22 Virginia de Araujo Figueiredo
31 Idem.
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A segunda vez na qual ele manifesta seu acordo encontra-se em seu ensaio,
já muito citado aqui, “Poética e Política”. Só que, dessa vez, Lacoue-Labarthe
não deixa de indicar a insuficiência da fórmula brecht-benjaminiana, ao am-
pliar o problema do “projeto nazista”, nele incluindo não só a sua perspectiva,
que é a da mimesis e logo será mais solidamente a do mito, como também a
de Heidegger que está, a meu ver, subentendida na menção à hipertrofia da
técnica. Cito a passagem que parece acumular e sintetizar todos esses pontos
de vista: “Na época em que Brecht e Benjamin denunciavam no nazismo ‘a
estetização da política’ – e de fato o projeto nazista é incompreensível se não
o referirmos, além mesmo do wagner-nietzscheismo, ao grande sonho mimé-
tico alemão com a Grécia e com a possibilidade de reconstituir esta obra de
arte ‘viva’ que foi a cidade-estado, e se não percebermos a assimilação da arte
pela técnica, sobre a qual o sonho repousa”. 36
Tudo leva a crer que a principal discordância ou, no mínimo, a que se
manifestou, diz respeito à palavra de ordem marxista ou comunista da “poli-
tização da arte”. Lacoue-Labarthe chegou mesmo a declarar que, longe de ser
uma solução satisfatória, essa palavra de ordem não tinha sido uma ideia nada
feliz37. Em contrapartida, quanto à “estetização do político”, é provável que
ele tenha querido aprofundá-la, radicalizá-la, levá-la às últimas consequências.
Foi, pelo menos, o que a análise do filme de Syberberg permitiu-lhe afirmar: “a
intuição de Syberberg é mais profunda e, de certa maneira, ela leva ao pé da le-
tra e radicaliza o veredicto brecht-benjaminiano.” 38 Não só o filme e o cinema,
mas também as reflexões do cineasta sobre a arte, na forma de fragmentos di-
ários reunidos no livro, Die Freudlose Gesellschaft (Sociedade sem alegria) teriam
exigido a ampliação daquela fórmula. Em 1982, por ocasião da publicação da
tradução para o francês do livro de Syberberg, Lacoue-Labarthe escreveu uma
elogiosa e entusiasmada resenha. No jornal Libération, ele publicou que se tra-
tava de “um dos melhores livros escritos sobre a Alemanha desde a guerra [...]
Mas também o maior livro que um artista pôde escrever sobre a arte. Não só
sobre a ‘sua’ arte, mas sobre a arte em geral, e sua relação com a arte”.39
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24 Virginia de Araujo Figueiredo
41 Era a questão do “mito” que escapava à fórmula brecht-benjaminiana sobre o Nazismo e que exigiu
dos dois autores, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, mas sobretudo deste último, a necessi-
dade de aprofundar (radicalizando) o problema da relação entre Nazismo e a apreensão estética da arte.
42 A “mimetologia” é, mais um neologismo criado por Lacoue-Labarthe. A meu ver, essa noção,
inspirada, sobretudo, pelo pensamento trágico de Hölderlin, pretende ambiciosamente funcionar
como uma espécie de “lógica” ou movimento filosófico da história. Tentando resumidamente expli-
car: Lacoue-Labarthe se apropria do interessante gráfico que Béda Allemann (Heidegger et Hölderlin.
Tradução de François Fédier. Paris: PUF, 1959, p. 43) propusera, por sua vez, para traduzir as ideias
de Hölderlin acerca das relações entre os Antigos e os Modernos, às quais ele mesmo chamou de “iti-
nerário excêntrico das tendências culturais”. Nesse gráfico, além do par de opostos: Antigos (Gregos)
e Modernos (Hespéricos), Allemann incluíra outros pares de opostos que, de fato, se multiplicam na
armadura especulativa de Hölderlin: arte/natureza, sobriedade junoniana/fogo do céu, divinos/mor-
tais. Retomando o tratamento que René Girard (outra assumida influência) deu à mimese, de um
desejo fundado na rivalidade (cf. nota 15), Lacoue-Labarthe nos propõe a articulação mimética como
uma “lógica” capaz de reger as principais relações humanas: da historial entre Antigos e Modernos
à religiosa, entre seres humanos e deuses, passando pela artístico-científica entre natureza e arte. A
mimese duplica a oposição originalmente especulativa, suscitando um dispositivo infinitamente re-
petidor. (Cf. Penna, J.C. e Figueiredo, V. Introdução: O imperativo do pensamento. In: A Imitação dos
Modernos. João Camillo Penna e Virginia Figueiredo (orgs.). São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000, p. 24.
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precisamente aí, nessa mesma passagem, eles fizeram constar a seguinte nota
que transcrevo aqui: “Isso não significa que nós seguimos Syberberg nas suas
recentes declarações filo-prussiana nostálgicas (no padrão mais banal dos
neo-romantismos) e, infelizmente ainda uma vez, anti-semitas”.44 Se, na dé-
cada de 80, tinha havido aquele entusiasmo, já referido, na recepção da obra
do cineasta, a partir da publicação em 1990, de outro livro, Vom Unglück
und Glück der Kunst in Deutschland nach dem letzten Kriege (München, 1990,
Matthes & Seitz), Lacoue-Labarthe e Nancy veem-se obrigados a retirar todo
seu apoio e, em dezembro de 1996, numa nota à conferência “O espírito do
national-socialismo e seu destino”, ele assim escreveu sobre o livro posterior
Vom Unglück etc. de Hans Jürgen Syberberg, “cujas proposições, politicamente
duvidosas ou ao menos equívocas, suscitaram, na Alemanha, como na França,
um escândalo. Proposições essas que não posso absolutamente subscrever”.45
E, referindo-se à outra nota, d´O mito nazi, ele completa:
Hoje ainda (dezembro de 1996), não tenho nada a acrescentar, nem a su-
primir: mantenho todos os termos da minha análise da obra [isso queria
dizer que ele não retirava a importância atribuída, na década de 80,
tanto ao filme Hitler: um filme da Alemanha quanto ao livro, So-
ciedade sem alegria]: condeno, inapelavelmente, as observações ‘anexas’
– notadamente as observações anti-semitas, a meus olhos, rigorosamente
imperdoáveis.46
Retomemos, então, o nosso ponto, que é o das relações entre a arte e o nazismo
e de como, a partir de sua análise do filme Hitler, um filme da Alemanha, Lacoue-
-Labarthe “desentranhou o fio” (segundo a expressão muito feliz de João Ca-
millo Penna), que o conduziu à possibilidade de estabelecer um vínculo bimile-
nar do “sonho” do nacional-socialismo e sua “encarnação hitleriana” (idem) com
a “formação ‘técnica’, platônica (na República), da pólis”.47 Seria muito longo aqui
45 Esse trecho foi extraído da conferência “L´esprit du National-Socialisme et son destin”, minis-
trada em francês na UFMG (Cf. nota 18). Trata-se de uma versão diferente da que foi traduzida e
publicada no Brasil; desconheço se ela foi publicada no original na França. O documento ao qual
me refiro é parte do meu arquivo privado e pessoal.
46 Idem.
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26 Virginia de Araujo Figueiredo
seguir aquele fio condutor, espécie de cordão umbilical48 que une o sonho ale-
mão49 com certo modelo grego e que consistia essencialmente em parir ou dar à
luz a um povo e a uma nação, através da arte. Orientado pela lógica mimética da
história, esse sonho mais alemão do que francês, italiano ou inglês, queria imitar
os gregos. Esse sonho, que Lacoue-Labarthe, cuidadoso, tratou de diferenciar,
habitou o espírito de quase todos os pensadores e poetas alemães desde Win-
ckelmann: Schiller, Schlegel, Hegel, Schelling, Hölderlin, Wagner, Nietzsche50
e, claro, como não poderia deixar de ser: Heidegger. Não por acaso, todos eles
se preocuparam, de um modo ou de outro, com a questão da tragédia. Talvez,
pudéssemos acrescentar, parafraseando Hannah Arendt, Kant (que, sem dúvida,
não foi um pensador do trágico) tenha sido a única exceção.51 De fato, como
aponta Lacoue-Labarthe, aliando-se profundamente às proposições do cineasta,
Syberberg não ignora a tradição da metafísica ocidental, ou, pelo menos, do
pensamento alemão, desde a Aufklärung, na qual “o político (a Cidade) provém
(relève) de uma plástica, formação e informação, ficção no sentido estrito.”52
48 É proposital a escolha da metáfora biológica e bastante repulsiva, admito. Ela visa criar o
contexto no qual o Nazismo, retomando as palavras de Lacoue-Labarthe (La fiction du Politique.
Op.cit.,p. 113), pode ser compreendido como um “aborto violento da Alemanha na sua tentativa
frenética de apropriar-se como tal (identificar-se) e vir à luz da história. A Alemanha seria uma na-
ção à qual não teria sido jamais dado nascer, a pura contradição de um sujeito político natimorto
e fadado aos limites de uma ‘existência’ fantasmática.” Grifos do autor.
49 Como já indicamos (nota 27), uma das partes (2) do filme de Syberberg intitulava-se jus-
tamente “Um sonho alemão”. E no começo da parte 1, acompanhando a música (Parsifal) de
Wagner, vemos uma imagem em preto e branco que caminha (como se estivesse numa viagem
espacial) por um céu escuro e estrelado; uma voz em off diz: “Todos nós sonhamos com viagens ao
nosso mundo interior. O misterioso caminho vai até o nosso interior durante a noite.” Em seguida,
no meio da tela, da imagem do céu preto pontilhado de branco, aparece uma imensa gota flutu-
ando sozinha e a citação de Heine: “Se penso de noite na Alemanha, não consigo conciliar o sono.”
50 Ibidem, p. 102: “Seria necessário diferenciar: Schlegel, é certo, não ‘sonha’ como Hölderlin
ou Hegel, os quais, por sua vez, não ‘sonham’ como Nietzsche – por exemplo. No entanto, traços
comuns existem, perfeitamente identificáveis (provavelmente porque todos esses ‘sonhos’, muito
diversos, são comandados por um ‘resto diurno’ único: a leitura de Winckelmann).”
51 E é por isso que, dentre as inúmeras as citações de pensadores alemães que são feitas no filme
de Syberberg, uma das mais chocantes ocorre logo no início, quando o personagem narrador, ape-
lando para uma famosíssima frase de Kant, descreve Hitler como uma “projeção do homem divino,
do céu estrelado sobre nós e da lei moral em mim.” Aliás, como indica o tradutor, Jean-Baptiste
Roux, do livro de Syberberg Die Freudlose Gesellschaft (La société sans joie), os nazistas perverteram
a noção de Aufklärung, cuja tradição reivindicaram. Roux continua sua nota de tradução, explican-
do que Goebbels foi “Reichsminister für Volksaufklärung und Propaganda”, isto é, “ministro de estado
para a educação do povo e propaganda”. Syberberg, H-J. La société sans joie. P. 8.
52 Lacoue-Labarthe. La fiction du Politique. Op.cit., p. 102. Grifos do autor. Um pouco antes (Idem.
p. 93), lemos uma longa carta do famigerado ministro da propaganda na Alemanha nazista, Jo-
seph Goebbels, dirigida ao músico Wilhelm Furtwängler, na qual, entre outros temas prediletos,
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 27
aparece o da “política como arte”. Repito aqui um trecho muito expressivo dessa carta: “A política
é [...] uma arte, talvez mesmo a arte mais elevada e a maior de todas que existe, e nós que damos
forma à política alemã moderna, nós nos sentimos como artistas aos quais foi confiada a mais alta
responsabilidade de formar, a partir da massa bruta, a imagem sólida e plena do povo.” Grifos meus.
53 Ibidem. P. 103.
55 Idem.
56 Idem.
57 Idem.
58 Ibidem. P. 33-34.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
28 Virginia de Araujo Figueiredo
O mito é o poema originário (Urgedicht) dos povos. Isso significa para toda
a política romântica, desde pelo menos Herder, que um povo não se origina,
não existe como tal ou não se identifica, não se apropria – ou seja, não é
propriamente ele mesmo – senão a partir do mito. Quando Herder, Hegel
ou Heidegger repetem as palavras de Heródoto: “Foi Homero quem deu
seus deuses à Grécia”, eles não querem dizer outra coisa. Segundo a lógica
mimética ou a mimetologia [...] o mito é o meio de identificação (essa ideia
é ainda atuante, não importa a complexidade de sua reelaboração, até o
último Freud e o último Thomas Mann); e o apelo ao mito é a reivindicação
da apropriação dos meios de identificação, julgada, em suma, mais decisiva
do que a dos meios de produção.59
61 Ibidem. P. 123.
62 Ibidem. P. 125.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 29
E Lacoue-Labarthe continua:
64 Syberberg, H-J. Hitler, um filme da Alemanha, apud Lacoue-Labarthe. La fiction du Politique. Op.
Cit., p. 100.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
30 Virginia de Araujo Figueiredo
Observações finais
Para os autores d´O mito nazi, longe de estarmos quites com o nosso passado
recente, estamos, ao contrário, num certo sentido, obrigados a pensar sobre
ele; sobre o fato de o Nazismo ter sido uma “forma política alemã moderna”;
de que ela tenha sido possível historicamente. Ou ainda, sobre o fato, que
mais nos amedronta, que nos faz recuar e que consiste naquilo que Lacoue-
-Labarthe chamou de “co-pertinência ontológico-historial do marxismo e
do fascismo”;68 ou mesmo de modo ainda mais provocante: “noutro nível
(‘metodológico’), [co-pertinência ontológico-historial] do sociologismo e do
biologismo.”69 Todos esses “fatos” desembocam na hipótese, sobre a qual, in-
sisto, ainda é difícil falar dela hoje: a de que o Nazismo talvez possa “esclarecer
sobre a essência do político moderno.”70 E, se é difícil ainda hoje falar dela
é porque é mais fácil confundi-la com alguma operação de “reabilitação” ou
“reavaliação” do nazismo, o que, com toda a certeza, é preciso prevenir e ad-
vertir, não ser absolutamente o caso. Se é difícil ainda hoje falar dela é porque
nos repugna essa proximidade (“contemporaneidade”) com o “Regime”... Mal
saímos do século XX, aquele da experiência política do “totalitarismo”. Com
razão, sentimo-nos responsáveis pela nossa época. E, para Lacoue-Labarthe,
o problema é claro, trata-se de tentar “aquilatar uma época”71 e, eventual-
mente, enfrentar os riscos de apontar para aquela “co-pertinência ontológi-
co-historial”72, de tentar atingir um lugar “bem aquém das divergências ou
das oposições ´ideológicas´ e ´políticas`”73; de tentar atingir esse lugar que é,
possivelmente, o do pensamento; de encarar a tarefa nada fácil de pensar o
impensado do Nacional-Socialismo; de tentar alcançar a verdade ou essência
do político que talvez terrivelmente se revele no Nacional-Socialismo.
A exposição de seu conceito de “nacional-estetismo” está implicada, de
um lado, com o cinema de Syberberg, mas sobretudo e como sempre, com
o pensamento de Heidegger, a quem Lacoue-Labarthe chegou a atribuir o
69 Idem.
70 Idem, p. 155.
71 Lacoue-Labarthe. A coragem da poesia. Tradução de Fátima Saadi. In: A Imitação dos Modernos.
Op.cit., p. 285.
73 Idem.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 31
77 Ibidem. P. 144: “Não atribuam a mim o que eu analiso”. (“Qu´on ne m´attribue ce que j´analyse”).
78 O título da conferência faz uma óbvia referência ao livro de Hegel, “O espírito do Cristianis-
mo e seu destino”. Segundo Márcia Gonçalves (com. pes), o livro O espírito do Cristianismo e seu
destino faz uma análise histórica da passagem de uma religião [o judaísmo] cujo Deus é distante
e punitivo, para uma religião fundada no sentimento do amor e do perdão, na qual Deus é o pai
de todos. Mas, não apenas isso, o jovem Hegel teria estendido sua crítica ao próprio Cristianismo,
por não ter conseguido superar o sistema de opressão política da época. Ainda segundo Gonçalves,
“o fenômeno da morte de Jesus ou da morte de Deus, que marca o destino do Cristianismo, é o
primeiro passo lógico da contradição enquanto negação da negação ou negação do negativo, e
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
32 Virginia de Araujo Figueiredo
79 Vale aqui ainda o comentário de Márcia Gonçalves (com. pes.) de que “se não fosse esse livro
O espírito do Cristianismo e seu destino, Hegel talvez jamais tivesse concebido seu conceito [preci-
samente] de espírito”, conceito que se tornará, como se sabe, central na filosofia do Hegel maduro.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 33
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural:
João Pedro Cachopo*
Resumo
Este artigo reúne um conjunto de notas cujo propósito é reflectir sobre a relação
entre arte e política tomando como ponto de partida a ambivalência da noção de
autonomia (I). Devendo-se esta ao facto de a autonomia se poder referir à arte
tanto no singular quanto no plural, estas notas abordam questões diversas tais
como a diferença e complementaridade entre estética e arte (II); a relação entre
prática, experiência e crítica (III); a interacção entre as artes à luz do debate
pós-moderno (IV); a diversidade das manifestações interartísticas (V). Por fim,
estas notas saldam-se na ideia de que a política da arte tem na relação entre as
diferentes artes uma condição e um incentivo, sem que por esse motivo se dissolva
a singularidade do seu propósito comum (VI).
Abstract
This article brings together a set of notes that seek to debate the relationship between
art and politics taking the ambivalence of the notion of autonomy as a point of
departure (I). This ambivalence is due the fact that autonomy refers to art either
in the singular or in the plural. So these notes cover various issues including the
difference and complementarity between aesthetic and art (II); the relationship
between artistic practice, aesthetic experience and art criticism (III); the interaction
of the arts in the light of the postmodern debate (IV); the diversity of interartistic
practices (V). When all is said and done, the article suggests that the relationship
between the arts is both a condition and a stimulus of the politics of the arts, the
singularity of their common purpose notwithstanding (VI).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
36 João Pedro Cachopo
1 Lessing, G. E. Laokoon, oder über die Grenzen der Malerei und Poesie, in Gesammelte Werke,
vol. 5. Berlin / Weimar: Aufbau-Verlag, 1968, pp. 5-346.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 37
II
2 Baumgarten, A. G. Ästhetik, trad. Dagmar Mirbach. Hamburg: Felix Meiner, 2007 [1750].
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
38 João Pedro Cachopo
III
5 Jauß, H. R. Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung. Constance: Verlagsanstalt, 1972; e Nico-
las Bourriaud, Esthétique relationnelle. Dijon: Presses du réel, 2001.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 39
6 Benjamin, W. Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik, in Gesammelte Schriften,
vol. 1, 1, ed. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Surhkamp, 1991
[1920], pp. 7-122.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
40 João Pedro Cachopo
IV
Que o potencial político da arte e da experiência estética passe por todos estes
deslocamentos de fronteiras sugere desde logo que a relação entre géneros
artísticos, solidária quer com o cruzamento entre estilos populares e eruditos
quer com a sobreposição de formas modernas e antigas, se dá em benefício
desse potencial. Todos aqueles deslocamentos estético-políticos teriam a ga-
nhar, em efectividade e abrangência, com fenómenos de imbricação interar-
tística. Tocamos num tema delicado, que se cruza de modo evidente com o
debate pós-moderno. É que, como é sabido, um dos cavalos de batalha do
pós-modernismo foi a contestação do dogma – de que Clement Greenberg foi
o advogado por excelência – segundo o qual cada arte, sob pena de sacrificar
a sua autonomia no altar da sociedade do espectáculo, deveria restringir-se
à exploração do seu medium próprio7. De facto, não sendo o único, um dos
principais pontos de ruptura entre os adeptos do modernismo e os arautos
do pós-modernismo foi a interpretação política da imbricação entre as artes.
Por um lado, a valorização de fenómenos de hibridização e metamorfose
vê-se associada ao argumento, que vários autores conotados com o pós-mo-
dernismo reclamaram como seu, segundo o qual o colapso do modernismo se
traduzira numa libertação do potencial político das artes. Foi assim que Hal
Foster, embora não ignorasse a existência de um anti-modernismo reaccio-
nário, preconizava um “pós-modernismo de resistência”: um que, opondo-se
quer ao pós-modernismo reacionário de um Tom Wolfe quer ao modernismo
autoritário de um Greenberg, via no abandono da noção de autonomia e na
transgressão das fronteiras que separavam as artes entre si e do mundo uma
oportunidade para “abrir e reescrever o modernismo”8. Na sua esteira, o acen-
to na diluição das fronteiras entre o presente e o passado (Linda Hutcheon)9
ou entre “cultura de massas” e “arte erudita” (Andreas Huyssen)10 conheceu
versões que, mais ou menos em confronto directo com o modernismo, acen-
tuavam o potencial político da cisão pós-moderna.
9 Hutcheon, L. The Politics of Postmodernism. London & New York: Routledge, 2002 [1989].
10 Huyssen, A. After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington and
Indianapolis: Indiana University Press, 1986.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 41
Por outro lado, importa não esquecer que é num plano político que as
principais críticas ao pós-modernismo se desdobram: com efeito, o que se
deplora é amiúde um recuo das valências emancipatórias, contestatárias ou
subversivas da arte, diluídas numa enxurrada de proliferantes posteridades
– da arte “pós-modernista” e da cultura “pós-moderna” à sociedade “pós-indus-
trial” ou à civilização “pós-histórica”. Assim, é para prevenir a despolitização
generalizada das práticas e dos discursos artísticos que Terry Eagleton, por
exemplo, rejeita taxativamente o termo: o pós-modernismo mais não seria do
que uma paródia da vanguarda, em que a contestação genuína do status quo
cede o lugar à cumplicidade, mascarada de ironia, com os poderes instituídos.
Já Fredric Jameson, procurando esquivar-se a uma crítica moralista – e não
sendo nem tão apologista (como Greenberg) nem tão crítico (como Eagleton)
da noção de autonomia –, reconhece no pós-modernismo a “lógica cultural
do capitalismo” e, embora não enjeite totalmente os pressupostos da crítica
do modernismo, insiste em que a transição pós-moderna convida mais à des-
confiança do que ao entusiasmo11.
À distância em que nos encontramos hoje, averiguar se a alegada ruptura
pós-moderna se dá em favor ou em prejuízo da afirmação do potencial sub-
versivo, crítico ou político da arte constituiria um exercício algo supérfluo.
Ao mesmo tempo, não poderíamos acentuar uma visão acerca da política da
arte tão manifestamente favorável à relação entre as artes sem recordarmos,
ainda que de passagem, que a sua interpretação política foi um dos principais
pomos de discórdia no debate pós-moderno (um debate que, apesar de apa-
rentemente datado, continua a influenciar a discussão sobre a relação entre
arte e política, da filosofia à teoria dos media)12. O que importa, portanto,
não é tomar posição por uma das facções. Antes pelo contrário: se o desvio
é útil é porque permite sublinhar que a valorização da imbricação entre as
artes não tem de ser associada nem a um ataque ao modernismo nem a uma
apologia do pós-modernismo. Tanto que – para dar apenas um exemplo – o
desenvolvimento de uma “estética da instalação”, em que intermedialidade e
11 Jameson, F. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University
press, 1997 [1991].
12 Vale também a pena notar que considerámos este debate sobretudo a partir da óptica das artes
visuais e da literatura (é o que o conjunto de autores citados, em si mesmo, deixa transparecer).
Muito haveria a acrescentar, se pretendêssemos oferecer um diagnóstico exaustivo, acerca do
papel seminal da arquitectura neste debate bem como sobre a sua declinação um tanto ou quanto
periférica na música (onde o pós-modernismo é associado ora a um estilo mais ecléctico ora à
corrente minimalista).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
42 João Pedro Cachopo
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Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 43
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
44 João Pedro Cachopo
poesia de Manuel Gusmão em, por exemplo, Migrações do Fogo (2004). Que,
por fim, no poema de Rilke, se deslize da descrição poética de uma estátua
mutilada de Apolo para uma injunção existencial – “Pois não há ali um único
ponto / que não te observe. Tens de mudar de vida” [“denn da ist keine Stelle,
/ die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern”] – poderia servir-nos de
emblema neste texto.
Tratando-se de uma escultura antiga, o exemplo rilkeano permite-nos
também reconhecer o entrelaçamento entre o esbatimento de fronteiras entre
a arte e a vida e a revisitação do passado – entrelaçamento inseparável da hi-
pótese segundo a qual a relação entre as artes e a sua dimensão política se ilu-
minam mutuamente. A lógica dessa relação com um passado mais ou menos
longínquo diz igualmente respeito às estratégias de exposição e reprodução
de objectos distantes geográfica e historicamente. Que continuidades e que
fracturas se deixam entrever, se ocultam ou se realçam? Do projecto de mon-
tagem imagético empreendido por Warburg no Atlas de Imagens Mnemósine
à noção de “museu imaginário” desenvolvida por Malraux, é a politicidade
inerente ao mapeamento de afinidades e contrastes histórica e culturalmente
significativos que está em causa. Mas a relação com o passado não se joga
apenas ao nível das estratégias historiográficas, museológicas ou curatoriais
que medeiam a recepção. Joga-se também ao nível da produção artística con-
temporânea, onde a questão da intermedialidade torna a desempenhar um
papel decisivo.
Recorrendo a uma hipérbole, poder-se-ia sugerir que todo o objecto ar-
tístico, mesmo o mais revolucionário, constitui um palimpsesto. Que a emer-
gência do novo possa coincidir com a reelaboração da tradição mostra-o Ulis-
ses de James Joyce, cuja relação com a Odisseia é manifesta. Mas nem sempre,
como neste caso célebre, a relação de “reescrita” respeita o medium inicial.
Com efeito, muitos são os casos em que “hipertextualidade” e “hipermediali-
dade” se confundem – isto é, tomando de empréstimo as categorias de Gérard
Genette15, muitos são os casos em que a reescrita de um “texto” coexiste com
a transição para outro medium. Do livro ao ecrã, passando amiúde pelo palco,
o fenómeno da “adaptação” reúne o tópico da relação entre as artes com o da
reescrita do passado e cruza-os com um outro tema eminentemente político:
o do destino desviante da cópia ou, a partir do momento em que deixa de
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 45
VI
Poder-se-ia então dizer, no termo destas notas, que as artes no plural tomam
enfim o lugar da arte no singular? Tal elação está longe de constituir o corolá-
rio das notas precedentes. Pelo contrário, diria que não há contradição entre
o singular e o plural da(s) arte(s) e que todos estes fenómenos de hibridiza-
ção, desdobramento e metamorfose sinalizam menos o colapso da ideia de
arte – de uma constelação de práticas, experiências e discursos providos de
uma politicidade específica – do que a obsolescência de uma sua concepção
monolítica. E isto independentemente de esta concepção monolítica – que,
essa sim, cabe abandonar – se basear numa visão purista da autonomia da
arte, num entendimento determinista ou instrumental do objecto artístico,
no encapsulamento da crítica de arte na ideia de juízo, na projecção sobre o
campo artístico de uma visão teleológica da história ou no credo da fidelidade
ao original. Irredutível a tais dogmas, a arte manifestar-se-á inteira sempre
que a sua declinação plural e a sua abertura ao fora constituírem o fermento
da sua intempestividade.
Referências
16 Deleuze, G. “Platon et le simulacre”, em Logique du sens. Paris: minuit, 2005 [1969], pp. 292-
307.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
46 João Pedro Cachopo
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Ricardo Nascimento Fabbrini*
Resumo
O artigo examina a relação entre estética e crítica de arte em Jean-François Lyotard.
Mostra que nos comentários às obras dos artistas Barnett Newman, Arakawa,
Adami, Daniel Buren e Karel Appel, entre outros, o autor afirma a possibilidade de
uma “estética da presença imaterial”. Destaca que a crítica às obras desses artistas
permitiu que Lyotard avançasse em sua crítica à representação, na medida em
que as obras desses artistas evidenciariam na imanência da forma pictórica que o
essencial da pintura não é a expressão do sujeito nem a nomeação do objeto, mas a
“invocação da presença imaterial”. Face às obras desses artistas, o fruidor seria por
elas interrogado: “Algo ocorrerá?”. Mostramos, ainda, que nessa caracterização
da arte como “presentificação do impresentificável”, o autor mobilizou, de modo
singular, a noção de sentimento do sublime em Edmund Burke, Immanuel Kant,
e Friedrich Schiller. Evidenciamos, também, que Lyotard reconheceu em sua
crítica de arte diferentes níveis de tensão entre a “arte da presença” e o “trabalho
da memória” efetuado na forma artística, denominando-o de perlaboração
(durcharbeiten) - noção que aproximamos, aqui, da “dialética do material” em
Theodor Adorno. Afirmamos, por fim, que as obras comentadas por Lyotard não
podem ser subsumidas ao paradigma da comunicação, haja vista que seus fruidores
vivenciariam na experiência da indeterminação da linguagem a “comunidade de
uma falta” insurgindo-se, assim, contra a “beleza exorbitante” na sociedade da
tecnociência.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
48 Ricardo Nascimento Fabbrini
Abstract
The article examines the relationship between aesthetics and art criticism in Jean-
François Lyotard. It shows that in the comments to the works of Barnett Newman,
Arakawa; Adami; Daniel Buren and Karel Appel, among others, the author affirms
the possibility of an “aesthetics of the material presence”. It points out that the
criticism of the works of these artists allowed Lyotard to advance in his critique of
representation, inasmuch as the works of these artists would show in the immanence
of the pictorial form that the essential of painting is not the expression of the
subject nor the naming of the object, but the “invocation of the material presence”.
Faced with the works of these artists the artist would be asked: “Will something
happen?” We also show that in this characterization of art as “presentification of
the impresentiable,” the author singularly mobilised the sense of the sublime in
Edmund Burke, Immanuel Kant, and Friedrich Schiller. We also see that Lyotard
conceived in his art criticism different levels of tension between the “art of presence”
and the “work of memory” performed in the artistic form, calling the latter one
of perlaboration (durcharbeiten) - as in the “dialectics of material” in Theodor
Adorno. Finally, we emphasize that the works commented on by Lyotard can not be
subsumed by the paradigm of communication, as its participants would experience
in the experience of the indeterminacy of language the “community of a lack”, thus
rising against the “exorbitant beauty “In the society of technoscience.
2 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 49
3 Ibidem, p. 10.
4 Sendo assim, recorremos aos seguintes textos de 1984 a 1993, na tentativa de caracterizar sua
crítica de arte: L’assassinat de l’experiénce par la peinture: Jacques Monory (1984), Les Immatériaux
(1985), Le postmoderne expliqué aux enfants (1986), Que peindre? Adami, Arakawa, Buren (1987),
L’inhuman (1988), Pérégrinations (1990), Leçons sur l’analitique du sublime (1991), Moralités post-
modernes (1993), L´Emthousiasme: La critique kantienne de l´histoire, Galilée, 1886; Flora danica : La
secession du geste dans la peinture de Stig Brøgger. Paris: Galilée, 1997;Karel Appel: Un geste de
couleur/Karel Appel: A Gesture of Color. Leuven: Leuven University Press, 2009.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
50 Ricardo Nascimento Fabbrini
pensamento sobre arte. Sua reflexão sobre as obras dos artistas permitiu-lhe,
em outros termos, especificar questões já referidas em ensaios anteriores, mas
cujos desdobramentos ou alcance, somente agora, na crítica de arte, vieram
plenamente à luz. Ou seja: as obras dos artistas escolhidos por Lyotard possi-
bilitaram-lhe avançar em sua crítica à representação, na medida em que essas
obras evidenciariam na imanência da forma pictórica que o objeto essencial
da pintura não é a representação, mas a “presença” (présence); ou, certa moda-
lidade de “presentificação” (présentification), uma vez que a pintura indiciaria
o que há, nela, de “impresentificável” (impresentable).6 As obras desses artistas
dariam a ver o “caráter aporético da presença”, o qual se furta a todo discurso.7
A crítica de arte em Lyotard é movida, assim, pela noção de comentário,
o qual se desdobra em diversos níveis discursivos. Em “Que Peindre: Adami,
Arakawa e Buren”, de 1987, há às vezes duas, às vezes três vozes: no ensaio
“La présence” (A presença) que integra o livro as vozes são “Vous” e Lui”; em
“La ligne” são “Elle”, “Lui”, “L´autre”, e “Moi”; em “La franchise”, temos “Elle”,
“Lui” “ELLE”; em “L´anamnèse” temos “Vous” e “Elle”; em “Le point” temos “Est”
e “Ouest” e “Quelque mot para Arakawa”; em “Le site” temos “M. Sceau” e “M.
Sis”; e, por fim, em “L´exposition” temos “Toi” e “Vous”. Por meio dessas vozes
que evocam, evidentemente, à primeira vista, os diálogos platônicos ou as
conversações diderotianas, Lyotard elabora um comentário sobre as obras
dos três artistas (Adami, Arakawa e Buren), assim como uma crítica ao seu
próprio comentário a esses artistas. Esse último plano, por sua vez, de tom
marcadamente socrático, parece emular também a noção de corolário dos
textos de Spinoza, que Gilles Deleuze caracterizava como excurso ensaístico.8
No entanto, há ainda outra modalidade de comentário, agenciado pelo autor,
que é aquele que opera na relação entre as obras dos próprios artistas. Sua
crítica de arte evidencia, assim, a existência de uma tensão em determinadas
obras entre os comentários internos entre formas artísticas, denominados por
Lyotard de “anamnese do visível”; e a “Ocorrência”, como índice do inapre-
sentável, próprio à autonomia da forma, como veremos.9
6 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987.
7 Idem.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 51
11 Jameson, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
PP.157-21.
12 Lyotard, J-F. O pós-moderno explicado às crianças. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993; Cf.
também, do mesmo autor, O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
52 Ricardo Nascimento Fabbrini
estético” que não exigiria nenhum “complemento”, como “outra obra verbal
ou visual”.14 A arte da presença imaterial não constituiria, portanto, “intriga ou
narrativa”, porque não efetuaria comentários às obras do passado, tais como
parte significativa da produção artística dos anos 1980 (associada pela crítica
de arte, como se sabe, ao pós-modernismo), uma vez que elas visariam à “au-
tofundação de um espaço plástico”.15 Essas obras instaurariam um “momento e
um lugar de interrupção dos momentos e dos lugares”, sem qualquer citação a
outras obras, possibilitando uma fruição análoga ao “sentimento do sublime”.16
Essa arte da presença imaterial seria, segundo Lyotard, uma arte de ex-
ceção ou resistência, haja vista que a dominante seria a arte pós-moderna,
ou seja, a arte como belo esvaziado, ou, por fim, uma arte que cita outras
obras, sendo, por isso, passível de comentários pela crítica de arte. Nesses
casos, como a própria pintura recorre a mediações como à “história da pin-
tura”, caberia à crítica de arte abrir-se ao “trabalho das palavras”; ou seja, à
reflexão para explicitá-las. 17 Em suma: a arte como belo não seria uma arte
da presença imaterial, mas do “pensamento”, pois calcada em “signos de re-
conhecimento”, ou de remissão de um signo a outros signos. 18 Seria possível,
assim, que face a uma pintura, “se retomassem e se narrassem as histórias de
uma dada cor” (como a cor azul, por exemplo), uma vez que “não se pode
(em regra) mergulhar mais no ilimitado da coloração” (ou seja, no “azulamen-
to”, ou, na luz-azul como presença). (parênteses nossos). Nesse sentido, “o
intrincado das linhas, as várias histórias induzidas pela vontade do traço, a
dominação da matéria pela memória colocariam as formas artísticas em um
viés narrativo”, tendo em vista que a fruição como presença se daria apenas,
excepcionalmente, como forma de resistência a hegemonia do belo. 19 Consi-
derando-se, assim, a crítica de arte de Lyotard em conjunto, pode-se afirmar
que, para o autor, “a pintura que comenta vai bem” enquanto a “estética que
invoca a presença originária” está moribunda.20
14 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: Éditions de la Différence, 1987, p. 54.
