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O clássico cortante: Além do materialismo espiritual

Padma Dorje
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Aug 22, 2016 · 16 min read

O problema é que o ego pode converter qualquer coisa para seu próprio uso,
até mesmo a espiritualidade. — Chögyam Trungpa

Que tipo de livro budista você encontrava em livrarias no Brasil em 1987?


Algumas traduções de traduções inglesas e alemãs da década de 1930, cheias
de mistificação e equívocos, e talvez uns poucos textos leves de budismo de
“autoajuda”, para gente atribulada, em busca de uma nova terapia. E então,
inesperadamente, eis que surge essa arma dármica de puro ferro meteórico: a
sabedoria cortante de um professor autêntico e bem-educado (em Oxford!) na
neurose peculiar da modernidade.

Edição dos anos 1980, que chega a ser vendida por R$150 em sebos

Além do materialismo espiritual não é feito pequeno. Temos aqui um dos


poucos textos budistas que foi traduzido do original em inglês e
disponibilizado em tibetano. Foi possivelmente o primeiro texto budista escrito
em língua ocidental que fez o caminho oposto, e foi ensinar também os
asiáticos a como lidar com os “lalos do materialismo”, cada vez mais
globalizados.
Lalo, é um termo tibetano para não civilizado, bárbaro — Trungpa escolheu
traduzir como “senhores”, possivelmente porque eles são vistos com respeito
em nossa sociedade. Os três lalos, para Trungpa, são o materialismo em suas
facetas externa, interna e sutil, isto é, materialismo ordinário, materialismo
psicológico e materialismo espiritual.

Chögyam Trungpa Rinpoche é um grande professor do budismo tibetano que,


após ter recebido educação tradicional tibetana, veio estudar no ocidente,
enfim se estabelecendo num centro de darma na Escócia. Nesse centro ele
vivia num ambiente controlado e protegido, mas aos poucos começou a sentir
desconforto por ser, em certo sentido, tratado como peça de museu. Ele sentia
uma verdadeira barreira entre os ocidentais que vinham para os ensinamentos e
as armadilhas culturais, até mesmo sua roupa monástica.

Após um acidente de automóvel que o deixou paralisado de um lado, ele


largou as vestes monásticas, casou com uma moça ocidental e literalmente
fugiu do centro de darma escocês para a América. Ali, no início dos anos 70
ele encontrou o cenário do fim da era hippie, o que ele veio a chamar de
“supermercado espiritual”.

Embora aquela época tivesse suas peculiaridades, o fenômeno segue forte até
hoje. Trata-se da espiritualidade vista como um produto, não tanto porque
custa dinheiro, mas porque é tratada como uma conveniência. Seria algo que
você escolhe numa prateleira, usa, e então descarta em busca de uma nova
aventura de auto justificação — e não algo que você integra como uma
prioridade, ou algo com que você se compromete independentemente se seus
“gostos” e “não gostos” e dos inevitáveis altos e baixos, como deveria ser. A
espiritualidade, nessa perspectiva materialista, se torna apenas algo que lhe dá
certo conforto psicológico — e em alguns casos, reforça sua identidade como
alguém supostamente espiritualizado. Nesse sentido, as pessoas estendem o
materialismo usual para as outras esferas, cooptando tudo para um aspecto
degradado — imediatista e autocentrado — da perspectiva mundana.

Mas o que é materialismo?


Existem vários tipos de perspectiva mundana, ou convencional.
Tradicionalmente, essas perspectivas estavam ligadas a um sentido de viver da
terra, fazer seu trabalho, formar uma família, e enfim ser enterrado e virar
alimento para alguns seres. Nada disso é particularmente materialista — mas é
“material”: é prático, vamos dizer assim. E então a espiritualidade e as visões
sutis tinham um contraponto a isso, e preenchiam, bem ou mal, certos anseios
das pessoas quanto a um sentido mais profundo para a vida.
É claro que o materialismo sempre existiu, ainda que nas suas formas mais
grosseiras, como hedonismo ou simples visão de curto prazo. A pessoa faz o
que faz por resultados num horizonte limitado, sem realmente pensar até o
final ou ignorando a comunidade em geral por motivações autocentradas. O
que acontece na modernidade globalizada é que o materialismo se desenvolve
como ideologia hegemônica. Isso ocorre por vários motivos, entre eles a
corrupção dos valores espirituais no ocidente, bem como as vitórias
incontestáveis da ciência (que historicamente se submete a essa perspectiva,
ainda que isso seja desnecessário).

