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Comitê Editorial
Literatura e Ensino
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ISBN 978-85-7591-560-8
Índices para catálogo sistemático:
1a edição
2019
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL
Apresentação
Capítulo 1
DA LITERATURA COMO TRAVESSIA:
É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA?
Claudicélio Rodrigues da Silva
Capítulo 2
FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA
COMPARADA E INTERCULTURALIDADE
Graciela Cariello
Capítulo 3
APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA DE
O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA E AS
TRADUÇÕES FRANCESAS NO SÉCULO XIX
Ilana Heineberg
Capítulo 4
APONTAMENTOS COGNITIVOS
PARA UMA DIDÁTICA DA LITERATURA
José Leite de Oliveira Júnior
Capítulo 5
HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS
DESCONHECIDAS: AS TRADIÇÕES AFRICANAS
EM NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS
Maria Carolina Godoy
Capítulo 6
A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO...
MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO
Maria Emilia Vico
Capítulo 7
O GÊNERO POÉTICO NO ENSINO
DE LITERATURA
Márcia Cabral da Silva
APRESENTAÇÃO
7
conforto, como se não houvesse mais perguntas a serem
respondidas e/ou formuladas.
É nessa perspectiva que se entende a provocação
de mais um livro sobre Literatura e Ensino, o qual busca
refletir sobre esse ambiente de aprendizagem na univer-
sidade e, principalmente, sobre sua potência de reper-
cussão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. Como
afastar os futuros professores do papel de agenciadores
de respostas prontas, indubitáveis, quando se sabe que
a complexidade da Literatura tem um efeito de atração
-repulsão que nos aproxima mais das perguntas, distan-
ciando-nos, consequentemente, das formulações de teor
eminentemente conclusivo. Os oito artigos que formam
esta coletânea vêm ratificar a amplitude do binômio Li-
teratura e Ensino, na medida em que encontram formas
singulares de pensar a Literatura como matéria de diálogo
e ainda de colocá-lo em movimento, por intermédio das
atividades propostas na sequência de cada trabalho.
Em Da literatura como travessia: é possível ensinar Lite-
ratura?, Claudicélio Rodrigues parte do texto poético de
Manoel de Barros – um “menino perguntador” sobre o
mundo das palavras –, para mostrar que há necessidade
de uma didática da invenção, que ressalte a beleza e a
tensão do texto literário.
Apontando as vivências próprias ao ofício de en-
sinar, o articulista chama a atenção para questões como a
opção por uma aposta conteudista, tendo por meta uni-
camente uma educação de resultados. Sua proposta, em
contrapartida, parte do princípio de que:
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Suas reflexões são atravessadas pela de pensado-
res da linguagem, da educação, e da leitura, a exemplo de
Mikhail Bakthin, Paulo Freire, Jacques Rancière, Rubem
Alves e Vincent Jouve, cujas palavras desenham não um
diagrama com as de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro
– e Guimarães Rosa, uma vez que a complexidade que
envolve a discussão demanda, mais que uma estrutura
plana, uma tridimensional, pois em seu espaço ainda de-
vem caber as “inconclusões”.
Em Figuras do outro. Literatura Comparada e Intercul-
turalidade, Graciela Cariello insere no debate a discussão
sobre a formação de professores de língua estrangeira.
Em um texto bastante assertivo, a pesquisadora relata
uma experiência concreta, havida no curso de formação
de Professores de Português da Universidade Nacional
de Rosário, Argentina. Tomando como base, a tensão
que reveste a convivência entre as noções de identidade
e outridade, são apontadas as incompreensões existen-
tes durante muito tempo face à linguagem literária e sua
inclinação para o desvio, entendido erroneamente como
menosprezo à normatividade gramatical. Em sua argu-
mentação, Cariello prefere se encaminhar para a compre-
ensão de que:
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uma língua estrangeira, estaremos construindo
um espaço de diálogo fecundo, que permitirá
ver como e por que cada um de nós é os outros.
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Assumindo um tom bastante didático, o texto
Apontamentos cognitivos para uma Didática da Literatura, de
autoria do professor José Leite de Oliveira Júnior, tem
uma proposta de defender a ideia de se ter uma didáti-
ca de ensino da literatura que focalize o aspecto cogniti-
vo do leitor. Segundo o autor, os estudos desenvolvidos
nesse campo apresentam um foco maior na didática e
na pedagogia, deixando de lado outra parte igualmente
importante: o aluno. Faz uma crítica ao tipo de aula de
literatura e, defende a ideia de que seria mais eficaz uma
aula centrada na experimentação do próprio aluno e con-
centrada na complexidade do texto literário. Em direção
a uma descrição da aula de literatura, ele apresenta o pla-
no de aula, explicando o papel de cada uma das etapas.
Ancora-se em Bloom (1976) para tratar das categorias do
domínio cognitivo e em seu percurso apoia-se em clássi-
cos da literatura brasileira exemplificando cada categoria
(conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese
e avaliação.
O capítulo intitulado de Heróis e heroínas em terras
desconhecidas: as tradições africanas em narrativas infantis e juve-
nis, de autoria de Maria Carolina Godoy, traz em evidência
a literatura afro-brasileira, em particular, para o público
infantojuvenil. A autora convida o leitor a uma discus-
são em torno desse tema e questiona por que a pouca
publicação de obras literárias afro-brasileiras e também a
pouca representatividade nos textos. No desenvolvimen-
to de seus argumentos, ela aponta razões para o fato de as
crianças e jovens terem pouco acesso a esse tipo de leitu-
ra. Godoy faz uma revisão da literatura e apresenta, desde
os precursores da literatura afro-brasileira até os autores
atuais. Faz uma forte crítica ao fato de as narrativas des-
tinadas ao Ensino Fundamental se remeterem, muitas
vezes, à religiosidade de matriz africana ou retomarem
a contos de diferentes países africanos. Outro ponto de
destaque neste capítulo é a reflexão desenvolvida pela au-
11
tora sobre as inovações no campo da leitura digital. Ela
ressalta como ponto positivo para a formação de leitores
os recursos utilizados.
O capítulo seguinte tem a autoria de Maria Emilia
Vico e é A crônica. Gênero ambíguo... Mas genuinamente li-
terário. O texto está dividido em duas artes bem marcadas.
A primeira parte apresenta um conjunto de perguntas
que diretamente provoca no leitor um envolvimento par-
ticular de coparticipação. A autora chama a sua atenção,
convidando-o a pensar sobre o contexto de produção da
crônica. De forma direta elenca um conjunto de pergun-
tas (qual é o seu público? Quais os possíveis temas? Tem
a crônica uma estrutura específica? Qual é a sua origem?
E o veículo ou veículos? Quais são os objetivos da inte-
ração? Quais são os gêneros que se lhe parecem? Quais
as características que fazem com que possamos dizer
que um determinado texto é uma crônica? A crônica é
um gênero literário?). O momento seguinte desta etapa
é marcado pela discussão sobre o o conceito de crônica,
momento em que nos apresenta alguns estudiosos e seus
textos. Na sequência da teorização, Vico põe em discus-
são se esse texto literário é ou não um gênero literário. A
segunda parte do capítulo é marcada pela analisa de uma
crônica de Carlos Drummond de Andrade e culmina em
uma proposta de atividade. Trata-se de um texto cheio de
provocações que convida o leitor à reflexão e não à dar
informações apenas.
O último capitulo é de autoria de Márcia Cabral
da Silva intitulado de O gênero poético no ensino de literatura.
Teria um espaço para o gênero poético em sala de aula?
Durante o artigo, a autora mostra que sim e o faz apre-
sentando uma possibilidade de análise. Ela se posiciona
de forma a valorizar o movimento dos elementos linguís-
tico a favor a compreensão de um texto poético. Essa
postura é muito particular e positiva para o ensino de lín-
gua, para a formação de leitores, para a compreensão da
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funcionalidade da língua na interação poeta e leitor. Nes-
se sentido, ela trata da constituição da poesia e também
apresenta uma análise com base nos elementos linguísti-
cos que ela considera importantes. Inicia mostrando que
para a construção de uma poesia é importante a seleção
das palavras e que ela também dão ritmos à poesia. Nes-
se sentido apresenta algumas poesias e as analisa. Nes-
se exercício dinâmico, chama a atenção para o papel da
metalinguagem, em outras as figuras de linguagem como
recurso estilístico. Os exemplos dados mesclam da poesia
ao cordel, de Patativa a Drummond de Andrade.
O conjunto dos textos e a proposta desenhada pe-
los autores, com base nos próprios objetivos da coleção,
desafia os leitores, em particular os professores e forma-
dores de professores a pensar o espaço da literatura na
sala de aula.
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Capítulo 1
DA LITERATURA COMO TRAVESSIA:
É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA?
VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
(...)
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas...
E se riu.
(...)
Manoel de Barros, O livro das ignorãças.
Que é um conteúdo?
15
que elas evoquem em nós diversas questões que não ca-
recem nem querem ser respondidas nesse momento: por
que quisemos ser professores? O que nos induziu a essa
empreitada (derrocada)? Por que o desejo por fomentar
saberes e a aflição por encontrar um sentido para as coi-
sas e para o mundo? Essas questões me abraçam como
educador. E me alimento do nada que elas me oferecem.
Mas há outras ainda.
O que significa ensinar hoje, quando nossos alunos
são mergulhados em uma infindável trama de informa-
ções midiáticas, onde o apelo visual e sonoro do mundo
virtual chama mais a atenção do que uma aula expositiva?
Como promover um ensino que faça realmente sentido
ao aluno, colocando-o no centro e não à margem do co-
nhecimento? Como fomentar o desejo de autonomia na
sala de aula sem perder o foco do projeto pedagógico?
Fruto de uma “sociedade da excitação” (Türcke 2012),
que conteúdo realmente faz sentido a esse aluno?
Essas são apenas algumas demandas que per-
meiam a cabeça dos graduandos e futuros professores da
educação básica. Fora isso, o medo de não se conseguir o
completo domínio da sala, o receio de serem incompre-
endidos pelos alunos adolescentes e de rapidamente se
decepcionarem com o processo de ensino-aprendizagem.
Inúmeras questões para as quais não há respostas prontas
e acabadas. Se educação é processo, meio, e não fim, esta-
remos sempre no caminho da dúvida, seja ela grande ou
pequena. Pautar-se nos questionamentos evidencia um
compromisso não com as respostas, mas com o anseio a
que a educação faça sentido. As certezas podem nos trair.
Ao longo do curso de graduação,1 além das disci-
plinas de formação específicas, como língua e literatura,
os graduandos têm acesso a cursos de formação didático
-pedagógica a fim de perceberem a história da educação
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no Brasil, seus entraves e avanços e as principais tendên-
cias e correntes que fomentam os saberes. Às disciplinas
didáticas específicas ao ensino de língua e literatura se
vinculam as de estágio, que por sua vez se desdobram em
observação, simulação e regência, respectivamente nes-
sa ordem. Essas disciplinas são oferecidas no último ano
da formação do aluno, após ter sido percorrido o longo
trajeto pelas teorias do conhecimento. Assim, muitos alu-
nos chegam a essa etapa cansados da rotina de estudos.
Quando deveriam estar mais seguros, surgem exaustos e
sem perspectiva, temendo assumir a regência e fracassar
na profissão que escolheram.
Nesse sentido, as disciplinas de observação e está-
gio, bem como outras de feição didática, devem cumprir
um papel de expor os entraves da educação que temos e
discutir a educação que queremos. É imprescindível que
os futuros educadores saibam que, se lhes falta a experi-
ência pedagógica, sobra-lhes o dinamismo da juventude
e a vontade de ousar. Mais que professores conteudis-
tas, que se colocam no centro da sala, como se tivessem
todo o conhecimento do mundo, a escola necessita de
mediadores do saber, afinal, nunca fomos enciclopédias
ambulantes. Com o avanço das tecnologias da informa-
ção e comunicação, torna-se fácil descobrir o conheci-
mento fora da sala. A vastidão do ambiente virtual atiça
o curioso e é para lá que nossos olhos de educadores
devem estar voltados. Somos arremessados na enxurrada
de informações. Mas o que fazer com elas? Quais as que
realmente importam? Como filtrá-las e como organizá
-las em nosso próprio benefício? Essas questões devem
permear o plano didático dos novos professores. Além
disso, é importante perceber que as concepções de ensi-
no mudam conforme o momento, o espaço e o público.
Não há uma receita pronta para isso.
Conteúdo é precisamente aquilo que está contido
em algo. Um saber herdado. Uma cultura do fazer e do
17
pensar. Mas também é conteúdo uma atitude e o proces-
so de tomada de consciência das sensações, das emoções,
dos desejos. Pode-se, nesse sentido, pensar o conteúdo
com uma tripla demanda: conceitual, procedimental e ati-
tudinal. Saber o que é uma coisa não é tudo. O que fazer
com ela? O que ela desperta em mim? O que sou depois
de tê-la? O problema do conteúdo, para Mikhail Bakhtin
(2002), pressupõe a conjunção entre conhecimento, ética
e arte. Toda concepção de mundo exigiria do humano um
domínio do saber fronteiriço, ou seja, nenhum conheci-
mento está no interior, mas nas bordas, nas margens, nas
ramificações e entrecruzamentos. É preciso saber-se su-
jeito em potência, nunca concluso. Sobre a inconclusão
se assenta a educação. E é assim que ela deve ser pensa-
da: em processo. Deve-se partir de saberes empíricos e
afetivos para chegar aos saberes das demandas culturais,
sistemáticos. Um saber pautado na experiência não pode
ser apagado por um saber formal. Para essa lição, basta
compreender o que nos diz o mestre Alberto Caeiro:
18
Mais do que um poder de sintetizar, o que a educa-
ção cobra de nós é o desejo de análise,2 o desnudamento
das coisas, o espanto de ver aquilo que sempre víramos,
mas agora sob nova perspectiva. Nascer “para a eterna
novidade do mundo” com esse nítido olhar de girassol
é estar atento às mudanças necessárias no percurso.3 Se-
remos educadores quando, mais do que apresentarmos
um conteúdo acabado, soubermos questioná-lo; mais do
que defini-lo, soubermos problematizá-lo; mais do que
apreendê-lo como verdade, soubermos descartá-lo quan-
do ele não mais nos parecer importante. Será um sinal
de que avançamos e, ainda, a constatação de que saber
algum é imutável.