15 Ibidem, p. 67.
16 Ibidem, p. 75.
17 Ibidem, p. 17.
18 Ibidem, p. 18
19 Ibidem, p.56.
20 Ibidem, p. 28.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 53
21 Idem. Cf. também Lyotard, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996 p. 214.
22 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: Éditions de la Différence, 1987, p.110.
23 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
24 Ibidem, p. 112.
25 Newman, B. Barnett Newman: select writings and interviews. Los Angeles: University of Califor-
nia, 1990, p.80.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
54 Ricardo Nascimento Fabbrini
26 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, pág.95.
27 Kant, I. Crítica da Faculdade do Juízo; § 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 54.
28 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984.
29 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.95.
30 Ibidem, p.96.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 55
31 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.99.
32 Burke, E. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campi-
nas: Editorial da Unicamp, 2013, Parte II, seção 1. p.84.
33 Ibidem, p.84.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
56 Ricardo Nascimento Fabbrini
35 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997 p.116.
36 Ibidem, p. 105.
39 Ibidem, p.107. Para Kant, vale lembrar, “o entusiasmo é sublime porque ele é uma tensão das
forças mediante ideias, que dão ao ânimo um elã que atua bem mais poderosa e duradouramente
que o impulso por representações dos sentidos”. Ibidem, §29, p. 118-119.
40 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 106.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 57
Por fim, embora Lyotard considere que a arte moderna resultou da crise do
conceito tradicional de belo artístico, aproximando-se nesse aspecto de Ador-
no, distancia-se das considerações desse sobre a impossibilidade do sublime
na arte contemporânea41: “A possibilidade do sublime na arte em uma época
em que predomina a imanência e a pequenez humana, e não a elevação racio-
nal no sentido kantiano acaba por reduzi-lo ao limiar do ridículo”.42 (parênte-
ses nosso). Além do que Adorno não faz uma avaliação francamente positiva
das vanguardas artísticas e de suas consequências para a arte contemporânea,
diferentemente de Lyotard que retrocedendo de Newman a Cézanne, para en-
tão avançar até Buren, converte a vanguarda no modo pelo qual a presença
imaterial é aludida na matéria, abrindo a forma sensível à imponderabilidade
do futuro. Em síntese: na noção de sentimento do sublime devidamente dis-
sociada do trágico por Lyotard não teríamos nem o triunfo da Liberdade, na
direção de Kant ou Schiller, apesar das diferenças entre os dois autores, nem a
ironia frente a sua impossibilidade no presente, no sentido de Adorno.
Desse livre jogo de Lyotard com as noções de sublime na tradição moderna, re-
sultou, também, a criação de uma nova modalidade, até então impensada: o “subli-
me imanente”, formulada pelo autor em “O assassinato da experiência pela pintura,
Monory”, em 1984.43 O “sublime imanente”, noção aparentemente paradoxal, é
caracterizado por Lyotard como a superação (Aufhebung) da oposição entre o sen-
timento do sublime e o sentimento do belo, de Burke e Kant, respectivamente. A
pintura de Jacques Monory é apresentada como variante da “arte da presença” dos
pintores simultaneamente abstratos e conceituais, comentadas pelo autor em “Que
peindre?”. Monory é tomado como um pintor figurativo (ou da nova figuração)
que “está de acordo com o mundo contemporâneo das tecnociências”, o que não
significaria que suas pinturas não efetuem uma crítica a esse mesmo mundo tec-
nológico.44 As “imagens” de suas pinturas seriam “demasiadamente belas” (de uma
“beleza exorbitante”, na expressão de Jean Galard) o que implica dizer que, nelas, “a
divisão entre belo e sublime seria inoperante, ou seja, teria se tornado caduca”.45
41 Schiller, F. Do sublime ao trágico. Belo Horizonte: Autêntica, 2011; Cf. também Sussekind,
“Schiller e a atualidade do sublime”. In: Schiller. op. cit., p.87-108.
43 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984.
44 Ibidem, p. 138.
45 Idem, p. 151. Cf. também Galard, J. Beleza exorbitante: reflexões sobre o abuso estético. São
Paulo: Editora Fap/Unifesp, 2012.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
58 Ricardo Nascimento Fabbrini
46 Lyotard J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.
47 Ibidem, p.74.
48 Ibidem, p.108
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 59
50 Ibidem, p.84-85.
52 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.
54 Ibidem, p.188.
55 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
60 Ricardo Nascimento Fabbrini
capital.”56 Nesse sentido, o céu azul de Monory é céu-fato, e não criação ar-
tística. Nem belo, nem sublime, seu céu demasiadamente azul aproxima-se
das nuvens de imagens numéricas do entretenimento, enquanto produtos de
sínteses axiomáticas e operacionais.57 Face ao céu-fátuo de Monory só haveria
a certeza da “inocorrência”, diferentemente do que ocorreria face outros céus
(de Caspar David Friedrich; Caspar Wolf, Kasimir Malevich ou Newman),
nos quais haveria expectação: “Algo ocorrerá?”. No sentimento do “sublime
imanente”, do “sublime menor” ou do “realismo sublime”, nos termos per-
mutáveis de Lyotard, frente à luz azul no céu-escarcéu de Monory haveria a
“perda da memória pictórica da imagem” tendo em vista que essa acabaria re-
duzida a mera “forma-superfície, sem espessura”: ao céu liso, sem face oculta:
céu nulamente anil-nihil.58
As imagens em Monory, portanto, não seriam “especulares” - seja no sen-
tido de representação figurativa, seja no sentido da autorreflexão própria à
arte conceitual -, mas “espetaculares”, porque estariam destituídas de
qualquer “recuo”, “enigma”, ou “mistério”, nos termos de Baudrillard. A
imagem especular é situada por Lyotard, além disso, no campo da “memória
pictórica” (e da perlaboração, como veremos), enquanto a imagem espeta-
cular é inscrita no campo da amnésia (ou do recalque como apagamento
do passado). Por essa razão para que “o olhar seja afetado pela pintura de
Monory não é preciso ser especialista, estar a par dos problemas das vanguar-
das, da história da pintura ou da literatura moderna”; porque suas imagens
são sem memória, sem a espessura temporal tanto das “imagens clássicas”,
quanto das imagens ao modo moderno.59 Na imagem demasiadamente bela
da pintura de Monory teríamos, em suma, um aggiornamento da estética do
sublime, com a substituição do sublime transcendente pelo sublime imanente;
o que significa dizer que a arte da presença imaterial é substituída pela pre-
sença tautológica, desvinculada das Ideias da razão, posto que, nessa pintura
a ideia consiste em puro artifício, na lógica da performance em contínua
expansão da tecnociência.
56 Ibidem, p. 153.
58 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.72.
59 Ibidem, p.77.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 61
60 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009.
62 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009.
63 Ibidem.
64 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009, p. 57. Essa noção de “conflito de comentários” mencionada por Lyotard remete-nos
à ideia de uma universalidade reclamada pelo juízo estético, no sentido que o crítico Clement
Greenberg, também a partir de Kant, caracterizou como uma abertura para a crítica, na medida
em que constitui um espaço de negociação dos sentidos. No entanto, o “conflito de comentários”
em Lyotard diz respeito às relações entre as obras e não aos diferentes juízos emitidos sobre ela
pelos críticos de arte. Cf. Greenberg, C. Estética doméstica: observações sobre a arte e o gosto. São
Paulo. Cosac &Naify, 2002. Cf. também a propósito da relação entre Lyotard e Clement Green-
berg, a nota 92.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
62 Ricardo Nascimento Fabbrini
65 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.42.
66 O termo “anamnese do visível”, no campo das artes, enquanto uma modalidade de perlabora-
ção, foi utilizado por Lyotard, em O Pós-Moderno explicado às crianças (1986); O inumano: conside-
rações sobre o tempo (1988); Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren (1987) e, por fim, em L´Assassinat
de l´experience par la peinture, Monory (1984).
67 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987, p. 76.
68 Ibidem, p. 89.
69 Ibidem, p.92.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 63
70 Ibidem, p. 117.
71 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.87.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
64 Ricardo Nascimento Fabbrini
tradição”, ou seja, pelo uso dos materiais ao longo do tempo, como “as ques-
tões trazidas pela linha, pela cor, pela composição, ou pelo lugar de exposi-
ção”, se recuperamos as questões centrais nos artistas comentados em “Que
Peindre”.72 Esse paralelo justifica-se se lembramos, ainda, que a “matéria da
arte”, segundo Lyotard, “não é a matéria apreendida em formas; mas é pro-
fusão de formas”.73 O artista, no entanto, não seria livre para experimentar
conforme sua vontade, mas para buscar aquilo que, mesmo ainda não tendo
sido inscrito, já se apresenta como “presença brisante” na matéria; ou seja,
como algo próximo, ao que Adorno denominava “imposição dos materiais”,
em sua “Filosofia nova música”.74
A “tecnologia artística”, dito de outro modo, não seria resultado, em Lyo-
tard e Adorno, de uma disposição anímica do artista, mas da historicidade
dos materiais: “A escolha dos meios – afirma Adorno - não é decidida nem por
uma intuição qualquer do compositor (ou do pintor, no caso de Lyotard) sobre o
curso da história, nem por uma necessidade subjetiva de expressão, mas pela
própria consistência do que é figurado” no “embate com o material”.75 (grifos
nossos). A presença da matéria seria, assim, brisante, porque na perlaboração
o artista não se submete simplesmente à materialidade dos meios, mas a aco-
lhe no mesmo movimento que dela “se desvia”, mediante a “quebra” (“brisé”)
decorrente da livre associação por parte do artista, segundo Lyotard. Seme-
lhantemente, em Adorno, a obra que acolhe os materiais pressupõe “a dialé-
tica entre liberdade e necessidade na configuração da forma”, a contrapartida,
no plano dos materiais, da “dialética histórica”, na perspectiva do autor.76 É
o “rigor da construção” que possibilitaria, para Adorno, “a real liberdade de
expressão subjetiva”, o que significa dizer que “a liberdade ocorre no próprio
material”77. Em resumo: tanto na perlaboração lyotardiana quanto na lógica
72 Cf. a propósito da dialética dos materiais em Adorno: Almeida, J., Crítica dialética em Theodor
Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2007, p.302.
73 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009, p. 64.
75 Adorno, T. “Arbeitsprobleme des Komponisten”. In: Musikalische Schriften VI, 1984; apud Al-
meida, J. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP): Ateliê
Editorial, p.303.
76 Almeida, J. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP):
Ateliê Editorial, p.302.
77 Ibidem, p.303.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 65
78 Apesar dessa convergência, é possível contrastar os dois autores no que se refere à historicida-
de dos materiais afirmando que em Adorno a “dialética dos materiais” é inseparável do processo
social, enquanto a anamnese do visível, em Lyotard, pressuporia uma “dívida de infância”: “Uma
‘infância’ que não seria uma época da vida, mas uma incapacidade de representar e ligar um algo”
(Lyotard, J. Heidegger e os judeus. Petrópolis: Vozes, 1994). Cf. também a propósito dessa tensão
entre os dois autores: Bardelli, M., op. cit., p.105). No intento de reaproximá-los pode-se, todavia,
contra-argumentar que a atualização do estado histórico dos materiais e técnicas artísticas, em
Adorno, corresponderia à tentativa, em Lyotard, nunca plenamente realizada, da obra saldar uma
“dívida com a alteridade”; “dívida de gesto”- uma “dívida de infância” (Lyotard, op. cit., p, 107).
Nos dois casos teríamos o intento comum de atualização, visando a suprir uma falta, tornando
indicialmente presente algo ausente, e não representar uma cena (intriga ou narrativa) pela citação
de signos do passado.
82 Ibidem, p. 112.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
66 Ricardo Nascimento Fabbrini
83 Ibidem, p.113.
84 Lyotard, J-F. Textes dispersés I: esthétique et théorie de l’art / Miscellaneous Textes I: Aesthetics and
Theory of Art. Louvain: Leuven University Press, 2012, p.184.
85 Pelbart, P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.19-42; Cf. também,
do mesmo autor, O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento, São Paulo, N-1 edições, 2013.
86 Idem..
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 67
92 Diversos autores, além de Lyotard, mobilizaram a “estética kantiana” com o objetivo de anali-
sar o estatuto da arte, e da recepção estética, na contemporaneidade, entre os quais Clement Gre-
enberg; Fredric Jameson; Artur Danto (Cf. do autor A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia
da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005); e Thierry de Duve (Cf. Kant after Duchamp. New York: Mit
Press, 1996). Destaquem-se, aqui, apenas, as diferentes apropriações da noção de universalidade
do juízo de gosto (e, por conseguinte, da relação entre ética e estética), em Lyotard e Greenberg.
Lyotard acentua que o juízo de gosto (com seu devir comunidade, como veremos), é puro porque
“liga imediatamente” prazer à “simples contemplação do objeto”; de modo que este ajuizamento
é direto, simples, imediato, na medida em que, nos termos de Kant, “quando declaramos algo
belo” (ou sublime), “não se permite a ninguém ser de outra opinião”. (KANT, I., op. cit., §1 a §22
p.47-86). Diferentemente, para Greenberg, o “ato de universalização” do juízo é uma abertura
para a crítica enquanto persuasão sobre a “validade dos critérios” que orientam o juízo estético
sobre determinada obra de arte. O assentimento universal kantiano é tomado, assim, pelo crítico
norte-americano, como o acatamento de um “juízo transformado no consenso”. A universalidade
do juízo sobre determinada obra resultaria, em outros termos, da “negociação do sentido”, ou seja,
de um “debate crítico”, travado, sobretudo, pela crítica de arte, sobre a qualidade artística dessa
obra (ou seja, se a obra é “boa” ou “ruim”, nos termos do autor). Cf. Greemberg, op. cit.).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
68 Ricardo Nascimento Fabbrini
É preciso estar apto a ser tocado pelo sentimento, o que requer uma comu-
nidade imediata recusada na problemática da comunicação. Comunicar é
estritamente agir. A interatividade exigida no contato com as tecnologias de
informação, não poderia ocorrer sem mediação. Espírito ativo somente.95
93 Lyotard, J-F. “Algo assim como: Comunicação... sem Comunicação”. In: Parente, A., (Org),
Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
96 Ibidem, p.266.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 69
97 Ibidem, p. 255.
99 Ibidem, p. 207.
100 Lyotard, J-F. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984, p. 86.
101 Lyotard, J.F. L’ Album - catalogue de l’exposition Les Immatériaux. Paris: Centre Georges Pom-
pidou, 1985.
102 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 75.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
70 Ricardo Nascimento Fabbrini
105 Ibidem, p. 124-125; Cf. também Heidegger, M., “A questão da técnica”. In: Scientiae Studia:
Revista do Departamento de Filosofia, v.5; no. 3. 2007.
106 Lyotard, J.-F. Textes dispersés I: esthéthique et théorie de l´art. Louvain: Leuven University Press,
2012, p. 176-178; Cf. também Couchot, E. & Hilaire, N. L´art numérique. Comment la technologie
vient au mond de l´art. Paris: Édition Flammarion, 2003.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 71
107 Lyotard, J.-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 60.
108 Cf. Couchot, E. & Hillaire, N., op. cit.; e, também, Lévy, P. O que é o virtual? São Paulo:
Editora 34, 1996.
109 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 1985, p. 106.
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72 Ricardo Nascimento Fabbrini
111 Lyotard, J-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 60.
112 Lyotard, J-F., “Algo assim como: Comunicação...sem Comunicação”. In André Parente (Org),
Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 1993, p. 252.
113 Maciel, K. “A última imagem”. In Parente, A. (Org), op. cit., p. 253-257 Cf. Simondon, G.,
L´invention dans les techniques. Cours et conférences. Paris. Éditions du Seuil, 2005; Virilio, P., A má-
quina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994; e, por fim, Schaeffer, J-M., A imagem precária.
Campinas (SP): Papirus, 1996.
116 Lyotard, J.-F.,. Algo assim como: Comunicação... sem Comunicação . In Parente, A. (Org), op. cit., p.253.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 73
117 Gérard Sfez, Autrement qu’être en art. In Françoise Coblence & Michel Enaudeau, “Lyotard et
les arts”. Paris: Klincksieck, 2014; apud Bardelli, M.,op. cit., p.86.
118 Lyotard, J-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 88.
119 Lyotard. Por que filosofar?. São Paulo: Parábola, 2013, p. 61.
121 Jean François Lyotard, Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987, p. 34.
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74 Ricardo Nascimento Fabbrini
122 Blanchot, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.: Cf. também Barthes, R. O Neutro.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
123 Lyotard, J-F., Économie libidinale. Paris: Les Editions de Minuit, 1974.
124 Lyotard, J-F., Peregrinações: Lei, Forma, Acontecimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 75
expectação de que alguma coisa há de surgir desse impulso que força a for-
ma para fora de si mesma, para o informe, como índice de alternativas ao
dito real.
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
76 Ricardo Nascimento Fabbrini
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 77
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Vanessa Teixeira de Oliveira*
Resumo
O presente trabalho discute a teoria da imagem proposta pelo cineasta Serguei
Eisenstein (1898-1948), a partir da cena do assassinato da personagem de Vladímir
Stáritski, na segunda parte do filme Ivan o Terrível (1945). Segundo Eisenstein,
esta cena seria o ponto mais alto de toda a sua obra, como uma materialização
de suas teses sobre a criação de imagens artísticas. Observando algumas reflexões
do cineasta sobre esse momento-chave de sua obra artística e teórica, procura-
se analisar os procedimentos adotados nessa cena, com foco nas noções de MLB
(retorno ao ventre materno), êxtase, paródia e montagem.
Abstract
This article discusses the theory of the image proposed by the filmmaker Sergei
Eisenstein (1898-1948) focusing the scene of the assassination of Vladimir Staritski
in the second part of the film Ivan the Terrible (1945). According to Eisenstein,
this scene would be the highest point of all his work, since in it one could find a
materialization of his theses on the creation of artistic images. Looking at some of
the filmmaker’s reflections on this key moment in his artistic and theoretical work,
we try to analyze the procedures adopted in this scene, taking as references the
notions of MLB (return to the womb), ecstasy, parody and montage.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
80 Vanessa Teixeira de Oliveira
1 Ivan o Terrível foi objeto da minha tese de doutorado, Eisenstein-Ivan-Meyerhold: teatro e enigma
no cinema de Serguei M. Eisenstein (um estudo de Ivan o Terrível), defendida no âmbito do Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO), sob orientação da professora Angela Materno de Carvalho, no ano de 2010.
Inevitavelmente, algumas reflexões desenvolvidas na tese serão retomadas aqui.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 81
4 Idem, p.89.
5 Ibidem, p.27-28.
6 Ibidem, p.28.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
82 Vanessa Teixeira de Oliveira
entre Ivan-Hamlet-Stálin, por exemplo, não tenham sido bem vistas neste
grande plano de retorno ao passado como espelho de um presente suposta-
mente igual de heroico.
De fato, quem teve disposição de continuar seguindo a filmografia de Ei-
senstein, além dos mais conhecidos O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro
(1928) – filmes obrigatórios em qualquer curso de história do cinema e de
montagem cinematográfica –, depara-se em Ivan o Terrível com um filme mui-
to estranho. Apesar de já ter sido realizado na década de 1940, a mise-en-scène
do filme parece um tanto anacrônica e nos remete à teatralidade exacerbada
dos atores dos primeiros filmes mudos. Mas não é só isso. As poses estáticas
dos atores são tão acentuadas que nos fazem pensar sobre um possível retor-
no ao “teatro imóvel” de Maurice Maeterlinck, um dos autores de referência
para Eisenstein no processo de criação da obra8. “A Rússia parece estrangeira
aqui, como Pompeia”9. Esse comentário do ator Alieksiêi Diky, depois de
ter assistido à primeira parte de Ivan, pode ser entendido não apenas em
função da proximidade do jogo dos atores no filme com a petrificação dos
mortos vitimados pela erupção do Vesúvio, mas também em relação à estra-
nha atmosfera de confinamento que paira sobre o lugar dessa tragédia. Nessa
aproximação entre Ivan e Pompeia, aparecem conjugadas as ideias de morte,
congelamento, antiguidade e extinção.
Por outro lado, não seria exagero pensar o filme como uma espécie de
enigma. O apuro estético do cenário e do figurino (elaborados por Eisens-
tein), a repetição de motivos visuais e de gestos no decorrer das duas partes
do filme, a montagem dentro de cada plano, articulando distintas faturas de
imagem e de sentido, dão a impressão de que o filme teria uma mensagem
secreta a ser decifrada por alguns poucos iniciados. “O filme não é só uma
espécie de hieróglifo, como consiste numa série de hieróglifos – grandes, pe-
quenos e diminutos. Não há um único detalhe que não esteja permeado das
intenções do autor”10, constata o cineasta Andriéi Tarkóvski. Ao invés de uma
mensagem clara e direta, ao gosto das autoridades soviéticas, Eisenstein en-
trega como produto da encomenda um filme ambivalente que, nas palavras
de Joan Neuberger, nos propõe alguns paradoxos: “o comprometimento de
Ivan na criação do Grande Estado Russo foi um sucesso ou um fracasso? Uma
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 83
O assassinato de Vladímir
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84 Vanessa Teixeira de Oliveira
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Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 85
14 Idem, p.47.
15 Ibidem, p.34.
16 Ibidem, p.36.
17 Ibidem, p.47.
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86 Vanessa Teixeira de Oliveira
18 Tsivian, Y., Eisenstein’s rules of reading. In: Lavalley, A.; Scherr, B. P. (Ed.), Eisenstein at 100: a
reconsideraætion, p.272.
19 Nesbet, A., Ivan and « The Juncture of Beginning and End ». In: Lavalley, A.; Scherr, B. P.,
Eisenstein at 100: a reconsideration, p.296.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 87
A construção telescópica
20 Idem, p.295.
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88 Vanessa Teixeira de Oliveira
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Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 89
22 Idem, p.322.
24 Eisenstein se utiliza dessa expressão ao abordar o caráter regressivo e progressivo que existiria
na imagem artística. Cf. Eisenstein, A forma do filme, p.131.
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90 Vanessa Teixeira de Oliveira
27 Idem, p.39.
28 Ibidem.
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Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 91
caso não fosse cortada do filme, marcaria bem a existência da ‘atmosfera MLB”
abrindo a primeira parte do filme e fechando a sua segunda parte. Nas duas
pontas, várias mortes, de fato, são encenadas: mãe, noiva, amante, tzar, bobo.
Mesmo cortada essa cena, esse jogo de máscaras, de espelhamentos e inver-
sões – vide as parelhas assassino/vítima, súdito/senhor, no caso de Vladímir
travestido como Ivan, por exemplo – impregnam todo a estrutura do filme
e acabam rompendo com o darwinismo estético de Eisenstein, com o seu
discurso de teor fortemente evolutivo, teológico, quando se refere ao cinema,
por exemplo, como o ponto máximo na história da evolução das artes.
Em Ivan, somos incessantemente levados a estabelecer relações entre mo-
mentos distintos do filme em razão da repetição de motivos visuais, nar-
rativos, gestuais, e nesse movimento de vai-e-volta, vamos construindo em
nossa mente a imagem do filme. A imagem, para Eisenstein, tem a ver com o
desenrolar de um processo. A imagem está sempre impregnada, contaminada,
por diversos tempos e experiências que coexistem simultaneamente mediante
o procedimento da montagem. “A montagem é uma exposição de anacronias
tendo em vista que ela procede como uma explosão da cronologia. A monta-
gem corta as coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente
separadas”31, escreve Georges Didi-Huberman, relacionando o teatro de Ber-
tolt Brecht ao cinema de Eisenstein. O que está aí em jogo, portanto, é uma
visão de história que implica a “desmontagem-remontagem” da ideologia do-
minante, de uma aparente normalidade presente em uma visão de tempo
cronológico que não aceita os desvios e as reflexões abertas ao lado, propostas
pelo procedimento paródico e extático de Eisenstein.
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
92 Vanessa Teixeira de Oliveira
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Luiz Camillo Osorio**
Resumo
Os filmes de Jean-Luc Godard, por sua natureza reflexiva, ganham por vezes um
caráter ensaístico e curatorial. Não se trata tanto de produzir imagens quanto de
pensar sobre as imagens e de selecionar as imagens. Nas suas História(s) do cinema
e em outros casos, as imagens nem sequer são filmadas por ele. São montadas por
ele. Isso coloca, para os filmes, o desafio de relacionar as imagens entre si e de
citá-las, como apontou Georges Didi-Huberman em Passados citados por J.L.G. O
artigo caracteriza a forma pela qual Godard responde a esse desafio, apontando
como ela encarna preceitos do crítico Walter Benjamin sobre a história e do escritor
André Malraux sobre o museu.
Abstract
The films of Jean-Luc Godard, because of their reflexive nature, gain an essayistic
and curatorial character. It is not so much about producing images as it is about
thinking about images and selecting images. In his Histoire(s) du cinéma and in
other cases, the images are not even filmed by him. They are edited. This poses
the challenge of relating images to each other and citing them, as Georges Didi-
Huberman pointed out in Passés cites par J.L.G. The article characterizes the form
through which Godard responds to this challenge, pointing out how it embodies
ideas of critic Walter Benjamin on history and writer André Malraux on museum.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
94 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
Uma cena de Banda à parte, de 1964, entrou para o imaginário dos amantes
de cinema. Nela, os três amigos que protagonizam o filme de Jean-Luc Go-
dard, dois homens e uma mulher, percorrem o Museu do Louvre correndo
em disparada. Irresponsáveis e gaiatos, batem o recorde da visita mais rápida
já feita ao museu e logo comprazem-se disso. Percebemos aí uma espécie de
prenúncio hiperbólico do que hoje sabemos ser evidente: nossa atenção foi
explodida pela aceleração da vida. O tempo do olhar precipitou-se. Indireta-
mente, a cena anuncia também a lógica inerente à sociedade do espetáculo: a
dessacralização das instituições culturais e a dispersão afetada da sensibilida-
de cotidiana. Este diagnóstico nos obriga a repensar a relação entre cinema e
narrativa; exposição e experiência; passado, presente e futuro.
Não por acaso, a obra de Godard sofre uma inflexão justamente na épo-
ca em que Guy Débord diagnosticava a sociedade do espetáculo: o fim da
década de 1960. Desde Acossado, seu filme de estreia de 1960, já não havia
ingenuidade no cinema de Godard, evidentemente. No entanto, nos dez anos
seguintes sua produção segue em ritmo veloz e, a despeito da autoconsci-
ência sobre o cinema e da ironia com a sua linguagem, não há uma ruptura
drástica de artifícios tradicionais, como a identificação do espectador com
o personagem e o enredo. Os personagens podem vagar perdidos e a trama,
desconexa. Mas eles estão ali ainda garantindo um fio com a tradição estética
e com um mínimo de narrativa que remontam até a Poética aristotélica, orga-
nizando a sequência das imagens1. No fim da década de 1960, depois de A
chinesa e com a formação do coletivo politizado de cineastas do Grupo Dziga
Vertov, esses resíduos da estética tradicional tenderão a perder relevância no
cinema de Godard. Era preciso acirrar ainda mais o caráter crítico e reflexivo
sobre as imagens. O olhar que, na cinefilia da juventude, encantara-se com
as imagens, voltava-se agora ao questionamento do modo como elas estavam
operando na sustentação dessa sociedade do espetáculo.
Para nós, meio século depois, o diagnóstico pode parecer trivial. Não era.
Tratava da transformação pela qual as imagens, até então com importância
secundária no mundo moderno, tornaram-se o epicentro deste mundo. O
espetáculo, para se manter espetacular, demanda uma produção incessante
de imagens, a ponto de não podermos mais compreendê-las ou pensá-las:
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 95
ver se torna uma prática débil. É que “as imagens que se destacaram de cada
aspecto da vida fundem-se num fluxo comum”, diagnosticava Débord, para
ainda completar que, se é assim, “a especialização das imagens do mundo se
realiza no mundo da imagem autonomizada”2. Ora, o cinema é parte desse
mundo novo, ele é parte do problema. É parte do sistema no qual a profusão
de imagens tira delas a conotação de exceção artística. Tornam-se a regra
cultural. Parece que Godard precisou acirrar, então, a sua crítica das imagens
pelas imagens. Precisou, assim, dar conotação ainda mais ensaística e refle-
xiva aos seus filmes, frente ao encantamento anterior. Uma das formas para
fazê-lo foi operar, radicalmente, como um curador de imagens, mais do que
como filmador de imagens. Organizar, pensar, combinar, relacionar, compa-
rar imagens. Eis o que ganha força no cinema e nos vídeos de Godard, mais
do que obrigatoriamente fabricar imagens com a câmera.
Godard nunca foi um moralista. Ele observa as coisas e explicita os con-
flitos. Pertencer à cultura do museu é estar diante de um arquivo potencial
de imagens, gestos, expressões. É também saber-se atravessado por narrativas
que articulam estes arquivos e deixam poucas brechas e intervalos para inter-
rogá-los. Em certa medida, sua trajetória foi uma procura obsessiva por linhas
de fuga que nos dessem, através da recomposição vertiginosa de imagens e
palavras, novas maneiras de pensarmos o visível e o dizível, ou seja, novas
perspectivas de abordagem do real – tomado enquanto cruzamento, sempre
atual, do que foi e do que pode vir a ser.
Na construção destas linhas de fuga, o cinema de Godard é simultanea-
mente um exercício ensaístico e uma prática curatorial. Estas duas dimensões
se complementam. O cinema pensado como ensaio visual, como montagem
de imagens ficcionais e documentais, pictóricas, fílmicas e televisivas, faz-se
sempre enquanto curadoria, enquanto exercício experimental de seleção e des-
locamento de imagens. Para se discutir a dimensão curatorial do cinema de
Godard, especialmente na sua monumental História(s) do cinema, é preciso alar-
gar o âmbito dessa atividade, levá-la na direção de uma reinvenção dos modos
convencionais de expor, montar e mostrar. Evidentemente, não se quer reduzir
a linguagem do cinema ao ensaio, muito menos à prática curatorial. Antes disso,
tal aproximação visa muito mais usar Godard e sua poética cinematográfica
para pensarmos de forma mais alargada e arejada o ensaio e a curadoria. O final
da parte 3A de História(s) do cinema, com uma sequência longa e emocionante
em homenagem ao cinema italiano do pós-guerra, deve ser visto nesta chave
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
96 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
3 Lukács, G. “Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper”, in A alma e as formas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015, p. 40-1.
4 Dubois, P. “Os ensaios em vídeo de Jean-Luc Godard: o vídeo pensa o que o cinema cria”, in
Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 289.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 97
5 Godard, J-L. “Histoires du cinema”, II, apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG, Paris, Les
Éditions de Minuit, 2015, p. 75.
6 Benjamin, W. “Sobre o conceito de história”, in Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas;
v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
98 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
7 Godard, J-L. “Les dernières leçons du donneur, fragments d`um entretien avec JLG, Cahiers du
cinema, 300” apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015,
p. 28.
8 Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015, p. 30.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 99
10 Esta fórmula aparece de diversas maneiras em seus filmes, mas com essa apresentação em Je
vous salue, Marie de 1985.
11 Godard, J-L, “Manifeste” (1970), apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG, Paris: Les
Éditions de Minuit, 2015, p. 49.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
100 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
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Godard ensaísta, Godard curador 101
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
102 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
Ele cita, sem dúvida, muitos autores em seus livros sobre arte, mas jamais
uma noção ou ideia é oriunda de alguém ou de alguma pesquisa anterior,
de modo a ele ter que reconhecer a paternidade alheia. Não há referências
em seus livros. Ele é o inventor de tudo o que diz. Mesmo quando se pauta
em uma frase célebre, como aquela de Maurice Denis que diz “que um
quadro antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou qualquer
estória, é essencialmente uma superfície plana, coberta de cores, reunidas
segundo certa ordem”, Malraux vai apropriar-se dela e retificá-la, “um
quadro antes de ser um cavalo de batalha ou uma estória qualquer, é essen-
cialmente uma superfície plana, coberta de cores, reunidas segunda uma
ordem que as emancipa do tempo. (Didi-Huberman, 2013, p.84)
15 Benjamin, W. “Quinquilharias”, in Rua de mão única – Obras escolhidas; v. 2. São Paulo: Brasi-
liense, 1994, p. 61.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 103
talvez a montagem segundo JLG sirva justamente para isso: convocar toda
a exuberância das imagens e linguagens disponíveis – escritas e faladas,
pintadas e representadas, semitas e indo-europeias etc – para provocar
algo como a sideração ou a efusão ou a aceitação ou a distância do No com-
ment. Eis a dialética godardiana: seu modo próprio de dizer olha isso (vois,
lá), o que supõe um longo trabalho de orientação do olhar, o estabelecimen-
to de relações bem pensadas, e de dizer conclua isso (voilá), o que supõe a
interrupção da sessão, ao modo zen ou ao modo de Lacan, uma forma de
sublinhar violentamente a liberdade artística, um modo de dizer o seguin-
te: ‘é pegar ou largar’. No dicionário godardiano composto por Jean-Luc
Douin, a palavra montagem (‘arte de produzir uma forma que pensa, arte
de dar um sentido dialético à imagem’) se constela com o alcance não raro
esotérico das associações (por que e como justapor Manet e Goebbels, via
Zola, etc?), com o lado ‘estou me lixando para as regras’ dos faux raccords
assumidos. (Didi-Huberman, 2015, pag 37)
Há algo nisso que lembra os textos ensaísticos: eles começam por onde de-
sejam e, mais, terminam quando sentem que é hora de parar. Assim como
certas montagens curatoriais que misturam momentos históricos, focando
mais na experiência instalativa do que na fluência narrativa. Ou seja, dispen-
sam marcos absolutos para o início e o fim. Deixam de lado uma progressão
suave, causal e coerente. O mesmo faz Godard frente ao cinema comercial fa-
miliar. “Ele não começa com Adão e Eva”, observaria Theodor Adorno sobre
o gênero de escrita do ensaio, “mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
104 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio
que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde
nada mais resta a dizer”16. Poderia estar se referindo ao cinema de Godard.
Essa caracterização indica a relação do ensaio com a narrativa, mas com uma
espécie de narrativa distinta da sistemática. É uma narrativa que abandona
a busca por um começo absoluto, por um marco zero, um princípio aquém
do tempo – como seria aquele princípio da história religiosa exemplar de
Adão e de Eva. No mesmo sentido, Godard constrói estruturas para os seus
filmes que são desprovidas daquilo que no sistema impera: a teleologia. O
que acompanhamos não tem um telos, um fim desde o começo previsto e
que orienta o desenrolar de uma estória. Mesmo no começo de sua trajetória,
com a Nouvelle Vague, os enredos não seguiam uma lógica sequencial dotada
de previsibilidade, tampouco os personagens eram desenvolvidos com uma
finalidade. Isso só fica ainda mais radical quando o estilo ensaístico e a di-
mensão curatorial entram mais fortemente no cinema do Godard, em filmes
como Carta a Jane ou nas História(s) do cinema.
