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Literatura e Ensino

Comitê Editorial

Ana Guedes (Unicamp)

Carla Lynn Reichmann (UFPB)

Clécio Buzen (UFPE)

Dora Riestra (Universidad Nacional de Rio Negro)

Florencia Miranda (Universidade Nacional do Rosário)

Francine Cicurel (Sorbonne Nouvelle Paris 3)

Ecaterine Bulea-Bronckart (Université de Genève)

Eulália Leurquin (UFC)

Jean-Paul Bronckart (Université de Genève)

Jean-Remi Lapaire (Université Bordeaux Montaigne)

Joaquim Dolz (Université de Genève)

Juliana Alves Assis (PUC/Minas)

Luzia Bueno (Universidade de São Francisco)

Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes (PUC/Minas)

Maria Antónia Coutinho (Universidade Nova de Lisboa)

Pierre-Yves Testenoire (Université Sorbonne)

Roxane Gagnon (Université de Genève)


Eulália Leurquin
Fernanda Coutinho
(0rganizadoras)

Literatura e Ensino
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ISBN 978-85-7591-560-8
Índices para catálogo sistemático:

capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide


preparação dos originais: Editora Mercado de Letras
revisão final: dos autores

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:


© MERCADO DE LETRAS®
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Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116
Campinas SP Brasil
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livros@mercado-de-letras.com.br

1a edição
2019
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL

Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.


É proibida sua reprodução parcial ou total
sem a autorização prévia do Editor. O infrator
estará sujeito às penalidades previstas na Lei.
SUMÁRIO

Apresentação

Capítulo 1
DA LITERATURA COMO TRAVESSIA:
É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA?
Claudicélio Rodrigues da Silva

Capítulo 2
FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA
COMPARADA E INTERCULTURALIDADE
Graciela Cariello

Capítulo 3
APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA DE
O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA E AS
TRADUÇÕES FRANCESAS NO SÉCULO XIX
Ilana Heineberg

Capítulo 4
APONTAMENTOS COGNITIVOS
PARA UMA DIDÁTICA DA LITERATURA
José Leite de Oliveira Júnior
Capítulo 5
HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS
DESCONHECIDAS: AS TRADIÇÕES AFRICANAS
EM NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS
Maria Carolina Godoy

Capítulo 6
A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO...
MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO
Maria Emilia Vico

Capítulo 7
O GÊNERO POÉTICO NO ENSINO
DE LITERATURA
Márcia Cabral da Silva
APRESENTAÇÃO

A presença da conjunção aditiva “e”, na constitui-


ção do par Literatura e Ensino, pode parecer, a princípio,
que a adição, por ela expressa, reúna, de fato, instâncias
que guardam tal nível de semelhança entre si, que se tor-
naria impertinente qualquer indagação sobre o fato de as
palavras estarem juntas.
Na realidade, impertinente seria aceitar como pací-
fica essa convivência, uma vez que uma das questões que
se colocam com relação à Literatura e às artes em geral
possui um nítido contorno epistemológico: As expres-
sões do mundo sensível são passíveis de serem transmiti-
das? Ou, dito de outra forma: Será que não haveria bar-
reiras quase intransponíveis entre o eu e o outro, quando
estamos diante de conteúdos não matematizáveis?
Assim, um ponto de inflexão face ao problema
seria a própria abertura das artes, e da Literatura em par-
ticular. Em outras palavras, a recepção é da ordem da
transitividade, dependendo da circunstância de fruição
do leitor, de suas vivências no universo da leitura, e até da
memória do já-lido como material potencialmente acio-
nável nos registros que se empilham ao longo da experi-
ência de viver-ler. Portanto, o “e” não lembra (nem deve
lembrar!) aos professores de Literatura uma condição de

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conforto, como se não houvesse mais perguntas a serem
respondidas e/ou formuladas.
É nessa perspectiva que se entende a provocação
de mais um livro sobre Literatura e Ensino, o qual busca
refletir sobre esse ambiente de aprendizagem na univer-
sidade e, principalmente, sobre sua potência de reper-
cussão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. Como
afastar os futuros professores do papel de agenciadores
de respostas prontas, indubitáveis, quando se sabe que
a complexidade da Literatura tem um efeito de atração
-repulsão que nos aproxima mais das perguntas, distan-
ciando-nos, consequentemente, das formulações de teor
eminentemente conclusivo. Os oito artigos que formam
esta coletânea vêm ratificar a amplitude do binômio Li-
teratura e Ensino, na medida em que encontram formas
singulares de pensar a Literatura como matéria de diálogo
e ainda de colocá-lo em movimento, por intermédio das
atividades propostas na sequência de cada trabalho.
Em Da literatura como travessia: é possível ensinar Lite-
ratura?, Claudicélio Rodrigues parte do texto poético de
Manoel de Barros – um “menino perguntador” sobre o
mundo das palavras –, para mostrar que há necessidade
de uma didática da invenção, que ressalte a beleza e a
tensão do texto literário.
Apontando as vivências próprias ao ofício de en-
sinar, o articulista chama a atenção para questões como a
opção por uma aposta conteudista, tendo por meta uni-
camente uma educação de resultados. Sua proposta, em
contrapartida, parte do princípio de que:

Literatura se vive. E qualquer saber, não apenas


o literário, deve partir da experiência, vivida ou
imaginada, que se deve narrar/ler a fim de que
de fato exista no campo artístico. Cada ato hu-
mano é a literatura em potência, como flor bruta
prestes a romper, como chuva prestes a desabar
que, ou promove o caos ou fecunda o solo.

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Suas reflexões são atravessadas pela de pensado-
res da linguagem, da educação, e da leitura, a exemplo de
Mikhail Bakthin, Paulo Freire, Jacques Rancière, Rubem
Alves e Vincent Jouve, cujas palavras desenham não um
diagrama com as de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro
– e Guimarães Rosa, uma vez que a complexidade que
envolve a discussão demanda, mais que uma estrutura
plana, uma tridimensional, pois em seu espaço ainda de-
vem caber as “inconclusões”.
Em Figuras do outro. Literatura Comparada e Intercul-
turalidade, Graciela Cariello insere no debate a discussão
sobre a formação de professores de língua estrangeira.
Em um texto bastante assertivo, a pesquisadora relata
uma experiência concreta, havida no curso de formação
de Professores de Português da Universidade Nacional
de Rosário, Argentina. Tomando como base, a tensão
que reveste a convivência entre as noções de identidade
e outridade, são apontadas as incompreensões existen-
tes durante muito tempo face à linguagem literária e sua
inclinação para o desvio, entendido erroneamente como
menosprezo à normatividade gramatical. Em sua argu-
mentação, Cariello prefere se encaminhar para a compre-
ensão de que:

A literatura nos faz inventores de mundos. Ela


prova que as palavras têm uma potencialidade
criativa só limitada pelas regras que a própria li-
teratura gera, e que aprender uma outra língua é
adquirir mais uma porção dessa potencialidade.
A literatura oferece à nossa imaginação a mul-
tiplicidade de vidas que uma língua descortina
para os leitores. Todas as formas de uma língua,
aquelas que vamos aprendendo e até mesmo as
que alguma vez descobriremos falando sem sa-
ber que sabíamos, estão potencialmente na lite-
ratura dessa língua. Se estudarmos a literatura de

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uma língua estrangeira, estaremos construindo
um espaço de diálogo fecundo, que permitirá
ver como e por que cada um de nós é os outros.

Ilana Heidelbeg, por sua vez, parte da noção de


recepção para colocar em relevo o processo de cristali-
zação, que cerca determinadas obras literárias, trazendo-
lhes uma pecha negativa e o consequente afastamento do
público. Segundo ela, Peri e Ceci são personagens caros
ao imaginário popular, mesmo tendo sido gerados nos
tempos de nosso Romantismo. O carisma do par, no en-
tanto, não retira do discurso sobre O Guarani a reprovação
quanto ao “artificialismo, a emotividade e o nacionalismo
ingênuo.” A autora acolhe a afirmação de Maria Cecília
Boechat de que esta narrativa alencariana seria “herdeira
de sua primeira recepção crítica”. Fica então a indagação:
os leitores de nossa contemporaneidade poderiam extrair
prazer desse gênero de leitura? Uma forma de aborda-
gem, que renderia novos trajetos de leitura seria adentrar
as páginas de O Guarani por meio de sua “inserção na
matriz folhetinesca e sua recepção em âmbito interna-
cional através das traduções francesas que foram feitas
deste texto ainda no século XIX”. Os leitores da atua-
lidade precisariam, então, mergulhar na face trepidante
do romance-folhetim, sua vocação para o emaranhado de
aventuras, e, buscando, particularmente como o folhetim
à brasileira foi delineado. Em suplemento, Heineberg in-
forma que “ao estudar as traduções de O guarani para a
língua francesa ainda no século XIX, percebe-se que o
romance de Alencar suscitou interesse fora das frontei-
ras nacionais, afinal possui três publicações em francês”.
Essa afirmação vale como um convite ao leitor para se-
guir essa trilha e verificar como os romances, para além
da ficção, também têm uma história, podendo ela ser vir
a ser empolgante para quem se debruça sobre a Literatura
com a curiosidade e o apetite de um aficionado leitor de
romances-folhetim.

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Assumindo um tom bastante didático, o texto
Apontamentos cognitivos para uma Didática da Literatura, de
autoria do professor José Leite de Oliveira Júnior, tem
uma proposta de defender a ideia de se ter uma didáti-
ca de ensino da literatura que focalize o aspecto cogniti-
vo do leitor. Segundo o autor, os estudos desenvolvidos
nesse campo apresentam um foco maior na didática e
na pedagogia, deixando de lado outra parte igualmente
importante: o aluno. Faz uma crítica ao tipo de aula de
literatura e, defende a ideia de que seria mais eficaz uma
aula centrada na experimentação do próprio aluno e con-
centrada na complexidade do texto literário. Em direção
a uma descrição da aula de literatura, ele apresenta o pla-
no de aula, explicando o papel de cada uma das etapas.
Ancora-se em Bloom (1976) para tratar das categorias do
domínio cognitivo e em seu percurso apoia-se em clássi-
cos da literatura brasileira exemplificando cada categoria
(conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese
e avaliação.
O capítulo intitulado de Heróis e heroínas em terras
desconhecidas: as tradições africanas em narrativas infantis e juve-
nis, de autoria de Maria Carolina Godoy, traz em evidência
a literatura afro-brasileira, em particular, para o público
infantojuvenil. A autora convida o leitor a uma discus-
são em torno desse tema e questiona por que a pouca
publicação de obras literárias afro-brasileiras e também a
pouca representatividade nos textos. No desenvolvimen-
to de seus argumentos, ela aponta razões para o fato de as
crianças e jovens terem pouco acesso a esse tipo de leitu-
ra. Godoy faz uma revisão da literatura e apresenta, desde
os precursores da literatura afro-brasileira até os autores
atuais. Faz uma forte crítica ao fato de as narrativas des-
tinadas ao Ensino Fundamental se remeterem, muitas
vezes, à religiosidade de matriz africana ou retomarem
a contos de diferentes países africanos. Outro ponto de
destaque neste capítulo é a reflexão desenvolvida pela au-

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tora sobre as inovações no campo da leitura digital. Ela
ressalta como ponto positivo para a formação de leitores
os recursos utilizados.
O capítulo seguinte tem a autoria de Maria Emilia
Vico e é A crônica. Gênero ambíguo... Mas genuinamente li-
terário. O texto está dividido em duas artes bem marcadas.
A primeira parte apresenta um conjunto de perguntas
que diretamente provoca no leitor um envolvimento par-
ticular de coparticipação. A autora chama a sua atenção,
convidando-o a pensar sobre o contexto de produção da
crônica. De forma direta elenca um conjunto de pergun-
tas (qual é o seu público? Quais os possíveis temas? Tem
a crônica uma estrutura específica? Qual é a sua origem?
E o veículo ou veículos? Quais são os objetivos da inte-
ração? Quais são os gêneros que se lhe parecem? Quais
as características que fazem com que possamos dizer
que um determinado texto é uma crônica? A crônica é
um gênero literário?). O momento seguinte desta etapa
é marcado pela discussão sobre o o conceito de crônica,
momento em que nos apresenta alguns estudiosos e seus
textos. Na sequência da teorização, Vico põe em discus-
são se esse texto literário é ou não um gênero literário. A
segunda parte do capítulo é marcada pela analisa de uma
crônica de Carlos Drummond de Andrade e culmina em
uma proposta de atividade. Trata-se de um texto cheio de
provocações que convida o leitor à reflexão e não à dar
informações apenas.
O último capitulo é de autoria de Márcia Cabral
da Silva intitulado de O gênero poético no ensino de literatura.
Teria um espaço para o gênero poético em sala de aula?
Durante o artigo, a autora mostra que sim e o faz apre-
sentando uma possibilidade de análise. Ela se posiciona
de forma a valorizar o movimento dos elementos linguís-
tico a favor a compreensão de um texto poético. Essa
postura é muito particular e positiva para o ensino de lín-
gua, para a formação de leitores, para a compreensão da

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funcionalidade da língua na interação poeta e leitor. Nes-
se sentido, ela trata da constituição da poesia e também
apresenta uma análise com base nos elementos linguísti-
cos que ela considera importantes. Inicia mostrando que
para a construção de uma poesia é importante a seleção
das palavras e que ela também dão ritmos à poesia. Nes-
se sentido apresenta algumas poesias e as analisa. Nes-
se exercício dinâmico, chama a atenção para o papel da
metalinguagem, em outras as figuras de linguagem como
recurso estilístico. Os exemplos dados mesclam da poesia
ao cordel, de Patativa a Drummond de Andrade.
O conjunto dos textos e a proposta desenhada pe-
los autores, com base nos próprios objetivos da coleção,
desafia os leitores, em particular os professores e forma-
dores de professores a pensar o espaço da literatura na
sala de aula.

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Capítulo 1
DA LITERATURA COMO TRAVESSIA:
É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA?

Claudicélio Rodrigues da Silva

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
(...)
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas...
E se riu.
(...)
Manoel de Barros, O livro das ignorãças.

Que é um conteúdo?

Proponho uma reflexão que parta do nada e ao


nada chegue, como o poema de Manoel de Barros. Sugiro
uma conversa que mergulhe nas “ignorãças” e faça com

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que elas evoquem em nós diversas questões que não ca-
recem nem querem ser respondidas nesse momento: por
que quisemos ser professores? O que nos induziu a essa
empreitada (derrocada)? Por que o desejo por fomentar
saberes e a aflição por encontrar um sentido para as coi-
sas e para o mundo? Essas questões me abraçam como
educador. E me alimento do nada que elas me oferecem.
Mas há outras ainda.
O que significa ensinar hoje, quando nossos alunos
são mergulhados em uma infindável trama de informa-
ções midiáticas, onde o apelo visual e sonoro do mundo
virtual chama mais a atenção do que uma aula expositiva?
Como promover um ensino que faça realmente sentido
ao aluno, colocando-o no centro e não à margem do co-
nhecimento? Como fomentar o desejo de autonomia na
sala de aula sem perder o foco do projeto pedagógico?
Fruto de uma “sociedade da excitação” (Türcke 2012),
que conteúdo realmente faz sentido a esse aluno?
Essas são apenas algumas demandas que per-
meiam a cabeça dos graduandos e futuros professores da
educação básica. Fora isso, o medo de não se conseguir o
completo domínio da sala, o receio de serem incompre-
endidos pelos alunos adolescentes e de rapidamente se
decepcionarem com o processo de ensino-aprendizagem.
Inúmeras questões para as quais não há respostas prontas
e acabadas. Se educação é processo, meio, e não fim, esta-
remos sempre no caminho da dúvida, seja ela grande ou
pequena. Pautar-se nos questionamentos evidencia um
compromisso não com as respostas, mas com o anseio a
que a educação faça sentido. As certezas podem nos trair.
Ao longo do curso de graduação,1 além das disci-
plinas de formação específicas, como língua e literatura,
os graduandos têm acesso a cursos de formação didático
-pedagógica a fim de perceberem a história da educação

1. Refiro-me, é claro, aos cursos de licenciatura plena.

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no Brasil, seus entraves e avanços e as principais tendên-
cias e correntes que fomentam os saberes. Às disciplinas
didáticas específicas ao ensino de língua e literatura se
vinculam as de estágio, que por sua vez se desdobram em
observação, simulação e regência, respectivamente nes-
sa ordem. Essas disciplinas são oferecidas no último ano
da formação do aluno, após ter sido percorrido o longo
trajeto pelas teorias do conhecimento. Assim, muitos alu-
nos chegam a essa etapa cansados da rotina de estudos.
Quando deveriam estar mais seguros, surgem exaustos e
sem perspectiva, temendo assumir a regência e fracassar
na profissão que escolheram.
Nesse sentido, as disciplinas de observação e está-
gio, bem como outras de feição didática, devem cumprir
um papel de expor os entraves da educação que temos e
discutir a educação que queremos. É imprescindível que
os futuros educadores saibam que, se lhes falta a experi-
ência pedagógica, sobra-lhes o dinamismo da juventude
e a vontade de ousar. Mais que professores conteudis-
tas, que se colocam no centro da sala, como se tivessem
todo o conhecimento do mundo, a escola necessita de
mediadores do saber, afinal, nunca fomos enciclopédias
ambulantes. Com o avanço das tecnologias da informa-
ção e comunicação, torna-se fácil descobrir o conheci-
mento fora da sala. A vastidão do ambiente virtual atiça
o curioso e é para lá que nossos olhos de educadores
devem estar voltados. Somos arremessados na enxurrada
de informações. Mas o que fazer com elas? Quais as que
realmente importam? Como filtrá-las e como organizá
-las em nosso próprio benefício? Essas questões devem
permear o plano didático dos novos professores. Além
disso, é importante perceber que as concepções de ensi-
no mudam conforme o momento, o espaço e o público.
Não há uma receita pronta para isso.
Conteúdo é precisamente aquilo que está contido
em algo. Um saber herdado. Uma cultura do fazer e do

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pensar. Mas também é conteúdo uma atitude e o proces-
so de tomada de consciência das sensações, das emoções,
dos desejos. Pode-se, nesse sentido, pensar o conteúdo
com uma tripla demanda: conceitual, procedimental e ati-
tudinal. Saber o que é uma coisa não é tudo. O que fazer
com ela? O que ela desperta em mim? O que sou depois
de tê-la? O problema do conteúdo, para Mikhail Bakhtin
(2002), pressupõe a conjunção entre conhecimento, ética
e arte. Toda concepção de mundo exigiria do humano um
domínio do saber fronteiriço, ou seja, nenhum conheci-
mento está no interior, mas nas bordas, nas margens, nas
ramificações e entrecruzamentos. É preciso saber-se su-
jeito em potência, nunca concluso. Sobre a inconclusão
se assenta a educação. E é assim que ela deve ser pensa-
da: em processo. Deve-se partir de saberes empíricos e
afetivos para chegar aos saberes das demandas culturais,
sistemáticos. Um saber pautado na experiência não pode
ser apagado por um saber formal. Para essa lição, basta
compreender o que nos diz o mestre Alberto Caeiro:

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo (...)
(Pessoa 2005, p. 19)

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Mais do que um poder de sintetizar, o que a educa-
ção cobra de nós é o desejo de análise,2 o desnudamento
das coisas, o espanto de ver aquilo que sempre víramos,
mas agora sob nova perspectiva. Nascer “para a eterna
novidade do mundo” com esse nítido olhar de girassol
é estar atento às mudanças necessárias no percurso.3 Se-
remos educadores quando, mais do que apresentarmos
um conteúdo acabado, soubermos questioná-lo; mais do
que defini-lo, soubermos problematizá-lo; mais do que
apreendê-lo como verdade, soubermos descartá-lo quan-
do ele não mais nos parecer importante. Será um sinal
de que avançamos e, ainda, a constatação de que saber
algum é imutável.

Por uma pedagogia da autonomia do leitor

Educar para a transformação plena do sujeito, no


desejo de que ele abandone a passividade e assuma seu
protagonismo, é o grande desafio. No Brasil, é Paulo
Freire quem elabora um percurso pedagógico que tem

2. Percebo como a institucionalização do saber gerou e gera pro-


fessores repetidores, sem um mínimo de consciência crítica.
Repassam o conteúdo já pulverizado, sem se importar em
produzir seu próprio material a partir de sua experiência de
mundo. O Ensino Médio, particularmente, é um celeiro de
síntese. É ela quem domina esse espaço. A criticidade passa
longe daí, quando o que interessa é sistematizar um conheci-
mento com base na utilidade: “Isso vai cair na prova”, “O ves-
tibular – o ENEM – cobra tais habilidades e competências”,
“Os concursos públicos abordam isso sob tal perspectiva”.
E, longe da formação do sujeito, o ensino se torna refém de
sínteses, como se a vida só tivesse sentido em função de uma
profissão.
3. Refiro-me a uma pedagogia da sensação, onde o corpo em
sua totalidade aprende enquanto apreende o mundo. Diante
disso, ler equivale a sentir e não somente reter conteúdos.

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como cerne a constituição de uma pedagogia que levanta
do chão os excluídos e os faz partir de suas próprias ex-
periências, mas não se limitando a elas. Num mundo que
vê o sujeito como consumidor e mercadoria é necessário
que o ensino busque outra ótica e ética. Diante de um sis-
tema excludente, é preciso que os professores coloquem
como suporte de sua prática o valor da ética, conforme
afirma Paulo Freire:

A ética de que falo é a que se sabe traída e ne-


gada nos comportamentos grosseiramente imo-
rais como na perversão hipócrita da pureza em
puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe
afrontada na manifestação discriminatória de
raça, de gênero, de classe. É por esta ética inse-
parável da prática educativa, não importa se tra-
balhamos com crianças, jovens ou com adultos,
que devemos lutar. (2011, p. 18)

No caso específico do professor de língua e lite-


ratura, deve-se ter clareza que os discursos da literatura
jamais são ingênuos. Sob hipótese alguma ela é neutra.
Fruto do seu tempo de produção, uma obra está sempre
em processo, diacrônica e sincronicamente, e requer lei-
tura aberta. A literatura não faz concessões, não se rende
à dissimulação dos espaços sociais e políticos, tampouco
tolera seu uso em benefício de um fundamentalismo (seja
de ordem religiosa, moral ou política). Ela promove uma
emulação dos espaços de poder, assumindo também uma
postura, sem se impor arrogantemente. Sempre funcio-
nou assim, mesmo em tempos em que se tentou censurar
as liberdades de expressão.
Embora funcione como aparelho ideológico do
Estado (Althusser 1985),4 a escola não deveria cercear a

4. Louis Althusser não apenas sinalizou que a escola era mais um

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voz literária. Mas, infelizmente, é isso o que ocorre. Em
nome de um ensino que prega valores, quando deveria as-
sumir o debate frente às questões formativas do sujeito, a
escola contenta-se em oferecer pobremente um currículo
que se pauta em leituras do cânone. E qualquer desvio
por parte dos professores, qualquer rota de fuga que leve
a discussões polêmicas sobre o ser e o estar no mundo,
provocam abalos. Parece que, quando deveria propor
uma pedagogia da libertação, a escola prefere oferecer
uma pedagogia que canta o coro da tradição, a fim de não
correr riscos.
Atualmente, em nome de uma pedagogia do “po-
liticamente correto”, deixamos de lado diversas questões.
Preferimos mais do mesmo, ao invés de buscarmos o
outro. Rezamos a cartilha do contentamento. Conten-
tamo-nos com um currículo que não rompe com uma
tradição; contentamo-nos com um ensino que privilegia,
não o questionamento, mas as respostas; contentamo-
nos, enfim, com um ensino que diz o que o aluno deve
fazer e como deve fazer, mas não o orientamos a produ-
zir conhecimento. Para usar a metáfora de Rubem Alves
(2012), oferecemos a “caixa de ferramentas” e exigimos
que o aluno as utilize, quando poderíamos propor que,
além disso, ele produzisse seus próprios instrumentos.
Mais do que isso, esquecemos de valorizar a “caixa de
brinquedos”, que promoveria a noção de mundo sob a
perspectiva do prazer, não da obrigação.

dos mecanismos do jogo do poder capitalista, como também


prenunciou a mercantilização do saber. Nesse sentido, uma
educação bancária dialogaria com os objetivos propostos por
uma elite dominante. Assim, a literatura seria capaz de des-
construir as noções imaginárias que a ideologia constrói no
sujeito, fazendo-o perceber as amarras que o aprisionam. A
educação popular, pensada para as massas e ao proletariado,
encontrou em Paulo Freire um forte defensor da história do
sujeito, que ele seja seu próprio narrador de sua história, e não
se deixe levar pelos interesses burgueses.

21
Diante disso, como seria o papel ético do profes-
sor? De que modo os professores de literatura devemos
pautar nossas escolhas pedagógicas sob o compromisso
de um ethos? Paulo Freire responde:

Na maneira como lidamos com os conteúdos


que ensinamos, no modo como citamos auto-
res de cuja obra discordamos ou com cuja obra
concordamos. Não podemos basear nossa críti-
ca a um autor na leitura feita por cima de uma
ou outra de suas obras. (2011, p. 18)

Compreendendo uma visão de mundo, a literatura


oferece, pela lente do escritor, as questões humanas, seus
conflitos de ordem social e existencial. Cabe ao leitor (e
nesse caso, penso no professor de literatura como um
mediador na descoberta do poder do texto literário) in-
vestigar por que as vidas com seus enredos nos interes-
sam; por que os sentimentos, as perdas e as conquistas
nos prendem.
O que tudo isso evoca? Mais do que ensinar lite-
ratura pelo viés historiográfico ou estético, é importan-
te ensiná-la pelo viés ético. Nesse caso, o ensino ético
pressupõe deixar que a literatura seja, sem remendos e
sem ocultações de questões caras à formação humana. A
literatura já foi acusada de transgressora inúmeras vezes,5
assim como foi cerceada, combatida, queimada em praça
pública, encerrada nos espaços privados.

5. As Flores do Mal de Baudelaire passaram pelo crivo da censura,


assim como Madame Bovary de Flaubert. No caso do Brasil, a
prosa de ficção romântica, escrita por brasileiros ou por es-
trangeiros, era considerada, tanto pela igreja quanto pela fa-
mília, de má influência para o modelo patriarcal que erigia a
mulher como submissa aos pais, ao marido e à pátria.

