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Organização:

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA PUC-RIO, JAN.-JUN. 2017

Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins


O que nos faz pensar
Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH) – Departamento de Filosofia

Editor
Pedro Duarte (PUC-Rio)

Comissão Editorial
Irley Franco (PUC-Rio); Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-Rio); Déborah Danowski (PUC-
Rio); Luiz Carlos Pereira (PUC-Rio)

Conselho Editorial
Abel Lassalle Casanave (UFSM); André Duarte (UFPR); André Lepecki (Tisch School of the Arts,
NY/EUA); Edgard José Jorge Filho (PUC-Rio); Elsa Helena Buadas Wibmer (PUC-Rio); José
Alexandre Durry Guerzoni (UFRGS); Françoise Dastur (Université de Nice Sophia-Antipolis,
França); Gregory Chaitin (UFRJ); Howard Caygill (Kingston Univerisity, Inglaterra); Markus
Gabriel (Universität Bonn, Alemanha); Marcelo Perine (PUC-SP); Marcia Cavalcante (Södertörn
University, Suécia); Matthias Schirn (Ludwig-Maximillians Universität Munich, Alemanha); Maura
Iglesias (PUC-Rio); Mercedes Torrevejano (Universidade de Valência, Espanha); Newton Carneiro
Affonso da Costa (USP); Oswaldo Chateaubriand Filho (PUC-Rio); Oswaldo Giacoia (UNICAMP);
Oswaldo Porchat Pereira (UNICAMP); Paulo Cesar Duque Estrada (PUC-Rio); Renato Janine
Ribeiro (USP); Ricardo Ribeiro Terra (USP); Roberto Markenson (UFPE); Vladimir Vieira (UFF);
Virginia Figueiredo (UFMG); Wilson John Pessoa Mendonça (UFRJ).

Equipe Técnica
Elir Ferrari - assessor editorial
Gabriel Costa - formatação

Revisão e normalização
Angela Dias

Projeto Gráfico
Marcos Martins Design

Capa e Editoração Eletrônica


estudio \o/ malabares - Ana Dias e Julieta Sobral

Imagem da capa
Nuno Ramos, Fruto Estranho/2010

Catalogação na fonte: PUC-Rio / Biblioteca / DBD

O que nos faz pensar [recurso eletrônico] : cadernos do Departamento de


Filosofia da PUC-Rio. Vol. 1, n. 1, (1989)- . – Rio de Janeiro : Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 1989-
v.

Semestral
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1989) ; título da tela de informação
geral (em 11 de dez. 2017)
Exigências do sistema: conexão com a Internet, World Wide Web browser
e Adobe Acrobat Reader
Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/
ISSN: 0104-6675

1. Filosofia - Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro. Departamento de Filosofia.

CDD: 100
5 Apresentação
Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

9 A obra de arte na época da destruição da metafísica


Virginia de Araujo Figueiredo

35 Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política


João Pedro Cachopo

47 Estética e crítica de arte em Jean-François Lyotard


sumário

Ricardo Nascimento Fabbrini

79 Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir


e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein
Vanessa Teixeira de Oliveira

93 Godard ensaísta, Godard curador


Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

107 Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049


Sérgio Bruno Martins

119 O Monolinguismo do Global


Kaira M. Cabañas

135 Fortuna: Drawing, Technology, Contingency


Ed Krčma

167 O artista improdutivo e a crítica do trabalho na arte contemporânea


Laura Rabelo Erber

179 O intelectual conformista: arte, autonomia e política


no modernismo brasileiro
Rafael Cardoso

203 Estética e comunidade: ocupar o inacabado


Cezar Migliorin e Érico Araújo Lima

223 “Morder o real”: o engajamento antes da sua representação


Eduardo Pellejero

237 “Onde há democracia, há também, em princípio, estética”:


Jacques Rancière e as novas dinâmicas de organização social
Pedro Hussak van Velthen Ramos

253 Contribuição a uma crítica da representação: do diálogo


engendrado por distâncias
Gustavo Chataignier

entrevista
271 Conversa com Nuno Ramos
Pedro Duarte, Sérgio Bruno Martins e Luiz Camillo Osorio

resenhas
285 Walter Benjamin nos extremos
Rafael Zacca Fernandes

293 A importância da arte para a estética em Theodor Adorno


Rachel Costa

vária
305 Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre
Fernanda Alt

331 Ensaio sobre a autenticidade


Mariana Lins Costa

353 Martin Heidegger e o “Absoluto”. A apropriação fenomenológica


dos fragmentos sobre filosofia da religião (1916-1917) de Adolf Reinach
Bento Silva Santos
APRESENTAÇÃO

Arte, autonomia e política

Chegamos ao número 40 da O que nos faz pensar com um dossiê dedicado à


arte, autonomia e política, um número extenso com diferentes abordagens.
Contamos, ainda, com uma entrevista e duas resenhas sobre o assunto, além
da seção Vária, com outros temas. O dossiê desdobra os trabalhos do gru-
po de pesquisa justamente sobre “arte, autonomia e política” cadastrado no
CNPq e que reúne os três editores deste número e alguns orientandos. O
mesmo caráter interdisciplinar do grupo – que, além da filosofia, abrange a
crítica e a história da arte – é visível no rol de autores participantes e temas
abordados, dando a este número da revista um caráter muito particular.
O dossiê é aberto com uma abordagem fortemente filosófica proposta por
Virginia Figueiredo sobre A obra de arte na época da destruição da metafísica,
na qual ela parte da noção de “nacional-estetismo” de Lacoue-Labarthe para
estabelecer as relações entre arte, política e filosofia. Em seguida, o artigo
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política, de João Pedro
Cachopo, apresenta diversos significados da liberdade independente da ex-
periência estética, de acordo com os quais varia também o modo como en-
tendemos sua relação com a sociedade. Ricardo Fabbrini, em Estética e crítica
da arte em Jean-François Lyotard, examina a noção de “perlaboração” tal como
fundamentada pelo autor francês, e a pensa junto à noção de “dialética do
material”, de Theodor Adorno.
Para nossa satisfação, a seleção de artigos deste número dedica grande
atenção ao cinema. Em Êxtase, paródia, montagem: o assassinato de Vladímir e a
teoria da imagem de Serguei Eisenstein, Vanessa Oliveira reflete sobre uma cena
do filme Ivan, o Terrível, considerada pelo cineasta russo um momento-chave
de sua obra artística e teórica. No artigo Godard ensaísta, Godard curador, Pedro
Duarte e Luiz Camillo Osorio falam sobre o desafio do diretor em relacionar
as imagens entre si e citá-las de um modo novo, apontando como ele encar-
na ideias sobre a história e o museu vindas das obras de Walter Benjamin e
André Malraux, respectivamente. A relação entre lembrança e subjetivida-
de tem destaque em Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 de
Sérgio Martins, que parte da ideia de realismo proposta por Eric Auerbach
para considerar a propriedade de se tratar o filme como obra de arte.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
6 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

O dossiê traz ainda mais duas colaborações internacionais, além daquela


de João Pedro Cachopo, já mencionada. Trata-se de um esforço de internacio-
nalização. O artigo sobre arte global, originalmente intitulado Monolinguism
of the Global, de Kaira Cabañas, foi traduzido pela autora em colaboração
com Sérgio Martins e discute criticamente a inclusão da produção criativa de
pacientes psiquiátricos em exposições internacionais de arte contemporânea.
Em Fortuna: Drawing, Technology, Contingency, Ed Krčma, por sua vez, exami-
na a obra de artistas que promovem a hibridação entre o desenho e a tecno-
logia, observando a maneira pela qual os aspectos contingentes são colocados
em foco e quais são suas implicações em contextos da vida contemporânea.
Laura Erber desenvolveu uma reflexão própria sobre O artista improdutivo
e a crítica ao trabalho na arte contemporânea, abordando as limitações e para-
doxos que envolvem a improdutividade no contexto atual.
Por último, o dossiê inclui artigos que atrelam ainda mais diretamente
a arte à questão da política. Rafael Cardoso analisa duas palestras, uma de
Mário de Andrade e outra de Oswald de Andrade, em seu artigo O intelectual
conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro, no qual contex-
tualiza como os dois líderes de nosso movimento de vanguarda reagiram à
pressão da ditadura de Getúlio Vargas.
No artigo Estética e comunidade: ocupar o inacabado, Cezar Migliorin e Éri-
co Lima interpretam politicamente o filme Na missão, com Kadu de 2016.
Eduardo Pellejero, em “Morder o real”: o engajamento antes da sua representação,
busca um diálogo com artistas, críticos e filósofos sobre o compromisso com
o real que precede a formulação poética ou ideológica.
O importante papel que atualmente desempenha a filosofia de Jacques
Rancière para os que desejam pensar arte e política fica explícito nos dois úl-
timos artigos. Pedro Hussak, em “Onde há democracia, há também, em princípio,
estética”: Jacques Rancière e as novas dinâmicas de organização social, esclarece
o posicionamento do filósofo diante de grandes manifestações políticas do
início desta década. Já Gustavo Chataignier, em Contribuição a uma crítica da
representação – do diálogo engendrado por distâncias, aponta a aproximação das
esferas artística e política.
O dossiê conta também com uma entrevista do artista e ensaísta Nuno Ra-
mos, que conversa com Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Martins
sobre arte, autonomia e política.
Temos ainda duas resenhas no dossiê: uma de Rafael Zacca do livro Walter
Benjamin: uma biografia, de Bernd Witte, traduzido por Romero Freitas; e ou-
tra de Rachel Costa do livro Arte e as artes, de Adorno, traduzido e organizado
por Rodrigo Duarte.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
Apresentação 7

Este número é complementado, enfim, por três artigos fora do dossiê,


relacionados na seção Vária: Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do
tempo em Sartre, de Fernanda Alt, que trata da mudança da noção de instan-
taneidade que ocorre da teoria da temporalidade de Jean-Paul Sarte, no fim
dos anos 1930, para uma concepção ek-stática, influenciada por Heidegger;
Ensaio sobre a autenticidade, de Mariana Costa, que articula a noção de Bruce
Ward com as reflexões de Lionel Trilling e Charles Taylor, a partir do pensa-
mento nietzschiano; e Martin Heidegger e o “Absoluto”. A apropriação fenome-
nológica dos fragmentos sobre filosofia da religião (1916-1917) de Adolf Reinach,
de Bento Silva Santos, nos revela a inspiração que Heidegger teve a partir dos
fragmentos de Reinach.
Esperamos, assim, ter conseguido entregar mais uma edição da O que nos
faz pensar repleta de possibilidades de reflexões, desejando a todos uma boa
leitura!

Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins


ORGANIZADORES

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.5-7, jan.-jun. 2017
Virginia de Araujo Figueiredo*

A obra de arte na época


da destruição da metafísica

The work of art in the age


of Metaphysical destruction

Resumo
A decisão de abordar as relações entre arte, política e filosofia, a partir de uma
noção cunhada por Philippe Lacoue-Labarthe, a de “nacional-estetismo”, deveu-se
à ideia de que talvez, no nazismo, as relações entre arte e política tenham atingido
o seu ápice. Obedecendo a um modelo grego antigo, o nazismo pode ser considerado
como o momento histórico de fusão entre a arte e a política, momento no qual o
político se produziu enquanto obra de arte; ou, nas palavras de Schiller, o Estado
foi moldado como a maior de todas as obras de arte. Numa nítida operação de
deslizamento semântico, Lacoue-Labarthe pretendeu, com aquele termo “nacional-
estetismo”, designar a essência do nacional-socialismo e, por isso, foi inevitável
estabelecer uma discussão com a famosa fórmula dupla brecht-benjaminiana da
“estetização do político x politização da arte”. Um dos pontos mais importantes
dessa discussão foi justamente a questão do mito que, segundo Lacoue-Labarthe e
Nancy, escapara a Walter Benjamin, no seu não menos famoso ensaio sobre “A obra
de arte na época da reprodutibilidade técnica”. Ainda segundo os filósofos franceses,
foi o cinema de Hans-Jürgen Syberberg, sobretudo seu filme Hitler: um filme da
Alemanha, que chamou a atenção deles para a perspectiva fundamental do mito
para compreender o programa ou o projeto político do nacional-socialismo.

Palavras-chave: arte; política; mito; nacional-estetismo; Lacoue-Labarthe;


Syberberg.

* Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);


E-mail: virfig1955@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
10 Virginia de Araujo Figueiredo

Abstract
The decision to approach the relations between art, politics and philosophy on the basis
of Lacoue-Labarthe’s notion of “national-aestheticism” was inspired by the supposition
that the relation between art and politics reached its climax in nazism. Indeed,
national-socialism can be taken as following an ancient Greek model and, insofar, as
the historical moment of art and politics fusion, moment in which politics was shaped
as a work of art; or, in Schiller’s words, in which the State was molded as the greatest
of all works of art. As a clear case of semantic shift, Lacoue-Labarthe intended,
with the term “national-aestheticism”, to characterize the essence of national-
socialism, and this inevitably led to a discussion of the notorious Brecht-Benjaminian
formula of the “Aestheticization of Politics vs. Politicization of Art”. One of the most
important issues in this discussion was precisely the question about myth which,
according to Lacoue-Labarthe and Nancy, Walter Benjamin let go unnoticed in
his famous essay “The work of art in the age of mechanical reproduction”. Also
according to both, it was Hans-Jürgen Syberberg’s cinema, specially his film Hitler: a
film fromGermany, that drew their attention to the central role of myth´s perspective
in considering the national-socialistic program or its political project.

Keywords: art; politics; myth; national-aestheticism; Lacoue-Labarthe;


Syberberg.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 11

Sabíamos que o homem ocidental é um assassino


(para dizer a verdade, ele não é o único,
mas soube dar a si meios incomparáveis)1
Philippe Lacoue-Labarthe

Introdução brevíssima

Quando o professor Pedro Duarte convidou-me a participar deste número da


Revista O que nos faz pensar?, que trataria do tema “Arte, autonomia e Políti-
ca”, senti-me, é claro, muito honrada e corri para responder positivamente ao
convite. Aproveito para agradecer a ele, à comissão editorial e, especialmente,
aos organizadores deste número. Continuando esse breve relato, pensei que
o momento seria oportuno para publicar um texto que eu escrevera em 2007,
que nunca veio a público por escrito e que ficara, portanto, meio esquecido.
Diferentemente do título atual, que admito ser bastante pretensioso, o origi-
nal, bem mais modesto, era simplesmente: “O Nacional-estetismo”. Ele foi
lido no dia 15 de maio, no 8º Congresso Internacional de Estética na UFMG,
“Estéticas do Deslocamento”, em Belo Horizonte, num painel intitulado: “Ho-
menagem a Philippe Lacoue-Labarthe”. O painel era composto por mim e
mais dois outros professores e amigos: João Camillo Penna (que apresentou
o texto “Pensar o sacrifício”), da UFRJ, e Bruno Guimarães (“Dos impasses da
estetética”), da UFOP. 2 Nós três, ex-orientandos de Lacoue-Labarthe, tivemos
a ideia de nos reunirmos numa homenagem ao nosso orientador, que morrera
no final de janeiro daquele mesmo ano.
Não preciso dizer que modifiquei tanto o texto que ele se tornou prati-
camente outro. No entanto, o que não mudou foi minha fidelidade à obra
de Lacoue-Labarthe. Justifico este apelo recorrente mais como uma eleição
objetiva e deliberada do que apenas uma idiossincrasia subjetiva, caprichosa
e muito menos decorrente de um gosto ou afeto pessoal! Pois, dentre os mui-
tos modos de enfrentar o problema das relações entre arte, política e filosofia,

1 Lacoue-Labarthe, Ph. La fiction du politique, Paris: Christian Bougois Editeur, 1987, p. 76.

2 Os dois textos de João Camillo Penna e Bruno Guimarães foram publicados em versões mo-
dificadas na Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
da UFRJ, Ano XI, nº 17, julho-dezembro de 2007. Número que prestou homenagem a Philippe
Lacoue-Labarthe. Na reformulação, o texto de J. C. Penna passou a intitular-se “Auschwitz como
tragédia”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
12 Virginia de Araujo Figueiredo

aos quais tive acesso (seria vão citar uma longa lista sempre incompleta de
autores franceses com quem tenho convivido: Lyotard, Nancy, Deleuze, Der-
rida, Taminiaux, Badiou, e mesmo mais recentemente, Rancière), não tenho
dúvida de que foi a reflexão lacoue-labarthiana sobre esse tema especifica-
mente, de todas a mais aguda e a mais extrema. Corajosa! E se hoje, retorno
à expressão “Nacional-estetismo” ou, com outras palavras, ao problema da
apreensão estética da arte pelo nacional-socialismo, é porque fui convencida
pelo autor que, talvez tenha sido, na história filosófica do Ocidente, nunca
antes nem depois, durante o nazismo, o momento no qual a fusão entre arte e
política atingiu o seu ponto máximo! E isso pode ser elucidativo.

As relações perigosas entre Arte, Política e Filosofia

A relação umbilical entre arte, política e filosofia é muito antiga. Talvez, tão
antiga quanto a própria filosofia. E como é comum na relação fraternal, os
laços que ligaram essas irmãs foram mais frequentemente de rivalidade, con-
flito, ódio e inimizade, do que os laços serenos da afinidade, paz, amor e ami-
zade. À guisa de introdução, dentre os vários autores contemporâneos que se
dedicaram à questão, vou destacar Hannah Arendt, que situou a origem dessa
relação de rivalidade na Antiguidade Clássica, isto é, entre os Gregos e os Ro-
manos, e apontou como esses povos reagiram de maneira diferente. Segundo
a autora, se os Gregos se mantiveram ambíguos e nunca se decidiram defini-
tivamente a favor da arte ou da política, os Romanos tomaram uma decisão
clara e definitiva a favor da política em detrimento da arte. Já para nós, os
modernos (contemporâneos), como a nossa herança filosófica é muito mais
grega do que romana, como nosso modo de pensar é arraigadamente fabril,
tendemos a tomar partido da arte (ligada à técnica) em detrimento da política.
Ninguém duvida do privilégio de que goza a razão técnica e instrumental
no nosso mundo ocidental. E talvez seja dele, desse privilégio do fabricar, do
fazer (dentro do qual a arte se encontra, pois, num determinado sentido, ela é
uma poiesis entre outras), que pode ser mais ou menos próximo - dependendo
justamente da ênfase que se queira dar ao vínculo da arte com a política - do
agir (da práxis), que resulte o nosso desprezo pela coisa política, pelos negó-
cios (no Brasil de hoje então nem se fala... a política se tornou mesmo um ne-
gócio no sentido pejorativo, negativo do termo) políticos. Além disso, segun-
do um agudo diagnóstico da mesma Arendt, a respeito daquelas tumultuadas
relações, o político não deixou de ser filosoficamente desprezado ou recalcado,
como efeito de um preconceito metafísico, que herdamos do ressentimento

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 13

platônico contra a pólis. A inspiradora narrativa de Arendt situa a origem do


ressentimento filosófico contra o político no julgamento de Sócrates, quando
este não conseguiu convencer os atenienses de sua inocência. Nesse aconte-
cimento originário, Platão teria experimentado uma amarga e irrecuperável
decepção com a “persuasão.”3 Desde então, o “filósofo” (não apenas Platão,
mas talvez toda a tradição metafísica ocidental) teria se recolhido e preferido
refugiar-se no mundo das ideias, no lugar purificado, distante das contingên-
cias (empíricas e) mundanas.4
Se, do lado do filósofo, o âmbito da política ou dos negócios humanos
havia sido repelido como o lugar da impureza (o que é muito próximo da
impropriedade), em favor de um lugar purificado, das condições ideais (isto é,
quase sagradas) de possibilidade do pensamento, do lado de Arendt, poderí-
amos ver desenrolando-se uma estratégia de resgate da dignidade da opinião
e do juízo, ligados intrinsecamente aos afazeres humanos e à vida política,
em detrimento do conceito a priori e da verdade científica. Se é exagerado
interpretar o seu gesto como o de uma condenação, não será legítimo lê-lo
como uma tentativa de chamar a nossa atenção para o perigo daquela pureza
filosófica? No caso de Heidegger, todo mundo sabe, a atitude de pureza filo-
sófica metamorfoseou-se num grotesco e repugnante ato político. E Arendt,
mais do que ninguém, deve ter sofrido com aquela terrível equação que uniu
um dos maiores pensadores do século XX, por quem ela nutria certamente
uma profunda admiração, com um dos piores e mais sangrentos regimes da

3 Arendt, H. Filosofia e Política. In: ____. A Dignidade da Política, trad. Helena Martins e ou-
tros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p.91: “Para nós, é difícil captar a importância dessa
dúvida, porque “persuasão” é uma tradução muito fraca e inadequada para a velha peithein, cuja
importância política evidencia-se no fato de Peithô, a deusa da persuasão, ter tido um templo em
Atenas. Persuadir, peithein, era a forma especificamente política de falar, e como os atenienses
orgulhavam-se de conduzir seus assuntos políticos pela fala e sem uso de violência, distinguindo-
-se nisso dos bárbaros, eles acreditavam que a arte mais alta e verdadeiramente política era a
retórica, a arte da persuasão.”

4 Nos três parágrafos a seguir, retomei sem muitas modificações meu ensaio: Figueiredo, V. Por
que Hannah Arendt não quis tornar-se filósofa? In: Mulheres, filosofia ou coisas do gênero. Orga-
nizadoras: Márcia Tiburi e Bárbara Valle. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2008, pp. 87-100.
Nele, argumento que uma das alegações possíveis, um pouco banal, diga-se de passagem, para
Arendt não querer tornar-se filósofa, era aquele famoso lugar-comum: “os filósofos vivem no mun-
do da lua”. Conclui também que, para ela, ao contrário da tradição metafísica, valiam os sinais
invertidos: positivo, para a política, para os afazeres empíricos e mundanos; e, negativo, para o
mundo puro das ideias e dos conceitos a priori. Por isso, ela não quis ser chamada de “filósofa”, a
ela bastava ser política sem aspas (refiro-me ironicamente ao modo desdenhoso como Heidegger
costumava diferenciar sua própria noção de política, do conceito politológico, i.e., do conceito
do senso-comum, proveniente da “ciência política”, ao qual sempre, com muito desprezo, ele
acrescentava as aspas).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
14 Virginia de Araujo Figueiredo

história da humanidade. Apesar de querer evitar aqui a questão que, confesso,


me obceca um pouco, que é a adesão de Heidegger ao Nazismo, citarei abai-
xo uma passagem do ensaio de Arendt, à qual retornei também de maneira
insistente, e que nos interessará aqui menos por sua grave suspeita de uma di-
mensão filosófica da questão “Heidegger e o Nazismo”, do que pela associação
entre Platão e Heidegger. Como veremos a seguir, Lacoue-Labarthe também
vai descrever este mesmo arco que atravessa a História da Filosofia Ocidental
(ou numa palavra, mais uma vez: a Metafísica) como um todo, de uma ponta
a outra, do primeiro ao último, do Grego ao Alemão, não por acaso, justa-
mente, filósofos.

Nós, que queremos homenagear os pensadores, ainda que nossa morada


se encontre no meio do mundo, não podemos sequer nos impedir de achar
chocante, e talvez escandaloso, que tanto Platão como Heidegger, quando
se engajaram nos afazeres humanos, tenham recorrido aos tiranos e dita-
dores. Talvez a causa não se encontre apenas nas circunstâncias da época,
e menos ainda numa pré-formação do caráter, mas antes no que os fran-
ceses chamam de déformation professionelle. Pois a tendência ao tirânico
pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant
é a grande exceção).5

Concordando inteiramente com Arendt que é um verdadeiro “escândalo”,


que filósofos tenham sucumbido ao fascínio e à sedução de tiranos e ditadores;
não seguirei seu exame dos possíveis motivos dessa atitude política, em todos
os sentidos, irreparável e imperdoável. Quero apenas chamar atenção para
o modo como a filosofia é tratada nesse ensaio escrito em homenagem aos
oitenta anos de Heidegger: a filosofia é um métier ou profissão que deforma
os seres humanos. No entanto, um pouco adiante, no mesmo texto, há uma
passagem que mitiga um pouco a aspereza daquela caracterização da filosofia
como “déformation professionelle”. Nela, Arendt define e, desta vez, nem crítica
nem pejorativamente, o pensamento como um imaginar6, “como um ato que
nos retira do contínuo das nossas ocupações”. É provável que a inocência e

5 Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: _________Homens em Tempos Sombrios. Tra-
dução de Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 230.

6 Ibidem, p. 228. Embora a tradução em português não nos dê o termo “imaginar”, mas sim “o
poder de se espantar”, o original em inglês diz “the faculty of wondering”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 15

o perigo7 do pensamento residam nessa “essência ficcionante” que Arendt


atribuiu à razão, e que teria também acompanhado a filosofia de Platão a
Heidegger. Por conseguinte, tanto a definição do pensamento como ressenti-
mento com relação à política, quanto sua definição como exercício da imagi-
nação parecem levar à mesmíssima consequência: o inevitável afastamento do
mundo.8 O exercício habitual da imaginação levaria os filósofos para a torre
de marfim dos poetas, onde se refugiariam dos negócios e ocupações mais
comuns dos demais mortais.
Próximo e distante de Arendt, no ensaio “Poética e Política”9, Lacoue-
-Labarthe também associa Platão e Heidegger, contudo evidenciando as po-
sições diametralmente inversas de seus gestos: na cena inicial, platônica, a
famigerada expulsão do poeta da pólis grega, enquanto na cena final, heide-
ggeriana, a exaltação do poético no momento da destruição da metafísica. O
que se repete tanto no início quanto no fim dessa história ou narrativa é a
profunda imbricação entre filosofia, política e poesia. A República de Platão é
apresentada como o “texto inaugural”10 ou como uma espécie de “cena primi-
tiva”, na qual o nascimento da filosofia ou, o que dá no mesmo, a afirmação
da sua soberania, depende de uma delimitação, de uma circunscrição não só
da política como também da arte.11 Segundo Lacoue-Labarthe, o Idealismo e

7 Lembro aqui um dos “lemas” do pensamento heideggeriano. Trata-se de versos nos quais o
poeta Hölderlin definiu a linguagem: “lá onde se encontra o perigo/ lá também cresce o que salva”.
Heidegger recorreu a eles de modo obsessivo.

8 Só pode ser porque todo pensamento dispõe uma armadilha e um paradoxo que Heidegger, O
pensador do conceito de “mundo”, que situou, como todos sabem, o Dasein no mundo, que desig-
nou a “estrutura” Ser-no-mundo como “ontológica e existenciária”, que escreveu: “a arte era pura
e simplesmente a instalação de um mundo”, que considerou a prova da existência do mundo um
“escândalo da filosofia” (Cf. Heidegger, M. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2012, p. 571) e poderíamos estender infinitamente a lista das ocorrências
da (das múltiplas variações desta) noção de mundo, cuja importância em sua obra filosófica é ine-
gável. Portanto, só pode ser o efeito irônico e até perverso de um paradoxo que Heidegger tenha,
junto com toda a tradição metafísica, caído de novo na armadilha do outro mundo, e se refugiado
numa espécie de “mundo das ideias” ou mundo dos “conceitos”.

9 Lacoue-Labarthe. Poética e Política. Tradução de João Camillo Penna e Virginia Figueiredo. O


que nos faz pensar, vol. 8, n.10.2, p. 139-163, outubro de 1996.

10 Idem, p. 139: “O texto inaugural e fundador, vocês já o reconheceram, é evidentemente o


texto platônico. No essencial, os livros II e III de A República. Aí se desenrola, como se sabe, entre
filosofia e poesia (ou como diz Platão: mythopoiesis), uma cena agonística que sob muitos aspectos
pode-se considerar como a ‘cena primitiva’ da filosofia”.

11 Ibidem, p. 140: “Como se deu, mais genericamente, que tenha sido em nome do que a fi-
losofia, no momento de sua instauração, delimitou como o político, que a poesia e a arte, pela
primeira vez, tenham sido visadas na essência, no alcance e na função delas? E que a filosofia,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
16 Virginia de Araujo Figueiredo

Romantismo Alemães teriam constituído uma espécie de “repetição histórica”


daquele movimento (platônico) de inauguração da filosofia, consistindo as-
sim, a exemplo (à imitação dos antigos?) do texto platônico, numa refundação
da filosofia, de novo, profundamente imbricada com o poético e o político.
Essa imbricação entre arte, política e filosofia vai se repetir “na outra ex-
tremidade da história da filosofia”, mas de modo inteiramente distinto, pois
como Hölderlin nos ensinou, na tragédia, “início e fim simplesmente não
mais rimam”12, e a história da filosofia não deixa de ser trágica. Aqui, no episó-
dio final, do desfecho, realização ou acabamento (l´accomplissement) da meta-
física, é quando Heidegger, num gesto oposto ao de Platão, restitui a cidada-
nia ao poeta, e o reintroduz na pólis. E muito mais do que isso, entroniza-o
de maneira solene e, exaltando-o, eleva-o ao posto mais alto da nação: uma
espécie de condutor do povo, Führer, enquanto demite o filósofo e o destitui
gravemente da tarefa do pensamento. Essa destituição da filosofia em favor da
arte e da poesia já se exprimira de modo lapidar na sua conferência “Introdu-
ção à Metafísica”, em 1935: “(enquanto) Hegel olha para trás e fecha um ciclo,
Hölderlin olha para frente e abre outro ciclo”.13 Ali, aquele que não queria
mais ser considerado “filósofo” já cedia à poesia um lugar de honra na cidade,
em detrimento da filosofia. Foi nesse rearranjo antiplatônico das forças ou
potências discursivas que, depois da sua demissão do Reitorado (1934), Hei-
degger começou o seu demorado “acerto de contas com o político”.

Poder-se-ia dizer em suma - e aliás Heidegger o diz quase de maneira


explícita numa passagem do curso de 1942 sobre o hino ‘O Istro’ (p.141
sg. do volume publicado recentemente na Gesamtausgabe) - que na ou-
tra extremidade da história da filosofia, mas estando a história de agora
em diante acabada e Heidegger ocupando, segundo uma topologia (e uma
estratégia) complexas, um lugar diferente do lugar filosófico, Heidegger
repete, invertendo-o, o gesto platônico: ao gesto que abre, filosoficamente,
o campo do político ao excluir ou expulsar (na mais estrita observância

querendo-se legisladora acerca do político, e de antemão acerca da educação do corpo social, viu-
-se obrigada a legiferar prioritariamente em matéria de arte”.

12 Hölderlin, Fr. Observações sobre Édipo. In: Hölderlin & Beaufret. Tradução de Pedro Süs-
sekind, org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 80. Para um desenvolvimento
desse tema da história da filosofia como tragédia ou catástrofe, ver Penna, J.C. Auschwitz como
tragédia. Terceira Margem, nº 17, p. 222-249, Rio de Janeiro, julho-dezembro de 2007.

13 Heidegger, M. Introdução à Metafísica. Tradução de E. Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 1987, p. 151.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 17

do rito) o poeta, a fim de assegurar que tal campo fosse rigorosamente


ordenado ao saber sobre o ser do ente e a mais nada além disso (aí está o
sentido da ‘soberania filosófica’, ou aí está o que leva Platão a dizer que
As Leis são os mais belos poemas trágicos), responde o gesto daquele que,
retirado da filosofia dentro da própria filosofia (o que vale dizer: retirado
do político no ‘acerto de contas’ político e no discurso político que mantém),
ataca obstinadamente a última das soberanias filosóficas, que é no caso, na
versão alemã do político, a soberania nietzscheana, e reintroduz o poeta,
a palavra poética, como aquilo ao qual seria urgente e necessário que o
político se ordenasse. Na temática e no estilo de Heidegger nesta época, a
explicação política, isto é, o acerto de contas com o político, enuncia-se
regularmente na primeira pessoa do plural (‘nós, Alemães’) ou ganha a
forma de um ‘endereçamento’ aos Alemães. Este endereçamento se apoia
mais frequentemente em Hölderlin, e se pronuncia em seu nome: Hölderlin
é ‘o poeta cuja obra é uma dívida que os Alemães ainda necessitam quitar’
(eis aí praticamente as últimas palavras da conferência sobre ‘A origem da
obra de arte’).14

No início de “Poética e Política”, Lacoue-Labarthe chama a nossa atenção


para o fato de ser a “cena primitiva” uma “cena agonística”, isto é, uma cena
de combate e disputa retórica. Essa última referência nos interessa bastante
porque ela aponta para a origem mimética 15dessas três jurisdições ou, na
falta de um termo melhor, dessas três “modalidades discursivas”, ou ainda,
desses três modos rivais de apropriação do mundo: filosofia, arte e política.
Isso quer dizer que, tanto quanto compreendo a hipótese do filósofo francês,
com a qual estou inteiramente de acordo, é nesse território comum e origi-
nário da disputa, onde talvez se revele a essência de cada uma dessas irmãs
rivais ou onde se delimitem judiciosa e não amigavelmente suas respectivas
fronteiras. Com outras palavras, talvez, a “verdade do político” não seja um

14 Lacoue-Labarthe, Ph. Poética e Política. Op.cit., p. 144-145.

15 Cf. Lacoue-Labarthe e Nancy. O mito nazi seguido de O espírito do nacional-socialismo e seu


destino. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002, nota (27) do
tradutor, p. 87: “O conceito de ‘rivalidade mimética’ provém de René Girard. Por exemplo, cf.
A violência e o sagrado (São Paulo: Paz e Terra, 1998). Para Girard, o desejo se estrutura a partir
da rivalidade, na ambiguidade entre amar e querer ser (o/a amado/a), desejar e ocupar o lugar
do/a amado/a, ao mesmo tempo objeto de desejo e obstáculo para sua realização. A imitação dos
modernos, expressão utilizada como título de uma coletânea de ensaios de Lacoue-Labarthe, por
oposição à “imitação dos antigos”, da querela entre antigos e modernos, repousaria numa relação
mimética desse tipo”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
18 Virginia de Araujo Figueiredo

conceito político,16 assim como a essência da arte talvez não a alcancemos


em qualquer Filosofia da Arte ou Estética. Resumindo: é possível que seja
somente aí, nessa cena da disputa, que encontremos uma determinação mais
essencial não só da arte, da política, como também da filosofia, isto é, na
medida em que elas se determinem reciprocamente, como quem marca um
território, domínio de uma jurisdição ou, com termos mais kantianos, na
medida em que elas se deem reciprocamente suas condições de possibilidade de
existência, se isso fizer sentido para o/a leitor/a.
No meu entender, foi isso o que Lacoue-Labarthe conseguiu ler no “acerto
de contas” de Heidegger com o Nazismo, na época em que Heidegger, reti-
rado da política, dedicou-se ao ensino. São dos anos 1934-36 os seminários
sobre Hölderlin, Nietzsche e Schiller (As cartas sobre educação estética); tam-
bém ocorrem, nesses anos, as três importantes conferências sobre “A origem
da obra de arte”. Num certo sentido, seu projeto da “superação da estética
(Überwindung der Ästhetik)” não tentava outra coisa senão arrancar a arte de
sua “apreensão estética”, lugar no qual ela foi posta pela tradição da Estética
e da Filosofia da arte, lugar no qual a arte sucumbiu, perdeu sua potência ou,
segundo o famoso veredicto hegeliano, no qual ela simplesmente morreu. Foi
naquela busca de Heidegger por uma determinação mais essencial da tékhne
(ou da arte), que Lacoue-Labarthe encontrou “um acesso privilegiado, e tal-
vez o único acesso possível, à essência do político que vela e desvela conjun-
tamente o nacional-socialismo.”17

16 Cf. Lacoue-Labarthe, Ph. La fiction du politique. Op.cit. p. 114-115. Segundo nosso autor, foi
certamente Hannah Arendt quem percebeu que o nacional-socialismo, diferentemente do despo-
tismo de tipo stalinista, resistia aos “meios da análise política e ideológica”. Foi ela que “mostrou
de maneira luminosa [...] que o nacional-socialismo, em nenhum momento, apresentou-se como
uma política determinada [...] mas como a verdade do político. E por isso mesmo, ele expôs com
muita clareza, e logo a obscureceu, a essência não política do político que nenhuma ‘politologia’,
nem mesmo nenhuma filosofia política está à altura de compreender. Mas se se deve buscar essa
essência do político do lado da arte, nenhuma estética nem tampouco qualquer filosofia da arte,
são capazes de destrinçar o elo indissolúvel (intranchable) da arte e do político, porque suas cate-
gorias, praticamente todas extraídas do platonismo, tem o pressuposto, logo de saída, dominante
em toda a tradição, que o político (a ‘religião’) é a verdade da arte.”

17 Ibidem. P. 115.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 19

Portanto, foi conduzido por Heidegger que Lacoue-Labarthe chegou ao


termo nacional-estetismo,18 a esta “monstruosidade semântica” 19, como ele
mesmo reconheceu. E explica: o “nacional-socialismo é prisioneiro não de
uma estética, mas da estética – da apreensão estética da arte.” 20 À pergunta:
o que significa, afinal de contas, essa “apreensão estética da arte”?, podería-
mos responder, de modo bastante resumido, através de uma história geral da
arte ou da Estética, que a “estetização da arte” foi um processo iniciado na
Modernidade, resultante da separação (ou “autonomia”, se se quiser valorizar
essa contribuição da época moderna) da esfera estética, tanto da moralidade
quanto do conhecimento. Esse processo, que se explicitou e se consolidou
de maneira inequívoca na filosofia crítica de Kant, foi recebido com muita
reserva e criticamente por Heidegger: “a modernidade”, ele se queixou, é o
momento “[d]a entrada da arte no horizonte da estética.”21 Heidegger jamais
se conformou com a dependência do belo e da arte a um “sentimento”, como
fora estabelecido pela Estética de Kant. Ele sempre temeu reduzir o belo e a
arte à esfera da fruição/produção individual; numa palavra: reduzir a arte (ou
o belo) à subjetividade! Cheguei a sugerir que a apropriação heideggeriana da
Estética de Kant poderia ser denominada, de modo aparentemente paradoxal,
de “desestetização da arte”.22 Em contrapartida, pode-se constatar o quanto a
versão kitsch da arte no nazismo é tributária daquela mesma estetização, levada
a seu paroxismo. Ou, como abrevia Lacoue-Labarthe, o nacional-socialismo

18 Lacoue-Labarthe, Ph. L´esprit du National-Socialisme et son destin, conferência pronunciada


em 12 de maio de 1995 em Freiburg, Alemanha, no colóquio Postmoderne und Fundamentalis-
mus – Neue semantische und politische Frontstellungen. Em setembro de 2000, essa conferência foi
também ministrada na FAFICH/UFMG, Belo Horizonte. Em 2002, foi traduzida para o português
por Márcio Seligmann-Silva, e publicada, aliás, muito apropriadamente, junto com o texto “O
mito nazi”. Cf. O mito nazi seguido de O espírito do nacional-socialismo e seu destino. Op.cit., p. 76.
Não acompanho a tradução de Márcio Seligmann-Silva de “national-esthétisme” para “nacional-
-esteticismo” e opto por uma tradução literal (“nacional-estetismo”), pelo simples motivo que as
duas palavras “esthétisme” e “esthéticisme” existem tanto em francês, quanto em português (“este-
tismo” e “esteticismo”), com os mesmíssimos sentidos. Portanto, creio que a literalidade, no caso,
exprimirá melhor a escolha do autor.

19 Lacoue-Labarthe. Idem, p. 76: “O nacional-esteticismo (a leitura de Heidegger conduziu-me a


essa monstruosidade semântica) é uma noção difícil de se trabalhar.”

20 Ibidem. P. 77.

21 Heidegger, “Die Zeit des Weltbildes” in Holzwege, p. 69, apud NUNES, B., “A Poética do Pensa-
mento” in Artepensamento, org. Adauto Novaes, São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 397.

22 Dou-me o direito de indicar ao leitor outro ensaio, no qual desenvolvi esse tema. Cf. Figueire-
do, V. Heidegger e a desestetização da arte. In: Heidegger: a questão da verdade do ser e sua incidência
no conjunto de sua obra. João Mac Dowell (org). Rio de Janeiro: Ed. Via Verita, 2014

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
20 Virginia de Araujo Figueiredo

é o nacional-estetismo “porque ele deixou a algazarra wagneriana encobrir e


ensurdecer a voz de Hölderlin. E um pensamento fraco diminuir a potência do
grande pensamento alemão, de Leibniz e Kant até Nietzsche.”23
Antes de examinar mais profundamente o “nacional-estetismo”, é preciso
deixar claro que, se foi apoiado numa explicitação do pensamento político
(ou sobre a arte) de Heidegger24 que Lacoue-Labarthe conseguiu decalcar seu
termo do nacional-socialismo, isso jamais significou que ele o estivesse impu-
tando a Heidegger, como se defendeu nosso autor de um dos inúmeros mal-
-entendidos que suas polêmicas teses suscitaram. Isso seria um verdadeiro
absurdo, pois, a operação da “desestetização da arte” nunca passou desper-
cebida a Lacoue-Labarthe e ele sempre distinguiu Heidegger dentre todos os
filósofos (seus – de Heidegger) contemporâneos, como tendo sido aquele que
foi, justamente, “o primeiro, no dia seguinte da ‘ruptura’, a atacar a estética,
quer dizer o conjunto da filosofia ocidental da arte, e a tentar recolocar a
questão da arte sobre bases totalmente diferentes”.25

O nacional-estetismo

Tentemos, finalmente, apresentar o termo “nacional-estetismo”, bem como


suas implicações filosóficas e políticas! Foi o próprio Lacoue-Labarthe que,
em 1987, anunciou a necessidade de forjar e “arriscar a palavra nacional-
-estetismo”,26 que constituiu um capítulo inteiro de seu livro La fiction du
politique. A palavra provinha de sua intensa e incansável indagação dirigida
ao pensamento de Heidegger27 e, mais especificamente, ao âmago desse pen-
samento, também constituído pelas intricadas relações entre filosofia, polí-
tica e arte, como numa República de Platão às avessas, conforme acabamos

23 Lacoue-Labarthe. O espírito do nacional-socialismo e seu destino. Op.cit., p. 77.

24 Idem: “[O termo nacional-estetismo] está para a filosofia heideggeriana da arte e do político
(ou do histórico [historial]) do mesmo modo que uma fotografia (mais ou menos bem) revelada
está para o seu negativo. Sendo que aqui o sinal em direção à negatividade é excessivo.”

25 Lacoue-Labarthe. La fiction du politique. Op.cit., p. 147. Grifos meus.

26 Lacoue-Labarthe, Ph. La Fiction politique. Op.cit., p. 91: “on peut risquer le mot national-
-esthétisme.”

27 Idem: “O discurso heideggeriano sobre a arte, no seu projeto historial (político), lança uma luz
precisa sobre a essência, que permaneceu mais ou menos velada nos discursos dominantes sobre
o tema, do nacional-socialismo”

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 21

de descrever. Numa nítida operação de deslizamento semântico, a expressão


dialoga e aproxima-se, mas ao mesmo tempo resiste e distancia-se da sedutora
e celebérrima fórmula, através da qual Brecht e Benjamin definiram o Nazismo
como “estetização da política” e, a exemplo dela, pretendia designar a essência
ou a verdade do Nacional-socialismo. A decisão de seguir também, junto com
Lacoue-Labarthe, a análise que ele fez do filme Hitler: um filme da Alemanha
(1977)28 de Hans Jürgen Syberberg, assim como de alguns desdobramentos
teóricos dela resultantes, deveu-se ao fato de ter sido justamente esse filme
que evidenciou a necessidade de ampliar o problema do nacional-socialismo para
além daquela fórmula brecht-benjaminiana, e a qual acabou por orientar as pes-
quisas do autor e de seu amigo, Jean-Luc Nancy, em direção ao “mito nazista”.
Em 1991, os dois amigos publicaram juntos um pequeno e importante volu-
me sobre a questão, intitulado Le mythe nazi. 29 Voltarei adiante a esse livro.
Mas, antes disso, em 1986, no ensaio, “Poética e Política”, Lacoue-La-
barthe já mostrara certa reserva com relação à resposta “que davam Brecht e
Benjamin: ou seja, a famosa ‘politização da arte’ que se deixa encerrar, como
o perceberá Benjamin in extremis, dentro da lógica da politização total”.30
Lacoue-Labarthe parecia estar mais favorável à resposta de Heidegger que
apontava para a urgência de se pensar sobre a essência da técnica, isto é, para

28 Provavelmente este é um dos filmes mais longos da história do cinema! São mais de sete horas
de projeção! Se tivéssemos de resumi-lo numa só frase, escreveria que o filme trata da ascensão e
queda do 3º Reich e que pressupõe uma polêmica relação de identidade entre Alemanha e Hitler.
Ele está dividido em 4 partes: O Graal; Um sonho alemão; O fim de um conto de inverno e Nós,
filhos do inferno. Por ocasião de sua reapresentação na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, 2008,
Hitler: um filme da Alemanha foi assim (aliás, muito bem) descrito num texto anônimo: “o filme
caminha de maneira radical na contramão das técnicas tradicionais da linguagem cinematográfica.
Com um estilo de representação antinaturalista, o filme retoma de forma original a tradição esté-
tica de Méliès e Eisenstein, a música de Wagner e o teatro épico de Bertolt Brecht para escancarar
as artimanhas do espetáculo nazista. No filme, atores e bonecos representam as personagens-
-chave da história num cenário de circo macabro, de paisagens kitsch e de cinejornais silenciosos
projetados como pano de fundo. Syberberg procura desvendar o fenômeno nazista em suas raízes
e contextos mitológicos, confrontando-o com Ludwig II, Karl May e Richard Wagner, marcos da
história e da cultura alemãs. Proibido na Alemanha, Hitler… foi exibido no Festival de Londres
em 1977 e no Festival de Cannes em 1978. Celebrado pela crítica e por grandes personalidades
da história da cultura – Susan Sontag dedicou a ele um longo e elogioso artigo – foi distribuído
nos Estados Unidos sob os cuidados de Francis Ford Coppola que o considerou ‘uma obra que faz
com que todos os filmes de hoje em dia pareçam triviais ou fora de moda’.” Texto sem indicação
de autor. Disponível em: < https://hannaharendt.wordpress.com/2008/08/26/hitler-um-filme-da-
-alemanha>. Acesso em: 7 set. 2017.

29 Lacoue-Labarthe, Ph. e Nancy, J.L. Le mythe nazi. Paris: Editions de l´Aube, 1991.

30 Lacoue-Labarthe, Ph. Poética e Política. Op.cit., p. 152.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
22 Virginia de Araujo Figueiredo

“uma determinação mais decisiva da tékhne”.31 Um ano depois, em 1987, no


livro já citado acima, La Fiction du Politique, Lacoue-Labarthe acrescentará
novos elementos à sua suspeita da fórmula “politização da arte”, os quais
servirão para reiterar a posição assumida no ensaio de 86, e que consistia
na desconfiança de que aquela resposta estava submetida à mesma lógica de
totalização que, justamente, o... Nazismo. Vejamos como a frase insinua isso:
“Na sua sintaxe (a inversão), esta resposta [a politização da arte] é de tipo
marxista. Ela ecoa, no entanto, de maneira muito estranha, uma outra palavra de
ordem – a “ciência politizada” – que os estudantes da N.S.D.A.P.32 opunham um
pouco antes ao reitor Heidegger (grifo meu). A ‘politização’, é verdade, estava
na origem da lógica ‘totalitária’, a qual, naquela época, decididamente não
economizava ninguém”.33
Resistir à resposta “politização da arte”, no caso de Lacoue-Labarthe, não
significa duvidar daquela relação estreita, contida na “primeira parte” da fór-
mula e reconhecida unanimemente (quero dizer, tanto pelos próprios nazistas
como pelos comunistas), entre nazismo e estética.34 Seu objetivo não é polemi-
zar com a palavra de ordem brecht-benjaminiana. Ao contrário, por várias ve-
zes, Lacoue-Labarthe exprimiu sua adesão e concordância com a proposição:
“estetização da política”. Cito aqui, pelo menos, dois momentos exemplares
dessa adesão: o primeiro é próprio capítulo intitulado “Nacional-estetismo”
(no livro La fiction du politique), que começa justamente pelo relato da origem
do duplo termo. Relato que faz, aliás, justiça à participação de Brecht, frequen-
temente esquecida, na cunhagem do termo. Lacoue-Labarthe nos conta: “Por
volta de 1935-1936, do seu curto exílio dinamarquês, Brecht e Benjamin lan-
çam a palavra de ordem hoje clássica, segundo a qual, à ‘estetização da política’
é preciso responder com a ‘politização da arte’. [...] Tratando-se do nazismo, o
veredicto era de uma justeza incontestável: ‘estetização da política’ era, essencial-
mente, o programa do nacional-socialismo. Ou seu projeto”.35

31 Idem.

32 Abreviatura de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, mais conhecido como Partido Nazista.


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Nacional_Socialista_dos_Trabalhadores_Alem%C3%A3es>.
Acesso em: 22 ago. 2017.

33 Lacoue-Labarthe. La Fiction du Politique. Op.cit., p. 92.

34 Assim como na fórmula de Benjamin e Brecht, tratando-se de Nazismo, a diferença entre os


termos “arte” e “estética” é fundamental!

35 Lacoue-Labarthe. La Fiction du Politique. Op. cit., p. 92. Grifos meus.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 23

A segunda vez na qual ele manifesta seu acordo encontra-se em seu ensaio,
já muito citado aqui, “Poética e Política”. Só que, dessa vez, Lacoue-Labarthe
não deixa de indicar a insuficiência da fórmula brecht-benjaminiana, ao am-
pliar o problema do “projeto nazista”, nele incluindo não só a sua perspectiva,
que é a da mimesis e logo será mais solidamente a do mito, como também a
de Heidegger que está, a meu ver, subentendida na menção à hipertrofia da
técnica. Cito a passagem que parece acumular e sintetizar todos esses pontos
de vista: “Na época em que Brecht e Benjamin denunciavam no nazismo ‘a
estetização da política’ – e de fato o projeto nazista é incompreensível se não
o referirmos, além mesmo do wagner-nietzscheismo, ao grande sonho mimé-
tico alemão com a Grécia e com a possibilidade de reconstituir esta obra de
arte ‘viva’ que foi a cidade-estado, e se não percebermos a assimilação da arte
pela técnica, sobre a qual o sonho repousa”. 36
Tudo leva a crer que a principal discordância ou, no mínimo, a que se
manifestou, diz respeito à palavra de ordem marxista ou comunista da “poli-
tização da arte”. Lacoue-Labarthe chegou mesmo a declarar que, longe de ser
uma solução satisfatória, essa palavra de ordem não tinha sido uma ideia nada
feliz37. Em contrapartida, quanto à “estetização do político”, é provável que
ele tenha querido aprofundá-la, radicalizá-la, levá-la às últimas consequências.
Foi, pelo menos, o que a análise do filme de Syberberg permitiu-lhe afirmar: “a
intuição de Syberberg é mais profunda e, de certa maneira, ela leva ao pé da le-
tra e radicaliza o veredicto brecht-benjaminiano.” 38 Não só o filme e o cinema,
mas também as reflexões do cineasta sobre a arte, na forma de fragmentos di-
ários reunidos no livro, Die Freudlose Gesellschaft (Sociedade sem alegria) teriam
exigido a ampliação daquela fórmula. Em 1982, por ocasião da publicação da
tradução para o francês do livro de Syberberg, Lacoue-Labarthe escreveu uma
elogiosa e entusiasmada resenha. No jornal Libération, ele publicou que se tra-
tava de “um dos melhores livros escritos sobre a Alemanha desde a guerra [...]
Mas também o maior livro que um artista pôde escrever sobre a arte. Não só
sobre a ‘sua’ arte, mas sobre a arte em geral, e sua relação com a arte”.39

36 Lacoue-Labarthe. Poética e Política. Op.cit. p. 152.

37 Numa resenha, publicada em 3 de dezembro de 1982, no jornal Libération, sobre a tradução


francesa do livro La société sans joie de Hans Jürgen Syberberg, Lacoue-Labarthe escreveu: “Lais-
sons le mot d´ordre [politisons l´art]: au demeurant, il n´était sans doute pas très heureux./ Deixe-
mos de lado essa palavra de ordem [politizemos a arte]: afinal, ela não foi nada feliz”.

38 Lacoue-Labarthe. La fiction du politique. Op.cit., p. 97:

39 Lacoue-Labarthe. Libération. Op.cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
24 Virginia de Araujo Figueiredo

Segundo a interpretação de Lacoue-Labarthe, o cinema de Syberberg só


tinha um objeto: a Alemanha; e uma questão obsessiva: como o nazismo foi
possível? A meu ver, essa pergunta que o filósofo atribuiu ao cineasta alemão
e que lhe serviu de fio condutor da análise do filme ultra-polêmico, Hitler:
um filme da Alemanha, foi também a pergunta que obcecou o filósofo durante
toda sua vida. O ineditismo da reflexão sobre a arte de Syberberg que tanto
impressionou a Lacoue-Labarthe deveu-se provavelmente à proposição de
que o nazismo não apenas “estetizara o político”, mas fundira a política com
a arte, produzira o político como arte40, usara a arte como seu principal instru-
mento político, como um meio para moldar um povo enquanto obra de arte...
Foi esse o ponto no qual a perspectiva do mito41 se mostrou inevitável. So-
mente o mito e seus desdobramentos implicados necessariamente com uma
“mimetologia”42 seriam capazes de lançar uma nova e inédita luz sobre o pro-
blema das relações entre a arte e o nazismo. Mas, antes de chegarmos a esse
ponto que mais nos interessa aqui, é preciso iluminar a profunda mudança
pela qual passaram as relações entre Lacoue-Labarthe e Syberberg, que foram
do mais extremo entusiasmo à mais restrita condenação.
No livro Le mythe nazi, como já foi dito aqui, os dois amigos reconhece-
ram a imensa dívida que tinham com relação ao filme de Syberberg, sem o
qual, a análise ali desenvolvida sobre o mito não teria sido possível.43 Mas,

40 Cf. Lacoue-Labarthe e Nancy. O mito nazi. Op. cit., p. 45.

41 Era a questão do “mito” que escapava à fórmula brecht-benjaminiana sobre o Nazismo e que exigiu
dos dois autores, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, mas sobretudo deste último, a necessi-
dade de aprofundar (radicalizando) o problema da relação entre Nazismo e a apreensão estética da arte.

42 A “mimetologia” é, mais um neologismo criado por Lacoue-Labarthe. A meu ver, essa noção,
inspirada, sobretudo, pelo pensamento trágico de Hölderlin, pretende ambiciosamente funcionar
como uma espécie de “lógica” ou movimento filosófico da história. Tentando resumidamente expli-
car: Lacoue-Labarthe se apropria do interessante gráfico que Béda Allemann (Heidegger et Hölderlin.
Tradução de François Fédier. Paris: PUF, 1959, p. 43) propusera, por sua vez, para traduzir as ideias
de Hölderlin acerca das relações entre os Antigos e os Modernos, às quais ele mesmo chamou de “iti-
nerário excêntrico das tendências culturais”. Nesse gráfico, além do par de opostos: Antigos (Gregos)
e Modernos (Hespéricos), Allemann incluíra outros pares de opostos que, de fato, se multiplicam na
armadura especulativa de Hölderlin: arte/natureza, sobriedade junoniana/fogo do céu, divinos/mor-
tais. Retomando o tratamento que René Girard (outra assumida influência) deu à mimese, de um
desejo fundado na rivalidade (cf. nota 15), Lacoue-Labarthe nos propõe a articulação mimética como
uma “lógica” capaz de reger as principais relações humanas: da historial entre Antigos e Modernos
à religiosa, entre seres humanos e deuses, passando pela artístico-científica entre natureza e arte. A
mimese duplica a oposição originalmente especulativa, suscitando um dispositivo infinitamente re-
petidor. (Cf. Penna, J.C. e Figueiredo, V. Introdução: O imperativo do pensamento. In: A Imitação dos
Modernos. João Camillo Penna e Virginia Figueiredo (orgs.). São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000, p. 24.

43 Cf. Lacoue-Labarthe e Nancy. O mito nazi. Op. cit., p. 46.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 25

precisamente aí, nessa mesma passagem, eles fizeram constar a seguinte nota
que transcrevo aqui: “Isso não significa que nós seguimos Syberberg nas suas
recentes declarações filo-prussiana nostálgicas (no padrão mais banal dos
neo-romantismos) e, infelizmente ainda uma vez, anti-semitas”.44 Se, na dé-
cada de 80, tinha havido aquele entusiasmo, já referido, na recepção da obra
do cineasta, a partir da publicação em 1990, de outro livro, Vom Unglück
und Glück der Kunst in Deutschland nach dem letzten Kriege (München, 1990,
Matthes & Seitz), Lacoue-Labarthe e Nancy veem-se obrigados a retirar todo
seu apoio e, em dezembro de 1996, numa nota à conferência “O espírito do
national-socialismo e seu destino”, ele assim escreveu sobre o livro posterior
Vom Unglück etc. de Hans Jürgen Syberberg, “cujas proposições, politicamente
duvidosas ou ao menos equívocas, suscitaram, na Alemanha, como na França,
um escândalo. Proposições essas que não posso absolutamente subscrever”.45
E, referindo-se à outra nota, d´O mito nazi, ele completa:

Hoje ainda (dezembro de 1996), não tenho nada a acrescentar, nem a su-
primir: mantenho todos os termos da minha análise da obra [isso queria
dizer que ele não retirava a importância atribuída, na década de 80,
tanto ao filme Hitler: um filme da Alemanha quanto ao livro, So-
ciedade sem alegria]: condeno, inapelavelmente, as observações ‘anexas’
– notadamente as observações anti-semitas, a meus olhos, rigorosamente
imperdoáveis.46

Retomemos, então, o nosso ponto, que é o das relações entre a arte e o nazismo
e de como, a partir de sua análise do filme Hitler, um filme da Alemanha, Lacoue-
-Labarthe “desentranhou o fio” (segundo a expressão muito feliz de João Ca-
millo Penna), que o conduziu à possibilidade de estabelecer um vínculo bimile-
nar do “sonho” do nacional-socialismo e sua “encarnação hitleriana” (idem) com
a “formação ‘técnica’, platônica (na República), da pólis”.47 Seria muito longo aqui

44 Idem. Nota 14, p. 46.

45 Esse trecho foi extraído da conferência “L´esprit du National-Socialisme et son destin”, minis-
trada em francês na UFMG (Cf. nota 18). Trata-se de uma versão diferente da que foi traduzida e
publicada no Brasil; desconheço se ela foi publicada no original na França. O documento ao qual
me refiro é parte do meu arquivo privado e pessoal.

46 Idem.

47 Penna, J.C. Auschwitz como tragédia. Op.cit., p.238.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
26 Virginia de Araujo Figueiredo

seguir aquele fio condutor, espécie de cordão umbilical48 que une o sonho ale-
mão49 com certo modelo grego e que consistia essencialmente em parir ou dar à
luz a um povo e a uma nação, através da arte. Orientado pela lógica mimética da
história, esse sonho mais alemão do que francês, italiano ou inglês, queria imitar
os gregos. Esse sonho, que Lacoue-Labarthe, cuidadoso, tratou de diferenciar,
habitou o espírito de quase todos os pensadores e poetas alemães desde Win-
ckelmann: Schiller, Schlegel, Hegel, Schelling, Hölderlin, Wagner, Nietzsche50
e, claro, como não poderia deixar de ser: Heidegger. Não por acaso, todos eles
se preocuparam, de um modo ou de outro, com a questão da tragédia. Talvez,
pudéssemos acrescentar, parafraseando Hannah Arendt, Kant (que, sem dúvida,
não foi um pensador do trágico) tenha sido a única exceção.51 De fato, como
aponta Lacoue-Labarthe, aliando-se profundamente às proposições do cineasta,
Syberberg não ignora a tradição da metafísica ocidental, ou, pelo menos, do
pensamento alemão, desde a Aufklärung, na qual “o político (a Cidade) provém
(relève) de uma plástica, formação e informação, ficção no sentido estrito.”52

48 É proposital a escolha da metáfora biológica e bastante repulsiva, admito. Ela visa criar o
contexto no qual o Nazismo, retomando as palavras de Lacoue-Labarthe (La fiction du Politique.
Op.cit.,p. 113), pode ser compreendido como um “aborto violento da Alemanha na sua tentativa
frenética de apropriar-se como tal (identificar-se) e vir à luz da história. A Alemanha seria uma na-
ção à qual não teria sido jamais dado nascer, a pura contradição de um sujeito político natimorto
e fadado aos limites de uma ‘existência’ fantasmática.” Grifos do autor.

49 Como já indicamos (nota 27), uma das partes (2) do filme de Syberberg intitulava-se jus-
tamente “Um sonho alemão”. E no começo da parte 1, acompanhando a música (Parsifal) de
Wagner, vemos uma imagem em preto e branco que caminha (como se estivesse numa viagem
espacial) por um céu escuro e estrelado; uma voz em off diz: “Todos nós sonhamos com viagens ao
nosso mundo interior. O misterioso caminho vai até o nosso interior durante a noite.” Em seguida,
no meio da tela, da imagem do céu preto pontilhado de branco, aparece uma imensa gota flutu-
ando sozinha e a citação de Heine: “Se penso de noite na Alemanha, não consigo conciliar o sono.”

50 Ibidem, p. 102: “Seria necessário diferenciar: Schlegel, é certo, não ‘sonha’ como Hölderlin
ou Hegel, os quais, por sua vez, não ‘sonham’ como Nietzsche – por exemplo. No entanto, traços
comuns existem, perfeitamente identificáveis (provavelmente porque todos esses ‘sonhos’, muito
diversos, são comandados por um ‘resto diurno’ único: a leitura de Winckelmann).”

51 E é por isso que, dentre as inúmeras as citações de pensadores alemães que são feitas no filme
de Syberberg, uma das mais chocantes ocorre logo no início, quando o personagem narrador, ape-
lando para uma famosíssima frase de Kant, descreve Hitler como uma “projeção do homem divino,
do céu estrelado sobre nós e da lei moral em mim.” Aliás, como indica o tradutor, Jean-Baptiste
Roux, do livro de Syberberg Die Freudlose Gesellschaft (La société sans joie), os nazistas perverteram
a noção de Aufklärung, cuja tradição reivindicaram. Roux continua sua nota de tradução, explican-
do que Goebbels foi “Reichsminister für Volksaufklärung und Propaganda”, isto é, “ministro de estado
para a educação do povo e propaganda”. Syberberg, H-J. La société sans joie. P. 8.

52 Lacoue-Labarthe. La fiction du Politique. Op.cit., p. 102. Grifos do autor. Um pouco antes (Idem.
p. 93), lemos uma longa carta do famigerado ministro da propaganda na Alemanha nazista, Jo-
seph Goebbels, dirigida ao músico Wilhelm Furtwängler, na qual, entre outros temas prediletos,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 27

E é esse sentido plástico da Gestaltung e da Bildung, “cuja polissemia é reve-


ladora (formação [mise en forme], composição, organização, educação, cultura
etc.)”53, que a perspectiva do mito revela. Com outras palavras, é esse sentido
do mito, que parece preceder o “artístico”, no qual ressoa o “artificial”, que
interessa a Lacoue-Labarthe e Nancy. Em 1991, eles escrevem: “o mito é uma
ficção forte, no sentido ativo de fabricação.”54 “Ficção”, portanto, não quer
dizer romance, poesia ou literatura. Não foi apenas porque os produtores de
mitos, os poetas, contavam “mentiras sacrílegas sobre o divino”55 que Platão
os tinha perseguido. Se os mitos são “socialmente nefastos”56, isso não se deve
somente ao fato de que estejam distantes da verdade (senão a consequência
seria restrita ao conhecimento e à epistemologia), mas porque eles têm uma
função específica, uma potência mimética, que é a de conceder o modelo de
exemplaridade.57 Platão não ignorava a força mimética dos mitos. Para Lacoue-
-Labarthe e Nancy, é a questão do mito que ilumina a indissolúvel relação
entre a mimesis e a política.

O problema do mito é sempre indissociável do da arte, não tanto porque o


mito seria uma criação ou uma obra de arte coletiva, mas antes porque o
mito, como a obra de arte que o explora, é um instrumento de identificação.
Ele é mesmo o instrumento mimético por excelência.58

Na conferência “O espírito do nacional-socialismo etc., Lacoue-Labarthe vol-


ta a escrever sobre o mito:

aparece o da “política como arte”. Repito aqui um trecho muito expressivo dessa carta: “A política
é [...] uma arte, talvez mesmo a arte mais elevada e a maior de todas que existe, e nós que damos
forma à política alemã moderna, nós nos sentimos como artistas aos quais foi confiada a mais alta
responsabilidade de formar, a partir da massa bruta, a imagem sólida e plena do povo.” Grifos meus.

53 Ibidem. P. 103.

54 Lacoue-Labarthe. O mito nazista. Op.cit., p. 32-33. Grifo meu.

55 Idem.

56 Idem.

57 Idem.

58 Ibidem. P. 33-34.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
28 Virginia de Araujo Figueiredo

O mito é o poema originário (Urgedicht) dos povos. Isso significa para toda
a política romântica, desde pelo menos Herder, que um povo não se origina,
não existe como tal ou não se identifica, não se apropria – ou seja, não é
propriamente ele mesmo – senão a partir do mito. Quando Herder, Hegel
ou Heidegger repetem as palavras de Heródoto: “Foi Homero quem deu
seus deuses à Grécia”, eles não querem dizer outra coisa. Segundo a lógica
mimética ou a mimetologia [...] o mito é o meio de identificação (essa ideia
é ainda atuante, não importa a complexidade de sua reelaboração, até o
último Freud e o último Thomas Mann); e o apelo ao mito é a reivindicação
da apropriação dos meios de identificação, julgada, em suma, mais decisiva
do que a dos meios de produção.59

Para compreender mais profundamente o que está em jogo na mimetologia,


teríamos de abordar outra noção, igualmente importante, do pensamento
de Lacoue-Labarthe, que é a da “onto-tipologia”. Essa é a sua proposta de
interpretação da tradição da filosofia ocidental como um todo, de Platão a
Heidegger, na qual ele incluiu até o nazismo, como seu momento culminante,
e cuja essência, para resumir bastante, é a de que “o político provém (relève)
do ficcionamento (fictionnement) dos entes e das comunidades.”60 Não seria
possível aqui ainda explorar todos os fios através dos quais ele teceu sua
proposta interpretativa. Mas, pelo menos, é necessário esclarecer um pouco
a função do termo “tipo” na expressão abstrusa e, mais uma vez, monstruosa
da “onto-tipologia”. É necessário dizer algo acerca da educação, seja ela “po-
lítica”, como pensara Platão, ou “estética”, como Schiller definitivamente a
reelaborou. A Bildung está sempre apoiada na “paideia mítico arcaica”61 e, para
toda a tradição ocidental, pressupõe uma substância, um sujeito que seria pura
maleabilidade ou plasticidade na qual o “modelo viria calcar (frapper) o seu
‘tipo’ ou imprimir a sua figura.”62
Segundo Lacoue-Labarthe, tanto quanto Dr. Goebbels, Syberberg sabia
que “o modelo político do nacional-socialismo era o Gesamtkunstwerk [obra
de arte total]. Ambos sabiam que

59 Lacoue-Labarthe. O espírito do nacional-socialismo etc. Op.cit., p. 84.

60 Lacoue-Labarthe. La fiction du politique. Op.cit., p. 125.

61 Ibidem. P. 123.

62 Ibidem. P. 125.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 29

o Gesamtkunstwerk [era] um projeto político, o Festspiel de Bayreuth


devendo ser para a Alemanha o que as grandes Dionisíadas [tinham sido]
para Atenas e para a Grécia inteira: o lugar onde um povo, reunido em
seu estado, dá a si mesmo a representação do que é, e o que o funda como
tal. O que não quer dizer simplesmente que a obra de arte (a tragédia, o
drama musical) ofereça a verdade da pólis ou do Estado, mas que o pró-
prio político se institui e se constitui (e se re-funda regularmente) na
e como obra de arte.63

E Lacoue-Labarthe continua:

A obra de arte total é seguramente, aos olhos de Syberberg, o cinema. Ele


comprova de resto, não apenas as análises desenvolvidas por Benjamin
na “Obra de arte na época da reprodutibilidade técnica”, mas a suspeita
lançada por Adorno sobre Bayreuth: esta cena imensa, estes personagens
que declamam sobre o fundo de uma música tonitruante e ininterrupta (e
por essa razão “enterrada”), são, de fato, sem levar em conta o médium
técnico (a câmera escura de Edison, a “Black Mary” – “o Santo Apare-
lho – como dizia Mary Pickford”64), a própria estética hollywoodiana,
o “Soap Opera de massa. Já.”65E Syberberg vai muito longe no diag-
nóstico do Terceiro Reich como filme: falando deste como “revolução
cultural” (“[...] arte para o povo. Direito do povo à auto-representação”), e
se recusa o estereótipo hollywoodiano do “filme-catástrofe”, ele aceita sua
inversão: “a catástrofe enquanto filme”66. Hitler é o “maior cineasta de
todos os tempos”.67

63 Lacoue-Labarthe. La fiction du politique. Op.cit., p. 97-98. Grifos meus.

64 Syberberg, H-J. Hitler, um filme da Alemanha, apud Lacoue-Labarthe. La fiction du Politique. Op.
Cit., p. 100.

65 Adorno. Essai sur Wagner, apud Lacoue-Labarthe. Idem.

66 Syberberg, H-J. Hitler, um filme da Alemanha, apud Lacoue-Labarthe. Idem.

67 Ibidem, p. 99-100. Grifos meus.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
30 Virginia de Araujo Figueiredo

Observações finais

Para os autores d´O mito nazi, longe de estarmos quites com o nosso passado
recente, estamos, ao contrário, num certo sentido, obrigados a pensar sobre
ele; sobre o fato de o Nazismo ter sido uma “forma política alemã moderna”;
de que ela tenha sido possível historicamente. Ou ainda, sobre o fato, que
mais nos amedronta, que nos faz recuar e que consiste naquilo que Lacoue-
-Labarthe chamou de “co-pertinência ontológico-historial do marxismo e
do fascismo”;68 ou mesmo de modo ainda mais provocante: “noutro nível
(‘metodológico’), [co-pertinência ontológico-historial] do sociologismo e do
biologismo.”69 Todos esses “fatos” desembocam na hipótese, sobre a qual, in-
sisto, ainda é difícil falar dela hoje: a de que o Nazismo talvez possa “esclarecer
sobre a essência do político moderno.”70 E, se é difícil ainda hoje falar dela
é porque é mais fácil confundi-la com alguma operação de “reabilitação” ou
“reavaliação” do nazismo, o que, com toda a certeza, é preciso prevenir e ad-
vertir, não ser absolutamente o caso. Se é difícil ainda hoje falar dela é porque
nos repugna essa proximidade (“contemporaneidade”) com o “Regime”... Mal
saímos do século XX, aquele da experiência política do “totalitarismo”. Com
razão, sentimo-nos responsáveis pela nossa época. E, para Lacoue-Labarthe,
o problema é claro, trata-se de tentar “aquilatar uma época”71 e, eventual-
mente, enfrentar os riscos de apontar para aquela “co-pertinência ontológi-
co-historial”72, de tentar atingir um lugar “bem aquém das divergências ou
das oposições ´ideológicas´ e ´políticas`”73; de tentar atingir esse lugar que é,
possivelmente, o do pensamento; de encarar a tarefa nada fácil de pensar o
impensado do Nacional-Socialismo; de tentar alcançar a verdade ou essência
do político que talvez terrivelmente se revele no Nacional-Socialismo.
A exposição de seu conceito de “nacional-estetismo” está implicada, de
um lado, com o cinema de Syberberg, mas sobretudo e como sempre, com
o pensamento de Heidegger, a quem Lacoue-Labarthe chegou a atribuir o

68 Lacoue-Labarthe. La Fiction du Politique. Op.cit., p.154

69 Idem.

70 Idem, p. 155.

71 Lacoue-Labarthe. A coragem da poesia. Tradução de Fátima Saadi. In: A Imitação dos Modernos.
Op.cit., p. 285.

72 Lacoue-Labarthe. La Fiction du Politique. Op.cit., p.154.

73 Idem.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 31

epíteto de “pensador do nacional-socialismo”.74 Pensamento esse ao qual a


obra inteira de Lacoue-Labarthe está, assumidamente, vinculada75, e que res-
pondia à sua obstinada tentativa de explicar o nazismo, com muito mais força
e vigor do que, por exemplo, o marxismo de Adorno, conforme ele declarou
em La Fiction du Politique: “Adorno que queria, a qualquer custo falar disso,
talvez tenha dito sobre o fascismo muito menos do que Heidegger, mesmo na
parcimônia de suas declarações (ou na pressa, com a qual, durante os anos
fascistas, ele tentou indicar onde estava a ‘verdade’ e a ‘grandeza interna’, per-
didas ou estragadas, da revolução nacional-socialista)76.
Em virtude da zona de alto risco e perigo, onde habita o seu pensamento
e onde suas teses são formuladas, frequentemente, Lacoue-Labarthe sofreu
acusações, muitas vezes grosseiras, que o confundiam com o seu “objeto” de
análise e pesquisa,77 como ele mesmo escreveu, no terceiro “Post-scriptum”
do livro La Fiction. Uma dessas teses polêmicas, que esteve subjacente aqui
ao longo de todo o artigo, foi resumida no início da conferência “O espírito
do nacional-socialismo e seu destino”.78 Aí somos remetidos à “história espi-

74 Lacoue-Labarthe. O espírito do nacional-socialismo e o seu destino. Op.cit., p. 69-70: “Heidegger


não é considerado aqui um pensador nazista (o que, no entanto, ele também foi, ainda que brevemen-
te), mas o pensador do nacional-socialismo, o que ele simultaneamente reconheceu e dissimulou”.
Grifos meus.

75 Cf. Lacoue-Labarthe, na Advertência ao livro La Fiction du Politique. Op.cit., p. 11, o autor


diz como “uma explicação [ou acerto de contas/vf] comigo mesmo” tomou o caráter, “sem dúvida
ousado (ou pretensioso) de uma ‘explicação [ou acerto de contas/vf] com Heidegger’. A razão é
muito simples”, ele continua: “só ‘entrei na filosofia’, se é que entrei, por ter sofrido o golpe ou
o choque (...) do pensamento de Heidegger. Quase ao mesmo tempo – com a distância de ape-
nas alguns meses -, soube que Heidegger havia aderido ao nazismo. Devo confessar que, como
muitos outros, nunca mais me restabeleci disso. Ou melhor: qualquer que tenha sido (e continua
sendo) a minha admiração pelo pensamento de Heidegger, com essa adesão, não posso, jamais
pude, política e mais do que politicamente, me conformar”.

76 Lacoue-Labarthe. La Fiction du Poltique. Op.cit., p. 154. Lacoue-Labarthe está se referindo à


célebre frase da Introdução à Metafísica, através da qual Heidegger resumiu a “verdade e grandeza
interior” do nazismo, a de que ele significou “o encontro entre a técnica determinada planetaria-
mente e o homem moderno.”

77 Ibidem. P. 144: “Não atribuam a mim o que eu analiso”. (“Qu´on ne m´attribue ce que j´analyse”).

78 O título da conferência faz uma óbvia referência ao livro de Hegel, “O espírito do Cristianis-
mo e seu destino”. Segundo Márcia Gonçalves (com. pes), o livro O espírito do Cristianismo e seu
destino faz uma análise histórica da passagem de uma religião [o judaísmo] cujo Deus é distante
e punitivo, para uma religião fundada no sentimento do amor e do perdão, na qual Deus é o pai
de todos. Mas, não apenas isso, o jovem Hegel teria estendido sua crítica ao próprio Cristianismo,
por não ter conseguido superar o sistema de opressão política da época. Ainda segundo Gonçalves,
“o fenômeno da morte de Jesus ou da morte de Deus, que marca o destino do Cristianismo, é o
primeiro passo lógico da contradição enquanto negação da negação ou negação do negativo, e

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
32 Virginia de Araujo Figueiredo

ritual79 da Alemanha” e Lacoue-Labarthe afirma que o Nacional-Socialismo


não tem nada de um fenômeno aberrante ou patológico e que, muito pelo
contrário, “inscreveu-se, de maneira perfeitamente rigorosa, na história dita
‘espiritual’ da Alemanha”80. Em seguida, ampliando bastante a jurisdição, da
Alemanha para o Ocidente, afirmará que o “Nacional-Socialismo é a realização
(l´accomplissement) da história ocidental da tékhne – ou melhor: da história
ocidental como história da tékhne”.81 É claro que essa perigosa aproximação
entre o nazismo e a tradição filosófica alemã é feita de modo extremamente
cuidadoso. Como advertem os autores de O mito nazi:

É incontestável que existiu e talvez ainda exista um problema alemão.


A ideologia nazista foi um tipo de resposta a esse problema, totalmente
determinada, politicamente determinada. E não existe dúvida quanto ao
fato de que a tradição alemã e em particular do pensamento alemão não
é de modo algum estranha a essa ideologia. Mas isso não quer dizer que
aquela seja responsável por esta e, portanto, condenável em bloco. Existe
um abismo entre uma tradição de pensamento e a ideologia que vem, sem-
pre de modo abusivo, inscrever-se nela. O nazismo não está mais em Kant,
em Fichte, em Hölderlin ou em Nietzsche (todos pensadores solicitados pelo
nazismo) – ele não está nem mesmo, no limite, no músico Wagner – do
que o Gulag está em Hegel ou em Marx. Ou o Terror, igualmente, em
Rousseau.82

o negativo, nesse contexto, é o finito. A morte de Jesus é a afirmação do infinito ou a verdadeira


afirmação do espírito”.

79 Vale aqui ainda o comentário de Márcia Gonçalves (com. pes.) de que “se não fosse esse livro
O espírito do Cristianismo e seu destino, Hegel talvez jamais tivesse concebido seu conceito [preci-
samente] de espírito”, conceito que se tornará, como se sabe, central na filosofia do Hegel maduro.

80 Lacoue-Labarthe. O espírito do nacional-socialismo e o seu destino. Op.cit., p. 69.

81 Ibidem, p. 74. Tradução ligeiramente modificada. Grifos do autor.

82 Lacoue-Labarthe e Nancy. O mito nazi. Op.cit., p. 28. Tradução ligeiramente modificada.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
A obra de arte na época da destruição da metafísica 33

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.9-33, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural:
João Pedro Cachopo*

notas sobre arte, autonomia e política

Between the singular and the plural:


notes on art, autonomy and politics

Resumo
Este artigo reúne um conjunto de notas cujo propósito é reflectir sobre a relação
entre arte e política tomando como ponto de partida a ambivalência da noção de
autonomia (I). Devendo-se esta ao facto de a autonomia se poder referir à arte
tanto no singular quanto no plural, estas notas abordam questões diversas tais
como a diferença e complementaridade entre estética e arte (II); a relação entre
prática, experiência e crítica (III); a interacção entre as artes à luz do debate
pós-moderno (IV); a diversidade das manifestações interartísticas (V). Por fim,
estas notas saldam-se na ideia de que a política da arte tem na relação entre as
diferentes artes uma condição e um incentivo, sem que por esse motivo se dissolva
a singularidade do seu propósito comum (VI).

Palavras-chave: Arte; política; autonomia; estética; crítica.

Abstract
This article brings together a set of notes that seek to debate the relationship between
art and politics taking the ambivalence of the notion of autonomy as a point of
departure (I). This ambivalence is due the fact that autonomy refers to art either
in the singular or in the plural. So these notes cover various issues including the
difference and complementarity between aesthetic and art (II); the relationship
between artistic practice, aesthetic experience and art criticism (III); the interaction
of the arts in the light of the postmodern debate (IV); the diversity of interartistic
practices (V). When all is said and done, the article suggests that the relationship
between the arts is both a condition and a stimulus of the politics of the arts, the
singularity of their common purpose notwithstanding (VI).

Keywords: Art; politics; autonomy; aesthetics; criticism

* Pesquisador no Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova


de Lisboa (CESEM-UNL) e Marie Skłodowska-Curie Fellow na Universidade de Chicago;
E-mail: jpcachopo@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
36 João Pedro Cachopo

O texto que se segue reúne um conjunto de notas cujo propósito é reflectir


sobre a relação entre arte e política tomando como ponto de partida a ambi-
valência da noção de autonomia. Que esta última ocupe um lugar central na
reflexão sobre a arte moderna e contemporânea, em particular no que tange à
apreciação da sua dimensão política, é indesmentível. A evolução teórico-prá-
tica do modernismo e, posteriormente, o debate pós-moderno confirmam
isso mesmo. Por outro lado, aquilo de que falamos quando nos referimos à
autonomia da arte não é totalmente claro – a começar pelo seu genitivo.
Está em causa a autonomia da arte? Caso em que se contrasta a esfera da(s)
arte(s) como um todo com a esfera – e aqui as perspectivas também variam
– da vida, da sociedade, ou ainda com outras formas de racionalidade... Ou
está em causa a autonomia das artes – i.e., das artes entre si? Caso em que a
tónica é posta na relação de independência, rivalidade, ou indiferença entre
as artes. Apesar de as duas acepções terem pontos de contacto, seria um
equívoco considerar que se equivalem. É perfeitamente possível – por hipó-
tese – imaginar uma visão da música contemporânea, cujo entusiasmo pelo
diálogo com a ciência coexista com o mais extremo cepticismo acerca do que
pudesse inspirá-la noutras formas artísticas. E vice-versa, haverá quem man-
tenha uma visão particularmente favorável ao diálogo interartes e ao mesmo
tempo defenda uma concepção da criação artística centrada em si mesma e
imune a todo e qualquer tipo de heteronomia.
Que este tema, com todas as suas ramificações, atalhos e encruzilhadas,
continue a ser debatido hoje, amiúde sem que estas duas formas de entender
a autonomia se vejam elucidadas, torna estas reflexões, se não particularmen-
te novas, ao menos úteis para clarificar alguns dos desafios que o seu debate
convoca. Com efeito, da teorização de G. E. Lessing, em torno do conjunto
escultórico de Laocoonte e seus filhos, sobre a relação assimétrica entre artes
visuais e literárias1 às actuais reflexões sobre as mais diversas práticas artísti-
cas, em que fenómenos de entrecruzamento, absorção e remediação ocupam
um plano de destaque, o tema da relação entre as artes abrange um vasto le-
que de questões que importa sinalizar nas suas consequências políticas. Neste
contexto, que o tópico da autonomia estética se cruze com o tópico da políti-
ca da arte e que valha a pena interrogar este último tomando em consideração

1 Lessing, G. E. Laokoon, oder über die Grenzen der Malerei und Poesie, in Gesammelte Werke,
vol. 5. Berlin / Weimar: Aufbau-Verlag, 1968, pp. 5-346.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 37

a ambivalência do primeiro – ou seja, chamando a atenção para a circunstân-


cia de que a arte se declina tanto no singular quanto no plural –, constituem
o pressuposto e a hipótese subjacentes ao itinerário aqui proposto.

II

Tomemos o domínio do “estético”, e não o campo do “artístico”, como ponto


de partida. “Estética”, não por acaso, é o nome de baptismo da disciplina
fundada por Baumgarten em 17502. Tratava-se, contra o legado racionalista
de Descartes, de reivindicar o domínio das paixões, da sensibilidade e das
artes para o campo da reflexão filosófica. Tais afectos poderiam não se prestar
a definições apodícticas, mas nem por isso seriam pura e simplesmente irra-
cionais. Por outras palavras, empregando noções caras a Leibniz, o domínio
do estético não seria o de ideias claras e distintas; mas não seria também o de
impressões pura e simplesmente obscuras. Importaria considerar um terreno
intermédio: o de noções, experiências e objectos claros e confusos, que, apesar
de algumas das suas características permanecerem na sombra, mereceriam
ainda assim ser investigados à luz da razão. Podemos e devemos interrogar-
-nos sobre se esta subsunção da arte no campo do que é passível de inves-
tigação racional, com todos os constrangimentos que daí decorrem, permite
fazer integralmente justiça às práticas e aos objectos artísticos, tal como os
experienciamos desde a revolução estética de finais do século XVIII até hoje.
É todo o debate em torno de saber se a modernidade artística se deixa cabal-
mente captar por uma estética de cunho hermenêutico. Seja como for, o que
importa salientar de momento é o facto de a arte ser uma entre várias esferas
pertencentes ao domínio do estético.
Saltando de meados do século XVIII para a contemporaneidade, diremos
que é precisamente esta concepção abrangente do “estético”, e a consequente
não-coincidência entre o “estético” e o “artístico”, que permite a Rancière
repensar a relação entre estética e política recorrendo à noção de “partilha do
sensível” – entendida como “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído, que define simultaneamente onde tem lugar
e o que se joga na política como forma de experiência”3. Neste sentido, toda
a política – entendida, por sua vez, num sentido irredutível à luta pelo poder

2 Baumgarten, A. G. Ästhetik, trad. Dagmar Mirbach. Hamburg: Felix Meiner, 2007 [1750].

3 Rancière, J. Le Partage du sensible. Paris: La fabrique, 2000, p. 13.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
38 João Pedro Cachopo

ou ao seu exercício – é estética. É-o na medida em que reitera ou perturba


uma determinada configuração da experiência sensível nas suas dimensões
individual e colectiva, porque desloca ou sublinha as fronteiras entre o ruído
e o discurso, o real e a ficção, o privado e o público. Mas, assim sendo, toda
a arte pode, necessariamente, ser política. Não porque é capaz de transmitir
ideias ou aconselhar atitudes políticas, mas porque, ao lidar com os domínios
do visível, do audível, do imaginável e do inteligível, pode reconfigurar as
condições da experiência de um modo que nunca é politicamente inócuo. Por
outras palavras, a(s) arte(s) não pode(m) deixar de intervir no plano em que
a partilha do sensível se decide: o plano em que, de uma forma ou de outra,
se enlaçam e desenlaçam estética e política.
Que esta intervenção possa ser mais ou menos desafiante politicamente
não significa que o seu potencial crítico varie em função – é todo equívoco
da ideia de arte comprometida ou engajada – da intenção do artista. O vo-
luntário e o involuntário, tal como o consciente e o inconsciente, jogam-se,
no momento da feitura – do gesto, da escrita, da composição, da montagem
– em proporções variáveis que, na sua imponderabilidade, nunca se excluem
mutuamente. O resultado do fazer artístico não existe à imagem e semelhança
nem do saber nem do querer do autor. Daí que o empenho político deste últi-
mo possa até – se é que, quando ostensivo, não tende – a condicionar a força
política do que dele pode resultar.

III

Parafraseando Adorno, poderíamos dizer que a experiência estética se tornou


o palco de uma estética desconfiada de construções abstractas4. Mas quer isto
dizer que, imune ao conhecimento e à vontade do artista, a reflexão sobre a
arte se deve agora pautar pela experiência do leitor ou do espectador (como
um Jauß ou um Bourriaud defenderam)5? Tal conclusão seria manifestamente
precipitada. Em primeiro lugar, porque é precisamente de uma concepção
determinista do objecto que importa desenvencilhar-se, pouco importando
que seja o sujeito produtor ou o sujeito receptor a instância determinante.

4 Cf. Adorno, T. W. Ästhetische Theorie, Gesammelte Schriften, vol. 7. Frankfurt am Main:


Suhrkamp, 2003 [1970], p. 513.

5 Jauß, H. R. Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung. Constance: Verlagsanstalt, 1972; e Nico-
las Bourriaud, Esthétique relationnelle. Dijon: Presses du réel, 2001.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 39

Em segundo lugar, porque a ênfase na dimensão processual da experiência


estética traduz menos o reencaminhamento da reflexão para a esfera da re-
cepção do que o mapeamento de um terreno de experiência em que as esferas
produtiva e receptiva se prolongam uma na outra.
Esta ideia não é estranha ao entendimento da crítica de arte proposto
pelos Românticos e retomado, já no século XX, por Walter Benjamin6. Irre-
dutível ao conceito de juízo, a crítica de arte mais não seria do que um des-
dobramento do próprio potencial crítico contido na obra. E, nesse sentido, o
crítico mais não seria do que um avatar do autor e do espectador, do ouvinte
ou do leitor. Hoje, na medida em que muita crítica de arte permanece refém
da noção de juízo – a qual, por seu turno, a empurra para o beco sem saída
da alternativa entre propor uma definição de arte ou hierarquizar os seus
objectos –, a revisitação daquela concepção romântica continua a revelar-
-se surpreendentemente libertadora. Ela permite sublinhar que, apesar de a
dimensão avaliativa da crítica de arte ser inescapável, o seu exercício não se
esgota num plano normativo. Por outras palavras, o crítico de arte faz – real-
mente – “mais” do que descrever a obra de arte ou a experiência estética, mas
também faz – desejavelmente – “menos” do que prescrever a norma pela qual
se ajuíza uma e outra. O crítico, que é também um espectador, padece e age
a um só tempo. Ele interpreta. Ou melhor: ele traduz.
O espectador-crítico assemelhar-se-ia assim a um tradutor que restitui
noutra linguagem e noutro contexto a força do “como”, mais do que o sentido
do “que”, de determinados objectos ou práticas artísticos. Quanto aos seus
aspectos enigmáticos, ao que resiste à interpretação do espectador e do críti-
co, agudiza-os mais do que os atenua ou resolve. Prolonga, portanto, os efei-
tos críticos – perplexidades, suspeitas, dúvidas – suscitados pela experiência
estética. Tornam nítidos os deslocamentos de fronteiras entre o privado e o
público, a memória individual e a colectiva, a realidade e a ficção, o anódino
e o excepcional, em que a política da arte se joga.

6 Benjamin, W. Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik, in Gesammelte Schriften,
vol. 1, 1, ed. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Surhkamp, 1991
[1920], pp. 7-122.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
40 João Pedro Cachopo

IV

Que o potencial político da arte e da experiência estética passe por todos estes
deslocamentos de fronteiras sugere desde logo que a relação entre géneros
artísticos, solidária quer com o cruzamento entre estilos populares e eruditos
quer com a sobreposição de formas modernas e antigas, se dá em benefício
desse potencial. Todos aqueles deslocamentos estético-políticos teriam a ga-
nhar, em efectividade e abrangência, com fenómenos de imbricação interar-
tística. Tocamos num tema delicado, que se cruza de modo evidente com o
debate pós-moderno. É que, como é sabido, um dos cavalos de batalha do
pós-modernismo foi a contestação do dogma – de que Clement Greenberg foi
o advogado por excelência – segundo o qual cada arte, sob pena de sacrificar
a sua autonomia no altar da sociedade do espectáculo, deveria restringir-se
à exploração do seu medium próprio7. De facto, não sendo o único, um dos
principais pontos de ruptura entre os adeptos do modernismo e os arautos
do pós-modernismo foi a interpretação política da imbricação entre as artes.
Por um lado, a valorização de fenómenos de hibridização e metamorfose
vê-se associada ao argumento, que vários autores conotados com o pós-mo-
dernismo reclamaram como seu, segundo o qual o colapso do modernismo se
traduzira numa libertação do potencial político das artes. Foi assim que Hal
Foster, embora não ignorasse a existência de um anti-modernismo reaccio-
nário, preconizava um “pós-modernismo de resistência”: um que, opondo-se
quer ao pós-modernismo reacionário de um Tom Wolfe quer ao modernismo
autoritário de um Greenberg, via no abandono da noção de autonomia e na
transgressão das fronteiras que separavam as artes entre si e do mundo uma
oportunidade para “abrir e reescrever o modernismo”8. Na sua esteira, o acen-
to na diluição das fronteiras entre o presente e o passado (Linda Hutcheon)9
ou entre “cultura de massas” e “arte erudita” (Andreas Huyssen)10 conheceu
versões que, mais ou menos em confronto directo com o modernismo, acen-
tuavam o potencial político da cisão pós-moderna.

7 Greenberg, C. “Modernist Painting”, in Clement Greenberg: Late Writings. Minneapolis: Univer-


sity of Minnesota Press, 2003, p. 86.

8 Foster, H. “Postmodernism: A Preface”, in The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Port


Townsend, Washington: Bay Press, 1983, p. xi.

9 Hutcheon, L. The Politics of Postmodernism. London & New York: Routledge, 2002 [1989].

10 Huyssen, A. After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington and
Indianapolis: Indiana University Press, 1986.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 41

Por outro lado, importa não esquecer que é num plano político que as
principais críticas ao pós-modernismo se desdobram: com efeito, o que se
deplora é amiúde um recuo das valências emancipatórias, contestatárias ou
subversivas da arte, diluídas numa enxurrada de proliferantes posteridades
– da arte “pós-modernista” e da cultura “pós-moderna” à sociedade “pós-indus-
trial” ou à civilização “pós-histórica”. Assim, é para prevenir a despolitização
generalizada das práticas e dos discursos artísticos que Terry Eagleton, por
exemplo, rejeita taxativamente o termo: o pós-modernismo mais não seria do
que uma paródia da vanguarda, em que a contestação genuína do status quo
cede o lugar à cumplicidade, mascarada de ironia, com os poderes instituídos.
Já Fredric Jameson, procurando esquivar-se a uma crítica moralista – e não
sendo nem tão apologista (como Greenberg) nem tão crítico (como Eagleton)
da noção de autonomia –, reconhece no pós-modernismo a “lógica cultural
do capitalismo” e, embora não enjeite totalmente os pressupostos da crítica
do modernismo, insiste em que a transição pós-moderna convida mais à des-
confiança do que ao entusiasmo11.
À distância em que nos encontramos hoje, averiguar se a alegada ruptura
pós-moderna se dá em favor ou em prejuízo da afirmação do potencial sub-
versivo, crítico ou político da arte constituiria um exercício algo supérfluo.
Ao mesmo tempo, não poderíamos acentuar uma visão acerca da política da
arte tão manifestamente favorável à relação entre as artes sem recordarmos,
ainda que de passagem, que a sua interpretação política foi um dos principais
pomos de discórdia no debate pós-moderno (um debate que, apesar de apa-
rentemente datado, continua a influenciar a discussão sobre a relação entre
arte e política, da filosofia à teoria dos media)12. O que importa, portanto,
não é tomar posição por uma das facções. Antes pelo contrário: se o desvio
é útil é porque permite sublinhar que a valorização da imbricação entre as
artes não tem de ser associada nem a um ataque ao modernismo nem a uma
apologia do pós-modernismo. Tanto que – para dar apenas um exemplo – o
desenvolvimento de uma “estética da instalação”, em que intermedialidade e

11 Jameson, F. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University
press, 1997 [1991].

12 Vale também a pena notar que considerámos este debate sobretudo a partir da óptica das artes
visuais e da literatura (é o que o conjunto de autores citados, em si mesmo, deixa transparecer).
Muito haveria a acrescentar, se pretendêssemos oferecer um diagnóstico exaustivo, acerca do
papel seminal da arquitectura neste debate bem como sobre a sua declinação um tanto ou quanto
periférica na música (onde o pós-modernismo é associado ora a um estilo mais ecléctico ora à
corrente minimalista).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
42 João Pedro Cachopo

teatralidade ocupam um lugar decisivo, não implica o abandono da noção de


autonomia, nos termos em que a preconiza Juliane Rebentisch13. Por outras
palavras, dois dos topoi pós-modernos por excelência (a teatralidade e a in-
termedialidade) podem perfeitamente coexistir teórica e praticamente com o
principal pilar do discurso modernista (a autonomia).
De resto, é a própria problematicidade dos dois termos (modernismo e
pós-modernismo), e não apenas o carácter dúbio da eventual ruptura pós-
-moderna, que tem vindo a ser posta em evidência. Nesse sentido, o projecto
de “reescrita da modernidade artística”14 empreendido por Jacques Rancière
corresponde menos à contestação de que tenha havido uma qualquer cisão
pós-moderna do que à tentativa de encontrar afinidades subliminares entre
diferentes estratégias artísticas, do final do século XVIII à contemporanei-
dade, que quer a noção de pós-modernismo quer a noção de modernismo
não permitem detectar. Teríamos pois que haveria mais afinidades entre o
Romantismo de um Novalis ou de um Berlioz, o realismo de um Dostoievsky
ou de um Flaubert, o surrealismo de um Buñuel, o construtivismo de um
Eisenstein, ou ainda entre um quadro de Murillo, um poema de Hölderlin
ou um filme de Pedro Costa do que julgaríamos à partida. E essas afinidades
dir-nos-iam mais acerca da política da arte do que uma posição de princípio,
em si mesma abstracta, acerca das vantagens ou dos inconvenientes do cruza-
mento entre as artes. Tal cruzamento não seria uma condição suficiente, nem
sequer necessária, da “politicidade” das artes. Mas não seria, tão-pouco, um
obstáculo. Seria antes uma condição potencialmente adjuvante.

Neste ponto, importa destacar que as artes se relacionam de um modo intrin-


secamente plural. Desde logo, por meio da convergência e/ou integração de
diversos media – do sonho wagneriano do Gesammtkunstwerk, com os seus
precursores e herdeiros mais ou menos apócrifos, à miríade de instalações,
performances e happenings contemporâneos, onde coexistem elementos so-
noros, fílmicos e teatrais. Mas também através da sua evocação imanente:
a restituição – pouco importa se simplesmente almejada ou efectivamente

13 Rebentisch, J. Aesthetics of Installation Art, trad. D. Hendrickson e G. Jackson. Berlim: Stern-


berg Press, 2012 [2003].

14 Rancière, J. Aisthesis. Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 43

conseguida – de elementos sonoros e visuais por media heterogéneos – como


nas composições sinestésicas de um Mondrian ou de um Scriabin, ou em
fenómenos de écfrase literária. Dito isto, cabe distinguir estas estratégias ar-
tísticas quer da reutilização de técnicas ou dispositivos típicos de outros me-
dia, em que a diferenciação das artes em função da sua vocação espacial ou
temporal é posta em xeque – pense-se na poesia concreta de um Haroldo de
Campos ou na influência da arquitectura nas composições de um Yanis Xe-
nakis – e, por outro lado, de fenómenos de “remediação” interartística.
Neste último caso, não nos referimos apenas à evocação de elementos
visuais ou sonoros. A fronteira entre a mera evocação de um sensorium de
outra arte e a sua remediação integral pode ser ténue, mas também pode ser
nítida, como quando está ostensivamente em causa a representação de outros
objectos ou práticas artísticos. Tratar-se-á portanto de considerar, já não a
afinidade entre cambiantes acústicos e pictóricos numa tela de Kandinsky ou
o potencial de “correspondências” de um poema de Baudelaire, mas o modo
como as artes visuais, a literatura e ainda – mais do que qualquer outra arte
na contemporaneidade – o cinema representam outras artes. E, claro, de car-
tografar os muitos desvios de perspectiva que daí podem decorrer. Por exem-
plo, relativamente ao cinema, tratar-se-ia de perguntar: pode um filme fazer
justiça ou tornar mais nítida ou aguda a capacidade transformadora de outra
arte, a sua relação com a vida, com a experiência, a memória e a imaginação
individuais e colectivas? O que nos diz um filme como Edvard Munch (1974),
de Peter Watkins, sobre o modo como vida e obra se perseguem mutuamen-
te? Ou Cópia Certificada (2010), de Abbas Kiarostami, sobre a afinidade entre
o poder transfigurador da cópia (em arte) e o da ficção (na vida)? Ou Museum
Hours (2012) de Jem Cohen sobre a experiência do espectador, sobre como o
nosso olhar num museu pode alargar e apurar o nosso olhar sobre o mundo?
A lista, se quiséssemos alargar este conjunto idiossincrático de referências,
seria inevitavelmente longa. Já o gesto implícito a cada uma das instâncias
desse elenco cinematográfico permaneceria, porventura, similar: o da reapro-
priação de uma experiência poética e/ou estética que relança, ao arrepio das
convenções da tradição ou do hábito, o seu potencial de interpelação. Neste
sentido, a remediação das artes encontra-se numa posição de contiguidade
com a crítica. Isto é óbvio, muito particularmente, no caso das artes da palavra,
que partilham com o comentário e a crítica o medium linguístico. Recorde-
mos, por isso, o “Torso Arcaico de Apolo” de Rilke e não deixemos de mencio-
nar realizações poéticas mais próximas de nós, das metamórficas observações
de Arte da Música (1968) de Jorge de Sena às inflexões cinematográficas da

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
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poesia de Manuel Gusmão em, por exemplo, Migrações do Fogo (2004). Que,
por fim, no poema de Rilke, se deslize da descrição poética de uma estátua
mutilada de Apolo para uma injunção existencial – “Pois não há ali um único
ponto / que não te observe. Tens de mudar de vida” [“denn da ist keine Stelle,
/ die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern”] – poderia servir-nos de
emblema neste texto.
Tratando-se de uma escultura antiga, o exemplo rilkeano permite-nos
também reconhecer o entrelaçamento entre o esbatimento de fronteiras entre
a arte e a vida e a revisitação do passado – entrelaçamento inseparável da hi-
pótese segundo a qual a relação entre as artes e a sua dimensão política se ilu-
minam mutuamente. A lógica dessa relação com um passado mais ou menos
longínquo diz igualmente respeito às estratégias de exposição e reprodução
de objectos distantes geográfica e historicamente. Que continuidades e que
fracturas se deixam entrever, se ocultam ou se realçam? Do projecto de mon-
tagem imagético empreendido por Warburg no Atlas de Imagens Mnemósine
à noção de “museu imaginário” desenvolvida por Malraux, é a politicidade
inerente ao mapeamento de afinidades e contrastes histórica e culturalmente
significativos que está em causa. Mas a relação com o passado não se joga
apenas ao nível das estratégias historiográficas, museológicas ou curatoriais
que medeiam a recepção. Joga-se também ao nível da produção artística con-
temporânea, onde a questão da intermedialidade torna a desempenhar um
papel decisivo.
Recorrendo a uma hipérbole, poder-se-ia sugerir que todo o objecto ar-
tístico, mesmo o mais revolucionário, constitui um palimpsesto. Que a emer-
gência do novo possa coincidir com a reelaboração da tradição mostra-o Ulis-
ses de James Joyce, cuja relação com a Odisseia é manifesta. Mas nem sempre,
como neste caso célebre, a relação de “reescrita” respeita o medium inicial.
Com efeito, muitos são os casos em que “hipertextualidade” e “hipermediali-
dade” se confundem – isto é, tomando de empréstimo as categorias de Gérard
Genette15, muitos são os casos em que a reescrita de um “texto” coexiste com
a transição para outro medium. Do livro ao ecrã, passando amiúde pelo palco,
o fenómeno da “adaptação” reúne o tópico da relação entre as artes com o da
reescrita do passado e cruza-os com um outro tema eminentemente político:
o do destino desviante da cópia ou, a partir do momento em que deixa de

15 Genette, G. Palimpsestes: La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.35-46, jan.-jun. 2017
Entre o singular e o plural: notas sobre arte, autonomia e política 45

procurar parecer-se com o original, do simulacro16. De facto, no caso das


artes performativas, o tema da “adaptação” – pensemos, por exemplo, em
versões fílmicas de obras teatrais ou operáticas – subsume, por assim dizer, o
da “encenação”. Cobre-o e acrescenta-lhe uma camada: além da releitura, que
toda a encenação constitui, dá-se uma transposição para a linguagem de outro
medium, uma metamorfose.

VI

Poder-se-ia então dizer, no termo destas notas, que as artes no plural tomam
enfim o lugar da arte no singular? Tal elação está longe de constituir o corolá-
rio das notas precedentes. Pelo contrário, diria que não há contradição entre
o singular e o plural da(s) arte(s) e que todos estes fenómenos de hibridiza-
ção, desdobramento e metamorfose sinalizam menos o colapso da ideia de
arte – de uma constelação de práticas, experiências e discursos providos de
uma politicidade específica – do que a obsolescência de uma sua concepção
monolítica. E isto independentemente de esta concepção monolítica – que,
essa sim, cabe abandonar – se basear numa visão purista da autonomia da
arte, num entendimento determinista ou instrumental do objecto artístico,
no encapsulamento da crítica de arte na ideia de juízo, na projecção sobre o
campo artístico de uma visão teleológica da história ou no credo da fidelidade
ao original. Irredutível a tais dogmas, a arte manifestar-se-á inteira sempre
que a sua declinação plural e a sua abertura ao fora constituírem o fermento
da sua intempestividade.

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Ricardo Nascimento Fabbrini*

Estética e crítica da arte


em Jean-François Lyotard

Aesthetics and art criticism


in Jean-François Lyotard

Resumo
O artigo examina a relação entre estética e crítica de arte em Jean-François Lyotard.
Mostra que nos comentários às obras dos artistas Barnett Newman, Arakawa,
Adami, Daniel Buren e Karel Appel, entre outros, o autor afirma a possibilidade de
uma “estética da presença imaterial”. Destaca que a crítica às obras desses artistas
permitiu que Lyotard avançasse em sua crítica à representação, na medida em
que as obras desses artistas evidenciariam na imanência da forma pictórica que o
essencial da pintura não é a expressão do sujeito nem a nomeação do objeto, mas a
“invocação da presença imaterial”. Face às obras desses artistas, o fruidor seria por
elas interrogado: “Algo ocorrerá?”. Mostramos, ainda, que nessa caracterização
da arte como “presentificação do impresentificável”, o autor mobilizou, de modo
singular, a noção de sentimento do sublime em Edmund Burke, Immanuel Kant,
e Friedrich Schiller. Evidenciamos, também, que Lyotard reconheceu em sua
crítica de arte diferentes níveis de tensão entre a “arte da presença” e o “trabalho
da memória” efetuado na forma artística, denominando-o de perlaboração
(durcharbeiten) - noção que aproximamos, aqui, da “dialética do material” em
Theodor Adorno. Afirmamos, por fim, que as obras comentadas por Lyotard não
podem ser subsumidas ao paradigma da comunicação, haja vista que seus fruidores
vivenciariam na experiência da indeterminação da linguagem a “comunidade de
uma falta” insurgindo-se, assim, contra a “beleza exorbitante” na sociedade da
tecnociência.