Esse parentesco entre o cinema de Godard e o ensaio nem deveria nos
espantar. Em um certo sentido, os textos de caráter ensaístico podiam já se
assemelhar muito, no princípio de ordenação, à montagem cinematográfica,
na qual os fragmentos obedecem a uma arte combinatória. Que Godard, por-
tanto, reencontre no cinema o ensaio não deixa de fechar, assim, uma sur-
preendente coerência. Descarta-se a linearidade narrativa em prol de outras
associações possíveis, de encadeamentos desviantes. O ensaio busca isso: não
novas coisas, mas novas relações entre coisas. Do mesmo modo, a curadoria
também pode ser vista como a prática de reunir obras de forma a dar-lhes
novas articulações de sentido sem com isso trair sua autonomia e liberdade.
Desse modo, as contradições podem aparecer no texto (na exposição, no fil-
me), que dispensa uma síntese geral dos elementos de que trata. Enquanto
a exposição sistemática deve solucionar dialeticamente toda oposição entre
tese e antítese, o estilo ensaístico acolhe a tensão e a sustenta. Tolera o para-
doxo. Explicita o jogo de forças que um objeto traz. Ora, é justamente esse
tipo de operação que domina o cinema de Godard.
16 ADORNO, T. W. “O ensaio como forma”. In. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almei-
da. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 17.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 105
Referências
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Sérgio Bruno Martins*
Memória em obra:
um ensaio sobre Blade Runner 2049
Memory at work:
an essay on Blade Runner 2049
Resumo
Tomando como ponto de partida a relação entre o tratamento da memória em Blade
Runner 2049 e a dupla matriz do realismo na literatura ocidental proposta por Eric
Auerbach no primeiro capítulo de seu livro Mimesis, este ensaio busca analisar o
sentido político do filme para além dos termos ditados pela lógica da representação.
Para tanto, é abordada tanto a relação entre memória e subjetividade que o filme
elabora, como também a propriedade de tratá-lo como uma obra de arte, e não
como um mero produto cultural. O argumento é desenvolvido com especial atenção
para a relação do protagonista K com a paisagem fílmica que o cerca, e também
com dispositivos narrativos voltados ou bem para a sustentação de sua identidade,
ou então para sua desintegração.
Abstract
This essay takes as its starting point the relationship between the treatment of
memory in Blade Runner 2049 and what Eric Auerbach famously proposed as
the double origin of realism in Western literature, in the first chapter of his book
Mimesis, in order to address the political meaning of the film in terms that exceed
the logic of representation. It discusses the articulation between memory and
subjectivity that film elaborates as well as the very possibility of treating the film
as an artwork, and not merely as a cultural commodity. The argument also draws
on the relationship between the protagonist K and both the filmic landscape that
surrounds him and narrative devices that either sustain or erode the stability of
his identity.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
108 Sérgio Bruno Martins
Sem alma
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 109
2 Jonathan Crary, 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. London and New York: Verso,
2013, p. 19. O diagnóstico de Crary diz respeito, na verdade, à nossa própria sociedade 24/7
– isto é, ao imperativo da conectividade que nos assola 24 horas por dia e 7 dias por semana. Em
seu artigo neste dossiê, Ed Krčma contrapõe a prática do desenho a este mesmo diagnóstico.
3 A tirada retrata a relação de K com o mundo – sua ausência de alma – como imediata. Como ve-
remos, é de fato nesta situação que K se descobrirá ao final do filme, mas agora de forma mediada.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
110 Sérgio Bruno Martins
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 111
Mais humano
4 Safatle, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac
Naify, 2015, p. 67, grifo do autor.
5 Ibid., p. 71.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
112 Sérgio Bruno Martins
então existentes. São muitos os cortes que o Blackout impõe: entre gera-
ções de replicantes, entre as corporações Tyrrell e Wallace – e, novamente,
entre o registro histórico que se busca recalcar e um presente administrado
via doses cavalares de estímulos narcísicos. O projeto de Niander Wallace é
contrarrevolucionário e totalitário: ele não apenas responde ao atentado da
geração Nexus 6 contra o banco de dados que alimentava sua perseguição,
reiniciando a produção de replicantes e voltando-os contra seus pares mais
velhos, como ergue, sobre a terra arrasada da amnésia digital, um mundo que
se pretende sem história e sem restos.
Sem restos, no entanto, ele não é, ou do contrário não existiriam nem
blade runners. Todo passado anterior a 2022 ganha ares de Antiguidade; daí
que a investigação de um blade runner enverede por métodos arqueológicos,
como quando K decifra hieróglifos genéticos ou escava um sítio marcado pela
árvore morta, ela própria a ruína de uma natureza devastada. É em torno da
crescente importância desses poucos restos, e de seu estatuto, que o filme
se desenrola. Serão eles peças de um quebra-cabeças a ser resolvido e assi-
milado, ou signos perturbadores do retorno do recalcado? Ao recuperar os
restos mortais de Rachael, K inadvertidamente dá a largada nessa disputa. “A
chave do futuro foi desenterrada” – para Wallace, trata-se da chance de re-
cuperar uma tecnologia perdida e desencadear seu potencial produtivo; para
os replicantes, no entanto, trata-se de uma relíquia, prova do “milagre” que
Sapper Morton e Freysa testemunharam. Se o Blackout propicia a ascensão de
Wallace, ele ergue também um entrave à consumação de seu totalitarismo: ao
resguardar o bebê nascido de Rachael, permite que o nascimento se converta
em milagre, o milagre em evento, o evento em memória, a memória em visão,
e a visão no esteio de uma comunidade por vir (esteio não-essencial, registre-
-se: os replicantes revoltosos se querem “mais humanos que os humanos”,
isto é, capazes de recuperar um sentido subjetivo que a própria humanidade,
fóbica e encastelada em seu apartheid contra outra espécie, parece incapaz de
sustentar – voltarei ao estatuto dessa memória mais adiante).
Vale observar ainda que, nesse contexto, a relação entre mito e razão ins-
trumental não se resume à oposição banal entre dois campos. A figura de
Niander Wallace é ela própria recoberta por tintas míticas: feito um místico a
um só tempo cego e visionário, ou um faraó enigmático que se pretende divi-
no, Wallace apresenta-se como tudo menos o CEO que de fato é, a ponto de
repreender o linguajar técnico de Luv quando esta anuncia um novo modelo:
“será que você pode ao menos pronunciar: ‘nasceu uma criança’?” Wallace é a
encarnação da ideologia corporativa; sua crença em si próprio, longe de ingê-
nua ou idiossincrática, é peça central em seu eficaz mecanismo de exploração.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 113
Já Luv é a prova dos nove dessa eficácia: é difícil saber se sua lágrima verte
por empatia pela replicante recém-nascida que Wallace prepara-se para sacri-
ficar ou porque ela se sente tocada por sua fala mistificante. Em todo caso, a
combinação de frieza tecnocrática e brutalidade sádica de Luv é inconcebível
fora da relação com seu criador. A desumanidade dela é rigorosamente com-
plementar ao misticismo oco e grandiloquente dele; são como dois extremos
polares que, levados às últimas raias, otimizam-se mutuamente.
Segundo certas críticas feitas ao filme, a história de Rachael alçaria a ma-
ternidade ao patamar de traço essencial que distingue mulheres de verdade.6
Não me parece o caso; na verdade, toda a narrativa em torno da reprodução
se dá numa clave que torna equivalentes, isso sim, expansão econômica e
hubris masculina. Wallace representa uma inflexão peculiar de um recorrente
mito corporativo contemporâneo, o do realizador viril. Sua meta é a sub-
missão da reprodução biológica à reprodução econômica e social – só assim
poderá realizar sua fantasia onipotente de patriarca de bilhões, de demiurgo
criador de anjos. Uma fantasia, repito: fica evidente, no contraponto entre
duas das cenas mais fortes do filme – o cego Wallace manuseando o “barro”
que envolve sua criação, e Joi recobrindo o corpo da prostituta replicante
Mariette para que K possa sentir-se tocando-a e tocado – que é disso que se
trata aqui.7
O contraponto ao demiurgo masculino é nada menos que uma encar-
nação feminina de Cristo – o nascimento de Ana remete à visão do “mais
humano que o humano”, e não à certificação da humanidade de Rachael.
Masculinidade e feminilidade, aliás, são signos que não se determinam pelos
invólucros corpóreos que lhes dão vazão. Enquanto Luv perpetra uma agres-
sividade marcadamente masculina em nome de Wallace, K é movido por
uma memória feminina: saber que a lembrança do cavalo pertence à infância
de Ana dá mais sentido ao fato de que a surra de sua infância lhe foi dada
por um grupo de meninos; é nessa marca que a memória carrega da diferen-
ça sexual, e não na diferença biológica pura e simples, que se determina o
sentido subjetivo da experiência do corpo, transformado pelo implante em
experiência política.
6 É o caso, por exemplo, de Charlotte Gush, “Why Blade Runner 2049 is a misogynistic mess”,
in I-D.vice.com, 9 de outubro de 2017, https://i-d.vice.com/en_uk/article/evpwga/blade-run-
ner-2049-sexist-misogynistic-mess, acessado pela última vez em 20 de outubro de 2017.
7 O contraste entre estas duas cenas é exacerbado tanto pela oposição sugerida entre os sentidos
tátil e visual, quanto pelo fato de que a segunda, aos olhos do espectador, é visualmente explorada
como uma fantasia de sexo a três.
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114 Sérgio Bruno Martins
Um pouco de si
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Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 115
8 Brown, N. “The Work of Art in the Age of its Real Subsumption Under Capital”, in Nonsite.org,
13 de Março de 2012, http://nonsite.org/editorial/the-work-of-art-in-the-age-of-its-real-subsump-
tion-under-capital, acessado em 20 de outubro de 2017. Como explica Brown, a estetização de
gênero não necessariamente produz uma arte dotada de legibilidade política explícita, o que não
invalida o valor política da autonomia conquistada em si. Mas se seu exemplo favorito – a série
The Wire – produz “um mapeamento classicamente realista do espaço social”, meu argumento
aqui é que Blade Runner 2049 produz uma fábula política inteligentemente avessa a clichês.
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Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Sérgio Bruno Martins**
tradução da autora e de
O Monolinguismo do Global
Kaira M. Cabañas*
Resumo
Este artigo empreende uma análise crítica de como “outras” histórias de arte (ou
seja, a chamada arte não ocidental) são postas em prática como arte global em
exposições que muitas vezes se fiam numa leitura da semelhança formal como
história de arte global. Mais especificamente, seu foco é a exposição da produção
criativa de pacientes psiquiátricos no circuito mundial de arte contemporânea.
Examino a inclusão desse tipo de trabalho em exposições internacionais como a
55ª Bienal de Veneza (2013), e o retorno acrítico de categorias como o outsider art.
Abstract
This article undertakes a critical analysis of how “other” art histories (understood
as non-Western) are put to work as global art in exhibitions that often display
confidence in the ability of similar forms to be read as a global art history. More
specifically, it turns to the exhibition of psychiatric patients’ creative production in
the global contemporary art circuit. I examine how such work has been included in
international exhibitions such as the 55th Venice Biennial (2013) and the uncritical
return of categories such as outsider art.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
120 Kaira M. Cabañas
Ainda que dois objetos pareçam idênticos, isso não significa que eles te-
nham muito em comum e muito menos que tenham o mesmo significado.
Yve-Alain Bois, 2015
Tomo uma fala de Jacques Derrida para delinear o que chamo de “monolin-
guismo do global”, um fenômeno que assume várias formas no mundo da
história da arte moderna e contemporânea, bem como da prática curatorial.
No contexto de uma palestra na Universidade Estadual da Louisiana, em Ba-
ton Rouge, parte de um colóquio intitulado “Echoes from Elsewhere” (Ecos de
outro lugar), Derrida começa pedindo ao público que imagine uma situação
em que alguém cultivado na língua francesa, um “cidadão francês ... um su-
jeito, como se diz, de cultura francesa”, diz-lhe em francês perfeito: “Eu não
tenho senão uma língua, e ela não é minha”.1 Tal enunciado haveria de soar
inconsistente frente à aparente competência com a qual o indivíduo fala suas
palavras — como se, num mesmo fôlego, essa pessoa estivesse mentindo e
confessando a mentira. Ou seja, sua performance revelaria o oposto do indi-
cado pelo conteúdo e pela cadência de seu discurso. É o que Derrida chama
de contradição performativa.
Além de discorrer sobre a absurdidade filosófica da cena, Derrida explica
ainda que não é sobre uma língua estrangeira que ele fala, mas sobre uma
língua que não é minha.2 Ele afirma, portanto, que pessoas competentes em
várias línguas tendem a falar de fato apenas uma. Mas qual o sentido de tal
cena para a história da arte moderna e contemporânea, e também para a prá-
tica curatorial contemporânea? Ademais, dado o assunto deste ensaio, qual
o sentido da volta de uma voga como a da assim chamada outsider art no
momento em que críticos, curadores e historiadores da arte tentam definir o
que constitui arte na era da “contemporaneidade global”?
Este ensaio deriva em parte do capítulo 5 do meu próximo livro, Learning from Madness: Brazilian
Modernism and Global Contemporary Art, University of Chicago Press, no prelo. Todas as tradu-
ções de edições não-portuguesas são dos tradutores do presente ensaio.
1 Derrida, J. O monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Trad. de Fernanda Berardo. Belo
Horizonte: Chão da Feira, 2016, p. 23.
2 Idem., p. 5.
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O Monolinguismo do Global 121
3 Panofsky, E. citado In: Bois, Y. On the Uses and Abuses of Look-alikes. October, v. outono
2015, p. 127.
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6 Ver Yau, J. Please Wait By the Coatroom. In: Out There: Marginalization & Contemporary Cultures.
Cambridge: MIT Press, 1990, p. 132-139.
7 Se levarmos em conta outras exposições organizadas por Kynaston McShine, podemos notar
problemas também com a linguagem da crítica de Hoffman a Primary Structures original e com
o destaque por ele dado ao trabalho deste curador em particular. McShine estava comprometi-
do com a arte internacional e global antes que isso se tornasse língua franca do sistema de arte
contemporânea. Sua exposição Information, de 1970 no MoMA, continua a ser uma exposição
histórica que examinou práticas de arte conceituais politizadas e teve alcance internacional, in-
cluindo “150 homens e mulheres de 15 países, incluindo artistas da Argentina, Brasil, Canadá
e Iugoslávia”. Comunicado de imprensa para a exposição “Information” (1971). The Museum
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124 Kaira M. Cabañas
*
“Is Everything in My Mind?” (Está tudo em minha mente?) é o título do texto
curatorial de Massimiliano Gioni para a 55ª Bienal de Veneza, The Encyclopedic
Palace. Tal como o texto, a exposição no Arsenale di Venezia, principal espaço
da Bienal, abre com um modelo arquitetônico de grande escala de Marino
Auriti, imigrante italiano que se instalou na Pensilvânia rural dos anos 1930.
Na década de 1950, já aposentado do trabalho de mecânico de automóveis,
Auriti passou anos projetando o que chamou de “The Encyclopedic Palace”
(O Palácio Enciclopédico – daí o título da Bienal), um museu que abriga a
totalidade das descobertas e do conhecimento humanos – coisa que aparen-
temente não incluía a arte. Auriti entrou com um processo legal junto ao US
9 Neste ensaio, tomo a 55ª Bienal de Veneza como meu principal exemplo de justaposição do
trabalho dos pacientes psiquiátricos modernos e arte contemporânea no cenário global. Em meu
próximo livro, Learning from Madness, também abordo como o trabalho dos pacientes foi incluído
na 30ª Bienal de São Paulo (2012) com curadoria de Luis Pérez-Oramas. Como prática curato-
rial contemporânea, a justaposição do trabalho dos pacientes psiquiátricos e da arte moderna e
contemporânea tem uma longa história no Brasil, que inclui o apoio dado respectivamente por
Osório César e Mário Pedrosa à exibição do trabalho dos pacientes (tema também abordado em
Learning from Madness). Mas o fato do país contar com histórias como essas não significa que en-
carnações atuais de tal prática curatorial estejam livres de problemas. Recentemente, o Museu de
Arte do Rio apresentou a exposição Lugares do delírio (2017), concebida por Paulo Herkenhoff e
com curadoria da psicanalista Tania Rivera. A mostra incluiu obras de uma lista variada de artistas,
indo de Cildo Meireles e Anna Maria Maiolino aos pacientes-artistas Bispo do Rosário e Raphael
Domingues. Sobre sua concepção curatorial, Rivera escreve: “A intenção é colocar em suspenso a
delimitação entre o normal e o dito ‘louco’. A arte e a loucura têm em comum a força de transfor-
mação da realidade e isso está representado na exposição”. Enquanto o trabalho de outsider artists
é frequentemente assimilado por curadores de arte contemporânea pela via da linguagem formal
(como fez Gioni na 55ª Bienal de Veneza), neste caso, uma psicanalista atuando como curado-
ra (Rivera) imputa uma “força” transformadora a todo o trabalho exposto e, consequentemente,
aliena as obras de sua especificidade no interior da história da arte e da história da instituição
psiquiátrica. (Ver o comunicado de imprensa: http://www.museudeartedorio.org.br/sites/default/
files/release_lugares_do_delirio.docx_2.pdf)
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10 Heuer, M. The Encyclopedic Palace. Art in America, v. 101, no. 5, maio 2013, p. 49.
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126 Kaira M. Cabañas
invés disso, o curador afirma que as obras desses artistas demostram como
“nós próprios somos meios, canalizando imagens ou descobrindo-nos eventual-
mente possuídos por imagens”.12 Isso o leva como que naturalmente a uma
discussão sobre o trabalho de Ryan Trecartin: é como se as instalações esma-
gadoras deste último, que exacerbam mimeticamente as relações contempo-
râneas entre identidade e tecnologia, fossem idênticas à economia de meios
compositivos da pintura Tântrica, ou ainda às composições densas de Lesage,
que, segundo o próprio, lhe foram ditadas por sua irmã morta.
Gioni usa obras pertencentes à categoria de outsider art para promover
sua visão de arte contemporânea num contexto global. Mas o retorno acrítico
desta categoria em relação à produção criativa dos pacientes psiquiátricos,
que me é cara no presente ensaio, deixa de lado a contextualização histórica
tanto do modernismo quanto da contemporaneidade, além de não explicar
as transformações na prática psiquiátrica; é a Jung que Gioni recorre para
fundamentar sua exposição e sua presunção curatorial. A retórica do mito
ressoa nas palavras de Gioni: “Um sentido de reverência cósmica permeia
muitas das obras”; trata-se de “uma exposição sobre obsessões e sobre o po-
der transformativo da imaginação”; a exposição é “uma arquitetura mental
tão fantástica quanto delirante”. Ainda que sua linguagem pareça prestar-se
a acomodar qualquer coisa de qualquer canto do planeta, Gioni insiste: “The
Encyclopedic Palace não tem objetivos universalistas”. Ele termina conclaman-
do-nos a “transformar nossas imagens internas em realidade”.13 Ao fazê-lo, a
exposição oculta as complexas relações que as obras dos pacientes psiquiá-
tricos historicamente mantêm com a história da arte moderna e com noções
de subjetividade artística. Invocando o trabalho inaugural de Hans Prinzhorn,
Benjamin H.D. Buchloh critica The Encyclopedic Palace precisamente por “re-
vitalizar um mito de criatividade universalmente acessível”.14 Da mesma for-
ma, para Lynne Cooke, a estratégia curatorial de Gioni “despoja as obras de
quaisquer vestígios das condições materiais e intelectuais que originalmente
imbuíam-nas com significado e valor”.15
Com suas visões inconscientes e interiores alçadas à condição de fronteira
final do sistema da arte contemporânea global, o efeito cumulativo de The
14 Buchloh, B. The Entropic Encyclopedia. Artforum, v. 52, no. 1, setembro 2013, p. 312.
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16 Ver Enwezor, O. Predicaments of Culture. Artforum, v. 52, no. 1, setembro 2013, p. 326–329.
17 Ver Steeds, Lucy. “Magiciens de la Terre” and the Development of Transnational Project-
-Based Curating. In: Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. London: Afterall,
2013, p. 24–92.
18 Lafuente, P. Introduction: From the Outside In—“Magiciens de la Terre” and Two Histories
of Exhibitions. In: Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. London: Afterall,
2013, p. 11.
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128 Kaira M. Cabañas
19 Medina, A. L’art latino-américain dans quatre expositions internationales. Vie des Arts, v. 36,
no. 143, 1991, p. 44.
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O Monolinguismo do Global 129
de objetos pelos quais ele ou ela é responsável”. Indo adiante, Lafuente faz
dessa mudança histórica a base de um sistema de relações através do qual é
possível representar quatro tipos de exposições de arte contemporânea em
escala global: “Exposições de objetos contextualizados; exposições de sujeitos
contextualizados; exposições de sujeitos descontextualizados; e exposições
de objetos descontextualizados”.20 No entanto, o sistema de relações que La-
fuente desenvolve ainda pressupõe uma concepção estável de subjetividade
e agência artística. Isso me leva a colocar a seguinte questão: como tomar
em consideração o trabalho de pacientes psiquiátricos dentro da dialética
de descontextualização e determinação contextual que define exposições no
circuito global de arte contemporânea?
Em The Encyclopedic Palace, Bispo do Rosário foi representado exclusiva-
mente por seus trabalhos, alguns dos quais, como insiste o catálogo, “fazem
lembrar o trabalho de artistas de vanguarda como Arman e Claes Oldenburg”.21
Não há explicação, na exposição, nem sobre o local onde se deu aquela pro-
dução, nem sobre o espectador singular ao qual Bispo endereçava sua obra:
Deus, no Juízo Final. À luz deste último dado, cabe perguntar: que tipo de
espectador esta bienal supõe que seus visitantes sejam? Como entender tal
trabalho numa exposição que promove tantas visões pessoais alheias à histó-
ria? Em suma, não foram somente os objetos de Bispo que sofreram descon-
textualização; saíram de cena tanto sua subjetividade quanto os fins segundo
os quais ele compreendia sua própria produção criativa.
Tal dinâmica de descontextualização estendia-se à decisão de Gioni de
incluir na bienal o trabalho Asylum (2013), de Eva Kot’átková. Asylum é ba-
seado nas formas de comunicação e nas hierarquias sociais descritas pelos
pacientes do Hospital Psiquiátrico de Bohnice, nos arredores de Praga, com
quem Kot’átková colaborou para a realização do trabalho. A instalação por
ela criada inclui elementos escultóricos reminiscentes de gaiolas e paredes –
isto é, uma iconografia de confinamento. Colagens e esculturas em pequena
escala combinam fotografias de pessoas não identificadas com objetos do
cotidiano. Em performances que ocorriam durante a exposição, atores es-
tendiam a cabeça e as mãos através dos buracos construídos no pedestal da
instalação, como se tentassem se libertar do cativeiro. Um crítico descreveu
Asylum como que aludindo a “um corpo político alternativo projetado em
21 C.W. Bispo do Rosário. In: Il Palazzo Enciclopedico/The Encyclopedic Palace. Vol. 2. Venice:
Fondazione La Biennale di Venezia, 2013, p. 384.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
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22 Rabino, M. Re-education Machine. Detenzioni, novembro 2013. Ver também Muñoz, B. Eva
Kot’átková: Mental Armours. Afterall / Online, fevereiro 2014.
23 Ver Idem.; Cumming, L. Eva Kot’átková: A Storyteller’s Inadequacy. The Guardian, dezembro
2013; Micchelli, T. Quickly Aging Here: The 2015 Triennial. Hyperallergic, fevereiro 2015; Lacy, J.
To Set a Trap: Eva Kot’átková at MIT List Visual Arts Center. Art in America, maio 2015.
24 Ver as fotografias reproduzidas de Eva Kot’átková, Asylum (2013). Disponível em: <https://
zoltanjokay.de/zoltanblog/2013/09/eva-kotatkova-asylum/>
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132 Kaira M. Cabañas
*
Numa conferência de 1946 intitulada “Aspectos da vida social entre os loucos”,
Osório César descreve a vida dos pacientes dentro do asilo, enfocando momen-
tos de camaradagem e delírios. Em um certo ponto, ele fala da banda forma-
da por pacientes com experiência musical anterior, comentando o repertório
diversificado que esta tocava no hospital durante as férias e para os visitantes
importantes. Como era comum com este tipo de grupo, as performances eram
ocasionalmente interrompidas por um surto psicótico ou uma convulsão. Tais
interrupções eram notáveis para Osório, e provavelmente alarmantes aos olhos
dos visitantes, mas ele afirma que os outros músicos (também pacientes) “não
se impressionavam com esses imprevistos e continuavam, na maior calma deste
mundo, a executar a partitura”.28
Hoje, tal direito de ser louco na vida e na performance é central para alguns
dos melhores trabalhos de artistas contemporâneos a abordar a questão da saúde
mental, como o de Javier Téllez ou Alejandra Riera. Eles introduzem no sistema
de arte contemporânea um tipo de trabalho que expõe os limites da cena artística
global e de sua capacidade de lidar com o que não é concebido em seu interior, ou
para ela, convocando-nos a assumir o imperativo ético de retrabalhar incessante-
mente nossa compreensão da diferença. Ao invés de lançar mão de uma história
aparentemente estática da instituição disciplinar moderna e da produção criativa
de seus pacientes psiquiátricos, tomam mais frequentemente as lições da antipsi-
quiatria como seu ponto de partida. Dessa forma, deslocam a ênfase curatorial da
visualidade do objeto acabado (que observamos nas exposições do trabalho de
Bispo) para atividades colaborativas que revelam diferentes modos de subjetivação,
muitas vezes envolvendo a participação de pacientes de saúde mental dos dias de
hoje (e não meramente representando-os ou falando em seu nome).
27 Basaglia participou de uma conferência psicanalítica no Rio de Janeiro junto com outros con-
vidados internacionais, incluindo Félix Guattari, Robert Castel e Erwin Goffman. Ver Amarante, P.
Locos por la vida: La trayectoria de la reforma psiquiátrica en Brasil. Buenos Aires: Ediciones Madres
de Plaza de Mayo, 2006, p. 63–64.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 133
29 Pelbart, P.P. Inhuman Polyphony in the Theater of Madness. In:______. O avesso do niilismo:
Cartografias do esgotamento / Cartography of Exhaustion: Nihilism Inside Out. Trad. de John Lauden-
berger. São Paulo: n1 publications, 2013, p. 118. Este ensaio específico não foi publicado em por-
tuguês neste livro, mas Pelbart fala sobre Uenizz e a colaboração com Alejandra Riera num outro
texto em português (com titulo em inglês), The Splendour of the Seas (Uenizz-Riera), p. 237-259.
30 Com esta frase final, evoco o título de uma exposição do trabalho dos pacientes de Nise da
Silveira. Ela tirou o título “Os inumeráveis estados do ser” de Antonin Artaud. Ver Os inumeráveis
estados do ser. Org. Luiz Carlos Mello. Rio de Janeiro: Museu de Imagens do Inconsciente, 1987.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
134 Kaira M. Cabañas
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
Fortuna: Drawing, Technology, Contingency
Ed Krčma*
Abstract
This article explores the relationship between drawing, technology and contingency
in three artists’ work since the late 1950s, to engage the relationship between forms of
artistic labour, the autonomy of the studio, and the internalization of the techniques
and tempos of the contemporary life world more broadly. Each artist hybridizes
drawing with more modern technological modes: in his solvent transfer method
Robert Rauschenberg brought drawing to the condition of collage and into direct
contact with the contemporary printed mass media; William Kentridge’s ‘Drawings
for Projection’ and his more recent ‘flip-book films’ engage with increasingly obsolete
forms of visual communication to explore both the fraught recent history of South
Africa and the potentials articulated in physical acts of making; and in her Motion
Capture Drawings British artist Susan Morris employs biometric digital technology
to generate lines directly from the unconscious movements of the body, measured over
extended durations, in a contemporary form of surrealist automatism. While not
wishing to propose too close an alignment between these three practices, this article
explores the ways in which in each case automatic, contingent, non-conscious, or
otherwise ‘dark’ aspects of drawing are brought into focus as drawing is aligned with
other more recent technological forms. The implications of this contingent aspect –
or fortuna – are examined in the context of the growing power of measurement,
quantification and control to structure contemporary life more broadly.
* Professor de História da Arte da School of Art, University of East Anglia / UK; E-mail:
e.krcma@uea.ac.uk.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
136 Ed Krčma
Resumo
Este artigo explora a relação entre desenho, tecnologia e contingência no trabalho
de três artistas desde o final da década de 1950, para envolver a relação entre as
formas de trabalho artístico, a autonomia do estúdio e a internalização das técnicas
e tempos do mundo da vida contemporânea mais amplamente. Cada artista hibrida
o desenho com modos tecnológicos mais modernos: em seu método de transferência
de solventes, Robert Rauschenberg trouxe o desenho para a condição de colagem
e contato direto com os meios de comunicação impressos contemporâneos; Os
“Desenhos para Projeção” de William Kentridge e seus mais recentes “filmes de
folhetos” se engajam em formas de comunicação visual cada vez mais obsoletas
para explorar a história recente e árdua da África do Sul e os potenciais articulados
em atos físicos de fabricação; e em seus Motion Capture Drawings [desenhos de
captura de movimento], a artista britânica Susan Morris emprega a tecnologia
digital biométrica para gerar linhas diretamente dos movimentos inconscientes
do corpo, medidos em durações prolongadas, em uma forma contemporânea de
automatismo surrealista. Embora não deseje propor um alinhamento tão próximo
entre essas três práticas, este artigo explora as maneiras pelas quais, em cada
caso, os aspectos de desenho automáticos, contingentes, não conscientes ou de certa
forma “escuros” são colocados em foco, enquanto o desenho é alinhado com outras
formas tecnológicas mais recentes. As implicações deste aspecto contingente - ou
fortuna - são examinadas no contexto do crescente poder de medição, quantificação
e controle para estruturar a vida contemporânea de forma mais ampla.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 137
1 Sadie Plant describes the advent of a post-war control society in the following way: ‘This was
a brave new equilibrated world of self-guiding stability, pharmaceutical tranquility, white goods,
nuclear families, Big Brother screens, and, to keep these new shows on the road, vast new systems
of machinery capable of recording, calculating, storing, and processing everything that moved.
Fueled by a complex of military goals, corporate interests, solid-state economics, and industrial-
-strength testosterone, computers were supposed to be a foolproof means to the familiar ends of
social security, political organisation, economic order, prediction, and control.’ Plant, S. Zeros +
Ones, Digital Women and the New Technoculture. London: Fourth Estate, 1997, p. 32-33.
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So, what does the digital future look like? Well, you can’t forget anything,
because your computer remembers it for you… You’re never lost… the
only way to get lost is to turn off your phone… the reality is that your pho-
ne knows where you are already… and furthermore there’s research that
indicates that even if we know a little bit about you, we can sort of predict
where you’re going to go… again, with your permission…. We can suggest
things that are interesting to you, based on your passions, things that you
care about, where you’re going, that sort of thing. Our suggestions will be
pretty good. We have figured out a way to generate serendipity.3
2 Crary, J. 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. London and New York: Verso, 2013, p. 19.
Crary continues, ‘Any questioning or discrediting of what is currently the most efficient means
of producing acquiescence and docility, of promoting self-interest as the raison d’être of all social
activity, is rigorously marginalized. To articulate strategies of living that would delink technology
from a logic of greed, accumulation, and environmental despoilation merits sustained forms of
institutional prohibition.’ (p. 50)
3 Eric Schmidt quoted by Tacita Dean in Cullinan, N. (ed.) Tacita Dean: FILM. London: Tate,
2011, p. 23
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4 Doane, M. A.. Notes from the Field: Contingency. In: The Art Bulletin, v.94, n.3, p. 349, Septem-
ber 2012. As Doane explains, the word ‘contingent’ derives from the Latin con- + tangēre, meaning
‘to touch together,’ or ‘to come into contact’. Against an idea of self-sufficiency, instead it is linked
etymologically to ‘words associated with touch: contact, contaminate, contiguous’. Idem.
5 I borrow the phrase of ‘saturating’ artworks with intentions from Michael Fried’s account of the
work of Thomas Demand, as discussed by Margaret Iversen in Iversen, M. Photography, Trace, and
Trauma. Chicago and London: University of Chicago Press, 2017, p. 101.
6 On drawing and blindness, see Derrida, J. Memoirs of the Blind: The Self-Portrait and Other
Ruins. Trans. Pascale-Anne Brault and Michael Naas. Chicago and London: University of Chicago
Press, 1993.
7 Leader, D. Hands, What We Do with Them – and Why. London: Hamish Hamilton, 2016, p. 4-5.
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8 For a longer genealogy, see, for example, Nesbit, M. Their Common Sense. London: Black Dog,
2000, and Trodd, T. The Art of Mechanical Reproduction: Technology and Aesthetics from Duchamp
to the Digital. Chicago and London: University of Chicago Press, 2015. Margaret Iversen has re-
cently made the connection between the work of Robert Rauschenberg and that of Susan Morris,
by way of Leo Steinberg’s concept of the ‘flatbed picture plane’. The ideas I am pursuing here are
different but complementary. See Iversen, M. Susan Morris: Marking Time. In: Susan Morris: Sun
Dial: Night Watch_Tapestry Dossier, 2015, unpaginated. Available at: https://drawingroom.org.uk/
resources/susan-morris-marking-time
9 In his Aesthetic Theory, Theodor W. Adorno wrote of Beckett’s work, ‘This shabby, damaged
world of images is the negative imprint of the administered world. To this extent Beckett is realistic.’
Aesthetic Theory. Trans. Robert Hullot-Kentor. London and New York: Continuum, 1997, p. 31.
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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 141
Solvent Transfer
I was bombarded with TV sets and magazines, by the refuse, by the excess
of the world… I thought that if I could paint or make an honest work, it
should incorporate all of these elements, which were and are a reality.10
In 1952, while on spring break from Black Mountain College, Robert Raus-
chenberg travelled with Cy Twombly to the southern states of America and
to Cuba. There he would discover a new graphic technique that allowed him
reconfigure drawing by aligning it with the procedures of frottage, collage
and photography. The method is technically rudimentary: images are clipped
from the contemporary mass media, soaked in lighter fluid, and rubbed on
the back with either the tip or the barrel of an old ballpoint pen to trans-
fer the ink from the printed source to the receptor sheet below. The result
is a reversed and spectral trace of its mass-produced original. Depending
upon the pressure of the mechanical rubbing, the tightness or waywardness
of the hand’s scanning, and the level of saturation in the solvent, the resulting
transfers can vary in their qualities. At times coherent and legible, at others
regressing to a mere smudge or erasure, the degraded and distressed images
are eloquent of the contained but relatively indiscriminate action of the hand
that inscribes them. These transfers are then accompanied by watercolour,
gouache, ink, pencil or oil paint marks, unifying the surface with fluid fields,
and enlivening the muted transfers with intense highlights of colour.
One of a small number of drawings that survive from these early experi-
ments is Mirror (1952).11 Here we see Rauschenberg playing reflexively with
his new technique. The most prominent transfer, a Raphaelesque head of a
woman, immediately invokes the European academic tradition, while at the
same time this haphazardly framed face suggests the mirrored reflection of the
work’s title. Indeed, the transfer is a reversal of its original, and this action of
doubling and inversion becomes the theme of the drawing. Most obviously,
Rauschenberg has the letters spelling ‘Mirror’ reversed at bottom centre. Less
obvious but perhaps equally important, however, is the way in which mirrors
10 Robert Rauschenberg in Robert Hughes. The Shock of the New. New York: Alfred A. Knopf,
1981, p. 345, cited in Joseph, B. Random Order: Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde.
Cambridge (MA) and London: MIT Press, 2003, p. 180.
11 See Robert Rauschenberg: Untitled (Mirror), 1952. Solvent transfer with oil, watercolour, crayon,
pencil, and paper on paper, 26.7 x 21.6 cm. The Museum of Modern Art, New York. Gift of
Werner H. and Sarah-Ann Kramarsky. Available at https://www.moma.org/collection/works/90718.