Não é de surpreender, portanto, que as próprias estruturas da espiritualidade


estejam sujeitas hoje a distorções devidas ao enfoque hegemônico.

Nas palavras de Trungpa Rinpoche:

O eu não existe, mas toma existência aparente na forma de credenciais. A


existência de forma, credenciais, é o que mantém a ilusão do eu. Assim, se
uma pessoa presunçosamente afirma estar praticando o Darma do Buda, se
está usando sua prática como credenciais, então ela está apenas jogando o
jogo do ego. Caso algumas pessoas façam isso em grupo, então apenas
estarão reforçando umas às outras com o mesmo jogo. Inevitavelmente surgirá
um líder. E ele então terá entre suas credenciais e o título de “líder do
rebanho”. Os membros do rebanho terão credenciais de “membros da
organização tal”. E então o líder e seu rebanho reforçarão suas identidades
mutuamente. (…) Inevitavelmente esta organização, esse ego coletivo, buscará
confirmação de sua existência e boa saúde organizacional. Isso pode até
tomar forma como credenciais de transmissão da linhagem, ou de
ensinamentos de grandes mestres, mas em todo caso será uma prostituição
desses ensinamentos. Envolverá um jogo infindável e competitivo para
aumentar a congregação. E essa competição incluirá diplomas e validações,
bem como prática ambiciosa e aparente fidelidade aos ensinamentos. O grupo
também verá o sucesso dos rivais como uma ameaça. O Buda disse que seus
ensinamentos, como um leão, jamais seriam destruídos por forças externas;
eles só podem ser destruídos por dentro, da mesma forma que o cadáver de um
leão é consumido por vermes. Essa é a perversão da sanga. É o estilo da
espiritualidade na era de degenerescência, a operação do materialismo
espiritual. — Chögyam Trungpa, Darma de Buda Sem Credenciais

Algumas pessoas podem ler isto como uma condenação geral e direta de
instituições budistas. Mas não se trata disso. Trungpa reconhece que todas as
estruturas podem ser corrompidas, mas esse não é o motivo para evitar as
estruturas, e sim, para permanecer vigilante quanto as possibilidades de
corrupção. O próprio Trungpa estabeleceu várias organizações, centros de
darma e inclusive uma universidade.

O materialismo espiritual é mesmo um tanto mais comum do que aquele


presente apenas nas estruturas religiosas. De fato, o próprio individualismo e a
visão niilista quanto a estruturas facilmente se tornam reforços do
autocentramento, uma vez que as comunidades são ferramentas muito boas de
“controle de qualidade” da prática. Mais do que na era de Trungpa, as pessoas
hoje gostam de se orgulhar do quanto, supostamente, não possuem credenciais.
Tudo que se ostenta de uma forma presunçosa pode se tornar uma credencial,
até mesmo a ausência de credenciais.

Materialismo convencional
As três formas de materialismo não são diferentes. O materialismo
convencional reforça nosso senso de identidade com mimos e conforto.
Merecemos coisas boas, e usamos o conforto e os símbolos de status para nos
garantirmos perante os outros e nós mesmos como alguém digno. Mas essa
busca de felicidade nas coisas externas vem de uma pobreza interna que não
reconhece uma dignidade inerente. E ela inevitavelmente se mostra
insuficiente.

Podemos seguir nos autoenganando ao tentar obter o próximo posto ou


comprando mais algumas coisas, mas se temos um mínimo de honestidade,
reparamos que temos feito isso centenas de vezes, e quando obtemos o que
queríamos, começa tudo de novo com alguma outra coisa. Não deu certo até
agora e não vai ser aquele cargo ou mais um balde de pipoca ou aquela BMW
prateada que farão a diferença.

Uma pessoa infantil pode se irritar com ou ter inveja de alguém que ostenta
objetos e conquistas pessoais, porém alguém mais maduro sente pena ou
compaixão. A pessoa é tão insegura e pobre interiormente que precisa atestar
seu valor próprio com as vitórias mais mundanas.