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Ensinar literatura é, pois, estar consciente de que
ela é obra humana e, como tal, aborda os impasses mo-
rais, sexuais, psicológicos, religiosos, políticos etc. Tudo
isso culmina numa apreensão de eticidade do texto lite-
rário por parte do educador. Não se deve fugir dos pro-
blemas, nem escondê-los, senão promover um discurso
aberto sobre isso, uma leitura que não descambe para a
reprovação de um autor com base nas concepções reli-
giosas e morais do leitor.6 Aliás, todo conhecimento só
tem sentido se for colocado em defesa da liberdade, que,
não suportando fundamentalismo e hipocrisia, coopera
para que o aluno elabore sua aprendizagem pelo viés da
criticidade, conforme indica Paulo Freire: “(...) quanto
mais criticamente se exerça a capacidade de aprender,
tanto mais se constrói e desenvolve o que venho cha-
mando ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não al-
cançamos o conhecimento cabal do objeto” (2011, p. 26).
O texto literário assume, por assim dizer, uma fun-
ção profética, sem querer resvalar para questões doutri-
nárias aqui. Tal profecia acontece no momento em que a
obra se reveste de denúncia e anúncio. O que denuncia a
literatura? As incongruências do passado e do presente,
os impasses, os discursos anacrônicos e vazios, as rela-
ções de poder, o jogo entre as moralidades e a natureza
humanas, os limites do humano, a psicologia do abismo
etc. Denuncia, porque todo texto traz consigo uma marca
de passado que, atualizada no agora da leitura, promove
uma ruptura e anuncia uma novidade à medida que apon-
ta outros percursos.
Se o texto literário evoca uma dupla visão de mun-
do (particular, por ser recorte de vivências e construção
do imaginário do autor; coletiva, porque o autor se insere
num tempo-espaço demarcado pela herança cultural), sua

6. Configurando-se como insubmissa, a literatura não suporta


isenção e tampouco aceita ser usada por fundamentalistas.

23
leitura também implica um saber de mundo, um olhar
duplo, para fora de si, onde estão os fatos narráveis, e
para dentro si, onde estão as sensações que detêm o mun-
do. Cabe ao professor não persistir na concepção de que
ensinar é transferir o que sabe, mas conduzir (isso é o que
significa a palavra pedagogo) o aprendiz no caminho das
descobertas. Muitos professores são apenas repetidores.
Leem muito - quando leem - e depois apresentam o lido
sem problematizá-lo, sem questioná-lo, como isso fosse
verdade absoluta. É o tipo de educador que “fala bonito de
dialética, mas pensa mecanicistamente” (Freire 2011, p. 29).
Pensada como um ambiente desgarrado do con-
creto, nesse caso, a escola supõe que a realidade lá fora é
pesada demais para adentrar ao paraíso fictício do saber,
templo do conhecimento. Mas não existe um “lá fora”
desmembrado de um “aqui dentro”. O mundo é o mes-
mo, nós é que criamos as barreiras. O ensino da literatura,
então, deve pautar-se na consciência de uma “reflexão so-
bre o mundo inserida no mundo” ou melhor “(...) nem a
teoria é transcendental em relação às situações em que se
produz e se usa, nem o teórico é geralmente um pensador
isolado e misantropo” (Jobim 2002, p. 119).
Num espaço onde se joga o jogo do politicamen-
te correto, não entram as questões humanas, porque ser
humano pressupõe ser complexo, repleto de problemas,
sobrecarregado de dúvidas, e sonhos, e desejos. Fora dis-
so, há o olhar limítrofe, preconceituoso, que prejudica
nosso percurso pedagógico, porque não percebemos que
a realidade é apenas uma construção particular e nunca
completa, ou, segundo Bakhtin:

É preciso lembrar de uma vez por todas que não


se pode opor à arte nenhuma realidade em si,
nenhuma realidade neutra: pelo próprio fato de
que falamos dela e a opomos a algo, nós, como
que a definimos e lhe damos um valor; é preciso

24
apenas sermos claros com nós mesmos e com-
preender o verdadeiro sentido da nossa aprecia-
ção. (2002, p. 31)

O autor se alimenta exatamente da realidade, não


para dar respostas, senão para provocar reflexões. Fora
isso, ficamos todo o tempo discutindo o caráter mimético
da obra e não nos apercebemos das várias dimensões do
humano que ela aborda. Então, que é ser professor de lite-
ratura? Devo dizer que fico bastante preocupado quando
vejo alunos de graduação em Letras – futuros professo-
res – com uma visão bastante romantizada da literatura.
Como se a literatura fosse uma caixa alucinógena, buscam
trabalhar apenas textos que evoquem o prazer. Esquecem
que as dores, desesperanças, tristezas, decepções, precipí-
cios também compreendem o mundo da literatura e, ao
contrário do que se pensa, trabalhar com isso é como uma
espécie de purgação, uma cura pela leitura.7
A literatura deve realizar uma panaceia, com a
qual, humanos que somos, devemos tratar-nos. Mas, sin-
ceramente, ela não é salvação, não é um fim em si mes-
ma, não quer ser vista como o prazer descompromissado.
Porque toca questões sérias à humanidade, é um saber
como outro qualquer com o qual devemos nos deparar
para que percebamos a complexidade que é o humano.
A dimensão do ser, seus limites e fronteiras, bem como
seus anseios, impregnam o texto literário com todo o seu
vigor poético (e por que não dizer mitopoético?!8).

7. Aliás, é exatamente isso uma das funções do teatro grego. Na


Poética de Aristóteles (2005), as apresentações do drama deve-
riam infundir no espectador as tragédias possíveis ao humano
que, chorando, sentindo terror ou piedade, deveria ficar livre
daquilo que nem chegara a padecer.
8. Letradas ou não, todas as civilizações construíram e cons-
troem mitos, e os alimentam na tentativa de entender o que
são, de onde vieram, aonde vão. Ao contrário do que se pensa,

25
Talvez a lição mais importante que o professor de
literatura deve ministrar é propriamente a “lição do igno-
rante” (Rancière 2013), a necessidade de se criar mecanis-
mos para a emancipação do educando desse sistema ex-
cludente que, ao invés de trabalhar a sensibilidade, tenta a
qualquer custo freá-la.

Travessias do literário

Tendo suspeitado da existência do Diabo em inú-


meras conjecturas, Riobaldo, o velho narrador de Grande
sertão: veredas (Rosa 1980), usando sua filosofia de vida
jagunça, resolve concluir seu relato afirmando que não
existe Diabo nenhum, mas homem humano. A narrativa
começa com uma palavra-símbolo – “nonada” – e termi-
na com a palavra “travessia”. Com base nisso, exponho
aqui minha reflexão sobre o ato de ensinar. Todo saber
parte desse “nonada” e culmina numa “travessia” porque
conhecimento é percurso.
Assim, para responder ao título desse artigo com
base numa estética da negação, entendo que não se pode
ensinar literatura; pelo menos não do jeito como a esco-
la tradicional quer pensar o texto literário. Literatura se
vive. E qualquer saber, não apenas o literário, deve partir
da experiência, vivida ou imaginada, que se deve narrar/
ler a fim de que de fato exista no campo artístico. Cada
ato humano é a literatura em potência, como flor bruta

os conhecimentos filosófico e científico não ofereceram res-


postas, e, com isso, não suplantaram as mitologias. Frutos de
questões existenciais daqueles povos, os deuses do passado
só morreram enquanto projeções de culto, mas continuam,
enquanto construções imaginárias, a alimentar nossos sonhos
e desejos.

26
prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou
promove o caos ou fecunda o solo.
Antes de pensar na função da literatura, e em como
e para que ensiná-la, cabe pensar por que o homem se in-
teressa tanto por vidas reais ou imaginadas; por que “per-
de” seu tempo com leitura daquilo que nunca ocorreu?
Em que isso se tornará produtivo? Por que gosta de jogar
com vidas e se surpreender com o aflorar de suas emo-
ções (o terror, o humor, a alegria, a raiva etc.) ao ler um
texto? Aí está a própria resposta que se quer para funda-
mentar o papel da literatura na formação do aluno: ela dei-
xa entrever o mundo real, assim como apresenta um mun-
do possível, e nos faz refletir sobre as possiblidades das
escolhas, boas ou ruins, que fizemos ou venhamos fazer.
Ela suscita desejos, libera sensações tolhidas, infunde uma
vontade de reparação, ou simplesmente, tira-nos do nosso
eu e nos lança ao outro. Sua matéria é feita de possibilida-
des. De um “se” que se projeta sobre nós, e nos cumula de
alteridade. Por isso, a significação do texto literário não é
fechada ou circunscrita ao tempo e espaço de produção, já
que a intencionalidade do autor é substituída por camadas
de leituras e teorias novas que cada época traz.
É porque sempre somos obrigados a buscar um
sentido para as coisas que, geralmente, vemos os conte-
údos das artes como aquilo que não tem valor prático.
Somos a sociedade da utilidade. Esquecemos que a inu-
tilidade também é um saber. O ócio contemplativo não
gera reflexão e questionamento? Um quadro abstrato não
se torna uma questão a quem contemplá-lo? Uma música
não evoca lembranças, que, por sua vez, permitem entre-
ver o que fomos e somos? Há saberes práticos e saberes
contemplativos. As artes querem que as contemplemos
como se mirássemos a nós mesmos, não como diante de
um espelho, que mostra nossa imagem por reflexo, e não
consegue revelar o interior. Se houvesse um espelho que
nos revirasse pelo avesso...

27
Se, como indica Vincent Jouve (2014, pp. 84-85), o
autor não controla completamente seu texto que, assim,
escapa à sobrecarga de intencionalidade, a obra literária
deve ser considerada mais um sintoma do que um sinal;
seu sentido é diverso, não aceitando inteiramente con-
ceito. Estudar/ensinar literatura, então, é não perder de
vista que a obra não vigora na superfície do sentido, não
se deixa prender por categorias, nem aceita que as marcas
do tempo e do espaço sejam as únicas formas de do-
miná-la. Esse caráter de impermanência da obra literária
não é um dos mecanismos que justamente a faz vigorar
como obra? Cada tempo produzirá, portanto, objetos
conceituais para dar conta da obra. O problema do ensi-
no de literatura é a tentativa de esquematizá-la e esgotar,
na leitura, todas as possibilidades de sentido. O conceito
fugidio é essencial, portanto, para que o texto continue
a despertar interesse, pois, “como o autor não domina
tudo o que ele investe em seu texto, alguns conteúdos só
serão identificados muito tempo depois da publicação da
obra, uma vez que já terão se configurado as ferramen-
tas teóricas que permitam determiná-los” (Jouve 2012, p.
87). Entram em jogo na leitura a diferença entre sentido
e significação, donde se conclui que:

O sentido é singular; a significação, que coloca


o sentido em relação a uma situação, é variável,
plural, aberta e, talvez, infinita. (...) O sentido é o
objeto da interpretação do texto; a significação é
o objeto da aplicação do texto ao contexto de sua
recepção (primeira ou ulterior) e, portanto, de
sua avaliação. (Compagnon 2010, p. 85)

O diabo do Riobaldo nos assombra também quan-


do nos deixamos levar pela concepção mercadológica do
saber utilitário repousando o “para que serve” no sentido
da obra. Queremos saber para ter ou para ser? O diabo

28
do Riobaldo murmura o tempo todo em nossos ouvidos,
na ânsia de assumirmos o lado utilitário da vida. Mas, à
semelhança do suposto pacto que Riobaldo fez com o
coisa-ruim, na meia-noite de uma encruzilhada no sertão,
devemos fazer um pacto com a palavra, que nos permite
encarar o mundo com olhar de leitores atentos, em tra-
vessia, como a literatura, que atravessa espaços, tempos e
nos atravessa, professores e alunos.

Algumas inconclusões

Cabe agora voltar ao que prognosticou o precep-


tor do então menino Manoel de Barros. Pode ser que,
como educadores, acalentemos um “certo gosto por na-
das”. Talvez isso seja considerado doença num mundo
em que vence quem tem mais força, quem manipula mais
e quem canta conforme a ética do mercado financeiro e
a lógica do carreirismo. Estar à margem disso, numa con-
tracorrente, não é fácil, mas seguramente é mais digno.
Na escola que estamos gestando, há uma série de
aprendizagens necessárias, elencadas nesta lista: é preciso
ouvir o apelo do novo; ver o aluno com mais lucidez;
não subestimar o aprendiz; ser menos mestre e sempre
aprendiz; quebrar as velhas estruturas, os velhos concei-
tos, as resistências, mas sem desvalorizar os experientes;
ter medo dos conceitos prontos; divagar e ir devagar;
ensinar inteligência emocional (sobretudo, é necessário
tê-la); ter clareza do caminho, mesmo quando tudo é tur-
vo e neblinado (clareza não significa certezas); a verdade
singular é a maior inimiga do educador (que tal falar de
verdades plurais?); falar a linguagem do aluno, que passa
necessariamente pelo afeto; promover a arte do diálogo e
reconhecer que nem todo grupo é uma equipe; saber que
em matéria de educação menos por menos é sempre mais

29
(elimine os excessos); fazer do texto o núcleo do debate e
deixá-lo de utilizar como pretexto (aliás, a educação está
minada de pretextos); ser guardião da liberdade, que deve
ser entoada em cada aula, em cada gesto, em cada atitude,
em uníssono.
Utopia? Entendam como quiser, entretanto, o
“demônio da teoria” não pode condenar o texto literário
ao limite da interpretação particular e acabada. Há um
horizonte da história onde o texto literário se inscreve,
mas ele é perpassado constantemente pela atualização
desse mesmo tempo. Ainda que tentemos fugir para o
passado ou para o futuro, estaremos sempre atravessados
pelo tempo presente. Ao final deste artigo, há uma ativi-
dade que retoma as nossas reflexões.

Referências bibliográficas

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Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Ja-
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BAKHTIN, Mikhail (2002). “O problema do conteúdo”,
in: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
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BARROS, Manoel de (2013). “O livro das ignorãças”, in:
Poesia Completa Manoel de Barros. São Paulo: LeYa,
pp. 273-299.
CANDIDO, Antonio (2010). “O Escritor e o Público”,
in: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, pp. 83-98.

30
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teratura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes
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Horizonte: Editora da UFMG.
FREIRE, Paulo (2011). Pedagogia da autonomia: saberes ne-
cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
JOBIM, José Luís (2002). “O trabalho teórico na história
da Literatura”, in: Formas da teoria. Rio de Janeiro:
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JOUVE, Vincent (2012). Por que estudar literatura? Tradu-
ção de Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São
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PUCHEU, Alberto (2013). Mais cotidiano que o cotidiano.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
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ROSA, Guimarães (1980). Grande sertão: veredas. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora.
TÜRCKE, Christoph (2010). Sociedade excitada: filosofia
da sensação. Tradução de Antonio A. S. Zuin et al.
Campinas: Editora da Unicamp.

31
ATIVIDADES PROPOSTAS

A leitura do poema de Alberto Pucheu deve nortear a reflexão.

a) Divide-se a turma em dois grupos;


b) O grupo 1 deverá fazer um elenco do que seriam a
força e a fraqueza do nosso tempo. Esse grupo refletirá
sem ter lido o poema; trata-se de uma análise do mun-
do contemporâneo;
c) O grupo 2 receberá uma cópia do poema e deverá
circunscrever sua leitura ao que se refletiu no artigo
(a função da literatura, os sentidos da obra e o papel
do professor como mediador). O que seria esse “pon-
to cego” da literatura? A resposta dos poemas aponta
para uma definição ou indefinição do ser e do mun-
do? A literatura exige do leitor que tipo de abertura?
Ensinar literatura privilegiando definições concluídas
não seria um contrassenso, já que todo tempo tem seu
“ponto cego”?
d) Os grupos formam uma plenária para apresentar suas
análises. Nesse momento é importante que o profes-
sor estimule a discussão em que fiquem explicitadas
a leitura de mundo (grupo 1) e a leitura do texto (gru-
po 2). Sugere-se que o grupo 1 só receba o poema
imediatamente após a apresentação de suas reflexões.
Assim, poderá lançar-se a uma outra leitura do tempo
presente mediada pelo texto.

PONTO CEGO
(da força e da fraqueza de nosso tempo)

“Quem somos?” –
perguntam aos poemas
em busca de uma resposta
que complete a pergunta,

32
sobrepondo uma, sem falta
nem excesso, à outra.
Mas os poemas repetidamente
respondem que somos
aquilo em que nos perdemos
ao buscarmos encontrar
o que acreditamos ser.
Se insistirem, portanto,
em perguntar aos poemas
de buscas, encontros, crenças...
se insistirem, portanto, em saber
a voz dos poemas, saibam que,
de diferentes modos, eles só dizem
o que não se busca nem se encontra,
a perdição, o fim das crenças,
o que não se oferece a nenhuma frase,
nem mesmo mais a nenhum verso.
Há um ponto cego nos poemas,
como há um ponto cego na vida,
não visto por mim nem por você
nem por ninguém, desde o qual
eles são o que são, um ponto cego
que somente os poemas – talvez –
nem sei – vejam. Se insistirem,
portanto, no trato com os poemas,
se de fato quiserem permanecer
com eles, sejam, ainda que os últimos
afeitos a tal empenho, fortes,
porque quase todos os outros
– sinal dos tempos – os abandonaram
(Pucheu 2013, p. 85)

33
Capítulo 2
FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA
COMPARADA E INTERCULTURALIDADE

Graciela Cariello

Eu sou os outros
Provérbio africano
Citado por Mia Couto, na orelha do romance
O evangelho segundo a serpente, de Faíza Hayat (2006).

O presente artigo propõe-se abordar o ensino da


Literatura Comparada no encontro de culturas e línguas,
para a formação de professores de língua estrangeira.
Tem como objetivo aportar aos alunos de estágio alguma
reflexão e alguns exemplos de prática possível.
Para tal, apresentarei uma proposta, aplicada e
provada no curso de formação de Professores de Por-
tuguês da Universidade Nacional de Rosário, Argentina.
Ela se fundamenta no conceito de interculturalidade, e na
representação do Outro na literatura.

35
O outro e a identidade

Para se pensar no outro é imprescindível revisar o


conceito de identidade. Na raiz do termo existe o substan-
tivo latino identitas, átis, que provém de idem, “o mesmo”.
É verdade que hoje identidade não é pensada desse ponto
de vista, mas como conjunto de características próprias,
diferenciais. Mas a ideia do que é igual a si mesmo, que
não varia, persiste. E mais ainda: a ideia do que é centro,
em relação com o que é outro, diferente.
Acompanhando a teoria de Eduardo Grüner, po-
demos dizer que, como afirmou Lacan, depois de Sartre,
não há Outro para o Outro. O princípio é que para se
qualificar algo como alteridade tem de se pensar a si pró-
prio com arrogância: como mesmo, mesmice, identidade,
e a partir daí é que se definem o outro e a diferença. E
afirma que quando ele no livro fala em Outro / Outros,
deve-se ouvir: “el Mismo/Otro-como-parte-que-no-tie-
ne-parte porque ha sido excluida de su lugar constitutivo
de lo mismo para que no pueda verse que lo mismo sólo
es tal porque justamente le falta una parte con la que no
quiere saber nada” (Grüner 2002, p. 49). Ou, diríamos,
como fala o provérbio africano citado como epígrafe des-
te artigo: eu sou os outros. Não existe separação entre
eu e os outros, se não é política, se não é em termos de
exclusão. Por isso, quando ensinamos uma língua estran-
geira, uma cultura estrangeira, é preciso prestar atenção
ao sentido que damos a esses termos: identidade, outros.
Não venha resultar que estejamos colocando isso que
chamamos de outro no lugar da diferença porque estamos
colocando algo (eu, minha realidade, ou uma realidade
qualquer) no lugar do mesmo que exclui e delimita. A lite-
ratura pode ajudar a nos impedir de cair nessa armadilha.
Vejamos de que modo.

36
Os estudos literários na formação de professores
de língua estrangeira

Como sempre que pretendo descobrir algo sobre


a literatura, fui perguntar aos poetas que sobre ela refleti-
ram. E foi lendo um desses poetas que achei uma primei-
ra resposta para a questão que irei tratar aqui: a relação
entre literatura e língua estrangeira.
Eliot, no seu ensaio “A função social da poesia”,
afirma acerca de textos em língua estrangeira:

[...] me tem sucedido, por vezes, encontrar tre-


chos de poesia que eu não saberia traduzir, con-
tendo numerosas palavras para mim desconhe-
cidas e frases cujo sentido estava fora do meu
alcance, mas que me transmitiram, de forma
imediata e vívida, algo de único, diferente de
tudo o que exista em inglês – algo que eu não
seria capaz de articular por palavras e que no
entanto senti ter compreendido. (Eliot 1997)

E acrescenta que chegando a conhecer melhor


essa língua pôde comprovar que a impressão era alguma
coisa que estava lá. E continua dizendo:

Deste modo, na poesia, é possível, de vez em


quando, penetrar noutro país, por assim dizer,
antes de possuir passaporte ou de ter tirado bi-
lhete. (Eliot 1997)

Aqui vou me deter, e fazer uma breve digressão


histórica. Na história do ensino de línguas estrangeiras
houve um movimento em relação ao papel da literatura
que vou tentar resumir em poucas palavras.

37
Antigamente, o texto literário era o modelo do
bom emprego da língua, e a referência aos autores con-
sagrados era obrigatória para provar o uso das formas.
Isto vale tanto para língua estrangeira quanto para língua
materna. Tudo mudou, é claro, a partir das vanguardas.
Os poetas modernistas e vanguardistas já não podiam
ser considerados modelos, dado ser sua revolução esté-
tica precisamente uma revolta contra o academismo das
formas consideradas corretas e aceitas. Em português,
por exemplo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade ou
Almada Negreiros não poderiam ser pensados como tais
modelos. Uma teoria da literatura veio dar base para se
analisarem esses textos aparentemente agramaticais ou,
no mínimo, desrespeitosos das regras estabelecidas: a no-
ção do desvio A língua poética não era errada, mas des-
viava-se da regra da língua ordinária. Uma outra teoria,
agora filosófica, aborda a questão dessa língua ordinária,
que diferentes linguistas chamaram de standard, comum,
prática, ou então comunicativa. Surge a pragmática, no
interior da filosofia da linguagem. Paralelamente, consti-
tuem-se a teoria da informação e a teoria da comunicação.
Foi, para a linguística, sem dúvida, um avanço científico.
Mas no ensino de línguas –materna e estrangeira – deu
como consequência a expulsão do texto literário, consi-
derado um desvio da norma, do palco do ensino. Pensa-
va-se que a literatura não mais podia ser modelo por essa
artificialidade que ela tem. A literatura foi banida dos ma-
nuais de língua, e principalmente de línguas estrangeiras,
que optaram pela abordagem “comunicativa”, e talvez
atrelados a um dos sentidos do termo “comunicação”, os
teóricos e os autores de manuais decidiram que o melhor
modelo para a língua eram os textos da mídia.
Um comentário à margem merece uma outra con-
sequência das tendências para um ensino de línguas que
visava à comunicação, mas com fins específicos -espe-
cificamente comerciais. Uma língua, uma das mais ricas

38
em produção literária, chegou a transformar-se em língua
franca, ou seja, uma língua muito próxima do que pode-
ríamos considerar artificial: uma língua quase-morta. A
aprendizagem dessa língua – o inglês – tende, ainda hoje,
para virar uma elencagem de termos e construções fixas,
pouco menos que um código matemático, que possa ser
utilizado rapidamente em um contexto quase impessoal.
Sinto uma enorme dor pensando em Borges e Pessoa, no
que poderiam eles sentir ante esse empobrecimento da
língua amada... Deixo isso por enquanto e volto à minha
pequena história.
Uma nova teoria da literatura e da língua veio
questionar, mais tarde, aquela do desvio. Trata-se da teo-
ria que considera o texto como produtividade, e a língua
poética como possibilidade infinita.