19
como cerne a constituição de uma pedagogia que levanta
do chão os excluídos e os faz partir de suas próprias ex-
periências, mas não se limitando a elas. Num mundo que
vê o sujeito como consumidor e mercadoria é necessário
que o ensino busque outra ótica e ética. Diante de um sis-
tema excludente, é preciso que os professores coloquem
como suporte de sua prática o valor da ética, conforme
afirma Paulo Freire:
20
voz literária. Mas, infelizmente, é isso o que ocorre. Em
nome de um ensino que prega valores, quando deveria as-
sumir o debate frente às questões formativas do sujeito, a
escola contenta-se em oferecer pobremente um currículo
que se pauta em leituras do cânone. E qualquer desvio
por parte dos professores, qualquer rota de fuga que leve
a discussões polêmicas sobre o ser e o estar no mundo,
provocam abalos. Parece que, quando deveria propor
uma pedagogia da libertação, a escola prefere oferecer
uma pedagogia que canta o coro da tradição, a fim de não
correr riscos.
Atualmente, em nome de uma pedagogia do “po-
liticamente correto”, deixamos de lado diversas questões.
Preferimos mais do mesmo, ao invés de buscarmos o
outro. Rezamos a cartilha do contentamento. Conten-
tamo-nos com um currículo que não rompe com uma
tradição; contentamo-nos com um ensino que privilegia,
não o questionamento, mas as respostas; contentamo-
nos, enfim, com um ensino que diz o que o aluno deve
fazer e como deve fazer, mas não o orientamos a produ-
zir conhecimento. Para usar a metáfora de Rubem Alves
(2012), oferecemos a “caixa de ferramentas” e exigimos
que o aluno as utilize, quando poderíamos propor que,
além disso, ele produzisse seus próprios instrumentos.
Mais do que isso, esquecemos de valorizar a “caixa de
brinquedos”, que promoveria a noção de mundo sob a
perspectiva do prazer, não da obrigação.
21
Diante disso, como seria o papel ético do profes-
sor? De que modo os professores de literatura devemos
pautar nossas escolhas pedagógicas sob o compromisso
de um ethos? Paulo Freire responde:
22
Ensinar literatura é, pois, estar consciente de que
ela é obra humana e, como tal, aborda os impasses mo-
rais, sexuais, psicológicos, religiosos, políticos etc. Tudo
isso culmina numa apreensão de eticidade do texto lite-
rário por parte do educador. Não se deve fugir dos pro-
blemas, nem escondê-los, senão promover um discurso
aberto sobre isso, uma leitura que não descambe para a
reprovação de um autor com base nas concepções reli-
giosas e morais do leitor.6 Aliás, todo conhecimento só
tem sentido se for colocado em defesa da liberdade, que,
não suportando fundamentalismo e hipocrisia, coopera
para que o aluno elabore sua aprendizagem pelo viés da
criticidade, conforme indica Paulo Freire: “(...) quanto
mais criticamente se exerça a capacidade de aprender,
tanto mais se constrói e desenvolve o que venho cha-
mando ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não al-
cançamos o conhecimento cabal do objeto” (2011, p. 26).
O texto literário assume, por assim dizer, uma fun-
ção profética, sem querer resvalar para questões doutri-
nárias aqui. Tal profecia acontece no momento em que a
obra se reveste de denúncia e anúncio. O que denuncia a
literatura? As incongruências do passado e do presente,
os impasses, os discursos anacrônicos e vazios, as rela-
ções de poder, o jogo entre as moralidades e a natureza
humanas, os limites do humano, a psicologia do abismo
etc. Denuncia, porque todo texto traz consigo uma marca
de passado que, atualizada no agora da leitura, promove
uma ruptura e anuncia uma novidade à medida que apon-
ta outros percursos.
Se o texto literário evoca uma dupla visão de mun-
do (particular, por ser recorte de vivências e construção
do imaginário do autor; coletiva, porque o autor se insere
num tempo-espaço demarcado pela herança cultural), sua
23
leitura também implica um saber de mundo, um olhar
duplo, para fora de si, onde estão os fatos narráveis, e
para dentro si, onde estão as sensações que detêm o mun-
do. Cabe ao professor não persistir na concepção de que
ensinar é transferir o que sabe, mas conduzir (isso é o que
significa a palavra pedagogo) o aprendiz no caminho das
descobertas. Muitos professores são apenas repetidores.
Leem muito - quando leem - e depois apresentam o lido
sem problematizá-lo, sem questioná-lo, como isso fosse
verdade absoluta. É o tipo de educador que “fala bonito de
dialética, mas pensa mecanicistamente” (Freire 2011, p. 29).
Pensada como um ambiente desgarrado do con-
creto, nesse caso, a escola supõe que a realidade lá fora é
pesada demais para adentrar ao paraíso fictício do saber,
templo do conhecimento. Mas não existe um “lá fora”
desmembrado de um “aqui dentro”. O mundo é o mes-
mo, nós é que criamos as barreiras. O ensino da literatura,
então, deve pautar-se na consciência de uma “reflexão so-
bre o mundo inserida no mundo” ou melhor “(...) nem a
teoria é transcendental em relação às situações em que se
produz e se usa, nem o teórico é geralmente um pensador
isolado e misantropo” (Jobim 2002, p. 119).
Num espaço onde se joga o jogo do politicamen-
te correto, não entram as questões humanas, porque ser
humano pressupõe ser complexo, repleto de problemas,
sobrecarregado de dúvidas, e sonhos, e desejos. Fora dis-
so, há o olhar limítrofe, preconceituoso, que prejudica
nosso percurso pedagógico, porque não percebemos que
a realidade é apenas uma construção particular e nunca
completa, ou, segundo Bakhtin:
24
apenas sermos claros com nós mesmos e com-
preender o verdadeiro sentido da nossa aprecia-
ção. (2002, p. 31)
25
Talvez a lição mais importante que o professor de
literatura deve ministrar é propriamente a “lição do igno-
rante” (Rancière 2013), a necessidade de se criar mecanis-
mos para a emancipação do educando desse sistema ex-
cludente que, ao invés de trabalhar a sensibilidade, tenta a
qualquer custo freá-la.
Travessias do literário
26
prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou
promove o caos ou fecunda o solo.
Antes de pensar na função da literatura, e em como
e para que ensiná-la, cabe pensar por que o homem se in-
teressa tanto por vidas reais ou imaginadas; por que “per-
de” seu tempo com leitura daquilo que nunca ocorreu?
Em que isso se tornará produtivo? Por que gosta de jogar
com vidas e se surpreender com o aflorar de suas emo-
ções (o terror, o humor, a alegria, a raiva etc.) ao ler um
texto? Aí está a própria resposta que se quer para funda-
mentar o papel da literatura na formação do aluno: ela dei-
xa entrever o mundo real, assim como apresenta um mun-
do possível, e nos faz refletir sobre as possiblidades das
escolhas, boas ou ruins, que fizemos ou venhamos fazer.
Ela suscita desejos, libera sensações tolhidas, infunde uma
vontade de reparação, ou simplesmente, tira-nos do nosso
eu e nos lança ao outro. Sua matéria é feita de possibilida-
des. De um “se” que se projeta sobre nós, e nos cumula de
alteridade. Por isso, a significação do texto literário não é
fechada ou circunscrita ao tempo e espaço de produção, já
que a intencionalidade do autor é substituída por camadas
de leituras e teorias novas que cada época traz.
É porque sempre somos obrigados a buscar um
sentido para as coisas que, geralmente, vemos os conte-
údos das artes como aquilo que não tem valor prático.
Somos a sociedade da utilidade. Esquecemos que a inu-
tilidade também é um saber. O ócio contemplativo não
gera reflexão e questionamento? Um quadro abstrato não
se torna uma questão a quem contemplá-lo? Uma música
não evoca lembranças, que, por sua vez, permitem entre-
ver o que fomos e somos? Há saberes práticos e saberes
contemplativos. As artes querem que as contemplemos
como se mirássemos a nós mesmos, não como diante de
um espelho, que mostra nossa imagem por reflexo, e não
consegue revelar o interior. Se houvesse um espelho que
nos revirasse pelo avesso...
27
Se, como indica Vincent Jouve (2014, pp. 84-85), o
autor não controla completamente seu texto que, assim,
escapa à sobrecarga de intencionalidade, a obra literária
deve ser considerada mais um sintoma do que um sinal;
seu sentido é diverso, não aceitando inteiramente con-
ceito. Estudar/ensinar literatura, então, é não perder de
vista que a obra não vigora na superfície do sentido, não
se deixa prender por categorias, nem aceita que as marcas
do tempo e do espaço sejam as únicas formas de do-
miná-la. Esse caráter de impermanência da obra literária
não é um dos mecanismos que justamente a faz vigorar
como obra? Cada tempo produzirá, portanto, objetos
conceituais para dar conta da obra. O problema do ensi-
no de literatura é a tentativa de esquematizá-la e esgotar,
na leitura, todas as possibilidades de sentido. O conceito
fugidio é essencial, portanto, para que o texto continue
a despertar interesse, pois, “como o autor não domina
tudo o que ele investe em seu texto, alguns conteúdos só
serão identificados muito tempo depois da publicação da
obra, uma vez que já terão se configurado as ferramen-
tas teóricas que permitam determiná-los” (Jouve 2012, p.
87). Entram em jogo na leitura a diferença entre sentido
e significação, donde se conclui que:
28
do Riobaldo murmura o tempo todo em nossos ouvidos,
na ânsia de assumirmos o lado utilitário da vida. Mas, à
semelhança do suposto pacto que Riobaldo fez com o
coisa-ruim, na meia-noite de uma encruzilhada no sertão,
devemos fazer um pacto com a palavra, que nos permite
encarar o mundo com olhar de leitores atentos, em tra-
vessia, como a literatura, que atravessa espaços, tempos e
nos atravessa, professores e alunos.
Algumas inconclusões
29
(elimine os excessos); fazer do texto o núcleo do debate e
deixá-lo de utilizar como pretexto (aliás, a educação está
minada de pretextos); ser guardião da liberdade, que deve
ser entoada em cada aula, em cada gesto, em cada atitude,
em uníssono.
Utopia? Entendam como quiser, entretanto, o
“demônio da teoria” não pode condenar o texto literário
ao limite da interpretação particular e acabada. Há um
horizonte da história onde o texto literário se inscreve,
mas ele é perpassado constantemente pela atualização
desse mesmo tempo. Ainda que tentemos fugir para o
passado ou para o futuro, estaremos sempre atravessados
pelo tempo presente. Ao final deste artigo, há uma ativi-
dade que retoma as nossas reflexões.
Referências bibliográficas
30
COMPAGNON, Antoine (2010). O demônio da teoria: li-
teratura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes
Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo
Horizonte: Editora da UFMG.
FREIRE, Paulo (2011). Pedagogia da autonomia: saberes ne-
cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
JOBIM, José Luís (2002). “O trabalho teórico na história
da Literatura”, in: Formas da teoria. Rio de Janeiro:
Caetés, pp. 117-131.
JOUVE, Vincent (2012). Por que estudar literatura? Tradu-
ção de Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São
Paulo: Parábola.
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ro. São Paulo: Companhia das Letras.
PUCHEU, Alberto (2013). Mais cotidiano que o cotidiano.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
RANCIÈRE, Jacques (2013). O mestre ignorante: cinco lições
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têntica Editora.
ROSA, Guimarães (1980). Grande sertão: veredas. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora.
TÜRCKE, Christoph (2010). Sociedade excitada: filosofia
da sensação. Tradução de Antonio A. S. Zuin et al.
Campinas: Editora da Unicamp.
31
ATIVIDADES PROPOSTAS
PONTO CEGO
(da força e da fraqueza de nosso tempo)
“Quem somos?” –
perguntam aos poemas
em busca de uma resposta
que complete a pergunta,
32
sobrepondo uma, sem falta
nem excesso, à outra.
Mas os poemas repetidamente
respondem que somos
aquilo em que nos perdemos
ao buscarmos encontrar
o que acreditamos ser.
Se insistirem, portanto,
em perguntar aos poemas
de buscas, encontros, crenças...
se insistirem, portanto, em saber
a voz dos poemas, saibam que,
de diferentes modos, eles só dizem
o que não se busca nem se encontra,
a perdição, o fim das crenças,
o que não se oferece a nenhuma frase,
nem mesmo mais a nenhum verso.
Há um ponto cego nos poemas,
como há um ponto cego na vida,
não visto por mim nem por você
nem por ninguém, desde o qual
eles são o que são, um ponto cego
que somente os poemas – talvez –
nem sei – vejam. Se insistirem,
portanto, no trato com os poemas,
se de fato quiserem permanecer
com eles, sejam, ainda que os últimos
afeitos a tal empenho, fortes,
porque quase todos os outros
– sinal dos tempos – os abandonaram
(Pucheu 2013, p. 85)
33
Capítulo 2
FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA
COMPARADA E INTERCULTURALIDADE
Graciela Cariello
Eu sou os outros
Provérbio africano
Citado por Mia Couto, na orelha do romance
O evangelho segundo a serpente, de Faíza Hayat (2006).