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constitute bounded pictorial surfaces which draw in the external world. This
quality of receptivity aligns with Rauschenberg’s chief concerns in his White
Paintings (1951), in their hyper-sensitive registration of the most miniscule
events of the external world, and in his Black Paintings (1951/53), which make
prominent use of newsprint. Indeed, he would soon incorporate actual mirrors
into his early Combines, as in the major early works, Minutiae and Charlene
(both 1954). Here, drawing is aligned less with invention than with the reflec-
tion, registration, incorporation, distribution and transmutation of what exists.
One of the most prominent things ‘mirrored’ by the transfer drawings is the
increasing pervasiveness of the mass media in post-war America. A rocketing
trade in newspaper and magazine publishing was a hallmark of 1950s New
York. Since the 1920s Henry R. Luce had been a driving force behind this boom,
founding Time in 1923 (with his high school friend Briton Hadden), and pur-
chasing Life in 1936. Wildly popular from the outset, Life had by 1960 achieved
a circulation of around six million copies per week).12 Esquire had arrived in
1933, and Look in 1937, and Luce began publishing Sports Illustrated in 1954.
Together with daily newspapers such as the New York Times, the New York Herald
Tribune, and the New York Daily News, these magazines provided Rauschenberg
with a vast, inexpensive and swiftly renewable repository of readymade images.
As Branden W. Joseph has persuasively argued, the transfer image also
makes contact with the flickering rasters of early, low resolution television
sets: in its ‘shimmering materiality’, its tendency towards ‘boxlike framing’,
and its ‘visual hybridization of flatness and depth’. Moreover, Joseph argues,
that the ‘fluid slippage between the transfer drawings’ various images and the
different spatial areas in which they are contained echoes television’s ability
to subsume and simulate – through entirely different means – distinct histo-
rical, dimensional, and perspectival spaces within a continuum where they
follow one another without disjunction across the depthless “support surfa-
ce” of the television screen.’13 Joseph characterizes Rauschenberg’s project in
the late 1950s and early 1960s as a challenge to the routinized, banalized
and clichéd fodder of 1950s TV, with its standardization of expectation and
response, in favour of the production and combination of images that are
internally riven, unstable and self-differing.
12 See Doss, E. ‘Introduction’. In: Doss (ed.). Looking at Life Magazine. Washington and London:
Smithsonian Institution Press, 2001, p. 3.
13 Joseph, B. Random Order – Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde. Cambridge (Mass.)
and London: MIT Press, 2003, p. 177.
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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 143
Having left his new method aside for some years, Rauschenberg began
to make solvent transfer drawings again in early 1958, shortly before emba-
rking upon its most sustained elaboration of the technique’s potential in his
Thirty-Four Illustrations for Dante’s Inferno (1958/60).14 For the latter, Raus-
chenberg would make one drawing for each canto of Dante’s text, which
constituted the first canticle of the great fourteenth-century epic, The Divine
Comedy (c.1307-21). Here the Pilgrim is lost mid-way through the course of
his life when the Roman poet Virgil is sent by a heavenly agent, Beatrice, to
help him find the true path. Virgil leads Dante into Hell and instructs him
as to the system of divine justice. He bears witness to a terrifying catalogue
of punishments, each corresponding precisely to the nature of the sin com-
mitted. This necessary education exposes the Pilgrim to the consequences of
turning away from God’s grace, either by failing to control carnal appetites
or through more damnable crimes involving the perversion of the faculties
of reason. Dante elected to write the Commedia not in learned Latin but in
the vernacular Italian of Tuscany, and throughout the poem he stages the
encounter between a revered classical tradition, Christian metaphysics, and
contemporary events and protagonists.
Not reading Italian, Rauschenberg referred primarily to John Ciardi’s po-
pular 1954 translation of the Inferno.15 By his own account he worked on
the illustrations one canto at a time, without reading ahead. The challenge
of obeying a structure and observing limits was not just set by the project
in general, but also in his approach to each drawing. In this, Rauschenberg
stressed his desire to avoid the imposition of personal emphasis by staying
close to the structure of Dante’s text, and not to select the most dramatic
highlights or favourite scenes: ‘If the most important image on a page took
only three words,’ he told Calvin Tomkins, exaggerating somewhat, ‘I would
make it a proportionate size. The concept of an artist isolating his or her
favorite event can pull a particular passage into popular distortion.’16 While
14 For a full account of the project, see Krčma, E. Rauschenberg / Dante: Drawing a Modern Inferno.
New Haven and London: Yale University Press, 2017. Many of the arguments of this section of
the present essay were first set out in this book, and in Krčma, E. “To use the very last minute
in my life”: Dante Drawings and the Classical Past, 1958-60, in Dickerman, L. and Borchardt-
-Hume, A. (eds.): Robert Rauschenberg. New York: Museum of Modern Art, and London: Tate,
2016, pp.162-169.
15 Dante Alighieri. The Inferno. Translated by John Ciardi. New York: Mentor, 1954 (hereafter Inferno).
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17 For a detailed discussion see Krčma, E (2017), op. cit., which includes images of all the sour-
ces mentioned below.
18 See Robert Rauschenberg: Canto V: Circle Two, The Carnal, 1958. Solvent transfer drawing,
watercolour, pencil, crayon, and gouache on paper. 36.7 x 29.2 cm. The Museum of Modern Art,
New York. Anonymous donation. Available at https://www.moma.org/collection/works/36748.
20 See ‘Rich Find of Assyrian Ivory,’ Life, April 28, 1958, p.120B.
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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 145
prioritizes both speed and contact, while at the same time cancelling the con-
nection between drawing and two of its conventional foundations: cognitive
abstraction and subjective expression. Rauschenberg’s solvent-transfer me-
thod is radically de-skilled and the nests of parallel marks do not correspond
to the forms of the images they inscribe, which are often partially lost amidst
the manual scrawl. Any integrated circuitry of eye, mind, and hand is broken,
replaced by a blind, repetitive scanning of readymade image fragments.
While academic models of drawing had long been jettisoned by modern
artists, the language of expressive gesture, which relied on a perceived conti-
nuity between autographic mark and the artist’s organization of ‘emotional and
intellectual energy,’ to borrow Harold Rosenberg’s phrase, occupied a domi-
nant place within the discourse on action painting in New York in the 1950s.
For Rosenberg, an ‘action painting’ was the result of an attempt to make over
the ‘metaphysical substance of the artist’s existence’. Rosenberg advised that
in approaching such a canvas, we should ‘think in a vocabulary of action: its
inception, duration, direction – psychic state, concentration and relaxation of
the will, passivity, alert waiting. [The spectator] must become a connoisseur of
the gradations between the automatic, the spontaneous, the evoked.’21
The solvent transfer method turns drawing in the direction of the uninten-
ded and automatic. Talking to Calvin Tomkins in 1964, Rauschenberg declared,
Rauschenberg’s work, he hoped, would retain its independence from the exer-
cise of his own will, and in his dealings with his materials he courted their
capacity to give visibility to aleatory forces and interactions. Indeed, aspects
of contingency – both the quality of the unforeseen and that of being depen-
dent upon and responsive to that which is external – run all the way through
Rauschenberg’s production: had different images arrived in the media that
21 Rosenberg, H. ‘The American Action Painters’ (1952). In: Rosenberg, H. The Tradition of the
New. New York: Horizon Press, 1959, p. 29
22 Robert Rauschenberg quoted by Calvin Tomkins in Tomkins, C. ‘Profiles: Moving Out’. The
New Yorker, vol. 40, February 29, 1964, p. 59.
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week the drawings would have looked different; at the level of the mark
itself, the transfers were made blindly and relatively indiscriminately; and,
in having never declared their complex patterns of iconographical reference,
Rauschenberg also left their reception avowedly open, casting references to
the winds of the varying knowledge and interests of his audience.
Both this issue of contingency, and what might be called the ‘infantile’ as-
pects of the transfer process, are dramatized in Rauschenberg’s illustration for
Inferno VII.23 In this canto Dante and Virgil pass through the fourth and fifth
circles of Hell, to which the Hoarders and Wasters and the Wrathful and the
Sullen, respectively, are confined. These souls had in their different ways re-
mained blind to the light of God’s grace: the former, very numerous, allowed a
mundane preoccupation with material fortunes to obsess them; the latter had
let rage and bitterness prevent their appreciation of ‘the air made sweet by the
Sun’. The canto opens with the angry, nonsensical babble of Plutus, the Greek
God of Wealth: ‘Papa Satán, Papa Satán, aleppy’, he yelps (VII.1). Virgil soon
dismisses these incomprehensible stutterings, and the poets then descend to
survey the pitiful labours of the Hoarders and Wasters, ‘their souls dimmed past
recognition’ (VII.54). These block-headed sinners are condemned to lug apart
and crash together great weights of rock: ‘Why do you hoard?’ one faction cries;
‘Why do you waste?’ retorts the other, before they ‘puff and blow’ and heave back
their heavy loads, only to turn and smash them together once again (VII.30-31).
After Virgil has tutored Dante in the vagaries of Fortune, whose benign
but indiscriminate laws these misers and spendthrifts had negotiated so po-
orly in life, the two poets look over the Styx, ‘a dreary swampland, vaporous
and malignant’ (VII.108). Here the Wrathful thump and butt against one
another in fits of rage, and the Sullen, submerged beneath the filthy marsh,
gargle a litany, ‘as if they sang,’ Dante remarks, ‘but lacked the words and
pitch’ (VII.126). No individual is picked out amidst the crowds of sinners in
this canto: all remain without definition in correspondence with the undis-
cerning way they chose to conduct their life.
Rauschenberg’s illustration is not the most visually striking of the suite,
sharing as it does in Dante’s atmosphere of miasmic obscurity. A series of faint
and broken transfers overlaid with dull watercolour washes is dotted with
brief accents of stronger colour.24 The page is divided into three horizontal
24 See Robert Rauschenberg: Canto VII: Circle Four, The Hoarders and The Wasters: Circle Five,
The Wrathful and The Sullen, 1960. Solvent transfer drawing, pencil, watercolour, and coloured
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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 147
sections. In the thin upper band Plutus’s nonsensical words are written out
backwards; the Pilgrim is represented by the lower legs of a figure transferred
from a True Temper golf club advert; and Virgil by a radiant golden glow. The
larger second section, taking up most of the upper half of the drawing, de-
picts the Hoarders and Wasters, whose futile exertions are indicated by pencil
drawings of unitary geometric forms and diagrammatic arrows in red and
blue. The sinners themselves are represented by an image of state police offi-
cers assisting at the site of a fatal crash at the 1958 Indianapolis 500, in part
caused by the reckless tactics of driver Ed Elisian, who was under pressure
to pay off his gambling debts (Elisian had then been killed in a crash at the
Milwaukee Mile in 1959).25 These shadowy figures are joined with ‘$’ signs, a
cluster of coins, and faint green dabs and washes that establish a connection
with American banknotes; as Ezra Pound wrote of Dante’s poem, ‘the whole
Hell reeks with money.’ 26
To the centre left is the figure of Fortune, The Lady of Permutations, who-
se radiant presence punctuates the grey murk with a lone burst of colour.
Below Rauschenberg represents the Wrathful and the Sullen by way of a se-
ries of smudged and riven transfers of babies’ heads derived from an adverti-
sement clipped from Life magazine.27 Under the striations of Rauschenberg’s
stylus these images are brought to the very threshold of legibility. To the
bottom left there is a row of five or six heads, transferred upside down; those
to the far left remain discernible but towards the middle of the sheet they
disintegrate into a chaotic scree. Looking closely at the drawing, what had at
first appeared a random mark can, when seen at a different scale or orienta-
tion, suddenly emerge as the image of a baby’s face; and at other times what
had promised to cohere into a recognizable figure slips back into mere visu-
al noise. Indeed, the babies’ heads draw attention to the de-skilled transfer
process, the method requiring little of the hand except pressure and effort,
and recalling the varyingly tedious and dumbly pleasurable action of erasure
more than the flexible and responsive work of creation.
pencil on paper. 36.6 x 29.1 cm. The Museum of Modern Art, New York. Anonymous donation.
Available at https://www.moma.org/collection/works/36750.
26 Pound, E. ‘Hell’. In: Eliot, T.S. (ed.). Literary Essays of Ezra Pound. New York: New Directions,
1968, p. 211.
27 Advertisement for America’s Rural Electric Systems, Life, April 25, 1960, p. 135.
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28 See Berk, P. K. ‘The Weal of Fortune’. In: Mandelbaum, A., Oldcorn, A., and Ross, C. (eds).
Lecture Dantis – Inferno, A Canto-by-Canto Commentary. London and Berkeley: University of Ca-
lifornia Press, 1998, p. 107.
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30 See especially, Krauss, R. ‘The Rock: William Kentridge’s Drawings for Projection,’ October 92,
Spring 2000, pp. 3-35.
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31 Kentridge, W. ‘‘Fortuna:’ Neither Program nor Chance in the Making of Images’. In: Christov-
-Bakargiev, C. et. al. William Kentridge. London: Phaidon, 1999, p.118.
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Figure 1. William Kentridge: Mine, 1991 (stills). Film, 35 mm, shown as video,
projection, black and white, and sound (mono), 5 min, 50 sec.
Courtesy of the William Kentridge Studio
33 First, line drawings are then made on sheets of tracing paper so that the draughtsman can
easily reproduce their forms on the next sheet and alter them accordingly. Once the final sequence
of individual line drawings are agreed, it is the job of the copyists to transfer the designs onto
transparent celluloid sheets, which are then ready for inking.
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As well as bearing upon a model of studio practice, the method also produces
visual effects that stand in opposition to the characteristic aesthetic modes of
digital technology. The movement of Kentridge’s characters and scenes brings
with it, as Rosalind Krauss has discussed, a kind of weight, density or drag.35
The process of change takes effort and happens at a cost. In this way, the artist’s
formal and technical means resonate powerfully with his thematic concern with
history, memory and the weight of the past upon the experience of the present,
and oppose the ease and immediacy of digital deletion. Indeed, Kentridge’s com-
portment towards technological progress is avowedly less enthusiastic than was
Rauschenberg’s. Kentridge’s work abounds with a host of obsolete and near-ob-
solete technological devices, often bearing personal associations with the artist’s
childhood, such as Bakelite telephones, mechanical typewriters, model globes,
stereoscopes, and film projectors, which stand as a counterweight to the ascen-
dency of digital media.
This is dramatized in a more recent series of ‘flip-book films’, which Kentridge
has produced by making hundreds of drawings onto the pages of old encyclope-
dias and other reference volumes, photographing them and sequencing the ima-
ges to make a ‘film’. Second-Hand Reading (2013, fig. 2), for example, is a seven-
-minute HD video showing a rapid sequence of charcoal, ink and watercolour
drawings made upon the pages of a 1936 edition of the Shorter Oxford English
Dictionary. The works rub the kind of classificatory thinking characteristic of such
volumes – designed as instruments of clarity and reason – against the arbitrary
poetics of physical dictionary pages, with their strange juxtapositions, and against
the more open and ambiguous expressive capacity of the drawings themselves.
34 Kentridge, W. Six Drawing Lessons. Cambridge, Mass. and London: Harvard University Press,
2014, p. 128.
35 Krauss argues: ‘But another condition that equally reigns within these films operates against the
principle of anything changing into anything else, or at least works to dilate the time within which
the change occurs and to underscore the impossibility of predicting the form it will take, thus
investing that change with a kind of weight (emotional? moral? mnemonic?).’ (‘The Rock,’ p. 18)
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Second Hand Reading begins with the closed leather-bound volume sitting on a
work surface; it is soon opened to reveal an adapted title page borrowed from
Cassell’s Cyclopaedia of Mechanics: Memoranda for Workshop Use Based on Perso-
nal Experience and Expert Knowledge (1900), onto which has been collaged the
subtitle, ‘On Historical Principles’. The opening piano bars of a song by the So-
weto-born composer Neo Muyanga sound and the pages of the dictionary start
to flit by. Poetic phrases and fragments are drawn in bold typography. Then
arrives the image of the artist himself, wearing his characteristic white shirt
and black trousers and drawn in energetic charcoal lines. This animated avatar
paces along within the right-hand page, getting nowhere, then halts to confront
the viewer/reader, before beginning his pensive walk again. This figure is then
accompanied by more drawings on the facing page: a rolling landscape, more
text fragments, a woman signing in semaphore, a cascade of coloured shapes.36
Together with the appearance of a loudspeaker, we then hear the voice
of Muyanga himself, singing deeply and resonantly in Sesotho. The words
he sings come from an old traditional hymn often sung in churches and
funerals in Soweto and other townships during the 1980s, set to music com-
posed by Muyanga in response to the 2012 massacre of protesting miners
at Marikana. The song unfolds slowly, but translates into English as follows:
36 See Garb, T. and Bradley, F. (eds). William Kentridge and Vivienne Koorland: Conversations in
Letters and Lines. Edinburgh: Fruitmarket Gallery, 2016.
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A flurry of ink drawings hurries past in time with the quickening melody of
the piano, each arriving for only a fraction of a second. The image repertoire is
varied but nevertheless fairly limited. There are drawings of human subjects:
male and female, black and white, naked and clothed, moving and still, alive
and dead. There are objects associated with language and communication:
globes, loudspeakers, typewriters. There are landscape scenes evocative of
the veld around Johannesburg. And there are different kinds of abstract forms
and marks: geometric coloured shapes in the tradition of utopian abstraction,
and fields of inky signs reminiscent of Henri Michaux’s unruly ideograms, for
example. Kentridge also draws a number of everyday objects that, he has said,
call out for Indian ink (the jet black enamel of an old typewriter, for example).
At several moments such bold graphic forms are animated, revolving slowly
to reveal the silhouettes of other objects as they turn.
Second Hand Reading is one of a number of works using the same method
that Kentridge has made in recent years. Others include The Anatomy of Me-
lancholy and Tango for Page Turning (both 2012). The latter takes as its ground
a Dictionary of Applied Chemistry, in which blocks of text are interspersed
with diagrams, tables and charts; and to make The Anatomy of Melancholy,
Kentridge drew over the pages of a 1920 edition of Robert Burton’s celebrated
17th century treatise. These ‘flip-book films’ (the name itself refers to a rudi-
mentary proto-cinematic device) involve a salvaging and repurposing of the
kind of printed reference volumes that are swiftly falling out of use. Given the
ease, power, and speed of Internet search engines, such slow and bulky phy-
sical repositories are no longer the go-to resource, and increasingly struggle
to justify the library shelf space that their storage requires. Alongside model
globes and typewriters, this is a communications technology that is swiftly
becoming obsolete.
37 This is a translation of the following Sesotho lyrics: ‘Pula tsa lehlohonolo / Ha di na ka medupi /
Le nna hle o nkgopole / Bona ke omeletse / Rothisetsa marothodi / Le nna hle ke kolobe.’ My thanks
to Neo Muyanga for providing me with this translation (email to the author, 27th November 2016).
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38 See Morris, R. C. and Kentridge, W. Accounts and Drawings from Underground: East Rand Pro-
prietary Mines Cash Book, 1906. Chicago: University of Chicago Press, 2015.
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such sheet, an aqueous brown rectangle covers the central section of a page
offering the definitions of words from ‘Realism’ to ‘Rear’ (fig. 3). As they are
read, the listed terms start to take on a specific relationship with Kentridge’s
own practice: ‘Realism,’ ‘Realization,’ ‘Re-ally,’ ‘Realm,’ ‘Realty,’ ‘Reanimate’:
the connotations and connections spin outwards. While the weight of the
brown watercolour field sometimes obscures the printed text beneath, the
meeting of abstract forms with the arbitrary poetry of dictionary entries is an
invitation for the mind to entertain its associative impulses, reanimating the
words in excess of their classified definitions.
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In another drawing, a luminous magenta circle overlays a page that offers the
definition of words from Radio-Active to Rag. Orbiting this circle are words
such as Radius and Radish. Such conjunctions of shapes, colours, words and
their definitions tempts a playful exploration of correspondences and reso-
nances, the artist enjoying the chance finds and contingent poetics of dictio-
nary entries. In yet another a deep blue watercolour rectangle covers an entire
page of text. The uniform blocks and columns of printed type are rendered
largely illegible, although tellingly the word ‘Reasoning’ peers through the
dark wash in the header.
The ‘flip-book films’ in part constitute hymns to the aesthetic, historical,
and conceptual resonances of such otherwise largely redundant objects. At
least as forcefully, however, they also stage and celebrate Kentridge’s own
studio production, which absconds from such forms of conceptual control
and classificatory rigour. In these films (and many other works throughout
the artist’s oeuvre), Kentridge figures his own perambulations and includes
phrases he had written down in notebooks as kinds of watchwords for his
method – ‘thinking on ones feet,’ ‘performing the meaning’s absence,’ ‘tear
and repair,’ ‘the sympathetic paper’ – and the range of his interests across art,
history, politics, science and philosophy. Kentridge has consistently stressed
the role of a kind of blind, childish aspect of art making, one that is grounded
in an open, exploratory manipulation of materials, in which disbelief and
analytic reflection are willingly suspended, and which is characterised by a
kind of open and flexibile play. In this way Kentridge’s studio work seems
both insulated from and in contrasting relationship to the forms of labour to
which his work frequently makes reference.
In a sense, then, this also conforms to a fairly familiar idea of the artist
finding freedom and autonomy in the studio, which becomes the incuba-
tor for creative inventions then placed before the audience, with all the at-
tendant institutional and discursive framing, not to mention more commer-
cially directed marketing. Indeed, the near-universal embrace of Kentridge’s
practice might constitute a reason to pause and reflect more critically here
too. As the artist’s reputation, levels of exposure, and market value have
increased, the frequency and insistence with which he stages the image of
his own body and studio activity have also increased (this was notably the
case in Kentridge’s recent exhibition at London’s Whitechapel Gallery40). At
40 The exhibition, William Kentridge: Thick Time, was on view at the Whitechapel Gallery, Lon-
don, 21st September 2016 – 15th January 2017.
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The kind of subject at stake in the work of British artist Susan Morris is at
once both more constrained and less graspable. Morris’s work over the last
ten years has combined a concern with advanced forms of digital technology
and the most rudimentary procedures of drawing, to evoke a contempora-
ry subject caught up in the feverish rhythms of our 24/7 society. Here, the
working artist’s body is again central, but, bucking the trend of contemporary
self-presentations on social media, Morris foregoes the production of images
of the self in favour of more apparently neutral strategies of recording, dia-
gramming and tabulating, strategies informed by the conventions of concep-
tual art, amongst other things.
In a series of works from 2008-9 collectively entitled Plumb Line Dra-
wings, Morris produced another kind of ‘cinematic’ drawing to negotiate the
relationship between abstract art, the work of art, and an idea of time cha-
racterised by repetition, compulsion and constraint (fig. 4).41 Using a spirit
level, a horizontal line three metres long was drawn a few inches below the
uppermost edge of a large sheet of paper pinned to the wall. It is from this
line that the others would fall: beginning at the left-hand side, the artist ban-
gs in a nail, and from there hangs a plumb line. As the reel is pulled down
to the floor, the device coats the string with vine ash. The taut cord is then
pulled away from the paper surface and released to snap back against the
sheet, leaving a fragile, powdery vertical line. The nail is then pulled from
the wall and another hit in a few millimetres to the right; the cord is again
41 See O’Dwyer, D. (ed.) Susan Morris: Sontag/Montag. London: Five Years, 2009.
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lowered, pinched and plucked, and a new impression appears. This process
is repeated hundreds of times, sometimes over many months, until the paper
is adequately scanned.
The individual lines are materially fragile, degraded at their upper and lower
extremities, and vary in both length and density. What finally results from
this repetitive de-skilled work is a wide screen of closely woven vertical lines,
an accumulation of moments that responds to the history of abstract picture
making whilst also giving visibility to time: an extended discontinuous cine-
matic time of sequenced traces and gaps. The fine texture of marks fall like
rain, subject to gravity rather than to the will of the artist. As the vine ash
holds to the paper the lines seem weighless, a great ‘thinglike nothingness’, as
Eric Santer described dust.42
The precipitation of Morris’s marks points to a bodily performance which
is in stark contrast to an idea of creative improvisation or expressive fluency:
here we really do seem to make contact with the Hoarders and Wasters, and
their interminable and pointless labours. The unintentionally produced yet
consciously preserved smudges, heaviest above the puckered line of small
holes where the hammer has scuffed the paper when removing nails, evi-
dence a struggling, protesting body behind the visible marks. The amount of
work necessary to complete these drawings is not only very substantial, but
42 Santner, E. On Creaturely Life – Rilke, Benjamin, Sebald. Chicago and London: University of
Chicago Press, 2006, p. 100.
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43 Ibid. p. 81.
44 Plant. Zeros + Ones, pp. 111-112. Plant writes, ‘Hysterical women were characterized as over-
sensitive, self-obsessed, antisocial loners whose symptoms were extreme versions of behaviour
patterns common to all women. They were mutable, capricious, unpredictable, temperamental,
moody. They were nervous weather systems fluctuating between stormy energy and catatonic
calm.’ (p. 110)
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Motion Capture Drawings diagram Morris’s movements as ‘seen’ from the front,
from the side and from above. The resulting spidery skeins are the mysterious
product of involuntary bodily dynamics, sampled and materialized by way of
digital data conversion and image production. The matrices of white lines, end-
lessly looping back and forth, up and down, to and fro, hang within an impene-
trable black field, unanchored from any secure spatial or temporal coordinates.
Margaret Iversen has suggestively analyzed Morris’ work in relation to
what she calls the ‘indexical diagram’. This term designates a hybrid form of
representation, one which combines the direct tracing of the movements of
the body with the linear abstraction of the diagram. Examples are provided
by such recording instruments as cardiographs, seismographs, and, with the
most pertinence in this instance, the famous chronophotographic experi-
ments of Étienne-Jules Marey, in which the body was abstracted and made le-
gible by being covered in black clothing, all except for white reflective strips
attached to the limbs.45
Figure 5. Susan Morris: Motion Capture Drawing: ERSD (View from Above), 2012.
Archival inkjet print on Hahnemühle paper, 250 x 150 cm.
Courtesy of the artist.
45 Iversen, M. ‘Index, Diagram, Graphic Trace’. In: Photography, Trace, and Trauma, pp. 67-82.
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I would argue that digitization […] provides a more direct version of the
mark I am interested in, in that it can give form to – make manifest –
phenomena that are invisible or appear to come from nowhere. Digital
recording produces ‘Real’ marks, not imaginary constructions or represen-
tations. Rather than encoding reality I can imprint it.46
At the same time as she was making the Motion Capture Drawings, Morris
extended her appeal to the recording capacities of digital technology in a
series of tapestry works. While seeming to depart from my central concern
with drawing – it is central to Morris’s work that it moves between different
interchangeable outputs – the tapestries can, however, again be related to
the visualization of the unconscious life of the body, while at the same time
making even more explicit the relationships between labour, technology and
the conditions of subjectivity (fig. 6).
46 Morris, S. ‘Drawing in the Dark’. Tate Papers, no. 18, Autumn 2012 (http://www.tate.org.uk/
research/publications/tate-papers/18/drawing-in-the-dark), accessed 2 May 2017.
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For five years, Morris wore an Actiwatch biometric device designed to pro-
vide accurate data regarding levels of bodily activity and light exposure. To
make her series of tapestries, this data was sent to Jacquard looms in Bel-
gium, which converted the values into a sequence of colour-coded thread
patterns, with different colours corresponding to different levels of activity.
The Jacquard loom was first presented in 1801, its major innovation being
the introduction of a chain of punch cards laced together to provide a fully
automated mechanical ‘score’ for the weave. These punch cards were also of
great interest to Charles Babbage when he was designing his Difference Engi-
ne, the precursor to the Analytical Engine, and therefore have an important
place at the birth of the modern computer.
In SunDial:NightWatch_Sleep/Wake 2010–2014 (2015) the minute-by-mi-
nute numerical values are converted into coloured threads of pre-assigned
value: red for high levels of activity, black for little or none, with a gradient
of colours between. Large amounts of the colour blue, for example, may in-
dicate ‘awake but not very active’– i.e. Morris was probably working on her
computer. Each day is represented by one vertical line, the intermittence of
which corresponds to higher or lower levels of activity, with the dark of the
night at the centre displaying sleep patterns interrupted by all manner of
contemporary ennervations. Here, then, Morris combines the most up-to-
-date digital technologies with those deriving from an early moment in the
Industrial Revolution and the mechanization of labour, as human life became
more thoroughly governed by clock and calendrical time.
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The temporal register shifts again as the slower undulations of the tapes-
tries’ patterns come into focus, however. In those works which indicate the
levels of light to which Morris’s body was exposed, the viewer can track more
gradual movements on a planetary scale, with the coloured threads becoming
warmer earlier as the evenings get lighter, and the black threads reasserting
themselves and they darken again, as the Earth orbits the Sun. The human
becomes that creature caught between the cyclical movements of the planets
and stars, and the accelerated tempo of life under advanced capitalism.
Digital technology enables new forms of what Walter Benjamin famously
described as an ‘unconscious optics’, allowing the artist to figure that which
is otherwise invisible to the human eye, and indeed to signal the structural
formations to which life is subject. Indeed, in the process of the transposition
of the motion capture data into lines, certain knots and glitches occur and are
visible in the works, a fact dramatized in a series of works made from details
of the Motion Capture Drawings, printed on a one-to-one scale. The origin of
these strange nodes and linear coagulations is uncertain: is it something in
the body, in the digital apparatus, or at the interface between the two? In one
sense, Morris’s involuntary body is both the subject and object here, yet what
her work gives visibility to is in fact the subject beneath the ‘I’, away from
conventional forms of symbolization and imaginary projection.
Elaborating on the ideas that drive her practice, Morris describes her
feeling that
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– Paolo and Francesca, Cleopatra, and Tristan amongst them – to allow the
forces of desire to overpower their reason has condemned them to eternal
punishment, thrown by a cruel wind. For Dante these souls had betrayed
their reason to their appetite; but today, when the power and pervasiveness
of technologically enhanced controls is now so developed, the task of main-
taining contact with the forces of contingency, with the unpredictability of
material encounters, and with the inassimilable rhythms and pleasures of the
body, itself seems an urgent one.
Bibliography
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Laura Rabelo Erber*
Resumo
O artigo aborda a atração pelas figuras da resistência passiva e da arte sem trabalho
ou do artista sem obra e as limitações e paradoxos das propostas que retomam e
reelaboram a postura da improdutividade no contexto contemporâneo.
Abstract
This essay discusses the attraction of the forms of passive resistance and of art, or of
the artist, as without work as well as the limitations and paradoxes of proposals that
rephrase and reshape a posture of unproductivity in the context of contemporaneity.
1 Texto apresentado originalmente no #3Seminário Eisenstein na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
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2 Vidokle, A. Arte sem trabalho? Trad. Ariadne Costa. Rio de Janeiro/ Copenhague: Zazie Edições,
2016.
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O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 169
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3 Lazzarato, Maurizio. Marcel Duchamp ou le refus du travail. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2014, p.48.
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Aqui no ateliê a equipe fixa é pequena, mas tenho várias assistentes volantes,
que me ajudam na parte de produção artística, de acordo com o trabalho. Nessa
série de agora, todos os quadros foram pintados por retratistas. Os retratos que
vão para Nova York foram feitos pela Ana Moura, que volta e meia colabora
comigo. E estes aqui [ela mostra a série de 33 quadros que estarão na exposição
em São Paulo] foram feitos por retratistas que eu nem conheço. Mandei fazer na
China. Eu precisava de uma base neutra e meio seriada, achei um fornecedor, e
é sensacional o resultado. A agilidade deles foi o que me permitiu fazer essa obra.
Trinta e três quadros é uma quantidade muito grande.4
4 Alves, Micheline. #TPM141. In: Revista Trip de 14/04/2014 .Acesso em: https://revistatrip.uol.
com.br/tpm/adriana-varejao
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5 Utilizo aqui o conceito de desdemocratização, nos termos articulados por Wendy Brown em
Undoing the Demos – Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.
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Referências
ALVES, M. Entrevista com Adriana Varejão #TPM141. Revista Trip, 14 abr. 2014.
LAZZARATO, M. Marcel Duchamp ou le refus du travail. Paris: Les Prairies
Ordinaires, 2014.
LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Nova Alexandria, 2000.
MALEVITCH, K. La paresse comme vérité effective de l’homme. Paris: Éditions
Allia, 2015.
RANCIÈRE, J. Malaise dans l’esthetique. Paris : Galilée, 2004.
VIDOKLE, A. Arte sem trabalho? Rio de Janeiro/Copenhague: Zazie Edições, 2016.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia
Rafael Cardoso*
Resumo
O presente artigo examina a relação entre intelectuais e autonomia política no
meio cultural brasileiro, enfocando um estudo de caso histórico: a atuação de dois
dos principais líderes do movimento modernista, Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, à época do Estado Novo. Em especial, são analisados aqui o contexto
de dois pronunciamentos públicos realizados por eles: as palestras “O movimento
modernista” (1942) e “O caminho percorrido” (1944), respectivamente. De que
modo esses autores reagiram diante da forte pressão da ditadura varguista para
controlar os meios de informação e o discurso cultural? Mário de Andrade apostou
na tentativa de se aproximar do poder público, mas posteriormente se arrependeu
e empreendeu uma autocrítica. Oswald de Andrade, envolvido com os meios
comunistas, manteve-se longe do favor oficial a essa época. As decorrências de
suas respectivas atitudes são indicativas da difícil posição do intelectual brasileiro
perante o autoritarismo do Estado.
Abstract
The present article examines the relationship between intellectuals and political
autonomy in the Brazilian cultural context, focusing on a historical case study:
the actions of two of the most important leaders of the modernist movement,
Mário de Andrade and Oswald de Andrade. Special consideration is given to two
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lectures delivered by them, “The modernist movement” (1942) and “The path
trodden” (1944), respectively. How did these authors react to powerful pressures
by the Vargas dictatorship to control information and cultural discourse? Mário
de Andrade attempted to draw near to the authorities, but afterwards publicly
expressed regret and self-criticism. Oswald de Andrade, engaged in communist
circles, kept a distance from official patronage at the time. The results of their
respective attitudes are indicative of the difficult position of Brazilian intellectuals
faced with an authoritarian State.
Di Cavalcanti, 19641
2 Éder Silveira, “Di Cavalcanti memorialista – boemia, arte e política”, V Encontro de História da
Arte – IFCH/Unicamp (2009), pp. 405-412.
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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 181
3 Sobre a relação entre intelectuais modernistas e serviço público nessa época, ver Lauro Caval-
canti, org., Modernistas na repartição (Rio de Janeiro: Ed.UFRJ/Iphan, 2000 [1993]), esp. pp. 9-23.
5 José Condé, “Escritores e livros”, Correio da Manhã (Segundo Caderno), 24/03/1964, p.2. Ver
ainda anúncio de lançamento do livro ao pé da mesma página, repetido no dia seguinte e veicu-
lado também em outros jornais.
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O movimento modernista
6 Elio Gaspari, A ditadura acabada (Rio de Janeiro: Intínseca, 2016), pp. 77-81, 206.
7 A aproximação dessas duas conferências foi feita por Silviano Santiago, “Sobre plataformas e
testamentos”, In: Oswald de Andrade, Ponta de lança (São Paulo: Globo, 1991), pp. 7-24. Esse
ensaio foi reimpresso em: Silviano Santiago, Ora (direis) puxar conversa: Ensaios literários (Belo
Horizonte: Ed.UFMG, 2006), pp. 113-131. Ver também Madalena Vaz Pinto, “Modernismo bra-
sileiro: Que retrato do Brasil?”, Semear, n.10 (2004), pp. 153-166.