Para el escritor, el lenguaje poético se presen-


ta como una infinitud potencial [...]: el conjunto
infinito (del lenguaje poético) es considerado
como posibilidades realizables; cada una de esas
posibilidades es realizable por separado, pero no
son realizables todas juntas.
La semiótica por su parte podría introducir en
su razonamiento la noción del lenguaje poéti-
co como infinitud real imposible de representar...
(Kristeva 1978, pp. 234-235)

Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, expõe as


coincidentes teses de Coseriu, segundo as quais “...a lín-
gua poética [...] deve ser concebida [...] como a realização
de todas as virtualidades da língua, como materialização
da plena funcionalidade da língua...” e afirma:

À luz destas teses de Coseriu, os pretensos “des-


vios” da língua literária configuram-se como

39
realizações inéditas ou incomuns das potencia-
lidades do sistema linguístico; em sede teórica,
a língua recupera, contra a dialetização a que a
condenam as teorias desviacionistas, a função
que historicamente sempre tem desempenhado
de agente conformador por excelência da res-
pectiva língua natural; o estudo da língua literá-
ria, algumas vezes denunciado como restringen-
te e deformante da omnímoda funcionalidade
da língua, adquire, sob o ponto de vista científi-
co e didático, o estatuto de insubstituível meio
de conhecimento e aquisição dessa omnímoda
funcionalidade e, por conseguinte, o estatuto
de privilegiado instrumento de cognição do ho-
mem, da sociedade e do mundo. (Aguiar e Silva
1994, pp. 172-173)

Assim, para essas teorias, a literatura é o espaço


privilegiado da língua, a máxima expressão das possibili-
dades – nunca realizadas – de uma língua, a manifestação
da sua potencialidade artística, estética e da sua virtuali-
dade expressiva e, como em alguma forma diz Aguiar e
Silva, transforma-se em espaço privilegiado também para
o estudo da língua. Mas não é só, e agora é que começa
realmente minha reflexão. Concordo, devo esclarecer an-
tes de mais nada, com as teses de Aguiar e Silva, Cose-
riu, Kristeva. No entanto, acrescentarei que a literatura é
mesmo aquele espaço infinito, não só pelas virtualidades
linguísticas que comporta, mas também porque é o espa-
ço da expressão do outro.
É na literatura que o estudante de língua estrangei-
ra vai descobrir um efeito de estranhamento. Quer dizer,
vai situar um ponto de vista deslocado porque os objeti-
vos da literatura são bem outros do que os objetivos da
comunicação quotidiana. Ela provoca essa sensação de
se estranhar ante a língua estrangeira que em um primeiro

40
momento todo o mundo aprende para poder falar e mais
ou menos compreender o outro.
A literatura é o modo complexo, surpreendente e
belo de se expressar esse outro que está do outro lado
cultural, com quem pretendemos ter um diálogo para
além da comunicação superficial, que veicule aquela car-
ga de sentimentos, de desejos, de ilusões que só o tex-
to literário consegue pôr em palavras. Porque, seguindo
Grüner, podemos afirmar que a literatura é o modo que
as línguas têm de falar do indizível (Grüner 2002, p. 320).
Voltemos a Eliot. O poeta diz: “É mais fácil pensar
do que sentir em língua estrangeira” (Eliot 1997). Não di-
remos então que se alguém consegue sentir, ou interpre-
tar o sentimento de um poema em língua estrangeira sabe
muito mais dessa língua do que qualquer um que apenas
consegue compreender uma comunicação instrumental?
A literatura é o espaço, ainda, das sutilezas do su-
bentendido, aquilo que na língua se inscreve como não-
dito, e de que depende, inúmeras vezes, a nossa com-
preensão do que se diz na superfície. O subentendido é
também o espaço da possibilidade de dizer o que às vezes
não se pode dizer.
E tem mais: a literatura é o espaço em que as lín-
guas vivem. Essa produtividade que é o texto literário, que
faz com que a nossa leitura seja sempre uma aventura de
descobrimento, é o refúgio das línguas, ainda daquelas
que já não têm falantes.
Está aí o exemplo nas línguas clássicas, de que os
especialistas rejeitam o termo “mortas” com que se costu-
ma designá-las. Eles têm razão: elas vivem, e eternamente
viverão, enquanto houver um leitor disposto a entrar nos
seus textos literários e trazê-los para essa vida mágica da
literatura quando é lida. E toda outra língua, também a
língua franca que acima mencionei, vive e continuará vi-
vendo na sua literatura. Mas para podermos captar essa

41
vida, a literatura deve fazer parte da nossa aprendizagem
da língua.
Hoje, muitos professores voltaram a incluir a lite-
ratura entre os textos que os seus alunos frequentam. Por
motivos como os que acabei de expor, e também pelo
prazer, motivação que nunca deve ser descurada no en-
sino, não só de línguas mas de qualquer outra disciplina.
Na formação do futuro professor de língua estran-
geira, a literatura tem uma dupla função. Por um lado,
como construto coletivo, social, manifestação de proces-
sos gerais de uma época, de uma corrente de pensamento
(filosófico, estético, até político) ela é um produto cul-
tural. A literatura, como construção de bens simbólicos
com que uma sociedade expressa a concepção que ela
tem de si própria, dará ao professor aportes para o co-
nhecimento dessa sociedade. Mas por outro lado a lite-
ratura será, para o professor e também para seus alunos,
o espaço da liberdade: liberdade de interpretar, de fazer
sua leitura crítica, de comparar, relacionar, ativar sua livre
imaginação; liberdade para colocarem seus próprios pon-
tos de vista, dialogarem com os textos, com suas leituras
prévias, ativarem mecanismos de compreensão profunda
do outro e também de expressão.
A literatura nos faz inventores de mundos. Ela
prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só
limitada pelas regras que a própria literatura gera, e que
aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção
dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imagi-
nação a multiplicidade de vidas que uma língua descortina
para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas
que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez
descobriremos falando sem saber que sabíamos, estão
potencialmente na literatura dessa língua. Se estudarmos
a literatura de uma língua estrangeira, estaremos cons-
truindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver
como e por que cada um de nós é os outros.

42
Literatura Comparada e interculturalidade

Como se representa o outro na Literatura? A abor-


dagem que, no meu entender, melhor pode dar conta
disso é a Literatura Comparada. É nela que se estuda o
encontro/desencontro de culturas: a interculturalidade,
representada no texto literário. Ao se lerem comparati-
vamente textos pertencentes a culturas diferentes, paten-
teia-se tanto a proximidade quanto a distância que vai de
uma à outra, e cada uma fica mais visível e compreensível.
Cada texto deita luz sobre o outro, e a iluminação recí-
proca faz surgir mais clara a expressão do outro na sua
língua, na sua retórica, nos recursos literários e nos temas.
Um comparatista francês, Daniel-Henri Pageaux,
dedicado ao estudo das literaturas hispano-americanas,
refutando a teoria das formações supranacionais, de Clau-
dio Guillén (1985), afirmava, em finais do século passado,
o princípio metodológico da visão diferencial: “¿Tendrá
el comparatista, como lo admiten algunos, una visión ‘su-
pranacional’? Confieso que prefiero asentar el principio
metodológico de la visión ‘diferencial’”. E concluía:

Preséntase la literatura comparada como una


toma de conciencia por mínima que sea que
procede de una puesta en relación de un ‘Yo’
frente al ‘Otro’, de un ‘aquí’ frente a un ‘allá’.
Aquella confrontación estriba pues en el estudio
de una distancia significativa entre dos o más se-
ries de datos culturales. (Pageaux 1988)

Nossa leitura de hoje, baseada em pensadores


latino-americanos, confirma essa leitura da diferença,
contrária à procura de regularidades mesmo que sejam
“multiculturais”. No entanto, sem rejeitar o pensamento
europeu e admitindo as coincidências quando elas exis-
43
tem, defendemos uma atitude crítica. Evitamos, como
Grüner, cair na armadilha de considerar o outro como di-
ferente excluído.
Faz longo tempo estamos discutindo como con-
figurar um modelo de análise para a literatura e a cultu-
ra com um olhar latino-americano. Alguns livros foram
exemplares, como aquele que coordenou Ana Pizarro
(1985).
Os textos de Zilá Bernd e outros autores brasi-
leiros em Escrituras Híbridas (1998) tomavam como base,
entre outras, a teoria de García Canclini (1992) sobre as
culturas híbridas nas Américas. Começavam assim a ela-
borar uma linha da Literatura Comparada Interamericana
nestas regiões marginais que demandam seu espaço pró-
prio, ultrapassando, até, a apropriação “antropofágica”
das culturas impostas por um passado colonial.
O meu trabalho, ainda na linha desses teóricos e
críticos latino-americanos, vem-se encaminhando pela
vereda que parte dos textos de García Canclini (2004) e
Zulma Palermo (2005) e configura o conceito de intercul-
turalidade.
De diferentes lugares de algum modo marginais,
nos primeiros anos do presente século, estes pensado-
res têm desenhado o conceito, que considero o centro
descentrado da reflexão latino-americana atual. García
Canclini faz suas pesquisas no México e publica sua obra
sobre a interculturalidade em uma das poucas editoras espa-
nholas “de tamaño medio” que, “con sedes en Barcelona,
México y Buenos Aires” publicam obras de reflexão so-
cial e cultural latino-americana, como ele próprio afirma
em seu livro (García Canclini 2004, p. 121). As pesquisas
de Zulma Palermo, por sua vez, situam-se na margem
da margem. Ella trabalha em Salta, no NOA- Nordeste
argentino, margem com respeito a Buenos Aires, que é
espaço central para a Argentina, porém é margem para a

44
Europa e os Estados Unidos. Ela publica o seu livro de
2005 em Córdoba.
Néstor García Canclini coloca um conceito abran-
gente de cultura, como “el conjunto de procesos sociales
de producción, circulación y consumo de la significación
en la vida social” (Canclini 2004, p. 34). Aquilo “inter-
cultural” (assim, como adjetivo) é definido por ele como

el conjunto de procesos a través de los cuales


dos o más grupos representan e intuyen imagi-
nariamente lo social, conciben y gestionan las
relaciones con otros, o sea las diferencias, or-
denan su dispersión y su inconmensurabilidad
mediante una delimitación que fluctúa entre el
orden que hace posible el funcionamiento de la
sociedad, las zonas de disputa (local y global) y
los actores que la abren a lo posible. (Canclini
2004, p. 40)

García Canclini passou de considerar apenas as


“culturas híbridas”, para refletir sobre as tensões que se
criam no espaço intercultural.
Uma outra hipótese acerca da interculturalidade é co-
locada por Zulma Palermo, com um sentido ativista e po-
lítico, como lugar de resistência, como “operación políti-
ca descolonizadora” (Palermo 2005, p. 179). Zulma situa,
nessa perspectiva, uma intercultura, uma interlíngua, uma
interliteratura, uma leitura contrastiva, semelhantes aos
que postulamos nos princípios e nos projetos do nosso
Centro de Estudos Comparativos, e na disciplina “Literaturas
Comparadas Argentina e Brasileira” do Curso de Português,
na Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade
Nacional de Rosario, Argentina.
Coincido com Zulma Palermo na proposta de lei-
tura contrastiva e também com García Canclini, em par-

45
ticular na sua análise da interculturalidade como tensão e
negociação. No entanto, as leituras de ambos não coinci-
dem totalmente entre elas, e na interpretação que Zulma
faz de García Canclini se exerce também alguma forma
de tensão intercultural. É verdade, todavia, que Zulma
não se refere ao livro que estou aqui considerando, e a
sua crítica orienta-se ao conceito de “hibridação”, que o
próprio García Canclini iria discutir. Mas do que se tra-
ta finalmente, do meu ponto de vista, é de descentrar o
nosso olhar, para pensar a interculturalidade como espaço
de questionamento da leitura imposta desde o momento
da colonização.

Uma metodologia possível

Nada melhor do que aprender a ensinar fazendo o


que se pretende ensinar a fazer. É o princípio que norteia
a metodologia da disciplina “Literaturas comparadas ar-
gentina e brasileira”, na UNR. A disciplina visa, de uma
parte, a repor o valor linguístico do estudo da literatura
para a aprendizagem de uma língua estrangeira; da ou-
tra, a abordar a literatura como portadora e produtora de
cultura. O enfoque comparatista se relaciona diretamente
com o intuito de considerar a literatura como espaço e
diálogo de culturas, do encontro com o outro, da inter-
culturalidade.
O programa da disciplina tem um componente
histórico, no que diz respeito à periodização das litera-
turas argentina e brasileira, que se sustenta nas nossas
pesquisas. Desse ponto de vista histórico, é estudado
comparativamente o gênero conto em cada um dos perío-
dos. A escolha do gênero obedece a dois motivos: a breve
extensão dos textos, que permite a análise comparativa

46
de grande número deles, e a produtividade do gênero em
ambas as literaturas em todos os períodos, que facilita
a comparação contrastiva sincrônica e diacrônica. São,
em alguns casos, estudados ensaios e poemas, mas o eixo
central é o conto. Inclui-se ainda uma parte diferenciada
do programa, que estuda a problemática teórica e his-
tórica da literatura infantil, e analisa obras do gênero de
ambos os países.
Ao serem comparados os textos, levam-se em
consideração aspectos temáticos, mas também formais,
incluído o trabalho com as línguas, suas variedades, suas
realizações diatópicas, diastráticas e diafásicas. Analisam-
se, aliás, as estruturas narrativas, as categorias do gênero,
as manifestações retóricas, procurando as diferenças e os
pontos de confluência. Seguem-se as orientações das te-
orias da literatura, que os alunos adquirem na disciplina
“Análise do texto literário em português”. Paralelamente
são discutidos textos teóricos e críticos sobre a proble-
mática da Literatura Comparada e a teoria dos gêneros
textuais.
Assim, o estudo da Literatura Comparada consti-
tui um encontro interdisciplinar entre estudos literários,
estudos linguísticos e estudos das culturas, que tecem
uma rede entre textos, construída por tanto como efei-
to de leitura/s crítica/s. O conceito de interculturalidade,
com o seu olhar sobre as figuras do Outro, rege essas
leituras, e dirige-se tanto às culturas quanto às línguas e às
literaturas. Aquilo que se propõe como objeto de estudo
é também elaborado na prática. O objeto da Literatura
Comparada existe só na leitura. Os textos estão dados,
mas é a leitura contrastiva que faz deles um objeto novo,
plural, intercultural. Dando continuidade às reflexões, ao
final deste capítulo, há uma atividade a realizar.

47
Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de (1963). O baile das quatro estações.


São Paulo: Martins.
AGUIAR E SILVA, V. (1994). Teoria da Literatura. Coim-
bra: Almedina.
BERND, Zilá (org.) (1998). Escrituras Híbridas – Estudos
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Ed. Universidade/UFRGS.
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saios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães Editores.
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gias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana.
________. (2004). Diferentes, desiguales y desconectados – ma-
pas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa.
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los estudios culturales al retorno (imposible) de lo trágico.
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mas”, in: Semiótica 1. Madrid: Fundamentos.
PAGEAUX, Daniel-Henri (1988). “Literatura comparada
e Hispanoamérica.” Palinure, Rev. del CRECIF, nº
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PALERMO, Z. (2005), Desde la otra orilla. Pensamiento crí-
tico y políticas culturales en América Latina. Córdoba:
Alción Editora.
PIZARRO, Ana (coord.) (1985). La literatura latinoamerica-
na como proceso. Buenos Aires: CEDAL.

48
ATIVIDADES PROPOSTAS

Proponho aqui alguns exemplos de trabalhos que os estu-


dantes – futuros professores – realizam e que podem orien-
tar algumas atividades do estágio

PRINCÍPIOS TEÓRICOS:
a) Compare os começos das literaturas argentina e bra-
sileira, levando em consideração a língua, o período
histórico, as produções literárias, que caracterizam a
época.
b) Escolha um período das literaturas argentina e brasilei-
ra em que situações comuns sejam dadas, e desenvol-
va os traços fundamentais.
c) Desenvolva de forma concisa os itens abaixo:
1. A problemática da periodização em Literatura
Comparada. Diferentes formulações.
2. Proposta de periodização das Literaturas Com-
paradas Argentina e Brasileira: O critério ado-
tado para o programa da disciplina LCAB do
Curso de Português da UNR.

ANÁLISE COMPARATIVA DE TEXTOS LITERÁRIOS


1. Escolha um eixo de comparação entre os seguintes
(pode escolher mais de um):
a) língua (como tema e como forma)
b) narrador
c) personagens
d) espaço
e) tempo
f) diegese (organização da história)
g) aspectos temáticos relativos à sociedade e sua
apresentação formal.

49
2. Escolha um conto de Pago Chico, de Roberto J. Payró,
e um conto de Papéis Avulsos, de Machado de Assis.
2.1. Situe os autores no período.
2.2. Analise comparativamente esses contos, segun-
do o/s eixo/s escolhido/s.
3. Escolha um conto de El jorobadito, de Roberto Arlt, e un
conto de Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade
3.1. Situe os autores no período.
3.2. Analise comparativamente esses contos, segun-
do o/s eixo/s escolhido/s.

TRABALHO FINAL (de conclusão)


ROTEIRO DE TRABALHO:
1. Quadro histórico-social dos períodos e breve conside-
ração sobre a problemática da interculturalidade.
2. Análise
2.1. Escolher um gênero:
A) conto
B) literatura infantil
C) poesia lírica
2.2 Dentro do gênero, escolher dois autores de um
período (um brasileiro e um argentino) e um
texto de cada um, pertencente aos livros lidos
durante o desenvolvimento das aulas e que
constam do programa.
2.2.1 Dar os traços gerais do gênero no qua-
dro do período.
2.2.2. Situar os dois autores dentro do perí-
odo, dando, comparativamente, as ca-
racterísticas de sua escritura.
2.2.3 Comparar os livros de ambos os autores
(organização, temas).
2..2.4. Comparar os textos escolhidos, dando to-
dos os seus traços, segundo o gênero, e
aplicando a análise comparativa a todas
as categorias.

50
Capítulo 3
APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA
DE O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA
E AS TRADUÇÕES FRANCESAS
NO SÉCULO XIX

Ilana Heineberg

Se Peri e Ceci são referências conhecidas para


grande parte dos brasileiros do século XXI, confirmando
a inserção de O guarani (1857) na tradição literária nacio-
nal, não se pode afirmar que o romance de José de Alen-
car esteja bem cotado junto ao público e à crítica atuais.
O discurso sobre a obra do escritor cearense reprova o
artificialismo, a emotividade e o nacionalismo ingênuo,
revelando que a recepção do autor permanece “herdeira
de sua primeira recepção crítica” (Boechat 2003, p. 12).
Ainda é possível ler com prazer O guarani nos dias de
hoje? Como ajudar o público jovem a tirar proveito dessa
leitura para compreender não apenas a vertente indianista
do romantismo brasileiro, mas também o contexto literá-
rio e jornalístico do século XIX? Propomos aqui que O
guarani seja estudado em sala de aula a partir de dois as-
pectos: sua inserção na matriz folhetinesca e sua recepção
em âmbito internacional através das traduções francesas
que foram feitas deste texto ainda no século XIX.
51
O romance-folhetim e a construção
do romance brasileiro

O guarani foi inicialmente publicado nas páginas


do Diário do Rio de Janeiro. Foram 59 episódios que circu-
laram entre 1/1/1857 e 20/4/1857. A seguir, a própria
tipografia do jornal imprimiu o romance em livro sem
grandes modificações. Trata-se, portanto, de um roman-
ce-folhetim, ou seja, de uma narrativa publicada de ma-
neira seriada no espaço chamado de folhetim ou rodapé,
rubrica localizada na parte inferior da página de um pe-
riódico, geralmente na capa (confira Heineberg 2004 e
Meyer 1996).
O objetivo dos periódicos ao distribuir essa fatia
de ficção cotidiana era, num primeiro momento, atrair
e manter o número de assinantes, tornando-se então
interessante para os anunciantes. Ou seja, o sucesso do
romance-folhetim contribuía à saúde financeira do veí-
culo. A ideia de utilizar o espaço do folhetim, que até
então abrigava crônicas, para a ficção coube ao empresá-
rio francês Émile Girardin, proprietário de La presse, em
1836. Girardin foi imediatamente imitado por inúmeros
jornais franceses e estrangeiros. A descontinuidade da
narrativa, a popularização e a diversificação do público
leitor, a proximidade com o texto jornalístico e a práti-
ca da leitura oral e coletiva explicam que, aos poucos, o
romance-folhetim forjasse uma poética própria: multipli-
cam-se as peripécias e os personagens, estes geralmente
polarizados por um forte maniqueísmo; o narrador faz-
se presente no texto e interpela o leitor para guiá-lo na
intriga.
No Brasil, o romance-folhetim aclimatou-se ra-
pidamente, cumprindo uma dupla função: por um lado,
tornou rapidamente acessíveis os últimos sucessos roma-
nescos europeus para um público emergente e, por outro,

52
serviu de trampolim aos escritores nacionais, apresentan-
do-se como alternativa para publicar e circular em um
mercado editorial ainda pouco estruturado (Heineberg
2008, p. 498). Assim, o Jornal do Commercio publicou a nar-
rativa brasileira O aniversário de D. Miguel em 1828 em 1839,
apenas três anos depois do lançamento do romance-fo-
lhetim pela matriz francesa. Vale lembrar que a impres-
são de livros e jornais no Brasil só foi autorizada a partir
de 1808, com a transferência da família real para o Rio
de Janeiro. Antes disso, os autores nacionais precisavam
passar por editoras e tipografias estrangeiras, geralmente
portuguesas, a fim de circular no Brasil. O atraso editorial
de 300 anos em relação à América espanhola explica a de-
sestruturação do mercado editorial brasileiro e, portanto,
o papel essencial da imprensa na publicação de autores
nacionais e estrangeiros e na própria formação do gênero
romance no Brasil.
Aos estudar as narrativas publicadas entre 1839 e
o final da década de 1870 no Jornal do Commercio, Diário do
Rio de Janeiro e Correio mercantil, principais diários flumi-
nenses, pude discernir três fases do processo de forma-
ção do romance-folhetim: a mimética, a de aclimatação e
de transformação do gênero.1 Vou expô-las brevemente
antes de deter-me na publicação de O guarani.
São exemplos da fase mimética diversos textos na-
cionais publicados no folhetim do Jornal do Commercio em
1839, ano particularmente profícuo para autores brasilei-
ros que, na década seguinte, passam a ser preteridos em
favor de estrangeiros. Entre textos importados de autores
populares franceses, como Paul de Kock, Eugène Scribe
e Alexandre Dumas, esse diário sisudo e conhecido por

1. Abordei a formação do romance-folhetim em minha tese de


doutorado (Heineberg 2004) e retomei posteriormente os
principais pontos desse trabalho num capítulo publicado no
Brasil (Heineberg 2008).

53
sua linha conservadora publica narrativas assinadas por
brasileiros que trabalham como tradutores, cronistas e
jornalistas. O que nos permite denominar esses textos de
miméticos é justamente o fato de confundirem-se com
textos importados que servem de modelo para a incipien-
te produção nacional. A aparência de narrativa estrangei-
ra decorre do fato de a maioria deles situar sua intriga na
França, em Portugal ou na Itália. O que está por trás des-
sa vontade, consciente ou não, de travestir-se de roman-
ces estrangeiros? Provavelmente fatores variados, como
uma exigência do jornal, a preferência do público e a pró-
pria falta de hábito de se publicar romances nacionais.
Para Flora Sussekind, a ficção nacional, para se construir,
estabelece um “diálogo (mais ou menos) estreito, porém
inevitável com o jornal, o romance e os folhetins estran-
geiros, que parecem compreender a atividade literária
possível do país na época” (Sussekind 2000, p. 99).
Além da preferência pelo cenário europeu, en-
contramos nos textos miméticos narradores que muitas
vezes se confundem com tradutores. A abertura de A pai-
xão dos diamantes, de Justiniano José da Rocha, é um bom
exemplo:

Será inventada, será imitada, será original a no-


vela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem eu
mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra
existe em dois volumes, e em francês, que se
ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus
desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi
-los aos limites de apêndices, cerceando umas,
ampliando outras circunstâncias, traduzindo os
lugares em que me parecia dever traduzir, subs-
tituindo com reflexões minhas o que me parecia
dever ser substituído; uma coisa só tive em vista,
agradar-vos; Deus queira que tenha consegui-
do. (Jornal do Commercio, 27/3/1839, p. 1)

54
Nem tradutor, nem autor, a definição mais apro-
priada para essa tarefa que descreve o narrador de Jus-
tiniano José da Rocha é a de adaptador. Os narradores
da fase mimética figuram de maneira insistente no tex-
to e sempre de maneira segura, autoritária e onisciente
diante de um leitor que concebe como ingênuo e dócil.
Exemplo disso são as inúmeros explicações e informa-
ções enciclopédicas disseminadas nos textos. No entan-
to, é justamente a insistência constante sobre os papéis
narrativos do leitor e do narrador que acaba por revelar a
inexperiência e a insegurança deste último.
Entre 1839 e a década de 1850, os romances-fo-
lhetins publicados nos três principais jornais do Rio de
Janeiro passam a acompanhar a tendência nativista do
romantismo. Fincam os pés no território nacional, ora
optando por um panorama geral do Brasil, como encon-
tramos em A providência (1854), de Teixeira e Sousa, ora
seguindo uma tendência regionalista, fixando-se no inte-
rior. A dimensão histórica é outro aspecto fundamental
desses folhetins que dividem-se entre o resgate do passa-
do colonial e a discussão de questões contemporâneas,
como a escravidão. Os romances dessa fase de aclima-
tação mantêm o molde folhetinesco. Uma característica
marcante é a multiplicação de vozes e dos níveis narrati-
vos e, consequentemente, das peripécias.
É somente nas décadas de 1860 e 1870 que a pro-
dução nacional folhetinesca consolida-se e deixa de lado
a simples reprodução do modelo importado, o que não
significa necessariamente a negação deste. Pelo contrário,
os procedimentos narrativos apontam para o folhetines-
co muitas vezes pelo viés do humor e da paródia. Na
medida em que o sistema literário brasileiro está em vias
de estabilização, a presença constante do narrador e os
seus comentários sobre a narração do texto, que serviam
unicamente para tornar a intriga e a narração claras para
o leitor, agora, através do exagero, tornam o folhetinesco

55
risível. O melhor exemplo disso é a maestria com a qual
Machado de Assis dirige-se ao leitor em seus contos e ro-
mances, não mais para guia-lo, mas para impedir qualquer
atitude conformista.

O guarani e a vertente folhetinesca

Parece-me evidente que O guarani situa-se no mo-


mento de aclimatação. A busca da cor local, própria à
estética romântica de Alencar, alia-se às técnicas folheti-
nescas do suspense e da multiplicação das peripécias. Ou
seja, trata-se de um romance construído aos moldes do
folhetim mas com uma temática e sobretudo um projeto
de construção da literatura nacional, idealizado pelo pró-
prio Alencar e sistematizado por ele em 1872, no prefá-
cio a Sonhos d’ouro intitulado “Benção paterna” (Alencar
1872[1959, vol. I]).
A relação de Alencar com a imprensa2 também pre-
cisa ser levada em conta para se compreender a dimensão
folhetinesca de O guarani. Ocupou o cargo de folhetinista
e de cronista jurídico no Correio mercantil entre setembro
de 1854 e julho de 1855. Anteriormente, fora indicado
para assinar o célebre folhetim do Jornal do Commercio, mas
foi preterido por Justiniano José da Rocha, jornalista mais
experiente. Em 1856, assumiu a chefia de redação do Diá-
rio do Rio de Janeiro e transferiu para as páginas deste os fo-
lhetins Ao correr da pena. Alencar buscou rapidamente aliar
o jornalismo à literatura. Entre 18/6/1856 e 15/8/1856,
publicou Cartas sobre “A confederação dos Tamoios” critican-
do a obra poética de Gonçalves de Magalhães financia-
da pelo imperador. A seguir, ofereceu aos assinantes do

2. Sobre esse aspecto da biografia de Alencar, consultar: Broca


1960 e Freches 1974-1975.

56
Diário sua primeira novela – Cinco minutos – fatiada em
sete episódios e anônima como uma espécie de brinde de
Natal. O sucesso se confirmou pela publicação imediata
de O guarani, também anônimo, abrindo o ano de 1857.
A viuvinha foi a terceira e última narrativa de Alencar pu-
blicada no Diário, embora tenha sido bruscamente inter-
rompida e somente retomada três anos depois na futura
edição em livro. Fica evidente, portanto, que o jornalismo
constituiu uma passagem importante para a consagração
de Alencar enquanto romancista. Vê-se ainda que ele co-
nhecia perfeitamente a importância da imprensa para a
afirmação e a publicação de um escritor no Brasil de seu
tempo. Alencar utilizaria inclusive a tipografia do Diário
para publicar em livro seus primeiros romances.3
Em sua autobiografia intelectual Como e porque sou
romancista, Alencar descreve como a redação de O guarani
foi marcada pela pressão do jornalismo:

No meio das labutações do jornalismo, oberado


não somente com a redação de uma folha diária,
mas com a administração da empresa, desem-
penhei-me da tarefa que me impusera, e cujo
alcance eu não medira ao começar a publicação,
apenas com os dois primeiros capítulos escritos.