35
O outro e a identidade
36
Os estudos literários na formação de professores
de língua estrangeira
37
Antigamente, o texto literário era o modelo do
bom emprego da língua, e a referência aos autores con-
sagrados era obrigatória para provar o uso das formas.
Isto vale tanto para língua estrangeira quanto para língua
materna. Tudo mudou, é claro, a partir das vanguardas.
Os poetas modernistas e vanguardistas já não podiam
ser considerados modelos, dado ser sua revolução esté-
tica precisamente uma revolta contra o academismo das
formas consideradas corretas e aceitas. Em português,
por exemplo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade ou
Almada Negreiros não poderiam ser pensados como tais
modelos. Uma teoria da literatura veio dar base para se
analisarem esses textos aparentemente agramaticais ou,
no mínimo, desrespeitosos das regras estabelecidas: a no-
ção do desvio A língua poética não era errada, mas des-
viava-se da regra da língua ordinária. Uma outra teoria,
agora filosófica, aborda a questão dessa língua ordinária,
que diferentes linguistas chamaram de standard, comum,
prática, ou então comunicativa. Surge a pragmática, no
interior da filosofia da linguagem. Paralelamente, consti-
tuem-se a teoria da informação e a teoria da comunicação.
Foi, para a linguística, sem dúvida, um avanço científico.
Mas no ensino de línguas –materna e estrangeira – deu
como consequência a expulsão do texto literário, consi-
derado um desvio da norma, do palco do ensino. Pensa-
va-se que a literatura não mais podia ser modelo por essa
artificialidade que ela tem. A literatura foi banida dos ma-
nuais de língua, e principalmente de línguas estrangeiras,
que optaram pela abordagem “comunicativa”, e talvez
atrelados a um dos sentidos do termo “comunicação”, os
teóricos e os autores de manuais decidiram que o melhor
modelo para a língua eram os textos da mídia.
Um comentário à margem merece uma outra con-
sequência das tendências para um ensino de línguas que
visava à comunicação, mas com fins específicos -espe-
cificamente comerciais. Uma língua, uma das mais ricas
38
em produção literária, chegou a transformar-se em língua
franca, ou seja, uma língua muito próxima do que pode-
ríamos considerar artificial: uma língua quase-morta. A
aprendizagem dessa língua – o inglês – tende, ainda hoje,
para virar uma elencagem de termos e construções fixas,
pouco menos que um código matemático, que possa ser
utilizado rapidamente em um contexto quase impessoal.
Sinto uma enorme dor pensando em Borges e Pessoa, no
que poderiam eles sentir ante esse empobrecimento da
língua amada... Deixo isso por enquanto e volto à minha
pequena história.
Uma nova teoria da literatura e da língua veio
questionar, mais tarde, aquela do desvio. Trata-se da teo-
ria que considera o texto como produtividade, e a língua
poética como possibilidade infinita.
39
realizações inéditas ou incomuns das potencia-
lidades do sistema linguístico; em sede teórica,
a língua recupera, contra a dialetização a que a
condenam as teorias desviacionistas, a função
que historicamente sempre tem desempenhado
de agente conformador por excelência da res-
pectiva língua natural; o estudo da língua literá-
ria, algumas vezes denunciado como restringen-
te e deformante da omnímoda funcionalidade
da língua, adquire, sob o ponto de vista científi-
co e didático, o estatuto de insubstituível meio
de conhecimento e aquisição dessa omnímoda
funcionalidade e, por conseguinte, o estatuto
de privilegiado instrumento de cognição do ho-
mem, da sociedade e do mundo. (Aguiar e Silva
1994, pp. 172-173)
40
momento todo o mundo aprende para poder falar e mais
ou menos compreender o outro.
A literatura é o modo complexo, surpreendente e
belo de se expressar esse outro que está do outro lado
cultural, com quem pretendemos ter um diálogo para
além da comunicação superficial, que veicule aquela car-
ga de sentimentos, de desejos, de ilusões que só o tex-
to literário consegue pôr em palavras. Porque, seguindo
Grüner, podemos afirmar que a literatura é o modo que
as línguas têm de falar do indizível (Grüner 2002, p. 320).
Voltemos a Eliot. O poeta diz: “É mais fácil pensar
do que sentir em língua estrangeira” (Eliot 1997). Não di-
remos então que se alguém consegue sentir, ou interpre-
tar o sentimento de um poema em língua estrangeira sabe
muito mais dessa língua do que qualquer um que apenas
consegue compreender uma comunicação instrumental?
A literatura é o espaço, ainda, das sutilezas do su-
bentendido, aquilo que na língua se inscreve como não-
dito, e de que depende, inúmeras vezes, a nossa com-
preensão do que se diz na superfície. O subentendido é
também o espaço da possibilidade de dizer o que às vezes
não se pode dizer.
E tem mais: a literatura é o espaço em que as lín-
guas vivem. Essa produtividade que é o texto literário, que
faz com que a nossa leitura seja sempre uma aventura de
descobrimento, é o refúgio das línguas, ainda daquelas
que já não têm falantes.
Está aí o exemplo nas línguas clássicas, de que os
especialistas rejeitam o termo “mortas” com que se costu-
ma designá-las. Eles têm razão: elas vivem, e eternamente
viverão, enquanto houver um leitor disposto a entrar nos
seus textos literários e trazê-los para essa vida mágica da
literatura quando é lida. E toda outra língua, também a
língua franca que acima mencionei, vive e continuará vi-
vendo na sua literatura. Mas para podermos captar essa
41
vida, a literatura deve fazer parte da nossa aprendizagem
da língua.
Hoje, muitos professores voltaram a incluir a lite-
ratura entre os textos que os seus alunos frequentam. Por
motivos como os que acabei de expor, e também pelo
prazer, motivação que nunca deve ser descurada no en-
sino, não só de línguas mas de qualquer outra disciplina.
Na formação do futuro professor de língua estran-
geira, a literatura tem uma dupla função. Por um lado,
como construto coletivo, social, manifestação de proces-
sos gerais de uma época, de uma corrente de pensamento
(filosófico, estético, até político) ela é um produto cul-
tural. A literatura, como construção de bens simbólicos
com que uma sociedade expressa a concepção que ela
tem de si própria, dará ao professor aportes para o co-
nhecimento dessa sociedade. Mas por outro lado a lite-
ratura será, para o professor e também para seus alunos,
o espaço da liberdade: liberdade de interpretar, de fazer
sua leitura crítica, de comparar, relacionar, ativar sua livre
imaginação; liberdade para colocarem seus próprios pon-
tos de vista, dialogarem com os textos, com suas leituras
prévias, ativarem mecanismos de compreensão profunda
do outro e também de expressão.
A literatura nos faz inventores de mundos. Ela
prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só
limitada pelas regras que a própria literatura gera, e que
aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção
dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imagi-
nação a multiplicidade de vidas que uma língua descortina
para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas
que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez
descobriremos falando sem saber que sabíamos, estão
potencialmente na literatura dessa língua. Se estudarmos
a literatura de uma língua estrangeira, estaremos cons-
truindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver
como e por que cada um de nós é os outros.
42
Literatura Comparada e interculturalidade
44
Europa e os Estados Unidos. Ela publica o seu livro de
2005 em Córdoba.
Néstor García Canclini coloca um conceito abran-
gente de cultura, como “el conjunto de procesos sociales
de producción, circulación y consumo de la significación
en la vida social” (Canclini 2004, p. 34). Aquilo “inter-
cultural” (assim, como adjetivo) é definido por ele como
45
ticular na sua análise da interculturalidade como tensão e
negociação. No entanto, as leituras de ambos não coinci-
dem totalmente entre elas, e na interpretação que Zulma
faz de García Canclini se exerce também alguma forma
de tensão intercultural. É verdade, todavia, que Zulma
não se refere ao livro que estou aqui considerando, e a
sua crítica orienta-se ao conceito de “hibridação”, que o
próprio García Canclini iria discutir. Mas do que se tra-
ta finalmente, do meu ponto de vista, é de descentrar o
nosso olhar, para pensar a interculturalidade como espaço
de questionamento da leitura imposta desde o momento
da colonização.
46
de grande número deles, e a produtividade do gênero em
ambas as literaturas em todos os períodos, que facilita
a comparação contrastiva sincrônica e diacrônica. São,
em alguns casos, estudados ensaios e poemas, mas o eixo
central é o conto. Inclui-se ainda uma parte diferenciada
do programa, que estuda a problemática teórica e his-
tórica da literatura infantil, e analisa obras do gênero de
ambos os países.
Ao serem comparados os textos, levam-se em
consideração aspectos temáticos, mas também formais,
incluído o trabalho com as línguas, suas variedades, suas
realizações diatópicas, diastráticas e diafásicas. Analisam-
se, aliás, as estruturas narrativas, as categorias do gênero,
as manifestações retóricas, procurando as diferenças e os
pontos de confluência. Seguem-se as orientações das te-
orias da literatura, que os alunos adquirem na disciplina
“Análise do texto literário em português”. Paralelamente
são discutidos textos teóricos e críticos sobre a proble-
mática da Literatura Comparada e a teoria dos gêneros
textuais.
Assim, o estudo da Literatura Comparada consti-
tui um encontro interdisciplinar entre estudos literários,
estudos linguísticos e estudos das culturas, que tecem
uma rede entre textos, construída por tanto como efei-
to de leitura/s crítica/s. O conceito de interculturalidade,
com o seu olhar sobre as figuras do Outro, rege essas
leituras, e dirige-se tanto às culturas quanto às línguas e às
literaturas. Aquilo que se propõe como objeto de estudo
é também elaborado na prática. O objeto da Literatura
Comparada existe só na leitura. Os textos estão dados,
mas é a leitura contrastiva que faz deles um objeto novo,
plural, intercultural. Dando continuidade às reflexões, ao
final deste capítulo, há uma atividade a realizar.
47
Referências bibliográficas
48
ATIVIDADES PROPOSTAS
PRINCÍPIOS TEÓRICOS:
a) Compare os começos das literaturas argentina e bra-
sileira, levando em consideração a língua, o período
histórico, as produções literárias, que caracterizam a
época.
b) Escolha um período das literaturas argentina e brasilei-
ra em que situações comuns sejam dadas, e desenvol-
va os traços fundamentais.
c) Desenvolva de forma concisa os itens abaixo:
1. A problemática da periodização em Literatura
Comparada. Diferentes formulações.
2. Proposta de periodização das Literaturas Com-
paradas Argentina e Brasileira: O critério ado-
tado para o programa da disciplina LCAB do
Curso de Português da UNR.
49
2. Escolha um conto de Pago Chico, de Roberto J. Payró,
e um conto de Papéis Avulsos, de Machado de Assis.
2.1. Situe os autores no período.
2.2. Analise comparativamente esses contos, segun-
do o/s eixo/s escolhido/s.
3. Escolha um conto de El jorobadito, de Roberto Arlt, e un
conto de Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade
3.1. Situe os autores no período.
3.2. Analise comparativamente esses contos, segun-
do o/s eixo/s escolhido/s.
50
Capítulo 3
APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA
DE O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA
E AS TRADUÇÕES FRANCESAS
NO SÉCULO XIX
Ilana Heineberg
52
serviu de trampolim aos escritores nacionais, apresentan-
do-se como alternativa para publicar e circular em um
mercado editorial ainda pouco estruturado (Heineberg
2008, p. 498). Assim, o Jornal do Commercio publicou a nar-
rativa brasileira O aniversário de D. Miguel em 1828 em 1839,
apenas três anos depois do lançamento do romance-fo-
lhetim pela matriz francesa. Vale lembrar que a impres-
são de livros e jornais no Brasil só foi autorizada a partir
de 1808, com a transferência da família real para o Rio
de Janeiro. Antes disso, os autores nacionais precisavam
passar por editoras e tipografias estrangeiras, geralmente
portuguesas, a fim de circular no Brasil. O atraso editorial
de 300 anos em relação à América espanhola explica a de-
sestruturação do mercado editorial brasileiro e, portanto,
o papel essencial da imprensa na publicação de autores
nacionais e estrangeiros e na própria formação do gênero
romance no Brasil.
Aos estudar as narrativas publicadas entre 1839 e
o final da década de 1870 no Jornal do Commercio, Diário do
Rio de Janeiro e Correio mercantil, principais diários flumi-
nenses, pude discernir três fases do processo de forma-
ção do romance-folhetim: a mimética, a de aclimatação e
de transformação do gênero.1 Vou expô-las brevemente
antes de deter-me na publicação de O guarani.
São exemplos da fase mimética diversos textos na-
cionais publicados no folhetim do Jornal do Commercio em
1839, ano particularmente profícuo para autores brasilei-
ros que, na década seguinte, passam a ser preteridos em
favor de estrangeiros. Entre textos importados de autores
populares franceses, como Paul de Kock, Eugène Scribe
e Alexandre Dumas, esse diário sisudo e conhecido por
53
sua linha conservadora publica narrativas assinadas por
brasileiros que trabalham como tradutores, cronistas e
jornalistas. O que nos permite denominar esses textos de
miméticos é justamente o fato de confundirem-se com
textos importados que servem de modelo para a incipien-
te produção nacional. A aparência de narrativa estrangei-
ra decorre do fato de a maioria deles situar sua intriga na
França, em Portugal ou na Itália. O que está por trás des-
sa vontade, consciente ou não, de travestir-se de roman-
ces estrangeiros? Provavelmente fatores variados, como
uma exigência do jornal, a preferência do público e a pró-
pria falta de hábito de se publicar romances nacionais.