Palavras-chave: Lyotard; forma; autonomia; belo; sublime; comunidade.

* Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); E-mail: ricardofabbrini@usp.br.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
48 Ricardo Nascimento Fabbrini

Abstract
The article examines the relationship between aesthetics and art criticism in Jean-
François Lyotard. It shows that in the comments to the works of Barnett Newman,
Arakawa; Adami; Daniel Buren and Karel Appel, among others, the author affirms
the possibility of an “aesthetics of the material presence”. It points out that the
criticism of the works of these artists allowed Lyotard to advance in his critique of
representation, inasmuch as the works of these artists would show in the immanence
of the pictorial form that the essential of painting is not the expression of the
subject nor the naming of the object, but the “invocation of the material presence”.
Faced with the works of these artists the artist would be asked: “Will something
happen?” We also show that in this characterization of art as “presentification of
the impresentiable,” the author singularly mobilised the sense of the sublime in
Edmund Burke, Immanuel Kant, and Friedrich Schiller. We also see that Lyotard
conceived in his art criticism different levels of tension between the “art of presence”
and the “work of memory” performed in the artistic form, calling the latter one
of perlaboration (durcharbeiten)  - as in the “dialectics of material” in Theodor
Adorno. Finally, we emphasize that the works commented on by Lyotard can not be
subsumed by the paradigm of communication, as its participants would experience
in the experience of the indeterminacy of language the “community of a lack”, thus
rising against the “exorbitant beauty “In the society of technoscience.

Keywords: Lyotard; form; autonomy; beauty; sublime; community.

Depois da publicação de “A condição pós-moderna”, em 1979, Jean-François


Lyotard voltou-se para a relação entre estética e crítica de arte. 1 Seus comen-
tários sobre artistas contemporâneos, publicados a partir de então, não são
meros artigos de ocasião, de apresentação elogiosa em catálogos de exposições,
mas uma “filosofia da arte em devir”: “(...) considero esses diversos textos
como as primeiras peças de uma espécie de dossiê que poderia me conduzir
a um estudo substancial não tanto da arte, mas mais precisamente da pintu-
ra. Da pintura contemporânea. E meu objetivo seria tentar definir a natureza
de uma eventual filosofia da arte hoje”. 2 Sua reflexão sobre o sentimento do

1 Lyotard, J-F. La Condition Postmoderne. Paris: Les Édition de Minuit, 1979.

2 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 49

sublime a partir de Edmund Burke e Immanuel Kant, mobilizados em seus co-


mentários às obras de determinados pintores, visava a verificar a possibilidade
de uma “estética da presença imaterial”, na expressão do autor.3
Nessa crítica de arte, Lyotard constata o ceticismo crescente por parte
dos pintores contemporâneos em relação à possibilidade de apresentação dos
dados e formas da presença sensível na pintura. Essa dúvida sobre a possibi-
lidade de uma estética da presença imaterial teria sido resolvida, no entanto,
segundo Lyotard, por Paul Cézanne e Daniel Buren; Duchamp e Arakawa;
Rafael Sanzio e Adami; ou ainda, Barnett Newman e Stig Brogger; Van Gogh
e Karel Appel, e, por fim, Nan June Paik e Jacques Monory, se considerarmos
o conjunto de seus textos críticos.4
A singularidade dessa filosofia da arte em devir resulta, em grande medi-
da, da mobilização de noções da estética dos séculos XVIII e XIX. Em seus
comentários, Lyotard afasta-se da fortuna crítica do século XX sobre os ar-
tistas, rejeitando as categorias usuais da crítica e da historiagrafia da arte,
como estilo ou movimento artístico utilizados tanto nas abordagens formalis-
tas, quanto histórico-sociológicas. Sua crítica de arte explicita as efetuações
dos artistas a partir da experimentação dos limites de noções apropriadas da
tradição da estética. De tal modo que há uma relação entre experimentação
artística e experimentação no pensamento; ou seja, uma correspondência en-
tre procedimentos articulados na imanência da forma artística – no sentido
da autonomia da arte - e um modo singular de enunciação do pensamento
nesses textos críticos. Pode-se afirmar, portanto, que foi em sua crítica de arte
que Lyotard cumpriu plenamente a tarefa de construir “um texto de filosofia
que se aproximasse de um texto de artista” – objetivo já enunciado pelo autor
no prefácio de “Discours, Figure”, de 1972.5
Distanciando-se, assim, do modo habitual da crítica de arte operar, Lyo-
tard visava, nesses textos, não apenas comentar as obras dos artistas, mas
também desdobrar, nos comentários sobre essas mesmas obras, seu próprio

3 Ibidem, p. 10.

4 Sendo assim, recorremos aos seguintes textos de 1984 a 1993, na tentativa de caracterizar sua
crítica de arte: L’assassinat de l’experiénce par la peinture: Jacques Monory (1984), Les Immatériaux
(1985), Le postmoderne expliqué aux enfants (1986), Que peindre? Adami, Arakawa, Buren (1987),
L’inhuman (1988), Pérégrinations (1990), Leçons sur l’analitique du sublime (1991), Moralités post-
modernes (1993), L´Emthousiasme: La critique kantienne de l´histoire, Galilée, 1886; Flora danica : La
secession du geste dans la peinture de Stig Brøgger. Paris: Galilée, 1997;Karel Appel: Un geste de
couleur/Karel Appel: A Gesture of Color. Leuven: Leuven University Press, 2009.

5 Lyotard, J-F. Discours, figure. Paris: Kincklisieck, 1985.

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pensamento sobre arte. Sua reflexão sobre as obras dos artistas permitiu-lhe,
em outros termos, especificar questões já referidas em ensaios anteriores, mas
cujos desdobramentos ou alcance, somente agora, na crítica de arte, vieram
plenamente à luz. Ou seja: as obras dos artistas escolhidos por Lyotard possi-
bilitaram-lhe avançar em sua crítica à representação, na medida em que essas
obras evidenciariam na imanência da forma pictórica que o objeto essencial
da pintura não é a representação, mas a “presença” (présence); ou, certa moda-
lidade de “presentificação” (présentification), uma vez que a pintura indiciaria
o que há, nela, de “impresentificável” (impresentable).6 As obras desses artistas
dariam a ver o “caráter aporético da presença”, o qual se furta a todo discurso.7
A crítica de arte em Lyotard é movida, assim, pela noção de comentário,
o qual se desdobra em diversos níveis discursivos. Em “Que Peindre: Adami,
Arakawa e Buren”, de 1987, há às vezes duas, às vezes três vozes: no ensaio
“La présence” (A presença) que integra o livro as vozes são “Vous” e Lui”; em
“La ligne” são “Elle”, “Lui”, “L´autre”, e “Moi”; em “La franchise”, temos “Elle”,
“Lui” “ELLE”; em “L´anamnèse” temos “Vous” e “Elle”; em “Le point” temos “Est”
e “Ouest” e “Quelque mot para Arakawa”; em “Le site” temos “M. Sceau” e “M.
Sis”; e, por fim, em “L´exposition” temos “Toi” e “Vous”. Por meio dessas vozes
que evocam, evidentemente, à primeira vista, os diálogos platônicos ou as
conversações diderotianas, Lyotard elabora um comentário sobre as obras
dos três artistas (Adami, Arakawa e Buren), assim como uma crítica ao seu
próprio comentário a esses artistas. Esse último plano, por sua vez, de tom
marcadamente socrático, parece emular também a noção de corolário dos
textos de Spinoza, que Gilles Deleuze caracterizava como excurso ensaístico.8
No entanto, há ainda outra modalidade de comentário, agenciado pelo autor,
que é aquele que opera na relação entre as obras dos próprios artistas. Sua
crítica de arte evidencia, assim, a existência de uma tensão em determinadas
obras entre os comentários internos entre formas artísticas, denominados por
Lyotard de “anamnese do visível”; e a “Ocorrência”, como índice do inapre-
sentável, próprio à autonomia da forma, como veremos.9

6 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987.

7 Idem.

8 Deleuze, G. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

9 Lyotard, J-F. op. cit., p.87.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 51

É necessário evitar, antes de prosseguir, um equívoco corriqueiro dos crí-


ticos da “estética da presença imaterial” de Lyotard.10 As expressões “moder-
nidade artística” (“estética moderna”, ou “estética do sublime”) e “pós-mo-
dernidade” (ou “estética pós-moderna”) não são tomadas pelo autor como
períodos históricos ou estilos artísticos, mas enquanto modos de enunciação. É
possível, por conseguinte, nos termos de Lyotard, situar o dito pós-moderno
na origem do dito moderno; ou supor o moderno e o pós-moderno enquanto
modos, coexistindo na modernidade ou pós-modernidade enquanto perío-
dos. Essa substituição da sucessão de períodos artísticos, pelos modos de
enunciação são as mais profundas. Não se pode afirmar, por exemplo, que o
sentimento do sublime de extração setecentista que, oriundo do dito roman-
tismo, colonizou o imaginário das vanguardas artísticas do início do século
XX, tenha sido substituído pelo “sentimento do belo e do decorativo”, pró-
prios à estetização generalizada da pós-modernidade, enquanto sociedade do
espetáculo, se tomarmos a expressão no sentido de Fredric Jameson.11
A crítica de arte de Lyotard em “Que Peindre?” considera, assim, como
“arte da presença imaterial” certas pinturas dos anos 1970 e 1980 que “signi-
ficam tão somente sua ocorrência”, porque “não representam nenhuma cena”,
de tal modo que “só podem ser descritas em termos de sua disposição plástica”
haja vista que seu único “conteúdo” é sua “presença”; assim como o autor já se
referira, de modo análogo, ao “sentimento do sublime” a propósito de Kasimir
Maliévitch, ou ao “inumano” no tocante à pintura de Barnett Newman.12
Sua expectativa em relação às obras que “manteriam a arte viva”, ao mos-
trarem “que a presença está ausente”, não se limitaria àquelas obras “que o
historiador da arte denomina de vanguarda” (ou arte moderna), a não ser que
considerássemos “todas as grandes obras” como sendo “vanguardistas”.13 A
fruição dessas obras tanto das vanguardas artísticas quanto da arte contem-
porâneas (ou pós-vanguardista) consistiria, segundo Lyotard, em um “prazer

10 Bardelli, M. Lyotard: entre o pensamento e a arte. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filo-


sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Filosofia. São
Paulo: 2015. Cf. também, Favaretto, C-F. Entre o moderno e o contemporâneo. Ciência para a
Educação: Tempo & Memória. São Paulo, v.4, p.49-66, 2005.

11 Jameson, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
PP.157-21.

12 Lyotard, J-F. O pós-moderno explicado às crianças. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993; Cf.
também, do mesmo autor, O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.

13 Lyotard, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996 p.212.

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estético” que não exigiria nenhum “complemento”, como “outra obra verbal
ou visual”.14 A arte da presença imaterial não constituiria, portanto, “intriga ou
narrativa”, porque não efetuaria comentários às obras do passado, tais como
parte significativa da produção artística dos anos 1980 (associada pela crítica
de arte, como se sabe, ao pós-modernismo), uma vez que elas visariam à “au-
tofundação de um espaço plástico”.15 Essas obras instaurariam um “momento e
um lugar de interrupção dos momentos e dos lugares”, sem qualquer citação a
outras obras, possibilitando uma fruição análoga ao “sentimento do sublime”.16
Essa arte da presença imaterial seria, segundo Lyotard, uma arte de ex-
ceção ou resistência, haja vista que a dominante seria a arte pós-moderna,
ou seja, a arte como belo esvaziado, ou, por fim, uma arte que cita outras
obras, sendo, por isso, passível de comentários pela crítica de arte. Nesses
casos, como a própria pintura recorre a mediações como à “história da pin-
tura”, caberia à crítica de arte abrir-se ao “trabalho das palavras”; ou seja, à
reflexão para explicitá-las. 17 Em suma: a arte como belo não seria uma arte
da presença imaterial, mas do “pensamento”, pois calcada em “signos de re-
conhecimento”, ou de remissão de um signo a outros signos. 18 Seria possível,
assim, que face a uma pintura, “se retomassem e se narrassem as histórias de
uma dada cor” (como a cor azul, por exemplo), uma vez que “não se pode
(em regra) mergulhar mais no ilimitado da coloração” (ou seja, no “azulamen-
to”, ou, na luz-azul como presença). (parênteses nossos). Nesse sentido, “o
intrincado das linhas, as várias histórias induzidas pela vontade do traço, a
dominação da matéria pela memória colocariam as formas artísticas em um
viés narrativo”, tendo em vista que a fruição como presença se daria apenas,
excepcionalmente, como forma de resistência a hegemonia do belo. 19 Consi-
derando-se, assim, a crítica de arte de Lyotard em conjunto, pode-se afirmar
que, para o autor, “a pintura que comenta vai bem” enquanto a “estética que
invoca a presença originária” está moribunda.20

14 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: Éditions de la Différence, 1987, p. 54.

15 Ibidem, p. 67.

16 Ibidem, p. 75.

17 Ibidem, p. 17.

18 Ibidem, p. 18

19 Ibidem, p.56.

20 Ibidem, p. 28.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 53

Retomando o exemplo, a relação estabelecida por Lyotard entre a história


de uma dada cor e a cor como “acontecimento” (événement) é esclarecedora
porque permite pensar, ou melhor, evidenciar na própria cor, “a aporia da pre-
sença imaterial evocada por sua matéria”.21 Concebe, assim, Lyotard duas mo-
dalidades de cor, vale notar, retomando no âmbito de sua estética do sublime,
a relação estabelecida pelos teóricos da cor e pelos próprios artistas, entre cor-
-pigmento e cor-luz: a primeira é mais concreta, ou material; a segunda é um
elemento imaterial que dá ocasião ao acontecimento cromático. Neste segundo
caso, a cor não é uma “qualidade segunda” pertencente ao “objeto”, mas “a
virtude de irradiar […] um mundo cromático”: “Quero dizer que a coisa pic-
tural não é um objeto pintado somente, mas um acontecimento colorante”22
Pode-se exemplificar, na direção de Lyotard, que no corpo da cor que exsuda
dos “Bólides”, “Bilaterais” ou “Relevos Espaciais” de Hélio Oiticica; ou na am-
biência cromática, coada por filtros coloridos de Olafur Eliasson, ou na cor
que é volume de luz nas instalações tecnológicas de James Tirrel, ou, por fim,
no halo iridescente dos monturos de cor-pigmento de Anish Kappor temos
cor-acontecimental.23 Na distância entre cor material e irradiação cromática o
fruidor testemunharia algo que falta ou excede ao sensível – “seu nome, não
importa, diz Lyotard: é o inominável”.24
A noção de sublime, enquanto inominável, em Lyotard, remete não ape-
nas à “Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do
belo” de Edmund Burke, e à “Crítica da Faculdade de Julgar” de Immanuel
Kant, mas principalmente ao texto “Sublime is now”, de Barnett Newman,
de 1948, no qual o artista afirma a propósito da recepção de sua pintura: “A
imagem que produzo é a imagem autoevidente da revelação, real e concreta,
que pode ser compreendida por qualquer um que a examine sem a visada
nostálgica da história”.25 Diferentemente de Newman, entretanto, que consi-
dera sua pintura a “expressão, testemunho, ou apresentação do inexprimível”,
para Lyotard, teríamos em sua pintura – malgrado o intento do próprio artista
– uma “apresentação negativa”, na medida em que ela “faz alusão a algo que

21 Idem. Cf. também Lyotard, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996 p. 214.

22 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: Éditions de la Différence, 1987, p.110.

23 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo Lisboa: Editorial Estampa, 1997.

24 Ibidem, p. 112.

25 Newman, B. Barnett Newman: select writings and interviews. Los Angeles: University of Califor-
nia, 1990, p.80.

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não pode ser mostrado”, ou “apresentado” (darstellung) no termo de Kant;


ainda que a estética da presença de Lyotard não retome, literalmente, sua
“analítica do sublime”.26
Para assinalar a especificidade da noção de sublime em Lyotard é preciso
situá-la, ainda que sucintamente, em relação aos autores que menciona com fre-
quência em seus ensaios, além de Kant, como Edmund Burke, Friedrich Schiller,
ou Theodor Adorno. Pode-se assinalar, por exemplo, suas diferenças em relação
à estética kantiana sem que daí resulte, evidentemente, a fragilização de seus
argumentos uma vez que é justamente na singularidade, senão torção, de sua lei-
tura de Kant que reside o interesse de sua “filosofia da arte em devir”. A primeira
diferença é que enquanto para Kant o julgamento de gosto refere-se ao sujeito
como “puramente contemplativo; é um julgamento que, indiferente à existência
de um objeto, une somente sua natureza (enquanto “objeto da representação”)
ao sentimento de prazer e desprazer”, o julgamento na crítica de arte de Lyotard
refere-se ao objeto dito real, ou seja, à obra de arte, como, em seu exemplo, à pin-
tura de Newman.27 A segunda diferença é a impossibilidade de conceber a noção
de “sublime imanente” utilizada por Lyotard em sua caracterização da pintura
de Jacques Monory, à qual voltaremos, em termos propriamente kantianos.28 De
fato, a presença de Burke é mais significativa nas considerações de Lyotard sobre
o sentimento do sublime do que a de Kant: “Desejei sugerir que, no despertar
do Romantismo, na elaboração da estética do sublime por Burke, e num menor
grau por Kant, aponta-se para um mundo de possibilidades artísticas, no qual
os vanguardistas vão traçar seu rumo”.29 Foi, sobretudo, a concepção de tempo
em Burke que permitiu a Lyotard especificar o sentido do agora na expressão
“Sublime is now” de Newman, ou, de modo mais geral, o próprio sentimento en-
volvido na fruição tanto de sua pintura, de certa arte de vanguarda, quanto dos
três artistas comentados em “Que Peindre?”. Face às obras de todos esses artistas
o fruidor seria por elas interrogado: “Algo ocorrerá?”: “Ocorre é de preferência
ocorrerá, existirá, será possível?”, haja vista que há sempre “a possibilidade de
que nada aconteça”.30 Esse sentimento de suspensão, próprio à fruição dessas
pinturas, prossegue Lyotard, é “mais provavelmente, contraditório”:

26 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, pág.95.

27 Kant, I. Crítica da Faculdade do Juízo; § 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 54.

28 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984.

29 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.95.

30 Ibidem, p.96.

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Existe, pelo menos, um sinal, o próprio ponto de interrogação, a forma


pela qual Ocorre permanece e se anuncia: Ocorrerá? É uma pergunta que
pode ser feita, como diria Jacques Derrida, com todos os tons. Contudo,
o ponto e a interrogação é “agora”, now, como o sentimento de que pode
não ocorrer nada: o nada, agora. Esse sentimento contraditório, prazer e
dor, felicidade e angústia, exaltação e depressão, foi batizado e rebatizado,
entre o século XVII e o século XVIII europeus, com o nome de sublime. Foi
nessa palavra que se decidiu e perdeu a sorte da poética clássica, foi com
esse nome que a estética fez valer os seus direitos críticos sobre a arte, e
que o romantismo, ou seja, o modernismo triunfou, legando-nos o moder-
no como modo de enunciação.31

Esse sentimento de espera ou de suspensão, marcadamente negativo, posto


que de angústia frente à eventualidade de nada ocorrer, e, em ocorrendo
algo, face ao que efetivamente ocorrerá (”Ocorrerá isto ou aquilo; será isto
ou aquilo; isto ou aquilo será possível?”) caracteriza a fruição da pintura no
modo moderno, que, segundo Lyotard, aproxima-se da noção de “assombro”
de Burke, entendida como “a paixão causada pelo grandioso e o sublime
na natureza”.32 O assombro segundo Burke é de modo mais preciso, vale
lembrar, “aquele estado de alma na qual todos os movimentos são sustados
porque o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir
nenhum outro nem, consequentemente, raciocinar sobre aquele objeto que
é alvo de sua atenção”.33 É desse estado que nasceria, segundo Lyotard, “o
incrível poder do sentimento de sublime” que “longe de ser produzido por
nossos raciocínio” o antecipa (“Ocorrerá?”; “O que ocorrerá?”), arrebatando-
-nos com “força irresistível”.34
Esse estado de suspensão, ou de fruição como interrogação, no entanto, é
aproximada por Lyotard não apenas da noção de “assombro” em Burke, mas
também da noção kantiana de “entusiasmo”. Assim como a proposição do
gosto, a proposição do sublime é aquela que, nos termos de Lyotard, tem “um
a priori que não é uma regra já universalmente reconhecida”, mas uma “regra

31 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.99.

32 Burke, E. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campi-
nas: Editorial da Unicamp, 2013, Parte II, seção 1. p.84.

33 Ibidem, p.84.

34 Lyotard, J-F. L´enthousiasme. Paris: Éditions Glilée, 1986.

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de espera, de expectativa, de promessa de universalidade, uma universalidade


em suspensão”.35 Essa expectativa seja em relação a um acontecimento como
a Revolução Francesa (no sentido da crítica kantiana da História); seja face a
algo que é grande demais ou poderoso como a natureza; ou, por fim, frente à
forma da presença sensível na pintura que mostra que “a presença está ausen-
te”, Lyotard denomina, igualmente, de “entusiasmo” (Enthusiasm). “Entusias-
mo” seria em sua leitura singular de Kant a “vivificação das faculdades, uma
antecipação sentimental” (daí sua dimensão temporal) que não se dá “em um
domínio, mas num campo informe”.36 (itálico e parênteses nossos).
Para destacar a singularidade de sua noção de sublime convém, ainda,
diferenciá-la da noção de trágico em Schiller, e da recepção dessa noção por
Adorno. Para Schiller, a tragédia moderna “revela a liberdade e a vitória da
razão”, enquanto que para Lyotard o que marca as vanguardas artísticas (ou o
modo moderno) é a impotência do pensamento em apreender o inexprimível.37
Dito de outro modo, a noção de tragédia em Schiller está ancorada em uma
das modalidades kantianas do sentimento do sublime, a saber, o “sublime di-
nâmico”, entendido como os objetos que despertam a potência do sujeito face
à força irresistível da natureza.38 Nesse caso, o sentimento do sublime elevaria
“a fortaleza da alma acima de seu nível médio permitindo descobrir em nós
uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa do sublime ma-
temático, a qual nos encorajaria a medir-nos com a aparente onipotência da
natureza.”39 Não há em Lyotard, no entanto, vale acentuar, nada semelhante
a essa glorificação da potência de resistência do sujeito face à incomensu-
rabilidade da natureza que o ameaça, na medida em que o autor destaca,
como dizíamos há pouco, apenas o espanto (assombro ou entusiasmo) frente
à ameaça de que “um objeto muito grande e muito poderoso” pode “privar o
sujeito de toda e qualquer Ocorrência”.40

35 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997 p.116.

36 Ibidem, p. 105.

37 Schiller, F. Do sublime ao trágico. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

38 Kant, I., op. cit., §28 e§29, p. 106-112.

39 Ibidem, p.107. Para Kant, vale lembrar, “o entusiasmo é sublime porque ele é uma tensão das
forças mediante ideias, que dão ao ânimo um elã que atua bem mais poderosa e duradouramente
que o impulso por representações dos sentidos”. Ibidem, §29, p. 118-119.

40 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 106.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 57

Por fim, embora Lyotard considere que a arte moderna resultou da crise do
conceito tradicional de belo artístico, aproximando-se nesse aspecto de Ador-
no, distancia-se das considerações desse sobre a impossibilidade do sublime
na arte contemporânea41: “A possibilidade do sublime na arte em uma época
em que predomina a imanência e a pequenez humana, e não a elevação racio-
nal no sentido kantiano acaba por reduzi-lo ao limiar do ridículo”.42 (parênte-
ses nosso). Além do que Adorno não faz uma avaliação francamente positiva
das vanguardas artísticas e de suas consequências para a arte contemporânea,
diferentemente de Lyotard que retrocedendo de Newman a Cézanne, para en-
tão avançar até Buren, converte a vanguarda no modo pelo qual a presença
imaterial é aludida na matéria, abrindo a forma sensível à imponderabilidade
do futuro. Em síntese: na noção de sentimento do sublime devidamente dis-
sociada do trágico por Lyotard não teríamos nem o triunfo da Liberdade, na
direção de Kant ou Schiller, apesar das diferenças entre os dois autores, nem a
ironia frente a sua impossibilidade no presente, no sentido de Adorno.
Desse livre jogo de Lyotard com as noções de sublime na tradição moderna, re-
sultou, também, a criação de uma nova modalidade, até então impensada: o “subli-
me imanente”, formulada pelo autor em “O assassinato da experiência pela pintura,
Monory”, em 1984.43 O “sublime imanente”, noção aparentemente paradoxal, é
caracterizado por Lyotard como a superação (Aufhebung) da oposição entre o sen-
timento do sublime e o sentimento do belo, de Burke e Kant, respectivamente. A
pintura de Jacques Monory é apresentada como variante da “arte da presença” dos
pintores simultaneamente abstratos e conceituais, comentadas pelo autor em “Que
peindre?”. Monory é tomado como um pintor figurativo (ou da nova figuração)
que “está de acordo com o mundo contemporâneo das tecnociências”, o que não
significaria que suas pinturas não efetuem uma crítica a esse mesmo mundo tec-
nológico.44 As “imagens” de suas pinturas seriam “demasiadamente belas” (de uma
“beleza exorbitante”, na expressão de Jean Galard) o que implica dizer que, nelas, “a
divisão entre belo e sublime seria inoperante, ou seja, teria se tornado caduca”.45

41 Schiller, F. Do sublime ao trágico. Belo Horizonte: Autêntica, 2011; Cf. também Sussekind,
“Schiller e a atualidade do sublime”. In: Schiller. op. cit., p.87-108.

42 Adorno, T. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 220-222.

43 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984.

44 Ibidem, p. 138.

45 Idem, p. 151. Cf. também Galard, J. Beleza exorbitante: reflexões sobre o abuso estético. São
Paulo: Editora Fap/Unifesp, 2012.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
58 Ricardo Nascimento Fabbrini

Não se pode dizer, portanto, segundo Lyotard, que na pintura de Monory,


tem-se um retorno à estética do belo, ou seja, à harmonia entre o sentido e
o sensível (ou entre imaginação e entendimento), em detrimento da estética
do sublime, e, por conseguinte, um retorno à representação46. Seria, por esse
motivo, um equívoco aproximar sua pintura do hiperrrealismo de Chuck
Close ou de Richard Estes, como pretendia a crítica de arte do período, haja
vista que ela não “faz alusão a uma cópia do objeto, ou de um hipotético obje-
to”, uma vez que os objetos nela figurados resultam de “montagens plásticas”
em conformidade com “a economia libidinal e política” própria às regras do
capital que a “tudo decupa e monta”, de modo a tornar “todos, mercadorias”.47
Nessa pintura teríamos “a incorporação do sublime no belo, a síntese entre
o infinito e o finito na figura de uma experimentação”.48 A estética do sublime
estaria indiciada na desmesura do belo, que por ser demasiadamente grande
escaparia a toda medida constituindo-se como sintoma no plano artístico do
“fato essencial da pós-modernidade”, a saber: o de que a lógica do capitalismo
e da tecnociência é a desmedida, ou seja, as “possibilidades infinitas de trans-
formações e operações dos aparelhos que põem em movimento esta mesma
lógica” - já caracterizada por Lyotard em “A condição pós-moderna” - como
“performances do sistema”, incluindo-se nelas, “sua própria otimização”: o
“crescimento do poder e sua autolegitimação pela produção, memorização,
acessibilidade e operacionalidade das informações”.49
A crítica efetuada pela pintura de Monory seria, desse modo, distinta da
operada pelas obras de Newman, Adami, Arakawa ou Buren, ou seja, pela
“arte da presença” ou do “sublime transcendente”, na forma da interrogação:
“Algo ocorrerá?”, como vimos. Não é a força infinita das Ideias que a pin-
tura de Monory apresenta negativamente, o que significa dizer que não há,
em sua pintura, uma “articulação do inarticulado” enquanto alusão à Ideia
que não pode, contudo, ser mostrada; mas tampouco é a “realidade fini-
ta que desespera e que exaspera por sua pequenez” ou “finitude”): “O céu
de suas pinturas não é belo, nem sublime” transcendente, porque é “Ideia
realizada, a negação tornada realidade, a morte como modo de vida - “o
princípio mesmo da tecnociência e do capital” - que é mostrada no seu céu,

46 Lyotard J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.

47 Ibidem, p.74.

48 Ibidem, p.108

49 Lyotard, J-F. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984, p. XVII.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 59

positivamente, enquanto beleza exorbitante.50 O sublime imanente na pin-


tura de Monory, em outras palavras, não “faz acreditar na realidade deste
mundo”, mas “permite descobrir a sublimidade que o sustenta”, ou seja, o in-
vestimento libidinal, tanatológico sempre crescente, na “arma-instrumento”,
no termo estratégico utilizado por Lyotard, para caracterizar a racionalidade
técnico-científica moderna.51 Suas obras efetuariam, portanto, uma crítica
imanente à dita sociedade pós-moderna na medida em que evidenciam na
beleza exagerada “a negação, ou a morte tornada realidade”.52 Suas pinturas,
como os silk-screens glamorosamente trágicos de Andy Warhol, como mostra
Jean Baudrillard, evidenciariam que a morte, a ausência, ou a perda estão no
cerne do imaginário contemporâneo.53 O potencial crítico residiria, assim,
em mostrar nas imagens decupadas e montadas em Monory, assim como nas
imagens repetidas compondo séries em Warhol, que a imagem hegemônica,
em regime de pós-modernidade, não tem outro segredo além da “artificiali-
dade pura, esta que se desvincula de toda significação natural, sensual”, para
adquirir “intensidade espectral, vazia de sentido, própria do fetiche”, que é
fonte de fascínio.54 São duas formas artísticas análogas de evidenciar “a crise
da experiência vivida nas condições que lhe restam” - nos termos de Lyotard
- em tempos de “performatividade do mundo tecnoestético”.55
O céu nas pinturas de Jacques Monory, como acenávamos, não é, assim,
sublime, no sentido de um céu extra-véu, céu do céu, que descortina algo
situado mais além; mas, tampouco, é um céu belo natural, harmonioso, puro
equilíbrio entre sensibilidade e imaginação; é antes: céu-performático, céu-
-aparelho, céu-simulacro, céu belo demais. Seu céu, diferentemente das pintu-
ras no modo moderno, não alude ao que não pode ser apresentado: “O infinito
é apresentado como ele se apresenta positivamente nas obras observáveis
(o céu-artefato), por meio de seus aparelhos. Ele é o infinito das interações
estabelecidas e possíveis, contido no próprio princípio da tecnociência e do

50 Ibidem, p.84-85.

51 Bardelli, M. op.cit., p.108.

52 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.

53 Baudrillard, J. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

54 Ibidem, p.188.

55 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.149.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
60 Ricardo Nascimento Fabbrini

capital.”56 Nesse sentido, o céu azul de Monory é céu-fato, e não criação ar-
tística. Nem belo, nem sublime, seu céu demasiadamente azul aproxima-se
das nuvens de imagens numéricas do entretenimento, enquanto produtos de
sínteses axiomáticas e operacionais.57 Face ao céu-fátuo de Monory só haveria
a certeza da “inocorrência”, diferentemente do que ocorreria face outros céus
(de Caspar David Friedrich; Caspar Wolf, Kasimir Malevich ou Newman),
nos quais haveria expectação: “Algo ocorrerá?”. No sentimento do “sublime
imanente”, do “sublime menor” ou do “realismo sublime”, nos termos per-
mutáveis de Lyotard, frente à luz azul no céu-escarcéu de Monory haveria a
“perda da memória pictórica da imagem” tendo em vista que essa acabaria re-
duzida a mera “forma-superfície, sem espessura”: ao céu liso, sem face oculta:
céu nulamente anil-nihil.58
As imagens em Monory, portanto, não seriam “especulares” - seja no sen-
tido de representação figurativa, seja no sentido da autorreflexão própria à
arte conceitual -, mas “espetaculares”, porque estariam destituídas de
qualquer “recuo”, “enigma”, ou “mistério”, nos termos de Baudrillard. A
imagem especular é situada por Lyotard, além disso, no campo da “memória
pictórica” (e da perlaboração, como veremos), enquanto a imagem espeta-
cular é inscrita no campo da amnésia (ou do recalque como apagamento
do passado). Por essa razão para que “o olhar seja afetado pela pintura de
Monory não é preciso ser especialista, estar a par dos problemas das vanguar-
das, da história da pintura ou da literatura moderna”; porque suas imagens
são sem memória, sem a espessura temporal tanto das “imagens clássicas”,
quanto das imagens ao modo moderno.59 Na imagem demasiadamente bela
da pintura de Monory teríamos, em suma, um aggiornamento da estética do
sublime, com a substituição do sublime transcendente pelo sublime imanente;
o que significa dizer que a arte da presença imaterial é substituída pela pre-
sença tautológica, desvinculada das Ideias da razão, posto que, nessa pintura
a ideia consiste em puro artifício, na lógica da performance em contínua
expansão da tecnociência.

56 Ibidem, p. 153.

57 De modo análogo, na apresentação da mostra “Les Immatériaux” no Centro Georges Pompidou,


Lyotard atribuirá à “afecção sensível da obra numérica” na arte tecnológica a forma de um juízo
determinante, para pensar a relação entre “material” e “imaterial”; Cf. também Lyotard J.-F. e Cha-
put, T. Les Immatériaux. Paris: Centre Georges Pompidou, 1985.

58 Lyotard, J-F. L´assassinat de l´experience par la peinture. Paris: Le Castor Astral, 1984, p.72.

59 Ibidem, p.77.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 61

Se a crítica à pós-modernidade na pintura de Monory resulta, como vi-


mos, da síntese entre belo e sublime, a negatividade da pintura de Karel
Appel, comentada por Lyotard em “Um Gesto de cor”, de 1983, resultaria da
coexistência tensiva entre os dois sentimentos.60 Nas pinturas de Appel “as
estéticas do belo e do sublime parecem copertencer”, ainda que sob um diffé-
rend, no termo característico ao autor.61 Nessas pinturas, o gesto que atraves-
sa as figuras introduz a reversibilidade contínua entre termos tensionados,
como “finitude e infinitude”, “figuração e abstração” e “belo e sublime”.62
Esse copertencimento tenso entre os sentimentos do belo e do sublime em
uma mesma pintura de Appel seria perceptível segundo Lyotard, no âmbito
da temporalidade, uma vez que a obra bela requer uma “temporalidade aber-
ta”, na medida em que ela “comenta outras obras”, enquanto a obra sublime
visa à instauração do “instante” (hic et nunc) opondo-se à ideia de um conti-
nuum temporal.63
Por um lado, sendo a obra de Appel bela, ela “anuncia e promete uma
infinidade de comentários”, de “apresentações laterais ou de Ideias estéticas”
que acaba por engendrar mais do que uma tensão, um litígio entendido como
conflito entre comentários.64 A “memória pictórica” que consiste em comen-
tários internos às “obras não tem nada a ver com a utilização de imitações e
citações de obras modernas ou modernistas como podem ser observadas na
arquitetura, pintura, ou teatro; e, menos ainda, com o movimento da literatura
que regressa às formas mais tradicionais da narrativa”, diz Lyotard referindo-se,

60 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009.

61 Lyotard, J-F. Le Différend. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983.

62 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009.

63 Ibidem.

64 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009, p. 57. Essa noção de “conflito de comentários” mencionada por Lyotard remete-nos
à ideia de uma universalidade reclamada pelo juízo estético, no sentido que o crítico Clement
Greenberg, também a partir de Kant, caracterizou como uma abertura para a crítica, na medida
em que constitui um espaço de negociação dos sentidos. No entanto, o “conflito de comentários”
em Lyotard diz respeito às relações entre as obras e não aos diferentes juízos emitidos sobre ela
pelos críticos de arte. Cf. Greenberg, C. Estética doméstica: observações sobre a arte e o gosto. São
Paulo. Cosac &Naify, 2002. Cf. também a propósito da relação entre Lyotard e Clement Green-
berg, a nota 92.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
62 Ricardo Nascimento Fabbrini

aqui, ao pós-modernismo dos anos 198065. Esse trabalho da memória efetu-


ado na forma artística – aproximando por essa via, arte, filosofia e psicanáli-
se – Lyotard denominou, recorrendo a Freud, de perlaboração (durcharbeiten).
Do mesmo modo que “o paciente tenta elaborar a sua perturbação presente
associando livremente elementos aparentemente inconsistentes com as situa-
ções passadas o que lhe permite descobrir sentidos ocultos de sua vida e seu
comportamento”, alguns artistas, segundo a analogia de Lyotard, elaborariam
em suas obras elementos do passado artístico por associação livre, no sentido
psicanalítico. Essa “elaboração interpretativa” realizada na imanência da forma
artística de técnicas, meios, e procedimentos ou, ainda, de conceitos tais como
invenção, ruptura ou estilo, que orientaram a modernidade artística, permitin-
do “reescrevê-la” foi também denominada “anamnese do visível”.66
Em sua crítica de arte, Lyotard especifica os modos como a anamnese do
visível realiza-se na obra de determinados artistas. Partindo da anamnese de
um elemento constitutivo da forma - como o ponto, a linha, o plano, a cor,
ou a composição – uma dada obra “conecta-se com as demais obras”.67 Cada
uma dessas obras operaria um trabalho sobre as outras de tal maneira que se
pode conjecturar sobre a existência de uma teia de relações que as entrete-
cem. Cada uma delas realizaria “a perlaboração de outras obras”; o que não
significa afirmar que haja rememoração uma vez que essa pressupõe a ideia
de “repetição” (Wiederholung).68 Pode-se dizer assim, que, segundo Lyotard, a
pintura de Adami submete a linha à anamnese; que Appel opera a anamnese
da cor e da relação entre o figurativo e o abstrato; que Arakawa efetua a ana-
mnese da hipotaxe (ou seja, das relações de subordinação entre os elementos
de uma dada composição) e, que Buren realiza a anamnese do in situ, uma
vez que as “faixas de cor” em suas pinturas visa a evidenciar quais são os ope-
radores que “têm lugar” (Il ont lieu) em seu entorno, conectando-se, assim, às
outras obras que já “tiveram lugar” (ils ont eu lieu).69

65 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.42.

66 O termo “anamnese do visível”, no campo das artes, enquanto uma modalidade de perlabora-
ção, foi utilizado por Lyotard, em O Pós-Moderno explicado às crianças (1986); O inumano: conside-
rações sobre o tempo (1988); Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren (1987) e, por fim, em L´Assassinat
de l´experience par la peinture, Monory (1984).

67 Lyotard, J-F. Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987, p. 76.

68 Ibidem, p. 89.

69 Ibidem, p.92.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 63

De tal modo que a questão central da crítica de arte de Lyotard, sobre-


tudo em “Que peindre” e em “Karel Appel: Un geste de couleur”, é a relação
interna à forma artística, entre anamnese do visível e a ideia de suspensão
(“Algo ocorrerá?”), entendida como a expectativa em relação à “ocorrência”
ou não de algo. Essa tensão, senão oposição entre os dois termos, se eviden-
ciaria, sobretudo, no plano temporal, haja vista que a anamnese enquanto
livre associação a partir de um elemento formal implica uma distensão da
temporalidade, enquanto o acontecimento, visando a instaurar o “instante”
(o aqui e o agora), implica sua contração, como dizíamos. Posicionando os
artistas reciprocamente em função dessa tensão, Lyotard afirma que Adami,
por exemplo, “inclina-se mais à anamnese do que ao acontecimento”, porque
nele é determinante a perlaboração da linha, a partir da qual o artista trabalha
demarcando superfícies por meio de cortes ou decupagens. Diferentemente
“não há que se supor intriga, cena, ou algo que se possa encadear” em Araka-
wa, pois nas obras desse artista prevalece a “disposição plástica” - e nisso
consistiria, “todo seu conteúdo”70. De modo semelhante, o que se oferece ao
olhar na pintura de Newman é antes tom, timbre, matiz de cor; de tal sorte
que, se o intento da crítica é atribuir-lhe um tema, que esse seja a “ocorrên-
cia”, ”aquilo que chega” (“Il arrive”) - “o sentimento segundo o qual: algo está
aqui!”; ainda que esse algo seja a expectativa de que algo ocorra.71 Lyotard
concebe, em suma, diferentes níveis de tensão entre a anamnese do visível e a
“presentificação” do “impresentificável”, de tal modo que se pode conjecturar
sobre a existência nas obras de uma pulsação entre a sístole (o tempo do ins-
tante) e a diástole (o tempo estendido) ainda que, em algumas delas haja um
pulsar quase mudo na medida em que a alegação da presença prevalece sobre
a anamnese, como em Arakawa e Newman.
É possível estabelecer, assim, uma relação entre a perlaboração em Lyo-
tard e a “dialética do material” em Adorno, porque para ambos a liberdade
do artista frente àquilo sobre o qual ele vai trabalhar é, simultaneamente,
concedida e limitada pelo “material” entendido, aqui, como a condição de
possibilidade para o exercício da liberdade de criação artística. Para Adorno,
vale lembrar, o artista trabalha sobre o material tal como este se lhe apresenta,
ou se lhe impõe, buscando resolver questões por ele trazidas, de modo que
a criação artística se assemelharia à resolução de problemas: “Não problemas
eternos e universais, e sim questões colocadas concretamente pela própria

70 Ibidem, p. 117.

71 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p.87.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
64 Ricardo Nascimento Fabbrini

tradição”, ou seja, pelo uso dos materiais ao longo do tempo, como “as ques-
tões trazidas pela linha, pela cor, pela composição, ou pelo lugar de exposi-
ção”, se recuperamos as questões centrais nos artistas comentados em “Que
Peindre”.72 Esse paralelo justifica-se se lembramos, ainda, que a “matéria da
arte”, segundo Lyotard, “não é a matéria apreendida em formas; mas é pro-
fusão de formas”.73 O artista, no entanto, não seria livre para experimentar
conforme sua vontade, mas para buscar aquilo que, mesmo ainda não tendo
sido inscrito, já se apresenta como “presença brisante” na matéria; ou seja,
como algo próximo, ao que Adorno denominava “imposição dos materiais”,
em sua “Filosofia nova música”.74
A “tecnologia artística”, dito de outro modo, não seria resultado, em Lyo-
tard e Adorno, de uma disposição anímica do artista, mas da historicidade
dos materiais: “A escolha dos meios – afirma Adorno - não é decidida nem por
uma intuição qualquer do compositor (ou do pintor, no caso de Lyotard) sobre o
curso da história, nem por uma necessidade subjetiva de expressão, mas pela
própria consistência do que é figurado” no “embate com o material”.75 (grifos
nossos). A presença da matéria seria, assim, brisante, porque na perlaboração
o artista não se submete simplesmente à materialidade dos meios, mas a aco-
lhe no mesmo movimento que dela “se desvia”, mediante a “quebra” (“brisé”)
decorrente da livre associação por parte do artista, segundo Lyotard. Seme-
lhantemente, em Adorno, a obra que acolhe os materiais pressupõe “a dialé-
tica entre liberdade e necessidade na configuração da forma”, a contrapartida,
no plano dos materiais, da “dialética histórica”, na perspectiva do autor.76 É
o “rigor da construção” que possibilitaria, para Adorno, “a real liberdade de
expressão subjetiva”, o que significa dizer que “a liberdade ocorre no próprio
material”77. Em resumo: tanto na perlaboração lyotardiana quanto na lógica

72 Cf. a propósito da dialética dos materiais em Adorno: Almeida, J., Crítica dialética em Theodor
Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2007, p.302.

73 Lyotard, J-F. Karel Appel: Un geste de couleur/A Gesture of Color. Leuven: Leuven University
Press, 2009, p. 64.

74 Adorno, T. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, p.1974.

75 Adorno, T. “Arbeitsprobleme des Komponisten”. In: Musikalische Schriften VI, 1984; apud Al-
meida, J. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP): Ateliê
Editorial, p.303.

76 Almeida, J. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia (SP):
Ateliê Editorial, p.302.

77 Ibidem, p.303.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 65

dos materiais adorniana, o reconhecimento da evolução do material, com sua


força na imposição, não se confunde com sua imediata realização na forma
artística. Na perlaboração, assim como na dialética dos materiais, o domínio
do material propicia um novo uso das formas, de resistência ou brisante, ao
mesmo tempo em que conforma esse uso às exigências do próprio material.78
A “filosofia da arte em devir” de Lyotard e a teoria estética de Adorno tam-
bém convergem na crítica à comunicação: “Nenhuma obra de arte deve ser
descrita nem explicada sob as categorias da comunicação”, afirma Adorno.79
De modo análogo, Lyotard mostra que a arte do “sublime transcendente”,
seja das vanguardas históricas ou da arte do presente, ou seja, a arte no modo
moderno realiza uma espécie de “épokhé da comunicação”.80 Na fruição das
obras comentadas em sua crítica de arte teríamos, assim, algo como “comuni-
cação sem comunicação.”81 Essa noção aparentemente contraditória designa,
em outras palavras, uma comunicabilidade “originária” porque “anterior à
pragmática comunicacional”; de tal sorte que afirmar que a arte opera uma
“épokhé” significa dizer que ela interrompe, ou torna “inoperante” (désœuvrée)
ou “desorientada” (désaffectée) essa pragmática.82 A arte da presença reagiria,
assim, ao baralhamento, senão indistinção, entre arte e comunicação, hoje
pacificamente aceita. Suas obras se oporiam, inclusive, à diferenciação entre
arte e comunicação a partir tão somente de uma diferença quantitativa no
que se refere ao nível informacional - como defendia a teoria da cibernética
de Norbert Wiener ou a teoria da informação de Abraham Moles ou Max
Bense, nos anos 1950 a 1970, - uma vez que a diferença entre elas seria antes

78 Apesar dessa convergência, é possível contrastar os dois autores no que se refere à historicida-
de dos materiais afirmando que em Adorno a “dialética dos materiais” é inseparável do processo
social, enquanto a anamnese do visível, em Lyotard, pressuporia uma “dívida de infância”: “Uma
‘infância’ que não seria uma época da vida, mas uma incapacidade de representar e ligar um algo”
(Lyotard, J. Heidegger e os judeus. Petrópolis: Vozes, 1994). Cf. também a propósito dessa tensão
entre os dois autores: Bardelli, M., op. cit., p.105). No intento de reaproximá-los pode-se, todavia,
contra-argumentar que a atualização do estado histórico dos materiais e técnicas artísticas, em
Adorno, corresponderia à tentativa, em Lyotard, nunca plenamente realizada, da obra saldar uma
“dívida com a alteridade”; “dívida de gesto”- uma “dívida de infância” (Lyotard, op. cit., p, 107).
Nos dois casos teríamos o intento comum de atualização, visando a suprir uma falta, tornando
indicialmente presente algo ausente, e não representar uma cena (intriga ou narrativa) pela citação
de signos do passado.

79 Adorno, T. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 265.

80 Lyotard, J. F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997

81 Ibidem, 1997, p.113.

82 Ibidem, p. 112.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
66 Ricardo Nascimento Fabbrini

qualitativa porque concernente à estrutura da forma artística. O problema


dessa concepção que é retomada atualmente, em outra configuração teórica,
constituindo-se como doxa dominante, é que ela reduz a arte à comunicação,
ou, em sentido inverso, considera a comunicação mass-midiática ou digital,
logo mercadológica, como arte.
A noção de “comunicação sem comunicação” em Lyotard é inseparável,
vale acrescentar, da noção de “comunidade de uma falta” (communauté du
défaut) que remete, por sua vez, à universalidade kantiana (ou sensus com-
munis) na medida em que essas noções se fundamentam na ideia comum
de “passibilidade”.83 Lyotard atribui ao sensus communis kantiano, em outros
termos, o sentido de uma “comunidade de uma falta”: “Em Kant, o julga-
mento de gosto supõe uma comunidade que faz sempre falta, e a estética se
desdobra em uma falta de comunidade que é também a comunidade de uma
falta”84 Essa noção de “comunidade de uma falta”, e não de comunidade de
fato, aproxima a reflexão estética de Lyotard, de diversos autores contempo-
râneos, os quais recorrem cada qual ao seu modo à noção de comunidade
(muita vez, em substituição à ideia, hoje fora de lugar, de utopia) em di-
ferentes regimes como os da ética, estética, clínica, e política. No rastro de
Maurice Blanchot, Georges Bataille, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Fernand
Deligny e Roland Barthes, os autores Jaques Rancière, Toni Negri, Michael
Hardt, Jean-Luc Nancy, Mauricio Lazzarato, Giorgio Agambem ou Francisco
Ortega vem figurando formas de vida que se furtam à dita “vida em comum”
(como “comunidade identitária” ou “fusional”) tais como: a “comunidade dos
celibatários; a comunidade negativa; comunidades dos sem comunidades;
a comunidade impossível; a comunidade de jogo; a comunidade que vem;
a comunidade da singularidade qualquer”. 85 São diferentes designações de
formas “não unitárias”, “não totalizáveis”, “não filialistas” de comunidade;
ou seja, “comunidade feita de singularidades” – porque irredutíveis tanto ao
“individualismo” como ao “comunialismo”.86

83 Ibidem, p.113.

84 Lyotard, J-F. Textes dispersés I: esthétique et théorie de l’art / Miscellaneous Textes I: Aesthetics and
Theory of Art. Louvain: Leuven University Press, 2012, p.184.

85 Pelbart, P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.19-42; Cf. também,
do mesmo autor, O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento, São Paulo, N-1 edições, 2013.

86 Idem..

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 67

A “comunicação sem comunicação” de Lyotard seria análoga, assim, a uma


“comunicabilidade universal necessária ao sentimento estético” nos termos de
extração kantiana.87 Para Kant, como se sabe, quando o sujeito ajuíza “Isto
é belo”, ou “isto é sublime”, ele não se contenta em afirmar que esse juízo
tenha validade somente para si, porque esse juízo subjetivo exige um assenti-
mento geral, como se (als ob) tivesse emitido um conceito objetivo.88 Por isso
o sentimento do belo ou do sublime, ou melhor, “a satisfação determinada
pelo juízo de gosto” é segundo Kant “aquilo que apraz universalmente sem
conceito”, no que se refere ao belo; ou “aquilo que produz rápida alternância
entre atração e repulsão”, no caso do sentimento do sublime.89 Perguntava
Kant, em linhas gerais: “Qual a razão disto? Por que o juízo estético, emi-
nentemente subjetivo exige, paradoxalmente, o consenso universal?”90 Sua
resposta é que a satisfação ou comoção determinada pelo juízo estético que se
apoia no livre jogo entre entendimento e imaginação, no caso do belo, ou na
tensão entre imaginação e razão, no caso do sublime, seria “uma necessidade
subjetiva que aparece como objetiva”.91 Daí sua universalidade que não pode
ser confundida, adverte Lyotard, com a ideia de comunicação enquanto rela-
ção intersubjetiva, mediada pela tecnociência (a mass-midia ou rede digital).92

87 Kant, I. op. cit., §5, p. 54-65.

88 Ibidem, §9, p. 61-64.

89 Ibidem, §9, p.61-64.

90 Ibidem, §9, p.61-64.

91 Ibidem, §9, p.64.

92 Diversos autores, além de Lyotard, mobilizaram a “estética kantiana” com o objetivo de anali-
sar o estatuto da arte, e da recepção estética, na contemporaneidade, entre os quais Clement Gre-
enberg; Fredric Jameson; Artur Danto (Cf. do autor A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia
da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005); e Thierry de Duve (Cf. Kant after Duchamp. New York: Mit
Press, 1996). Destaquem-se, aqui, apenas, as diferentes apropriações da noção de universalidade
do juízo de gosto (e, por conseguinte, da relação entre ética e estética), em Lyotard e Greenberg.
Lyotard acentua que o juízo de gosto (com seu devir comunidade, como veremos), é puro porque
“liga imediatamente” prazer à “simples contemplação do objeto”; de modo que este ajuizamento
é direto, simples, imediato, na medida em que, nos termos de Kant, “quando declaramos algo
belo” (ou sublime), “não se permite a ninguém ser de outra opinião”. (KANT, I., op. cit., §1 a §22
p.47-86). Diferentemente, para Greenberg, o “ato de universalização” do juízo é uma abertura
para a crítica enquanto persuasão sobre a “validade dos critérios” que orientam o juízo estético
sobre determinada obra de arte. O assentimento universal kantiano é tomado, assim, pelo crítico
norte-americano, como o acatamento de um “juízo transformado no consenso”. A universalidade
do juízo sobre determinada obra resultaria, em outros termos, da “negociação do sentido”, ou seja,
de um “debate crítico”, travado, sobretudo, pela crítica de arte, sobre a qualidade artística dessa
obra (ou seja, se a obra é “boa” ou “ruim”, nos termos do autor). Cf. Greemberg, op. cit.).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
68 Ricardo Nascimento Fabbrini

Certas vanguardas artísticas do alto modernismo (enquanto modo moder-


no), argumenta Lyotard, como o neoplasticismo e o suprematismo, “soube-
ram em seu tempo explorar essa condição de universalidade ao assumirem
um posicionamento crítico no intento de alegar o “impresentificável”, eviden-
ciando, assim, a ausência do espírito em relação à presença”.93 Pode-se dizer,
portanto, em termos kantianos, que nos comentários aos artistas selecionados
Lyotard toma o juízo de gosto como juízo estético puro, e não como juízo es-
tético-lógico, o qual pressuporia que em sua produção houvesse sempre uma
intenção, afastando-se assim da natureza; dito de outro modo: seus artistas
efetuariam uma crítica à “beleza aderente”, na expressão de Kant, aquela na
qual “a representação da forma de um objeto acompanha sempre uma finali-
dade”, haja vista que “a representação do objeto é, nesse caso, inseparável do
conceito daquilo que este objeto deve ser”, ou da intenção do artista que o
cria; ou seja, forma-mercadoria.94
O sentimento que se associa a uma “comunidade de uma falta” em Lyo-
tard é, em suma, análogo ao que Kant denomina “sentimento do sublime”,
que “pode vir à tona quando o espírito não pode apresentar os dados na
forma da intuição”:

É preciso estar apto a ser tocado pelo sentimento, o que requer uma comu-
nidade imediata recusada na problemática da comunicação. Comunicar é
estritamente agir. A interatividade exigida no contato com as tecnologias de
informação, não poderia ocorrer sem mediação. Espírito ativo somente.95

Uma “comunidade de uma falta”, ao contrário, segundo Lyotard, “deve estar


à espera do sentimento, no sentido da passibilidade kantiana”, ou seja, da
“recepção imediata daquilo que se dá”.96 E seria essa “passibilidade” enquanto
gozo e pertencimento necessários a uma comunhão imediata – em oposição
à ideia de sociedade da comunicação ou de “racionalidade comunicativa”,
no sentido de Jurgen Habermas – que se “encontraria recalcada” em nos-
sos dias, na “problemática geral da comunicação, chegando mesmo a parecer

93 Lyotard, J-F. “Algo assim como: Comunicação... sem Comunicação”. In: Parente, A., (Org),
Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.

94 Kant, I. op. cit., §10 a §22.

95 Lyotard, J-F. op. cit., p. 265.

96 Ibidem, p.266.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 69

vergonhosa”.97 Ela é a marca da “falta de uma comunidade dada”, pois acena


- por uma disposição de ânimo infinita, e não pelo ativismo comunicacional
– “com a possibilidade da existência de uma destinação racional”.98 Lyotard
recorre, em suma, à universalização do juízo estético em Kant em sua crítica
à sociedade da comunicação, sintetizada na expressão “comunicação sem co-
municação porque esse juízo operaria“ como devir comunidade no intento
de suprir uma falta.99
Em sua crítica de arte, Lyotard comenta, portanto, essencialmente pintu-
ras que resistem ao paradigma comunicacional no “mundo tecnocientífico e
pós-industrial.”100 Sua posição em relação ao processo tecnológico é, assim,
bastante crítica como se evidenciou até mesmo em sua curadoria à exposição
Les immateriaux no Centro Georges Pompidou, de Paris, em 1985101. Segundo
o autor, “a espécie humana é lançada adiante por esse processo tecnológico de
dominação de objetos cada vez mais complexos, sem ter a menor capacidade
de dominá-lo”102. E mais: afirma que o sistema de dados disponibilizados
pelas tecnologias da eletrônica e da informação no mundo mass-midiático e
na rede digital não produziriam nada semelhante à arte da presença que força
o pensamento, haja vista que nesses casos “não se pensa binariamente”; “não
se trabalha sobre unidades de informação (os bits), mas sobre configurações
intuitivas e hipotéticas” que aceitam “dados imprecisos, ambíguos, que não
parecem ter sido selecionados segundo um código ou uma capacidade de
leitura pré-estabelecidos.”103
Sua crítica estende-se também à recepção das informações do mundo da
tecnociência, uma vez que a caracteriza não como contemplação, no sentido
da passibilidade kantiana - como vimos na fruição da “arte da presença” - mas
como uma “experiência estética de outra ordem”, haja vista que demanda
“participação” e produz prazer sensorial. Essa participação ou interatividade

97 Ibidem, p. 255.

98 Lyotard, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996, p.206.

99 Ibidem, p. 207.

100 Lyotard, J-F. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984, p. 86.

101 Lyotard, J.F. L’ Album - catalogue de l’exposition Les Immatériaux. Paris: Centre Georges Pom-
pidou, 1985.

102 Lyotard, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 75.

103 Ibidem, p. 123.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
70 Ricardo Nascimento Fabbrini

sensório-motora requerida, por exemplo, pelo “jogo em um computador”,


no exemplo de Lyotard, elimina a possibilidade do “sentimento estético” (ou
passibilidade): “Não se pedem intervenções ao observador” face às pinturas
que “alegam uma comunidade”, como as que analisa em sua crítica de arte:

O que visamos hoje não é o sentimento que ainda encontramos em um


pequenino esboço de Cézanne ou Degas; é, pelo contrário, que o sujeito que
recebe não receba, que ele não se deixe perturbar, é a sua autoconstituição
enquanto sujeito ativo, em relação ao que lhe é dado que está em jogo; pois
o que se espera dele é que ele se reconstitua imediatamente ao ponto de se
identificar como alguém que intervém.104

Pensando a relação entre a arte da presença e a imagem numérica, a partir de


Martin Heidegger, Lyotard contrapõe, nessa mesma direção, a poética no pla-
no da Empfindung kantiano, ao gestellt (estruturado, programado, instalado)
“no plano da tecnociência.”105 Sobre a possibilidade de uma “arte numérica” –
na expressão de Edmond Couchot – o autor argumenta que uma obra de arte
não pode ser tomada como gestellt em razão da “improbabilidade” que lhe é
constitutiva, de tal maneira que um “programa de arte não seria possível, a
não ser que se considere a possibilidade, aparentemente paradoxal, de um
“programa do improvável”.106 Sendo as propriedades qualitativas (ou dados
sensíveis de uma obra de arte) da ordem do improvável, qualquer tentativa de
convertê-las em unidades de informação, estaria malograda porque sempre
remanesceria algo do sensível que escapa ao enquadramento (Gestell) pelas
tecnologias da comunicação. Além disso, as imagens numéricas acumuladas
nos bancos de dados da tecnociência em uma escala que excede a capacida-
de humana seria muito distinta do processo de memória operado na “arte
da presença”, porque, no primeiro caso, teríamos repetição ou rememora-
ção, e, no segundo, perlaboração ou anamnese, como vimos. Significa dizer,
ainda, que a primazia concedida à informação no plano das tecnologias da
informação não permitiria, segundo Lyotard, o acesso à presença adiada (ao

104 Ibidem, p. 121.

105 Ibidem, p. 124-125; Cf. também Heidegger, M., “A questão da técnica”. In: Scientiae Studia:
Revista do Departamento de Filosofia, v.5; no. 3. 2007.

106 Lyotard, J.-F. Textes dispersés I: esthéthique et théorie de l´art. Louvain: Leuven University Press,
2012, p. 176-178; Cf. também Couchot, E. & Hilaire, N. L´art numérique. Comment la technologie
vient au mond de l´art. Paris: Édition Flammarion, 2003.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 71

acontecimento). Não apenas o sentimento da alegação da presença seria inter-


ditado pelo Gestellt, mas a própria possibilidade de qualquer sentimento es-
tético, seja o sentimento do belo ou do sublime (transcendente ou imanente):

A própria ideia de que há uma recepção ‘inicial’, o que chamamos depois


de Kant de uma ‘estética’, um modo, empírico ou transcendental, de afec-
ção do espírito por uma ‘matéria’ que ele não controla plenamente, que
lhe acontece aqui e agora, essa ideia parece ser de um arcaísmo fora de
moda.107

É essa atividade requerida pelas novas tecnologias de comunicação que im-


possibilitando a passibilidade própria ao juízo de gosto, constituiria, em apa-
rente paradoxo, a nova modalidade de passividade.
Lyotard compartilha, assim, com Edmond Couchot, Alain Renaud, e Pier-
re Lévy, o diagnóstico segundo o qual a imagem tecnológica ou numérica tor-
nou-se dominante no mundo da tecnociência ao ponto de constituir-se como
novo regime estético.108 O prazer sensorial dela decorrente não resultaria do
juízo de gosto, como no caso da arte da presença, mas do juízo determinante
ou juízo de conhecimento no sentido kantiano, haja vista que teríamos a su-
bordinação da intuição ao conceito; o que aproxima esses autores, diga-se de
passagem, de Adorno, ao afirmar, ainda nos anos 1940, que “as categorias do
entendimento operam também nos produtos da indústria cultural”.109 Lyo-
tard, no entanto, analisou tanto como curador da exposição Les immateriaux,
quanto em textos dispersos, a possibilidade dos novos meios tecnológicos
produzirem uma poética tecnológica. Examinou, em outros termos, se seria
possível uma arte numérica enquanto arte da presença no sentido de um “su-
blime tecnológico”, no interior desse novo regime estético; retomando – em
outra chave - seus ensaios sobre o sublime imanente na pintura de Monory,
nos quais apresentara a arte numérica como último elo de uma linhagem que
compreenderia a nova figuração, a pop arte, e o hiperrealismo, como vimos.
Se a reprodutibilidade técnica ou o desenvolvimento das tecnologias eletrôni-
cas de informação não significaram o fim das artes, mas a mudança no regime

107 Lyotard, J.-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 60.

108 Cf. Couchot, E. & Hillaire, N., op. cit.; e, também, Lévy, P. O que é o virtual? São Paulo:
Editora 34, 1996.

109 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 1985, p. 106.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
72 Ricardo Nascimento Fabbrini

estético, “a pretensão artística da obra numérica” seria, segundo Lyotard, re-


sistir às imagens dominantes no regime do eletroentretenimento digital.110
É preciso, nessa direção, alertava Lyotard, que na verificação da potência po-
ética da imagem tecnológica se proceda a “uma análise fenomenológica da pre-
sença do virtual (ou da imagem numérica).” 111 “É possível - perguntava o autor
- atingir o “páthos” pela imagem eletrônica? É possível a criação de uma imagem
tecnológica que produza receio, assombro, pressentimento, levando o fruidor a
escutá-la em silêncio com o olhar? Será que “pode ocorrer algo”, como um “senti-
mento de gozo” ou de “pertencimento” decorrente da “comunicabilidade imedia-
ta” entre a obra e o observador, por meio de um computador? 112 - como acredi-
tam Pierre Levy, Edmond Couchot, Gilbert Smondon, e Pierre Schaeffer (leitores
de Walter Benjamin); 113 ou será – indaga ainda Lyotard - que a imagem digital
ou numérica anula a facticidade dos eventos, impossibilitando a “recepção carnal”
(o acontecimento)? 114 Diversos autores como Paul Virilio e Alain Renaud (leito-
res de Adorno) não apostam, nessa última direção, que as possibilidades abertas
pelas novas mídias permitirão ao observador “aceder ao páthos”, na expressão de
Lyotard, mostrando que os novos meios técnicos podem aceder “ao novo univer-
so estético do sublime tecnológico”, como atestam, inclusive, o grande número
de “imagens numéricas ocas”, “imagens sem presença”, que nada representam
além do vazio.115 Percebendo essas imagens, assevera Lyotard, restaria ao fruidor,
apenas ajuizar com pesar: “Não há sequer apresentação, coisa alguma está aqui,
agora; só há inocorrências e não acontece mais nada”; ou seja, essas imagens tec-
nológicas não assumiriam a forma suspensiva da interrogação na medida em que
elas não alegam o impresentificável (“Ocorrerá algo?”), mas a forma deceptiva da
assertividade (“Nada ocorre!”, a não ser a inocorrência vazia).116

110 Lyotard, J-F., op. cit., p. 266.

111 Lyotard, J-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 60.

112 Lyotard, J-F., “Algo assim como: Comunicação...sem Comunicação”. In André Parente (Org),
Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 1993, p. 252.

113 Maciel, K. “A última imagem”. In Parente, A. (Org), op. cit., p. 253-257 Cf. Simondon, G.,
L´invention dans les techniques. Cours et conférences. Paris. Éditions du Seuil, 2005; Virilio, P., A má-
quina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994; e, por fim, Schaeffer, J-M., A imagem precária.
Campinas (SP): Papirus, 1996.

114 Lyotard, J-F., op. cit., p.258.

115 Ibidem, p. 266.

116 Lyotard, J.-F.,. Algo assim como: Comunicação... sem Comunicação . In Parente, A. (Org), op. cit., p.253.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 73

No centro da crítica de arte de Lyotard está, assim, a atribuição às obras de


determinados artistas, de uma dimensão de negatividade, de crítica à socie-
dade da comunicação e da estetização generalizada. Essas obras de resistência
que foram caracterizadas como agenciadoras da dinâmica do desejo, ou do
“figural”, em seus textos sobre escrituras dos anos 1960 e 1970, foram reto-
madas em seus textos sobre pintura dos anos 1980 e 1990 na chave do senti-
mento do sublime. Mesmo reconhecendo a dificuldade de um ajuste concei-
tual, e evidentemente terminológico, entre a economia libidinal e a estética do
sublime, é possível supor que as “dinâmicas de ambas as estéticas convivam
no mesmo contexto”: o da especificação da efetuação material de cada obra
de arte.117 Nesse sentido, se admitirmos que Lyotard, em Discours Figure, de
1971, se “ateve ao fato de que o figural mergulha suas raízes no fundo das tre-
vas do incomunicável” não é difícil aproximar tal noção do sentimento do su-
blime enquanto “algo como comunicação sem comunicação”, como vimos.118
Reforçando a proximidade entre arte e filosofia, defendida por Lyotard no
curso de toda sua trajetória, pode-se dizer que a arte “movimenta o desejo” em
“busca da unidade perdida”, na linguagem de sua “primeira fase”.119 A arte rea-
lizaria o “essencial do desejo” que reside na “estrutura que combina a presença
e a ausência”, o que nos remete à arte da presença imaterial: “existe o desejo na
medida em que o presente está ausente a si mesmo, ou o ausente presente.”120
O desafio da arte seria em outros termos, segundo Lyotard, “despertar o enig-
ma do desejo” que pode ser figurado no “jogo da bobina do fort/da” que ritma
a alternância da desaparição e do retorno maternais. Assim como “o fort/da
freudiano repete a alternância do aparecer e do desaparecer”, o gesto da pintu-
ra, “suspenderia a repetição e contrairia a alternância”, como em Newman, em
“um espasmo de espaço-tempo-cor” 121 ; ou seja, as noções de falta ou perda,
centrais na estética do figural, corresponderiam – se quisermos atribuir uma
unidade às “estéticas” de Lyotard - às noções de invocação ou alegação da
presença, inerentes à estética do sublime transcendente, como vimos.

117 Gérard Sfez, Autrement qu’être en art. In Françoise Coblence & Michel Enaudeau, “Lyotard et
les arts”. Paris: Klincksieck, 2014; apud Bardelli, M.,op. cit., p.86.

118 Lyotard, J-F., O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 88.

119 Lyotard. Por que filosofar?. São Paulo: Parábola, 2013, p. 61.

120 Idem, p. 106.

121 Jean François Lyotard, Que Peindre? Adami, Arakawa, Buren. Paris: La Différence, 1987, p. 34.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
74 Ricardo Nascimento Fabbrini

Das obras comentadas por Lyotard decorre, assim, o efeito de assombro


na espera, uma abertura fundamental para além de sua submissão ao paradig-
ma comunicacional, haja vista que seus fruidores vivenciariam a experiência
de uma linguagem que não comunica posto que não “expressa” o sujeito nem
se refere ao objeto (ou referente). Seria no plano de uma opacidade irredutí-
vel da linguagem que a forma artística se insurgiria naquilo que se subtrai à
imoderação da beleza, ou sublime imanente. Na forma autônoma, resultante
da tensão entre a alegação da presença e a perlaboração de elementos formais
como linha, forma e cor, é que se abre, em sentido contrário ao da comunica-
ção corriqueira, um campo de indeterminação. Na arte da presença imaterial
de Lyotard, em outros termos, há uma expressão sem sujeito e sem mundo,
situada, portanto, fora do horizonte relacional do reconhecimento intersubje-
tivo. É na expressão do “não-subjetivo do sujeito”, ou seja, na impessoalidade
ou despersonalização da linguagem no sentido do on em francês, como des-
tacou Blanchot, ou do neutro, como disse Barthes, que residiria a dimensão
política, de resistência ou negatividade da forma artística.122 É nesse coefi-
ciente de indeterminação da forma que se acenaria para a “comunidade por
vir”, enquanto nova forma de subjetividade política.
Na arte autônoma da presença imaterial - que não deve ser identificada à
clausura ou absolutismo esotérico da forma artística enquanto mônada sem
janelas - a manifestação da inquietude da linguagem em relação ao sentido e
ao referente, operaria como índice da “comunidade de uma falta”, na expres-
são de Lyotard. Das formas artísticas decorreria um sentimento de suspensão
entre o tempo presente e aquele que se anuncia sem jamais se realizar; ou
nos termos da economia libidinal do autor, um “desejo insatisfeito em per-
manente expectativa”.123 Nessas formas artísticas o que ocorre é o que nelas
próprias se anunciam: “Algo ocorrerá?”. É na sustentação dessa interrogação,
na “expectativa de que alguma coisa surja”, ou, ainda, na espera por algo que
“aconteça no acontecimento”, na formulação de Lyotard - que se evidenciaria
a possibilidade de lugares que ainda não tiveram lugar venham a tê-lo.124
É na fruição que suspendendo toda a relação de dominação – assim como
no juízo reflexivo kantiano, no qual não há subjugação da sensibilidade
pelo entendimento ou vice-versa, mas o livre jogo dessas faculdades – há

122 Blanchot, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.: Cf. também Barthes, R. O Neutro.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.

123 Lyotard, J-F., Économie libidinale. Paris: Les Editions de Minuit, 1974.

124 Lyotard, J-F., Peregrinações: Lei, Forma, Acontecimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

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Estética e crítica da arte em Jean-François Lyotard 75

expectação de que alguma coisa há de surgir desse impulso que força a for-
ma para fora de si mesma, para o informe, como índice de alternativas ao
dito real.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.47-77, jan.-jun. 2017
Vanessa Teixeira de Oliveira*

Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de


Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein

Ecstasy, Parody, Montage: the murder of Vladimir


and the theory of the image of Sergei Eisenstein

Resumo
O presente trabalho discute a teoria da imagem proposta pelo cineasta Serguei
Eisenstein (1898-1948), a partir da cena do assassinato da personagem de Vladímir
Stáritski, na segunda parte do filme Ivan o Terrível (1945). Segundo Eisenstein,
esta cena seria o ponto mais alto de toda a sua obra, como uma materialização
de suas teses sobre a criação de imagens artísticas. Observando algumas reflexões
do cineasta sobre esse momento-chave de sua obra artística e teórica, procura-
se analisar os procedimentos adotados nessa cena, com foco nas noções de MLB
(retorno ao ventre materno), êxtase, paródia e montagem.

Palavras-chave: Mutterleib; MLB; êxtase, paródia, montagem; imagem.

Abstract
This article discusses the theory of the image proposed by the filmmaker Sergei
Eisenstein (1898-1948) focusing the scene of the assassination of Vladimir Staritski
in the second part of the film Ivan the Terrible (1945). According to Eisenstein,
this scene would be the highest point of all his work, since in it one could find a
materialization of his theses on the creation of artistic images. Looking at some of
the filmmaker’s reflections on this key moment in his artistic and theoretical work,
we try to analyze the procedures adopted in this scene, taking as references the
notions of MLB (return to the womb), ecstasy, parody and montage.

Keywords: Mutterleib; MLB; ecstasy; parody; montage; image.

* Professora do Departamento de Teoria do Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas


da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); E-mail: vanessa.t.oliveira@unirio.br.

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80 Vanessa Teixeira de Oliveira

O filme Ivan o Terrível é exemplar da relação tortuosa e ambígua que Ser-


guei Eisenstein manteve com o regime stalinista1. A primeira parte de Ivan
ganhou o Prêmio Stálin em janeiro de 1946. A segunda parte, finalizada em
dezembro de 1945, não teve o mesmo destino, sofreu várias críticas e teve
sua exibição proibida. Sua projeção só foi autorizada na URSS e no exterior a
partir de 1958, dez anos depois da morte de Eisenstein e cinco anos depois
da morte de Stálin. Na resolução do Comitê Central do Partido Comunista,
publicada em 4 de setembro de 1946, a segunda parte de Ivan é proibida
devido a “desvios ideológicos” e “formalismo”. Desde 1928, quando ocorreu
a Primeira Conferência do Partido sobre Cinema, havia uma campanha a
favor da produção de filmes que o proletariado pudesse compreender mais
facilmente, com uma linha de argumentação clara e uma viva caracterização
das personagens, em detrimento das experiências da vanguarda “formalista”,
identificada, sobretudo, pela ênfase na montagem como procedimento artís-
tico. Mais especificamente quanto às outras críticas sofridas por Ivan, Eisens-
tein teria revelado a sua ignorância da história, representando a oprichnina,
a guarda pessoal do tzar, “como um bando de degenerados, uma espécie de
Ku-Klux-Klan”, e “Ivan – um homem voluntarioso e de caráter – como um
homem débil e vacilante, indeciso, uma espécie de Hamlet”2.
Não deixa de ser curioso que Eisenstein tenha sido criticado em termos
de ignorância histórica, tendo em vista que o roteiro do filme, publicado
em 1943, e aprovado anteriormente pelo governo, já trazia uma das maiores
aberrações históricas: a vitória de Ivan na Guerra da Livônia e a conquista de
uma saída da Rússia pelo Mar Báltico. Ivan perdeu esta guerra, e foi Pedro o
Grande quem realizou a ambição do Terrível de alcançar a costa do Báltico.
O contexto histórico da realização de Ivan o Terrível corresponde ao mo-
mento em que o stalinismo promovia “retornos” em direção ao passado tzaris-
ta da Rússia. A realização do filme fez parte de uma campanha oficial, iniciada
no inverno de 1940-1, para fomentar uma imagem positiva do tzar Ivan IV
(1530-1584), conhecido sob a alcunha de “o Terrível”. No mesmo momento,
também fora encomendada ao escritor Alieksiêi Tolstói uma peça sobre o

1 Ivan o Terrível foi objeto da minha tese de doutorado, Eisenstein-Ivan-Meyerhold: teatro e enigma
no cinema de Serguei M. Eisenstein (um estudo de Ivan o Terrível), defendida no âmbito do Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO), sob orientação da professora Angela Materno de Carvalho, no ano de 2010.
Inevitavelmente, algumas reflexões desenvolvidas na tese serão retomadas aqui.

2 Ripoll-Freixes, E. La polémica acerca de “Iván el Terrible’. In: Eisenstein, S. Ivan el Terrible, p.


134-135.

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Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 81

tzar3. Estas encomendas se tornaram públicas quando do anúncio, em 16 de


março de 1941, do Prêmio Stálin para a novela Pedro I, de Tolstói, e para o
filme Alexandre Nevski, dirigido por Eisenstein e Dimitri Vassilev4.
Ivan seria mais uma obra, na esteira do que ocorria desde a segunda me-
tade da década de 1930, de glorificação da memória dos criadores do Estado,
de louvação aos “grandes homens” da história da Rússia. A admiração pelos
tzares russos já não era considerada, então, como uma espécie de desvio ide-
ológico. Uma linha de continuidade entre a URSS e o regime tzarista passou
a ser trabalhada, de maneira mais sistemática, em livros educativos e obras
artísticas. Esse novo olhar para o passado tzarista foi justificado de diversas
maneiras, por diferentes estudiosos, como demonstra a historiadora Mau-
reen Perrie no livro O Culto de Ivan o Terrível na Rússia de Stálin. Uma das
razões sugeridas é a de que essa abordagem histórica dos “grandes homens”
seria uma maneira do próprio Stálin garantir um lugar nos livros de História.
Outra razão sugerida é o fato de que essa procura por heróis entre os centra-
lizadores do Estado russo refletiria os interesses de um novo estrato técnico-
-administrativo da URSS, para o qual a ideia de Estado seria mais importante
que a de socialismo. Ou ainda: o retorno a uma abordagem histórica mais
tradicional refletiria uma nova ênfase no nacionalismo russo5. A despeito dos
motivos domésticos, Perrie observa que o contexto internacional teria sido,
com efeito, mais determinante nos rumos políticos da URSS a partir da se-
gunda metade dos anos da década de 30. A ascensão de Hitler ao poder, na
Alemanha, trazia uma ameaça real de guerra, implicando “uma preocupação
com necessidades de defesa, no nível ideológico e moral assim como na cons-
trução de uma infraestrutura econômica e militar, inegavelmente influenciada
pela política”6.
O historiador Moshe Lewin, autor do livro O Século Soviético, considera
que a guerra seria um “álibi histórico” para a “dispensa dos compromissos ide-
ológicos e a troca por uma ideologia do ‘grande poder’ nacionalista, compará-
vel ao czarismo e extraindo dele seus atributos”7. Daí que as correspondências

3 Perrie, M. The Cult of Ivan the Terrible in Stalin’s Russia, p.85.

4 Idem, p.89.

5 Ibidem, p.27-28.

6 Ibidem, p.28.

7 Lewin, M. O Século Soviético, p.185.

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82 Vanessa Teixeira de Oliveira

entre Ivan-Hamlet-Stálin, por exemplo, não tenham sido bem vistas neste
grande plano de retorno ao passado como espelho de um presente suposta-
mente igual de heroico.
De fato, quem teve disposição de continuar seguindo a filmografia de Ei-
senstein, além dos mais conhecidos O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro
(1928) – filmes obrigatórios em qualquer curso de história do cinema e de
montagem cinematográfica –, depara-se em Ivan o Terrível com um filme mui-
to estranho. Apesar de já ter sido realizado na década de 1940, a mise-en-scène
do filme parece um tanto anacrônica e nos remete à teatralidade exacerbada
dos atores dos primeiros filmes mudos. Mas não é só isso. As poses estáticas
dos atores são tão acentuadas que nos fazem pensar sobre um possível retor-
no ao “teatro imóvel” de Maurice Maeterlinck, um dos autores de referência
para Eisenstein no processo de criação da obra8. “A Rússia parece estrangeira
aqui, como Pompeia”9. Esse comentário do ator Alieksiêi Diky, depois de
ter assistido à primeira parte de Ivan, pode ser entendido não apenas em
função da proximidade do jogo dos atores no filme com a petrificação dos
mortos vitimados pela erupção do Vesúvio, mas também em relação à estra-
nha atmosfera de confinamento que paira sobre o lugar dessa tragédia. Nessa
aproximação entre Ivan e Pompeia, aparecem conjugadas as ideias de morte,
congelamento, antiguidade e extinção.
Por outro lado, não seria exagero pensar o filme como uma espécie de
enigma. O apuro estético do cenário e do figurino (elaborados por Eisens-
tein), a repetição de motivos visuais e de gestos no decorrer das duas partes
do filme, a montagem dentro de cada plano, articulando distintas faturas de
imagem e de sentido, dão a impressão de que o filme teria uma mensagem
secreta a ser decifrada por alguns poucos iniciados. “O filme não é só uma
espécie de hieróglifo, como consiste numa série de hieróglifos – grandes, pe-
quenos e diminutos. Não há um único detalhe que não esteja permeado das
intenções do autor”10, constata o cineasta Andriéi Tarkóvski. Ao invés de uma
mensagem clara e direta, ao gosto das autoridades soviéticas, Eisenstein en-
trega como produto da encomenda um filme ambivalente que, nas palavras
de Joan Neuberger, nos propõe alguns paradoxos: “o comprometimento de
Ivan na criação do Grande Estado Russo foi um sucesso ou um fracasso? Uma

8 Neuberger, J. Ivan the Terrible, p.13.

9 Aleksiêi Diky apud Bulgakowa, O., Sergei Eisenstein: a biography, p.221.

10 Tarkovski, A., Esculpir o tempo, p.77.

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Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 83

vitória ou uma tragédia? Heroicamente construtivo ou violentamente destru-


tivo? Uma justificação ou uma condenação da violência e das regras de um
único homem?”11.
É na segunda parte proibida de Ivan que Eisenstein identifica o que ha-
veria de melhor em seu opus: a cena do assassinato de Vladímir Stáritski, o
primo abobalhado de Ivan, cuja mãe pretende a todo custo coroar como tzar.
Ou seja, Eisenstein considera essa única cena como uma espécie de súmula
de todos os seus filmes anteriores, sendo o sentido de opus aqui considerado
como “conjunto de obras”. A proposta deste artigo é analisar tal cena em
relação à teoria da arte de Eisenstein na década de 1940, tendo em vista que
ela pode ser entendida como uma materialização das teses do cineasta sobre
a criação de imagens artísticas. Vale observar que este artigo não pretende
apresentar uma visão sistemática das reflexões de Eisenstein no período cita-
do. O foco aqui recairá sobre as noções de MLB (retorno ao ventre materno),
êxtase, paródia e montagem.

O assassinato de Vladímir

Ivan o Terrível foi pensado inicialmente em duas partes, conforme o roteiro


publicado em outubro-novembro de 1943. A primeira parte contava com
um prólogo com cenas de Ivan ainda garoto e terminava com a procissão da
população pedindo o retorno do tzar para Moscou (ele havia decidido abdicar
do trono, após a morte de sua esposa, e se retirar para um monastério no po-
voado de Alexandrovski). A segunda parte tem início com o retorno do tzar a
Moscou, acompanhado da recém-criada oprichnina, e prossegue até a vitória
do tzar na Guerra da Livônia, sendo as últimas imagens referentes à chegada
de Ivan e de sua comitiva à costa do Mar Báltico. Estas duas partes foram
filmadas simultaneamente. A primeira foi finalizada no final do ano de 1944
e estreou no início de janeiro de 1945. Em abril do mesmo ano, Eisenstein já
falava que o filme teria três partes ao invés de apenas duas12. A segunda parte
terminaria, então, com o assassinato de Vladímir Stáritski, restando para a
terceira parte o ataque à cidade de Novgorod, a derrota de Andriéi Kurbski, e
a campanha vitoriosa de Ivan na Guerra da Livônia.

11 Neuberger, J., op. cit., p.25.

12 Perrie, M., op. cit., p.170.

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84 Vanessa Teixeira de Oliveira

A cena do assassinato de Vladímir se segue à famosa cena do banquete


na segunda parte do filme. Na cena anterior, durante o banquete, Vladímir
está bêbado e acaba revelando para Ivan a pretensão de lhe coroarem como
novo tzar. Ivan comanda então a encenação da coroação do tzar Vladímir –
uma paródia da sua própria coroação no início do filme. Ao soarem os sinos
da catedral, em meio ao banquete, é Vladímir então quem deve, como tzar,
adentrá-la. Vladímir é praticamente constrangido por Ivan e por sua guarda –
os oprichnikis – a entrar na catedral. Ele está paramentado como o tzar: coroa,
colar, cetro, globo. Na catedral, Piótr Volíniets se esconde atrás de uma das
várias colunas, pronto para assassinar o tzar, a mando do bispo Pímen e da
própria mãe de Vladímir, Eufrosínia. Vladímir anda lentamente pela catedral,
assustado com a atmosfera lúgubre do lugar, cujas paredes são inteiramen-
te tomadas por pinturas. Os membros da oprichnina se vestem com túnicas
negras e caminham como numa procissão, atrás de Vladímir, trazendo velas.
A música usada na cena é distorcida, como se a melodia do canto estivesse
sendo projetada no vento. A própria figura de Vladímir é distorcida quando
tem sua sombra projetada no chão. Num dado momento, Vladímir se detém
e olha impressionado para um grande afresco representando o Juízo Final.
Sobre esse afresco são projetadas as sombras da guarda de Ivan, competindo
com a grandiosidade das figuras pintadas. Vladímir abre os braços, expres-
sando ainda mais o seu assombro, e é justamente nesse momento que Volí-
niets o apunhala pelas costas.
Nos textos “Comparação com O Idiota de Dostoiévski” e “A morte de Vla-
dímir em Ivan o Terrível e a cena de O Idiota na qual Rogójin atenta contra
a vida de Míchkin”, ambos datados do ano de 1947, Eisenstein justifica a
importância da cena da morte de Vladímir na sua obra a partir do tema que
ele designava por meio da sigla MLB – MutterLeiB (versenkung), expressão
alemã que Eisenstein encontrou nos escritos do psicanalista húngaro Sándor
Ferenczi. Este termo diz respeito à pesquisa de Ferenczi sobre a tendência
regressiva humana de voltar-se às condições presentes no ventre materno.
Nesse momento, Eisenstein estava extremamente interessado pelo “estágio
pré-natal do ser”, no sentido de que guardaríamos biologicamente marcas de
estágios anteriores à existência humana “no interior de nossa consciência, de
nosso pensamento e de nosso comportamento”13. Nos dois textos citados, as
semelhanças nas composições da cena do assassinato de Vladímir e da cena
da agressão de Rogójin contra o príncipe Míchkin no livro de Dostoiévski

13 Eisenstein, S. MLB: plongée dans le sein maternel, p. 27.

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residiriam, segundo Eisenstein, na “atmosfera MLB”. Para Eisenstein, esta at-


mosfera teria simultaneamente uma estrutura mítica e biológica com base na
situação do fratricídio. O esquema Caim-Abel (o “irmão” mais velho mata o
caçula em razão de uma ameaça que vem do mais jovem), presente nas duas
cenas, teria como contraparte biológica o fratricídio ainda no ventre materno,
“quando um embrião fecundado devora os outros embriões virtuais”14.

A situação de Rogójin-Míchkin e de Ivan-Vladímir Andrieivitch é exata-


mente aquela do Brudermord in Mutterleib! [do fratricídio no ventre
materno].

Por meio do “retorno’ dos rivais à matriz: o caçula é obrigado a retornar aí


(não devemos nos esquecer que o MLB é também a liquidação da existência
– o caixão, o inferno, a morte – o último ponto da tendência no Mutterleib
segundo Ferenczi!)15.

Eisenstein faz uma descrição minuciosa do paralelo que encontra entre as


duas cenas, apenas pontuada aqui: o espaço labiríntico percorrido por Vladí-
mir e por Míchkin, a recusa dos dois em avançar no caminho em direção ao
confronto final (depois de um jogo de “esconde-esconde” com o assassino),
que ocorrerá em um lugar cuja “topografia” recriaria o “retorno” ao MLB. No
caso de Ivan, Eisenstein diz ter buscado conscientemente o efeito uterino da
catedral com indicações nesse sentido para a iluminação da cena16. E é nesse
ventre/túmulo onde se encenaria, sob uma forma reduzida, condensada, o
“drama na matriz”, “a repetição do drama da evolução inteira”17, representada
pela luta do mais forte contra o mais fraco pela sobrevivência. Para Eisenstein,
esse modelo de composição que nos conduziria ao regresso da experiência de
início/fim da existência humana seria o exemplo de uma estrutura extática,
fundada na unidade de oposições.

14 Idem, p.47.

15 Ibidem, p.34.

16 Ibidem, p.36.

17 Ibidem, p.47.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
86 Vanessa Teixeira de Oliveira

Como escreve Yuri Tsivian:

Observando a maneira pela qual as situações dramáticas em Ivan correm


em paralelo, se ecoam e se parafraseiam, suspeita-se que a maioria de-
las sejam versões de estruturas mais profundas às quais Eisenstein atribui
mais do que um mero sentido narrativo. Esta suspeita se torna certeza
no momento em que se consultam registros de trabalho dele e se encon-
tram listados e nomeados: culto de gêmeos, parricídio, filicídio, bissexu-
alidade, trauma de nascimento, ou o ritual de assassinato do rei. Essas
ur-estruturas – assim como a própria idéia de que, sob a fachada do que
as personagens do filme dizem ou fazem se esconde uma verdade mais
profunda concernente a todos nós – decorrem do interesse de Eisenstein
em teorias monistas dominantes na psicologia e na antropologia na virada
do século. Essas teorias procedem de uma suposição de que, no fundo das
coisas, há sempre uma chave - um mito originário ou algo primordial: uma
cena, um trauma18.

O interessante é que essa estrutura fundada na repetição de formas regres-


sivas, anteriores, originárias, afeta toda a construção do filme. Ou seja, não
se trata apenas de uma estrutura profunda cuja tonalidade envolveria toda a
obra como um baixo subterrâneo. Anne Nesbet escreve que essa “compulsão
para a repetição”, central em Além do princípio do prazer, de Sigmund Freud
(1920), seria também capital para Ivan,

não apenas nos temas reciclados oriundos do passado de Eisenstein, e não


apenas nas repetições formais de motivos (a sombra, o candelabro, o olho),
mas mesmo em sua narrativa, na qual o flashback para a infância de Ivan,
uma espécie de psicanálise de suas motivações, [essa compulsão] esta-
belece padrões que Ivan está destinado a reviver: todas aquelas mulheres
envenenadas, vestidas de branco, mãe e noivas19.

18 Tsivian, Y., Eisenstein’s rules of reading. In: Lavalley, A.; Scherr, B. P. (Ed.), Eisenstein at 100: a
reconsideraætion, p.272.

19 Nesbet, A., Ivan and « The Juncture of Beginning and End ». In: Lavalley, A.; Scherr, B. P.,
Eisenstein at 100: a reconsideration, p.296.

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Este artigo citado de Anne Nesbet, “Ivan o Terrível e ‘A junção do Início e


do Fim’”, foca nos escritos de Eisenstein, em seus últimos meses de vida,
voltados para análises deste filme como ponto de partida para reflexões auto-
biográficas e, de modo mais geral, sobre os modos como vida e morte estão
conectadas. Segundo Nesbet, Eisenstein estava tão impressionado ao desco-
brir paralelos entre Ivan e seu primeiro espetáculo como diretor teatral no
Proletkult, O Sábio (1923), que chegou a cogitar melancólico a possibilidade
de Ivan ser o último filme da sua carreira como cineasta20.

A construção telescópica

Eisenstein previu no roteiro um prólogo com cenas que retratavam a difícil


infância do tzar. O filme começaria com a morte da sua mãe, envenenada
pelos boiardos, e com a captura do amante dela, Telepnev. Essa cena é outro
dos exemplos de como Eisenstein pensava o seu filme a partir de uma estru-
tura de espelhamentos. Há elementos formais nessa cena que serão repetidos
depois na cena da morte de Vladímir na catedral, tais como: a faixa de luz em
diagonal marcando no chão o lugar da morte da mãe e de Vladímir, o jogo
enfatizado entre sombras, afrescos e corpos, a presença de figuras vestidas
com túnicas negras. Nessa “atmosfera MLB”, a mãe de Ivan se parece à noiva
de Ivan, Anastácia, que morrerá envenenada na primeira parte do filme. Te-
mos então a tríade: mãe de Ivan-Anastácia-Vladímir. Por outro lado, Telepnev
parece ser uma versão bem mais decidida de Vladímir, que, ao invés de se
portar como uma presa assustada, tenta fugir das figuras vestidas com túnicas
negras, subindo numa espécie de palco onde ao fundo está pintada na parede
a imagem de São Jorge matando o dragão. A teatralidade da cena é evidente.
As tochas trazidas pela guarda funcionam como ribalta da luta desesperada
de Telepnev contra seus agressores. A junção de sombras, afresco e corpos
em movimento, do mesmo modo como ocorre no assassinato de Vladímir,
confere ao filme camadas de diferentes texturas imagéticas, numa tentativa
provável de Eisenstein contar, por meio dessas articulações, não apenas a his-
tória de Ivan, mas também a própria história do cinema como uma repetição
(sempre em clave distinta, seguindo o caráter “evolutivo” das artes) de expres-
sões artísticas mais antigas, como o teatro de sombras e a pintura religiosa.

20 Idem, p.295.

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88 Vanessa Teixeira de Oliveira

Em seguida à morte da mãe do tzar, Eisenstein mostraria o menino Ivan


tendo de se impor diante das disputas entre os próprios boiardos. Naum
Kleiman diz que esse prólogo foi considerado muito sombrio pelos buro-
cratas do cinema soviético, e por isto foi cortado do filme. Algumas dessas
partes entraram como flashback na segunda metade do filme e justificam, de
certa maneira, a conduta do tzar por um viés psicológico – os diversos trau-
mas vividos pelo menino Ivan teriam contribuído para o seu ódio contra
os boiardos e para o seu desejo de recuperar terras russas conquistadas por
outros povos. Há uma vulnerabilidade comum ao Ivan criança e ao Vladímir
bêbado. No entanto, Eisenstein faz uma aproximação problemática das duas
personagens, afinal Vladímir é o reverso cômico do tzar. Vladímir é o “bobo”,
nas palavras de Eisenstein. Essa caracterização de Vladímir é reforçada depois
do seu assassinato na catedral. Ivan ordena então, surpreendentemente, que
Maliuta e Fiódor soltem Piótr, o assassino. Ora, ele não matou o tzar, mas
“apenas o bobo”. O curioso é que o bobo e o tzar estão, no filme, fortemente
relacionados.
Eisenstein chamava esse tipo de construção de paródica – situações da
trama, configurações espaciais e da própria encenação, ou elementos de cena,
que se repetem ao longo do filme sempre de diferentes modos. Essas repe-
tições é que vão constituindo o tecido narrativo e intensificando os diversos
sentidos da obra por meio de choques inesperados ocasionados a cada nova
repetição. Eisenstein comparava esse tipo de estrutura a um telescópio. Ele
explica essa comparação quando escreve sobre o caráter extático das águas-
-fortes de Giovanni-Battista Piranesi (1720-1778), da série Carceri:

A composição de conjuntos arquiteturais [...] é estruturada em repetições


decrescentes de um mesmo motivo arquitetural que [...] parece jorrar do
precedente.

Como os tubos de um telescópio que se alongam diminuindo de diâmetro,


esses arcos decrescentes saídos de arcos de um plano mais próximo se in-
terpenetram em profundidade, esses lances de escadas projetam ao alto
novos lances progressivamente menores. As pontes geram novas pontes. As
pilastras – novas pilastras. As abóbadas – abóbadas. E assim ad infinitum.
O mais longe que o olho é capaz de lhes acompanhar.21

21 Eisenstein, S., La Non-Indifférente Naure /1, p.314.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 89

Os Carceri são exemplares, segundo Eisenstein, de repetições em cadeia que


funcionam como choques espaciais sucessivos, rompendo o efeito de pers-
pectiva esperado. Essas contradições sucessivas entre semelhanças ao mesmo
tempo dessemelhantes intensificariam a carga emocional do filme, produzindo
assim um efeito extático (o “sair de si”), “transbordando os limites de um
simples reflexo real da aparência dos fenômenos”, conclui Eisenstein22. Essas
observações são feitas no primeiro tomo de A Natureza Não-Indiferente, livro
no qual seu principal objetivo é demonstrar a “fórmula do êxtase”, ou seja,
os procedimentos para a criação de uma obra patética, em qualquer âmbito
artístico. Eisenstein finaliza esse tomo do livro identificando o esquema de
toda obra patética com as discordâncias estruturais constituintes de qualquer
obra paródica ou cômica.
A paródia, como observa Giorgio Agamben no ensaio “Paródia”, sempre
implica a produção de um duplo, instaurando “uma tensão e um desnível,
sobre o qual a paródia instala sua central elétrica”23. Essa imagem da “central
elétrica” é bem pertinente para se pensar a intenção paródica eisensteiniana,
cujo gestual duplicado acirra as várias perspectivas possíveis de significado
para as imagens do filme, perspectivas que existem lado-a-lado, numa “co-
presença simultânea”, aproveitando expressão de Eisenstein24. Segue a defini-
ção que Scaligero dedica à paródia em sua Poética (final do século XVII) e que
acabou sendo, segundo Agamben, o principal parâmetro, durante séculos,
para o tratamento deste tema:

Assim como a Sátira deriva da Tragédia e o Mimo da Comédia, a Paródia


deriva da Rapsódia. Aliás, quando os rapsodos interrompiam sua recitação,
entravam em cena os que por amor do jogo e para reanimar os ouvintes,
invertiam tudo o que havia acontecido antes... Por isso, chamaram tais
cantos de paroidous, pois ao lado e para além do assunto sério inseriam
outras coisas ridículas. A Paródia é, portanto, uma Rapsódia invertida,
que transpõe o sentido para o ridículo, trocando as palavras. [...]25

22 Idem, p.322.

23 Agamben, G., Profanações, p.43.

24 Eisenstein se utiliza dessa expressão ao abordar o caráter regressivo e progressivo que existiria
na imagem artística. Cf. Eisenstein, A forma do filme, p.131.

25 Scaligero apud Agamben, G., op. cit., p.38.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
90 Vanessa Teixeira de Oliveira

A partir desta definição, Agamben identifica as duas características “canôni-


cas” da paródia: “a dependência de um modelo preexistente, que de sério é
transformado em cômico, e a conservação de elementos formais em que são
inseridos conteúdos novos e incongruentes”.26 Nessa definição, no entanto,
podem ser percebidas outras características da paródia, que Agamben traba-
lhará no decorrer do seu texto, e que são importantes aqui: o seu caráter de
ruptura, de interrupção, e a criação de um espaço ao lado, marcando uma
tensão polarizada em relação àquilo que parodia. Agamben analisa ainda uma
acepção mais antiga do termo “paródia”, conhecida pelo mundo clássico, e
vinculada ao âmbito da técnica musical. Neste caso, a paródia indicava uma
separação entre canto (melos) e palavra (logos).

Na música grega, de fato, originalmente a melodia tinha que corresponder


ao ritmo da palavra. Quando, na recitação dos poemas heroicos, tal nexo
acaba desfeito e os rapsodos começam a introduzir melodias que são perce-
bidas como discordantes, diz-se que eles cantam para ten oden, contra o
canto (ou ao lado do canto)27.

Agamben parte dessas definições para tratar do nascimento da prosa literária


sob o signo da paródia28. No caso, Eisenstein pensa a própria obra de arte
como tributária da paródia. O excesso de paródias em Ivan (Yuri Tsivian fala
do filme “como um desfile de paródias” 29) cria uma rede de polaridades de
sentidos que permanecem em tensão, desnivelados. O filme se desdobra em
repetições invertidas, cria espaços ao lado, “não lugares”, citando Agamben,
onde os possíveis significados da imagem são continuamente confrontados
com novas configurações. Nessa perspectiva, a paródia pode ser comparada
ao procedimento da montagem cinematográfica, já que também promove in-
terrupções, discordâncias no fluxo fílmico.
Essas contradições em obra tornam Ivan o Terrível “um paradoxo brutal”30
– para usar as palavras de Arlindo Machado em seu brilhante ensaio sobre
Eisenstein. A cena da morte da mãe de Ivan e da captura do amante dela,

26 Agamben, G., op. cit., p.38.

27 Idem, p.39.

28 Ibidem.

29 Tsivian, Y., op. cit., p. 280.

30 Machado, A., Eisenstein: geometria do êxtase, p.28.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Êxtase, Paródia, Montagem: o assassinato de Vladímir e a teoria da imagem de Serguei Eisenstein 91

caso não fosse cortada do filme, marcaria bem a existência da ‘atmosfera MLB”
abrindo a primeira parte do filme e fechando a sua segunda parte. Nas duas
pontas, várias mortes, de fato, são encenadas: mãe, noiva, amante, tzar, bobo.
Mesmo cortada essa cena, esse jogo de máscaras, de espelhamentos e inver-
sões – vide as parelhas assassino/vítima, súdito/senhor, no caso de Vladímir
travestido como Ivan, por exemplo – impregnam todo a estrutura do filme
e acabam rompendo com o darwinismo estético de Eisenstein, com o seu
discurso de teor fortemente evolutivo, teológico, quando se refere ao cinema,
por exemplo, como o ponto máximo na história da evolução das artes.
Em Ivan, somos incessantemente levados a estabelecer relações entre mo-
mentos distintos do filme em razão da repetição de motivos visuais, nar-
rativos, gestuais, e nesse movimento de vai-e-volta, vamos construindo em
nossa mente a imagem do filme. A imagem, para Eisenstein, tem a ver com o
desenrolar de um processo. A imagem está sempre impregnada, contaminada,
por diversos tempos e experiências que coexistem simultaneamente mediante
o procedimento da montagem. “A montagem é uma exposição de anacronias
tendo em vista que ela procede como uma explosão da cronologia. A monta-
gem corta as coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente
separadas”31, escreve Georges Didi-Huberman, relacionando o teatro de Ber-
tolt Brecht ao cinema de Eisenstein. O que está aí em jogo, portanto, é uma
visão de história que implica a “desmontagem-remontagem” da ideologia do-
minante, de uma aparente normalidade presente em uma visão de tempo
cronológico que não aceita os desvios e as reflexões abertas ao lado, propostas
pelo procedimento paródico e extático de Eisenstein.

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31 Didi-Huberman, G., Quand les images prennent position, p.133.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.79-92, jan.-jun. 2017
Luiz Camillo Osorio**

Godard ensaísta, Godard curador


Pedro Duarte*

Godard essayist, Godard curator

Resumo
Os filmes de Jean-Luc Godard, por sua natureza reflexiva, ganham por vezes um
caráter ensaístico e curatorial. Não se trata tanto de produzir imagens quanto de
pensar sobre as imagens e de selecionar as imagens. Nas suas História(s) do cinema
e em outros casos, as imagens nem sequer são filmadas por ele. São montadas por
ele. Isso coloca, para os filmes, o desafio de relacionar as imagens entre si e de
citá-las, como apontou Georges Didi-Huberman em Passados citados por J.L.G. O
artigo caracteriza a forma pela qual Godard responde a esse desafio, apontando
como ela encarna preceitos do crítico Walter Benjamin sobre a história e do escritor
André Malraux sobre o museu.

Palavras-chave: Godard; História; Imagem.

Abstract
The films of Jean-Luc Godard, because of their reflexive nature, gain an essayistic
and curatorial character. It is not so much about producing images as it is about
thinking about images and selecting images. In his Histoire(s) du cinéma and in
other cases, the images are not even filmed by him. They are edited. This poses
the challenge of relating images to each other and citing them, as Georges Didi-
Huberman pointed out in Passés cites par J.L.G. The article characterizes the form
through which Godard responds to this challenge, pointing out how it embodies
ideas of critic Walter Benjamin on history and writer André Malraux on museum.

Keywords: Godard; History; Image.

* Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio); E-mail: p.d.andrade@gmail.com.

** Professor de Estética e Filosofia da Arte na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Pesquisador do CNPq; E-mail: lcamillosorio@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
94 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

Nascemos já no museu, que é nossa pátria.