3. É importante notar que, no que diz respeito ao Guarani, Alen-


car realiza uma edição em livro imediatamente após a publica-
ção em folhetins. Uma nota preliminar assinada por “J. de Al.”
é datada de “Fevereiro de 1857”, ou seja, quando o romance
ainda circulava no Diário do Rio de Janeiro. Essa republicação
quase concomitante justificaria inclusive, segundo o próprio
Alencar, certas falhas do livro: “Este ensaio de romance na-
cional é filho de uma inspiração de momento, foi escrito fo-
lhetim por folhetim para o DIÁRIO. Não é pois senão um
esboço ou para falar em linguagem de jornalista, uma prova
tipográfica, que talvez algum dia me disponha a rever. Tem
muitas incorreções de estilo, e talvez mesmo alguma inexati-
dão de fatos” (Alencar 1857, p. 2)

57
Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava
por assim dizer na mesa do trabalho, e escrevia
o resto do capítulo começado no dia anteceden-
te para enviá-lo à tipografia. Depois do almoço
entrava por novo capítulo que deixava em meio.
Saía então para fazer algum exercício antes do
jantar no “Hotel Europa”. A tarde, até nove ou
dez horas da noite, passava no escritório da re-
dação, onde escrevia o artigo editorial e mais o
que era preciso. [...]
Nossa casa no Largo do Rocio, n° 73 estava em
reparos. Trabalhava eu num quarto do segun-
do andar, ao estrépito do martelo, sobre uma
banquinha de cedro que apenas chegava para o
mister da escrita, e onde a minha velha casei-
ra Ângela servia-me parco almoço. Não tinha
comigo um livro, e socorria-me unicamente a
um canhedo, em que havia em notas o fruto de
meus estudos sobre a natureza e os indígenas do
Brasil. (Alencar 1873[1958, pp. 147-148])

Escrito concomitantemente à publicação, o ro-


mance carrega as marcas estilísticas desse ritmo simul-
taneamente acelerado e descontínuo que acabaram por
constituir a poética folhetinesca. Para contrabalançar a
interrupção dos episódios e a possível incorporação de
novos leitores no decorrer da publicação, o narrador in-
cumbe-se a tarefa de guiar o público, cumprindo aquilo
que Gérard Genette chama de uma “metalepse de autor”
(Genette 1972, pp. 244-246), ou seja, o narrador em ter-
ceira pessoa introduz-se repentinamente na ficção para
guiar o leitor. Utilizando a primeira pessoa do plural, o
narrador de O guarani toma o leitor pela mão, move-se
com ele pelos cenários: “É necessário que tornemos ao
lugar onde deixamos Loredano e seus dois companhei-
ros” (Diário do Rio de Janeiro, 8/2/1857, p. 2). Esse recur-

58
so também é utilizado para retomar a narrativa de certos
acontecimentos: “É tempo de continuar esta narração
interrompida pela necessidade de contar alguns fatos an-
teriores. Voltemos pois ao lugar em que se achava Lore-
dano e seus companheiros [...]” (Diário do Rio de Janeiro,
27/1/1857, p. 1). A metalepse serve ainda para que o
narrador formule questões visando a atiçar a curiosidade
do público: “Que fazia aquele homem deitado que fin-
gia dormir, e que tinha o punhal desembainhado na mão
como se estivesse pronto a ferir? Que significa aquela
pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam?
Que queria dizer a palha encostada à porta do escudei-
ro?” (Diário do Rio de Janeiro, 16/2/1857, p. 1). Onipresen-
te na narrativa, o narrador deve ainda dar a cada episódio
uma certa autonomia em relação ao todo. Ou seja, precisa
fornecer informações que permitam ao leitor situar-se na
intriga independentemente do conhecimento dos episó-
dios anteriores.
Além disso, é preciso que cada folhetim se una ao
subsequente, atendendo à sua vocação inicial de atrair
novos assinantes para o jornal e de fidelizar os antigos.
Essa é a função do suspense ao final de cada episódio
que constitui o gancho para o seguinte. Para tanto, o nar-
rador pode optar por fechar um capítulo com um acon-
tecimento totalmente inesperado ou então surpreender
o leitor, atiçando sua curiosidade pelo suspense total:
“Cecília soltou um grito, e debruçou-se no parapeito da
janela” (Diário do Rio de Janeiro, 29/1/1857, p. 1). Outra
estratégia possível é antecipar certos fatos que serão nar-
rados no episódio seguinte sempre mantendo certa dose
de suspense: “Mal sabia ele [Álvaro] que nesse momento
o fecho da clavina movido por um dedo seguro caía, e
que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano”
(Diário do Rio de Janeiro, 27/1/1857, p. 1). A promessa de
continuidade é retomada no final ao pé da do folhetim
através da inscrição “Continua”, uma adaptação do fran-

59
cês “La suíte au prochain numéro” (literalmente, a continua-
ção no próximo número).
A presença dessas características folhetinescas nos
revela que, além de simplesmente submeter-se à pressão
da escrita diária, Alencar soube realmente tirar proveito
do suporte de publicação jornalístico. A principal prova
disso é que cada capítulo de O guarani coincide perfei-
tamente com o espaço do folhetim. Enquanto redator-
chefe, vendo desfilar inúmeros romances-folhetins e,
provavelmente, participando inclusive da edição desses, o
escritor cearense conhece a importância do gancho para
a continuidade da leitura e está consciente de que, mal
fatiado pelo editor, um romance repleto de suspense e
repetições não terá o mesmo efeito sobre o leitor. Afi-
nal, o gancho, estrategicamente, é uma isca oferecida ao
público: precisa estar colocado no final do folhetim. A
repetição, por sua vez, constitui uma adaptação à prática
de leitura4 folhetinesca que é, por definição, descontínua.
Ou seja, só faz sentido quando se refere a fatos mencio-
nados em episódios precedentes que provavelmente não
estão diante dos olhos do leitor. Na leitura de um livro
tradicional, pode-se facilmente voltar algumas páginas
para rememorar-se dos fatos narrados, ao passo que o
suporte do jornal dificulta essa tarefa, pois não oferece
o romance na sua totalidade. Ao observarmos a maioria
dos folhetins estrangeiros, e mesmo brasileiros, publicada
no corpus dos jornais estudados, fica evidente que eram ra-
ros os romances-folhetins que ofereciam, como é o caso
de O guarani, tanta adequação à leitura folhetinesca. Tra-
ta-se de uma aliança perfeita entre jornalismo e literatura,

4. O uso da expressão “prática de leitura” é aqui tomado em-


prestado de Roger Chartier (Chartier 1993, p. 80-81). Segundo
o historiador do livro e da leitura, os suportes de impressão e
a maneira como eram lidos (leitura em voz alta, silenciosa, co-
letiva, individual etc.) determinam o próprio sentido do texto
para cada leitor.

60
afinal não foi apenas a disposição do romancista Alencar
em submeter-se à escrita diária e ao espaço do folhetim,
mas também a boa vontade do editor-chefe Alencar em
manter o corte do texto.
Além dessas marcas textuais, a produção folheti-
nesca ao “correr da pena” permite ao autor ter acesso
às reações dos leitores e inclusive adaptar a intriga em
função das expectativas do público. É muito conhecida
a anedota, preservada pela família de Alencar, de que as
primas (na versão de Araripe Júnior) ou as irmãs (na ver-
são de Raquel de Queirós) o teriam obrigado a modificar
o final do romance, em que todos morriam no incêndio
da Casa do Paquequer. Cavalcanti Proença utiliza o de-
poimento de Alencar sobre a escrita de O guarani que cita-
mos acima para demonstrar que não havia tempo entre a
escrita e a publicação para que “submetesse o romance a
júri familiar; as irmãs e as primas liam o folhetim era mes-
mo no jornal” (Proença 1958, p. 28). De qualquer forma,
a publicação em folhetins impõe a todos os leitores um
mesmo ritmo de leitura ditado pela imprensa diária, que
promove uma pausa obrigatória entre os episódios que
é propícia ao comentário, à divagação, à interrogação e
às discussões com o autor. Assim, embora condenado a
finalizar um episódio no final da manhã para a publicá-lo
na mesma tarde, Alencar certamente tinha um retorno
contínuo dos seus leitores, o que sem dúvida pesava no
destino dos personagens. O depoimento de Taunay é
conclusivo sobre o sucesso da edição em folhetins:

[...] ainda vivamente me recordo do entusias-


mo que despertou, verdadeira novidade emo-
cional, desconhecida nesta cidade tão entregue
às exclusivas preocupações do comércio e da
bolsa, entusiasmo particularmente acentuado
nos círculos femininos da sociedade fina e no
seio da mocidade, então muito mais sujeita ao

61
simples influxo da literatura, com exclusão das
exaltações de caráter político. Relembrando,
sem grande exageração, o célebre verso : “Tout
Paris pour Chimène a les yeux de Rodrigue”, o Rio de
Janeiro em peso, para assim dizer, lia O guarani
e seguia comovido e enleado os amores tão pu-
ros e discretos de Ceci e Peri e com estremeci-
da simpatia acompanhava, no meio dos perigos
ardis dos bugres selvagens, a sorte vária e peri-
clitante dos principais personagens do cativante
romance, vazado nos moldes do indianismo de
Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo
estilo é tão caloroso, opulento, sempre terso,
sem desfalecimento e como perfumado pelas
flores exóticas das nossas virgens e luxuriantes
florestas. Quando a S. Paulo chegava o correio,
com muitos dias de intervalos então, reuniam-se
muitos e muitos estudantes numa república, em
que houvesse qualquer feliz assinante do Diário
do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de
vez em quando, por elétrico frêmito, a leitura
feita em voz alta por alguns deles, que tivesse
órgão mais forte. E o jornal era depois disputa-
do com impaciência e pelas ruas se via agrupa-
mentos em torno dos fumegantes lampiões da
iluminação pública de outrora – ainda ouvintes
a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor.
(Taunay 1923, pp. 85-86)

Traduções francesas e a permanência do folhetinesco

Ao estudar as traduções de O guarani para a lín-


gua francesa ainda no século XIX, percebe-se que o ro-
mance de Alencar suscitou interesse fora das fronteiras
nacionais, afinal possui três publicações em francês. Ao
62
ser transferido para o contexto cultural francês, O guarani
foi recebido como um romance folhetinesco? A cor local
teria sido um atrativo? O que restou da classificação “ro-
mance histórico” ou “indianista”, como a crítica nacional
geralmente o aponta?5 Para responder a essas questões,
convém nos focalizarmos na descrição dos suportes de
publicação adotados e sobretudo no discurso que acom-
panham o texto (prefácios, anúncios).
O jornal Le Brésil, que publicou a primeira versão
em francês de O guarani, em 1863, apesar das aparências,
não era um periódico publicado francês. Semanário im-
presso no Rio de Janeiro, redigido em francês, tampouco
dirigia-se à comunidade francesa no Brasil. Tratava-se de
um semanário transatlântico, como indica o subtítulo:
“Esse jornal destinado a colocar o Brasil em relação com
a Europa circula quatro vezes por mês na chegada e na
saída dos paquetes transatlânticos”6 (Le Brésil, janeiro de
1863, s/d exata, p. 1). Ou seja, seu público era formado
por brasileiros e europeus em deslocamento entre o Ve-
lho e Novo mundo. A escolha do francês explica-se por
ser a língua hegemônica do século XIX. O proprietário
de Le Brésil, Flávio Farnese, assim como seus redatores,
são oriundos do jornal Atualidade e defensores das ideias
republicanas e liberais. Segundo o editorial publicado no
primeiro número, o objetivo do novo veículo era “mos-

5. Augusto Meyer negou categoricamente essa ideia: “Eu por


mim confesso humildemente que não vejo indígenas na obra
de Alencar, nem personagens históricas, nem romances histó-
ricos; vejo uma poderosa imaginação que transfigura tudo, a
tudo atribui um sentido fabuloso e não sabe criar senão den-
tro de um clima de intemperança fantasista” (Meyer 1958, p.
11). A respeito da recepção crítica da obra alencariana, con-
sultar o capítulo IV “Ficção crítica”, de Paraísos artificiais (Boe-
chat 2003).
6. “Ce journal destiné à mettre le Brésil en relation avec l’Europe
paraît quatre fois par mois à l’arrivée et au départ des paquebots
transatlantiques” (a tradução desta e de todas as citações do
francês presentes nesse texto são de minha responsabilidade).

63
trar à Europa esse país tal como ele é do ponto de vista,
social, político, literário, religioso, industrial e comercial”7
(id. ibid., p. 1), fazendo dele uma verdadeira “tribuna de
propaganda”, conforme o anúncio publicado no Diário do
Rio de Janeiro (10/1/1863, p. 1).
Desse modo, a tradução anônima de O guarani no
folhetim do Brésil deve ser entendida como uma forma de
divulgação da produção literária nacional. É justamente
desse modo que o romance será anunciado: “No próximo
número, além de outros artigos sobre questões internas
do Brasil, começaremos a publicação do Guarany, um dos
romances brasileiros de maior mérito. Isso dará à Europa
um espécime do nosso desenvolvimento literário”8 (id.
ibid., p. 1). A tradução permaneceria incompleta depois
do desaparecimento do veículo que teve uma circulação
efêmera de poucos números. Quanto ao recorte dos epi-
sódios, nota-se que cada capítulo não coincide com o es-
paço de um folhetim, como era o caso da publicação no
Diário do Rio de Janeiro.
Muito diferente foi a tradução do romance de
Alencar feita por Louis-Xavier de Ricard, um homem de
letras francês que morara no Brasil na década de 1880.
Acreditamos que a sugestão de publicar O guarani tenha
partido do próprio tradutor, então colaborador do Droits
de l’homme, diário conhecido por sua posição em favor
de Dreyfus no caso que agitava a França naquele ano de
1899.9 Vejamos como o jornal anunciou o primeiro epi-
sódio do romance brasileiro:

7. “montrer à l’Europe ce pays tel qu’il est sous le point de vue


social, politique, littéraire, religieux, industriel et commercial”.
8. “Dans le prochain numéro, en outre d’articles concernant les
affaires intérieurs du Brésil, nous commencerons la publi-
cation du Guarany, l’un des romans brésiliens du plus grand
mérite. Cela donnera en Europe un spécimen de notre déve-
loppement littéraire.”
9. O caso Dreyfus foi um conflito social e político em torno
da acusação de traição do capitão judeu Alfred Dreyfus que

64
Começamos hoje a publicação de um novo fo-
lhetim:

Os Aventureiros
de
O Guarani
Esse romance de aventuras, o mais popular do
mais célebre romancista em língua portuguesa
José de Alencar, cativará certamente os nossos
leitores e as nossas leitoras pela enérgica oposi-
ção de caracteres, pela dramaticidade das peripé-
cias e dos episódios inesperados e pelo pitores-
co dos quadros no meio dos quais se desenvolve
uma ação das mais patéticas que não deixará de
interessar o leitor um só instante.
O romance Os aventureiros foi traduzido espe-
cialmente para Les droits de l’homme pelo nosso
colaborador Xavier de Ricard. (Les droits de l’hom-
me 15/01/1899, p. 1)10

dividiu a França entre 1894 e 1906. O primeiro julgamento


sumário de Dreyfus em 1895 revelou o antissemitismo pre-
sente nas forças armadas e em diversos setores da sociedade.
A imprensa tomou parte nos debates, dividindo-se entre veí-
culos defensores e acusadores de Dreyfus. O exemplo mais
conhecido em defesa do capitão Dreyfus foi Émile Zola, com
o célebre artigo J’accuse publicado em 1898 no jornal L’Aurore.
O caso encerrou-se depois de um novo julgamento que ino-
centou o capitão e com a sua reabilitação em 1906.
10.
“Nous commençons aujourd’hui la publication d’un nouveau
feuilleton:
Les Aventuriers
de
Le Guarani
Ce roman d’aventures, le plus populaire du plus célèbre ro-
mancier en langue portugaise José de Alencar passionnera
certainement nos lecteurs et nos lectrices par l’énergique
opposition des caractères, le dramatique de l’imprévu des
péripéties et des épisodes, et le pittoresque des tableaux au
milieu desquels se déroule une action des plus pathétiques qui

65
Fica evidente que as questões do nacionalismo e
do indianismo do romance em nada interessavam o ve-
ículo que o publicou. Embora fosse um veículo voltado
para a informação, parece-nos que o espaço do folhetim
abarcava um público bastante amplo. O título do roman-
ce em francês (designação da primeira parte na versão
original) sintetiza perfeitamente o discurso que acompa-
nha o romance: prioridade à aventura em detrimento da
origem autóctone do herói. Ou seja, o interesse da pu-
blicação explica-se pelas características folhetinescas do
texto, sugerindo o maniqueísmo, a presença do suspense
e o número elevado de peripécias que prometem man-
ter o leitor fisgado e sob tensão. Em segundo lugar, a
descrição da natureza contribui para a construção de um
cenário pitoresco, exótico e, portanto, atrativo. No en-
tanto, apesar dessas características, a origem do romance
jamais é mencionada. José de Alencar torna-se, no anún-
cio, “o mais célebre romancista em língua portuguesa”.
Seu nome, no entanto, aparece com menos destaque do
que o de seu tradutor.
Em 1902, a editora popular Tallandier republi-
cou a tradução de Ricard em sua coleção “Bibliothèque
des grandes aventures”, voltada principalmente para
o público juvenil, com ligeiras correções. As obras que
integraram o mesmo selo eram muitas vezes de autores
estrangeiros, embora a menção “tradução” não fosse
mencionada sistematicamente. O carro-chefe da coleção
era o romancista popular Louis Boussenard com sua série
Le tour du monde d’um gamin de Paris. É interessante notar
que a maioria dos textos de Boussenard era antes publica-
da no Journal des voyages, periódico voltado para o público
infanto-juvenil, contendo narrativas de viagem e aventu-

ne laisse pas languir l’intérêt un seul instant.


Le roman Les Aventuriers a été traduit spécialement pour les
Droits de l’Homme par notre collaborateur Xavier de Ricard”,
(Les droits de l’homme 15/01/1899, p. 1).

66
ra, artigos e ilustrações. Para Tallandier, a publicação pré-
via em folhetins era certamente uma maneira de “testar”
a narrativa junto ao público. A republicação posterior de
romances-folhetins em livro era um procedimento bas-
tante comum na época.
A partir desses elementos, podemos inferir que Ri-
card, depois da publicação em folhetins, optou por ado-
tar um suporte condizente às características folhetines-
cas. Uma mudança de título acompanhou a nova edição.
Le fils du soleil (O filho do sol) apresenta certa familiaridade
com outros títulos da coleção (como La fille des vangues ou
Les faisaieurs de pluie), associando fenômenos da natureza e
um ser humano que vive primitivamente, deixando entre-
ver um gosto pelo exótico. Além disso, a alteração evitava
a redundância entre o título da edição em folhetins, Les
aventurier ou Le guarani, e o da coleção “Bibliothèques des
grandes aventures”. Apenas uma discreta indicação do
subtítulo entre parênteses – Les aventuriers ou Le guarani –
remetia, na página de rosto, à publicação anterior.
Ricard aproveitou a nova edição e o suporte do li-
vro para redigir uma apresentação do romance brasileiro.
O prefácio, dirigido a seu amigo Rémy Couzinet, ofere-
ce algumas pistas importantes sobre a maneira como se
desejava agora passar O guarani ao público francês. Num
primeiro momento, o tradutor faz alusão à latinidade:11
“Já estamos por demais ameaçados de perdermos essa
virtude de ponderação e equidade que constitui boa par-
te do nosso gênio latino”12 (Ricard 1902, p. V). Ricard

11. O tema marcou as relações França-Brasil entre o final do sé-


culo XIX e início do século XX, fazendo com que a França
se visse como a “irmã mais velha das repúblicas latino-ameri-
canas” (Rivas 2006, p. 243). A fraternidade latina ganha força
depois da derrota da Guerra Franco-Prussiana (1870) e opõe-
se às ideologias pan-eslavistas e pangermanistas.
12. “Nous ne sommes déjà que trop menacés de perdre cette vertu de
pondération et d’équité qui est presque tout notre génie latin”.

67
defendera essas ideias quando dirigiu o jornal Le sud-amé-
ricain,13 durante sua estada no Brasil e em artigos que saí-
ram na imprensa francesa. A escolha da tradução é apre-
sentada, portanto, como um passo em direção à América
Latina: “devemos nos apressar em retomar a fecundidade
íntima de outrora com os nossos compatriotas de raça.
Essa tradução, meu caro, é uma tentativa nesse sentido”14
(id. ibid., p. V).
Numa segunda parte do prefácio, Ricard trata de
introduzir Alencar e O guarani. Alertando que não cederá
à habitual mania dos tradutores de exagerar no mérito da
obra, afirma com uma sinceridade surpreendente: “José
de Alencar tem certamente o seu lugar e numa posição
bastante honrosa na literatura brasileira. Mas ele não é um
desses gênios indispensáveis cuja ausência faria falta na
história intelectual da humanidade”15 (id. ibid., p VI). Ou
seja, na interpretação de Ricard, Alencar teria um lugar de
prestígio dentro da literatura brasileira, mas dispensável
fora de seu sistema de origem. O tradutor não deixa de
fazer referência à importância da literatura indianista de
Alencar, explicando que o escritor provocou em seu país
“um movimento interessante e útil rumo às origens indí-
genas desse império imenso”16 (id. ibid., p VI). Com um
lapso interessante, que, aliás, ele já cometera no anúncio
do Les droits de l’homme, completa: “o romancista portu-
guês, ao contrário [de outras nações americanas], fundava

13. Sobre a atuação de Ricard no periódico Le sud-américain, con-


sultar: Batalha 2001.
14. “il faut nous hâter de reprendre nos fécondités intimes d’au-
trefois avec nos compatriotes de races. Cette traduction, mon
cher, ami, est une tentative vers ce retour”.
15. “José de Alencar a certainement une place marquée et à un
rang fort honorable dans la littérature brésilienne. Mais il n’est
pas un de ces génies indispensables dont l’absence ferait la-
cune dans l’histoire intellectuelle de l’humanité”.
16. “un mouvement intéressant et utile vers les origines indigènes
de cet empire immense”.

68
a esperança da nascente nacionalidade brasileira na fusão
da raça conquistada com a raça conquistadora”17 (id. ibid.,
p VI). O lapso que Ricard comete ao chamar Alencar de
“romancista português” pode ser explicado pela própria
posição do tradutor que, de fora, enxerga o projeto de
Alencar como estando mais focado na legitimação da co-
lonização do que na fundação da nacionalidade brasileira.
Nas palavras do tradutor, Alencar pretende, através de
sua obra: “legitimar a antiga conquista portuguesa atra-
vés de uma assimilação tão íntima dos vencedores e dos
vencidos que esses acabam por formar um povo novo
em que não se pode mais distinguir um do outro numa
posteridade que contém ambos”18 (id. ibid., p. VI).

Considerações finais

Levando-se em conta tanto os suportes nos quais


O guarani foi publicado em francês quanto os discursos
em torno do romance, parece-nos evidente que sua voca-
ção folhetinesca inicial persistiu no contexto francês. No
que diz respeito aos suportes, as traduções dos periódicos
Le Brésil e Les droits de l’homme confirmam a adequação do
romance de Alencar a esse espaço reservado ao entrete-
nimento do leitor décadas depois da sua estreia no Diário
do Rio de Janeiro. A peripécia, outra característica folheti-
nesca, permaneceu em destaque quando o romance de
Alencar passou do jornal para o livro na França, como

17. “le romancier portugais, au contraire [d’autres nations améri-


caines], fondait l’espoir de la naissante nationalité brésilienne
sur la fusion de la race conquise avec la race conquérante”.
18. “légitimer l’ancienne conquête portugaise par une assimila-
tion, si intime des vainqueurs et des vaincus qu’ils forment un
peuple nouveau où l’on ne puisse les reconnaître les uns des
autres dans une postérité qui les contienne tous ensemble.”

69
prova sua inserção numa coleção de livros juvenis e de
aventuras.
Os anúncios que acompanharam as duas publi-
cações em folhetins nas versões em francês não deixam
de mencionar a cor local do romance. Le Brésil, que se
pretende uma tribuna de propaganda do país na Europa,
elegeu-o como um caso exemplar da literatura nacional.
Já em Les droits de l’homme a cor local do cenário transfor-
mou-se em algo pitoresco e exótico, sendo arrolada na
lista de “qualidades” do romance-folhetim. Finalmente,
o prefácio de Ricard na edição em livro revela um cer-
to desprezo por Alencar. O tradutor preferiu valorizar o
texto traduzido por sua latinidade e sua “ação singular-
mente dramática e emocionante”19 (id. ibid., p. VIII), que
faria dele um verdadeiro romance de aventuras.
Originalmente escrito dia a dia à medida que era
publicado no Diário do Rio de Janeiro, O guarani moldou-se
perfeitamente ao modelo folhetinesco vindo da França,
acrescentando a este a cor local tão necessária ao roman-
tismo brasileiro. Tanto nas edições brasileiras seguintes,
que nunca seriam consequentemente modificadas por
Alencar, quanto nas traduções francesas constata-se, por-
tanto, a permanência do aspecto folhetinesco. No entan-
to, o discurso em torno dessas características amplamente
presente nas traduções desaparece na maioria das edições
atuais brasileiras. Por isso, a escrita folhetinesca é muitas
vezes deixadas de lado quando se trabalha com O guara-
ni em sala de aula. Ignora-se assim tanto a importância
do romance-folhetim e da imprensa para a formação da
literatura brasileira quanto o impacto da publicação em
jornais sobre o próprio texto. Desse modo, ler O guarani
como quem está diante de um antecessor das telenove-
las talvez seja o melhor caminho para entendê-lo no seu
contexto particular de publicação. Ao final deste artigo,
propomos uma atividade a ser realizada pelo leitor.