Para Flora Sussekind, a ficção nacional, para se construir,
estabelece um “diálogo (mais ou menos) estreito, porém
inevitável com o jornal, o romance e os folhetins estran-
geiros, que parecem compreender a atividade literária
possível do país na época” (Sussekind 2000, p. 99).
Além da preferência pelo cenário europeu, en-
contramos nos textos miméticos narradores que muitas
vezes se confundem com tradutores. A abertura de A pai-
xão dos diamantes, de Justiniano José da Rocha, é um bom
exemplo:
54
Nem tradutor, nem autor, a definição mais apro-
priada para essa tarefa que descreve o narrador de Jus-
tiniano José da Rocha é a de adaptador. Os narradores
da fase mimética figuram de maneira insistente no tex-
to e sempre de maneira segura, autoritária e onisciente
diante de um leitor que concebe como ingênuo e dócil.
Exemplo disso são as inúmeros explicações e informa-
ções enciclopédicas disseminadas nos textos. No entan-
to, é justamente a insistência constante sobre os papéis
narrativos do leitor e do narrador que acaba por revelar a
inexperiência e a insegurança deste último.
Entre 1839 e a década de 1850, os romances-fo-
lhetins publicados nos três principais jornais do Rio de
Janeiro passam a acompanhar a tendência nativista do
romantismo. Fincam os pés no território nacional, ora
optando por um panorama geral do Brasil, como encon-
tramos em A providência (1854), de Teixeira e Sousa, ora
seguindo uma tendência regionalista, fixando-se no inte-
rior. A dimensão histórica é outro aspecto fundamental
desses folhetins que dividem-se entre o resgate do passa-
do colonial e a discussão de questões contemporâneas,
como a escravidão. Os romances dessa fase de aclima-
tação mantêm o molde folhetinesco. Uma característica
marcante é a multiplicação de vozes e dos níveis narrati-
vos e, consequentemente, das peripécias.
É somente nas décadas de 1860 e 1870 que a pro-
dução nacional folhetinesca consolida-se e deixa de lado
a simples reprodução do modelo importado, o que não
significa necessariamente a negação deste. Pelo contrário,
os procedimentos narrativos apontam para o folhetines-
co muitas vezes pelo viés do humor e da paródia. Na
medida em que o sistema literário brasileiro está em vias
de estabilização, a presença constante do narrador e os
seus comentários sobre a narração do texto, que serviam
unicamente para tornar a intriga e a narração claras para
o leitor, agora, através do exagero, tornam o folhetinesco
55
risível. O melhor exemplo disso é a maestria com a qual
Machado de Assis dirige-se ao leitor em seus contos e ro-
mances, não mais para guia-lo, mas para impedir qualquer
atitude conformista.
56
Diário sua primeira novela – Cinco minutos – fatiada em
sete episódios e anônima como uma espécie de brinde de
Natal. O sucesso se confirmou pela publicação imediata
de O guarani, também anônimo, abrindo o ano de 1857.
A viuvinha foi a terceira e última narrativa de Alencar pu-
blicada no Diário, embora tenha sido bruscamente inter-
rompida e somente retomada três anos depois na futura
edição em livro. Fica evidente, portanto, que o jornalismo
constituiu uma passagem importante para a consagração
de Alencar enquanto romancista. Vê-se ainda que ele co-
nhecia perfeitamente a importância da imprensa para a
afirmação e a publicação de um escritor no Brasil de seu
tempo. Alencar utilizaria inclusive a tipografia do Diário
para publicar em livro seus primeiros romances.3
Em sua autobiografia intelectual Como e porque sou
romancista, Alencar descreve como a redação de O guarani
foi marcada pela pressão do jornalismo:
57
Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava
por assim dizer na mesa do trabalho, e escrevia
o resto do capítulo começado no dia anteceden-
te para enviá-lo à tipografia. Depois do almoço
entrava por novo capítulo que deixava em meio.
Saía então para fazer algum exercício antes do
jantar no “Hotel Europa”. A tarde, até nove ou
dez horas da noite, passava no escritório da re-
dação, onde escrevia o artigo editorial e mais o
que era preciso. [...]
Nossa casa no Largo do Rocio, n° 73 estava em
reparos. Trabalhava eu num quarto do segun-
do andar, ao estrépito do martelo, sobre uma
banquinha de cedro que apenas chegava para o
mister da escrita, e onde a minha velha casei-
ra Ângela servia-me parco almoço. Não tinha
comigo um livro, e socorria-me unicamente a
um canhedo, em que havia em notas o fruto de
meus estudos sobre a natureza e os indígenas do
Brasil. (Alencar 1873[1958, pp. 147-148])
58
so também é utilizado para retomar a narrativa de certos
acontecimentos: “É tempo de continuar esta narração
interrompida pela necessidade de contar alguns fatos an-
teriores. Voltemos pois ao lugar em que se achava Lore-
dano e seus companheiros [...]” (Diário do Rio de Janeiro,
27/1/1857, p. 1). A metalepse serve ainda para que o
narrador formule questões visando a atiçar a curiosidade
do público: “Que fazia aquele homem deitado que fin-
gia dormir, e que tinha o punhal desembainhado na mão
como se estivesse pronto a ferir? Que significa aquela
pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam?
Que queria dizer a palha encostada à porta do escudei-
ro?” (Diário do Rio de Janeiro, 16/2/1857, p. 1). Onipresen-
te na narrativa, o narrador deve ainda dar a cada episódio
uma certa autonomia em relação ao todo. Ou seja, precisa
fornecer informações que permitam ao leitor situar-se na
intriga independentemente do conhecimento dos episó-
dios anteriores.
Além disso, é preciso que cada folhetim se una ao
subsequente, atendendo à sua vocação inicial de atrair
novos assinantes para o jornal e de fidelizar os antigos.
Essa é a função do suspense ao final de cada episódio
que constitui o gancho para o seguinte. Para tanto, o nar-
rador pode optar por fechar um capítulo com um acon-
tecimento totalmente inesperado ou então surpreender
o leitor, atiçando sua curiosidade pelo suspense total:
“Cecília soltou um grito, e debruçou-se no parapeito da
janela” (Diário do Rio de Janeiro, 29/1/1857, p. 1). Outra
estratégia possível é antecipar certos fatos que serão nar-
rados no episódio seguinte sempre mantendo certa dose
de suspense: “Mal sabia ele [Álvaro] que nesse momento
o fecho da clavina movido por um dedo seguro caía, e
que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano”
(Diário do Rio de Janeiro, 27/1/1857, p. 1). A promessa de
continuidade é retomada no final ao pé da do folhetim
através da inscrição “Continua”, uma adaptação do fran-
59
cês “La suíte au prochain numéro” (literalmente, a continua-
ção no próximo número).
A presença dessas características folhetinescas nos
revela que, além de simplesmente submeter-se à pressão
da escrita diária, Alencar soube realmente tirar proveito
do suporte de publicação jornalístico. A principal prova
disso é que cada capítulo de O guarani coincide perfei-
tamente com o espaço do folhetim. Enquanto redator-
chefe, vendo desfilar inúmeros romances-folhetins e,
provavelmente, participando inclusive da edição desses, o
escritor cearense conhece a importância do gancho para
a continuidade da leitura e está consciente de que, mal
fatiado pelo editor, um romance repleto de suspense e
repetições não terá o mesmo efeito sobre o leitor. Afi-
nal, o gancho, estrategicamente, é uma isca oferecida ao
público: precisa estar colocado no final do folhetim. A
repetição, por sua vez, constitui uma adaptação à prática
de leitura4 folhetinesca que é, por definição, descontínua.
Ou seja, só faz sentido quando se refere a fatos mencio-
nados em episódios precedentes que provavelmente não
estão diante dos olhos do leitor. Na leitura de um livro
tradicional, pode-se facilmente voltar algumas páginas
para rememorar-se dos fatos narrados, ao passo que o
suporte do jornal dificulta essa tarefa, pois não oferece
o romance na sua totalidade. Ao observarmos a maioria
dos folhetins estrangeiros, e mesmo brasileiros, publicada
no corpus dos jornais estudados, fica evidente que eram ra-
ros os romances-folhetins que ofereciam, como é o caso
de O guarani, tanta adequação à leitura folhetinesca. Tra-
ta-se de uma aliança perfeita entre jornalismo e literatura,
60
afinal não foi apenas a disposição do romancista Alencar
em submeter-se à escrita diária e ao espaço do folhetim,
mas também a boa vontade do editor-chefe Alencar em
manter o corte do texto.
Além dessas marcas textuais, a produção folheti-
nesca ao “correr da pena” permite ao autor ter acesso
às reações dos leitores e inclusive adaptar a intriga em
função das expectativas do público. É muito conhecida
a anedota, preservada pela família de Alencar, de que as
primas (na versão de Araripe Júnior) ou as irmãs (na ver-
são de Raquel de Queirós) o teriam obrigado a modificar
o final do romance, em que todos morriam no incêndio
da Casa do Paquequer. Cavalcanti Proença utiliza o de-
poimento de Alencar sobre a escrita de O guarani que cita-
mos acima para demonstrar que não havia tempo entre a
escrita e a publicação para que “submetesse o romance a
júri familiar; as irmãs e as primas liam o folhetim era mes-
mo no jornal” (Proença 1958, p. 28). De qualquer forma,
a publicação em folhetins impõe a todos os leitores um
mesmo ritmo de leitura ditado pela imprensa diária, que
promove uma pausa obrigatória entre os episódios que
é propícia ao comentário, à divagação, à interrogação e
às discussões com o autor. Assim, embora condenado a
finalizar um episódio no final da manhã para a publicá-lo
na mesma tarde, Alencar certamente tinha um retorno
contínuo dos seus leitores, o que sem dúvida pesava no
destino dos personagens. O depoimento de Taunay é
conclusivo sobre o sucesso da edição em folhetins:
61
simples influxo da literatura, com exclusão das
exaltações de caráter político. Relembrando,
sem grande exageração, o célebre verso : “Tout
Paris pour Chimène a les yeux de Rodrigue”, o Rio de
Janeiro em peso, para assim dizer, lia O guarani
e seguia comovido e enleado os amores tão pu-
ros e discretos de Ceci e Peri e com estremeci-
da simpatia acompanhava, no meio dos perigos
ardis dos bugres selvagens, a sorte vária e peri-
clitante dos principais personagens do cativante
romance, vazado nos moldes do indianismo de
Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo
estilo é tão caloroso, opulento, sempre terso,
sem desfalecimento e como perfumado pelas
flores exóticas das nossas virgens e luxuriantes
florestas. Quando a S. Paulo chegava o correio,
com muitos dias de intervalos então, reuniam-se
muitos e muitos estudantes numa república, em
que houvesse qualquer feliz assinante do Diário
do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de
vez em quando, por elétrico frêmito, a leitura
feita em voz alta por alguns deles, que tivesse
órgão mais forte. E o jornal era depois disputa-
do com impaciência e pelas ruas se via agrupa-
mentos em torno dos fumegantes lampiões da
iluminação pública de outrora – ainda ouvintes
a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor.
(Taunay 1923, pp. 85-86)
63
trar à Europa esse país tal como ele é do ponto de vista,
social, político, literário, religioso, industrial e comercial”7
(id. ibid., p. 1), fazendo dele uma verdadeira “tribuna de
propaganda”, conforme o anúncio publicado no Diário do
Rio de Janeiro (10/1/1863, p. 1).
Desse modo, a tradução anônima de O guarani no
folhetim do Brésil deve ser entendida como uma forma de
divulgação da produção literária nacional. É justamente
desse modo que o romance será anunciado: “No próximo
número, além de outros artigos sobre questões internas
do Brasil, começaremos a publicação do Guarany, um dos
romances brasileiros de maior mérito. Isso dará à Europa
um espécime do nosso desenvolvimento literário”8 (id.
ibid., p. 1). A tradução permaneceria incompleta depois
do desaparecimento do veículo que teve uma circulação
efêmera de poucos números. Quanto ao recorte dos epi-
sódios, nota-se que cada capítulo não coincide com o es-
paço de um folhetim, como era o caso da publicação no
Diário do Rio de Janeiro.
Muito diferente foi a tradução do romance de
Alencar feita por Louis-Xavier de Ricard, um homem de
letras francês que morara no Brasil na década de 1880.
Acreditamos que a sugestão de publicar O guarani tenha
partido do próprio tradutor, então colaborador do Droits
de l’homme, diário conhecido por sua posição em favor
de Dreyfus no caso que agitava a França naquele ano de
1899.9 Vejamos como o jornal anunciou o primeiro epi-
sódio do romance brasileiro:
64
Começamos hoje a publicação de um novo fo-
lhetim:
Os Aventureiros
de
O Guarani
Esse romance de aventuras, o mais popular do
mais célebre romancista em língua portuguesa
José de Alencar, cativará certamente os nossos
leitores e as nossas leitoras pela enérgica oposi-
ção de caracteres, pela dramaticidade das peripé-
cias e dos episódios inesperados e pelo pitores-
co dos quadros no meio dos quais se desenvolve
uma ação das mais patéticas que não deixará de
interessar o leitor um só instante.