Ademais, ainda que uma “mulher troféu” e esbanjamento na noite, para a


maioria de nós, sejam tão evidentemente um comportamento “novo rico”,
desagradável ao extremo, ao mesmo tempo não ligamos muito quando alguém
tem sucesso merecido na carreira, ou vive bem. Porém, embora essas coisas
sejam boas, na medida em que elas constituirem qualquer forma de valoração
pessoal — de sentido de identidade e autoafirmação — elas serão fonte de
sofrimento futuro. Portanto, seja uma coleção de figurinhas completa ou a
Trump Tower, seja torcer para o time vitorioso ou ganhar um prêmio Nobel,
caso acreditemos que nosso valor pessoal advém de objetos e conquistas, isso
constituirá materialismo convencional. E nós seremos objeto de compaixão
daqueles que encontraram um valor intrínseco e inalienável.

Materialismo psicológico
Então, alguma inteligência brilhante dentro de nós reconhece que objetos e
posições no mundo não garantem nossos estados mentais. A partir disso
compramos vários livros, contratamos os melhores terapeutas e fazemos os
mais aprofundados seminários sobre nossa situação. Talvez, depois de muita
oscilação entre vários métodos, descobrimos que nossa felicidade vem de
sermos pessoas boas e abertas. Então criamos uma identidade boazinha, ou ao
menos esclarecida, e isso funciona por um tempo.

No entanto, essas garantias conceituais e sistemas de antídotos emocionais,


como drogas, têm problemas de tolerância e dependência. Acabamos numa
corrida armamentista emocional e intelectual com as vicissitudes comuns da
vida e nossos próprios padrões arraigados. Qualquer tentativa de erigir
proteções psicológicas e estabelecer defesas e sistemas inteiros de “viver
melhor” necessariamente tombarão perante a realidade natural da
impermanência.

Novamente, o problema não são esses meios hábeis temporários, que até
podem ser úteis, mas a confiança excessiva neles, e a conexão deles com um
senso de identidade autocentrada — algumas vezes ligado a vender esses
sistemas para os outros.

Outra manifestação do materialismo psicológico é a crença arraigada, comum


em nossa sociedade, de que somos nada mais do que sacos determinísticos de
carne. Nesse caso, o jeito de ser uma pessoa melhor se torna receber o melhor
tratamento de saúde e usar as melhores drogas. A experiência e a própria vida
pouco importam, desde que uma sensação de estabilidade seja artificialmente
mantida de algum modo. Isso não quer dizer que não existam sofrimentos que
sejam efetivamente aplacados com um tratamento — existem muitos
sofrimentos desse tipo. No entanto, a perspectiva materialista e niilista leva
muitas pessoas a sofrimentos artificiais que elas efetivamente buscam tratar
com a mesma perspectiva que causou o problema, e isso é ainda por cima
fomentado por uma indústria e pela publicidade, de forma que se estabelece
um problema sistêmico. Falta de sentido na vida vende de tudo: carros, pipoca
e drogas. Criar um mundo infeliz ajuda a vender remédio, há um incentivo de
materialismo convencional manter as pessoas em dependência crônica, e
proliferando ideais materialistas psicológicos ou psiquiátricos.
Quando reconhecemos que os resultados de nossas tentativas de maquiar o ego
com estratégias psicológicas positivas ou negativas também falham —quando
o materialismo psicológico mostra suas limitações — , enfim buscamos algo
mais profundo: algo talvez ligado ao cerne do problema da existência e
sentido. A própria espiritualidade.

Materialismo espiritual
Porém, da mesma forma que o sucesso material ou psicológico (não sendo
realmente ruim por si só) não garante coisa alguma, apenas relacionar-se com
valores espirituais também não é suficiente. O problema é que em todos os
casos estamos carregando um macaco nas costas: nosso viés autocentrado.
Com essa perspectiva permeando nossas tentativas, nada nunca realmente será
o bastante.

Mesmo quando falamos em compaixão e em olhar pelos outros, gostamos de


transformar isso numa exibição grandiosa. Talvez não sejamos tão estúpidos
ao ponto de nos vangloriar publicamente de quão bons supostamente somos,
mas implicitamente até mesmo nossa aparente humildade ou senso de ridículo
(por sabermos que no fundo estamos posando de Madre Teresa) cheiram mal.