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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 183
10 Wilson Martins, A idéia modernista (Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2002
[1965]), p.135. Ver também Lélia Coelho Frota, org., Carlos e Mário: Correspondência entre Carlos
Drummond de Andrade e Mário de Andrade (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002), pp. 470-473, n.1.
11 Andrade, “O movimento modernista”, p.242. Ver, entre outros, Alfredo Bosi, “O movimento
modernista de Mário de Andrade”, Literatura e Sociedade, n.7 (2004), pp. 296-301; e José de Pau-
la Ramos Jr., “Mário de Andrade e a lição do modernismo”, Revista USP, n.94 (2012), pp. 49-58.
12 José Luís Jobim, “O movimento modernista como memória de Mário de Andrade”, Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, n.55 (2012), pp. 13-26. Ver ainda Simone da Cruz Chaves, “22
por 1: O modernismo avaliado por Mário de Andrade”, Grau Zero: Revista de Crítica Cultural, v.1
(2013), pp. 9-22.
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184 Rafael Cardoso
13 Eduardo Jardim, Eu sou trezentos: Mário de Andrade, vida e obra (Rio de Janeiro: Edições de
Janeiro, 2015), p.185.
14 Jardim, Eu sou trezentos, pp. 160-161, 175-176, 185-186; e Helena Bomeny, “Infidelidades
eletivas: Intelectuais e política”, In: Helena Bomeny, org., Constelação Capanema: Intelectuais e po-
lítica (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001), pp. 28-29. Ver também Eduardo Jardim, Mário de Andrade:
A morte do poeta (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), esp. cap.2.
15 Os artigos foram republicados pelo jornal em 2002, em comemoração aos oitenta anos da Sema-
na; http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,semana-de-22-por-mario-de-andrade,20020210p2229.
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Semana. Seja isso como for, permanece o fato de que os dois aspectos que
mais incomodaram à historiografia – o repúdio ao movimento modernista e
o mea culpa fervoroso por se omitir politicamente – estão ausentes da versão
publicada no jornal paulistano.
Coincidência ou não, a reputação literária de Mário de Andrade sofreu um
baque justamente no mês de março de 1942. No dia 21, sábado, o Correio da
Manhã, mais importante diário da Capital, veiculou uma resenha de Álvaro
Lins, então em ascendência como crítico literário, comentando a publicação
de Poesias (1941), volume que reunia a maior parte da produção poética de
Mário. O crítico condena “a fatal desigualdade” da obra do poeta e aponta
sistematicamente suas insuficiências, denunciando que sua essência poética
nunca teria alcançado uma forma de expressão à altura. Acusa sua poesia de
carecer de maior profundidade e de se perder em artifícios, no pitoresco, na
pilhéria fácil. Ainda descreve Mário como “mais uma personalidade do que
um autor, pelo menos no domínio da poesia”. A crítica é tão mais arrasado-
ra por ser respeitosa, por levar em consideração o valor e a importância de
Mário na vida literária de sua época, assim como sua originalidade e vigor.
Cobre-lhe largamente de elogios que depois são desfeitos no varejo. Pior de
tudo, a condenação de Lins, então com 29 anos de idade, vem revestida
de julgamento da juventude contra os mais velhos: “A minha geração ultra-
passou, porém, o chamado do movimento modernista, e de tal modo que
muitas das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer sentido.” Com
propriedade e embasamento, o crítico consigna a produção poética de Mário
à “imagem grave e atormentada de um homem que se procura a si mesmo”.16
Mesmo sem querer superdimensionar a importância do fato, não dá para
desconsiderar o impacto dessa crítica sobre o poeta. A partir dela, Mário de
Andrade iniciou um diálogo com Álvaro Lins – por crônica e correspondên-
cia – que duraria até o final de sua vida. Três dias depois do texto sair no
Correio da Manhã, Mário escreveu uma primeira carta ao autor. Em vista das
reprimendas ao seu trabalho poético, a reação foi bem mais positiva do que se
poderia esperar, e ele chegou a se confessar confortado pelos elogios contidos
no texto.17 Mário já conhecia Lins pelos escritos. Dois anos antes, em 1940,
havia sido um dos primeiros a saudar a jovem promessa, reconhecendo-o
16 Álvaro Lins, “Crítica literária. Poesia e forma”, Correio da Manhã, 21/03/1942, p.2.
17 [Mário de Andrade], Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins (Rio de Janeiro: José Olympio,
1983), esp. pp. 46-51. Ver também Coelho Frota, Carlos e Mário, p.476, n.6.
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186 Rafael Cardoso
como “um crítico excelente, que deve perserverar na crítica”.18 Uma vez que
já havia dado seu aval, não podia voltar atrás somente porque passou à con-
dição de alvo. As cartas para Lins continuaram. Em julho de 1942, quase três
meses depois da conferência de abril, Mário ainda discutia sua “confissão
final”, esmiuçando-a em termos psicanalíticos e negando que se tratasse de
“autopunição”.19 O tom confessional do missivista sugere um desejo de ab-
solvição, como se o jovem crítico possuísse o poder de livrá-lo do juízo da
História. De fato, Lins viria a se tornar um dos primeiros a realizar balanço
crítico da obra de Mário, em maio de 1946.20
Nos anos seguintes a 1942, Mário de Andrade procedeu a um exame de
consciência e passou a exercer, não sem coragem, a autocrítica. A palestra
“O movimento modernista” marca o início de um processo de penitência
pública por ter colaborado com a ditadura do Estado Novo. Em entrevista
concedida a Francisco de Assis Barbosa e publicada na revista Diretrizes,
em janeiro de 1944, Mário escancara essa questão e acusa: “uma grande
parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida”. Nem ele se
exime do pecado do colaboracionismo. Declara-se “arrependidíssimo” por
ter contribuído para a revista Atlântico, projeto que unia o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), sob Lourival Fontes, com seu correspon-
dente salazarista em Portugal, o Secretariado de Propaganda Nacional, sob
responsabilidade de António Ferro.21 Contudo, a autocrítica de Mário não se
estendeu à sua passagem pela Universidade do Distrito Federal, para assumir
o cargo de professor de Filosofia e História da Arte que foi o pretexto para
sua mudança para o Rio de Janeiro.
18 Mário de Andrade, “Um crítico”, In: Mário de Andrade, O empalhador de passarinho (São
Paulo: Martins/INL, 1972), pp. 199-203.
20 Álvaro Lins, “A crítica de Mário de Andrade”, In: Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins,
pp. 21-29.
21 Telê Porto Ancona Lopez, “‘A arte tem de servir’: Transcrição de uma entrevista de Mário de
Andrade”, Almanaque, n.8 (1978), pp. 35-39. Ver Alex Gomes da Silva, “A recriação ‘atlântica’
do processo colonizador português. A revista Atlântico (1941-1945)”, Revista Angelus Novus, n.2
(2011), pp. 110-141.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 187
22 Ver Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny & Vanda Maria Ribeiro Costa, Tem-
pos de Capanema (São Paulo: Paz e Terra/FGV, 2000), pp. 221-246; e Rafael Cardoso, “Modernis-
mo e contexto político: A recepção da arte moderna no Correio da Manhã (1924-1937)”, Revista
de História (USP), n.172 (2015), pp. 358-359.
23 Sobre o desmonte da UDF, ver Clarice Nunes, “As políticas públicas de educação de Gustavo
Capanema no governo Vargas”, In: Bomeny, Constelação Capanema, pp. 103-125; e Laila Maia
Galvão, Constituição, educação e democracia: a Universidade do Distrito Federal (1935-1939) e as
transformações da Era Vargas (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Direito,
Estado e Constituição, Universidade de Brasília, 2017). Sobre a passagem de Cornélio Penna pelo
Instituto de Artes, ver Marcelo Secron Bessa, “Cornélio Penna: Um escritor na contramão”, Semear,
n.4 (2000), pp. 87-98; e André Luis Rodrigues, Fraturas no olhar: Realidade e representação em
Cornélio Penna (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira,
Universidade de São Paulo, 2006), pp. 12-13, 26.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
188 Rafael Cardoso
“está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos”. “A arte tem de ser-
vir,” afirma, referindo-se à função social de aproximar o intelectual do povo.
“Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais,” asse-
vera, “[t]odos participam da luta, mesmo contra a vontade.”25 O tom comba-
tivo, quase marxista, dessas falas seria do agrado dos leitores anti-fascistas da
Diretrizes. A revista era conhecida então por forçar o limite do dissenso pos-
sível em um contexto onde nenhuma oposição era tolerada (tanto que viria a
ser proibida pelo DIP, seis meses depois).26 Porém, a mudança de posição era
drástica demais para ser atribuída apenas a um cálculo, da parte do entrevis-
tado, no sentido de amoldar sua fala para aquele público leitor. Poucos anos
antes, em 1941, Mário havia rechaçado com veemência o que chamou de “a
tese da ‘arte social’”, termo empregado pelos integrantes do Clube da Cultura
Moderna e promotores da Exposição de Arte Social (1935) – Aníbal Macha-
do, Álvaro Moreyra, Tomás Santa Rosa, Paulo Werneck, entre outros – para
designar o engajamento político de esquerda que era esperado dos artistas
modernistas na década de 1930.27
No final da vida, a posição de Mário de Andrade se tornou ainda mais
radical, conforme expressa no ensaio sobre Shostakovich publicado depois
da sua morte.28 Essa guinada política entre 1942 e 1945 precisa ser elucidada
e não simplesmente descontada com um diagnóstico póstumo de depressão,
o que seria desmerecer as opiniões do autor por meio de um discurso mé-
dico espúrio. Cabe levar em consideração algumas inquietações que devem
ter pesado sobre ele nos últimos anos. Primeiramente, a frustração devida às
sucessivas derrotas sofridas no plano profissional. Em segundo lugar, a má-
goa de ver sua obra literária rejeitada por uma opinião crítica que respeitava
26 Danilo Wenseslau Ferrari, “Diretrizes: A primeira aventura de Samuel Wainer”, Revista His-
tórica (Arquivo Público do Estado de São Paulo), n.31 (2008). Ver também Maria Helena Capelato,
“Propaganda política e controle dos meios de comunicação”, In: Dulce Pandolfi, org., Repensando
o Estado Novo (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999), pp. 167-178.
27 Mário de Andrade, “Elegia de Abril”, In: Andrade, Aspectos da literatura brasileira, p.188. So-
bre a movimentação em torno da ‘arte social’, ver Aracy A. Amaral, Arte para quê?: A preocupação
social na arte brasileira 1930-1970 (São Paulo: Nobel, 1984), pp. 49-55; Aníbal Machado, “Mos-
tra de Arte Social”, In: Raul Antelo, org., Parque de diversões – Aníbal Machado (Belo Horizonte:
UFMG & Florianópolis: UFSC, 1994), pp. 149-158; e Frederico Morais, Cronologia das artes
plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994 (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), pp. 153-158.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 189
O caminho percorrido
29 Nádia Battella Gotlib, Tarsila do Amaral: A musa radiante (São Paulo: Brasiliense, 1983), pp.
77-80; Sérgio Miceli, Nacional estrangeiro: História social e cultural do modernismo em São Paulo
(São Paulo: Companhia das Letras, 2003), pp. 142-149; e Maria Augusta Fonseca, Oswald de
Andrade: Biografia (São Paulo: Globo, 2007), pp. 218-221.
30 Para os motivos da ruptura entre os Andrades, ver Revista de Antropofagia, II, n.3 (Diário
de S. Paulo, 31/03/1929), p.6; Tamandaré, “Moquem. III-Entradas”, Revista de Antropofagia, II,
n.6 (Diário de S. Paulo, 24/04/1929), p.10; Revista de Antropofagia, II, n.15 (Diário de S. Paulo,
19/07/1929), p.12. Ver também Aracy A. Amaral, org., Correspondência Mário de Andrade e Tarsila
do Amaral (São Paulo: Edusp, 2001), p.106; e Coelho Frota, Carlos e Mário, p.437, n.10.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
190 Rafael Cardoso
31 Jardim, Eu sou trezentos, pp. 107-109. Ver também Mário de Andrade, Táxi e crônicas no Diário
Nacional (São Paulo: Duas Cidades/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976). Sobre as
relações interpessoais entre os modernistas paulistas, ver Miceli, Nacional estrangeiro, pp. 112-116.
32 Ver Maria Eugênia Boaventura, O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andra-
de (São Paulo & Campinas: Ex-Libis & Ed. Unicamp, 1995), pp. 184-185; Fonseca, Oswald de
Andrade, p.300; e Marília de Andrade & Ésio Macedo Ribeiro, orgs., Maria Antonieta d’Alkmin e
Oswald de Andrade: Marco zero (São Paulo: Edusp, 2003), pp. 16-18, 66-69.
33 Oswald de Andrade, Um homem sem profissão: Memórias e confissões. I volume 1890-1919. Sob
as ordens da mamãe (Rio de Janeiro, José Olympio, 1954), pp. 21-34. Ver ainda Fonseca, Oswald
de Andrade, p.294.
34 Geraldo Galvão Ferraz, org., Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão (Rio
de Janeiro: Agir, 2005), pp. 75-76.
35 Ver Aurora Cardoso de Quadros, Oswald de Andrade no jornal O Homem do Povo (tese de
doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, Uni-
versidade de São Paulo, 2009), esp. pp. 29-51. Ver também Valdeci da Silva Cunha, “O Homem
do Povo: Oswald de Andrade e o jornalismo engajado”, Em Tese, v.16 (2010), pp. 36-55.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 191
sofriam com as tensões que regem a relação entre intelectuais e cúpula par-
tidária nas agremiações dedicadas à causa operária, e também com o julga-
mento dos meios burgueses escandalizados com sua ideologia e mesmo com
sua união conjugal. Por conta da desconfiança de uns e do ressentimento de
outros, prevalece certa tendência a questionar a sinceridade do compromisso
de Oswald ou a desdenhar de sua relação com o PCB.36 No entanto, o escritor
manteve-se próximo aos meios comunistas durante quase quinze anos, parti-
cipando de iniciativas jornalísticas, educacionais e teatrais, e só veio a romper
com o partido em 1945 – por ironia, no momento em que o PCB retornava à
legalidade.37 É quase impossível asseverar exatamente o que ocorreu, ou não,
durante o período de clandestinidade do partido, quando prevaleceu esforço
concertado para apagar rastros e encobrir informações. Se Oswald foi ‘bom
comunista de partido’, conforme a formulação de Di Cavalcanti, é questão em
aberto. Que ele era tido como comunista, à época, não resta dúvida.
Ao pronunciar a conferência “O caminho percorrido”, em maio de 1944,
Oswald de Andrade teria sido percebido por seus ouvintes como um opositor
do Estado Novo ou, pelo menos, como uma de suas vítimas. Ao contrário
de tantos intelectuais que colaboraram com os órgãos da ditadura responsá-
veis por distribuir encomendas e cargos – em especial, o DIP e o Ministério
da Educação – o antigo antropofagista detinha a autoridade moral, naquele
momento, para proferir juízos tonitruantes a respeito da conduta alheia.38
Assim, ele não hesitou em aproximar Plínio Salgado e Tristão de Athayde
(pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima) dos “ideólogos do neofascismo
americano”, nem em enaltecer Aníbal Machado e Carlos Drummond de An-
drade por “permanecerem irredutíveis nas suas trincheiras de progresso e de
36 Ver Marcio Luiz Carreri, “Oswald de Andrade e o PCB na década de 1930: Moderno, moder-
nidade e diálogo social”, ANPUH – XXVII Simpósio Nacional de História (2013); e Marcio Luiz
Carreri, O socialismo de Oswald de Andrade: Cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo
na década de 1930 (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2015), pp. 48-63, 120-126.
37 Sobre a relação de Oswald com o PCB, ver Boaventura, O salão e a selva, pp. 154-156, 177-
178, 234-235; José João Cury, O teatro de Oswald de Andrade: Ideologia, intertextualidade e escri-
tura (São Paulo: Annablume, 2003), pp. 46-47; Juliana Neves, Geraldo Ferraz e Patricia Galvão:
A experiência do suplemento literário do Diário de S. Paulo, nos anos 40 (São Paulo: Annablume/
Fapesp, 2005), pp. 44-49; Fonseca, Oswald de Andrade, pp. 228-233, 296-299; e Maria Prestes,
Meu companheiro: 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes (Rio de Janeiro & São Paulo: E-papers &
Anita Garibaldi, 2012), p.60.
38 Sobre o DIP e os intelectuais, ver Mônica Pimenta Velloso, “Os intelectuais e a política cultural
do Estado Novo”, Revista de Sociologia e Política, n.9 (1997), pp. 57-74; e Lucia Lippi Oliveira, “O
intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado Novo”, In: Bomeny, Constelação Capanema, pp. 37-58.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
192 Rafael Cardoso
democracia”, mesmo “nos piores anos, nos anos de grande traição”. Com a
Europa sob bombardeio intenso dos Aliados e a expectativa de uma invasão
próxima para libertar o continente ocupado pelos nazistas, o público de Belo
Horizonte não teria nenhuma dificuldade de identificar de que lado o escritor
se postava. “Num mundo que se dividiu num combate só, não há lugar para
neutros ou anfíbios,” pontificou Oswald, conclamando os presentes: “Tomai
lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas!”.39
A retórica hiperbólica não se deve apenas à personalidade exagerada do
orador. Cada palavra daquela conferência havia sido calculada para dar sus-
tento à tese central anunciada logo em seu primeiro parágrafo: que a Belo
Horizonte de 1944 estava fadada a concluir a trajetória iniciada em São Paulo
em 1922. A ocasião da palestra era a grande Exposição de Arte Moderna (1944)
– “por iniciativa do prefeito Juscelino Kubitschek de Oliveira e sob o patrocínio
da prefeitura de Belo Horizonte”, conforme anunciava em letras maiúsculas
sem serifa a folha de rosto do catálogo – que trouxe para a capital mineira os
principais nomes do modernismo brasileiro, inclusive alguns que andavam
afastados do favor oficial. Após os anos de vacas magras, em que muitos in-
telectuais e artistas se viram obrigados a escolher entre ficar a serviço da dita-
dura ou deixarem de trabalhar, a gana de JK de patrocinar inciativas culturais
de cunho modernista era um chamariz irresistível. O ‘prefeito furacão’, como
fora apelidado, foi projetado à fama nacional ao fazer construir o conjunto
arquitetônico da Pampulha, entre 1942 e 1944, e já despontava no imaginário
nacional como um político com potencial para alçar voos mais altos.
Para os que nutriam simpatias comunistas, como Oswald de Andrade, o
momento era de uma esperança inebriante. Além do jovem prefeito, simpáti-
co à causa modernista, o fim iminente da Guerra acenava com a promessa de
novos tempos. Os católicos, reacionários e fascistas que vinham dominando
a vida institucional brasileira, havia quase uma década, seriam varridos do
poder pela nova aliança entre democratas e esquerdistas. Confiante da sua
posição, o palestrante se deu ao luxo até de tripudiar Tristão de Athayde por
se ver obrigado a engolir suas pregações antirrussas anteriores e aderir ao que
Oswald chamou de “remada para a esquerda”.40 Naquele momento ímpar
de 1944 para 1945, Moscou e Washington eram aliados lutando juntos para
livrar o mundo de um inimigo em comum: a extrema-direita ultranacionalista
39 Oswald de Andrade, “O caminho percorrido”, In: Oswald de Andrade, Ponta de lança: Polêmi-
ca (Obras completas, v.5) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1971), pp. 99-101.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 193
Querer que a nossa evolução se processe sem a latitude dos países que avan-
çam é a triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas, par-
ticularmente tolerada pela Polícia Especial, e que nos quis infligir um dos
grupos modernistas, o Verde-Amarelo, chefiado pelo Sr. Cassiano Ricardo.41
42 Ver Poronominare, “Uma adesão que não nos interessa”, Revista de Antropofagia, II, n.10, In: Diá-
rio de S. Paulo, 12/06/1929, p.10. Ver também Mônica Pimenta Velloso, “A brasilidade verde-amare-
la: Nacionalismo e regionalismo paulista”, Estudos Históricos, v.6 (1993), pp. 89-112; Olivia Maria
Gomes da Cunha, “Sua alma em sua palma: Identificando a ‘raça’ e inventando a nação”, In: Pandolfi,
Repensando o Estado Novo, pp. 257-288; e Luiza Franco Moreira, Meninos, poetas e heróis: Aspectos de
Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo(São Paulo: Edusp, 2001), esp. pp. 90-101.
43 Paulo Knauss, “O homem brasileiro possível: Monumento da juventude brasileira”, In: Paulo
Knauss, org., Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Sette Letras,
1999), pp. 31-33. Ver também Giralda Seyferth, “Os imigrantes e a campanha de nacionalização
do Estado Novo”, In: Pandolfi, Repensando o Estado Novo, pp. 212-218; Maria Stella Martins
Bresciani, O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil
(São Paulo: Ed. Unesp, 2005), pp. 27-28, 348-350.
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47 Ver Cardoso, “Modernismo e contexto político”, pp. 352-355. Ver ainda Angela de Castro Gomes,
Essa gente do Rio...: Modernismo e nacionalismo (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999), pp. 72-76, 97-103.
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196 Rafael Cardoso
49 Ver Heloisa Pontes, Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68)
(São Paulo: Companhia das Letras, 1998), pp. 23-50; e ainda Antônio Cândido, “O Mário que
eu conheci”, In: Telê Porto Ancona Lopez, org., “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”:
uma “autobiografia” de Mário de Andrade (São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1992) [re-
publicado em Digestivo Cultural, 24/03/2008, http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.
asp?codigo=246&titulo=O_Mario_que_eu_conheci].
50 Oswald de Andrade, “Antes do ‘Marco Zero’”, In: Andrade, Ponta de lança, pp. 42-47.
51 Antônio Cândido, “Prefácio inútil”, In: Andrade, Um homem sem profissão, pp. 9-15.
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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 197
53 Bomeny, “Infidelidades eletivas”, p.17. Ver também Lauro Cavalcanti, “Modernistas, arquite-
tura e patrimônio”, In: Pandolfi, Repensando o Estado Novo, p.182.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
198 Rafael Cardoso
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BORTOLOTI, M. Drummond e o Partido Comunista. Blog IMS, 13/03/2013. Disponível
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BOSI, Alfredo. O movimento modernista de Mário de Andrade. Literatura e Sociedade,
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BRESCIANI, M. S. M. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna
entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 199
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
Érico Araújo Lima**
Estética e comunidade:
Cezar Migliorin*
ocupar o inacabado
Resumo
Tentamos aqui fazer algumas indagações a respeito da noção de estética, nos
colocando à escuta de situações com dimensões heterogêneas. Somos provocados
pelo mundo criado em meio às paredes vazadas de um prédio inacabado, ocupado
por estudantes da Universidade Federal Fluminense; somos interpelados pela
experiência de uma passeata em luta pela moradia, sob a repressão da polícia
militar, abrigada pelas imagens e disponibilizada pela montagem do filme Na
missão, com Kadu (2016), de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito.
Na companhia dessas situações, traçamos algumas variações em torno do índice
de indeterminação que o estado estético pode criar, como maneira de possibilitar a
constante disputa pelo presente e por outras formas de habitar um espaço comum.
Apontamos aqui algumas possíveis aproximações à noção de estética, considerada
num paradoxal regime de autonomia e heteronomia com outras forças, contagiada
pelo processo de elaboração de uma comunidade.
Abstract
We try to discuss here the notion of aesthetics, listening different situations. We are
provoked by the world created among the opened walls of an unfinished building,
occupied by students of Universidade Federal Fluminense; we are challenged by
the experience of a march in struggle for housing, under the repression of the
military police, an experience that comes to us with the images of a film, On the
mission, with Kadu (2016), by Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
204 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima
Brito. In the company of these situations, we draw some variations around the
index of indetermination that the aesthetic state can create, as a way to enable the
constant dispute for the present and for other ways of inhabiting a common space.
We point here to some possible approaches to the notion of aesthetics, considered in
a paradoxical regime of autonomy and heteronomy with other forces, implicated in
the process of elaborating a community.
1.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 205
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
206 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima
Este artigo surge abrigado por essas energias vindas de quando se opta por
habitar o inacabado, energias sensíveis e políticas vindas da partilha de aulas
feitas com projeção de imagens nas paredes, de salas de aula onde se dormia,
de rodas de conversa que ocupavam 200 metros quadrados, de filmes e per-
formances que aconteciam entre a cozinha e a sala de aula. Um prédio que
foi posto em defasagem pelo tempo e por uma ocupação gerada em desejos
coletivos. Se nos interessa resgatar esse campo de forças gerado por uma
situação, é porque o pensamento se faz à escuta das situações. É também
porque, justo para a discussão que aqui nos interessa, a consideração sobre o
estético não se exaure na apreciação de objetos da arte, mas tentará enfrentar
os liames que uma experiência estética, em sentido ampliado, traça com os
modos de se fazer comunidade. A conexão entre uma experiência estética e
um devir comunitário pode ser remontada a Kant, com a noção de uma pres-
suposta universalidade não conceitual da noção de belo. Entretanto, se em
Kant a universalidade podia ser pressuposta a partir de uma afecção comum,
o belo, os desdobramentos modernos não antecipam essa afecção para um
devir comunitário. Ou seja, se é possível pensar esteticamente uma ocupação
em termos de uma invenção que forja conexões, afetos, discursos e embates
que se manifestam em processos subjetivos ainda não codificados, é porque
o que conecta esses processos é dado no ato mesmo das invenções sensíveis:
uma nova relação com a instituição, uma reformulação do papel político de
professores e funcionários, uma mudança nas ordens temporais e, claro, uma
liberdade imediatamente política própria à possibilidade de uma experiência
estética com a luta e o cotidiano.
2.
Ocupação Vitória, região da Izidora, entre Belo Horizonte e Santa Luzia, Mi-
nas Gerais. Chegamos a esta ocupação, a partir de um curta-metragem, Na
missão, com Kadu, de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito.
Colocamo-nos à escuta de uma situação, já não como no IACS, pela presença
nas salas de aula ocupadas por estudantes da UFF, como dizíamos no início
deste texto, mas pela mediação que a imagem possibilita, estabelecendo uma
vizinhança entre mundos: o daqueles que ocupam e moram num território
e o daqueles que são convidados a se engajar nessas práticas e lutas mo-
radoras. Aqui também uma ocupação. Desta vez feita por pessoas pobres,
sem nenhum status universitário, e sem a proteção que esse status dá aos
estudantes.
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do fim, quando o filme expõe uma cartela preta sobre o assassinato de Kadu,
expondo “o luto da luta” (KIMO, 2016, p.260), convocando também para a
elaboração de uma memória que prossegue a possibilidade de intervenção
no presente.
Essa articulação de tempos distintos nos possibilita ver no filme uma inser-
ção na própria comunidade, para ocupar com ela um espaço e disparar uma
energia possível para seguir uma experiência de constante luta. Na cena inicial
da conversa, Aninha pontua o aprendizado com o episódio de repressão poli-
cial, para adquirir experiência sobre as próprias táticas de resistência – ganhar
experiência e ficar mais forte pra luta, diz ela. A conversa rememora a situação
vivida e, não só isso, vai compondo uma maneira de se relacionar com esse
passado próximo, tomar a experiência histórica para atuar no presente. Pouco
a pouco, é como se o filme se transformasse numa instância para suportar o
peso imposto pelo trauma. O inacabamento e a morte exigem corpos fortes.
Foi fundamental filmar a passeata e a repressão, gesto de Kadu recupe-
rado na parte final, e simultaneamente é preciso pensar como montar essa
experiência – montar, por assim dizer, junto com a comunidade, construindo
um espaço com outros corpos, quando se expõe o material bruto e se filma
a imagem sendo vista, o episódio sendo rememorado, as múltiplas conexões
que aquelas imagens produzidas no dia da marcha passam a ter com os tem-
pos vividos pela comunidade. É como se o filme expusesse na sua montagem
sua própria situação limiar – intimamente conectado ao acontecimento his-
tórico, ao mundo vivido, com um material bruto disposto à comunidade e ao
espectador não morador, quando a heterogeneidade se insere para abrigar o
arquivo produzido em direto, e a montagem vem exercer aqui uma operação
de corte e de interrupção, a pausa necessária para a conversa – aquela que
vemos em cena, mas também a conversa que virtualmente pode sempre ser
traçada entre os sujeitos que olham, entre os espectadores que foram chama-
dos a ver, porque algo deve ser endereçado5.
5 Marie-José Mondzain tem sido uma pensadora das mais instigantes a discutir sobre o trabalho
do espectador e a tarefa do ver junto. Poderíamos aqui retomar uma passagem de uma fala da
autora, ao contextualizar uma escolha de filmes que se propôs a debater em outro contexto, quan-
do elabora a respeito da noção de uma energia política: “Atribuo à emoção, e à emoção política,
um papel fundamental: antes de tudo, os filmes que selecionei me tocaram particularmente. É
enquanto espectadora, e não enquanto filósofa, que tive o desejo de partilhá-los com vocês. Assim,
a energia política dos filmes não concerne apenas aos seus temas políticos, mas também às emo-
ções políticas que eles suscitam, nos colocando na vizinhança com um sofrimento outro, com um
prazer outro, com um mundo outro. Se os temas dos filmes que selecionei remetem a problemas
da atualidade, as suas energias políticas vêm, sobretudo, do fato de que eles me oferecem a pos-
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Estética e comunidade: ocupar o inacabado 209
3.
sibilidade de fazer parte do mundo que eles me fazem ver e de nele encontrar meu lugar, minha
legitimidade para existir” (MONDZAIN, 2012).
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J’appelle.
J’appelle.
J’appelle.
Je ne sais qui j’appelle.
Qui j’appelle ne sait pas.
(...)
J’appelle quelqu’un de là-bas,
quelqu’un au loin perdu,
quelqu’un d’un autre monde.6
Se uma obra pode ser constantemente interrogada sobre seus modos de in-
ventar um espectador, talvez possamos nos acompanhar aqui do mote que
nos dá Henri Michaux, a respeito de um chamado, endereçado a não se sabe
6 Em tradução livre nossa: “Chamo/ Chamo / Chamo/ Não sei quem chamo/ Quem chamo não
sabe (...) Chamo alguém de lá, / Alguém perdido ao longe, / Alguém de um outro mundo”.
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212 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima
4.
Nesse retorno a um pensador do século XVIII, seria relevante, desde já, ter
como diapasão uma questão: de que trata o edifício filosófico de Schiller e
em que medida ele nos concerne? Podemos, desde já, observar um prosse-
guimento traçado com as formulações kantianas, na sua Crítica da faculdade
do juízo, mas também perceber a preocupação singular em vincular mais es-
treitamente o belo a uma dimensão ética. Schiller preserva aspectos centrais
da beleza caracterizada dentro sistema kantiano, mas o faz numa considerável
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7 Retomemos aqui, brevemente, apenas para contextualizar, essas relações entre Kant e Schiller.
A Crítica da faculdade do juízo, de Kant, tem toda a sua primeira parte dedicada a caracterizar o
que ele chama de juízo estético, que vai sendo definido, sobretudo, nos quatro momentos em-
blemáticos do primeiro livro da Crítica, a “Analítica do Belo”. Trata-se aí de constituir a natureza
do belo, na sua distinção com outras formas de satisfação, o agradável e o bom. Essa primeira
diferença passa pelo seguinte fato: a satisfação ocorrida com o belo, ao contrário do que se dá com
o agradável e o bom, é sem nenhum interesse. Eis a famosa conclusão desse primeiro momento:
o juízo estético é desinteressado. Ao que Kant vai acrescentar, no segundo momento, que uma tal
satisfação com o belo deve se dar de modo universal e sem conceito: a distinção aqui se dá espe-
cialmente com as sensações ligadas ao agradável, de cunho mais individual, ao contrário do belo,
que contém um “fundamento de satisfação para todos” (§ 6). Para entender essa ausência de con-
ceito, é aqui que Kant usa o termo jogo, que veremos ser tão importante nas discussões de Schiller.
Se a universalidade acontece sem mediação de conceitos, é que ela se baseia em um “livre jogo da
imaginação e do entendimento”. Passando ao terceiro momento, que é também basilar, trata-se
de considerar a beleza como finalidade, sem a representação de um fim: o juízo estético repousa
sobre a finalidade de uma forma ou de um objeto, no sentido da dimensão final que eles adqui-
rem, sem que deles se possa extrair uma consequência, uma ação, um fim. E o quarto momento
retoma a dimensão universal do juízo estético, segundo a ênfase na necessária articulação com um
senso comum: só se pode dizer que algo é belo, quando se pressupõe uma validade universal de
tal afirmação. Esse senso comum, ele enfatiza, não é um sentido externo, mas é, novamente, um
efeito do livre jogo das faculdades. “Somente sob a pressuposição de um tal senso-comum pode
o juízo-de-gosto ser emitido” (§ 20). Falamos aqui, muito brevemente, desses quatro momentos,
mas ao seguir de perto as cartas de Schiller, veremos algumas consequências fundamentais dessas
inferências de Kant, colocadas com novas envergaduras pelo filósofo que o sucedeu.
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8 “Para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois
é pela beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER, 1995, p.26).
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10 Ainda na Carta 22, encontramos uma passagem que parece emblemática a esse respeito: “nada
é tão oposto ao conceito da beleza do que dar à mente uma determinada tendência” (Idem, p.116).
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220 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima
5.
Abrimos este artigo com duas situações de ação direta: uma ocupação de um
prédio universitário – inacabado e com obras paradas; e o filme Na missão,
com Kadu, que monta imagens feitas por um morador e militante, Kadu, no
calor de um ataque policial aos integrantes de uma ocupação, junto a outros
momentos vividos por essa comunidade – filme que se torna também parte
de um luto. Se nos colocamos à escuta dessas ações/obras vividas no presen-
te, é porque nos parece que elas comportam e renovam as múltiplas facetas
do que hoje reúne a política e a estética. Em ambos os casos, é na troca e
no compartilhamento de uma experiência do tempo e do espaço que uma
comunidade diz de si, elabora formas de sentir e viver. No mesmo gesto, ela
desenha para si um lugar na sociedade, um espaço que transcende os lugares
circunscritos ao vivido pelos grupos, desenha linhas de continuidade entre o
que se passa ali e uma comunidade sensível em devir – espectadores, visitan-
tes, passantes, agentes públicos. As comunidades se forjam assim em um ir e
vir de uma relação sensível com o espaço e o tempo, que precisa jogar, precisa
se ampliar como dever ético, que não é apenas uma acusação, mas um esforço
e uma tensão com outros poderes, ao mesmo tempo em que mantém aberta
a porta da instabilidade do que pode ser feito, dito, sentido. Devolver as
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 221
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
“Morder o real”:
Eduardo Pellejero*
Resumo
Em geral tendemos a entender o engajamento da arte a partir de certas formas
de representá-lo, isto é, associado ao programa de um partido político, um projeto
revolucionário, uma perspectiva histórica ou uma posição ética. Mas muitos
artistas falam de um compromisso com o real que precede qualquer formulação
poética ou ideológica. O presente ensaio pretende explorar, a partir do diálogo com
alguns artistas, críticos e filósofos contemporâneos, o que se encontra em jogo nessa
relação com o real muitas vezes passada por alto.
Abstract
Usually we understand art’s commitment from the point of view of representation,
this is, associated with the program of a political party, a revolutionary project, an
historic perspective or an ethical position. But many artists talk about a kind of
commitment with the real that precedes any poetic or ideological formulation. This
paper aims to explore, in a dialogue with some contemporary artists, critics and
philosophers, what is at stake in that peculiar relation with the real.