Jean Luc Godard

Uma cena de Banda à parte, de 1964, entrou para o imaginário dos amantes
de cinema. Nela, os três amigos que protagonizam o filme de Jean-Luc Go-
dard, dois homens e uma mulher, percorrem o Museu do Louvre correndo
em disparada. Irresponsáveis e gaiatos, batem o recorde da visita mais rápida
já feita ao museu e logo comprazem-se disso. Percebemos aí uma espécie de
prenúncio hiperbólico do que hoje sabemos ser evidente: nossa atenção foi
explodida pela aceleração da vida. O tempo do olhar precipitou-se. Indireta-
mente, a cena anuncia também a lógica inerente à sociedade do espetáculo: a
dessacralização das instituições culturais e a dispersão afetada da sensibilida-
de cotidiana. Este diagnóstico nos obriga a repensar a relação entre cinema e
narrativa; exposição e experiência; passado, presente e futuro.
Não por acaso, a obra de Godard sofre uma inflexão justamente na épo-
ca em que Guy Débord diagnosticava a sociedade do espetáculo: o fim da
década de 1960. Desde Acossado, seu filme de estreia de 1960, já não havia
ingenuidade no cinema de Godard, evidentemente. No entanto, nos dez anos
seguintes sua produção segue em ritmo veloz e, a despeito da autoconsci-
ência sobre o cinema e da ironia com a sua linguagem, não há uma ruptura
drástica de artifícios tradicionais, como a identificação do espectador com
o personagem e o enredo. Os personagens podem vagar perdidos e a trama,
desconexa. Mas eles estão ali ainda garantindo um fio com a tradição estética
e com um mínimo de narrativa que remontam até a Poética aristotélica, orga-
nizando a sequência das imagens1. No fim da década de 1960, depois de A
chinesa e com a formação do coletivo politizado de cineastas do Grupo Dziga
Vertov, esses resíduos da estética tradicional tenderão a perder relevância no
cinema de Godard. Era preciso acirrar ainda mais o caráter crítico e reflexivo
sobre as imagens. O olhar que, na cinefilia da juventude, encantara-se com
as imagens, voltava-se agora ao questionamento do modo como elas estavam
operando na sustentação dessa sociedade do espetáculo.
Para nós, meio século depois, o diagnóstico pode parecer trivial. Não era.
Tratava da transformação pela qual as imagens, até então com importância
secundária no mundo moderno, tornaram-se o epicentro deste mundo. O
espetáculo, para se manter espetacular, demanda uma produção incessante
de imagens, a ponto de não podermos mais compreendê-las ou pensá-las:

1 Aristóteles. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1993, p. 47.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 95

ver se torna uma prática débil. É que “as imagens que se destacaram de cada
aspecto da vida fundem-se num fluxo comum”, diagnosticava Débord, para
ainda completar que, se é assim, “a especialização das imagens do mundo se
realiza no mundo da imagem autonomizada”2. Ora, o cinema é parte desse
mundo novo, ele é parte do problema. É parte do sistema no qual a profusão
de imagens tira delas a conotação de exceção artística. Tornam-se a regra
cultural. Parece que Godard precisou acirrar, então, a sua crítica das imagens
pelas imagens. Precisou, assim, dar conotação ainda mais ensaística e refle-
xiva aos seus filmes, frente ao encantamento anterior. Uma das formas para
fazê-lo foi operar, radicalmente, como um curador de imagens, mais do que
como filmador de imagens. Organizar, pensar, combinar, relacionar, compa-
rar imagens. Eis o que ganha força no cinema e nos vídeos de Godard, mais
do que obrigatoriamente fabricar imagens com a câmera.
Godard nunca foi um moralista. Ele observa as coisas e explicita os con-
flitos. Pertencer à cultura do museu é estar diante de um arquivo potencial
de imagens, gestos, expressões. É também saber-se atravessado por narrativas
que articulam estes arquivos e deixam poucas brechas e intervalos para inter-
rogá-los. Em certa medida, sua trajetória foi uma procura obsessiva por linhas
de fuga que nos dessem, através da recomposição vertiginosa de imagens e
palavras, novas maneiras de pensarmos o visível e o dizível, ou seja, novas
perspectivas de abordagem do real – tomado enquanto cruzamento, sempre
atual, do que foi e do que pode vir a ser.
Na construção destas linhas de fuga, o cinema de Godard é simultanea-
mente um exercício ensaístico e uma prática curatorial. Estas duas dimensões
se complementam. O cinema pensado como ensaio visual, como montagem
de imagens ficcionais e documentais, pictóricas, fílmicas e televisivas, faz-se
sempre enquanto curadoria, enquanto exercício experimental de seleção e des-
locamento de imagens. Para se discutir a dimensão curatorial do cinema de
Godard, especialmente na sua monumental História(s) do cinema, é preciso alar-
gar o âmbito dessa atividade, levá-la na direção de uma reinvenção dos modos
convencionais de expor, montar e mostrar. Evidentemente, não se quer reduzir
a linguagem do cinema ao ensaio, muito menos à prática curatorial. Antes disso,
tal aproximação visa muito mais usar Godard e sua poética cinematográfica
para pensarmos de forma mais alargada e arejada o ensaio e a curadoria. O final
da parte 3A de História(s) do cinema, com uma sequência longa e emocionante
em homenagem ao cinema italiano do pós-guerra, deve ser visto nesta chave

2 Debord, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1992, p. 13.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
96 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

de um ensaio visual ou mesmo de uma curadoria, em que fragmentos de ce-


nas em ritmos variados vão sendo combinados a frases e música, acelerados
e retardados, nos abrindo uma compreensão absolutamente singular do que
significou esta filmografia para liberar a Europa do peso totalitário e abrir uma
nova perspectiva de vida em comum depois do fim de uma certa ideia de hu-
manidade e de razão. As paradas focando no rosto da criança na iminência
do salto mortal em Alemanha Ano Zero nos faz ver a profundidade e o sentido
trágico que atravessam as linhas mais duras da Dialética do Esclarecimento.
Neste aspecto é determinante tratar o cinema de Godard a partir de sua
apropriação intempestiva do passado como citação e da sua experimentação
na mesa de montagem. Desde sempre em sua obra, a captura das imagens e
a ação dramática dos atores não bastavam. Era fundamental encontrar ritmos
e relações que desviassem a narrativa do seu fio causal. Mesmo nos filmes
iniciais, em que há alguma história acontecendo, seus personagens nunca
sabiam ao certo o que queriam, apenas procuravam escapar da rotina admi-
nistrada da vida moderna. Era como se ali, embora ainda contando com os
artifícios narrativos tradicionais como a identificação do espectador com o
personagem e a trama bem articulada, já sobressaísse uma vontade reflexiva
que exigia a metalinguagem e até a ironia, uma espécie de autoconsciência
acerca da produção de imagens, abrindo assim espaço para a importância de-
cisiva, por exemplo, da montagem, uma vez que o interesse era menos no que
tinha sido filmado e mais em como combinar esses materiais filmados. Por
isso, a origem desses materiais, ao longo da trajetória de Godard, dispensará,
muitas vezes, a filmagem. Desde um filme-ensaio como Carta a Jane, de 1972,
até um ousado empreendimento como História(s) do cinema, na virada da
década de 1980 para os anos 1990, Godard conta com materiais já existentes
para inúmeros filmes. Ele se debruçava, nesses casos, sobre objetos culturais
pré-formados, assim como acontece em qualquer ensaio escrito, a acreditar
na definição que Georg Lukács deu para esse gênero de pensamento3. Nesse
sentido, todo ensaísta tem alguma coisa de curador, pois a seleção dos objetos
sobre os quais ele vai falar é parte decisiva de seu pensamento.
O “Godard fundamentalmente ensaísta”4, como observou Philippe Du-
bois, é justamente este que não se contenta em fazer cinema, a não ser que

3 Lukács, G. “Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper”, in A alma e as formas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015, p. 40-1.

4 Dubois, P. “Os ensaios em vídeo de Jean-Luc Godard: o vídeo pensa o que o cinema cria”, in
Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 289.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 97

o pense simultaneamente. Não é apenas um criador de imagens, mas um


pensador de imagens. Um pensador através das imagens. Nesse sentido, o
artifício decisivo de seu cinema é a citação. Godard parece um colecionador /
curador cujo fôlego para se apropriar de citações jamais se esgota. Ora, trata-
-se, ainda, de uma estratégia com o seu feitio de ensaio, já que uma frase ou
uma imagem citada são sempre uma frase ou uma imagem que já existiram,
quer dizer, objetos culturais pré-formados. Trata-se, então, de achá-las, se-
lecioná-las, pegá-las, organizá-las, associá-las, deslocá-las, reinventá-las. Em
uma palavra, trata-se de montá-las. É uma forma, levada adiante por Godard
com radicalidade, de relacionar um passado e um presente. Suas citações de
natureza fílmica, literária, filosófica, artística, estão por todo lado, desde o
cinema inicial da Nouvelle Vague – é recorrente que os seus personagens falem
nos diálogos frases de livros, como de Heidegger, por exemplo – até obras
mais radicalmente reflexivas. Não raro, como fazia Walter Benjamin na crítica,
o exercício era de uma arte de citar sem aspas, ou seja, sem dar a referência.
Um citar sem aspas cujo gesto de cortar e colar abre o significante para um
jogo relações que mobiliza a imaginação produtiva.
Georges Didi-Huberman no seu livro sobre Godard, intitulado justamen-
te Passés Cités par JLG, já indica no jogo de palavras do título que citar o
passado é necessário para não estarmos cegos diante do presente (pas cecité).
Parte da voracidade citacional de Godard remete a este trabalho de remissão
e de invenção. Toda a questão, aqui, é a possibilidade de invenção diante
do passado. Como aparece escrito em um dos quadros de História(s) do ci-
nema, “fazer uma descrição precisa daquilo que não aconteceu é a tarefa do
historiador”5. Esta liberdade não deve ser tomada enquanto arbitrariedade
interpretativa, como se tudo pudesse ser dito e mostrado irresponsavelmen-
te, sem qualquer adesão aos fatos, ao que aconteceu, à experiência. Não se
trata disso no cinema de Godard, especialmente nas suas História(s). Trata-
-se mais, como diria poeticamente Benjamin, de “despertar no passado as
centelhas da esperança”6.
O que interessa é retirar o passado da imobilidade do que ficou para trás,
do que já foi, e assim desfazer as associações hegemônicas, desestabilizar as
imagens padronizadas, produzir intervalos nas narrativas oficiais. Parte desta

5 Godard, J-L. “Histoires du cinema”, II, apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG, Paris, Les
Éditions de Minuit, 2015, p. 75.

6 Benjamin, W. “Sobre o conceito de história”, in Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas;
v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
98 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

dialética de remissão e invenção do passado, do uso livre e intempestivo


de citações, implica uma desconstrução da separação convencional entre o
documental e o ficcional. “O documento não se contrapõe à ficção”, afirma
Godard, “sempre houve, desde Aristóteles, esta lógica disjuntiva que separa
as coisas, ou isso ou aquilo, que em ciência não existe... não se trata mais da
expressão ‘de duas, uma’, tornando-se, antes, ‘de uma, duas coisas’”7. Uma
mesma imagem pode se ressignificar ao ser mostrada de formas distintas,
coisa recorrente em Godard, de acordo com o jogo de relações e justaposi-
ções produzidas pela montagem, pelo atravessamento de textos, de ruídos,
de deformações e de ritmos. Citar não para se esconder por trás da citação,
mas para revelar o que não estava ainda pensado ali e que precisa ser repe-
tido em outra situação para nos fazer pensar com vigor e originalidade não
sobre o que estava lá (o passado), mas sobre o que está aqui (o presente).
Godard, segundo Didi-Huberman, ao fazer uso constante da citação, coloca-
-se sempre “a meio caminho entre dois gestos aparentemente contraditórios:
entre a desautorização de tudo aquilo que ele cita e a reautorização de si mes-
mo enquanto ‘organizador consciente’ das relações forjadas e das montagens
produzidas em seus filmes e textos.”8 Neste movimento transformam-se o
passado (o que foi) e o papel da criação (o novo). O que é apropriado se me-
taboliza na intensidade da manipulação desencadeada pela produção poética.
Em Godard, seguindo aí a trilha aberta por Marcel Duchamp, o fazer artístico
combina no mesmo gesto os atos de cortar, colar, deslocar e ressignificar. O
novo nasce das relações inesperadas. O organizador consciente, no caso, pro-
duz relações – o que remete ao trabalho do curador que constrói relações e,
através delas, abre novas possibilidades de interpretação das imagens (obras)
e do mundo.
Como é dito em uma das passagens das História(s) do cinema, com Manet
nasce a pintura moderna e o cinematógrafo. A forma começa a pensar sem
submeter-se ao conteúdo narrativo que a informa. Em Le Déjeneur sur l’herbe,
de 1856, os gêneros se misturam – o retrato, a paisagem, a natureza-morta
– e os planos de cor trazem toda a cena para a superfície. Temporalidades
e formas de vida se embaralham. Desta experimentação advém a lógica de
Henri Matisse de assumir a cor sempre como uma relação, em que o verde

7 Godard, J-L. “Les dernières leçons du donneur, fragments d`um entretien avec JLG, Cahiers du
cinema, 300” apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015,
p. 28.

8 Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015, p. 30.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 99

muda de intensidade próximo de um vermelho, em que as quantidades de


azul mudam a qualidade experiencial do azul. Isso é levado por Godard para
o registro das citações, dos recortes de documentos e cenas de outros filmes,
que sobrepostos e articulados, acelerados ou em câmera lenta, vão liberando
sentidos imprevistos na origem. A montagem produz diferenças onde só se
era capaz de ver semelhança. Juntar o documental ao ficcional para poder
recombiná-los e assim mostrar o que estava velado. Recombinar para liberar
as coisas, os fatos, da sua dependência ao já dito e sabido, introduzir o in-
tervalo que faz imaginar e pensar de outras formas o ocorrido. “Um fato não
traduz o que foi feito, mas o que não foi feito”.9 Não deixar o passado passar,
para deixá-lo atual e vivo. Perturbar a fluência das narrativas, dificultar a
leitura imediata, trabalhar a forma dos quadros e das sequências no filme
como uma cachoeira de signos. Impressionar o olho, o ouvido, a imaginação,
o pensamento, levando-os à beira do incompreensível, do encantamento es-
tético sem síntese.
O trabalho da montagem é a procura por relações – de cores, corpos, sons,
imagens, textos - que retirem do olhar a certeza do já conhecido e o obrigue
a pôr-se em movimento. Este movimento do olho e das imagens é o que ativa
a imaginação. A conhecida fórmula godardiana (uma imagem + uma imagem
= criação)10, a imagem como a resultante de uma combinação de imagens,
implica liberar a imaginação da sua subserviência ao conhecimento, da mera
função de reconhecer o visível. “Não se deve, portanto, falar de imagens; é ne-
cessário falar das relações entre imagens (...) você compara, quer dizer, você
faz uma relação e daí você pode concluir.”11 Esta ativação da imaginação pelo
livre jogo das relações postas em cena é o elo entre o gesto manual que con-
duz a produção de imagens por justaposição e o processo perceptivo e sim-
bólico de apreensão, associação e construção de sentido através das imagens.
A principal influência na construção desta dinâmica relacional seria o Mu-
seu Imaginário de Malraux e sua busca sugestiva pela fraternidade das metá-
foras. No caso, não só o historiador da arte e sua construção original de uma
história montada pelas combinações livres de imagens reproduzidas fotogra-
ficamente da pré-história ao contemporâneo interessam a Godard. Como ele

9 Frase ouvida no filme de J-L Godard Adeus à linguagem, 2015.

10 Esta fórmula aparece de diversas maneiras em seus filmes, mas com essa apresentação em Je
vous salue, Marie de 1985.

11 Godard, J-L, “Manifeste” (1970), apud Didi-Huberman, G. Passés Cités par JLG, Paris: Les
Éditions de Minuit, 2015, p. 49.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
100 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

mesmo escreve, Malraux é a personalidade mais fascinante da literatura fran-


cesa moderna, pela sua mistura de contrabandista de esculturas orientais, de
combatente na guerra civil espanhola, de resistente na França ocupada e de
ministro conservador de De Gaulle. O intelectual público que se engaja sem
reservas em todas as frentes.
Retornando à pátria dos museus, Malraux vai trabalhar sua composição
iconográfica tomando o novo estatuto que a arte passa a ter aí dentro. Bastan-
te benjaminiano neste aspecto, ela vai assumir um valor expositivo que se di-
ferencia do valor de culto pela capacidade das obras se transformarem, de se
metamorfosearem e ganharem sentidos outros além daqueles intencionados
na origem. O museu em Malraux é o lugar da confrontação das metamorfoses.
Um dado importante dentro desta lógica das obras ou imagens inseridas no
não-lugar dos museus é que a ideia de acabamento é posta em xeque, libe-
rando um trabalho infinito de relações e de interpretações. A crítica entra
aí –reativando a maneira como ela aparecera nos primeiros pensadores do
Romantismo alemão, como Friedrich Schlegel, na virada do século XVIII para
o XIX – enquanto um exercício criativo, um desdobramento do gesto criador
na sua incessante busca por sentido.
Com a entrada em cena da fotografia, radicaliza-se a liberdade destas
composições e a liberdade de migração das formas através de geografias e
condições espirituais muito distintas. Não obstante o risco de formalismo
excessivo, a fotografia tomada como elemento poético permite o deslocamen-
to de escalas, de perspectivas e de luz mobilizando relações inusitadas entre
fragmentos e detalhes. “A estética clássica ia do fragmento ao conjunto; a nos-
sa que vai seguidamente do conjunto ao fragmento encontra na reprodução
um instrumento incomparável”12. Em uma passagem do livro que reverbera
poderosamente em Godard, ele observa que “trazendo o rosto de uma atriz
para o primeiro plano, aumentando-o, Griffith não quer interferir no papel da
atriz, mas modificar a relação dela com o espectador”13. Evidentemente, é na
apropriação das imagens tendo em vista apenas relações formais, expressivas,
rítmicas, que uma concepção fraca de historicidade aparece em Malraux. Essa
é a limitação percebida no Museu Imaginário, que Godard procura ultra-
passar nas suas História(s) do cinema, nos jogos de justaposição por atrito de
imagens e textos. As imagens implicam contextos específicos, elas carregam
vínculos culturais, sociais, políticos que atravessam suas formas de aparecer

12 Malraux, A. Le Musée Imaginaire. Paris: Galimard, 3ª edição, 1965, p. 110.

13 Malraux, A. Ibidem, p. 75.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 101

e produzir sentido. É na afirmação do singular que se pode vislumbrar uma


comunidade não homogênea de afetos. A ideia não é imaginar uma unidade
formal, mas tensões dialéticas.

A maneira dialética investiu a potência caótica na criação de pequenas ma-


quinarias do heterogêneo. Fragmentando contínuos e distanciando termos
que se atraem, ou, ao contrário, aproximando heterogêneos e associando
incompatíveis, ela cria choques. E faz dos choques assim elaborados peque-
nos instrumentos de medida, próprios para fazer aparecer uma potência de
comunidade disruptiva que, ela mesma, impõe uma outra medida. (Ran-
cière, 2012, P.66)

É no encontro da materialidade da imagem com a percepção do espectador


que intervalos de sentido se instalam, que brechas se abrem para a imagina-
ção produzir novas relações entre passado e presente, afetos e conceitos, entre
o que é e o que pode vir-a-ser. Da “fraternidade das metáforas” à “confronta-
ção das metamorfoses” vemos o movimento da montagem escapar da fusão
formalista em direção à tensão materialista, passando de uma espécie de so-
nho da unidade de tempos históricos para a multiplicação profanadora de
imagens-tempo que libera novas articulações entre presente, passado e futuro.
Neste sentido, seguindo ainda a leitura de Didi-Huberman, estabelece-se uma
diferença entre o Álbum de Malraux e o Atlas de Warburg (na qual, apesar de
tudo que se disse, Godard pareceria mais próximo deste do que daquele, ao
menos quando temos em vista esses projetos específicos). O Álbum buscaria
uma “história universal”, cuja marca seria uma espécie de suspensão imo-
bilizadora que “tenderia ao intemporal, negando os processos, os conflitos
e as divisões”. O Atlas, “ao contrário, corresponderia àquela historiografia
materialista, que, segundo Benjamin, seria fundada sobre um princípio cons-
trutivo, a montagem, que divide para pôr em movimento, que dissocia para
trazer à luz, a cada instante, o choque que se cristaliza em mônada, depois
em constelação”.14
Estas constelações ajudam a entender o modo como a curadoria, na mes-
ma trilha experimental do ensaio, articula novas aproximações entre concei-
tos e imagens que abrem brechas nas narrativas cristalizadas e hegemônicas.
O exercício fabulatório que inventa o que pode ser, vai se deixar tocar pela

14 Didi-Huberman, G. L`Album de l`art à l`époque du Musée imaginaire. Paris: Editions Hazan,


2013, p.171.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
102 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

experiência viva dos fatos, dos documentos, produzindo leituras inimagi-


náveis antes da produção combinatória do artista-historiador, do ensaísta-
-curador. A citação (passado) se transforma em invenção (futuro), dividindo
o presente em um jogo surpreendente, que não deixa de ser uma tensão no
limite do colapso interpretativo, do sem sentido com o sentido outro. Neste
aspecto, radicalizando o que acontecia em Malraux - e que foi tão criticado
pela História da Arte mais ortodoxa - a citação, enquanto materialidade da
operação poética, não se preocupa com a fonte, mas com o efeito, fazendo
com que a precisão histórica seja constantemente transtornada pela imagina-
ção produtiva.

Ele cita, sem dúvida, muitos autores em seus livros sobre arte, mas jamais
uma noção ou ideia é oriunda de alguém ou de alguma pesquisa anterior,
de modo a ele ter que reconhecer a paternidade alheia. Não há referências
em seus livros. Ele é o inventor de tudo o que diz. Mesmo quando se pauta
em uma frase célebre, como aquela de Maurice Denis que diz “que um
quadro antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou qualquer
estória, é essencialmente uma superfície plana, coberta de cores, reunidas
segundo certa ordem”, Malraux vai apropriar-se dela e retificá-la, “um
quadro antes de ser um cavalo de batalha ou uma estória qualquer, é essen-
cialmente uma superfície plana, coberta de cores, reunidas segunda uma
ordem que as emancipa do tempo. (Didi-Huberman, 2013, p.84)

Citar é, no cinema do Godard, como já sugerimos, um modo de fazer história,


ou seja, de lidar com aquilo que já foi, que já aconteceu, de sorte a fazer tais
coisas falarem com o presente. Não é o passado em si que interessa, mas a
relação crítica que se pode ensaiar dele com a atualidade. Por isso é que a
forma de citar não pode obedecer ao rito acadêmico pelo qual se deve “dar
a César o que é de César”, quer dizer, respeitosamente dar a cada citação
sua devida fonte, restituindo-lhe o autor e o contexto. Interessa, no mais
das vezes, justamente descontextualizar o que é citado para que ele apareça
sob nova luz. “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho”,
era o que escrevia Walter Benjamin, “que irrompem armados e roubam ao
passeante a convicção”15. O mesmo exatamente se poderia dizer do cinema
de Godard. Nele, as citações são como esses ladrões que, ao invés de apenas

15 Benjamin, W. “Quinquilharias”, in Rua de mão única – Obras escolhidas; v. 2. São Paulo: Brasi-
liense, 1994, p. 61.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 103

corroborarem a tese, irrompem subitamente e nos tiram da cadeia linear ou


causal em que estávamos. Não são progressivamente sequenciadas, mas frag-
mentariamente dispostas. Não constituem um sistema, mas sim um ensaio de
pensamento. Citar não está mais a serviço da regra, e sim da exceção. É uma
outra lógica da citação, pautada agora pela reflexividade moderna do ensaio,
que se volta para o passado menos porque quer ser fiel a ele do que porque
pretende mobilizá-lo no presente.
A montagem uniria assim o cinema de Godard à escrita ensaística e à prá-
tica curatorial. O que se busca aí é uma forma de pensar e conhecer que se
faça por fora da lógica dedutiva ou indutiva, forçando associações imprevis-
tas que abrem intervalos significantes no visível e no dizível. É uma produção
de sentido, uma forma de conhecer, que se faz pela intensificação da experi-
ência sensível e não pela sua neutralização. Como apontou Didi-Huberman

talvez a montagem segundo JLG sirva justamente para isso: convocar toda
a exuberância das imagens e linguagens disponíveis – escritas e faladas,
pintadas e representadas, semitas e indo-europeias etc – para provocar
algo como a sideração ou a efusão ou a aceitação ou a distância do No com-
ment. Eis a dialética godardiana: seu modo próprio de dizer olha isso (vois,
lá), o que supõe um longo trabalho de orientação do olhar, o estabelecimen-
to de relações bem pensadas, e de dizer conclua isso (voilá), o que supõe a
interrupção da sessão, ao modo zen ou ao modo de Lacan, uma forma de
sublinhar violentamente a liberdade artística, um modo de dizer o seguin-
te: ‘é pegar ou largar’. No dicionário godardiano composto por Jean-Luc
Douin, a palavra montagem (‘arte de produzir uma forma que pensa, arte
de dar um sentido dialético à imagem’) se constela com o alcance não raro
esotérico das associações (por que e como justapor Manet e Goebbels, via
Zola, etc?), com o lado ‘estou me lixando para as regras’ dos faux raccords
assumidos. (Didi-Huberman, 2015, pag 37)

Há algo nisso que lembra os textos ensaísticos: eles começam por onde de-
sejam e, mais, terminam quando sentem que é hora de parar. Assim como
certas montagens curatoriais que misturam momentos históricos, focando
mais na experiência instalativa do que na fluência narrativa. Ou seja, dispen-
sam marcos absolutos para o início e o fim. Deixam de lado uma progressão
suave, causal e coerente. O mesmo faz Godard frente ao cinema comercial fa-
miliar. “Ele não começa com Adão e Eva”, observaria Theodor Adorno sobre
o gênero de escrita do ensaio, “mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
104 Pedro Duarte e Luiz Camillo Osorio

que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde
nada mais resta a dizer”16. Poderia estar se referindo ao cinema de Godard.
Essa caracterização indica a relação do ensaio com a narrativa, mas com uma
espécie de narrativa distinta da sistemática. É uma narrativa que abandona
a busca por um começo absoluto, por um marco zero, um princípio aquém
do tempo – como seria aquele princípio da história religiosa exemplar de
Adão e de Eva. No mesmo sentido, Godard constrói estruturas para os seus
filmes que são desprovidas daquilo que no sistema impera: a teleologia. O
que acompanhamos não tem um telos, um fim desde o começo previsto e
que orienta o desenrolar de uma estória. Mesmo no começo de sua trajetória,
com a Nouvelle Vague, os enredos não seguiam uma lógica sequencial dotada
de previsibilidade, tampouco os personagens eram desenvolvidos com uma
finalidade. Isso só fica ainda mais radical quando o estilo ensaístico e a di-
mensão curatorial entram mais fortemente no cinema do Godard, em filmes
como Carta a Jane ou nas História(s) do cinema.
Esse parentesco entre o cinema de Godard e o ensaio nem deveria nos
espantar. Em um certo sentido, os textos de caráter ensaístico podiam já se
assemelhar muito, no princípio de ordenação, à montagem cinematográfica,
na qual os fragmentos obedecem a uma arte combinatória. Que Godard, por-
tanto, reencontre no cinema o ensaio não deixa de fechar, assim, uma sur-
preendente coerência. Descarta-se a linearidade narrativa em prol de outras
associações possíveis, de encadeamentos desviantes. O ensaio busca isso: não
novas coisas, mas novas relações entre coisas. Do mesmo modo, a curadoria
também pode ser vista como a prática de reunir obras de forma a dar-lhes
novas articulações de sentido sem com isso trair sua autonomia e liberdade.
Desse modo, as contradições podem aparecer no texto (na exposição, no fil-
me), que dispensa uma síntese geral dos elementos de que trata. Enquanto
a exposição sistemática deve solucionar dialeticamente toda oposição entre
tese e antítese, o estilo ensaístico acolhe a tensão e a sustenta. Tolera o para-
doxo. Explicita o jogo de forças que um objeto traz. Ora, é justamente esse
tipo de operação que domina o cinema de Godard.

16 ADORNO, T. W. “O ensaio como forma”. In. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almei-
da. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 17.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Godard ensaísta, Godard curador 105

Referências

ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1993.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas; v. 1). São Paulo:
Brasiliense, 1994.
______. Quinquilharias. In: ______. Rua de mão única (Obras escolhidas; v. 2). São
Paulo: Brasiliense, 1994.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1992.
DIDI-HUBERMAN, G. Passés Cités par JLG. Paris: Les Éditions de Minuit, 2015.
______. L`Album de l`art à l`époque du Musée imaginaire. Paris: Editions Hazan, 2013.
DUBOIS, P. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
LUKÁCS, G. Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper. In: ______. A
alma e as formas: ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
MALRAUX, André. Le Musée Imaginaire. Paris: Galimard, 1965.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.93-105, jan.-jun. 2017
Sérgio Bruno Martins*

Memória em obra:
um ensaio sobre Blade Runner 2049

Memory at work:
an essay on Blade Runner 2049

Resumo
Tomando como ponto de partida a relação entre o tratamento da memória em Blade
Runner 2049 e a dupla matriz do realismo na literatura ocidental proposta por Eric
Auerbach no primeiro capítulo de seu livro Mimesis, este ensaio busca analisar o
sentido político do filme para além dos termos ditados pela lógica da representação.
Para tanto, é abordada tanto a relação entre memória e subjetividade que o filme
elabora, como também a propriedade de tratá-lo como uma obra de arte, e não
como um mero produto cultural. O argumento é desenvolvido com especial atenção
para a relação do protagonista K com a paisagem fílmica que o cerca, e também
com dispositivos narrativos voltados ou bem para a sustentação de sua identidade,
ou então para sua desintegração.

Palavras-chave: Ficção-científica; Realismo; Identidade; Obra de arte.

Abstract
This essay takes as its starting point the relationship between the treatment of
memory in Blade Runner 2049 and what Eric Auerbach famously proposed as
the double origin of realism in Western literature, in the first chapter of his book
Mimesis, in order to address the political meaning of the film in terms that exceed
the logic of representation. It discusses the articulation between memory and
subjectivity that film elaborates as well as the very possibility of treating the film
as an artwork, and not merely as a cultural commodity. The argument also draws
on the relationship between the protagonist K and both the filmic landscape that
surrounds him and narrative devices that either sustain or erode the stability of
his identity.

Keywords: Science fiction; Realism; Identity; Artwork.

* Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio); E-mail: sbmartins@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
108 Sérgio Bruno Martins

Sem alma

Em Blade Runner 2049, a memória é o pivô de tudo. Já era assim no pri-


meiro, e é disso que mais nos lembramos, dos momentos perdidos como
lágrimas na chuva ao pequeno origami de unicórnio que põe em dúvida
a humanidade de Deckard. Para o bem e para o mal, as memórias são o
estofo da subjetividade humana, tanto que seus implantes têm por função
emulá-la nos replicantes. É esta a calibragem que os blade runners testam,
em 2019, e pela qual são testados, em 2049. De tão importantes que são,
torna-se ilegal implantar memórias reais: vive-se como num apartheid mne-
mônico, no qual saber da artificialidade de suas lembranças é saber seu
lugar na ordem social.
O que confere autenticidade a uma memória não é seu grau de definição e
detalhamento, explica a fabricante de memórias Ana Stelline ao blade runner
e replicante K, acrescentando que memórias reais são confusas e fragmen-
tárias. A teoria de Stelline pode soar despretensiosa, mas suas coordenadas
articulam diretamente memória e história. Não é por menos que seus termos
coincidem com aquilo que o filólogo alemão Erich Auerbach situa como a du-
pla matriz do realismo na literatura ocidental. Relembremos as linhas gerais
de seu conhecido argumento: de um lado, a épica de Homero, narrada num
permanente primeiro plano em que coisas, pessoas e eventos são igualmente
descritos em vívido pormenor, e sempre no tempo presente; do outro, o Ve-
lho Testamento, “de variedade confusa e contraditória,” no qual a opacidade
do desígnio divino enseja uma forma narrativa pobre do ponto de vista des-
critivo, mas prenhe de segundos planos e distensões.1 Nada importa no pre-
sente bíblico que não aquilo que o remete à temporalidade esgarçada de um
plano que seus atores não podem compreender, mas em cuja promessa não
deixam de confiar; é em meio a tal descompasso que emerge a dimensão da
história. Igualmente confusa e contraditória, a variedade da memória passa
ao largo da continuidade em seu sentido cinematográfico, isto é, da verossi-
milhança lógica e detalhista que encadeia cenas distintas. Suas sobreposições,
condensações e deslizamentos podem até se apresentarem suturadas, mas se-
gundo um princípio que permanece opaco ao sujeito e em cujas linhas tortas
se expressa o seu desejo – “nós rememoramos com nossos sentimentos”, diz
ainda Ana Stelline. É nesse desejo – e não tanto na verossimilhança – que se

1 Auerbach, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,


1971, p. 17

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 109

fia a consistência da realidade; é a partir de sua história de traumas e enlaces


afetivos que o sujeito se torna capaz de conferir consistência e sentido aos
objetos com os quais se depara, sejam eles físicos ou psíquicos.
Se o mundo do sujeito se constitui na dialética entre experiência e reme-
moração, é então por isso, e não por uma questão de originalidade ou exclusi-
vidade, que implantar memórias reais é ilegal. A “erradicação das sombras, da
obscuridade e das temporalidades alternativas” torna administrável o mundo
de Blade Runner 2049; memórias reais, imantadas por uma temporalidade his-
tórica indócil a tal uniformidade ideológica, colocam em risco a estabilidade
dos produtos da corporação Wallace e, por conseguinte, da ordem social por
ela perpetrada.2 É justamente por conta de uma memória real, ilegalmente
implantada, que K desvia-se de sua finalidade, da conformidade ao mero
semblante de subjetividade – “você está se saindo bem sem alma,” diz-lhe
a chefe de polícia Joshi, sem se dar conta de sua própria clarividência – e,
enfim, da calibragem incessantemente checada após cada dia de trabalho.3
K sente então a gravidade de sua história pessoal e vê-se confrontado com o
indesejável fardo de ser herói, isto é, de assumir-se sujeito da (sua) história.
Como um bom policial de film noir, K é um personagem contido e de
poucas palavras. Mas aqui, como de resto, a aparente adesão à convenção é
uma cortina de fumaça, pois o que realmente dita os passos do blade runner
é a hesitação frente ao desejo que sua memória não lhe permite ignorar. Daí
que ele passe boa parte das quase três horas do filme vagando por paisagens
de impressionante força plástica, sem, no entanto, parecer habitá-las, como
se estas fossem projeções externas das memórias artificiais às quais ele tam-
bém já não consegue aderir. A alienação de K perante seu mundo, distinta
daquela do outsider convicto, confere textura fílmica ao seu heroísmo relu-
tante. O filme é cadenciado pelos enquadramentos sucessivos do blade runner
numa paisagem após outra, mas o fio que as encadeia não é simplesmente
o da perspectiva subjetiva do detetive investigativo. Por vezes, sentimo-nos
como que apresentados a um prospecto visual do mundo de 2049, com K
servindo de mera referência de escala humana – ou melhor, da falta de escala
característica de um sublime distópico. Ao relatar para Joshi que o problema

2 Jonathan Crary, 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. London and New York: Verso,
2013, p. 19. O diagnóstico de Crary diz respeito, na verdade, à nossa própria sociedade 24/7
– isto é, ao imperativo da conectividade que nos assola 24 horas por dia e 7 dias por semana. Em
seu artigo neste dossiê, Ed Krčma contrapõe a prática do desenho a este mesmo diagnóstico.

3 A tirada retrata a relação de K com o mundo – sua ausência de alma – como imediata. Como ve-
remos, é de fato nesta situação que K se descobrirá ao final do filme, mas agora de forma mediada.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
110 Sérgio Bruno Martins

fora eliminado – que a criança miraculosamente nascida de uma replicante


morrera sem conhecimento de sua singularidade –, K dá voz à própria relu-
tância em assumir seu protagonismo, idealizada no retorno à paz ignorante e
sabedora de seu lugar. Talvez não se trate, afinal, de uma mentira inventada
para salvar sua pele, e sim de uma meia verdade que o blade runner conta
para si próprio, ou melhor, da verbalização de um wishful thinking. Só que o
giro do parafuso dialético não volta atrás: ao renegar sua origem uterina, K
paradoxalmente anseia por um retorno ao útero, isto é, por remendar a cisão
subjetiva que sua memória lhe impõe e que lhe marca como humano.
Resta então a compensação. É aí que entra em cena a excepcional figura
de Joi, a namorada hologramática fabricada pela corporação Wallace. Joi é
uma personagem-armadilha construída como um convite à nossa empatia e
para colocar-nos no trilho de outra convenção que se quer descarrilhar. Ela
habita o apartamento de K – no film noir, o refúgio idiossincrático do detetive
contra a corrupção que o cerca. Aqui, no entanto, as coisas se invertem: o
apartamento é o santuário no qual K busca reconciliar-se com a falsidade do
mundo. Trata-se inclusive do único lugar onde ele se sente confortável para
compartilhar a dúvida de seu íntimo, e apenas com Joi, que observa quan-
do o blade runner sonega a Joshi o detalhe da data talhada no cavalo de sua
memória ao mesmo tempo em que se esquiva de seu flerte. Se Joi apresenta
crescente independência e desenvoltura no decorrer do filme – Her, de Spike
Jonze, talvez seja o molde mais evidente de sua armadilha, ou talvez A.I. –, é
para lançar sobre K este mesmo imperativo; daí que ela não cesse de repetir
como ele é único e especial.
Ocorre que Joi é uma máquina narcísica. Como diz sua propaganda, ela
existe para dizer o que se quer ouvir. Sua personalidade nada mais é que
um produto da extrema customização, única e exclusivamente dedicado a
afagar o ego de seu usuário. Joi ganha ares subversivos, verdade; ela chega
ao ponto de arriscar a si própria em nome do segredo de K, de tornar-se pe-
recível “como uma garota de verdade.” Mas este é apenas mais um índice do
aperfeiçoamento de seu simulacro, da crescente elasticidade com a qual ela
se adequa ao molde imaginário de seu cliente (Luv, a replicante braço-direito
de Wallace, também não mente, portanto, ao desejar que K tenha estado
“satisfeito com seu produto”). Quando K já não consegue mais operar como
replicante e blade runner – quando suas memórias reais fazem-no desviar de
sua calibragem –, Joi prontamente o rebatiza de Joe, nome a um só tempo ba-
nal e singular (“você deve ser muito especial para terem lhe dado um nome”,
dissera K a Luv). Joe, nome de Zé Ninguém, é talhado à perfeição para o
estereótipo do herói cujo destino se revela mais especial do que sua condição

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 111

ordinária o fazia supor. Já Joi é o avatar de uma instância pós-disciplinar


análoga, por exemplo, à das redes sociais: mais eficaz que a imposição de
uma conformidade castradora é a instalação de um circuito autorreferencial
e capilarizado, capaz de aprisionar cada um em seu próprio narcisismo. Um
circuito repleto de aparentes singularidades, de lobos solitários cuja convicção
de si é também contenção em si.
Em seu livro recente, o filósofo Vladimir Safatle argumenta que a expe-
riência do desamparo é condição sine qua non para a emergência de sujei-
tos políticos contemporâneos – “toda ação política é inicialmente uma ação de
desabamento”.4 Pois é justamente a súbita experiência do desamparo – aberta
pela destruição de Joi por Luv – que permite a K assumir-se como um sujeito
político e histórico, isto é, tomar responsabilidade por (e dar forma a) um de-
sejo que até então lhe parecia externo e contingente feito um sumo infortúnio
do destino. Quando K se dá conta de que não é ele, afinal, o filho nascido de
Rachael e Deckard, seu visível sofrimento interior não corresponde simples-
mente à decepção, mas sobretudo à dura tomada de consciência desse seu
desejo precisamente no momento em que seu objeto se revela perdido. O re-
plicante encontra-se, ainda na definição de Safatle, “sem ajuda, sem recursos
diante de um acontecimento que não é a atualização de meus possíveis.”5 Até
então, K vinha vagando entre a hesitação em assumir seu heroísmo e o gozo
narcísico de sua relação com Joi, mas ambos eram faces da mesma moeda:
o que tornava este gozo possível era a crença numa singularidade que ele
continuamente hesitava em levar às últimas consequências. Com a revelação,
é como se o unicórnio de Deckard, cintilante em seu sonho e prateado no
origami de Gaff, desse lugar ao cavalo rudemente entalhado da memória de
K: da singularidade mítica do herói, passa-se ao registro do comum, de um
igual em meio a uma comunidade cuja política é guiada por uma revelação.
Alienada de seu véu narcísico, a memória de K transforma-se em visão.

Mais humano

Um abismo separa os mundos de Blade Runner e Blade Runner 2049. O Bla-


ckout de 2022, evento a um só tempo espetacular e cataclísmico, varre toda
a memória digital do passado, vale dizer, a quase totalidade dos registros

4 Safatle, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac
Naify, 2015, p. 67, grifo do autor.

5 Ibid., p. 71.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
112 Sérgio Bruno Martins

então existentes. São muitos os cortes que o Blackout impõe: entre gera-
ções de replicantes, entre as corporações Tyrrell e Wallace – e, novamente,
entre o registro histórico que se busca recalcar e um presente administrado
via doses cavalares de estímulos narcísicos. O projeto de Niander Wallace é
contrarrevolucionário e totalitário: ele não apenas responde ao atentado da
geração Nexus 6 contra o banco de dados que alimentava sua perseguição,
reiniciando a produção de replicantes e voltando-os contra seus pares mais
velhos, como ergue, sobre a terra arrasada da amnésia digital, um mundo que
se pretende sem história e sem restos.
Sem restos, no entanto, ele não é, ou do contrário não existiriam nem
blade runners. Todo passado anterior a 2022 ganha ares de Antiguidade; daí
que a investigação de um blade runner enverede por métodos arqueológicos,
como quando K decifra hieróglifos genéticos ou escava um sítio marcado pela
árvore morta, ela própria a ruína de uma natureza devastada. É em torno da
crescente importância desses poucos restos, e de seu estatuto, que o filme
se desenrola. Serão eles peças de um quebra-cabeças a ser resolvido e assi-
milado, ou signos perturbadores do retorno do recalcado? Ao recuperar os
restos mortais de Rachael, K inadvertidamente dá a largada nessa disputa. “A
chave do futuro foi desenterrada” – para Wallace, trata-se da chance de re-
cuperar uma tecnologia perdida e desencadear seu potencial produtivo; para
os replicantes, no entanto, trata-se de uma relíquia, prova do “milagre” que
Sapper Morton e Freysa testemunharam. Se o Blackout propicia a ascensão de
Wallace, ele ergue também um entrave à consumação de seu totalitarismo: ao
resguardar o bebê nascido de Rachael, permite que o nascimento se converta
em milagre, o milagre em evento, o evento em memória, a memória em visão,
e a visão no esteio de uma comunidade por vir (esteio não-essencial, registre-
-se: os replicantes revoltosos se querem “mais humanos que os humanos”,
isto é, capazes de recuperar um sentido subjetivo que a própria humanidade,
fóbica e encastelada em seu apartheid contra outra espécie, parece incapaz de
sustentar – voltarei ao estatuto dessa memória mais adiante).
Vale observar ainda que, nesse contexto, a relação entre mito e razão ins-
trumental não se resume à oposição banal entre dois campos. A figura de
Niander Wallace é ela própria recoberta por tintas míticas: feito um místico a
um só tempo cego e visionário, ou um faraó enigmático que se pretende divi-
no, Wallace apresenta-se como tudo menos o CEO que de fato é, a ponto de
repreender o linguajar técnico de Luv quando esta anuncia um novo modelo:
“será que você pode ao menos pronunciar: ‘nasceu uma criança’?” Wallace é a
encarnação da ideologia corporativa; sua crença em si próprio, longe de ingê-
nua ou idiossincrática, é peça central em seu eficaz mecanismo de exploração.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 113

Já Luv é a prova dos nove dessa eficácia: é difícil saber se sua lágrima verte
por empatia pela replicante recém-nascida que Wallace prepara-se para sacri-
ficar ou porque ela se sente tocada por sua fala mistificante. Em todo caso, a
combinação de frieza tecnocrática e brutalidade sádica de Luv é inconcebível
fora da relação com seu criador. A desumanidade dela é rigorosamente com-
plementar ao misticismo oco e grandiloquente dele; são como dois extremos
polares que, levados às últimas raias, otimizam-se mutuamente.
Segundo certas críticas feitas ao filme, a história de Rachael alçaria a ma-
ternidade ao patamar de traço essencial que distingue mulheres de verdade.6
Não me parece o caso; na verdade, toda a narrativa em torno da reprodução
se dá numa clave que torna equivalentes, isso sim, expansão econômica e
hubris masculina. Wallace representa uma inflexão peculiar de um recorrente
mito corporativo contemporâneo, o do realizador viril. Sua meta é a sub-
missão da reprodução biológica à reprodução econômica e social – só assim
poderá realizar sua fantasia onipotente de patriarca de bilhões, de demiurgo
criador de anjos. Uma fantasia, repito: fica evidente, no contraponto entre
duas das cenas mais fortes do filme – o cego Wallace manuseando o “barro”
que envolve sua criação, e Joi recobrindo o corpo da prostituta replicante
Mariette para que K possa sentir-se tocando-a e tocado – que é disso que se
trata aqui.7
O contraponto ao demiurgo masculino é nada menos que uma encar-
nação feminina de Cristo – o nascimento de Ana remete à visão do “mais
humano que o humano”, e não à certificação da humanidade de Rachael.
Masculinidade e feminilidade, aliás, são signos que não se determinam pelos
invólucros corpóreos que lhes dão vazão. Enquanto Luv perpetra uma agres-
sividade marcadamente masculina em nome de Wallace, K é movido por
uma memória feminina: saber que a lembrança do cavalo pertence à infância
de Ana dá mais sentido ao fato de que a surra de sua infância lhe foi dada
por um grupo de meninos; é nessa marca que a memória carrega da diferen-
ça sexual, e não na diferença biológica pura e simples, que se determina o
sentido subjetivo da experiência do corpo, transformado pelo implante em
experiência política.

6 É o caso, por exemplo, de Charlotte Gush, “Why Blade Runner 2049 is a misogynistic mess”,
in I-D.vice.com, 9 de outubro de 2017, https://i-d.vice.com/en_uk/article/evpwga/blade-run-
ner-2049-sexist-misogynistic-mess, acessado pela última vez em 20 de outubro de 2017.

7 O contraste entre estas duas cenas é exacerbado tanto pela oposição sugerida entre os sentidos
tátil e visual, quanto pelo fato de que a segunda, aos olhos do espectador, é visualmente explorada
como uma fantasia de sexo a três.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
114 Sérgio Bruno Martins

Um pouco de si

Blade Runner não inventou o director’s cut, mas certamente o celebrizou. Ao


rever um punhado de imposições editoriais feitas pelo estúdio em 1982, o
relançamento do filme, quase dez anos mais tarde, colocou em relevo o pro-
blema da intencionalidade artística. Se as principais intervenções impostas
– a narração em off de Deckard, a supressão do sonho do unicórnio e o acrés-
cimo de um final feliz – miravam no gosto e na compreensão de um suposto
espectador médio, aferido em testes prévios com pequenos grupos, em que
medida tais concessões correspondiam à diluição do sentido imanente da
obra em nome da maximização de seu potencial de mercado?
Aos olhos da crítica de veio modernista, tal pergunta pode soar mal coloca-
da. Afinal, não seria Blade Runner, com seu DNA hollywoodiano, um produto
desde sempre regido pelas fórmulas da indústria cultural, antitéticas por de-
finição à autonomia da arte? Sim e não: assumindo o corte histórico proposto
pelo crítico norte-americano Nicholas Brown, é possível recolocar dialetica-
mente o problema da autonomia. Muito resumidamente, sua tese é de que a
quase totalização da circulação cultural pela lógica do mercado no capitalismo
tardio corresponde ao esvaziamento das esferas exteriores a esta mesma lógica
calcadas em alternativas politicamente críveis, ainda que porventura utópicas.
Dito de outra forma, é como se as diversas vanguardas que atacavam a auto-
nomia artística modernista em nome da famosa fusão entre arte e vida – pode-
mos pensar no anarquismo Dada, no flerte Surrealista com o marxismo ou no
proclamado antiesteticismo da Nova Objetividade Brasileira, entre outros – o
fizessem porque a própria ideia de uma “vida” exterior à sociedade burguesa
ainda soava vital o suficiente para amparar imaginários políticos e culturais
outros. A contracultura foi provavelmente o canto do cisne desse estado de
coisas. O que fazer, no entanto, quando a lógica do mercado passa a coloni-
zar por completo não apenas a sociedade burguesa (cujas contradições, antes
convidativas a dedos na ferida como os de um Manet, tornam-se elas próprias
cicatrizes cínicas capazes no máximo de sentir cócegas), mas também o seu
avesso (como na assimilação do signo revoltoso da juventude soixante-huitard
pela estética publicitária)? É nesse momento, argumenta Brown, que a auto-
nomia artística troca de sinal e se torna um valor politicamente recuperável,
uma vez que implica não mais o distanciamento de alternativas vitais, agora
esvaziadas, e sim um índice de resistência à lógica totalizante do mercado.
Evidentemente, o sentido de autonomia resultante de tal giro dialético
já não pode mais ser aquele concebido pela crítica modernista. O próprio
Brown oferece algumas alternativas; a que nos interessa aqui é a ideia de

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 115

estetização de gênero, já incipiente na notória mescla de ficção científica e


film noir de Blade Runner, e politicamente exacerbada, como venho tentando
mostrar, em Blade Runner 2049.8 A estetização de gênero diferencia a obra
de arte da mercadoria artística tornando-a mais realista que o rei: a obra não
apenas adere às convenções que tornam um gênero cultural reconhecível por
seu público consumidor, mas as toma com seriedade semelhante à que um
pintor modernista tomava o meio da pintura (o exemplo do próprio Brown
é a exploração radicalmente heterodoxa das convenções da série policial por
David Simmons em The Wire). Delegando o problema da aceitação comercial
– e portanto da circulação social – às normas do gênero adotado, o artista
pode então operar autonomamente no interior do jogo por elas ensejado, sem
precisar submeter cada decisão autoral sua ao crivo do mercado.
Voltando ao ponto inicial, é essa autonomia que foi negada a Ridley Scott
com a intromissão dos produtores no primeiro Blade Runner, e que o lança-
mento do director’s cut pôs em evidência, como se o estúdio tivesse se dado
conta do exagero de sua própria mão de ferro. Não que este processo tenha
sido isento de contradições de segunda ordem: ironicamente, o relançamento
do filme embalou a mercantilização do próprio carimbo do director’s cut, hoje
parte dos protocolos regulares de comercialização (como conceber que um Pe-
arl Harbor: Director’s Cut, por exemplo, seja qualquer coisa além de um giro a
mais na manivela da caixa registradora?). É por isso que afirmei ser incipiente
a estetização de gênero no primeiro Blade Runner. Ademais, se a diferença en-
tre as versões de 1982 e 1991 de certa forma remonta à oposição entre obra de
arte e mercadoria artística, Blade Runner 2049 leva tal estetização de gênero um
passo além: mais que reiterar a mescla de gêneros do primeiro filme, o diretor
Dennis Villeneuve explora o apelo estético de suas convenções de representa-
ção e narração até produzir um ponto de descolamento situado com precisão
na convergência destes diferentes registros convencionais.
Por isso, como argumentei anteriormente, é essencial o paralelo entre o
alheamento de K perante as paisagens pelas quais ele perambula e seu cres-
cente desajuste com o mundo contínuo das memórias habitualmente implan-
tadas em replicantes. É a coerência que o filme obtém entre as diferentes

8 Brown, N. “The Work of Art in the Age of its Real Subsumption Under Capital”, in Nonsite.org,
13 de Março de 2012, http://nonsite.org/editorial/the-work-of-art-in-the-age-of-its-real-subsump-
tion-under-capital, acessado em 20 de outubro de 2017. Como explica Brown, a estetização de
gênero não necessariamente produz uma arte dotada de legibilidade política explícita, o que não
invalida o valor política da autonomia conquistada em si. Mas se seu exemplo favorito – a série
The Wire – produz “um mapeamento classicamente realista do espaço social”, meu argumento
aqui é que Blade Runner 2049 produz uma fábula política inteligentemente avessa a clichês.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
116 Sérgio Bruno Martins

camadas da linguagem cinematográfica que permite a Villeneuve distanciar-


-se do clichê de tratar a inversão de enredo como uma variável isolada no
interior de uma engenharia das expectativas (a morte ou não do personagem
de Leonardo DiCaprio no final de Titanic, por exemplo, em nada altera o
cálculo estético do filme: trata-se apenas decidir se o clichê que se quer ex-
plorar melodramaticamente é o do conto de fadas em que o casal vive feliz
para sempre ou aquele do amor romântico, idealizado e impossível). Não que
Blade Runner 2049 seja inteiramente isento de problemas, claro: o didatismo
excessivo dos flashbacks está para o novo filme assim como a narração em off
para o antigo; não causará espanto, aliás, se estes flashbacks forem igualmen-
te suprimidos num futuro director’s cut.
Talvez seja o caso então redimir outra fala de Ana Stelline, na qual ela diz
que “há um pouco de todo artista em sua obra.” À primeira vista, a afirmação
parece inevitavelmente comprometida por um expressionismo banal, mas é
possível lê-la também numa chave hegeliana, isto é, como um comentário
sobre a exteriorização (Entäusserung) do sujeito no objeto produzido por seu
trabalho. A exteriorização é a chave da distinção de Brown entre obra de arte
e mercadoria artística. No objeto exteriorizado, ao contrário do que ocorre
na mercadoria produzida segundo o gosto do freguês, é a intencionalidade
normativa inerente ao processo produtivo que dá as cartas do sentido. As car-
tas do sentido, mas não o sentido das cartas dadas: este último segue aberto
àquela interpretação que, diferentemente da projeção ou atribuição arbitrária
de sentido, precisa transcrever, em alguma medida, a coerência interna da
obra, e é por isso mesmo passível de discussão. Não se trata, portanto, do
compartilhamento de um conteúdo psicológico do individuo por meio da
obra, mas sim da produção de um objeto cuja intencionalidade normativa
nele inscrita tem o potencial de formar uma comunidade em torno da tarefa
da interpretação. Já a hipótese de que o que vale numa memória implantada
é o conteúdo manifesto por ela compartilhado não sobrevive à cena em que
este conteúdo é ironizado por Joshi, que toma o tema como apenas um clichê
bem construído: “o pequeno K lutando pelo que é seu...”. Memórias reais são
confusas e contraditórias, mas a memória de K é um implante construído a
partir de uma memória real – é uma obra, portanto. E assim, ao entender que
ela nem é um clichê comercial, como o resto dos implantes, e nem pertence
à sua biografia, o próprio K passa a ocupar o lugar de receptor dessa obra de
arte mnemônica. E fica claro, enfim, que Blade Runner 2049 situa o sentido
político da arte muito mais fundamentalmente na possibilidade de sua consti-
tuição autônoma do que em qualquer conteúdo específico a ser comunicado,
por mais desejável que este possa ser.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Memória em obra: um ensaio sobre Blade Runner 2049 117

Referências

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Paulo: Perspectiva, 1971.
BROWN, N. The work of art in the age of its real subsumption under capital. Nonsite.
org, 13 mar. 2012. Disponível em: < http://nonsite.org/editorial/the-work-of-art-in-
the-age-of-its-real-subsumption-under-capital >. Acessado em 20 out. 2017.
CRARY, J. 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. London and New York: Verso,
2013.
GUSH, C. Why Blade Runner 2049 is a misogynistic mess. I-D.vice.com, 9 out. 2017.
Disponível em:< https://i-d.vice.com/en_uk/article/evpwga/blade-runner-2049-sexist-
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SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
São Paulo: Cosac Naify, 2015.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.107-117, jan.-jun. 2017
Sérgio Bruno Martins**
tradução da autora e de

O Monolinguismo do Global
Kaira M. Cabañas*

Monolingualism of the Global

Resumo
Este artigo empreende uma análise crítica de como “outras” histórias de arte (ou
seja, a chamada arte não ocidental) são postas em prática como arte global em
exposições que muitas vezes se fiam numa leitura da semelhança formal como
história de arte global. Mais especificamente, seu foco é a exposição da produção
criativa de pacientes psiquiátricos no circuito mundial de arte contemporânea.
Examino a inclusão desse tipo de trabalho em exposições internacionais como a
55ª Bienal de Veneza (2013), e o retorno acrítico de categorias como o outsider art.

Palavras-chave: arte global; outsider art; pseudomorfose; Bienal de Veneza.

Abstract
This article undertakes a critical analysis of how “other” art histories (understood
as non-Western) are put to work as global art in exhibitions that often display
confidence in the ability of similar forms to be read as a global art history. More
specifically, it turns to the exhibition of psychiatric patients’ creative production in
the global contemporary art circuit. I examine how such work has been included in
international exhibitions such as the 55th Venice Biennial (2013) and the uncritical
return of categories such as outsider art.

Keywords: global art; outsider art; pseudomorphism; Venice Biennial.

* Professora do College of the Arts, University of Florida; E-mail: k.cabanas@ufl.edu

** Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio); E-mail: sbmartins@gmail.com.

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120 Kaira M. Cabañas

Ainda que dois objetos pareçam idênticos, isso não significa que eles te-
nham muito em comum e muito menos que tenham o mesmo significado.
Yve-Alain Bois, 2015

Tomo uma fala de Jacques Derrida para delinear o que chamo de “monolin-
guismo do global”, um fenômeno que assume várias formas no mundo da
história da arte moderna e contemporânea, bem como da prática curatorial.
No contexto de uma palestra na Universidade Estadual da Louisiana, em Ba-
ton Rouge, parte de um colóquio intitulado “Echoes from Elsewhere” (Ecos de
outro lugar), Derrida começa pedindo ao público que imagine uma situação
em que alguém cultivado na língua francesa, um “cidadão francês ... um su-
jeito, como se diz, de cultura francesa”, diz-lhe em francês perfeito: “Eu não
tenho senão uma língua, e ela não é minha”.1 Tal enunciado haveria de soar
inconsistente frente à aparente competência com a qual o indivíduo fala suas
palavras — como se, num mesmo fôlego, essa pessoa estivesse mentindo e
confessando a mentira. Ou seja, sua performance revelaria o oposto do indi-
cado pelo conteúdo e pela cadência de seu discurso. É o que Derrida chama
de contradição performativa.
Além de discorrer sobre a absurdidade filosófica da cena, Derrida explica
ainda que não é sobre uma língua estrangeira que ele fala, mas sobre uma
língua que não é minha.2 Ele afirma, portanto, que pessoas competentes em
várias línguas tendem a falar de fato apenas uma. Mas qual o sentido de tal
cena para a história da arte moderna e contemporânea, e também para a prá-
tica curatorial contemporânea? Ademais, dado o assunto deste ensaio, qual
o sentido da volta de uma voga como a da assim chamada outsider art no
momento em que críticos, curadores e historiadores da arte tentam definir o
que constitui arte na era da “contemporaneidade global”?

Este ensaio deriva em parte do capítulo 5 do meu próximo livro, Learning from Madness: Brazilian
Modernism and Global Contemporary Art, University of Chicago Press, no prelo. Todas as tradu-
ções de edições não-portuguesas são dos tradutores do presente ensaio.
1 Derrida, J. O monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Trad. de Fernanda Berardo. Belo
Horizonte: Chão da Feira, 2016, p. 23.

2 Idem., p. 5.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 121

O título da palestra de Derrida é “O monolinguismo do outro”; foi dali


que, nos últimos anos, desenvolvi meu pensamento acerca do estado de coi-
sas que, no âmbito da arte contemporânea, eu diagnostico como o monolin-
guismo do global. Para mim, um monolinguismo do global se manifesta, dentre
outras formas, no pseudomorfismo desenfreado que caracteriza diversas ex-
posições de arte contemporânea. Na década de 1960, Erwin Panofsky propôs
a seguinte definição de pseudomorfose: “O surgimento de uma forma A, mor-
fologicamente análoga, ou mesmo idêntica, a uma forma B, mas totalmente
desprovida de relação com aquela do ponto de vista genético”.3 Panofsky
comparava um sarcófago púnico do século III com outro do Alto Gótico. Ain-
da que semelhantes em termos morfológicos, os dois artefatos provinham de
processos históricos e condições de possibilidade decididamente diferentes.
Baseado em Panofsky, o historiador da arte moderna Yve Alain-Bois descreve
o pseudomorfismo como uma espécie de “telescopia histórica” que “conti-
nua alimentando empreitadas curatoriais com grande sucesso” e assevera que,
no recurso à pseudomorfose, “a ignorância é a chave: quanto menos conhe-
cimento tomarmos de contexto e gênese, mais facilmente cooptados pelos
abalos [jolts] da pseudomorfose seremos — o que é outra maneira de dizer
que quanto menos retivermos do ceticismo próprio ao pensamento racional
ao nos aproximarmos de um objeto, mais propensos seremos a deixar a ima-
ginação viajar”. Não é que os abalos suscitados pelo pseudomorfismo sejam
necessariamente ruins, mas que seu alcance, frente ao processo artístico e à
história, tende a ser superficial; nada ali é de fato “abalado”. No mais das ve-
zes, as vertentes pseudomórficas dominantes resumem-se a semelhanças de
tipo genérico (aproximando, por exemplo, dois artistas que coletam sapatos,
realizam pinturas brancas ou gotejam tinta). No decorrer de seu texto, no
entanto, Bois toma o caminho inverso e utiliza semelhanças superficiais como
ponto de partida para discutir diferenças, demostrando habilmente como —
através de “meios quase semelhantes e com produtos finais quase similares”
— um trabalho de François Morellet e outro de Sol LeWitt transmitem “men-
sagens inteiramente opostas”.4
A preferência pseudomórfica pela semelhança visual em detrimento das
diferenças de gênese e contexto é marcante em exposições que pretendem
mostrar a arte contemporânea a partir de uma perspectiva global. Tomemos

3 Panofsky, E. citado In: Bois, Y. On the Uses and Abuses of Look-alikes. October, v. outono
2015, p. 127.

4 Bois, Y. idem., p. 130, 131, 146.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
122 Kaira M. Cabañas

outra cena contemporânea: a abstração geométrica da América Latina figu-


rada no contexto da exposição Other Primary Structures, de Jens Hoffman,
ocorrida no Jewish Museum em 2014. A Primary Structures original, com
curadoria de Kynaston McShine em 1966, era uma exposição da nova es-
cultura – sobretudo minimalista – de artistas dos Estados Unidos e da Grã-
-Bretanha, entre eles Donald Judd, Robert Morris e Anthony Caro. O texto de
divulgação da exposição mais recente explica que “Other Primary Structures
pergunta o que poderia ter sido incluído na exposição original se o mundo
da arte da década de 1960 fosse tão global quanto o de hoje”, para então afir-
mar a inclusão de “grupos culturais que foram marginalizados, suprimidos
ou subrepresentados no cânone hegemônico da história de arte ocidental”.5
É justo: o cânone exerceu uma função repressiva. Felizmente, nos Estados
Unidos, tanto a história da arte moderna quanto suas instituições já supera-
ram, em grande medida, o problema diagnosticado por John Yau quando da
publicação de “Please Wait by the Coatroom” (Aguarde ao lado do vestiário),
a saber o lugar de menor prestígio concedido à arte latino-americana pelo
Museum of Modern Art de Nova Iorque na década de 1980 (embora, é claro,
ainda haja muito trabalho crítico a ser realizado nessa seara).6 Other Primary
Structures incluiu, entre seus “outros” artistas, Lygia Clark, Hélio Oiticica e a
singular Gego.
Ocorre, no entanto, que a exposição resultou menos numa abertura ao
“outro” do que numa apropriação do trabalho de outros em prol de uma ca-
tegoria estética contrária às suas histórias. Daí o “monolinguismo do global”,
que emprego neste caso para demonstrar como, na busca de um diálogo
global, Hofmann segue atendo-se à linguagem visual da semelhança formal.
Ao fazê-lo, a ambição global de sua curadoria suplanta as diferenças possíveis
de reconhecimento no nível dos materiais, das contingências contextuais e
dos locais de produção.7 Além disso, construções e poderes hegemônicos não

5 Hoffman, J. Other Primary Structures, 2014.

6 Ver Yau, J. Please Wait By the Coatroom. In: Out There: Marginalization & Contemporary Cultures.
Cambridge: MIT Press, 1990, p. 132-139.

7 Se levarmos em conta outras exposições organizadas por Kynaston McShine, podemos notar
problemas também com a linguagem da crítica de Hoffman a Primary Structures original e com
o destaque por ele dado ao trabalho deste curador em particular. McShine estava comprometi-
do com a arte internacional e global antes que isso se tornasse língua franca do sistema de arte
contemporânea. Sua exposição Information, de 1970 no MoMA, continua a ser uma exposição
histórica que examinou práticas de arte conceituais politizadas e teve alcance internacional, in-
cluindo “150 homens e mulheres de 15 países, incluindo artistas da Argentina, Brasil, Canadá
e Iugoslávia”. Comunicado de imprensa para a exposição “Information” (1971). The Museum

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 123

simplesmente desapareceram com a emergência do mundo contemporâneo.


Ambos subsistem, mas sob nova aparência. Ou seja, a pretensão de integrar a
arte produzida na América Latina à categoria de primary structures abre mão
de um tipo de controle epistêmico (o cânone dos anos 60) sobre esta arte ape-
nas para inscrevê-la noutro: a saber, numa história de arte formal e atemporal
que se pretende contemporânea e global.
Em “O monolinguismo do outro”, Derrida também nos remete a uma si-
tuação histórica em que era impossível para um escritor “entrar na literatura
francesa senão perdendo o sotaque”.8 Por analogia, podemos dizer que, no
caso de Other Primary Structures, a abstração venezuelana e o neoconcretismo
brasileiro adentraram a categoria de arte global ao custo da perda de seus
nomes, de sua história e de sua especificidade cultural. O efeito cumulativo
de uma autoproclamada exposição de arte global é fazer com que a arte de
todas as nações opere como arte global através de uma literal exibição de sua
aposta na propensão que formas semelhantes teriam à legibilidade enquanto
história da arte global; sua origem, no entanto, continua a ser articulada na
língua do Ocidente (que, no contexto deste ensaio, refere-se à construção
discursiva dos Estados Unidos e da Europa como “o Ocidente”). Dada esta
situação, proponho que imaginemos o seguinte: uma instituição brasileira - o
Museu do Arte Moderna do Rio de Janeiro, digamos - resolve remontar a 1ª
Exposição Neoconcreta, de 1959. Como o mundo não era tão “global” naquela
época, ela então decide mostrar trabalhos de Donald Judd e Robert Morris
em uma exposição intitulada Outros Neoconcretismos. A cena é obviamente ab-
surda, mas evidencia como a linguagem dominante por trás de Other Primary
Structures e demais exposições semelhantes frequentemente retém o privilé-
gio e a autoridade de tornar legível e cognoscível – e até mesmo “global” – a
arte de “outros”; nesse contexto, a produção do conhecimento se revela uma
via unidirecional de apropriação e reafirmação do poder discursivo.
Tais lances de assimilação linguística e categórica, em prejuízo da descon-
tinuidade e da diferença, são também manifestos na recente tendência à in-
clusão do trabalho de pacientes psiquiátricos do período moderno em bienais
de arte globais. Nestes contextos, a produção de artistas outsider como Arthur
Bispo do Rosário – o caso mais famoso do Brasil – é legitimada como arte

of Modern Art, MoMA Archives, NY. Disponível em: <http://www.moma.org/momaorg/shared/


pdfs/docs/press_archives/4484/releases/MOMA_1970_July-December_0004a_69D.pdf?2010>.
Acesso em: 25 julho 2017.

8 Derrida, J, op. cit., p. 77.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
124 Kaira M. Cabañas

contemporânea, em contraponto e às custas do que o modo de ser contempo-


râneo específico de seus trabalhos poderiam ter a nos ensinar. Ao longo dos
anos 2010, os motes da “loucura”, do “outsider” e do autodidata tornaram-se
o “novo” no circuito global contemporâneo, sendo frequentemente incluídos
em exposições nas quais os curadores elegem a beleza, a poética e a imagina-
ção como temas unificadores. Mas será que tais exposições globais, incluindo
a mostra da produção dos pacientes psiquiátricos no caso específico da 55ª
Bienal de Veneza (2013), são capazes de explicar ou pelo menos de abordar
as divergentes histórias da crítica e da clínica?9

*
“Is Everything in My Mind?” (Está tudo em minha mente?) é o título do texto
curatorial de Massimiliano Gioni para a 55ª Bienal de Veneza, The Encyclopedic
Palace. Tal como o texto, a exposição no Arsenale di Venezia, principal espaço
da Bienal, abre com um modelo arquitetônico de grande escala de Marino
Auriti, imigrante italiano que se instalou na Pensilvânia rural dos anos 1930.
Na década de 1950, já aposentado do trabalho de mecânico de automóveis,
Auriti passou anos projetando o que chamou de “The Encyclopedic Palace”
(O Palácio Enciclopédico – daí o título da Bienal), um museu que abriga a
totalidade das descobertas e do conhecimento humanos – coisa que aparen-
temente não incluía a arte. Auriti entrou com um processo legal junto ao US

9 Neste ensaio, tomo a 55ª Bienal de Veneza como meu principal exemplo de justaposição do
trabalho dos pacientes psiquiátricos modernos e arte contemporânea no cenário global. Em meu
próximo livro, Learning from Madness, também abordo como o trabalho dos pacientes foi incluído
na 30ª Bienal de São Paulo (2012) com curadoria de Luis Pérez-Oramas. Como prática curato-
rial contemporânea, a justaposição do trabalho dos pacientes psiquiátricos e da arte moderna e
contemporânea tem uma longa história no Brasil, que inclui o apoio dado respectivamente por
Osório César e Mário Pedrosa à exibição do trabalho dos pacientes (tema também abordado em
Learning from Madness). Mas o fato do país contar com histórias como essas não significa que en-
carnações atuais de tal prática curatorial estejam livres de problemas. Recentemente, o Museu de
Arte do Rio apresentou a exposição Lugares do delírio (2017), concebida por Paulo Herkenhoff e
com curadoria da psicanalista Tania Rivera. A mostra incluiu obras de uma lista variada de artistas,
indo de Cildo Meireles e Anna Maria Maiolino aos pacientes-artistas Bispo do Rosário e Raphael
Domingues. Sobre sua concepção curatorial, Rivera escreve: “A intenção é colocar em suspenso a
delimitação entre o normal e o dito ‘louco’. A arte e a loucura têm em comum a força de transfor-
mação da realidade e isso está representado na exposição”. Enquanto o trabalho de outsider artists
é frequentemente assimilado por curadores de arte contemporânea pela via da linguagem formal
(como fez Gioni na 55ª Bienal de Veneza), neste caso, uma psicanalista atuando como curado-
ra (Rivera) imputa uma “força” transformadora a todo o trabalho exposto e, consequentemente,
aliena as obras de sua especificidade no interior da história da arte e da história da instituição
psiquiátrica. (Ver o comunicado de imprensa: http://www.museudeartedorio.org.br/sites/default/
files/release_lugares_do_delirio.docx_2.pdf)

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 125

Patent Office em 1955, e a patente do projeto foi emitida no ano seguinte.10


Para Gioni, o modelo de Auriti (parte da American Folk Art Collection desde
2002) evidencia como o “sonho de um conhecimento universal e abrangente
brota ao longo de toda a história da arte e da humanidade, compartilhado en-
tre excêntricos como o Auriti e muitos outros artistas, escritores e cientistas”.
Exemplos de tais “voos da imaginação” e “cosmologias pessoais” tornaram-se
o princípio orientador da curadoria, permitindo a Gioni combinar “obras de
arte contemporâneas com artefatos históricos e objetos encontrados”, bem
como “derrubar as fronteiras entre artistas profissionais e amadores, insiders
e outsiders, juntando obras de arte a outras formas de expressão figurativa”.11
Enquanto Auriti abria o espaço no Arsenale com seu sonho de uma estru-
tura cuja extensão abarcaria toda uma coleção comemorativa das realizações
da humanidade, o segundo espaço da bienal, o Giardini, reencaminhava os
visitantes para o universo das visões interiores. Logo no início, numa sala à
meia-luz, os visitantes deparavam-se com trinta e nove reproduções em alta
resolução do Liber Novus, do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. O tomo ori-
ginal, um manuscrito iluminado, era exibido numa caixa de vidro no centro
do espaço. Inicialmente redigido na década de 1910, o livro é um registro das
“visões” ou “imaginações” de Jung, através das quais ele provocava fantasias
durante o estado de vigília. Jung coletou e posteriormente transcreveu esses
episódios imaginativos para o volume hoje conhecido como o Livro Verme-
lho. Uma máscara mortuária em gesso de André Breton, feita por René Iché,
encontrava-se exposta logo atrás do livro, ao longo da mesma linha de visão.
Com seus olhos fechados e lábios franzidos, a máscara literalmente figurava
o abandono da realidade externa em prol da procura de mundos interiores.
Recorrendo à concepção Jungiana de imagens primordiais, ou arquétipos,
o texto curatorial de Gioni desloca-se rapidamente para a descrição de como
a exposição também incorpora desenhos de Pirinisau, um xamã das Ilhas
Salomão, e daí para pinturas Tântricas, para as imagens abstratas de Hilma
af Klint e para o trabalho altamente elaborado de Augustin Lesage (um dos
artistas canônicos da art brut de Jean Dubuffet). Ainda que o processo espe-
cífico e o propósito dos trabalhos escolhidos tenham incluído resultados de
sessões espíritas e uma incitação à meditação, Gioni recusa a hipótese de que
sua bienal pretendesse representar o artista, na exposição, como um meio. Ao

10 Heuer, M. The Encyclopedic Palace. Art in America, v. 101, no. 5, maio 2013, p. 49.

11 Gioni, M. Is Everything in My Mind? In: Il Palazzo Enciclopedico/The Encyclopedic Palace. Vol. 1.


Venice: Fondazione La Biennale di Venezia, 2013, p. 23.

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126 Kaira M. Cabañas

invés disso, o curador afirma que as obras desses artistas demostram como
“nós próprios somos meios, canalizando imagens ou descobrindo-nos eventual-
mente possuídos por imagens”.12 Isso o leva como que naturalmente a uma
discussão sobre o trabalho de Ryan Trecartin: é como se as instalações esma-
gadoras deste último, que exacerbam mimeticamente as relações contempo-
râneas entre identidade e tecnologia, fossem idênticas à economia de meios
compositivos da pintura Tântrica, ou ainda às composições densas de Lesage,
que, segundo o próprio, lhe foram ditadas por sua irmã morta.
Gioni usa obras pertencentes à categoria de outsider art para promover
sua visão de arte contemporânea num contexto global. Mas o retorno acrítico
desta categoria em relação à produção criativa dos pacientes psiquiátricos,
que me é cara no presente ensaio, deixa de lado a contextualização histórica
tanto do modernismo quanto da contemporaneidade, além de não explicar
as transformações na prática psiquiátrica; é a Jung que Gioni recorre para
fundamentar sua exposição e sua presunção curatorial. A retórica do mito
ressoa nas palavras de Gioni: “Um sentido de reverência cósmica permeia
muitas das obras”; trata-se de “uma exposição sobre obsessões e sobre o po-
der transformativo da imaginação”; a exposição é “uma arquitetura mental
tão fantástica quanto delirante”. Ainda que sua linguagem pareça prestar-se
a acomodar qualquer coisa de qualquer canto do planeta, Gioni insiste: “The
Encyclopedic Palace não tem objetivos universalistas”. Ele termina conclaman-
do-nos a “transformar nossas imagens internas em realidade”.13 Ao fazê-lo, a
exposição oculta as complexas relações que as obras dos pacientes psiquiá-
tricos historicamente mantêm com a história da arte moderna e com noções
de subjetividade artística. Invocando o trabalho inaugural de Hans Prinzhorn,
Benjamin H.D. Buchloh critica The Encyclopedic Palace precisamente por “re-
vitalizar um mito de criatividade universalmente acessível”.14 Da mesma for-
ma, para Lynne Cooke, a estratégia curatorial de Gioni “despoja as obras de
quaisquer vestígios das condições materiais e intelectuais que originalmente
imbuíam-nas com significado e valor”.15
Com suas visões inconscientes e interiores alçadas à condição de fronteira
final do sistema da arte contemporânea global, o efeito cumulativo de The

12 Idem., p. 25. (ênfase no original)

13 Idem., p. 26, 27, 28.

14 Buchloh, B. The Entropic Encyclopedia. Artforum, v. 52, no. 1, setembro 2013, p. 312.

15 Cooke, L. World of Interiors. Artforum, v. 52, no. 1, setembro 2013, p. 302-305.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 127

Encyclopedic Palace era como o de uma versão contemporânea da exposição


Magiciens de la terre (Magos da terra), de 1989, um precedente fundamental
que Okwui Enwezor menciona em sua resenha sobre a bienal.16 Um prece-
dente já bem documentado na historiografia da prática curatorial e de exposi-
ções: Magiciens de la terre foi uma das primeiras grandes exposições a abordar
o lugar da arte não ocidental na história da arte moderna e contemporânea
(a controversa “Primitivism” in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the
Modern, ocorrida no MoMA em 1984-1985, é comumente tida como a pio-
neira nesse sentido). A exposição foi criticada em várias frentes, principal-
mente pela projeção primitivista de uma concepção de cultura “autêntica” e
“tradicional” que guiava sua seleção de artistas “não ocidentais”, enquanto os
artistas do ocidente eram predominantemente oriundos de cidades modernas
e remetidos a contextos cosmopolitas. Tal oposição entre o outro autêntico e
o artista urbano-cosmopolita talvez não surpreenda, dado que a coleção de
arte pessoal do surrealista André Breton serviu de inspiração para o curador
da exposição, Jean-Hubert Martin.17 Além disso, mais que naturalizar os pres-
supostos primitivistas que orientaram suas escolhas através de seu enquadra-
mento curatorial, Martin exacerbou-os ao identificar os criadores convidados
a apresentar sua arte primeiramente pelo termo magiciens, no lugar de artistas.
Para a maioria dos críticos contemporâneos, Magiciens de la terre constituiu “a
encarnação de uma atitude neocolonialista que permitiu ao sistema artístico
contemporâneo colonizar, comercial e intelectualmente, novas áreas que an-
teriormente estavam fora de seu alcance”.18
Martin incluiu três artistas brasileiros em Magiciens de la terre, e cada um
contribuiu com trabalho de cunho religioso. Mestre Didi e Ronaldo Rêgo fize-
ram referência explícita às religiões afro-brasileiras, enquanto Cildo Meireles
abordou um capítulo sombrio da história política em sua instalação Missão/
missões: Como construir catedrais (1987), que evoca tanto a colonização reli-
giosa do país quanto o custo humano da exploração através de 800 hóstias,
600.000 moedas e 2.000 ossos de animais suspensos. Em face de tais decisões

16 Ver Enwezor, O. Predicaments of Culture. Artforum, v. 52, no. 1, setembro 2013, p. 326–329.

17 Ver Steeds, Lucy. “Magiciens de la Terre” and the Development of Transnational Project-
-Based Curating. In: Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. London: Afterall,
2013, p. 24–92.

18 Lafuente, P. Introduction: From the Outside In—“Magiciens de la Terre” and Two Histories
of Exhibitions. In: Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la Terre’ 1989. London: Afterall,
2013, p. 11.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
128 Kaira M. Cabañas

curatoriais acerca da arte produzida na região, o crítico de arte colombiano


Álvaro Medina observou que a exposição “confundiu magia e artesanato em
sua escolha de latino-americanos”.19
Vinte e quatro anos depois, os três artistas do Brasil incluídos em The
Encyclopedic Palace alinhavam-se com a temática visionária de Gioni. O Manto
da Apresentação, de Bispo do Rosário, foi pendurado acima de uma platafor-
ma que exibia outros de seus objetos; Paulo Nazareth apresentou uma cole-
ção de produtos comerciais com os nomes dos santos de sua mãe; por sua vez,
Tamar Guimarães e o artista dinamarquês Kasper Akhøj apresentaram seu
filme A família do Capitão Gervásio (2013-2014), que narra a viagem psíquica
de um médium. O filme apresentava aos espectadores uma temática – visões
místicas – que percorre o cerne da produção artística de Guimarães e de suas
colaborações com Akhøj, como é o caso do recente trabalho A Minor History
of Trembling Matter (2017). No caso de Nazareth, a prática apresentada aos
espectadores não foi a sua mais representativa, de caminhadas longas e trans-
continentais. Tal como acontecia com Magiciens de la terre, o efeito cumula-
tivo da apresentação dessas obras sugere um certo exotismo que governa as
escolhas, a partir do qual os artistas do Brasil deveriam exibir a sua identida-
de cultural e forjar uma imagem do país como uma terra de visões espiritu-
ais diversas—do esquizofrênico ao devocional. Ao favorecer a apresentação
descontextualizada de sujeitos e objetos, os curadores de ambas exposições
pareciam sugerir que a modernidade nunca chegara à costa brasileira. Na se-
quência de Magiciens de la terre, outras exposições preocupadas com questões
pós-coloniais, como a documenta 11 de Enwezor, intervieram enfatizando as
particularidades locais das práticas artísticas e chamando atenção para histó-
rias culturais e políticas específicas.
Ainda assim, Magiciens de la terre foi um divisor de águas crucial na cena
artística global. A despeito de seus evidentes problemas, a mostra desarti-
culou de forma proveitosa a oposição entre um sujeito atuante (ocidental) e
um sujeito passivo (não ocidental) ao expor “makers” (fabricantes) que recu-
savam o legado da exibição de objetos silenciosos. Para o curador e escritor
Pablo Lafuente, a exposição deu início a uma “mudança histórica rumo à
inclusão do artista enquanto produtor cultural como sujeito atuante no con-
texto de exposições contemporâneas, em oposição à sua inclusão como su-
jeito representado (ou seja, criador “indígeno” ou “primitivo”) ou à inclusão

19 Medina, A. L’art latino-américain dans quatre expositions internationales. Vie des Arts, v. 36,
no. 143, 1991, p. 44.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 129

de objetos pelos quais ele ou ela é responsável”. Indo adiante, Lafuente faz
dessa mudança histórica a base de um sistema de relações através do qual é
possível representar quatro tipos de exposições de arte contemporânea em
escala global: “Exposições de objetos contextualizados; exposições de sujeitos
contextualizados; exposições de sujeitos descontextualizados; e exposições
de objetos descontextualizados”.20 No entanto, o sistema de relações que La-
fuente desenvolve ainda pressupõe uma concepção estável de subjetividade
e agência artística. Isso me leva a colocar a seguinte questão: como tomar
em consideração o trabalho de pacientes psiquiátricos dentro da dialética
de descontextualização e determinação contextual que define exposições no
circuito global de arte contemporânea?
Em The Encyclopedic Palace, Bispo do Rosário foi representado exclusiva-
mente por seus trabalhos, alguns dos quais, como insiste o catálogo, “fazem
lembrar o trabalho de artistas de vanguarda como Arman e Claes Oldenburg”.21
Não há explicação, na exposição, nem sobre o local onde se deu aquela pro-
dução, nem sobre o espectador singular ao qual Bispo endereçava sua obra:
Deus, no Juízo Final. À luz deste último dado, cabe perguntar: que tipo de
espectador esta bienal supõe que seus visitantes sejam? Como entender tal
trabalho numa exposição que promove tantas visões pessoais alheias à histó-
ria? Em suma, não foram somente os objetos de Bispo que sofreram descon-
textualização; saíram de cena tanto sua subjetividade quanto os fins segundo
os quais ele compreendia sua própria produção criativa.
Tal dinâmica de descontextualização estendia-se à decisão de Gioni de
incluir na bienal o trabalho Asylum (2013), de Eva Kot’átková. Asylum é ba-
seado nas formas de comunicação e nas hierarquias sociais descritas pelos
pacientes do Hospital Psiquiátrico de Bohnice, nos arredores de Praga, com
quem Kot’átková colaborou para a realização do trabalho. A instalação por
ela criada inclui elementos escultóricos reminiscentes de gaiolas e paredes –
isto é, uma iconografia de confinamento. Colagens e esculturas em pequena
escala combinam fotografias de pessoas não identificadas com objetos do
cotidiano. Em performances que ocorriam durante a exposição, atores es-
tendiam a cabeça e as mãos através dos buracos construídos no pedestal da
instalação, como se tentassem se libertar do cativeiro. Um crítico descreveu
Asylum como que aludindo a “um corpo político alternativo projetado em

20 Lafuente, P, op. cit., p. 13, 17.

21 C.W. Bispo do Rosário. In: Il Palazzo Enciclopedico/The Encyclopedic Palace. Vol. 2. Venice:
Fondazione La Biennale di Venezia, 2013, p. 384.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
130 Kaira M. Cabañas

torno da visão de um corpo fragmentado, refletindo a perspectiva daqueles


que vivem fora da ordem social normativa”.22 É nestes termos, de uma estéti-
ca surrealista, que críticos e jornalistas de arte geralmente descrevem a obra
de Kot’átková.23
Assim como os documentos médicos encontrados nos arquivos hospitala-
res, Asylum inclui relatórios datilografados sobre os pacientes: “Um paciente
afirmou que vê fobias, medos e angústias voando ao seu redor em uma sala.
Ele disse que estes continuam saindo da sua cabeça de vez em quando e, às
vezes, se recusam a voltar, mas o assustam de fora”. O relatório continua:
“Outro paciente suspeitou que todos os objetos em seu quarto tinham medo
escondido dentro deles. Ele não confiava num guarda-roupa, num travesseiro
e num guarda-chuva porque supunha que eles eram recipientes de algo ruim.
Dessa forma, ele raramente podia usar qualquer objeto”. Outro relatório, in-
titulado “Fragmented body” (corpo fragmentado), afirma: “Alguns pacientes
reclamam de ou se preocupam com sua incompletude. Eles estão convenci-
dos de que seus corpos não se mantêm íntegros”.24 O artista explica: “Asylum
apresenta uma coleção de medos, angústias, fobias e visões fantasmagóricas
de pacientes e crianças que sofrem de dificuldades de comunicação ou que
lutam para se encaixar nas estruturas sociais, um caótico arquivo de visões
internas”.25 Consequentemente, no contexto de The Encyclopedic Palace, a ins-
talação pode ser lida como surrealista não apenas do ponto de vista estético,
mas também do de sua ambição: Kot’átková colabora com os pacientes, mas
tal experiência serve como fonte de inspiração para seu trabalho final, em que
o paciente psiquiátrico contemporâneo é refletido, representado e arquivado.
Curiosamente, a mera inclusão de outsider art ou a representação de sujei-
tos não normativos é frequentemente lida como se fosse uma escolha progres-
sista no âmbito dos museus da arte moderna e contemporânea, como quando
Gioni argumenta, em seu ensaio curatorial, que a Bienal “derruba as frontei-
ras entre artistas profissionais e amadores, insiders e outsiders”. No entanto, como

22 Rabino, M. Re-education Machine. Detenzioni, novembro 2013. Ver também Muñoz, B. Eva
Kot’átková: Mental Armours. Afterall / Online, fevereiro 2014.

23 Ver Idem.; Cumming, L. Eva Kot’átková: A Storyteller’s Inadequacy. The Guardian, dezembro
2013; Micchelli, T. Quickly Aging Here: The 2015 Triennial. Hyperallergic, fevereiro 2015; Lacy, J.
To Set a Trap: Eva Kot’átková at MIT List Visual Arts Center. Art in America, maio 2015.

24 Ver as fotografias reproduzidas de Eva Kot’átková, Asylum (2013). Disponível em: <https://
zoltanjokay.de/zoltanblog/2013/09/eva-kotatkova-asylum/>

25 Eva Kot’átková, citada In: Muñoz, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 131

no caso das inclusões ocidentais e não ocidentais em Magiciens de la terre,


o problema não reside simplesmente na inclusão em si. A questão crítica
continua sendo a de como isso é feito. Em The Encyclopedic Palace, enquanto
um paciente histórico como Bispo era representado exclusivamente por seu
trabalho, os pacientes atuais eram representados por um artista – Kot’átková –
cujo trabalho falou por eles. Tal efeito era exacerbado pelo fato de que Asylum
encontrava-se cercado pelo trabalho histórico de Anna Zemánková, uma série
de padrões florais que ela produzia em estado de transe. Tais justaposições
colocam em relevo a persistente lógica de exclusão que atravessa a exposição
de Gioni, não obstante sua declarada pretensão de desfazer linhas divisó-
rias. Além de não ter pacientes psiquiátricos contemporâneos apresentados
como sujeitos atuantes, a exposição não inclui obras que têm como autores
pacientes vivos. Estes sequer figuram como colaboradores dotados de voz
própria e individual. O trabalho de Bispo, que foi produzido dentro e contra
a instituição psiquiátrica moderna, uma vez justaposto à iconografia de con-
finamento que caracteriza a instalação de Kot’átková, termina por apresentar
uma concepção moderna (e portanto obsoleta) do hospital psiquiátrico e de
sua função disciplinar.
Magiciens de la terre pretendia superar a tradição curatorial de excluir cul-
turas não ocidentais do museu de arte moderna, e o fez retendo pressupostos
primitivistas igualmente modernos. De forma análoga, a emergência global
da outsider art e da arte dos pacientes psiquiátricos perpetua uma aborda-
gem anacrônica da instituição psiquiátrica e da saúde mental. Magiciens de la
terre foi criticada por não levar em conta críticas pós-coloniais à autoridade
ocidental26; The Encyclopedic Palace também deveria ser questionada por não
levar em conta as críticas à autoridade psiquiátrica, defendendo, em vez disso,
uma noção a-histórica de visão interior. Dado o país anfitrião da bienal, essa é
uma omissão particularmente gritante: o trabalho do italiano Franco Basaglia
teve papel central no movimento de psiquiatria radical e de desinstituciona-
lização das décadas de 1960 e 1970. Basaglia foi crucial para a aprovação da
Lei 180 na Itália, que aboliu o asilo, e foi também um defensor e referência
vital para a reforma psiquiátrica no âmbito internacional, dando sua primeira

26 Ver Enwezor, O. The Postcolonial Constellation: Contemporary Art in a State of Permanent


Transition. In: Antinomies of Art and Culture: Modernity, Postmodernity, Contemporaneity. Orgs.
Terry Smith, Okwui Enwezor, e Nancy Condee. Durham and London: Duke University Press,
2008, p. 207–234.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
132 Kaira M. Cabañas

palestra no Brasil em 1978.27 Ao traçar paralelos estruturais entre as duas


exposições, não pretendo traçar uma simetria perfeita entre ambas, mas subli-
nhar a persistência de outro mito modernista que, na minha opinião, não tem
provocado o mesmo nível de engajamento e questionamento crítico: o fascínio
pelas visões interiores que a arte dos pacientes psiquiátricos trazia à tona.

*
Numa conferência de 1946 intitulada “Aspectos da vida social entre os loucos”,
Osório César descreve a vida dos pacientes dentro do asilo, enfocando momen-
tos de camaradagem e delírios. Em um certo ponto, ele fala da banda forma-
da por pacientes com experiência musical anterior, comentando o repertório
diversificado que esta tocava no hospital durante as férias e para os visitantes
importantes. Como era comum com este tipo de grupo, as performances eram
ocasionalmente interrompidas por um surto psicótico ou uma convulsão. Tais
interrupções eram notáveis para Osório, e provavelmente alarmantes aos olhos
dos visitantes, mas ele afirma que os outros músicos (também pacientes) “não
se impressionavam com esses imprevistos e continuavam, na maior calma deste
mundo, a executar a partitura”.28
Hoje, tal direito de ser louco na vida e na performance é central para alguns
dos melhores trabalhos de artistas contemporâneos a abordar a questão da saúde
mental, como o de Javier Téllez ou Alejandra Riera. Eles introduzem no sistema
de arte contemporânea um tipo de trabalho que expõe os limites da cena artística
global e de sua capacidade de lidar com o que não é concebido em seu interior, ou
para ela, convocando-nos a assumir o imperativo ético de retrabalhar incessante-
mente nossa compreensão da diferença. Ao invés de lançar mão de uma história
aparentemente estática da instituição disciplinar moderna e da produção criativa
de seus pacientes psiquiátricos, tomam mais frequentemente as lições da antipsi-
quiatria como seu ponto de partida. Dessa forma, deslocam a ênfase curatorial da
visualidade do objeto acabado (que observamos nas exposições do trabalho de
Bispo) para atividades colaborativas que revelam diferentes modos de subjetivação,
muitas vezes envolvendo a participação de pacientes de saúde mental dos dias de
hoje (e não meramente representando-os ou falando em seu nome).

27 Basaglia participou de uma conferência psicanalítica no Rio de Janeiro junto com outros con-
vidados internacionais, incluindo Félix Guattari, Robert Castel e Erwin Goffman. Ver Amarante, P.
Locos por la vida: La trayectoria de la reforma psiquiátrica en Brasil. Buenos Aires: Ediciones Madres
de Plaza de Mayo, 2006, p. 63–64.

28 César, O. Revista do Arquivo Municipal, v. CV, no. 12, 1946, p. 15.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
O Monolinguismo do Global 133

Tanto o direito de ser louco quanto o potencial de aprendermos com a


loucura constituem o cerne das produções da Cia Teatral Ueinzz, criada em
1997 em São Paulo, e composta por filósofos, pacientes de saúde mental,
terapeutas, normopatas e artistas. Hoje, é Peter Pál Pelbart quem comanda
o grupo. Seja realizando Daedalus, ou uma variação de Finnegans Wake, cada
uma de suas performances inclui momentos em que um ator pode desviar do
roteiro. Por exemplo, pode ser que um ator se recuse a participar de determi-
nada cena, ou que o público testemunhe um ator entrando e saindo do seu
“personagem” num tempo outro que não o da representação, como quando
um ator saiu do palco para beijar seus familiares sentados na primeira fila
durante a sessão de Cais de Ovelhas à qual assisti em 10 de novembro de 2013.
Em desvios como esses, os atores revelam algo mais: “maneiras de perceber,
sentir, vestir-se, posicionar-se, falar, fazer perguntas, oferecer ou se afastar
do olhar do outro, bem como do prazer dos outros”.29 Numa impactante
inversão do que se entende convencionalmente por “representação” versus
“vida”, a experiência que o público “normal” tem durante as performances
da Ueinzz é a da vida e do desejo no palco. Com ações que violam o roteiro
e seus parâmetros restritivos — ou seja, a ideia de que se deve seguir — os
atores produzem momentos em que o poder da vida irrompe em cena. Somos
instados a participar do tempo do outro, a ouvir a linguagem do outro e a
aprender com outros estados do ser no mundo.30

29 Pelbart, P.P. Inhuman Polyphony in the Theater of Madness. In:______. O avesso do niilismo:
Cartografias do esgotamento / Cartography of Exhaustion: Nihilism Inside Out. Trad. de John Lauden-
berger. São Paulo: n1 publications, 2013, p. 118. Este ensaio específico não foi publicado em por-
tuguês neste livro, mas Pelbart fala sobre Uenizz e a colaboração com Alejandra Riera num outro
texto em português (com titulo em inglês), The Splendour of the Seas (Uenizz-Riera), p. 237-259.

30 Com esta frase final, evoco o título de uma exposição do trabalho dos pacientes de Nise da
Silveira. Ela tirou o título “Os inumeráveis estados do ser” de Antonin Artaud. Ver Os inumeráveis
estados do ser. Org. Luiz Carlos Mello. Rio de Janeiro: Museu de Imagens do Inconsciente, 1987.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
134 Kaira M. Cabañas

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.119-134, jan.-jun. 2017
Fortuna: Drawing, Technology, Contingency
Ed Krčma*

Fortuna: Desenho, Tecnologia, Contingência

Abstract
This article explores the relationship between drawing, technology and contingency
in three artists’ work since the late 1950s, to engage the relationship between forms of
artistic labour, the autonomy of the studio, and the internalization of the techniques
and tempos of the contemporary life world more broadly. Each artist hybridizes
drawing with more modern technological modes: in his solvent transfer method
Robert Rauschenberg brought drawing to the condition of collage and into direct
contact with the contemporary printed mass media; William Kentridge’s ‘Drawings
for Projection’ and his more recent ‘flip-book films’ engage with increasingly obsolete
forms of visual communication to explore both the fraught recent history of South
Africa and the potentials articulated in physical acts of making; and in her Motion
Capture Drawings British artist Susan Morris employs biometric digital technology
to generate lines directly from the unconscious movements of the body, measured over
extended durations, in a contemporary form of surrealist automatism. While not
wishing to propose too close an alignment between these three practices, this article
explores the ways in which in each case automatic, contingent, non-conscious, or
otherwise ‘dark’ aspects of drawing are brought into focus as drawing is aligned with
other more recent technological forms. The implications of this contingent aspect –
or fortuna – are examined in the context of the growing power of measurement,
quantification and control to structure contemporary life more broadly.

Keywords: Drawing; Technology; Robert Rauschenberg; William Kentridge;


Susan Morris.

* Professor de História da Arte da School of Art, University of East Anglia / UK; E-mail:
e.krcma@uea.ac.uk.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
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Resumo
Este artigo explora a relação entre desenho, tecnologia e contingência no trabalho
de três artistas desde o final da década de 1950, para envolver a relação entre as
formas de trabalho artístico, a autonomia do estúdio e a internalização das técnicas
e tempos do mundo da vida contemporânea mais amplamente. Cada artista hibrida
o desenho com modos tecnológicos mais modernos: em seu método de transferência
de solventes, Robert Rauschenberg trouxe o desenho para a condição de colagem
e contato direto com os meios de comunicação impressos contemporâneos; Os
“Desenhos para Projeção” de William Kentridge e seus mais recentes “filmes de
folhetos” se engajam em formas de comunicação visual cada vez mais obsoletas
para explorar a história recente e árdua da África do Sul e os potenciais articulados
em atos físicos de fabricação; e em seus Motion Capture Drawings [desenhos de
captura de movimento], a artista britânica Susan Morris emprega a tecnologia
digital biométrica para gerar linhas diretamente dos movimentos inconscientes
do corpo, medidos em durações prolongadas, em uma forma contemporânea de
automatismo surrealista. Embora não deseje propor um alinhamento tão próximo
entre essas três práticas, este artigo explora as maneiras pelas quais, em cada
caso, os aspectos de desenho automáticos, contingentes, não conscientes ou de certa
forma “escuros” são colocados em foco, enquanto o desenho é alinhado com outras
formas tecnológicas mais recentes. As implicações deste aspecto contingente - ou
fortuna - são examinadas no contexto do crescente poder de medição, quantificação
e controle para estruturar a vida contemporânea de forma mais ampla.

Palavras-chave: Desenho; Tecnologia; Robert Rauschenberg; William Kentridge;


Susan Morris.

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While frequently involving complex cognitive powers, drawing is most often


technologically rudimentary, a primary form of visual language that barely
requires equipment. In relation to a contemporary world structured by the
ever-expanding capacities of new media, to drive a stick of charcoal across
a piece of paper seems archaic. The digital computer has its roots in the
punch-card operated Jacquard looms, introduced in 1801 to extend the me-
chanization of labour to weaving, and the Analytical Engine of Ada Lovelace
and Charles Babbage. Advancing rapidly in the decades following the Second
World War, and prodigiously since the late 1980s, the development of digital
media has cast older visual technologies in a new light, and has replaced
them in many domains. More recently, smartphones, tablets, and social me-
dia platforms have come to organise personal and professional life, encoura-
ging newly accelerated rates of image production and circulation.
Indeed, in places where Internet access is widespread and personal devi-
ces are generally affordable, the use of them has become all but compulsory.
While the impulses propelling the invention and development of much new
media technology have sometimes been utopian, it would be difficult to cha-
racterise its dominant forms of social implementation in liberatory terms.1 As
Jonathan Crary has argued in his book, 24/7: Late Capitalism and the Ends of
Sleep, such advanced technologies are now aimed squarely at the penetration
of new areas of subjective experience, shaping patterns of habit, attention
and desire in the service of capital. Digital media have enabled the details of
our interests, preferences, communications, movements, and transactions to
be monitored, shaped, stored and trafficked. Such fierce powers of quantifi-
cation, Crary argues, maintain a kind of relentless glare, and represent a new
moment of the hegemonic march of instrumental reason:

A 24/7 world is a disenchanted one in its eradication of shadows and obscu-


rity and of alternate temporalities. It is a world identical to itself, a world
with the shallowest of pasts, and thus in principle without specters. But the
homogeneity of the present is an effect of the fraudulent brightness that

1 Sadie Plant describes the advent of a post-war control society in the following way: ‘This was
a brave new equilibrated world of self-guiding stability, pharmaceutical tranquility, white goods,
nuclear families, Big Brother screens, and, to keep these new shows on the road, vast new systems
of machinery capable of recording, calculating, storing, and processing everything that moved.
Fueled by a complex of military goals, corporate interests, solid-state economics, and industrial-
-strength testosterone, computers were supposed to be a foolproof means to the familiar ends of
social security, political organisation, economic order, prediction, and control.’ Plant, S. Zeros +
Ones, Digital Women and the New Technoculture. London: Fourth Estate, 1997, p. 32-33.

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presumes to extend everywhere and to preempt any mystery or unkno-


wability. A 24/7 world produces an apparent equivalence between what is
immediately available, accessible, or utilizable and what exists.2

The emergence of global mega-corporations such as Apple, Google and Facebook


has meant that those domains of human activity that escape such surveillance
have radically diminished, while the content to which subjects are exposed on-
line, for example, becomes ever more precisely tailored and pre-packaged. Spe-
aking in Berlin in May 2011, Eric Schmidt, then CEO of Google, declared:

So, what does the digital future look like? Well, you can’t forget anything,
because your computer remembers it for you… You’re never lost… the
only way to get lost is to turn off your phone… the reality is that your pho-
ne knows where you are already… and furthermore there’s research that
indicates that even if we know a little bit about you, we can sort of predict
where you’re going to go… again, with your permission…. We can suggest
things that are interesting to you, based on your passions, things that you
care about, where you’re going, that sort of thing. Our suggestions will be
pretty good. We have figured out a way to generate serendipity.3

A function of contemporary capitalism rather than any inevitable outcome of


technological innovation, such an aspiration gives new dimensions to Guy
Debord’s bleak diagnosis of the ‘society of the spectacle’, now fifty years old. Even
that which is experienced as a chance encounter might merely be the product
of the surveillance capacity and processing power of commercial corporations.
Schmidt’s fantasy hangs on the annihilation of contingency – a concept, as Mary
Anne Doane has written, ‘used to mean both chance – freedom from necessi-
ty, the fortuitous or unplanned – and dependence on something outside itself

2 Crary, J. 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. London and New York: Verso, 2013, p. 19.
Crary continues, ‘Any questioning or discrediting of what is currently the most efficient means
of producing acquiescence and docility, of promoting self-interest as the raison d’être of all social
activity, is rigorously marginalized. To articulate strategies of living that would delink technology
from a logic of greed, accumulation, and environmental despoilation merits sustained forms of
institutional prohibition.’ (p. 50)

3 Eric Schmidt quoted by Tacita Dean in Cullinan, N. (ed.) Tacita Dean: FILM. London: Tate,
2011, p. 23

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(“contingent on”)’4 – a drive to bring the fallibile, wayward, unpredictable, self-di-


ffering aspects of human experience under control and into economic usefulness.
Indeed, digital technology enables the exercise of new powers of manipulation at
various registers and scales: from the world-shaping influence of Google, Apple
or Amazon, to the way in which Photoshop offers ever-greater means to saturate
images with intentions, to shape them to the conscious will of their maker.5
Drawing moves between light and darkness, between the exercise of cons-
cious control and its intermittence or abeyance. On the one hand, drawing is
firmly allied with reason: the brilliance of the fresh open sheet presents a world
geared to bringing forms into visibility; the tenuity of the line renders material
at its closest relation to thought; the clarity of the grid organises space and
distributes relations; and the levels of concentration involved in the drawing
process itself gears the mind to understand and transfigure, and the imagina-
tion to design, prospect, project. Inventing, composing, outlining, mapping,
diagramming, plotting, modelling, measuring: such operations associated with
different forms of drawing aim at bringing things and their relations into visibi-
lity and under conceptual and practical control.
At the same time drawing is dark: in it there is always a moment that is
archaic, silent, rudimentary, and inassimilable to conscious purpose or rea-
son. As both a species and as individual subjects we were able to draw before
we could write or count, throwing out gestures and marking surfaces. Just as
drawing is about visibility, so its basis in tactility, in contact, means that it is
also blind.6 And it drives fantasies, in which the hand colludes (as Darian Le-
ader has put it, ‘The hand, symbol of human agency and ownership, is also a
part of ourselves that escapes us.’)7 Drawing’s sophistication is never far from
absconding and regressing into disfiguration, baseness and mischief, opening
onto a by-turns pleasurable and anxiety-inducing loss of bearings.

4 Doane, M. A.. Notes from the Field: Contingency. In: The Art Bulletin, v.94, n.3, p. 349, Septem-
ber 2012. As Doane explains, the word ‘contingent’ derives from the Latin con- + tangēre, meaning
‘to touch together,’ or ‘to come into contact’. Against an idea of self-sufficiency, instead it is linked
etymologically to ‘words associated with touch: contact, contaminate, contiguous’. Idem.

5 I borrow the phrase of ‘saturating’ artworks with intentions from Michael Fried’s account of the
work of Thomas Demand, as discussed by Margaret Iversen in Iversen, M. Photography, Trace, and
Trauma. Chicago and London: University of Chicago Press, 2017, p. 101.

6 On drawing and blindness, see Derrida, J. Memoirs of the Blind: The Self-Portrait and Other
Ruins. Trans. Pascale-Anne Brault and Michael Naas. Chicago and London: University of Chicago
Press, 1993.

7 Leader, D. Hands, What We Do with Them – and Why. London: Hamish Hamilton, 2016, p. 4-5.

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This paper explores the relationship between drawing, technology and


contingency in the post-war and contemporary period by examining works
by three very different artists: Robert Rauschenberg, William Kentridge, and
Susan Morris. Each has brought technological reflection into their practice,
hybridizing conventional forms of drawing with (and against) the possibili-
ties presented by other forms of recording and image-making.8 One charac-
teristic conventionally associated with drawing is that in it the activity of its
maker is registered and presented to view in a more direct way than in other
forms of practice. While this is certainly not always or necessarily the case,
the works with which I am concerned here – Rauschenberg’s solvent transfer
drawings, Kentridge’s ‘Drawings for Projection’ and recent ‘flipbook films’,
and the Plumb Line Drawings, Motion Capture Drawings and Jacquard tapes-
tries of Susan Morris – each stage the activity of their making with particular
precision and insistence.
I will argue that while produced in radically different circumstances, each
series of works keeps pace with technological developments while at the same
time mobilizing variously archaic, infantile, unpredictable, or otherwise ‘dark’
moments in drawing. These aspects pull against the determinations of both
the ego and technologized social forces aiming towards prediction and con-
trol. Given each artist’s foregrounding of the work involved in producing their
art, the question is raised as to the significance of both the internalization of
or insulation from the tempos, rhythms, modes of attention characteristic of
the situations in which each artist operates, or operated. This is not least a
question of artistic autonomy: not in a sense involving aesthetic distillation
or the purification of the medium, but rather framed in terms of how the
activity of the artist relates to, or is even mimetic of, forms of activity in the
life world more broadly.9

8 For a longer genealogy, see, for example, Nesbit, M. Their Common Sense. London: Black Dog,
2000, and Trodd, T. The Art of Mechanical Reproduction: Technology and Aesthetics from Duchamp
to the Digital. Chicago and London: University of Chicago Press, 2015. Margaret Iversen has re-
cently made the connection between the work of Robert Rauschenberg and that of Susan Morris,
by way of Leo Steinberg’s concept of the ‘flatbed picture plane’. The ideas I am pursuing here are
different but complementary. See Iversen, M. Susan Morris: Marking Time. In: Susan Morris: Sun
Dial: Night Watch_Tapestry Dossier, 2015, unpaginated. Available at: https://drawingroom.org.uk/
resources/susan-morris-marking-time

9 In his Aesthetic Theory, Theodor W. Adorno wrote of Beckett’s work, ‘This shabby, damaged
world of images is the negative imprint of the administered world. To this extent Beckett is realistic.’
Aesthetic Theory. Trans. Robert Hullot-Kentor. London and New York: Continuum, 1997, p. 31.