Encontraremos algumas poucas pessoas que agem de forma ruim mesmo, e


sabem disso. Também encontraremos uma vasta quantidade de pessoas que
opera basicamente de forma aleatória — isto é, não tem critério nenhum para
fazer o que faz ou viver do modo que vive. Mas normalmente nos
aproximamos de pessoas que geraram critérios — e é nessas pessoas que
vamos encontrar mais claramente os obstáculos mais sutis do materialismo.
Não é um problema de quem é imoral ou amoral, é um problema ligado ao
sucesso material, psicológico e espiritual. É um problema a que todos estamos
sujeitos, e com que inevitavelmente vamos ter que lidar.

Por exemplo, em nosso trabalho podemos ter tido alguns chefes ruins ou
ignorantes, mas de forma geral ficamos mais tempo vinculados a chefes que
são razoavelmente bons. Caso tenhamos a oportunidade, buscamos chefes
desse tipo. Agora, se temos qualquer experiência com isso, sabemos que o
chefe “iluminado” apresenta muitas vezes problemas um tanto peculiares. Pelo
menos o chefe perdidaço vai nos ouvir: o chefe “iluminado” vai pregar até o
fim a sua litania benévola, e estar de desacordo com ele não significa apenas
abaixar a cabeça e fazer o trabalho, e sim coadunar-se explicitamente com os
valores da tal “empresa iluminada”. E isso, de modo geral, é apenas um modo
de ele sustentar sua liderança e se autojustificar como pessoa — um modo por
vezes extremamente bem sucedido e que às vezes até mesmo nos coopta para
projetos igualmente bem sucedidos mas que, no fundo, têm um vasto potencial
para corrupção e abuso. E que a longo prazo não tem como se sustentar.

A mera aparência ou discurso de espiritualidade é um perigo verdadeiro. É


muito mais fácil trabalhar com alguém que também está apenas fazendo seu
trabalho do que com alguém em algum tipo de cruzada pessoal ou coletiva, por
mais positivos que soem superficialmente os valores.

A área empresarial de fato, hoje em dia, é um ponto de confluência dos três


senhores do materialismo. Dificilmente encontraremos algo realmente
diferente disso em meio a esse âmbito.

E o âmbito espiritual sofre da mesma coisa, já que os centros espirituais cada


vez mais são como empresas. Não porque necessariamente visem o lucro ou o
sucesso material de seus participantes, embora algumas vezes isso ocorra, mas
porque se organizam da mesma forma e toda sua inteligência por vezes opera
no modo autocentrado (e evidentemente que ninguém coloca isso em sua
missão: o materialismo é geralmente um defeito oculto).

Dou um exemplo prosaico:

Por algum tempo eu costumava receber os turistas que visitavam o centro


budista, e essas pessoas tinham todo tipo de motivação para estar ali. Não é
como alguém que vai ao centro porque está curioso num sentido mais profundo
ou está interessado em praticar. Trata-se de pessoas que estão passando pela
região e querem ver novidades ou coisas bonitas, nada nem mesmo por vezes
especificamente budista. A pessoa está passando seu tempo no que, aos olhos
dela é apenas um parque ou museu (e ela lhe diz isso).

Nessa situação, muitas vezes as perguntas se voltavam para o fato de se elas


estariam talvez falando com alguma pessoa importante (isto é, eu mesmo).
Quem sabe para poderem contar para os amigos que encontraram um grande
“monge” ou algo assim. Quando eu dizia que não, eles muitas vezes me
perguntavam como se fazia para subir dentro da organização. Ganhar uma
faixa-preta, ou algo assim. Será que eu estava pelo menos no caminho do
sucesso e daqui a uns anos me veriam na televisão?

Então, eu dizia que no budismo todo mundo busca se iluminar para ajudar os
outros a obter o mesmo resultado, e que transformar a espiritualidade numa
carreira seria uma forma de materialismo. Iluminar-se não implica
necessariamente ser reconhecido como alguém importante. A maioria das
pessoas imaginam a renúncia budista como não tomar cerveja, não dançar
forró e raspar o cabelo — ou algo parecido — mas o ponto central da renúncia
é o autocentramento e, em particular, a ideia de buscar parecer ser alguém
melhor perante os outros. Ou até perante si mesmo.