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224 Eduardo Pellejero
-1-
1 Todas as epígrafes pertencem ao espantoso conto de Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”. In:
Lispector, C. A legião estrangeira. Rocco, 2015. Devo a referência a Vitto Bruno do Carmo Dias.
2 Giacometti, Alberto. Réponse à l’enquête de Pierre Voldboudt ‘À chacun sa réalité’, XXº siècle, nº 9,
Junho de 1957, p. 35.
3 Intimidam, diz Alain Badiou: “As realidades da economia do mundo, a inércia das relações so-
ciais, o sofrimento das existências concretas, o veredicto dos mercados financeiros” (Badiou, Alain.
Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017), que se apresentam como epítome do
real, são menos sintomas do real que máscaras do real. Mas não carecem de efetividade; têm um
papel decisivo na hora de considerar o que é possível e o que não é. Constituem conglomerados
de ideias, núcleos de interpretação do verdadeiro, “que constituem o mapa da realidade e com
frequência programam e decidem o sentido da história” (Piglia, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos
Aires: Seix Barral, 2000, p. 49). Exigem o nosso consentimento. Nesse sentido, segundo Badiou,
o lugar que ocupa a economia hoje em qualquer discussão que diga respeito ao real é sintomático
do sequestro do real por algumas formas hegemónicas de representação (p. Xx).
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“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 225
-2-
“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. Ver o ovo é a promessa
de um dia chegar a ver o ovo. Olhar curto e indivisível; se é que há pensa-
mento; não há; há o ovo.”
4 “A arte não-figurativa não é exceção. Uma tela recente de Rothko representa uma iluminação
ou um brilho colorido que se derivou da experiência que o pintor teve do visível. Quando estava
trabalhando ele julgou sua tela segundo outra coisa que ele via.” (Berger, John. “Passos em direção
a uma pequena teoria do visível”. Em: Bolsões de resistência. Lisboa: Editorial Gustavo Gilli, 2004.)
5 Ibidem, p. 18.
6 Idem.
7 Ibidem, p. 20.
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226 Eduardo Pellejero
- 3-
“Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo
o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se
eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro.”
8 Ibidem, p. 17.
9 Ibidem, p. 21.
10 A questão de se ainda somos capazes ou não da distância crítica necessária para colocar em
causa as representações hegemónicas que incautaram o real é colocado por Badiou a partir do
mito da caverna de Platão: “A alegoria da caverna representa para nós um mundo fechado sobre
uma figura do real que é uma falsa figura. É uma figura do semblante que se apresenta para todos
os que estão trancados na caverna como a figura indiscutível do que pode existir. Talvez seja essa
a nossa situação” (Badiou, A., op. cit., p. 12).
11 Berger pensa a restituição do real pela pintura como uma luta contra as visões convencionalis-
tas e naturalizadas da realidade, assim como contra a captura do desejo por fantasias consumistas.
Também pensa de uma forma similar Hal Foster (Foster, H. O retorno do real: A vanguarda no final
do século XX. São Paulo: Ubu, 2017, p. 157).
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“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 227
-4-
14 A literatura é esse esforço que se concreta em cada obra de atingir o fora, mas nenhuma obra
é esse esforço realizado – a literatura é infinita ou impossível (sempre por vir): uma aproximação
assintótica à sua essência (determinada e traída em cada obra): “Dizer: a experiência da literatura
é ela mesma experimento de dispersão, é a aproximação do que escapa à unidade, experiência
do que é sem entendimento, sem acordo, sem direito - o erro e o fora, o inacessível e o irregular.”
(Blanchot, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 301)
16 Ibidem, p. 24.
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228 Eduardo Pellejero
18 Não é necessário apelar à mística (nem sequer à mística do real) para pensar no que é e
significa uma literatura feita de (ou a partir do) silêncio. O inexpressado e o inexpressável são
formas desse fundo que a palavra poética sonda na sua tentativa de apreender o sentido que se
insinua no mutismo das coisas e que de alguma maneira pede para ser significado. De um modo
mais geral, o silêncio remete para a contingência, para a ambiguidade do real e a imprevisibilidade
da vida: qualquer coisa que resiste ao simbólico mas perpassa e perturba a ordem dos signos. Por
fim, o silêncio também pode ser pensado sob as formas do obliterado e do reprimido, do silen-
ciado. Evidentemente, esses modos de entender o silêncio não pretendem esgotar as relações que
a literatura trava com o mesmo - a questão do silêncio abre um horizonte de pesquisas para nós.
19 “[A experiência do fora própria da literatura] é a experiência do fora que se abre no interior
da própria linguagem, um fora de todo o discurso significativo que, no entanto, não constitui um
limite da linguagem, dado que se trata de uma abertura que a ilimita do interior.” (San Payo, Patri-
cia. “O ‘fora’ de Blanchot: escrita, imagem e fascinação”. In: Anghel, G. & Pellejero, E. ‘Fora’ da filo-
sofia: As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze. Lisboa: CFCUL, 2008, p. 17)
20 Merleau-Ponty, M. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” [1952]. Em: Signos. São Paulo:
Martin Fontes, 1991, p. 43
21 Saer, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2004, p. 117-119.
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-5-
25 Nos seus estudos sobre a psicose, Lacan dirá que “tudo o que é recusado na ordem simbólica,
no sentido da Verwerfung, reaparece no real” (Lacan apud Roustang, François. Lacan - Do equívoco
ao impasse. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 52). E, ao longo da sua obra, o real virá a referir-se
cada vez mais às impossibilidades e aos vazios do simbólico, até, “à força de pensar o real como
sendo o impossível, o inapreensível, o inassimilável, o impensável, ele já não é um obstáculo à
simbolização, à satisfação, à formalização, já não é sequer essa falha que é circundada pela compa-
cidade, toma-se o zero absoluto e não se relaciona com nada” (Ibidem, p. 84).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
230 Eduardo Pellejero
nos perturba ou nos comove, nos mobiliza ou nos põe a pensar26. Já Bergson
advertia que, mesmo quando todas as representações sejam particulares e
arbitrárias, a nossa inclinação a fazer representações é universal e necessária27.
E o próprio Barthes reconhecia que uma das forças da literatura é justamente
a sua força de representação: “Desde os tempos antigos até as tentativas da
vanguarda, a literatura se afana na representação de alguma coisa. O quê?
Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é porque os homens
querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da
literatura”28.
-6-
“Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não
entornar o silêncio do ovo.”
27 Cf. Bergson, H. Les deux sources de la morale et la religion. Paris: Puf, 1984.
30 Bolaño, Roberto apud Fresán, Rodrigo. “El secreto del mal y la universidad desconocida, de
Roberto Bolaño”. Em: http://www.enriquevilamatas.com/escritores/escrfresan3.html, 2017.
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“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 231
-7-
“A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da
galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é
um grande sono. A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhe-
cido é o ovo. Ela não sabe se explicar: ‘sei que o erro está em mim mesma’,
ela chama de erro a vida, ‘não sei mais o que sinto’, etc.”
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232 Eduardo Pellejero
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“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 233
38 Foucault dizia num sentido similar que a ficção (conceito que recebe um tratamento dife-
rencial na sua obra) faz com “que o mundo não pare”, entregando-o a “uma nova juventude”,
“restituindo ao rumor da linguagem o desequilíbrio dos seus poderes soberanos” (Foucault, M., op.
cit, p. 504).
39 “O real tem sempre a forma de um exílio (...), ele supõe que nos afastemos da vida ordinária,
da vida comum.” (Badiou, op. cit., p. 41)
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
234 Eduardo Pellejero
-8-
A arte não deposita o real nas nossas mãos como um pertence. Ao contrário
da representação, não tenta pacificar o combate que permeia toda a lingua-
gem - um combate entre as palavras e as coisas, ou, de modo mais geral,
entre o real e os artifícios que produzimos para dar conta do real (artifícios
dos quais depende não apenas a nossa compreensão do mundo, mas também
a nossa vida, o nosso ser no mundo). Inclusive quando abre espaço para a
beleza, isto é, para uma experiência do real à escala humana44, sempre há
algo nela que não deixa de apontar para aquilo que, insinuado através de mil
deslocamentos, resta sempre velado pelos artifícios da forma. Daí a sua lin-
guagem indireta (Merleau-Ponty), o seu olhar enviesado (Blanchot), as suas
imagens esburacadas (Foster), e a sua incessante tentativa de deixar entrever
o fundo informe sobre o qual toda obra ganha forma45.
42 Isto é assim porque a dialética da qual depende a arte para devir-mundo e fazer sentido impli-
ca o engajamento do leitor, do espetador ou do ouvinte.
43 Sartre, J-P. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 2004, p. 49. Não é secundário notar que o
pathos próprio da experiência estética é, segundo Sartre, não o prazer, mas a alegria, isto é, um
sentimento intenso da nossa liberdade, da nossa capacidade para agenciar e re-agenciar os signos
e as coisas.
44 A arte também pode tentar domesticar o real. Isto não é necessariamente tão ruim como
pode parecer. Oferecer-nos do universo uma experiência à escala humana está entre as coisas que
definem a arte desde as suas origens. Porém isso não significa necessariamente um descuido para
com o real, não implica que a arte não seja nesses casos perturbada pelo real (cf. Foster, op. cit.,p.
141). De novo, há um compromisso com o real quando a arte é autêntica, a arte está ao serviço do
real (Ibidem, p. 145).
45 Hals Foster se pergunta: o que pode significar representar o irrepresentável, expor na cultura o
que se opõe à cultura, trazer o inconsciente à consciência? Deslocamentos, sempre deslocamentos
(metáforas, metonímias, sinédoques, condensações, anamorfoses, etc.).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 235
Referências
BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2013.
BECKETT, S. Worstward Ho. Nova Iorque: Grove, 1983.
BERGER, J. Passos em direção a uma pequena teoria do visível. In: ______. Bolsões de
resistência. Lisboa: Editorial Gustavo Gilli, 2004.
BERGSON, H. Les deux sources de la morale et la religion. Paris: Puf, 1984.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
46 Cf. Raulet, G. Le caractere destructeur, Esthettique, tehologie et politique chez walter benjamin.
Paris: Aubier, 1997.
47 Por exemplo, em Passolini: “Já na própria vida de Pasolini aponta o que eu chamaria de o
tormento solitário de uma busca desesperada pelo real” (Badiou, A., op. Cit., p. 37).
48 Ibidem, p. 40.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
236 Eduardo Pellejero
BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CORTÁZAR, J. Obra Crítica. Madrid: Alfaguara, 1994.
DÜESBERG, F. A experiência trágica por Hans-Thies Lehmann na encenação ‘Estrada V’
baseada em Heiner Müller. Natal: UFRN, 2017.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
Pedro Hussak van Velthen Ramos*
Resumo
Este artigo pretende esclarecer a posição de Jacques Rancière em relação às novas
dinâmicas de organização social, particularmente a relação do seu pensamento
com as grandes manifestações ocorridas no início desta década como a primavera
árabe, o occupy wal street e o 15M espanhol. Em comum, estas manifestações
revelaram uma recusa da política institucional, apostando na autonomia dos
movimentos de rua. Para Rancière, verifica-se hoje uma crise de representação,
revelada no fato de que tais movimentos não foram organizados por partidos,
sindicatos, organizações, etc., mas revelaram a presença da política de qualquer
um. Rancière percebe ali uma nova maneira da realização da democracia fora da
esfera estatal, o que o leva a identificar uma relação profícua entre estética e política,
pois tais manifestações operam uma reorganização da esfera da visibilidade na
medida em que é colocado em jogo um consenso sobre um conjunto de evidências
sensíveis. Por isso, uma manifestação política hoje ganha ares de uma performance
artística, não porque a estética deva substituir-se às reivindicações políticas reais,
mas porque a ausência de uma direção política centralizada libertou a imaginação
política. Tais considerações são a ocasião para discutir as concepções de momento
político e cena, encaminhando para o esclarecimento do paradoxo inerente ao
pensamento de Rancière entre a necessidade da ação política como a única maneira
de se apontar para a transformação social e a ausência de uma teoria que saiba o
sentido da História a fim de poder orientar esta mesma ação política. Finalmente, o
artigo situa as críticas de Rancière com relação às noções de hegemonia e estratégia.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
238 Pedro Hussak van Velthen Ramos
Abstract
This article intends to clarify the position of Jacques Rancière in relation to the new
dynamics of social organization, particularly the relation of his thought with the
great manifestations occurred at the beginning of this decade as the Arab spring,
the occupy wal street and the Spanish 15M. In common, these manifestations
revealed a refusal of the institutional policy, betting on the autonomy of the street
movements. For Rancière, there is a crisis of representation today, revealed in the
fact that such movements were not organized by parties, unions, organizations,
etc., but revealed the presence of the politics of anyone. Rancière identifies a new
way of achieving democracy outside the state sphere, which leads him to identify a
fruitful relationship between aesthetics and politics insofar as such manifestations
operate a reorganization of the sphere of visibility in the sense that a Consensus on
a set of sensitive evidences. Therefore, a political manifestation today gains the airs
of an artistic performance, not because aesthetics should replace the real political
demands, but because the absence of a centralized political direction liberated
the political imagination. Such considerations were the occasion to discuss the
conceptions of political moment and scene in order to clarify the paradox inherent
in Rancière’s thinking between the necessity of political action as the only way to
point to social transformation and the absence of a theory of the meaning of history
in order to guide this same political action. Finally, the article situates Rancière’s
critiques of notions of hegemony and strategy.
Rancière notabilizou-se, nos seus escritos políticos recentes, por ter ultrapas-
sado os limites da academia e influenciado também parte considerável do mo-
vimento social. Esta aproximação deu-se, entre outros motivos, porque seu
pensamento político identificou ser possível constatar, no momento em que
vivemos, falando de maneira geral, um abismo entre o sistema político e as
demandas da sociedade. Isto se dá, tal como nos é relatado em O ódio à demo-
cracia, porque o sistema representativo, na verdade, foi feito não com a ideia
do poder da maioria, mas, ao contrário, para que uma minoria governe, ou
seja, no fundo, a democracia representativa não é outra coisa senão a perpetu-
ação das oligarquias que querem reduzir toda a dimensão da cidadania ao voto.
Neste quadro, no plano da mobilização das lutas, verificou-se nos últimos
anos, guardadas as diferenças dos contextos, um enfraquecimento das orga-
nizações tradicionais, como sindicatos, associações e partidos, e consequen-
temente o aparecimento de movimentos que não se identificam com uma
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 239
O problema hoje, na medida em que a esfera estatal é cada vez mais distan-
ciada de toda forma democrática, é que de certa forma pode-se dizer que ali
onde há democracia, há também, em princípio, a estética2.
Nas manifestações de 2013 no Brasil foi possível verificar muitas dessas in-
tervenções no espaço público. Embora se adotarmos um critério institucional
de legitimação não seja possível chamá-las propriamente de “arte”, estas re-
velaram uma potência estética que pode reconfigurar os modos de percepção
da cidade e da política. A este respeito, é bastante significativo o trabalho
do Coletivo projetação que, usando um suporte técnico relativamente simples
2 Ibdem, p. 104.
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240 Pedro Hussak van Velthen Ramos
Crise da representação
3 Negri, A.; Hardt, M. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis Marques. 2ª.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.
4 Além disso, acrescentaríamos nós, há uma transposição muito rápida de categorias do mar-
xismo sem uma mediação analítica mais elaborada: o partido se converte na rede; o operário no
trabalhador imaterial; a massa na multidão.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 241
Cenas de um litígio
5 « Un moment n’est pas simplement un point évanouissant dans le cours du temps. C’est aussi un
momentum, un déplacement des équilibres et l’instauration d’un autre cours du temps ». Rancière,
J. Moments politiques. Paris: La fabrique, 2009, p. 226.
6 A indiferença é uma das noções centrais de Aishtesis uma vez que aponta para a promessa polí-
tica da estética de não fazer nada. Esta noção aparece na interpretação do texto de Winckelmann,
no qual se acentua o fato de o dorso de Hércules representar o momento de descanso do herói
após os doze trabalhos e também o momento em que, n’O Vermelho e o negro, Julien Sorel está
na prisão, feliz por haver se libertado de todas as intrigas feitas por ele no sentido de alcançar a
mobilidade social. Cf. Rancière, J. Aisthesis: Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011,
pp. 19-40 e 61-70.
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242 Pedro Hussak van Velthen Ramos
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 243
10 Ibdem, p. 47.
11 A cena é “uma pequena máquina ótica que nos mostra o pensamento ocupado em tecer laços
que unem percepções, afetos, nomes e ideias, em constituir a comunidade sensível que estes laços
tecem e a comunidade intelectual que torna o tecido pensável”. Rancière. Aisthesis, op. cit., p. 12.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
244 Pedro Hussak van Velthen Ramos
A política da arte
Como bem mostra Bernard Aspe, Rancière é bastante claro quanto a demarcar
arte e a política como dois polos que, embora se relacionem, pertencem a
esferas distintas12. A arte não pode realizar a promessa da política, apenas a
política o pode. Disto resulta que a crítica de Rancière à utopia revolucionária
da arte, típica das vanguardas históricas13, consiste em mostrar que esta vai
além daquilo que pode a arte. A utopia estética foi responsável por várias
ilusões, como por exemplo, a ideia de que a arte pode de alguma forma
“conscientizar” o indivíduo e engajá-lo na ação política.
Mas se a arte não deve ser confundida com a política tout court, isso não
significa que ela não tenha uma política que lhe seja própria, apenas que ela
se difere quanto à sua forma de realização.
A política é um modo singular de subjetivação de sujeitos que reconfigu-
ram a distribuição policial dos corpos. Por isso, não há um sujeito político
pré-formado: a política constitui-se no momento mesmo de sua realização.
Em outras palavras, a política depende da ação, de uma ação que produza
uma cena de litígio.
Mas se a política possui uma estética, o que dizer da política da arte? Como
asseveramos, a arte é política não porque um artista defende tal ou qual po-
sição para colaborar com uma determinada causa, mas porque ela é capaz de
produzir um tecido sensível comum.
12 Aspe, B. Révoluiton sensible. In: Partage de la nuit : deux études sur Jacques Rancière. Paris: Nous,
2015, pp. 29-71. Tradução para o português. ___________. Revolução sensível. Trad. Pedro Hus-
sak. Aisthe, op. cit., pp. 61-88.
13 Rancière, J. Le partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La Fabrique 2014. [2000], pp.
26-45.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 245
16 Rancière, J. La nuit des prolétaires: archives du rêve ouvrier. Paris: Fayard/Pluriel, 2012 [1981].
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
246 Pedro Hussak van Velthen Ramos
Melancolia de esquerda
17 Traverso, E. Mélancolie de gauche: la force d’une tradition cachée (XIXe.-XXIe siècle). Paris : La
Découverte, 2016, pp. 25-70.
18 Rancière, J. Béla Tarr: o tempo de depois. Trad. Luís Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2013 [2011].
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“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 247
Por isso, Rancière clama pela necessidade da ação política para enfrentar
este grande consenso global, buscando claramente afastar-se do desencanto
que assolou parte da esquerda nos anos 1990, e demostrando uma total con-
trariedade a qualquer tipo de fatalismo.
Por outro lado, em consonânia com sua crítica às organizações sociais tra-
dicionais, Rancière recusa-se sempre a responder (não apenas políticamente
como também em termos estéticos) à pergunta: que fazer? Esta postura rela-
ciona-se com a sua própria trajetória intelectual marcada pelo afastamaneto
de sua vinculação inicial ao círculo althusseriano na França nos anos 1960
até o rompimento total com o seu mestre com a publicação de A Lição de
Althusser19. Ali ele se coloca como crítico ferrenho do marxismo tradicional,
sobretudo no que se refere ao papel que este oferece a uma certa ideia de
partido como uma vanguarda que se arrogaria ao saber do sentido da história,
conferindo-lhe a autoridade de dirigir politicamente a classe destinada a rea-
lizar a revolução – o proletariado. Para Rancière, trata-se de uma contradição
entre o desejo de igualdade presente no marxismo e a postura desigual em
que o partido ou um intelectual se coloca em relação a quem ele “dirige”.
Sem dúvida, a recuperação da proposta do ensino universal do pedagogo Jo-
seph Jacotot em O Mestre Ignorante (1987) constitui uma resposta definitiva
a Althusser na medida em que se alude ali a uma regra para a emancipação
que deve constituir-se mesmo não apenas como um princípio pedagógico do
mestre ignorante, mas sobretudo político – todas as inteligências são iguais20.
Não é difícil reconhecer um paradoxo (aliás, uma dimensão fundamen-
tal do pensamento de Rancière) nestas duas dimensões do pensamento de
Rancière: se, por um lado, ele coloca como tarefa atual o enfrentamento do
niilismo pós-utópico na direção da ação política, por outro, ele recusa o papel
do discurso intelectual como legitimador da ação coletiva.
No seu penúltimo livro, En quel temps vivons-nous? Rancière dá uma pista
de como ele pensa a possibilidade de enfrentar este paradoxo e superar a
melancolia de esquerda. Após citar toda a efervescência dos movimentos dos
anos 1960 e o desencanto com a vitória da “revolução conservara” nos anos
1980, ele afirma:
A não ser que adotemos a posição pueril que consiste em dizer que todas
estas derrotas são excelentes porque varreram todas as ilusões diante da
20 Rancière, J. Le Maître ignorant. Cinq leçons sur l’émancipation intellectuelle. Paris: Fayard, 1987.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
248 Pedro Hussak van Velthen Ramos
No livro, Uma conversa com Eric Hazan, Rancière deixa claro que sempre
houve duas opções na luta da esquerda: ou a energia que se volta contra o
poder dominante, ou o esforço da formação de um novo sentido do comum
em paralelo ao poder do Estado. Rancière acredita que a segunda opção – vi-
ver em um outro mundo no próprio mundo presente – esteja mais de acordo
com o que se pode imaginar como a organização das lutas. Em outras pa-
lavras, não se trata mais de lutar para alcançar o poder, mas sim de criar a
comunidade no presente que possa servir como projeção da comunidade que
virá. Neste sentido, não é de se estranhar que movimentos na Europa, com
uma faceta autonomista, tenham encontrado nele uma fonte de inspiração.
Estratégia
Neste sentido, não há dúvida de que Rancière está distante de toda concepção
de luta de conquista de hegemonia, que tem em Gramsci um dos grandes ins-
piradores, mas que hoje ganha uma força renovada graças à defesa de um po-
pulismo de esquerda por pensadores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
Por ocasião de uma conferência de Rancière, na cidade de Universida-
de de San Martín em outubro de 2012, em Buenos Aires, Laclau faz uma
intervenção crítica tocando justamente no ponto22, expondo sua diferença
em relação ao francês, no que toca ao problema do sistema representativo,
ao afirmar que além dos interesses das oligarquias, a representação “puede
representar también algo diferente. Si al nivel de las bases sociales de un siste-
ma encontramos sectores marginales con escasa constitución de una voluntad
21 « A moins d’adopter la position puérile qui consiste à dire que toutes ses défaites sont
excellentes puisqu’elles ont balayé toutes les illusions devant la réalité nue de la domination, il
faut partir de là : le premier problème aujourd’hui n’est pas d’essayer d’aller plus loin en avant
mais d’aller à contre-courant du mouvement dominant ». Rancière, J. En quel temps vivons-nous?.
Paris: La Fabrique, 2017, p. 34. Muito provavelmente quando Rancière está falando que a respos-
ta ao pós-89 não pode ser que a esquerda tem a “vantagem de poder atuar ilusões” é uma referên-
cia a Daniel Bensaïd, a quem Traverso dedica a última parte de seu livro. Cf. Traverso, Mélancolie
de gauche, op. cit., pp. 175-212.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 249
23 While providing a sense of purity and nobility in defeat, withdrawing the politics of emancipation
(itself hardly a unified entity) from strategic and agonistic field, in which it would be enmeshed with the
politics of conservation, interest, inequality, conformity or management, makes a reckoning with the dyna-
mics of historical failure and the possibilities of recomposition well-nigh impossible. Questions of tendency,
opportunity, alliance, strategy, preparation, and so on – that is, questions having to do with the ‘dirty’ dia-
lectic of building-up an alternative together with the means of implementing it – became unintelligible if
what an emancipatory political perspective faces is not a multifarious, even if largely hostile, political field,
but simply not-politics. TOSCANO, A. Anti-sociology and its limits. In: BOWMAN, P (Org). Reading
Rancière. London: Bloomsbury, 2011, p. 218.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
250 Pedro Hussak van Velthen Ramos
Balanço
Que balanço pode-se fazer dos movimentos dos primeiros anos desta década?
Na verdade, são diversos os resultados. Cada país teve um desenvolvimento
próprio, mas sem dúvida a política desde então transformou-se.
Uma parte da esquerda tradicional considera que eles acabaram sendo
instrumentalizados e terminaram por favorecer a ascensão de grupos con-
servadores ao poder, mas isso constitui uma não-compreensão das novas di-
nâmicas sociais que já não aceitam ser hegemonizadas pelos partidos. Os
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 251
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
252 Pedro Hussak van Velthen Ramos
Sobre Rancière
ASPE, B. Partage de la nuit: deux études sur Jacques Rancière. Paris : Nous, 2015.
______. Reading Rancière. London : Bloomsbury, 2011.
HUSSAK van V. RAMOS, P.; CAPISTRANO, T. (org.). Dossier Rancière. Aisthe, v. 7, n.
11, 2013. Disponível em : < https://revistas.ufrj.br/index.php/Aisthe >. Acessado em:
25 ago. 2017.
RUBY, C. L’interruption: Jacques Rancière et la politique. Paris: La fabrique, 2009.
Outros
NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Trad.
Clóvis Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.
LYOTARD, J.F. Le différend. Paris: Minuit, 2013 [1983].
TRAVERSO, E. Mélancolie de gauche: la force d’une tradition cachée (XIXe.-XXIe
siècle). Paris: La Découverte, 2016.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
Gustavo Chataignier*
Resumo
Entendendo a instância da representação como normatividade apartada da
experiência, tanto no quesito estético quanto no que tange à deliberação da vida
em comum, pretende-se uma aproximação das esferas artística e política. No
intuito de apontar para a ligação entre ambas as dimensões, mobilizamos algumas
reflexões de Jacques Rancière que podem nos levar a uma chave de leitura onde a
arte suspende todo o princípio de ação, ensejando assim uma ruptura na ordem
da percepção e do aparecer. Neste exercício, ao se privilegiar o cinema, encontra-
se ressonância com a literatura, em romances onde o efeito descritivo rompe com
qualquer necessidade de resolução diegética.
Abstract
Understanding the instance of representation as a normativity separated from
experience, both in the aesthetic aspect and in what concerns the deliberation of
common life, it is intended in this article an approximation of the artistic and
political spheres. In order to point to the connection between these two dimensions,
we mobilized some reflections of Jacques Rancière that can lead us to an explication
where art suspends all principle of action, thus leading to a rupture as weel as in
perception and appearance. In this exercise, when privileging cinema, one can find
resonances with literature, in novels where the descriptive effect breaks with any
diegetic resolution necessity.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
254 Gustavo Chataignier
Introdução
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 255
Da arte pensativa
Afirmar que uma imagem pensa é, desde a enunciação da frase, atribuir algo
a mais à imagem, considerada então para além de objeto do pensamento ou
projeção do sujeito. Isso quer dizer, também, que tal imagem é autônoma em
relação a seu criador, e que os efeitos eventualmente produzidos em uma ex-
periência não remetem a uma referencialidade. Ora, o que caracterizaria essa
espécie de imagens? Segundo Rancière, trata-se de uma zona de indetermina-
ção entre o duplo da coisa e a produção artística. Dito de outro modo, tem-se
um locus entre pensamento e não pensamento, atividade e passividade1. Algo
existe, mas não se sabe de antemão as razões de sua existência.
Fotografia, mas também o cinema, relacionam o procedimento mecânico
com a expressividade criadora (e criada). Se a imagem pode ser reconhecida
é porque emite uma “cifra histórica”; por outro lado, para além das variações
1 Rancière, J. O espectador emancipado. Tradução Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2012 A, p.103.
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256 Gustavo Chataignier
2 Rancière, J. O destino das imagens. Tradução Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012 B, p.35.
3 Ibidem, p.17.
4 Rancière, J. A partilha do sensível. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo: 34, 2009 A, p.32.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 257
6 O vocabulário aqui é kantiano. Para que serve a arte, se pergunta o filósofo de Königsberg?
Ora, para nada, diferentemente da razão instrumental, sempre aplicável e portanto agindo se-
gundo uma utilidade ou finalidade. Preservando a língua filosófica que herdara da tradição com
os termos “utilidade” e “finalidade”, Kant os reorienta em função das especificidades de arte e
sensibilidade. Se “servem” para alguma coisa, tais objetos só se prestam a seguidas reapropriações.
Fazemos imagens que nos orientam, o que explica a “finalidade sem fim”. Ver Kant, Immanuel.
Critique de la faculté de juger. Tradução Alain Renault. Paris: Flammarion, 1995, p.199 e 205-207.
8 Rancière, J. Políticas da escrita. Tradução Raquel Ramalhete. São Paulo: 34, 1995, p.7.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
258 Gustavo Chataignier
9 Rancière, A partilha do sensível, op. cit., p.28-33. A tradição ocidental, segundo a interpretação
de Rancière, apresentaria três grandes regimes de identificação da arte: o ético, o poético (ou re-
presentativo) e, finalmente, o estético propriamente dito. No primeiro caso, a imagem é pensada
segundo sua origem e destinação ou, se se quiser em função de causa e efeito. Nesse sentido, inci-
dem sobre a educação e a ocupação laboral da cidade. A percepção de objetos sensíveis se presta
diretamente à organização (e manutenção) do ethos. Já o regime poético se deixa compreender
pelo par conceitual poiesis e mimesis. A mimesis é de ordem pragmática, ou seja, é um domínio
próprio da fabricação de imitações, distinto da legitimação pelo uso e também da justificativa de
discursos. As artes, isso posto, são separadas então por maneiras de fazer (autonomizando justa-
mente as artes) em conexão necessária com modos de fazer; aqui o corpo sensível remete a algo
para além de si, já estabelecido enquanto código cifrado. A obra ilustra, por assim dizer, uma ideia.
O regime estético propõe por seu turno nova maneira de ser do sensível. Objetos chegam à expe-
riência com uma “potência heterogênea”, um produto para além da intenção e de decisionismos.
A arte deixa de ter regras e temas próprios, concentrando-se na experiência da forma.
10 Ibidem, p.32.
11 Ibidem, p.15.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 259
12 “Para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou, antes, ao indivíduo anôni-
mo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem primeiro ser praticadas e reco-
nhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e difusão. O mesmo princípio,
portanto, confere visibilidade a qualquer um e faz com que a fotografia e o cinema possam ser artes”
(Rancière, A partilha do sensível, op. cit., p.36. Primeiro grifo nosso; o segundo, do autor). Note-se
o primado da experimentação e o “trabalho do positivo”, instaurador de modos de ver e de suas
possibilidades de ruptura.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
260 Gustavo Chataignier
16 Balzac, Honoré de. Sarrasine. In : La Comédie humaine. Paris : Gallimard/ Pléiade, 1976-1981,
12 volumes, volume 6, p.1076.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 261
19 Rancière, J. As Distâncias do Cinema. Tradução Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Con-
traponto, 2012 C, p.56.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
262 Gustavo Chataignier
Cinema e pensamento
Após privilegiar o regime estético das artes e descrever alguns aspectos que
nos parecerem relevantes das imagens pensativas, que não se resumem a
meios técnicos e suportes específicos, dizendo respeito a modos de identifi-
cação, fomos levados ao campo do literário, entendido como procedimento
artístico que recria e renomeia os objetos. Seus efeitos de visibilidade e dicção
se espraiam, portanto, no cinematográfico. Jacques Rancière desenvolve em
detalhe essa ideia, sobretudo em A fábula cinematográfica, cujos argumen-
tos nos propomos agora sucintamente elencar. Todavia, somos levados a crer
que as definições ora analisadas se aproximam. Mais especificamente no que
tange à “imagem pensativa” e à “fábula contrariada” – ainda mais quando as
obras examinadas, em repetido exercício de aproximação e distanciamento,
efetivamente estabelecem relações até então inauditas entre seus elementos.
Adotemos a fórmula segundo a qual uma fábula contrariada é pensativa; por
oposição, uma fábula previsível é representacional.
O cinema é compreendido como a arte da “punção”, da retirada – do
francês prélèvement. Sua eficácia própria, maquínica e simbólica, é negociada
com as demais artes: música, dança, pintura, escultura, teatro e literatura.
O modelo é o da “arte trans”, aquela que passa pelas demais sem a elas se
reduzir. A ideia da suspensão da ação é ressignificada, a “reviravolta” aristo-
télica não detém um telos fixo. Se o cinema engendra “fábulas”, o faz a partir
de “punções” (aproximações) de outras artes, estabelecendo novas fronteiras
(distância fluida). O passado é reinventado no presente. O que está em jogo
não é uma “intriga”, mas as relações entre o visível e o dizível – os modos do
sensível. É, portanto, uma fábula, sim, mas uma “fábula contrariada”. Con-
trariada, pois a continuidade com as antigas expressões artísticas se mantém,
malgrado sua ressignificação. A desfiguração das imagens em movimento
(e com som) não se separa da imitação clássica, bem como a obra acabada
“filme” não mantém relação estanque com o cotidiano, com os elementos
“não artísticos”.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 263
21 “É, pois, agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem,
ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou re-empregado, mas algo a pro-
duzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma
profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria”
(Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Perspectiva,
1998, p.75).
23 Et Tant Pis Pour les Gens Fatigués ! Entretiens. Paris: Amsterdam, 2009, p. 223-239. Rancière
se refere a este dualismo também como a tensão entre as “inscrições carregadas pelos corpos” e
a “função interruptiva” de suas “presenças nuas” (Rancière, O Destino das Imagens, op. cit., p.23).
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264 Gustavo Chataignier
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 265
25 Há ação comunicativa “(...) sempre que as ações dos agentes envolvidos são coordenadas,
não através de cálculos egocêntricos de sucesso, mas através de atos de alcançar o entendimento.
Na ação comunicativa, os participantes não estão orientados primeiramente para o seu próprio
sucesso individual, eles buscam seus objetivos individuais respeitando a condição de que podem
harmonizar seus planos de ação sobre as bases de uma definição comum de situação. Assim, a
negociação da definição de situação é um elemento essencial do complemento interpretativo
requerido pela ação comunicativa (Habermas, Jürgen. The theory of communicative action. Vol 1.
Reason and the rationalizalion of society. Boston: Beacon Press, 1984, p. 285-6).
27 Ibidem, p.66.
28 Ibidem, p.67.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
266 Gustavo Chataignier
30 Nietzsche, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2009, p.12.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 267
com a sétima arte, um cinema de transparências, que faz tudo ver, não é um
cinema de política – mas, isto sim, um cinema de polícia. “Fazer de outra
maneira”, para além de uma abertura destinal de acontecimento intangível,
talvez resida aí a “modesta” proposta rancièreana. Outra sensibilidade deseja
outro mundo. E aqui a obra de arte desempenha papel fundamental.
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
entrevista
Sérgio Bruno Martins***
Luiz Camillo Osorio**
Mas Picasso não fazia isso tudo? Os surrealistas, Michaux, Artaud (aqueles
autorretratos inacreditáveis). Pra não falar na coisa mais wagneriana, de arte
total, ou nas parcerias arquitetura/pintura (Hoffmann-Klimt, por exemplo).