O romance Os aventureiros foi traduzido espe-
cialmente para Les droits de l’homme pelo nosso
colaborador Xavier de Ricard. (Les droits de l’hom-
me 15/01/1899, p. 1)10
65
Fica evidente que as questões do nacionalismo e
do indianismo do romance em nada interessavam o ve-
ículo que o publicou. Embora fosse um veículo voltado
para a informação, parece-nos que o espaço do folhetim
abarcava um público bastante amplo. O título do roman-
ce em francês (designação da primeira parte na versão
original) sintetiza perfeitamente o discurso que acompa-
nha o romance: prioridade à aventura em detrimento da
origem autóctone do herói. Ou seja, o interesse da pu-
blicação explica-se pelas características folhetinescas do
texto, sugerindo o maniqueísmo, a presença do suspense
e o número elevado de peripécias que prometem man-
ter o leitor fisgado e sob tensão. Em segundo lugar, a
descrição da natureza contribui para a construção de um
cenário pitoresco, exótico e, portanto, atrativo. No en-
tanto, apesar dessas características, a origem do romance
jamais é mencionada. José de Alencar torna-se, no anún-
cio, “o mais célebre romancista em língua portuguesa”.
Seu nome, no entanto, aparece com menos destaque do
que o de seu tradutor.
Em 1902, a editora popular Tallandier republi-
cou a tradução de Ricard em sua coleção “Bibliothèque
des grandes aventures”, voltada principalmente para
o público juvenil, com ligeiras correções. As obras que
integraram o mesmo selo eram muitas vezes de autores
estrangeiros, embora a menção “tradução” não fosse
mencionada sistematicamente. O carro-chefe da coleção
era o romancista popular Louis Boussenard com sua série
Le tour du monde d’um gamin de Paris. É interessante notar
que a maioria dos textos de Boussenard era antes publica-
da no Journal des voyages, periódico voltado para o público
infanto-juvenil, contendo narrativas de viagem e aventu-
66
ra, artigos e ilustrações. Para Tallandier, a publicação pré-
via em folhetins era certamente uma maneira de “testar”
a narrativa junto ao público. A republicação posterior de
romances-folhetins em livro era um procedimento bas-
tante comum na época.
A partir desses elementos, podemos inferir que Ri-
card, depois da publicação em folhetins, optou por ado-
tar um suporte condizente às características folhetines-
cas. Uma mudança de título acompanhou a nova edição.
Le fils du soleil (O filho do sol) apresenta certa familiaridade
com outros títulos da coleção (como La fille des vangues ou
Les faisaieurs de pluie), associando fenômenos da natureza e
um ser humano que vive primitivamente, deixando entre-
ver um gosto pelo exótico. Além disso, a alteração evitava
a redundância entre o título da edição em folhetins, Les
aventurier ou Le guarani, e o da coleção “Bibliothèques des
grandes aventures”. Apenas uma discreta indicação do
subtítulo entre parênteses – Les aventuriers ou Le guarani –
remetia, na página de rosto, à publicação anterior.
Ricard aproveitou a nova edição e o suporte do li-
vro para redigir uma apresentação do romance brasileiro.
O prefácio, dirigido a seu amigo Rémy Couzinet, ofere-
ce algumas pistas importantes sobre a maneira como se
desejava agora passar O guarani ao público francês. Num
primeiro momento, o tradutor faz alusão à latinidade:11
“Já estamos por demais ameaçados de perdermos essa
virtude de ponderação e equidade que constitui boa par-
te do nosso gênio latino”12 (Ricard 1902, p. V). Ricard
67
defendera essas ideias quando dirigiu o jornal Le sud-amé-
ricain,13 durante sua estada no Brasil e em artigos que saí-
ram na imprensa francesa. A escolha da tradução é apre-
sentada, portanto, como um passo em direção à América
Latina: “devemos nos apressar em retomar a fecundidade
íntima de outrora com os nossos compatriotas de raça.
Essa tradução, meu caro, é uma tentativa nesse sentido”14
(id. ibid., p. V).
Numa segunda parte do prefácio, Ricard trata de
introduzir Alencar e O guarani. Alertando que não cederá
à habitual mania dos tradutores de exagerar no mérito da
obra, afirma com uma sinceridade surpreendente: “José
de Alencar tem certamente o seu lugar e numa posição
bastante honrosa na literatura brasileira. Mas ele não é um
desses gênios indispensáveis cuja ausência faria falta na
história intelectual da humanidade”15 (id. ibid., p VI). Ou
seja, na interpretação de Ricard, Alencar teria um lugar de
prestígio dentro da literatura brasileira, mas dispensável
fora de seu sistema de origem. O tradutor não deixa de
fazer referência à importância da literatura indianista de
Alencar, explicando que o escritor provocou em seu país
“um movimento interessante e útil rumo às origens indí-
genas desse império imenso”16 (id. ibid., p VI). Com um
lapso interessante, que, aliás, ele já cometera no anúncio
do Les droits de l’homme, completa: “o romancista portu-
guês, ao contrário [de outras nações americanas], fundava
68
a esperança da nascente nacionalidade brasileira na fusão
da raça conquistada com a raça conquistadora”17 (id. ibid.,
p VI). O lapso que Ricard comete ao chamar Alencar de
“romancista português” pode ser explicado pela própria
posição do tradutor que, de fora, enxerga o projeto de
Alencar como estando mais focado na legitimação da co-
lonização do que na fundação da nacionalidade brasileira.
Nas palavras do tradutor, Alencar pretende, através de
sua obra: “legitimar a antiga conquista portuguesa atra-
vés de uma assimilação tão íntima dos vencedores e dos
vencidos que esses acabam por formar um povo novo
em que não se pode mais distinguir um do outro numa
posteridade que contém ambos”18 (id. ibid., p. VI).
Considerações finais
69
prova sua inserção numa coleção de livros juvenis e de
aventuras.
Os anúncios que acompanharam as duas publi-
cações em folhetins nas versões em francês não deixam
de mencionar a cor local do romance. Le Brésil, que se
pretende uma tribuna de propaganda do país na Europa,
elegeu-o como um caso exemplar da literatura nacional.
Já em Les droits de l’homme a cor local do cenário transfor-
mou-se em algo pitoresco e exótico, sendo arrolada na
lista de “qualidades” do romance-folhetim. Finalmente,
o prefácio de Ricard na edição em livro revela um cer-
to desprezo por Alencar. O tradutor preferiu valorizar o
texto traduzido por sua latinidade e sua “ação singular-
mente dramática e emocionante”19 (id. ibid., p. VIII), que
faria dele um verdadeiro romance de aventuras.
Originalmente escrito dia a dia à medida que era
publicado no Diário do Rio de Janeiro, O guarani moldou-se
perfeitamente ao modelo folhetinesco vindo da França,
acrescentando a este a cor local tão necessária ao roman-
tismo brasileiro. Tanto nas edições brasileiras seguintes,
que nunca seriam consequentemente modificadas por
Alencar, quanto nas traduções francesas constata-se, por-
tanto, a permanência do aspecto folhetinesco. No entan-
to, o discurso em torno dessas características amplamente
presente nas traduções desaparece na maioria das edições
atuais brasileiras. Por isso, a escrita folhetinesca é muitas
vezes deixadas de lado quando se trabalha com O guara-
ni em sala de aula. Ignora-se assim tanto a importância
do romance-folhetim e da imprensa para a formação da
literatura brasileira quanto o impacto da publicação em
jornais sobre o próprio texto. Desse modo, ler O guarani
como quem está diante de um antecessor das telenove-
las talvez seja o melhor caminho para entendê-lo no seu
contexto particular de publicação. Ao final deste artigo,
propomos uma atividade a ser realizada pelo leitor.
70
Referências bibliográficas
Periódicos
72
ATIVIDADES PROPOSTAS
Primeira parte
73
Grupo 2: O suspense e o gancho. Releia alguns episódios de
O guarani e procure pelo menos três exemplos de ganchos.
Compare-os: são sempre construídos da mesma maneira?
Quais as estratégias utilizadas pelo narrador? A partir desses
exemplos, procure construir uma definição de gancho.
74
Capítulo 4
APONTAMENTOS COGNITIVOS PARA
UMA DIDÁTICA DA LITERATURA
75
textuais sobre o autor e sua época é prova de desconhe-
cimento de que o texto literário já é, em si, uma forma
privilegiada de conhecimento.
A apreciação de um poema, por exemplo, consi-
derando-se a riqueza de recursos da linguagem, no plano
de expressão, e a sensibilidade de representação dos sen-
timentos humanos, no plano de conteúdo, constitui uma
oportunidade de construção cognitiva e afetiva para os
educandos. Se o poema agradou, então nada mais opor-
tuno do que falar ou, ainda melhor, solicitar que os alunos
busquem informações sobre quem o escreveu e em que
época isso ocorreu. Para dar outro exemplo, a leitura pré-
via de um capítulo do romance Vidas secas, de Graciliano
Ramos, traz informações sobre o estilo individual e o de
época na própria fonte. Valores (temas) e representações
(figuras),2 elementos da narrativa, discurso indireto livre,
figuras de linguagem, tudo isso constitui matéria de estu-
do. E é justamente essa matéria que dará sentido às infor-
mações que cercam essa produção literária, no que ficou
conhecido como Romance de Trinta. Textos da crítica e
da historiografia literárias certamente complementariam
a construção das diversas etapas cognitivas, mas, sob ne-
nhuma hipótese, substituiriam a leitura da própria obra.
A literatura é possivelmente a mais antiga forma-
lização do conhecimento humano. Não por acaso, seu
estudo motivou filósofos como Platão e Aristóteles a re-
fletir sobre o tema. Curiosamente, o que coloca Aristó-
teles à frente de Platão, pelo menos segundo uma visão
contemporânea do fenômeno literário, foi o fato de que a
Platão interessou a função da literatura na sociedade, en-
quanto Aristóteles se concentrou no texto literário como
objeto de estudo, ou seja, como produção particular do
76
conhecimento humano. Segundo Gonçalves e Bellodi
(2005, p. 40), “Platão advoga a necessidade de observar a
natureza para se chegar à verdade (…) sem admitir que a
Literatura também é, entre outras coisas, uma forma de
conhecimento”. No entanto, para essas mesmas autoras,
Aristóteles revelou muito mais sobre a natureza da obra
literária, chegando a uma concepção do texto como uma
unidade constituída de partes inseparáveis e articuladas
entre si, ou seja, algo que se assemelha à noção de es-
trutura, conceito usado desde o século dezenove até a
atualidade (Gonçalves e Bellodi 2005, p. 45).
Para Proença Filho (1992, p. 37), “O discurso da
literatura se caracteriza por sua complexidade”. E essa
complexidade precisa ser examinada em sala de aula.
Como fenômeno estético, o texto literário não só trata
das coisas do mundo, mas cria um mundo próprio me-
diante a ficção. Não um mundo desligado da realidade,
mas sim uma versão virtual que fornece lentes privilegia-
das para entender as coisas do mundo. O mesmo Proença
Filho chama atenção para a “multissignificação” (p. 38),
para o “predomínio da conotação” (p. 40), para a “ênfase
no significante” (p. 42), dentre outras características do
discurso literário.
A obra literária é matéria mais do que suficiente
para todas as etapas cognitivas de uma experiência de en-
sino-aprendizagem. E poucas matérias harmonizam tão
bem a fruição ao conhecimento como a Literatura, na
condição de que a prática pedagógica coloque a aborda-
gem do texto literário em primeiro lugar.
Ora, educar é também proporcionar oportunidade
de sensibilização e de construção de um lazer produtivo.
Pelas obras literárias, chega-se ao hábito da leitura, que
serve ao lazer, à sensibilização e à cultura geral e, por que
não, à tomada de consciência sobre a condição existen-
cial e sobre o papel de protagonista na história de uma
comunidade, seja esta a região, o país ou mesmo o plane-
77
ta. Afinal, por um lado, “A literatura é veículo sinfrônico
que apaga as distâncias e as idades” (Castagnino 1969, p.
28), essa “emoção criadora” que tem o condão de interli-
gar autores e leitores, independentemente de espaço e de
tempo; mas, por outro, a literatura também é instrumento
de combate, já que o escritor, segundo Sartre (2004, p.
55), não escreve para um “leitor universal”, o que seria
utópico, mas a pessoas que, igualmente a quem escreve,
não são verdadeiramente livres na sociedade atual. En-
fim, os escritores não podem escapar à história: “Escritu-
ra e leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico,
e a liberdade à qual o escritor nos incita não é uma pura
consciência abstrata de ser livre” (Sartre 2004, p. 57).
No tocante a uma Didática da Literatura, a maior
parte dos pesquisadores aponta para dois focos: o peda-
gógico e o didático. Pedagogicamente, o educando deve
estar no centro das atividades de sala de aula. Didatica-
mente, o texto literário deve ocupar o centro das infor-
mações e experiências. Assim entendido, seria mais eficaz
uma aula centrada na experimentação do próprio aluno
e concentrada na complexidade do texto literário. Aulas
expositivas maçantes, que usem o texto literário somente
como pretexto e que forneçam apenas quadros classifica-
tórios superficiais sobre autores e obras, estariam fora de
cogitação na contemporaneidade.
Não custa acrescentar que Literatura é patrimônio
cultural que passa de geração a geração. Os mitos, os poe-
mas, as letras de música, as peças de teatro, os contos e os
romances constituem parte essencial da cultura. A iden-
tidade de um povo, de uma nação ou de uma civilização
tem relação direta com seu patrimônio literário, cabendo
inapelavelmente a quem ensina Literatura proporcionar
ao educando o acesso a essa herança. Numa clara visão
política sobre o assunto, Antonio Candido (1995, p. 263)
assim termina um de seus ensaios mais famosos, em que
apresenta o acesso ao texto literário como parte dos Di-
reitos Humanos:
78
Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos
direitos humanos, e a fruição da arte e da lite-
ratura em todas as modalidades e em todos os
níveis é um direito inalienável.