19. “l’action singulièrement dramatique et émouvante.”

70
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71
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Paulo: Companhia das letras.
TAUNAY, Visconde de (1923). Reminiscências. São Paulo:
Melhoramentos.

Periódicos

Diário do Rio de Janeiro (consultável a partir do site da he-


meroteca: http://hemerotecadigital.bn.br)
Le Brésil (Rio de Janeiro, 1863)
Les droits de l’homme (Paris, 1899)

72
ATIVIDADES PROPOSTAS

Para conhecer melhor os jornais e o contexto do romance-fo-


lhetim, sugerimos trabalhar com os alunos a partir do site da
Hemeroteca (http://hemerotecadigital.bn.br
http://hemerotecadigital.bn.br). Nele, pode-se
(http://hemerotecadigital.bn.br).
consultar diversos jornais do século XIX e inclusive o Diário
do Rio de Janeiro que publicou em seus folhetins O guarani.
Utilizando a Internet, o aluno poderá realizar um trabalho
transversal unindo as disciplinas da Literatura e da História.

Primeira parte

O professor entra no site da Hemeroteca e mostra aos alu-


nos como efetuar a pesquisa cronológica. Aconselhamos
que seja feita uma busca pelo título do periódico e, a seguir,
por ano e número do jornal. Para encontrar rapidamente O
guarani, é importante lembrar que o romance foi publicado
de 1/1/1857 a 20/4/1857, geralmente na capa, raramente na
segunda página.
Para que diversos aspectos do romance-folhetim sejam abor-
dados, sugerimos dividir a classe em grupos para que cada
um deles realize uma parte da pesquisa. A seguir, propomos
que cada grupo apresente aos outros os resultados obtidos
e que, no final, o professor promova uma discussão entre
todos os grupos.

Segunda parte (em grupos)

Grupo 1: O jornal e o folhetim. Descreva o Diário do Rio


de Janeiro. Escolha um número e procure apontar quais são
as seções do jornal, o número de páginas, o lugar ocupado
pelo folhetim, pelos anúncios publicitários, etc. Procure o
nome de José de Alencar e aponte onde ele aparece e o
destaque que tem. Compare o Diário do Rio de Janeiro com
os jornais atuais que você conhece.

73
Grupo 2: O suspense e o gancho. Releia alguns episódios de
O guarani e procure pelo menos três exemplos de ganchos.
Compare-os: são sempre construídos da mesma maneira?
Quais as estratégias utilizadas pelo narrador? A partir desses
exemplos, procure construir uma definição de gancho.

Grupo 3: As repetições. Vimos que o narrador precisa relem-


brar constantemente o leitor de acontecimentos narrados em
outros episódios devido à particularidade da circulação em
folhetins. Procure exemplos de repetições e explique a sua
função no texto.

Grupo 4: Narrador interpela o leitor. O narrador folhetines-


co atua muitas vezes como um guia para o leitor. Onipotente
e onisciente, é capaz de imobilizar a ação dos personagens
enquanto dirige-se diretamente ao leitor. Encontre exemplos
dessa prática e explique qual é a sua função no texto.
Grupo 5: Multiplicação das peripécias. Num romance-folhe-
tim que se preze, há muitas ações, nem sempre verossímeis.
Encontre exemplos em O guarani e explique qual é o efei-
to dessas peripécias sobre o leitor atual e sobre o leitor da
época.

Terceira parte (discussão final)

A partir das informações apresentadas pelos grupos, o pro-


fessor convida os alunos a compararem as estratégias folhe-
tinescas do gancho, da interpelação do leitor, da repetição,
etc. Qual a utilidade dessas práticas na publicação em jor-
nal? Como elas são percebidas quando lidas em um suporte
tradicional como o livro? Enfim, qual a impressão que essas
características folhetinescas causam no leitor que desconhe-
ce o contexto folhetinesco de O guarani? É importante co-
nhecer o contexto de publicação na imprensa para compre-
ender a recepção do romance em seu tempo?

74
Capítulo 4
APONTAMENTOS COGNITIVOS PARA
UMA DIDÁTICA DA LITERATURA

José Leite de Oliveira Junior

Entendendo que toda disciplina convoca uma


didática própria, espero que este texto possa suscitar
elementos para a construção de uma Didática da Lite-
ratura1 assentada sobre bases cognitivas que respeitem a
progressão intelectual dos educandos. Ao contrário do
que pode parecer, o tema é dos mais lacunosos dentre os
múltiplos ramos de aplicação da Didática. Embora muito
se discuta sobre a importância do texto literário na escola,
pouco se produziu sobre o assunto, pelo menos sob um
enfoque cognitivo.
Quando falo sobre o domínio cognitivo, não me
refiro somente às informações teóricas ou historiográfi-
cas nas aulas de Literatura. Importa lembrar que o texto
literário também instaura uma forma particular de co-
nhecimento. Acreditar que o texto literário deve aparecer
somente depois de serem apresentadas informações con-

1. Utilizo inicial maiúscula para designar a disciplina Literatura e


minúscula para o emprego comum dessa palavra.

75
textuais sobre o autor e sua época é prova de desconhe-
cimento de que o texto literário já é, em si, uma forma
privilegiada de conhecimento.
A apreciação de um poema, por exemplo, consi-
derando-se a riqueza de recursos da linguagem, no plano
de expressão, e a sensibilidade de representação dos sen-
timentos humanos, no plano de conteúdo, constitui uma
oportunidade de construção cognitiva e afetiva para os
educandos. Se o poema agradou, então nada mais opor-
tuno do que falar ou, ainda melhor, solicitar que os alunos
busquem informações sobre quem o escreveu e em que
época isso ocorreu. Para dar outro exemplo, a leitura pré-
via de um capítulo do romance Vidas secas, de Graciliano
Ramos, traz informações sobre o estilo individual e o de
época na própria fonte. Valores (temas) e representações
(figuras),2 elementos da narrativa, discurso indireto livre,
figuras de linguagem, tudo isso constitui matéria de estu-
do. E é justamente essa matéria que dará sentido às infor-
mações que cercam essa produção literária, no que ficou
conhecido como Romance de Trinta. Textos da crítica e
da historiografia literárias certamente complementariam
a construção das diversas etapas cognitivas, mas, sob ne-
nhuma hipótese, substituiriam a leitura da própria obra.
A literatura é possivelmente a mais antiga forma-
lização do conhecimento humano. Não por acaso, seu
estudo motivou filósofos como Platão e Aristóteles a re-
fletir sobre o tema. Curiosamente, o que coloca Aristó-
teles à frente de Platão, pelo menos segundo uma visão
contemporânea do fenômeno literário, foi o fato de que a
Platão interessou a função da literatura na sociedade, en-
quanto Aristóteles se concentrou no texto literário como
objeto de estudo, ou seja, como produção particular do

2. Temas e figuras são categorias semióticas da semântica discur-


siva. Recomendo uma leitura do assunto em Greimas; Cour-
tés (2008), Barros (2002) e Fiorin (2005).

76
conhecimento humano. Segundo Gonçalves e Bellodi
(2005, p. 40), “Platão advoga a necessidade de observar a
natureza para se chegar à verdade (…) sem admitir que a
Literatura também é, entre outras coisas, uma forma de
conhecimento”. No entanto, para essas mesmas autoras,
Aristóteles revelou muito mais sobre a natureza da obra
literária, chegando a uma concepção do texto como uma
unidade constituída de partes inseparáveis e articuladas
entre si, ou seja, algo que se assemelha à noção de es-
trutura, conceito usado desde o século dezenove até a
atualidade (Gonçalves e Bellodi 2005, p. 45).
Para Proença Filho (1992, p. 37), “O discurso da
literatura se caracteriza por sua complexidade”. E essa
complexidade precisa ser examinada em sala de aula.
Como fenômeno estético, o texto literário não só trata
das coisas do mundo, mas cria um mundo próprio me-
diante a ficção. Não um mundo desligado da realidade,
mas sim uma versão virtual que fornece lentes privilegia-
das para entender as coisas do mundo. O mesmo Proença
Filho chama atenção para a “multissignificação” (p. 38),
para o “predomínio da conotação” (p. 40), para a “ênfase
no significante” (p. 42), dentre outras características do
discurso literário.
A obra literária é matéria mais do que suficiente
para todas as etapas cognitivas de uma experiência de en-
sino-aprendizagem. E poucas matérias harmonizam tão
bem a fruição ao conhecimento como a Literatura, na
condição de que a prática pedagógica coloque a aborda-
gem do texto literário em primeiro lugar.
Ora, educar é também proporcionar oportunidade
de sensibilização e de construção de um lazer produtivo.
Pelas obras literárias, chega-se ao hábito da leitura, que
serve ao lazer, à sensibilização e à cultura geral e, por que
não, à tomada de consciência sobre a condição existen-
cial e sobre o papel de protagonista na história de uma
comunidade, seja esta a região, o país ou mesmo o plane-

77
ta. Afinal, por um lado, “A literatura é veículo sinfrônico
que apaga as distâncias e as idades” (Castagnino 1969, p.
28), essa “emoção criadora” que tem o condão de interli-
gar autores e leitores, independentemente de espaço e de
tempo; mas, por outro, a literatura também é instrumento
de combate, já que o escritor, segundo Sartre (2004, p.
55), não escreve para um “leitor universal”, o que seria
utópico, mas a pessoas que, igualmente a quem escreve,
não são verdadeiramente livres na sociedade atual. En-
fim, os escritores não podem escapar à história: “Escritu-
ra e leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico,
e a liberdade à qual o escritor nos incita não é uma pura
consciência abstrata de ser livre” (Sartre 2004, p. 57).
No tocante a uma Didática da Literatura, a maior
parte dos pesquisadores aponta para dois focos: o peda-
gógico e o didático. Pedagogicamente, o educando deve
estar no centro das atividades de sala de aula. Didatica-
mente, o texto literário deve ocupar o centro das infor-
mações e experiências. Assim entendido, seria mais eficaz
uma aula centrada na experimentação do próprio aluno
e concentrada na complexidade do texto literário. Aulas
expositivas maçantes, que usem o texto literário somente
como pretexto e que forneçam apenas quadros classifica-
tórios superficiais sobre autores e obras, estariam fora de
cogitação na contemporaneidade.
Não custa acrescentar que Literatura é patrimônio
cultural que passa de geração a geração. Os mitos, os poe-
mas, as letras de música, as peças de teatro, os contos e os
romances constituem parte essencial da cultura. A iden-
tidade de um povo, de uma nação ou de uma civilização
tem relação direta com seu patrimônio literário, cabendo
inapelavelmente a quem ensina Literatura proporcionar
ao educando o acesso a essa herança. Numa clara visão
política sobre o assunto, Antonio Candido (1995, p. 263)
assim termina um de seus ensaios mais famosos, em que
apresenta o acesso ao texto literário como parte dos Di-
reitos Humanos:

78
Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos
direitos humanos, e a fruição da arte e da lite-
ratura em todas as modalidades e em todos os
níveis é um direito inalienável.

Borges (1985, p. 8) faz lembrar que os muçulma-


nos chamam os israelitas de “o povo do livro” e diz que
cada país tem seu escritor: “A Inglaterra escolheu Shakes-
peare (…). A Alemanha é representada por Goethe. (…)
Na França não se escolheu um autor, mas tende-se para
Victor Hugo. (…) A Espanha é representada por Miguel
de Cervantes.” (p. 9) Borges não faz alusão a Portugal,
mas, se o fizesse, obviamente apresentaria Camões como
ícone lusitano. E não só pela grandiosidade de Os lusíadas,
mas também pela sensibilidade de seus sonetos.
Se tão valorosa é a arte literária como objeto de
estudo, então o planejamento da aula de Literatura não
pode resumir-se a um mero roteiro a ser seguido pelo
educador. Isso seria reduzir seu valor político-pedagógi-
co. Um plano de aula é uma redação técnica que faz parte
de um conjunto maior de textos voltados para o plane-
jamento curricular. O plano de aula subordina-se a um
plano de unidade e este, a um plano curso. Ora, o plano
de curso faz parte do currículo, por sua vez determinado
pelo projeto político-pedagógico da escola. A escola tem
autonomia para estabelecer seu projeto, desde que não
fira a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que es-
tabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Vale
ressaltar que a conhecida LDB é uma lei complementar,
isto é, já estava prevista no texto da Constituição Federal
de 1988.
Resumindo, o plano de aula é uma peça de nature-
za política, tendo como ascendente mais alto nada menos
do que nossa Carta Magna.
Nas reuniões que antecedem o período letivo,
os professores fazem o plano de curso, dividindo-o em

79
planos de unidade. Por sua vez, o plano de unidade se
desdobra em planos de aula. Na terceira série do ensino
médio, por exemplo, o plano de curso costuma abranger
a periodização literária que vai do início do século vinte
até os dias de hoje. Considerando-se esse período, é pos-
sível desenvolver os seguintes planos de unidade: Impres-
sionismo,3 Primeira Fase do Modernismo, Segunda Fase
do Modernismo, Pós-Modernismo, Literatura Marginal,
Literatura Contemporânea. Cada unidade, por sua vez,
subdivide-se em planos de aula. Assim, a unidade da Pri-
meira Fase do Modernismo poderia ser desenvolvida em
três planos de aula: Vanguardas Modernistas, Semana de
Arte Moderna, Correntes Modernistas Brasileiras. Nada
impede, no entanto, que se faça um plano de curso e, em
seguida, os planos de aula, dispensando-se os planos de
unidade.
Evidentemente, tal divisão não é novidade. Já faz
parte do cotidiano dos professores de Língua Portuguesa
do Fundamental e do Ensino Médio. O problema é que
essa distribuição de conteúdos não traz em seu bojo o al-
cance cognitivo pretendido na relação ensino-aprendiza-
gem. Em outras palavras, o fato de se elencar um tópico
como “Segunda Fase do Modernismo”, para alunos da
terceira série do Ensino Médio, nada diz sobre se tal con-
teúdo se refere ao conhecimento, à compreensão, à apli-
cação, à análise, à síntese e à avaliação (crítica), ou seja,
as seis etapas da Taxionomia de Bloom concernentes ao
domínio cognitivo (Bloom 1976). O desdobramento dis-
so é preocupante. Se não há uma consciência do nível

3. Para alguns, Pré-Modernismo, termo que particularmen-


te considero equivocado, já que autores como Euclides da
Cunha ou Monteiro Lobato, considerados pré-modernistas,
não foram preparadores do Modernismo. Lobato, inclusive,
se insurgiu contra a estética expressionista de Anita Malfatti
no famoso artigo “A Propósito da Exposição Malfatti”, que
saiu na edição de O Estado de S. Paulo de 20 de dezembro de
1917.

80
cognitivo pretendido numa aula de Literatura, então a
aula corre o risco de cair na velha rotina de memorização
de autores, estilos de época e títulos de obras literária. E
mais. Uma avaliação construída sobre tal inconsciência
tende a ser improdutiva e não poucas vezes injusta e de-
sestimulante para os alunos.
Sabendo-se que as competências e habilidades
hierarquizadas na forma dos objetivos educacionais
representam etapas que não admitem saltos, a falta de
consciência desses pressupostos cognitivos pode levar
a situações de fracasso, tanto para quem tenta aprender
como para quem pretende ensinar. Por exemplo, se não
há conhecimento (informação prévia) sobre metáfora,
não é possível compreendê-la (perceber que a metáfora
é uma analogia); se não há compreensão sobre metáfora,
não se pode aplicar essa categoria a um texto; se não se
aplica a metáfora na apreciação de um texto, não é pos-
sível analisá-lo do ponto de vista metafórico, sabendo-
se que a metáfora funciona como conector de isotopias
num texto,4 ou seja, estabelece mais de uma possibilidade
de leitura de uma texto; se não se faz uma análise metafó-
rica de um texto, não se chega a uma síntese sobre o valor
da metáfora na construção de um texto como um todo;
e, finalmente, se não se chega a uma síntese sobre esse
valor no texto em sua totalidade, não é possível o aluno
avaliar o emprego da metáfora, por exemplo, no estilo in-
dividual ou de época postos em estudo. Assim, não basta
apresentar a metáfora como assunto no plano de aula,

4. Conceito de isotopia é um conceito da Semiótica de Grei-


mas. Quando se emprega a metáfora, pelo menos dois planos
semânticos se articulam. A permanência de cada um desses
planos, ao longo do texto, é uma isotopia. Quando Camões
diz “Amor é fogo que arde e não se vê”, a metáfora conecta o
plano semântico do “amor” aos planos da combustão (“fogo
que arde”) e da visualidade (“não se vê”). Para maior aprofun-
damento, consultar: Greimas; Courtés (2008, pp. 275-278);
Barros (2002, pp. 124-130); Fiorin (2005, pp. 112-118).

81
mas sim situá-la progressivamente, desde a competência
da memória (conhecimento) até se chegar à competência
crítica (avaliação).
A redação de um plano de aula pode variar muito,
dependendo da orientação didático-pedagógica adotada
na escola ou da tendência pessoal do professor. Para os
fins específicos deste texto, retomo um esquema que tal-
vez não se afaste, pelo menos na essência, da maioria dos
planos de aula. Cada tópico desse esquema será retoma-
do, a bem da clareza conceitual.
Esquema do plano de aula: Cabeçalho, Assunto,
Conteúdo, Objetivos, Avaliação, Procedimentos e crono-
grama, Meios auxiliares, Bibliografia, Observações.

• Cabeçalho: Apresenta os dados da escola, da sé-


rie, data, disciplina, professor, equipe de pro-
fessores ou seção de ensino.
• Assunto: Indicação da unidade didática e título
da aula. Eis um exemplo: Unidade: Romantis-
mo. Aula: O indianismo de José de Alencar.
• Conteúdo: Especificação dos tópicos que serão
desenvolvidos na aula. Exemplo, supondo-se
que a aula trate do tema indigenista em José
de Alencar: O índio idealizado. Representação
do índio em Ubirajara. Índios do bem e do mal
em O guarani. Apreciação de um trecho de O
guarani. Caetano Veloso cita Peri, na canção
“Um índio”. Leitura transversal: O índio hoje
(estudo de uma reportagem).
• Objetivos: Competências e habilidades espera-
das após a experiência da aula. Usam-se aqui
os verbos no infinitivo do domínio cognitivo
da taxionomia de Bloom (ver adiante), que
abrangem seis áreas, da operação mais simples
à mais complexa (do conhecimento à avalia-
ção). Muito importante frisar que o objetivo
82
é do aluno, e não do professor. Na redação
do plano de aula, devem-se empregar verbos
referentes a comportamentos observáveis do
aluno. Assim, devem ser evitados verbos de
sentido muito abrangente, como “entender”
ou “conhecer”, ou formulações relativas ao
professor, como “Fazer com que o aluno...”
ou “Proporcionar aos alunos...”. Como os
verbos estabelecidos nos objetivos já indicam
a competência ou a habilidade a ser avaliada,
eles são basicamente os mesmos utilizados em
questões de prova: conceituar, identificar, clas-
sificar, sublinhar, resumir, etc. Mas isso não
basta. É fundamental saber em qual dos seis
níveis cognitivos se situa o objetivo proposto.
• Avaliação: Forma de verificação dos objetivos
traçados. Vale ressaltar que a avaliação se ba-
seia nos objetivos já traçados. Alguns exem-
plos: Observação das respostas apresentadas
pelos grupos. Aplicação de um teste. Correção
dos exercícios recomendados.
• Procedimentos e cronograma: Enumeração das
ações do professor, colocando-se os minutos
previstos para cada uma delas entre parênte-
ses. Exemplo: Apresentação do assunto e dos
objetivos no quadro (2 min). Exposição inicial
sobre o poema a ser estudado: “Autopsico-
grafia”, de Fernando Pessoa, com técnica de
predição sobre o significado do título (8 min).
Formação em fileiras para a leitura do poema,
de início silenciosa e depois expressiva, a ser
feita por um dos alunos (10 min). Formação
de grupos para redação de uma paráfrase do
texto (20 min). Formação em semicírculo e
apresentação das paráfrases, seguida de co-
mentário conclusivo do professor (10 min).

83
• Meios auxiliares: Material necessário à aula,
como quadro, livros, cartazes, projetores, den-
tre outros.
• Bibliografia: Referências bibliográficas da aula,
a exemplo do livro didático e outras fontes de
consulta.
• Observações: Anotações necessárias, como
adaptações da aula dependendo de circunstân-
cias, como o número de alunos, o horário, a
disponibilidade de um aparelho, etc.

Vale lembrar que se faz um plano não como um


roteiro inflexível, mas sim como uma previsão que pode
e deve ser adaptada à experiência real.
Passo agora mais especificamente a considerações
sobre a elaboração de objetivos educacionais no âmbito
da Literatura, desde o conhecimento até a avaliação. Para
começar, faço uma releitura das categorias do domínio
cognitivo, segundo Bloom (1976).

1. Conhecimento: Trata-se do nível cognitivo


mais elementar. Diz respeito a competências
e habilidades da memória. O conhecimento
abrange as informações necessárias a uma
experiência de ensino-aprendizagem. As in-
formações prévias a serem recuperadas numa
sondagem ou preparatórias para um novo
assunto estão no domínio do conhecimento.
Bloom (1976, p. 173) aponta alguns exemplos
de atividade literária referentes ao nível cog-
nitivo do conhecimento: “Familiaridade com
as formas e convenções dos principais tipos
de obras; por exemplo, poesia, peças teatrais
(…).” Eis alguns exemplos de objetivos que
proponho para a aula de Literatura, no nível
do conhecimento: reconhecer, dentre as for-
84
mas poéticas, qual delas é um soneto; situar o
período histórico em que se desenvolveu o Ro-
mantismo no Brasil; distinguir os autores ro-
mânticos brasileiros numa lista de escritores de
diversos períodos literários; sublinhar, no texto
dado, três expressões com sentido figurado;
listar três características significativas da poesia
modernista; ordenar cronologicamente os pe-
ríodos literários da lista dada; relacionar a co-
luna dos autores à dos respectivos romances;
marcar a alternativa em que aparece um exem-
plo de hipérbole; associar as frases da primeira
coluna às personagens do romance estudado,
listadas na segunda coluna.
2. Compreensão: Este segundo nível cognitivo
é entendido como a percepção consciente de
conteúdos. Sabe-se que alguém compreendeu
um conceito se for capaz de dizê-lo ou rees-
crevê-lo com outras palavras. A tradução e a
paráfrase são operações cognitivas do nível da
compreensão. Bloom (1976, p. 175-176) apre-
senta o seguinte exemplo como competência
de compreensão: “A capacidade de compre-
ender enunciações não literais (metáfora, sim-
bolismo, ironia, exagero).” Deixo aqui alguns
exemplos de objetivos do nível da compreen-
são: reescrever a estrofe na forma de prosa;
apresentar uma expressão metafórica nova, a
partir do modelo dado; listar três exemplos
de metonímia tirados de frases usadas colo-
quialmente; distinguir um exemplo de rima
rica e outro de rima pobre no poema dado;
apresentar uma nova versão para cada um dos
parágrafos, retirados do romance estudado;
reordenar os parágrafos da crônica, conside-
rando-se a progressão narrativa.

85
3. Aplicação: O terceiro nível cognitivo pode ser
constatado na competência ou habilidade de
empregar dados ou conteúdos já compreen-
didos em situações novas. A aplicação é tanto
mais eficaz quanto mais diversificados os tex-
tos. Apresentações de equipe e dramatizações
são formas motivadoras de levar os alunos à
passagem do nível da compreensão para o da
aplicação. Na Literatura, são exemplos de ob-
jetivos ligados ao nível cognitivo da aplicação:
apresentar um poema dadaísta com base na
“Receita de poema dadaísta”, de Tristan Tza-
ra; apresentar um jogral com base no poema
“Operário em construção”, de Vinícius de
Moraes; reescrever um capítulo de Vidas Se-
cas, de Graciliano Ramos, em forma de teatro;
identificar em pelo menos cinco dos capítulos
do romance Dom Casmurro exemplos do em-
prego da metonímia; confrontar a representa-
ção da mulher nos textos dados, sendo um do
Romantismo, outro no Naturalismo e um ter-
ceiro da literatura atual, explicando qual das
duas representações do século dezenove mais
influencia a prosa contemporânea.
4. Análise: O quarto nível cognitivo pode ser
entendido como uma visão estrutural ou sis-
têmica de algo, ou seja, a consciência da rela-
ção entre as partes e o todo. A análise de uma
obra literária completa, como um romance,
por exemplo, depende de uma visão estrutu-
ral dos elementos da narrativa (tipologia de
personagens, disposição do tempo, represen-
tação do espaço, modos de narrar, etc.) e dos
recursos estilísticos que conferem a literarie-
dade do texto. Uma análise literária depende
da compreensão e da aplicação das categorias

86
analíticas em questão (a tipologia das perso-
nagens, por exemplo). Exemplos literários
de objetivos cognitivos no nível da análise:
classificar as personagens principais e secun-
dárias de Senhora, de José de Alencar; anali-
sar o enredo de “A triste partida”, de Patativa
do Assaré, considerando as categorias analí-
ticas da apresentação, complicação, clímax e
desfecho; relacionar os estados emocionais
da protagonista com o ambiente em que ela
se encontra ao longo do romance apreciado
pela equipe; apresentar as semelhanças ou os
contrastes na descrição romântica do sertão,
considerando-se os textos dados, um de José
de Alencar, em O sertanejo, e outro da primeira
parte de Os sertões, de Euclides da Cunha; rees-
crever e ilustrar a peça de teatro estudada no
formato de história em quadrinhos.
5. Síntese: O resultado lógico de uma análise
bem conduzida é uma visão de conjunto so-
bre o que se estuda. O resumo de um roman-
ce é um exemplo de síntese. Uma compilação
também é um recurso que exige uma visão
de conjunto de uma obra. Um período lite-
rário estudado também pode ser objeto de
síntese. Na dinâmica de grupo, a síntese pode
ser solicitada na forma de seminários, com a
ilustração de cartolinas ou esquemas. Exem-
plos de objetivos relacionados com o nível
cognitivo da síntese: apresentar o enredo de
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo,
num parágrafo único de, no máximo, dez fra-
ses; elaborar um esquema com os principais
momentos da Semana de Arte Moderna; criar
uma entrevista imaginária com Guimarães
Rosa; redigir uma reportagem, supondo-se

87
que Bentinho, personagem de Dom Casmurro,
de Machado de Assis, prestasse um depoi-
mento sobre a morte do amigo Escobar.
6. Avaliação: No nível cognitivo mais alto, en-
tende-se que alguém seja capaz de avaliar o
próprio objeto da aprendizagem. Avaliação
aqui, vale a pena lembrar, não é aquela de
quem ensina, mas de quem aprende, ou seja,
é o mesmo que juízo crítico ou criativo so-
bre algo. A percepção dos valores implícitos
no que foi estudado e a relação desses valo-
res com outros mais amplos da sociedade são
operações esperadas para este nível. A litera-
tura tem valores estéticos (literariedade), mas
não só. Há toda uma representação do indi-
víduo e da sociedade que merecem conside-
ração e despertam calorosos debates em sala
de aula. Mas é necessário apresentar critérios
e regras para uma avaliação ou julgamento efi-
caz, sob pena de as aulas se transformarem
num rol de exposições meramente subjetivas,
desfocadas do essencial posto em discussão.
Alguém que não avançou nas etapas anteriores
terá, quando muito, uma participação inconsis-
tente e evasiva num debate. O convite não só
à crítica de conteúdos apreciados, mas também
à autoavaliação é sempre bem-vindo para co-
roar uma etapa de estudos. Exemplos de obje-
tivos situados no nível cognitivo da avaliação:
apresentar à turma uma visão crítica sobre os
projetos elaborados sobre o conto brasileiro
contemporâneo; elaborar uma resenha crítica
sobre o romance estudado pela equipe; escre-
ver um pequeno artigo literário sobre o roman-
ce Agosto, de Rubem Fonseca, a ser publicado
na página da turma; relacionar a crítica de Eu-

88
clides da Cunha em Os sertões à invasão de
comunidades populares nos dias de hoje; apre-
sentar a defesa de João Romão, personagem
de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, no tribunal
da turma; relacionar a forma e o conteúdo da
poesia concreta com o contexto histórico em
essa tendência estética se estabeleceu no Bra-
sil; escrever uma carta imaginária a um autor
do período literário estudado, posicionando-se
sobre o valor de sua obra.