Acho que a ideia moderna de autonomia dos meios convive com o teste con-
tínuo dessa autonomia, o que levava os artistas a situações-limite onde as
linguagens se esgarçavam.
Acho que mais do que mexer com várias linguagens, talvez o que ca-
racterize o meu trabalho seja uma espécie de fome, de quero-mais, num pe-
ríodo, digamos, de grande enquadramento da cultura (e dos costumes). A
viagem entre gêneros ou configurações estilísticas diferentes talvez reforce
esse apetite.
Mas a palavra que você usou, caracteristicamente moderna e tão atacada
– “Autonomia”–, continua importante pra mim. Por mais que a contiguidade
com o mundo fique explícita na discursividade e no entorno de cada obra –
através da Curadoria ou da institucionalização em geral –, no final o trabalho
voa ou não voa. No final você não sabe onde está (o que é ótimo) ou sabe (o
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
272 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
que é péssimo). Prefiro o trabalho que trai, derrapa, não se deixa pegar. Mas
sei que não funciona mais pensar que essa autonomia (a loucura da obra, di-
gamos assim) refluindo diretamente e sem mácula para seus próprios meios.
Ela se mistura ao mundo antes disso, se embaralha toda, navega na mercado-
ria, no discurso e na imagem – mas consegue.
Mas pra responder à sua pergunta de modo mais pessoal – acho que o que
importa medir é o quanto você ganha ou perde ao utilizar determinado gênero.
Por exemplo, comecei como pintor, embora tivesse pouquíssimo preparo para
isso. Acho que com tanto tempo de convívio, com todos os meus enormes
defeitos, o gênero pintura me ajuda ainda – especialmente o contorno literal
do quadro, o retângulo, o campo físico do chassis, posto no chão. Então fico
ali tentando, derretendo aquela gororoba, deixando a matéria cair ali dentro.
Na literatura, ao contrário, o gênero novela, ou romance, parece fugir infin-
davelmente de mim. Quando tento (e já tentei), é sempre um momento de
esterilidade e falsidade. Cada caso é um caso, mas há uma espécie de disponi-
bilidade dos gêneros, como troféus pedindo sentido, que não pertence tanto à
modernidade (que queria refundá-los todos, zerando o relógio), e que é muito
interessante hoje. Acho que dá pra usar isso, ainda mais num país em processo
de arruinamento constante como o nosso – há tantas “formas perdidas”, antes
mesmo de cumprirem seu ciclo, nos esperando! Sinto riqueza e chamado por
toda parte, como se o circuito da especialização não tivesse se fechado e no
entorno desses enormes viadutos, que essa gente inaugura sem parar, tivesse
uns troncos lindos, um vidro quebrado, um cachorro manco, um pedaço de
borracha que, talvez, se eu pegasse um maçarico e derretesse um pouco...
Sérgio Martins - Ao marcar sua diferença em relação a Frank Stella, você diz
que, ao invés de tensionar o plano, toma-o como um receptáculo inerte ou, em
sua própria metáfora, como um pântano. É uma imagem que conota extrema
indistinção, como se o quadro convencional da pintura já não impusesse
qualquer resistência aos atos do pintor, ou qualquer metro pelo qual medir a
validade de suas decisões. Ou será que o problema se inverte: que nesse chão
movediço, como na diarreia do famoso texto do Hélio Oiticica, é que se coloca
o problema de construir uma forma artística capaz de articular sentido?
Gostaria que fosse a sua segunda hipótese. De toda forma, acho que dá pra
dizer que há sempre um chão em meu trabalho, que estas pinturas não pa-
ram de mimetizar e que as esculturas e instalações quase sempre utilizam,
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 273
Pedro Duarte - O crítico Alberto Tassinari já falou de uma tensão entre a forma
e o informe como a característica mais persistente ao longo das variações que
sua obra apresentou no tempo. Você também enxerga o embate entre essa
dimensão extravasante e uma mais de contenção na sua obra? Do ponto de
vista estritamente estético, qual seria para você a origem dessa tensão?
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
274 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
Luiz Camillo Osorio - Em 2010 durante a Bienal de São Paulo, você viveu na
carne os efeitos da intolerância. Sua instalação Bandeira Branca foi retirada
de forma arbitrária e um tanto cretina – em nome do bem-estar de urubus
muito bem tratados e já nascidos em cativeiro. Olhando retrospectivamente,
vemos aí uma espécie de antecipação em relação ao que hoje parece estar
ganhando mais voz pública. Em um artigo esclarecedor escrito por você na
ocasião, retirei uma frase que me parece vir a calhar. Não só como resposta
ao ocorrido lá, mas para pensarmos o nosso momento atual e sua relação
com um futuro menos tenebroso. Você escreveu: “A arte talvez seja a última
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 275
Sim, se mantém totalmente viva para mim. Fiz aquele trabalho, Bandeira Bran-
ca, num momento de euforia nacional (2010), de que desconfiava instinti-
vamente. Quis fazer alguma coisa entre a canção de ninar e o velório, o que
incluiria o país, com seu projeto político, como parece cada vez mais claro,
cheio de limites e contradições, mas também a própria instituição, a maior
delas entre nós, no meio das artes plásticas – a Bienal de São Paulo (que, por
sinal, me apoiou bravamente nesse episódio). Acho que também ela estava
sendo assombrada e velada em meu trabalho. Pois quanto mais as instituições
atacam a si mesmas, ”abrindo-se” para o mundo, querendo coincidir com ele,
e quanto mais os artistas compram este discurso, mais essas instituições se tor-
nam desmesuradamente potentes e prepotentes, substituindo-se àquilo que
deveriam acolher e potencializar – era um pouco isto que eu queria “velar”.
Quase toda arte é uma arte de exceção, no sentido de ser o ponto de
vista de uma singularidade, um não-comum, e neste sentido uma minoria.
A indústria cultural é que produz quase sempre uma “arte de maioria”, pois
foi trabalhada antes de circular em seus parâmetros básicos. Como no Brasil
ela ocupa quase todo o espaço público, estamos desacostumados com a arte
do outro lado, que quando aparece fora do público especializado é imediata-
mente vista como escândalo e perversão. Tudo bem que seja vista assim, mas
é nesse momento, exatamente, que o circuito deve protegê-la como a exceção
preciosa, a diferença em potência, de que o público precisa, ou precisará. O
papel institucional é zelar por isso, e não substituir-se a isto.
No caso do “Bandeira Branca”, acho que isso aconteceu do jeito certo – eu
fui apoiado pela instituição (a Bienal de 2010), que bancou meu projeto o
quanto pode. Por isso nunca usei a palavra “censura” para me referir ao que
aconteceu – achei tudo aquilo uma burrice “legalizada”, onde um juiz indefe-
riu nosso pedido de continuidade duas vezes (e tivemos que tirar os animais).
Infelizmente, perdemos, mas o circuito se cumpriu, a obra de um lado, a vaia
do outro. É muito diferente de episódios recentes, como o do Santander, onde
a instituição se acovardou, impedindo qualquer disputa. O que o Santander
traiu não foram apenas os artistas que tiveram suas obras censuradas, mas
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
276 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
Luiz Camillo Osorio - Queria retomar um outro aspecto desta sua citação
que é a experiência universalizante da arte. Como lidar com ela junto aos
posicionamentos identitários que tendem a restringir o endereçamento
da arte, fechando o significante em lugares de fala e territórios discursivos
delimitados e com pouca atenção aos movimentos imprevistos? Como
defender as vozes minoritárias sem impedir os deslocamentos e os intervalos
que deixavam as obras falarem para além dos seus lugares e territórios
específicos? Como você vê este problema enquanto artista?
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
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Conversa com Nuno Ramos 279
Sérgio Martins - Nesse mesmo artigo você escreve: “Suspeito que o tropicalismo
tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno, e que
o ciclo de conquistas democráticas provenientes dessa operação tenha já se
encerrado há décadas.” À luz dessa suspeita, e de modo mais geral, é possível
imaginar que uma das dificuldades da arte contemporânea seja a ausência
de uma crítica histórica acerca das categorias críticas e contestatórias que lhe
foram legadas pelos anos 1960 e 1970?
Não consigo ver o Luciano Huck sem perceber uma energia horrorosa, de
humilhação do próximo e do pobre – no entanto, acho difícil encontrar o
tom para enunciar essa obviedade. Acho que perdemos completamente qual-
quer capacidade de recusa e criação de padrões e distinções dentro do que a
indústria cultural oferece. Esse é um demônio que o tropicalismo liberou (se
não me engano, no “Verdade Tropical” o próprio Caetano menciona isso), e
que, se teve um papel democrático (numa sociedade com a divisão de classes
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280 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
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Conversa com Nuno Ramos 281
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282 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins
resposta que me veio lá no fundo, e que não pronunciei por medo de parecer
pedante, foi “because I dont need one”. Hoje acho que essa resposta não viria
mais ao fundo do meu ouvido. “I do need one”, não como um prêmio ou um
punhado de dólares, mas como acesso a uma interlocução diferente. Sinto
que já percorri quase que o circuito inteiro no Brasil, e, como essa entrevista
deve estar mostrando, passo pelo país a cada resposta que dou. Tenho medo
de terminar como o Glauber, que atendia o telefone e antes de dizer alô já
começava: “Eu acho que o Brasil” etc. Qualquer país é uma confluência es-
tranha de explicações, que cumprem certo circuito de retorno – de alguma
forma, tende a fazer sentido, e não queria facilitar demais nesse caminho. No
entanto, é difícil fugir desse lugar, ainda mais agora, quando todos os demô-
nios vieram à tona e, se a gente não bater de volta, não sei onde vamos parar.
Tenho muita dificuldade de entender o que se passa e acho que pela primeira
vez na vida (para usar a frase horrorosa de Regina Duarte) tenho medo. Medo
daquele único medo, o verdadeiro e profundo e sem volta e sem nome – o
da incapacidade de amar, a ponto de sequer odiar. Tenho medo de acordar
num lugar assim, que não mereça sequer a minha indignação. A oficialização
da estupidez em episódios como o do QueerMuseu em Porto Alegre ou o da
performance no MAM de São Paulo apontam para algo desse tipo.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
resenhas
Rafael Zacca Fernandes*
Resenha do livro: Bernd Witte. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero
Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
1 Cf. o controverso, porém referencial, PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de
Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São
Paulo: Annablume, 2006.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
286 Rafael Zacca Fernandes
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
Walter Benjamin nos extremos 287
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
288 Rafael Zacca Fernandes
3 Cf. SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
Walter Benjamin nos extremos 289
Também neste ponto, a biografia escrita por Witte tende a conciliar a divi-
são. A possibilidade de união entre materialismo histórico e teologia judaica
é localizada tanto nas filosofias da linguagem e da história de Benjamin (que
se fundam no ensaio sobre a linguagem de 1916, no livro sobre o Trauers-
piel e nos fragmentos “Sobre o conceito de história”) quanto na progressiva
precarização como intelectual vindo da alta burguesia. Quanto ao dado bio-
gráfico da transformação de classe por que passa Benjamin, Witte articula
dois motivos. Por um lado, exibe um traço “essencial” de deslocamento que
enxerga no filósofo, que, desde a infância, segundo as suas próprias crônicas
berlinenses, não se identificava com o ambiente grão-burguês de sua família,
fato reforçado pela oposição destacada com seu pai, Emil Benjamin, que con-
quistou a fortuna “como leiloeiro e sócio na Casa de Leilões de Arte Lepke, na
Kochstrasse”, e posteriores investimentos no capital especulativo. Por outro
lado, mostra as tentativas de Benjamin de sobreviver como pesquisador e es-
critor autônomo, após ter a sua tese de habilitação, a Origem do drama trágico
alemão, reprovada.
Aqui reluz a biografia de Witte, que neste ponto consegue costurar mo-
tivos intelectuais e biográficos como em nenhum outro, ao explicitar o pon-
to de convergência, em Benjamin, da situação precária do intelectual com a
situação de exploração do proletariado em uma mesma luta pelos meios de
produção. Assim, Witte considera que alguns apontamentos do ensaio sobre
a “Posição social do escritor francês” e do “Autor como produtor” dizem res-
peito diretamente à condição de Benjamin, que vive uma época em que “o
intelectual não representa ‘os interesses mais humanos’ da burguesia, como
na época em que esta última dominava sem ameaças, nem pode assimilar-se a
si mesmo ao proletariado”, revelando, assim, “uma situação de crise histórica
universal”, cabendo ao artista, à arte, ao intelectual e à crítica uma nova fun-
ção. Esta reflexão tem valor tanto para a compreensão da situação do escritor
e do intelectual europeu do século XX, e sua ligação com os movimentos
sociais, quanto ilumina, talvez, a situação precária do escritor e do intelectual
brasileiro, que se origina de condições tão ou mais contraditórias quanto a
descrita por Witte e Benjamin.
Finalmente, como se move Witte naquela querela que divide as opiniões
entre o solitário e o engajado Walter Benjamin? A primeira imagem é a do
escritor que fracassou no amor e se separou terrivelmente de suas amizades
ao longo de toda a sua vida, que não conseguiu concretizar seus projetos
coletivos, que não ingressou para o magistério, que não se engajou em ne-
nhum partido comunista; a segunda, daquele que arquitetou o seu ingresso
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
290 Rafael Zacca Fernandes
para o Partido Comunista Alemão, que foi para a União Soviética e sentiu,
em Moscou, a necessidade crescente de posições mais radicais diante da crise
capitalista, que quando estudante se engajou no movimento estudantil, que
se misturou à intelectualidade e à classe artística francesa em suas idas a Paris,
que tentou até o fim de sua vida saídas coletivas diante da época mais som-
bria da Alemanha. No primeiro caso, costumam figurar nas argumentações
fragmentos do trabalho das Passagens que tratam da necessária solidão que
seu empreendimento demandava, e associações do filósofo com duas figuras
literárias por ele admiradas: mais uma vez Kafka, e Baudelaire, solitários no
século XX e no XIX. Quanto aos partidários de um Benjamin engajado, pulu-
lam as menções ao ensaio sobre o surrealismo (e a exigência de “organizar o
pessimismo”) e à conferência, realizada no Instituto para o Estudo do Fascis-
mo, intitulada “O autor como produtor”.
Quanto a esta questão, Witte não omite os momentos em que Benjamin
tentou se engajar em projetos coletivos, e reforça mesmo o seu ardor em
empenho tanto na militância com o movimento de juventude quanto na von-
tade de se filiar ao Partido Comunista. Entretanto, favorece a imagem de um
Benjamin solitário, ao arquitetar o início e o fim de sua biografia com duas
narrativas-chave: a do jovem “solitário idealista”, que durante a infância, sem-
pre que tinha companhia para as caminhadas, atrasava o passo (mesmo quan-
do acompanhado de sua mãe) e que em vão procurava “o sentido de sua ação
social e o abrigo de uma comunidade”, e a do historiador materialista que
“percebe o fracasso da história”, como alguém que “fracassa ele mesmo”. Nas
últimas páginas, Witte descreve um “materialista dialético, sem esperança nos
homens ou para os homens”, e que “precisa depositar a esperança na catás-
trofe escatológica que irá restaurar o mundo num piscar de olhos”. Com isso,
Witte termina por legar a imagem de um Walter Benjamin solitário, condena-
do a repetir, por vontade ou não, aquele gesto de recusa do jovem que detes-
tava subir as escadas coletivamente na escola secundária. Para uma biografia
que soube amarrar de modo complementar outros pontos “extremos” em que
se moveu a vida e os textos de Benjamin, uma pequena decepção. Ao “fechar”
o sentido da vida de Benjamin – ainda que constituído retrospectivamente,
como uma espécie de inofensivo guia de leitura – com a marca da solidão
como destino, Witte submete uma vida convulsionada pelo século XX e pelas
contradições de classe a uma espécie de essência, e, precisamente neste pon-
to, e não em outros, a biografia de Witte se assemelha às demais biografias de
intelectuais e escritores que associam vida e obra de maneira mítica – forma
de associação evitada, e mesmo combatida, por Benjamin.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
Walter Benjamin nos extremos 291
Referências
WITTE, B. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.
PRESSLER, G. K. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005.
Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: Annablume,
2006.
SCHWARZ, R. Cultura e política, 1964-1969. In: ______. O pai de família e outros
estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
A importância da arte para
a estética em Theodor Adorno
Rachel Costa*
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
294 Rachel Costa
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 295
O que as artes querem dizer com o seu o quê torna-se o como elas querem
dizer algo outro. Seu conteúdo é a relação do o quê com o como. Elas se
tornam arte em virtude de seu conteúdo. Ele necessita do como delas, sua
linguagem particular; ele se dissolveria em algo mais abrangente além do
gênero (p. 43).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
296 Rachel Costa
(....) todas (as artes) tendem para a formação de uma esfera que se con-
trapõe qualitativamente a essa: historicamente elas secularizam a esfera
mágica e sacral. Todas necessitam de elementos oriundos da realidade
empírica, da qual elas se distanciam; e suas realizações, porém, recaem
também na empiria (p. 55-6).
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 297
1 Ferreira, Gloria; Mello, Cecilia Cotrim de; Greenberg, Clement. Clement Greenberg e o debate
crítico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
298 Rachel Costa
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 299
Adorno nota que a estética não se dá como categoria do espírito, como po-
deria pretender a filosofia e, assim, deve se ocupar em determinar o espírito
nas obras de arte. Assim, a compreensão estética do objeto artístico ocorre
em camadas e não se inicia na experiência, ainda que esteja necessariamente
ligada a ela. Apoiando-se no contra-movimento de autonegação do sujeito,
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
300 Rachel Costa
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 301
Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
vária
Do instante à ek-stase:
a mudança na teoria do tempo em Sartre
Fernanda Alt*
Resumo
Este artigo pretende mostrar a mudança que ocorre na teoria do tempo de Jean-
Paul Sartre no fim dos anos 1930. Tal mudança consiste numa reconsideração da
teoria da temporalidade sartriana, até então instantaneísta, para uma concepção
ek-stática, influenciada pela leitura de Ser e Tempo de Heidegger. Consideramos
que evidenciar esta mudança é extremamente importante, não somente porque
nos auxilia a identificar uma periodização que nem sempre é indicada nos estudos
sartrianos, mas principalmente pelo fato de que tal transformação teve um papel
fundamental na elaboração da ontologia de O Ser e o Nada, sobretudo no que diz
respeito à estrutura da facticidade e às análises sobre o passado. Além disso, tal
investigação permite entrever de forma concreta a influência decisiva da filosofia
heideggeriana no pensamento de Sartre.
Abstract
This article intends to show the change that took place in Jean-Paul Sartre’s theory of
time in the late 1930s. This change consists of a reconsideration of Sartre’s theory of
temporality, until then an instantaneist one, to an ekstatic conception, influenced by
the reading of Heidegger’s Being and Time. We believe that highlighting this change
is extremely important, not only because it helps us to identify a periodization that
is not always indicated in the studies of Sartre’s philosophy , but mainly because
this transformation played a fundamental role in the elaboration of the ontology of
* Doutora em Filosofia pela UERJ e Paris 1 Panthéon-Sorbonne (Cotutela). Possui Mestrado, Gra-
duação, experiência clínica e docência em Psicologia; E-mail: fernandaalt@gmail.com.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
306 Fernanda Alt
Being and Nothingness, especially with regard to the structure of facticity and in the
analyses of the past. Moreover, such an investigation allows us to see in a concrete
way the decisive influence of Heidegger’s philosophy on Sartre’s thought.
1 Sartre, J-P., 2010, p. 495. Todas as traduções do francês para o português são livres.
3 Neste contexto vale destacar o trabalho de Vincent de Coorebyter na medida em que ele se
concentra em mostrar, de forma minuciosa, as diferenças entre os escritos iniciais de Sartre e O
Ser e o Nada, dentre elas a mudança na teoria da temporalidade.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 307
5 Ibidem, p.495. Devido ao caráter de esboço destas notas do Diário, vale observar as diferenças
entre certas teses apresentadas nestes cadernos e as do próprio O Ser e o Nada. Enquanto que em
suas notas Sartre equipara temporalidade e facticidade, por exemplo, este não nos parece ser o
caso em sua ontologia, em que a temporalidade é definida como o “sentido da transcendência” do
ser para-si, que é o ser da consciência. Cf. Sartre, 2012a, p. 141.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
308 Fernanda Alt
10 Ibidem, p. 234.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 309
para mim o passado era somente como um aposentar-se: era uma outra
maneira de existir, um estado de férias e de inação; cada acontecimento,
quando seu papel (rôle) havia chegado ao fim, se colocava prudentemente
em seu lugar, por si próprio, em uma caixa e tornava-se acontecimento
honorário: tal a dificuldade de imaginar o nada (néant). Agora, eu sabia:
as coisas são inteiramente o que eles parecem - e atrás delas…não há
nada (rien).12
12 Idem.
13 Ibidem, p. 139.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
310 Fernanda Alt
Vemos aqui duas reflexões: uma impura e cúmplice, que opera uma pas-
sagem ao infinito sobre o campo e que constitui bruscamente [um obje-
to transcendente] através da “Erlebnis” […] outra, pura, simplesmente
18 Ibidem, p. 115.
19 Ibidem, p. 64.
20 Baseado no que Husserl denomina nas Lições de “intencionalidade longitudinal”, a qual Sartre
erroneamente se refere como “transversal” . Cf. Sartre, J-P., 2003, p.97.
21 Há somente uma breve retomada do exemplo husserliano de “refletir na lembrança” Cf. Ibi-
dem, p.100-1.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 311
24 Ibidem, p. 606.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
312 Fernanda Alt
25 Ibidem, p. 468.
26 Ibidem, p. 470.
27 Ibidem, p. 466.
28 Ibidem, p. 1135-6.
29 Cf. Idem.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 313
o efeito desta leitura será sem volta: através de sua ontologia do Dasein,
Heidegger faz Sartre descobrir a ideia de ser-no-mundo, o primado do fu-
turo e a articulação das três dimensões temporais, o que irá liberá-lo da
psicologia fenomenológica das faculdades que ele desenvolvia até então
sobre o tema da reflexividade e da imagem através de um cogito estreita-
mente instantaneísta e de uma intencionalidade limitada à apreensão de
um objeto determinado.32
31 Renaut, A., 1993, p. 44. O mesmo pode ser dito sobre da leitura sartriana de outros filósofos,
como Husserl e Descartes, por exemplo.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
314 Fernanda Alt
34 Cf. §5 de Ser e Tempo.“O tratado de Aristóteles sobre o tempo é a primeira interpretação desse
fenômeno, legada pela tradição. Ele determinou, de maneira essencial, toda concepção posterior
do tempo, inclusive a de Bergson.” Heidegger, M., 2005a, p. 55.
35 Ibidem, p. 123.
36 A estrutura da cura diz respeito a unidade do Dasein que é o efeito de uma temporalização e
não de uma presença subsistente no interior de um tempo externo. Dastur, F., 1990, p. 67.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 315
39 Heidegger, M., 2005a, p. 240. Ponto que é constantemente reforçado por Derrida: “De Par-
mênides a Husserl, o privilégio do presente nunca foi colocado em questão. Ele não o pode sê-lo.
Ele é a própria evidência e nenhum pensamento parece possível fora de seu elemento. A não-pre-
sença é sempre pensada na forma da presença (bastaria dizer na forma tout court) ou como mode-
lização da presença. O passado e o futuro são sempre determinados como presentes passados ou
presentes futuros”. Derrida, J., 1972, p. 36-7.
40 Ibidem, p. 44.
43 Há ainda uma temporalidade originária da historicidade em Ser e Tempo que não diz respeito
especificamente ao Dasein, mas ao povo.
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316 Fernanda Alt
46 Sartre, J-P., 1989, p. 78. Os artigos de crítica literária reunidos em Situations I (redigidos entre
1938-1945), censuram em praticamente todos os autores analisados a incompreensão do tempo
como organização sintética, revelando assim que Sartre pensa, na verdade, contra si mesmo. Si-
mont, J., 1998, p. 62; p. 83-4.
48 Ibidem, p. 108.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 317
49 Ibidem, p. 157.
50 Uma chave importante da mudança da temporalidade, como vimos em uma citação acima,
é justamente o papel decisivo do futuro nesta outra perspectiva temporal. Iremos, no entanto,
acentuar o papel do passado somente no intuito de evidenciar um contraste com o exemplo dado
acima a respeito de A Náusea. Do mesmo modo, nos concentraremos em descrever o caráter ek-
-stático da temporalidade do projeto de ser, que é modo de ser do que Sartre nomeia de ser-para-si,
sem abordar as implicações propriamente históricas da temporalidade, que em O Ser e o Nada
encontram-se ligadas à noção de situação.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
318 Fernanda Alt
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 319
53 Vale ressaltar mais uma vez que se trata de uma leitura sartriana da filosofia de Heidegger, o
qual, por sua vez, não opera no quadro da consciência e para quem tampouco faria sentido falar
em encarnação.
55 Ibidem, p. 142.
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320 Fernanda Alt
56 Cf. Sartre, 2012a, p.141. Mas isto não significa que podemos compreender o modo de ser
em-si a partir de uma perspectiva “extratemporal”, pois este só pode ser investigado pela via da
temporalidade original do para-si.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 321
60 Sujeito entre aspas justamente porque este termo costuma englobar diversas definições, mui-
tas delas pressupondo uma base identitária. Além disso, a filosofia heideggeriana apresenta uma
crítica às filosofias do sujeito de uma maneira geral, denominadas de “metafísica do sujeito”.
62 Sartre, J-P., 2010, p. 320. Já em A Transcendência do Ego a consciência não tinha nenhuma equi-
valência ao Eu. Neste artigo Sartre mostra justamente que o Eu é um objeto para a consciência,
constituído pela reflexão impura. A diferença entre as obras não reside, portanto, na relação do
Eu com a consciência, mas na concepção do fluxo temporal desta última.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
322 Fernanda Alt
64 Ibidem, p. 158.
65 Ibidem, p. 161.
66 Ibidem, p. 159.
67 Reforçamos que não se trata de privilegiar a ek-stase passado, gesto que iria na contramão da
temporalidade ek-stática, mas apenas de contrastar a nova maneira de consideração do passado
com a anterior.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 323
O que o jogador apreende neste instante é mais uma vez a ruptura per-
manente do determinismo, é o nada (néant) que o separa de si mesmo:
eu teria desejado tanto não jogar mais que eu tive ontem uma apreensão
sintética da situação (ameaça de ruína, desespero de meus próximos) como
me proibindo de jogar. Parecia-me que eu havia construído assim uma bar-
reira real entre mim e o jogo, e eis que percebo de repente, esta apreensão
sintética não é mais do que uma lembrança de ideia, uma lembrança de
sentimento: para que ela venha novamente me ajudar é preciso que eu a
refaça ex nihilo e livremente; ela não é mais do que um de meus possíveis,
71 Ibidem, p. 68.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
324 Fernanda Alt
como o fato de jogar é um outro, nem mais nem menos. Este medo de de-
solar minha família, é preciso que eu o reencontre, que eu o recrie como
medo vivido, ele permanece atrás de mim como um fantasma sem osso, ele
depende somente de mim para que eu lhe empreste minha carne. Estou só e
nu como na véspera diante da tentação e, após ter edificado pacientemente
barreiras e muros, após ter me enclausurado no círculo mágico de uma
resolução, percebo com angústia que nada (rien) me impede de jogar. E a
angústia sou eu já que pelo simples fato de vir a existência como consciên-
cia de ser, me faço não ser este passado de boas resoluções que eu sou.72
Este trecho nos indica uma série de pontos importantes, ainda que estes não
sejam aprofundados neste momento do texto sartriano: 1) A preocupação do
autor parece ser a de se opor ao determinismo, ou seja, a relação entre uma
vivência passada e a vivência presente não pode ser do tipo causa e efeito;
2) A vivência passada só adquire o valor de motivação de um ato a partir de
sua assunção atual pelo para-si; 3) Esta assunção é descrita como sendo livre
e criação ex nihilo, o que nos coloca um problema a ser investigado; 4) de
que modo o para-si pode não ser o passado que ele é? É o terceiro e o quarto
ponto que nos interessam neste momento, visto que o trecho acima contém
uma ambiguidade quando o autor afirma ao mesmo tempo uma criação ex
nihilo e uma impossibilidade de não ser o próprio passado simplesmente, isto
é, como o para-si se cria livremente sendo e não sendo o seu próprio passado.
De todo modo, não podemos mais compreender o para-si como não sendo
totalmente o seu passado. Se o projeto é temporalização ek-stática, passado,
presente e futuro fazem parte de uma totalidade temporal que só pode ser
decomposta abstratamente para fins de análise, tal como Sartre o faz em seu
capítulo sobre a temporalidade. A solução oferecida neste capítulo, para dar
conta da relação do para-si como o passado que ele é, consiste no recurso de
dizer que o para-si era (était) seu passado. Para compreendermos este recurso,
devemos entender minimamente a crítica do autor sobre outras formas de se
conceber o passado.
Na investigação sobre o ser da ek-stase passado, Sartre apresenta duas
perspectivas frequentes: a primeira caracteriza justamente o privilégio do
presente que presume o passado não é mais e somente o presente existe; a
segunda atribui ser ao passado: ele existe, mas a título de algo isolado, que
perderia a eficiência sem no entanto deixar de existir. Segundo Sartre, se nos
72 Idem.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 325
73 Ibidem, p. 144.
74 Ibidem, p. 145.
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326 Fernanda Alt
uma relação de ser. Entretanto, o fato de ser o passado também pode ser mal
interpretado se fizermos uma equivalência entre passado e presente, não le-
vando em conta a “heterogeneidade entre o passado e o presente”75. A relação
ontológica que une as ek-stases passado e presente consiste na nadificação
de si que é melhor caracterizada pela conjugação do verbo ser no pretérito
imperfeito do indicativo: era (était)76. O modo temporal era se caracteriza por
ser intermediário entre o passado e presente na medida em que ele “não é […]
nem totalmente presente nem totalmente passado”77; ele indica justamente
a lei ontológica do para-si de ser seu próprio passado, na síntese original das
ek-stases passado, presente e futuro. A este respeito, acrescentamos que a
negação de ser, que caracteriza o para-si, compreendida como nadificação, é
distinta da negação no sentido de não assumir, de não se responsabilizar por
algo, neste caso por seu passado. Esta segunda descrição caracterizaria o que
Sartre considera ser uma negação de má-fé, que se traduz na ideia de que o
para-si “não é o que ele era”, no interior de uma concepção do tempo em que
“o passado não é mais”. A negação no sentido da nadificação, ao contrário, é
a assunção do passado - “jamais negação sem raízes” 78- o que quer dizer que
o para-si só pode existir como processo de nadificação a cada momento de
tudo que ele é, numa concepção do tempo onde o passado é estrutura da
própria existência. Disto decorre a tensão própria ao para-si de ser e não ser
seu passado, o que se revela ao mesmo tempo na impossibilidade de não sê-lo
e na impossibilidade de sê-lo sob o modo de identificação, pois a identidade
é própria de outra região ontológica, a do em-si. Se em A Transcendência do
Ego, a espontaneidade da consciência significava uma existência nova a cada
instante, dissociada de seu passado, a cada instante outra, como não sendo
o seu passado, a mudança na concepção da temporalidade que permite as
novas elaborações em torno do tema em O Ser e o Nada se dá justamente na
encarnação do para-si em sua historicidade e na impossibilidade de não ser o
75 Ibidem, p. 180.
76 Existe aqui uma dificuldade de tradução visto que o verbo être em francês pode designar em
português os verbos ser e estar. No caso das análises sobre o ser do passado, optamos por traduzir
était por era, dado que Sartre estabelece a ligação do ser do passado com o presente como uma
ligação ontológica, logo, necessária. Por esta razão, optamos pela tradução era, já que estava pode
indicar uma situação ou um estado provisório e contingente.
78 Ibidem, p. 238.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 327
seu próprio passado79. Mas isso não significa que as posições anteriores sejam
rejeitadas por completo: a espontaneidade se mantém, mas este criar-se a si
mesmo não pode mais ser compreendido a partir de um desprendimento
do passado, mesmo porque dizer que o para-si não é mais o seu passado é
conceber uma separação entre passado e presente como se fossem instâncias
independentes e não estruturas temporais interligadas entre si80. A partir des-
ta premissa, como vimos, dizer que o para-si não é o seu passado é uma forma
de autoengano, isto é, é uma ação de má-fé. Por outro lado, a tensão do era
mostrou que também não é possível dizer que o para-si é o seu passado: “me
perder nele sob a forma de identificação: é o que me é recusado por essência”,
conclui Sartre81. Parece-nos que, ao invés de considerar as posições anterio-
res como ultrapassadas após as mudanças na perspectiva temporal, melhor é
dizer que elas são constitutivas da tensão mesma de “ser o que não se é e não
ser o que se é”, própria ao para-si.
Por fim, Sartre conserva ainda um lugar para a temporalidade instan-
taneísta em sua ontologia, como tempo derivado e não originário. Neste
contexto, o tempo que se apresenta à consciência irrefletida como uma soma
de presentes é o tempo universal ou tempo do mundo, pois a consciência
apreende a temporalidade cotidianamente não como seu próprio modo de
ser mas no mundo, como um tempo objetivo, isto é, como uma soma de ins-
tantes presentes. Além disso, há em Sartre uma outra maneira de apreender
o tempo enquanto soma de presentes, diferentemente do tempo do mundo
no qual se encontra imersa a consciência irrefletida. Trata-se da temporali-
dade psíquica, produzida pela reflexão impura, que se faz a cada vez que
o para-si busca apreender a si mesmo como duração. Este tipo de reflexão
não apreende o caráter ek-stático da consciência refletida (aquela que é po-
sicionada pela consciência reflexiva), mas - desta vez num gesto próximo
79 E por isso a decisão que deve ser retomada ex nihilo no exemplo do jogador não é propriamen-
te o passado, mas uma nova decisão - assombrada por seu passado - diante da decisão anterior que
aparece agora como tese para a consciência, daí sua aparência de não ter mais a “força” do vivido.
80 O fato de Sartre não abandonar posições anteriores é o que leva Merleau-Ponty, por exemplo,
a criticar O Ser e o Nada com base na consciência nua de seus escritos iniciais. Segundo V. de
Coorebyter, Merleau-Ponty acredita encontrar na ontologia sartriana as mesmas posições de A
Transcendência do Ego e do texto sobre a intencionalidade em Husserl, ambos escritos em 1934.
Coorebyter, V. de., 2000, p. 98. Tendo em vista essa observação de Coorebyter, consideramos ser
de extrema importância confrontar as consequências da mudança da teoria do tempo em Sartre
com as críticas de Merleau-Ponty, tema trabalhado em minha tese de Doutorado “A hantologie de
Sartre: sobre a espectralidade em O Ser e o Nada”.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
328 Fernanda Alt
Referências
82 É importante sublinhar que há uma utilização da ideia de instante em O Ser e o Nada que
não significa esta unidade temporal da concepção instantaneísta da temporalidade. Trata-se de
um acontecimento que provoca uma mudança naquilo que Sartre chama de projeto original ou
fundamental. Cf. Ibidem, p. 520-1.
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Mariana Lins Costa*
Essay on authenticity
Resumo
A partir da compreensão, tomada de Bruce Ward, de que em nosso tempo impera
certa “cultura da autenticidade”, o objetivo do presente ensaio é refletir, em debate
com Lionel Trilling e Charles Taylor, sobre o significado da autenticidade para a
interioridade e o modo de vida contemporâneos. Nesta abordagem, ganha destaque
o pensamento de Friedrich Nietzsche, pois enquanto Trilling identifica o criador
do Zaratustra como um dos principais responsáveis por desenvolver os aspectos
centrais desta virtude, em grande medida, arcaica, ainda que transmutada na
contemporaneidade, Taylor vê nestes aspectos desenvolvidos por Nietzsche não a
virtude da autenticidade em si mesma, mas aquilo que designou como o seu “desvio”.