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Solvent Transfer

I was bombarded with TV sets and magazines, by the refuse, by the excess
of the world… I thought that if I could paint or make an honest work, it
should incorporate all of these elements, which were and are a reality.10

In 1952, while on spring break from Black Mountain College, Robert Raus-
chenberg travelled with Cy Twombly to the southern states of America and
to Cuba. There he would discover a new graphic technique that allowed him
reconfigure drawing by aligning it with the procedures of frottage, collage
and photography. The method is technically rudimentary: images are clipped
from the contemporary mass media, soaked in lighter fluid, and rubbed on
the back with either the tip or the barrel of an old ballpoint pen to trans-
fer the ink from the printed source to the receptor sheet below. The result
is a reversed and spectral trace of its mass-produced original. Depending
upon the pressure of the mechanical rubbing, the tightness or waywardness
of the hand’s scanning, and the level of saturation in the solvent, the resulting
transfers can vary in their qualities. At times coherent and legible, at others
regressing to a mere smudge or erasure, the degraded and distressed images
are eloquent of the contained but relatively indiscriminate action of the hand
that inscribes them. These transfers are then accompanied by watercolour,
gouache, ink, pencil or oil paint marks, unifying the surface with fluid fields,
and enlivening the muted transfers with intense highlights of colour.
One of a small number of drawings that survive from these early experi-
ments is Mirror (1952).11 Here we see Rauschenberg playing reflexively with
his new technique. The most prominent transfer, a Raphaelesque head of a
woman, immediately invokes the European academic tradition, while at the
same time this haphazardly framed face suggests the mirrored reflection of the
work’s title. Indeed, the transfer is a reversal of its original, and this action of
doubling and inversion becomes the theme of the drawing. Most obviously,
Rauschenberg has the letters spelling ‘Mirror’ reversed at bottom centre. Less
obvious but perhaps equally important, however, is the way in which mirrors

10 Robert Rauschenberg in Robert Hughes. The Shock of the New. New York: Alfred A. Knopf,
1981, p. 345, cited in Joseph, B. Random Order: Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde.
Cambridge (MA) and London: MIT Press, 2003, p. 180.

11 See Robert Rauschenberg: Untitled (Mirror), 1952. Solvent transfer with oil, watercolour, crayon,
pencil, and paper on paper, 26.7 x 21.6 cm. The Museum of Modern Art, New York. Gift of
Werner H. and Sarah-Ann Kramarsky. Available at https://www.moma.org/collection/works/90718.

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constitute bounded pictorial surfaces which draw in the external world. This
quality of receptivity aligns with Rauschenberg’s chief concerns in his White
Paintings (1951), in their hyper-sensitive registration of the most miniscule
events of the external world, and in his Black Paintings (1951/53), which make
prominent use of newsprint. Indeed, he would soon incorporate actual mirrors
into his early Combines, as in the major early works, Minutiae and Charlene
(both 1954). Here, drawing is aligned less with invention than with the reflec-
tion, registration, incorporation, distribution and transmutation of what exists.
One of the most prominent things ‘mirrored’ by the transfer drawings is the
increasing pervasiveness of the mass media in post-war America. A rocketing
trade in newspaper and magazine publishing was a hallmark of 1950s New
York. Since the 1920s Henry R. Luce had been a driving force behind this boom,
founding Time in 1923 (with his high school friend Briton Hadden), and pur-
chasing Life in 1936. Wildly popular from the outset, Life had by 1960 achieved
a circulation of around six million copies per week).12 Esquire had arrived in
1933, and Look in 1937, and Luce began publishing Sports Illustrated in 1954.
Together with daily newspapers such as the New York Times, the New York Herald
Tribune, and the New York Daily News, these magazines provided Rauschenberg
with a vast, inexpensive and swiftly renewable repository of readymade images.
As Branden W. Joseph has persuasively argued, the transfer image also
makes contact with the flickering rasters of early, low resolution television
sets: in its ‘shimmering materiality’, its tendency towards ‘boxlike framing’,
and its ‘visual hybridization of flatness and depth’. Moreover, Joseph argues,
that the ‘fluid slippage between the transfer drawings’ various images and the
different spatial areas in which they are contained echoes television’s ability
to subsume and simulate – through entirely different means – distinct histo-
rical, dimensional, and perspectival spaces within a continuum where they
follow one another without disjunction across the depthless “support surfa-
ce” of the television screen.’13 Joseph characterizes Rauschenberg’s project in
the late 1950s and early 1960s as a challenge to the routinized, banalized
and clichéd fodder of 1950s TV, with its standardization of expectation and
response, in favour of the production and combination of images that are
internally riven, unstable and self-differing.

12 See Doss, E. ‘Introduction’. In: Doss (ed.). Looking at Life Magazine. Washington and London:
Smithsonian Institution Press, 2001, p. 3.

13 Joseph, B. Random Order – Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde. Cambridge (Mass.)
and London: MIT Press, 2003, p. 177.

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Having left his new method aside for some years, Rauschenberg began
to make solvent transfer drawings again in early 1958, shortly before emba-
rking upon its most sustained elaboration of the technique’s potential in his
Thirty-Four Illustrations for Dante’s Inferno (1958/60).14 For the latter, Raus-
chenberg would make one drawing for each canto of Dante’s text, which
constituted the first canticle of the great fourteenth-century epic, The Divine
Comedy (c.1307-21). Here the Pilgrim is lost mid-way through the course of
his life when the Roman poet Virgil is sent by a heavenly agent, Beatrice, to
help him find the true path. Virgil leads Dante into Hell and instructs him
as to the system of divine justice. He bears witness to a terrifying catalogue
of punishments, each corresponding precisely to the nature of the sin com-
mitted. This necessary education exposes the Pilgrim to the consequences of
turning away from God’s grace, either by failing to control carnal appetites
or through more damnable crimes involving the perversion of the faculties
of reason. Dante elected to write the Commedia not in learned Latin but in
the vernacular Italian of Tuscany, and throughout the poem he stages the
encounter between a revered classical tradition, Christian metaphysics, and
contemporary events and protagonists.
Not reading Italian, Rauschenberg referred primarily to John Ciardi’s po-
pular 1954 translation of the Inferno.15 By his own account he worked on
the illustrations one canto at a time, without reading ahead. The challenge
of obeying a structure and observing limits was not just set by the project
in general, but also in his approach to each drawing. In this, Rauschenberg
stressed his desire to avoid the imposition of personal emphasis by staying
close to the structure of Dante’s text, and not to select the most dramatic
highlights or favourite scenes: ‘If the most important image on a page took
only three words,’ he told Calvin Tomkins, exaggerating somewhat, ‘I would
make it a proportionate size. The concept of an artist isolating his or her
favorite event can pull a particular passage into popular distortion.’16 While

14 For a full account of the project, see Krčma, E. Rauschenberg / Dante: Drawing a Modern Inferno.
New Haven and London: Yale University Press, 2017. Many of the arguments of this section of
the present essay were first set out in this book, and in Krčma, E. “To use the very last minute
in my life”: Dante Drawings and the Classical Past, 1958-60, in Dickerman, L. and Borchardt-
-Hume, A. (eds.): Robert Rauschenberg. New York: Museum of Modern Art, and London: Tate,
2016, pp.162-169.

15 Dante Alighieri. The Inferno. Translated by John Ciardi. New York: Mentor, 1954 (hereafter Inferno).

16 Robert Rauschenberg in an unpublished interview with Calvin Tomkins, Calvin Tomkins


Papers, IV.C.19, Museum of Modern Art Archives, New York.

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Rauschenberg did not have a longstanding scholarly interest in Dante’s poetry


he took the task of illustrating it seriously, and when the illustrations were
first exhibited at Leo Castelli Gallery in December 1960 they were accom-
panied by summaries of each canto, displayed on text panels beneath each
drawing to aid viewers’ understanding.
The solvent transfer method itself provided Rauschenberg with a way to
make over Dante’s vernacular Tuscan poetry into the everyday visual langua-
ge of the contemporary American mass media. In making correspondences
between the protagonists of Dante’s Hell and those of contemporary America,
Rauschenberg was often extremely precise, a precision that has been revealed
by the present author’s discovery of dozens of the artist’s source images.17
However, he never declared his source materials, and therefore allowed these
specific patterns of correspondence to remain unspoken. To take one exam-
ple: the illustration for Canto V (Circle 2).18 Here the souls of the Lustful
are doomed to swirl within a great wind, buffeted by the storm just as in
life they had allowed themselves to be overtaken by the force of their desire.
Rauschenberg matches Dante’s imagery with particular precision. Amongst
the sinners is the ‘sense-drugged Cleopatra,’ and to depict her Rauschenberg
came upon an image of the silent screen icon Theda Bara, pictured in her role
as the Egyptian pharaoh in the eponymous 1917 film.19 Virgil also identifies
Semiramis, the legendary queen of Assyria, amidst a host of ‘great knights
and ladies of dim time’ (V.71). To represent her Rauschenberg selected from
the same issue of Life the image of a carved face depicting an Assyrian cour-
tesan, which he places at the left side of the whirlwind.20
Indeed, there is also an illustrational correspondence between the Sha-
des populating Dante’s Hell and the insistently worked but spectral residues
produced by the solvent transfer method. The technique has further con-
notations, however, particularly in relation to powerful claims made for the
meaning of the expressive manual mark in 1950s New York art discourse. Re-
ducing the action of drawing to a mechanical rubbing, the transfer technique

17 For a detailed discussion see Krčma, E (2017), op. cit., which includes images of all the sour-
ces mentioned below.

18 See Robert Rauschenberg: Canto V: Circle Two, The Carnal, 1958. Solvent transfer drawing,
watercolour, pencil, crayon, and gouache on paper. 36.7 x 29.2 cm. The Museum of Modern Art,
New York. Anonymous donation. Available at https://www.moma.org/collection/works/36748.

19 See ‘Headband’s New Heyday,’ Life, April 28, 1958, p. 103.

20 See ‘Rich Find of Assyrian Ivory,’ Life, April 28, 1958, p.120B.

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prioritizes both speed and contact, while at the same time cancelling the con-
nection between drawing and two of its conventional foundations: cognitive
abstraction and subjective expression. Rauschenberg’s solvent-transfer me-
thod is radically de-skilled and the nests of parallel marks do not correspond
to the forms of the images they inscribe, which are often partially lost amidst
the manual scrawl. Any integrated circuitry of eye, mind, and hand is broken,
replaced by a blind, repetitive scanning of readymade image fragments.
While academic models of drawing had long been jettisoned by modern
artists, the language of expressive gesture, which relied on a perceived conti-
nuity between autographic mark and the artist’s organization of ‘emotional and
intellectual energy,’ to borrow Harold Rosenberg’s phrase, occupied a domi-
nant place within the discourse on action painting in New York in the 1950s.
For Rosenberg, an ‘action painting’ was the result of an attempt to make over
the ‘metaphysical substance of the artist’s existence’. Rosenberg advised that
in approaching such a canvas, we should ‘think in a vocabulary of action: its
inception, duration, direction – psychic state, concentration and relaxation of
the will, passivity, alert waiting. [The spectator] must become a connoisseur of
the gradations between the automatic, the spontaneous, the evoked.’21
The solvent transfer method turns drawing in the direction of the uninten-
ded and automatic. Talking to Calvin Tomkins in 1964, Rauschenberg declared,

I don’t want a painting to be just an expression of my personality… I feel


it ought to be much better than that… I’ve always felt as though, whatever
I’ve used and whatever I’ve done, the method has always been closer to a
collaboration with materials than to any kind of conscious manipulation
and control.22

Rauschenberg’s work, he hoped, would retain its independence from the exer-
cise of his own will, and in his dealings with his materials he courted their
capacity to give visibility to aleatory forces and interactions. Indeed, aspects
of contingency – both the quality of the unforeseen and that of being depen-
dent upon and responsive to that which is external – run all the way through
Rauschenberg’s production: had different images arrived in the media that

21 Rosenberg, H. ‘The American Action Painters’ (1952). In: Rosenberg, H. The Tradition of the
New. New York: Horizon Press, 1959, p. 29

22 Robert Rauschenberg quoted by Calvin Tomkins in Tomkins, C. ‘Profiles: Moving Out’. The
New Yorker, vol. 40, February 29, 1964, p. 59.

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week the drawings would have looked different; at the level of the mark
itself, the transfers were made blindly and relatively indiscriminately; and,
in having never declared their complex patterns of iconographical reference,
Rauschenberg also left their reception avowedly open, casting references to
the winds of the varying knowledge and interests of his audience.
Both this issue of contingency, and what might be called the ‘infantile’ as-
pects of the transfer process, are dramatized in Rauschenberg’s illustration for
Inferno VII.23 In this canto Dante and Virgil pass through the fourth and fifth
circles of Hell, to which the Hoarders and Wasters and the Wrathful and the
Sullen, respectively, are confined. These souls had in their different ways re-
mained blind to the light of God’s grace: the former, very numerous, allowed a
mundane preoccupation with material fortunes to obsess them; the latter had
let rage and bitterness prevent their appreciation of ‘the air made sweet by the
Sun’. The canto opens with the angry, nonsensical babble of Plutus, the Greek
God of Wealth: ‘Papa Satán, Papa Satán, aleppy’, he yelps (VII.1). Virgil soon
dismisses these incomprehensible stutterings, and the poets then descend to
survey the pitiful labours of the Hoarders and Wasters, ‘their souls dimmed past
recognition’ (VII.54). These block-headed sinners are condemned to lug apart
and crash together great weights of rock: ‘Why do you hoard?’ one faction cries;
‘Why do you waste?’ retorts the other, before they ‘puff and blow’ and heave back
their heavy loads, only to turn and smash them together once again (VII.30-31).
After Virgil has tutored Dante in the vagaries of Fortune, whose benign
but indiscriminate laws these misers and spendthrifts had negotiated so po-
orly in life, the two poets look over the Styx, ‘a dreary swampland, vaporous
and malignant’ (VII.108). Here the Wrathful thump and butt against one
another in fits of rage, and the Sullen, submerged beneath the filthy marsh,
gargle a litany, ‘as if they sang,’ Dante remarks, ‘but lacked the words and
pitch’ (VII.126). No individual is picked out amidst the crowds of sinners in
this canto: all remain without definition in correspondence with the undis-
cerning way they chose to conduct their life.
Rauschenberg’s illustration is not the most visually striking of the suite,
sharing as it does in Dante’s atmosphere of miasmic obscurity. A series of faint
and broken transfers overlaid with dull watercolour washes is dotted with
brief accents of stronger colour.24 The page is divided into three horizontal

23 This discussion is borrowed from Chapter 3 of my book. See footnote 14.

24 See Robert Rauschenberg: Canto VII: Circle Four, The Hoarders and The Wasters: Circle Five,
The Wrathful and The Sullen, 1960. Solvent transfer drawing, pencil, watercolour, and coloured

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 147

sections. In the thin upper band Plutus’s nonsensical words are written out
backwards; the Pilgrim is represented by the lower legs of a figure transferred
from a True Temper golf club advert; and Virgil by a radiant golden glow. The
larger second section, taking up most of the upper half of the drawing, de-
picts the Hoarders and Wasters, whose futile exertions are indicated by pencil
drawings of unitary geometric forms and diagrammatic arrows in red and
blue. The sinners themselves are represented by an image of state police offi-
cers assisting at the site of a fatal crash at the 1958 Indianapolis 500, in part
caused by the reckless tactics of driver Ed Elisian, who was under pressure
to pay off his gambling debts (Elisian had then been killed in a crash at the
Milwaukee Mile in 1959).25 These shadowy figures are joined with ‘$’ signs, a
cluster of coins, and faint green dabs and washes that establish a connection
with American banknotes; as Ezra Pound wrote of Dante’s poem, ‘the whole
Hell reeks with money.’ 26
To the centre left is the figure of Fortune, The Lady of Permutations, who-
se radiant presence punctuates the grey murk with a lone burst of colour.
Below Rauschenberg represents the Wrathful and the Sullen by way of a se-
ries of smudged and riven transfers of babies’ heads derived from an adverti-
sement clipped from Life magazine.27 Under the striations of Rauschenberg’s
stylus these images are brought to the very threshold of legibility. To the
bottom left there is a row of five or six heads, transferred upside down; those
to the far left remain discernible but towards the middle of the sheet they
disintegrate into a chaotic scree. Looking closely at the drawing, what had at
first appeared a random mark can, when seen at a different scale or orienta-
tion, suddenly emerge as the image of a baby’s face; and at other times what
had promised to cohere into a recognizable figure slips back into mere visu-
al noise. Indeed, the babies’ heads draw attention to the de-skilled transfer
process, the method requiring little of the hand except pressure and effort,
and recalling the varyingly tedious and dumbly pleasurable action of erasure
more than the flexible and responsive work of creation.

pencil on paper. 36.6 x 29.1 cm. The Museum of Modern Art, New York. Anonymous donation.
Available at https://www.moma.org/collection/works/36750.

25 See ‘Lessons of Indianapolis,’ Sports Illustrated, June 9, 1958, p. 31.

26 Pound, E. ‘Hell’. In: Eliot, T.S. (ed.). Literary Essays of Ezra Pound. New York: New Directions,
1968, p. 211.

27 Advertisement for America’s Rural Electric Systems, Life, April 25, 1960, p. 135.

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Within this dismal zone of absolute barrenness and constraint – unlike


the progressive punishments inflicted upon the saved souls in Purgatory, tho-
se of Hell are never-ending and unchanging – Fortune performs what Philip
Berk calls a joyful ‘play of difference and dissemination’.28 Her ministrations
run counter to the deliberate works of man, embodying an unruly and ins-
crutable force; her effects are unpreventable and her judgment impenetrable.
She does not create the goods she distributes, but only ministers their circula-
tion. This is perhaps the figure with whom Rauschenberg shares closest affini-
ty. ‘The character of the artist has to be responsive and lucky’, he would write
in 1963, and unlike Dante’s sinners, his approach was geared to remaining
receptive and actively responsive to the wealth of material to which his me-
dia-saturated situation delivered him.29 The spectral, striated and degraded
transfers themselves then open up this standardized, mass reproduced, rea-
dily legible imagery, disrupting it, via material contact and physical pressure,
and putting it into circulation within a radically different referential system.
In 1960 Rauschenberg’s transfer method enacted a displacement of the
traditional functions of drawing and set it into dialogue with the mass media.
From today’s perspective, however, what is at least as insistent about the te-
chnique are its material aspects: the turning of magazine pages with a view to
finding an image of a size and quality that will fit; the clipping and soaking of
the printed fragments; the covering of one sheet of paper by another, followed
by the effortful process of blind rubbing; and the small magic of the result:
a delicate stain that bears the traces of the care and damage of its physical
inscription. Indeed, as everyday habits of reading and looking shift from the
printed page to the luminous screens of mobile phones, laptops, and tablets,
and as the production, exchange and dissemination of images has accelerated
exponentially, we find in Rauschenberg’s solvent transfer method a technique
that engages drawing’s technological condition while insisting upon both the
critical value and the enabling resistances of its material encounters.

28 See Berk, P. K. ‘The Weal of Fortune’. In: Mandelbaum, A., Oldcorn, A., and Ross, C. (eds).
Lecture Dantis – Inferno, A Canto-by-Canto Commentary. London and Berkeley: University of Ca-
lifornia Press, 1998, p. 107.

29 Rauschenberg, R. ‘Note on Painting,’ written between October 31 and November 2, 1963,


Robert Rauschenberg Foundation Archives, New York.

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 149

Drawings for Projection

In this way, Rauschenberg’s method makes contact with a number of hybrid


forms of drawing that have emerged since the late 1980s and early ‘90s. That
is, during the period that saw the increasing ubiquity of personal compu-
ters, the adoption of digital drawing programmes like CAD by industry, and
the invention of the World Wide Web. One of the most celebrated of such
practices is that of South African artist William Kentridge who, in 1989, pro-
duced the first of what would become a series of ten now celebrated works
collectively entitled, ‘Drawings for Projection’. In what he called a kind of
‘stone-age film-making,’ Kentridge married drawing with film – in a manner
related to but distinct from more conventional forms of animation – while
also explicitly invoking the figure of fortuna to help describe what is at stake
in his studio practice.
The first of the ‘Drawings for Projection’ was Johannesburg: 2nd Greatest City
after Paris, 1989, and the latest is Other Faces, finished in 2011. The produc-
tion of the series therefore spans the years from the election of F.W. de Klerk
as the State President of South Africa and his public commitment to ending
apartheid, to the first democratic elections of 1994, the establishment of the
Truth and Reconciliation Commission in 1995, and on into South Africa’s
ongoing efforts to confront the AIDS epidemic and the country’s persisten-
tly severe economic and social inequalities. The characters, landscapes and
action of Kentridge’s films engage explicitly with the realities of his nation’s
traumatic recent history and conflicted present, although Kentridge has also
voiced his skepticism about the viability of an art that attempts to take on
the ‘Rock’ of apartheid too directly and forgetting the specific permissions,
potentials, and indeed limitations of its own forms of autonomy.
As has been amply discussed in the scholarship, to make the ‘Drawings
for Projection’ a film camera was stationed opposite a large sheet of paper
tacked up on the studio wall.30 Working for the most part with a thick stick
of charcoal and a piece of shamois leather, Kentridge draws onto the sheet
before walking over to the camera to record the image by exposing one or
two frames. He then returns to the wall to make some erasures, before mo-
ving back to take a couple more frames, then approaches the sheet again
to rework the image, and so on. The resulting sequence of film, projected

30 See especially, Krauss, R. ‘The Rock: William Kentridge’s Drawings for Projection,’ October 92,
Spring 2000, pp. 3-35.

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in the gallery accompanied by a soundtrack, therefore shows the progress


of a single drawing, its depicted movements accompanied by a thick trail
of erasures.
There is, we might think, something of the interminable to-ing and fro-
-ing of Dante’s Hoarders and Wasters to Kentridge’s endless shuttling between
tacked-up sheet and film camera. Yet for Kentridge it is within this repetitive
back-and-forth that a powerful form of creative agency takes hold. Discus-
sing the production of his 1991 film, Mine (fig. 1), which describes a descent
into the hellish bowels of a gold mine owned by the character Soho Eckstein,
Kentridge has spoken of how the material processes and long duration of
studio production give rise to images and ideas that could never have been
pre-planned. (Specifically, here, in drawing the descent of the plunger of the
cafetière as Soho enjoys his breakfast, the idea arose to continue this do-
wnward movement, as an analogue for the descent into the mine itself). To
the ‘range of agencies’ delivering such possibilities, which the artist stresses
he did not consciously intend but was very glad not to have overlooked,
Kentridge gives the name fortuna, which he describes as ‘something other
than cold statistical chance, and something too outside the range of rational
control.’ 31 Indeed, for Kentridge, ‘This reliance on ‘fortuna’ in the making of
images or texts mirrors some of the ways we exist in the world even outside
the realm of images and texts.32

31 Kentridge, W. ‘‘Fortuna:’ Neither Program nor Chance in the Making of Images’. In: Christov-
-Bakargiev, C. et. al. William Kentridge. London: Phaidon, 1999, p.118.

32 Ibid. pp. 118-9.

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 151

Figure 1. William Kentridge: Mine, 1991 (stills). Film, 35 mm, shown as video,
projection, black and white, and sound (mono), 5 min, 50 sec.
Courtesy of the William Kentridge Studio

Kentridge distinguishes his method from that of traditional CEL animation


in this respect. There a storyline is worked out in advance and executed in
stages that leave little room for further creative agency.33 Disney studios sto-
pped using cels in 1990, when the Computer Animation Production System
was introduced, and this time-consuming and costly technique has been all
but abandoned in major animated productions. Whereas in CEL animation a
studio needs to work out its content fully in advance, Kentridge expresses the
desire to work more flexibly and spontaneously, accommodating those ideas
arriving by chance during the process of making, visual ideas that were not
(and perhaps could not have been) planned ahead of time. In a recent series
of lectures he has described this is terms of a kind of ‘stupidity’:

This necessary stupidity is not the same as foolishness, or the innocence of


the pure fool made wise through compassion. It is not the fool with license to
talk truth to power. It is not a simple naïveté elevated. Rather it is making

33 First, line drawings are then made on sheets of tracing paper so that the draughtsman can
easily reproduce their forms on the next sheet and alter them accordingly. Once the final sequence
of individual line drawings are agreed, it is the job of the copyists to transfer the designs onto
transparent celluloid sheets, which are then ready for inking.

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a space for uncertainty, for giving an impulse, an object, a material, the


benefit of the doubt. Following the impulses that feel stupid, without a des-
tination, believing that at some point, we will emerge from our zoetrope. It
is more than this. It is a conscious repression of evaluating in advance of
action the value of the thought… [I work] [n]ot in celebration of the stupi-
dity of itself, but believing in it more than in a studio of good ideas, of things
worked out in advance and then shot and executed.34

As well as bearing upon a model of studio practice, the method also produces
visual effects that stand in opposition to the characteristic aesthetic modes of
digital technology. The movement of Kentridge’s characters and scenes brings
with it, as Rosalind Krauss has discussed, a kind of weight, density or drag.35
The process of change takes effort and happens at a cost. In this way, the artist’s
formal and technical means resonate powerfully with his thematic concern with
history, memory and the weight of the past upon the experience of the present,
and oppose the ease and immediacy of digital deletion. Indeed, Kentridge’s com-
portment towards technological progress is avowedly less enthusiastic than was
Rauschenberg’s. Kentridge’s work abounds with a host of obsolete and near-ob-
solete technological devices, often bearing personal associations with the artist’s
childhood, such as Bakelite telephones, mechanical typewriters, model globes,
stereoscopes, and film projectors, which stand as a counterweight to the ascen-
dency of digital media.
This is dramatized in a more recent series of ‘flip-book films’, which Kentridge
has produced by making hundreds of drawings onto the pages of old encyclope-
dias and other reference volumes, photographing them and sequencing the ima-
ges to make a ‘film’. Second-Hand Reading (2013, fig. 2), for example, is a seven-
-minute HD video showing a rapid sequence of charcoal, ink and watercolour
drawings made upon the pages of a 1936 edition of the Shorter Oxford English
Dictionary. The works rub the kind of classificatory thinking characteristic of such
volumes – designed as instruments of clarity and reason – against the arbitrary
poetics of physical dictionary pages, with their strange juxtapositions, and against
the more open and ambiguous expressive capacity of the drawings themselves.

34 Kentridge, W. Six Drawing Lessons. Cambridge, Mass. and London: Harvard University Press,
2014, p. 128.

35 Krauss argues: ‘But another condition that equally reigns within these films operates against the
principle of anything changing into anything else, or at least works to dilate the time within which
the change occurs and to underscore the impossibility of predicting the form it will take, thus
investing that change with a kind of weight (emotional? moral? mnemonic?).’ (‘The Rock,’ p. 18)

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Figure 2. William Kentridge: Second-Hand Reading, 2013 (stills).


HD video, 7 min. Music and voice Neo Muyanga.
Courtesy of the William Kentridge Studio

Second Hand Reading begins with the closed leather-bound volume sitting on a
work surface; it is soon opened to reveal an adapted title page borrowed from
Cassell’s Cyclopaedia of Mechanics: Memoranda for Workshop Use Based on Perso-
nal Experience and Expert Knowledge (1900), onto which has been collaged the
subtitle, ‘On Historical Principles’. The opening piano bars of a song by the So-
weto-born composer Neo Muyanga sound and the pages of the dictionary start
to flit by. Poetic phrases and fragments are drawn in bold typography. Then
arrives the image of the artist himself, wearing his characteristic white shirt
and black trousers and drawn in energetic charcoal lines. This animated avatar
paces along within the right-hand page, getting nowhere, then halts to confront
the viewer/reader, before beginning his pensive walk again. This figure is then
accompanied by more drawings on the facing page: a rolling landscape, more
text fragments, a woman signing in semaphore, a cascade of coloured shapes.36
Together with the appearance of a loudspeaker, we then hear the voice
of Muyanga himself, singing deeply and resonantly in Sesotho. The words
he sings come from an old traditional hymn often sung in churches and
funerals in Soweto and other townships during the 1980s, set to music com-
posed by Muyanga in response to the 2012 massacre of protesting miners
at Marikana. The song unfolds slowly, but translates into English as follows:

36 See Garb, T. and Bradley, F. (eds). William Kentridge and Vivienne Koorland: Conversations in
Letters and Lines. Edinburgh: Fruitmarket Gallery, 2016.

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When the rain comes again / in torrents


When it rains / please remember me
See how thirsty / and wretched I am
Please permit some drops / to fall
And wet me / a little too.37

A flurry of ink drawings hurries past in time with the quickening melody of
the piano, each arriving for only a fraction of a second. The image repertoire is
varied but nevertheless fairly limited. There are drawings of human subjects:
male and female, black and white, naked and clothed, moving and still, alive
and dead. There are objects associated with language and communication:
globes, loudspeakers, typewriters. There are landscape scenes evocative of
the veld around Johannesburg. And there are different kinds of abstract forms
and marks: geometric coloured shapes in the tradition of utopian abstraction,
and fields of inky signs reminiscent of Henri Michaux’s unruly ideograms, for
example. Kentridge also draws a number of everyday objects that, he has said,
call out for Indian ink (the jet black enamel of an old typewriter, for example).
At several moments such bold graphic forms are animated, revolving slowly
to reveal the silhouettes of other objects as they turn.
Second Hand Reading is one of a number of works using the same method
that Kentridge has made in recent years. Others include The Anatomy of Me-
lancholy and Tango for Page Turning (both 2012). The latter takes as its ground
a Dictionary of Applied Chemistry, in which blocks of text are interspersed
with diagrams, tables and charts; and to make The Anatomy of Melancholy,
Kentridge drew over the pages of a 1920 edition of Robert Burton’s celebrated
17th century treatise. These ‘flip-book films’ (the name itself refers to a rudi-
mentary proto-cinematic device) involve a salvaging and repurposing of the
kind of printed reference volumes that are swiftly falling out of use. Given the
ease, power, and speed of Internet search engines, such slow and bulky phy-
sical repositories are no longer the go-to resource, and increasingly struggle
to justify the library shelf space that their storage requires. Alongside model
globes and typewriters, this is a communications technology that is swiftly
becoming obsolete.

37 This is a translation of the following Sesotho lyrics: ‘Pula tsa lehlohonolo / Ha di na ka medupi /
Le nna hle o nkgopole / Bona ke omeletse / Rothisetsa marothodi / Le nna hle ke kolobe.’ My thanks
to Neo Muyanga for providing me with this translation (email to the author, 27th November 2016).

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 155

In using the pages of such reference volumes Kentridge is both literally


and figuratively drawing upon a field of existing historical meanings. Dra-
wing is not proposed as a gesture in the open field of the white page, a be-
ginning from a tabula rasa, but rather as a modification of a surface already
explictly inscribed with ink, with signs, and with a certain style of thinking.
This is consistent with Kentridge’s drawing practice more broadly: the famous
method employed in the Drawings for Projection series proposed a model of
drawing as palimpsest, in which new marks arrive on surfaces already den-
sely worked and reworked, and Kentridge has also used maps and historical
ledgers eloquent of South Africa’s colonial history and economic exploitation,
as the ground of his work. For example, while at work on the flipbook films
he also engaged in a sustained exploration of the brutal history of exploited
human labour in South Africa in his series of forty drawings made over an
East Rand Proprietary Mines Cash Book from 1906 (2011-13).38 These dra-
wings depict an unspectacular landscape that bears the traces of its indus-
trial usage: pipelines, pylons and poles abound, and Kentridge reinforces the
printed pink lines of the accounts ledger with other coloured pencil lines that
chart, map and highlight sections of the depicted terrain.
In Second Hand Reading, what relationship do Kentridge’s drawings have to
their printed support? When watching the video itself the images most often
flit by far too quickly to enable such exploration, but its presentation has also
been accompanied by pages framed on the wall or vitrines containing some of
the constituent drawings, and is supplemented too by a monumental book of
around 800 pages, published by Fourthwall, which reproduces the drawings
in a different sequence.39 This more distributed form of the work then offers
oportunities for closer and slower examination of image / text correspondences.
As mentioned, in one sequence a flurry of pages bearing geometric shapes
of pure colour recalls the utopian language of the historical avant-garde. The
sheets also bring to mind the Belgian artist Marcel Broodthaers’ modifica-
tion of the pages of some remaining copies of Pense-Bête (1963-4), covering
over the text with coloured papers, before burying the rest in a wodge of
plaster. Kentridge’s forms overlay the columns of dictionary definitions; that
is, the kind of down-to-earth clarification of established meanings that pre-
pare our verbal signs for clear, unambiguous and consistent usage. In one

38 See Morris, R. C. and Kentridge, W. Accounts and Drawings from Underground: East Rand Pro-
prietary Mines Cash Book, 1906. Chicago: University of Chicago Press, 2015.

39 Kentridge, W. 2nd Hand Reading. Johannesburg: Fourthwall Books, 2014.

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such sheet, an aqueous brown rectangle covers the central section of a page
offering the definitions of words from ‘Realism’ to ‘Rear’ (fig. 3). As they are
read, the listed terms start to take on a specific relationship with Kentridge’s
own practice: ‘Realism,’ ‘Realization,’ ‘Re-ally,’ ‘Realm,’ ‘Realty,’ ‘Reanimate’:
the connotations and connections spin outwards. While the weight of the
brown watercolour field sometimes obscures the printed text beneath, the
meeting of abstract forms with the arbitrary poetry of dictionary entries is an
invitation for the mind to entertain its associative impulses, reanimating the
words in excess of their classified definitions.

Figure 3. William Kentridge: Drawing for Second-Hand Reading, 2013.


Watercolour on page from the Shorter Oxford English Dictionary (1936).
Courtesy of the William Kentridge Studio

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In another drawing, a luminous magenta circle overlays a page that offers the
definition of words from Radio-Active to Rag. Orbiting this circle are words
such as Radius and Radish. Such conjunctions of shapes, colours, words and
their definitions tempts a playful exploration of correspondences and reso-
nances, the artist enjoying the chance finds and contingent poetics of dictio-
nary entries. In yet another a deep blue watercolour rectangle covers an entire
page of text. The uniform blocks and columns of printed type are rendered
largely illegible, although tellingly the word ‘Reasoning’ peers through the
dark wash in the header.
The ‘flip-book films’ in part constitute hymns to the aesthetic, historical,
and conceptual resonances of such otherwise largely redundant objects. At
least as forcefully, however, they also stage and celebrate Kentridge’s own
studio production, which absconds from such forms of conceptual control
and classificatory rigour. In these films (and many other works throughout
the artist’s oeuvre), Kentridge figures his own perambulations and includes
phrases he had written down in notebooks as kinds of watchwords for his
method – ‘thinking on ones feet,’ ‘performing the meaning’s absence,’ ‘tear
and repair,’ ‘the sympathetic paper’ – and the range of his interests across art,
history, politics, science and philosophy. Kentridge has consistently stressed
the role of a kind of blind, childish aspect of art making, one that is grounded
in an open, exploratory manipulation of materials, in which disbelief and
analytic reflection are willingly suspended, and which is characterised by a
kind of open and flexibile play. In this way Kentridge’s studio work seems
both insulated from and in contrasting relationship to the forms of labour to
which his work frequently makes reference.
In a sense, then, this also conforms to a fairly familiar idea of the artist
finding freedom and autonomy in the studio, which becomes the incuba-
tor for creative inventions then placed before the audience, with all the at-
tendant institutional and discursive framing, not to mention more commer-
cially directed marketing. Indeed, the near-universal embrace of Kentridge’s
practice might constitute a reason to pause and reflect more critically here
too. As the artist’s reputation, levels of exposure, and market value have
increased, the frequency and insistence with which he stages the image of
his own body and studio activity have also increased (this was notably the
case in Kentridge’s recent exhibition at London’s Whitechapel Gallery40). At

40 The exhibition, William Kentridge: Thick Time, was on view at the Whitechapel Gallery, Lon-
don, 21st September 2016 – 15th January 2017.

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considerable distance from the Bartleby-like opacity of Broodthaers’ self-


-stagings, for example, Kentridge’s dramatization of his own creative process
offers up a consoling image of the continuing availability and purchase of au-
tonomous, studio-bound acts of creation. Arguably, this has also been at the
expense of structural reflection upon the role of the internationally-renowned
artist within cultural circuits structured by the priorities of late capitalism.
Ultimately Kentridge offers us a confident vision of the artist’s role, even whi-
le foregrounding the doubts and struggles involved in the process of creation
itself. His repeated self-stagings, however, might also point to a more anxious
need to keep affirming that idea, in spite of it all.

Motion Capture Drawing

The kind of subject at stake in the work of British artist Susan Morris is at
once both more constrained and less graspable. Morris’s work over the last
ten years has combined a concern with advanced forms of digital technology
and the most rudimentary procedures of drawing, to evoke a contempora-
ry subject caught up in the feverish rhythms of our 24/7 society. Here, the
working artist’s body is again central, but, bucking the trend of contemporary
self-presentations on social media, Morris foregoes the production of images
of the self in favour of more apparently neutral strategies of recording, dia-
gramming and tabulating, strategies informed by the conventions of concep-
tual art, amongst other things.
In a series of works from 2008-9 collectively entitled Plumb Line Dra-
wings, Morris produced another kind of ‘cinematic’ drawing to negotiate the
relationship between abstract art, the work of art, and an idea of time cha-
racterised by repetition, compulsion and constraint (fig. 4).41 Using a spirit
level, a horizontal line three metres long was drawn a few inches below the
uppermost edge of a large sheet of paper pinned to the wall. It is from this
line that the others would fall: beginning at the left-hand side, the artist ban-
gs in a nail, and from there hangs a plumb line. As the reel is pulled down
to the floor, the device coats the string with vine ash. The taut cord is then
pulled away from the paper surface and released to snap back against the
sheet, leaving a fragile, powdery vertical line. The nail is then pulled from
the wall and another hit in a few millimetres to the right; the cord is again

41 See O’Dwyer, D. (ed.) Susan Morris: Sontag/Montag. London: Five Years, 2009.

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 159

lowered, pinched and plucked, and a new impression appears. This process
is repeated hundreds of times, sometimes over many months, until the paper
is adequately scanned.

Figure 4. Susan Morris: Plumb Line Drawing No.10, 2009.


Black pigment (vine ash) on paper, 158 x 347 cm.
Courtesy of the artist.

The individual lines are materially fragile, degraded at their upper and lower
extremities, and vary in both length and density. What finally results from
this repetitive de-skilled work is a wide screen of closely woven vertical lines,
an accumulation of moments that responds to the history of abstract picture
making whilst also giving visibility to time: an extended discontinuous cine-
matic time of sequenced traces and gaps. The fine texture of marks fall like
rain, subject to gravity rather than to the will of the artist. As the vine ash
holds to the paper the lines seem weighless, a great ‘thinglike nothingness’, as
Eric Santer described dust.42
The precipitation of Morris’s marks points to a bodily performance which
is in stark contrast to an idea of creative improvisation or expressive fluency:
here we really do seem to make contact with the Hoarders and Wasters, and
their interminable and pointless labours. The unintentionally produced yet
consciously preserved smudges, heaviest above the puckered line of small
holes where the hammer has scuffed the paper when removing nails, evi-
dence a struggling, protesting body behind the visible marks. The amount of
work necessary to complete these drawings is not only very substantial, but

42 Santner, E. On Creaturely Life – Rilke, Benjamin, Sebald. Chicago and London: University of
Chicago Press, 2006, p. 100.

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also mechanical and repetitious, absurd in its combination of doggedness and


futility. Recognising this, the drawings change aspect and appear as if made
under duress, and the paper takes on a new quality: instead of an optical
surface to be gazed into, it becomes a kind of wall that is hit against – an
obdurate, resistant surface to be covered over, struggled with, blanked out.
Morris’s process is eloquent of both compulsion and constraint, a kind of
hysterical performance redolent of what Santner, is his discussion of ‘creatu-
rely life,’ has described as a ‘paradoxical mixture of deadness and excitation,
stuckness and agitation’.43
In her path-breaking book, Zeros + Ones, Digital Women and the New Tech-
noculture, Sadie Plant explores the way in which women’s labour, both in its
conventional forms such as weaving and its less sanctioned ones such as ma-
thematics, have intersected with the development of digital technology and
with psychoanalysis at crucial junctures. Plant quotes Breuer’s and Freud’s
Studies in Hysteria when writing that ‘Indeed there are a “whole number of
activities, from mechanical ones such as knitting or playing scales, to some
requiring at least a small degree of mental functioning, all of which are per-
formed by many people with only half their mind on them.” The “other half”
is “busy elsewhere.” 44 Morris’ method has about it just such a combination
of outward repetition and inward waywardness, a form of activity that might
shield or screen the subject from insistent thoughts, or might fully engage the
body and minimally absorb the mind, allowing it to wander.
In 2009, Morris began work on a related series of Motion Capture Dra-
wings (completed 2012, fig. 5), which use high-tech forms of digital data
capture to isolate and diagram the involuntary movements of the working
body, in a contemporary form of surrealist automatism. While engaged in
making a Plumb Line Drawing, this time in a motion capture studio at Newcas-
tle University, the artist wore sensors on different parts of her body. The activity
was captured as data files, transcoded into line and printed like a photograph
onto archive inkjet paper. The web of fine white lines is formed negatively by
printing a matte black ground, so that it is the accumulation of black ink that
produces a line by surrounding an absence. Organized into sets of three, the

43 Ibid. p. 81.

44 Plant. Zeros + Ones, pp. 111-112. Plant writes, ‘Hysterical women were characterized as over-
sensitive, self-obsessed, antisocial loners whose symptoms were extreme versions of behaviour
patterns common to all women. They were mutable, capricious, unpredictable, temperamental,
moody. They were nervous weather systems fluctuating between stormy energy and catatonic
calm.’ (p. 110)

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Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 161

Motion Capture Drawings diagram Morris’s movements as ‘seen’ from the front,
from the side and from above. The resulting spidery skeins are the mysterious
product of involuntary bodily dynamics, sampled and materialized by way of
digital data conversion and image production. The matrices of white lines, end-
lessly looping back and forth, up and down, to and fro, hang within an impene-
trable black field, unanchored from any secure spatial or temporal coordinates.
Margaret Iversen has suggestively analyzed Morris’ work in relation to
what she calls the ‘indexical diagram’. This term designates a hybrid form of
representation, one which combines the direct tracing of the movements of
the body with the linear abstraction of the diagram. Examples are provided
by such recording instruments as cardiographs, seismographs, and, with the
most pertinence in this instance, the famous chronophotographic experi-
ments of Étienne-Jules Marey, in which the body was abstracted and made le-
gible by being covered in black clothing, all except for white reflective strips
attached to the limbs.45

Figure 5. Susan Morris: Motion Capture Drawing: ERSD (View from Above), 2012.
Archival inkjet print on Hahnemühle paper, 250 x 150 cm.
Courtesy of the artist.

Recalling Marey’s homme squelette, the Motion Capture Drawings offer a


kind of zero degree of visibility to a body taken up in its compulsive, cre-
aturely dimension. Indeed, these works can be thought of as constituting a

45 Iversen, M. ‘Index, Diagram, Graphic Trace’. In: Photography, Trace, and Trauma, pp. 67-82.

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162 Ed Krčma

contemporary form of automatic drawing, which André Breton described as


‘a true photography of thought’, the spidery lines falling outside intentionality,
language or imaginary presentation. Arguably, these intricate linear webs are
indeed indexical, not in the sense of being an imprint of physical contact, but
rather by being the result of an automatic transcription of the data deriving
directly from the body. These skeins of lines have a truth in relation to the
thing they trace (they are not ‘made-up’), but they are also not straightforwar-
dly imprints. In this way, Morris’s use of digital as opposed to analogue tech-
nology is crucial. Using language that also reveals her longstanding interest in
Lacanian psychoanalysis, she explains:

I would argue that digitization […] provides a more direct version of the
mark I am interested in, in that it can give form to – make manifest –
phenomena that are invisible or appear to come from nowhere. Digital
recording produces ‘Real’ marks, not imaginary constructions or represen-
tations. Rather than encoding reality I can imprint it.46

At the same time as she was making the Motion Capture Drawings, Morris
extended her appeal to the recording capacities of digital technology in a
series of tapestry works. While seeming to depart from my central concern
with drawing – it is central to Morris’s work that it moves between different
interchangeable outputs – the tapestries can, however, again be related to
the visualization of the unconscious life of the body, while at the same time
making even more explicit the relationships between labour, technology and
the conditions of subjectivity (fig. 6).

46 Morris, S. ‘Drawing in the Dark’. Tate Papers, no. 18, Autumn 2012 (http://www.tate.org.uk/
research/publications/tate-papers/18/drawing-in-the-dark), accessed 2 May 2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 163

Figure 6. Susan Morris: SunDial:NightWatch_Sleep/Wake 2010–2014 (MLS Version), 2015.


Jacquard tapestry: silk and cotton yarn, 135 x 180 cm.
Courtesy of the artist.

For five years, Morris wore an Actiwatch biometric device designed to pro-
vide accurate data regarding levels of bodily activity and light exposure. To
make her series of tapestries, this data was sent to Jacquard looms in Bel-
gium, which converted the values into a sequence of colour-coded thread
patterns, with different colours corresponding to different levels of activity.
The Jacquard loom was first presented in 1801, its major innovation being
the introduction of a chain of punch cards laced together to provide a fully
automated mechanical ‘score’ for the weave. These punch cards were also of
great interest to Charles Babbage when he was designing his Difference Engi-
ne, the precursor to the Analytical Engine, and therefore have an important
place at the birth of the modern computer.
In SunDial:NightWatch_Sleep/Wake 2010–2014 (2015) the minute-by-mi-
nute numerical values are converted into coloured threads of pre-assigned
value: red for high levels of activity, black for little or none, with a gradient
of colours between. Large amounts of the colour blue, for example, may in-
dicate ‘awake but not very active’– i.e. Morris was probably working on her
computer. Each day is represented by one vertical line, the intermittence of
which corresponds to higher or lower levels of activity, with the dark of the
night at the centre displaying sleep patterns interrupted by all manner of
contemporary ennervations. Here, then, Morris combines the most up-to-
-date digital technologies with those deriving from an early moment in the
Industrial Revolution and the mechanization of labour, as human life became
more thoroughly governed by clock and calendrical time.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
164 Ed Krčma

The temporal register shifts again as the slower undulations of the tapes-
tries’ patterns come into focus, however. In those works which indicate the
levels of light to which Morris’s body was exposed, the viewer can track more
gradual movements on a planetary scale, with the coloured threads becoming
warmer earlier as the evenings get lighter, and the black threads reasserting
themselves and they darken again, as the Earth orbits the Sun. The human
becomes that creature caught between the cyclical movements of the planets
and stars, and the accelerated tempo of life under advanced capitalism.
Digital technology enables new forms of what Walter Benjamin famously
described as an ‘unconscious optics’, allowing the artist to figure that which
is otherwise invisible to the human eye, and indeed to signal the structural
formations to which life is subject. Indeed, in the process of the transposition
of the motion capture data into lines, certain knots and glitches occur and are
visible in the works, a fact dramatized in a series of works made from details
of the Motion Capture Drawings, printed on a one-to-one scale. The origin of
these strange nodes and linear coagulations is uncertain: is it something in
the body, in the digital apparatus, or at the interface between the two? In one
sense, Morris’s involuntary body is both the subject and object here, yet what
her work gives visibility to is in fact the subject beneath the ‘I’, away from
conventional forms of symbolization and imaginary projection.
Elaborating on the ideas that drive her practice, Morris describes her
feeling that

There should be some sort of logic or rule to produce, engineer or generate


this mark and at the same time there should be some sort of break with
this rule, a kind of rebelliousness; what Breton would call a ‘diseducation’.
Following Breton, I believe that there should be a necessary, wordless ple-
asure involved in drawing, a convulsive blindness, which can only occur in
a mark that is laid down involuntarily. In this way these rather dry and
diagrammatic works are also always saturated with those aspects of the
self that are most incomprehensible, such as laughter or tears, paroxysms
that are spontaneous, unpredictable and impossible to control or measure.47

Here we can recall Rauschenberg’s illustration for Canto V of Dante’s Inferno,


which depicts the Carnal, those sinners imprisoned in Hell’s second circle
for the failure to control their bodily hungers. The willingness of these souls

47 Morris, ‘Drawing in the Dark’.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
Fortuna: Drawing, Technology, Contingency 165

– Paolo and Francesca, Cleopatra, and Tristan amongst them – to allow the
forces of desire to overpower their reason has condemned them to eternal
punishment, thrown by a cruel wind. For Dante these souls had betrayed
their reason to their appetite; but today, when the power and pervasiveness
of technologically enhanced controls is now so developed, the task of main-
taining contact with the forces of contingency, with the unpredictability of
material encounters, and with the inassimilable rhythms and pleasures of the
body, itself seems an urgent one.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.135-166, jan.-jun. 2017
Laura Rabelo Erber*

O artista improdutivo e a crítica


do trabalho na arte contemporânea1

The unproductive artist and the category


of work in contemporary art

Resumo
O artigo aborda a atração pelas figuras da resistência passiva e da arte sem trabalho
ou do artista sem obra e as limitações e paradoxos das propostas que retomam e
reelaboram a postura da improdutividade no contexto contemporâneo.

Palavras-chave: arte contemporânea; trabalho; produtivismo.

Abstract
This essay discusses the attraction of the forms of passive resistance and of art, or of
the artist, as without work as well as the limitations and paradoxes of proposals that
rephrase and reshape a posture of unproductivity in the context of contemporaneity.

Keywords: contemporary art; work; productivism.

* Professora do Departamento de Teoria do Teatro e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cê-


nicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); E-mail: laura.erber@unirio.br.

1 Texto apresentado originalmente no #3Seminário Eisenstein na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
168 Laura Rabelo Erber

Há pouco tempo lembrei-me do momento exato em que me ocorreu, pela


primeira vez, que eu queria ser artista. Cresci em Moscou, e meu pai era um
músico autodidata que trabalhava no circo. O trabalho físico dos artistas de
circo é muito puxado. A quantidade de ensaios e exercícios necessários para
realizar atos de acrobacia ou andar na corda bamba é realmente enorme. Eles
treinam e se exercitam o dia todo para se apresentar à noite, é quase um tra-
balho 24 horas.
Houve uma festa de aniversário de uma das crianças no nosso prédio, que
pertencia ao sindicato dos artistas de circo. As crianças da festa, todas entre
cinco e seis anos de idade, eram filhas de palhaços, treinadores de animais e
por aí vai. Estávamos vendo desenho animado na TV, e em algum momento
começamos a conversar sobre o que queríamos ser quando crescêssemos. De-
pois das sugestões habituais, como astronauta ou bombeiro, uma criança dis-
se que queria ser artista plástica, porque os artistas plásticos não trabalhavam.
Eu era muito tímido, então não falei muito, mas pensei comigo que aquele
garoto era muito esperto e que eu também não queria trabalhar, portanto
devia tentar virar artista.
Ironicamente, esse momento de iluminação acabou me direcionando para
um estado de trabalho permanente que durou muitos anos. Enquanto meus
colegas de escola ficavam sem fazer nada ou praticavam esportes depois da
aula, eu fazia aulas de desenho todas as noites. Quando minha família se
mudou para os Estados Unidos, eu me engajei em três frentes de estudos si-
multaneamente: a Escola de Artes Visuais durante o dia, a Liga de Estudantes
de Arte à noite e um grupo de estudos de desenho nos fins de semana. De
algum modo, a ideia de não trabalhar foi para o ralo, e durante toda a minha
formação artística a ênfase foi no trabalho. A ideia era que eu devia ocupar
todo o meu tempo disponível com aprendizado e prática, e que esse mero
esforço era o que me transformaria em artista. Talvez esse uso do tempo
também tenha sido um treino para minha futura carreira como artista pro-
fissional, numa sociedade em que trabalho e tempo ainda são os principais
produtores de valor. Assim, a lógica era que, se eu preenchesse todo o meu
tempo adquirindo habilidades de artista, possivelmente algo de valor seria
produzido, levando a uma vida toda ocupada pelo trabalho artístico. Pensar
não tinha muita importância nesse cenário.2
O longo trecho acima transcrito integra um relato do artista russo Anton
Vidokle no qual a autobiografia serve de estopim para uma reflexão mais

2 Vidokle, A. Arte sem trabalho? Trad. Ariadne Costa. Rio de Janeiro/ Copenhague: Zazie Edições,
2016.
O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 169

ampla sobre a relação entre trabalho, produtivismo e esterilidade artística.


O texto de Vidokle se insere certamente em um contexto de falas, textos,
entrevistas atuais comprometidos com uma abordagem crítica do trabalho e
do produtivismo no campo da arte. Nesse impulso de expor e pensar critica-
mente o trabalho, a arte contemporânea toca alguns de seus limites e de seus
dilemas; para esses dilemas é que minha atenção se voltará aqui.
De um modo geral, o campo da arte tal como o conhecemos esteve desde
sua emergência moldado a partir de uma distinção básica entre atividade e
inatividade. Tradicionalmente o artista faz e o espectador contempla; um age,
o outro é agido. Também a distinção entre concepção/criação e realização
concreta configura historicamente uma divisão e hierarquização do trabalho
que já existe desde os ateliês dos pintores renascentistas. Diferentemente dos
protocolos ortodoxos da pintura bizantina, em que o pintor seguia rituais
litúrgicos ortodoxos para que sua mão fosse guiada pela vontade e verdade
divinas, nas oficinas da Renascença o artista autor podia delegar o trabalho a
outro artista-artesão, ou seja, podia contar com a participação de outro traba-
lhador ou aprendiz de artista. Na arte moderna há uma certa retomada dessa
separação entre autoria artística e fabricação do objeto de arte; o próprio
conceito de arte deixa de depender do trabalho manual e da expressividade
do corpo do autor. É o que acontece por exemplo quando o escultor norte-
-americano Henry Moore leva um pequeno modelo escultórico para Carrara
e pede aos trabalhadores que façam réplicas aumentadas. Simultaneamente
a essa atitude de delegar o trabalho, a modernidade viu o ápice do valor do
traço distintivo do gênio artístico, aí Picasso ocupa lugar de destaque, sobre-
tudo se pensarmos no modo como foi registrada sua performance plástica no
filme O mistério Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot. Ao longo do filme,
autoria, presença e física, gesto performático e virtuosismo manual estão pro-
fundamente entrelaçados. Gênio é aquele cujo gesto é tão poderoso que pode
ser registrado e ainda assim conservar o seu mistério, o seu segredo.
De certo modo esse gênio virtuoso se opõe ao ideal do artista romântico,
este bem mais próximo do elogio do imaterial e portanto mais propenso a
uma absorção do artístico pelo modo de vida sensível. Neste caso um bom
exemplo é o jovem Werther, o escritor que não escreve, o músico que não
compõe, o sujeito que cultua uma atitude e um espírito artísticos como uma
sensibilidade superior bem mais importante do que a obra produzida. É a
essa desmaterialização artística e à perda da relação entre trabalho e classe
que Walter Benjamin e o marxismo de forma geral se opõem. O marxismo
da República de Weimar amarrava a arte a uma determinação de classe; isso

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
170 Laura Rabelo Erber

vai aparecer no pensamento benjaminiano de forma não óbvia na ideia de


que o artista não é aquele que expressa uma subjetividade, mas sim aquele
que transmite de maneira mais ou menos neutra uma coletividade. Assim
desconecta também o trabalho artístico da noção de obra-prima, acabada,
por isso ao falar do teatro brechtiano marca o desvio que o dramaturgo opera
da produção da obra dramática total para a ênfase no laboratório teatral. Em
1940, nas teses sobre o conceito de história, Benjamin estava totalmente cons-
ciente dos desgastes ideológicos e políticos sofridos pelo movimento operário
em função do produtivismo e do culto ao trabalho. Esse texto faz eco direto
ao texto de Lafargue, O direito à preguiça, escrito em 1883, em que o autor
denunciava o amor cego pelo trabalho infundido na classe trabalhadora em
função de um marxismo distorcido. Para Marx, o trabalho, em sentido an-
tropológico, não seria redutível ao sentido útil, ao trabalho assalariado ou ao
emprego; numa compreensão mais ampla, toda atividade humana que possi-
bilita uma expressão da individualidade seria considerada trabalho.
Nesse desvio do paradigma produtivista do conceito de trabalho, desta-
cam-se certamente as propostas de Kazimir Malevitch e de Marcel Duchamp.
Em A preguiça como verdade essencial do homem (ou a verdade real da humani-
dade), redigido originalmente para uma aula em 1921, Malevitch questiona
a ideologia do trabalho no socialismo e no projeto comunista, mas também
no capitalismo, pensando na glorificação do trabalho e na caracterização da
preguiça como vício como formas de aprisionamento do homem numa mo-
ral laboral que rejeita profundamente as atividades especulativas. Malevitch
defende a interdependência entre preguiça e criação. O suprematismo, con-
cebido como um sistema filosófico de cores e formas, pode ser considerado
uma arte da preguiça na medida em que converte a criação em uma ativida-
de especulativa. Ao se perguntar pela existência de um momento de plena
realização humana da preguiça, sugere que esse momento, se existiu, teria
terminado com a expulsão do Paraíso. Assim como em Macunaíma, de Mário
de Andrade, Malevitch vê a preguiça como um estado natural da humanida-
de que lhe teria sido negado, sua intenção e a de seu manifesto-aula é a de
promover uma transformação de valores, mostrando que a preguiça não só
não é um vício (ou pecado), mas está na base de toda possibilidade inventiva,
tanto científica quanto artística. O texto foi escrito de uma tacada só e serviu
como material das aulas que Malevitch ministrava a um grupo formado a
partir da escola de arte de Vitebsk; seus cursos naquele tempo já não eram
apenas cursos de pintura, mas verdadeiras aulas de filosofia, das quais esse
texto fazia parte.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 171

Mais ou menos nessa mesma época em que Malevitch refletia sobre os


benefícios criativos da preguiça, Marcel Duchamp estava desenvolvendo o
seu conceito de anartista, a partir do qual irá articular sua recusa do trabalho
e também da própria identidade artística. Em livro recente, Marcel Duchamp
et le refus du travail (2014), Maurizio Lazzarato irá se debruçar sobre a centra-
lidade dessa recusa na trajetória de Duchamp, mostrando a importância das
leituras de Lafargue no desenvolvimento das noções de anartista e ready-made.
Em Duchamp, a ação preguiçosa – ligada tanto ao não fazer manual no ready-made,
quanto ao silêncio e ao jogo de xadrez – seria uma força progressiva na medida
em que possibilita sair do assujeitamento, sobretudo aquele das classificações
profissionais restritivas. Ao ser interpelado sobre sua profissão, Duchamp ir-
rita-se com a mania classificatória que molda a pergunta, opta por dizer que
é apenas um respirador. Recusar o trabalho aí significa também recusar a
própria ideia de produção que se espera do artista. Essa resistência surge da
consciência de que na passagem da arte moderna para a contemporânea, com
a ampliação dos meios e a dessacralização dos materiais nobres, o artista vive
a tentação de produzir obras a cada dez minutos, saturando o mercado de
novos produtos de vanguarda. Duchamp cria uma armadilha para si mesmo
quando passa a comercializar seus ready-mades assinados, inaugurando um
vasto campo mercadológico para o artista emergente, campo que perdura
até hoje. Duchamp não ignorava os limites de intervenção no real e as re-
sistências à emancipação da arte. Daí a necessidade do surgimento de um
anartista, não artista que anarquizaria o sentido social e institucional da arte,
alguém interessado não em fazer, mas em agir. “Quando você age, você é um
artista” – assim Duchamp desconecta arte de trabalho e transforma a criação
numa técnica de agir. Nesse sentido, a preguiça torna-se uma técnica existen-
cial que depende de um certo modo de vida. Se não levarmos em conta os
desdobramentos do ready-made para a história contemporânea da arte, seria
possível aproximar Duchamp de Bartleby em sua conduta desviante. Um dos
grandes problemas contemporâneos reside justamente no valor de uso desses
exemplos, de certo modo solitários e inutilizáveis. Para Lazzarato, Duchamp
não realizou simplesmente uma crítica do trabalho, sua crítica da produção
teria possibilitado uma outra compreensão do agir e da própria arte como um
ethos e uma técnica do agir não produtivo: “A arte é apenas uma entre outras
técnicas existentes que permite alargar e enriquecer a capacidade de agir, ela
não é a única.” 3 Lazzarato pergunta se na contemporaneidade a recusa do

3 Lazzarato, Maurizio. Marcel Duchamp ou le refus du travail. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2014, p.48.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
172 Laura Rabelo Erber

trabalho pode efetivamente ser reenviada ou beber na fonte da ação pregui-


çosa de inspiração laforgueana. O livro se fecha no eco dessa questão deixada
em suspenso, mas aponta para a necessidade de se pensar a dimensão não
produtiva do trabalho, ou um trabalho sem finalidade que não participaria da
economia de sobreviviência econômica dos sujeitos.

Armadilhas do legado duchampiano

O artista contemporâneo encarado como um pós-duchampiano é aquele que


opera no vasto campo de possibilidades de produção de objetos, um campo
de transações artísticas que não se contenta em vender apenas obras, mas sim
acontecimentos e experiências. Algo análogo acontece no campo da publi-
cidade, que deixou de se ocupar apenas da venda de produtos para vender
sensações, afetos e estilos de vida cada vez mais deslocados dos produtos, que
acabam funcionando como mediadores desse comércio ilimitado. O artista
hoje não está lidando com produtivismo num sentido tradicional, mas com
produtivismo no mundo do capitalismo cognitivo e da mercantilização do
imaterial. No mercado artístico contemporâneo, é possível vender inclusive o
tédio, a preguiça e o não fazer. Como então conseguir que o elogio da inati-
vidade opere de fato como uma crítica à exploração e à alienação do trabalho
e não seja só mais um modo mais ou menos crítico de alimentar o mesmo
mercado e as hierarquias que se pretende questionar?
Os exemplos que selecionei transitam entre a literalização da crítica, a
intervenção ética e a valorização radical de um processo experimental.
Os projetos de Francis Alÿs, artista belga residente no México desde meados
dos anos 1980, questionam diretamente a relação entre força de trabalho e pro-
dutividade, criando ações performáticas que são materiais para seus vídeos e de
onde desentranha outros tipos de documentos. Alÿs provoca um curto-circuito
na relação entre trabalho e produção, criando situações em que o emprego de
energia humana numa determinada ação não gera um produto. Em Paradoxo da
práxis de 1997, o artista empurrava um enorme cubo de gelo pelas ruas da Cidade
do México até o seu derretimento completo. Em A fé move montanhas, de 2002,
convocava 500 voluntários em Lima, no Peru, na maiorira estudantes, para mover
poucos centímetros de terra em uma montanha nos arredores da cidade.
Alÿs afirma ter sido fundamental nesse trabalho que os participantes tra-
balhassem de forma gratuita para que a ação pudesse servir de modelo para
um gasto prodigioso de energia que contraria os princípios conservadores
de eficiência econômica e produtividade. O grande paradoxo aí instalado, se

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 173

levarmos a sério o próprio circuito da obra e seu modo de circulação, é que


Alÿs vende esses trabalhos, e ganha com essas vendas, de modo que recria
uma hierarquia problemática entre o trabalho não remunerado dos partici-
pantes e o valor adquirido pelo artista que dá forma artística e assina o pro-
jeto. Há ainda um trabalho de Alÿs em que convoca retratistas mexicanos de
pequenas aldeias e pede que colaborem em seu projeto realizando desenhos.
Após recebê-los, Alÿs assina os desenhos como se fossem de sua autoria e de-
pois de expor divide o lucro com os artistas-artesãos. O que seria um gesto de
radicalidade crítica e de resistência ao status quo do privilégio artístico acaba
por sublinhar e reforçar a velha hierarquia de valores que coloca o trabalho
manual em situação desvalorizada e subalternizada em relação ao trabalho
criativo do artista.
A obra de Alÿs tem sido às vezes interpretada de forma alegórica, como se
remetesse à cultura do “máximo esforço com resultados mínimos” que carac-
terizaria a situação cotidiana dos latino-americanos, em seus esforços épicos
para transformar minimamente a sociedade. Sem negar por inteiro a dimen-
são de uma crítica feita por meio de uma ação alegórica, me parece importan-
te sublinhar que o efeito estético de suas performances acaba por torná-las
mais ambíguas, fazendo também um elogio da improdutividade, dentro de
uma tradição moderna de valorização do dispêndio que remete ao trabalho
de Bataille. Ou seja, aqui o atravessamento entre trabalho e produção parece
apontar contraditoriamente e ao mesmo tempo para a tragicidade da socie-
dade latino-americana, quando valoriza o dispêndio, e para o trabalho inútil
como um comportamento de resistência. A ambiguidade insolúvel contida
nesse gesto talvez seja uma das características mais salientes dos trabalhos
contemporâneos que se dedicam à crítica do trabalho, ao mesmo tempo em
que não são capazes de abdicar da produção de obras de arte comprometidas
ou igualmente preocupadas com questões estéticas. Seria necessário então re-
ler o mote do artista: “às vezes fazer algo não leva a nada”, a partir da ideia de
que esse “nada” acaba por deixar resíduos que são algo ainda, e algo que re-
conhecemos como arte, objetos artísticos e passíveis de integrarem coleções.
Numa outra esfera de dissociação entre trabalho e produtividade, eu si-
tuaria o trabalho terapêutico de Lygia Clark. Como se sabe, a artista dedicou
vários anos ao que chamou de estruturação do self, em que utilizava objetos
relacionais. Aos participantes chamava de clientes. As sessões aconteciam no
apartamento da artista, em Copacabana. A experiência se estendeu de 1976
a 1988 e foi um verdadeiro desvio dos ambientes e procedimentos então
reconhecidos como pertencentes ao âmbito artístico. Os objetos utilizados

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
174 Laura Rabelo Erber

eram muito simples, prosaicos mesmo, pedra, plástico aerado, ativadores de


sensações fundamentais para desencadear novos processos de subjetivação.
Não vou me aprofundar aqui na descrição; o que gostaria de sublinhar é o
fato de que, ao aparentemente se retirar do ambiente artístico socialmente
reconhecível, Lygia passa a lidar com a dimensão invisível da energia e do tra-
balho psíquico. Não se trata portanto de fazer algo que não leva a nada, mas
sim de fazer algo que não leva a nada que possa ser museologizável, vendável
ou consumível por um espectador. Quando expostos, esses objetos tornam-
se relíquias e não dão conta do contexto de experiência terapêutica no qual
funcionavam como mediadores. O que existe desse trabalho é a experiência
de cada cliente; por isso Suely Rolnik, que durante muito tempo pesquisou
e escreveu sobre esses objetos, vai adotar a noção de anarquivos para criar
um modo de exposição e transmissão dessa fase do trabalho de Lygia. Aqui
o cliente-participante é a própria matéria a ser trabalhada, a partir desses
objetos-estímulos.
O trabalho de Alÿs de absorção de mão de obra externa e o de Lygia de
relação exclusiva com o “cliente” ficam mais legíveis quando pensados no âm-
bito da terceirização do trabalho pelo artista contemporâneo. Em entrevista
publicada na revista Trip, Adriana Varejão é perguntada sobre o seu modo de
produção: “Como é o seu staff hoje?”. A formulação da pergunta já evidencia
o quanto o trabalho artístico hoje pode ser encarado e pensado nos mesmos
termos de uma mera atividade empresarial, seus processos muitas vezes aca-
bam por ser identificados ao do grande escritório de arquitetura, distancian-
do-se assim do modelo do ateliê como um ambiente criativo solitário e de
livre-pensar. Varejão responde:

Aqui no ateliê a equipe fixa é pequena, mas tenho várias assistentes volantes,
que me ajudam na parte de produção artística, de acordo com o trabalho. Nessa
série de agora, todos os quadros foram pintados por retratistas. Os retratos que
vão para Nova York foram feitos pela Ana Moura, que volta e meia colabora
comigo. E estes aqui [ela mostra a série de 33 quadros que estarão na exposição
em São Paulo] foram feitos por retratistas que eu nem conheço. Mandei fazer na
China. Eu precisava de uma base neutra e meio seriada, achei um fornecedor, e
é sensacional o resultado. A agilidade deles foi o que me permitiu fazer essa obra.
Trinta e três quadros é uma quantidade muito grande.4

4 Alves, Micheline. #TPM141. In: Revista Trip de 14/04/2014 .Acesso em: https://revistatrip.uol.
com.br/tpm/adriana-varejao

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 175

Aqui não há muita diferença entre o modus operandi do artista visual e o do


estilista; este último cria um desenho de uma roupa, delega aos costureiros –
chineses ou outros – a confecção e assina a sua “obra” sem incorporar o dado
do trabalhador anônimo como parte integrante do trabalho, como faz Francis
Alÿs com os retratistas mexicanos.
O último exemplo que gostaria de trazer é o da artista alemã Maria Ei-
chhorn, que em 2016 realizou na Chisenhale Gallery de Londres o projeto
Nothing to See Here. Eichhorn deu férias para a equipe de funcionários da
galeria durante o período de duração da exposição. Sua estratégia conjuga
literalidade crítica e intervenção direta no sistema que pretende questionar;
ressoa nele ver a tradição da crítica institucional, porém transformada numa
crítica social à instituição. Diferentemente dos elogios do ócio nos quais
quem resistia ao imperativo do trabalho era o próprio artista, aqui a artis-
ta funciona como mediadora de relações laborais, de certo modo propondo
uma provisória liberação do trabalhador invisível que sustenta o meio insti-
tucional - os funcionários da galeria. A artista opera como criadora não de
uma obra, mas de tempo livre para os funcionários; há algo de demiúrgico e
também de autoritário nesse gesto. Eu artista te liberto da opressão institu-
cional… Mais uma vez a ambiguidade política do gesto impede que o projeto
seja plenamente identificado com sua intenção crítica.
É compreensível que nesse contexto uma figura ficcional como o escri-
vão Bartleby exerça tanto ou mais fascínio sobre os artistas quanto os textos
de Lafargue e de Oswald de Andrade sobre o ócio. A resistência passiva de
Bartleby atrai porque oferece uma espécie de modelo pós-utópico descolado
da virilidade e do heroísmo revolucionários. Justamente a perda da crença
na capacidade transformadora da arte é que parece balizar o limite crítico da
arte contemporânea, e aqui me refiro mais precisamente aos trabalhos de Alÿs
e Maria Echhorn. Enquanto o artista da primeira vanguarda podia acreditar
ainda nos privilégios críticos e na potência negativa e transformadora do ges-
to artístico, o artista contemporâneo sabe que sua crítica se inscreve em um
sistema que absorve e metaboliza a crítica, neutralizando-a, transformando
o espectador em cúmplice de uma denúncia que nunca chega realmente a
produzir um deslocamento radical. De certo modo, esses trabalhos são sinto-
máticos de uma condição contemporânea, e aqui coincido com o que propõe
Jacques Rancière em Malaise dans l’esthetique (2004), quando aponta para a
problemática condição de uma arte que se transformou em testemunho de
nossa dívida infinita em relação ao Outro, uma arte que intensifica essa dívida
na forma de trabalhos críticos, porém paradoxalmente contemporizadores,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
176 Laura Rabelo Erber

anestésicos diante da realidade e da complexidadedos confitos, e que acaba


por expulsar da própria arte a experiência concreta do dissenso. Assim, um
artista como Alÿs pode ao mesmo tempo apontar a desigualdade com que são
tratados no mundo laboral e mercadológico o trabalho de um retratista-arte-
são e sublinhar o privilégio do artista contemporâneo, redistribuindo o lucro
do seu trabalho sem alterar politicamente a hierarquia dessa relação. Desse
modo, todas as causas – ecológica, racial, etc. – podem ser ao mesmo tempo
expostas, denunciadas e harmonizadas ao modo contemporâneo da circula-
ção e da fruição artística.
A consciência do aprisionamento da arte dentro de uma comunidade ética
que compartilha valores e denúncias talvez possa conduzir a uma pergunta
que não poderei responder aqui, mas que diz respeito à crítica e ao debate na
esfera pública de maneira geral: até que ponto esse apaziguamento promovi-
do pelo gesto crítico da arte contemporânea não contribui para um esvazia-
mento da cena agonística da qual depende o próprio conceito de democracia
que essa arte afinal pretende sustentar e defender? Grande parte dos discur-
sos explicativos e legitimadores da arte contemporânea se ancoram ainda na
suposta potência ou força crítica do artista diante de um mundo cada vez
mais desigual e rendido às forças da desdemocratização5 e da desigualdade,
porém é impossível não pensá-los como parte de um campo de forças mais
complexo e vasto no qual a própria arte permite enobrecer e agregar valor a
marcas, instituições e uma economia de bens culturais, cujo funcionamento
contradiz e neutraliza a potência crítica do artístico. Nessa zona de tensão en-
tre o projeto entusiasmado de uma arte crítica e emancipadora e a indução do
espectador a ocupar o triste lugar de testemunha da catástrofe política e social
que nos diz respeito a todos é que a arte contemporânea precisaria ser pen-
sada. Não para que abandone seu desejo emancipatório, mas para que seja
capaz de pensar as distopias nas quais acaba por se inserir, construindo para
o espectador um lugar paradoxal e imobilizante que afinal não se distancia
muito da posição de todo cidadão contemporâneo minimamente consciente
das condições mínimas que tornam possível a existência democrática.
Uma certa arte contemporânea – a que se sustenta no discurso ou no
gesto crítico-emancipatório – talvez possa ser comparada a uma mulher femi-
nista branca. Esta sabe ou deve saber que seu lugar no mundo é politicamente
complexo uma vez que habita simultaneamente e transita incessantemente

5 Utilizo aqui o conceito de desdemocratização, nos termos articulados por Wendy Brown em
Undoing the Demos – Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O artista improdutivo e a crítica ao trabalho na arte contemporânea 177

entre o espaço da dominação e o da emancipação. Habitar essa contradição


não é em si mesmo um problema, mas habitá-la para promover uma posição
de fruição baseada no mea culpa torna-se um problema. O problema se agrava
na medida em que a produção artística propõe realizar uma crítica do tra-
balho sem levar em consideração a especificidade e contradição que rege os
bens culturais e artísticos na sociedade contemporânea, ou apenas leva isso
em consideração de maneira superficial, sem disso tirar maiores consequên-
cias. Manter a questão no campo agonístico significaria então, em termos
artísticos, construir um campo criativo de reflexão sobre a emancipação, mas
ao mesmo tempo identificar, e com rapidez, um estranho entusiasmo parali-
sante que assigna ao espectador o lugar de cúmplice de sua própria condição
de indignação impotente.

Referências

ALVES, M. Entrevista com Adriana Varejão #TPM141. Revista Trip, 14 abr. 2014.
LAZZARATO, M. Marcel Duchamp ou le refus du travail. Paris: Les Prairies
Ordinaires, 2014.
LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Nova Alexandria, 2000.
MALEVITCH, K. La paresse comme vérité effective de l’homme. Paris: Éditions
Allia, 2015.
RANCIÈRE, J. Malaise dans l’esthetique. Paris : Galilée, 2004.
VIDOKLE, A. Arte sem trabalho? Rio de Janeiro/Copenhague: Zazie Edições, 2016.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.167-177, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia
Rafael Cardoso*

e política no modernismo brasileiro

The conformist intellectual: art, autonomy


and politics in Brazilian modernism

Resumo
O presente artigo examina a relação entre intelectuais e autonomia política no
meio cultural brasileiro, enfocando um estudo de caso histórico: a atuação de dois
dos principais líderes do movimento modernista, Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, à época do Estado Novo. Em especial, são analisados aqui o contexto
de dois pronunciamentos públicos realizados por eles: as palestras “O movimento
modernista” (1942) e “O caminho percorrido” (1944), respectivamente. De que
modo esses autores reagiram diante da forte pressão da ditadura varguista para
controlar os meios de informação e o discurso cultural? Mário de Andrade apostou
na tentativa de se aproximar do poder público, mas posteriormente se arrependeu
e empreendeu uma autocrítica. Oswald de Andrade, envolvido com os meios
comunistas, manteve-se longe do favor oficial a essa época. As decorrências de
suas respectivas atitudes são indicativas da difícil posição do intelectual brasileiro
perante o autoritarismo do Estado.

Palavras-chave: modernismo; intelectuais; Brasil; Estado Novo; Mário de


Andrade; Oswald de Andrade.

Abstract
The present article examines the relationship between intellectuals and political
autonomy in the Brazilian cultural context, focusing on a historical case study:
the actions of two of the most important leaders of the modernist movement,
Mário de Andrade and Oswald de Andrade. Special consideration is given to two

* Colaborador no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);


E-mail: rafaelcardoso.email@gmail.com

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180 Rafael Cardoso

lectures delivered by them, “The modernist movement” (1942) and “The path
trodden” (1944), respectively. How did these authors react to powerful pressures
by the Vargas dictatorship to control information and cultural discourse? Mário
de Andrade attempted to draw near to the authorities, but afterwards publicly
expressed regret and self-criticism. Oswald de Andrade, engaged in communist
circles, kept a distance from official patronage at the time. The results of their
respective attitudes are indicative of the difficult position of Brazilian intellectuals
faced with an authoritarian State.

Key words: modernism; intellectuals; Brazil; Estado Novo; Mário de Andrade;


Oswald de Andrade.

Os modernistas afogaram-se no amoralismo e na piada, tornaram-se ridí­


culos diante do prenúncio de uma luta social com aquela mascarada que
encerrava o ciclo inicial do movimento de 1922 [...]

Sou um péssimo comunista de partido, mas jamais serei um intelectual


conformista, grudado pelo trazeiro [sic] às cadeiras das repartições públi-
cas, o pensamento voltado para as nuvens da cultura decadente, sempre
apto ao plágio e à bajulação.

Di Cavalcanti, 19641

As frases citadas em epígrafe constam do segundo relato autobiográfico pu-


blicado por Di Cavalcanti, Reminiscências líricas de um perfeito carioca (1964),
que deu seguimento nove anos depois às memórias iniciadas com Viagem da
minha vida – I. O testamento do alvorada (1955).2 Para bom entendedor – e,
no Brasil de 1964, ser bom entendedor era questão de sobrevivência – é
claríssimo a quem essas críticas eram endereçadas. Entre os que se afogaram

1 E[miliano] di Cavalcanti, Reminiscências líricas de um perfeito carioca (Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira, 1964), pp. 37-41.

2 Éder Silveira, “Di Cavalcanti memorialista – boemia, arte e política”, V Encontro de História da
Arte – IFCH/Unicamp (2009), pp. 405-412.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 181

no amoralismo e na piada, o principal suspeito era Oswald de Andrade, fale-


cido havia dez anos, mas a cutucada era extensível aos que com ele fizeram
a Revista de Antropofagia: Raul Bopp, Oswaldo Costa, Antônio de Alcântara
Machado – os dois primeiros ainda em vida à época. Quanto aos intelectuais
conformistas, grudados pelo traseiro às cadeiras de repartição, certamente
sentiram incômodo ao lerem essa frase: Carlos Drummond de Andrade, Ro-
drigo Mello Franco de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Milliet, entre outros
vivos e ativos quando o livro apareceu.3 Talvez o único passível de ser enqua-
drado em ambas as críticas, Mário de Andrade, havia falecido em 1945. Essa
rajada de metralhadora memorialística faz parte da seção em que Di justifica
sua adesão ao Partido Comunista do Brasil, em 1928, e desanca “o caráter
demasiadamente literário do movimento modernista de 1922”. Segundo o
artista, seus antigos companheiros (ele cita nominalmente Mário, Oswald e
Guilherme de Almeida) nada entendiam de política. “Eles riam de mim e
não compreendiam meu apêgo incipiente aos estudos das novas doutrinas
sociais.” 4 O livro deixa transparecer que Di, por sua vez, continuava a prezar
os velhos ideais comunistas.
O Brasil sendo a terra da cordialidade sestrosa, os amigos de Di Cavalcanti
fizeram vista grossa e boca de siri. Ninguém quis jogar a primeira pedra, muito
menos vestir a carapuça. Também, havia outros assuntos prementes. O livro
chegou às livrarias no dia 24 de março de 1964 – a uma semana do golpe – e
seu lançamento foi anunciado como “a festa de despedida de Di, que dentro
de poucos dias viajará para a França, onde exercerá as funções de adido cul-
tural junto à nossa Embaixada”.5 O artista viajou, de fato, mas nunca assumiu
o cargo. Com a deposição de João Goulart da presidência, subiram no telhado
as nomeações ainda não efetivadas. A desventura de admitir por escrito que
continuava a nutrir simpatias esquerdistas não deve ter ajudado a posição de
Di junto ao novo regime. Tal detalhe dificilmente escaparia à atenção de um
certo João Baptista de Figueiredo, oficial ativo do setor de inteligência militar,
logo em seguida promovido a coronel e encarregado de chefiar a agência cario-
ca do novíssimo Serviço Nacional de Informações (SNI). O futuro Presidente

3 Sobre a relação entre intelectuais modernistas e serviço público nessa época, ver Lauro Caval-
canti, org., Modernistas na repartição (Rio de Janeiro: Ed.UFRJ/Iphan, 2000 [1993]), esp. pp. 9-23.

4 Di Cavalcanti, Reminiscências líricas de um perfeito carioca, pp. 35-36.

5 José Condé, “Escritores e livros”, Correio da Manhã (Segundo Caderno), 24/03/1964, p.2. Ver
ainda anúncio de lançamento do livro ao pé da mesma página, repetido no dia seguinte e veicu-
lado também em outros jornais.

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da República era irmão mais novo do dramaturgo e escritor Guilherme de


Figueiredo, que dirigia a coleção “Rio 400” para a editora Civilização Brasi-
leira, e o primeiro volume a ser publicado dessa coleção foi justamente o de
reminiscências de Di. O livro acabou relegado aos acontecimentos literários
de um ano de pouca literatura, mas a tomada de posição de seu autor gerou
dividendos indiretos para Guilherme de Figueiredo. Na decorrência do golpe,
ele foi nomeado adido cultural em Paris, em substituição ao pintor.6
Para além da curiosidade dos fatos, esse imbróglio em torno das memó-
rias de Di Cavalcanti ilustra o intrincado das relações entre arte e política no
Brasil, país em que a lógica inescapável dos elos interpessoais quase sem-
pre se sobrepõe à quimera dos interesses públicos. Até que ponto é possível
exercer a autonomia de ideias ou de convicções quando o sistema é minado
constantemente por exceções, e a brutalidade do dia a dia atropela as boas in-
tenções? O presente ensaio irá explorar essas questões por um viés histórico,
focando pronunciamentos importantes de dois autores durante o período do
Estado Novo: as palestras “O movimento modernista” (1942), de Mário de
Andrade, e “O caminho percorrido” (1944), de Oswald de Andrade.7 Os dois
ex-amigos de Di são emblemáticos dos liames emaranhados que enredam
o intelectual que tenta abrir caminho em meio ao matagal da vida política
no Brasil. A tirar pelo exemplo deles, o destino de quem se fia no facão é o
mesmo de quem se pendura do galho mais à mão. No fim das contas, ambos
acabam tragados pelo lodo.

O movimento modernista

Às 17 horas do dia 30 de abril de 1942, uma quinta-feira, Mário de Andrade


realizou conferência na biblioteca do Itamaraty, no Rio de Janeiro, intitula-
da “O movimento modernista”.8 Encomendada pelo Departamento Cultural
da Casa do Estudante do Brasil, com o intuito de comemorar os vinte anos
da Semana de Arte Moderna, a palestra de Mário acabou por se configurar

6 Elio Gaspari, A ditadura acabada (Rio de Janeiro: Intínseca, 2016), pp. 77-81, 206.

7 A aproximação dessas duas conferências foi feita por Silviano Santiago, “Sobre plataformas e
testamentos”, In: Oswald de Andrade, Ponta de lança (São Paulo: Globo, 1991), pp. 7-24. Esse
ensaio foi reimpresso em: Silviano Santiago, Ora (direis) puxar conversa: Ensaios literários (Belo
Horizonte: Ed.UFMG, 2006), pp. 113-131. Ver também Madalena Vaz Pinto, “Modernismo bra-
sileiro: Que retrato do Brasil?”, Semear, n.10 (2004), pp. 153-166.

8 “Conferências”, Correio da Manhã, 30/04/1942, p.11.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
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em denúncia contundente do movimento do qual foi um dos líderes. O tom


polêmico de sua fala pode ser depreendido de apenas duas frases, próximas
à conclusão: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não
devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.” A partir
de uma argumentação que mistura a narrativa pessoal à histórica, Mário acusa
o movimento de 1922 de ter sucumbido aos defeitos do “individualismo” e do
“abstencionismo” e se afastado da questão essencial do “amilhoramento políti-
co-social do homem”. Tampouco ele isenta sua própria produção dessa crítica:
“toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável”. O
palestrante conclui a fala com um apelo aos seus ouvintes para não ficarem à
margem, espiando a marcha da história: “Marchem com as multidões”.9
A dura condenação de Mário ao modernismo tem ecoado de forma envie-
sada pela historiografia. Todos conhecem a palestra, posteriormente publica-
da, ao ponto de Wilson Martins considerar “desnecessário analisar em porme-
nor a conferência de Mário de Andrade, texto que os amigos e os adversários
do Modernismo sabem praticamente de cor”.10 Porém, poucos dão ao autor
o crédito de levar suas críticas a sério. A quase totalidade das reações tem
sido no sentido de desfazer da autocrítica de Mário como exagerada ou de
desviar a atenção para outros aspectos da palestra, como a defesa do “direito
permanente à pesquisa estética”.11 Mais recentemente, o imperativo de negar
à fala de Mário seu sentido ostensivo tem conduzido a malabarismos intelec-
tuais que incluem até o expediente de questionar a unidade do sujeito como
narrador e rejeitar a autoridade do memorialista para ordenar suas próprias
memórias.12 A única hipótese que parece ter escapado à maioria dos críticos
é de que Mário tivesse mesmo a intenção de dizer o que disse e que – talvez,
não mais do que talvez – tivesse um pouco de razão.

9 Mário de Andrade, “O movimento modernista”, In: Mário de Andrade, Aspectos da literatura


brasileira (São Paulo: Martins, 1974), pp. 253-255.

10 Wilson Martins, A idéia modernista (Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2002
[1965]), p.135. Ver também Lélia Coelho Frota, org., Carlos e Mário: Correspondência entre Carlos
Drummond de Andrade e Mário de Andrade (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002), pp. 470-473, n.1.

11 Andrade, “O movimento modernista”, p.242. Ver, entre outros, Alfredo Bosi, “O movimento
modernista de Mário de Andrade”, Literatura e Sociedade, n.7 (2004), pp. 296-301; e José de Pau-
la Ramos Jr., “Mário de Andrade e a lição do modernismo”, Revista USP, n.94 (2012), pp. 49-58.

12 José Luís Jobim, “O movimento modernista como memória de Mário de Andrade”, Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, n.55 (2012), pp. 13-26. Ver ainda Simone da Cruz Chaves, “22
por 1: O modernismo avaliado por Mário de Andrade”, Grau Zero: Revista de Crítica Cultural, v.1
(2013), pp. 9-22.

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Para entender o sentido profundo das colocações de Mário de Andrade


em “O movimento modernista”, é necessário recuar para o contexto em que a
palestra foi pronunciada. O panorama de abril de 1942 afigurava-se sombrio
para o poeta. A situação da Guerra Mundial era a pior possível. As forças do
Eixo estavam no auge de sua expansão territorial, ocupando praticamente a
Europa toda, o norte da África, grande parte da China e sudeste asiático. No
Brasil, a ditadura do Estado Novo estava plenamente consolidada: censura,
prisões, repressão, tortura, sem nenhum sinal das vozes de oposição silencia-
das em 1937 e que começariam a se reafirmar somente em 1943, com o Ma-
nifesto dos Mineiros. No plano pessoal, Mário passava por momento de pro-
fundo abatimento moral, caracterizado por Eduardo Jardim como “processo
de autodestruição”.13 Suas tentativas de conquistar espaços na Capital haviam
terminado em frustração; e, após três anos no Rio de Janeiro, encontrava-se
reduzido a papel secundário como colaborador no Ministério de Educação e
Saúde. Tanto que, em 1941, decidiu retornar a São Paulo. Em seu pedido de
licença ao ministro Gustavo Capanema, explicou estar “cheio de fobias e o
diabo”. Mesmo de regresso ao lar, seu estado de ânimo pouco se recuperou,
conforme atestam suas correspondências pessoais.14
A palestra no Itamaraty foi a primeira ocasião a trazer Mário de Andrade
de volta ao Rio de Janeiro, depois desse recuo estratégico. O conteúdo dela
vinha sendo elaborado, havia meses. A maior parte já estava pronta em feve-
reiro de 1942, quando Mário publicou quatro artigos no jornal O Estado de
S. Paulo para marcar os vinte anos da Semana de 1922.15 Cotejando os textos,
percebe-se logo que os artigos do Estadão correspondem grosso modo à pa-
lestra de abril, com uma discrepância significativa: a última seção, em que o
autor desanca o modernismo e suas omissões no plano social e político, está
ausente da primeira publicação. Algo se alterou no espírito de Mário, entre
fevereiro e abril, que o levou a aprofundar suas considerações e escancarar
sua dimensão crítica. Ou isso, ou então resolvera amenizar o tom acusató-
rio, na primeira ocasião, para não estragar a festa no mês de aniversário da

13 Eduardo Jardim, Eu sou trezentos: Mário de Andrade, vida e obra (Rio de Janeiro: Edições de
Janeiro, 2015), p.185.

14 Jardim, Eu sou trezentos, pp. 160-161, 175-176, 185-186; e Helena Bomeny, “Infidelidades
eletivas: Intelectuais e política”, In: Helena Bomeny, org., Constelação Capanema: Intelectuais e po-
lítica (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001), pp. 28-29. Ver também Eduardo Jardim, Mário de Andrade:
A morte do poeta (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), esp. cap.2.

15 Os artigos foram republicados pelo jornal em 2002, em comemoração aos oitenta anos da Sema-
na; http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,semana-de-22-por-mario-de-andrade,20020210p2229.

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Semana. Seja isso como for, permanece o fato de que os dois aspectos que
mais incomodaram à historiografia – o repúdio ao movimento modernista e
o mea culpa fervoroso por se omitir politicamente – estão ausentes da versão
publicada no jornal paulistano.
Coincidência ou não, a reputação literária de Mário de Andrade sofreu um
baque justamente no mês de março de 1942. No dia 21, sábado, o Correio da
Manhã, mais importante diário da Capital, veiculou uma resenha de Álvaro
Lins, então em ascendência como crítico literário, comentando a publicação
de Poesias (1941), volume que reunia a maior parte da produção poética de
Mário. O crítico condena “a fatal desigualdade” da obra do poeta e aponta
sistematicamente suas insuficiências, denunciando que sua essência poética
nunca teria alcançado uma forma de expressão à altura. Acusa sua poesia de
carecer de maior profundidade e de se perder em artifícios, no pitoresco, na
pilhéria fácil. Ainda descreve Mário como “mais uma personalidade do que
um autor, pelo menos no domínio da poesia”. A crítica é tão mais arrasado-
ra por ser respeitosa, por levar em consideração o valor e a importância de
Mário na vida literária de sua época, assim como sua originalidade e vigor.
Cobre-lhe largamente de elogios que depois são desfeitos no varejo. Pior de
tudo, a condenação de Lins, então com 29 anos de idade, vem revestida
de julgamento da juventude contra os mais velhos: “A minha geração ultra-
passou, porém, o chamado do movimento modernista, e de tal modo que
muitas das suas novidades já nos parecem hoje sem qualquer sentido.” Com
propriedade e embasamento, o crítico consigna a produção poética de Mário
à “imagem grave e atormentada de um homem que se procura a si mesmo”.16
Mesmo sem querer superdimensionar a importância do fato, não dá para
desconsiderar o impacto dessa crítica sobre o poeta. A partir dela, Mário de
Andrade iniciou um diálogo com Álvaro Lins – por crônica e correspondên-
cia – que duraria até o final de sua vida. Três dias depois do texto sair no
Correio da Manhã, Mário escreveu uma primeira carta ao autor. Em vista das
reprimendas ao seu trabalho poético, a reação foi bem mais positiva do que se
poderia esperar, e ele chegou a se confessar confortado pelos elogios contidos
no texto.17 Mário já conhecia Lins pelos escritos. Dois anos antes, em 1940,
havia sido um dos primeiros a saudar a jovem promessa, reconhecendo-o

16 Álvaro Lins, “Crítica literária. Poesia e forma”, Correio da Manhã, 21/03/1942, p.2.

17 [Mário de Andrade], Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins (Rio de Janeiro: José Olympio,
1983), esp. pp. 46-51. Ver também Coelho Frota, Carlos e Mário, p.476, n.6.

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como “um crítico excelente, que deve perserverar na crítica”.18 Uma vez que
já havia dado seu aval, não podia voltar atrás somente porque passou à con-
dição de alvo. As cartas para Lins continuaram. Em julho de 1942, quase três
meses depois da conferência de abril, Mário ainda discutia sua “confissão
final”, esmiuçando-a em termos psicanalíticos e negando que se tratasse de
“autopunição”.19 O tom confessional do missivista sugere um desejo de ab-
solvição, como se o jovem crítico possuísse o poder de livrá-lo do juízo da
História. De fato, Lins viria a se tornar um dos primeiros a realizar balanço
crítico da obra de Mário, em maio de 1946.20
Nos anos seguintes a 1942, Mário de Andrade procedeu a um exame de
consciência e passou a exercer, não sem coragem, a autocrítica. A palestra
“O movimento modernista” marca o início de um processo de penitência
pública por ter colaborado com a ditadura do Estado Novo. Em entrevista
concedida a Francisco de Assis Barbosa e publicada na revista Diretrizes,
em janeiro de 1944, Mário escancara essa questão e acusa: “uma grande
parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida”. Nem ele se
exime do pecado do colaboracionismo. Declara-se “arrependidíssimo” por
ter contribuído para a revista Atlântico, projeto que unia o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), sob Lourival Fontes, com seu correspon-
dente salazarista em Portugal, o Secretariado de Propaganda Nacional, sob
responsabilidade de António Ferro.21 Contudo, a autocrítica de Mário não se
estendeu à sua passagem pela Universidade do Distrito Federal, para assumir
o cargo de professor de Filosofia e História da Arte que foi o pretexto para
sua mudança para o Rio de Janeiro.

18 Mário de Andrade, “Um crítico”, In: Mário de Andrade, O empalhador de passarinho (São
Paulo: Martins/INL, 1972), pp. 199-203.

19 Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins, pp. 66-67.

20 Álvaro Lins, “A crítica de Mário de Andrade”, In: Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins,
pp. 21-29.

21 Telê Porto Ancona Lopez, “‘A arte tem de servir’: Transcrição de uma entrevista de Mário de
Andrade”, Almanaque, n.8 (1978), pp. 35-39. Ver Alex Gomes da Silva, “A recriação ‘atlântica’
do processo colonizador português. A revista Atlântico (1941-1945)”, Revista Angelus Novus, n.2
(2011), pp. 110-141.

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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 187

Em 1938, quando Mário de Andrade ingressou no Instituto de Artes,


o projeto escolanovista da UDF já estava em pleno processo de desmonte,
seguindo-se à caça às bruxas anti-comunista de 1935 a 1936.22 Diante da
repercussão que atingiu na imprensa a demissão de Anísio Teixeira e Celso
Kelly, assim como a cassação do prefeito Pedro Ernesto, ainda em 1936, era
impossível ignorar o que significava atender ao convite de colaborar com os
novos dirigentes da casa. Com Alceu de Amoroso Lima na reitoria da UDF e
o escritor Cornélio Penna na direção do Instituto, não pairava dúvida quanto
ao sentido católico e tradicionalista que se buscava imprimir a esse projeto
educacional, em reviravolta completa à visão promovida pelos artistas mo-
dernistas sob a direção anterior.23 Mesmo assim, Mário parece ter se decep-
cionado com o fechamento da UDF em 1939 e sua absorção subsequente pela
Universidade do Brasil, queixando-se a Capanema: “lastimo dolorosamente
que se tenha apagado o único lugar de ensino mais livre, mais moderno, mais
pesquisador que nos sobrava no Brasil”.24 Após a perda do cargo de professor,
ele passou dois anos gravitando em torno do Ministério da Educação, onde
nunca conseguiu nenhuma posição mais graduada do que a de assessor téc-
nico. Sem maior ascendência sobre o ministro Capanema, sua atuação ficou
atolada na zona morta da disputa de influência entre Alceu de Amoroso Lima
e Carlos Drummond de Andrade.
Na entrevista de 1944, Mário de Andrade adota um linguajar atípico para
quem só conhece seus escritos anteriores. Abraça uma “noção proletária da
arte” e afirma que a ideia de arte pura é sofisma e “pseudoliberdade”, que o
artista que pensa somente em servir à sua arte, sem considerações políticas,

22 Ver Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny & Vanda Maria Ribeiro Costa, Tem-
pos de Capanema (São Paulo: Paz e Terra/FGV, 2000), pp. 221-246; e Rafael Cardoso, “Modernis-
mo e contexto político: A recepção da arte moderna no Correio da Manhã (1924-1937)”, Revista
de História (USP), n.172 (2015), pp. 358-359.

23 Sobre o desmonte da UDF, ver Clarice Nunes, “As políticas públicas de educação de Gustavo
Capanema no governo Vargas”, In: Bomeny, Constelação Capanema, pp. 103-125; e Laila Maia
Galvão, Constituição, educação e democracia: a Universidade do Distrito Federal (1935-1939) e as
transformações da Era Vargas (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Direito,
Estado e Constituição, Universidade de Brasília, 2017). Sobre a passagem de Cornélio Penna pelo
Instituto de Artes, ver Marcelo Secron Bessa, “Cornélio Penna: Um escritor na contramão”, Semear,
n.4 (2000), pp. 87-98; e André Luis Rodrigues, Fraturas no olhar: Realidade e representação em
Cornélio Penna (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira,
Universidade de São Paulo, 2006), pp. 12-13, 26.

24 Bomeny, “Infidelidades eletivas”, p.28.

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“está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos”. “A arte tem de ser-
vir,” afirma, referindo-se à função social de aproximar o intelectual do povo.
“Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais,” asse-
vera, “[t]odos participam da luta, mesmo contra a vontade.”25 O tom comba-
tivo, quase marxista, dessas falas seria do agrado dos leitores anti-fascistas da
­Diretrizes. A revista era conhecida então por forçar o limite do dissenso pos-
sível em um contexto onde nenhuma oposição era tolerada (tanto que viria a
ser proibida pelo DIP, seis meses depois).26 Porém, a mudança de posição era
drástica demais para ser atribuída apenas a um cálculo, da parte do entrevis-
tado, no sentido de amoldar sua fala para aquele público leitor. Poucos anos
antes, em 1941, Mário havia rechaçado com veemência o que chamou de “a
tese da ‘arte social’”, termo empregado pelos integrantes do Clube da Cultura
Moderna e promotores da Exposição de Arte Social (1935) – Aníbal Macha-
do, Álvaro Moreyra, Tomás Santa Rosa, Paulo Werneck, entre outros – para
designar o engajamento político de esquerda que era esperado dos artistas
modernistas na década de 1930.27
No final da vida, a posição de Mário de Andrade se tornou ainda mais
radical, conforme expressa no ensaio sobre Shostakovich publicado depois
da sua morte.28 Essa guinada política entre 1942 e 1945 precisa ser elucidada
e não simplesmente descontada com um diagnóstico póstumo de depressão,
o que seria desmerecer as opiniões do autor por meio de um discurso mé-
dico espúrio. Cabe levar em consideração algumas inquietações que devem
ter pesado sobre ele nos últimos anos. Primeiramente, a frustração devida às
sucessivas derrotas sofridas no plano profissional. Em segundo lugar, a má-
goa de ver sua obra literária rejeitada por uma opinião crítica que respeitava

25 Lopez, “A arte tem de servir”, pp. 37-39.

26 Danilo Wenseslau Ferrari, “Diretrizes: A primeira aventura de Samuel Wainer”, Revista His-
tórica (Arquivo Público do Estado de São Paulo), n.31 (2008). Ver também Maria Helena Capelato,
“Propaganda política e controle dos meios de comunicação”, In: Dulce Pandolfi, org., Repensando
o Estado Novo (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999), pp. 167-178.

27 Mário de Andrade, “Elegia de Abril”, In: Andrade, Aspectos da literatura brasileira, p.188. So-
bre a movimentação em torno da ‘arte social’, ver Aracy A. Amaral, Arte para quê?: A preocupação
social na arte brasileira 1930-1970 (São Paulo: Nobel, 1984), pp. 49-55; Aníbal Machado, “Mos-
tra de Arte Social”, In: Raul Antelo, org., Parque de diversões – Aníbal Machado (Belo Horizonte:
UFMG & Florianópolis: UFSC, 1994), pp. 149-158; e Frederico Morais, Cronologia das artes
plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994 (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), pp. 153-158.

28 Pedro Fragelli, “Engajamento e sacrifício: O pensamento estético de Mário de Andrade”, Revis-


ta do Instituto de Estudos Brasileiros, n.57 (2013), pp. 83-110. Ver também Jardim, Eu sou trezentos,
pp. 199-202.

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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 189

– em especial, o juízo ácido de Álvaro Lins – e a constatação de que o mo-


vimento modernista caía em descrédito entre intelectuais jovens da Capital.
Em terceiro lugar, o remorso por ter colaborado com os órgãos da ditadura
varguista, admitida em parte na entrevista à Diretrizes. No plano maior dos
acontecimentos, havia as transformações da situação geopolítica. Com a vi-
rada favorável à causa dos Aliados, entre 1943 e 1944, a vitória na Europa
já se anunciava; e, mesmo circulado de modo clandestino, o Manifesto dos
Mineiros alimentava a esperança de que o fim da Guerra trouxesse também a
queda do Estado Novo. Para um agente cultural com a sagacidade de Mário,
não devia ser difícil perceber que os tempos estavam mudando e que era pre-
ciso angariar boa vontade do lado dos possíveis vencedores. Esta conclusão o
remeteria a outro grande fantasma de sua existência: sua antiga amizade com
Oswald de Andrade, rompida em 1929.

O caminho percorrido

Ao contrário de seu eterno rival pela liderança do movimento modernista,


Oswald de Andrade percorreu um caminho bem longe dos centros de poder
durante a Era Vargas. Amigo e afilhado dos maiorais do Partido Republicano
Paulista – Washington Luís e Júlio Prestes foram padrinhos do seu casa-
mento com Tarsila do Amaral – as boas relações de Oswald evaporaram, de
noite para dia, com o sucesso do movimento revolucionário de outubro de
1930. Era o golpe final de um ano de sobressaltos na vida do escritor, que
se iniciara com a quebra da bolsa de Nova York, em outubro de 1929, e
culminara com sua separação de Tarsila, em meio a transtornos financeiros.29
Caso não houvesse se indisposto com Mário de Andrade – enxovalhado pela
Revista de Antropofagia, entre março e julho de 1929, ao ponto que acabou
rompendo definitivamente a amizade com Oswald – talvez pudesse ter re-
corrido a ele para pedir ajuda.30 Como colunista do Diário Nacional, órgão

29 Nádia Battella Gotlib, Tarsila do Amaral: A musa radiante (São Paulo: Brasiliense, 1983), pp.
77-80; Sérgio Miceli, Nacional estrangeiro: História social e cultural do modernismo em São Paulo
(São Paulo: Companhia das Letras, 2003), pp. 142-149; e Maria Augusta Fonseca, Oswald de
Andrade: Biografia (São Paulo: Globo, 2007), pp. 218-221.

