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Padma Dorje
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Aug 22, 2016 · 16 min read
O problema é que o ego pode converter qualquer coisa para seu próprio uso,
até mesmo a espiritualidade. — Chögyam Trungpa
Edição dos anos 1980, que chega a ser vendida por R$150 em sebos
Embora aquela época tivesse suas peculiaridades, o fenômeno segue forte até
hoje. Trata-se da espiritualidade vista como um produto, não tanto porque
custa dinheiro, mas porque é tratada como uma conveniência. Seria algo que
você escolhe numa prateleira, usa, e então descarta em busca de uma nova
aventura de auto justificação — e não algo que você integra como uma
prioridade, ou algo com que você se compromete independentemente se seus
“gostos” e “não gostos” e dos inevitáveis altos e baixos, como deveria ser. A
espiritualidade, nessa perspectiva materialista, se torna apenas algo que lhe dá
certo conforto psicológico — e em alguns casos, reforça sua identidade como
alguém supostamente espiritualizado. Nesse sentido, as pessoas estendem o
materialismo usual para as outras esferas, cooptando tudo para um aspecto
degradado — imediatista e autocentrado — da perspectiva mundana.
Algumas pessoas podem ler isto como uma condenação geral e direta de
instituições budistas. Mas não se trata disso. Trungpa reconhece que todas as
estruturas podem ser corrompidas, mas esse não é o motivo para evitar as
estruturas, e sim, para permanecer vigilante quanto as possibilidades de
corrupção. O próprio Trungpa estabeleceu várias organizações, centros de
darma e inclusive uma universidade.
Materialismo convencional
As três formas de materialismo não são diferentes. O materialismo
convencional reforça nosso senso de identidade com mimos e conforto.
Merecemos coisas boas, e usamos o conforto e os símbolos de status para nos
garantirmos perante os outros e nós mesmos como alguém digno. Mas essa
busca de felicidade nas coisas externas vem de uma pobreza interna que não
reconhece uma dignidade inerente. E ela inevitavelmente se mostra
insuficiente.
Uma pessoa infantil pode se irritar com ou ter inveja de alguém que ostenta
objetos e conquistas pessoais, porém alguém mais maduro sente pena ou
compaixão. A pessoa é tão insegura e pobre interiormente que precisa atestar
seu valor próprio com as vitórias mais mundanas.
Materialismo psicológico
Então, alguma inteligência brilhante dentro de nós reconhece que objetos e
posições no mundo não garantem nossos estados mentais. A partir disso
compramos vários livros, contratamos os melhores terapeutas e fazemos os
mais aprofundados seminários sobre nossa situação. Talvez, depois de muita
oscilação entre vários métodos, descobrimos que nossa felicidade vem de
sermos pessoas boas e abertas. Então criamos uma identidade boazinha, ou ao
menos esclarecida, e isso funciona por um tempo.
Novamente, o problema não são esses meios hábeis temporários, que até
podem ser úteis, mas a confiança excessiva neles, e a conexão deles com um
senso de identidade autocentrada — algumas vezes ligado a vender esses
sistemas para os outros.
Materialismo espiritual
Porém, da mesma forma que o sucesso material ou psicológico (não sendo
realmente ruim por si só) não garante coisa alguma, apenas relacionar-se com
valores espirituais também não é suficiente. O problema é que em todos os
casos estamos carregando um macaco nas costas: nosso viés autocentrado.
Com essa perspectiva permeando nossas tentativas, nada nunca realmente será
o bastante.
Por exemplo, em nosso trabalho podemos ter tido alguns chefes ruins ou
ignorantes, mas de forma geral ficamos mais tempo vinculados a chefes que
são razoavelmente bons. Caso tenhamos a oportunidade, buscamos chefes
desse tipo. Agora, se temos qualquer experiência com isso, sabemos que o
chefe “iluminado” apresenta muitas vezes problemas um tanto peculiares. Pelo
menos o chefe perdidaço vai nos ouvir: o chefe “iluminado” vai pregar até o
fim a sua litania benévola, e estar de desacordo com ele não significa apenas
abaixar a cabeça e fazer o trabalho, e sim coadunar-se explicitamente com os
valores da tal “empresa iluminada”. E isso, de modo geral, é apenas um modo
de ele sustentar sua liderança e se autojustificar como pessoa — um modo por
vezes extremamente bem sucedido e que às vezes até mesmo nos coopta para
projetos igualmente bem sucedidos mas que, no fundo, têm um vasto potencial
para corrupção e abuso. E que a longo prazo não tem como se sustentar.
Então, eu dizia que no budismo todo mundo busca se iluminar para ajudar os
outros a obter o mesmo resultado, e que transformar a espiritualidade numa
carreira seria uma forma de materialismo. Iluminar-se não implica
necessariamente ser reconhecido como alguém importante. A maioria das
pessoas imaginam a renúncia budista como não tomar cerveja, não dançar
forró e raspar o cabelo — ou algo parecido — mas o ponto central da renúncia
é o autocentramento e, em particular, a ideia de buscar parecer ser alguém
melhor perante os outros. Ou até perante si mesmo.
E nisso pode surgir certa confusão. Ser uma pessoa melhor, ter coisas boas ou
vivenciar felicidade, são sem dúvida valores positivos. As coisas a que o
materialismo se fixa, geralmente são pelo menos neutras e muitas vezes até
positivas. Uma pessoa ser reconhecida pelas outras e receber um título, por si
só, não é materialismo espiritual. O materialismo espiritual ocorre quando isso
se torna uma validação autocentrada, seja para quem tem o título, seja para
quem se relaciona com quem tem o título. Sim, porque não só quem sustenta a
credencial pode ter materialismo espiritual: as pessoas que se validam por estar
perto de alguém que tem aquela credencial têm o mesmo defeito.
Pode parecer uma diferença sutil, mas todo mundo entende o conceito de falsa
humildade. E muitas vezes a falsa humildade é extremamente evidente,
enquanto que outras vezes nem mesmo o falso humilde tem muita clareza
sobre o que está projetando e de onde vem a motivação para agir daquela
forma.
E com isso não estou implicando que a cultura tibetana seja mais iluminada.
De fato, esse próprio jogo de humildade é criticado por alguns lamas. Existe
muita falsa humildade entre os tibetanos, mas é uma falsa humildade
extremamente inteligente e disfarçada por séculos de treinamento.
Definitivamente não é o caso que não exista por lá, muito pelo contrário. A
diferença é que nós, aqui no ocidente, somos tão enferrujados com a humildade
(já que ela não é um valor do materialismo convencional e psicológico) que
não temos a mínima sofisticação sequer ao ostentar falsa humildade: ela se
mostra evidente e grosseira. E, mais do que isso, aqui a arrogância é quase
regra: existe até gente que exige ser chamada de “doutor”.
Embora talvez não seja o melhor livro introdutório ao budismo — por ser
cortante demais, e um tanto sofisticado — ele tranquilamente pode ser um
ótimo segundo ou terceiro livro.