Com a “revisão” de tal desvio, ensina Ward, Taylor tem, em última instância, a
pretensão de garantir, através da autenticidade, uma espécie de fundamento para
a “obrigação moral de tratarmos uns aos outros com respeito e compaixão” nas
sociedades contemporâneas — o que nos conduz de volta ao velho paradoxo entre
vida e princípio da não contradição.
Abstract
From the understanding, taken from Bruce Ward, that in our time a certain “culture of
authenticity” prevails, the purpose of this essay is to reflect, in discussion with Lionel
Trilling and Charles Taylor, on the meaning of authenticity for the contemporaries
human interiority and way of life. In this approach, Friedrich Nietzsche’s thinking
gains prominence. While Trilling identifies the creator of Zarathustra as one of the
main thinkers responsible for developing the central aspects of this, to a great extent,
archaic virtue, yet transmuted in the contemporary world, Taylor sees in these
* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com período sanduíche na
Laurentian University of Sudbury; E-mail: marianalins_@hotmail.com.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
332 Mariana Lins Costa
same aspects developed by Nietzsche, not the virtue of authenticity itself, but what
he understood as its “deviant form”. With the “revision” of this deviation, Ward
teaches, Taylor intends to guarantee through authenticity a kind of ground to a
“moral obligation to treat others with respect and compassion” in the contemporary
world — which leads us back to the old paradox between life and the principle of
non-contradiction.
Atualmente, não raros autores designam o nosso próprio tempo como aquele
em que impera certa “cultura da autenticidade”. Para Bruce Ward, esta clas-
sificação indica que tanto as manifestações mais elevadas e sofisticadas da
cultura quanto as mais populares e massificantes estão impregnadas por uma
mesma aspiração: ser autêntico, isto é, ser capaz de expressar o verdadeiro eu,
o eu real, que em nada está relacionado a modelos exteriores e que, portanto,
não pode ser formado através da imitação, sendo antes o oposto da imita-
ção.1 “Nascidos originais, como aconteceu de morrermos cópias?”2 – sintetiza
Edward Young, profeticamente, em 1759. De um lado é possível identificar
a ânsia pela autenticidade à busca por “ser-si-mesmo”, à Eigentlichkeit, de-
senvolvida por Heidegger e adotada por Sartre e Simone de Beauvoir, ou
ainda à estética da existência levada a cabo por Foucault.3 Mais contempo-
raneamente, da segunda metade dos 1990 para cá, podemos encontrar este
reconhecimento da centralidade da autenticidade em autores como Charles
Guignon (On being authentic), Jacob Golomb (In search of authenticity: existen-
tialism from Kierkegaard to Camus), Alessandro Ferrara (Reflective authenticity:
rethinking the project of Modernity), Somogy Varga (Authenticity as an ethical
ideal), Agnes Heller (An Ethics of personality), e sobretudo em Charles Taylor
no seu The Ethics of authenticity – que, por sua vez, é declaradamente marcado
por livros dos 1970 e 80 sobre o tema, como: The closing of the American Mind
de Allan Bloom, The cultural contradictions of capitalism de Daniel Bell, The cul-
ture of narcisism and minimal self de Christopher Lasch, L’ère du vide de Gilles
1 Ward, B. Redeeming the Enlightenement: Christianity and the Liberal Virtues. Michigan: William B.
Eermens Publishing Company, 2010, p. 71.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 333
4 Taylor, C. The ethics of authenticity, Massachusetts: Harvard University Press, 2003, pp. 16-17.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
334 Mariana Lins Costa
7 Ibidem, p. 5.
8 Ibidem, p. 3.
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Ensaio sobre a autenticidade 335
14 Embora Trilling não mencione, neste ponto é interessante lembrar que Shakespeare era não só
conterrâneo do contratualista Thomas Hobbes, como também seu contemporâneo.
16 Ibidem, p. 40.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
336 Mariana Lins Costa
18 Idem.
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Ensaio sobre a autenticidade 337
parte, não a ter propriamente inaugurado a oposição entre esses dois modos
de vida ou a passagem da virtude da sinceridade para a da autenticidade, mas
por ter articulado isso que já estava se operando na cultura.21
Segundo Trilling, “algo pode ser aprendido sobre o ideal da autenticida-
de” a partir da sua relação com as qualidades artísticas do belo e do sublime
delineadas por Edmund Burke no seu A Philosophical Enquiry into the Origin
of Our Ideas of the Sublime and Beautiful de 1756. “O sublime e o autêntico
certamente não são equivalentes”, afirma, “mas eles têm um traço em comum,
um antagonismo profundo para com o belo” – isto é, a sinceridade.22 Com
esta relação, Trilling pretende esclarecer o significado do desdobramento da
sinceridade em autenticidade. Através de Burke, o processo de desligamento
para com a moralidade indica a inclinação a certo “estado de selvageria” –
expressão que ele toma de Schiller –, a ânsia pela retomada de certa “força”
que, diferentemente da moralidade diria, de fato, respeito ao natural, sendo
portanto mais primordial do que qualquer moralidade, já que temporal e
essencialmente anterior. Para isso, Trilling se vale dos pares de opostos com
que Burke caracterizou o belo – feminino, agradável, indolente – e o subli-
me – masculino, terrível, ambicioso –, pois com isso chega à relação entre
“sentimento de existência” e “sentimento de ser forte”, aproximando-se de uma
formulação para o significado da autenticidade.23 Se Burke, diz Trilling, é o
“antagonista legendário de Rousseau”, a sua recusa ao belo como uma “qua-
lidade social” se põe de acordo com a crítica rousseauniana sobre o papel da
arte na deterioração do sentimento de existência.24
Diferentemente do que a nomenclatura possa sugerir, o “sentimento de
ser forte” através do qual Trilling elucida o “sentimento de existência” de
Rousseau não está relacionado a uma energia que se exerce sobre o mundo
sob a forma de agressão e domínio,25 mas a uma energia capaz de manter o eu
intacto, como uma totalidade na qual não há oposição entre interior e exterior
23 Ibidem, p. 95.
24 Ibidem, p. 96.
25 Neste ponto, vale mais uma vez nos remetermos a Ward: “Esta autossuficiência [em Rousseau]
é equivalente a uma ‘felicidade plena’ e um bem moral; este último ponto é confirmado, por
exemplo, no estado de paz, ao invés de violência que de um modo geral caracteriza o sentimento
de existência.” (Ward, B., op. cit. , p. 83)
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
338 Mariana Lins Costa
26 Ibidem, p. 99.
27 Hegel, G. W. F. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1999, p. 190.
28 Ibidem, p. 165.
29 Ibidem, p. 168.
30 Ibidem, p. 187.
31 Ibidem, p. 190.
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Ensaio sobre a autenticidade 339
32 Idem.
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340 Mariana Lins Costa
Será possível ouvir nestas palavras de Wilde uma coincidência com a com-
preensão hegeliana da autonomia? A elevação a que ele alça o “ideal helênico”
35 “Quando Rousseau está mais de acordo com o seu verdadeiro eu, ele é ‘bom e justo’ de modo
mais intenso, enquanto, para Nietzsche, as aspas são apropriadas, uma vez que tais palavras são
a voz da moral de rebanho da qual o indivíduo ‘novo, único’ deve ser emancipado.” (Ward, B.,
op. cit. p. 102)
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 341
— como ele diz, dar forma, realizar ou, como poderíamos acrescentar, ex-
teriorizar, concretizar cada sentimento, pensamento, sonho — não seria a
ânsia por uma autonomia que, para Hegel, diz respeito unicamente à época
trágica dos gregos? A virtude da autenticidade indicaria tão somente um re-
torno a um velho ideal de autonomia (ainda que, paradoxalmente forjado na
modernidade)? Uma ânsia pelo frescor da infância da humanidade, o sonho
moderno com o ideal helênico? Estaria aí, na busca pelo frescor, o significado
da recusa a uma moralidade de caráter cristão e racionalista — as “doenças
do medievalismo”, como se referira Wilde? Talvez no fim — ou como dissera
Nietzsche, após a superação do niilismo, que tornará possível a transmuta-
ção do leão em criança. Sob a perspectiva imposta por Trilling, o corte que
destaca a virtude da autenticidade da virtude da sinceridade — corte do qual
Wilde e Nietzsche são os grandes representantes —, não é o anseio por um
tipo de autonomia que se afasta do ideal do homem esclarecido e moral de
Kant, para se aproximar de um ideal luminoso, estético e heróico. Nesta ânsia,
ambas as virtudes se confundem de maneira nebulosa: pois o ideal da felici-
dade conjugal identificado por Trilling em Shakespeare não é incompatível
com uma autonomia que se apresente sob uma roupagem estética e herói-
ca, antes o contrário. A cisão, representada neste excerto de Wilde, parece
encontrar-se no elemento mais “sofisticado” e “rico” que deve ser acrescido ao
ideal helênico— elemento que neste excerto se apresenta unicamente como
exaltação da tentação, como compreensão de que o “pecar”, o transgredir é
o meio de superação, de purificação da própria noção de pecado e com isso
de certa condição heterônoma, a “mutilação do selvagem”. Como informa
Nietzsche ao seu leitor, numa das suas mais conhecidas passagens, o seu
“ofício” não é o de erigir “novos ídolos”, mas de derrubá-los. Os “ídolos”, ele,
por sua vez, esclarece, são “todos os ideais”, e se o seu ofício é destrui-los,
continua, é porque a “mentira do ideal foi até agora a maldição que pesou
sobre a realidade”, tornando a “humanidade” “mentirosa e falsa até o mais
fundo dos seus instintos”. Ao que parece, “a mentira do ideal” propagada por
Nietzsche37 está menos relacionada à exigência de que o espiritual ou interior
se torne concreto, exterior numa singularidade autônoma, do que à negação
de que o “espiritual” ou a “verdade” possa ser dotado legitimamente de um
caráter universal e comum — tal como era o pretendido no caso da exigência
pela virtude da sinceridade cujo problema se dava quando o caráter universal
37 Nietzsche, F. W. Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 18.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
342 Mariana Lins Costa
Conheci homens nobres, ai de nós, que tinham perdido a sua mais alta
esperança. E, então, caluniavam todas as altas esperanças.
Descaradamente, então, viviam prazeres de breve duração e já não lança-
vam meta alguma para além do mesmo dia.
38 Nietzsche, F. W. Assim falou Zaratustra. Tradução Mario da Silva. Civilização Brasileira: Rio de
Janeiro, 2006, p. 70.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 343
Face a tal clamor, talvez soe estranho associar as ideias de Nietzsche a uma
violência tão crua como a contida na etimologia da palavra autenticidade.
Como poderia Nietzsche, um filósofo que é fonte de referência a tantos pen-
samentos e práticas libertárias, uma referência no caminho de tantos “hiper-
bóreos” que se puseram a procurar o seu “verdadeiro eu”, ser o representante
de uma virtude que apesar de nova, em alguma medida, ecoa o seu signifi-
cado etimológico legitimando para a singularidade autêntica o direito à vio-
lência, o que inclui o assassinato e o suicídio? Na sua autobiografia filosófica,
Nietzsche fez inclusive questão de declarar, certamente de modo jocoso, não
ser “nenhum monstro moral”…40 Por outro lado, numa das passagens mais
dramáticas, o seu Zaratustra afirma que o destino do homem que pretende
dar lugar ao além-do-homem, ao vir-a-ser do além-do-homem é o ocaso —
ele diz ensinar “morrer a tempo”…41 Esta associação parece assumir um tom
mais sério quando a compreendemos a partir da pouco sentimental definição
da vontade de poder – que, de acordo com o filósofo, seria a expressão do
caráter primeiro e último de tudo o que existe, quer se apresente diretamente,
quer sob algum disfarce no caso do homem. De antemão é interessante notar
na citação a seguir que o criador do Zaratustra afirma estar indicando “o fato
primordial de toda história”, embora como teoria possa ser considerado uma
“inovação”:
39 Idem.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
344 Mariana Lins Costa
— mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão mar-
cadas de uma intenção difamadora? […] a vontade de poder encarnada,
quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio — não de-
vido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é
precisamente vontade de poder. […] A “exploração” não é própria de uma
sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do
que vive, […], é uma consequência da própria vontade de poder, que é
precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como
teoria — como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se
honesto consigo mesmo até esse ponto!42
42 Nietzsche, F. W. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992, pp. 154-155.
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Ensaio sobre a autenticidade 345
43 Wilde, O. “The truth of masks: a note on illusion”. In: ______. Intention. Project Gutenberg
eBook, 1997, p. 102.
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346 Mariana Lins Costa
47 Idem.
48 Ibidem, p. 28.
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Ensaio sobre a autenticidade 347
53 Ibidem, p. 35.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
348 Mariana Lins Costa
55 Nietzsche, F. W. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, pp. 52-53.
56 Ibidem, p. 95 .
57 Dostoiévski, F. M. Os demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 248.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 349
59 De acordo com Ward é justamente “o Rousseau que investiga a si mesmo e se expressa nas
Confissões e Devaneios, quem Dostoiévski tem em vista na confissão do homem do subsolo, quan-
do se trata da sua busca pela própria individualidade autêntica” (Ward, op. cit., p. 104).
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350 Mariana Lins Costa
60 Dostoévski, F. M. Memórias do subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000,
pp. 32-33; 35-36.
61 Na seção “Dostoevsky’s Dialogic Self” do seu capítulo “Authenticity”, Ward desenvolve como a
elaboração empreendida por Taylor de uma autenticidade dialógica reflete, como seria o caso tam-
bém em Bakhtin, um “otimismo injustificado”, caso se leve em consideração a obra dostoevskiana
em si mesma: “A natureza dialógica do eu revelada por Dostoiévski não é por si só suficiente para
justificar a esperança de que a busca pela autenticidade anda de mãos dadas com o reconhecimen-
to dos nossos laços morais com os outros.” (Ward, B., op. cit., p. 103; p.106)
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 351
Referências
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NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
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______. Assim falou Zaratustra. Tradução Mario da Silva. Civilização Brasileira: Rio de
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62 Autorreferência.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
352 Mariana Lins Costa
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto”.
Bento Silva Santos*
Resumo
Com base nas notas de uma Vorlesung (1918-1919) cancelada de Martin
Heidegger, intitulada “Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval” (GA
[= Gesamtausgabe] 60, 301-337), o artigo aborda aspectos centrais da nota
“Das Absolute” (junho de 1918)1, dedicada ao fenomenólogo Adolf Reinach. Os
Aufzeichnungen (Apontamentos) sobre fenomenologia da religião (1916-1917)
de Reinach inspiraram a fenomenologia do jovem Heidegger no início de sua
carreira docente em Freiburg (1919-1923). Considerando o caráter fragmentário
de ambos os textos (os apontamentos de Reinach e as notas de Heidegger), minha
análise privilegia a apropriação fenomenológica de Heidegger do fragmento de
filosofia da religião “O Absoluto” (GA 60, 324-327). Ao destacar as convergências e
as críticas ao pensamento de Reinach, minha análise também se baseia no contexto
mais amplo das preleções heideggerianas ministradas em Freiburg.
1 Cf. Heidegger, M., Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik In: _____. Phäno-
menologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324-327. O texto comentado por Heidegger propriamente
dito é o fragmento sobre o “Absoluto” de Adolf Reinach. Sobre a problemática dessas notas de um
curso não proferido de Heidegger, cf. Camilleri, S., Phénoménologie de la religion et herméneutique
théologique dans la pensée du jeune Heidegger,2008, p. 67-82; Kisiel, T. Note for a Work on the
‘Phenomenology of Religious Life’ (1916-1919)”. In: McGRATH, S.J. & WIERCINSKI, A. (ed.). A
Companion to Heidegger’s Phenomenology of Religious Life, 2010, p. 309-328.
* Bento Silva Santos é codinome de Jorge Augusto da Silva Santos. Professor do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)/CNPq;
E-mail: benedictus1983@yahoo.com.br
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
354 Bento Silva Santos
Abstract
Based on the cancelled notes of a Vorlesung (1918-1919) of Martin Heidegger
entitled “The Philosophical Foundations of Medieval Mysticism” (GA 60, 301-
337), the article discusses key aspects of the note “Das Absolute “(June 1918)
dedicated to the phenomenologist Adolf Reinach. The Aufzeichnungen (Notes) on
phenomenology of the religion (1916-1917) of Reinach inspired the phenomenology
of the young Heidegger at the beginning of his teaching career in Freiburg (1919-
1923). Considering the fragmented nature of both texts (the notes of Reinach and
notes of Heidegger), my analysis focuses on phenomenological appropriation of
Heidegger’s fragment of the philosophy of religion “The Absolute” (GA 60, 324-
327). By highlighting the convergences and the critiques to Reinach´s thoughts, my
analysis is also based in the broader context of Heideggerian lectures given at the
University of Freiburg.
2 Utilizo as seguintes edições dos fragmentos e dos escritos de Reinach, A. Sämtliche Werke. Tex-
tkritische Ausgabe in 2 Bänden, 1989 (= SW). O primeiro volume apresenta, como primeira parte,
a reedição crítica dos textos publicados de 1905 a 1914 (Kritische Neuausgabe, p. 1-331) e, na se-
gunda parte, os escritos póstumos que datam de 1906 até 1917 (Nachgelassene Texte, p. 335-611).
O segundo volume apresente uma biografia intelectual sucinta de Reinach, mas que compreende
todas as etapas de sua formação e docência. Eis, portanto, as referências sobre os fragmentos:
Aufzeichnungen (= Apontamentos) (1916/1917): A. Zur Phänomenologie der Ahnungen (= Para uma
fenomenologia dos pressentimentos), SW, p. 589-591; B. Notizen auf losen Zetteln (= Notas sobre
folhas esparsas), SW, p. 592-604; Bruchstück einer religions philosophischen Ausführung (= Fragmento
de uma exposição de filosofia da religião) (1916/19197), SW, p. 606-611; Reinach, A. L’Assoluto.
Appunti filosofico-religiosi (1916-1917), 2015, p. 40-97. Cf. também a tradução francesa de textos
que contêm elementos fundamentais do pensamento de Reinach, A. Phénoménologie realiste, 2012.
Para uma abordagem recente dos fragmentos e sua recepção posterior, cf. especialmente Bancalari,
S. Logica dell’epochè. Per un’introduzione alla fenomenologia della religione, 2015, p. 82-104.
3 Reinach, A. Notizen auf losen Zetteln. In: _____, Sämtliche Werke, 1989, p. 592-604;
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Martin Heidegger e o “Absoluto” 355
sua esposa Anna Reinach, aos 23 de maio de 19164. O acesso inicial à primei-
ra cópia dos manuscritos de Reinach foi possível graças à fenomenóloga Edith
Stein. Esta teria comunicado ao seu mestre Edmund Husserl, discutindo com
ele e com Jean Hering sobre o conteúdo dos fragmentos5. Husserl, por sua
vez, pensou imediatamente em Martin Heidegger para conduzir o canteiro
em busca de uma fenomenologia da religião. Nesse sentido, após a morte
de Reinach aos 16 de novembro de 1917, Heidegger teria consultado os ma-
nuscritos deste último em companhia de Husserl, Stein e talvez também de
Hedwig Conrad-Martius. Essa leitura intensa deu-se igualmente no período
da primeira guerra mundial, quando então Heidegger estava em treinamento
para ser membro do exército em Heuberg.
É durante o período que vai do semestre de verão de 1917 até o final
de 1918 que Heidegger começa a redigir um manuscrito sobre a mística
medieval. Este será registrado em 1918 na Universidade de Freiburg com o
título Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval para ser ministrado como
uma Vorlesung acadêmica no semestre de inverno de 1919-1920. Acontece,
porém, que esta Vorlesung formalmente anunciada foi cancelada. Nas notas
da Vorlesung não proferida, Heidegger, portanto, só se debruçou sobre o frag-
mento de filosofia da religião intitulado “O Absoluto”6, ou, mais precisamen-
te, sobre a primeira seção do manuscrito estudado – “Das Absolute” – à qual
seguiam-se duas breves seções denominadas “Estrutura da vivência” e “con-
siderações céticas”7. Dado o caráter lacunoso das observações de Heidegger,
recorrerei ao pensamento de Reinach para clarificar a recepção heideggeriana
dos fragmentos no contexto de uma fenomenologia hermenêutica ainda em
gestação no período friburgense (1919-1923)8.
4 Cf. Reinach, op. cit., 1989, p. 790; Idem, op.cit, 2015, p. 15, nota 19.
5 Apud Kisiel, T. The Genesis of Heidegger’s “Being and Time”,1995, p. 521, nota 15.
6 Reinach, A. op. cit., 1989, p. 606-611; Idem, op. cit., 2015, p. 80-92.
7 Cf. Kisiel, T. op. cit., 1995, p. 523, nota 37. A seção sobre “O Absoluto” tinha sido publicada
inicialmente na introdução de Hedwig Conrad-Martius às Gesammelte Schriften, editadas por Nie-
mayer em Halle em 1921, p. XXXI-XXXVI. Esta era a edição de referência às obras de Reinach
até o ano de 1989.
8 Sobre este período da docência de Heidegger, cf. Fischer, M. Religiöse Erfahrung in der Phäno-
menologie des frühen Heidegger, 2013, p. 327-440; Arrien, S.-J. L’inquiétude de la pensée. L’herméneu-
tique de la vie du jeune Heidegger ,2014, p. 9-18.
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356 Bento Silva Santos
9 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänomeno-
logie des religiösen Lebens, 1995, p. 322-323.
10 Ibidem, p. 325.
11 Ibidem, p. 334.322.
12 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 593 ; Idem, op. cit., 2015, p. 51-52.
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13 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324.
14 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 607 ; Idem, op. cit., 2015, p. 81-82.
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358 Bento Silva Santos
16 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.
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Martin Heidegger e o “Absoluto” 359
Nos atos pelos quais os homens se relacionam uns com os outros (por exem-
plo, os atos da disposição de ânimo [Gesinnung]) pode ser já imanente uma
determinação direcional. Há uma amizade endereçada para o alto (oben)
e uma amizade condescendente; um ódio contra os superiores - e dados
fenomenalmente como superiores - e um ódio contra um sujeito desprezado
e, portanto, dado como estando por debaixo de nós. Tais direcionamentos
determinados dos atos parecem ser, algumas vezes, casuais, outras vezes,
associados a determinados atos de consciência21.
18 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 607 ; Idem, op. cit., 2015, p. 81-82.
19 Bancalari, op. cit., 2015, p. 97.98-100. A crítica da crítica é desenvolvida aqui na obra de
Bancalari.
20 Ibidem, p. 98.
21 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 606 ; Idem, op. cit., 2015, p. 82.
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360 Bento Silva Santos
22 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.
23 Husserl, E., Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes
Buch (Husserliana III/1), 1976, § 44, p. 91-94; § 46, p. 96-99. Trad. bras.: Ideias para uma feno-
menologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Livro Primeiro, 2006: § 44, p. 103-106; § 46,
p. 108-110.
24 Aqui não posso tratar da relação complexa de Heidegger com seu mestre Husserl. Reconheço
que, à luz das evidências textuais proporcionadas seja pela publicação de manuscritos husser-
lianos no quadro da Husserliana, seja pelas obras completas (Gesamtausgabe) de Heidegger, não é
mais possível sustentar uma imagem simplificada de ambos os pensadores. Com base em textos
posteriores (como, por exemplo, em Ser e Tempo § 34), Heidegger critica Husserl precisamente em
relação à prioridade dada pelo mestre à compreensão teorética da existência: nossa relação primei-
ra com as coisas não se reduz a uma simples percepção, como se primordialmente estivéssemos
junto a “sensações” (ouvindo o som isoladamente para, em seguida, o sujeito saltar para o mun-
do); nossa relação está sempre ligada a uma certa experiência vivida do mundo circundante, ou
seja, está referida a um conjunto já dotado de sentido, a um horizonte de sentido ou rede de sig-
nificações. Para uma abordagem das apropriações hedeggerianas de Husserl, ver Adrián Escudero,
J. A la búsqueda de un diálogo entre Husserl y Heidegger. Studia Heideggeriana, p. 9-33, 2016.
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362 Bento Silva Santos
29 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 33-34.
30 Husserl, E. op. cit., 2006, § 24, p. 69: “Toda intuição doadora originária é uma fonte de legitima-
ção do conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na ‘intuição’ (por assim dizer, em
sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado como ele se dá, mas também apenas
nos limites dentro dos quais ele se dá”. Husserl prioriza aqui, antes de tudo, a intuição de essência e
não a expressão. Esta chega só sob a forma de enunciado: “Todo enunciado... nada mais faz que
dar expressão a esses dados [originários] mediante mera explicação e significações”. A expressão
originária é aquela que, mediante um enunciado explicativo, se ajusta exatamente à intuição doa-
dora. O que está em questão aqui é o estatuo da intuição doadora na fenomenologia, mas Heideg-
ger, sem mostrar a insuficiência da intuição como um início absoluto, faz na verdade uma inflexão
do “princípio” de Husserl com base na problematização da relação entre intuição e expressão e a
partir de sua própria compreensão da fenomenologia enquanto “ciência originária” pré-teorética.
Cf. também Arrien, S.-J. L’inquiétude de la pensée, 2014, p. 101-117.
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34 Cf. Jacobsson, M. op. cit., p. 102, citando HEIDEGGER, M. op. cit., 1993, p. 106.
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364 Bento Silva Santos
36 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 326.
37 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324-325.
40 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 606, nota 1 ; Idem, op. cit., 2015, p. 93.97, nota 43.
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Martin Heidegger e o “Absoluto” 365
41 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609 ; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.
42 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609 ; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.
43 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609-610; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.
44 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.
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366 Bento Silva Santos
45 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 605; Idem, op. cit., 2015, p. 79-80.
46 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 608-609; Idem, op. cit., 2015, p. 85-86.
47 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88. Cf. também Camilleri, S. op.
cit., 2008, p. 383.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 367
49 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
368 Bento Silva Santos
51 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 326.
52 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 610; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 369
53 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 610; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. A tradução italiana omitiu
a palavra “Liebe”.
55 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90.
56 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325. Cf. Reinach, A. op, cit., 1989, p. 610; Idem, op. cit.,
2015, p. 89-90.
57 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 385.611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. Cf. também Camilleri,
S. op. cit., 2008, p. 384.
58 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 595; Idem, op. cit., 2015, p. 55-56.
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370 Bento Silva Santos
Existência real não é algo que possa ser averiguado a priori. Assim, por exem-
plo, na prova ontológica de Deus [...] Aqui única coisa que pode nos ajudar é
a experiência. Mas o erro do empirismo reside no fato de desconhecer todas
as outras regiões do conhecimento ontológico. Vivências podem ter evidên-
cia, mas não aprioridade. Em si e por si, a priori não tem mesmo a mínima
relação com o fato de pensar e de conhecer. Esse mal-entendido e essa confu-
são são dos neokantianos (aprioristas). Eles falam sempre da necessidade do
pensamento (Denknotwendigkeit) em vez da necessidade do Ser (Notwendi-
gkeit des Seins). [...] Somente através do entendimento da impossibilidade do
estado-de-coisa (Sachverhalts) oposto é que eu me conscientizo da necessidade.
Mas concluir disso: ‘Então é só necessidade do pensamento, não está correto59.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 371
60 Este termo designa a independência ontológica frente aos atos e à estrutura da subjetividade
finita. Esta modalidade ontológica caracteriza o que Reinach chama de “estado-de-coisas” (Sach-
verhalt). Por exemplo, “vendo a rosa vermelha, eu ‘intuiciono’ [erschauen] seu ser-vermelho, ele
é ‘conhecido’ [erkennen] por mim. Os objetos são vistos e olhados, os estados-de-coisas, em com-
pensação, são intuicionados ou conhecidos”. Na ordem das coisas, a rosa vermelha é um estado
de fato [Tatbestand] positivo ou negativo: a rosa vermelha existe, a rosa é vermelha, o vermelho é
inerente à rosa, a rosa não é branca, não é laranja, etc. Nesse sentido, falamos de existência. No
caso do “estados-de-coisas”, trata-se, porém, de consistência [Bestand] enquanto independência
ontológica e ausência de aderência a uma duração particular. Para uma análise mais detalhada
sobre o “estado-de-coisas”, ver Reinach, Zur Theorie des negativen Urteils. In: _____. op. cit.,1989,
p. 95-140; aqui, 116-118 (tr. fr. La théorie du jugement négatif. In: ____. op.cit., 2012, p. 123-175;
aqui, p. 148-150).
61 Reinach, A. Über Phänomenologie (1914), In: _____, op. cit., 1989, p. 531-550, especialmente
p. 544 (tr. fr. Sur La Phénoménologie. In: _____ op. cit.,,2012, p. 52-53). Exemplo da necessidade
do Ser dado no texto pelo próprio Reinach: “A linha é o mais curto caminho entre dois pontos –
aqui, não tem nenhum sentido dizer que poderia também ser de outra maneira; com efeito, o fato
de ser o mais curto caminho se funda em um ser-assim necessário [...] São a priori os estados-de-
-coisas eidéticos, dos quais as verdades geométricas fornecem um exemplo”.
63 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 595; Idem, op. cit., 2015, p. 55-56.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
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64 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 334.
65 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 14.
66 Ibidem. A expressão Sachverhalt é utilizada por Heidegger também no protocolo sobre “Lu-
tero e o problema do pecado” com o sentido de “situação real e efetiva”<wirklicher Sachverhalt
(dicit id quod res est)” ao se referir à teologia da cruz: Heidegger, M. Le problème du péché chez
Luther (1924). In: ARRIEN, S.-J. & CAMILLERI, S. (éd.). Le jeune Heidegger 1909-1926, 2011,
p. 261.280, nota 21: em oposição ao teólogo da glória, o teólogo da cruz se contenta com as coisas
visíveis mas, paradoxalmente, escondidas na cruz e na paixão.
67 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 94.
68 Ibidem, p. 94-95.
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69 Arrien, S.-J. Foi et indication formelle. Heidegger, lecteur de saint Paul (1920-1921). In: _____
& CAMILLERI, S. (éd.), op. cit., 2011, p. 161.
70 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. Cf. Heidegger, M. Die philo-
sophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänomenologie des religiösen Lebens,
1995, p. 327.
71 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 327.
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parte que vive a relação com a divindade”72. Nos fragmentos redigidos na li-
nha de batalha sobre a natureza da vivência religiosa, como é caso aqui citado,
Reinach não desenvolve todos os pontos de uma abordagem fenomenológica,
mas aqui ele trata do estudo da essência deixando de lado, porém, a análise
do significado73. Ao citar esse texto dos fragmentos, Heidegger não conhecia
a exposição de Reinach na preleção do semestre de verão de 1913 intitulada
“A problemática filosófica da percepção interior”74. Nesta Reinach distingue
cinco estágios de percepção interior. Na última fase da percepção interior
deparamos com a dissecação do objeto (Die Zergliederung dês Gegenstandes),
onde precisamente quase nada restaria da vivência experienciada no primeiro
estágio: a existência despercebida de uma vivência, quando, por exemplo, um
ser humano está alegre ou sente uma pequena dor, embora ainda não perceba
isso. Ao dissecar a vivência pela observação, eu já não veria mais a vivência
na perspectiva de atuação da primeira pessoa, mas a partir da perspectiva
da terceira pessoa. Mas, seja como for, nas análises de Reinach permanecem
perguntas sem respostas: a vivência não percebida na atuação pode tornar-se
objeto de uma observação fenomenológica? Em qual estágio da percepção
inicia-se a investigação fenomenológica? Quanto da vivência original revelada
ainda existe nas modificações possíveis dos estágios posteriores?75
No caso da fenomenologia do jovem Heidegger, a atuação da “vivência”
religiosa tem primazia em relação à abordagem teorética do fenômeno, que
é justamente sua desvitalização ou certa privação de vida (Entlebung). Ora, a
concepção crítica contra esta fratura entre vivência e vivenciado é bem cla-
ra em vários cursos do período friburgense (1919-1923), especialmente nos
volumes 60 (Fenomenologia da Vida Religiosa) e 58 (Problemas fundamentais da
fenomenologia) das obras completas de Heidegger. Quando fala aí, em 1919,
no início de sua docência em Freiburg, de vida (Leben) e vivências (Erleb-
nisse), Heidegger não visa a entidades psicológicas. Ora, interpretar “vivên-
cias” em termos de processos psicológicos e fisiológicos já implica um ato de
72 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 597-598; Idem, op. cit., 2015, p. 61-62.
74 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 386s. Eis os cinco estágios: 1º) A existência despercebida de uma
vivência (das unbermerkte Dasein eines Erlebnisses); 2º A percepção da vivência; 3º) O dar atenção à
vivência; nem todas as vivências percebidas são observadas com atenção; 4º) O observar, isto é, o
contemplar da vivência, onde a vivência torna-se objeto; 5º) A dissecação do objeto.Neste este último
estágio a vitalidade da vivência é completamente perdida: uma raiva observada não é mais raiva.
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77 Heidegger, M. op. cit., 1993, p. 155-156.250. Em seus cursos iniciais em Freiburg (cf. GA 58,
59, 60 e 61), Heidegger transita criticamente entre as concepções de Husserl e Dilthey em relação
ao conceito de Erlebnis, respectivamente: de um lado, para Husserl, considerando-o no plano da
consciência pura, Erlebnis expressa uma mera percepção de tipo gnosiológico (não importando
se é de natureza subjetiva ou objetiva): o que conta aqui é o expurgo de qualquer elemento de
desestabilização histórico-mundano; de outro lado, para Dilthey Erlebnis aponta para uma conexão
vital entre representações, sentimentos, paixões, tendências para valorar, decisões sobre fins, etc.
O abandono do termo Erlebnis e sua substituição pelo termo Erfahrung aparece inequivocamente
no curso do semestre de inverno de 1920-1921 (“Introdução à fenomenologia”), onde experienciar
significa que o impor-se do confrontar-se dá a forma do próprio experienciado. Nesse sentido, o
pensamento de Heidegger não é nem a soma dos conhecimentos em vista do saber, composição
de vivências entendidas como expressão de conteúdos, nem imediata vitalidade e sentimentalis-
mo, mas interpretação fática do pensamento com base nas expressões Faktisches Leben e faktische
Lebenserfahrung: vida fática e experiência fática da vida. Cf. Heidegger, M. Einleitung in die Phäno-
menologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des religiösen Lebens, 1995, 9-14: “A experiência
fática da vida como ponto de partida”. Cf. também Fischer, M. op. cit., 2013, p. 223-247: “Der
schwierige Erlebnisbegriff”, p. 249-325: “Die faktische Lebenserfahrung”.
78 Heidegger, M. Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks. Theorie der philosophischen
Begriffsbildung,1993b, p. 156. Cf. também Zahavi, D., Comment examiner la subjectivité? À
propos de la réflexion: Natorp e Hiedegger. In: ARRIEN, S.-J. & CAMILLERI, S. (éd.). op. cit.,
2011, p. 103-104.
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80 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit.,1999, p. 65: “Nós fomos através da aridez do deserto e, em vez de conhe-
cer eternamente as coisas, aspiramos compreender observando e ver compreendendo”.
81 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit., 1999, p. 65.
84 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit., 1999, p. 109-117: “A abertura fenomenológica da esfera da vivência”.
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
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Referências
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Esta revista foi composta em
Berkeley Oldstyle Book,
miolo impresso em papel off-set 75g/m2,
capa em cartão supremo 250 g/m2,
na gráfica J. Sholna, em julho de 2017