79
planos de unidade. Por sua vez, o plano de unidade se
desdobra em planos de aula. Na terceira série do ensino
médio, por exemplo, o plano de curso costuma abranger
a periodização literária que vai do início do século vinte
até os dias de hoje. Considerando-se esse período, é pos-
sível desenvolver os seguintes planos de unidade: Impres-
sionismo,3 Primeira Fase do Modernismo, Segunda Fase
do Modernismo, Pós-Modernismo, Literatura Marginal,
Literatura Contemporânea. Cada unidade, por sua vez,
subdivide-se em planos de aula. Assim, a unidade da Pri-
meira Fase do Modernismo poderia ser desenvolvida em
três planos de aula: Vanguardas Modernistas, Semana de
Arte Moderna, Correntes Modernistas Brasileiras. Nada
impede, no entanto, que se faça um plano de curso e, em
seguida, os planos de aula, dispensando-se os planos de
unidade.
Evidentemente, tal divisão não é novidade. Já faz
parte do cotidiano dos professores de Língua Portuguesa
do Fundamental e do Ensino Médio. O problema é que
essa distribuição de conteúdos não traz em seu bojo o al-
cance cognitivo pretendido na relação ensino-aprendiza-
gem. Em outras palavras, o fato de se elencar um tópico
como “Segunda Fase do Modernismo”, para alunos da
terceira série do Ensino Médio, nada diz sobre se tal con-
teúdo se refere ao conhecimento, à compreensão, à apli-
cação, à análise, à síntese e à avaliação (crítica), ou seja,
as seis etapas da Taxionomia de Bloom concernentes ao
domínio cognitivo (Bloom 1976). O desdobramento dis-
so é preocupante. Se não há uma consciência do nível
80
cognitivo pretendido numa aula de Literatura, então a
aula corre o risco de cair na velha rotina de memorização
de autores, estilos de época e títulos de obras literária. E
mais. Uma avaliação construída sobre tal inconsciência
tende a ser improdutiva e não poucas vezes injusta e de-
sestimulante para os alunos.
Sabendo-se que as competências e habilidades
hierarquizadas na forma dos objetivos educacionais
representam etapas que não admitem saltos, a falta de
consciência desses pressupostos cognitivos pode levar
a situações de fracasso, tanto para quem tenta aprender
como para quem pretende ensinar. Por exemplo, se não
há conhecimento (informação prévia) sobre metáfora,
não é possível compreendê-la (perceber que a metáfora
é uma analogia); se não há compreensão sobre metáfora,
não se pode aplicar essa categoria a um texto; se não se
aplica a metáfora na apreciação de um texto, não é pos-
sível analisá-lo do ponto de vista metafórico, sabendo-
se que a metáfora funciona como conector de isotopias
num texto,4 ou seja, estabelece mais de uma possibilidade
de leitura de uma texto; se não se faz uma análise metafó-
rica de um texto, não se chega a uma síntese sobre o valor
da metáfora na construção de um texto como um todo;
e, finalmente, se não se chega a uma síntese sobre esse
valor no texto em sua totalidade, não é possível o aluno
avaliar o emprego da metáfora, por exemplo, no estilo in-
dividual ou de época postos em estudo. Assim, não basta
apresentar a metáfora como assunto no plano de aula,
81
mas sim situá-la progressivamente, desde a competência
da memória (conhecimento) até se chegar à competência
crítica (avaliação).
A redação de um plano de aula pode variar muito,
dependendo da orientação didático-pedagógica adotada
na escola ou da tendência pessoal do professor. Para os
fins específicos deste texto, retomo um esquema que tal-
vez não se afaste, pelo menos na essência, da maioria dos
planos de aula. Cada tópico desse esquema será retoma-
do, a bem da clareza conceitual.
Esquema do plano de aula: Cabeçalho, Assunto,
Conteúdo, Objetivos, Avaliação, Procedimentos e crono-
grama, Meios auxiliares, Bibliografia, Observações.
83
• Meios auxiliares: Material necessário à aula,
como quadro, livros, cartazes, projetores, den-
tre outros.
• Bibliografia: Referências bibliográficas da aula,
a exemplo do livro didático e outras fontes de
consulta.
• Observações: Anotações necessárias, como
adaptações da aula dependendo de circunstân-
cias, como o número de alunos, o horário, a
disponibilidade de um aparelho, etc.
85
3. Aplicação: O terceiro nível cognitivo pode ser
constatado na competência ou habilidade de
empregar dados ou conteúdos já compreen-
didos em situações novas. A aplicação é tanto
mais eficaz quanto mais diversificados os tex-
tos. Apresentações de equipe e dramatizações
são formas motivadoras de levar os alunos à
passagem do nível da compreensão para o da
aplicação. Na Literatura, são exemplos de ob-
jetivos ligados ao nível cognitivo da aplicação:
apresentar um poema dadaísta com base na
“Receita de poema dadaísta”, de Tristan Tza-
ra; apresentar um jogral com base no poema
“Operário em construção”, de Vinícius de
Moraes; reescrever um capítulo de Vidas Se-
cas, de Graciliano Ramos, em forma de teatro;
identificar em pelo menos cinco dos capítulos
do romance Dom Casmurro exemplos do em-
prego da metonímia; confrontar a representa-
ção da mulher nos textos dados, sendo um do
Romantismo, outro no Naturalismo e um ter-
ceiro da literatura atual, explicando qual das
duas representações do século dezenove mais
influencia a prosa contemporânea.
4. Análise: O quarto nível cognitivo pode ser
entendido como uma visão estrutural ou sis-
têmica de algo, ou seja, a consciência da rela-
ção entre as partes e o todo. A análise de uma
obra literária completa, como um romance,
por exemplo, depende de uma visão estrutu-
ral dos elementos da narrativa (tipologia de
personagens, disposição do tempo, represen-
tação do espaço, modos de narrar, etc.) e dos
recursos estilísticos que conferem a literarie-
dade do texto. Uma análise literária depende
da compreensão e da aplicação das categorias
86
analíticas em questão (a tipologia das perso-
nagens, por exemplo). Exemplos literários
de objetivos cognitivos no nível da análise:
classificar as personagens principais e secun-
dárias de Senhora, de José de Alencar; anali-
sar o enredo de “A triste partida”, de Patativa
do Assaré, considerando as categorias analí-
ticas da apresentação, complicação, clímax e
desfecho; relacionar os estados emocionais
da protagonista com o ambiente em que ela
se encontra ao longo do romance apreciado
pela equipe; apresentar as semelhanças ou os
contrastes na descrição romântica do sertão,
considerando-se os textos dados, um de José
de Alencar, em O sertanejo, e outro da primeira
parte de Os sertões, de Euclides da Cunha; rees-
crever e ilustrar a peça de teatro estudada no
formato de história em quadrinhos.
5. Síntese: O resultado lógico de uma análise
bem conduzida é uma visão de conjunto so-
bre o que se estuda. O resumo de um roman-
ce é um exemplo de síntese. Uma compilação
também é um recurso que exige uma visão
de conjunto de uma obra. Um período lite-
rário estudado também pode ser objeto de
síntese. Na dinâmica de grupo, a síntese pode
ser solicitada na forma de seminários, com a
ilustração de cartolinas ou esquemas. Exem-
plos de objetivos relacionados com o nível
cognitivo da síntese: apresentar o enredo de
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo,
num parágrafo único de, no máximo, dez fra-
ses; elaborar um esquema com os principais
momentos da Semana de Arte Moderna; criar
uma entrevista imaginária com Guimarães
Rosa; redigir uma reportagem, supondo-se
87
que Bentinho, personagem de Dom Casmurro,
de Machado de Assis, prestasse um depoi-
mento sobre a morte do amigo Escobar.
6. Avaliação: No nível cognitivo mais alto, en-
tende-se que alguém seja capaz de avaliar o
próprio objeto da aprendizagem. Avaliação
aqui, vale a pena lembrar, não é aquela de
quem ensina, mas de quem aprende, ou seja,
é o mesmo que juízo crítico ou criativo so-
bre algo. A percepção dos valores implícitos
no que foi estudado e a relação desses valo-
res com outros mais amplos da sociedade são
operações esperadas para este nível. A litera-
tura tem valores estéticos (literariedade), mas
não só. Há toda uma representação do indi-
víduo e da sociedade que merecem conside-
ração e despertam calorosos debates em sala
de aula. Mas é necessário apresentar critérios
e regras para uma avaliação ou julgamento efi-
caz, sob pena de as aulas se transformarem
num rol de exposições meramente subjetivas,
desfocadas do essencial posto em discussão.
Alguém que não avançou nas etapas anteriores
terá, quando muito, uma participação inconsis-
tente e evasiva num debate. O convite não só
à crítica de conteúdos apreciados, mas também
à autoavaliação é sempre bem-vindo para co-
roar uma etapa de estudos. Exemplos de obje-
tivos situados no nível cognitivo da avaliação:
apresentar à turma uma visão crítica sobre os
projetos elaborados sobre o conto brasileiro
contemporâneo; elaborar uma resenha crítica
sobre o romance estudado pela equipe; escre-
ver um pequeno artigo literário sobre o roman-
ce Agosto, de Rubem Fonseca, a ser publicado
na página da turma; relacionar a crítica de Eu-
88
clides da Cunha em Os sertões à invasão de
comunidades populares nos dias de hoje; apre-
sentar a defesa de João Romão, personagem
de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, no tribunal
da turma; relacionar a forma e o conteúdo da
poesia concreta com o contexto histórico em
essa tendência estética se estabeleceu no Bra-
sil; escrever uma carta imaginária a um autor
do período literário estudado, posicionando-se
sobre o valor de sua obra.
89
de outros conteúdos, como o estudo das figuras de lin-
guagem ou da versificação. No entanto, uma obra literá-
ria completa é sempre um convite ao percurso também
completo da Taxionomia de Bloom. Como continuidade
de nossa discussão, ao final do capítulo apresentamos
uma atividade.
Referências
90
ATIVIDADES PROPOSTAS
91
Capítulo 5
HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS
DESCONHECIDAS: AS TRADIÇÕES
AFRICANAS EM NARRATIVAS
INFANTIS E JUVENIS
93
ção de personagens protagonistas ou narradores negros
torna-se um desafio em meio à predominância de obras
que silenciam essas vozes ao longo da história da litera-
tura. Observam-se, na última década, novas publicações
de obras infantis e juvenis com personagens negras pro-
tagonistas inseridas em narrativas que apresentam traços
da cultura afro-brasileira com seus temas relacionados às
religiões de matrizes africanas, ancestralidade, oralidade,
história do continente africano ou que retomam lendas e
contos africanos. Apresentá-las aos educadores é o pri-
meiro passo para que essas obras sejam reconhecidas no
espaço educacional.
94
precisam avançar para além dos discursos, ou
seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em
torno da questão racial e educação são necessá-
rias, por outro lado precisam chegar à escola e
sala de aula, alterando antes os espaços de for-
mação docente. [...] É preciso refletir acerca do
espaço de formação deste(as) professores(as),
ou seja, avaliar se as IES vêm se organizando
para a inclusão das temáticas relativas às rela-
ções étnico-raciais, assim como o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica. (Monteiro 2006, p. 126)
95
Literatura afro-brasileira
96
Nessa mesma perspectiva, Eduardo de Assis Du-
arte (2011) em seu artigo “Literatura afro-brasileira: um
conceito em construção” propõe alguns critérios para a
adoção da denominação literatura afro-brasileira: temáti-
ca, autoria, linguagem e público leitor. Segundo ele, deve
haver interação desses elementos no texto, todos relacio-
nados ao negro, e não serem tratados de forma isolada.
Em vista de se tratar de produção literária e esta, por sua
vez, depender de uma cultura da escrita; considerando,
ainda, que a população negra chegou às escolas há pouco
mais de um século, é preciso observar que essas produ-
ções apresentam traços, símbolos e mitos da cultura afro
-brasileira em processo de construção e reconhecimento
nas representações de obras literárias. Sobre a chegada
tardia da população negra às escolas após a abolição, co-
menta Petrônio Domingues (2008, p. 519) em artigo inti-
tulado “Um ‘tempo de luz’: frente negra brasileira (1931-
1937) e a questão da educação”.
97
esposa, a mãe da criança, argumentara que tinha
condições financeiras para pagar a mensalidade,
a superiora do estabelecimento de ensino teria
respondido: “Não é nesse ponto, apenas, que se
tornam rigorosos os nossos estatutos. Também
não recebemos pessoas de cor, embora oriundas
de família de sociedade” (Progresso, 24 mar. 1929,
p. 2). Esse episódio demonstra como algumas
escolas inscreviam nos estatutos a proibição da
matrícula de “pessoas de cor”, independente-
mente de sua classe social. Na mesma edição,
o Progresso denunciava o caso em que o dr. José
Bento de Assis não pôde matricular sua filha
numa escola dirigida por freiras, o College Sa-
cre Coeur, pelo “simples” fato de ela ser negra
(idem, p. 5). (Domingues 2008, p. 519)
98
cimento do espaço da voz negra na sociedade brasileira.
Há textos críticos, referências bibliográficas para pesquisa,
entrevistas, excertos de obras distribuídos entre romance,
conto, crônica, ensaios e poesia, sendo possível identificar
a escolha de mais de um gênero.