Em função dessas metas cognitivas, ao lado de ou-


tras, do domínio afetivo, é que se propõe o planejamento.
Os verbos usados na redação dos objetivos educacionais
são os mesmos da avaliação, como se pôde verificar nos
exemplos dados. Afinal, o que é a avaliação senão a veri-
ficação dos objetivos, mediante instrumentos adequados?
Assim, desde a simples observação do comportamento
dos alunos, passando por exercícios, projetos, testes e
provas, tudo visa a verificar se os objetivos foram atingi-
dos pelos alunos.
A utilização do livro didático, de filmes, de músicas
e das indispensáveis obras literárias, tudo isso depende
do que se pretende que os alunos atinjam, passo a passo,
etapa por etapa, desde o conhecimento até a avaliação. A
propósito de filmes, computadores e outros meios ele-
trônicos, é oportuno recordar a lição do pedagogo Lauro
de Oliveira Lima (1976), que advertia para o fato de que
só a leitura proporciona condições instrumentais para
a reflexão, o que não ocorre com a instantaneidade dos
meios eletrônicos, que acabam reproduzindo a pré-his-
tória cultural, baseada na oralidade. A fala é instantânea,
mas o texto escrito não, já que permite pausas e retornos
na leitura.
Evidentemente, nem tudo chega ao nível da ava-
liação. Há assuntos que são necessários ao conhecimento

89
de outros conteúdos, como o estudo das figuras de lin-
guagem ou da versificação. No entanto, uma obra literá-
ria completa é sempre um convite ao percurso também
completo da Taxionomia de Bloom. Como continuidade
de nossa discussão, ao final do capítulo apresentamos
uma atividade.

Referências

BARROS, D. L. P. de (2002). Teoria do discurso: fundamentos


semióticos. São Paulo: Atual.
BLOOM, Benjamin (1976). Taxionomia dos objetivos educa-
cionais; domínio cognitivo. Porto Alegre: Globo.
BORGES, Jorge Luis (1985). “O livro”, in: BORGES,
Jorge Luis Cinco visões pessoais. Brasília: UnB.
BRASIL (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal: nº 9394/96. Brasília: Senado Federal.
CANDIDO, A. (1995). Vários escritos. 3ª ed. São Paulo:
Duas Cidades.
FIORIN, José Luiz (2005). Elementos de análise do discurso.
13ª ed. São Paulo: Contexto.
GONÇALVES, Maria Magaly Trindade e BELLODI,
Zina C. (2005). Teoria da literatura “revisitada”. 2ª ed.
Petrópolis: Vozes.
GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph (2008).
Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto.
LIMA, Lauro de Oliveira (1976). “O livro como instru-
mento civilizatório.” Revista de Cultura Vozes, vol. 2,
Petrópolis, pp. 33-50.
PROENÇA FILHO, D. (1992). A linguagem literária. São
Paulo: Ática.
SARTRE, Jean-Paul (2004). Que é literatura? 3ª ed. Tradu-
ção de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática.

90
ATIVIDADES PROPOSTAS

1. Conhecimento: Que informações prévias são necessá-


rias ao novo tópico literário? Que texto literário pode
proporcionar uma base para essas informações pré-
vias?
2. Compreensão: Como posso verificar se as informações
prévias foram compreendidas? Uma paráfrase seria
adequada para esse propósito?
3. Aplicação: Que textos literários ou trechos devo usar
para a aplicação dos conhecimentos já compreendi-
dos?
4. Análise: Feitos os exercícios de aplicação, que texto
ou textos literários completos teriam complexidade
suficiente para uma análise?
5. Síntese: Que produções, esquemas ou resumos seriam
mais interessantes para verificar se uma visão de con-
junto foi de fato construída sobre o assunto proposto?
6. Análise: Que produções, debates, seminários ou ou-
tras atividades devo propor para verificar se foi atin-
gida a competência da avaliação? Seria oportuna uma
autoavaliação dos alunos?

91
Capítulo 5
HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS
DESCONHECIDAS: AS TRADIÇÕES
AFRICANAS EM NARRATIVAS
INFANTIS E JUVENIS

Maria Carolina de Godoy

É de conhecimento dos agentes envolvidos no pro-


cesso educacional a importância da Lei n º 10.639/03 não
apenas como forma de exigir a inserção da temática Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Bási-
ca, mas também como reconhecimento da necessidade de
debates dentro e fora da escola sobre temas relacionados
ao preconceito étnico-racial e à afirmação da identidade de
grupos historicamente excluídos da educação.
No campo da literatura, mais especificamente, no
que se refere aos livros infantojuvenis que trazem ima-
gens da cultura africana e afro-brasileira, sabe-se que nem
sempre eles chegam às mãos de crianças e jovens, seja por
falta de divulgação, seja por dificuldade de abordagem
dos temas ali presentes. Encontrar a representação des-
sas tradições na ficção infantojuvenil em narrativas que
as recuperam em seus enredos e evidenciam a participa-

93
ção de personagens protagonistas ou narradores negros
torna-se um desafio em meio à predominância de obras
que silenciam essas vozes ao longo da história da litera-
tura. Observam-se, na última década, novas publicações
de obras infantis e juvenis com personagens negras pro-
tagonistas inseridas em narrativas que apresentam traços
da cultura afro-brasileira com seus temas relacionados às
religiões de matrizes africanas, ancestralidade, oralidade,
história do continente africano ou que retomam lendas e
contos africanos. Apresentá-las aos educadores é o pri-
meiro passo para que essas obras sejam reconhecidas no
espaço educacional.

Contemporaneamente, alguns dos textos dirigi-


dos ao público infantil e juvenil, buscam uma
linha de ruptura, com modelos de representação
que inferiorizem, depreciem os negros e suas
culturas. São obras que apresentam personagens
negros em situações do cotidiano, resistindo e
enfrentando, de diversas formas, o preconceito
e a discriminação, resgatando sua identidade ra-
cial, representando papéis e funções sociais di-
ferentes, valorizando as mitologias, as religiões
e a tradição oral africana. (Jovino 2006, p. 188)

Em capítulo sobre as licenciaturas, inserido nas


Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais, pu-
blicação do Ministério da Educação, por meio da Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD) em 2006, encontram-se considerações no que
tange à formação dos profissionais da educação.

A abordagem das questões étnico-raciais na


Educação Básica depende muito da formação
inicial de profissionais da educação. Eles ainda

94
precisam avançar para além dos discursos, ou
seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em
torno da questão racial e educação são necessá-
rias, por outro lado precisam chegar à escola e
sala de aula, alterando antes os espaços de for-
mação docente. [...] É preciso refletir acerca do
espaço de formação deste(as) professores(as),
ou seja, avaliar se as IES vêm se organizando
para a inclusão das temáticas relativas às rela-
ções étnico-raciais, assim como o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica. (Monteiro 2006, p. 126)

Interessa, neste trabalho, apresentar aos educado-


res e às educadoras obras que mostram personagens ne-
gras e, partindo-se do estudo de três narrativas – Histórias
da Preta (1998) de Heloisa Pires Lima com ilustrações de
Laura Beatriz, Histórias africanas para contar e recontar (2001)
de Rogério Andrade Barbosa, ilustrada por Graça Lima e
Sikulume e outros contos africanos (2009) adaptação de Júlio
Emílio Braz e ilustrações de Luciana Justiniani - preten-
de-se analisar quais as peculiaridades dessas narrativas e
de que modo são retomadas as tradições africanas. Inte-
ressa, ainda, refletir sobre as possibilidades de divulgação
dessas obras entre os jovens leitores com o intuito de
discutir a importância de sua difusão em sala de aula e
propor caminhos de abordagem dos temas tratados por
esses autores na atividade pedagógica. As discussões sus-
citadas a partir das análises não só instigam reflexões a
respeito das peculiaridades dessas narrativas como tam-
bém possibilitam ponderações sobre a circulação e divul-
gação das obras entre educadores. Como o enfoque deste
trabalho é a literatura afro-brasileira, serão feitas algumas
considerações a respeito desse conceito.

95
Literatura afro-brasileira

Iniciando as reflexões no que se refere à literatu-


ra afro-brasileira, as denominações literatura “negra” ou
“afro” logo de início suscitam debates, pois causam di-
vergências entre teóricos e pesquisadores uma vez que
distinguem um grupo no conjunto da literatura brasileira.

Alguns escritores, geralmente brancos, que têm


tido como motivo poético o afrodescendente são
catalogados pela crítica como autores que produ-
zem uma literatura afro-brasileira, no entanto, os
verdadeiros autores afro-brasileiros, de acordo
com o conceito elaborado por Zilá Bernd (1988),
cujo eu poético é negro, continuam marginais aos
olhos da academia. (Adolfo 2012, p. 218)

Apesar de muitos teóricos e escritores do Brasil


e dos Estados Unidos, entre outros, considerarem os
termos mencionados excludentes porque não levam em
conta a cultura de um modo geral,

[...] outros teóricos reconhecem que a particula-


rização é necessária, pois quando se adota o uso
de termos abrangentes, os complexos conflitos
de uma dada cultura ficam aparentemente nive-
lados e acabam sendo minimizados. Nessa lógi-
ca, o uso da expressão “literatura brasileira” para
designar todas as formas literárias produzidas
no Brasil não conseguiria responder à questão:
por que grande parte dos escritores negros ou
afrodescendentes não é conhecida dos leitores e
os seus textos não fazem parte da rotina escolar?
(Fonseca 2006, p. 12)

96
Nessa mesma perspectiva, Eduardo de Assis Du-
arte (2011) em seu artigo “Literatura afro-brasileira: um
conceito em construção” propõe alguns critérios para a
adoção da denominação literatura afro-brasileira: temáti-
ca, autoria, linguagem e público leitor. Segundo ele, deve
haver interação desses elementos no texto, todos relacio-
nados ao negro, e não serem tratados de forma isolada.
Em vista de se tratar de produção literária e esta, por sua
vez, depender de uma cultura da escrita; considerando,
ainda, que a população negra chegou às escolas há pouco
mais de um século, é preciso observar que essas produ-
ções apresentam traços, símbolos e mitos da cultura afro
-brasileira em processo de construção e reconhecimento
nas representações de obras literárias. Sobre a chegada
tardia da população negra às escolas após a abolição, co-
menta Petrônio Domingues (2008, p. 519) em artigo inti-
tulado “Um ‘tempo de luz’: frente negra brasileira (1931-
1937) e a questão da educação”.

Não há consenso acerca das razões que levaram


os negros a criar suas próprias escolas. Uma
das hipóteses é que a disputa por um “lugar ao
sol” entre os vários grupos étnicos que viviam
em São Paulo se operava num clima de tensão.
Assim, quando criavam suas próprias escolas,
os negros expressariam seu esforço em se or-
ganizar, a fim de defender-se naquela disputa
(Demartini 1989, pp.  52-53). Outra explicação
é que essas escolas foram uma resposta da po-
pulação negra à discriminação racial que vice-
java na rede de ensino. Havia escolas que difi-
cultavam e outras que simplesmente vetavam a
matrícula de negros (Domingues 2004, p. 350).
Em 1929, o jornal Progresso noticiava que o Co-
légio Sion recusou a matrícula da filha adotiva
do “ilustre” ator Procópio Ferreira. Quando sua

97
esposa, a mãe da criança, argumentara que tinha
condições financeiras para pagar a mensalidade,
a superiora do estabelecimento de ensino teria
respondido: “Não é nesse ponto, apenas, que se
tornam rigorosos os nossos estatutos. Também
não recebemos pessoas de cor, embora oriundas
de família de sociedade” (Progresso, 24 mar. 1929,
p.  2). Esse episódio demonstra como algumas
escolas inscreviam nos estatutos a proibição da
matrícula de “pessoas de cor”, independente-
mente de sua classe social. Na mesma edição,
o Progresso denunciava o caso em que o dr. José
Bento de Assis não pôde matricular sua filha
numa escola dirigida por freiras, o College Sa-
cre Coeur, pelo “simples” fato de ela ser negra
(idem, p. 5). (Domingues 2008, p. 519)

Os autores e autoras afro-brasileiros, em sua maio-


ria, iniciaram as publicações nos Cadernos Negros, publica-
ção anual de autores afro-brasileiros que reúne prosa e po-
esia desde 1978, quando surgiu em São Paulo. Além desse
espaço, a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: an-
tologia crítica (2011), organizada pelo professor Eduardo
de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca, partici-
pante do volume 4, significou o marco do reconhecimen-
to de um espaço, na crítica e na historiografia literárias,
dedicado às obras da literatura afro-brasileira. Dividida em
quatro livros, a coleção traz informações sobre os autores
afro-brasileiros distribuídos por épocas: autores nascidos
antes de 1930 (precursores), entre 1930 e 1940 (consolida-
ção), na segunda metade do século XX (contemporanei-
dade) e o quarto volume é dedicado a ensaios críticos. Os
verbetes mostram dados relativos à vida pessoal e pública
dos cem escritores e escritoras, uma vez que essas infor-
mações mesclam-se tanto à temática de suas obras quanto
à atividade intensa acadêmica e política para o estabele-

98
cimento do espaço da voz negra na sociedade brasileira.
Há textos críticos, referências bibliográficas para pesquisa,
entrevistas, excertos de obras distribuídos entre romance,
conto, crônica, ensaios e poesia, sendo possível identificar
a escolha de mais de um gênero.
As obras escolhidas para estudo, neste trabalho,
fazem parte de um pequeno grupo que obteve espaço
para retratar não apenas a personagem negra em enre-
dos que contam lendas, costumes e representam a cultura
africana em histórias criadas ou adaptadas, mas também
para colocar em debate problemas relacionados ao pre-
conceito e à discriminação étnica.

Heróis e heroínas em terras desconhecidas

Em texto crítico sobre Heloisa Pires Lima, autora


de Histórias da Preta (1998) e Espelho dourado (2003), entre
outras obras de temática africana, Marina Luiza Horta
(2011, p. 7) aponta a pouquíssima produção de temas re-
lacionados às questões étnicas:

Nota-se que a produção infantil afro-brasileira


ainda é muito tímida e com pouca visibilidade
no mercado editorial se comparada à literatura
infantil brasileira tradicional. Segundo pesquisa
realizada por Eliane Debus, que mapeia a pro-
dução da literatura infantil com a temática ét-
nico-racial, a editora Companhia das Letrinhas,
por exemplo, no ano de 2005, em seu catálogo
de 332 títulos, apenas 13 traziam a presença do
personagem negro.

Outros dados da pesquisadora Regina Dalcastag-


né (2011, p. 312) confirmam a escassez de publicações

99
que privilegiam a cultura africana e as personagens negras
na literatura brasileira. Ao refletir sobre os resultados de
sua pesquisa feita entre 1990 e 2004 (primeiro período
analisado) e entre 1965 e 1979 (segundo período) sobre
as personagens negras no romance brasileiro,1 a autora
assinala que houve a publicação de

[...] 80 diferentes escritores no primeiro perío-


do e 165 no segundo – em sua grande maioria,
homens, sendo que as mulheres não alcançaram
um quarto do total. Mas a homogeneidade racial
é ainda mais gritante: no segundo período, são
brancos 93,9% dos autores e autoras estudados
(3,6% não tiveram a cor identificada e os “não
brancos”, como categoria coletiva, ficaram em
meros 2,4%). Para o primeiro período, foram
93% de brancos e 7% sem cor identificada.
(Dalcastagné 2011, p. 312)

Sabe-se que essas narrativas destinadas ao Ensino


Fundamental remetem, muitas vezes, a traços da cultura
afro-brasileira ligados à religiosidade de matriz africana
ou retomam contos de diferentes países africanos que
exigem conhecimento prévio do tema para abordagem
em sala de aula. Antes da análise detida dos textos sele-
cionados para este trabalho, serão feitas algumas consi-
derações gerais a respeito da seleção das obras. É im-
portante observar a existência de narrativas que trazem
imagens da África e são escritas por autores africanos

1. Foram analisados 258 romances brasileiros publicados entre


1990 e 2004 por três editoras, a saber, Companhia das Le-
tras, Record e Rocco; a segunda base de dados, utilizada como
contraponto, segundo a autora, foi composta de 130 roman-
ces brasileiros publicados entre 1965 e 1979 pela Civilização
Brasileira e pela José Olympio, ambas de maior importância
na época.

100
como, por exemplo, O chamado de Sosu, Meshack Asare2
(2005) e a narrativa angolana Ynari: a menina das cinco tran-
ças de Ondjaki3 (2010) ou derivadas de pesquisas como a
obra O homem frondoso e outras histórias da África de Claude
Blum4 (2011), fruto de seu trabalho sobre os países afri-
canos que foram colônias francesas. A pesquisa prévia
a respeito da localização dos países mencionados nessas
histórias, a atenção dispensada às especificidades do vo-
cabulário e dos nomes das personagens, além da busca
por referências à cultura, contribuem significativamente
para compreensão dessas narrativas.
Dentre as publicações brasileiras, há narrativas
como Ifá, o Adivinho de Reginaldo Prandi5 (2002) e Uma
ideia luminosa de Rogério Andrade Barbosa6 (2007) que
exigem explicações quanto à cultura, à religiosidade de
matriz africana e às ilustrações. Em Minhas Contas de Luiz
Antonio7 (2008) a abordagem da religiosidade é feita
tanto pela história – ao tratar do tema do preconceito
- quanto pelas ilustrações que apresentam cores relacio-
nadas aos Orixás. O tema da capoeira aparece na obra de
Luiz Antonio e no livro Adamastor, o pangaré de Mariana
Massarani8 (2007) que traz ilustrações de personagens
negras, mas não faz menção na história a outros temas
ligados à cultura afro-brasileira ou questões étnicas como

2. O autor nasceu em Gana, África ocidental, e mora em Lon-


dres, Inglaterra. Ilustrações do autor e tradução de Maria Do-
lores Prades.
3. Nasceu em Luanda, capital de Angola. Ilustrações de Joana
Lira.
4. Tradução de Hildegard Feist e ilustrações de Grégoire Vallan-
cien.
5. Ilustrações de Pedro Rafael.
6. Ilustrações de Thais Linhares.
7. Ilustrações de Daniel Kondo.
8. Ilustrações da autora.

101
ocorre também na obra de Sonia Rosa9 (2002) O menino
Nito: então, homem chora ou não?

A ilustração dos personagens negros nos livros


tem sido objeto de críticas de muitos estudiosos,
posto que pode colaborar na difusão de estereó-
tipos negativos a respeito dos negros e, como já
vimos anteriormente, pode corroborar o racis-
mo. A obra Bruna e a galinha d´Angola, de Gercil-
da Almeida, apresenta uma proposta diferente e
criativa para a ilustração da personagem negra,
assim como nos livros: Que mundo maravilhoso de
Julius Lester; A cor da vida, de Semíramis Pater-
no; Tanto Tanto, de Trish Cooke; Chica da Silva,
de Lia Vieira; Do outro lado tem segredos, de Ana
Maria Machado. Merecem destaque os vários
livros publicados pelo autor Rogério Barbosa,
que se propõe a desvendar o universo de algu-
mas culturas africanas para a literatura infanto-
juvenil brasileira, tais como: A tatuagem, a cole-
ção Bichos da África, Duula – A Mulher Canibal, um
conto africano e Sundjata. Isso só para citar algumas
obras. (Jovino 2006, p. 38)

Júlio Emílio Braz, autor mineiro de nascimento e


carioca por afinidade, como ele mesmo se considera, re-
toma o imaginário africano em contos que narram suas
lendas, revisita os contos de fadas de narrativas tradicio-
nais, recontando essas histórias, escreve obras que tratam
diretamente do tema do preconceito ou da escravidão
sob o ponto de vista do escravizado e de seus líderes.
Preocupa-se, também, em falar sobre abandono e violên-
cia na infância em acervo de mais de cem títulos.

9. Ilustrações de Victor Tavares.

102
A temática racial, bem como os problemas so-
ciais, está presente nas narrativas de Júlio Emí-
lio Braz, que afirma ter assumido sua identida-
de negra aos 20 e poucos anos, no tempo de
estudante. Quando criança, achava-se moreno,
crioulo, pardo, certeza que foi abalada quan-
do, ao encontrar o papel pardo com o qual foi
orientado pela professora a encapar seus cader-
nos, descobriu que aquela não era a sua cor. Par-
tiu então em direção à busca de sua identidade
e hoje, muitos anos depois, proporciona aos
jovens leitores brasileiros a reflexão a respeito
dos dilemas étnicos que envolvem os afrodes-
cendentes, no contexto da sociedade brasileira.
(Lopes 2011, p. 320)

A adaptação de Júlio Emílio Braz de contos afri-


canos em Sikulume e outros contos africanos com ilustrações
10

de Luciana Justiniani traz histórias sobre as tradições des-


se povo que relatam de forma mítica a organização dos
elementos da natureza como em “Por que o sol e a lua
foram morar no céu” ou “A origem da morte”. A narra-
tiva “A mãe canibal e seus filhos” apresenta o tema do
canibalismo que, apesar de pouco difundido em enredos
infantojuvenis, ao ser inserido nesse contexto de tradi-
ções arcaicas, aproxima-se de personagens-monstros pre-
sentes em contos de tradição ocidental. Esse tema reapa-
rece no conto central “Sikulume” em que a personagem
de mesmo nome é retratada como o único filho que res-
tou ao pai, após ver os outros sete serem transformados
em pássaros. Quando o pai, chefe de uma aldeia, soube
da possibilidade de recuperar seus filhos, enviou o único

10. Os relatos são provenientes da tribo Kaffir, situada na África


do Sul (exceção de “Por que o sol e a lua foram morar no
céu” originário da Nigéria), segundo informações nas páginas
finais da obra Sikulume (2009).

103
restante e considerado mais fraco do que os irmãos para
ajudar no resgate. Em uma das pausas para descanso da
comitiva, ao voltarem com os pássaros (filhos do chefe)
para a aldeia, canibais encontram os guerreiros em uma
caverna e acabam salvos por Sikulume que ouve a con-
versa entre os famintos enquanto discutiam qual guerrei-
ro devorariam primeiro, deixando por último o protago-
nista por ter pés pequenos.