30 Para os motivos da ruptura entre os Andrades, ver Revista de Antropofagia, II, n.3 (Diário
de S. Paulo, 31/03/1929), p.6; Tamandaré, “Moquem. III-Entradas”, Revista de Antropofagia, II,
n.6 (Diário de S. Paulo, 24/04/1929), p.10; Revista de Antropofagia, II, n.15 (Diário de S. Paulo,
19/07/1929), p.12. Ver também Aracy A. Amaral, org., Correspondência Mário de Andrade e Tarsila
do Amaral (São Paulo: Edusp, 2001), p.106; e Coelho Frota, Carlos e Mário, p.437, n.10.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
190 Rafael Cardoso

do Partido Democrático, Mário viu-se alinhado subitamente com o lado ven-


cedor em 1930, já que o PD havia apoiado Getúlio em São Paulo, contra o
PRP deposto.31
Sob o novo regime varguista, a existência de Oswald de Andrade trans-
formou-se em processo de gradativo declínio financeiro. Neto de fazendeiro
escravista, filho único de pai vereador e grande proprietário de imóveis na
cidade de São Paulo, feliz dono de uma garçonnière na Rua Líbero Badaró e
de um Cadillac verde que entraram ambos para o anedotário do modernis-
mo paulista, Oswald nunca perdeu o costume de olhar para a vida social de
cima para baixo. Porém, suas circunstâncias materiais até sua morte em 1954
foram-se tornando cada vez mais reduzidas.32 A escolha bem-humorada do
título para seu livro de memórias, Um homem sem profissão (1954), reforça o
quanto o escritor enxergava a si mesmo como estando à margem da norma-
lidade burguesa em que fora criado e que tentou retomar nos anos 1950 por
meio de uma candidatura a deputado federal, bem como uma tentativa de
virar professor de filosofia na USP, ambas malogradas.33
Em 1931, Oswald de Andrade aderiu ao PCB. Casado a essa época com
Patricia Galvão, a poeta Pagu, ambos travaram contato pessoal com Luiz
Carlos Prestes, encontro que alterou definitivamente o rumo de suas vidas.34
Entregaram-se a uma fase de miltância intensa nos anos 1931 a 1933. Juntos,
criaram e editaram o semanário O Homem do Povo, jornal de efêmera duração
que contou com a colaboração de Astrojildo Pereira, então recém afastado da
secretaria-geral do partido que ajudara a fundar em 1922.35 Pagu e Oswald

31 Jardim, Eu sou trezentos, pp. 107-109. Ver também Mário de Andrade, Táxi e crônicas no Diário
Nacional (São Paulo: Duas Cidades/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976). Sobre as
relações interpessoais entre os modernistas paulistas, ver Miceli, Nacional estrangeiro, pp. 112-116.

32 Ver Maria Eugênia Boaventura, O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andra-
de (São Paulo & Campinas: Ex-Libis & Ed. Unicamp, 1995), pp. 184-185; Fonseca, Oswald de
Andrade, p.300; e Marília de Andrade & Ésio Macedo Ribeiro, orgs., Maria Antonieta d’Alkmin e
Oswald de Andrade: Marco zero (São Paulo: Edusp, 2003), pp. 16-18, 66-69.

33 Oswald de Andrade, Um homem sem profissão: Memórias e confissões. I volume 1890-1919. Sob
as ordens da mamãe (Rio de Janeiro, José Olympio, 1954), pp. 21-34. Ver ainda Fonseca, Oswald
de Andrade, p.294.

34 Geraldo Galvão Ferraz, org., Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão (Rio
de Janeiro: Agir, 2005), pp. 75-76.

35 Ver Aurora Cardoso de Quadros, Oswald de Andrade no jornal O Homem do Povo (tese de
doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, Uni-
versidade de São Paulo, 2009), esp. pp. 29-51. Ver também Valdeci da Silva Cunha, “O Homem
do Povo: Oswald de Andrade e o jornalismo engajado”, Em Tese, v.16 (2010), pp. 36-55.

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O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 191

sofriam com as tensões que regem a relação entre intelectuais e cúpula par-
tidária nas agremiações dedicadas à causa operária, e também com o julga-
mento dos meios burgueses escandalizados com sua ideologia e mesmo com
sua união conjugal. Por conta da desconfiança de uns e do ressentimento de
outros, prevalece certa tendência a questionar a sinceridade do compromisso
de Oswald ou a desdenhar de sua relação com o PCB.36 No entanto, o escritor
manteve-se próximo aos meios comunistas durante quase quinze anos, parti-
cipando de iniciativas jornalísticas, educacionais e teatrais, e só veio a romper
com o partido em 1945 – por ironia, no momento em que o PCB retornava à
legalidade.37 É quase impossível asseverar exatamente o que ocorreu, ou não,
durante o período de clandestinidade do partido, quando prevaleceu esforço
concertado para apagar rastros e encobrir informações. Se Oswald foi ‘bom
comunista de partido’, conforme a formulação de Di Cavalcanti, é questão em
aberto. Que ele era tido como comunista, à época, não resta dúvida.
Ao pronunciar a conferência “O caminho percorrido”, em maio de 1944,
Oswald de Andrade teria sido percebido por seus ouvintes como um opositor
do Estado Novo ou, pelo menos, como uma de suas vítimas. Ao contrário
de tantos intelectuais que colaboraram com os órgãos da ditadura responsá-
veis por distribuir encomendas e cargos – em especial, o DIP e o Ministério
da Educação – o antigo antropofagista detinha a autoridade moral, naquele
momento, para proferir juízos tonitruantes a respeito da conduta alheia.38
Assim, ele não hesitou em aproximar Plínio Salgado e Tristão de Athayde
(pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima) dos “ideólogos do neofascismo
americano”, nem em enaltecer Aníbal Machado e Carlos Drummond de An-
drade por “permanecerem irredutíveis nas suas trincheiras de progresso e de

36 Ver Marcio Luiz Carreri, “Oswald de Andrade e o PCB na década de 1930: Moderno, moder-
nidade e diálogo social”, ANPUH – XXVII Simpósio Nacional de História (2013); e Marcio Luiz
Carreri, O socialismo de Oswald de Andrade: Cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo
na década de 1930 (tese de doutorado inédita, Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2015), pp. 48-63, 120-126.

37 Sobre a relação de Oswald com o PCB, ver Boaventura, O salão e a selva, pp. 154-156, 177-
178, 234-235; José João Cury, O teatro de Oswald de Andrade: Ideologia, intertextualidade e escri-
tura (São Paulo: Annablume, 2003), pp. 46-47; Juliana Neves, Geraldo Ferraz e Patricia Galvão:
A experiência do suplemento literário do Diário de S. Paulo, nos anos 40 (São Paulo: Annablume/
Fapesp, 2005), pp. 44-49; Fonseca, Oswald de Andrade, pp. 228-233, 296-299; e Maria Prestes,
Meu companheiro: 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes (Rio de Janeiro & São Paulo: E-papers &
Anita Garibaldi, 2012), p.60.

38 Sobre o DIP e os intelectuais, ver Mônica Pimenta Velloso, “Os intelectuais e a política cultural
do Estado Novo”, Revista de Sociologia e Política, n.9 (1997), pp. 57-74; e Lucia Lippi Oliveira, “O
intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado Novo”, In: Bomeny, Constelação Capanema, pp. 37-58.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
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democracia”, mesmo “nos piores anos, nos anos de grande traição”. Com a
Europa sob bombardeio intenso dos Aliados e a expectativa de uma invasão
próxima para libertar o continente ocupado pelos nazistas, o público de Belo
Horizonte não teria nenhuma dificuldade de identificar de que lado o escritor
se postava. “Num mundo que se dividiu num combate só, não há lugar para
neutros ou anfíbios,” pontificou Oswald, conclamando os presentes: “Tomai
lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas!”.39
A retórica hiperbólica não se deve apenas à personalidade exagerada do
orador. Cada palavra daquela conferência havia sido calculada para dar sus-
tento à tese central anunciada logo em seu primeiro parágrafo: que a Belo
Horizonte de 1944 estava fadada a concluir a trajetória iniciada em São Paulo
em 1922. A ocasião da palestra era a grande Exposição de Arte Moderna (1944)
– “por iniciativa do prefeito Juscelino Kubitschek de Oliveira e sob o patrocínio
da prefeitura de Belo Horizonte”, conforme anunciava em letras maiúsculas
sem serifa a folha de rosto do catálogo – que trouxe para a capital mineira os
principais nomes do modernismo brasileiro, inclusive alguns que andavam
afastados do favor oficial. Após os anos de vacas magras, em que muitos in-
telectuais e artistas se viram obrigados a escolher entre ficar a serviço da dita-
dura ou deixarem de trabalhar, a gana de JK de patrocinar inciativas culturais
de cunho modernista era um chamariz irresistível. O ‘prefeito furacão’, como
fora apelidado, foi projetado à fama nacional ao fazer construir o conjunto
arquitetônico da Pampulha, entre 1942 e 1944, e já despontava no imaginário
nacional como um político com potencial para alçar voos mais altos.
Para os que nutriam simpatias comunistas, como Oswald de Andrade, o
momento era de uma esperança inebriante. Além do jovem prefeito, simpáti-
co à causa modernista, o fim iminente da Guerra acenava com a promessa de
novos tempos. Os católicos, reacionários e fascistas que vinham dominando
a vida institucional brasileira, havia quase uma década, seriam varridos do
poder pela nova aliança entre democratas e esquerdistas. Confiante da sua
posição, o palestrante se deu ao luxo até de tripudiar Tristão de Athayde por
se ver obrigado a engolir suas pregações antirrussas anteriores e aderir ao que
Oswald chamou de “remada para a esquerda”.40 Naquele momento ímpar
de 1944 para 1945, Moscou e Washington eram aliados lutando juntos para
livrar o mundo de um inimigo em comum: a extrema-direita ultranacionalista

39 Oswald de Andrade, “O caminho percorrido”, In: Oswald de Andrade, Ponta de lança: Polêmi-
ca (Obras completas, v.5) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1971), pp. 99-101.

40 Andrade, “O caminho percorrido”, p.96.

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e racista. Cosmopolita por gosto e internacionalista por ideologia, Oswald


identificava o perigo que o nacionalismo extremado do Estado Novo repre-
sentava para os ideais modernistas. Aos seus ouvintes, avisou:

Querer que a nossa evolução se processe sem a latitude dos países que avan-
çam é a triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas, par-
ticularmente tolerada pela Polícia Especial, e que nos quis infligir um dos
grupos modernistas, o Verde-Amarelo, chefiado pelo Sr. Cassiano Ricardo.41

O nativismo do movimento Verde-Amarelo, velho inimigo da Antropofagia,


encontrara terreno fértil no fascínio dos intelectuais do Estado Novo por
questões de raça e folclore.42 Não somente Cassiano Ricardo ou Menotti del
Picchia, na literatura, mas também as concepções etnográficas de Oliveira
Vianna e Roquette Pinto encontravam portas abertas no gabinete do ministro
Capanema.43 Com a derrocada iminente do eugenismo fascista, Oswald so-
nhava com a retomada do rumo perdido.
A estratégia retórica de “O caminho percorrido” funda-se na tentativa de
construir uma ponte entre o modernismo artístico e o movimento tenentista.
Logo no início da palestra, Oswald de Andrade postula a conexão: “Nunca
se poderá desligar a Semana de Arte que se produziu em fevereiro, do levante
do Forte de Copacabana que se verificou em julho, no mesmo ano.” 44 A
partir daí, ele traça a evolução dos dois movimentos, a passos largos, for-
jando paralelos entre literatura e política. O caminho que ele quer traçar se
desdobra em duas trilhas: a “insubmissão contra os processos políticos que
oprimiam a gente brasileira” e o “aparecimento de um novo personagem no

41 Andrade, “O caminho percorrido”, p.95.

42 Ver Poronominare, “Uma adesão que não nos interessa”, Revista de Antropofagia, II, n.10, In: Diá-
rio de S. Paulo, 12/06/1929, p.10. Ver também Mônica Pimenta Velloso, “A brasilidade verde-amare-
la: Nacionalismo e regionalismo paulista”, Estudos Históricos, v.6 (1993), pp. 89-112; Olivia Maria
Gomes da Cunha, “Sua alma em sua palma: Identificando a ‘raça’ e inventando a nação”, In: Pandolfi,
Repensando o Estado Novo, pp. 257-288; e Luiza Franco Moreira, Meninos, poetas e heróis: Aspectos de
Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo(São Paulo: Edusp, 2001), esp. pp. 90-101.

43 Paulo Knauss, “O homem brasileiro possível: Monumento da juventude brasileira”, In: Paulo
Knauss, org., Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Sette Letras,
1999), pp. 31-33. Ver também Giralda Seyferth, “Os imigrantes e a campanha de nacionalização
do Estado Novo”, In: Pandolfi, Repensando o Estado Novo, pp. 212-218; Maria Stella Martins
Bresciani, O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil
(São Paulo: Ed. Unesp, 2005), pp. 27-28, 348-350.

44 Andrade, “O caminho percorrido”, p.94.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
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romance nacional – o povo”. Para emprestar um mínimo de coerência a essa


interpretação, ele é obrigado a privilegiar os fatos que coadunam com ela. Da
história tenentista, ele enaltece a Revolução de 1924 e a Coluna Prestes. Da
literatura modernista, ele destaca o romance social e a sociologia da década
de 1930. As duas trilhas juntam-se novamente na reta de chegada que é a luta
antifascista presente: “O inimigo está vivo e ainda age”. Em prol da derrota
desse inimigo, Oswald invoca o “compromisso dos inconfidentes”, mesmo
sabendo que para o público mineiro de 1944 a referência à Inconfidência
remeteria mais prontamente aos signatários do Manifesto dos Mineiros do
que ao PCB proscrito.45
O mais fascinante, em termos discursivos, são os marcadores escolhidos
por Oswald de Andrade para pontuar os desvios do tal caminho percorrido.
Com sua verve habitual, ele ridiculariza inimigos como Tristão de Athayde,
que “está tingindo a cabeça de acaju”, e Cassiano Ricardo, que apelida de
“ratazana em molho-pardo”. Mas, também descortina uma perspectiva revela-
dora ao aprofundar sua análise de como o grupo da Semana de 1922 “se bi-
partiu”. De um lado, ele coloca Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Menotti del
Picchia, alinhando-os com “os caminhos que levariam à revolução paulista
de 1932”. Do outro, ele coloca a si e aos companheiros da Antropofagia – “o
ápice ideológico” do modernismo, “o primeiro contato com nossa realidade
política porque dividiu e orientou no sentido do futuro”. Do ponto de vista
de 1944, Oswald reconfigura as disputas modernistas do final da década de
1920 em termos de uma cisão clara de direita versus esquerda – entre os de-
fensores dos interesses das velhas oligarquias e os novos paladinos do povo.
Ele afirma que os do seu grupo, “nos tornamos os vira-latas do modernismo”
após o terremoto político de 1930. “Os vira-latas comeram cadeia, passaram
fome, pularam muros,” mas salvaram “o sentido do modernismo”.46
A narrativa de Oswald de Andrade glorifica a vitória vindoura por meio
de uma leve caricatura dos fatos passados. Quando dos acontecimentos de
outubro de 1930, nem eles, os antropofagistas, estavam tão indentificados
com o antifascismo, e nem o outro lado obteve tanta ascendência assim sobre
os rumos do modernismo no Brasil. Ao contrário, entre 1930 e 1935, o mo-
vimento modernista viveu um período de grande pluralidade de organizações

45 Andrade, “O caminho percorrido”, pp. 97-99.

46 Andrade, “O caminho percorrido”, pp. 96-97.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 195

e lideranças.47 Uma omissão gritante da versão da história contada por ele


é Mário de Andrade. Oswald menciona seu ex-amigo de raspão, para dizer
que foi ele o responsável por lançar o primeiro livro de Mário, mas passa
ao largo de sua influência considerável sobre os rumos do modernismo. A
história contada por Oswald omite, ainda por cima, qualquer menção ao Es-
tado Novo. Trata-se do grande ‘elefante na sala’ do seu discurso – aquilo que
nunca é nomeado, mas que está presente nas entrelinhas de todas as frases.
Ao polarizar a discussão entre os dois extremos do antifascismo vitorioso e do
fascismo derrotado, ele encobre o imenso terreno do meio: o pântano amorfo
de interesses cruzados, acordos escusos e colaboracionismo mais ou menos
descarado que, no contexto brasileiro, engloba a vasta maioria dos agentes.
Se o triunfalismo de “O caminho percorrido” escorrega na caricatura, o
mesmo não pode ser dito com relação ao modo como a palestra encampa
a memória da derrota. Há verossimilhança nos trechos em que Oswald de
Andrade fala que os seus pagaram um “tributo político” ou, ainda, que o es-
pírito revolucionário de 1930 “sangra aqui nos cárceres de Tiradentes que a
América reabriu”. A menção repetida a prisões e presídios culmina, dramati-
camente, em apelo para “que se abram todos os cárceres políticos do Brasil”.48
Dado o contexto ainda vigente de censura e repressão, a fala deve ter causado
arrepios ao público ouvinte. Naquele momento, a legitimidade do orador
derivava não de seu passado modernista, de seus feitos no mundo literário,
mas do seu envolvimento notório com os meios comunistas. Companheiro
de Pagu, Tarsila, Di Cavalcanti – todos os quais sofreram prisão política por
serem de esquerda – e partidário de Prestes e Astrojildo Pereira, Oswald dizia
ali com todas as letras uma verdade que poucos ousavam pronunciar em
público. Nesse sentido, a omissão que ele fez de alguns nomes conhecidos
do modernismo servia para chamar a atenção, por contraponto, aos que se
calavam e continuavam a prestar serviços para os mandatários da violência.

47 Ver Cardoso, “Modernismo e contexto político”, pp. 352-355. Ver ainda Angela de Castro Gomes,
Essa gente do Rio...: Modernismo e nacionalismo (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999), pp. 72-76, 97-103.

48 Andrade, “O caminho percorrido”, pp. 97, 99.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
196 Rafael Cardoso

Entre a cruz e a cadeira de repartição

O epílogo dessa história dos ex-amigos é conhecida. Mário de Andrade mor-


reu em fevereiro de 1945, menos de três meses antes da vitória dos Aliados
na Europa e oito meses antes da deposição de Getúlio pelo movimento militar
que pôs fim ao Estado Novo. Tinha 51 anos e caminhava para o ostracismo,
à margem do aparato oficial e sem ambiente nos meios oposicionistas que
começara a cortejar tardiamente. Sustentava-se nos poucos amigos: os anti-
gos como Sérgio Milliet e Carlos Drummond, e os novos como Álvaro Lins,
Guilherme de Figueiredo e os jovens da revista Clima, que seriam responsá-
veis em boa parte por reabilitar sua reputação póstuma.49 Oswald de Andrade
morreu em outubro de 1954, três meses após o suicídio de Getúlio, aos 64
anos de idade. Viveu para ver o começo de sua reinvenção pelo mesmo grupo
de críticos e ainda teve tempo para polemizar com “o Sr. Antônio Cândido e
seus chato-boys”.50 Decididos a salvar de suas próprias patacoadas “o ser com-
plexo e estranho que é Oswald de Andrade” (no dizer de Antônio Cândido),
os jovens da Clima fizeram o possível para aparar as arestas patriarcais do
escritor e transmitir seu legado para a próxima geração, que o redescobriria
desbundada na década de 1960.51
Outros amigos da mesma geração modernista – Tarsila, Di, Bandeira,
Drummond, Portinari – viveram ainda longos anos. Com exceção de Di Ca-
valcanti, que remexeu um pouquinho no vespeiro com sua crítica ao intelec-
tual conformista, a maioria preferiu anistiar suas memórias. Drummond, em
particular, é um caso que merece ser estudado com maior profundidade. Os
onze anos que passou no seio do regime varguista, como chefe de gabinete de
Capanema, deram lugar a um flerte confuso com o PCB após 1945 e depois
ao apartidarismo e silêncio.52 Conforme sugere Helena Bomeny, seu com-
portamento não pode ser descartado com qualquer explicação circunstancial,

49 Ver Heloisa Pontes, Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68)
(São Paulo: Companhia das Letras, 1998), pp. 23-50; e ainda Antônio Cândido, “O Mário que
eu conheci”, In: Telê Porto Ancona Lopez, org., “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”:
uma “autobiografia” de Mário de Andrade (São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1992) [re-
publicado em Digestivo Cultural, 24/03/2008, http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.
asp?codigo=246&titulo=O_Mario_que_eu_conheci].

50 Oswald de Andrade, “Antes do ‘Marco Zero’”, In: Andrade, Ponta de lança, pp. 42-47.

51 Antônio Cândido, “Prefácio inútil”, In: Andrade, Um homem sem profissão, pp. 9-15.

52 Marcelo Bortoloti, “Drummond e o Partido Comunista”, Blog do IMS, 13/03/2013.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismo brasileiro 197

da ordem da amizade ou da índole pessoal, mas antes precisa ser contex-


tualizado dentro de um movimento maior em que intelectuais se sentiram
compungidos a contribuir para a “montagem de um Estado nacional com
vistas ao estabelecimento de políticas de proteção para esferas importantes
da vida social”.53 Nesse sentido, o dilema de servir a dois senhores, vivido
longamente por Drummond, faz parte da condição corriqueira do intelectual
latinoamericano. Em países onde existe uma relativa falta de solidariedade
entre as elites dirigentes e a coletividade dirigida, a tentação de enxergar o
Estado como tábua de salvação é tão grande que independe, em boa medida,
das feições políticas que o mesmo acabe por tomar.
Os numerosos exemplos da relação entre intelectuais e classe dirigente no
Brasil – seguindo a já clássica formulação de Sérgio Miceli – demonstram
que o chamado ao cargo público é quase irresistível no meio cultural bra-
sileiro. Quantos não passaram a vida a perseguir uma nomeação? Quantos
mais não sacrificaram seus princípios e ideais para manter o cargo depois
de consegui-lo? Nesse sentido, tanto Oswald de Andrade quanto Mário de
Andrade poderiam ser considerados vítimas de um sistema perverso, em que
o único modo de conquistar a independência social seria a serviço do Estado
– porém, com o condicionante de ser interditado exercer em seu seio qual-
quer autonomia intelectual, principalmente no que tange a críticas de ordem
política. A crueldade desse paradoxo fica ainda mais gritante ao comparar o
destino de quem se mantém (ou é mantido) à margem do sistema com aquele
dos conformistas, que se submetem a contragosto, ou mais ainda, com o dos
adesistas que abraçam com entusiasmo a lógica da dominação e do mando.
Preservar a autonomia de ideias, nesse sistema cultural, significa sustentar-se
com dificuldade e tornar-se marginal. Os que fazem essa opção costumam
ficar isolados e, no mais das vezes, acabam esquecidos. Nesse sentido, pelo
menos, os ex-amigos dessa história deram sorte. Inconformados ou confor-
mistas, seus nomes e suas obras ficaram para a posteridade.

53 Bomeny, “Infidelidades eletivas”, p.17. Ver também Lauro Cavalcanti, “Modernistas, arquite-
tura e patrimônio”, In: Pandolfi, Repensando o Estado Novo, p.182.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.179-201, jan.-jun. 2017
Érico Araújo Lima**

Estética e comunidade:
Cezar Migliorin*

ocupar o inacabado

Aesthetics and community:


occupy the unfinished

Resumo
Tentamos aqui fazer algumas indagações a respeito da noção de estética, nos
colocando à escuta de situações com dimensões heterogêneas. Somos provocados
pelo mundo criado em meio às paredes vazadas de um prédio inacabado, ocupado
por estudantes da Universidade Federal Fluminense; somos interpelados pela
experiência de uma passeata em luta pela moradia, sob a repressão da polícia
militar, abrigada pelas imagens e disponibilizada pela montagem do filme Na
missão, com Kadu (2016), de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito.
Na companhia dessas situações, traçamos algumas variações em torno do índice
de indeterminação que o estado estético pode criar, como maneira de possibilitar a
constante disputa pelo presente e por outras formas de habitar um espaço comum.
Apontamos aqui algumas possíveis aproximações à noção de estética, considerada
num paradoxal regime de autonomia e heteronomia com outras forças, contagiada
pelo processo de elaboração de uma comunidade.

Palavras-chave: estética; comunidade; autonomia; engajamento; ocupação.

Abstract
We try to discuss here the notion of aesthetics, listening different situations. We are
provoked by the world created among the opened walls of an unfinished building,
occupied by students of Universidade Federal Fluminense; we are challenged by
the experience of a march in struggle for housing, under the repression of the
military police, an experience that comes to us with the images of a film, On the
mission, with Kadu (2016), by Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de

* Professor de Cinema e membro do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual na


Universidade Federal Fluminense (UFF); e-mail: migliorin@gmail.com.

** Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Flu-


minense (UFF); E-mail: ericooal@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
204 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

Brito. In the company of these situations, we draw some variations around the
index of indetermination that the aesthetic state can create, as a way to enable the
constant dispute for the present and for other ways of inhabiting a common space.
We point here to some possible approaches to the notion of aesthetics, considered in
a paradoxical regime of autonomy and heteronomy with other forces, implicated in
the process of elaborating a community.

Keywords: aesthetics; community; autonomy; engagement; occupation.

1.

Entre o final de agosto e o início de outubro de 2016, estudantes de gradua-


ção da UFF ocuparam um prédio inacabado destinado à construção do novo
Instituto de Comunicação e Artes (IACS), que estava com obras paradas há
cinco anos. Ali se criou um espaço de constante refazimento da sala de aula
e da própria Universidade. Ocupar um prédio inacabado foi inserir-se no
próprio inacabamento da experiência histórica e, com isso, intervir no curso
dela. Paredes vazadas, espaços amplos e hospitaleiros, ainda não marcados
pelas divisões de um projeto elaborado nos anos 19801, faziam com que o
trânsito entre dentro e fora fosse flagrante e introduzisse uma modulação sin-
gular na experiência sensível de uma aula ou de qualquer outra atividade que
se tornasse agente da ocupação daquele espaço. A instituição foi tomada por
um índice de indeterminação que ela não poderia controlar. A cena pública
da Universidade era ocupada, reivindicada, chamada à própria necessidade e
possibilidade de criação que por vezes parece se dissipar no cotidiano insti-
tucional. Subitamente, pessoas que não têm – ou não desejam – a necessária
legalidade institucional ou econômica para estar em um lugar, se organizam e
dizem: este lugar nos pertence. Não no sentido que gostaria o capital – com
seus títulos de propriedade – mas apontando para o fato de que os títulos que
garantem o pertencimento deste espaço a este ou àquele, na verdade, nada
mais fazem que usurpar um teatro, uma universidade, um prédio, do bem
comum. Mais do que demandar a continuidade de obras que tinham sido pa-
ralisadas, a coexistência nesse espaço gerou constantes reflexividades sobre o

1 A ocupação do Novo IACS produziu material a respeito da própria história da construção do


novo prédio, disponibilizada no blog: http://ocupaiacs.blogspot.com.br/2016/09/recomecando-
-pelo-fim-historico-das.html

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 205

gesto mesmo de ocupar e a forma como o espaço, se não determinante para a


experiência, é um forte modulador das experiências desejáveis e possíveis. O
que parece estar em questão nunca é exclusivamente o espaço ocupado. Não
se trata de tornar-se proprietário, mas de permitir uma circulação e um uso
que os espaços proprietários não permitem. No limite, trata-se de fazer do
espaço um agente na imaginação política. Espaço em que se imagina e se age
fora de uma ordem que não para de definir os possíveis para os indivíduos,
cada vez mais separados de pulsões coletivas.
Nossa sugestão: nessa invenção de formas, nesse balançar dos lugares,
nessa dramaturgia outra criada em um espaço, nessa suspensão das destina-
ções previstas para o chão ou para as paredes, há uma matriz estética funda-
mental que se conecta à intervenção política tão constituinte desse gesto dos
estudantes. Poderíamos dizer que a potência política desse gesto tem uma
sustentação fundamental nessas bases estéticas e, simultaneamente, que a
reelaboração das coordenadas sensíveis da Universidade é indissociável do
ato político de engajamento implicado nas práticas ocupantes. Um e outro,
estético e político, se engendram aí numa mesma ação de ocupação-invenção,
que faz surgir uma cena, ali onde os roteiros prescreviam modos muito espe-
cíficos de caminhar e de habitar. O ato de ocupar o inacabado, de intervenção
em uma espécie de ruínas já criadas no presente – Aqui tudo parece/Que era
ainda construção/E já é ruína2 –, nos oferece uma pedagogia: esse gesto nos
ensina a partir das suas práticas sensíveis e da sua constante reflexão ética a
respeito das maneiras mesmas de inventar um modo de estar junto, na tensão
com a Universidade, ao mesmo tempo em que afirmando o desejo por habitar
esse espaço, sob a condição de que ele seja constantemente esgarçado, posto
em desmesura, vazado pelas forças do fora3. A ocupação pode ensinar e fazer
pensar a respeito de um possível gesto da interrupção, capaz de abrir um inter-
valo e acionar articulações imprevistas entre mundos e entre lugares. Ocupar
é introduzir uma descontinuidade entre o previsto nos usos e o imprevisível
da invenção de outras práticas entre os sujeitos, e deles com o espaço. Nesse
corte, nessa cisão, duas operações convivem, em profícua simultaneidade: a
reivindicação de um espaço e a vontade de reelaborar esse mesmo espaço e a
comunidade – virtualmente constituída – que nele pode habitar.

2 “Fora da ordem”, de Caetano Veloso.

3 Durante a ocupação, no momento em que marcamos uma defesa de mestrado do programa de


Pós-Graduação em Comunicação, sobre cinema e questões urbanas, para o espaço ocupado, os
poderes instituídos da universidade foram claros: o título não será outorgado.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
206 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

Este artigo surge abrigado por essas energias vindas de quando se opta por
habitar o inacabado, energias sensíveis e políticas vindas da partilha de aulas
feitas com projeção de imagens nas paredes, de salas de aula onde se dormia,
de rodas de conversa que ocupavam 200 metros quadrados, de filmes e per-
formances que aconteciam entre a cozinha e a sala de aula. Um prédio que
foi posto em defasagem pelo tempo e por uma ocupação gerada em desejos
coletivos. Se nos interessa resgatar esse campo de forças gerado por uma
situação, é porque o pensamento se faz à escuta das situações. É também
porque, justo para a discussão que aqui nos interessa, a consideração sobre o
estético não se exaure na apreciação de objetos da arte, mas tentará enfrentar
os liames que uma experiência estética, em sentido ampliado, traça com os
modos de se fazer comunidade. A conexão entre uma experiência estética e
um devir comunitário pode ser remontada a Kant, com a noção de uma pres-
suposta universalidade não conceitual da noção de belo. Entretanto, se em
Kant a universalidade podia ser pressuposta a partir de uma afecção comum,
o belo, os desdobramentos modernos não antecipam essa afecção para um
devir comunitário. Ou seja, se é possível pensar esteticamente uma ocupação
em termos de uma invenção que forja conexões, afetos, discursos e embates
que se manifestam em processos subjetivos ainda não codificados, é porque
o que conecta esses processos é dado no ato mesmo das invenções sensíveis:
uma nova relação com a instituição, uma reformulação do papel político de
professores e funcionários, uma mudança nas ordens temporais e, claro, uma
liberdade imediatamente política própria à possibilidade de uma experiência
estética com a luta e o cotidiano.

2.

Ocupação Vitória, região da Izidora, entre Belo Horizonte e Santa Luzia, Mi-
nas Gerais. Chegamos a esta ocupação, a partir de um curta-metragem, Na
missão, com Kadu, de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito.
Colocamo-nos à escuta de uma situação, já não como no IACS, pela presença
nas salas de aula ocupadas por estudantes da UFF, como dizíamos no início
deste texto, mas pela mediação que a imagem possibilita, estabelecendo uma
vizinhança entre mundos: o daqueles que ocupam e moram num território
e o daqueles que são convidados a se engajar nessas práticas e lutas mo-
radoras. Aqui também uma ocupação. Desta vez feita por pessoas pobres,
sem nenhum status universitário, e sem a proteção que esse status dá aos
estudantes.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 207

A montagem de Na missão, com Kadu nos apresenta a urgência de um


embate, a tensão vivida por corpos em confronto com a polícia militar de
Minas Gerais, que reprime e atropela sujeitos em luta pelo direito à moradia.
Além de expor essa fratura constituinte de nosso presente histórico – de nossa
história, o filme se organiza ainda para elaborar a própria experiência do ver
junto, nos fazendo pensar a respeito da necessária preparação de um material
para que o espectador chegue, se instale e se conecte com a energia desses
embates e dessas experiências vividas cotidianamente. Ver junto uma imagem
pode permitir uma circulação entre lugares: uma imagem retorna à comuni-
dade e participa das lutas em curso, fortalece as várias formas de resistência
com uma energia política, e ainda é capaz de se endereçar aos que estão em
outo lugar – e que podem, assim, se sentir concernidos pelas questões en-
gendradas nesse visível partilhado. O filme nos engaja em um mundo vivido
por aqueles que moram e ocupam, e também permite uma reflexividade a
respeito da invenção mesma do lugar para o espectador, da dimensão ética e
estética contida no convite para aquele que chega vindo de outro espaço de
morada, engajado também a habitar esse encontro partilhado, que é acionado
pela imagem.
A região de Izidora fica ao norte de Belo Horizonte, já na fronteira com
o município de Santa Luzia, e tem sido historicamente alvo de um forte in-
teresse do mercado imobiliário, ao qual um conjunto de ocupações – Rosa
Leão, Vitória, Esperança – tem respondido com outra lógica de produção
de espaço4. Na missão, com Kadu se insere nessa luta pelo direito à cidade,
conferindo à imagem uma participação direta nos processos de constituição
de um lugar, em articulação com as práticas moradoras que confrontam as
estratégias do capital e do Estado, para despejar milhares de famílias que
habitam um território.
Paula Kimo (2016) já bem salientou a existência de três distintas tempo-
ralidades na estrutura do filme: o tempo da comunidade, quando somos co-
locados na companhia de uma conversa, de Aninha e Kadu, de um cachorro
que perambula o espaço, dos fogos de artifício que convidam para a sessão
de cinema; o tempo do conflito, quando o espectador passa a ver junto com
Izidora o material bruto feito por Kadu durante a repressão à marcha de
moradores que se dirigiam para a sede administrativa do Estado; e o tempo

4 Remetemos aqui a um material de consulta possível a respeito do histórico processo de lutas


na região de Izidora, disponibilizado em página do grupo Indisciplinar, da UFMG: http://oucbh.
indisciplinar.com/?page_id=696. Último acesso: 10/09/2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
208 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

do fim, quando o filme expõe uma cartela preta sobre o assassinato de Kadu,
expondo “o luto da luta” (KIMO, 2016, p.260), convocando também para a
elaboração de uma memória que prossegue a possibilidade de intervenção
no presente.
Essa articulação de tempos distintos nos possibilita ver no filme uma inser-
ção na própria comunidade, para ocupar com ela um espaço e disparar uma
energia possível para seguir uma experiência de constante luta. Na cena inicial
da conversa, Aninha pontua o aprendizado com o episódio de repressão poli-
cial, para adquirir experiência sobre as próprias táticas de resistência – ganhar
experiência e ficar mais forte pra luta, diz ela. A conversa rememora a situação
vivida e, não só isso, vai compondo uma maneira de se relacionar com esse
passado próximo, tomar a experiência histórica para atuar no presente. Pouco
a pouco, é como se o filme se transformasse numa instância para suportar o
peso imposto pelo trauma. O inacabamento e a morte exigem corpos fortes.
Foi fundamental filmar a passeata e a repressão, gesto de Kadu recupe-
rado na parte final, e simultaneamente é preciso pensar como montar essa
experiência – montar, por assim dizer, junto com a comunidade, construindo
um espaço com outros corpos, quando se expõe o material bruto e se filma
a imagem sendo vista, o episódio sendo rememorado, as múltiplas conexões
que aquelas imagens produzidas no dia da marcha passam a ter com os tem-
pos vividos pela comunidade. É como se o filme expusesse na sua montagem
sua própria situação limiar – intimamente conectado ao acontecimento his-
tórico, ao mundo vivido, com um material bruto disposto à comunidade e ao
espectador não morador, quando a heterogeneidade se insere para abrigar o
arquivo produzido em direto, e a montagem vem exercer aqui uma operação
de corte e de interrupção, a pausa necessária para a conversa – aquela que
vemos em cena, mas também a conversa que virtualmente pode sempre ser
traçada entre os sujeitos que olham, entre os espectadores que foram chama-
dos a ver, porque algo deve ser endereçado5.

5 Marie-José Mondzain tem sido uma pensadora das mais instigantes a discutir sobre o trabalho
do espectador e a tarefa do ver junto. Poderíamos aqui retomar uma passagem de uma fala da
autora, ao contextualizar uma escolha de filmes que se propôs a debater em outro contexto, quan-
do elabora a respeito da noção de uma energia política: “Atribuo à emoção, e à emoção política,
um papel fundamental: antes de tudo, os filmes que selecionei me tocaram particularmente. É
enquanto espectadora, e não enquanto filósofa, que tive o desejo de partilhá-los com vocês. Assim,
a energia política dos filmes não concerne apenas aos seus temas políticos, mas também às emo-
ções políticas que eles suscitam, nos colocando na vizinhança com um sofrimento outro, com um
prazer outro, com um mundo outro. Se os temas dos filmes que selecionei remetem a problemas
da atualidade, as suas energias políticas vêm, sobretudo, do fato de que eles me oferecem a pos-

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 209

Junto à força de inserção no seio da comunidade, Na missão, com Kadu


também se monta como essa promessa de engajar um outro que não faz parte
do mundo filmado, que não é coincidente com esse mundo, mas que pode
se tornar um aliado, pode se ver concernido pela experiência de Izidora. Há
um chamado, que perpassa já o ato da tomada – Kadu, câmera na mão, sem-
pre lembrando, e também lembrado pelos companheiros, sobre a necessi-
dade de empunhar a máquina, apontá-la para o policial que tem uma arma
na mão, apontá-la, com o quadro levemente tomado pelas mãos, sugerindo
outro agenciamento entre corpo e câmera, a imagem tendo sua visibilidade
reconfigurada, mas existindo, ainda assim. O ato da tomada assinala a neces-
sidade da presença deste artefato que filma, a câmera: ela se torna aqui uma
instância participante do embate, da caminhada e da corrida, ela ultrapassa
uma ideia mais imediata de um ponto de vista, para carregar uma situação
de corpo. Se esse ato de tomada só emerge, na montagem do filme, após a
preparação para o ver junto, é porque existe uma necessária composição a ser
feita, aquela que articula os diferentes tempos já sugeridos por Paula Kimo
e também outros, que podem ser abrigados na conexão entre os vários mo-
mentos da vida nessa ocupação. É preciso ver o episódio da repressão, mas é
também urgente inseri-lo naquilo que o excede. É preciso ver – e também se
saber vendo com outros. E ainda: é preciso visibilidade, mas com a possibi-
lidade de reminiscência daquele tempo da conversa em que Aninha e Kadu
não só relatam, mas recompõem forças a partir do evento vivido e sofrido,
com o calor da chama de uma fogueira ao fundo.

3.

Se uma concepção de estética não se circunscreve rigidamente a objetos artís-


ticos nem à natureza, uma visada mais ampla para essa questão pode ajudar a
olhar uma forma expressiva no seu extravasamento com a invenção de modos
de ocupar o mundo. Habitar uma obra traz o deslimite mesmo entre obras – de
arte, de vida, de prédio, de cidade. Ao experimentar a escuta de uma situação
instalada na experiência cotidiana, podemos pensar um modo pelo qual a com-
posição de uma comunidade passa por uma dimensão estética. A mobilização
de outro espaço para habitar, numa redistribuições de papéis e de possibilidades

sibilidade de fazer parte do mundo que eles me fazem ver e de nele encontrar meu lugar, minha
legitimidade para existir” (MONDZAIN, 2012).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
210 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

na vida política, se faz de modo inseparável dessa compreensão mais alargada a


respeito daquilo que se refaz esteticamente. Se essa aposta faz sentido, diríamos
que a arte poderia ser aqui pensada em um constante processo de montagem,
que busca retirar dela uma centralidade – já que uma concepção central pode in-
vocar abordagens demasiadamente focadas no trabalho do criador. Nessa pers-
pectiva descentrada, uma investigação em torno do gesto artístico e da compo-
sição da comunidade pode sugerir outras maneiras de olhar as muitas alianças
em jogo na invenção de um espaço do comum: há muitas práticas em curso no
mundo que modulam a elaboração sensível da comunidade. Junto a elas, os
trabalhos artísticos, nas suas variadas estratégias, podem oferecer energias polí-
ticas e uma disposição de corpo, de gesto, de atenção, de liberdade. Não se trata
de uma continuidade entre essas múltiplas maneiras de atuar no mundo, obras
de arte e de vida, mas um contágio permeado pelo intervalo, uma articulação
descontínua – ainda assim, uma afirmação decisiva da relação.
Ao extrair e coletar algo do real, uma imagem retorna ao mundo e ao
espectador uma matéria diferida, defasada. Uma imagem deseja um mundo.
Interessa-nos aqui pensar quais as formas de laço traçadas entre os comparti-
lhamentos vividos por um grupo e uma virtual composição de relações com
outros visitantes. Uma imagem e um espaço podem ser zonas de intervenção
no mundo vivido e no tempo histórico, zonas de convite para uma potencial
reelaboração de modos de vida no campo social. Uma ocupação e uma ima-
gem lidam com o desafio de se endereçar a quem não está imediatamente ali,
no espaço, na imagem: convite para se instalar e elaborar junto uma comuni-
dade a partir de formas em processo de invenção, formas abertas e inacabadas.
Isso nos leva a uma questão que nos é tão cara: que espectador e que comu-
nidade podem ser inventados por um gesto de envio ao mundo? Falamos desse
gesto de invenção do espectador porque valeria conceber a noção de experiên-
cia estética como aquela que não antecipa a pragmática de uma relação, porque
ela seria justo uma modalidade de experiência que complica um horizonte de
efeitos, que suspende a relação entre meios e fins. Isso não significa que não
haveria um porvir no encontro com o estético, mas resta sempre indagar mais
sob quais níveis de indeterminação cada obra se propõe a operar no mundo.
Nossas experiências históricas são atravessadas pela existência de preca-
riedades, vulnerabilidades e sofrimentos colossais variados, que acometem
povos em vários territórios. São intensidades sociais de várias escalas e natu-
rezas, que confrontam e provocam as formas da arte a pensar suas maneiras
de engajamento. Kadu está morto. Entre o estético e o político, a arte tem
buscado trabalhar a paradoxal relação de uma continuidade descontínua com

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 211

o mundo, entre o desejo de carregar-se radicalmente do presente histórico e


a proposição de uma reorganização da vida em comum. Sigamos a trilha de
algumas indagações a respeito dos modos de inventar uma comunidade a
partir das indeterminações do estético.
A aposta entre o estético e a comunidade é dupla. Por um lado, em uma
comunidade sensível algo se faz, algo se troca, algo se conecta, ela opera por
extensão e unidade; por outro, se a experiência sensível se constrói sem uma
relação de causas e efeitos ou de antecipação de seus fins, é a própria comu-
nidade como unidade e extensão que entra em crise. Uma crise que permite
que a comunidade não perca seu vínculo com o que fundamenta o sensível, ou
seja, o sem fundamento – nem o sujeito, nem o capital, nem a própria comuni-
dade. Por um lado, uma sensibilidade extensiva, por outro, uma extensão que
não faz unidade. Uma extensão fragmentada.
Tal especificação nos parece relevante, sobretudo em épocas em que as
políticas identitárias recorrem ao sensível para reestabelecer uma política ne-
oplatônica, apontando para o sensível como uma inscrição na experiência
subjetiva como fundamento para delimitar o dentro e o fora da comunidade.
O sensível não é fronteira, mas justamente esfacelamento dos limites do per-
tencimento, ao mesmo tempo em que traceja um pertencer. Não seria essa a
crítica de Deleuze a Kant? A dimensão sensível não está entre o subjetivo e o
universal, mas entre o universal e o desubjetivado.

J’appelle.
J’appelle.
J’appelle.
Je ne sais qui j’appelle.
Qui j’appelle ne sait pas.
(...)
J’appelle quelqu’un de là-bas,
quelqu’un au loin perdu,
quelqu’un d’un autre monde.6

Se uma obra pode ser constantemente interrogada sobre seus modos de in-
ventar um espectador, talvez possamos nos acompanhar aqui do mote que
nos dá Henri Michaux, a respeito de um chamado, endereçado a não se sabe

6 Em tradução livre nossa: “Chamo/ Chamo / Chamo/ Não sei quem chamo/ Quem chamo não
sabe (...) Chamo alguém de lá, / Alguém perdido ao longe, / Alguém de um outro mundo”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
212 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

quem, em seu poema Primeiras Impressões. Talvez haja um chamado, um


modo de envio, marcado pelo não-saber do porvir, mas contagiado pelo de-
sejo de concernir a um outro, indeterminável, por se inventar.

quelqu’un au loin perdu,


quelqu’un d’un autre monde.

Em alguma medida, a potência política da ocupação do prédio inacabado do


IACS dizia respeito à introdução de uma indeterminação radical, de toada
estética. Ocupando o inacabado, ali se podia inventar outros sentidos para o
inacabamento, tomado como princípio não apenas estrutural, mas sobretudo
como maquinação de outros mundos possíveis. E se sustentarmos nosso ir e
vir com a arte, seria possível conceber o desafio de conexão entre a estética e
as formas da vida social, a partir de um campo de potência que uma obra pode
abrir no mundo, fazendo justo o gesto de interrupção da marcação prevista
dos lugares, do estabelecimento das divisórias entre os espaços, da atribuição
de tarefas e tempos exclusivos aos corpos e a cada meandro de uma cidade.
Para enfrentar essa promessa de interrupção, poderemos nos acompanhar
de uma noção muito cara a um filósofo do qual já estamos separados por
alguns anos, mas que pode nos concernir de um modo forte. Nas suas Cartas
para a Educação Estética do Homem, Schiller nos oferece uma conceituação
a respeito do jogo que em muito se distingue das apropriações capitalistas
do termo ou ainda da ludicidade tão cara a alguns procedimentos das artes
contemporâneas. Trata-se de um livre jogo das faculdades, em termos que
remontam à filosofia de Kant. Tentaremos a seguir enfrentar essas intrica-
das questões, tomando, desde já, o diapasão da famosa passagem contida na
Carta 15: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e
somente é homem pleno quando joga”.

4.

Nesse retorno a um pensador do século XVIII, seria relevante, desde já, ter
como diapasão uma questão: de que trata o edifício filosófico de Schiller e
em que medida ele nos concerne? Podemos, desde já, observar um prosse-
guimento traçado com as formulações kantianas, na sua Crítica da faculdade
do juízo, mas também perceber a preocupação singular em vincular mais es-
treitamente o belo a uma dimensão ética. Schiller preserva aspectos centrais
da beleza caracterizada dentro sistema kantiano, mas o faz numa considerável

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 213

complexificação daqueles elementos fundamentais que Kant postulava para


o belo, a saber: a satisfação desinteressada, a universalidade sem conceito,
a finalidade sem fim, a garantia de um senso comum na satisfação7. Se os
quatro momentos da investigação do belo na filosofia de Kant levavam à
elaboração de uma autonomia do estético, é com Schiller que essa autonomia
passa a adquirir uma dimensão paradoxal. O estético torna-se um momento
fundamental de educação para a vida em sociedade, é aquilo que permite ao
homem conectar-se com sua natureza plenamente humana e a orientar-se
segundo uma postura ética com o outro, considerando a própria conduta na
vida coletiva, o estado estético, torna-se assim um dever.
Como isso é possível, sem que caiamos numa espécie de instrumenta-
lização do estético pelo político ou pelo social? Ou ainda: em que medida
essas inflexões de Schiller seguem certa continuidade com as perspectivas
do desinteresse e da finalidade sem fim, contidas no belo, segundo as propo-
sições de Kant? É que o estético, em Schiller, complica qualquer dualidade
– entre razão e sensibilidade, entre ativo e passivo, entre forma e matéria. Ele
é o estado no qual o ser humano articula suas faculdades e torna-se capaz
de fazer uma passagem para o estado ético. É o momento complicador das
fragmentações e que, como veremos mais adiante, permite implicações do
sujeito com aquilo que o ultrapassa. A estética está intimamente conectada

7 Retomemos aqui, brevemente, apenas para contextualizar, essas relações entre Kant e Schiller.
A Crítica da faculdade do juízo, de Kant, tem toda a sua primeira parte dedicada a caracterizar o
que ele chama de juízo estético, que vai sendo definido, sobretudo, nos quatro momentos em-
blemáticos do primeiro livro da Crítica, a “Analítica do Belo”. Trata-se aí de constituir a natureza
do belo, na sua distinção com outras formas de satisfação, o agradável e o bom. Essa primeira
diferença passa pelo seguinte fato: a satisfação ocorrida com o belo, ao contrário do que se dá com
o agradável e o bom, é sem nenhum interesse. Eis a famosa conclusão desse primeiro momento:
o juízo estético é desinteressado. Ao que Kant vai acrescentar, no segundo momento, que uma tal
satisfação com o belo deve se dar de modo universal e sem conceito: a distinção aqui se dá espe-
cialmente com as sensações ligadas ao agradável, de cunho mais individual, ao contrário do belo,
que contém um “fundamento de satisfação para todos” (§ 6). Para entender essa ausência de con-
ceito, é aqui que Kant usa o termo jogo, que veremos ser tão importante nas discussões de Schiller.
Se a universalidade acontece sem mediação de conceitos, é que ela se baseia em um “livre jogo da
imaginação e do entendimento”. Passando ao terceiro momento, que é também basilar, trata-se
de considerar a beleza como finalidade, sem a representação de um fim: o juízo estético repousa
sobre a finalidade de uma forma ou de um objeto, no sentido da dimensão final que eles adqui-
rem, sem que deles se possa extrair uma consequência, uma ação, um fim. E o quarto momento
retoma a dimensão universal do juízo estético, segundo a ênfase na necessária articulação com um
senso comum: só se pode dizer que algo é belo, quando se pressupõe uma validade universal de
tal afirmação. Esse senso comum, ele enfatiza, não é um sentido externo, mas é, novamente, um
efeito do livre jogo das faculdades. “Somente sob a pressuposição de um tal senso-comum pode
o juízo-de-gosto ser emitido” (§ 20). Falamos aqui, muito brevemente, desses quatro momentos,
mas ao seguir de perto as cartas de Schiller, veremos algumas consequências fundamentais dessas
inferências de Kant, colocadas com novas envergaduras pelo filósofo que o sucedeu.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
214 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

ao pensamento, ao conhecimento, ao saber. É ela o estado de passagem, nos


termos de Schiller, entre o “homem natural” ou “físico” e o “homem ético”.
No edifício filosófico que o autor vai construindo, paulatinamente, existi-
riam três estados vinculados ao homem: o sensível (campo das sensações, do
natural, da pura experiência física com o mundo), o estético e o ético (mo-
mento no qual o homem participa da vida em sociedade, exerce sua liberdade
política, apropria-se das leis do Estado e pode nelas intervir como sujeito
político)8. Nessa estruturação proposta por Schiller, mais que um mediador,
o estado estético é inalienável da possibilidade de um pleno desenvolvimento
da razão (constituinte do estado ético) e das possibilidades sensíveis. Tanto
em Schiller quanto em Kant, o belo é o nome para esse estado estético, que
possui uma dimensão muito mais ampliada do que a pura experiência formal
ou de uma adequação a estruturas de gosto. Dizer belo é, portanto, convocar
toda aquela caracterização já sinalizada por Kant e aqui tomada no vínculo
com uma liberdade política. Tentaremos percorrer a argumentação schilleria-
na para chegarmos mais próximo ao que constitui esse elo.
Toda essa preocupação do filósofo de voltar a atenção para a questão po-
lítica é inseparável também do contexto em que escreve, atravessado pelos
acontecimentos da Revolução Francesa9. A série de cartas já tem início com
uma significativa epígrafe extraída de Rousseau: “Se é a razão que faz o ho-
mem, é o sentimento que o conduz”. E o esforço de Schiller, a cada momento,
será o de sustentar uma indissociável relação entre as faculdades do homem,
articuladas pelo impulso lúdico, pela dimensão do jogo. Diante dessa íntima
relação, é como se pudéssemos nos desembaraçar da dicotomia entre enten-
dimento e sensibilidade, justo porque o estado estético é o que garante ao
homem a potência de abertura a uma zona de possibilidades. Na Carta 22,
Schiller se expressa sobre a estética a partir da ideia de uma determinabili-
dade que pode se atualizar segundo maneiras variadas. “Por não proteger de
modo exclusivo nenhuma das funções da humanidade, ela favorece todas
sem exceção, e se não favorece nenhuma isoladamente é por ser a condição
de possibilidade de todas” (Idem, p.113). Essa determinabilidade implica que
as formas de ação política não estão já previamente circunscritas e propostas

8 “Para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois
é pela beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER, 1995, p.26).

9 É o que nos sugere, especialmente, um trecho da segunda Carta: “Cheios de expectativa, os


olhares do filósofo e do homem do mundo voltam-se para a cena política, onde, acreditam, deci-
de-se agora o grande destino da humanidade” (Idem, p.26).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 215

de antemão. Essa passagem nos é aqui muito cara. As palavras de Schiller


fazem essa clivagem entre a determinação e a determinabilidade, para nos
dizer que o estado estético confere um campo de potência: o estético é aquilo
que possibilita, sem que as possibilidades e as capacidades já estejam assumi-
das para cada indivíduo, como se fosse orientado a assumir um lugar numa
certa regulagem geral da vida coletiva. O estético carrega, então, dizendo já
noutros termos, um alto índice de imponderável, que nos parece constituinte
de uma ação política capaz de reconfigurar aquilo que já foi esquadrinhado e
determinado pelos poderes.
O aspecto da determinabilidade é aqui crucial para melhor compreender
em que medida a ênfase dada pelo filósofo à mediação que o estético faz para
a vida ética não tem nada a ver com conferir uma funcionalidade ao belo e
com uma cisão em relação às proposições anteriores de Kant. Pois, no estéti-
co, pensado em Schiller junto à arte, trata-se, antes, de colocar-se em um esta-
do livre de determinações e de direcionamentos éticos e políticos a priori, que
não sejam assumidos pelo próprio homem, na sua plena humanidade e no
livre jogo que pode operar entre as faculdades. Falando especificamente de
arte, Schiller chega a explicitar que cabe a uma obra desvencilhar-se da limi-
tação de direcionamentos: é como se estar disposto a uma ação particular ou
a uma sensação específica implicasse certo fracasso da experiência estética10.
Se o estético cria, então, uma disposição para a conduta ética do homem e
articula sensação e saber, isso não se dá de maneira mecânica, como se a obra
de arte oferecesse uma sensação, um modo de agir, um saber, uma posição a
tomar diante da vida em sociedade. A vinculação entre o estado estético e o
estado ético não corresponde à elaboração, no belo, de um dever ser para o
homem ou de um conjunto de interditos para a lida com o social. A obra de
arte oferece, isto sim, a condição para a livre travessia por saberes, por modos
de agir, por posições a tomar, por afetos a fruir, tudo isso sendo um campo de
virtualidades, e não um agregado de mundos já transmitido ou determinado
pela obra. Se o estado estético é articulador das faculdades, ele é justo aquilo
que não permite os isolamentos dos impulsos humanos – uma obra de arte
não deve ser encarada nem como “sermão” (puro esquadrinhamento pela
esfera da moral) nem como “bebida embriagadora” (pura deriva da sensação),
para usar figuras mencionadas por Schiller, ao considerar dois momentos de
limitação da experiência do homem. Dizendo de outro modo, o que o estético

10 Ainda na Carta 22, encontramos uma passagem que parece emblemática a esse respeito: “nada
é tão oposto ao conceito da beleza do que dar à mente uma determinada tendência” (Idem, p.116).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
216 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

oferece, nessa educação que lhe é própria, é uma experiência não-esquadri-


nhada e não estabelecida de práticas e saberes, uma atenção e disposição para
a composição da vida política, que deve permanecer, de resto, por se fazer,
à medida em que cada sujeito exerça sua presença na cidade, possibilidade
advinda com a experiência do belo.
Se essa palavra “belo” guarda algumas distâncias dos nossos problemas
contemporâneos, vale extrair muito mais as consequências de Schiller a res-
peito do estado estético, nesse diapasão central da reunião das faculdades hu-
manas. Na escuta de uma experiência estética, a partir dessas proposições, o
que está em evidência é uma rejeição à própria fragmentação entre naturezas
de humanidades, entre capacidades dos sujeitos. E como base dessa emprei-
tada, encontra-se a própria tarefa ética que tenta atingir possíveis conexões
com os outros ao redor, para constituir elementos em comum entre os sujei-
tos. O passo para evitar a cisão entre duas humanidades – uma das sensações
e outra do conhecimento, uma do corpo e outra do espírito, uma do trabalho
material e outra do pensamento – consiste, uma vez mais, em jogar.
E neste momento, o jogo se desdobra ainda mais enfaticamente rumo à
possibilidade de composição da vida coletiva. É no comentário sobre a ocio-
sidade e a aparência livre da estátua grega Juno Ludovisi que parece estar um
elemento central do engendramento entre as formas da arte e a experiência de
comunidade. Nessa passagem emblemática, Jacques Rancière tem destacado
consequências singulares para pensar uma paradoxal autonomia da arte no
que ele chama de um regime estético. Esse paradoxo consiste em manifestar
um sensorium específico, estranho às formas ordinárias da experiência sensí-
vel (RANCIÈRE, 2010, p.24), mas que nada tem a ver com as reivindicações
modernistas da autonomia dos meios. O estado estético vai criar um senso-
rium específico no sentido de que ele não é submetido às hierarquias e distri-
buições organizadas na vida social. Ele tem uma envergadura política, nesse
sentido. O livre jogo é aquilo que complica as demarcações tão fortes na
sociedade e vai permitir que a arte tenha autonomia justo frente às lógicas da
dominação e do esquadrinhamento dos papéis. Essa é a estranheza que a arte
do regime estético adquire diante da vida ordinária: isso não vai implicar uma
autonomia dos meios, porque não se trata de abolir as relações entre a arte e
o mundo, mas de fazer trânsitos complicadores entre os dois, com a potên-
cia de uma redistribuição dos lugares. A atividade gratuita do jogo funda ao
mesmo tempo uma esfera da arte e as condições para criar as formas de uma
nova vida coletiva. A autonomia se dá como maneira de fazer, na experiência
estética, uma defasagem frente às formas de dominação na vida social. Muito

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 217

longe da simples postulação de uma arte pela arte, trata-se da criação de um


sensível heterogêneo, zona diferida e originada de um corte no real, na qual
podem ser articuladas outras composições para o vivível.
No seu comentário para a décima quinta carta, Rancière (2011a) explica
que, em Schiller, o jogo “tem menos a ver com ação e mais a ver com inter-
rupção. Não é o domínio de uma prática, mas a própria quebra do domínio”
(RANCIÈRE, 2011a, p.170). É preciso sustentar a arte enquanto uma reali-
dade contraditória, já não mais segundo a chave de uma forma que determi-
na um objeto a se conhecer nem como o sensível se fazendo em completa
separação dos modos de conhecimento e da racionalidade. “Há a estética no
lugar onde os objetos das nossas representações não são nem objetos de saber,
submetendo os dados sensíveis à lei do entendimento, nem objetos de desejo,
impondo à razão a anarquia da sensibilidade. Este nem... nem... é a fórmula
lógica da esteticidade” (RANCIÈRE, 2011a, p.171). Os objetos da arte pas-
sam a pertencer, assim, a um sensorium específico, que promove o encontro
dissensual entre autonomia e heteronomia da arte, entre querer e não-querer,
entre atividade consciente e pensamento inconsciente. Nas palavras de Schil-
ler: “Se [...] nos abandonamos à fruição da beleza autêntica, então ficamos,
nesse instante e em grau idêntico, senhores de nossas forças passivas e ativas,
e nos viramos, com a mesma facilidade, para a seriedade e o lúdico, para o re-
pouso e o movimento, para a flexibilidade e a resistência, para o pensamento
abstrato e a intuição” (SCHILLER, 1995, p.110).
Ainda que permeado pelos traços do paradoxo, esse sensorium, ao inter-
romper o predomínio de apenas um instinto humano, recoloca a dimensão
mesma de como a arte pode prometer a invenção de uma comunidade. O
senso comum, de que falava Kant, tornou-se senso comum dissensual e
suspensivo (RANCIÈRE, 2011a, pp. 171-175). “No seu regime estético, a
arte é da arte, na mesma medida em que ela é também outra coisa diferente
da arte, o contrário da arte. Ela é autônoma na mesma medida em que é
heterônoma” (2011a, p.175). Essa simultaneidade de autonomia e hetero-
nomia é, certamente, um dos desdobramentos mais complicados que essas
discussões nos colocam.
Transbordando a dimensão das obras artísticas, essa maneira de conce-
ber o estético nos permite olhar também para as implicações que a noção
de jogo traz para a própria articulação da vida em comum. As cartas nos
oferecem passagens significativas dessa preocupação com uma vida coletiva,
sobretudo pela problematização das fragmentações das faculdades e mesmo
das ocupações de cada sujeito, quando este é resumido a uma só função na

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
218 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

sociedade. Esse horizonte de preocupações com a arte de viver ajuda-nos a


extrair de Schiller um conjunto de proposições para pensar os modos pelos
quais o estético permite passagens entre o individual e o coletivo, entre o
singular e o plural, confrontando cada sujeito com aquilo que o ultrapassa.
Uma palavra constantemente usada pelo autor alemão é “espécie” [Gattung],
que parece nos enviar para a participação do indivíduo numa comunidade
ampliada de humanos. Em Schiller, é essa humanidade mesma que se trans-
forma numa medida comum de laço. Sem o estado estético, a experimen-
tação da dignidade fracassa: e se uma dimensão humana não é encontrada
no homem (em si e no outro), perde-se a exterioridade necessária a traçar
pontes entre o pessoal e o político.

Desconhecendo a sua própria dignidade humana, ele está longe de honrá-la


nos outros, e, tendo consciência de sua própria voracidade selvagem, teme-a
em toda criatura que se lhe assemelha. Nunca vê os outros em si, mas somen-
te a si nos outros, e a sociedade, em lugar de ampliá-lo até que se torne espé-
cie, encerra-o mais e mais em sua individualidade (SCHILLER, 1995, p.124).

As cartas de Schiller nos despertam uma preocupação constitutiva: trata-se


de desenvolver atenção e disponibilidade ao desafio de viver com o outro. A
tarefa urgente dessa coexistência consiste em traçar modos de relação que
não se bastem em uma projeção de si no mundo ao redor ou que não se
contentem em encarar um vizinho apenas como ameaça. Falaríamos aqui de
uma força extravasante, já um tanto por nossa conta, para pensar que essas
colocações schillerianas nos chegam como que para cobrar a urgência desse
transbordamento do sujeito, diante dos esforços em se conectar com uma
trama de outros processos subjetivos. Processos esses que necessariamente
não são harmônicos, se mantivermos a dimensão estética em primeiro plano.
Rancière nos instiga a vislumbrar ainda em que medida o estado estético
de Schiller se torna uma perturbação em certa partilha do sensível, na medida
em que rejeita o “cada um no seu lugar”. Um regime estético das artes, nos
termos de Rancière, reelabora essas partilhas e propõe novas relações entre
o fazer e o ver, operando uma transformação dos espaços, dos tempos e das
atribuições de capacidades. Não se deve conceber a transição para o regime
estético apenas como a conquista de uma imanência sensível da matéria, li-
berta da tarefa de cópia. É preciso, mais radicalmente, levar em conta a ma-
neira pela qual o estado estético formulado pelas cartas de Schiller contribui
para toda uma outra visada teórica e política em torno das ocupações e das

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 219

atividades dos sujeitos na vida social. “A ‘educação estética’ do homem pode


ser interpretada como um programa concreto de transformação da vida cole-
tiva” (RANCIÈRE, 2011b, p.17).
Ao retomar, em vários de seus escritos, a análise de Schiller sobre a Juno
Ludovisi, Rancière se interessa por aquele aspecto de uma livre aparência e
de uma ociosidade, que já pontuamos, sublinhando haver aí um nada querer,
que se libera da realização de qualquer meta. Esse aspecto político do livre
jogo é o que arruína todo um sistema de pensamento a organizar formas de
dominação. “Se o ‘jogo’ e a ‘aparência’ estéticos fundam uma comunidade
nova, é porque eles são a refutação sensível dessa oposição entre a forma inte-
ligente e a matéria sensível que é propriamente a diferença entre duas huma-
nidades. [...] A liberdade do jogo se opõe à servidão do trabalho” (RANCIÈRE,
2010, p.26). Esse é o elo que, na própria dimensão estética da arte, Rancière
vai encontrar como base para uma teoria do político que diz respeito à eman-
cipação dos sujeitos sociais face às formas de repartição das capacidades ou
da separação entre os homens do pensamento e os homens da experiência. A
política tem algo a ver, portanto, com os deslocamentos dos lugares atribuí-
dos, com a perturbação nas distribuições dos quinhões, a partir da afirmação
sensível dos sujeitos que não seriam contados no debate público, porque
estariam destinados às identidades que a organização policial estabeleceu.
Colocações de Rancière que ecoam as cartas de Schiller:

A fruição foi separada do trabalho; o meio, do fim; o esforço da recompensa.


Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só
pode formar-se enquanto fragmento; ouvindo eternamente o mesmo ruído
monótono da roda que ele aciona, não desenvolve a harmonia de seu ser
e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera
reprodução de sua ocupação, de sua ciência. (SCHILLER, 1995, p. 37).

É preciso insistir que o sensorium específico instaurado com o regime estético


nada tem a ver com as reivindicações das medialidades específicas de cada
arte, tão cara a críticos como Clement Greenberg. Também não se trata dos
paradigmas que, na arte contemporânea, regem, por vezes, uma concepção
mais imediata de integração entre arte e vida. Como vimos, esse sensorium é
paradoxal, ele é marcado por uma realidade contraditória, entre autonomia
e heteronomia. Trata-se do que Rancière (2011a, p.183) chama de um dis-
sensus communis, aquele senso comum dissensual que é próprio à elaboração
de uma comunidade estética, o que não permite qualquer apaziguamento

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
220 Cezar Migliorin & Érico Araújo Lima

ou fusão. Com todas essas ponderações e complexidades nos trânsitos en-


tre a experiência estética e a composição da vida em comum, parece-nos
importante ressaltar que um trabalho analítico e conceitual junto às formas
expressivas da arte deve estar atento ao que retorna da arte para o mundo,
introduzindo nele variações e se engajando na possibilidade social de operar
re-partilhas, defasagens, crises. “Qualquer que seja a especificidade dos cir-
cuitos econômicos nos quais se inserem, as práticas artísticas não constituem
‘uma exceção’ às outras práticas. Elas representam e reconfiguram as partilhas
dessas atividades” (RANCIÈRE, 2005, p.69).
No que concerne à própria palavra estética, ela não tem aqui uma dimen-
são restrita à forma, mas trata também dos modos de organizar os lugares, ou
de perturbar essas organizações, na vida de todos os dias. Falar em estética,
nesse sentido, não tem a ver com uma teoria da arte, tão somente, mas diz
respeito à configuração de um mundo comum. Esse trabalho da estética, ata-
do à configuração de um mundo comum, nos faz perceber que uma obra, a
partir dos seus modos materiais de aparição, intervém no falável, no fazível,
no pensável, no possível e no provável de uma comunidade.

5.

Abrimos este artigo com duas situações de ação direta: uma ocupação de um
prédio universitário – inacabado e com obras paradas; e o filme Na missão,
com Kadu, que monta imagens feitas por um morador e militante, Kadu, no
calor de um ataque policial aos integrantes de uma ocupação, junto a outros
momentos vividos por essa comunidade – filme que se torna também parte
de um luto. Se nos colocamos à escuta dessas ações/obras vividas no presen-
te, é porque nos parece que elas comportam e renovam as múltiplas facetas
do que hoje reúne a política e a estética. Em ambos os casos, é na troca e
no compartilhamento de uma experiência do tempo e do espaço que uma
comunidade diz de si, elabora formas de sentir e viver. No mesmo gesto, ela
desenha para si um lugar na sociedade, um espaço que transcende os lugares
circunscritos ao vivido pelos grupos, desenha linhas de continuidade entre o
que se passa ali e uma comunidade sensível em devir – espectadores, visitan-
tes, passantes, agentes públicos. As comunidades se forjam assim em um ir e
vir de uma relação sensível com o espaço e o tempo, que precisa jogar, precisa
se ampliar como dever ético, que não é apenas uma acusação, mas um esforço
e uma tensão com outros poderes, ao mesmo tempo em que mantém aberta
a porta da instabilidade do que pode ser feito, dito, sentido. Devolver as

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
Estética e comunidade: ocupar o inacabado 221

imagens ao mundo ou abrir as portas de um espaço ocupado implica a insta-


bilidade mesma do que pode ser visto e sentido, desdobrando-se em estados
éticos e estéticos que não podem ser pré-concebidos. A terra e o caminho
fazem parte da mesma luta.
Junto ao amplo campo de interlocutores que nos acompanharam (ima-
gens, ações diretas, poesias, conceitos filosóficos, etc.), trata-se de pensar as
formas de uma interrupção, de traçar um corte no real, de fazer nele um
intervalo e elaborar uma situação que envia ao outro um desejo de laço, sem
antecipar a forma de construir esse laço. Como colocamos acima, por um
lado, uma sensibilidade extensiva – que contamina, engaja, reverbera, emo-
ciona – por outro, uma extensão que não faz unidade, que não é exemplar,
estável, fechada, justamente porque não pode perder sua potência extensiva.
A experiência estética se torna uma zona para a suspensão das forças que
fixam as capacidades e as posições, para que momentaneamente seja possível
compor outras maneiras de habitar, de circular entre os espaços, de seguir
adiante com as lutas por outras possibilidades moradoras: de um prédio, de
uma cidade, de uma imagem.

Referências

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e Antônio Marques.


2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
KIMO, P. Olha a nossa situação aqui: nós, espectadores, na missão com Kadu. In: VALE,
G. C. (org.). Catálogo do forumdoc.bh.20 anos. Festival do Filme Documentário e
Etnográfico, Fórum de Antropologia e Cinema. 1ed. Belo Horizonte: Filmes de Quin-
tal, 2016, p. 50-52.
MICHAUX, H. Passages: 1937-1963. Paris: Gallimard, 1982.
MONDZAIN, M-J. “Construire un regard politique?”. Agosto de 2012. Fala transcrita da
autora. Disponível em: < http://leblogdocumentaire.fr/cinema-documentaire-lussas-
-seminaire-construire-un-regard-politique-avec-m-j-mondzain-12/ >. Acessado em:
06 set. 2017.
RANCIÈRE, J. A comunidade estética. Revista Poiesis, n.17, p.169-187, jul. de
2011a.
______. A estética como política. Devires – Cinema e Humanidades, v. 7, n.2, 2010.
______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
______. O que significa estética? trad. R. P. Cabral. Projcto Ymago, outubro, 2011b. Dis-
ponível em: < http://www.proymago.pt/Ranciere-Txt-2 >. Acessado em 06 set. 2017.
SCHILLER, F. A educação estética do homem numa série de cartas. Trad.: Roberto
Schwarz e Márcio Suzuki. 3.ed. Iluminuras, 1995.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.203-221, jan.-jun. 2017
“Morder o real”:
Eduardo Pellejero*

o engajamento antes da sua representação

“Bitting the real”:


commitment before representation

Resumo
Em geral tendemos a entender o engajamento da arte a partir de certas formas
de representá-lo, isto é, associado ao programa de um partido político, um projeto
revolucionário, uma perspectiva histórica ou uma posição ética. Mas muitos
artistas falam de um compromisso com o real que precede qualquer formulação
poética ou ideológica. O presente ensaio pretende explorar, a partir do diálogo com
alguns artistas, críticos e filósofos contemporâneos, o que se encontra em jogo nessa
relação com o real muitas vezes passada por alto.

Palavras-chave: Arte; Engajamento; Representação; Real.

Abstract
Usually we understand art’s commitment from the point of view of representation,
this is, associated with the program of a political party, a revolutionary project, an
historic perspective or an ethical position. But many artists talk about a kind of
commitment with the real that precedes any poetic or ideological formulation. This
paper aims to explore, in a dialogue with some contemporary artists, critics and
philosophers, what is at stake in that peculiar relation with the real.

Keywords: Art; Commitment; Real; Representation.

* Professor de Estética do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do


Norte (UFRN); E-mail: edupellejero@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
224 Eduardo Pellejero

-1-

“Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora.


Ficarei com o ovo.”1

Em 1957, Alberto Giacometti afirmava que, desde que começara, praticara


sempre a pintura e a escultura com o único intuito de “morder a realidade”2.
Os ruidosos debates em torno da política da arte e do engajamento dos artis-
tas, que mantemos há mais de cem anos, passam por alto esse compromis-
so de fundo que orienta (sem direção) as aventuras da expressão criadora:
um compromisso com o real que precede qualquer formulação poética ou
ideológica.
Em geral tendemos a entender o engajamento de outra maneira. Pensa-
mos não num engajamento com o real, mas com certas formas de representá-
-lo, isto é, com o programa de um partido político, um projeto revolucionário,
uma perspectiva histórica ou uma posição ética.
Não quero dizer com isto que essas representações não sejam reais (um si-
mulacro, um epifenômeno ou uma superestrutura). Pelo contrário, possuem
uma realidade considerável: condicionam o nosso pensamento, dão forma ao
nosso desejo, determinam os limites da nossa experiência3. O seu problema é
que aspiram à totalização da realidade pela representação - realidade da qual
a representação é só uma parte. Logo, há qualquer coisa de ilusório nelas.
O que insinua a sentença de Giacometti, e em certo modo corrobora toda
a sua obra, é que o compromisso que a arte reclama dos artistas é de uma or-
dem incomensurável com os compromissos que exigem de nós as diferentes

1 Todas as epígrafes pertencem ao espantoso conto de Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”. In:
Lispector, C. A legião estrangeira. Rocco, 2015. Devo a referência a Vitto Bruno do Carmo Dias.

2 Giacometti, Alberto. Réponse à l’enquête de Pierre Voldboudt ‘À chacun sa réalité’, XXº siècle, nº 9,
Junho de 1957, p. 35.

3 Intimidam, diz Alain Badiou: “As realidades da economia do mundo, a inércia das relações so-
ciais, o sofrimento das existências concretas, o veredicto dos mercados financeiros” (Badiou, Alain.
Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017), que se apresentam como epítome do
real, são menos sintomas do real que máscaras do real. Mas não carecem de efetividade; têm um
papel decisivo na hora de considerar o que é possível e o que não é. Constituem conglomerados
de ideias, núcleos de interpretação do verdadeiro, “que constituem o mapa da realidade e com
frequência programam e decidem o sentido da história” (Piglia, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos
Aires: Seix Barral, 2000, p. 49). Exigem o nosso consentimento. Nesse sentido, segundo Badiou,
o lugar que ocupa a economia hoje em qualquer discussão que diga respeito ao real é sintomático
do sequestro do real por algumas formas hegemónicas de representação (p. Xx).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 225

formas de representar o real: um exercício constante do olho e do espírito, da


mente e da linguagem, para afirmar o real, para restituir o real num mundo
povoado de miragens.

-2-

“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. Ver o ovo é a promessa
de um dia chegar a ver o ovo. Olhar curto e indivisível; se é que há pensa-
mento; não há; há o ovo.”

Seja a pintura, por exemplo. A pintura é sempre, antes de constituir uma


figura na história da arte ou uma modulação ao nível do estilo, o resultado
de um encontro com o real - com um modelo, com uma fruteira, ou com o
Monte St. Victoire. Sob todas as suas formas4, a pintura oferece testemunho
de um encontro com o que é, e com o que não é, pelo menos à primeira vista,
visível. Pintar é uma forma de aproximar-se do real a partir do que apare-
ce; aproximação alusiva, indireta, nunca completa, porém capaz de tornar a
experiência significante sem abafar o fundo assignificante sobre o que paira
- “quando uma pintura não tem vida, é porque o pintor não teve coragem de
chegar suficientemente perto”5.
O engajamento com o real, nesse sentido, implica uma suspensão de to-
dos os compromissos que o artista mantém com as convenções estilísticas, as
hierarquias sociais, os projetos políticos, inclusive consigo próprio - com os
seus princípios éticos e poéticos. Logo, comporta o risco da incoerência ou
inclusive da loucura6. O pintor interroga o real com o seu pincel. Se esquece
tudo o mais, talvez o encontre na sua tela7.
Em certo sentido, a sua tentativa está condenada ao fracasso. Depois de
tudo, não se trata senão de pintura. Mas esse não é o seu problema. O seu

4 “A arte não-figurativa não é exceção. Uma tela recente de Rothko representa uma iluminação
ou um brilho colorido que se derivou da experiência que o pintor teve do visível. Quando estava
trabalhando ele julgou sua tela segundo outra coisa que ele via.” (Berger, John. “Passos em direção
a uma pequena teoria do visível”. Em: Bolsões de resistência. Lisboa: Editorial Gustavo Gilli, 2004.)

5 Ibidem, p. 18.

6 Idem.

7 Ibidem, p. 20.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
226 Eduardo Pellejero

problema é como abrir-se ou responder ao apelo do existente, como “entrar


dentro das coisas”8 ou como fazer para que “as coisas se agarrem ao seu pincel”9.
Berger lembra que os animais, quando perdem a visão, são privados do
existente, pelo que vão reduzindo pouco a pouco a sua atividade, até fazerem
pouco mais do que dormir. O que acontece quando nós perdemos o sentido
do existente? Será suficiente levantar a vista para responder a isso? Ou nos en-
contramos já tão despojados do real que, mesmo que o fizéssemos, seriamos
incapazes de notar qualquer perda, qualquer diminuição10? O engajamento
da pintura com o real quiçá seja uma forma de resistir a essa privação para a
qual contribuem as imagens da publicidade e da propaganda, do mercado e
da ideologia11.

- 3-

“Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo
o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se
eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro.”

Porque o engajamento da arte com o real é anterior ao engajamento com as


formas de representação do real, há um realismo próprio da arte, que não
depende das escolhas poéticas, que, de fato, esse realismo de fundo relativiza
ou questiona de modo indireto (e, pelo mesmo gesto, toda a ordem do saber
e do poder). A arte trabalha, como diria Barthes, nos interstícios da represen-
tação - “está sempre atrasada ou adiantada em relação a esta”12.

8 Ibidem, p. 17.

9 Ibidem, p. 21.

10 A questão de se ainda somos capazes ou não da distância crítica necessária para colocar em
causa as representações hegemónicas que incautaram o real é colocado por Badiou a partir do
mito da caverna de Platão: “A alegoria da caverna representa para nós um mundo fechado sobre
uma figura do real que é uma falsa figura. É uma figura do semblante que se apresenta para todos
os que estão trancados na caverna como a figura indiscutível do que pode existir. Talvez seja essa
a nossa situação” (Badiou, A., op. cit., p. 12).

11 Berger pensa a restituição do real pela pintura como uma luta contra as visões convencionalis-
tas e naturalizadas da realidade, assim como contra a captura do desejo por fantasias consumistas.
Também pensa de uma forma similar Hal Foster (Foster, H. O retorno do real: A vanguarda no final
do século XX. São Paulo: Ubu, 2017, p. 157).

12 Barthes, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 19.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 227

A representação é grosseira e o real exige subtileza. A arte habita essa dis-


tância, que vai do que é ou experimentamos ao que é ou já foi dito e pensado
(ou quiçá, como diz Foucault, é essa distância, cavada no interior da própria
linguagem, expondo-a, dispersando-a, trabalhando-a13). Está engajada na re-
presentação do real, mas não esquece que o real não é representável. Daí que
não aspire ao saber, que renuncie ao domínio do real, e que, por um jogo
dialético não formalizável, faça da ignorância e da impotência uma força de
expressão imponderável. Daí, também, que o seu movimento em direção ao
real tenha a forma de um rodeio14 e que o seu pendor para a representação
encontre um contrapeso imponderável na “reflexividade infinita”15 que a ca-
racteriza (algo que, por outra parte, é próprio de toda a experiência estética).

-4-

“A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obri-


gá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria
retangular. (...) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo
a própria vida.”

Seja o caso da literatura. Independentemente dos temas que aborde e dos


estilos que empregue, a literatura é “categoricamente realista”16. Quer dizer:
a literatura é feita de linguagem e, na sua configuração moderna, se define
em grande medida pela experimentação formal. Porém, como Kafka, o que a
literatura persegue é algo mais que a realização da linguagem e a perfeição da

13 Cf. Foucault, M. “Linguagem e literatura” [1964]. In: Machado, R. Foucault, a filosofia e a


literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 142.

14 A literatura é esse esforço que se concreta em cada obra de atingir o fora, mas nenhuma obra
é esse esforço realizado – a literatura é infinita ou impossível (sempre por vir): uma aproximação
assintótica à sua essência (determinada e traída em cada obra): “Dizer: a experiência da literatura
é ela mesma experimento de dispersão, é a aproximação do que escapa à unidade, experiência
do que é sem entendimento, sem acordo, sem direito - o erro e o fora, o inacessível e o irregular.”
(Blanchot, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 301)

15 Barthes, R., op. cit., p. 20.

16 Ibidem, p. 24.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
228 Eduardo Pellejero

forma: o que persegue é “estabelecer a lógica impossível do real”17 (a literatu-


ra também está feita de silêncio18).
Logo, o compromisso da literatura com o real não implica uma renúncia à
sua representação. Para a literatura, comprometer-se com o real é, antes, co-
locar entre parênteses qualquer ideia preconcebida do que o real é, qualquer
forma que se apresente como adequada para a sua representação. Sendo que
o trabalho da literatura é o trabalho da forma ao nível da linguagem, o seu
compromisso não pode ser nunca com as formas estabelecidas, nem com os
códigos da língua, nem com a ordem do discurso. O seu único compromisso
possível é com o real19, e é em virtude desse compromisso que é movida a
procurar e criar formas (sempre novas) que o atestem e representem, formas
absolutas de responder às interpelações do real (isso é o que Flaubert cha-
mava de estilo).
Noutras palavras, a linguagem poética não se comporta como um meio
de cifração e decifração para significações disponíveis, mas assume a tarefa
de produzir significações a partir de uma experiência não pautada do mun-
do20. Juan José Saer dizia, nesse sentido, que a tarefa da literatura era assumir
o real em toda a sua complexidade, com as suas indeterminações e as suas
obscuridades21. Para isso, o escritor deve operar uma espécie de epoché, uma
suspensão dos poderes da linguagem e da autoridade do saber, das estruturas
que utilizamos para dar significado ao mundo e sentido à história.
A literatura nos convida desse modo a fazer uma experiência do que é e

17 Piglia, R. El último lector. Barcelona: Anagrama, 2005, p. 57; cf. pp. 13 e 15

18 Não é necessário apelar à mística (nem sequer à mística do real) para pensar no que é e
significa uma literatura feita de (ou a partir do) silêncio. O inexpressado e o inexpressável são
formas desse fundo que a palavra poética sonda na sua tentativa de apreender o sentido que se
insinua no mutismo das coisas e que de alguma maneira pede para ser significado. De um modo
mais geral, o silêncio remete para a contingência, para a ambiguidade do real e a imprevisibilidade
da vida: qualquer coisa que resiste ao simbólico mas perpassa e perturba a ordem dos signos. Por
fim, o silêncio também pode ser pensado sob as formas do obliterado e do reprimido, do silen-
ciado. Evidentemente, esses modos de entender o silêncio não pretendem esgotar as relações que
a literatura trava com o mesmo - a questão do silêncio abre um horizonte de pesquisas para nós.

19 “[A experiência do fora própria da literatura] é a experiência do fora que se abre no interior
da própria linguagem, um fora de todo o discurso significativo que, no entanto, não constitui um
limite da linguagem, dado que se trata de uma abertura que a ilimita do interior.” (San Payo, Patri-
cia. “O ‘fora’ de Blanchot: escrita, imagem e fascinação”. In: Anghel, G. & Pellejero, E. ‘Fora’ da filo-
sofia: As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze. Lisboa: CFCUL, 2008, p. 17)

20 Merleau-Ponty, M. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” [1952]. Em: Signos. São Paulo:
Martin Fontes, 1991, p. 43

21 Saer, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2004, p. 117-119.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 229

significa pensar a intempérie, sem abrigos, isto é, imersos numa realidade


da qual não temos a chave22. As formas correntes da representação tendem
a poupar-nos dessa experiência, oferecem-nos uma chave, mas que não abre
porta alguma - antes, as fecha, confinando-nos aos estreitos limites do prova-
do e do estabelecido.
A ciência é grosseira, a representação é grosseira. A literatura quer ser
sutil. Teima em apreender a verdade incompreensível do existente, opondo,
à ordenação convencional dos acontecimentos e à confiança cega no poder
significante da linguagem, uma palavra solidária do caráter caótico da reali-
dade e dessa vaga flutuação das nossas vidas da qual falava Kafka, isto é, da
existência bárbara, muda, sem significado, das coisas23.

-5-

“Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não


o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma
coisa impossível.”

A experimentação formal que é solidária dessa empresa (condenada a um fracas-


so certo) relança constantemente a linguagem para além das suas figuras históri-
cas (e a nós com ela), multiplica as possibilidades de tratamento da realidade, e
nos submerge na sua turbulência - “desdenhando a atitude ingénua que consiste
em pretender saber de antemão como está constituída essa realidade”24.
Inclusive se o real se define pela resistência que oferece à representação25,
inclusive se o real é refratário à linguagem, a literatura persevera na busca
obstinada de formas menos rudimentares de representar aquilo que, no real,

22 Merleau-Ponty, M. “A linguagem indireta” [1952]. In: O homem e a comunicação. A prosa do


mundo. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1974, p. 101.

23 Vila-Matas, E. Chet Baker piensa en su arte. Barcelona: Debolsillo, 2011, p. 245.

24 Saer, J.J., op. cit., p. 11.

25 Nos seus estudos sobre a psicose, Lacan dirá que “tudo o que é recusado na ordem simbólica,
no sentido da Verwerfung, reaparece no real” (Lacan apud Roustang, François. Lacan - Do equívoco
ao impasse. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 52). E, ao longo da sua obra, o real virá a referir-se
cada vez mais às impossibilidades e aos vazios do simbólico, até, “à força de pensar o real como
sendo o impossível, o inapreensível, o inassimilável, o impensável, ele já não é um obstáculo à
simbolização, à satisfação, à formalização, já não é sequer essa falha que é circundada pela compa-
cidade, toma-se o zero absoluto e não se relaciona com nada” (Ibidem, p. 84).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
230 Eduardo Pellejero

nos perturba ou nos comove, nos mobiliza ou nos põe a pensar26. Já Bergson
advertia que, mesmo quando todas as representações sejam particulares e
arbitrárias, a nossa inclinação a fazer representações é universal e necessária27.
E o próprio Barthes reconhecia que uma das forças da literatura é justamente
a sua força de representação: “Desde os tempos antigos até as tentativas da
vanguarda, a literatura se afana na representação de alguma coisa. O quê?
Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é porque os homens
querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da
literatura”28.

-6-

“Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não
entornar o silêncio do ovo.”

Em todo o caso, perante a impossibilidade de representar o real, a literatura


não retrocede. Essa obstinação define o seu compromisso - um compromisso
com o real, que não deixa lugar para mais compromissos (no fundo, se trata
de um desejo do real que não admite dilação).
Beckett (sóbrio e assertivo): “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra
vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”29.
Bolaño (delirante e desorientador): “A literatura se parece muito a uma
luta de samurais. Só que o escritor não luta com outro samurai, luta contra
um monstro. Geralmente sabe, também, que vai ser derrotado. Ter a cora-
gem, sabendo previamente que vamos ser derrotados, de sair a lutar: isso é a
literatura”30.

26 O real se revela no fracasso ou na ruína da representação, assombra a representação como um


fantasma, diz Badiou, mas, tal como os fantasmas, também exige justiça (justiça e justeza).

27 Cf. Bergson, H. Les deux sources de la morale et la religion. Paris: Puf, 1984.

28 Barthes, R., op. cit., p. 22.

29 Beckett, S. Worstward Ho. Nova Iorque, Grove, 1983.

30 Bolaño, Roberto apud Fresán, Rodrigo. “El secreto del mal y la universidad desconocida, de
Roberto Bolaño”. Em: http://www.enriquevilamatas.com/escritores/escrfresan3.html, 2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 231

Barthes (digressivo e subtil): “Poderíamos imaginar uma história da li-


teratura, ou, melhor, das produções de linguagem, que seria a história dos
expedientes verbais, muitas vezes louquíssimos, que os homens usaram para
produzir, aprisionar, negar, ou pelo contrário assumir o que é sempre um de-
lírio, isto é, a inadequação fundamental da linguagem ao real”31.

-7-

“A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da
galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é
um grande sono. A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhe-
cido é o ovo. Ela não sabe se explicar: ‘sei que o erro está em mim mesma’,
ela chama de erro a vida, ‘não sei mais o que sinto’, etc.”

Não sei se é possível um saber sobre a contingente substância da existência;


quiçá o que acreditamos saber não seja outra coisa que uma ficção, apenas
distinguindo-se dos devaneios da arte pelos investimentos de um poder que
tanto a funda como se funda nela. Mas sei isto: o compromisso da arte com
o real comporta uma atitude diferencial face aos saberes vigentes, em relação
às verdades instituídas, perante a razão dominante, abrindo-nos à multipli-
cidade incandescente da experiência, e pondo à prova a cultura, destruindo
esse verniz convencional que pretende dar conta do existente e do possível, do
vivível e do imaginável.
Tateante, sem imagens preconcebidas de um objetivo ou um fim a con-
quistar32, a arte balbucia palavras e esboça imagens cujo sentido só se revela
a posteriori, nas obras às que dá lugar. Ao mesmo tempo, a sua renúncia ao
domínio das coisas e à posse do saber abala a ordem da representação, as
ideias do real e do verdadeiro que imperam no seu tempo, contribuindo, de
modo enviesado, para o devir da nossa consciência.
Blanchot reconhecia nessa renúncia, que é condição e resultado do desejo
incondicionado do real, um modo essencial da autenticidade não ligado à for-
ma do verdadeiro33. Na sua aproximação indefinida ao real, que é recusa das

31 Barthes, R., op. cit., p. 24.

32 Saer, op. cit. p. 151.

33 Cf. Blanchot, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 261

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
232 Eduardo Pellejero

figuras da sua domesticação, a arte aponta segundo Blanchot para o outro do


saber e do mundo. Faz ouvir uma voz vinda de algures e, pelo mesmo, projeta
uma sombra crítica sobre a totalidade das representações e dos projetos que
dão forma ao mundo, colocando entre parêntesis as suas redes significantes,
suspendendo o valor das suas categorias e dos seus conceitos, remetendo-nos
dessa forma para um espaço enrarecido, porém real, não permeado pelas
representações da realidade que habitualmente mediam a nossa experiên-
cia da mesma. Blanchot escreve: “é para cada um uma necessidade procurar
desligar-se desse mundo, e é uma tentação, para todos, a de arruiná-lo, a fim
de o reconstruir puro de todo uso anterior, ou ainda melhor, de deixar o lugar
vazio”34.
É importante expurgar a proposição de Blanchot de qualquer conotação
historicista. Enquanto o compromisso com qualquer projeto histórico impli-
ca necessariamente uma tomada de posição no mundo e, portanto, a nega-
ção de tudo aquilo que possa opor-se ao seu livre avanço, o escritor recusa
soberanamente submeter a sua paixão às leis da ação histórica e às partilhas
estabelecidas no mundo, e avança em túnel, como dizia Cortázar35. Destrói
para construir, é certo, mas destrói os seus próprios fundamentos: se trata
de uma violência contra a linguagem, contra as formas tradicionais, contra o
cristal esmerilhado que nos impede a contemplação da realidade, em ordem a que
um sentido apenas latente encontre entre os restos os elementos capazes de
atualizá-lo, tornando-o manejável para o artista e acessível aos outros36.
Alain Badiou coloca isso em termos muito simples. Se a representação
do real é impossível, aceder ao real é converter em possível o impossível.
Isso pode parecer paradoxal, mas só se não tomamos em consideração que
o possível e o impossível só ganham sentido no marco de algum sistema de
representação. É por isso que a relação com o real não tem nunca a forma
do refinamento de um sistema estabelecido de representação, mas a de um

34 Blanchot, M, 2005, op. cit., p. 303.

35 Cortázar, J. Obra Crítica. Madrid: Alfaguara, 1994, p. 66.

36 A arte transmuta o sentido esparso na experiência, mobilizando em seu proveito instrumentos


já investidos – pelo uso – de uma significação comum; nesse expediente, não duvida em colocar
em causa toda a ordem da significação para alcançar tudo aquilo que escapa à linguagem (cf.
Merleau-Ponty, 1974, op. cit.,, p. 64 e 71): “se a pintura está sempre por fazer, as obras que ele
produzirá vão se acrescentar às obras já feitas: elas não as contêm, não as tornam inúteis, mas as
recomeçam; a pintura presente, mesmo se só foi possível por todo um passado de pintura, nega
muito deliberadamente esse passado para poder ultrapassá-lo de verdade. Ela só pode esquecê-lo
para poder libertar-se verdadeiramente dele: apenas pode esquecê-lo aproveitando-o” (Ibidem,
p. 109).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 233

acontecimento que “faz a formalização se desvanecer momentaneamente em


proveito do seu real latente”37. A ruína da representação se impõe para que
o impossível de ser representado venha à representação38. E não há nenhum
mistério nisso, ainda que possa implicar um imenso trabalho e inclusive
grandes sacrifícios: trata-se de praticar o deslocamento mínimo imprescin-
dível para encontrar um ponto fora do marco da representação a partir do
qual o impossível de representar deixe de sê-lo (outras coisas o serão, é certo,
mas esse é outro problema que diz respeito à desconstrução da superstição
do progresso). Como nas Investigações de um cão, é necessário abandonar a
matilha para morder o real39.
Quando a arte é fiel a esse imperativo, cumpre uma função anti-ideológica
fundamental40 e oferece uma resistência imponderável às reduções sumárias
da realidade que tendem a barrar a contingência radical sobre a que paira a
nossa existência. O engajamento da arte não assume (não pode assumir) a
forma de um posicionamento ideológico, como observa Hans Lehmann, mas,
contribuindo para desfazer as representações que canalizam o nosso desejo e
a nossa imaginação, nos convida a assumir o nosso próprio destino e a tentar
moldar o nosso futuro41.
Notavelmente, e tal como já mostrara Sartre, o compromisso da arte com
o real passa por um movimento de desrealização. Em geral o real se manifesta
como o horizonte da nossa situação, como a distância que nos separa de nós
mesmos, como o conjunto dos obstáculos que nos separam de nós mesmos,
não como “uma exigência dirigida à nossa liberdade”. A arte procura apre-
sentar o mundo, pelo contrário, não como uma totalidade fechada, historica-
mente sobredeterminada, mas como um processo, como um devir; e também

37 Badiou, A., op. cit., p. 33.

38 Foucault dizia num sentido similar que a ficção (conceito que recebe um tratamento dife-
rencial na sua obra) faz com “que o mundo não pare”, entregando-o a “uma nova juventude”,
“restituindo ao rumor da linguagem o desequilíbrio dos seus poderes soberanos” (Foucault, M., op.
cit, p. 504).

39 “O real tem sempre a forma de um exílio (...), ele supõe que nos afastemos da vida ordinária,
da vida comum.” (Badiou, op. cit., p. 41)

40 Düesberg, F. A experiência trágica por Hans-Thies Lehmann na encenação ‘Estrada V’ baseada em


Heiner Müller. Natal: UFRN, 2017, p. 12.

41 Lehmann, H-T. apud Düesberg, F., op. cit., p. 13.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
234 Eduardo Pellejero

como uma tarefa42: a tarefa excessiva e, contudo, propriamente humana de


“fazer vir ao ser, num movimento incondicionado, o objeto único e absoluto
que é o universo”43.

-8-

“O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe.


Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está
querendo outra coisa: está com fome.”

A arte não deposita o real nas nossas mãos como um pertence. Ao contrário
da representação, não tenta pacificar o combate que permeia toda a lingua-
gem - um combate entre as palavras e as coisas, ou, de modo mais geral,
entre o real e os artifícios que produzimos para dar conta do real (artifícios
dos quais depende não apenas a nossa compreensão do mundo, mas também
a nossa vida, o nosso ser no mundo). Inclusive quando abre espaço para a
beleza, isto é, para uma experiência do real à escala humana44, sempre há
algo nela que não deixa de apontar para aquilo que, insinuado através de mil
deslocamentos, resta sempre velado pelos artifícios da forma. Daí a sua lin-
guagem indireta (Merleau-Ponty), o seu olhar enviesado (Blanchot), as suas
imagens esburacadas (Foster), e a sua incessante tentativa de deixar entrever
o fundo informe sobre o qual toda obra ganha forma45.

42 Isto é assim porque a dialética da qual depende a arte para devir-mundo e fazer sentido impli-
ca o engajamento do leitor, do espetador ou do ouvinte.

43 Sartre, J-P. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 2004, p. 49. Não é secundário notar que o
pathos próprio da experiência estética é, segundo Sartre, não o prazer, mas a alegria, isto é, um
sentimento intenso da nossa liberdade, da nossa capacidade para agenciar e re-agenciar os signos
e as coisas.

44 A arte também pode tentar domesticar o real. Isto não é necessariamente tão ruim como
pode parecer. Oferecer-nos do universo uma experiência à escala humana está entre as coisas que
definem a arte desde as suas origens. Porém isso não significa necessariamente um descuido para
com o real, não implica que a arte não seja nesses casos perturbada pelo real (cf. Foster, op. cit.,p.
141). De novo, há um compromisso com o real quando a arte é autêntica, a arte está ao serviço do
real (Ibidem, p. 145).

45 Hals Foster se pergunta: o que pode significar representar o irrepresentável, expor na cultura o
que se opõe à cultura, trazer o inconsciente à consciência? Deslocamentos, sempre deslocamentos
(metáforas, metonímias, sinédoques, condensações, anamorfoses, etc.).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
“Morder o real”: o engajamento antes da sua representação 235

Evidentemente, o real é tanto ocultado como revelado pela arte - e exis-


tem todo o tipo de variantes poéticas nesse sentido. Mas levados a pensar no
sentido possível de uma politização da arte, talvez não seja indiferente cha-
mar a atenção sobre a necessidade de um engajamento que diga respeito ao
real e não aos compromissos que assumimos em nome das ideias46.
Por fim, devemos atender, sempre, antes que à politização da arte, ao de-
sejo do real47 que assombra os artistas na época que é a nossa, e faz das suas
obras uma tentativa de extorquir à forma aquilo que as formas à nossa dispo-
sição não comportam48.
Era disso que falava Giacometti quando remetia à sua fome toda a política
do seu labor artístico: “Certamente, pratico a pintura e a escultura, e isso des-
de a primeira vez que desenhei, para morder a realidade, para defender-me,
para alimentar-me, para crescer; crescer para defender-me melhor, para atacar
melhor, para agarrar-me com unhas e dentes, para avançar o mais possível em
todos os planos, em todas as direções, para defender-me da fome, do frio, da
morte, para ser o mais livre possível; o mais livre possível para tentar - com os
meios que hoje me são mais próprios - ver melhor, compreender melhor o que
me rodeia; compreender melhor para ser o mais livre possível, crescer o mais
possível, para gastar, para entregar-me ao máximo no que faço, para correr a
minha aventura, para descobrir novos mundos, para fazer a minha guerra”.

Referências

BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2013.
BECKETT, S. Worstward Ho. Nova Iorque: Grove, 1983.
BERGER, J. Passos em direção a uma pequena teoria do visível. In: ______. Bolsões de
resistência. Lisboa: Editorial Gustavo Gilli, 2004.
BERGSON, H. Les deux sources de la morale et la religion. Paris: Puf, 1984.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

46 Cf. Raulet, G. Le caractere destructeur, Esthettique, tehologie et politique chez walter benjamin.
Paris: Aubier, 1997.

47 Por exemplo, em Passolini: “Já na própria vida de Pasolini aponta o que eu chamaria de o
tormento solitário de uma busca desesperada pelo real” (Badiou, A., op. Cit., p. 37).

48 Ibidem, p. 40.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
236 Eduardo Pellejero

BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CORTÁZAR, J. Obra Crítica. Madrid: Alfaguara, 1994.
DÜESBERG, F. A experiência trágica por Hans-Thies Lehmann na encenação ‘Estrada V’
baseada em Heiner Müller. Natal: UFRN, 2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.223-236, jan.-jun. 2017
Pedro Hussak van Velthen Ramos*

“Onde há democracia, há também,


em princípio, estética”: Jacques Rancière
e as novas dinâmicas de organização social

“Where there is democracy, there is also,


in principle, aesthetics”: Jacques Rancière
and the new dynamics of social organization

Resumo
Este artigo pretende esclarecer a posição de Jacques Rancière em relação às novas
dinâmicas de organização social, particularmente a relação do seu pensamento
com as grandes manifestações ocorridas no início desta década como a primavera
árabe, o occupy wal street e o 15M espanhol. Em comum, estas manifestações
revelaram uma recusa da política institucional, apostando na autonomia dos
movimentos de rua. Para Rancière, verifica-se hoje uma crise de representação,
revelada no fato de que tais movimentos não foram organizados por partidos,
sindicatos, organizações, etc., mas revelaram a presença da política de qualquer
um. Rancière percebe ali uma nova maneira da realização da democracia fora da
esfera estatal, o que o leva a identificar uma relação profícua entre estética e política,
pois tais manifestações operam uma reorganização da esfera da visibilidade na
medida em que é colocado em jogo um consenso sobre um conjunto de evidências
sensíveis. Por isso, uma manifestação política hoje ganha ares de uma performance
artística, não porque a estética deva substituir-se às reivindicações políticas reais,
mas porque a ausência de uma direção política centralizada libertou a imaginação
política. Tais considerações são a ocasião para discutir as concepções de momento
político e cena, encaminhando para o esclarecimento do paradoxo inerente ao
pensamento de Rancière entre a necessidade da ação política como a única maneira
de se apontar para a transformação social e a ausência de uma teoria que saiba o
sentido da História a fim de poder orientar esta mesma ação política. Finalmente, o
artigo situa as críticas de Rancière com relação às noções de hegemonia e estratégia.

Palavras-chave: Rancière; Filosofia Francesa contemporânea; Estética.

* Professor de Estética, Programa de Pós-graduação em Filosofia na Universidade Federal Rural


do Rio de Janeiro (UFRRJ); E-mail: phussak@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
238 Pedro Hussak van Velthen Ramos

Abstract
This article intends to clarify the position of Jacques Rancière in relation to the new
dynamics of social organization, particularly the relation of his thought with the
great manifestations occurred at the beginning of this decade as the Arab spring,
the occupy wal street and the Spanish 15M. In common, these manifestations
revealed a refusal of the institutional policy, betting on the autonomy of the street
movements. For Rancière, there is a crisis of representation today, revealed in the
fact that such movements were not organized by parties, unions, organizations,
etc., but revealed the presence of the politics of anyone. Rancière identifies a new
way of achieving democracy outside the state sphere, which leads him to identify a
fruitful relationship between aesthetics and politics insofar as such manifestations
operate a reorganization of the sphere of visibility in the sense that a Consensus on
a set of sensitive evidences. Therefore, a political manifestation today gains the airs
of an artistic performance, not because aesthetics should replace the real political
demands, but because the absence of a centralized political direction liberated
the political imagination. Such considerations were the occasion to discuss the
conceptions of political moment and scene in order to clarify the paradox inherent
in Rancière’s thinking between the necessity of political action as the only way to
point to social transformation and the absence of a theory of the meaning of history
in order to guide this same political action. Finally, the article situates Rancière’s
critiques of notions of hegemony and strategy.

Keywords: Rancière; Contemporary French Philosophy; Aesthetics.

Rancière notabilizou-se, nos seus escritos políticos recentes, por ter ultrapas-
sado os limites da academia e influenciado também parte considerável do mo-
vimento social. Esta aproximação deu-se, entre outros motivos, porque seu
pensamento político identificou ser possível constatar, no momento em que
vivemos, falando de maneira geral, um abismo entre o sistema político e as
demandas da sociedade. Isto se dá, tal como nos é relatado em O ódio à demo-
cracia, porque o sistema representativo, na verdade, foi feito não com a ideia
do poder da maioria, mas, ao contrário, para que uma minoria governe, ou
seja, no fundo, a democracia representativa não é outra coisa senão a perpetu-
ação das oligarquias que querem reduzir toda a dimensão da cidadania ao voto.
Neste quadro, no plano da mobilização das lutas, verificou-se nos últimos
anos, guardadas as diferenças dos contextos, um enfraquecimento das orga-
nizações tradicionais, como sindicatos, associações e partidos, e consequen-
temente o aparecimento de movimentos que não se identificam com uma

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 239

institucionalidade, gerando assim um novo sujeito e uma nova prática: a po-


lítica de qualquer um. Sem dúvida, esta hipótese ganhou força com as grandes
manifestações ocorridas em diferentes partes do planeta durante os primeiros
anos desta década: Primavera Árabe; Occupy Wall Street; o 15M espanhol; as
Jornadas de Junho de 2013 no Brasil e recentemente o movimento conhecido
como Nuit Débout na França. Para Rancière, esta emergência dos movimentos
de rua afirma-se como uma contraposição a toda dimensão estatal que hoje
encontra-se totalmente capturada por interesses privados.
Em comum, estas manifestações apresentavam diferenças significativas
com aquelas tradicionais já que uma multiplicidade de pautas acabaram por
negar a ideia de uma direção única nas reivindicações propostas. Além de
uma tendência ao assembleísmo e à horizontalidade nas decisões, novas for-
mas de organização, como a ocupação, surgiram.
Tudo isso implicou o surgimento de uma nova estética das manifestações,
o que leva Rancière, em entrevista de 2014 publicada na revista Aisthe, a
afirmar:

Hoje, toda manifestação ganha o andamento de uma performance artística


tanto pelas performances físicas que fazem os manifestantes como pelas
palavras e imagens que elas vão mostrar na rua. Há uma espécie de apari-
ção de uma democracia estética que se transforma em democracia política
na rua1.