No budismo tibetano há uma expressão “zhigpo”, que implica algo parecido


com um praticante de louca sabedoria, ou talvez um certo tipo de louca
sabedoria. Mais especificamente, é alguém engajado em cortar completamente
o senso de auto-importância, e que para isso age como uma pessoa
completamente comum — talvez até um pouco pior. Então é o caso de um
grande mestre espiritual, uma pessoa extremamente reconhecida por outros
mestres espirituais, mas que larga os robes monásticos, casa, abre um negócio,
é visto bebendo com os amigos e discutindo a conta — e talvez ande por aí
com um papel higiênico preso no sapato. “Zhigpo” também quer dizer
“quebrado, bagunçado”. Como a gente sabe que essa pessoa é um grande
praticante? A gente não sabe. Melhor ficar na dúvida e seguir alguém parecido
com o Dalai Lama! Essa ideia só é importante porque a gente sabe que
aparências são enganosas.

Nossa cultura bárbara inventou coisas como satélites, antibióticos ou a bomba


atômica, mas civilidade e ápice da sofisticação é algo mais próximo do
conceito de zhigpo: alguém que se esforça para não parecer importante. Uma
cultura que valoriza essa ideia é uma cultura civilizada. Nossas grandes
conquistas tecnológicas parecem fantásticas, e num sentido limitado, realmente
são. Porém, o fato de não reconhecermos os valores que transcendem o
materialismo como igualmente fantásticos, ou ainda mais que isto, vem apenas
de nossa pobreza intelectual e de espírito. É por isso que louvamos — ou
ocupamos tanto tempo mental — com gente como a Kim Kardashian e o
Donald Trump.

E nisso pode surgir certa confusão. Ser uma pessoa melhor, ter coisas boas ou
vivenciar felicidade, são sem dúvida valores positivos. As coisas a que o
materialismo se fixa, geralmente são pelo menos neutras e muitas vezes até
positivas. Uma pessoa ser reconhecida pelas outras e receber um título, por si
só, não é materialismo espiritual. O materialismo espiritual ocorre quando isso
se torna uma validação autocentrada, seja para quem tem o título, seja para
quem se relaciona com quem tem o título. Sim, porque não só quem sustenta a
credencial pode ter materialismo espiritual: as pessoas que se validam por estar
perto de alguém que tem aquela credencial têm o mesmo defeito.

Pode parecer uma diferença sutil, mas todo mundo entende o conceito de falsa
humildade. E muitas vezes a falsa humildade é extremamente evidente,
enquanto que outras vezes nem mesmo o falso humilde tem muita clareza
sobre o que está projetando e de onde vem a motivação para agir daquela
forma.

Na cultura tibetana a humildade extrema chega a ser um jogo divertido entre


lamas elevados. Ao ponto de que, se uma pessoa comum fala certas coisas
humildes, isso soa extremamente afetado. É claro, um tibetano nunca fala bem
da comida que ele mesmo cozinhou — ele sempre se desculpa. Mas se ele
disser “ah, não sou ninguém, sou apenas um praticante”, todo mundo sabe que
esse tipo de afirmação é algo que o Dalai Lama fala. Você tem que ser
realmente importante para se dizer tão pouco, particularmente para alguém que
ele próprio é importante, senão é altamente presunçoso. Você está pensando
que é o Dalai Lama para dizer que é “um mero monge”?

E então existe na cultura tibetana certa liberação quando alguém se gaba de


uma forma adorável. Se você diz que seus momos (uma comida típica) estavam
realmente bons, todo mundo ri junto com você — ninguém elogia a própria
comida, como algumas vezes brasileiros fazem, por exemplo. E então se você
mostra alguma liberdade perante o tabu cultural, isso pode se mostrar adorável.
Algumas vezes, no entanto, vi tibetanos chocados com algum ocidental
escancarando o quanto era próximo de certo lama — o que é quase uma atitude
de Donald Trump. Particularmente, não se gaba do darma, de que prática
supostamente se faz, e de suas conexões com o darma. É muito feio. É errado,
mas mais que errado, é de extremo mau gosto.