As obras escolhidas para estudo, neste trabalho,
fazem parte de um pequeno grupo que obteve espaço
para retratar não apenas a personagem negra em enre-
dos que contam lendas, costumes e representam a cultura
africana em histórias criadas ou adaptadas, mas também
para colocar em debate problemas relacionados ao pre-
conceito e à discriminação étnica.
99
que privilegiam a cultura africana e as personagens negras
na literatura brasileira. Ao refletir sobre os resultados de
sua pesquisa feita entre 1990 e 2004 (primeiro período
analisado) e entre 1965 e 1979 (segundo período) sobre
as personagens negras no romance brasileiro,1 a autora
assinala que houve a publicação de
100
como, por exemplo, O chamado de Sosu, Meshack Asare2
(2005) e a narrativa angolana Ynari: a menina das cinco tran-
ças de Ondjaki3 (2010) ou derivadas de pesquisas como a
obra O homem frondoso e outras histórias da África de Claude
Blum4 (2011), fruto de seu trabalho sobre os países afri-
canos que foram colônias francesas. A pesquisa prévia
a respeito da localização dos países mencionados nessas
histórias, a atenção dispensada às especificidades do vo-
cabulário e dos nomes das personagens, além da busca
por referências à cultura, contribuem significativamente
para compreensão dessas narrativas.
Dentre as publicações brasileiras, há narrativas
como Ifá, o Adivinho de Reginaldo Prandi5 (2002) e Uma
ideia luminosa de Rogério Andrade Barbosa6 (2007) que
exigem explicações quanto à cultura, à religiosidade de
matriz africana e às ilustrações. Em Minhas Contas de Luiz
Antonio7 (2008) a abordagem da religiosidade é feita
tanto pela história – ao tratar do tema do preconceito
- quanto pelas ilustrações que apresentam cores relacio-
nadas aos Orixás. O tema da capoeira aparece na obra de
Luiz Antonio e no livro Adamastor, o pangaré de Mariana
Massarani8 (2007) que traz ilustrações de personagens
negras, mas não faz menção na história a outros temas
ligados à cultura afro-brasileira ou questões étnicas como
101
ocorre também na obra de Sonia Rosa9 (2002) O menino
Nito: então, homem chora ou não?
102
A temática racial, bem como os problemas so-
ciais, está presente nas narrativas de Júlio Emí-
lio Braz, que afirma ter assumido sua identida-
de negra aos 20 e poucos anos, no tempo de
estudante. Quando criança, achava-se moreno,
crioulo, pardo, certeza que foi abalada quan-
do, ao encontrar o papel pardo com o qual foi
orientado pela professora a encapar seus cader-
nos, descobriu que aquela não era a sua cor. Par-
tiu então em direção à busca de sua identidade
e hoje, muitos anos depois, proporciona aos
jovens leitores brasileiros a reflexão a respeito
dos dilemas étnicos que envolvem os afrodes-
cendentes, no contexto da sociedade brasileira.
(Lopes 2011, p. 320)
103
restante e considerado mais fraco do que os irmãos para
ajudar no resgate. Em uma das pausas para descanso da
comitiva, ao voltarem com os pássaros (filhos do chefe)
para a aldeia, canibais encontram os guerreiros em uma
caverna e acabam salvos por Sikulume que ouve a con-
versa entre os famintos enquanto discutiam qual guerrei-
ro devorariam primeiro, deixando por último o protago-
nista por ter pés pequenos.
104
na construção de um leitor negro, não exclusi-
vo de histórias afro-brasileiras, mas que aprenda
desde a infância a relacionar o conteúdo de um
livro ao seu dia-a-dia. Igualmente, interfere na
formação educacional das crianças ao trazer à
tona modelos étnicos, contrários aos quais tran-
sitam na literatura universal, que reconstroem a
representação do povo descendente de africa-
nos no imaginário literário. (Silva 2012, p. 2)
106
Como em outros contos aqui destacados, os tex-
tos11 de Rogério Andrade Barbosa com ilustrações de
Graça Lima, preocupam-se em mostrar a relação estreita
entre homens e natureza, como as narrativas do livro His-
tórias africanas para contar e recontar (2001) sobre o costume
de animais. A ambientação africana permite o contato
com a cultura e a história das regiões que servem de ce-
nário para os acontecimentos por meio de descrições que
promovem o retrato de seus costumes, como em “Por
que o camaleão muda de cor”.
107
não apenas personagens negras, mas também relatos da
cultura africana sob a voz de narradores pertencentes a
essas tradições pode significar a consolidação, cada vez
maior, dessas e de outras obras no espaço da literatura
brasileira.
Meios de divulgação
108
simultâneas num mesmo espaço para representar os sig-
nificados engendrados pelo e no texto ficcional, quebran-
do os limites espaciais da palavra escrita. Texto escrito,
imagem e movimento se unem em múltiplas perspectivas
no ato de leitura que procura captar, em ângulos varia-
dos, essas formas de representação de sentidos. Ao se
pensar em leitores em formação em meio a essas modifi-
cações contínuas nas formas de apresentação do texto e
na maneira de lê-los, mais especificamente, na literatura
infantojuvenil, em que a ilustração sempre teve espaço de
maior importância, as novas tecnologias parecem se tor-
nar mais atraentes e capazes de interferir com maior rapi-
dez nas escolhas de leitura das gerações que crescem em
meio a jogos eletrônicos e imagens de alta definição ou
3D. No espaço da literatura infantojuvenil, as ilustrações
ganham relevância e com a introdução de seus conteú-
dos em novas interfaces há a possibilidade de despertar
o interesse dos jovens leitores. Esse interesse, uma vez
aguçado, possibilita a abertura para a compreensão dos
conteúdos, ampliando a percepção dos significados, ou
seja, a divulgação de uma obra e o modo como é feita
pode interferir na apreciação do leitor em contato com
o mundo digital. Segundo Canclini (2008, p. 30), essas
alterações também provocam desafios:
109
espaço da literatura infantojuvenil, como os de temática
afro-brasileira. O interesse do leitor em desvendar novas
culturas é o primeiro impulso para a busca de histórias,
utilizando todos os meios de circulação a sua disposição,
seja pelo livro impresso, seja pelo ciberespaço. O estímulo
a esse olhar mais amplo pode começar pelo contato, em
sala de aula, com heróis e heroínas de mundos (até agora)
pouco (re)conhecidos. Esse talvez seja um dos caminhos
para evitar que se agravem as desigualdades não apenas
no mundo digital, como indaga Canclini, mas também no
real. Ao final deste capitulo, de acordo com a proposta
do livro, há uma atividade que retoma de certa forma a
discussão tratada.
Bibliografia
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113
ATIVIDADES PROPOSTAS
114
Capítulo 6
A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO...
MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO
115
Tentaremos aqui listar as características do gênero
com o intuito de defini-lo. Para isso, organizar-se-á em
itens, sem pretensão de absoluta exaustividade, tentando
responder às perguntas acima e algumas vezes indo além.
Como Antonio Candido deixa transluzir no artigo
A vida ao rés-do-chão, ao falarmos em crônica já partimos
do preconceito de ela ser considerada social e até acade-
micamente como um gênero menor. Vejamos também como
Clarice Lispector, na crônica Ser cronista publicada na co-
letânea A descoberta do mundo, revela como o tal preconcei-
to flutua no ambiente:
116
diz José Castello, “a crônica confunde porque está onde não de-
via estar: nos jornais, nas revistas e até na televisão” (Castello,
2007). É interessante a figura do forasteiro que o autor
utiliza para comparar com a crônica, desconfia-se do
forasteiro por ser um outro que não pertence ao lugar,
circunstância de que a crônica padece: os jornalistas des-
confiam por considerá-la literária e os puristas literários
por considerá-la jornalismo.
Outro traço é a brevidade, a crônica é um gênero
de breve extensão se comparado com outros gêneros li-
terários como o romance. Costuma também ser breve o
período de tempo de que o cronista dispõe para escrever
o seu texto, pois se publicado num jornal pode ter obri-
gações semanais ou até diárias.
Também breve é a vida do seu veículo, o jornal.
Compartilha o suporte com gêneros como notícias e re-
portagens onde os fatos e o real cotidiano são a maté-
ria-prima. Acaba compartilhando a efemeridade desses
outros gêneros do jornalismo e do próprio suporte “jor-
nal” que demora em morrer o tempo do surgimento do
novo exemplar. A grande maioria dos autores consulta-
dos destaca como traço a efemeridade da crônica que por
se encontrar no jornal verá o seu ligeiro desaparecimento.
Porém, com o avanço das tecnologias e a publicação dos
jornais na internet difere o acesso às matérias publicadas.
Aqui estamos refletindo sobre a distinção entre o veículo
jornal em papel e o jornal digital. Enquanto o primeiro tem
24 h de vida para depois passar a ser papel descartado o
segundo continua num espaço digital podendo-se acessá
-lo a qualquer momento. No entanto, embora mereça a
pena tal distinção, consideramos que tanto no jornal em
papel quanto no jornal digital, por se tratar em última ins-
tância do suporte “jornal”, que tem publicações diárias
com matérias que pretendem dar conta dos fatos acon-
tecidos na última hora, os leitores em sua grande maioria
não leem jornais de dias passados. Apesar da distinção, a
117
vida da crônica publicada em jornal tem uma existência
efêmera.
O seu primeiro veículo é, como já mencionamos,
na grande maioria dos casos, o jornal, no entanto, pode,
num segundo momento, passar a fazer parte de uma co-
letânea de crônicas selecionadas pelo próprio autor ou ser
um livro póstumo ou até ser uma coletânea que integre
vários cronistas, sendo então possível que ela permane-
ça, fugindo da efemeridade do dia-a-dia do jornal através
do suporte livro. O público será então um leitor que lê
jornais com frequência, mas que não faz uma leitura apu-
rada, mas ágil, não demorada. Podemos até agora parar
para refletir como o suporte determina o gênero. Recapi-
tulando: por ter como primeiro suporte o jornal a crônica
tem uma breve extensão pelo limite do espaço para cada
matéria, o cronista dispõe de um tempo já estabelecido
para produzir que costuma ser de curta duração e o texto
empírico tem uma vida breve, se não for recuperado pos-
teriormente numa coletânea.
Uma outra feição da crônica que José Castello des-
taca é a radical liberdade. “Ela já não tem compromisso com
mais nada: nem com a verdade dos fatos, que baliza o jornalismo,
nem com o império da imaginação, que define a literatura” (Cas-
tello, 2007). Embora coincidamos em parte com esta afir-
mação, vale a pena comentar que essa liberdade pode ser
restrita pelas políticas editoriais do jornal.
A crônica registra o circunstancial, expõe Jorge de
Sá. Eis a sua conexão com o “real”. Existe um ponto, um
tema, uma perspectiva, mesmo que por vezes pareça estar
codificada, de contato com um acontecimento do coti-
diano. Com isto não queremos dizer que as personagens
sejam necessariamente não ficcionais, de fato, encontra-
mos personagens, tempos e lugares ficcionais, mas que
nalgum ponto tecem uma ponte com uma circunstância
que pode estar sendo parodiada. O cronista tem o poder
de captar um fato que poderia passar despercebido, um
118
fato aparentemente irrelevante e fazer com ele uma refle-
xão sobre os temas mais profundos da existência huma-
na. Por isso, acontece que muitas das crônicas que surgi-
ram a partir de um fato circunscrito a um tempo e espaço,
pela provocação ou reflexão das suas palavras, mantêm a
atualidade através dos anos.
A crônica pressupõe certos vestígios de verdade.
Dita presunção de verdade poderia estar justificada pelo
fato de serem publicadas em jornais e por terem muitas
vezes a forma de monólogos ou anedotas que os leitores
podem assumir como experiências “reais” dos cronistas.
Essa dualidade com a que os leitores de crônicas se de-
frontam – realidade vs ficção – alimenta de certa forma
essa dita difícil categorização do gênero.
A respeito da estrutura e da língua é também Jorge
de Sá quem destaca um traço que consideramos pertinen-
te: o fato de a sintaxe deste gênero lembrar “alguma coisa
desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos
do que propriamente do texto escrito. (...) há uma proximidade
maior entre as normas da língua escrita e da oralidade” (Sá 1997,
p. 11). No entanto, não devemos por isso pensar que a
crônica tratar-se-á de uma transcrição da língua oral, Sá
esclarece que há uma recriação disso que foi ouvido e não
uma simples cópia. Pode fazer uso de uma língua poética
ou humorística ou sarcástica ou mais coloquial numa es-
pécie de conversa... Onde as conjunções alternativas po-
dem também ser aditivas e se dar o fato de encontrarmos
crônicas onde todas essas particularidades têm existência.