E ainda na mesma entrevista, ele avança:

O problema hoje, na medida em que a esfera estatal é cada vez mais distan-
ciada de toda forma democrática, é que de certa forma pode-se dizer que ali
onde há democracia, há também, em princípio, a estética2.

Nas manifestações de 2013 no Brasil foi possível verificar muitas dessas in-
tervenções no espaço público. Embora se adotarmos um critério institucional
de legitimação não seja possível chamá-las propriamente de “arte”, estas re-
velaram uma potência estética que pode reconfigurar os modos de percepção
da cidade e da política. A este respeito, é bastante significativo o trabalho
do Coletivo projetação que, usando um suporte técnico relativamente simples

1 Hussak, P. Entrevista com Jacques Rancière. Aisthe, v. 7, n. 11, p. 103.

2 Ibdem, p. 104.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
240 Pedro Hussak van Velthen Ramos

– um computador e um projetor –, projetava palavras e imagens que ressigni-


ficam o espaço de sua atuação, como por exemplo, o fato de usar o lado de
um ônibus como uma tela para criticar a precariedade do transporte público.
A ideia de que onde há estética há política remete à ideia de que a pre-
sença de qualquer um no espaço público promove a liberação da imaginação
política, abrindo outras possiblidades para a própria práxis. Sem uma direção
previamente dada, encontramos uma igualdade nas possibilidades de expres-
são, perfazendo assim, dentro da própria ação, um processo que o pensador
francês chamaria de emancipatório.

Crise da representação

Embora frequentemente seja colocado ao lado de Negri e Hardt como um


pensador da assim chamada “crise da representação”, Rancière tem diferenças
bastante significativas com os autores de Multidão. Para o pensador francês, a
aposta na globalização das lutas no contexto da precarização do trabalho e do
aparecimento do “capitalismo cognitivo”3 não é outra coisa senão a aplicação
para o contexto “pós-fordista” da ortodoxia marxista clássica que reza que o
capitalismo possui nele mesmo as condições objetivas de sua superação4. Ne-
gri e Hardt manteriam assim a ideia de que a realidade funciona de uma certa
maneira e que uma correta interpretação desta poderia dirigir a ação política
para a transformação social, ou seja, mantém-se a concepção de um sentido
unívoco na história e que o processo político consiste na aplicação da teoria
que diz o momento da “acumulação de forças”, a decisão sobre os momentos
certos de “avançar” e de “recuar”, etc.
À velha “necessidade histórica” – que foi responsável por muitas das ilu-
sões da esquerda no século XX – Rancière opõe aquilo que ele chama de
momentos políticos. Com este termo, ele não quer dizer que a política aconteça
apenas em alguns poucos e raros momentos, como pode sugerir uma leitura
mais superficial. Ao contrário: “um momento não é simplesmente um ponto
que se desvanece no curso do tempo. Trata-se também de um momentum, um

3 Negri, A.; Hardt, M. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis Marques. 2ª.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

4 Além disso, acrescentaríamos nós, há uma transposição muito rápida de categorias do mar-
xismo sem uma mediação analítica mais elaborada: o partido se converte na rede; o operário no
trabalhador imaterial; a massa na multidão.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 241

deslocamento dos equilíbrios e a instauração de um outro curso do tempo”5.


O momento político é um peso na balança que estabelece um recorte possi-
bilitando a coexistência de temporalidades heterogêneas, em outras palavras,
um tempo anacrônico, warburguiano, em que diversas camadas temporais
podem emergir em um mesmo tempo.
É o caso, por exemplo, de se pensar na nova forma de luta, que ganhou força
no Brasil recentemente com o movimento dos secundaristas, denominada de
ocupação. Diferente da passeata que, na contradição com as forças repressivas,
expressa o movimento dialético da história, a ocupação indica uma indiferença6
com relação à marcha da história. Além disso, a reconfiguração dos espaços
promovida por esta nova forma de luta termina por realizar justamente uma
redistribuição dos modos de ver e sentir, o que sugere uma relação entre estética
e política na medida em que uma dada configuração implica também a definição
de uma certa organização do sensível. A política consiste, neste modo de con-
cebê-la, na criação de recortes espaço-temporais, e por isso o momento político
ocorre sempre quando se rompe com o consenso imposto por um sistema de
evidências sensíveis, possibilitando a imaginação de uma outra forma de relação.
Não é fortuito o fato de Rancière tentar, nos seus últimos escritos, ressaltar
o caráter temporal da partilha do sensível já que, a princípio, foi acentuada
a dimensão espacial da reconfiguração das ocupações, lugares, e modos de
visibilidade. Trabalhar o tempo, estabelecer outros modos de existência, eis o
que caracteriza um momento político.

Cenas de um litígio

Logo no início de O Desentendimento (La Mésentente, 1995), Rancière faz questão


de afirmar que o que ele entende por este conceito é algo diferente daquilo que
Lyotard definiu como o conceito-chave de seu pensamento, o diferendo (Le diffé-
rend), que é desta forma definido no livro que tem o mesmo nome:

5 « Un moment n’est pas simplement un point évanouissant dans le cours du temps. C’est aussi un
momentum, un déplacement des équilibres et l’instauration d’un autre cours du temps ». Rancière,
J. Moments politiques. Paris: La fabrique, 2009, p. 226.

6 A indiferença é uma das noções centrais de Aishtesis uma vez que aponta para a promessa polí-
tica da estética de não fazer nada. Esta noção aparece na interpretação do texto de Winckelmann,
no qual se acentua o fato de o dorso de Hércules representar o momento de descanso do herói
após os doze trabalhos e também o momento em que, n’O Vermelho e o negro, Julien Sorel está
na prisão, feliz por haver se libertado de todas as intrigas feitas por ele no sentido de alcançar a
mobilidade social. Cf. Rancière, J. Aisthesis: Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011,
pp. 19-40 e 61-70.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
242 Pedro Hussak van Velthen Ramos

O denunciante faz sua denúncia diante do tribunal de modo a mostrar a


falta de fundamento da acusação. Há um litígio. Eu gostaria de chamar
diferendo (differénd) o caso em que o denunciante é desprovido dos meios
de argumentar e se torna, por causa disso, uma vítima. Se o emissor, o
destinatário e o sentido do testemunho são neutralizados, tudo acontece
como se não houvesse prejuízo7.

Muito embora ambos os conceitos apontem para uma dimensão disjuntiva,


Rancière insiste no fato de que o diferendo não é um litígio, mas a aplicação
da problemática wittgensteiniana dos jogos de linguagem no plano político.
Assim, o diferendo ocorre quando há a falta de uma regra comum entre dois
sistemas de argumentação dos quais não se pode, portanto, dizer que um é
legítimo e o outro não. Quando uma mesma regra é aplicada para os dois sis-
temas de argumentação, faz-se um dano (tort) a uma das partes. Para Rancière,
contudo, o dano à vítima que o diferendo impõe implica uma tal disparida-
de entre as partes que impossibilita a luta política e a transformação social
que daí adviria, ou como diria Christian Ruby em seu livro sobre Rancière,
L’interruption: “A postulação de um diferendo originário, que leva Lyotard a
celebrar ‘a vítima’ de modo ético, proíbe de circunscrever com pertinência o
funcionamento do desentendimento”8.
Rancière argumenta que a política acontece quando há um desentendimen-
to, mas, à diferença de Lyotard, este conceito não deve ser entendido como o
desencontro entre dois sistemas heterogêneos de linguagem, mas sim o tort que
surge do desencontro entre duas lógicas que não são intercambiáveis – a policial
e a igualitária. Se a polícia consiste na partilha social das ocupações, modos de
linguagem e de visibilidade, tomando a destinação de um corpo para um lugar
como um destino natural, a política, por outro lado, ao reivindicar a igualdade
promove uma reconfiguração na ordem policial. Assim, há um dado muito claro
no pensamento de Rancière: não há política sem polícia, ou melhor, a política
se faz contra a polícia. Isto tem como consequência importante o fato de que o
sujeito político não está prefigurado, mas antes, constitui-se apenas na ação. No
entanto, isso não significa que ele negligencie o problema da linguagem como
aspecto fundamental na construção do litígio com a polícia. Ao contrário, na
base de todo o livro O Desentendimento está a crítica à distinção aristotélica entre
a voz e a linguagem, ou seja, a distinção entre uma esfera que apenas expressa a

7 Lyotard, J.F. Le différend. Paris: Minuit, 2013 [1983], p. 24.

8 Ruby, C. L’interruption: Jacques Rancière et la politique. Paris: La fabrique, 2009, p. 37.

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“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 243

dor ou o prazer e outra que consiste na capacidade de deliberação necessária à


decisão política9. Para Rancière, a política deve ser entendida como um ato em
que aqueles aos quais não é dado o direto à palavra se fazem reconhecer como tal,
e como exemplo disso explicita o modo como o escritor francês do século XIX,
Pierre-Simon Ballanche, romanceia a tomada do monte Aventino pelos plebeus
e a embaixada de Menenius de Agrippa que ao contar uma fábula faz com que
os plebeus retornem a ordem. Na narrativa de Ballache tudo passa pela questão
de saber se há uma cena comum entre os patrícios e os plebeus a fim que eles
pudessem discutir qualquer coisa, já que em princípio a posição dos primeiros
era a de que não há espaço para discutir com os segundos pela simples razão de
que estes não falam, são desprovidos de linguagem. Nesta narrativa, acentua-se
o fato de que no momento em que os plebeus podem compreender a fábula
de Menenius de Agrippa ocorre que eles se tornam fundamentalmente iguais10.
A política ocorre como uma irrupção, ou se quisermos, uma performance
que altera uma certa distribuição dada, por isso Rancière não aceita nem a
diferença arendtiana entre o espaço social e o espaço político nem a dimensão
habbermasiana da ação comunicativa, pois em ambos os casos trata-se de
estabelecer um espaço privilegiado onde pode ocorrer o debate político. De
mais a mais, este debate, no caso de Habbermas, implica o reconhecimento
do outro como um ser capaz de fazer enunciados. Para Rancière, contudo,
o “outro” não é um dado, por isso ele precisa “fazer-se reconhecer” como ser
capaz de enunciados políticos.
Nisso consiste precisamente aquilo que Rancière entende por cena, ou
seja, uma situação singular em que se produz uma performance na qual evo-
ca-se o princípio universal da igualdade, criando sempre uma diferença em
uma situação11.
Pode-se verificar uma cena de igualdade quando Rosa Parker recusa-se a
ceder o lugar, em um ônibus não destiando a negros, a um homem branco
nos EUA em 1955, ou quando a operária Jeanne Deroin, editora de um jor-
nal feminista chamado Opinion des femmes, apresenta-se como candidata à
assembleia de 1848 na França para colocar em causa o conceito do “sufrágio
universal” de uma eleição que vetou a candidatura das mulheres.

9 Rancière, J. La mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995, pp. 17-40.

10 Ibdem, p. 47.

11 A cena é “uma pequena máquina ótica que nos mostra o pensamento ocupado em tecer laços
que unem percepções, afetos, nomes e ideias, em constituir a comunidade sensível que estes laços
tecem e a comunidade intelectual que torna o tecido pensável”. Rancière. Aisthesis, op. cit., p. 12.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
244 Pedro Hussak van Velthen Ramos

Justamente nesse ponto Rancière acredita ter estabelecido o vínculo entre


política e estética já que a ação política implica de algum modo uma conquis-
ta de visibilidade. A cena é um encontro singular que promove uma desidenti-
ficação que produz um recorte no âmbito da experiência sensível, experiência
esta que sempre produz uma narrativa a partir da qual podem nascer outras
narrativas que, circulando livremente, disseminam a igualdade.

A política da arte

Como bem mostra Bernard Aspe, Rancière é bastante claro quanto a demarcar
arte e a política como dois polos que, embora se relacionem, pertencem a
esferas distintas12. A arte não pode realizar a promessa da política, apenas a
política o pode. Disto resulta que a crítica de Rancière à utopia revolucionária
da arte, típica das vanguardas históricas13, consiste em mostrar que esta vai
além daquilo que pode a arte. A utopia estética foi responsável por várias
ilusões, como por exemplo, a ideia de que a arte pode de alguma forma
“conscientizar” o indivíduo e engajá-lo na ação política.
Mas se a arte não deve ser confundida com a política tout court, isso não
significa que ela não tenha uma política que lhe seja própria, apenas que ela
se difere quanto à sua forma de realização.
A política é um modo singular de subjetivação de sujeitos que reconfigu-
ram a distribuição policial dos corpos. Por isso, não há um sujeito político
pré-formado: a política constitui-se no momento mesmo de sua realização.
Em outras palavras, a política depende da ação, de uma ação que produza
uma cena de litígio.
Mas se a política possui uma estética, o que dizer da política da arte? Como
asseveramos, a arte é política não porque um artista defende tal ou qual po-
sição para colaborar com uma determinada causa, mas porque ela é capaz de
produzir um tecido sensível comum.

12 Aspe, B. Révoluiton sensible. In: Partage de la nuit : deux études sur Jacques Rancière. Paris: Nous,
2015, pp. 29-71. Tradução para o português. ___________. Revolução sensível. Trad. Pedro Hus-
sak. Aisthe, op. cit., pp. 61-88.

13 Rancière, J. Le partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La Fabrique 2014. [2000], pp.
26-45.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 245

A política da arte consiste na formação de uma comunidade virtualmente


democrática14. Esta ideia relaciona-se diretamente com o que Rancière enten-
de por revolução estética, ou seja, a circulação livre da letra com a populari-
zação da literatura no século XIX. Os discursos sobre a arte sem uma legiti-
mação prévia sobre quem pode e quem não pode falar sobre a arte revelam
uma igualdade na capacidade de produzir discursos, e os debates e disputas
hermenêuticas que podem surgir em torno da obra podem revelar o quanto
ela é a ocasião da formação de um fórum democrático de discussão. Além
disso, o fato de que com a revolução estética as hierarquias da representação
são quebradas, possibilitando que a arte aborde qualquer tema e represente
qualquer sujeito, mostra, segundo Rancière, o quanto autores politicamente
conservadores, como é o caso de Virginia Wollf15, podem ser emancipadores
em termos estéticos.
A comunidade virtual projeta a igualdade que se deseja construir politi-
camente no plano real. Por isso, a pesquisa nos arquivos do movimento ope-
rário francês, que deu origem ao livro A noite dos proletários, mostra que por
meio da literatura, os proletários entraram em um mundo comum do qual
eles em princípio estavam alijados16. Isto significou um tipo de emancipação
no plano sensível que correu em paralelo à luta pela emancipação no plano
da luta pela transformação social. Longe de analisar o que seria a formação de
uma “cultura proletária própria”, Rancière opta por mostrar como a emanci-
pação se deu na medida em que o acesso à dita “alta cultura” permitiu que ao
adentrar no mundo do inimigo, produziu-se uma espécie de esfera comum,
na qual justamente os conceitos de “alta” e “baixa” cultura desapareciam.
Por isso, se as recentes manifestações, como foi discutido anteriormente,
apropriam-se de operações da arte contemporânea, de modo algum elas de-
vem substituir a dimensão propriamente reivindicatória da ação política. Por
outro lado, tais expressões são capazes de produzir modos de percepção capa-
zes de estabelecer um elemento comum, e um tecido sensível no qual os dese-
jos e anseios de transformação no plano político e social podem reconhecer-se.
Desta maneira, o pensamento de Rancière estaria longe de aproximar-se de
uma proposta de arte-ativismo que visa efetivamente à inserção da arte na dimen-
são da ação. Consequentemente, a ideia de uma ação direta lhe seria estranha, e

14 Rancière, J. La mésentente, op. cit., p. 88.

15 Rancière, J. Le fil perdu. Paris : La fabrique, 2014, pp. 37-55.

16 Rancière, J. La nuit des prolétaires: archives du rêve ouvrier. Paris: Fayard/Pluriel, 2012 [1981].

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
246 Pedro Hussak van Velthen Ramos

o ataque “estético” a “símbolos” do capitalismo, algo pueril. Se se deve falar em


uma eficácia política da arte, esta não se dá quando ataca diretamente o muro,
mas na medida em que ela é capaz de produzir pequenas rachaduras nele.

Melancolia de esquerda

Depois de 1989, verificou-se um efeito profundo no movimento e no pensa-


mento de esquerda uma vez que a promessa de uma sociedade justa e igua-
litária deu lugar a sistemas burocráticos e totalitários. Todas as lutas revolu-
cionárias que mobilizaram o século XX pareciam ter sido em vão, e o ímpeto
pela transformação social através da política converteu-se em um desencanto.
Se como bem mostra o historiador Enzo Traverso – que recuperou a expres-
são “melancolia de esquerda” de Walter Benjamin – as derrotas da esquerda
ao longo do século XX eram vistas como o prenúncio de uma vitória no fu-
turo, a queda do muro de Berlim, ao menos durante os anos que se seguiram,
pareceu ter significado uma derrota definitiva. Deixou-se de mirar o passado
em vistas das lutas futuras em nome de uma visão que tenta, por meio de
um esforço de memória social, redimir os mortos do passado17. A crença na
necessidade histórica pareceu esvair-se, e ganhou força o discurso do “fim da
história” com a consequente estabilização das democracias liberais.
A melancolia de esquerda que surgiu daí pode ser definida como o sen-
timento ambíguo entre o reconhecimento das injustiças sociais acarretadas
pelo capitalismo e a impotência quanto à possibilidade de mudar este estado
de coisas. Como um pensador que tem se dedicado a discutir os impasses
políticos atuais, Jacques Rancière não se furtou a enfrentar esse tema, como
por exemplo em seu livro sobre o cineasta húngaro Béla Tarr, cujo subtítulo
le temps d’après18 (o tempo de depois) designa justamente a vida “depois” do
fim das ilusões do socialismo.
A consequência desse processo foi a formação de um grande consenso
mundial em torno de um pensamento gerencial que determina a partilha
das ocupações e lugares no mundo globalizado – o neoliberalismo. Assim,
as elites financeiras soprepõem-se aos governos, impondo-lhes medidas de
austeridade, substituíndo a política pela economia.

17 Traverso, E. Mélancolie de gauche: la force d’une tradition cachée (XIXe.-XXIe siècle). Paris : La
Découverte, 2016, pp. 25-70.

18 Rancière, J. Béla Tarr: o tempo de depois. Trad. Luís Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2013 [2011].

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 247

Por isso, Rancière clama pela necessidade da ação política para enfrentar
este grande consenso global, buscando claramente afastar-se do desencanto
que assolou parte da esquerda nos anos 1990, e demostrando uma total con-
trariedade a qualquer tipo de fatalismo.
Por outro lado, em consonânia com sua crítica às organizações sociais tra-
dicionais, Rancière recusa-se sempre a responder (não apenas políticamente
como também em termos estéticos) à pergunta: que fazer? Esta postura rela-
ciona-se com a sua própria trajetória intelectual marcada pelo afastamaneto
de sua vinculação inicial ao círculo althusseriano na França nos anos 1960
até o rompimento total com o seu mestre com a publicação de A Lição de
Althusser19. Ali ele se coloca como crítico ferrenho do marxismo tradicional,
sobretudo no que se refere ao papel que este oferece a uma certa ideia de
partido como uma vanguarda que se arrogaria ao saber do sentido da história,
conferindo-lhe a autoridade de dirigir politicamente a classe destinada a rea-
lizar a revolução – o proletariado. Para Rancière, trata-se de uma contradição
entre o desejo de igualdade presente no marxismo e a postura desigual em
que o partido ou um intelectual se coloca em relação a quem ele “dirige”.
Sem dúvida, a recuperação da proposta do ensino universal do pedagogo Jo-
seph Jacotot em O Mestre Ignorante (1987) constitui uma resposta definitiva
a Althusser na medida em que se alude ali a uma regra para a emancipação
que deve constituir-se mesmo não apenas como um princípio pedagógico do
mestre ignorante, mas sobretudo político – todas as inteligências são iguais20.
Não é difícil reconhecer um paradoxo (aliás, uma dimensão fundamen-
tal do pensamento de Rancière) nestas duas dimensões do pensamento de
Rancière: se, por um lado, ele coloca como tarefa atual o enfrentamento do
niilismo pós-utópico na direção da ação política, por outro, ele recusa o papel
do discurso intelectual como legitimador da ação coletiva.
No seu penúltimo livro, En quel temps vivons-nous? Rancière dá uma pista
de como ele pensa a possibilidade de enfrentar este paradoxo e superar a
melancolia de esquerda. Após citar toda a efervescência dos movimentos dos
anos 1960 e o desencanto com a vitória da “revolução conservara” nos anos
1980, ele afirma:

A não ser que adotemos a posição pueril que consiste em dizer que todas
estas derrotas são excelentes porque varreram todas as ilusões diante da

19 Rancière, J. La leçon d’Althusser. Paris: Fabrique, 2012 [1974].

20 Rancière, J. Le Maître ignorant. Cinq leçons sur l’émancipation intellectuelle. Paris: Fayard, 1987.

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realidade nua da dominação, é preciso partir disso: o primeiro problema


hoje não é tentar mais avançar para ir mais longe, mas ir na contracorren-
te do movimento dominante.21

No livro, Uma conversa com Eric Hazan, Rancière deixa claro que sempre
houve duas opções na luta da esquerda: ou a energia que se volta contra o
poder dominante, ou o esforço da formação de um novo sentido do comum
em paralelo ao poder do Estado. Rancière acredita que a segunda opção – vi-
ver em um outro mundo no próprio mundo presente – esteja mais de acordo
com o que se pode imaginar como a organização das lutas. Em outras pa-
lavras, não se trata mais de lutar para alcançar o poder, mas sim de criar a
comunidade no presente que possa servir como projeção da comunidade que
virá. Neste sentido, não é de se estranhar que movimentos na Europa, com
uma faceta autonomista, tenham encontrado nele uma fonte de inspiração.

Estratégia

Neste sentido, não há dúvida de que Rancière está distante de toda concepção
de luta de conquista de hegemonia, que tem em Gramsci um dos grandes ins-
piradores, mas que hoje ganha uma força renovada graças à defesa de um po-
pulismo de esquerda por pensadores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
Por ocasião de uma conferência de Rancière, na cidade de Universida-
de de San Martín em outubro de 2012, em Buenos Aires, Laclau faz uma
intervenção crítica tocando justamente no ponto22, expondo sua diferença
em relação ao francês, no que toca ao problema do sistema representativo,
ao afirmar que além dos interesses das oligarquias, a representação “puede
representar también algo diferente. Si al nivel de las bases sociales de un siste-
ma encontramos sectores marginales con escasa constitución de una voluntad

21 « A moins d’adopter la position puérile qui consiste à dire que toutes ses défaites sont
excellentes puisqu’elles ont balayé toutes les illusions devant la réalité nue de la domination, il
faut partir de là : le premier problème aujourd’hui n’est pas d’essayer d’aller plus loin en avant
mais d’aller à contre-courant du mouvement dominant ». Rancière, J. En quel temps vivons-nous?.
Paris: La Fabrique, 2017, p. 34. Muito provavelmente quando Rancière está falando que a respos-
ta ao pós-89 não pode ser que a esquerda tem a “vantagem de poder atuar ilusões” é uma referên-
cia a Daniel Bensaïd, a quem Traverso dedica a última parte de seu livro. Cf. Traverso, Mélancolie
de gauche, op. cit., pp. 175-212. 

22 Este debate foi reproduzido no jornal espanhol el diário : << http://www.eldiario.es/interferen-


cias/democracia-representacion-Laclau-Ranciere_6_385721454.html>> acessado em 11/08/2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 249

propia, los mecanismos representativos pueden ser en cierta medida aquello


que permita la constitución de esa voluntad”. Por isso, embora o Estado seja
capturado, seria possível considerar mediações através das quais a vontade
popular pode se expressar no interior deste.
Na mesma linha, Alberto Toscano sustenta que Rancière em última análise
propõe uma “política sem política”, uma vez que a política aparece no seu
pensamento um tanto descolada de como funciona a política na vida real,
na qual é preciso cogitar estratégias, construir consensos para as decisões
coletivas, ter enfrentamentos, etc. Portanto, não seria, nessa perspectiva, de
nenhum modo estranho que o pensamento de Rancière tenha se conduzido
para o campo da estética, cuja relação com a “política” implicaria assim um
afastamento da política real. Afirma Toscano:

Ao fornecer um sentido de pureza e nobreza em derrota, retirando a política


da emancipação (ela mesma dificilmente uma entidade unificada) do campo
estratégico e agonístico, no qual ela iria ser enredada com a política conser-
vadora, de interesse, de desigualdade, de conformidade ou de gestão, faz um
acerto de contas com a dinâmica do fracasso histórico e as possibilidades
de recomposição quase impossível. Questões como tendência, oportunidade,
aliança, estratégia, preparação e assim por diante – ou seja, questões que
têm que ver com a dialética ‘suja’ de construir uma alternativa juntamente
com os meios de implementá-la – tornou-se ininteligível se o que uma pers-
pectiva política emancipatória enfrenta não é uma multiplicidade, mesmo
se em grande parte hostil, campo político, mas simplesmente não-política23.

No fundo Laclau e Toscano tecem a mesma crítica a Rancière, nomeadamen-


te a falta de um horizonte em que se coloque a questão da eficácia política.
Por isso, o pensamento dele não pode dar uma resposta para o problema de
como encontrar uma estratégia que, como ele bem afirma em En quel temps
vivons-nous?, no âmbito da esquerda não era outra coisa senão uma fórmula

23 While providing a sense of purity and nobility in defeat, withdrawing the politics of emancipation
(itself hardly a unified entity) from strategic and agonistic field, in which it would be enmeshed with the
politics of conservation, interest, inequality, conformity or management, makes a reckoning with the dyna-
mics of historical failure and the possibilities of recomposition well-nigh impossible. Questions of tendency,
opportunity, alliance, strategy, preparation, and so on – that is, questions having to do with the ‘dirty’ dia-
lectic of building-up an alternative together with the means of implementing it – became unintelligible if
what an emancipatory political perspective faces is not a multifarious, even if largely hostile, political field,
but simply not-politics. TOSCANO, A. Anti-sociology and its limits. In: BOWMAN, P (Org). Reading
Rancière. London: Bloomsbury, 2011, p. 218.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
250 Pedro Hussak van Velthen Ramos

para “tomar o poder”24. Em outras palavras, Rancière afasta-se da esquerda se


sua “estratégia” consistir simplesmente na disputa pelo Estado, pois apenas a
manifestação autônoma do povo poderia constituir uma oposição ao Estado
sequestrado pelas oligarquias.
Há um écart entre Rancière e as posições de Toscano e Laclau. Mais do
que uma visão de totalidade da concepção da política como disputa de poder,
Rancière prefere ater-se aos efeitos secundários, às fissuras quase impercep-
tíveis nas manifestações políticas que revelam traços positivos, mesmo nas
sucessivas derrotas de que nos fala Traverso. Os proletários de 1830, sobre
cujo movimento Rancière debruçou-se, embora não tenha alcançado o obje-
tivo da revolução, mudaram o estatuto social do trabalho: o que até então era
tratado como um assunto privado passou a ser público; ou então, no que toca
às recentes manifestações, se podemos pensar um efeito político lateral às rei-
vindicações principais – que pessoas queiram ficar juntas no espaço público,
como uma praça por exemplo.
Contudo, pensando com Rancière, mas também tentando vislumbrar for-
mas de sair do impasse representação vesus não-representação, talvez fosse o
caso de considerar outras formas de organização e de construção do comum
como, por exemplo, a construção de plataformas capazes de constituirem-se
como um espaço (não um espaço harmônico, mas um onde tensões possam
emergir, bem entendido) entre o âmbito institucional e o movimento social
autônomo. Embora este rejeite todo o esforço de ser capturado pela teia he-
gemônica de um partido ou de um líder carismático, pode ser permeado
pela institucionalidade, caso esse diálogo seja horizontal, como demonstra o
exemplo das plataformas que constituíram o municipalismo espanhol.

Balanço

Que balanço pode-se fazer dos movimentos dos primeiros anos desta década?
Na verdade, são diversos os resultados. Cada país teve um desenvolvimento
próprio, mas sem dúvida a política desde então transformou-se.
Uma parte da esquerda tradicional considera que eles acabaram sendo
instrumentalizados e terminaram por favorecer a ascensão de grupos con-
servadores ao poder, mas isso constitui uma não-compreensão das novas di-
nâmicas sociais que já não aceitam ser hegemonizadas pelos partidos. Os

24 Rancière, J. op. cit., pp. 30-31.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
“Onde há democracia, há também, em princípio, estética” 251

movimentos sociais constituíram-se como um novo sujeito político e hoje


não há mais como desconsiderar suas demandas e sua forma de atuação.
Por outro lado, entender esses movimentos consiste também em lutar
contra os riscos que a crise do sistema representativo produz, como, por
exemplo, o fato de que políticos de extrema direita apresentem-se como
“não-políticos” e contrários ao sistema, quando na verdade estão totalmente
involucrados com o empresariado e o mercado financeiro. Ou, então, se pen-
sarmos o fato de que na França, hoje, verifica-se uma tendência de que polí-
ticos conservadores prefiram organizar “movimentos” que, com o desencanto
generalizado com política, soam melhor do que “partido”. Ou, ainda, que um
enfraquecimento do sistema político possa minar o sistema de contrapesos da
autonomia entre os poderes e faça com que um poder, no caso o judiciário,
seja excessivamente fortalecido, favorecendo toda sorte de arbítrio contra os
quais o cidadão já não teria a quem recorrer.
Como reagir a isso tudo? Como pensar situações novas sobre as quais
velhas categorias já não dão respostas? Rancière é um pensador que tenta
colocar-se à altura dos problemas políticos atuais, e se ele não fornece “solu-
ções” para a esquerda, isso só revela a necessidade de que os sujeitos atuais
tenham imaginação política a fim de encontrar saídas para o beco em que o
mundo atualmente se meteu.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.237-252, jan.-jun. 2017
Gustavo Chataignier*

Contribuição a uma crítica da representação –


do diálogo engendrado por distâncias

A contribution for the critics of representation –


about dialogue made by distances

Resumo
Entendendo a instância da representação como normatividade apartada da
experiência, tanto no quesito estético quanto no que tange à deliberação da vida
em comum, pretende-se uma aproximação das esferas artística e política. No
intuito de apontar para a ligação entre ambas as dimensões, mobilizamos algumas
reflexões de Jacques Rancière que podem nos levar a uma chave de leitura onde a
arte suspende todo o princípio de ação, ensejando assim uma ruptura na ordem
da percepção e do aparecer. Neste exercício, ao se privilegiar o cinema, encontra-
se ressonância com a literatura, em romances onde o efeito descritivo rompe com
qualquer necessidade de resolução diegética.

Palavras-chave: estética; Rancière; cinema; imagem.

Abstract
Understanding the instance of representation as a normativity separated from
experience, both in the aesthetic aspect and in what concerns the deliberation of
common life, it is intended in this article an approximation of the artistic and
political spheres. In order to point to the connection between these two dimensions,
we mobilized some reflections of Jacques Rancière that can lead us to an explication
where art suspends all principle of action, thus leading to a rupture as weel as in
perception and appearance. In this exercise, when privileging cinema, one can find
resonances with literature, in novels where the descriptive effect breaks with any
diegetic resolution necessity.

Keywords: aesthetics; Rancière; cinema; image.

* Professor do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro (PUC-Rio); E-mail: gustavo.chat.gad@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
254 Gustavo Chataignier

Introdução

Quais são os limites do visível? O mar, uma montanha, o horizonte, além? O


que se vê em um filme? Existe um objeto denominado “filme”? Assim direcio-
nar a pergunta sobre a visibilidade nos encarcera no domínio da reprodução
do existente. Por analogia, significa reportar-se a alguma mercadoria indife-
rente, objeto apreciado tão somente por seu preço, mas certamente agradável
ou emocionante – como “o” livro ou “a” imagem, ao invés de tratar de cons-
truções específicas de linguagem e seu desdobrar no emaranhado histórico
de recepções. Admirar “filmes”, de maneira genérica, equivale a endossar não
somente, em uma leitura por assim dizer mais empírica, critérios atuais e
efetivamente vigentes, mas, além disso, inserir-se em um campo específico da
experiência, chancelando-a, assim, enquanto natural ou mesmo necessidade
histórica. Ao se radicalizar o argumento, chega-se a uma inusitada inversão
de perspectivas, no sentido de se estabelecer a visão como “fato biológico”
ou, por vezes, concomitantemente, atrelá-la à monolítica e dogmática esfera
da crença – intocada, incriada. Ou, se se quiser, aurática. Um crer para ver
que dispensa o acontecimento fundador das potências do visual – e por que
não?,- potências visionárias.
O objetivo desse curto texto não é outro senão apontar para a construção
do visível, segundo uma leitura inspirada em Jacques Rancière e, assim, nos
contrapormos ao dispositivo de compreensão representacional. O termo crí-
tica reclama seus direitos: estabelecer limites. Limites esses não isentos de his-
toricidade, portanto perfeitamente móveis ou imperfeitos. Ressalta-se assim
seu caráter, efetivo, de produção de efeitos para a subjetividade, bem como
formações impessoais coletivas. Uma vez mais aposta-se no imbricamento
necessário entre estética e política, ou, em última instância, entre teoria e
prática. Pois, uma ordem representacional geradora de estabilidade (mini-
mamente necessária para interação e reconhecimento) é também instância de
controle de horizontes, assim tornados imóveis. Historicizar linhas, formas
e contornos também caminha na direção de um ensaio de mapeamento do
campo histórico atual – não só naquilo que se apresenta como norma e legi-
timidade, mas também como novas forças que deslocam sujeitos e coisas e,
portanto, seus desdobramentos no prático e no simbólico.
Manifestações estéticas ou artísticas correspondem (ou melhor: se ligam) a
regimes práticos e suas instituições e criações políticas. Ao afirmar isso deve-
mos ter o cuidado de não repetir o gesto da adequação entre arte e política, do
retorno a uma teoria do reflexo onde a arte não passaria de maquinação cons-
ciente do dominador – em oposição à não menos consciente “espontaneidade”

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 255

e pureza do dominado. Ambas as perspectivas pretendem se bastar em sua


unilateralidade, ou seja, baseiam suas respectivas normatividades em um ho-
rizonte não relacional. Atentemos ao fato de não haver adequação e sim um
regime de determinação ou relações ritmadas, estabelecendo como conse-
quência visões de mundo representacionais e pontos tanto de contaminação
quanto de ruptura. A representação, uma vez absolutizada, freia a experiên-
cia, nos separa do campo do possível. A pergunta do crítico deve ser pela
desidentificação: onde ocorre? Que forças libera? Quem mobiliza?
Ao pensar com Rancière, vê-se que arte, política e filosofia se enlaçam em
um feixe empírico-transcendental, estabelecendo modos e condições de dic-
ção e visibilidade, bem como de atribuição de funções na vida social. Histori-
cizar as condições de possibilidade de pensamento sem no entanto remetê-las
a um telos e a uma arché, eis o desafio. Eminentemente moventes, por assim
dizer, tais condições são obra de um “trabalho do acaso” e da instauração de
rupturas.
Isso posto, começaremos abordando as relações entre arte e filosofia. Em
um segundo momento, teceremos considerações sobre a leitura rancièreana da
sétima arte e suas distâncias e aproximações com as demais formas artísticas.
Em seguida, exporemos as razões do desentendimento, comum à arte e política.

Da arte pensativa

Afirmar que uma imagem pensa é, desde a enunciação da frase, atribuir algo
a mais à imagem, considerada então para além de objeto do pensamento ou
projeção do sujeito. Isso quer dizer, também, que tal imagem é autônoma em
relação a seu criador, e que os efeitos eventualmente produzidos em uma ex-
periência não remetem a uma referencialidade. Ora, o que caracterizaria essa
espécie de imagens? Segundo Rancière, trata-se de uma zona de indetermina-
ção entre o duplo da coisa e a produção artística. Dito de outro modo, tem-se
um locus entre pensamento e não pensamento, atividade e passividade1. Algo
existe, mas não se sabe de antemão as razões de sua existência.
Fotografia, mas também o cinema, relacionam o procedimento mecânico
com a expressividade criadora (e criada). Se a imagem pode ser reconhecida
é porque emite uma “cifra histórica”; por outro lado, para além das variações

1 Rancière, J. O espectador emancipado. Tradução Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2012 A, p.103.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
256 Gustavo Chataignier

de modelos representacionais (apresentação direta do pensamento na tradi-


ção icônica, figuração poética que substitui um elemento para intensificar o
sentido de antemão almejado, à guisa de “ilustração”), a câmera não escolhe
o que registra. Não se esposa aqui, porém, o fetichismo da técnica com nova
roupagem, segundo o qual uma matéria inerte cede à intenção onipotente do
criador graças à sua ação. Mas, antes, é questão de fazer falar os objetos, tratá-
-los como sujeitos, já que se ouve a palavra muda das coisas. Um material não
específico da arte, algo banal ou até utilitário, muda de figura; é, portanto,
desde então interrupção e provocador de indiscernibilidade2. Estabelece-se
uma dialética entre as inscrições dos corpos e seu aparecer bruto. Em suma,
esclarece Rancière, “a imagem da arte separa suas operações da técnica que
produz semelhanças”3.
O “destino das imagens” é estético, termo tomado aqui em um sentido
empírico-transcendental – refere-se ao “modo de ser dos objetos”4. Veja-se
que Rancière fala em destino, e não em “fim”. A compreensão da imagem
propõe uma ontologia histórico-relacional entre “(...) as operações da arte, os
modos de circulação da imageria e o discurso crítico que remete à sua verda-
de escondida [da imagem] as operações de um [do discurso] e as formas de
outra [imagem em circulação]”5. Trocando em miúdos, a imagem “funciona”
num campo de forças, necessariamente aberto ao acaso e explicitado pelo
comentário. Ou, ainda, fenomenologia imagética e historicidade da recepção
operam em regime de determinação recíproca. Assim sendo, a estética não
se oporia a uma “ontologia” enquanto formulação mínima de sentido; sua
circulação impessoal responderia, portanto, a uma partilha epocal, cuja es-
tabilidade é efeito contingente. O próprio à imagem é, logo, a suspensão de
sentido, o engendramento de distâncias: o desconhecimento de si no espelho,
fada morgana tornada efetiva.
Não definimos ainda a referida “pensividade”. O horizonte conceitual é,
de certa forma, kantiano, uma vez que a forma artística nos submete ao que

2 Rancière, J. O destino das imagens. Tradução Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012 B, p.35.

3 Ibidem, p.17.

4 Rancière, J. A partilha do sensível. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo: 34, 2009 A, p.32.

5 Rancière, O destino das imagens, op. cit., p.27.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 257

agrada sem conceito6. Deve-se ater à passividade da recepção do fenômeno,


avessa à intenção. A imagem pensiva, por via de consequência, se caracteriza
pela resistência: tanto à intenção do autor quanto ao desejo de identificação
do fruidor. Ora, o que resiste ao conceito não pode se restringir à arte ou a al-
guma “imagem-tipo” exclusiva. Todo um jogo de separações desloca imagens
e seus elementos que, todavia, se encontram presentes em um mesmo plano
ou enquadramento7. O espaço, longe de ser homogêneo, é o que permite
diferenciações e contaminações – quer seja em um enquadramento, quer seja
a mera relação de dois corpos disparatados. A espacialidade interfere não
apenas no que tange à presença de diferenças, mas à relação entre não identi-
dades. Procedências distintas entrelaçam-se, impedindo que se chegue a uma
“identidade da arte” ou sua transparência a si mesma em obras particulares.
As funções da imagem passam por uma recategorização em uma paradoxal
experiência de opacidade do visível ou de desapresentação.
Uma outra consequência, não menos relevante, merece ser apontada. O
termo “consequência”, não obstante, nos remeteria a uma causalidade linear,
na qual haveria um produto posterior a certo jogo relacional. A questão seria,
antes, de ordem lógica ou transcendental: tal dinâmica de separações, como a
formulávamos, diz igualmente respeito àquilo mesmo que é exterior à arte, a
saber, ao mundo dos encontros e desencontros ritmados por apreciações, na-
turalizações e rupturas da norma. Isso se dá por meio da “partilha do sensível”.
Em Políticas da escrita8, Rancière define a partilha do sensível para além da fi-
losofia da arte, como a instância criadora da comunidade. Seu sentido é, assim,
bidimensional: por um lado designa a participação naquilo que é comum; por
outro, inversa e concomitantemente, a separação, a exclusividade. Um grupo,
portanto um recorte, participa (desigualmente) de algo – uma comunhão. No
opúsculo A partilha do sensível a noção é desenvolvida e permite a elaboração
de “três regimes de identificação da arte”: o ético, o poético e o estético. Não
obstante, o comentário e explicitação desses funcionamentos da arte fogem

6 O vocabulário aqui é kantiano. Para que serve a arte, se pergunta o filósofo de Königsberg?
Ora, para nada, diferentemente da razão instrumental, sempre aplicável e portanto agindo se-
gundo uma utilidade ou finalidade. Preservando a língua filosófica que herdara da tradição com
os termos “utilidade” e “finalidade”, Kant os reorienta em função das especificidades de arte e
sensibilidade. Se “servem” para alguma coisa, tais objetos só se prestam a seguidas reapropriações.
Fazemos imagens que nos orientam, o que explica a “finalidade sem fim”. Ver Kant, Immanuel.
Critique de la faculté de juger. Tradução Alain Renault. Paris: Flammarion, 1995, p.199 e 205-207.

7 Cf. Rancière, O espectador emancipado, op. cit., p.124.

8 Rancière, J. Políticas da escrita. Tradução Raquel Ramalhete. São Paulo: 34, 1995, p.7.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
258 Gustavo Chataignier

no momento de nossa preocupação9. Além disso, há que se levar em conta o


papel explicitamente político de uma tal divisão do sensível, imanente às prá-
ticas e organização da polis, tal como desenvolvido em O desentendimento. Pois,
mesmo em desenvolvimentos consagrados prioritariamente às artes, postula-
-se que a autonomização do objeto artístico implica a articulação “(...) a uma
ordem geral das maneiras de fazer e das ocupações”10.
A divisão de partes e lugares decorre da partilha de espaços, tempos e
atividades, determinando assim um comum ao qual se engaja de diversos
modos11. Assim definem-se formas de ser, dizer e competências laborais. Em
suma, em última instância, se estabelece uma divisão entre os que sabem e
não sabem, entre especialistas dotados de razão e/ou método e os que silen-
ciosamente contribuem para a reprodução da sociedade. E uma vez que a arte
é desde sempre uma maneira de fazer, se inscreve nessa divisão. Contudo,
ela não se limita historicamente à restrição da ordem ou da “polícia”, para
usar um termo de Rancière. Sua potência de ação, mais do que sua realização
no apagamento do objeto prolongado em participação do público ou em
exortação moral, reside mais na nova partilha proposta do que em decisio-
nismos. No terreno estético prossegue a batalha pela emancipação – somente,
em estética, a arte é das distâncias, mantidas na experiência. A subjetividade
criada pelo contato com a obra, e portanto não lhe sendo em hipótese alguma
anterior, se inscreve, justamente por ser sensível, no seio da comunidade.
Recapitulemos com conclusões provisórias: a autonomia dos objetos
artísticos e de sua feitura (arte pensativa, objetos cuja inteligibilidade se
revela em chave não representacional), bem como dos encontros por eles

9 Rancière, A partilha do sensível, op. cit., p.28-33. A tradição ocidental, segundo a interpretação
de Rancière, apresentaria três grandes regimes de identificação da arte: o ético, o poético (ou re-
presentativo) e, finalmente, o estético propriamente dito. No primeiro caso, a imagem é pensada
segundo sua origem e destinação ou, se se quiser em função de causa e efeito. Nesse sentido, inci-
dem sobre a educação e a ocupação laboral da cidade. A percepção de objetos sensíveis se presta
diretamente à organização (e manutenção) do ethos. Já o regime poético se deixa compreender
pelo par conceitual poiesis e mimesis. A mimesis é de ordem pragmática, ou seja, é um domínio
próprio da fabricação de imitações, distinto da legitimação pelo uso e também da justificativa de
discursos. As artes, isso posto, são separadas então por maneiras de fazer (autonomizando justa-
mente as artes) em conexão necessária com modos de fazer; aqui o corpo sensível remete a algo
para além de si, já estabelecido enquanto código cifrado. A obra ilustra, por assim dizer, uma ideia.
O regime estético propõe por seu turno nova maneira de ser do sensível. Objetos chegam à expe-
riência com uma “potência heterogênea”, um produto para além da intenção e de decisionismos.
A arte deixa de ter regras e temas próprios, concentrando-se na experiência da forma.

10 Ibidem, p.32.

11 Ibidem, p.15.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 259

proporcionados (experiência), liga-se necessariamente às práticas positivas


exteriores à arte; de um tal contágio se negocia, ou mesmo se impõe, nova
distância ou diferença entre objetos artísticos e sua circulação na comunida-
de – o que nos leva à dita “autonomia”. Dir-se-ia mesmo “autonomia relativa”.
Autonomia, escusando-nos da repetição do termo, no sentido de visada de
um objeto específico, cuja compreensão, todavia, depende de redes de deter-
minação. Dito de outra maneira, o acaso dado a pensar na vida perpassa o
mundo dos objetos e seus sentidos, rompendo assim com regimes tanto de
identificação quanto de funcionalidade. Um ponto de ruptura estabelece o
visível e o dizível. Em uma palavra, institui distâncias. Porém, na arte, ocorre
a identidade do não pensamento com o pensamento, de processos incons-
cientes e conscientes. No domínio literário, a memória involuntária prous-
tiana “colhe” o livro e restitui não um passado exato, mas seu fluxo. Poder-
-se-ia inferir que, se a arte guarda alguma relação com a técnica, ela se erige
paradoxalmente enquanto técnica de abertura ou do descontrole (pelo menos,
hegemonicamente, a partir do século XIX). Decifração e reescrita da tradição
são o quinhão dos artífices da silenciosa revolução estética.
Trata-se de buscar na imagem tal como se nos apresenta – a saber, sua
determinação material que se dá a ver; seu, por assim dizer, “ponto de par-
tida” – lógicas singulares de indeterminação. Tomamos imagem aqui em sen-
tido “amplo”. Expliquemo-nos: como anteriormente mencionado, imagem é
a instância distinta da identidade do logos, o que a ele resiste. Nesse sentido,
mesmo uma obra literária poderia ser englobada nessa categoria, na medida
em que a linguagem não se presta tão só a descrever fins e a retomar um sen-
tido após a exposição (a chamada “moral da história”). Concomitantemente,
sabe-se há muito que produtos audiovisuais não podem ser compreendidos
graças a desígnios divinos ou pelo fetichismo da imagem. Museus temáticos
e a pop art se querem imediatamente reconhecidos, como a antiga tradi-
ção icônica12. Ora, salienta Rancière, “o Verbo só se faz carne por intermé-
dio de uma narrativa”13. Cada obra ou dispositivo opera efeitos ao deslocar

12 “Para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou, antes, ao indivíduo anôni-
mo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem primeiro ser praticadas e reco-
nhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e difusão. O mesmo princípio,
portanto, confere visibilidade a qualquer um e faz com que a fotografia e o cinema possam ser artes”
(Rancière, A partilha do sensível, op. cit., p.36. Primeiro grifo nosso; o segundo, do autor). Note-se
o primado da experimentação e o “trabalho do positivo”, instaurador de modos de ver e de suas
possibilidades de ruptura.

13 Rancière, O destino das imagens, op. cit., p.39.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
260 Gustavo Chataignier

interpretações já legitimadas, comentários a posteriori que ensejam ilusões


retrospectivas, a parte da intenção e o que não se deixa detectar como es-
colha do realizador. A circulação desses registros, ainda que produza seme-
lhanças, conclui Rancière, desemboca em uma “semelhança desapropriada”.
Eis a inversão (pelo menos em potência). A expressão de uma situação, nos
moldes de testemunho empírico estampado no dado sensível, se acomoda
mal à “impessoalização” da arte14. A força da imagem pensativa se “verifica”,
se é que o termo é pertinente, no insondável que irrompe “entre” os discur-
sos. Como uma improvisação de jazz, onde os músicos partem de um tema,
com seus intervalos de escala e ritmo iniciais, podendo desembocar na auto-
nomia completa de sonoridades e participações.

Cinema, literatura e experiência

Para além do advento técnico da capacidade de registro de imagens, e mes-


mo de sua interpretação sociologizante, segundo a qual a rapidez dos “hiper
estímulos” modernos prepara o advento do cinema, “o cinema como ideia
da arte preexistiu ao cinema como meio técnico e arte particular”15. Segun-
do Rancière, o grande “modelo” veio da literatura. Se a imediaticidade da
imagem eleva à enésima potência os efeitos da experiência estética de um
filme, os deslocamentos de sentidos empreendidos pela Sétima Arte já eram
moeda corrente antes mesmo de seu advento concreto. A fina interpretação
de Rancière sobre Balzac remodela o cânone de escritor realista, geralmente
atribuído ao autor de A comédia humana. A noção de imagem pensativa vem a
nosso socorro. Tomemos como exemplo a última frase do romance Sarrasine:
“A marquesa ficou pensativa”16. Nela o fim da narrativa é suspenso justamente
pelo termo “pensatividade”. A ação é negada em seu desenrolar cronológico;
ao mesmo tempo, enquanto indeterminação, ações futuras são chamadas a
restituir o movimento – no entanto, parado em um quadro. Sucessões de
descrições de micro-acontecimentos pictóricos levam a narrativa adiante, em

14 Rancière, O espectador emancipado, op. cit., p.112-113.

15 Rancière, J. La Fable Cinématographique. Paris : Seuil, 2001, p.12.

16 Balzac, Honoré de. Sarrasine. In : La Comédie humaine. Paris : Gallimard/ Pléiade, 1976-1981,
12 volumes, volume 6, p.1076.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 261

substituição ao encadeamento clássico entre causa e efeito17. Não que essa


última desapareça por completo, mas se vê deslocada e relacionada com uma
segunda cadeia factual, não apenas diacrônica, mas sincrônica. A palavra é
posta em giro, se torna “a-posta” (não posta segundo cânones), ou, ainda,
oposta a posições estáticas e essencialistas.
A ação substituída por encadeamentos de percepção e ocasionando um
“curto-circuito” nas expectativas foi técnica introduzida por Flaubert. Nar-
ração e descrição trocam de papéis, convidando a pintura ao diálogo com a
literatura. Da mesma forma, é-nos permitido vislumbrar a função de uma voz
em off num filme, cujo relato não necessariamente conduz a ação imagética
(que se pense ainda em uma trilha sonora que não dirige a narrativa com
um clima, mas antes implica uma nova experiência de visão). Uma mesma
fala, um mesmo personagem, um mesmo gesto, dependendo da situação, as-
segura ou desliga o sentido em curso: “o poder de antecipar um efeito para
melhor contradizê-lo” é filho da arte romanesca18. O filósofo chega ao ponto
de enunciar que “um certo cinematografismo” foi inventado pela literatu-
ra: primeiramente, as camadas de percepção presentes na palavra muda, as
presenças silenciosas; em segundo lugar, a coabitação entre temas tidos por
nobres e vulgares, reunidos pelo élan artístico e também pela universalidade
da sensibilidade; por fim, o “tratamento sequencial do tempo”, onde os blo-
cos expressivos são desiguais e descontínuos – uma causa não redunda no
aguardado, uma vontade não se concretiza em acontecimento. Dito de outro
modo, a literatura antecipa os “planos-sequência”19.
Não nos situamos numa perspectiva evolucionista, partindo do menos
complexo e destinados necessariamente a um ponto derradeiro. Há intermi-
tências, permanências, imprevistos e guinadas – impurezas. Com isto quere-
mos dizer que o cinema pode expressar uma variada gama de percepções e
ideias – inclusive aquelas do “regime da representação”. A jovem arte se tor-
nou cão de guarda das velhas relações entre causa e efeito. De tal maneira que
personagens típicos e intrigas previsíveis povoam telas, pequenas, grandes
ou portáteis, com códigos e gêneros bem delimitados20. A reprodutibilida-

17 Rancière, O espectador emancipado, op. cit., p.117-118.

18 Rancière, O Destino das Imagens, op. cit., p.14.

19 Rancière, J. As Distâncias do Cinema. Tradução Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Con-
traponto, 2012 C, p.56.

20 Rancière, La Fable Cinématographique, op. cit., p.10.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
262 Gustavo Chataignier

de técnica, sob a hegemonia de um padrão facilmente identificável, afasta o


mundo que outrora prometera – pois, ao trazê-lo, não fez senão aprisioná-lo.
Melhor dizendo, já que o cerne do pensamento estético de Rancière repousa
na criação de distâncias instauradoras de subjetividades e comunidades, o
que se percebe no conjunto de clichês da maior parte dos blockbusters é a
manutenção das partilhas de dominação ou a “reprodução” ideológica.

Cinema e pensamento

Após privilegiar o regime estético das artes e descrever alguns aspectos que
nos parecerem relevantes das imagens pensativas, que não se resumem a
meios técnicos e suportes específicos, dizendo respeito a modos de identifi-
cação, fomos levados ao campo do literário, entendido como procedimento
artístico que recria e renomeia os objetos. Seus efeitos de visibilidade e dicção
se espraiam, portanto, no cinematográfico. Jacques Rancière desenvolve em
detalhe essa ideia, sobretudo em A fábula cinematográfica, cujos argumen-
tos nos propomos agora sucintamente elencar. Todavia, somos levados a crer
que as definições ora analisadas se aproximam. Mais especificamente no que
tange à “imagem pensativa” e à “fábula contrariada” – ainda mais quando as
obras examinadas, em repetido exercício de aproximação e distanciamento,
efetivamente estabelecem relações até então inauditas entre seus elementos.
Adotemos a fórmula segundo a qual uma fábula contrariada é pensativa; por
oposição, uma fábula previsível é representacional.
O cinema é compreendido como a arte da “punção”, da retirada – do
francês prélèvement. Sua eficácia própria, maquínica e simbólica, é negociada
com as demais artes: música, dança, pintura, escultura, teatro e literatura.
O modelo é o da “arte trans”, aquela que passa pelas demais sem a elas se
reduzir. A ideia da suspensão da ação é ressignificada, a “reviravolta” aristo-
télica não detém um telos fixo. Se o cinema engendra “fábulas”, o faz a partir
de “punções” (aproximações) de outras artes, estabelecendo novas fronteiras
(distância fluida). O passado é reinventado no presente. O que está em jogo
não é uma “intriga”, mas as relações entre o visível e o dizível – os modos do
sensível. É, portanto, uma fábula, sim, mas uma “fábula contrariada”. Con-
trariada, pois a continuidade com as antigas expressões artísticas se mantém,
malgrado sua ressignificação. A desfiguração das imagens em movimento
(e com som) não se separa da imitação clássica, bem como a obra acabada
“filme” não mantém relação estanque com o cotidiano, com os elementos
“não artísticos”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 263

Em entrevista à extinta revista Balthazar, título que homenageia Bresson, re-


colhida em livro de depoimentos, Rancière explicita a distinção por ele operada
entre representação e arte. A imagem se opõe à representação sob a forma de
uma tensão. Por um lado, ela é um mistério que chama à decifração; por outro,
ela é uma presença ou tida como insignificante (como a tratou, hegemonica-
mente, a tradição filosófica até fins do século XVIII e início do XIX) ou, haja
vista seu mutismo, uma autoimposição (oscilando entre um “depósito” de ex-
pectativas e uma zona problemática). Isso nos leva à relação entre o cifrado e o
não cifrado (o que é sabido, o que pode ser identificado e portanto se encadear
num lastro, numa linguagem que aproxima outras imagens). Mas também, e
aqui entra o segundo polo da contradição, a relação com o desconhecido, o que
se encontra para além das medidas estabelecidas, devendo portanto se impor
por si só. Em uma palavra, define o filósofo, uma “não-relação”, apta à cons-
trução de sentido. A anterioridade do não sentido, diria o Deleuze de Lógica do
sentido21; o início do sujeito após o acontecimento, complementaria Badiou22.
Trata-se de uma dialética entre o novo e o velho: entre, respectivamente, a pre-
sença sensível da obra e sua relação com a infinidade da construção da lingua-
gem. O idealismo não saiu imune diante de tal dinâmica23. Pois, além de fixar
o eterno, a imagem passou a mostrar o visível, processo de fixação dependente
da experiência e da contingência – e portanto da história.

21 “É, pois, agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem,
ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou re-empregado, mas algo a pro-
duzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma
profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria”
(Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Perspectiva,
1998, p.75).

22 Organizado pela contingência, o sujeito será compreendido enquanto articulador de um real


irrepresentável (cf. Madarasz, Norman. O Múltiplo sem Um. Uma apresentação do Sistema filosófico
de Alain Badiou. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2011, p.56-58). Nem legislador como em
Descartes, e tampouco lisível, como em Marx e Freud: o sujeito é vazio (Badiou, Alain. L’Être etl’
Événement. Paris: Seuil, 1988, p.9) e efeito do Acontecimento. São quatro os “procedimentos
de verdade” ou de acontecimentos (estes como o começo daqueles, inauguradores do que esse
autor compreende por historicidade, “blocos temáticos” decorrentes do acontecimento ou, em
seus termos, “sequências”): o amor, a ciência, a arte e a política. Os “procedimentos de verdade”
são “indeterminados e completos”, (Badiou, l’Être et l’Événement, op. cit., p.23-4), o que pode
trazer o debate para as searas da “atualização” ou “ativação”. Todas essas esferas são irredutíveis
à filosofia. Em verdade, são suas “condições”, cujo papel é a produção da verdade, bem como o
de ensejar sua transmissão. Neste espaço do encontro, o universal vazio pode ser preenchido pelo
singular – sob o olhar da filosofia.

23 Et Tant Pis Pour les Gens Fatigués ! Entretiens. Paris: Amsterdam, 2009, p. 223-239. Rancière
se refere a este dualismo também como a tensão entre as “inscrições carregadas pelos corpos” e
a “função interruptiva” de suas “presenças nuas” (Rancière, O Destino das Imagens, op. cit., p.23).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
264 Gustavo Chataignier

Conclusão: dos desentendimentos em arte e política24

Há uma logicidade da política que recusa a chantagem entre o consenso co-


municativo e o arcaísmo do totalmente outro, entre as luzes da razão e as
trevas originárias. Com ambas as perspectivas repete-se o gesto opositor entre
logos e alogia. Por alogia deve-se compreender uma exclusão da racionalidade,
atrelando as criaturas nela inseridas à animalidade de prazer e dor. Ao mes-
mo tempo, legitima-se a separação positivista e utilitarista entre a ordenação
(geométrica) do bem e a contagem (aritmética) de trocas e reparos. O decisivo
é determinar, inscrever “o lugar de uma divisão”. “Tornar manifesta”, escreve
Rancière, uma “aisthesis”, uma maneira de sentir e portanto de fazer e pensar.
A circulação do logos se dá pelo litígio, pela distância entre duas apropriações
da palavra. O jogo agônico se dá entre uma “língua das ordens” e uma “lín-
gua dos problemas”. Dirigir-se a alguém ou a algum grupo e lhe dar ordens,
exercer alguma espécie de dominação, desessencializa qualquer solidificação
social baseada na “formação”. Compreender uma ordem significa imediata-
mente participar da racionalidade, compreender a linguagem por meio da
qual se a reitera; a verificação da inteligência prossegue, já que uma ordem
não demanda justificativa – o que visa a negar a deliberação das partes. Ou
melhor, a contagem de seus participantes.
Assim se determina uma comunidade de falantes e sua exclusão. Está aber-
ta uma brecha para outro idioma de poder, a ser forjado. Outro idioma no
sentido de inclusão por força na linguagem que é, desde sempre, comum. A
desigualdade social se baseia na igualdade de seres falantes. Eis a relação de
uma não-relação: o explorado se inclui, enquanto falante, e se demonstra ex-
cluído na situação de fala. A demonstração do direito age “como se” comuni-
dade houvesse (seu pressuposto), mesmo que sua constituição seja processual.
Sujeito, objeto e lugar estabelecem a cena do litígio, anterior a qualquer dis-
puta. A condição de possibilidade, nada transcendente, é a injustiça presente.
Perspectiva “desrrazoável” esta, ao menos aos olhos da gestão da política;
razoável, quando apoiada na igualdade irrestrita. Há que se indagar qual de-
senlace daí decorre. Não há telos. As próprias regras do direito, assim como o
comum de linguagem e inteligências, devem construir outra cena. Mas como
cuidar dessa vida em comum? Estaríamos em uma era pós-ideológica, com
indivíduos conectados com gadgets e suas próprias pulsões, tornando assim

24 Aqui nos baseamos sobretudo no capítulo “A razão do desentendimento”, de O Desentendimen-


to (Rancière, J. O Desentendimento. Tradução Ângela Leite Lopes. São Paulo: 34, 1996, P.55-70).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 265

a política uma mera estipulação de papéis e remunerações? A via crítica tem


apontado, recentemente, tanto o caminho da “ação comunicativa” habermasia-
na25 quanto a alternativa estética que ora expomos, desenvolvida por Rancière.
Se a estética é “(...) o que coloca em comunicação regimes separados de
expressão”26 pois sua universalidade é vazia de conteúdo, não se pode ar-
bitrariamente opô-la à normatividade. Ora, “a demonstração do direito ou a
manifestação do justo é refiguração da divisão do sensível”27. Em se seguindo
Habermas, toda e qualquer comunicação corresponde a um processo de uni-
versalização, onde mesmo as linguagens poéticas de abertura para o mundo
comungam com formas da validação. Todavia, a radicalidade do argumento
da partilha do sensível nos leva a perceber a cena do litígio de outra maneira.
Há, portanto, duas entradas no debate, a via estética e a via normativa. O
sensualismo da experiência, paradoxalmente, não coloca o universal como já
dado. Ele está em jogo e se particulariza – antes do início de qualquer univer-
salização (a possibilidade de ruptura se inscreve assim no próprio curso do
efetivo). Cada caso particular, cada existência deve assim ser problematizada.
Cada ruptura, ou “caso anormal”, instaura um litígio. O encadeamento argu-
mentativo e a transfiguração metafórica (respectivamente norma e estética)
fazem laço, são comunidade de sentido ou de sua construção. A interlocução
social não segue padrões. Muito pelo contrário, como temos acompanhado,
o comentário é tanto racional quanto poético, ou seja, são “argumentações
numa situação e metáforas dessa situação”28, não apontando para reconcilia-
ção. Este o campo da interlocução política. Nele, a lógica demonstrativa não
se aparta de uma estética de manifestação.
A verificação da igualdade assume a forma concreta de correção de uma
injustiça. “O” político, então, é a emergência dessa cena onde se afrontam,
inextrincáveis, a ordem e a emancipação em torno de uma injustiça. Novas

25 Há ação comunicativa “(...) sempre que as ações dos agentes envolvidos são coordenadas,
não através de cálculos egocêntricos de sucesso, mas através de atos de alcançar o entendimento.
Na ação comunicativa, os participantes não estão orientados primeiramente para o seu próprio
sucesso individual, eles buscam seus objetivos individuais respeitando a condição de que podem
harmonizar seus planos de ação sobre as bases de uma definição comum de situação. Assim, a
negociação da definição de situação é um elemento essencial do complemento interpretativo
requerido pela ação comunicativa (Habermas, Jürgen. The theory of communicative action. Vol 1.
Reason and the rationalizalion of society. Boston: Beacon Press, 1984, p. 285-6).

26 Rancière, O desentendimento, op. cit. , p.68.

27 Ibidem, p.66.

28 Ibidem, p.67.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
266 Gustavo Chataignier

visibilidades vêm à tona, se publicizam. A oposição entre ordem e barbárie,


bem como visadas comunitaristas, sufocam a emergência do político. Isso
porque a emancipação, enquanto imanência ou autodeterminação, é uma crí-
tica ao egoísmo e a princípios identitários. Como postula Rancière em Nas
fronteiras do político, essa política é uma “heterologia”29.
Categorias produzem inclusão e, forçosamente, exclusão. Que se pense em
trabalhador, negro, mulher, índio ou outras categorias. Como “fazer política”
com tais termos? É preciso redefini-los. Podem ser universais? E, mais, em
quais condições? Sabemos de antemão que nada se estabelece sem a irrupção
do litígio. A igualdade não expressa essências, mas evoca um crime – visto
como impessoal, ao nome de ninguém, da lei (e, portanto, de todos). Não se
trata da presença de uma “humanidade”, apenas retórica, mas das consequên-
cias práticas das desigualdades perpetradas. Uma falha lógica se alia à desigual-
dade social. Em termos nietzscheanos, qual o valor dos valores30?
É possível a formação de unidade, do “um” que não se fecha num “si” –
mas que se vê como um outro. O não dito e o não visto, o nome de qualquer
um, institui a política, um sistema de formas de subjetivação que põe em
xeque as distribuições dos corpos. Um novo nome, oriundo de nova posição,
reposiciona um grupo já sem lugar. Entre a humanidade e a desumanidade,
entre o homem e a ferramenta, ser e não ser vêm a ser.
Uma tal identificação só pode ser impossível. Jamais haverá adequação
total entre enunciadores e causas, entre a injustiça e sua eventual reparação.
A disputa é a de um espaço para o outro que nos faz outros, em um regime
de “desidentificação”. Acolhe-se o diferente sem se projetar no outro, o que
aniquilaria, justamente, a diferença. O “processo da igualdade” é a diferença.
Não o surgir de identidade diferente, mas o conflito implicado pelas identi-
dades e a diferença no seio destas. A diferença, portanto, não é uma “proprie-
dade”, mas o espaço – conceitual e prático-discursivo, aberto pela reivindica-
ção. A via do desentendimento expõe impiedosamente os intervalos entre a
realidade e o conceito.
O vazio de um nome não contado, o do povo, abre espaços de liberdade.
O desaparecimento da política é um mundo sem litígios, controlado, confor-
mado, onde tudo se vê, onde sequer há resto nas contagens31. Em um paralelo

29 Rancière, J. Aux bords du politique. Paris : Gallimard/Folio, 2012 D, p. 115.

30 Nietzsche, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2009, p.12.

31 Rancière, O desentendimento, op. cit., p.105.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
Contribuição a uma crítica da representação – do diálogo engendrado por distâncias 267

com a sétima arte, um cinema de transparências, que faz tudo ver, não é um
cinema de política – mas, isto sim, um cinema de polícia. “Fazer de outra
maneira”, para além de uma abertura destinal de acontecimento intangível,
talvez resida aí a “modesta” proposta rancièreana. Outra sensibilidade deseja
outro mundo. E aqui a obra de arte desempenha papel fundamental.

Referências

BADIOU, A. L’être et l’événement. Paris : Seuil, 1988.


BALZAC, H de S. Vol. 6. In : ______. La Comédie humaine. 12 volumes. Paris : Galli-
mard/ Pléiade, 1976-1981.
DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Pers-
pectiva, 1998.
HABERMAS, J. The theory of communicative action. Vol 1: Reason and the rationaliza-
lion of society. Boston: Beacon Press, 1984.
KANT, I. Critique de la faculté de juger. Tradução Alain Renault. Paris: Flammarion,
1995.
MADARASZ, N. O múltiplo sem um. Uma apresentação do sistema filosófico de Alain
Badiou. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2011.
NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2009.
RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Tradução Raquel Ramalhete. São Paulo: 34, 1995.
______. O desentendimento. Tradução Ângela Leite Lopes. São Paulo: 34, 1996.
______. La Fable Cinématographique. Paris: Seuil, 2001.
______. A partilha do sensível. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo: 34, 2009a.
______. Et Tant Pis Pour les Gens Fatigués ! Entretiens. Paris: Amsterdam, 2009b.
______. O espectador emancipado. Tradução Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2012a.
______. O destino das imagens. Tradução Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 2012b.
______. As Distâncias do Cinema. Tradução Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro,
Contraponto, 2012c.
______. Aux bords du politique. Paris : Gallimard/ Folio, 2012d.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.253-267, jan.-jun. 2017
entrevista
Sérgio Bruno Martins***
Luiz Camillo Osorio**

Conversa com Nuno Ramos


Pedro Duarte*

Conversation with Nuno Ramos

Pedro Duarte - Um dos sentidos da autonomia da arte na época moderna dizia


respeito à especificidade de cada meio: a linguagem própria da pintura, da
escultura, da poesia e assim em diante. Na sua prática, contudo, encontramos
desde a literatura até a pintura, passando pelos ensaios teóricos. De que
modo você pensa a especificidade da cada meio artístico?

Mas Picasso não fazia isso tudo? Os surrealistas, Michaux, Artaud (aqueles
autorretratos inacreditáveis). Pra não falar na coisa mais wagneriana, de arte
total, ou nas parcerias arquitetura/pintura (Hoffmann-Klimt, por exemplo).
Acho que a ideia moderna de autonomia dos meios convive com o teste con-
tínuo dessa autonomia, o que levava os artistas a situações-limite onde as
linguagens se esgarçavam.
Acho que mais do que mexer com várias linguagens, talvez o que ca-
racterize o meu trabalho seja uma espécie de fome, de quero-mais, num pe-
ríodo, digamos, de grande enquadramento da cultura (e dos costumes). A
viagem entre gêneros ou configurações estilísticas diferentes talvez reforce
esse apetite.
Mas a palavra que você usou, caracteristicamente moderna e tão atacada
– “Autonomia”–, continua importante pra mim. Por mais que a contiguidade
com o mundo fique explícita na discursividade e no entorno de cada obra –
através da Curadoria ou da institucionalização em geral –, no final o trabalho
voa ou não voa. No final você não sabe onde está (o que é ótimo) ou sabe (o

* Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio); E-mail: p.d.andrade@gmail.com.

** Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio). Pesquisador CNPq; E-mail: lcamillosorio@gmail.com.

*** Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio); E-mail: sbmartins@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
272 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

que é péssimo). Prefiro o trabalho que trai, derrapa, não se deixa pegar. Mas
sei que não funciona mais pensar que essa autonomia (a loucura da obra, di-
gamos assim) refluindo diretamente e sem mácula para seus próprios meios.
Ela se mistura ao mundo antes disso, se embaralha toda, navega na mercado-
ria, no discurso e na imagem – mas consegue.
Mas pra responder à sua pergunta de modo mais pessoal – acho que o que
importa medir é o quanto você ganha ou perde ao utilizar determinado gênero.
Por exemplo, comecei como pintor, embora tivesse pouquíssimo preparo para
isso. Acho que com tanto tempo de convívio, com todos os meus enormes
defeitos, o gênero pintura me ajuda ainda – especialmente o contorno literal
do quadro, o retângulo, o campo físico do chassis, posto no chão. Então fico
ali tentando, derretendo aquela gororoba, deixando a matéria cair ali dentro.
Na literatura, ao contrário, o gênero novela, ou romance, parece fugir infin-
davelmente de mim. Quando tento (e já tentei), é sempre um momento de
esterilidade e falsidade. Cada caso é um caso, mas há uma espécie de disponi-
bilidade dos gêneros, como troféus pedindo sentido, que não pertence tanto à
modernidade (que queria refundá-los todos, zerando o relógio), e que é muito
interessante hoje. Acho que dá pra usar isso, ainda mais num país em processo
de arruinamento constante como o nosso – há tantas “formas perdidas”, antes
mesmo de cumprirem seu ciclo, nos esperando! Sinto riqueza e chamado por
toda parte, como se o circuito da especialização não tivesse se fechado e no
entorno desses enormes viadutos, que essa gente inaugura sem parar, tivesse
uns troncos lindos, um vidro quebrado, um cachorro manco, um pedaço de
borracha que, talvez, se eu pegasse um maçarico e derretesse um pouco...

Sérgio Martins - Ao marcar sua diferença em relação a Frank Stella, você diz
que, ao invés de tensionar o plano, toma-o como um receptáculo inerte ou, em
sua própria metáfora, como um pântano. É uma imagem que conota extrema
indistinção, como se o quadro convencional da pintura já não impusesse
qualquer resistência aos atos do pintor, ou qualquer metro pelo qual medir a
validade de suas decisões. Ou será que o problema se inverte: que nesse chão
movediço, como na diarreia do famoso texto do Hélio Oiticica, é que se coloca
o problema de construir uma forma artística capaz de articular sentido?

Gostaria que fosse a sua segunda hipótese. De toda forma, acho que dá pra
dizer que há sempre um chão em meu trabalho, que estas pinturas não pa-
ram de mimetizar e que as esculturas e instalações quase sempre utilizam,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 273

também. No Hélio Oiticica há suspensão, fio de nylon, espelho, planos


boiando no meio da sala, tule, vidro, dança. A matéria da diarreia dele está
contraposta a toda esta suspensão. A gente não deve nunca esquecer o esteta
que há no Hélio, seu desejo de beleza, devaneio e prazer, em meio às flores
do mal. Alguma coisa do fundo infinito do Niemeyer, misturado ao Moebius
“aberto” pela Lygia Clark, deslocam para cima as asperezas do compensado
dos Contra-relevos, os pigmentos, as bolinhas de brinquedo dos Bólides, os
tules coloridos dos Parangolés. Acho que o meu chão é mais matéria mesmo,
embora com uma goma grande de possibilidades, que vai da tinta (sublima-
da) ao sabão. Tudo o que eu faço é esse chão levantado – adoro as linhas de
deposição da matéria, a horizontal geológica, e não sou capaz de desenhar
nem pintar sequer um centímetro com o chassis ou o papel na vertical.
No caso do Stella acho que a diferença é brutal – ele trabalha com esque-
mas, grades, espirais ou retículas, que vão se somando e sobrepondo com
elegância. A força maior de seu trabalho nunca aparece num único quadro,
pois vem de seu método – entre a grade simples das “black paitings” e o bar-
roquismo dos alumínios derretidos, cobrindo um período de 4 ou 5 décadas,
quase não há hiatos, nem saltos bruscos. O método entre as obras copia ele
mesmo essa grade original tão simples. Há uma homogeneidade estranhíssi-
ma nesse movimento progressivo entre coisas tão diversas, um Bartleby que
vai guiando o capitão Ahab em sua aventura, que me parece a verdadeira
originalidade dele. Ao contrário, a dispersão é meu elemento, como se hou-
vesse um centro comum que nunca consigo encontrar, só insinuar, o que não
deixa de ser uma demanda, digamos, romântica por uma verdade. Mas é um
pouco como se eu não precisasse me preocupar muito – achando um lugar
(um chão) e derretendo um pouco cada elemento, tornando tudo meio mole
e sem individuação, as coisas acabarão se configurando. Essa é minha aposta
– apagando o contorno, atrasando o relógio, as coisas vão se encontrar.

Pedro Duarte - O crítico Alberto Tassinari já falou de uma tensão entre a forma
e o informe como a característica mais persistente ao longo das variações que
sua obra apresentou no tempo. Você também enxerga o embate entre essa
dimensão extravasante e uma mais de contenção na sua obra? Do ponto de
vista estritamente estético, qual seria para você a origem dessa tensão?

Concordo sim com a leitura do Beto. Acho que há um não-formado no que


eu faço, que me faz fazer e fazer (que frase!). Esse não formado, justamente

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
274 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

por não se completar nunca, é que me deixa acordado, querendo a próxima


versão. Ele é minha fertilidade, mas é meu defeito também – sinto que tenho
menos que outros artistas trabalhos exemplares que resumem ou concatenam
o sentido geral do que faço. Parece que tudo é uma arquitetura meio provi-
sória que leva à outra, como um andaime que se apaixonasse por si mesmo
e esquecesse a obra a que servia no início (aliás, tenho trabalhado com esse
elemento, andaime). Tenho medo disso, mas já não sei voltar. Me esforço lou-
camente para dar gravidade a cada momento do que faço, mas sei que minhas
alternativas me arrastam o tempo todo para fora dali.
Durmo pouco, e mal, e tenho cotidianamente um sentimento absurdo de
dívida, de que devo fazer tal coisa, que algo me chama e não dei atenção, que
estou perdendo alguma coisa, que devo cutucar a onça de tal ou tal forma.
Esse sentimento aflito é o grande barato e a grande violência de se produzir
arte no Brasil. Como nada se institui e o terreno da assimilação cultural é
incrivelmente cediço (tudo afunda), o peso dos antepassados, das figuras de
bronze, das grandes vozes gramaticais, parece razoavelmente pequeno, até
mesmo patético, fácil de lidar. No entanto, a própria falta de firmeza do chão
vai se tornando, aos poucos, essa figura de bronze e essa gramática – é ela
que nos devora, esse chão cediço é o nosso verdadeiro antepassado e figura
paterna. Estive agora em Los Angeles e fui visitar La Brea, um parque no meio
da cidade com imensos poços de asfalto a céu aberto, de onde se retiraram
5 milhões (!) de fósseis da idade do gelo. Escondido sob a água, o piche era
uma imensa armadilha, onde os animais sedentos se deixavam prender, afun-
davam e morriam, sem conseguir escapar. O Brasil é um pouco esse poço –
ou nosso famoso boneco de piche, que quanto mais socamos, mais grudados
ficamos. Em geral, não negamos propriamente a ninguém a sua potência, e
acho que fiz coisas no Brasil que dificilmente faria em outros lugares – mas,
uma vez posto no mundo, logo afunda no breu.

Luiz Camillo Osorio - Em 2010 durante a Bienal de São Paulo, você viveu na
carne os efeitos da intolerância. Sua instalação Bandeira Branca foi retirada
de forma arbitrária e um tanto cretina – em nome do bem-estar de urubus
muito bem tratados e já nascidos em cativeiro. Olhando retrospectivamente,
vemos aí uma espécie de antecipação em relação ao que hoje parece estar
ganhando mais voz pública. Em um artigo esclarecedor escrito por você na
ocasião, retirei uma frase que me parece vir a calhar. Não só como resposta
ao ocorrido lá, mas para pensarmos o nosso momento atual e sua relação
com um futuro menos tenebroso. Você escreveu: “A arte talvez seja a última

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 275

experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do


mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar,
como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve
manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando”.
Passados sete anos e com um mundo convulsionado, as expectativas de que
a arte seria este signo aberto não simétrico à discursividade do mundo se
mantém viva para você? Ou estamos lascados?

Sim, se mantém totalmente viva para mim. Fiz aquele trabalho, Bandeira Bran-
ca, num momento de euforia nacional (2010), de que desconfiava instinti-
vamente. Quis fazer alguma coisa entre a canção de ninar e o velório, o que
incluiria o país, com seu projeto político, como parece cada vez mais claro,
cheio de limites e contradições, mas também a própria instituição, a maior
delas entre nós, no meio das artes plásticas – a Bienal de São Paulo (que, por
sinal, me apoiou bravamente nesse episódio). Acho que também ela estava
sendo assombrada e velada em meu trabalho. Pois quanto mais as instituições
atacam a si mesmas, ”abrindo-se” para o mundo, querendo coincidir com ele,
e quanto mais os artistas compram este discurso, mais essas instituições se tor-
nam desmesuradamente potentes e prepotentes, substituindo-se àquilo que
deveriam acolher e potencializar – era um pouco isto que eu queria “velar”.
Quase toda arte é uma arte de exceção, no sentido de ser o ponto de
vista de uma singularidade, um não-comum, e neste sentido uma minoria.
A indústria cultural é que produz quase sempre uma “arte de maioria”, pois
foi trabalhada antes de circular em seus parâmetros básicos. Como no Brasil
ela ocupa quase todo o espaço público, estamos desacostumados com a arte
do outro lado, que quando aparece fora do público especializado é imediata-
mente vista como escândalo e perversão. Tudo bem que seja vista assim, mas
é nesse momento, exatamente, que o circuito deve protegê-la como a exceção
preciosa, a diferença em potência, de que o público precisa, ou precisará. O
papel institucional é zelar por isso, e não substituir-se a isto.
No caso do “Bandeira Branca”, acho que isso aconteceu do jeito certo – eu
fui apoiado pela instituição (a Bienal de 2010), que bancou meu projeto o
quanto pode. Por isso nunca usei a palavra “censura” para me referir ao que
aconteceu – achei tudo aquilo uma burrice “legalizada”, onde um juiz indefe-
riu nosso pedido de continuidade duas vezes (e tivemos que tirar os animais).
Infelizmente, perdemos, mas o circuito se cumpriu, a obra de um lado, a vaia
do outro. É muito diferente de episódios recentes, como o do Santander, onde
a instituição se acovardou, impedindo qualquer disputa. O que o Santander
traiu não foram apenas os artistas que tiveram suas obras censuradas, mas

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
276 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

(e principalmente) o público, essa entidade autônoma e adulta que deve ter


acesso a diferentes vozes e perfis, escolhendo o que lhe interessa (ninguém
obrigou ninguém a entrar na exposição). O Santander serviu de instrumento
de força de uma parte desse público sobre a outra, e, nesse sentido, a lem-
brança dos movimentos autoritários do século passado não é exagerada. Os
grupos fascistas prevaleceram sobre as instituições, que não cumpriram, ou
não puderam cumprir, sua obrigação básica de resistência. O que o Santander
fez foi chocante e imperdoável.

Luiz Camillo Osorio - Queria retomar um outro aspecto desta sua citação
que é a experiência universalizante da arte. Como lidar com ela junto aos
posicionamentos identitários que tendem a restringir o endereçamento
da arte, fechando o significante em lugares de fala e territórios discursivos
delimitados e com pouca atenção aos movimentos imprevistos? Como
defender as vozes minoritárias sem impedir os deslocamentos e os intervalos
que deixavam as obras falarem para além dos seus lugares e territórios
específicos? Como você vê este problema enquanto artista?   

Os posicionamentos identitários têm todos origem libertária, que surpreen-


deram há algumas décadas a universalização da esquerda (o “proletariado”)
com questões prementes, concretas, pertencentes ao imediato da vida. É sem-
pre bom lembrar disso e, como você disse, não perder de vista a defesa dessas
posições minoritárias. Acho no entanto que toda obra é uma espécie de mega-
fone – a parte mais fina do funil, onde encostamos a boca, é sua origem, com
seus propósitos conscientes e questões explícitas (identitários, por exemplo);
a parte mais larga, a que irradia para fora, que entra em contato com o ar e
impulsiona a voz, essa é mole e em ondas de expansão, feito o grito do Mun-
ch, e ninguém controla. Se controla, não presta. Por mais que o artista queira,
por mais que seu grupo de origem queira, a obra trai quando é emitida, diri-
ge-se à posteridade ou ao passado que a posteridade saberá criar. Toda obra
que presta tem algo de um des-propósito dentro dela, e no fundo foi criada
para isso mesmo, para corresponder ao desejo latente que têm os grupos
humanos de serem algo diverso do que pensam que são. Não há como frear
isso e, no dia em que esta característica se ausentar completamente, acho que
a arte terá virado de fato outra coisa – algo como um documento de época.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 277

Pedro Duarte - Recentemente, você fez uma montagem em cima do Jornal


Nacional com o William Bonner e a Renata Vasconcellos artificialmente
entoando a canção “Lígia”, de Tom Jobim. Trata-se evidentemente de um
entrelaçamento da arte com a política. Seja nesta sua obra específica, seja no
sentido conceitual geral, como você concebe o contato entre a arte e a política?

Como qualquer outro contato – cheio de interesse, de buracos, de possibi-


lidades, de coisas a aprender. Partindo dele, mas chegando em outra coisa.
Nesse exemplo, o ponto de partida foi friccionar dois tempos – o da Bossa
Nova (apesar da canção ser tardia), com seu mito maior, Tom Jobim, e nosso
presente quase cínico, onde a balança se quebrou e todo sentido de pro-
porção parece ter-se ausentado. Acho que deu um franskensteinzinho meio
cômico, mas que fez sentido, no sentido básico de que a imprensa no Brasil
também precisa aprender a pensar a si mesma, a estranhar a si mesma. Detes-
to essa visão meio paranóica que põe a culpa na imprensa a cada retrocesso,
mas acho também que a imprensa faz consensos e não está acima desses
consensos que ela mesma cria. A naturalização do impeachment de Dilma foi
um consenso chocante para mim, que atravessou, que eu saiba, toda a grande
imprensa. Por isso o tomei como base para o meu trabalho, como o elemento
de contraste ao tempo-mito de Lygia e de Tom Jobim.
Mas olha como a coisa funciona – tínhamos que fazer alguma coisa que
lupasse, iniciando a canção de novo, e pedi para selecionarmos uma coleção
com os dois, Bonner e Renata, respirando, aspirando o ar (apenas o momento
em que o ar entra, sem cortar a emissão de voz). Acho que isso não estava no
roteiro, e aponta para outra coisa. É um pouco como se fossem pegos nessa
preparação, logo antes de serem os ventríloquos que de fato são, revelando
isso. Há algo de boneco nessa figura sentada (até hoje acho estranhíssimo
quando eles se levantam (e não é que têm pernas?!) para conversar com a
moça do tempo), que me parece profundamente verdadeiro – sua eroticidade
(os dois são muito bonitos, Bonner com aquela covinha, aquele cacho de ca-
belo branco à Susan Sontag, Renata com aquelas sobrancelhas incríveis), suas
mínimas expressões, seus pequenos gestos, as entonações e respirações que
escapam, são escândalos, como se não pudessem existir. No entanto, essas
mesmas expressões, essa incapacidade de ser inteiramente o boneco de um
ventríloquo-noticiário, é que garantem a “humanidade” do que está sendo
dito, sua “veracidade”, sua proporção com o espectador. Acho que é essa
contradição que o meu trabalho sem querer flagrou.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
278 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

Sérgio Martins - Num artigo intitulado “Suspeito que estamos...”, publicado


na Folha de São Paulo em maio de 2014, você descreve um Brasil, por assim
dizer, em estado terminal; uma falência generalizada de nossos projetos e
imaginários nacionais. O próprio signo da suspeita parece negar a base
cognitiva sobre a qual se ergue o esforço projetivo – nada se sabe ao certo.
Nossa crítica frequentemente pensou a especificidade da arte aqui produzida
como a positivação de lacunas ou inconsistências inerentes à nossa história
ou formação, mas parece que esse horizonte se fecha em seu artigo. Que
dificuldades isso coloca para a posição do fazer artístico?

De alguma forma, esse modelo da “positivação de lacunas ou inconsistências


inerentes à nossa história”, que sua frase resume tão bem, talvez ainda seja
o meu. Não sei o que fazer sem ele, embora inveje demais o freyrianismo-
-oswaldianismo que joga isso às favas e nos coloca como intrinsecamente
originais (Zé Celso, por exemplo). Acho que a potência óbvia do Viveiros de
Castro vem da segunda opção (a antropofagia) e não da primeira. Mas não
consigo conectar com ela. Por outro lado, não consigo conectar também com
alguma coisa talvez otimista que percebo na ideia de “Formação”, e na justiça
minuciosa que Antônio Candido fez por décadas com os mais diversos obje-
tos de nossa cultura, nas mais diversas áreas, seguindo a linhagem de Sérgio
Buarque. Acho que tenho uma intuição mais arruinada do país, e por isso
Tristes trópicos é um livro insubstituível para mim. Ali, não há mais infância,
os próprios selvagens (com exceções) foram já contaminados, pertencem à
borra do capitalismo (isso, no Brasil de 30/40), e em meio às flechas há arca-
buzes do tempo de Rondon. A própria descrição da “terra sem mal” de alguns
capítulos (aquele sobre os Nambiquara, por exemplo) é recheada de melan-
colia e da consciência de que aquilo não vai durar muito. O etnólogo, para
Lévi-Strauss, é a espuma refinada do próprio movimento de destruição que
denuncia, e chega ao seu objeto nas etapas finais dessa destruição – que no
entanto procura evitar com todas as suas forças (acho que dá pra ler Os sertões
numa tecla assim, entendendo Euclides como um etnólogo involuntário que
tem seu positivismo de origem contrariado a cada passo que dá, embora mal
perceba isso). Essa consciência paradoxal e crepuscular, onde a famosa coruja
se faz ouvir, é importante pra mim.
Pois sei que não dá mais pra voltar – o desastre urbano brasileiro, por
exemplo, é grande demais. Não há como consertar a estupidez dessas ave-
nidas à beira-mar nas capitais do Nordeste, desses prédios pendurados no
barranco estragando tudo ao redor, dessa ausência completa de planejamento
e desejo unificante que há em São Paulo. Nós somos um escândalo de derrisão

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 279

e pequenez, um salve-se quem puder que esses prédios à beira-mar, ou con-


domínios em meio às casinhas da Vila Carrão, em São Paulo, exprimem como
ninguém – ÓVNIS cafoníssimos, porque transplantados sabe-se lá de onde e
sem qualquer continuidade com seu entorno. São ilhas de individuação tão
frágeis, tão burras, que em meses pertencem já ao fungo comum, à sujeira
urbana.
Essa borra, essa porra é a minha matéria. Não quero fugir dela, mas usá-la,
cobrir uma laje com outra (de vaselina), plantar um fungo na empena imacu-
lada da agência bancária, fazer um queijo no ponto de fuga da vista-pro-mar,
cobrir essas peles todas com uma pele ainda mais estranha e feroz.
Uma vez, fiz aquele trabalho, “Iluminai os terreiros” (inicialmente um
filme), em diversas localidades em Salvador – erguíamos um círculo de pos-
tes, conectados a um gerador, acesos durante toda a noite, no meio do nada,
e ficávamos lá, como vigias sabe-se lá do quê, plantados. Num deles, numa
praia em Itaparica, a maré alta desalinhou completamente os postes, como
se estivessem bêbados. Num outro, apesar de novo em folha, o gerador que
trazia energia para os postes pegou fogo espetacularmente, numa encruzi-
lhada num terreno baldio. Num outro, na ruína de uma enorme fábrica de
cimento que alimentou toda construção em Salvador por décadas, um cavalo
apareceu de madrugada, zanzando por tudo, como que mostrando o lugar
para nós. Foi lindo.

Sérgio Martins - Nesse mesmo artigo você escreve: “Suspeito que o tropicalismo
tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno, e que
o ciclo de conquistas democráticas provenientes dessa operação tenha já se
encerrado há décadas.” À luz dessa suspeita, e de modo mais geral, é possível
imaginar que uma das dificuldades da arte contemporânea seja a ausência
de uma crítica histórica acerca das categorias críticas e contestatórias que lhe
foram legadas pelos anos 1960 e 1970?

Não consigo ver o Luciano Huck sem perceber uma energia horrorosa, de
humilhação do próximo e do pobre – no entanto, acho difícil encontrar o
tom para enunciar essa obviedade. Acho que perdemos completamente qual-
quer capacidade de recusa e criação de padrões e distinções dentro do que a
indústria cultural oferece. Esse é um demônio que o tropicalismo liberou (se
não me engano, no “Verdade Tropical” o próprio Caetano menciona isso), e
que, se teve um papel democrático (numa sociedade com a divisão de classes

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
280 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

e de renda como a nossa, o “achatamento” da indústria cultural cria um lugar-


-comum qualquer, em si mesmo potente, pois integrado, de que Roberto
Carlos seria a expressão perfeita), nos sufoca completamente agora. Talvez
dê pra pensar que o contraste e a heterogeneidade que formaram o ambiente
natural do primeiro tropicalismo (com suas colagens de elementos discrepan-
tes, como a letra de Tropicália talvez explicite bem, no registro choque, e a de
Baby, no registro doce) foram logo substituídas por uma intuição contrária,
de continuidade – o disco Transa, que eu adoro, faz essa passagem entre uma
coisa e outra. A intuição de “Transa” (e, acho eu, também de “Araçá Azul”)
é o contínuo, o homogêneo, e não o contraste que o Brasil profundo, e o da
indústria, pudessem oferecer – e que parece ter disparado o movimento e o
disco que lhe dá nome. Ou seja, a energia libertária e contrastante daquela in-
terpretação de Vicente Celestino talvez tenha se invertido logo na intuição de
que, entre o “Vapor de Cachoeira” e uma “old Beatles song”, é possível passar
sem colagem nem fronteira. O contrastante dos anos 60 se torna fluido nos
anos 70 e dominante nos anos 80. Acho que os discos recentes de Caetano, a
partir do Cê, tentam fazer o caminho contrário, procurando, com foco bem
definido, sem citação nem colagem, com letras no limite da gramática, um
som mais ardido e estranho.
Sei que a expressão “indústria cultural” é muito vasta, e precisa ser com-
preendida por dentro e não por fora, como estou fazendo agora, pois tenho
pouca intimidade com ela. No entanto, no Brasil ela se confunde muitas vezes
com a própria noção de espaço público, o que mostra toda a sua violência.
Que passe pela cabeça de Luciano Huk pular diretamente de um programa
sub-populista para uma candidatura presidencial mostra bem este perigo.
Suspeito (para usar o termo) que a completa indistinção na recepção desses
produtos seja o signo ancestral dessa espécie de “coma cívico” que o Brasil
vem hoje vivendo, a pasmaceira e anestesia do espaço comum, esse ninguém-
-na-rua, essa morte de todas as vozes públicas e sua substituição por grupe-
lhos aparelhados nas vozes-fantasma das redes sociais, girando feito moscas
ao redor de um ressentimento qualquer, imaginário ou real.

Luiz Camillo Osorio - Sua obra em comparação à relevância na cena brasileira


tem pouca visibilidade internacional. Isso talvez tenha a ver com o fato de
sua obra desviar de certa “linha evolutiva” da arte brasileira contemporânea,
estando mais perto do Goeldi que do Oiticica. Além disso, sua atuação como
artista deve incorporar seus deslocamentos na literatura, no ensaio, na música.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
Conversa com Nuno Ramos 281

Coisas que não penetram imediatamente no circuito internacional. Enfim, azar


o deles, mas queria te ouvir a respeito, voltando para esta dimensão meio
histérica da sua obra que foge sempre de uma identidade poética específica.

Mas eu procuro o ponto comum entre o Goeldi e o Oiticica! (O bólide-cha-


ma, a Manhattan de asfalto, o “Cara de cavalo”, não conversam de perto com
as gravuras do Goeldi?). Mas dou razão a você, e não quero diminuir demais
a distância entre eles: vejo Oiticica como um cara que tinha o construtivismo
possível na mão desde a adolescência, mas que foi pra rua, e esse movimento
para fora, para o comum (ainda que muitas vezes para o sono e a anestesia
comuns), para os materiais comuns, é que me fascina – Lygia Clark, que me
fascina menos, parece mais uma enorme “Viagem ao centro do corpo”, uma
tomografia progressiva, com o narcisismo e o feto como prêmio.
Mas há alguma coisa no Hélio que é da ordem do “natural”, do “originá-
rio”, do “somos assim”, um projeto, neste sentido, oswaldiano-freyriano, só
que encarnado num sujeito urbano que quer seu prêmio agora, e deambula
por aí atrás dele – desse projeto sempre desconfiei. Goeldi é urbano mas
é exílio (Sérgio Buarque), um “Milagre em São Cristóvão”, da Clarice, que
acontecesse em cada esquina-gravura, e mais afim ao que acho que conse-
gui compreender do lugar onde vivo. A expressão desse exílio é sua solidez
formal, a sobriedade de suas gravuras e desenhos, que, apesar de empáticas,
criam certo efeito de distância, ou não-imediatez, de que se alguma vez passei
perto terá sido em meus trabalhos com areia calcinada e socada, que de fato
lembram o Goeldi, muito mais do que as séries que fiz em homenagem a ele.
Acho no entanto que minhas pinturas-relevo ou meus quadros de vaselina
não têm nada a ver com o Goeldi (e têm a ver com o Hélio). Num certo
sentido, a fratura entre uma coisa eufórica e uma coisa de luto, que atravessa
todo o meu trabalho, encontrou na influência dos dois um fôlego possível.
Suspeito que o luto seja apenas o freio da euforia de fundo, para que não
acelere demais, derrape e capote, e nesse sentido, se tivesse de escolher, talvez
a influência do Hélio Oiticica (mas junto com o Beuys e com o Pollock) seria
a mais profunda.
Quanto à carreira internacional, é de fato um lance difícil. Obrigado pelo
“azar o deles”, mas o azar também é meu. Uma vez o Anish Kapoor me
sacudiu, brincando, pelos ombros, e perguntou: “why dont you have an
international career?”, e minha resposta foi a oficial – porque o meu traba-
lho é grande, e pesado, e frágil, e com muita variação estilística etc. Mas a

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
282 Pedro Duarte, Luiz Camillo Osorio e Sérgio Bruno Martins

resposta que me veio lá no fundo, e que não pronunciei por medo de parecer
pedante, foi “because I dont need one”. Hoje acho que essa resposta não viria
mais ao fundo do meu ouvido. “I do need one”, não como um prêmio ou um
punhado de dólares, mas como acesso a uma interlocução diferente. Sinto
que já percorri quase que o circuito inteiro no Brasil, e, como essa entrevista
deve estar mostrando, passo pelo país a cada resposta que dou. Tenho medo
de terminar como o Glauber, que atendia o telefone e antes de dizer alô já
começava: “Eu acho que o Brasil” etc. Qualquer país é uma confluência es-
tranha de explicações, que cumprem certo circuito de retorno – de alguma
forma, tende a fazer sentido, e não queria facilitar demais nesse caminho. No
entanto, é difícil fugir desse lugar, ainda mais agora, quando todos os demô-
nios vieram à tona e, se a gente não bater de volta, não sei onde vamos parar.
Tenho muita dificuldade de entender o que se passa e acho que pela primeira
vez na vida (para usar a frase horrorosa de Regina Duarte) tenho medo. Medo
daquele único medo, o verdadeiro e profundo e sem volta e sem nome – o
da incapacidade de amar, a ponto de sequer odiar. Tenho medo de acordar
num lugar assim, que não mereça sequer a minha indignação. A oficialização
da estupidez em episódios como o do QueerMuseu em Porto Alegre ou o da
performance no MAM de São Paulo apontam para algo desse tipo.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.271-282, jan.-jun. 2017
resenhas
Rafael Zacca Fernandes*

Walter Benjamin nos extremos

Walter Benjamin between the extremes

Resenha do livro: Bernd Witte. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero
Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Passaram-se mais de 50 anos desde as primeiras abordagens, no Brasil,1 à


obra de Walter Benjamin, cujos textos parecem ter sempre suscitado diver-
gências interpretativas intimamente entrelaçadas às escolhas de vida do fi-
lósofo (afinal, Benjamin era um marxista, um judeu, um crítico literário ou
um metafísico?). Com um legado em disputa dentro, pelo menos, de depar-
tamentos tão diversos quanto os de Comunicação, Filosofia, História, Socio-
logia e Letras, Benjamin é autor não apenas de textos difíceis, como também
de uma vida igualmente hermética. Agora o leitor brasileiro tem acesso a uma
importante biografia do filósofo, escrita por Bernd Witte, em um pequeno,
mas significativo volume de 160 páginas traduzidas por Romero Freitas para
a editora Autêntica (que tem protagonizado, aliás, nos últimos anos, a edição
de textos e traduções inéditas e importantes da obra de Benjamin por aqui,
com a coleção Filô-Benjamin).
A biografia chega ao país 30 anos depois de ter sido escrita pelo atual
presidente da Sociedade Internacional Walter Benjamin. Antes disso, a vida
do filósofo podia ser reconstruída, para o público lusófono, somente frag-
mentariamente, a partir das interpretações biográficas que se misturam a li-
vros, ensaios e artigos destinados a motivos teóricos em sua obra. É o caso da
importante bibliografia das últimas décadas, como o livro Alegorias da dialé-
tica (2009), de Katia Muricy, o ensaio “Benjamin e o marxismo” (2003), de
Leandro Konder e a obra A atualidade de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno

1 Cf. o controverso, porém referencial, PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de
Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São
Paulo: Annablume, 2006.

* Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio);


E-mail: zacca.rafael@gmail.com

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
286 Rafael Zacca Fernandes

(2009), de Márcio Seligmann-Silva – sem contar, é claro, o esforço mais anti-


go de pensadores como José Guilherme Merquior (um dos pontos-chave na
recepção não apenas de Benjamin, como também de Adorno e Marcuse, ain-
da na década de 1960, no Brasil) e de Jeanne Marie-Gagnebin (que, desde a
década de 1980, a partir de minucioso trabalho filológico, se dedica a formar
imagens da obra de Walter Benjamin).
A controvérsia em torno da vida-obra de Benjamin parece, nesses e em
outros casos, operar pela disputa em torno de pelo menos uma de três ima-
gens do filósofo: o otimista versus o melancólico; o materialista histórico
versus o teólogo judeu; o escritor solitário versus o engajado. É nesse jogo
de forças que a biografia de Witte chega ao país, e parece se assentar nessas
polarizações a arquitetura de seu texto. Antes de mais nada, portanto, Wal-
ter Benjamin: uma biografia, pode ser considerado um livro de interesse não
apenas dos curiosos por sua vida, como também daqueles que recebem os
escritos do filósofo no contexto de sua recepção brasileira. Reforça-se a isto
o fato de a escrita de Witte ser endereçada tanto ao público leigo como à
comunidade de pesquisadores: o biógrafo não conduz a narrativa de acordo
com anedotas inusitadas ou dramas pessoais (o início e o fim do primeiro ca-
samento de Benjamin, por exemplo, são narrados com extrema sobriedade,
sem os tensionamentos comuns ao gênero que reforçariam a sua importân-
cia), mas tece os acontecimentos, ainda que cronologicamente ordenados, de
acordo com questões fundamentais levantadas por Benjamin em cada época
de sua vida. Os primeiros anos de vida do filósofo são invocados a partir
de suas próprias rememorações; o último, sob o título de “Fim da história”,
evoca o último texto escrito pelo autor. E todos os capítulos recebem nomes
que lembram diretamente os seus principais trabalhos (estrutura adotada re-
centemente, aliás, pela biografia de maior fôlego de Eiland e Jennings, Walter
Benjamin: A critical life).
Com relação à disputa “otimismo versus melancolia” de Benjamin, é pre-
ciso lembrar que os lados da contenda se dividem ao organizar fatos e textos
da vida de Benjamin de modo a formar a imagem positiva ou negativa do
filósofo diante de sua própria época. Frequentemente, neste caso, tomam-se
os ensaios sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” e
sobre “Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte”, como
espécies de termômetros dos “ânimos” benjaminianos. Os adeptos do otimis-
mo costumam realçar, por exemplo, os aspectos positivos de sua análise com
relação às técnicas de reprodução, tantas vezes vistas apenas como diabólicas
ou retrógradas (sob o signo da alienação, pelos marxistas, ou da massificação

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
Walter Benjamin nos extremos 287

homogeneizadora, pelos adoradores da “cultura” e da “arte”) diante da pos-


sibilidade de redenção da humanidade. Os advogados do pessimismo do fi-
lósofo têm por hábito ressaltar possíveis mudanças de pontos de vista, nos
ensaios sobre Baudelaire escritos nos últimos anos de Benjamin, a propósito
do “declínio da aura” ocasionado pela perda da tradição e pelos meios técni-
cos de reprodução, bem como certa identificação do filósofo com os estados
melancólicos e saturninos invocados não apenas no texto sobre Kafka como
ao longo de toda a sua obra. Os primeiros relembram a aproximação de Ben-
jamin com as vanguardas artísticas, o seu envolvimento com o rádio (produ-
zindo e lendo as suas peças radiofônicas) e a sua fascinação com o cinema;
os outros, a incompreensão dos amigos mais queridos na década de 1930, o
fracasso com as relações amorosas e o suicídio.
Ambos os aspectos evocados são estruturados na arquitetura do primeiro
capítulo, sobre “Infância e juventude em Berlim”, em que Witte nos dá a
imagem a um só tempo melancólica e otimista de Benjamin, ao recuperar
a narrativa do próprio filósofo quando ainda um pequeno rapaz deslocado
em suas próprias roupas grão-burguesas, cercado de ornamentos colhidos
no século XIX, culminando na expectativa que o jovem Benjamin deposita-
ria no movimento de juventude como um lugar de renovação para a vida.
Desse modo, a figura do melancólico (realista) e a do otimista (idealista) se
fundem complementarmente. É também o que transparece no significativo
capítulo sobre “Imigração: a teoria da arte não aurática”, que nos revela, em
Benjamin, ao mesmo tempo, uma excitação com as possibilidades emanci-
patórias das novas tecnologias e um profundo e crescente desânimo com as
condições materiais de sua produção intelectual. E é ainda impressionante a
superposição factual gerada com a evocação dos pensamentos sobre suicídio
que assolavam Benjamin, e a sua incrível insistência em projetar práticas
coletivas intelectuais. Entre essas práticas, destacam-se o projeto da revista
Crítica e Crise, que não saiu do papel, arquitetado por algum tempo em
parceria com Bertolt Brecht e o círculo em torno do dramaturgo, e também
as aulas de filosofia que Benjamin ministrou quando, em 1939, já exilado
em Paris, a Segunda Guerra Mundial começou, e ele foi “preso num campo
de triagem e depois enviado ao camp des travailleurs volontaires”. Lá, conta
Witte, decidira dar “um curso de filosofia ‘para alunos de nível avançado”,
além de ter tentado editar uma revista do campo.2 É difícil, nestes casos,

2 Cf. o capítulo “Passagens”, p. 123-137

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
288 Rafael Zacca Fernandes

não se lembrar da formulação de um outro materialista histórico vitimado


pelo fascismo, Antonio Gramsci, que invocava certo “otimismo da vontade”
articulado com o “pessimismo da razão”.
O segundo ponto da polarização da imagem do filósofo tem contornos
mais bem destacados na recepção. Ele reflete, em parte, os conflitos pessoais
de Benjamin na década de 1930, dividido entre os afetos e julgamentos do
dramaturgo materialista Bertolt Brecht (que reforçava no amigo a sobriedade
marxista), do amigo Theodor Adorno (que admirava os escritos das décadas
de 1910 e 1920 de Benjamin, e reclamava por um retorno aos seus funda-
mentos) e do historiador e teólogo judeu Gershom Scholem (que ansiava pela
ida, que não se realizou, do amigo a Israel). Reflete, também, a polarização
nacional em ambiente acadêmico que cindiu marxistas e não marxistas após
algumas décadas de “relativa hegemonia cultural de esquerda” (para falar de
acordo com expressão de Roberto Schwarz) 3 – que, até a década de 1980,
fundou-se na teoria marxista – e ranço, de certa geração, com relação à tra-
dição lukacsiana nacional. De todo modo, é realmente bastante estranho que
um filósofo tenha conseguido sustentar por tanto tempo materialismo histó-
rico e misticismo judaico, e não seria de se supor que uma tal filosofia encon-
trasse recepção amena neste ponto. Os adeptos da interpretação materialista
de Benjamin costumam invocar o seu relacionamento com Asja Lacis e a sua
amizade com Bertolt Brecht, bem como o ensaio sobre o teatro épico, o último
capítulo de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” com
a sua exigência pela “politização da arte”, e, é claro, os fragmentos “Sobre o
conceito de história”. Já os defensores do teólogo Walter Benjamin relembram
a sua amizade com Scholem, a sua insistência em problemas aparentemen-
te não materialistas (principalmente a questão da linguagem, que atravessa
toda a sua vida), invocam o “Fragmento teológico-político”, os manuscritos
sobre o tempo messiânico e... os fragmentos “Sobre o conceito de história”!
E é ainda precisamente o texto sobre a história, o “testamento” intelectual e
político de Walter Benjamin, que serve de base para aqueles que advogam
um encontro profícuo entre duas posições aparentemente irreconciliáveis (é
a isso que se dedicam, por exemplo, diversos textos de Michel Löwy e outros
de Jeanne Marie-Gagnebin).