Aquele que tinha pés pequenos atendia pelo


nome de Sikulume e era o filho que o chefe tan-
to desprezava. [...]
– Acordem! Acordem! – gritou ele, fazendo com
que as estranhas vozes se calassem e despertan-
do seus companheiros. Mais do que depressa,
contou-lhes o que acabara de ouvir. (Braz 2009,
pp. 23-24)

Salvo e distante do lugar perigoso, Sikulume lem-


bra-se de ter deixado um dos pássaros na caverna e volta
para salvar o irmão metamorfoseado, realizando, assim,
seu percurso de herói com ajuda de objetos mágicos e
auxílio de outras personagens para vencer os canibais.
Novamente, a presença do canibalismo é recontextuali-
zada no mundo dos contos de fadas e, ao lado de mons-
tros como Inabulele – outro desafio encontrado pelo
protagonista em sua trajetória – os canibais tornam-se
opositores do herói em seu caminho de aprendizagem
e conquistas. Ressalta-se a estilização das ilustrações em
preto e branco que, com traços sutis, mostram imagens
como as dos canibais sem, no entanto, causarem impacto
ou estranhamento ao leitor:

[...] os elementos lançados por Braz em suas


narrativas atuam como um firme fundamento

104
na construção de um leitor negro, não exclusi-
vo de histórias afro-brasileiras, mas que aprenda
desde a infância a relacionar o conteúdo de um
livro ao seu dia-a-dia. Igualmente, interfere na
formação educacional das crianças ao trazer à
tona modelos étnicos, contrários aos quais tran-
sitam na literatura universal, que reconstroem a
representação do povo descendente de africa-
nos no imaginário literário. (Silva 2012, p. 2)

A escritora Heloisa Pires Lima, autora de Histórias


da Preta (1998) ocupa, ao lado dos escritores afro-bra-
sileiros, esse raro lugar das publicações infantojuvenis
com obras de sua autoria ou em coautoria como Lendas
da África moderna (2010) escrita com Rosa Maria Tavares
Andrade. Entende-se, neste trabalho, literatura afro-bra-
sileira no sentido de uma

[...] literatura empenhada, sim, mas num pro-


jeto suplementar (no sentido derridiano) ao da
literatura brasileira canônica: o de edificar uma
escritura que seja não apenas a expressão dos
afrodescendentes enquanto agentes de cultura e
de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os
exclui do mundo das letras e da própria civiliza-
ção. Daí seu caráter muitas vezes marginal, por-
que fundado na diferença, que questiona e abala
a trajetória progressiva e linear de nossa história
literária. (Duarte 2011, p. 400)

Nas narrativas de Histórias da Preta (1998) uma


narradora-personagem, em alguns momentos, distancia-
se do relato mantendo o tom didático e observador de
quem se preocupa em tornar o fato narrado claro ao lei-
tor “E olhe só mais essa: usava-se ethnos com um sentido
quase contrário à palavra polis, que queria dizer cidade.
Para o olhar grego, polis era o mundo organizado. Os de
105
fora, os outros, eram os bagunçados” (Lima 1998, p. 17).
Em outros, deixa marcas de sua subjetividade no relato
ao destacar as sensações que teve, por exemplo, quando
tomou contato com a cultura africana:

Aprendi sobre os contadores numa tarde em


que o tempo mudou de repente. Eu estava sen-
tada numa cadeira de balanço, quase dormindo,
quando uma batida me assustou. Era a janela
grande que batia tão forte, e eu levantei depres-
sa, no susto, quase sem fôlego, para evitar que o
vidro quebrasse. Como a cortina, eu quase vo-
ava naquela ventania, que também jogava folhi-
nhas de plantas para dentro da sala, da casa, de
mim... (Lima 1998, p. 23)

São narrativas que transitam entre experiências


vividas pela narradora-personagem ao descobrir suas
tradições e as lendas africanas (re)contadas. Ao mesmo
tempo, o tom didático sobre aspectos históricos da escra-
vidão e do racismo aparecem em vários episódios, como
os intitulados “Historietas da Preta”. Em “Histórias do
Candomblé” destaca-se a religiosidade de matriz africana
com a narração de histórias sobre os orixás e explicações
sobre seus ritos:

[...] essa preocupação de apresentar um relato


fiel da realidade histórica é imprescindível para
um resgate da nossa história, porém, ao fazê-lo,
perde-se um pouco o teor literário da obra [...].
Será que essa é uma característica dessa nova
tendência de escritores (negros ou não) ou até
mesmo uma necessidade da literatura infanto-
juvenil com recorte étnico-racial, visando a uma
busca e/ou ao resgate da nossa identidade?
(Sousa 2001, p. 209)

106
Como em outros contos aqui destacados, os tex-
tos11 de Rogério Andrade Barbosa com ilustrações de
Graça Lima, preocupam-se em mostrar a relação estreita
entre homens e natureza, como as narrativas do livro His-
tórias africanas para contar e recontar (2001) sobre o costume
de animais. A ambientação africana permite o contato
com a cultura e a história das regiões que servem de ce-
nário para os acontecimentos por meio de descrições que
promovem o retrato de seus costumes, como em “Por
que o camaleão muda de cor”.

Naquele tempo, o interior da África era percor-


rido a pé por longas caravanas. Todos carrega-
vam pacotes e cestos à cabeça, repletos de cera e
de borracha, que trocavam por panos coloridos
nas vendas dos comerciantes brancos nas vilas
situadas junto ao mar. (Barbosa 2001, p. 19)

Outro escritor a ser destacado é Joel Rufino dos


Santos, intelectual afro-brasileiro, que se dedicou também
à produção de obras que tratam, entre outros temas, de
questões históricas reconstruindo personagens sob novas
perspectivas, como Zumbi dos Palmares.
Apesar de as personagens do romance brasilei-
ro contemporâneo serem predominantemente brancas,
como afirma Regina Dalcastagnè (2011, p. 313), já que
“somam quase quatro quintos das personagens (consi-
deradas as personagens ´importantes´, isto é, com algum
peso no desenrolar da trama)”, a divulgação no espaço da
literatura infantojuvenil das poucas narrativas que trazem

11. Inspirados, segundo o autor nas páginas finais de Histórias afri-


canas para contar e recontar (2001), em seu contato com a África
ao longo de dois anos onde conheceu a tradição dos contos
etiológicos que explicam a origem das coisas e o comporta-
mento de animais.

107
não apenas personagens negras, mas também relatos da
cultura africana sob a voz de narradores pertencentes a
essas tradições pode significar a consolidação, cada vez
maior, dessas e de outras obras no espaço da literatura
brasileira.

Meios de divulgação

O acesso às informações sobre os escritores e as


escritoras da literatura afro-brasileira pode ser obtido via
web e é possível, até mesmo, manter contatos com os au-
tores e as autoras via site, blogs ou facebook. Essa abertura
oferecida pelo mundo digital nada significa se não hou-
ver a difusão das informações em sala de aula sobre esse
material, após ser realizada a inclusão digital dos leitores
que desconhecem esse meio. O reconhecimento desses
autores no espaço educacional pode se tornar fundamen-
tal para que essas obras sejam cada vez mais difundidas
pelos meios impressos e digitais, promovendo debates e
trazendo novos perfis de personagens, heróis e heroínas
que reflitam de maneira mais ampla a diversidade cultural.

Certas lendas e contos tradicionais omitem a tra-


jetória de luta do povo negro e servem mais para
constranger a criança negra perante as outras do
que para promover a aceitação e o respeito à di-
versidade. O contato com material pedagógico
displicente com a diversidade racial colabora
para estruturar em todos os/as alunos/as uma
falsa ideia de superioridade racial branca e da in-
ferioridade negra. (Cavalleiro 2001, pp. 153-154)

As inovações no campo da leitura digital surpreen-


dem quanto à capacidade de criar opções de linguagens

108
simultâneas num mesmo espaço para representar os sig-
nificados engendrados pelo e no texto ficcional, quebran-
do os limites espaciais da palavra escrita. Texto escrito,
imagem e movimento se unem em múltiplas perspectivas
no ato de leitura que procura captar, em ângulos varia-
dos, essas formas de representação de sentidos. Ao se
pensar em leitores em formação em meio a essas modifi-
cações contínuas nas formas de apresentação do texto e
na maneira de lê-los, mais especificamente, na literatura
infantojuvenil, em que a ilustração sempre teve espaço de
maior importância, as novas tecnologias parecem se tor-
nar mais atraentes e capazes de interferir com maior rapi-
dez nas escolhas de leitura das gerações que crescem em
meio a jogos eletrônicos e imagens de alta definição ou
3D. No espaço da literatura infantojuvenil, as ilustrações
ganham relevância e com a introdução de seus conteú-
dos em novas interfaces há a possibilidade de despertar
o interesse dos jovens leitores. Esse interesse, uma vez
aguçado, possibilita a abertura para a compreensão dos
conteúdos, ampliando a percepção dos significados, ou
seja, a divulgação de uma obra e o modo como é feita
pode interferir na apreciação do leitor em contato com
o mundo digital. Segundo Canclini (2008, p. 30), essas
alterações também provocam desafios:

desafios para os quais a maioria dos cidadãos


não foi treinada: como usar o software livre ou
proteger a privacidade no mundo digital, o que
fazer para que as brechas no acesso não agra-
vem as desigualdades históricas entre nações
ou etnias, campo e cidade, níveis econômicos e
educacionais?

Mesmo em face de tantas atrações para a leitura,


ainda existem dificuldades para publicação no mercado
editorial de alguns temas que demonstram ser raridade no

109
espaço da literatura infantojuvenil, como os de temática
afro-brasileira. O interesse do leitor em desvendar novas
culturas é o primeiro impulso para a busca de histórias,
utilizando todos os meios de circulação a sua disposição,
seja pelo livro impresso, seja pelo ciberespaço. O estímulo
a esse olhar mais amplo pode começar pelo contato, em
sala de aula, com heróis e heroínas de mundos (até agora)
pouco (re)conhecidos. Esse talvez seja um dos caminhos
para evitar que se agravem as desigualdades não apenas
no mundo digital, como indaga Canclini, mas também no
real. Ao final deste capitulo, de acordo com a proposta
do livro, há uma atividade que retoma de certa forma a
discussão tratada.

Bibliografia

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113
ATIVIDADES PROPOSTAS

Betina de Nilma Lino Gomes (2009) com ilustrações de De-


nise Nascimento conta a história de uma menina negra e seu
convívio com a avó. Ao trançar os cabelos de Betina, a avó
contava histórias. Pesquise sobre os griots e analise outras
obras da literatura infantil e juvenil mencionadas neste tra-
balho. Observe de que modo são retratados os contadores e
as contadoras de histórias nessas narrativas.

114
Capítulo 6
A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO...
MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO

Maria Emilia Vico

Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um


estado de espírito? (...) acho que vou ter uma conversa com
Rubem Braga porque sozinha não consegui entender.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo, 1995.

Na primeira parte deste trabalho procurar-se-á


uma aproximação à definição de crônica. Para isso tenta-
remos dar resposta a perguntas tais como: qual é o seu
público? Quais os possíveis temas? Tem a crônica uma
estrutura específica? Qual é a sua origem? E o veículo ou
veículos? Quais são os objetivos da interação? Quais são
os gêneros que se lhe parecem? Quais as características
que fazem com que possamos dizer que um determinado
texto é uma crônica? A crônica é um gênero literário? Na
segunda parte do trabalho tomaremos como exemplo de
análise uma crônica de Carlos Drummond de Andrade
publicada na coletânea Cadeira de balanço para apontar nela
as características do gênero. Finalmente, far-se-á a pro-
posta de trabalho.

115
Tentaremos aqui listar as características do gênero
com o intuito de defini-lo. Para isso, organizar-se-á em
itens, sem pretensão de absoluta exaustividade, tentando
responder às perguntas acima e algumas vezes indo além.
Como Antonio Candido deixa transluzir no artigo
A vida ao rés-do-chão, ao falarmos em crônica já partimos
do preconceito de ela ser considerada social e até acade-
micamente como um gênero menor. Vejamos também como
Clarice Lispector, na crônica Ser cronista publicada na co-
letânea A descoberta do mundo, revela como o tal preconcei-
to flutua no ambiente:

Um amigo que tem voz forte, convincente e


carinhosa, praticamente intimou-me a não ter
medo. Disse: escreva qualquer coisa que lhe
passe pela cabeça, mesmo tolice, porque coisas
sérias você já escreveu,1 e todos os seus leitores
hão de entender que sua crônica semanal é um
modo honesto de ganhar dinheiro. (Lispector
1995, p. 113)

Não só podemos ler nesse trecho o preconceito


de o seu amigo (amigo que pode ser ficcional... ou não)
entender que a crônica é um gênero literário menor, mas
também que o trabalho de cronista foge do meramente
artístico e passa ao mundano. Para outros inclusive a crô-
nica não é sequer literatura, é jornalismo.
Talvez o preconceito e o temor perante a crônica
possa surgir pelo fato de se tratar de um gênero pouco
confortável (Castello, 2007) e instável por essa dualidade
de ele ser literário, porém, se encontrar num veículo mais
próprio de outros gêneros ligados ao jornalismo. Como

1. Faz referência aos livros de contos e romances da autora, es-


clarecimento que na crônica está enunciado num parágrafo
anterior.

116
diz José Castello, “a crônica confunde porque está onde não de-
via estar: nos jornais, nas revistas e até na televisão” (Castello,
2007). É interessante a figura do forasteiro que o autor
utiliza para comparar com a crônica, desconfia-se do
forasteiro por ser um outro que não pertence ao lugar,
circunstância de que a crônica padece: os jornalistas des-
confiam por considerá-la literária e os puristas literários
por considerá-la jornalismo.
Outro traço é a brevidade, a crônica é um gênero
de breve extensão se comparado com outros gêneros li-
terários como o romance. Costuma também ser breve o
período de tempo de que o cronista dispõe para escrever
o seu texto, pois se publicado num jornal pode ter obri-
gações semanais ou até diárias.
Também breve é a vida do seu veículo, o jornal.
Compartilha o suporte com gêneros como notícias e re-
portagens onde os fatos e o real cotidiano são a maté-
ria-prima. Acaba compartilhando a efemeridade desses
outros gêneros do jornalismo e do próprio suporte “jor-
nal” que demora em morrer o tempo do surgimento do
novo exemplar. A grande maioria dos autores consulta-
dos destaca como traço a efemeridade da crônica que por
se encontrar no jornal verá o seu ligeiro desaparecimento.
Porém, com o avanço das tecnologias e a publicação dos
jornais na internet difere o acesso às matérias publicadas.
Aqui estamos refletindo sobre a distinção entre o veículo
jornal em papel e o jornal digital. Enquanto o primeiro tem
24 h de vida para depois passar a ser papel descartado o
segundo continua num espaço digital podendo-se acessá
-lo a qualquer momento. No entanto, embora mereça a
pena tal distinção, consideramos que tanto no jornal em
papel quanto no jornal digital, por se tratar em última ins-
tância do suporte “jornal”, que tem publicações diárias
com matérias que pretendem dar conta dos fatos acon-
tecidos na última hora, os leitores em sua grande maioria
não leem jornais de dias passados. Apesar da distinção, a

117
vida da crônica publicada em jornal tem uma existência
efêmera.
O seu primeiro veículo é, como já mencionamos,
na grande maioria dos casos, o jornal, no entanto, pode,
num segundo momento, passar a fazer parte de uma co-
letânea de crônicas selecionadas pelo próprio autor ou ser
um livro póstumo ou até ser uma coletânea que integre
vários cronistas, sendo então possível que ela permane-
ça, fugindo da efemeridade do dia-a-dia do jornal através
do suporte livro. O público será então um leitor que lê
jornais com frequência, mas que não faz uma leitura apu-
rada, mas ágil, não demorada. Podemos até agora parar
para refletir como o suporte determina o gênero. Recapi-
tulando: por ter como primeiro suporte o jornal a crônica
tem uma breve extensão pelo limite do espaço para cada
matéria, o cronista dispõe de um tempo já estabelecido
para produzir que costuma ser de curta duração e o texto
empírico tem uma vida breve, se não for recuperado pos-
teriormente numa coletânea.
Uma outra feição da crônica que José Castello des-
taca é a radical liberdade. “Ela já não tem compromisso com
mais nada: nem com a verdade dos fatos, que baliza o jornalismo,
nem com o império da imaginação, que define a literatura” (Cas-
tello, 2007). Embora coincidamos em parte com esta afir-
mação, vale a pena comentar que essa liberdade pode ser
restrita pelas políticas editoriais do jornal.
A crônica registra o circunstancial, expõe Jorge de
Sá. Eis a sua conexão com o “real”. Existe um ponto, um
tema, uma perspectiva, mesmo que por vezes pareça estar
codificada, de contato com um acontecimento do coti-
diano. Com isto não queremos dizer que as personagens
sejam necessariamente não ficcionais, de fato, encontra-
mos personagens, tempos e lugares ficcionais, mas que
nalgum ponto tecem uma ponte com uma circunstância
que pode estar sendo parodiada. O cronista tem o poder
de captar um fato que poderia passar despercebido, um

118
fato aparentemente irrelevante e fazer com ele uma refle-
xão sobre os temas mais profundos da existência huma-
na. Por isso, acontece que muitas das crônicas que surgi-
ram a partir de um fato circunscrito a um tempo e espaço,
pela provocação ou reflexão das suas palavras, mantêm a
atualidade através dos anos.
A crônica pressupõe certos vestígios de verdade.
Dita presunção de verdade poderia estar justificada pelo
fato de serem publicadas em jornais e por terem muitas
vezes a forma de monólogos ou anedotas que os leitores
podem assumir como experiências “reais” dos cronistas.
Essa dualidade com a que os leitores de crônicas se de-
frontam – realidade vs ficção – alimenta de certa forma
essa dita difícil categorização do gênero.
A respeito da estrutura e da língua é também Jorge
de Sá quem destaca um traço que consideramos pertinen-
te: o fato de a sintaxe deste gênero lembrar “alguma coisa
desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos
do que propriamente do texto escrito. (...) há uma proximidade
maior entre as normas da língua escrita e da oralidade” (Sá 1997,
p. 11). No entanto, não devemos por isso pensar que a
crônica tratar-se-á de uma transcrição da língua oral, Sá
esclarece que há uma recriação disso que foi ouvido e não
uma simples cópia. Pode fazer uso de uma língua poética
ou humorística ou sarcástica ou mais coloquial numa es-
pécie de conversa... Onde as conjunções alternativas po-
dem também ser aditivas e se dar o fato de encontrarmos
crônicas onde todas essas particularidades têm existência.
Difícil definir este ou qualquer outro gênero pelo
tema, mas de qualquer maneira vamos tentar delimitar os
temas ou pelo menos as particularidades que eles apre-
sentam. Ensina Candido que as crônicas costumam assu-
mir assuntos com “ar de coisa sem necessidade (...) ela se ajusta
à sensibilidade de todo o dia (Candido 1992, p. 13). Poderí-
amos então dizer, seguindo esse raciocínio, que se trata
de temas do cotidiano, mas como diferenciar temas do

119
cotidiano e temas que não pertencem a ele? Difícil res-
posta. De todo jeito, vamos resgatar como particularida-
de que as crônicas costumam ter como assunto alguma
circunstância do dia-a-dia que parece supérflua ou trivial,
embora isto seja por vezes aparente. É Machado de Assis
quem na crônica O nascimento da crônica diz “Há um meio
certo de começar a crônica por uma trivialidade”. É dizer: Que
calor! Que desenfreado calor!” (Assis 1973), ele afirma que há
algo de verdade no fato de a crônica se iniciar com uma
banalidade, um acontecimento corriqueiro, mas..., cuida-
do! Isso não nasceu com a crônica nem é exclusivo dela,
embora ela faça uso desse elemento. Machado continua:

Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufan-


do como um touro, ou simplesmente sacudindo
a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenôme-
nos atmosféricos, fazem-se algumas conjetu-
ras acerca do sol e da lua, outras sobre a febre
amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La
glace est rompue; está começada a crônica. Mas,
leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do
que as crônicas. (Assis 1973)

Dessa forma passa do nascimento mítico da crô-


nica ao nascimento (poderíamos também dizer que míti-
co) do calor na alternância própria do bate-papo: o calor
nasceu depois da fatal curiosidade de Eva e a crônica no
primeiro papo de duas vizinhas:

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes per-


der o paraíso, cessou, com essa degradação, a
vantagem de uma temperatura igual e agradável.
Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os
tufões, as secas, todo o cortejo de males, distri-
buídos pelos doze meses do ano.

120
Não posso dizer positivamente em que ano nas-
ceu a crônica; mas há toda a probabilidade de
crer que foi coetânea das primeiras duas vizi-
nhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda,
sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do
dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do
calor. (Assis 1973)

Machado de Assis não define a crônica nesta crô-


nica, melhor ainda, ele apresenta com traço firme num
texto curtíssimo uma das particularidades deste gênero:
a alternância desorganizada de temas e assuntos que po-
dem ser tocados num mesmo texto, como o nascimento
da crônica e do calor, i.e., a passagem de uma conversa
para outra sem concluir nenhuma delas, próprio de um
diálogo descontraído, de um bate-papo entre vizinhas.
Apropriamos-nos da metáfora de Antonio Candi-
do para salientar uma outra feição: a vida ao rés-do-chão,
a crônica ao rés-do-chão. É um gênero despretensioso, sem
propósitos pomposos de se destacar pela magia ou relu-
tância das palavras. Ao rés-do-chão, de lado com o leitor,
perto dele, com uma linguagem com a qual o leitor possa
se reconhecer através dos comentários, ou talvez dos lu-
gares comuns, das situações ou das comédias/tragédias
da vida privada.2 É essa “minoridade de gênero” que faz
com que aprofunde em temas sérios de forma simples. A
crônica “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou
uma singularidade insuspeitadas” (Candido 1992, p. 14). Esse
fato de aparência miúda pode trazer a lume muito mais,
por exemplo, uma crítica social, uma reflexão ou simples-
mente mostrar o fato desse fato não ser tão miúdo.
Há entre cronista e leitor uma espécie de pacto de
leitura que consiste numa predisposição a entender o que é

2. Fazemos aqui alusão à coletânea de Luís Fernando Veríssimo


Comédias da vida privada.

121
publicado no jornal. Foi assim que explicou Clarice Lis-
pector na crônica Escrever para jornal e escrever para livro:

Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que


fizera uma constatação curiosa: certas pessoas
achavam meus livros difíceis e no entanto acha-
vam perfeitamente fácil entender-me no jornal,
mesmo quando publico textos mais complica-
dos. (...) Respondi ao jornalista que a compre-
ensão do leitor depende muito da sua atitude na
abordagem do texto, de sua predisposição, de
sua isenção de ideias preconcebidas. E o leitor
de jornal (...) está predisposto a entender tudo.
(Lispector 1995, p. 421)

Com o intuito de suavizar as afirmações que bus-


cam definir o gênero diremos que embora o humor deva
ser consignado como fazendo parte do leque de caracte-
rísticas da crônica, devemos também lembrar que é um
traço do qual algumas crônicas prescindem.
A respeito da intenção discordamos de Candido
quando afirma que na grande maioria dos casos é divertir.
Apesar de que a crônica pareça ter uma linguagem leve e
seja de leitura mais leviana que outros gêneros literários,
os objetivos nas diversas crônicas variam do mero diver-
timento ou distração, a refletir sobre um assunto, pôr as
cartas na mesa sobre uma situação, agradecer, esclarecer,
justificar-se, mostrar um absurdo, provocar e muitos ou-
tros. Não negamos a função de divertir mas advertimos
que os objetivos da interação podem variar de uma crôni-
ca para outra ou a crônica ter mais de um objetivo.
A crônica é um gênero literário, o que ela tem de jor-
nalístico é o suporte onde primeiro surge. E poderíamos
até dizer que se aproveita dele para despistar os leitores,
pois nasce um texto literário da mão do jornal chegando

122
a um público talvez mais geral que se fosse publicada so-
mente em livro. No entanto, ela se mantém como gênero
literário, sua linguagem é literária, com inúmeras figuras
de estilo, imagens poéticas e, além disso, a função se afasta
da propriamente jornalística de comunicar objetivamente
acontecimentos do cotidiano. O cronista não enumera os
fatos com uma ordem lógica e objetiva como faria numa
notícia nem tenta argumentar sobre a culpabilidade de
um determinado político como faria numa reportagem,
o cronista não descreve os fatos, ele mostra imagens do
cotidiano, dialoga, ele circunda, rodeia os assuntos sérios
através de fatos miúdos.
Há crônicas que parecem monólogos, ensaios, ou-
tras contos, algumas até cartas ou anedotas. Nesse seu
aspecto leve a crônica parece trazer elementos de outros
gêneros. Algumas vezes trata-se da aparição no macro
gênero de um outro gênero, mas outras vezes, sem po-
dermos falar teoricamente de um processo de intertex-
tualização,3 somos testemunhas de como certas crônicas
utilizam aspectos próprios de outros gêneros literários e
não literários. Por exemplo, no caso do ensaio comparti-
lha elementos como as perguntas retóricas e o discurso
misto interativo-teórico.
E como último item, depois deste percurso que
busca caracterizar a crônica, salientamos a dificuldade de
definição pela diversidade de textos empíricos conside-
rados como pertencentes ao gênero, pela flexibilidade da
sua estrutura, pelas suas variadas características, por se
encontrar num veículo que não é próprio de gêneros li-
terários e por isso ser um gênero traiçoeiro, por nascer
de um fato miúdo e aparentemente cotidiano e real, mas
se tecer com elementos ficcionais e linguagem poética. E
voltamos aqui à crônica de Clarice Lispector que elucida
com virtuosismo numa crônica brevíssima a dificuldade

3. Conceito cunhado por Florencia Miranda (2010).

123
de definir a crônica, epígrafe que abre o nosso trabalho:
“Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado
de espírito? (...) acho que vou ter uma conversa com Rubem Braga
porque sozinha não consegui entender” (Lispector 1995, p. 113).