Difícil definir este ou qualquer outro gênero pelo
tema, mas de qualquer maneira vamos tentar delimitar os
temas ou pelo menos as particularidades que eles apre-
sentam. Ensina Candido que as crônicas costumam assu-
mir assuntos com “ar de coisa sem necessidade (...) ela se ajusta
à sensibilidade de todo o dia (Candido 1992, p. 13). Poderí-
amos então dizer, seguindo esse raciocínio, que se trata
de temas do cotidiano, mas como diferenciar temas do
119
cotidiano e temas que não pertencem a ele? Difícil res-
posta. De todo jeito, vamos resgatar como particularida-
de que as crônicas costumam ter como assunto alguma
circunstância do dia-a-dia que parece supérflua ou trivial,
embora isto seja por vezes aparente. É Machado de Assis
quem na crônica O nascimento da crônica diz “Há um meio
certo de começar a crônica por uma trivialidade”. É dizer: Que
calor! Que desenfreado calor!” (Assis 1973), ele afirma que há
algo de verdade no fato de a crônica se iniciar com uma
banalidade, um acontecimento corriqueiro, mas..., cuida-
do! Isso não nasceu com a crônica nem é exclusivo dela,
embora ela faça uso desse elemento. Machado continua:
120
Não posso dizer positivamente em que ano nas-
ceu a crônica; mas há toda a probabilidade de
crer que foi coetânea das primeiras duas vizi-
nhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda,
sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do
dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do
calor. (Assis 1973)
121
publicado no jornal. Foi assim que explicou Clarice Lis-
pector na crônica Escrever para jornal e escrever para livro:
122
a um público talvez mais geral que se fosse publicada so-
mente em livro. No entanto, ela se mantém como gênero
literário, sua linguagem é literária, com inúmeras figuras
de estilo, imagens poéticas e, além disso, a função se afasta
da propriamente jornalística de comunicar objetivamente
acontecimentos do cotidiano. O cronista não enumera os
fatos com uma ordem lógica e objetiva como faria numa
notícia nem tenta argumentar sobre a culpabilidade de
um determinado político como faria numa reportagem,
o cronista não descreve os fatos, ele mostra imagens do
cotidiano, dialoga, ele circunda, rodeia os assuntos sérios
através de fatos miúdos.
Há crônicas que parecem monólogos, ensaios, ou-
tras contos, algumas até cartas ou anedotas. Nesse seu
aspecto leve a crônica parece trazer elementos de outros
gêneros. Algumas vezes trata-se da aparição no macro
gênero de um outro gênero, mas outras vezes, sem po-
dermos falar teoricamente de um processo de intertex-
tualização,3 somos testemunhas de como certas crônicas
utilizam aspectos próprios de outros gêneros literários e
não literários. Por exemplo, no caso do ensaio comparti-
lha elementos como as perguntas retóricas e o discurso
misto interativo-teórico.
E como último item, depois deste percurso que
busca caracterizar a crônica, salientamos a dificuldade de
definição pela diversidade de textos empíricos conside-
rados como pertencentes ao gênero, pela flexibilidade da
sua estrutura, pelas suas variadas características, por se
encontrar num veículo que não é próprio de gêneros li-
terários e por isso ser um gênero traiçoeiro, por nascer
de um fato miúdo e aparentemente cotidiano e real, mas
se tecer com elementos ficcionais e linguagem poética. E
voltamos aqui à crônica de Clarice Lispector que elucida
com virtuosismo numa crônica brevíssima a dificuldade
123
de definir a crônica, epígrafe que abre o nosso trabalho:
“Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado
de espírito? (...) acho que vou ter uma conversa com Rubem Braga
porque sozinha não consegui entender” (Lispector 1995, p. 113).
124
Tradição e modernidade dizem muito sobre
Drummond de Andrade quem conseguia ser moderno
sem esquecer a tradição. A cadeira de balanço também
diz respeito à maneira de sentar para ler, pensar, refletir
num mundo moderno e veloz com escasso espaço para
a contemplação.
A crônica aqui escolhida pertence à secção Vida
de um qualquer, um qualquer que é o próprio poeta num
tom confessional, que poderia ser um outro qualquer.
Passemos agora à crônica Perde o gato, um texto de
apenas duas páginas. O cronista começa se justificando,
quer justificar o porquê de escrever sobre um tema miú-
do: perder o gato:
125
leitor dispensa-o de continuar a leitura. Porém, sabemos
que ao sermos dispensados isso prende a nossa atenção
e pretendemos continuar a leitura para saber qual é esse
fato tão miúdo que vai ser relatado. Aparece o cotidia-
no, a própria vida do cronista, a ausência do seu gato
Inácio. É uma espécie de confissão escrita na primeira
pessoa que conta, por isso, com a pretensão de verdade.
E falamos de pretensão porque sabemos que embora seja
escrita na primeira pessoal com tom confessional pode
ser uma personagem criada pelo cronista: um cronista e a
ausência do seu gato. Esta ausência alterna-se com o ato
de escrever como tema sobre o que reflete dizendo:
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128
ATIVIDADES PROPOSTAS
129
Capítulo 7
O GÊNERO POÉTICO NO
ENSINO DE LITERATURA
Introdução
131
ce. Do ponto de vista formal, a crítica literária costuma
identificá-la a partir de elementos estilísticos verificados
em jogos de palavras, na musicalidade das frases, na orga-
nização das palavras em versos e em outras características
formais e de conteúdo comentadas ao longo deste artigo.
O conceito de poesia
Poema 1
Poética
I
Que é a poesia?
Uma ilha
Cercada de palavras por todos os lados (...).1
Poema 2
A poesia é uma pulga
A poesia é uma pulga,
Coça, coça, me chateia,
Entrou por dentro da meia,
Saiu por fora da orelha,
(...),
Mexe, mexe, não se cansa,
Nas palavras se balança (...)2
132
Poema 3
Convite
Poesia
É brincar com palavras
Como se brinca
Com bola, papagaio, pião.
Só que
Bola, papagaio, pião,
De tanto brincar,
Se gastam.
As palavras não:
Quanto mais se brinca
Com elas,
Mais novas ficam. (...)
Vamos brincar de poesia?3
Poema 4
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
Não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.
3. Paes, José Paulo [1996]. Convite. In: Aguiar, Vera (coord.) et. al.
Porto Alegre: Editora Projeto; CPL/PUCRS, p. 48.
133
E te pergunta, sem interesse pela resposta
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave? (...)4
134
grande esforço por parte do poeta na procura da palavra
exata, aquela que melhor convém ao seu estado de ânimo,
à tentativa de falar de seus sentimentos ou, mesmo, do
sentimento dos homens na vida social e expresso por ele.
De modo a ampliar a definição, Massaud Moisés,
em seu Dicionário de Termos Literários (1998), fala de um
eu, denominado eu do poeta ou eu lírico, que se revela ao
mesmo tempo como sujeito e objeto nesse processo de
criação, voltando-se para si; esse o movimento frequente
no exercício de se fazer poesia, ainda mais se se considera
a abordagem crítica tradicional.
De tal modo, diferentemente do gênero narrativo,
estruturado com base em diversos tipos de personagens
e de narradores, na poesia, o leitor defronta-se frequen-
temente com uma personagem - o eu lírico - que vê o
mundo, as pessoas e a si próprio, em um esforço de expri-
mir-se. Se se leva em conta a importância dos elementos
da narrativa na construção da ficção, não é difícil com-
preender o ponto de vista de Massaud Moisés. A título de
ilustração, examinem-se elementos extraídos do romance
Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Em Vidas Secas, acompanha-se como os diferentes
personagens ganham vida - Fabiano, Sinhá Vitória, me-
nino mais velho, menino mais novo - e são fundamentais
na composição da narrativa. Inclui-se o enredo na har-
monia desta composição. Ali, Graciliano Ramos esmera-
se a transfigurar em matéria literária as dificuldades de
uma família de retirantes a fugir da seca no sertão nordes-
tino, como se verifica no trecho a seguir:
135
Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual
a de Seu Tomás da bolandeira. Doidice, não
dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que
era doidice, cambembes podia ter luxo? E es-
tavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão
os botaria para fora, e eles ganhariam o mundo,
sem rumo, nem teriam meio de conduzir os ca-
carecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam
bem debaixo de um pau.
Olhou a caatinga amarela, que o poente aver-
melhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta
verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente.
Sempre tinha sido assim desde que ele se en-
tendera. E antes de se entender, antes de nascer,
sucedera o mesmo – anos bons misturados com
anos ruins. A desgraça estava a caminho, talvez
andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele
marchando para casa, trepando a ladeira, espa-
lhando seixos com as alpercatas – ela se avizi-
nhando a galope, com vontade de matá-lo.5
Caboclo Roceiro
Caboclo roceiro das plagas do norte,
Que vives sem sorte, sem terra e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto teu pranto, me ponho a chorar. (...)6
136
Do exame deste trecho do poema, pode-se perce-
ber as diferenças apontadas anteriormente em relação a
Vidas Secas. No romance, é perceptível o ângulo de ob-
servação do narrador onisciente, cuja função consiste em
contar as dificuldades enfrentadas pela família de retiran-
tes, com pleno acesso ao pensamento dos personagens.
O uso da linguagem por eles, “cambembes”, é frágil; mal
se comunicam entre si. Portanto, cresce o papel do nar-
rador a par das ações das personagens descritas por ele.
No que diz respeito ao poema Caboclo Roceiro, constata-se
tema semelhante. No entanto, é nítida a presença de um
eu poético no lugar do narrador e das personagens, que
canta a dor do caboclo e se põe a chorar. Percebe-se, por-
tanto, que o relato das dificuldades do caboclo emerge
em segundo plano, visto que o acento estilístico recai no
sentimento do poeta diante daquele drama.
Essas primeiras noções veiculadas nos poemas e
nas reflexões anteriores permitem uma primeira tentativa
de definição: a poesia pode corresponder de um modo
geral à expressão do eu, do eu do poeta, do eu lírico.
Convém, todavia, ampliar as noções, com vistas
à apreensão dessa forma particular de expressão. Já se
verificou, com o poeta José Paulo Paes, que uma forma
interessante de definir poesia consiste no jogo, evidencia-
do por meio da brincadeira com as palavras. Neste texto,
serão examinadas algumas maneiras de se explorar “essas
brincadeiras”, que tornam a poesia uma modalidade lite-
rária com características específicas. Uma dessas possibi-
lidades consiste em brincar com a voz que fala no poema.
Lembre-se de que, em um romance, há várias for-
mas de se apresentar um narrador, ou seja, a perspecti-
va de quem conta a história. Em poesia evidencia-se da
mesma forma diferentes possibilidades. A noção de eu
lírico, a voz inventada pelo poeta, para expressar o que ele
sente, pensa ou imagina, adotando diferentes pontos de
vista, ganha forma segundo diversos recursos estilísticos.
Acompanhe-se uma ilustração dessa noção de voz lírica
em um poema:
137
Poema Transitório
Eu que nasci na Era da Fumaça: – trenzinho
Vagaroso com vagarosas
Paradas
Em cada estaçãozinha pobre
Para comprar
Pastéis
Pés-de-moleque
Sonhos
– principalmente sonhos!
Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
Elas suspirando maravilhosas viagens
E a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
Sempre... Nisto,
O apito da locomotiva
E o trem se afastando
E o trem arquejando(...)
É preciso partir
é preciso chegar
É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida
é urgente!
... No entanto
eu gostava era mesmo de partir...
e – até hoje – quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.7
138
Nessa perspectiva, convém observar a expressivi-
dade contida na voz do eu lírico criada por Mario Quin-
tana. De uma parte, identifica-se um eu lírico antigo, pois
nasceu na era da fumaça. Alude, de outra parte, ao trem
movido à fumaça, e se recorda comovido dessa forma
específica de viajar. Devido à necessidade de expressar
a saudade que sente, cria um movimento imaginário no
tempo e no espaço, sugerindo o deslocamento de um
trem sempre de partida, “para parte nenhuma”. Verifica-
se por meio desse recurso - dessa voz inventada, - que o
eu poético pode se deslocar no tempo e viajar indefinida-
mente.
Além da voz do eu lírico, a poesia também se singu-
lariza por intermédio de muitos outros recursos expressi-
vos: figuras de linguagem, imagens, musicalidade e ritmo,
para citar alguns recursos recorrentes. Em uma palavra,
sugere-se que seu veículo consiste na ambiguidade das
palavras, na linguagem conotativa e no que se convencio-
nou denominar função poética (Aguiar e Silva 1984). Há,
segundo tal perspectiva, um trabalho criativo e intencio-
nal com os signos linguísticos.
Em vistas dos elementos mencionados, pode-se
definir poesia, também, como gênero literário que, em
geral, exprime estados e, apenas de modo secundário, aconte-
cimentos, conforme se assinalou na caracterização da nar-
rativa. Os trechos extraídos de Vidas Secas e Caboclo Ro-
ceiro, examinados na primeira parte deste estudo, ajudam
a entender possíveis distinções entre narrativa e poesia.
Não obstante a distinção, um conjunto mais amplo de
autores e textos que conforma a historiografia literária
merece ser examinado. Rupturas e continuidades podem
gerar inflexões relevantes para o ensino do gênero poéti-
co. Não se pode esquecer que os conceitos aqui tratados
visam muito mais a fornecer subsídios para uma proposta
didática em relação ao texto literário do que à crítica lite-
rária propriamente.
139
Figuras de linguagem e ritmo da poesia
O apito da locomotiva
E o trem se afastando
E o trem arquejando
É preciso partir
É preciso chegar
É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é
urgente! (idem, p.78)
Considerações finais
141
Referências
sites
http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/poe-
mas025.htm. Acesso em 22 de julho de 2010
http://www.secrel.com.br/jpoesia. Acesso em 22de ju-
lho de 2010.
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Atividades propostas
Enchente
Chama o Alexandre!
Chama!
143
SOBRE OS AUTORES
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deral do Ceará – UFC, onde desenvolve, entre outras, atividades
no setor de estágio em ensino de literaturas de língua portuguesa.
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Esta obra foi impressa em papel polen 75
gs. Instrução Normativa SRF nº 71 de 24
Agosto de 2001. Na capa foi utilizado Pa-
pel Supremo, 250 gs., laminação fosca.
Impressão e acabamento por processo digital
book on demand da METABRASIL GRÁFICA
a partir de arquivos do editor.