3 Cf. SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Walter Benjamin nos extremos 289

Também neste ponto, a biografia escrita por Witte tende a conciliar a divi-
são. A possibilidade de união entre materialismo histórico e teologia judaica
é localizada tanto nas filosofias da linguagem e da história de Benjamin (que
se fundam no ensaio sobre a linguagem de 1916, no livro sobre o Trauers-
piel e nos fragmentos “Sobre o conceito de história”) quanto na progressiva
precarização como intelectual vindo da alta burguesia. Quanto ao dado bio-
gráfico da transformação de classe por que passa Benjamin, Witte articula
dois motivos. Por um lado, exibe um traço “essencial” de deslocamento que
enxerga no filósofo, que, desde a infância, segundo as suas próprias crônicas
berlinenses, não se identificava com o ambiente grão-burguês de sua família,
fato reforçado pela oposição destacada com seu pai, Emil Benjamin, que con-
quistou a fortuna “como leiloeiro e sócio na Casa de Leilões de Arte Lepke, na
Kochstrasse”, e posteriores investimentos no capital especulativo. Por outro
lado, mostra as tentativas de Benjamin de sobreviver como pesquisador e es-
critor autônomo, após ter a sua tese de habilitação, a Origem do drama trágico
alemão, reprovada.
Aqui reluz a biografia de Witte, que neste ponto consegue costurar mo-
tivos intelectuais e biográficos como em nenhum outro, ao explicitar o pon-
to de convergência, em Benjamin, da situação precária do intelectual com a
situação de exploração do proletariado em uma mesma luta pelos meios de
produção. Assim, Witte considera que alguns apontamentos do ensaio sobre
a “Posição social do escritor francês” e do “Autor como produtor” dizem res-
peito diretamente à condição de Benjamin, que vive uma época em que “o
intelectual não representa ‘os interesses mais humanos’ da burguesia, como
na época em que esta última dominava sem ameaças, nem pode assimilar-se a
si mesmo ao proletariado”, revelando, assim, “uma situação de crise histórica
universal”, cabendo ao artista, à arte, ao intelectual e à crítica uma nova fun-
ção. Esta reflexão tem valor tanto para a compreensão da situação do escritor
e do intelectual europeu do século XX, e sua ligação com os movimentos
sociais, quanto ilumina, talvez, a situação precária do escritor e do intelectual
brasileiro, que se origina de condições tão ou mais contraditórias quanto a
descrita por Witte e Benjamin.
Finalmente, como se move Witte naquela querela que divide as opiniões
entre o solitário e o engajado Walter Benjamin? A primeira imagem é a do
escritor que fracassou no amor e se separou terrivelmente de suas amizades
ao longo de toda a sua vida, que não conseguiu concretizar seus projetos
coletivos, que não ingressou para o magistério, que não se engajou em ne-
nhum partido comunista; a segunda, daquele que arquitetou o seu ingresso

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para o Partido Comunista Alemão, que foi para a União Soviética e sentiu,
em Moscou, a necessidade crescente de posições mais radicais diante da crise
capitalista, que quando estudante se engajou no movimento estudantil, que
se misturou à intelectualidade e à classe artística francesa em suas idas a Paris,
que tentou até o fim de sua vida saídas coletivas diante da época mais som-
bria da Alemanha. No primeiro caso, costumam figurar nas argumentações
fragmentos do trabalho das Passagens que tratam da necessária solidão que
seu empreendimento demandava, e associações do filósofo com duas figuras
literárias por ele admiradas: mais uma vez Kafka, e Baudelaire, solitários no
século XX e no XIX. Quanto aos partidários de um Benjamin engajado, pulu-
lam as menções ao ensaio sobre o surrealismo (e a exigência de “organizar o
pessimismo”) e à conferência, realizada no Instituto para o Estudo do Fascis-
mo, intitulada “O autor como produtor”.
Quanto a esta questão, Witte não omite os momentos em que Benjamin
tentou se engajar em projetos coletivos, e reforça mesmo o seu ardor em
empenho tanto na militância com o movimento de juventude quanto na von-
tade de se filiar ao Partido Comunista. Entretanto, favorece a imagem de um
Benjamin solitário, ao arquitetar o início e o fim de sua biografia com duas
narrativas-chave: a do jovem “solitário idealista”, que durante a infância, sem-
pre que tinha companhia para as caminhadas, atrasava o passo (mesmo quan-
do acompanhado de sua mãe) e que em vão procurava “o sentido de sua ação
social e o abrigo de uma comunidade”, e a do historiador materialista que
“percebe o fracasso da história”, como alguém que “fracassa ele mesmo”. Nas
últimas páginas, Witte descreve um “materialista dialético, sem esperança nos
homens ou para os homens”, e que “precisa depositar a esperança na catás-
trofe escatológica que irá restaurar o mundo num piscar de olhos”. Com isso,
Witte termina por legar a imagem de um Walter Benjamin solitário, condena-
do a repetir, por vontade ou não, aquele gesto de recusa do jovem que detes-
tava subir as escadas coletivamente na escola secundária. Para uma biografia
que soube amarrar de modo complementar outros pontos “extremos” em que
se moveu a vida e os textos de Benjamin, uma pequena decepção. Ao “fechar”
o sentido da vida de Benjamin – ainda que constituído retrospectivamente,
como uma espécie de inofensivo guia de leitura – com a marca da solidão
como destino, Witte submete uma vida convulsionada pelo século XX e pelas
contradições de classe a uma espécie de essência, e, precisamente neste pon-
to, e não em outros, a biografia de Witte se assemelha às demais biografias de
intelectuais e escritores que associam vida e obra de maneira mítica – forma
de associação evitada, e mesmo combatida, por Benjamin.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
Walter Benjamin nos extremos 291

Referências

WITTE, B. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.
PRESSLER, G. K. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005.
Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: Annablume,
2006.
SCHWARZ, R. Cultura e política, 1964-1969. In: ______. O pai de família e outros
estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.285-291, jan.-jun. 2017
A importância da arte para
a estética em Theodor Adorno
Rachel Costa*

The importance of art for


aesthetics in Theodor Adorno

Resenha do livro: ADORNO, Theodor; DUARTE, Rodrigo (trad. e org.).


A arte e as artes e Primeira Introdução à Teoria Estética. Rio de Janeiro: Bazar
do Tempo, 2017

A nota introdutória, redigida pelo organizador e tradutor Rodrigo Duarte, faz


um panorama do contexto de publicação dos dois textos que compõem a
obra: “A arte e as artes”, palestra proferida na Academia Berlinense das Artes
em 1966, e a “Primeira Introdução à Teoria Estética”, texto que seria substi-
tuído se Adorno tivesse vivido para finalizar sua obra. “Ambos os textos se
relacionam com a Teoria Estética, uma vez que a época de sua redação coin-
cide com a fase de finalização da grande obra de estética com a qual Adorno
gostaria de coroar uma sequência de trabalhos nessa área, que teve seu início
na segunda metade da década de 1930” (p.8). Nessa nota, Duarte aponta os
principais argumentos trabalhados pelo filósofo, contextualizando a discus-
são no escopo da produção adorniana. É importante ressaltar que a publica-
ção desses dois textos, em conjunto, exige relembrar a afirmação do próprio
Adorno de que Hegel e Kant foram os últimos a escrever sobre estética sem
entender de arte, visto que a nova arte não aceita submeter-se a filosofias
universalizantes e exige que se deixe falar a produção artística.
“A arte e as artes”, como aponta Duarte, é um artigo sui generis, no qual
Adorno modifica sua opinião sobre a contaminação de um gênero artísti-
co por outro, deixando de lado o conceito de pseudomorfose, característico
de seus textos sobre música da década de 1940. Essa modificação pode ser

* Bolsista de PNPD do Programa de pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte da Universidade


Federal de Ouro Preto (UFOP); E-mail: rachelcocosta@gmail.com.

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percebida no primeiro parágrafo do texto, onde o filósofo afirma que“[n]o de-


senvolvimento mais recente, fluidificam-se as fronteiras entre os gêneros ar-
tísticos ou, mais exatamente, suas linhas demarcatórias se entrelaçam” (p.21).
Para corroborar sua afirmação, Adorno recorre a exemplos da pintura,
da música, da literatura e da escultura a ele contemporâneas, sempre en-
fatizando em que medida os marcos fronteiriços entre os gêneros artísticos
se dissolvem, devido à apropriação de princípios tipicamente característicos
de um gênero por outro. A insistente presença dessa fluidez entre gêneros
demanda um esforço de interpretação do enlaçamento. Não atentar para essa
característica marcante do espírito do tempo seria, segundo o filósofo, prova
de provincianismo.
A motivação ulterior do enlaçamento entre gêneros é de cunho histórico,
característica ignorada pelo grande público que tende a compreender os gêneros
artísticos como naturalmente dados. Isso traz à tona o aspecto de antiarte que a
produção vanguardista esposa, levando às últimas consequências o questiona-
mento das características que são equivocadamente tratadas como naturais dos
gêneros artísticos. Outro modo de contraposição ao enlaçamento dos gêneros
é a racionalização e reprodução de um discurso datado sobre as artes, que tem
no conceito de belo, e na materialidade que lhe é característica, o seu corolário.

A arte se liberta do seu momento culinário: ele se tornou irreconciliável


com o espírito quando esse perdeu sua inocência, a da unidade com o que é
composto, em cuja função o belo som se transformou no progresso da domi-
nação do material. Desde que o elemento culinário – o estímulo sensível – é
cindido e se torna um fim em si mesmo, e objeto de uma planificação ra-
cional, a arte se revolta contra toda dependência do material previamente
dado, fechado em relação à criação autônoma, que se reflete na classifica-
ção da arte em artes (p. 29).

As filosofias sistemáticas de Hegel e Schopenhauer não deram conta da


hierarquização nem da sistematização dos gêneros artísticos. Os próprios
artistas, por sua vez, tomam consciência dessa ausência de fundamento das
barreiras estilísticas e desenvolvem reflexões sobre esse cenário, a exemplo
de Wassily Kandinsky, mencionado por Adorno. Todavia, essas reflexões são
insuficientes e tendem a uma abstração de sabor hegeliano, ou seja, a uma
tendência à separação entre espírito e matéria graças à independência do
primeiro em relação à segunda. Distanciando-se a produção artística daqui-
lo que deveria ser espiritualizado, instaura-se uma tendência à produção de

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 295

obras que pretendem espiritualizar o material, mas que, na verdade, produ-


zem apenas o material. Esse é o caso, por exemplo, de John Cage. É nesse
contexto que os gêneros artísticos passam a buscar generalizações concretas
tendendo a um ideal de arte.
Adorno ressalta que a tentativa de unificação dos gêneros em um ideal de
arte é anterior à modernidade. No século XVIII o enlaçamento entre os gêne-
ros se deu pela subjetivação da produção, na qual a obra de arte passa a ser
percebida como uma espécie de identidade do artista que ele poderia impri-
mir a gêneros diferentes. No entanto, a subjetivação da criação artística gera
um problema de falta de alteridade. Seu teor de verdade depende da relação
imanente entre o sujeito que a executa em oposição ao mundo dos objetos.
Esse princípio de alteridade resulta em obras que são constituídas por uma
generalidade estética em uma materialidade, não sendo o artista determinado
por uma unidade ou por um gênero específico.

O que as artes querem dizer com o seu o quê torna-se o como elas querem
dizer algo outro. Seu conteúdo é a relação do o quê com o como. Elas se
tornam arte em virtude de seu conteúdo. Ele necessita do como delas, sua
linguagem particular; ele se dissolveria em algo mais abrangente além do
gênero (p. 43).

Discutir sobre a origem primeira da arte ou das artes é tarefa de conservado-


res. É característica do pensamento reacionário não observar a contradição
intrínseca aos fenômenos, optando por um dualismo esvaziado que acusa a
dialética de ser a responsável pela construção de um problema. Nesse mo-
mento, Adorno elege Borchardt como exemplo e adversário, mostrando que
suas estratégias de demarcação rígida e ontológica dos gêneros, tentativa de
demonstrar uma diferença qualitativa entre as artes, fracassaram. Sua análise,
que contrapõe o poético ao profano e atribui o teor enigmático do incalculá-
vel apenas à poesia, não aponta relações dialéticas sustentáveis, de maneira
que sua retórica não resiste aos fenômenos. Em contraposição a Borchardt,
Adorno apresenta Martin Heidegger e o poético na obra de arte. Através de
uma ontologização da linguagem, Heidegger subsume elementos heterogê-
neos e transforma o poético em essencialidade pura sem conteúdo. Assim,
Adorno desqualifica a tentativa de subordinar os diferentes gêneros artísticos
sob o conceito de arte como grande gênero superior. Não há um continuum
entre as artes que permita pensá-las sob um único conceito determinante sem
que se abstraia, juntamente com o acidental, o essencial.

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296 Rachel Costa

Existe uma relação de interdependência entre a arte e as artes que impede


a subsunção de uma sob a outra. Enquanto a arte desenvolve seu conteúdo
através dos fenômenos oferecidos pelas artes, estas, por sua vez, participam
da arte não como conceito unificador, mas negativamente, na competência
que lhes é comum: repelir a realidade empírica.

(....) todas (as artes) tendem para a formação de uma esfera que se con-
trapõe qualitativamente a essa: historicamente elas secularizam a esfera
mágica e sacral. Todas necessitam de elementos oriundos da realidade
empírica, da qual elas se distanciam; e suas realizações, porém, recaem
também na empiria (p. 55-6).

A arte e as artes estabelecem necessariamente uma tensão entre si. Em um


polo temos o momento da realização plural empírica das artes que, em sua
multiplicidade, esboçam uma unidade racional, construindo o conteúdo que
caracteriza o polo oposto, a arte. O espírito se torna conteúdo apenas na ca-
mada empírica. Nesse sentido, a dialética entre a arte e as artes é inerente a
elas. Essa interdependência entre unidade e multiplicidade diferencia a com-
preensão adorniana das posições conteudísticas características do mesmo pe-
ríodo. Há uma tendência, principalmente proveniente da tradição positivista,
à recusa de sentido da estética. Ela acompanha o abandono da dimensão figu-
rativa da obra de arte, a qual expressa a necessidade do enlaçamento das artes
de se apartar da determinação dos gêneros artísticos. O conteúdo da obra de
arte é estético. É nesse sentido que a arte está em processo de abandono de
seu sentido metafísico tradicional. Adorno mostra que uma das primeiras
formas de enlaçamento são as colagens realizadas pelas primeiras vanguar-
das do século XX. No intuito de fugir à figuração, os gêneros terminam por
buscar a realidade em si, sua dimensão extra-estética. Há uma negatividade
no próprio conteúdo da arte, pois a arte em si mesma é dinâmica, não per-
mitindo definição estanque. Para finalizar seu argumento, Adorno recorre à
negatividade do cinema, o qual pela tentativa de não ser arte, de se tornar a
própria imanência, amplia seu domínio. Assim, a diluição das fronteiras entre
gêneros não atesta uma decadência da arte, mas, pelo contrário, é condição
que garante sua permanência.
A atualidade da discussão adorniana em “A arte e as artes” fica pre-
mente se comparamos sua posição sobre a questão dos gêneros da arte à de
seu contemporâneo, o crítico de arte norte americano Clement Greenberg.
Sua teoria mostra de que modo a arte moderna tende para a exploração de

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A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 297

seu próprio medium. Por meio do conceito de planaridade, Greenberg associa


a tendência à abstração na pintura a uma exploração, até as últimas consequ-
ências, daquilo que a caracteriza: a tela plana1. No entanto, Greenberg negou
e criticou o enlaçamento dos gêneros até a sua morte, na década de 1990. As-
sim, a produção artística característica do modernismo até o pós-guerra abriu
espaço para proposições como o conceito de pseudomorfose de Adorno e de
planaridade em Greenberg. Todavia, a arte que começa a ser produzida no
início da década de 1950 abre espaço a um outro tipo de discussão, na qual
a afirmação adorniana de que não é mais possível fazer estética sem saber de
arte se torna ainda mais acertada. Contudo, a seguinte questão permanece
não respondida: como podemos compreender o conteúdo estético que carac-
teriza a tendência não metafísica da arte?
“A Primeira Introdução à Teoria Estética” mostra, por meio de sua subdi-
visão, a conexão supracitada com a Teoria Estética, sendo que para Duarte há
uma diferença de enfoque que torna a primeira, muitas vezes, um texto mais
empolgante. Na nota introdutória Duarte resume com perspicácia cada uma
das subdivisões, atitude que abre espaço para uma aproximação temática do
texto. Adorno organiza a “Primeira Introdução” em torno da necessidade de
reconfigurar os termos do que entendemos por estética, tendo em vista o
cenário de desgaste e de indiferença com relação a ela. A estética afastou-se
do cunho metafísico de suas teorias tradicionais. No entanto, ao ater-se aos
fenômenos incorre no equívoco de restringir-se a uma lista de meros exem-
plos. “O caráter obsoleto da estética tem o fundamento de que ela quase nun-
ca se voltou para o concreto. Por meio da forma, ela parece comprometida
com uma universalidade que a leva à inadequação com as obras de arte e,
de maneira complementar, a valores eternos transitórios” (p.72). Assim, se-
gundo o panorama da disciplina explicitado por Adorno, a estética traz uma
dicotomia interna, entre sua expressão filosófica, que busca a universalidade
à revelia da produção artística, e um foco no fenômeno, que o esvazia e recai
na contingência inarticulada das particularidades.
A ela soma-se a valorização empirista da recepção subjetiva das obras, à
qual escapa o verdadeiro objeto estético, tornando o sentimento algo coisifi-
cado. Essa atitude irrefletida perante as obras, ao promover uma supervalo-
rização da intuição e a supressão do conceito, é caracterizada por Adorno de

1 Ferreira, Gloria; Mello, Cecilia Cotrim de; Greenberg, Clement. Clement Greenberg e o debate
crítico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
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pré-estética e apontada como componente da indústria cultural. A estética


torna-se supérflua quando a arte cumpre função de lazer, desarticulando a
potência de resistência a ela inerente e transformando-a em irracionalida-
de comercializável. Adorno chama isso de ingenuidade estética. A indústria
cultural promove a ingenuidade como instrumento de supressão da reflexão
sobre as obras no momento de sua experiência, de maneira a aniquilar o po-
tencial transformador da arte.
No entanto, há uma ingenuidade nata na arte, que lhe atribui seu caráter
de não subserviência à realidade, e essa ingenuidade opõem-se àquela incu-
tida pela ideologia da indústria cultural, transformando-se em ingenuidade
negativa. Para o observador, saber o que se experiencia é essencial para uma
recepção verdadeira das obras, permitindo aproximação dessa ingenuidade.
A possibilidade de relação imediata com a arte está calcada não apenas na per-
cepção, mas também, concomitantemente, na reflexão. É dessa dupla relação
com a obra que pode nascer uma verdadeira imediatidade, ainda que depen-
dente de um momento que a ultrapassa, deslocando a ingenuidade para seu
lugar adequado: o do destino - não o da origem.
Ao tornar-se consciente do mal-estar operante no mundo artístico, a arte
percebe a urgência de reflexão sobre seus princípios. No momento em que o
questionamento da possibilidade da arte mesma se apresenta de modo con-
tundente, impedir a autodeterminação externa é crucial para não esvaziar
seu caráter de verdade. Realizando um questionamento de seus princípios,
a partir de si mesma, a arte sobrevive através de sua morte, pela negação de
seus pressupostos. A nova arte atribui a si a responsabilidade de criar suas ca-
tegorias pela autorreflexão. É nesse sentido que Adorno afirma ser a estética
tradicional irreconciliável com a arte atual.
A estética lida com dificuldade com a contradição inerente à produção
artística dinâmica, dada a sua necessidade de, enquanto filosofia, estabelecer
universalidade. Assim, para Adorno, somente por meio de uma autoconsci-
ência crítica a filosofia poderia acompanhar novamente a arte. É necessário
repensar a estética nos termos colocados pela própria produção artística. A
estética, ao tentar alcançar a arte em seu domínio, opera a internalização de
seu aspecto metafísico à esfera de autoquestionamento da arte. Quanto mais a
arte extrai da consciência de si, mais se aproxima da ausência de sentido. Essa
ausência de sentido é histórica e a obra não pode se furtar a ela, sob risco de
recair no absurdo. Sua aproximação da ausência de sentido é o que a fetichiza.
Seu caráter de fetiche, que a aproxima da inverdade, é a vertente que permite
à arte evidenciar seu ofuscamento frente à realidade e transcender seu bani-
mento da mesma como algo espiritual.

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A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 299

Portanto, a urgência de uma estética adequada à arte de seu tempo se


manifesta por demanda do próprio universo artístico. Ao pensar o seu de-
vir característico, a arte carece da estética para atribuir-se a porção filosófica
necessária para acender seu teor de verdade. A estética aqui não atua mais
através da importação de filosofemas, mas constrói-se no âmago da realiza-
ção autorreflexiva da arte, que a alimenta e, ao mesmo tempo, extrai dela
sua validação para além de conceitos esvaziados. Sem a estética, a realização
espiritual exigida pelo desdobramento das obras não converge com a filoso-
fia. “Se a hora da arte ingênua, segundo a visão de Hegel, já passou, então ela
deve incorporar em si a reflexão e levá-la adiante de tal modo que não fique
mais suspensa no ar como algo exterior, estranho; é isso que significa estética
hoje” (p. 100).
A estética, não podendo ser nem conceitual nem a-conceitual, encontra
como alternativa a absorção da dialética filosófica na relação entre fato e con-
ceito, mediados um pelo outro, tornando-se assim o refúgio da metafísica.
Através dessa estratégia, também a crítica se resguarda do risco de esvair-se
em juízos falsos. Adorno destaca que a estética hegeliana se distingue de sua
dialética extra-estética, pois naquela não é possível pressupor a metafísica do
espírito que, unificando o singular e o universal, identificaria a objetividade
da obra de arte com seu espírito. As obras de arte são, por sua constituição,
objetivas. A arte, que não é ente, é o amplamente sensível, que se determina
como espírito não puro em contradição à realidade empírica; é a cristalização
do processo entre espírito e o seu outro. Essa duplicidade inerente à obra de
arte é que faz dela a expressão sensível da metafísica. Esse outro que resiste à
unidade não é incutido na obra por seu autor, mas algo que a obra porta em si
mesma, a pré-formação social e histórica de seus materiais e procedimentos.

(...) as obras de arte são coconstituídas (mitkonstituiert) por meio da resis-


tência do material artístico, por meio de seu postulado próprio, por meio
de modelos e modos de experiência historicamente contemporâneos, ele-
mentares já num espírito que, resumindo e desviando de Hegel, pode ser
chamado de objetivo, de modo que sua redução ao espírito subjetivo se
torna superada (p. 109).

Adorno nota que a estética não se dá como categoria do espírito, como po-
deria pretender a filosofia e, assim, deve se ocupar em determinar o espírito
nas obras de arte. Assim, a compreensão estética do objeto artístico ocorre
em camadas e não se inicia na experiência, ainda que esteja necessariamente
ligada a ela. Apoiando-se no contra-movimento de autonegação do sujeito,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
300 Rachel Costa

que impõe distanciamento da imediatidade da obra para poder abordar aqui-


lo que os objetos dizem e silenciam a partir de si mesmos, compreende-se a
obra na experiência da alternativa entre verdadeiro e não verdadeiro. Esse co-
nhecimento se dá de acordo com a própria lógica da obra, ainda que uma ca-
mada de compreensão preliminar possa atuar como “porta para o conteúdo”,
de modo que a crítica seja imanente. Atingir o teor de verdade é o objetivo
da crítica e essencial à experiência da obra, pois esta participa do conheci-
mento e apenas ao ser acessada na perspectiva da verdade, escapa ao círculo
do gosto. No entanto, o conhecimento das obras de arte não se equivale à
cognição do objeto, mas procura acessar justamente o seu incompreensível,
intrínseco ao caráter enigmático da arte. A estética não pode explicar a obra,
pois incorreria na postulação de algo nela objetivamente compreensível, mas
sim compreender a própria incompreensibilidade da coisa. A análise dessa
incompreensibilidade constitui a chave da produção de uma teoria
estética imanente.
No âmago da obra, a filosofia da história atua, ainda, como fronteira di-
fusa da experiência imediata. No caso de obras de arte do passado, o deslo-
camento temporal atribui-lhes um estado de não experiencialidade imedia-
ta, tornando-as arcaicas. “Muitas obras de arte do passado, inclusive muito
famosas, não são mais possíveis de experienciar imediatamente e se tornam
equívocas pela ficção dessa imediatidade” (p. 120). Apenas através do aces-
so ao pensamento histórico-social saturado na obra, o fenômeno torna-se
compreensível. Mesmo a análise imanente da obra, em voga em decorrên-
cia da valorização dos procedimentos cientificizados, não é suficiente para
sua compreensão, ainda que relevante no processo de explicitação de suas
questões estruturais. A experiência artística certamente não se resume a essa
aproximação materialista, e a estética entra em cena no ponto onde a análise
cessa, impelindo-lhe seu teor de verdade. O elemento externo, que cristaliza
na obra seus teores espirituais e sociais, permite a ela ultrapassar seu caráter
de verdade, tornando-a verdadeiramente artística. Sua qualidade estética é o
que a conserva e sua apreciação depende dessa dialética entre o elemento uni-
versal e o particular que a constitui. Isso deve ser o cerne da preocupação da
estética atual. Logo, o caráter metafísico da arte é negativo, ele estabelece com
a obscuridade do elemento estético uma relação que constitui a obra de arte.
O erro de teorias contemporâneas como a fenomenologia é a fixação no
caráter originário da experiência, sendo que as obras devem ser pensadas a
partir de sua cristalização histórica. “A arte espera pela própria explicação.
Metodologicamente realiza-se na confrontação das categorias historicamente
herdadas e dos momentos da teoria estética com a experiência estética, que

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A importância da arte para a estética em Theodor Adorno 301

ambos corrigem reciprocamente” (p.133). Assim, o paradoxo da objetividade


e subjetividade da obra de arte é o elemento vital da estética. Isso significa
que a contradição é característica da obra, tanto em sua forma, quanto em sua
efetividade material. É dentro desse contexto que as estéticas de Kant e Hegel
se mostram inoperantes, suas estéticas estão aquém do fenômeno estético.
Logo, para Adorno, a estética deve partir da ideia de uma segunda reflexão,
de medium da reflexão, como modo de análise da obra de arte, para que a ex-
periência não se resuma nem à materialidade, nem à objetividade conceitual.

Toda obra de arte, ainda que se apresente como perfeita harmonia, é em si


mesma um contexto de problema. Enquanto tal, ela toma parte na história
e supera, por meio disso, sua própria solidão. No contexto de problema
deste tipo, encerra-se na mônada o ente fora dela, por meio do qual ela é
constituída (p. 149).

Portanto, a “Primeira Introdução à Teoria Estética” dialoga com um cenário


de teorias estéticas, trazendo à tona suas vantagens e desvantagens com o
objetivo de mostrar em que medida elas não se adequam ao contexto da arte
atual. Ao mesmo tempo, Adorno analisa o cenário da produção artística con-
temporânea trazendo à tona as questões que acompanham o objeto artístico.
Logo, o filósofo entende a estética como ligada à imanência da obra de arte
sem deixar de lado o caráter transcendente que a caracteriza. Dentro desse
contexto, a estética não pode se resumir a uma retomada de Kant e Hegel,
visto que essas teorias não se conformam à particularidade da obra de arte e
de sua experiência. Ao mesmo tempo, não pode se ater apenas ao fenômeno,
para não se tornar um mero juízo de gosto. A importância desse texto está em
mostrar, no contexto da profusão de teorias estéticas que acompanha o século
XX, a necessidade de uma teoria que ultrapasse as propostas da tradição e as
contemporâneas. Com isso, Adorno funda um novo espaço de discussão para
a estética. Todavia, o texto deixa em aberto a seguinte questão: como se dá a
segunda reflexão que deveria caracterizar a experiência estética?

Referências

ADORNO, T.; DUARTE, R. (trad. e org.). A arte e as artes e Primeira Introdução à


Teoria Estética. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.
FERREIRA, G.; MELLO, C. C. de; GREENBERG, C. Clement Greenberg e o debate
crítico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.293-301, jan.-jun. 2017
vária
Do instante à ek-stase:
a mudança na teoria do tempo em Sartre
Fernanda Alt*

From the instant to the ek-stase:


the change in Sartre’s theory of time

Resumo
Este artigo pretende mostrar a mudança que ocorre na teoria do tempo de Jean-
Paul Sartre no fim dos anos 1930. Tal mudança consiste numa reconsideração da
teoria da temporalidade sartriana, até então instantaneísta, para uma concepção
ek-stática, influenciada pela leitura de Ser e Tempo de Heidegger. Consideramos
que evidenciar esta mudança é extremamente importante, não somente porque
nos auxilia a identificar uma periodização que nem sempre é indicada nos estudos
sartrianos, mas principalmente pelo fato de que tal transformação teve um papel
fundamental na elaboração da ontologia de O Ser e o Nada, sobretudo no que diz
respeito à estrutura da facticidade e às análises sobre o passado. Além disso, tal
investigação permite entrever de forma concreta a influência decisiva da filosofia
heideggeriana no pensamento de Sartre.

Palavras-chave: temporalidade instantaneísta; temporalidade ek-stática;


facticidade; passado; Sartre.

Abstract
This article intends to show the change that took place in Jean-Paul Sartre’s theory of
time in the late 1930s. This change consists of a reconsideration of Sartre’s theory of
temporality, until then an instantaneist one, to an ekstatic conception, influenced by
the reading of Heidegger’s Being and Time. We believe that highlighting this change
is extremely important, not only because it helps us to identify a periodization that
is not always indicated in the studies of Sartre’s philosophy , but mainly because
this transformation played a fundamental role in the elaboration of the ontology of

* Doutora em Filosofia pela UERJ e Paris 1 Panthéon-Sorbonne (Cotutela). Possui Mestrado, Gra-
duação, experiência clínica e docência em Psicologia; E-mail: fernandaalt@gmail.com.

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Being and Nothingness, especially with regard to the structure of facticity and in the
analyses of the past. Moreover, such an investigation allows us to see in a concrete
way the decisive influence of Heidegger’s philosophy on Sartre’s thought.

Keywords: instantaneist temporality; ekstatic temporality, facticity; past; Sartre.

Tenho uma espécie de vergonha de abordar o exame da temporalidade. O


tempo sempre me pareceu um quebra-cabeça filosófico e eu fiz, sem prestar
atenção, uma filosofia do instante […] eu estava bastante embaraçado e
chateado de me ver lá, único instantaneísta, no meio das filosofias contem-
porâneas, que são todas filosofias do tempo.1

Sartre, Diário de uma guerra estranha

De forma geral, dois períodos se destacam quando se considera o percurso


filosófico de Jean-Paul Sartre: um primeiro que vai de textos como A Trans-
cendência do Ego e A Imaginação, atingindo seu auge em O Ser e o Nada; e um
segundo período, voltado para o marxismo, que se inicia com a Crítica da
razão dialética e que de algum modo perdura até sua morte2. Esta divisão é
de fato pertinente na medida em que a Crítica - sem entrar no debate sobre a
continuidade ou descontinuidade desta obra com relação às anteriores - traz
outra gama de problemas, a partir de um vocabulário renovado. No entan-
to, o risco de considerar um período em bloco é justamente aquele de não
observar mudanças decisivas que ocorrem em seu interior3. É isto o que
geralmente acontece nas leituras da obra de Sartre quanto à mudança em sua
teoria do tempo no fim dos anos trinta, a partir da qual ele abandona uma
visão instantaneísta em prol de uma concepção ek-stática da temporalidade.
No presente artigo, pretendemos mostrar esta mudança a fim de evidenciar
algumas diferenças fundamentais entre seus textos iniciais e O Ser e o Nada.

1 Sartre, J-P., 2010, p. 495. Todas as traduções do francês para o português são livres.

2 A Transcendência do Ego foi escrito em 1934 e publicado em 1936-7, A Imaginação em 1936, A


Náusea em 1938, O Ser e o Nada em 1943 e a Crítica da razão dialética em 1960.

3 Neste contexto vale destacar o trabalho de Vincent de Coorebyter na medida em que ele se
concentra em mostrar, de forma minuciosa, as diferenças entre os escritos iniciais de Sartre e O
Ser e o Nada, dentre elas a mudança na teoria da temporalidade. 

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1. O instantaneísmo em A Náusea e em A Transcendência do Ego

No caderno XI do Diário de uma guerra estranha de 1940, Sartre admite cons-


trangido que até então fizera uma filosofia instantaneísta em meio a filosofias
contemporâneas do tempo, pois este sempre lhe apareceu como um quebra-
-cabeça filosófico difícil de resolver. Um dos gestos de sua autocrítica con-
siste em repensar a teoria do tempo que teria sido explicitada de forma mais
evidente em seu romance A Náusea, sobretudo no que diz respeito à forma
de considerar o estatuto ontológico do passado: “[em A Náusea] eu havia
pressentido esta fraqueza desarmada do passado, […] mas eu concluí mal,
eu havia dito que o passado se aniquilava (s’anéantit). Isto não é verdade, ao
contrário, ele existe ainda, ele existe em si”4, diz Sartre. Este trecho do Diário
data de um momento de transição, de reelaboração, de uma teoria do tempo
que será um dos fios condutores de O Ser e o Nada. As reflexões sobre a
temporalidade encontram-se aí ainda em esboço: “E eis que agora entrevejo
uma teoria do tempo. Eu me sinto intimidado antes de a expor, eu me sinto
um moleque”5. A dificuldade com relação ao modo de conceber o tempo se
mostra de forma mais evidente na maneira de se pensar o passado, e o roman-
ce A Náusea revela a posição instantaneísta desenvolvida até então. Por outro
lado, as teorizações presentes no artigo A Transcendência do Ego nos permitem
compreender as nuances filosóficas de seu instantaneísmo, principalmente se
observarmos atentamente a descrição do que Sartre chama de reflexão pura6.
Passemos brevemente aos textos, evidenciando estes pontos.
No pequeno artigo Uma ideia fundamental da filosofia de Husserl: a intencio-
nalidade, Sartre elabora sua própria definição de consciência intencional a par-
tir de uma interpretação particular deste conceito em Husserl. Esta é descrita

4 Sartre, J-P., 2010, p. 627.

5 Ibidem, p.495. Devido ao caráter de esboço destas notas do Diário, vale observar as diferenças
entre certas teses apresentadas nestes cadernos e as do próprio O Ser e o Nada. Enquanto que em
suas notas Sartre equipara temporalidade e facticidade, por exemplo, este não nos parece ser o
caso em sua ontologia, em que a temporalidade é definida como o “sentido da transcendência” do
ser para-si, que é o ser da consciência. Cf. Sartre, 2012a, p. 141.

6 Pensamos a relação entre as obras propriamente filosóficas e as obras literárias de Sartre de


acordo com a ideia de Franklin Leopoldo e Silva (2004) de “vizinhança comunicante”. Segundo
este autor, falar de uma vizinhança comunicante entre as diferentes formas de produção sartriana
significa ter em vista que cada meio de expressão resguarda sua particularidade, mas acessa o
outro por uma espécie de “via interna”, sem mediação exterior. Isto que dizer que não cabe à lite-
ratura, por exemplo, concretizar a filosofia, que seria abstrata. Ambas as expressões se dão devido
à interligação abstrato-concreto/universal-particular presente na obra sartriana como um todo.

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neste momento como sendo vazia de conteúdos, puro movimento, “uma


ventania, um deslizamento para fora de si”7, jogada na esfera transcendente.
Em A Transcendência do Ego, texto escrito no mesmo ano de 1934, o modo
temporal da consciência é definido ainda em termos de “espontaneidade”:

Podemos formular nossa tese: a consciência transcendental é uma espon-


taneidade impessoal. Ela se determina à existência a cada instante, sem
que se possa conceber nada antes dela. Assim, cada instante de nossa vida
consciente nos revela uma criação ex nihilo. Não um arranjo novo, mais
uma existência nova.8

Tal maneira de conceber a temporalidade subentende um desprendimento do


passado na medida em que a espontaneidade da consciência significa que há,
a cada momento, “uma existência nova”, criação ex nihilo. Com efeito, este
primeiro período da filosofia de Sartre é marcado por tal desprendimento, o
que pode ser constatado em notas do Diário, nas quais ele relata sentir uma
“falta de solidariedade consigo mesmo” no passado9; como se, ao assumir a
responsabilidade por suas ações anteriores, ele se visse, no fundo, tendo que
“pagar generosamente por um outro”10. Neste contexto, o passado toma a fi-
gura de uma espécie de “lugar” isolado que poderia ser contemplado somente
“do alto” de seu presente, aspecto que encontra sua melhor descrição justa-
mente em A Náusea.
Antoine Roquentin, personagem emblemático deste romance sartriano,
descreve o passado como sendo um “luxo de proprietário”, o qual ele de-
nomina ironicamente de “passado de bolso”. Este se caracteriza como uma
espécie de “reservatório” onde lembranças são arquivadas com a intenção de
justificar, por um acúmulo de experiências e conhecimentos, uma existência
que, como pura presença, é injustificável, uma vez que é livre e contingen-
te. Contra esse passado que seria um refúgio, Roquentin exclama: “Cômodo
passado! Passado de bolso, livrinho dourado de belas máximas!”11; e explica:

7 Sartre, J-P., 1989, p. 30.

8 Sartre, J-P., 2003, p.127.

9 Sartre, J-P., 2010, p. 495; p. 234.

10 Ibidem, p. 234.

11 Sartre, J-P., 2012b, p. 104.

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para mim o passado era somente como um aposentar-se: era uma outra
maneira de existir, um estado de férias e de inação; cada acontecimento,
quando seu papel (rôle) havia chegado ao fim, se colocava prudentemente
em seu lugar, por si próprio, em uma caixa e tornava-se acontecimento
honorário: tal a dificuldade de imaginar o nada (néant). Agora, eu sabia:
as coisas são inteiramente o que eles parecem - e atrás delas…não há
nada (rien).12

Em A Náusea, consequentemente, sendo o passado reduzido a um produto


de um tipo de reflexão que busca dar legitimidade ao existir, a temporalidade
acaba por ser descrita como uma sucessão de instantes presentes: “Lancei um
olhar ansioso ao meu redor: o presente, nada mais que o presente […] O pas-
sado não existia. De jeito nenhum!”13, diz Roquentin. Trata-se assim de uma
consciência que é pura presença em face de presenças, imersa num “tempo
nu”14, uma pura existência nauseante, sem história, sem encadeamento dos
momentos, sem começos nem fins, sem passado: “Estou jogado, abandonado
no presente. Procuro em vão ir ao encontro do passado: não posso escapar de
mim”15. Esta apreensão incessante da pura presença pelo personagem encon-
tra-se em sintonia com a definição previamente citada da consciência espon-
tânea que se produz a cada vez ex nihilo, desprendida de seu passado. Em A
Transcendência do Ego, este plano de puras presenças é descrito como sendo
o plano da consciência irrefletida ou de primeiro grau, que é aquele de uma
consciência vazia de conteúdos imanentes e que existe “mergulhada no mun-
do dos objetos”16. É este plano irrefletido, por sua vez, que escapa à tentativa
de fixidez própria a um ato de reflexão. Em A Náusea, Roquentin mostra
bem este ponto ao tentar apreender seus próprios pensamentos: “Isso flui em
mim, mais ou menos rápido, não fixo nada, deixo acontecer. A maior parte
do tempo, por não se prenderem a palavras, meus pensamentos permane-
cem nebulosos. Eles desenham formas vagas e divertidas, eles desaparecem:

12 Idem.

13 Ibidem, p. 139.

14 Sartre denomina esta consciência desencarnada, perdida em puros presentes, de “consciência


nua”, que se encontra diante de um “mundo nu”. Por esta razão, denominamos a temporalidade
que caracteriza uma tal consciência de “tempo nu” Cf. Sartre, J-P., 2010, p.184; p.227.

15 Sartre, J-P. 2012b, p. 56.

16 Sartre, J-P., 2003, p. 102.

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rapidamente, esqueço-me deles”17. Neste contexto, querer fixar as próprias


lembranças das experiências passadas é sair do tempo de pura presença em
busca de um “refúgio no passado”, já que o tempo das presenças é o tempo
da náusea, da imersão no mundo nu, onde nenhuma causa anuncia o acon-
tecimento por vir e onde, na ausência de qualquer encadeamento lógico ou
causal, “tudo podia acontecer”18. “Pura sucessão de acontecimentos”, é assim
que Roquentin define a vida: nada acontece, os momentos se sucedem e só.
Ele diz: “Quando vivemos, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas
entram e saem, é tudo. Nunca há começos. Os dias se somam aos outros dias
sem rima nem razão, é uma adição interminável e monótona”19.
A Transcendência do Ego evidencia de outro modo este mesmo privilégio
do presente, principalmente se observarmos a pretensão daquilo que Sartre
define como reflexão pura. Trata-se de um tipo de reflexão que visa justamen-
te a apreender uma vivência (Erlebnis) em sua imediaticidade instantânea.
Apesar de Sartre encontrar uma inspiração nas Lições para uma fenomenologia
da consciência interna do tempo de Husserl para pensar tanto um poder de au-
tounificação da consciência que a dispensaria de uma função unificadora de
um Ego, quanto à possibilidade de uma consciência aparecer a si mesma de
forma não-tética20, as análises husserlianas sobre as retenções e as protenções
não são discutidas aí como um caminho em direção à outra concepção de
temporalidade21. Sartre se atém assim a dois tipos de reflexão: uma reflexão
pura que apreende a vivência imediata através da total translucidez da consci-
ência, e uma reflexão impura que vai além dos “dados imediatos” e apreende
um objeto constituído pela própria reflexão, objeto que não se encontra na
vivência. Nas palavras de Sartre:

Vemos aqui duas reflexões: uma impura e cúmplice, que opera uma pas-
sagem ao infinito sobre o campo e que constitui bruscamente [um obje-
to transcendente] através da “Erlebnis” […] outra, pura, simplesmente

17 Sartre, J-P., 2012b, p. 21.

18 Ibidem, p. 115.

19 Ibidem, p. 64.

20 Baseado no que Husserl denomina nas Lições de “intencionalidade longitudinal”, a qual Sartre
erroneamente se refere como “transversal” . Cf. Sartre, J-P., 2003, p.97.

21 Há somente uma breve retomada do exemplo husserliano de “refletir na lembrança” Cf. Ibi-
dem, p.100-1.

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descritiva, que desarma a consciência irrefletida ao lhe entregar sua ins-


tantaneidade. Estas duas reflexões apreenderam os mesmos dados certos
mas uma afirmou mais do que sabia e se dirigiu através da consciência
refletida sobre um objeto situado fora da consciência.22

A relevância desta descrição consiste justamente na elaboração dos tipos de


reflexão a partir da possibilidade para a consciência de apreensão imediata de
um instante. Com isso fica evidente o pressuposto instantaneísta do tempo,
na medida em que tudo aquilo que ultrapassa a visada instantânea e presente
sobre si da consciência é colocado na dimensão do impuro, isto é, no plano
dos objetos que devem vir abaixo com a redução fenomenológica e que não
pertencem ao campo translúcido da consciência transcendental. Deste modo,
A Náusea e A Transcendência do Ego atestam um privilégio do instante presen-
te, compreendido neste contexto como sendo o tempo original da existência.
Esta posição será revista em seguida.

2. A influência de Heidegger e o abandono da temporalidade do instante.

O primeiro sinal de questionamento da teoria instantaneísta da temporali-


dade é atribuído por Sartre a uma conversa com A. Koyré, no momento em
que este lhe mostra justamente este problema intrínseco ao artigo A Transcen-
dência do Ego23. Posteriormente, sua dificuldade em pensar a temporalidade
se torna evidente aos seus próprios olhos, devido principalmente à releitura
mais atenta de Ser e Tempo. As notas do Diário de uma guerra estranha forne-
cem textualmente os indícios das mudanças fundamentais que ocorrem no
pensamento sartriano no final da década de trinta, e o objetivo destes escritos
consistia, diz Sartre, em “acentuar este isolamento onde eu me encontrava e
a ruptura entre minha vida passada e minha vida presente”24. No caderno XI
do Diário, Sartre descreve o momento de transição da filosofia husserliana em
direção à filosofia de Heidegger que ocorre nesta época. Desde a chegada em
Berlim, em 1933, seu trabalho se concentrava no estudo da fenomenologia de
Husserl, que lhe parecia, num primeiro momento, “mais acadêmico” e dotado

22 Sartre, J-P., 2003, p. 110. (grifo nosso)

23 Cf. Sartre, J-P., 2010, p. 495; p. 914.

24 Ibidem, p. 606.

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de linguagem mais acessível do que a filosofia heideggeriana. A virada em di-


reção a esta outra filosofia se deu de forma mais acentuada no final da década
de trinta, influenciada principalmente pela segunda publicação da tradução
de Henri Corbin de Que é metafísica? para o francês e também pelo momento
de guerra que se vivia. Para Sartre, o acento idealista da filosofia husserliana,
assim como sua “pouco conclusiva e pobre” refutação do solipsismo, servi-
ram de motivação para a busca de uma nova inspiração: “Certamente, foi
para escapar deste impasse husserliano que fui em direção de Heidegger”25.
Na época da guerra, Sartre sentia a presença e o peso dos acontecimentos,
mas não via ferramentas em sua filosofia para compreender as questões his-
tóricas: “eu desejava que me fornecessem ferramentas para compreender a
História e meu destino”26. Ele acreditava assim, neste momento de transição,
que a filosofia heideggeriana lhe forneceria enfim o recurso conceitual para o
que podemos chamar de uma primeira virada em direção à historicidade em
seu pensamento, datando uma segunda virada na integração do marxismo à
sua filosofia, momento que pode ser situado em torno dos anos sessenta e
cuja expressão máxima encontramos na Crítica da razão dialética. A influên-
cia de Heidegger, diz Sartre, veio mostrar “a autenticidade e a historicidade
bem no momento em que a guerra ia tornar estas noções indispensáveis para
mim”27, ou seja, no momento em que “a guerra e o Stalag tinham me levado
a compreender a existência”28. Apesar de ter lido algumas páginas de Ser e
Tempo anteriormente, a leitura mais aprofundada desta obra se deu durante o
período em que Sartre estava preso no Stalag, exatamente quando trabalhava
na redação de O Ser e o Nada (1940-41)29. Esta leitura, muitas vezes consi-
derada apressada e superficial, foi responsável por transformações essenciais
em seu pensamento. Por esta razão, mais do que provar se Sartre era mau
leitor de Heidegger ou justificar os possíveis erros de leitura pelo fato de
ser um pensamento recente no cenário francês - levando em conta ainda a
dificuldade de unir o ideal cartesiano de clareza e a obscura profundidade da

25 Ibidem, p. 468.

26 Ibidem, p. 470.

27 Ibidem, p. 466.

28 Ibidem, p. 1135-6.

29 Cf. Idem.

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tradição romântica alemã30- parece ser mais interessante a posição expressa


por Alain Renaut quando ele diz: “Parece-me fútil, para delimitar a questão
daquilo que foi esta relação a Sein und Zeit, querer fazer um levantamento dos
contra-sensos ou dos mal-entendidos: parece-me mais interessante procurar
saber como o próprio Sartre, lendo Heidegger, se representava a incidência
do que lia […] em seu próprio pensamento”31. É tendo em vista esta posição
que devemos compreender a transformação do pensamento sartriano a partir
de noções como: ter de ser, projeto, ser-no-mundo, ipseidade e, principalmente,
as concepções de facticidade e temporalidade ek-stática, provenientes da leitura
sartriana de Ser e Tempo. Pois, como resume V. de Coorebyter:

o efeito desta leitura será sem volta: através de sua ontologia do Dasein,
Heidegger faz Sartre descobrir a ideia de ser-no-mundo, o primado do fu-
turo e a articulação das três dimensões temporais, o que irá liberá-lo da
psicologia fenomenológica das faculdades que ele desenvolvia até então
sobre o tema da reflexividade e da imagem através de um cogito estreita-
mente instantaneísta e de uma intencionalidade limitada à apreensão de
um objeto determinado.32

É portanto esta leitura sartriana de Heidegger que transformará a concepção


instantaneísta de temporalidade em uma concepção ek-stática. Tal mudança
o fez renunciar ao que até então caracterizava uma “consciência nua”, desen-
carnada e pura criação ex nihilo. Uma consciência que não vivia o peso de seu
passado, de seu corpo e, finalmente, dos acontecimentos históricos, de modo
que não é por acaso que ela tenha sido qualificada como sendo “só leveza”
(toute légereté)33.
Na verdade, o recurso a Heidegger nos permite não somente compreen-
der a mudança na teoria sartriana do tempo, mas também a possibilidade
de pensar qual é de fato o problema de uma concepção instantaneísta da
temporalidade. Pois foi justamente Heidegger quem concentrou suas análises
numa crítica à visão tradicional ou “vulgar” do tempo, que perdurava desde

30 Gadamer, H-G., 2005, p. 147.

31 Renaut, A., 1993, p. 44. O mesmo pode ser dito sobre da leitura sartriana de outros filósofos,
como Husserl e Descartes, por exemplo.

32 Coorebyter, V. de, 2012, p. 4.

33 Sartre, J-P., 1989, p. 98.

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Aristóteles até seu dias (incluíndo Husserl e Bergson), no interior de uma


história que conhecemos como “história da metafísica”34. Concordando ou
não com esta generalização heideggeriana, sua intuição fundamental consis-
te em mostrar que a concepção do tempo como uma sucessão de instantes
presentes é problemática. Esta concepção pressupõe que o tempo é um ente,
que pode ser quantificado, mensurado, como o tempo dos calendários e dos
relógios, enquanto que, na verdade, esta experiência temporal não é a mais
originária. Segue-se que apreender o fenômeno do tempo diferenciando seu
caráter mais originário e derivado é fundamental, dado que toda ontologia
está aí enraizada. Assim, em primeiro lugar, Heidegger estabelece que “a tem-
poralidade não ‘é’, de forma alguma, um ente. Ela nem é. Ela se temporaliza”35.
A temporalização, por sua vez, diz respeito à estrutura da cura (Sorge)36 do
Dasein, mais especificamente, a “temporalidade desentranha-se (enthüllt sich)
como o sentido da cura propriamente dito”37, de modo que compreender o
fenômeno do tempo não é tomá-lo como objeto de conhecimento, mas sim
apreender o seu sentido a partir da estrutura mesma do Dasein. Diante deste
vocabulário heideggeriano, devemos optar por ressaltar a questão que nos é
aqui fundamental, pois explicitar todas as estruturas de Ser e Tempo que estão
em jogo nesta compreensão seria uma tarefa extensa que nos afastaria de nos-
so objetivo. O que nos interessa na articulação heideggeriana desta questão
é que ele evidencia o problema da concepção instantaneísta de tempo, como
por exemplo no §81 de Ser e Tempo. Neste parágrafo, podemos entrever a dis-
tinção de uma temporalidade originária do Dasein e de um tempo derivado
como “tempo do mundo”, distinção que será cara a Sartre e que encontramos
de algum modo já em Husserl38. O “tempo do mundo” é também nomeado
por Heidegger como “tempo-agora” e ele corresponde à compreensão “vulgar”
de tempo que temos cotidianamente como um fluxo de instantes que chegam

34 Cf. §5 de Ser e Tempo.“O tratado de Aristóteles sobre o tempo é a primeira interpretação desse
fenômeno, legada pela tradição. Ele determinou, de maneira essencial, toda concepção posterior
do tempo, inclusive a de Bergson.” Heidegger, M., 2005a, p. 55.

35 Ibidem, p. 123.

36 A estrutura da cura diz respeito a unidade do Dasein que é o efeito de uma temporalização e
não de uma presença subsistente no interior de um tempo externo. Dastur, F., 1990, p. 67.

37 Heidegger, M., 2005a, p. 120.

38 Sobre as semelhanças e diferenças da temporalidade em Heidegger e Husserl, ver o artigo de


Bernet, R. “Origine du temps et temps originaire chez Husserl et Heidegger”. Revue Philosophique
de Louvain.v.85, .n.68, 1987. p.499-521.

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e passam num curso temporal eterno. Nesta perspectiva, o passado aparece


como o “agora que não é mais” e o futuro como um “agora que ainda não é”
e assim “a compreensão vulgar do tempo […] vê o fenômeno fundamental
do tempo no agora e no puro agora que, moldado em toda sua estrutura, se
costuma chamar de ‘presente’”39. A partir desta concepção temporal, toda on-
tologia que reside nestas bases pressupõe a presença como modo privilegiado,
visto que “o ente, o presente, o agora, a substância, a essência estão ligados,
em seus sentidos, à forma do particípio presente”40, conclui Derrida. Para
Heidegger, a concepção vulgar do tempo possui sua legitimidade41, mas ela é
derivada de uma temporalidade mais originária do Dasein que é antecipação
da morte, ou seja, não se trata mais de uma caracterização do porvir como
“uma presença que ainda não é”, mas de pensar uma antecipação do futuro
como “dimensão a partir da qual pode-se haver um presente e um passado”42.
Assim, é somente tendo em vista o velamento da temporalidade original do
Dasein no desvelamento do tempo do mundo que podemos compreender o
tempo como sucessão de instantes presentes em seu caráter derivado.43
Esta “hierarquização de níveis de temporalização”, como diz Ricœur 44,
baseada na divisão entre originário e derivado - que, diga-se de passagem,
para Derrida, é ainda metafísica45 - não se colocava para Sartre em sua primei-
ra concepção de temporalidade, a qual se caracterizava justamente por uma
compreensão do tempo que, neste contexto, é imprópria. Daí os problemas

39 Heidegger, M., 2005a, p. 240. Ponto que é constantemente reforçado por Derrida: “De Par-
mênides a Husserl, o privilégio do presente nunca foi colocado em questão. Ele não o pode sê-lo.
Ele é a própria evidência e nenhum pensamento parece possível fora de seu elemento. A não-pre-
sença é sempre pensada na forma da presença (bastaria dizer na forma tout court) ou como mode-
lização da presença. O passado e o futuro são sempre determinados como presentes passados ou
presentes futuros”. Derrida, J., 1972, p. 36-7.

40 Ibidem, p. 44.

41 “O tempo-agora, no entanto, não apenas deve se orientar, primordialmente, pela temporali-


dade, no que respeita à ordenação possível, mas ele mesmo só se temporaliza na temporalidade
imprópria da pre-sença (Dasein). É por isso que, como referência à derivação do tempo-agora a
partir da temporalidade, justifica-se interpelar esse tempo como tempo originário”. Heidegger, M.
2005b, p. 239-40.

42 Dastur, F., 1990, p. 19.

43 Há ainda uma temporalidade originária da historicidade em Ser e Tempo que não diz respeito
especificamente ao Dasein, mas ao povo.

44 Ricœur, P., 1985, p. 95.

45 Cf. Derrida, J. 1972, p. 73.

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de sua primeira teoria e o motivo de seu embaraço ao se ver preso numa


armadilha temporal que era, a seu ver, comum a grandes escritores: “Proust,
Joyce, Dos Passos, Faulkner, Gide, V. Woolf, cada um a sua maneira, tenta-
ram mutilar o tempo. Alguns o privaram de passado e de futuro no intuito
de reduzi-lo à intuição pura do instante; outros, como Dos Passos, fizeram
dele uma memória morta e fechada. Proust e Faulkner simplesmente o de-
capitaram, eles o retiraram seu futuro, quer dizer, a dimensão dos atos e da
liberdade”46. Sartre procura justamente em Heidegger a possibilidade con-
ceitual de abandonar sua teoria instantaneísta do tempo ao pensá-lo como
temporalização (não do Dasein, mas do ser da consciência), sob a inspiração
da ideia heideggeriana de um projeto aberto ao porvir:

Mas é o tempo do homem sem futuro? Aquele do prego, do pedaço de terra,


do átomo, eu vejo bem que é um presente perpétuo. Mas é o homem um
prego pensante? […] A consciência só pode “ser no tempo” à condição de se
fazer tempo através do próprio movimento que a faz consciência; é preciso,
como diz Heidegger, que ela se “temporalize”. Não é mais permitido então
restringir o homem a cada presente e de defini-lo como “a soma daquilo
que ele tem”: a natureza da consciência implica ao contrário que ela se
lance adiante dela mesma no futuro, nós só podemos compreender o que
ela é pelo o que ela será, ela se determina em seu ser atual através suas
próprias possibilidades: é o que Heidegger chama de “a força silenciosa do
possível”.47

Após adotar esta perspectiva heideggeriana, é curioso que Sartre atribua a


outros autores o erro que poderia ser apontado em seu próprio trabalho an-
terior quando, por exemplo, ele fala do homem absurdo de Camus: “O que
isso quer dizer senão que o homem absurdo aplica ao tempo seu espírito de
análise? Lá onde Bergson via uma organização indecomponível, seu olho só
vê uma série de instantes. É a pluralidade de instantes incomunicáveis que
dará conta finalmente da pluralidade dos seres”48. Do mesmo modo, Bataille

46 Sartre, J-P., 1989, p. 78. Os artigos de crítica literária reunidos em Situations I (redigidos entre
1938-1945), censuram em praticamente todos os autores analisados a incompreensão do tempo
como organização sintética, revelando assim que Sartre pensa, na verdade, contra si mesmo. Si-
mont, J., 1998, p. 62; p. 83-4.

47 Sartre, J-P., 1989, p. 73.

48 Ibidem, p. 108.

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“se assemelha a toda uma família de espíritos que, místicos ou sensualistas,


racionalistas ou não, consideraram o tempo como poder de separação, de
negação, e pensaram que o homem se conquistava contra o tempo aderindo a
si mesmo no instantâneo”49. Ora, não era precisamente esta a pretenção da
reflexão pura? Apreender a verdade de um instante? E atribuir ao homem a
temporalidade “do prego, do pedaço de terra, do átomo”, que é a do “perpé-
tuo presente”, não era a característica principal do tempo nu de A Náusea, do
qual Roquentin só apreendia “o presente, nada mais que o presente”? Sendo
assim, a mudança na concepção da temporalidade em Sartre não pode ser
subestimada. Ela rearticula toda uma ontologia, já que a concepção temporal
do instante como presente situa a investigação ontológica num plano deriva-
do e não originário.

3. A temporalidade ek-stática de O Ser e o Nada

Tendo em vista a mudança significativa na teoria da temporalidade em Sartre,


a relação entre seus textos iniciais e O Ser e o Nada se apresenta como um
vasto campo de investigação. Especialmente quando se busca delimitar não
somente aquilo que muda radicalmente a partir desta nova reflexão sobre
o tempo, mas também sobre a relação entre diferença e continuidade em
seu pensamento. Pois, em primeiro lugar, há continuidade no fato de Sartre
considerar a temporalidade como um tema chave de investigação; em segun-
do lugar, o filósofo mantém algumas ideias fundamentais de seus primeiros
trabalhos como, por exemplo, a concepção de uma consciência transparente
e a possibilidade de reflexão pura, embora de outra maneira. Muitos aspec-
tos estão implicados nesta discussão e não temos como desenvolvê-los aqui,
razão pela qual nos limitaremos aos pontos que foram levantados acima, a
saber: a ideia de uma consciência cuja característica era a da espontaneida-
de como criação ex nihilo e a concepção da temporalidade como soma de
instantes presentes, relegando o passado a uma criação reflexiva50. Assim, a

49 Ibidem, p. 157.

50 Uma chave importante da mudança da temporalidade, como vimos em uma citação acima,
é justamente o papel decisivo do futuro nesta outra perspectiva temporal. Iremos, no entanto,
acentuar o papel do passado somente no intuito de evidenciar um contraste com o exemplo dado
acima a respeito de A Náusea. Do mesmo modo, nos concentraremos em descrever o caráter ek-
-stático da temporalidade do projeto de ser, que é modo de ser do que Sartre nomeia de ser-para-si,
sem abordar as implicações propriamente históricas da temporalidade, que em O Ser e o Nada
encontram-se ligadas à noção de situação.

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fim de demonstrar a importância da mudança da teoria da temporalidade de


Sartre no que se refere a O Ser e o Nada, analisaremos brevemente três pontos
principais: 1) as características preponderantes da temporalidade ek-stática
neste contexto; 2) a mudança na concepção do passado 3) o deslocamento da
temporalidade instantaneísta para um nível derivado, como temporalidade
psíquica e como tempo do mundo.

Em O Ser e o Nada, embora Sartre não abandone a categoria de consciência,


ele procura descrever seu modo de ser, agora denominado de ser-para-si. Daí
em diante o modo de ser da consciência é então caracterizado por uma na-
dificação (néantisation) incessante de seu próprio ser, através de um ato que
Sartre nomeia de ato ontológico. Segue-se que a negação de si que caracteriza
o ato ontológico não pode mais ser concebida como uma espontaneidade
que seria pura negação ex nihilo, pois, no contexto da ontologia sartriana, “o
nada (néant) só pode nadificar-se sob fundo de ser: se pode haver doação do
nada, ela não é nem antes nem depois do ser, nem, de um modo geral, fora do
ser, mas é no cerne mesmo do ser, em seu coração, como um verme”51. O para-si é,
portanto, constante nadificação do ser que ele é, e a estrutura de seu modo de
ser que sustenta esta perpétua nadificação é a facticidade. É também no Diário,
sob a influência de Heidegger, que Sartre começa a desenvolver e integrar à
sua argumentação a noção de facticidade. Neste momento, ele passa a operar
com uma distinção implícita que consiste em compreender não mais o “fato”
como fato empírico e natural, alvo da crítica da “Introdução” do Esboço para
uma teoria das emoções, por exemplo, mas sim como facticidade, um existen-
cial, isto é, uma estrutura imediata do para-si. Esta distinção pode ser melhor
compreendida a partir da diferença que Heidegger estabelece em Ser e Tempo
entre os conceitos de “fatualidade” (Tatsächlichkeit) e “facticidade” (Faktizität),
ao afirmar que “a ‘fatualidade’ do fato da própria pre-sença (Dasein) é, em seu
ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qual-
quer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter natural do fato da pre-sen-
ça em que, como tal, cada pre-sença sempre é”52. Embora Sartre não explicite,
tal como o fez Heidegger, a distinção entre fatualidade e facticidade, a partir

51 Sartre, J-P., 2012a, p. 56. (grifo nosso)

52 Heidegger, M., 2005a, p. 94.

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do Diário ele já parte da concepção de facticidade como um existencial, ou


seja, trata-se de uma estrutura imediata do para-si que não pode ser compa-
rada ao “fato”, no sentido de algo que pode ser conhecido, observado, men-
surado. Mesmo não tendo sido tematizada, esta distinção é fundamental, pois
somente assim podemos compreender com mais clareza como Sartre pôde
integrar a dimensão fática nas elaborações de uma consciência encarnada53,
inscrita no mundo por seu passado, seu corpo e sua dimensão intersubjetiva.
É esta dimensão fática, por sua vez, que restitui uma dignidade ontológica ao
passado, dado que este passa a ser uma dimensão ek-stática da temporalidade
e por isso indissociável do modo de ser mesmo do para-si.
A investigação fenomenológica das ek-stases em O Ser e o Nada se dá a
partir de questões orientadoras direcionadas a cada uma das ek-stases pas-
sado, presente e futuro. A temporalidade é agora uma estrutura global e sin-
tética, onde cada dimensão implica necessariamente as outras, ou melhor, cada
ek-stase encontra-se “fora de si”, caracterizando um modo de ser diaspórico54.
Sendo assim, o fenomenólogo se propõe a interrogar cada ek-stase sobre seu
ser e sobre o sentido de seu ser, isto é, trata-se de interrogar passado, presente
e futuro sobre seu ser, sem perder de vista a dimensão da totalidade temporal
a partir da qual cada ek-stase pode ser compreendida. Neste sentido, as análi-
ses das três dimensões do tempo se caracterizam como um “trabalho provisó-
rio” cujo objetivo é justamente “aceder à intuição da temporalidade global”55.
Dito isto, a investigação sobre a temporalidade é centrada no modo de ser
para-si, dado que é este que “se temporaliza”. Enquanto o modo de ser em-si
“é o que é”, duas definições são atribuídas ao para-si, evidenciando seu modo
temporal: ele “é o que não é e não é o que é” e ele “tem de ser” seu ser. Ao
abandonar sua perspectiva instantaneísta do tempo, Sartre reconfigura, como
afirmamos acima, toda sua perspectiva ontológica de modo que as regiões
ontológicas definidas como para-si e em-si devem agora ser compreendidas
a partir da temporalidade ek-stática. A fim de precisão, observamos que a
região denominada de ser-em-si não se temporaliza, pois se trata da região

53 Vale ressaltar mais uma vez que se trata de uma leitura sartriana da filosofia de Heidegger, o
qual, por sua vez, não opera no quadro da consciência e para quem tampouco faria sentido falar
em encarnação.

54 “Designava-se no mundo antigo a coesão profunda e a dispersão do povo judeu do nome de


“diáspora”. É esta palavra que nos servirá para designar o modo de ser do para-si: ele é diaspórico”
Sartre, J-P., 2012a, p. 172.

55 Ibidem, p. 142.

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do princípio de identidade que não admite a negatividade própria à tempo-


ralização, enquanto que a região para-si é aquela que existe no tempo e cujo
sentido é o de ser temporal56. Dizer que o para-si “é o que não é e não é o
que é” significa dizer que seu modo de ser é aquele de nadificação de seu ser,
conforme o ato ontológico. O modo de ser para-si é caracterizado, portanto,
como uma perpétua nadificação de si, o que em termos de temporalidade
pode ser traduzido pela ideia de que o para-si tem de ser seu ser. Novamente
a influência heideggeriana se faz presente, através de sua reconfiguração pro-
priamente sartriana, na medida em que em Ser e Tempo o Dasein tem de ser “a
cada momento” o ser que ele é, o que em termos de para-si se traduz como
ato incessante de nadificação. A temporalidade ek-stática é justamente este
modo de ser “a cada momento” que diz respeito a uma existência que man-
tém uma relação a si que não pode mais ser compreendida como uma relação
de identidade e de continuidade de uma substância.
Em seu livro À chaque fois mien, F. Raffoul explora o tema do “a cada mo-
mento meu” (mienneté/Jemeinigkeit) em Heidegger e nos mostra que devemos
diferenciar dois tipos de relação: uma relação a si como condição de possi-
bilidade do Dasein de designar-se na primeira pessoa e uma relação a si que
pressupõe um Eu sempre idêntico a si mesmo57. Em outros termos, existem
diferentes modos de compreender aquilo que estaríamos pressupondo como
uma “relação a si”, visto que o próprio termo si já indica uma individualização
que deve ser esclarecida em seu modo de doação. Paul Ricœur, por exemplo,
mostra em O si-mesmo como um outro que há variadas formas de compreen-
der uma relação a si. Embora ele mantenha o termo identidade para falar das
diferentes relações, ele opera com uma distinção entre os conceitos de iden-
tidade-idem, que é aquela que pressupõe uma permanência no tempo de um
núcleo da personalidade, e identidade-alter, a qual não se baseia neste tipo de
pressuposto, mas, ao contrário, escapa a uma lógica do si como relação com
o mesmo, pois se faz sob uma dialética de si mesmo onde a alteridade é parte
constitutiva58. Mostramos este ponto somente no intuito de demarcar que a
relação a si pode ser compreendida de maneiras distintas e ainda que o que
costuma estar em jogo nesta definição é a pressuposição ou não de um eu

56 Cf. Sartre, 2012a, p.141. Mas isto não significa que podemos compreender o modo de ser
em-si a partir de uma perspectiva “extratemporal”, pois este só pode ser investigado pela via da
temporalidade original do para-si.

57 Raffoul, F., 2004.

58 Ricœur, P., 1996.

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substancial como ponto de partida. É neste sentido que a relação a si como


ipseidade, colocada em cena por Heidegger, pretende, em contrapartida ao
pensamento lógico-metafísico do sujeito, indicar “aquilo que no fundo de
nós mesmos, para além de toda figuração imperfeitamente substancialista,
nos faz “sujeito”59.
Se a permanência de um Eu não é mais a base para se pensar o “sujeito”60,
a temporalidade torna-se o fio condutor para se conceber a relação a si di-
ferentemente, sob a forma de ipseidade. Para F. Raffoul, o tempo é agora um
princípio mesmo de individuação de uma existência “a cada momento” in-
dividuada, a cada vez “minha”. Nos termos de Raffoul: “Não há existência
desprovida de ipseidade, o existir é a cada momento um “eu existo”, na me-
dida em que o existir não é a particularização de uma essência universal, mas
o colocar o ser em jogo na primeira pessoa”61. Com relação a este quadro
maior, a opção de Sartre se aproxima à de Heidegger no sentido de que ele se
baseia na concepção ek-stática da temporalidade para pensar o para-si como
ipseidade e projeto, a fim de escapar à concepção do sujeito como substância
e identidade, isto é, a ipseidade não tem nenhuma equivalência ao Eu62. É
este o sentido da ideia de que o para-si tem de ser seu ser, visto que ele não o
é - identidade, substância, - mas “ser si, é vir a si” (être soi, c’est venir à soi)63,
o que significa que o para-si se temporaliza e que tal movimento é singular:
ele é a cada vez o seu passado, o seu presente e o seu futuro e seu existir é um
perpétuo estar em jogo de todo o seu ser.
Ter de ser seu passado, presente e futuro, leva em conta a maneira de
cada ek-stase temporal se dar neste processo. Resumidamente, a presença
é descrita como presentificação e o seu sentido é a “fuga”: “O para-si é pre-
sente ao ser sob a forma de fuga; o presente é uma fuga perpétua em face do

59 Benoist, J., 1995, p. 540.

60 Sujeito entre aspas justamente porque este termo costuma englobar diversas definições, mui-
tas delas pressupondo uma base identitária. Além disso, a filosofia heideggeriana apresenta uma
crítica às filosofias do sujeito de uma maneira geral, denominadas de “metafísica do sujeito”.

61 Raffoul, F., 2004, p. 213.

62 Sartre, J-P., 2010, p. 320. Já em A Transcendência do Ego a consciência não tinha nenhuma equi-
valência ao Eu. Neste artigo Sartre mostra justamente que o Eu é um objeto para a consciência,
constituído pela reflexão impura. A diferença entre as obras não reside, portanto, na relação do
Eu com a consciência, mas na concepção do fluxo temporal desta última.

63 Sartre, J-P., 2012a, p. 582.

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ser”64. Na verdade, a fuga é um movimento duplo de nadificação - e por isso


o presente não é compreendido como repouso de um para-si diante do ser
que ele não é - mas a fuga é “presentificante”, “pois fugindo do ser que ela
não é, a presença foge do ser que ela era”65. O futuro é um modo do para-si
ter de ser seu ser ao invés de ser como identificação. Por último, não sendo o
presente uma soma de instantes, tampouco o futuro é uma série homogênea
e cronológica de instantes por vir, isto é, como um “agora” que ainda não
é, conforme a concepção tradicional de tempo que expomos anteriormente.
Acrescenta-se ainda que o futuro não é uma representação, pelo contrário,
quando este é tomado como objeto de tese, tal fato, diz Sartre, “deixa de ser
meu futuro”66. Em suma, o futuro, assim como o passado, é “meu”, de acordo
com a característica do “a cada momento meu” do ter de ser do para-si, pois
a ligação do “a cada momento meu” do para-si com o seu futuro é instaurada
pela dupla negação.
Dado a indissociabilidade das três ek-stases temporais e o caráter de ter
de ser do para-si, podemos então nos concentrar sobre o exemplo do passado
no intuito de ressaltar o contraste com a posição anterior de Sartre67. Em O
Ser e o Nada, a questão do ser do passado é abordada em três níveis distin-
tos: o passado enquanto ek-stase que compõe o processo temporalizador do
para-si68; o passado como tempo do mundo - enquanto estrutura da tempo-
ralização própria do modo de desvelamento do em-si transcendente69 -; e o
passado enquanto estrutura da situação do para-si70. Os três níveis distintos
são concebidos, na verdade, a partir uma mesma dimensão ek-stática de tem-
poralização que é a estrutura originária do modo de ser do para-si. Somente
por este nível originário é possível compreender o tempo do mundo e o ca-
ráter fático da situação que o para-si encontra-se desde sempre inserido em
sua existência concreta.

64 Ibidem, p. 158.

65 Ibidem, p. 161.

66 Ibidem, p. 159.

67 Reforçamos que não se trata de privilegiar a ek-stase passado, gesto que iria na contramão da
temporalidade ek-stática, mas apenas de contrastar a nova maneira de consideração do passado
com a anterior.

68 Cf. Sartre, 2012a. p. 143-155; p. 173-177.

69 Cf. Ibidem, p. 240-245.

70 Cf. Ibidem, p. 541-549.

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Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 323

Sendo o passado considerado por Sartre como uma figura da facticidade


do para-si, e sendo esta última uma estrutura imediata, devemos compreen-
der de que modo o para-si é seu passado, mas somente sob a condição de
nadificação perpétua de seu ser, conforme o ato ontológico. Podemos abor-
dar tal característica de ser e não ser o seu passado (negação de ser) através de
um exemplo de O Ser e o Nada sobre um jogador que decidiu parar de jogar.
Neste, Sartre busca mostrar a relação da decisão passada de “não jogar mais”
com a ação presente do jogador a partir de uma situação específica: quando
confrontado com a possibilidade de jogar, ao se ver em uma situação que lhe
impele a tal, o jogador busca em sua decisão passada a consistência e a força
que lhe impediria de jogar e apreende, na angústia, a total ineficiência da
resolução anterior. A decisão ainda “está lá”, diz Sartre, mas “congelada, ine-
ficaz, ultrapassada pelo fato mesmo de que tenho consciência dela. Ela ainda
sou eu, na medida em que eu realizo perpetuamente minha identidade comi-
go mesmo através do fluxo temporal, mas ela não é mais eu pelo fato de que
ela é para minha consciência”71. Foi justamente tal “fraqueza” do passado que
levou Sartre anteriormente a subestimar seu papel nas ações presentes, ao
passo que em O Ser e o Nada, sendo o passado uma estrutura da facticidade -
e assim constitutivo do para-si -, não basta pensar o momento anterior e atual
através de uma radical separação, mas deve-se dar conta de que modo este
passado “permanece” no para-si, mesmo que este não tenha a mesma “força”
de outrora. Assim, o que nos perguntamos a partir de uma tal afirmação é
exatamente como este momento da nova decisão pode ser e não ser a reso-
lução anterior através do fluxo temporal. Dito de outro modo, como o fluxo
temporal do projeto permite este ser e não ser simultaneamente seu passado?
Sartre prossegue em seu exemplo do jogador para demonstrar esta relação:

O que o jogador apreende neste instante é mais uma vez a ruptura per-
manente do determinismo, é o nada (néant) que o separa de si mesmo:
eu teria desejado tanto não jogar mais que eu tive ontem uma apreensão
sintética da situação (ameaça de ruína, desespero de meus próximos) como
me proibindo de jogar. Parecia-me que eu havia construído assim uma bar-
reira real entre mim e o jogo, e eis que percebo de repente, esta apreensão
sintética não é mais do que uma lembrança de ideia, uma lembrança de
sentimento: para que ela venha novamente me ajudar é preciso que eu a
refaça ex nihilo e livremente; ela não é mais do que um de meus possíveis,

71 Ibidem, p. 68.

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como o fato de jogar é um outro, nem mais nem menos. Este medo de de-
solar minha família, é preciso que eu o reencontre, que eu o recrie como
medo vivido, ele permanece atrás de mim como um fantasma sem osso, ele
depende somente de mim para que eu lhe empreste minha carne. Estou só e
nu como na véspera diante da tentação e, após ter edificado pacientemente
barreiras e muros, após ter me enclausurado no círculo mágico de uma
resolução, percebo com angústia que nada (rien) me impede de jogar. E a
angústia sou eu já que pelo simples fato de vir a existência como consciên-
cia de ser, me faço não ser este passado de boas resoluções que eu sou.72

Este trecho nos indica uma série de pontos importantes, ainda que estes não
sejam aprofundados neste momento do texto sartriano: 1) A preocupação do
autor parece ser a de se opor ao determinismo, ou seja, a relação entre uma
vivência passada e a vivência presente não pode ser do tipo causa e efeito;
2) A vivência passada só adquire o valor de motivação de um ato a partir de
sua assunção atual pelo para-si; 3) Esta assunção é descrita como sendo livre
e criação ex nihilo, o que nos coloca um problema a ser investigado; 4) de
que modo o para-si pode não ser o passado que ele é? É o terceiro e o quarto
ponto que nos interessam neste momento, visto que o trecho acima contém
uma ambiguidade quando o autor afirma ao mesmo tempo uma criação ex
nihilo e uma impossibilidade de não ser o próprio passado simplesmente, isto
é, como o para-si se cria livremente sendo e não sendo o seu próprio passado.
De todo modo, não podemos mais compreender o para-si como não sendo
totalmente o seu passado. Se o projeto é temporalização ek-stática, passado,
presente e futuro fazem parte de uma totalidade temporal que só pode ser
decomposta abstratamente para fins de análise, tal como Sartre o faz em seu
capítulo sobre a temporalidade. A solução oferecida neste capítulo, para dar
conta da relação do para-si como o passado que ele é, consiste no recurso de
dizer que o para-si era (était) seu passado. Para compreendermos este recurso,
devemos entender minimamente a crítica do autor sobre outras formas de se
conceber o passado.
Na investigação sobre o ser da ek-stase passado, Sartre apresenta duas
perspectivas frequentes: a primeira caracteriza justamente o privilégio do
presente que presume o passado não é mais e somente o presente existe; a
segunda atribui ser ao passado: ele existe, mas a título de algo isolado, que
perderia a eficiência sem no entanto deixar de existir. Segundo Sartre, se nos

72 Idem.

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Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 325

ativermos à primeira perspectiva, além de nos restringirmos aos problemas


que descrevemos anteriormente do privilégio do presente, teremos dificul-
dades de pensar o fenômeno da lembrança, no sentido de que não teríamos
meios de compreender como uma consciência poderia transcender o presen-
te e apreender uma consciência passada. Por outro lado, também não seria
uma solução atribuir ser a um passado isolado. Sartre reconhece este recurso
em Bergson, que a seu ver pensa que um evento passado pode deixar de
agir embora ele permaneça “em seu lugar, na sua data, pela a eternidade”73 e
também à “consciência popular”, sobre a qual Sartre não entra em detalhes,
apenas informa que esta caracterizaria uma visão de que um evento passado
continua existindo “lá atrás”, esvaziado da “força do presente”. Disto decorre
que mesmo atribuindo ser ao passado, este se encontra dissociado da ek-stase
presente, como um tipo de existência autônoma. Do mesmo modo, a con-
cepção husserliana das retenções, que permite pensar um elo entre presente
e passado, não escaparia a esta lógica, pois estabeleceria ainda uma espécie
de permanência e autonomia metafísica das consciências passadas em rela-
ção às presentes. Como a própria investigação já demonstra, a compreensão
do passado envolve uma compreensão do presente (e do futuro), dado que
atribuir ou não ser ao passado revela os pressupostos implícitos na concep-
ção do presente que, se tomado como separado de seu passado, só pode ser
compreendido como uma soma de instantes, conforme a concepção instan-
taneísta da temporalidade. Em suma, Sartre conclui: “Que o passado seja,
como querem Bergson e Husserl, ou não seja mais, como o quer Descartes,
isto não tem a menor importância se começamos por cortar as pontes entre
ele e nosso presente”74.
Conforme podemos vislumbrar em tais críticas, as pontes entre o passado
e o presente não podem ser cortadas, sob o risco de recairmos em concepções
metafísicas do privilégio da presença e na concepção instantaneísta do tem-
po. Há de haver assim um modo de ligação, que não pode ser o de relações
externas (e nisto a metáfora da ponte não é apropriada, pois ela indica um
modo de ligação entre duas instâncias autônomas e independentes, entre dois
modos de ser em-si), mas que seja de relações internas que unem de forma
sintética a estrutura global da temporalidade. Por esta razão, Sartre afirma
que o para-si, ao invés de “ter um passado”, como se diz comumente, reve-
lando uma relação de posse, “tem de ser seu próprio passado”, o que indica

73 Ibidem, p. 144.

74 Ibidem, p. 145.

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uma relação de ser. Entretanto, o fato de ser o passado também pode ser mal
interpretado se fizermos uma equivalência entre passado e presente, não le-
vando em conta a “heterogeneidade entre o passado e o presente”75. A relação
ontológica que une as ek-stases passado e presente consiste na nadificação
de si que é melhor caracterizada pela conjugação do verbo ser no pretérito
imperfeito do indicativo: era (était)76. O modo temporal era se caracteriza por
ser intermediário entre o passado e presente na medida em que ele “não é […]
nem totalmente presente nem totalmente passado”77; ele indica justamente
a lei ontológica do para-si de ser seu próprio passado, na síntese original das
ek-stases passado, presente e futuro. A este respeito, acrescentamos que a
negação de ser, que caracteriza o para-si, compreendida como nadificação, é
distinta da negação no sentido de não assumir, de não se responsabilizar por
algo, neste caso por seu passado. Esta segunda descrição caracterizaria o que
Sartre considera ser uma negação de má-fé, que se traduz na ideia de que o
para-si “não é o que ele era”, no interior de uma concepção do tempo em que
“o passado não é mais”. A negação no sentido da nadificação, ao contrário, é
a assunção do passado - “jamais negação sem raízes” 78- o que quer dizer que
o para-si só pode existir como processo de nadificação a cada momento de
tudo que ele é, numa concepção do tempo onde o passado é estrutura da
própria existência. Disto decorre a tensão própria ao para-si de ser e não ser
seu passado, o que se revela ao mesmo tempo na impossibilidade de não sê-lo
e na impossibilidade de sê-lo sob o modo de identificação, pois a identidade
é própria de outra região ontológica, a do em-si. Se em A Transcendência do
Ego, a espontaneidade da consciência significava uma existência nova a cada
instante, dissociada de seu passado, a cada instante outra, como não sendo
o seu passado, a mudança na concepção da temporalidade que permite as
novas elaborações em torno do tema em O Ser e o Nada se dá justamente na
encarnação do para-si em sua historicidade e na impossibilidade de não ser o

75 Ibidem, p. 180.

76 Existe aqui uma dificuldade de tradução visto que o verbo être em francês pode designar em
português os verbos ser e estar. No caso das análises sobre o ser do passado, optamos por traduzir
était por era, dado que Sartre estabelece a ligação do ser do passado com o presente como uma
ligação ontológica, logo, necessária. Por esta razão, optamos pela tradução era, já que estava pode
indicar uma situação ou um estado provisório e contingente.

77 Sartre, J-P., 2012a, p. 150.

78 Ibidem, p. 238.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 327

seu próprio passado79. Mas isso não significa que as posições anteriores sejam
rejeitadas por completo: a espontaneidade se mantém, mas este criar-se a si
mesmo não pode mais ser compreendido a partir de um desprendimento
do passado, mesmo porque dizer que o para-si não é mais o seu passado é
conceber uma separação entre passado e presente como se fossem instâncias
independentes e não estruturas temporais interligadas entre si80. A partir des-
ta premissa, como vimos, dizer que o para-si não é o seu passado é uma forma
de autoengano, isto é, é uma ação de má-fé. Por outro lado, a tensão do era
mostrou que também não é possível dizer que o para-si é o seu passado: “me
perder nele sob a forma de identificação: é o que me é recusado por essência”,
conclui Sartre81. Parece-nos que, ao invés de considerar as posições anterio-
res como ultrapassadas após as mudanças na perspectiva temporal, melhor é
dizer que elas são constitutivas da tensão mesma de “ser o que não se é e não
ser o que se é”, própria ao para-si.
Por fim, Sartre conserva ainda um lugar para a temporalidade instan-
taneísta em sua ontologia, como tempo derivado e não originário. Neste
contexto, o tempo que se apresenta à consciência irrefletida como uma soma
de presentes é o tempo universal ou tempo do mundo, pois a consciência
apreende a temporalidade cotidianamente não como seu próprio modo de
ser mas no mundo, como um tempo objetivo, isto é, como uma soma de ins-
tantes presentes. Além disso, há em Sartre uma outra maneira de apreender
o tempo enquanto soma de presentes, diferentemente do tempo do mundo
no qual se encontra imersa a consciência irrefletida. Trata-se da temporali-
dade psíquica, produzida pela reflexão impura, que se faz a cada vez que
o para-si busca apreender a si mesmo como duração. Este tipo de reflexão
não apreende o caráter ek-stático da consciência refletida (aquela que é po-
sicionada pela consciência reflexiva), mas - desta vez num gesto próximo

79 E por isso a decisão que deve ser retomada ex nihilo no exemplo do jogador não é propriamen-
te o passado, mas uma nova decisão - assombrada por seu passado - diante da decisão anterior que
aparece agora como tese para a consciência, daí sua aparência de não ter mais a “força” do vivido.

80 O fato de Sartre não abandonar posições anteriores é o que leva Merleau-Ponty, por exemplo,
a criticar O Ser e o Nada com base na consciência nua de seus escritos iniciais. Segundo V. de
Coorebyter, Merleau-Ponty acredita encontrar na ontologia sartriana as mesmas posições de A
Transcendência do Ego e do texto sobre a intencionalidade em Husserl, ambos escritos em 1934.
Coorebyter, V. de., 2000, p. 98. Tendo em vista essa observação de Coorebyter, consideramos ser
de extrema importância confrontar as consequências da mudança da teoria do tempo em Sartre
com as críticas de Merleau-Ponty, tema trabalhado em minha tese de Doutorado “A hantologie de
Sartre: sobre a espectralidade em O Ser e o Nada”.

81 Sartre, J-P., 2012a, p. 154.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
328 Fernanda Alt

ao de A Transcendência do Ego - ela vai além e projeta sombras objetivas por


detrás do refletido. Em outros termos, pela reflexão impura o para-si constitui
uma temporalidade instantaneísta ao tentar tomar-se a si mesmo como objeto,
como um mesmo que permanece no tempo. Segue-se que a reflexão pura não
pode mais neste contexto ser definida como uma apreensão de um instante82
- acusação que Sartre faz agora ao cogito cartesiano - pois a reflexão que busca
objetivar a consciência temporal em um instante é, inversamente, a impura.
A reflexão pura se reveste agora de um caráter ek-stático e é redefinida como
aquela capaz de apreender o refletido em sua temporalidade original. Logo,
a temporalidade instantaneísta é derivada, e tanto a temporalidade mundana
quanto a psíquica velam o caráter originário da temporalidade do para-si. Ao
deslocar o instante presente ao plano derivado em previlégio das ek-stases,
Sartre transforma significativamente sua teoria do tempo e com isso rearticula
toda uma ontologia.

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82 É importante sublinhar que há uma utilização da ideia de instante em O Ser e o Nada que
não significa esta unidade temporal da concepção instantaneísta da temporalidade. Trata-se de
um acontecimento que provoca uma mudança naquilo que Sartre chama de projeto original ou
fundamental. Cf. Ibidem, p. 520-1.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre 329

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-329, jan.-jun. 2017
Mariana Lins Costa*

Ensaio sobre a autenticidade

Essay on authenticity

Resumo
A partir da compreensão, tomada de Bruce Ward, de que em nosso tempo impera
certa “cultura da autenticidade”, o objetivo do presente ensaio é refletir, em debate
com Lionel Trilling e Charles Taylor, sobre o significado da autenticidade para a
interioridade e o modo de vida contemporâneos. Nesta abordagem, ganha destaque
o pensamento de Friedrich Nietzsche, pois enquanto Trilling identifica o criador
do Zaratustra como um dos principais responsáveis por desenvolver os aspectos
centrais desta virtude, em grande medida, arcaica, ainda que transmutada na
contemporaneidade, Taylor vê nestes aspectos desenvolvidos por Nietzsche não a
virtude da autenticidade em si mesma, mas aquilo que designou como o seu “desvio”.
Com a “revisão” de tal desvio, ensina Ward, Taylor tem, em última instância, a
pretensão de garantir, através da autenticidade, uma espécie de fundamento para
a “obrigação moral de tratarmos uns aos outros com respeito e compaixão” nas
sociedades contemporâneas — o que nos conduz de volta ao velho paradoxo entre
vida e princípio da não contradição.

Palavras-chave: autenticidade; Ward; Trilling; Taylor; Nietzsche.

Abstract
From the understanding, taken from Bruce Ward, that in our time a certain “culture of
authenticity” prevails, the purpose of this essay is to reflect, in discussion with Lionel
Trilling and Charles Taylor, on the meaning of authenticity for the contemporaries
human interiority and way of life. In this approach, Friedrich Nietzsche’s thinking
gains prominence. While Trilling identifies the creator of Zarathustra as one of the
main thinkers responsible for developing the central aspects of this, to a great extent,
archaic virtue, yet transmuted in the contemporary world, Taylor sees in these

* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com período sanduíche na
Laurentian University of Sudbury; E-mail: marianalins_@hotmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
332 Mariana Lins Costa

same aspects developed by Nietzsche, not the virtue of authenticity itself, but what
he understood as its “deviant form”. With the “revision” of this deviation, Ward
teaches, Taylor intends to guarantee through authenticity a kind of ground to a
“moral obligation to treat others with respect and compassion” in the contemporary
world — which leads us back to the old paradox between life and the principle of
non-contradiction.

Keywords: authenticity; Ward; Trilling; Taylor; Nietzsche.

Atualmente, não raros autores designam o nosso próprio tempo como aquele
em que impera certa “cultura da autenticidade”. Para Bruce Ward, esta clas-
sificação indica que tanto as manifestações mais elevadas e sofisticadas da
cultura quanto as mais populares e massificantes estão impregnadas por uma
mesma aspiração: ser autêntico, isto é, ser capaz de expressar o verdadeiro eu,
o eu real, que em nada está relacionado a modelos exteriores e que, portanto,
não pode ser formado através da imitação, sendo antes o oposto da imita-
ção.1 “Nascidos originais, como aconteceu de morrermos cópias?”2 – sintetiza
Edward Young, profeticamente, em 1759. De um lado é possível identificar
a ânsia pela autenticidade à busca por “ser-si-mesmo”, à Eigentlichkeit, de-
senvolvida por Heidegger e adotada por Sartre e Simone de Beauvoir, ou
ainda à estética da existência levada a cabo por Foucault.3 Mais contempo-
raneamente, da segunda metade dos 1990 para cá, podemos encontrar este
reconhecimento da centralidade da autenticidade em autores como Charles
Guignon (On being authentic), Jacob Golomb (In search of authenticity: existen-
tialism from Kierkegaard to Camus), Alessandro Ferrara (Reflective authenticity:
rethinking the project of Modernity), Somogy Varga (Authenticity as an ethical
ideal), Agnes Heller (An Ethics of personality), e sobretudo em Charles Taylor
no seu The Ethics of authenticity – que, por sua vez, é declaradamente marcado
por livros dos 1970 e 80 sobre o tema, como: The closing of the American Mind
de Allan Bloom, The cultural contradictions of capitalism de Daniel Bell, The cul-
ture of narcisism and minimal self de Christopher Lasch, L’ère du vide de Gilles

1 Ward, B. Redeeming the Enlightenement: Christianity and the Liberal Virtues. Michigan: William B.
Eermens Publishing Company, 2010, p. 71.

2 Young, E. apud Ward, B., op. cit, p. 71.

3 Ward, B., op. cit., p. 71.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 333

Lipovetsky e Sincerity and Authenticity de Lionel Trilling, para citar apenas


alguns exemplos. No que se refere ao lado mais popular deste anseio, pode-
mos encontrá-lo, atualmente, em toda parte, como uma espécie de humor
(para não dizer essência) espraiado nas mais diversas expressões da cultura:
nas estantes de autoajuda, editais de moda, anúncios publicitários, letras de
música, séries, filmes, canais dos jovens youtubers etc.
Charles Taylor compreende que a “cultura da autenticidade” foi, em ge-
ral, interpretada (ao menos até a publicação do seu The Ethics of authenticity
em 1992) como a expressão da ausência ou falência da moralidade. Com a
constatação, característica à modernidade tardia (ou pós-modernidade), de
que os limites da razão dizem respeito não apenas ao plano epistemológico,
mas também ao moral, tornou-se inevitável uma ênfase na individualidade,
oriunda da conclusão de que cada um tem o direito de desenvolver a sua pró-
pria forma de vida, baseado naquilo que é importante ou digno de valor para
si e que, portanto, não pode ser ditado por um outro indivíduo ou por uma
comunidade. Admitir ter a vida ditada ou moldada por padrões externos de
caráter pretensamente universal seria validar fundamentos que histórica e in-
telectualmente foram deslegitimados ao longo da modernidade. Mesmo que
este tipo de pensamento e sobretudo as ações a ele correspondentes tenham
talvez sempre existido, Taylor destaca que contemporaneamente as pessoas
sentem-se, de um modo geral, convocadas a agir conforme esta compreensão
–- de tal modo que uma vida fundamentada em valores e concepções que não
os próprios passa a ser não só classificada, mas também sentida como uma
vida desperdiçada, insatisfatória.4 Embora reconheça que uma cultura que
incita a autorrealização individual possa conduzir a um relativismo moral
que ele declaradamente rejeita, Taylor orienta as suas reflexões na direção de
um ideal moral que, de acordo com ele, subjaz à incitação da autorrealização
como projeto máximo, sendo este o de ser verdadeiro para consigo mesmo
(ou conforme a expressão de Lionel Trilling: o ideal moral da autenticidade).
Se, na modernidade tardia, as pessoas almejam em geral viver uma vida que
esteja de acordo com aquilo que elas mais intimamente acreditam e sentem,
de modo que elas possam realizar as suas potencialidades e anseios o mais
plenamente possível, isso não é expressão de um relativismo moral, mas sim
o fato de que a qualidade da autenticidade se tornou o que de melhor e mais
elevado um ser humano pode desejar: o seu ideal moral.5

4 Taylor, C. The ethics of authenticity, Massachusetts: Harvard University Press, 2003, pp. 16-17.

5 Ibidem, pp. 15-16.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
334 Mariana Lins Costa

Nas leituras dadas na Universidade de Harvard na primavera de 1972


e que compõem o seu Sincerity and Authenticity, Lionel Trilling identifica o
elemento que, numa modernidade nascente, a Europa teria acrescentado à sua
vida moral – um elemento portanto que distinguiria a moralidade moderna de
todas as eras anteriores da moralidade: a sinceridade que posteriormente viria
a se desdobrar na autenticidade. A sinceridade é descrita como a congruência
entre aquilo que se professa e o que efetivamente se sente.6 Ou ainda, como a
virtude que implica a recusa de ser falso para com qualquer ser humano atra-
vés da ação de ser verdadeiro para consigo mesmo.7 Na literatura, Shakespea-
re teria sido o principal expoente da representação dessa virtude – ou indica-
dor da sua ausência. De acordo com Trilling, é lugar comum a compreensão
de que o tema da sinceridade permeia todo o Hamlet.8 Conforme aconselha
Polônio ao seu filho Laerte: “Isto acima de tudo: para o teu próprio eu sê
verdadeiro/ E disso se seguirá, como a noite ao dia/ Tu não poderás então ser
falso com qualquer homem”;9 ou mesmo conforme exclama Hamlet ao cen-
surar indiretamente a sua mãe: “Parece, madame! não, é. Eu não conheço o
‘parece’”.10 Ainda nesse sentido, é também possível compreender a traição de
Macbeth como fruto de uma ânsia por poder que conduz ao esfacelamento da
sua sinceridade e, com isso, como se por necessidade, à loucura. Conforme
afirma o atormentado herói quando se decide pelo assassínio do rei: “A face
falsa deve ocultar o que o falso coração de fato sabe”.11 Por fim, é inevitável
mencionar a encarnação máxima da ausência desta virtude, o Iago de Otelo e
a sua emblemática declaração: “Eu não sou o que eu sou”.12 Ora, observe-se
aí que mesmo para um patife como Iago ser o que de fato se é significa ser
sincero.

6 Trilling, L. Sincerity and authenticity. Massachusetts: Harvard University Press, s/ data, p. 2.

7 Ibidem, p. 5.

8 Ibidem, p. 3.

9 Shakespeare, W. Hamlet. Disponível em: <http://www.shakespeare-online.com/plays/


hamlet_1_3.html>. Acesso em: 4 maio 2017.

10 Ibidem. Disponível em: <http://www.shakespeare-online.com/plays/hamlet_1_2.html>. Aces-


so em: 4 maio 2017.

11 Shakespeare, W. Macbeth. Disponível em: <http://www.shakespeare-online.com/plays/macbe-


th_1_7.html>. Acesso em: 4 maio 2017.

12 Shakespeare, W. Othello. Disponível em: <http://www.shakespeare-online.com/plays/


othello_1_1.html>. Acesso em: 4 maio 2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 335

Embora, em geral, a sinceridade seja circunscrita à condição de “quali-


dade da vida pessoal e privada”, Trilling chama atenção para o fato de que a
ênfase nesta virtude, “que caracterizou certas culturas europeias no início da
época moderna” desenvolveu-se em conexão com uma revisão dos modos
tradicionais de organização social — uma revisão que não se restringia ao
plano do escrutínio intelectual, mas que deste visava chegar ao da ação.13
Seguindo alguns conceitos articulados por Hegel na sua obra Fenomenologia
do espírito, Trilling compreende que a elevação da qualidade da sinceridade
à virtude fundamental é fruto de uma época que reflete certa relação entre
a consciência individual e o poder externo.14 Nesta, o indivíduo teria se tor-
nado consciente de que a sua relação com as instituições que compõem uma
sociedade é resultado de uma escolha, um consentimento seu pela manutenção
deste poder, o que conduz a também se tornar consciente das razões da pru-
dência que o induzem a optar por esta manutenção. Já não há neste estágio
da sociedade, então, nem reverência interna, nem identificação imediata com
o poder externo, mas antes tão-somente um compromisso em manter o po-
der seja por conveniência ou para a sobrevivência.15 A sinceridade surge na
condição de virtude no momento em que se reconhece que pode haver um
descompasso entre a consciência individual e a autoridade externa, embora
as aparências de uma conformidade, de uma harmonia continuem sendo, por
assim dizer, produzidas —isto é, a insinceridade passe a ser produzida.
Por outro lado, a exigência da sinceridade revela que a visão de mundo
oferecida pela autoridade externa continua preservada. O indivíduo insincero
seria moralmente reprovável porque interiormente não está de acordo com a
visão de mundo ideal já instituída, nas palavras de Macbeth, por ter um “co-
ração falso”. Conforme os mesmos livros de Shakespeare podem atestar, a exi-
gência da sinceridade é acompanhada do ideal de felicidade, que encontra na
vida conjugal o seu ápice.16 Otelo e Desdêmona, Hamlet e Ofélia e, talvez até
mesmo Macbeth e sua terrível Lady deixaram de atingir a, possivelmente, mais
plena realização humana, por conta da ausência da virtude da sinceridade –
seja em si mesmos, naquele em quem confiam ou na sociedade como um todo.

13 Trilling, L., op. cit., p. 26.

14 Embora Trilling não mencione, neste ponto é interessante lembrar que Shakespeare era não só
conterrâneo do contratualista Thomas Hobbes, como também seu contemporâneo.