E com isso não estou implicando que a cultura tibetana seja mais iluminada.
De fato, esse próprio jogo de humildade é criticado por alguns lamas. Existe
muita falsa humildade entre os tibetanos, mas é uma falsa humildade
extremamente inteligente e disfarçada por séculos de treinamento.
Definitivamente não é o caso que não exista por lá, muito pelo contrário. A
diferença é que nós, aqui no ocidente, somos tão enferrujados com a humildade
(já que ela não é um valor do materialismo convencional e psicológico) que
não temos a mínima sofisticação sequer ao ostentar falsa humildade: ela se
mostra evidente e grosseira. E, mais do que isso, aqui a arrogância é quase
regra: existe até gente que exige ser chamada de “doutor”.

Esses jogos de aparência são o tal materialismo espiritual. Não é


necessariamente ostentar um mala de coral de três mil dólares, roupas tibetanas
chiques ou a melhor almofada de meditação que existe. Isso é materialismo
externo dentro do centro de darma e só uma pessoa muito iniciante confundirá
você com um praticante por causa disso (e só um simplório o confundirá com
um grande praticante!). Com o tempo, você reconhece aquela pessoa que usa
um mala discreto e que tem um material de prática surrado como a que tem
mais chance de ser praticante há mais tempo, o que as vezes quer dizer que ela
talvez seja um bom exemplo — ou não. Existem materialismos espirituais mais
sutis mesmo nesse aspecto grosseiro da forma e no valor intrínseco de “tempo
de prática”.

Alguns praticantes hoje em dia também gostam de ostentar conexão com


grandes professores ou ensinamentos elevados. Como se o fato da pessoa
conhecer as palavras mahamudra ou dzogchen, ou receber alguns
ensinamentos de fim de semana a respeito, a transformasse num praticante das
mais sutis formas de meditação. De modo geral, verdadeiros praticantes de
meditação não ostentam suas realizações meditativas, e não usam o nome de
suas práticas como algum tipo de distintivo de honra. Por outro lado, está cheio
de poseurs por aí que mal sabem amarrar o sapato, mas usam expressões como
“natureza da mente” e “vacuidade” o tempo todo, até para pedir pizza tele-
entrega.

Porém, o materialismo espiritual também não é, como algumas pessoas


confundem, o fato das pessoas fazerem muita prática formal, muitos e longos
retiros, e particularmente acumulações. Absolutamente qualquer coisa pode
servir de apoio para o autocentramento, e portanto, até mesmo coisas que são
verdadeiramente maravilhosas podem ser distorcidas pelo apego ao eu. Mas é
importante ver que elas não implicam materialismo espiritual por si só. Nossa
tarefa é entender o perigo dessa atitude e a evitar. Seria uma tragédia usar a
ideia de materialismo espiritual como uma desculpa para não estudar e não
praticar formalmente o darma ou para não nos envolvermos com organizações
budistas. O melhor é se engajar em tudo o que é virtuoso, mas evitando a
perspectiva materialista ou autocentrada. Mais que isso, reconhecendo que
sempre podemos nos aprisionar nela, então desenvolvemos vigilância.

O livro “Além do materialismo espiritual”


Além do materialismo espiritual detalha em muita precisão os labirintos
psicológicos de nossas tentativas de usar a espiritualidade para nos validarmos.
Esse livro é obrigatório para quem pratica o budismo tibetano — contém um
comentário do Sutra do Coração por Trungpa Rinpoche, e é um clássico
absoluto. Todo mundo precisa ler, várias vezes. Ao longo dos anos eu mesmo
comprei esse livro mais de dez vezes e o presenteei para várias pessoas.
Apenas tome cuidado, já que esse presente algumas vezes pode ser uma
indireta muito direta: tente não ofender o recipiente de sua generosidade!
“Cara, como você é autocentrado em sua espiritualidade, leia isso!” Diga que o
livro ajudou você mesmo a encontrar obstáculos secretos que todo mundo tem.
O que se já não é verdade, será quando você mesmo ler.
Na verdade não conheço nenhum praticante espiritual em qualquer nível que
não se beneficiou ou não se beneficiaria dessa leitura.

Embora talvez não seja o melhor livro introdutório ao budismo — por ser
cortante demais, e um tanto sofisticado — ele tranquilamente pode ser um
ótimo segundo ou terceiro livro.

Ele é também essencial para todo interessado em budismo de forma geral, e


pode ser muito relevante para aquelas pessoas que participam de outras
comunidades e outros treinamentos espirituais, tradicionais ou não. Nesse caso,
se a pessoa conseguir gerar afinidade com o livro, isso será extremamente
benéfico.

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