Análise da crônica Perde o gato de


Carlos Drummond de Andrade

A crônica que será aqui comentada, Perde o gato, de


Carlos Drummond de Andrade, foi primeiro publicada
no jornal Correio da manhã. O cronista escreveu para esse
jornal desde 1954 a 1969 três crônicas semanais. A cole-
tânea organizada em livro pelo próprio autor, intitulada
Cadeira de balanço, foi publicada no ano de 1966. Por isso,
podemos concluir que Drummond fez uma seleção den-
tre a grande quantidade de crônicas que tinha já publica-
do nesse jornal entre 1954 e 1966, ano da publicação do
livro, pois escrevia três crônicas semanais o que nos faz
pensar que tinha um acervo de mais de mil crônicas na
hora da seleção. Confessa o autor que trocou o nome de
algumas delas na organização do livro em partes. Cadeira
de balanço está dividido em oito secções: Historinhas que
acabam antes de começar; Vida de um qualquer; Figuras
que a gente encontra; Cariocas; Política mais ou menos;
Os marcados; Correspondência particular e Extra. No
prefácio o autor diz:

Cadeira de balanço é móvel da tradição brasilei-


ra que não fica mal em apartamento moderno.
Favorece o repouso e estimula a contemplação
serena da vida, sem abolir o prazer do movi-
mento. Quem nela se instale poderá ler estas
páginas mais a seu cômodo. Daí o título do livro
(...) (Andrade 1984, p. 2)

124
Tradição e modernidade dizem muito sobre
Drummond de Andrade quem conseguia ser moderno
sem esquecer a tradição. A cadeira de balanço também
diz respeito à maneira de sentar para ler, pensar, refletir
num mundo moderno e veloz com escasso espaço para
a contemplação.
A crônica aqui escolhida pertence à secção Vida
de um qualquer, um qualquer que é o próprio poeta num
tom confessional, que poderia ser um outro qualquer.
Passemos agora à crônica Perde o gato, um texto de
apenas duas páginas. O cronista começa se justificando,
quer justificar o porquê de escrever sobre um tema miú-
do: perder o gato:

Um jornal é lido por muita gente, em muitos


lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a
todos, pelo menos a certo número de pessoas.
Mas o que me brota espontaneamente da má-
quina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a
mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio
de mudar de coluna. Trata-se de um gato. (An-
drade 1984, p. 28)

Drummond diferencia o que encontramos no jor-


nal, matérias que interessam, pois o jornal para ser lido
deve trazer temas interessantes, das colunas que ele es-
creve, das crônicas em geral que trazem fatos miúdos.
Por sua vez, Drummond também nos deixa ler como a
crônica é caracterizada por essa leveza quando diz “o que
me brota espontaneamente da máquina”, como se não sofresse
grande reflexão e fossem os pensamentos crus que são
transcritos.
“O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna”,
a forte presença do destinatário é outro traço das crôni-
cas, neste caso o diálogo que estabelece o cronista com o

125
leitor dispensa-o de continuar a leitura. Porém, sabemos
que ao sermos dispensados isso prende a nossa atenção
e pretendemos continuar a leitura para saber qual é esse
fato tão miúdo que vai ser relatado. Aparece o cotidia-
no, a própria vida do cronista, a ausência do seu gato
Inácio. É uma espécie de confissão escrita na primeira
pessoa que conta, por isso, com a pretensão de verdade.
E falamos de pretensão porque sabemos que embora seja
escrita na primeira pessoal com tom confessional pode
ser uma personagem criada pelo cronista: um cronista e a
ausência do seu gato. Esta ausência alterna-se com o ato
de escrever como tema sobre o que reflete dizendo:

Se se agravar a mediocridade destas crônicas,


os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se
tinham alguma coisa de aproveitável era a pre-
sença de Inácio a meu lado, sua crítica muda,
através dos olhos de topázio que longamente
me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou
através do sono profundo, que antecipava a rea-
ção provável dos leitores. (Andrade 1984, p. 29)

Inácio poderia ser o próprio Drummond, o Drum-


mond criativo, o Drummond imaginativo, o Drummond
com uma pitada de humor e lirismo e estar nos dizen-
do que muitas vezes alguns desses Drummonds pode se
encontrar ausente. O cronista justifica-se das possíveis
crônicas que não sejam interessantes para o leitor. Esse
paralelo da ausência do gato com a ausência da criativida-
de podemos lê-la em: “É próprio do gato sair sem pedir
licença, voltar sem dar satisfação” (Andrade 1984, p. 29).
É uma crônica de um fato miúdo que fala de coisas
sérias, reflete sobre o ato de escrever, sobre as crônicas
e sua diferença com as outras matérias publicadas em
jornais. Por sua vez, ao longo da leitura de Drummond
nos encontramos com reflexões filosóficas que não são
126
amplamente comentadas, mas são somente lançadas, ex-
postas com a leveza do fato miúdo, com uma linguagem
coloquial de quem confessa um acontecimento, mas que
têm a profundidade dos grandes assuntos filosóficos. Na
narração através da qual conhecemos a tentativa de res-
gatar o gato perdido Drummond diz: “Chamados afetuosos
não o comoveram; tentativas de aproximação se frustraram. Ele
fugia sempre, para voltar se nos via distante. Amava” (Andrade
1984, p. 28). Drummond traz aqui sem dizer, mas dizen-
do, uma concepção do amor. Por sua vez, vemos o fato
de um fato miúdo não ser tão miúdo, e a relatividade da im-
portância das coisas: “Mas Inácio desapareceu – e sua falta
é mais importante para mim, do que as reformas de ministério”
(Andrade 1984, p. 28).
Não faltam nem a crítica nem o humor nesta crô-
nica de Drummond e os dois vêm dar a mão, quando o
cronista dá algumas hipóteses do porquê somem os gatos
na cidade do Rio de Janeiro: “Agora ouço dizer que se relacio-
na com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia
de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça
tão esquiva quanto a outra” (Andrade 1984, p. 28).

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de (1984[1966]). Cadei-


ra de balanço. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora.
ANTUNES GOMES, Fernanda (2007). A arte de croni-
car em Ana Paula Tavares. Dissertação de Mestrado.
Rio de Janeiro: UFRJ. Disponível em: http://www.
letras.ufrj.br/posverna/mestrado/GomesFA.pdf.
ASSIS, Machado de (1973). Obra Completa, vol. III. Rio de
Janeiro: Aguillar.

127
CÂNDIDO, Antônio (1992) “A vida ao rés-do-chão”, in:
CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua
fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa.
CASTELLO, José (2007). “Crônica, um gênero brasilei-
ro.” Digestivo Cultural. Disponível em: http://www.
digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codi-
go=228&titulo=Cronica,_um_genero_brasileiro.
LISPECTOR, Clarice (1999). A descoberta do mundo. Rio
de Janeiro: Rocco.
MIRANDA, Florencia (2010). Textos e gêneros em diálogo.
Uma abordagem linguística da intertextualização. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
SÁ, Jorge de (1997). A crônica. São Paulo: Ática.

128
ATIVIDADES PROPOSTAS

A proposta consiste em fazer um exercício de leitura e análi-


se de crônicas tentando dar conta das características enume-
radas no presente artigo que têm o intuito de definir o gêne-
ro ou de se aproximar na sua delimitação. Assim, depois da
leitura dos itens teóricos sobre crônica e da análise comen-
tada da crônica de Drummond de Andrade convidamos os
leitores a procurarem em outras crônicas os elementos que
as caracterizam. Sugerimos a continuação da análise com
crônicas de Carlos Drummond de Andrade, do livro Cadeira
de balanço ou dos textos de Luis Fernando Veríssimo dos
livros Comédias da vida privada ou As mentiras que os ho-
mens contam. Porém, seria frutífero, do mesmo modo ou até
ainda mais, fugir da sugestão bibliográfica que aqui se reali-
za e pegar crônicas diversas, dos autores mais diversos, das
datas mais antigas até as mais contemporâneas, dos lugares
mais longínquos do Brasil e dos países de língua portuguesa
e analisar e comparar se os traços se mantêm ou diferem.
Convidamos os leitores para que completem a listagem de
itens com traços do gênero que não se pretende numerus
clausus, mas aberta e passível de discussão.

129
Capítulo 7
O GÊNERO POÉTICO NO
ENSINO DE LITERATURA

Márcia Cabral da Silva

Introdução

Na contemporaneidade, dada a hibridização dos


gêneros, talvez conceituar o gênero poético torne-se um
exercício por demais complexo. Já se conhecem bem os
rompimentos formais introduzidos pelos autores mo-
dernistas. Ademais, inúmeros autores contemporâne-
os elaboraram textos literários nas fronteiras do que se
identifica tanto como prosa quanto como poesia. Não
obstante a complexidade, pode-se ainda circunscrever o
conceito de poesia, com vistas aos programas didáticos
relacionados ao ensino de Literatura. Pensar em poesia
significa acercar-se de um gênero literário com séculos
de existência e de grande importância estética para a hu-
manidade. Pode-se falar de poesia, praticamente, desde a
antiguidade clássica. E, por mais que tenha se modificado
com o passar do tempo, seu valor humanístico permane-

131
ce. Do ponto de vista formal, a crítica literária costuma
identificá-la a partir de elementos estilísticos verificados
em jogos de palavras, na musicalidade das frases, na orga-
nização das palavras em versos e em outras características
formais e de conteúdo comentadas ao longo deste artigo.

O conceito de poesia

1. Além da crítica canônica, os próprios poetas


costumam exercitar a reflexão sobre a matéria por meio
da utilização da metalinguagem. Acompanhem-se alguns
desses conceitos nos fragmentos que se seguem:

Poema 1
Poética
I
Que é a poesia?
Uma ilha
Cercada de palavras por todos os lados (...).1

Poema 2
A poesia é uma pulga
A poesia é uma pulga,
Coça, coça, me chateia,
Entrou por dentro da meia,
Saiu por fora da orelha,
(...),
Mexe, mexe, não se cansa,
Nas palavras se balança (...)2

1. Ricardo, Cassiano [1998]. “Que é a poesia?” in: De Nicola,


José Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo:
Scipione, p. 25.
2. Orthof, Sylvia [1992]. A poesia é uma pulga. São Paulo: Atual, p. 4.

132
Poema 3
Convite
Poesia
É brincar com palavras
Como se brinca
Com bola, papagaio, pião.
Só que
Bola, papagaio, pião,
De tanto brincar,
Se gastam.
As palavras não:
Quanto mais se brinca
Com elas,
Mais novas ficam. (...)
Vamos brincar de poesia?3

Poema 4
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
Não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.

Não façais poesia com o corpo,


Esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
à efusão lírica. (...)
Nem me reveles teus sentimentos(...)
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (...)

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra

3. Paes, José Paulo [1996]. Convite. In: Aguiar, Vera (coord.) et. al.
Porto Alegre: Editora Projeto; CPL/PUCRS, p. 48.

133
E te pergunta, sem interesse pela resposta
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave? (...)4

A releitura de cada trecho dos poemas permite ao


leitor a reflexão sobre noções de poesia. Por vezes, jogan-
do mais com o humor ou com a brincadeira, como Sylvia
Orthof e José Paulo Paes - “é uma pulga, que coça”, “é
brincar com palavras”. Por outra, em busca de conceitu-
ações mais complexas, como Cassiano Ricardo e Carlos
Drummond de Andrade – “é uma ilha cercada de pala-
vras”, “o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”
há, de um modo ou de outro, a possibilidade de reflexão
acerca de sua singularidade.
Acresça-se o fato de que as ideias transmitidas pe-
los poetas são bastante instigantes porque trazem concei-
tos que nos falam à imaginação. Repare-se, por exemplo,
na noção de inquietação, sugerida na imagem da pulga,
que coça; na ideia de porção de terra cercada de palavras,
metáfora criada por Cassiano Ricardo, que faz lembrar
lugar isolado, às vezes, inacessível. E isso pode, de fato, acontecer,
se não conseguirmos estabelecer associações entre as palavras, de
modo a alcançar os possíveis sentidos da poesia. Já nos
alertava Drummond: as palavras têm mil faces secretas e,
se não tivermos a chave, ou seja, a percepção para os dife-
rentes significados que as palavras assumem no contexto
da poesia, torna-se tarefa árdua compreendê-las.
Além disso, é necessário observar que, em todos
os poemas mencionados, há um ponto coincidente: o
trabalho com a palavra, matéria-prima da poesia. Deve-
se, contudo, acrescentar a esta noção a ideia de trabalho
criativo, pois não se trata da palavra registrada aleatoria-
mente. Conforme observado quando da primeira leitu-
ra dos poemas, evidencia-se, nesse tipo de composição,

4. Andrade, Carlos Drummond [1975]. Antologia Poética. Rio de


Janeiro: José Olympio, pp. 175-177.

134
grande esforço por parte do poeta na procura da palavra
exata, aquela que melhor convém ao seu estado de ânimo,
à tentativa de falar de seus sentimentos ou, mesmo, do
sentimento dos homens na vida social e expresso por ele.
De modo a ampliar a definição, Massaud Moisés,
em seu Dicionário de Termos Literários (1998), fala de um
eu, denominado eu do poeta ou eu lírico, que se revela ao
mesmo tempo como sujeito e objeto nesse processo de
criação, voltando-se para si; esse o movimento frequente
no exercício de se fazer poesia, ainda mais se se considera
a abordagem crítica tradicional.
De tal modo, diferentemente do gênero narrativo,
estruturado com base em diversos tipos de personagens
e de narradores, na poesia, o leitor defronta-se frequen-
temente com uma personagem - o eu lírico - que vê o
mundo, as pessoas e a si próprio, em um esforço de expri-
mir-se. Se se leva em conta a importância dos elementos
da narrativa na construção da ficção, não é difícil com-
preender o ponto de vista de Massaud Moisés. A título de
ilustração, examinem-se elementos extraídos do romance
Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Em Vidas Secas, acompanha-se como os diferentes
personagens ganham vida - Fabiano, Sinhá Vitória, me-
nino mais velho, menino mais novo - e são fundamentais
na composição da narrativa. Inclui-se o enredo na har-
monia desta composição. Ali, Graciliano Ramos esmera-
se a transfigurar em matéria literária as dificuldades de
uma família de retirantes a fugir da seca no sertão nordes-
tino, como se verifica no trecho a seguir:

(...) Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste,


seria despedido quando menos esperasse. Ao
ser contratado, recebera o cavalo da fábrica, per-
neiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro
cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o
substituísse.

135
Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual
a de Seu Tomás da bolandeira. Doidice, não
dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que
era doidice, cambembes podia ter luxo? E es-
tavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão
os botaria para fora, e eles ganhariam o mundo,
sem rumo, nem teriam meio de conduzir os ca-
carecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam
bem debaixo de um pau.
Olhou a caatinga amarela, que o poente aver-
melhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta
verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente.
Sempre tinha sido assim desde que ele se en-
tendera. E antes de se entender, antes de nascer,
sucedera o mesmo – anos bons misturados com
anos ruins. A desgraça estava a caminho, talvez
andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele
marchando para casa, trepando a ladeira, espa-
lhando seixos com as alpercatas – ela se avizi-
nhando a galope, com vontade de matá-lo.5

Para se alcançar uma ideia ampliada de uma única


personagem na poesia de que fala Massaud Moisés, dife-
renciando-a da narrativa, observe-se um trecho do poe-
ma de Patativa do Assaré:

Caboclo Roceiro
Caboclo roceiro das plagas do norte,
Que vives sem sorte, sem terra e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto teu pranto, me ponho a chorar. (...)6

5. Ramos, Graciliano [1971]. Vidas Secas. São Paulo: Martins, p. 59.


6. Assaré, Patativa [2005]. “Caboclo Roceiro”, in: Andrade,
Cláudio Henrique Sales Patativa do Assaré. São Paulo: Editora
Escala. Discutindo Literatura ano I, nº 1, p. 54.

136
Do exame deste trecho do poema, pode-se perce-
ber as diferenças apontadas anteriormente em relação a
Vidas Secas. No romance, é perceptível o ângulo de ob-
servação do narrador onisciente, cuja função consiste em
contar as dificuldades enfrentadas pela família de retiran-
tes, com pleno acesso ao pensamento dos personagens.
O uso da linguagem por eles, “cambembes”, é frágil; mal
se comunicam entre si. Portanto, cresce o papel do nar-
rador a par das ações das personagens descritas por ele.
No que diz respeito ao poema Caboclo Roceiro, constata-se
tema semelhante. No entanto, é nítida a presença de um
eu poético no lugar do narrador e das personagens, que
canta a dor do caboclo e se põe a chorar. Percebe-se, por-
tanto, que o relato das dificuldades do caboclo emerge
em segundo plano, visto que o acento estilístico recai no
sentimento do poeta diante daquele drama.
Essas primeiras noções veiculadas nos poemas e
nas reflexões anteriores permitem uma primeira tentativa
de definição: a poesia pode corresponder de um modo
geral à expressão do eu, do eu do poeta, do eu lírico.
Convém, todavia, ampliar as noções, com vistas
à apreensão dessa forma particular de expressão. Já se
verificou, com o poeta José Paulo Paes, que uma forma
interessante de definir poesia consiste no jogo, evidencia-
do por meio da brincadeira com as palavras. Neste texto,
serão examinadas algumas maneiras de se explorar “essas
brincadeiras”, que tornam a poesia uma modalidade lite-
rária com características específicas. Uma dessas possibi-
lidades consiste em brincar com a voz que fala no poema.
Lembre-se de que, em um romance, há várias for-
mas de se apresentar um narrador, ou seja, a perspecti-
va de quem conta a história. Em poesia evidencia-se da
mesma forma diferentes possibilidades. A noção de eu
lírico, a voz inventada pelo poeta, para expressar o que ele
sente, pensa ou imagina, adotando diferentes pontos de
vista, ganha forma segundo diversos recursos estilísticos.
Acompanhe-se uma ilustração dessa noção de voz lírica
em um poema:

137
Poema Transitório
Eu que nasci na Era da Fumaça: – trenzinho
Vagaroso com vagarosas
Paradas
Em cada estaçãozinha pobre
Para comprar
Pastéis
Pés-de-moleque
Sonhos
– principalmente sonhos!
Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
Elas suspirando maravilhosas viagens
E a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
Sempre... Nisto,
O apito da locomotiva
E o trem se afastando
E o trem arquejando(...)
É preciso partir
é preciso chegar
É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida
é urgente!
... No entanto
eu gostava era mesmo de partir...
e – até hoje – quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.7

7. Quintana, Mário [1999]. Antologia Poética. Porto Alegre:


LP&M, pp. 77-78.

138
Nessa perspectiva, convém observar a expressivi-
dade contida na voz do eu lírico criada por Mario Quin-
tana. De uma parte, identifica-se um eu lírico antigo, pois
nasceu na era da fumaça. Alude, de outra parte, ao trem
movido à fumaça, e se recorda comovido dessa forma
específica de viajar. Devido à necessidade de expressar
a saudade que sente, cria um movimento imaginário no
tempo e no espaço, sugerindo o deslocamento de um
trem sempre de partida, “para parte nenhuma”. Verifica-
se por meio desse recurso - dessa voz inventada, - que o
eu poético pode se deslocar no tempo e viajar indefinida-
mente.
Além da voz do eu lírico, a poesia também se singu-
lariza por intermédio de muitos outros recursos expressi-
vos: figuras de linguagem, imagens, musicalidade e ritmo,
para citar alguns recursos recorrentes. Em uma palavra,
sugere-se que seu veículo consiste na ambiguidade das
palavras, na linguagem conotativa e no que se convencio-
nou denominar função poética (Aguiar e Silva 1984). Há,
segundo tal perspectiva, um trabalho criativo e intencio-
nal com os signos linguísticos.
Em vistas dos elementos mencionados, pode-se
definir poesia, também, como gênero literário que, em
geral, exprime estados e, apenas de modo secundário, aconte-
cimentos, conforme se assinalou na caracterização da nar-
rativa. Os trechos extraídos de Vidas Secas e Caboclo Ro-
ceiro, examinados na primeira parte deste estudo, ajudam
a entender possíveis distinções entre narrativa e poesia.
Não obstante a distinção, um conjunto mais amplo de
autores e textos que conforma a historiografia literária
merece ser examinado. Rupturas e continuidades podem
gerar inflexões relevantes para o ensino do gênero poéti-
co. Não se pode esquecer que os conceitos aqui tratados
visam muito mais a fornecer subsídios para uma proposta
didática em relação ao texto literário do que à crítica lite-
rária propriamente.

139
Figuras de linguagem e ritmo da poesia

Quando se lê ou se ouve poemas, tem-se a sen-


sação de que as palavras foram escolhidas para transmi-
tirem sonoridade, melodia e ritmo, além de ideias. E, se
lidas as entrevistas com poetas, a maioria deles relata um
árduo trabalho com a palavra, como o emblemático poe-
ma escrito por João Cabral de Mello Neto, Tecendo a Ma-
nhã, escrito ao longo de alguns anos (Mello Neto 2004)
A par desse esforço, merecem nota os recursos
expressivos criados por Mário Quintana, que permitem
caracterizar seu texto como poético.
Há, ali, algumas figuras de linguagem essenciais, por meio
das quais o poeta imprime expressividade ao poema. A primei-
ra figura pode ser reconhecida logo no seu início: “Eu que nasci
na era da fumaça – trenzinho, vagaroso com vagarosas paradas”.
Percebe-se que o eu poético, por meio de uma figura de lin-
guagem que já vimos no início deste texto – a metáfora
– movimenta-se aos olhos do leitor como um trenzinho.
Para criar esta impressão, vale-se da ideia de constantes
paradas; o eu poético apresenta-se, pois, vagaroso, tal como
aquele trem. Há passagens tão bem construídas que qua-
se não se distingue quando se trata da voz do eu poético ou
do movimento do trem, como neste trecho:

Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:


Elas suspirando maravilhosas viagens
E a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
Sempre...Nisto.
O apito da locomotiva (idem, p. 77)

Em uma primeira leitura, o trecho acima cria uma


fusão entre duas ideias – as moças admiravam o trem ou
os viajantes, incluindo o eu lírico? No entanto, uma leitura
analítica é capaz de esclarecer a ambiguidade, o duplo sen-
tido criado. Afinal, identifica-se a palavra suspirar, moças
suspirando, chave para a compreensão, pois sugere estado
de quem está enamorado de alguém e não de um objeto.
140
Além da metáfora, destaca-se uma outra figura de
valor estilístico para a composição deste poema. Em face
do trecho a seguir, observe o efeito de sentido provocado
pelo eu lírico, que, para reiterar o deslocamento do trem,
organiza os versos, repetindo a mesma construção sin-
tática. Estamos diante de uma outra figura de linguagem
que denominamos anáfora.

O apito da locomotiva
E o trem se afastando
E o trem arquejando
É preciso partir
É preciso chegar
É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é
urgente! (idem, p.78)

Por último, observe-se como a composição desses


recursos estilísticos de forma harmônica imprime ritmo e
musicalidade ao poema e contribui para uma compreen-
são mais ampla do seu significado.

Considerações finais

Ao se atentar para os propósitos deste estudo,


merece nota as seguintes noções. A poesia, de modo geral,
pode ser definida como trabalho criativo com a palavra.
Na poesia, de modo mais recorrente do que na narrati-
va, a ênfase costuma recair em uma personagem: o eu
poético ou eu lírico. Na poesia, costumam-se exprimir
estados; os acontecimentos, matéria própria da narrati-
va, quando ocorrem, emergem em planos secundários.
O ritmo e as figuras de linguagem, como a metáfora e a
anáfora, destacados neste texto, são recursos estilísticos
importantes em sua composição. Dando continuidade
às discussões realizadas neste capítulo, apresenta-se uma
atividade ao final.

141
Referências

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura.


Lisboa: Almedina, 1984.
ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1975.
ASSARÉ, Patativa. Caboclo roceiro. In: ANDRADE,
Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré. São
Paulo: Editora Escala. Discutindo Literatura. Ano I,
nº1, 2005.
MEIRELES, Cecília 2002. Ou isto ou aquilo. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, MELLO MELO NETO, J. C.
de 2004.Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo:
Instituto Moreira Salles.
MOISÉS, M. 1998. Dicionário de Termos Literários. São Pau-
lo: Cultrix.
ORTHOF, Sylvia, 1992. A poesia é uma pulga. São Paulo:
Atual.
PAES, José Paulo. Convite. In: AGUIAR, Vera. (Coord.)
et. al. 1996. Porto Alegre: Editora Projeto; CPL/
PUCRS, p. 48.
QUINTANA, Mário1999. Antologia Poética. Porto Alegre:
LP&M.
RAMOS, Graciliano1971. Vidas Secas. São Paulo: Martins.
RICARDO, Cassiano. Que é a poesia? In: DE NICOLA,
José 1998. Literatura brasileira: das origens aos nos-
sos dias. São Paulo: Scipione.

sites

http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/poe-
mas025.htm. Acesso em 22 de julho de 2010
http://www.secrel.com.br/jpoesia. Acesso em 22de ju-
lho de 2010.
142
Atividades propostas

Sugere-se a apreciação e a indicação dos principais instru-


mentais utilizados por Cecília Meireles nos trechos do po-
ema transcrito abaixo, tendo em conta conceitos e recursos
estilísticos enfatizados ao longo deste capítulo. Em seguida,
pode resultar em exercício interessante compará-los com os
demais poemas que compõem o livro Ou Isto ou Aquilo, de
Cecília Meireles.

Enchente
Chama o Alexandre!
Chama!

Olha a chuva que chega!


É a enchente.
Olha o chão que foge com a chuva (...)

Olha a chuva que encharca a gente.


Põe a chave na fechadura.
Fecha a porta por causa da chuva,
olha a rua como se enche.8

Outras sugestões de atividades poderão ser propostas a par-


tir de um levantamento de poemas extraídos de antologias
poéticas contemporâneas amplamente disseminadas no
mercado editorial.

8. Meireles, Cecília [2002]. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, p. 73.

143
SOBRE OS AUTORES

Claudicélio Rodrigues é doutor em Ciência da Literatura (Poé-


tica), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, com
a tese Ilhas da Encantaria: o rei Sebastião na poesia oral nutrin-
do imaginários. É professor da Universidade Federal do Ceará
– UFC, onde desenvolve, entre outras, atividades no setor de
estágio em ensino de literaturas de língua portuguesa.

Graciela Cariello é doutora em Humanidades e Arte pela Uni-


versidad Nacional de Rosario, com tese sobre Jorge Luis Borges
y Osman Lins: Poética de la Lectura. Autora, entre outros, de:
Aventuras en el río más lindo del mundo. Historias de hadas,
duendes y elfos e Figuraciones del otro en la literatura contem-
porânea (2017).

Ilana Heineberg é doutora em Études Lusophones, pela Uni-


versité de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (2004). Atualmente
é Maître de conférences na Université Michel de Montaigne
-Bordeaux 3. Sua experiência universitária compreende prin-
cipalmente os seguintes temas: romance-folhetim, romance
brasileiro e romance francês do século XIX, literatura brasileira
(séculos XIX e XX) e literatura comparada.

José Leite de Oliveira Júnior é doutor pela Universidade Federal


da Paraíba (2009), com a tese O pictórico na poesia caboverdia-
na: dos Claridosos a Kiki Lima. Possui pós-doutorado pela Uni-
versidade de São Paulo (2016). É professor da Universidade Fe-

145
deral do Ceará – UFC, onde desenvolve, entre outras, atividades
no setor de estágio em ensino de literaturas de língua portuguesa.

Márcia Cabral da Silva é doutora em Teoria e História Literária


pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e professora da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Seus interesses de pesquisa giram em torno de: história
da leitura; história do impresso; formação de leitores; literatura,
memória e sociedade; literatura e infância; Ensino Fundamental
e práticas de leitura e de escrita na escola e na sociedade.

Maria Carolina de Godoy é doutora em Estudos Literários pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007),
com pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (2012) e professora da Universidade Estadual de Londrina.
Seus temas de estudo são preferencialmente: literatura brasi-
leira, literatura afro-brasileira, literatura infanto-juvenil, difusão
digital de obras literárias, gênero literário, romance, conto, nar-
rador, focalização, personagem, herói e magia.

María Emilia Vico é doutoranda em Humanidades e Artes. Pro-


fessora da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade
Nacional de Rosario e pesquisadora do Centro de Estudos Com-
parativos (UNR), atuando, entre outras, na área da tradução.

146
Esta obra foi impressa em papel polen 75
gs. Instrução Normativa SRF nº 71 de 24
Agosto de 2001. Na capa foi utilizado Pa-
pel Supremo, 250 gs., laminação fosca.
Impressão e acabamento por processo digital
book on demand da METABRASIL GRÁFICA
a partir de arquivos do editor.

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