15 Trilling, L., op. cit., p. 36.

16 Ibidem, p. 40.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
336 Mariana Lins Costa

Tanto Trilling quanto Taylor veem na teoria dos sentimentos morais da


tradição filosófica do XVIII um desdobramento desta exigência onipresente
na obra shakespeariana. Percorrendo as trilhas abertas por Trilling, Taylor irá
considerar que o pensamento de Rousseau expressa a passagem da centrali-
dade da virtude da sinceridade para a da autenticidade – embora o filósofo
canadense não utilize a expressão “sinceridade”. Segundo Taylor, a noção
de autenticidade se desenvolve quando é retirado da exigência de contato
com a “voz interior” o caráter moral — quando é retirado o caráter moral
do “sentimento moral” o que se revela, pela primeira vez, como o “senti-
mento de existência” de Rousseau. “Na visão original”, diz Taylor, “a voz in-
terior é importante porque nos diz a coisa certa a fazer [...]. Estar em con-
tato com os sentimentos morais importa aqui como meio para atingir o fim
corretamente.”17 Com Rousseau, por sua vez, dar-se-ia o “deslocamento do
acento moral” deste contato, isto é, “quando estar em contato dota-se de uma
significância moral independente e acentuada.”18 Em outras palavras: quando
estar em contato com a própria interioridade se torna algo mais moral do que
estar de acordo com uma voz interior, que, na mesma medida que deixará
de ser concebida como natural, passará a ser vista como a expressão interna
de uma moralidade exterior. A questão já não é a de por que evitar o “cora-
ção falso” que vai contra a autoridade externa, mas a de como concretizar a
própria existência a partir do “coração justo” que, como diz Rousseau, “é o
templo da verdadeira divindade”.19 Trilling e Taylor irão associar de modo
mais ou menos direto a virtude da sinceridade ao que Rousseau designa de
“amor próprio” – isto é, as paixões que seriam produzidas em nós a partir da
dependência dos outros indivíduos – e o contato mais íntimo com o próprio
eu, mais íntimo justamente porque não dotado daquele “acento moral” com
o que Rousseau designa de “sentimento da existência” e que ambos irão de-
signar, por sua vez, de autenticidade. Conforme sintetiza Ward: “foi Rousseau,
quem articulou a oposição fundamental entre os dois modos da existência
humana, o autêntico e o inautêntico — uma oposição que veio a se tor-
nar preocupação central do pensamento, arte e política ocidentais que lhe
sucederam.”20 A popularidade do filósofo genebrino se deveria, em grande

17 Taylor, C, op. cit., p. 26.

18 Idem.

19 Rousseau apud Ward, B., op. cit., p. 88.

20 Ward, B., op. cit., p. 88.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 337

parte, não a ter propriamente inaugurado a oposição entre esses dois modos
de vida ou a passagem da virtude da sinceridade para a da autenticidade, mas
por ter articulado isso que já estava se operando na cultura.21
Segundo Trilling, “algo pode ser aprendido sobre o ideal da autenticida-
de” a partir da sua relação com as qualidades artísticas do belo e do sublime
delineadas por Edmund Burke no seu A Philosophical Enquiry into the Origin
of Our Ideas of the Sublime and Beautiful de 1756. “O sublime e o autêntico
certamente não são equivalentes”, afirma, “mas eles têm um traço em comum,
um antagonismo profundo para com o belo” – isto é, a sinceridade.22 Com
esta relação, Trilling pretende esclarecer o significado do desdobramento da
sinceridade em autenticidade. Através de Burke, o processo de desligamento
para com a moralidade indica a inclinação a certo “estado de selvageria” –
expressão que ele toma de Schiller –, a ânsia pela retomada de certa “força”
que, diferentemente da moralidade diria, de fato, respeito ao natural, sendo
portanto mais primordial do que qualquer moralidade, já que temporal e
essencialmente anterior. Para isso, Trilling se vale dos pares de opostos com
que Burke caracterizou o belo – feminino, agradável, indolente – e o subli-
me – masculino, terrível, ambicioso –, pois com isso chega à relação entre
“sentimento de existência” e “sentimento de ser forte”, aproximando-se de uma
formulação para o significado da autenticidade.23 Se Burke, diz Trilling, é o
“antagonista legendário de Rousseau”, a sua recusa ao belo como uma “qua-
lidade social” se põe de acordo com a crítica rousseauniana sobre o papel da
arte na deterioração do sentimento de existência.24
Diferentemente do que a nomenclatura possa sugerir, o “sentimento de
ser forte” através do qual Trilling elucida o “sentimento de existência” de
Rousseau não está relacionado a uma energia que se exerce sobre o mundo
sob a forma de agressão e domínio,25 mas a uma energia capaz de manter o eu
intacto, como uma totalidade na qual não há oposição entre interior e exterior

21 Taylor, C., op. cit., p. 27.

22 Trilling, L., op. cit., pp. 94-95.

23 Ibidem, p. 95.

24 Ibidem, p. 96.

25 Neste ponto, vale mais uma vez nos remetermos a Ward: “Esta autossuficiência [em Rousseau]
é equivalente a uma ‘felicidade plena’ e um bem moral; este último ponto é confirmado, por
exemplo, no estado de paz, ao invés de violência que de um modo geral caracteriza o sentimento
de existência.” (Ward, B., op. cit. , p. 83)

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
338 Mariana Lins Costa

— como é o admitido em se tratando da virtude da sinceridade. Dada esta


relação, o sentimento de ser forte será paulatinamente identificado à energia
capaz de assegurar ao eu “a circunferência” que o mantém “indestrutível”, “in-
teiro”, “impenetrável, perdurável” — numa palavra: à energia capaz de asse-
gurar ao eu a almejada qualidade da autonomia.26 Ao que parece, a suposição
de Trilling é que o sentimento de existência rousseauniano se desvincula da
virtude da sinceridade inclinando-se para a da autenticidade, na medida em
que se vincula ao sentimento de ser forte, por sua vez, uma espécie de pré-
-requisito para a autonomia.
Sobre a autonomia é interessante observar que embora tal qualidade coin-
cida, em Kant, com o ideal de uma subjetividade propriamente moderna, em
Hegel, paradoxalmente, a autonomia é identificada ao herói antigo, trágico
na medida em que este é uma das “particularizações” do ideal da arte grega,
arcaica. Dito de outro modo, enquanto em Kant a autonomia é o princípio
que assegura que a lei moral universal seja exercida por vontade individual
independente dos fatores externos e das inclinações, em Hegel, a autono-
mia consiste “na interpenetração da unidade e da universalidade”,27 ou seja:
quando a singularidade concreta está adequada ao universal, é expressão do
universal — ou ainda: “quando o verdadeiro […] tem existência e verdade
no seu desdobramento para a realidade exterior”.28 Essa aparência sensível da
verdade é o que Hegel chama de ideal da arte. “A natureza do ideal artístico”
reconduz, diz Hegel, “ao espiritual”, posto que “o fenômeno exterior ade-
quado ao espírito”, à verdade, “torna-se a revelação dele”, isto é, a revelação
da própria verdade.29 “No âmbito do mundano e humano”,30 esta adequação
entre o universal e o singular se manifesta na figura do herói. O herói é ex-
pressão encarnada, singularizada do ethos do seu povo — e, portanto, um
ideal. Para Hegel, porém, tamanha adequação ou totalidade formada entre
interioridade universal e exterioridade singular, só é possível “na medida em
que o universal apenas adquire realidade concreta por meio do singular”,31

26 Ibidem, p. 99.

27 Hegel, G. W. F. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1999, p. 190.

28 Ibidem, p. 165.

29 Ibidem, p. 168.

30 Ibidem, p. 187.

31 Ibidem, p. 190.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 339

o que diz respeito exclusivamente à antiguidade grega arcaica, já não sendo


portanto um ideal condizente com o estado do mundo no qual está situa-
do o homem moderno, para quem a universalidade extrapola os limites da
sensibilidade, da singularidade concreta — e, com, isso, da arte até chegar
à filosofia. Apenas a subjetividade ideal, referente a um estágio ultrapassado
da manifestação do espírito, é autônoma, posto que a “verdadeira autonomia
consiste unicamente na unidade e na interpenetração da individualidade na
universalidade”32. Face a esse paradoxo que se estabelece entre Kant e Hegel
no que diz respeito à autonomia, aqui apenas esboçado, temos lançada uma
luz sobre o porquê um Taylor mais otimista para com a autenticidade resol-
ve as contradições inevitáveis a esta virtude transformando-a numa espécie
de imperativo categórico — o que abordaremos adiante —, enquanto um
Trilling mais desconfiado irá empreender uma interpretação desta “nova” vir-
tude, aproximando-a do significado etimológico da palavra que a designa. De
acordo com Trilling, o passo seguinte à associação entre o sentimento de ser
forte e a autonomia está “explícito” na arcaica palavra grega para autêntico:
authenteo significa dispor “de pleno poder; inclusive para cometer assassina-
to”, authentes significa “mestre”, “executor”, “artífice”, “assassino” e “suicida”.33
Com o avanço dos séculos, diz Trilling, esta identificação entre sentimen-
to de existência, autonomia e sentimento de ser forte teria sido paulatina-
mente subsumida no conceito de autenticidade pessoal. Mas não sem que
aí, nesta subsunção paulatina, fosse acrescentado um elemento novo, que
seria, para ele, ao mesmo tempo, antigo, arcaico. Entre a noção de “senti-
mento de existência” engendrada especialmente por Rousseau e a nossa tal-
vez “pós-moderna” “cultura da autenticidade”, Trilling identifica Friedrich
Nietzsche e Oscar Wilde34 como os principais representantes não apenas de
uma virada definitiva da sinceridade em autenticidade, mas de uma virada
que implica uma superação da virtude da sinceridade, a qual se confunde,
em muitos aspectos, com uma rejeição a ela. Nesta virada definitiva, teria
ocorrido uma ampliação no significado originário do sentimento de ser forte:

32 Idem.

33 Trilling, L, op. cit., p. 131.

34 Para Trilling, o significado intelectual de Wilde ainda estaria em processo de reconhecimento.


Para fundamentar a sua equiparação entre Nietzsche e Wilde, ele irá recorrer a André Gide e
Thomas Mann. O autor de Doutor Fausto, diz Trilling, antes de desenvolver a comparação entre
esses dois autores, revela a consciência da excentricidade da sua proposta: “É óbvio que há algo
quase de sacrílego nesta justaposição entre Nietzsche e Wilde” (Mann, T. apud Trilling, L, op. cit.,
p. 119).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
340 Mariana Lins Costa

embora continue a ser identificada a uma energia capaz de assegurar a totali-


dade do eu — a autonomia —, esta identificação já não impede, antes incita,
que esta totalidade, uma vez atingida, se exerça no mundo sob a forma de
agressão e domínio. O selvagem já não pode mais ser concebido como um
bom selvagem.35 O “estado de selvageria” de onde provém o sentimento de ser
forte é não apenas anterior a um sentimento que, em alguma medida, esteja
de acordo com a moral (quiçá racionalidade prática), como a sua retomada
propriamente autêntica, por assim dizer, implica não uma renúncia episte-
mológica e fria ao fundamento da moral, mas um escárnio — um pathos: um
sentimento, uma postura filosófica e uma vontade de superação — para com
qualquer coincidência com o que até então foi entendido como moralida-
de, como comportamento moral. Para vislumbrar melhor este ponto, vale
lembrar uma passagem na qual está contida a declaração mais conhecida de
Oscar Wilde — “O único meio de se livrar de uma tentação é ceder a ela”:

Eu acredito que se um homem viesse a viver sua vida, plena e comple-


tamente, dando forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento,
e realidade a cada sonho, — eu acredito que o mundo ganharia um tal
frescor e impulso de contentamento que nós esqueceríamos todas as doen-
ças do medievalismo, e retornaríamos ao ideal helênico, — ou mesmo
até a algo mais sofisticado, mais rico do que o ideal helênico. Mas o
mais bravo dos homens dentre nós tem medo de si mesmo. A mutilação do
selvagem tem a sua trágica sobrevivência na autonegação que corrompe
nossas vidas. Somos castigos por nossas renúncias. Cada impulso que ten-
tamos estrangular se apossa de nossa mente e nos envenena. Que o corpo
peque uma vez e haverá se livrado do seu pecado, pois a ação é um modo
de purificação. O único meio de livrar-se de uma tentação é ceder a ela. Se
lhe resistirmos, as nossas almas ficarão doentes, desejando as coisas que
proibiram a si mesmas […].36 [grifo nosso]

Será possível ouvir nestas palavras de Wilde uma coincidência com a com-
preensão hegeliana da autonomia? A elevação a que ele alça o “ideal helênico”

35 “Quando Rousseau está mais de acordo com o seu verdadeiro eu, ele é ‘bom e justo’ de modo
mais intenso, enquanto, para Nietzsche, as aspas são apropriadas, uma vez que tais palavras são
a voz da moral de rebanho da qual o indivíduo ‘novo, único’ deve ser emancipado.” (Ward, B.,
op. cit. p. 102)

36 Wilde, O. The picture of Dorian Gray. Victoria: McPherson Library, Special


Collections University of Victoria, 2011, p. 17.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 341

— como ele diz, dar forma, realizar ou, como poderíamos acrescentar, ex-
teriorizar, concretizar cada sentimento, pensamento, sonho — não seria a
ânsia por uma autonomia que, para Hegel, diz respeito unicamente à época
trágica dos gregos? A virtude da autenticidade indicaria tão somente um re-
torno a um velho ideal de autonomia (ainda que, paradoxalmente forjado na
modernidade)? Uma ânsia pelo frescor da infância da humanidade, o sonho
moderno com o ideal helênico? Estaria aí, na busca pelo frescor, o significado
da recusa a uma moralidade de caráter cristão e racionalista — as “doenças
do medievalismo”, como se referira Wilde? Talvez no fim — ou como dissera
Nietzsche, após a superação do niilismo, que tornará possível a transmuta-
ção do leão em criança. Sob a perspectiva imposta por Trilling, o corte que
destaca a virtude da autenticidade da virtude da sinceridade — corte do qual
Wilde e Nietzsche são os grandes representantes —, não é o anseio por um
tipo de autonomia que se afasta do ideal do homem esclarecido e moral de
Kant, para se aproximar de um ideal luminoso, estético e heróico. Nesta ânsia,
ambas as virtudes se confundem de maneira nebulosa: pois o ideal da felici-
dade conjugal identificado por Trilling em Shakespeare não é incompatível
com uma autonomia que se apresente sob uma roupagem estética e herói-
ca, antes o contrário. A cisão, representada neste excerto de Wilde, parece
encontrar-se no elemento mais “sofisticado” e “rico” que deve ser acrescido ao
ideal helênico— elemento que neste excerto se apresenta unicamente como
exaltação da tentação, como compreensão de que o “pecar”, o transgredir é
o meio de superação, de purificação da própria noção de pecado e com isso
de certa condição heterônoma, a “mutilação do selvagem”. Como informa
Nietzsche ao seu leitor, numa das suas mais conhecidas passagens, o seu
“ofício” não é o de erigir “novos ídolos”, mas de derrubá-los. Os “ídolos”, ele,
por sua vez, esclarece, são “todos os ideais”, e se o seu ofício é destrui-los,
continua, é porque a “mentira do ideal foi até agora a maldição que pesou
sobre a realidade”, tornando a “humanidade” “mentirosa e falsa até o mais
fundo dos seus instintos”. Ao que parece, “a mentira do ideal” propagada por
Nietzsche37 está menos relacionada à exigência de que o espiritual ou interior
se torne concreto, exterior numa singularidade autônoma, do que à negação
de que o “espiritual” ou a “verdade” possa ser dotado legitimamente de um
caráter universal e comum — tal como era o pretendido no caso da exigência
pela virtude da sinceridade cujo problema se dava quando o caráter universal

37 Nietzsche, F. W. Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 18.

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342 Mariana Lins Costa

e comum, caso do “ falso coração” de Macbeth, estava corrompido na interio-


ridade do indivíduo em questão.
Sob esta perspectiva, a autenticidade não pode ser uma virtude social, ao
menos não social no sentido cristão ou democrático. O indivíduo autêntico
tampouco como era o caso do herói antigo pode ser compreendido como a
expressão individual do ethos seu povo, da sociedade na qual está inserido —
antes seria o caso de afirmar o contrário, pois se ele é autêntico é justamente
porque não o expressa, até mesmo porque efetivamente não há ethos, uma
vez que não há universal. Não se deve pensar com isso que a virtude da au-
tenticidade traga consigo o louvor a toda espécie de psicopatia ou patifaria
supostamente autônomas — até mesmo porque tal “aspiração” dificilmente
seria capaz de superar a Atlântida perdida do ideal helênico. Como bem
alertou Zaratustra a um jovem que então corria o risco de virar uma espécie
de Dorian Gray: “Mas não esse, o de tornar-se um bom, é o perigo que cor-
re o homem nobre, senão o de tornar-se um descarado, um zombador, um
destruidor.”38 Transvalorar não é inverter, mas tampouco o reconhecimento
de tal perigo conduzirá a uma confortável legitimação de alguma lei, senti-
mento, máxima ou princípio moral universal. A virtude aqui está ligada a um
heroísmo que, de fato, como sugerira Hegel diz respeito a certa manifestação
extraordinária do singular, do individual — a diferença é que, nos domínios
da virtude da autenticidade, a singularidade deve ser autônoma ante qualquer
universal, situando-se fora dos limites da eticidade, e portanto não no mal,
mas além do bem e do mal. Talvez esta seja uma elucidação para o clamor com
que Zaratustra encerra o seu diálogo com o jovem protótipo de Dorian Gray.
No caminho para a criação de uma nova virtude que fosse capaz de forjar a
própria interioridade e exterioridade e, com isso, uma nova autonomia, o
“homem nobre”, suplica Zaratustra, deve conservar “sagrada” esta sua “mais
alta esperança”, sob o risco de se tornar um “libertino”, para quem o “herói”
é “objeto de raiva e horror”.

Conheci homens nobres, ai de nós, que tinham perdido a sua mais alta
esperança. E, então, caluniavam todas as altas esperanças.
Descaradamente, então, viviam prazeres de breve duração e já não lança-
vam meta alguma para além do mesmo dia.

38 Nietzsche, F. W. Assim falou Zaratustra. Tradução Mario da Silva. Civilização Brasileira: Rio de
Janeiro, 2006, p. 70.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 343

‘O espírito é também volúpia’ — diziam. Então, partiram-se as asas do seu


espírito, que, agora, rasteja por aí, emporcalhando tudo o que rói.
Tinham pensado, outrora, em tornar-se heróis; não passam agora de liber-
tinos. E o herói é, para eles, um objeto de raiva e horror.
Mas, pelo meu amor e esperança, eu te suplico: não deites fora o herói que
há na sua alma! Conserva sagrada a tua mais alta esperança! —
Assim falou Zaratustra.39

Face a tal clamor, talvez soe estranho associar as ideias de Nietzsche a uma
violência tão crua como a contida na etimologia da palavra autenticidade.
Como poderia Nietzsche, um filósofo que é fonte de referência a tantos pen-
samentos e práticas libertárias, uma referência no caminho de tantos “hiper-
bóreos” que se puseram a procurar o seu “verdadeiro eu”, ser o representante
de uma virtude que apesar de nova, em alguma medida, ecoa o seu signifi-
cado etimológico legitimando para a singularidade autêntica o direito à vio-
lência, o que inclui o assassinato e o suicídio? Na sua autobiografia filosófica,
Nietzsche fez inclusive questão de declarar, certamente de modo jocoso, não
ser “nenhum monstro moral”…40 Por outro lado, numa das passagens mais
dramáticas, o seu Zaratustra afirma que o destino do homem que pretende
dar lugar ao além-do-homem, ao vir-a-ser do além-do-homem é o ocaso —
ele diz ensinar “morrer a tempo”…41 Esta associação parece assumir um tom
mais sério quando a compreendemos a partir da pouco sentimental definição
da vontade de poder – que, de acordo com o filósofo, seria a expressão do
caráter primeiro e último de tudo o que existe, quer se apresente diretamente,
quer sob algum disfarce no caso do homem. De antemão é interessante notar
na citação a seguir que o criador do Zaratustra afirma estar indicando “o fato
primordial de toda história”, embora como teoria possa ser considerado uma
“inovação”:

Aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda


fraqueza sentimentalista: a vida é essencialmente apropriação, ofensa,
sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de
próprias formas, incorporação, e no mínimo e mais comedido, exploração

39 Idem.

40 Nietzsche, F. W. Ecce homo, op. cit., p. 17.

41 Nietzsche, F. W. Assim falou Zaratustra, op. cit., p.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
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— mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão mar-
cadas de uma intenção difamadora? […] a vontade de poder encarnada,
quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio — não de-
vido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é
precisamente vontade de poder. […] A “exploração” não é própria de uma
sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do
que vive, […], é uma consequência da própria vontade de poder, que é
precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como
teoria — como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se
honesto consigo mesmo até esse ponto!42

Sob a perspectiva aqui apresentada, o clamor de que se seja honesto consigo


mesmo que encerra o aforismo, consiste em certa exigência moral de que se
reconheça que a interioridade humana, ou mais exatamente a própria, ho-
nestamente, não está de acordo com a moralidade instituída e, com qualquer
forma de universalidade – seja esta de caráter cristão, iluminista, budista,
judaico ou de qualquer outra espécie. Se, como dissemos acima, para Trilling
o desdobramento definitivo da sinceridade em autenticidade reside na pau-
latina centralidade de um anseio por certo “estado de selvageria”, que além
de garantir a autonomia — na verdade, justamente por isso —, impõe ao
individuo autêntico o ofício de impor o seu domínio sobre tudo aquilo que
se lhe interpõe, em Nietzsche todo este movimento, é possível suspeitar, está
subsumido no conceito de vontade de poder. A honestidade, ou sob a termi-
nologia aqui adotada, a autenticidade que Nietzsche incita no seu leitor visa ao
reconhecimento de que a interioridade anseia por se impor ao que é exterior,
ou dito de uma outra forma, de que a singularidade enquanto viva anseia
por romper com qualquer universal — ou, mais precisamente, com qualquer
singular disfarçado de universal — que vise submetê-la, abarcando-a. Ser
autêntico, viver uma vida autêntica significa, em alguma medida, expressar-
-se como vontade de poder; o que leva a crer que para se ser autêntico não se
pode abrir mão da violência — como diz Nietzsche, a exploração faz parte do
que vive — e, com isso, daquilo que até então se chamou de mal, ainda que
tentemos amenizar ao ponderar que no autor do Zaratustra tal violência seria
de caráter eminentemente artístico. Amenidades à parte, vale lembrar mais
uma vez de Wilde e a sagaz declaração com que encerra um de seus ensaios:

42 Nietzsche, F. W. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992, pp. 154-155.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 345

“As verdades metafísicas são as verdades da máscara”.43 Sob uma terminolo-


gia nietzschiana, a máscara-metafísica, ou a verdade-máscara da metafísica, é
tão-somente um disfarce da vontade de poder, uma transfiguração doentia —
doentia na medida em que nega o seu próprio caráter de vontade de poder,
resultado de um esgotamento de vida. O desvendamento da metafísica como
máscara doentia da vontade de poder, do caráter da vida implica que a mora-
lidade nela fundamentada deve ser descartada por uma nova moralidade que
esteja de acordo com o próprio caráter da vontade de poder — e que, assim,
deve ser múltipla e contraditória, pois, como disse Nietzsche, tudo o que é
vivo deseja se impor, criar e, no caso do homem, o animal que valora, auto-
criar-se. Sendo a autenticidade a busca pelo “verdadeiro eu”, pelo “tornar-se o
que se é”, o que já não pode excluir a exterioridade, não parece forçado dizer
que “a mais cara esperança” que Zaratustra incita no jovem “protótipo” de
Dorian Gray tem, numa terminologia mais contemporânea, a autenticidade
como o seu ponto central.
Nesta associação entre violência e autenticidade, Taylor vê não a virtude da
autenticidade em si mesma, mas o que ele compreendeu como o agravamen-
to ou consequência inevitável seu “desvio”. Ainda que a “autenticidade possa
se desenvolver em muitos ramos”, nem todos, diz ele, são “igualmente legíti-
mos”. Os “apóstolos do mal” que se seguiram a Nietzsche — dentre os quais
inclui Antonin Artaud, George Bataille e “variações ‘pós-modernas’” como
“Derrida, Foucault e seus seguidores” — não estão completamente errados:
mas se desviaram ao esquecer todo o conjunto de demandas que envolve a
autenticidade se concentrando exclusivamente em certos aspectos.44 Daí que
a pretensão com o seu The ethics of authenticity seja justamente a de recuperar
a força moral do ideal originário da autenticidade, separando-o, para isso, do
“desvio” que acarretou na sua deformação na contemporaneidade.
Para Taylor, Rousseau representa a verdadeira força moral deste ideal. O
problema é que já em Rousseau o ideal da autenticidade traz consigo a re-
lação que posteriormente irá desviá-lo em relativismo moral.45 Rousseau, tal
como nos informa Taylor, articula a noção de sentimento de existência à de li-
berdade autodeterminada, a qual ele define como a ideia de que “eu sou livre
para decidir por mim mesmo o que me diz respeito, ao invés de ser moldado

43 Wilde, O. “The truth of masks: a note on illusion”. In: ______. Intention. Project Gutenberg
eBook, 1997, p. 102.

44 Taylor, C., op. cit., p. 66.

45 Ward, B., op. cit., p. 72.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
346 Mariana Lins Costa

por influências externas.”46 Isso implica que a “liberdade autodeterminada


demanda que eu quebre a ligação com as imposições exteriores e decida uni-
camente por mim mesmo.”47 O ideal de uma liberdade autodeterminada é,
diz Taylor, de suma importância, pois embora se distinga, para ele, de ma-
neira óbvia, do ideal da autenticidade, ambos foram confundidos, sendo esta
confusão, uma das “fontes das formas desviadas da autenticidade”,48 precisa-
mente as que dizem respeito às manifestações mais elevadas e sofisticadas da
cultura. Como bem explicita Ward: “[Taylor] localiza a origem do desvio na
tendência da autenticidade de ir muito longe no que diz respeito à autonomia
(liberdade autodeterminada)”.49
Tal como Trilling, Taylor também verá no criador do Zaratustra a expres-
são mais sofisticada e precisa deste desvio, que nega todos os “horizontes de
sentido”, de tudo aquilo que é comum.50 Taylor desenvolve a interpretação
de que Nietzsche desvia o ideal originário da autenticidade ao justamente
radicalizar as implicações da liberdade autodeterminada. A autenticidade de
caráter nietzschiano representa de modo radical o tal do “deslocamento do
acento moral” – que indica a passagem da sinceridade à autenticidade. No
plano da liberdade autodeterminada não só a exigência de se estar em contato
com a própria interioridade se tornou mais moral do que a própria morali-
dade, mas se tornou recusa à moralidade exterior, e indo um a passo além:
a qualquer tipo de universalidade prática. Aqui vale lembrar a definição de
Taylor de liberdade autodeterminada como a ideia de que “eu sou livre para
decidir por mim mesmo o que me diz respeito, ao invés de ser moldado por
influências externas” – o descarte das influências externas, quanto mais radi-
cal, mais redunda no corte das relações do indivíduo com a sua comunidade,
até o ponto no qual nem a bondade natural pode ser admitida. Nesse sentido,
é que, para ele, a autenticidade de caráter nietzschiano representa um desvio
do ideal da autenticidade rousseauniana, ao invés de uma “orientação com-
pletamente nova”.51 Em Nietzsche, o sentimento de existência rousseauniano

46 Taylor, C., op. cit., p. 27.

47 Idem.

48 Ibidem, p. 28.

49 Ward, B., op. cit., p. 102.

50 Taylor, C., op. cit., p. 60.

51 Ward, B., op. cit., p. 102.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 347

se desdobra definitivamente na liberdade autodeterminada (ou no sentimen-


to de ser forte como queria Trilling): sob a insígnia do mais central dos seus
conceitos, a vontade de poder, o que para Taylor conduzirá, até nas formas
mais moderadas, a uma “liberdade radical”.
A estratégia de Taylor para recuperar a força do ideal originário da virtude
da autenticidade, o que é o mesmo que desvencilhá-lo do ideal da liberda-
de autodeterminada, parece ser dupla. De um lado ele defenderá a posição
de que a relação do eu com os outros é inevitável para a formação da pró-
pria identidade – e para isso se valerá de uma reflexão sobre a linguagem,
na qual o eu autêntico passa a ser concebido como “dialógico” ao invés de
“monológico”.52 De outro, defenderá a ideia de que a centralidade da virtude
da autenticidade “desviada” inviabiliza a estruturação de uma sociedade que
de fato garanta as condições de possibilidade para a realização deste ideal.
Conforme declara, o seu objetivo é demonstrar que a opção por uma auten-
ticidade que se afirme em detrimento de qualquer exigência posta a partir
das nossas relações com os outros, ou de qualquer demanda que vá além dos
desejos e aspirações do indivíduo particular é, ela mesma, autodestrutiva –
isto é: destrói “as condições para se realizar o eu autêntico”.53 Ao transformar
a autenticidade numa espécie de máxima universal, Taylor consegue garantir
que ao lado dela repousem os valores iluministas da igualdade, tolerância e
compaixão — por ele subsumidos na sua ética do reconhecimento das dife-
rentes identidades. A “revisão” da virtude da autenticidade empreendida por
Taylor revela-se assim, conforme ensina Ward, como pretensão de fundamen-
tar, para as sociedades contemporâneas, a “obrigação moral de tratarmos uns
aos outros com respeito e compaixão.”54
Ainda que concordemos com Taylor a respeito de sua proposta ser apro-
priada, uma vez que imaginemos “discutir com pessoas que estão na con-
temporânea cultura da autenticidade, tentando moldar suas vidas à luz deste
ideal”, não deixa de nos parecer paradoxal que ele tente garantir a universa-
lidade da autenticidade —- o que fundamenta as propostas políticas condi-
zentes com a sua institucionalização — através de um raciocínio, cuja força
reside na imemorial confiança no velho e bom princípio da não contradição.
Paradoxal, porque a autenticidade ganha centralidade justamente a partir da

52 Taylor, C., op. cit., p. 33.

53 Ibidem, p. 35.

54 Ward, B., op. cit., p. 102.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
348 Mariana Lins Costa

falência concreta e teórica da racionalidade prática. Se os valores iluminis-


tas tivessem sido institucionalizados tal como se premeditava na aurora da
modernidade, ou caso tivesse se tornado endêmica uma prática moral fun-
damentada na racionalidade, talvez não houvesse ocorrido o seu “desvio” ou
ainda que houvesse certamente ele não teria sido suficiente para se trans-
formar no “humor” de uma global cultura contemporânea. Até que ponto
o “desvio” com o qual Taylor acusa Nietzsche não se trata apenas de uma
constatação mais objetiva do que efetivamente se desdobra como realidade,
a despeito de todos os discursos humanistas, liberais? Rotular Nietzsche de
“apóstolo do mal”, sem enfrentá-lo, parece enredar Taylor na “psicologia dos
‘melhoradores da humanidade’” — “o inquietante problema” que Nietzsche
diz ter perseguido “mais longamente”. Valendo-nos da síntese dada pelo pró-
prio, os “melhoradores da humanidade” são aqueles que se propõem o “fazer
moral” utilizando de meios fundamentalmente imorais: a pia fraus, mentira
piedosa.55 Taylor parece não duvidar do seu direito à velha mentira filosófica
de que o “princípio da não contradição irá salvar o mundo” ou de que “o
logos é o comum”, embora naturalmente tal assertiva só possa ser conside-
rada uma mentira se pudermos nos livrar da esperança de que um dia essa
profecia, por assim dizer, pré-socrática irá se realizar no futuro. Mesmo sendo
um leitor tão assíduo de Dostoiévski, Taylor parece não ter considerado su-
ficientemente, ao menos não no seu The ethics of authenticity, o ensinamento
que decorre de todas as obras desse escritor que justamente Nietzsche disse
ter sido o único psicólogo com o qual teve algo a aprender56: a de que a “a
razão e a ciência, hoje e desde o início dos séculos sempre desempenharam
uma função auxiliar; e assim será até a consumação dos séculos”.57
Ao se imaginar discutindo com contemporâneos que compartilham do
ideal da autenticidade, Taylor afirma que, numa situação como essa, não se
estará abandonado a diferentes, múltiplos e contraditórios conjuntos de pre-
ferências e anseios individuais. Afinal podemos começar da pergunta sobre
quais são as condições da vida humana que permitem realizar esse ideal e
ao que a “compreensão apropriada deste ideal nos convoca”.58 Este tipo de

55 Nietzsche, F. W. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, pp. 52-53.

56 Ibidem, p. 95 .

57 Dostoiévski, F. M. Os demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 248.

58 Taylor, C., op. cit., p. 32.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 349

pergunta é o que lhe permitirá, posteriormente, garantir a saída confortável


e conciliatória de que, para se assegurar a própria autenticidade, é preciso
garantir que as dos demais estejam asseguradas. Ainda que estejamos aqui
simplificando ao ponto da deturpação, é interessante observar o que o nar-
rador das Memórias do subsolo de Dostoiévski, o homem do subsolo, teria a
dizer sobre isso.59 Sob a perspectiva do homem do subsolo, ao que parece,
Taylor estaria, em alguma medida, propondo que toda a “ignomínia” que os
homens cometeram e poderão cometer em nome de uma autenticidade que
se confunde com liberdade autodeterminada decorre unicamente do fato de o
indivíduo que visa a sua autorrealização “desconhecer os seus reais interesses,
e que bastaria instrui-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais
interesses, para que ele deixasse de cometer as ignomínias”, já que compre-
enderia tratar-se de autenticidade desviada — ao que o homem do subsolo
exclama: “Oh, criancinha de peito! Oh, inocente e pura criatura”, para em
seguida continuar:

Mas, em primeiro lugar, quando foi que aconteceu ao homem, em todos


estes milênios, agir unicamente em prol da própria vantagem? […] A van-
tagem! Mas o que é a vantagem? Aceitais acaso a tarefa de determinar com
absoluta precisão em que consiste a vantagem humana? E se porventura
acontecer que a vantagem humana, alguma vez, não apenas pode, mas
deve até consistir justamente em que certos casos desejamos para nós mes-
mos a desvantagem? […] tudo isso não passa a meu ver, de pura logística!
Sem dúvida, afirmar essa teoria da renovação de toda espécie humana por
meio do sistema das suas próprias vantagens, é a meu ver, quase o mesmo,
que afirmar […] que o homem é suavizado pela civilização, tornando-
-se por conseguinte, pouco a pouco, menos sanguinário e menos dado à
guerra. De acordo com a lógica, se não me engano essa é a conclusão
a que ele chega. Mas o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema de
dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade,
a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar sua ló-
gica. […] Lançai um olhar ao redor: o sangue jorra em torrentes e, o que
é mais, de modo tão alegre como se fosse champagne. […] O que suaviza,
pois, em nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas uma

59 De acordo com Ward é justamente “o Rousseau que investiga a si mesmo e se expressa nas
Confissões e Devaneios, quem Dostoiévski tem em vista na confissão do homem do subsolo, quan-
do se trata da sua busca pela própria individualidade autêntica” (Ward, op. cit., p. 104).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
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multiplicidade de sensações e… absolutamente nada mais. E, através do


desenvolvimento dessa multiplicidade, o homem talvez chegue ao
ponto de encontrar prazer em derramar sangue.60 [grifo nosso]

O que Dostoiévski representa em praticamente todas as suas obras é a busca


pelo eu verdadeiro, que em nada está relacionado com a comunidade, com
a imitação do comum, com o divino — já que o comum, o tradicional, o
divino são, sob a ânsia da autenticidade, desdenhados como meras cópias,
enquanto o homem passa a ser medido com a métrica da obra de arte —;
ou nas palavras do homem do subsolo: a busca pelo desenvolvimento único,
autêntico da multiplicidade própria conduz antes a uma desfiguração da hu-
manidade do que a uma transfiguração do homem em deus, ou em além-do-
-homem como pretendia Zaratustra. A busca pelo que contemporaneamente
designamos de autenticidade é representada artisticamente por Dostoiévski
como a contínua desfiguração do homem no homem, o indivíduo se despoja
continuamente da sua humanidade, dos seus atributos comuns em busca do
que nele há de original, autêntico, único — o que é representado de modo
mais ou menos heroico no que o próprio Dostoiévski designou de tipo ho-
mem do subsolo. A escolha de Taylor por uma subjetividade necessariamente
dialógica em detrimento de uma monológica, pressuposta pela autenticidade
desviada, revela a leitura de Dostoiévski e, certamente a da interpretação de
Bakhtin, cuja tese central é a de que Dostoiévski teria sido o criador do ro-
mance polifônico em detrimento do romance monológico europeu. De todo
modo, não nos parece possível, sob o impacto da leitura dostoievskiana, con-
ciliar o anseio pela autenticidade com uma vida que respeite os laços comuns,
com um homem que seja capaz de criar laços comuns.61 Para Dostoiévski não
há redenção na busca da autenticidade, pois Deus é necessário à vida humana.
O Cristo, a “Palavra feita carne», é o modelo ideal, porque divino e perfeito,
e o destino do homem que busca “tornar-se o que se é” consiste na imitação
de Cristo que se deve dar não pela racionalidade, mas pelo sentimento de

60 Dostoévski, F. M. Memórias do subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000,
pp. 32-33; 35-36.

61 Na seção “Dostoevsky’s Dialogic Self” do seu capítulo “Authenticity”, Ward desenvolve como a
elaboração empreendida por Taylor de uma autenticidade dialógica reflete, como seria o caso tam-
bém em Bakhtin, um “otimismo injustificado”, caso se leve em consideração a obra dostoevskiana
em si mesma: “A natureza dialógica do eu revelada por Dostoiévski não é por si só suficiente para
justificar a esperança de que a busca pela autenticidade anda de mãos dadas com o reconhecimen-
to dos nossos laços morais com os outros.” (Ward, B., op. cit., p. 103; p.106)

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Ensaio sobre a autenticidade 351

humildade e pelo trabalho. Mas tudo isso é certamente russo, demasiado


russo e moscovita, para os ouvidos, como diz Taylor, das pessoas que estão
na moderna cultura da autenticidade — não há como negar. É tarde demais
para se levar a sério este tipo de proposta, além de muito arriscado. Como
ensina o mesmo Dostoiévski, no homem educado sob os moldes da cultura
europeia — e que portanto anseia pela autenticidade — o retorno à religio-
sidade, talvez com exceção de Crime e castigo, é impossível, não passa de
política, que em casos extremos, e o extremo para Dostoiévski é uma regra
da autenticidade, chegará ao ponto de um fanatismo nacionalista, mesmo se
o caráter nacionalista não estiver evidente.62 Por isso, soa um tanto estranho
que Bruce Ward, na sua tentativa de Redimir o Iluminismo (título da sua
obra), proponha, declaradamente a partir das ideias representadas artistica-
mente por Dostoiévski, que a ânsia pela autenticidade — que, para o escritor
russo, conduz necessariamente à desfiguração — só “pode ser transcendida,
[…] através do caminho da kenosis cristã, onde se alcança o próprio eu através
de uma autoentrega ao invés de uma autoafirmação.”63
Não pretendemos aqui esgotar o assunto. Talvez Taylor tenha na sua fi-
losofia elementos para contornar esse tipo de acusação. Talvez o bom senso
seja mesmo, como disse Descartes, o que há de melhor distribuído entre os
homens. Enfrentar a pertinência da universalização da virtude da autenticida-
de de modo a ser possível a sua institucionalização e politização não foi aqui
o nosso propósito.

Referências

DOSTOIÉVSKI, F. M. Os demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.
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HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética [I, II, II e IV]. Trad. Marco Aurélio Werle. São Pau-
lo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992
______. Assim falou Zaratustra. Tradução Mario da Silva. Civilização Brasileira: Rio de
Janeiro, 2006

62 Autorreferência.

63 Bruce, W., op. cit., p. 107.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
352 Mariana Lins Costa

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TAYLOR, C. The ethics of authenticity. Massachusetts: Harvard University Press, 2003.
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WARD, B. Redeeming the enlightenement: Christianity and the liberal virtues. Michigan:
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WILDE, O. The picture of Dorian Gray. Victoria: McPherson Library, Special Collec-
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berg eBook, 1997.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.331-352, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto”.
Bento Silva Santos*

A apropriação fenomenológica dos


fragmentos sobre filosofia da
religião (1916-1917) de Adolf Reinach

Martin Heidegger and the “Absolute”.


The phenomenological appropriation of the
fragments on philosophy of
religion (1916-1917) by Adolf Reinach

Resumo
Com base nas notas de uma Vorlesung (1918-1919) cancelada de Martin
Heidegger, intitulada “Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval” (GA
[= Gesamtausgabe] 60, 301-337), o artigo aborda aspectos centrais da nota
“Das Absolute” (junho de 1918)1, dedicada ao fenomenólogo Adolf Reinach. Os
Aufzeichnungen (Apontamentos) sobre fenomenologia da religião (1916-1917)
de Reinach inspiraram a fenomenologia do jovem Heidegger no início de sua
carreira docente em Freiburg (1919-1923). Considerando o caráter fragmentário
de ambos os textos (os apontamentos de Reinach e as notas de Heidegger), minha
análise privilegia a apropriação fenomenológica de Heidegger do fragmento de
filosofia da religião “O Absoluto” (GA 60, 324-327). Ao destacar as convergências e
as críticas ao pensamento de Reinach, minha análise também se baseia no contexto
mais amplo das preleções heideggerianas ministradas em Freiburg.

Palavras-chave: Absoluto; vivência; mística; fenomenologia; religiosidade.

1 Cf. Heidegger, M., Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik In: _____. Phäno-
menologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324-327. O texto comentado por Heidegger propriamente
dito é o fragmento sobre o “Absoluto” de Adolf Reinach. Sobre a problemática dessas notas de um
curso não proferido de Heidegger, cf. Camilleri, S., Phénoménologie de la religion et herméneutique
théologique dans la pensée du jeune Heidegger,2008, p. 67-82; Kisiel, T. Note for a Work on the
‘Phenomenology of Religious Life’ (1916-1919)”. In: McGRATH, S.J. & WIERCINSKI, A. (ed.). A
Companion to Heidegger’s Phenomenology of Religious Life, 2010, p. 309-328.

* Bento Silva Santos é codinome de Jorge Augusto da Silva Santos. Professor do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)/CNPq;
E-mail: benedictus1983@yahoo.com.br

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
354 Bento Silva Santos

Abstract
Based on the cancelled notes of a Vorlesung (1918-1919) of Martin Heidegger
entitled “The Philosophical Foundations of Medieval Mysticism” (GA 60, 301-
337), the article discusses key aspects of the note “Das Absolute “(June 1918)
dedicated to the phenomenologist Adolf Reinach. The Aufzeichnungen (Notes) on
phenomenology of the religion (1916-1917) of Reinach inspired the phenomenology
of the young Heidegger at the beginning of his teaching career in Freiburg (1919-
1923). Considering the fragmented nature of both texts (the notes of Reinach and
notes of Heidegger), my analysis focuses on phenomenological appropriation of
Heidegger’s fragment of the philosophy of religion “The Absolute” (GA 60, 324-
327). By highlighting the convergences and the critiques to Reinach´s thoughts, my
analysis is also based in the broader context of Heideggerian lectures given at the
University of Freiburg.

Keywords: Absolute; living; mystical; phenomenology; religiosity.

As origens dos Aufzeichnungen (Apontamentos)2 sobre fenomenologia da reli-


gião de Adolf Reinach (1883-1917) remontam ao período que vai de abril de
1916 a outubro de 1917. Nessa ocasião, Reinach se encontrava na linha de
batalha durante a primeira guerra mundial. É justamente aí, na situação-limi-
te de quem pressente a própria morte, que Reinach escreve seus apontamentos
sobre a religião. O projeto de uma fenomenologia “objetiva” da religião, esbo-
çado nas “Notas sobre folhas esparsas”3, parece confirmado na carta dirigida à

2 Utilizo as seguintes edições dos fragmentos e dos escritos de Reinach, A. Sämtliche Werke. Tex-
tkritische Ausgabe in 2 Bänden, 1989 (= SW). O primeiro volume apresenta, como primeira parte,
a reedição crítica dos textos publicados de 1905 a 1914 (Kritische Neuausgabe, p. 1-331) e, na se-
gunda parte, os escritos póstumos que datam de 1906 até 1917 (Nachgelassene Texte, p. 335-611).
O segundo volume apresente uma biografia intelectual sucinta de Reinach, mas que compreende
todas as etapas de sua formação e docência. Eis, portanto, as referências sobre os fragmentos:
Aufzeichnungen (= Apontamentos) (1916/1917): A. Zur Phänomenologie der Ahnungen (= Para uma
fenomenologia dos pressentimentos), SW, p. 589-591; B. Notizen auf losen Zetteln (= Notas sobre
folhas esparsas), SW, p. 592-604; Bruchstück einer religions philosophischen Ausführung (= Fragmento
de uma exposição de filosofia da religião) (1916/19197), SW, p. 606-611; Reinach, A. L’Assoluto.
Appunti filosofico-religiosi (1916-1917), 2015, p. 40-97. Cf. também a tradução francesa de textos
que contêm elementos fundamentais do pensamento de Reinach, A. Phénoménologie realiste, 2012.
Para uma abordagem recente dos fragmentos e sua recepção posterior, cf. especialmente Bancalari,
S. Logica dell’epochè. Per un’introduzione alla fenomenologia della religione, 2015, p. 82-104.

3 Reinach, A. Notizen auf losen Zetteln. In: _____, Sämtliche Werke, 1989, p. 592-604;

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Martin Heidegger e o “Absoluto” 355

sua esposa Anna Reinach, aos 23 de maio de 19164. O acesso inicial à primei-
ra cópia dos manuscritos de Reinach foi possível graças à fenomenóloga Edith
Stein. Esta teria comunicado ao seu mestre Edmund Husserl, discutindo com
ele e com Jean Hering sobre o conteúdo dos fragmentos5. Husserl, por sua
vez, pensou imediatamente em Martin Heidegger para conduzir o canteiro
em busca de uma fenomenologia da religião. Nesse sentido, após a morte
de Reinach aos 16 de novembro de 1917, Heidegger teria consultado os ma-
nuscritos deste último em companhia de Husserl, Stein e talvez também de
Hedwig Conrad-Martius. Essa leitura intensa deu-se igualmente no período
da primeira guerra mundial, quando então Heidegger estava em treinamento
para ser membro do exército em Heuberg.
É durante o período que vai do semestre de verão de 1917 até o final
de 1918 que Heidegger começa a redigir um manuscrito sobre a mística
medieval. Este será registrado em 1918 na Universidade de Freiburg com o
título Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval para ser ministrado como
uma Vorlesung acadêmica no semestre de inverno de 1919-1920. Acontece,
porém, que esta Vorlesung formalmente anunciada foi cancelada. Nas notas
da Vorlesung não proferida, Heidegger, portanto, só se debruçou sobre o frag-
mento de filosofia da religião intitulado “O Absoluto”6, ou, mais precisamen-
te, sobre a primeira seção do manuscrito estudado – “Das Absolute” – à qual
seguiam-se duas breves seções denominadas “Estrutura da vivência” e “con-
siderações céticas”7. Dado o caráter lacunoso das observações de Heidegger,
recorrerei ao pensamento de Reinach para clarificar a recepção heideggeriana
dos fragmentos no contexto de uma fenomenologia hermenêutica ainda em
gestação no período friburgense (1919-1923)8.

4 Cf. Reinach, op. cit., 1989, p. 790; Idem, op.cit, 2015, p. 15, nota 19.

5 Apud Kisiel, T. The Genesis of Heidegger’s “Being and Time”,1995, p. 521, nota 15.

6 Reinach, A. op. cit., 1989, p. 606-611; Idem, op. cit., 2015, p. 80-92.

7 Cf. Kisiel, T. op. cit., 1995, p. 523, nota 37. A seção sobre “O Absoluto” tinha sido publicada
inicialmente na introdução de Hedwig Conrad-Martius às Gesammelte Schriften, editadas por Nie-
mayer em Halle em 1921, p. XXXI-XXXVI. Esta era a edição de referência às obras de Reinach
até o ano de 1989.

8 Sobre este período da docência de Heidegger, cf. Fischer, M. Religiöse Erfahrung in der Phäno-
menologie des frühen Heidegger, 2013, p. 327-440; Arrien, S.-J. L’inquiétude de la pensée. L’herméneu-
tique de la vie du jeune Heidegger ,2014, p. 9-18.

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356 Bento Silva Santos

A. As críticas de Heidegger aos fragmentos de Reinach

Na apropriação crítica de Heidegger dos fragmentos de filosofia da religião,


destaca-se um elemento fundamental que retorna como leitmotiv nas demais
notas da Vorlesung não proferida: o desejo de preservar a intencionalidade da
consciência histórica diante da distorção metafísica com seus critérios teóri-
cos de valoração:

A autonomia da vivência religiosa e de seu mundo deve ser vista como


uma intencionalidade absolutamente originária, comportando um caráter
de exigência absolutamente originário” [...] Em toda vivência religiosa, um
dos elementos de sentido mais significativos, fundantes, é o histórico. Na
vivência já se encontra uma doação de sentido especificamente religiosa9.

Heidegger aplica aqui uma fórmula de Reinach à vivência religiosa: “A per-


cepção da realidade [Wirklichkeitsnehumung] está contida de maneira ima-
nente no sentido da própria vivência”10. A dimensão fundadora do si histó-
rico provém ao mesmo tempo da ideia heideggeriana de fenomenologia e da
constituição específica do religioso: a “constituição da ‘coesão da vivência’
noético-religiosa é de natureza histórica” justamente porque, como disse-
mos na citação acima, existe uma “autonomia da vivência religiosa e de seu
mundo”11. Em relação a essas citações, não há como negar uma convergência
com a afirmação lapidar de Reinach: “Antes de tudo: deixar às vivências reli-
giosas o seu sentido! Mesmo quando ele conduz a enigmas. Talvez justamente
este enigma seja do mais alto valor para o conhecimento”12. Para demarcar
elementos de uma autêntica análise da experiência religiosa em Reinach, dis-
tingo os seguintes pontos nas notas de Heidegger sobre o “Absoluto”.

9 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänomeno-
logie des religiösen Lebens, 1995, p. 322-323.

10 Ibidem, p. 325.

11 Ibidem, p. 334.322.

12 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 593 ; Idem, op. cit., 2015, p. 51-52.

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a) A crítica à topologia ôntica de Reinach

Nas primeiras linhas da nota já se explicita a crítica heideggeriana em sua


citação do texto de Reinach: “A posição que adotamos para com Deus deter-
mina a direção que toma nosso comportamento vivido em relação a ele” (“Die
Stellung zu Gott ist richtunggebend für unser erlebnismäẞiges Verhalten zu
ihm”). Imediatamente Heidegger pergunta: “O quer dizer ‘posição adotada
frente a Deus’?” Frente a esta ideia de “posição”, Heidegger a interpreta como
sendo ora objetiva, ora pré-fenomenológica, ou ora simplesmente espacial.
Na verdade o ponto de partida para uma abordagem fenomenológica deve
inverter a fórmula: “nosso comportamento vivencial frente a Deus – nosso
comportamento primordial, visto que jorra em nós sob o efeito da graça –
determina a direção da constituição especificamente religiosa de ‘Deus’ como
um ‘objeto fenomenológico’”. A crítica à formulação “ôntica” visa, portanto, à
fórmula de Reinach: “A posição frente a Deus (Die Stellung zu Gott)”. Isto só
adquire sentido se a formulamos como um “comportamento da consciência,
e não onticamente, como um ser-ao-lado-de, ou ‘sob’ um ser (absoluto)”13.
Este caráter ôntico da visão de Reinach aparece com clareza no início do frag-
mento: “A posição que adotamos frente a ele, um absoluto [ser] sob (ein abso-
lutes Unten) frente a um absoluto [ser] acima (einem absoluten Oben gegenüber),
nos prescreve nossa conduta vivencial: confiança, amor, dependência”14. A
citação descreve assim a relação Deus-homem em termos de “estar sob um
ser absoluto” do ponto de vista do homem e, do ponto de vista de Deus, um
“estar acima de um ser-absoluto15.
A crítica de Heidegger revela-se como corretivo à formulação de Reinach:
se o Absoluto deixa-se descobrir na vivência religiosa como tal, se somente
este “caráter de ser vivenciável” torna o Absoluto acessível ao homem, então
o comportamento experiencial pressupõe já a adoção de “uma posição frente
a Deus”. Portanto, tal “posição” ou “atitude”, tal como a compreende Heide-
gger, é já o correlato de uma pré-compreensão da vivência religiosa e, por-
tanto, determina a multiplicidade das experiências religiosas vividas por um
sujeito. Se o Absoluto se determina somente na atuação mesma da vivência
religiosa, sua significação plena só se dá na medida em que Ele se manifesta

13 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324.

14 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 607 ; Idem, op. cit., 2015, p. 81-82.

15 Camilleri, S. op. cit., 2008, p. 373-374.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
358 Bento Silva Santos

também em uma “historicidade” viva. A ênfase dada ao “elemento histórico”


das vivências religiosas será constante nas críticas de Heidegger à análise fe-
nomenológica de Reinach: “A unidade viva de sentido do ser vivente que se
encontra na estrutura de sentido da consciência, como consciência ‘histórica’
em geral, determina também [?] de um modo ou de outro – mesmo se ela aí
inicia de novo originariamente (em virtude de sua estrutura) -, a mundani-
dade específica (die spezifische Welthaftigkeit) desta esfera, enquanto se trata
da esfera da vivência religiosa”16. Ainda que não seja desenvolvida com pre-
cisão desejada a relação entre religiosidade e historicidade da vida, é convic-
ção do jovem Heidegger o fato de que a investigação fenomenológica possui
como indicações norteadoras a vida fática e a história. Em outras palavras: os
termos “facticidade” e “história” são os únicos pressupostos admitidos por
Heidegger na medida em que expressam uma condição temporal oriunda
da própria vida humana e não de um contexto de fundamentação teorética.
Não se trata, porém, da história no sentido da ciência histórica, mas de um
acompanhamento da vida tal como ela é vivida, no sentido de certa autofami-
liaridade e de um cuidado de si vividos . A vida só poderá ser compreendida
em sua dimensão vivificante com base no complexo de significatividades que
no tempo histórico acontecem e que remetem justamente para a tentativa
de autonomia da vida fática (Geschichtliche) em relação a uma estabilização
cronológica típica da concepção teorética de história (Historie). Portanto, a fa-
miliaridade que a vida tem já consigo mesma é pensada por Heidegger como
historicidade da vida 17.
Ainda em relação à crítica inicial de Heidegger com esta subordinação da
Stellung à vivência no contexto de uma “historicidade” viva, caberia pergun-
tar se é totalmente justa, pois, além desconhecer o significado metodológico
fundamental dessa expressão (Stellung) na obra de Reinach, a “diferença de
altura” nesse último “não é de modo algum espacial em sentido ôntico, nem
se pode reduzir a uma questão de superestruturas sociais”. Se Reinach fala
de espaço não é certamente do espaço ôntico, mas, sim, do espaço da ma-
nifestação. Sem poder realizar aqui uma crítica da crítica, e considerando a

16 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.

17 Heidegger, M. Grundprobleme der Phänomenologie, 1993, p. 252.256.159. A abordagem heide-


ggeriana mais detalhada sobre o fenômeno do “histórico” e sua relação com o paradigma histórico
do cristianismo encontra-se na primeira parte, capítulo terceiro, do curso do semestre de inverno
(1920-1921) intitulado “Introdução à fenomenologia da Religião”. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, p. 31-54.

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Martin Heidegger e o “Absoluto” 359

flagrante ambivalência metodológica de Reinach, concordo com as ponde-


rações de Stefano Bancalari acerca da interpretação heideggeriana: Reinach
não faz do Absoluto o nome fenomenológico de Deus. Este não é o Absoluto,
mas é “dado na altura absoluta”18. Absoluto “não é um predicado do objeto
da vivência, mas da distância vivenciada como ‘altura’”, distância certamente
qualitativa (intensiva), que pertence à ordem do mensurável19. Trata-se, por-
tanto, de uma distância que pode ser intensificada até o seu cume, chegando
a uma “posição” (Stellung) em princípio irreversível, e isso jamais acontece no
caso das relações humanas: um pai é também filho, um mestre foi aluno e
todo superior é subordinado a alguém20. Dessa forma descortina-se inequi-
vocamente como Reinach não se exime de oferecer um conteúdo intuitivo
às noções mais formais, e “altura” aqui pode ser objeto de uma experiência
efetiva e quotidiana:

Nos atos pelos quais os homens se relacionam uns com os outros (por exem-
plo, os atos da disposição de ânimo [Gesinnung]) pode ser já imanente uma
determinação direcional. Há uma amizade endereçada para o alto (oben)
e uma amizade condescendente; um ódio contra os superiores - e dados
fenomenalmente como superiores - e um ódio contra um sujeito desprezado
e, portanto, dado como estando por debaixo de nós. Tais direcionamentos
determinados dos atos parecem ser, algumas vezes, casuais, outras vezes,
associados a determinados atos de consciência21.

b) A crítica dos “conceitos fundamentais da metafísica”

Um segundo ponto da crítica de Heidegger reside na subsunção acrítica de


“conceitos básicos da metafísica por parte de Reinach, especialmente o de “Ab-
soluto”, uma vez que tais conceitos procedem da metafísica racionalista e não
da esfera genuína da experiência histórica. Nesse sentido, ao utilizar material
proveniente da metafísica, Reinach teria comprometido a “radicalidade” da

18 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 607 ; Idem, op. cit., 2015, p. 81-82.

19 Bancalari, op. cit., 2015, p. 97.98-100. A crítica da crítica é desenvolvida aqui na obra de
Bancalari.

20 Ibidem, p. 98.

21 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 606 ; Idem, op. cit., 2015, p. 82.

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análise fenomenológica da religião que parte principalmente da esfera in-


terior e subjetiva, ou seja, da experiência íntima e pessoal da consciência.
Como já aludido no final do tópico anterior sobre a crítica à formulação
ôntica de Reinach, eis a passagem de Heidegger onde se diz inequivocamente
que a determinação do sentido de Absoluto implica uma relação concreta
com o fenômeno originário da vida, que é irredutível a uma mera compreen-
são conceitual da vivência.

O Absoluto – que não se deixa determinar senão em cada esfera particular


da vivência – recebe sua concreção plena manifestando-se em sua histori-
cidade; e por essa razão a análise – movendo-se apenas nela – deve sem
cessar mostrar o ‘histórico’. Este é o elemento de determinação e tonalida-
de, que toma uma orientação sempre diferente e com consequências cada
vez distintas, porque é o elemento que dá o sentido originário e a estrutura
da consciência viva em geral22.

O texto heideggeriano evoca sem dúvida algumas considerações da obra


Ideias I de Husserl23 quando esboça as relações entre absoluto, historicidade
e concreção. Esta referência a Husserl é bastante comum desde o início das
notas desse curso não proferido de Heidegger, mas trata-se de uma presença
a ser reintegrada criticamente em seu próprio caminho de pensamento24. Tra-
tando da diferença de princípio dos modos de existência – “ser como cons-
ciência e ser como realidade” –, Husserl afirma em Ideias I: “Um vivido não se

22 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.

23 Husserl, E., Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes
Buch (Husserliana III/1), 1976, § 44, p. 91-94; § 46, p. 96-99. Trad. bras.: Ideias para uma feno-
menologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Livro Primeiro, 2006: § 44, p. 103-106; § 46,
p. 108-110.

24 Aqui não posso tratar da relação complexa de Heidegger com seu mestre Husserl. Reconheço
que, à luz das evidências textuais proporcionadas seja pela publicação de manuscritos husser-
lianos no quadro da Husserliana, seja pelas obras completas (Gesamtausgabe) de Heidegger, não é
mais possível sustentar uma imagem simplificada de ambos os pensadores. Com base em textos
posteriores (como, por exemplo, em Ser e Tempo § 34), Heidegger critica Husserl precisamente em
relação à prioridade dada pelo mestre à compreensão teorética da existência: nossa relação primei-
ra com as coisas não se reduz a uma simples percepção, como se primordialmente estivéssemos
junto a “sensações” (ouvindo o som isoladamente para, em seguida, o sujeito saltar para o mun-
do); nossa relação está sempre ligada a uma certa experiência vivida do mundo circundante, ou
seja, está referida a um conjunto já dotado de sentido, a um horizonte de sentido ou rede de sig-
nificações. Para uma abordagem das apropriações hedeggerianas de Husserl, ver Adrián Escudero,
J. A la búsqueda de un diálogo entre Husserl y Heidegger. Studia Heideggeriana, p. 9-33, 2016.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 361

perfila”. Se, portanto, o vivido, não se exibe, então “a percepção de vivido é


vista simples de algo dado (ou a ser dado) como ‘absoluto’ na percepção e não
como o idêntico em modos de aparição por perfil”. Por exemplo, no caso da
vivência de sentimento: caso eu olhe para ela, terei um absoluto, pois não tem
lados que possam se exibir, ora de um jeito, ora de outro. Mesmo que possa
pensar algo de verdadeiro ou falso sobre uma vivência de sentimento, “o que
se apresenta ao olhar intuinte está absolutamente ali com suas qualidades,
sua intensidade, etc.”. O mesmo não acontece, por exemplo, com um som de
violino: “com sua identidade objetiva, é dado por perfil, ele tem seus modos
cambiantes de aparecer”25. Com base nessa distinção entre “o mero ser feno-
menal do transcendente e o ser absoluto do imanente”, Husserl conclui: “se,
por um lado, é da essência do dado por aparições [um som de violino] que
nenhuma delas dê a coisa como um ‘absoluto’, e não em exibição parcial,
por outro, é da essência do dado imanente dar justamente um absoluto [um
vivido de sentimento], que não pode de modo algum se exibir ou perfilar
por seus lados”26. Mais adiante no § 46 de Ideias I Husserl afirma ainda que
“minha atualidade de vivido é efetividade absoluta, dada por uma posição in-
condicionada, pura e simplesmente insuprimível”27.
À luz dessas distinções, compreende-se assim a citação heideggeriana com
base na reapropriação crítica do mestre: a vida é absoluta e tem um absoluto
que lhe corresponde. A vida determina o sentido da realidade absoluta que
ela traz consigo. Heidegger concebe a vida enquanto fenômeno histórico que
vivencia a si mesma sem recair em uma consideração objetual. A historicidade
emerge no ato mesmo do filosofar como existência (como ser do si-mesmo),
acessível a partir da “vida” com e através da história. Do ponto de vista da feno-
menologia da religião de Heidegger em ato nesse período, o tipo de absoluto
inerente à esfera religiosa é determinado pela vivência religiosa em seu aspec-
to de autossuficiência sem, portanto, intromissões externas. Mas o Absoluto
religioso só se tornará uma essência absolutamente independente quando se
levar em consideração a historicidade da vivência religiosa. Nesse sentido,
“a historicidade é a causa primeira do sentido do Absoluto religioso”28. Sem
passar pelo “eu histórico”, isto é, sem a imersão na experiência de vida como

25 Husserl, H. op. cit. 2006, § 42, p, 100-102; § 44, p. 104-105.

26 Ibidem, § 44, p. 105.

27 Ibidem, § 46, p. 109.

28 Camilleri, S. op. cit., 2008, p. 388.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
362 Bento Silva Santos

tal, o Absoluto religioso enquanto conteúdo vivenciado se transforma em uma


abstração teológica. Quando Heidegger toca aqui na questão da “historicida-
de” como algo fundamental para captar a singularidade das vivências vividas,
como é caso justamente do Absoluto religioso, ele pensa fundamentalmente
no “histórico tal como o encontramos na vida, e não na ciência histórica”, ou
seja, do “histórico” que não pode ser expresso ao modo de objetos. Por quê?
Porque, afirma Heidegger posteriormente no curso friburgense “Introdução à
fenomenologia da Religião (1919/1921)” (GA 60), “tomado em sentido muito
mais amplo que o fato histórico, que não existe senão no cérebro de um lógi-
co, e que é o simples produto do esvaziamento epistemológico do fenômeno
vivo, o histórico é a vitalidade imediata da vida”29. Rejeitando a assunção de
conceitos metafísicos por parte de Reinach, para Heidegger o Absoluto recebe
sua concreção plena na esfera das vivências originárias, dentro de um âmbito
não teorético. É assim que desde 1919, adaptando o “princípio de todos os
princípios” de Husserl (em Ideias I,§ 24)30 ao seu questionamento da feno-
menologia teorética de seu mestre, Heidegger realiza uma primeira passagem
para a sua hermenêutica fenomenológica da vida: ele mostra a natureza não
teórica do “princípio dos princípios”, uma vez que Husserl fala de “algo que
precede a todos os princípios e que nos salvaguarda dos erros da teoria”.
Para Heidegger, trata-se “da intenção originária da vida autêntica em geral,
da atitude originária do vivenciar (Erlebens) e da vida (Lebens) como tais, da
absoluta simpatia com a vida (Lebenssympathie), que é idêntica com o viver
(Erleben) mesmo”31. Portanto, esse comportamento originário do “Erlebens”
e do “Lebens” constitui um retorno da vida a si mesma focalizado no caráter

29 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 33-34.

30 Husserl, E. op. cit., 2006, § 24, p. 69: “Toda intuição doadora originária é uma fonte de legitima-
ção do conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na ‘intuição’ (por assim dizer, em
sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado como ele se dá, mas também apenas
nos limites dentro dos quais ele se dá”. Husserl prioriza aqui, antes de tudo, a intuição de essência e
não a expressão. Esta chega só sob a forma de enunciado: “Todo enunciado... nada mais faz que
dar expressão a esses dados [originários] mediante mera explicação e significações”. A expressão
originária é aquela que, mediante um enunciado explicativo, se ajusta exatamente à intuição doa-
dora. O que está em questão aqui é o estatuo da intuição doadora na fenomenologia, mas Heideg-
ger, sem mostrar a insuficiência da intuição como um início absoluto, faz na verdade uma inflexão
do “princípio” de Husserl com base na problematização da relação entre intuição e expressão e a
partir de sua própria compreensão da fenomenologia enquanto “ciência originária” pré-teorética.
Cf. também Arrien, S.-J. L’inquiétude de la pensée, 2014, p. 101-117.

31 M. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester


1919). In: _____. Zur Bestimmung der Philosophie,1999, p. 110

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Martin Heidegger e o “Absoluto” 363

reflexivo da vida que se expressa na “compreensão” (Verstehen) e não em uma


consideração teorética ou descritiva32. Assim, para Heidegger não se expressa
com isso um simples ponto de vista, mas, ao contrário, uma atitude funda-
mental (Grundhaltung) que começa a ser absoluta quando vivemos nela, “e
isto não o realizou nenhum sistema conceitual concebido até hoje, mas a vida
fenomenológica em seu crescimento de si sempre maior”33. Portanto, em vez
da evidência da intuição fenomenológica de Husserl, Heidegger esboça um
compreender hermenêutico, dentro do qual aparece a relação estreita entre
intuição, compreender e expressão (Ausdruck): trata-se de um compreender a
vida a partir dela mesma, uma vez que a vida possui uma autocompreensão
espontânea e imediata; a experiência da vida é prenhe de sentido e intencio-
nalmente estruturada; a vida é compreensível porque o próprio vivenciar é
em si mesmo uma forma preliminar de compreensão ou, com as palavras do
próprio Heidegger, uma “pré-compreensão”. Daí a conexão estabelecida por
Heidegger entre “vivência vivida [Erlebnis] - compreensão - expressão” e sua
onipresença no curso do semestre de verão de 1919/1920 (GA 58), sobre-
tudo em relação ao caráter de significatividade atribuído à vida. Aquilo que
vivenciamos é, antes de tudo, a «trivialidade” da vida cotidiana, não menos
real que os clássicos “objetos filosóficos”. O modo de existência dessa coti-
dianidade - o “algo” (Etwas) do qual tenho experiência enquanto ausência de
determinação - não se identifica com a subsistência do objeto da investigação
teorética, mas «se manifesta segundo uma significatividade que dá conta de
todo fenômeno vital experienciado na ‘indeterminação de um determinado nexo
de significatividade’”34: esse “algo” enquanto indeterminado está relacionado
com uma existência totalmente absorvida por nexos de significatividade35.

c) Determinando o Absoluto da vivência religiosa: a distinção entre “peso da


vivência” (noesis) e “esfera do conteúdo da vivência” (noema)

Mas retornemos ao conteúdo da nota sobre Reinach. Em relação à deter-


minação do “Absoluto” como impossibilidade de aumento suplementar,

32 Jacobsson, M. Heidegger e Dilthey. Vita, morte e Storia, 2010, p. 98.

33 M. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester


1919). In: _____. op. cit, 1999, p. 110.

34 Cf. Jacobsson, M. op. cit., p. 102, citando HEIDEGGER, M. op. cit., 1993, p. 106.

35 Cf. Heidegger, M. op. cit., 1993, p. 217.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
364 Bento Silva Santos

Heidegger afirma que deve mostrar-se fundamentalmente “um momento de


sentido, comportando um caráter de vivência”36, pois só assim estaríamos em
uma perspectiva fenomenológica autêntica e distante de uma conceitualidade
transcendente metafísica. Em seguida, Heidegger evoca uma distinção impor-
tante de Reinach, mas ainda sem resolver o problema da elevação: “‘O peso
da vivência’ e a esfera do conteúdo da vivência são certamente distintos, mas
em qual contexto funcional?”37 Evoca-se assim um pensamento significativo
de Reinach sobre o noema religioso (= ao Was da vivência) e a noesis religiosa
(= ao Wie da vivência) no contexto de sua fenomenologia do Absoluto. Para
entender a interrogação de Heidegger sobre o “contexto funcional” comum
entre as duas as noções citadas, é preciso apresentar resumidamente o pensa-
mento de Reinach. Este distingue, principalmente, na esfera de uma vivência,
entre o conteúdo da vivência e seu vivenciar, a “vivência” no sentido próprio:
“Vivência = vivenciar o conteúdo. Estar de luto, por exemplo, significa conte-
údo e vivência”38. Ou ainda no fragmento “Absoluto”: “O ‘absoluto’ pertence
ao conteúdo da vivência mesma (zu dem Gehalte des Erlebten) e não ao seu
vivenciar (und nich zu seinem Erleben) [...]”39. Em outras palavras: o “peso da
vivência” não pode ser confundido simplesmente com “a esfera do conteúdo
da vivência”. O absoluto da vivência religiosa não é determinado pelo seu
vivenciar (noesis), mas pelo seu conteúdo (noema).
Reinach introduz aqui uma distinção fundamental: “É preciso separar o
absoluto do conteúdo da gratidão da capacidade de vivenciá-la plenamente
(sie vollzuerleben) (férias, amor do homem)”40. A distinção significa o seguin-
te: nem tudo aquilo que é dado em uma determinada vivência é realmente
vivido, ou seja, sentido, notado, experienciado pelo próprio sujeito da vivên-
cia. Diante dessa constatação há uma divergência e, portanto, a possibilidade
de perceber a discrepância entre absoluto, de um lado, e a plenitude (da
vivência), de outro lado. Facilmente comprovamos isso na experiência coti-
diana. É bem possível que, diante de razões de profunda gratidão em relação

36 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 326.

37 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 324-325.

38 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 393.

39 Ibidem, p. 609; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.

40 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 606, nota 1 ; Idem, op. cit., 2015, p. 93.97, nota 43.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 365

a um amigo, o que sentimos na realidade é que não estejamos à altura das


expectativas. Neste caso, o que sentimos não é simplesmente gratidão, mas
igualmente a desproporção entre a gratidão que seria necessária sentir e
aquela que efetivamente se sente. A consciência descobre a possibilidade
de que um conteúdo é, de algum modo, acolhido por ela mesma, mas sem
que a vivência o experiencie como tal: o conteúdo chega só a estimular um
estrato superficial da consciência, que sente, porém, não estar à altura desse
conteúdo. Como citamos anteriormente, a formalização desta desproporção
é assim descrita: “O peso da vivência (Erlebnisgewicht) não corresponde ao
peso do conteúdo vivido”41. O primeiro aspecto da distinção não é difícil de
compreender: o peso da vivência representa o grau de intensidade percebida
de uma Erleben. Acontece, porém, que o significado do “peso do conteúdo”
não é tão transparente. Certamente o conteúdo não é o objeto para o qual
nos leva a vivência (aquele que, por exemplo, merece nossa gratidão). Trata-
-se de uma espécie de qualidade interna da vivência que, paradoxalmente,
não é vivida como tal, mas, antes de tudo, como inquietude, consciência de
inadequacidade, provocação para superar-se. A expressão utilizada por Rei-
nach para designar esta consciência é Forderung: o fato de existir no caso do
absoluto uma desproporção entre o peso da vivência e o peso do conteúdo
significa que o primeiro “não corresponde à Forderung (exigência) que co-
loca o absoluto”42. Sendo assim, é preciso reconhecer o fato de que nada há
que permita decidir que uma vivência particular esteja à altura do absoluto
de seu conteúdo e que o absoluto tenha se dado efetivamente. Por que este
reconhecimento se impõe? Porque, afirma Reinach, “é dubitável o fato de
que para os homens seja possível a relevância absoluta de uma vivência”43.
Talvez isso seja possível somente para o Filho de Deus. Permanecendo no
exemplo da gratidão, somente aquele cuja vontade coincide com a de Deus
pode experienciar o peso absoluto da vivência de gratidão e pode, portanto,
sentir reconhecimento não por isso ou aquilo, mas pela totalidade de sua
própria vida: “E talvez é possível só ao Filho de Deus viver no último nível
de profundidade mais plena ‘o faça-se a tua vontade’”44. Para os demais só
há a vivência da desproporção. O conteúdo da vivência aponta para um

41 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609 ; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.

42 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609 ; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.

43 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609-610; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.

44 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
366 Bento Silva Santos

objeto real, que é o Absoluto: Este conteúdo constitui assim “a passagem


para o reino do Absoluto”: Deus é “o Reino do Absoluto”45, enquanto o mun-
dano é o da finitude, da parcialidade.
Durante uma experiência vivida religiosa (noesis), o homem depara-se
com as exigências que decorrem dessa mesma vivência (por exemplo: “En-
quanto vivenciamos a Deus, nos sentimentos dependentes dele, sentimos
gratidão diante dele, o amamos”): tomadas de posições ou tomadas de atitu-
des absolutas, em conformidade com a absolutidade do objeto visado pela
consciência: Na base de toda vivência religiosa há uma experiência origi-
nária, que é para Reinach “a posição que adotamos para com Deus”. Esta é
variável: a “dependência absoluta”, o “estar protegido por Deus”, e a oração
são exemplos dessas atitudes fundamentais: “Pois se o supraterrestre é con-
cebido em atos que tomam posição [sobre um conteúdo], então a absolu-
tidade do conteúdo desses atos deve corresponder à absolutidade do que é
compreendido. Tudo isso é fria exposição teórica. Mas o que se esconde por
trás disso é o núcleo de valor de nossa vida, o único que pode nos sustentar
nas tempestades da vida”46.
Em resumo: de um lado, na concepção de Reinach há uma correlação
entre o conteúdo absoluto da vivência e o objeto absoluto, ou seja, Deus. Este
Absoluto expressa alguma coisa na ordem da vivência: “estar completamente
impregnado (ganz durch drungensein)”, “estar preenchido absolutamente (dur-
ch auserfülltsein)”, etc. Com base na sequência imediata do texto citado, essa
noesis pode ser identificada, do ponto de vista religioso, à Hingabe: “Significa:
a entrega é completamente vivida – eu me sinto entregue. Inclusive vivencia-
-se entrega absoluta. Mas o modo como é vivida não corresponde à exigência
(Forderung) que coloca o Absoluto”. Se este “como [Wie] da vivência religiosa”
não contém nele mesmo as exigências colocadas pelo Absoluto, então con-
sequentemente “o peso da vivência não corresponde ao pesado do conteúdo
vivido”47. De outro lado, é certo que extrapola os limites colocados por ele
mesmo a propósito do Absoluto: “Na filosofia deve-se ir aos fenômenos. De-
vemos nos precaver de definições arbitrárias e não podemos contentar-nos

45 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 605; Idem, op. cit., 2015, p. 79-80.

46 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 608-609; Idem, op. cit., 2015, p. 85-86.

47 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 609; Idem, op. cit., 2015, p. 87-88. Cf. também Camilleri, S. op.
cit., 2008, p. 383.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 367

com tais definições”48. O fenômeno inicial a ser examinado era a vivência


religiosa, mas, em vez de aproximar-se timidamente do fenômeno da vivência
religiosa e permitir que esse mesmo fenômeno lhe mostre as coisas mesmas do
religioso, Reinach recorre de modo inapropriado a conceitos metafísicos (tais
como Absoluto, o Infinito, a eternidade) para deduzir as vivências religiosas.
Retornando à crítica de Heidegger em sua nota, em uma abordagem feno-
menológica será preciso conceder mais precisão ao exame noético-noemático
das vivências religiosas pessoais e singulares. Há em Reinach um relativo
silêncio quanto à articulação concreta da noesis com o noema. O Absoluto só
adquiriria sua plena significação na medida em que se mostra também uma
“historicidade” viva. A análise fenomenológica de Reinach pecaria por não ex-
plorar o “elemento histórico”, que é essencial na estrutura a consciência viva
e pela qual é constituída originariamente a vivência religiosa49. Só através de
uma “fenomenologia da pessoa” as conexões depreendidas por Reinach po-
deriam ser plenamente evidenciadas50. O interesse primordial de Heidegger
nessa apropriação parcial de Reinach está sempre no fenômeno da vivência
religiosa como fenômeno individual, da vivência vivida em relação ao mundo,
do qual a fenomenologia do Absoluto de Reinach expressa uma das várias
modalidades de vivenciar o fenômeno originário da vida.

B. Convergências entre as fenomenologias da religião de Heidegger e Reinach

Não obstante a “ambivalência metodológica” (methodische Zwiespaltigkeit)


presente na abordagem de Reinach (de um lado, a orientação fundamental
no sentido da vivência e a tendência à sua racionalização conceitual, de outro
lado), no interior das notas heideggerianas é possível também descortinar
alguns elementos positivos na abordagem de textos de Reinach, mesmo que
haja necessidade de desenvolvimentos posteriores. E não poderia ser dife-
rente dado o caráter fragmentário das observações comentadas. Assim, por
exemplo, Reinach fala de “‘transição (ões) motivadas (s) do interior’ na vi-
vência das diferentes absolutidades (formais – susceptíveis de serem viven-
ciadas em geral! – e preenchidas) por oposição ao eventual desenvolvimento

48 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 425.

49 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325.

50 Cf. Camilleri, S. op. cit., 2008, p. 383.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
368 Bento Silva Santos

lógico e teorético de sua dissociação”51. Entre outras convergências latentes


nas notas heideggerianas, distingo somente duas, a saber: a distinção entre
“conhecimento explícito” e “conhecimento imanente à vivência”; a relação
entre “atuação da vivência” e “reflexão” em se tratando de uma abordagem
fenomenológica.

a) A distinção entre “conhecimento [s] explícito [s] e imanente [s] à vivência”


(explizite [n] underlebnisimmanente [e] Erkenntnisse [n])

A valiosa distinção de Reinach, estabelecida no § 2 (“Estrutura da vivência”)


do “Fragmento de uma exposição de filosofia da religião” e destacada por Hei-
degger em sua nota “Absoluto”, pressupõe que na vivência religiosa se dá co-
nhecimento, mesmo se tal conhecimento não seja procurado explicitamente.
Não é um conhecimento nem a priori, nem empírico, mas um conhecimento
peculiar que está na ordem do pré-teórico:

É lícito perguntar-se se em nossa vivência, que seguramente inclui um


conhecimento, há um conhecimento a priori ou de caráter empírico. Ou
se aqui está presente um conhecimento de um terceiro grau ou talvez de
um caráter completamente peculiar. Se admitimos estados-de-coisas (Sa-
chverhalte) a priori como tais, em relação aos quais exige-se a predicação
mediante o sujeito e segundo sua essência, e que por isso são conhecidos
pelo fato de que nos aprofundamos na essência do sujeito, então não há um
conhecimento a priori. Mas, de outro lado, as nossas vivências não contêm
tampouco algum conhecimento empírico, pois não se trata de um fato (Tat-
sache) que muda fortuita e temporalmente52.

Daí a distinção de Reinach entre um conhecimento explícito e um conheci-


mento imanente à vivência e, dentro desse, se é imediato ou mediato: “Deve-
mos dividir: de um lado, o conhecimento de ser protegido e, de outro lado, o
conhecimento da existência de Deus (des Daseins Gottes), isto é, um conheci-
mento imanente imediato e outro mediato. No interior das vivências de gra-
tidão e amor habita somente um conhecimento mediato. Enquanto tomadas

51 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 326.

52 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 610; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 369

de posição (Stellungnahmen), elas são em certo sentido vivências derivadas”53.


A existência de Deus é um conhecimento mediato imanente da vivência reli-
giosa. Esse conhecimento é, portanto, “‘co-dado” (Mitgegeben), como também
o objeto percebido na percepção exterior é co-dado na totalidade”54. Na vi-
vência religiosa, tal como a imagina Reinach, Deus não estaria na condição de
“objeto” diante de um “eu”: “na vivência de dependência me encontro depen-
dente sem que fosse necessária uma reflexão que pudesse conduzir sequer ao
conhecimento de que me sinto dependente”55.
De um lado, a passagem sobre a qual Heidegger se detém em sua nota
sobre Reinach é fundamental para uma hermenêutica da fenomenologia da
vida religiosa. O homem religioso segue uma lógica completamente diferen-
te de uma epistemologia religiosa, cuja primazia residiria no “conhecimen-
to da realidade (Wirklichkeitserkenntnis)” do objeto investigado. Na verdade
Reinach e Heidegger parecem coincidir no fato de que a “percepção da rea-
lidade” (Wirklichkeitsnehmung) jaz de modo imanente no sentido mesmo da
vivência. Daí a citação compósita de Heidegger: “O modo como se concebe
o real [ou a percepção da realidade: Wirklichkeitsnehmung] “está contido de
modo autoimanente no sentido da vivência’”56. Não se trata de um conhe-
cimento da existência de Deus que passaria necessariamente por “ato de
representação”, mas de um conhecimento da “vivência imediata na qual eu
vivencio como evidente minha dependência absoluta diante de Deus”57. Rei-
nach admite até mesmo uma vivência explícita de Deus, que não se identifi-
ca com a evidência do conhecimento objetivo, mas “conhecimento de Deus:
só a direção completamente própria a Deus, radicalmente longe de todos
os esforços cognitivos”, é real. “Cada um pode falar naturalmente somente
daquilo que vivencia”58.

53 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 610; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. A tradução italiana omitiu
a palavra “Liebe”.

54 Fischer, M. op. cit., 2013, p. 81.

55 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90.

56 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 325. Cf. Reinach, A. op, cit., 1989, p. 610; Idem, op. cit.,
2015, p. 89-90.

57 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 385.611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. Cf. também Camilleri,
S. op. cit., 2008, p. 384.

58 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 595; Idem, op. cit., 2015, p. 55-56.

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370 Bento Silva Santos

De outro lado, a distinção entre “conhecimento [s] explícito [s] e ima-


nente [s] à vivência” é importante para uma postura crítica em relação às
provas ontológicas da existência de Deus na escolástica. Reinach abordou
muitas vezes a questão sobre a existência de objetos e a realidade do estado-
-de-coisas (Sachverhalts) durante sua atividade docente em Göttingen. Na ver-
dade a descoberta da imanência da existência de Deus na vivência religiosa,
que evoca a sentença lapidar de Reinach já citada - “antes de tudo: deixar às
vivências religiosas o seu sentido!” -, pleiteia para uma impossibilidade da
prova ontológica de Deus. Enquanto no conceito de Deus, Deus é certamente
intencionado, na vivência religiosa fundamental, porém, Ele se mostra como
um ato não intencionado, onde Deus apenas é dado de modo imanente e
indireto. No caso da vivência, a realidade é atingida, ao passo que na análise
do conceito a esfera do pensamento não é abandonada:

Existência real não é algo que possa ser averiguado a priori. Assim, por exem-
plo, na prova ontológica de Deus [...] Aqui única coisa que pode nos ajudar é
a experiência. Mas o erro do empirismo reside no fato de desconhecer todas
as outras regiões do conhecimento ontológico. Vivências podem ter evidên-
cia, mas não aprioridade. Em si e por si, a priori não tem mesmo a mínima
relação com o fato de pensar e de conhecer. Esse mal-entendido e essa confu-
são são dos neokantianos (aprioristas). Eles falam sempre da necessidade do
pensamento (Denknotwendigkeit) em vez da necessidade do Ser (Notwendi-
gkeit des Seins). [...] Somente através do entendimento da impossibilidade do
estado-de-coisa (Sachverhalts) oposto é que eu me conscientizo da necessidade.
Mas concluir disso: ‘Então é só necessidade do pensamento, não está correto59.

Verdade é que há necessidades psíquicas do pensamento, mas essas indepen-


dem do a priori e a posteriori. Assim, um ser humano, ao responder uma
pergunta, é coagido também a pensar naquilo a que se refere a pergunta
para respondê-la de forma correta. Diante da pergunta – “a Ponte Velha de
Heidelberg era uma ponte suspensa? – sou coagido a pensar na Ponte Velha,
a presentificá-la. Se levarmos a sério a necessidade do pensamento, erros de
cálculo serão impossíveis. A necessidade a priori pertence então à esfera do
estado-de-coisa (Sachverhalts) e não à esfera do pensamento. Sobre esta ques-
tão essencial de que “o que é a priori” pertence ao domínio do “estados-de-
-coisas”, eis a tese ontológica fundamental de Reinach:

59 Reinach, A. op. cit., 1989, p. 437.545.435.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 371

As conexões aprióricas consistem [bestehen]60, que todos os homens, ou um


grande número dentre eles, ou absolutamente nenhum, ou ainda outros su-
jeitos as reconhecem ou não [...] Devemos rejeitar total e absolutamente o
conceito de necessidade de pensamento enquanto traço distintivo essencial
do a priori [...] A necessidade exerce uma função no a priori – só que, não é
uma necessidade do pensamento, mais uma necessidade do Ser61.

Em relação à prova ontológica de Deus, Reinach admite somente como con-


traprovas aquelas que enfatizam a distinção entre necessidade de pensamento
e necessidade de Ser: a afirmação “Se penso um ser perfeito, então eu preciso
pensá-lo como existente” está imbuída de duas dificuldades. Quem me obriga
a pensar em tal ser? E se eu o penso como existente, quem confirma para mim
que ele realmente existe?62 Esta posição sobre a prova ontológica de Deus é
mantida por Reinach até sua morte, como podemos verificar nos fragmentos
de guerra: “Nunca é de tal maneira que nós, ao pensar em Deus, estivéssemos
seguros de sua existência. Mas que, no momento mesmo em que jorra a vi-
vência religiosa, Deus é colocado simultaneamente como existente, conforme
o sentido do conteúdo da vivência”63.
Se agora voltamo-nos para as notas heideggerinaas sobre a mística me-
dieval, não é difícil encontrar ecos desse conhecimento imanente à vivência
no contexto de sua fenomenologia da religião. Na nota dedicada ao místico

60 Este termo designa a independência ontológica frente aos atos e à estrutura da subjetividade
finita. Esta modalidade ontológica caracteriza o que Reinach chama de “estado-de-coisas” (Sach-
verhalt). Por exemplo, “vendo a rosa vermelha, eu ‘intuiciono’ [erschauen] seu ser-vermelho, ele
é ‘conhecido’ [erkennen] por mim. Os objetos são vistos e olhados, os estados-de-coisas, em com-
pensação, são intuicionados ou conhecidos”. Na ordem das coisas, a rosa vermelha é um estado
de fato [Tatbestand] positivo ou negativo: a rosa vermelha existe, a rosa é vermelha, o vermelho é
inerente à rosa, a rosa não é branca, não é laranja, etc. Nesse sentido, falamos de existência. No
caso do “estados-de-coisas”, trata-se, porém, de consistência [Bestand] enquanto independência
ontológica e ausência de aderência a uma duração particular. Para uma análise mais detalhada
sobre o “estado-de-coisas”, ver Reinach, Zur Theorie des negativen Urteils. In: _____. op. cit.,1989,
p. 95-140; aqui, 116-118 (tr. fr. La théorie du jugement négatif. In: ____. op.cit., 2012, p. 123-175;
aqui, p. 148-150).

61 Reinach, A. Über Phänomenologie (1914), In: _____, op. cit., 1989, p. 531-550, especialmente
p. 544 (tr. fr. Sur La Phénoménologie. In: _____ op. cit.,,2012, p. 52-53). Exemplo da necessidade
do Ser dado no texto pelo próprio Reinach: “A linha é o mais curto caminho entre dois pontos –
aqui, não tem nenhum sentido dizer que poderia também ser de outra maneira; com efeito, o fato
de ser o mais curto caminho se funda em um ser-assim necessário [...] São a priori os estados-de-
-coisas eidéticos, dos quais as verdades geométricas fornecem um exemplo”.

62 Fischer, M. op. cit., 2013, p. 83-85.

63 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 595; Idem, op. cit., 2015, p. 55-56.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
372 Bento Silva Santos

Bernardo de Claraval, Heidegger destaca uma forma de “saber” da vivência


religiosa autêntica que pode perfeitamente ser associada ao conhecimento
imanente à vivência, uma vez que tal saber não provém de uma suposta re-
presentação do objeto: “O ‘saber’ a seu respeito e a respeito de sua essência
surge apenas do ter feito realmente experiência. Este gênero de vivência não
é verdadeiramente efetivo senão em uma conexão fechada de vivências (fluxo
de vivências), que não pode ser transmitida ou despertada por uma simples
descrição (‘Est fons signatus, cui non communicat alienus’ [É uma fonte selada
onde o estrangeiro não tem acesso’)”64. Esta espécie de “saber” não possui a
modalidade de conhecimento objetivo, típico de uma concepção teórica da
ciência, mas pertence ao âmbito do “conhecer fático”: na “tomada de conhe-
cimento (Kenntnisnahme), o que é conhecido não tem o caráter de objeto, mas
é experimentado como significatividade [...]”65. O que se dá na “tomada de
conhecimento” é uma estrutura própria de estados-de-coisas (Schverhalten)
determinados”66. A positividade do “conhecimento imanente à vivência” se
converte na fenomenologia heideggerina em um “saber” inseparável da facti-
cidade: “Nós desassociamos a facticidade e o saber, mas este é co-experiencia-
do (miterfahren) ao mesmo tempo de um modo totalmente originário”67.Tal
é o caso do “ter-se-tornado” (Gewordensein) comum a Paulo e aos tessaloni-
censes, afirma Heidegger em seu curso Introdução à fenomenologia da religião
do semestre de inverno de 1920/1921: “O ter-se-tornado é compreendido de
tal sorte que, ao acolher, aqueles que acolhem entram em uma conexão de
efeitos (Wirkungszusammenhang) com Deus [...] O que é acolhido concerne
ao como (Wie) do comportar-se na vida fática”68. Esse saber, na medida em
que brota da vivência cristã da vida com base no caráter de autonomia face

64 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 334.

65 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 14.

66 Ibidem. A expressão Sachverhalt é utilizada por Heidegger também no protocolo sobre “Lu-
tero e o problema do pecado” com o sentido de “situação real e efetiva”<wirklicher Sachverhalt
(dicit id quod res est)” ao se referir à teologia da cruz: Heidegger, M. Le problème du péché chez
Luther (1924). In: ARRIEN, S.-J. & CAMILLERI, S. (éd.). Le jeune Heidegger 1909-1926, 2011,
p. 261.280, nota 21: em oposição ao teólogo da glória, o teólogo da cruz se contenta com as coisas
visíveis mas, paradoxalmente, escondidas na cruz e na paixão.

67 Heidegger, M. Einleitung in die Phänomenologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des
religiösen Lebens, 1995, p. 94.

68 Ibidem, p. 94-95.

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Martin Heidegger e o “Absoluto” 373

à autoridade eclesiástica, determina assim a especificidade religiosa em uma


espécie de “coesão de vivência hermética”. Portanto, o “saber” da vivência
na nota heideggeriana sobre Bernardo de Claraval aponta para a fé enquanto
“saber” vivido e pré-teórico. No contexto da situação própria ao Cristianismo
das origens e, por extensão, aos místicos medievais enquanto expressão da
religiosidade cristã, a fé preenche “o conjunto das características da indicação
formal em vista da realização autêntica do sentido da existência cristã: aber-
tura em seu conteúdo, mas dirigida para uma realização vivida do sentido de
modo concreto e renovada”69.

b) A relação entre “atuação da vivência” e “reflexão”

Esta significativa relação aparece no final da longa citação heideggeriana do


texto de Reinach: “[...] O conhecimento ‘eu percebo’ forma-se em mim atra-
vés da reflexão sobre a percepção mesma. Na vivência de dependência me
encontro dependente sem que fosse necessária uma reflexão que pudesse
conduzir sequer ao conhecimento de que me sinto dependente”70. Certamen-
te aqui jaz em Reinach a pretensão de uma vivência de dependência pré-
-reflexiva no contexto de experiência religiosa da iminência da morte durante
a guerra, e Heidegger julga que as observações sobre a relação entre atuação
de uma vivência e a reflexão são dignas de serem pensadas: “Essas breves su-
gestões são muito importantes, mesmo se é somente aqui que deve começar a
análise”71. Em outra passagem dos fragmentos, Reinach enfatiza essa relação
primária do vivenciar mesmo considerando a adoção de conceitos metafísicos:
“As relações do homem com Deus não são relações de essência no sentido
racional [...] Poderia falar-se aqui de uma relação essencialmente vivida (erle-
bten Wesensbeziehung), que se distingue das outras pelo fato de que eu a com-
preendo não pela consideração de um só aspecto da relação, mas pelo fato
de que quem compreende é ele mesmo parte desta relação, e precisamente a

69 Arrien, S.-J. Foi et indication formelle. Heidegger, lecteur de saint Paul (1920-1921). In: _____
& CAMILLERI, S. (éd.), op. cit., 2011, p. 161.

70 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 611; Idem, op. cit., 2015, p. 89-90. Cf. Heidegger, M. Die philo-
sophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänomenologie des religiösen Lebens,
1995, p. 327.

71 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 327.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
374 Bento Silva Santos

parte que vive a relação com a divindade”72. Nos fragmentos redigidos na li-
nha de batalha sobre a natureza da vivência religiosa, como é caso aqui citado,
Reinach não desenvolve todos os pontos de uma abordagem fenomenológica,
mas aqui ele trata do estudo da essência deixando de lado, porém, a análise
do significado73. Ao citar esse texto dos fragmentos, Heidegger não conhecia
a exposição de Reinach na preleção do semestre de verão de 1913 intitulada
“A problemática filosófica da percepção interior”74. Nesta Reinach distingue
cinco estágios de percepção interior. Na última fase da percepção interior
deparamos com a dissecação do objeto (Die Zergliederung dês Gegenstandes),
onde precisamente quase nada restaria da vivência experienciada no primeiro
estágio: a existência despercebida de uma vivência, quando, por exemplo, um
ser humano está alegre ou sente uma pequena dor, embora ainda não perceba
isso. Ao dissecar a vivência pela observação, eu já não veria mais a vivência
na perspectiva de atuação da primeira pessoa, mas a partir da perspectiva
da terceira pessoa. Mas, seja como for, nas análises de Reinach permanecem
perguntas sem respostas: a vivência não percebida na atuação pode tornar-se
objeto de uma observação fenomenológica? Em qual estágio da percepção
inicia-se a investigação fenomenológica? Quanto da vivência original revelada
ainda existe nas modificações possíveis dos estágios posteriores?75
No caso da fenomenologia do jovem Heidegger, a atuação da “vivência”
religiosa tem primazia em relação à abordagem teorética do fenômeno, que
é justamente sua desvitalização ou certa privação de vida (Entlebung). Ora, a
concepção crítica contra esta fratura entre vivência e vivenciado é bem cla-
ra em vários cursos do período friburgense (1919-1923), especialmente nos
volumes 60 (Fenomenologia da Vida Religiosa) e 58 (Problemas fundamentais da
fenomenologia) das obras completas de Heidegger. Quando fala aí, em 1919,
no início de sua docência em Freiburg, de vida (Leben) e vivências (Erleb-
nisse), Heidegger não visa a entidades psicológicas. Ora, interpretar “vivên-
cias” em termos de processos psicológicos e fisiológicos já implica um ato de

72 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 597-598; Idem, op. cit., 2015, p. 61-62.

73 Cf. Fischer M. op. cit., 2013, p. 88.

74 Reinach, A. op. cit. 1989, p. 386s. Eis os cinco estágios: 1º) A existência despercebida de uma
vivência (das unbermerkte Dasein eines Erlebnisses); 2º A percepção da vivência; 3º) O dar atenção à
vivência; nem todas as vivências percebidas são observadas com atenção; 4º) O observar, isto é, o
contemplar da vivência, onde a vivência torna-se objeto; 5º) A dissecação do objeto.Neste este último
estágio a vitalidade da vivência é completamente perdida: uma raiva observada não é mais raiva.

75 Fischer, M. op. cit., 2013, p. 87-88.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 375

objetivação. Até o mesmo o termo Erlebnis (vivência), mesmo já tão carregado


de conotações tradicionais, é considerado por Heidegger como o melhor ter-
mo disponível76. Ao lado da apropriação crítica da fenomenologia de Husserl,
Heidegger relê ao mesmo tempo a concepção de Erlebnis de Wilhelm Dilthey,
mas sem adotar um conceito psicológico dessa expressão. O ponto de partida
nesse período friburgense é a própria experiência fática da vida, com suas
articulações e suas tendências concretas. O propósito de Heidegger consiste
em desenvolver a autocompreensão não-objetivante e não-teorética da ex-
periência da vida em todas as suas variações77. É assim que Heidegger cita
Dilthey - “o pensamento está ligado à vida por uma necessidade interior; ele
mesmo é uma forma de vida” – e fala da filosofia como continuação da refle-
xividade descoberta no seio da vida78. Em vista desta atuação da vivência e seu
consequente crescimento em vitalidade, Heidegger reconhece a existência de
uma forma mais fundamental de autoconhecimento que é uma parte e parce-
la irrenunciável da vivência: “O objetivo é compreender esta característica de
autoconhecimento que pertence à experiência como tal”79.

76 Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemes-


ter1919). In: _____. op. cit., 1999, p. 65-66. Cf. também Zahavi, D. Comment examiner la sub-
jectivité? À propos de la réflexion: Natorp e Hiedegger. In: ARRIEN, S.-J. & CAMILLERI, S. (éd.),
op. cit., 2011, p. 104.

77 Heidegger, M. op. cit., 1993, p. 155-156.250. Em seus cursos iniciais em Freiburg (cf. GA 58,
59, 60 e 61), Heidegger transita criticamente entre as concepções de Husserl e Dilthey em relação
ao conceito de Erlebnis, respectivamente: de um lado, para Husserl, considerando-o no plano da
consciência pura, Erlebnis expressa uma mera percepção de tipo gnosiológico (não importando
se é de natureza subjetiva ou objetiva): o que conta aqui é o expurgo de qualquer elemento de
desestabilização histórico-mundano; de outro lado, para Dilthey Erlebnis aponta para uma conexão
vital entre representações, sentimentos, paixões, tendências para valorar, decisões sobre fins, etc.
O abandono do termo Erlebnis e sua substituição pelo termo Erfahrung aparece inequivocamente
no curso do semestre de inverno de 1920-1921 (“Introdução à fenomenologia”), onde experienciar
significa que o impor-se do confrontar-se dá a forma do próprio experienciado. Nesse sentido, o
pensamento de Heidegger não é nem a soma dos conhecimentos em vista do saber, composição
de vivências entendidas como expressão de conteúdos, nem imediata vitalidade e sentimentalis-
mo, mas interpretação fática do pensamento com base nas expressões Faktisches Leben e faktische
Lebenserfahrung: vida fática e experiência fática da vida. Cf. Heidegger, M. Einleitung in die Phäno-
menologie der Religion. In: _____. Phänomenologie des religiösen Lebens, 1995, 9-14: “A experiência
fática da vida como ponto de partida”. Cf. também Fischer, M. op. cit., 2013, p. 223-247: “Der
schwierige Erlebnisbegriff”, p. 249-325: “Die faktische Lebenserfahrung”.

78 Heidegger, M. Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks. Theorie der philosophischen
Begriffsbildung,1993b, p. 156. Cf. também Zahavi, D., Comment examiner la subjectivité? À
propos de la réflexion: Natorp e Hiedegger. In: ARRIEN, S.-J. & CAMILLERI, S. (éd.). op. cit.,
2011, p. 103-104.

79 Heidegger, M, op. cit.,1993, p. 157.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
376 Bento Silva Santos

Com base em suas preleções do período friburgense, como Heidegger


responderia às seguintes questões: a reflexão teorética destrói a vivência do
mundo circundante (Umwelt)?80 Como a fenomenologia pode fazer da vi-
vência tema de investigação sem destruir a sua estrutura mesma da vivência,
sem torná-la objeto? Simplesmente adotando o princípio metodológico que
provém da própria coisa a ser investigada: um compreender intuitivamente e
um intuir compreensivamente fenômenos que se subtraiam de um elemento
racional irredutível81. Paradoxal é a afirmação de Heidegger no curso “Pro-
blemas fundamentais da fenomenologia” (GA 58) que aponta para a origi-
nariedade de nossas experiências cotidianas: “Não reflitamos sobre o come-
ço, comecemos faticamente! Mas como?”82. Este último “como” (“Wie”) não
renova a posição reflexiva e teorética do começo, mas “liberta o ‘como’ em
seu sentido filosófico”, ou seja, o sentido de realização do “como”: trata-se
simplesmente de vivenciar a vida e não de representá-la83. Portanto, no texto
citado esconde-se a maneira pela qual Heidegger pensa a relação originária
entre vivência e conhecimento: longe de reduzir a vivência vivida a um ob-
jeto de conhecimento mediatizado por um juízo “subjetivo” da “consciência
em geral”, e afastando qualquer identificação das vivências com a ativida-
de de uma subjetividade constituinte, Heidegger evoca o advento de um si
experienciando-se na mundanização de “algo originário (Ur-Etwas)”84. Com
a rejeição de um “Eu-sujeito” como condição de possibilidade da apreensão
(reflexiva) das vivências, Heidegger pensará sempre a vida faticamente: “A
vida não é um objeto e não pode jamais tornar-se um objeto; ela não é nada
do gênero objetivo. Conhecer isso é nossa principal meta. Mas a recondução
da vida a um sujeito (no sentido da teoria do conhecimento ou em um sentido
psicológico) é igualmente impossível”85.

80 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit.,1999, p. 65: “Nós fomos através da aridez do deserto e, em vez de conhe-
cer eternamente as coisas, aspiramos compreender observando e ver compreendendo”.

81 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit., 1999, p. 65.

82 Heidegger, op. cit., 1993, p. 4.

83 Quesne, Ph. Les Recherches philosophiques du jeune Heidegger,2003, p. 21.23.

84 Cf. Heidegger, M. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (Kriegsnotsemester
1919). In: _____. op. cit., 1999, p. 109-117: “A abertura fenomenológica da esfera da vivência”.

85 Heidegger, op. cit., 1993, p. 236.247.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 377

Caberá então à fenomenologia elaborar uma “ciência originária” não mais


tanto das vivências entendidas teoreticamente, mas “da vida em si e para si”86.
A relação digna de ser pensada entre “atuação da vivência” e “reflexão” se
converte em Heidegger na concepção da vida como lugar originário de toda
compreensão. Se o conceito “vida” não pode ser definido formalmente e nem
a sua polissemia pode ser negligenciada, a fonte das diversas significações da
vida está centrada em sua própria atuação (Vollzug). À medida que priorizo
o “sentido de atuação (Vollzugssinn)”, o que foi significativo para o mundo do
si-mesmo (Selbstwelt), torna-se nele novo, não que eu mergulhe no passado,
mas é o passado chega sempre pela primeira vez: eu mesmo sou tocado por
mim mesmo, “sou” em uma atuação renovada. Tal é a convicção de Heidegger
no início de seu Denkweg quando, no semestre de verão de 1920, desenvolve
e reúne concretamente o mundo e o si com base no sentido histórico: “O si,
na atual atuação da experiência da vida, o si no experienciar a si mesmo, é a
realidade originária (Urwirklichkeit)”87. Nesse sentido, a dignidade de pensar
a relação evocada anteriormente não concerne à polarização sujeito-objeto,
mas nos remete para uma atuação fática da vida como lugar, senão de imanên-
cia absoluta, ao menos de “proximidade radical” e até mesmo de “identidade
como o si”, simultaneamente definido como “mundo”. A vida representa o
que é mais próximo do si, ou seja, do que Heidegger chama de “vida em si”:
“[É] alguma coisa com a qual não temos nenhuma distância que nos permitiria
vê-la ‘em geral’; e esta falta de distância deve-se a que nós mesmos somos [a
vida] e que nós não vemos a nós mesmos senão a partir da vida mesma – vida
que nós somos e que é nós (acusativo) – e em suas próprias direções”88. A
vida não vive senão em um mundo, mas ela é também nosso mundo89.
As considerações anteriores sobre nota “O Absoluto” deixam entrever o
grande interesse de Heidegger sobre os fragmentos sobre a religião de Rei-
nach, muito embora tal interesse esteja restrito aqui ao fragmento “O Abso-
luto”. Esta limitação da nota de Heidegger deve-se sem dúvida ao cuidado
de Heidegger de não desviar-se do âmbito de investigação que Husserl lhe
tinha confiado após a morte de Reinach em 1917. Daí, de um lado, as duras
críticas de Heidegger aos fragmentos, críticas nem sempre totalmente justas

86 Heidegger, op. cit., 1993, p. 1.29.

87 Cf. Heidegger, M, op. cit., 1993b, p. 173.

88 Heidegger, M, op. cit., 1993, p. 29.

89 Heidegger, M, op. cit., 1993, p. 34.36.

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378 Bento Silva Santos

caso consideremos o caráter fragmentário dos apontamentos e a ambiguidade


metodológica de Reinach. Talvez seja por isso que as primeiras linhas da nota
“O Absoluto” já apontem para uma abordagem fenomenológica como princí-
pio metodológico irrenunciável: não é “a posição (Die Stellung) que adotamos
para com Deus”, mas, sim, “nosso comportamento vivido em relação a ele”
que determinará como “Deus” é constituído enquanto objeto fenomenológi-
co. Em função desse cuidado de Heidegger, a origem mesma dos fragmentos
de Reinach - a situação-limite de um soldado no campo de batalha que
pressente a própria morte -, não é levada em conta suficientemente nas notas
sobre a mística medieval. Em conseqüência dessa postura “ôntica” de Reina-
ch, compreende-se a crítica heideggeriana à adoção de “conceitos básicos da
metafísica” racionalista. Ainda que Heidegger aceite a distinção entre “peso
da vivência” e “esfera do conteúdo da vivência”, resta explicitar “o quadro
funcional” comum entre essas duas noções. De outro lado, há convergências
entre as fenomenologias de Reinach e Heidegger. Entre outros, Heidegger
destacou elementos positivos do pensamento de Reinach, a saber: a esfera
religiosa é uma esfera própria que não pode ser compreendida em analogia
com o âmbito estético; a distinção de conhecimento explícito e conhecimento
imanente da vivência; as vivências religiosas autênticas são também conheci-
mento, e a validade de conhecimento que delas provém escapa a todo ceti-
cismo “na medida em que já se tenha clarificado o caráter especificamente
originário nas respectivas vivências e, antes de tudo, a estrutura originária de
sentido da consciência histórica”90. Por fim, é digna de ser pensada a relação
entre “atuação da vivência” e “reflexão” com o objetivo de visualizar a “ori-
ginariedade” da vivência religiosa, ou seja, a vivência compreendida em sua
atuação histórico-concreta (Vollzugsgeschichtlich). Daí a afirmação paradoxal
de Heidegger já citada sobre o caráter originário das vivências cotidianas:
“Não reflitamos sobre o começo, comecemos faticamente! Mas como?”91.
Enfim, do ponto de vista mais geral da aproximação heideggeriana aos
fenômenos religiosos entre 1917 e 1921 em suas preleções acadêmicas mi-
nistradas ou não (GA 60) em Freiburg, como é caso justamente do exame da
nota “Das Absolute”, o âmbito problemático da vivência religiosa se exibe
no “algo” de originário (Ur-Etwas) do experienciar e do experienciado na
vida vivida (Erlebnis) da religiosidade cristã originária. Esta se encontra no

90 Heidegger, M. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik. In: _____. Phänome-
nologie des religiösen Lebens, 1995, p. 327.

91 Heidegger, M. op. cit., 1993, p. 4.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.353-380, jan.-jun. 2017
Martin Heidegger e o “Absoluto” 379

âmbito da vida pré-teorética. Ora, o acesso adequado a esse âmbito do pré-


-teorético não está na objetivação teórica, mas, sim, na entrega (Hingabe) ao
“Absoluto”, a “Deus”, ao “Divino”, ao “Não Outro”, ao “Incondicionado”, ao
“totalmente Outro”, entrega a uma presença (ao menos, para o místico) que há
muito tempo foi cristalizada ao longo da História da Filosofia sob o nome de
“Deus”. Evidentemente tudo isso não é desenvolvido nas notas sobre a mís-
tica medieval, mas permanece o paradoxo da relação de Heidegger com os
fenômenos religiosos: na experiência dos seres humanos, na medida em que
são sempre confinados a extrair um sentido das coisas materiais dentro do
mundo espaço-temporal, há somente doação-sem-doador ou, na linguagem
heideggeriana posterior, a presença [Anwesen] de alguma coisa de significativo
para compreensão humana, isto é, possibilidade de uma presença – escondi-
da, sagrada, sempre-aberta e imediata.

Referências

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Esta revista foi composta em
Berkeley Oldstyle Book,
miolo impresso em papel off-set 75g/m2,
capa em cartão supremo 250 g/m2,
na gráfica J. Sholna, em julho de 2017

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