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Débora DainezII
Ana Luiza Bustamante SmolkaII
Resumo
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 4, p. 1093-1108, out./dez. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014071545 1093
The concept of compensation in the dialogue of Vygotsky
with Adler: human development, education and disability I
Débora DainezII
Ana Luiza Bustamante SmolkaII
Abstract
Keywords
I- Esta produção refere-se a uma
parte dos resultados do projeto
- Processo no. 2010/08782-0, Human Development — Education — Disability — Compensation —
Fundação de Amparo à Pesquisa do Lev S. Vygotsky.
Estado de São Paulo (FAPESP).
II- Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, Brasil.
Contacts: ddainez@yahoo.com.br;
asmolka@unicamp.br
1094 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014071545 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 4, p. 1093-1108, out./dez. 2014.
Introdução mencionam o principal conceito trabalhado
por Vigotski quando aborda o desenvolvimento
As ideias do russo Lev S. Vigotski1 da pessoa com deficiência: o conceito de
chegaram ao Brasil na década de 1980. A sua compensação (GÓES, 2002; CARVALHO, 2006;
primeira obra disponível no nosso país foi A GARCÍA; BEATÓN, 2004; KOZULIN; GINDIS,
formação social da mente, em 1984 e, mais 2007; FICHTNER, 2010; AKHUTINA; PYLAEVA,
tarde, em 1988, foi publicada a coletânea 2012; BOTTCHER, 2012, dentre muitos outros).
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem Diferentes são os posicionamentos dos autores
(textos escolhidos de Vigotski, Luria e Leontiev). e múltiplos são os sentidos produzidos. Essa
A divulgação dos estudos desse autor impactou ampla disseminação do conceito nos mostra a
o âmbito da educação e repercutiu como uma pertinência das ideias produzidas por Vigotski.
nova forma de pensar a respeito dos aspectos Contudo, em nossa avaliação, o risco é de que
do ensino e do desenvolvimento de crianças, o conceito de compensação torne-se um lugar
produzindo efeitos nas políticas públicas e nas comum (SMOLKA, 2010), que seja assumido como
práticas educativas. No entanto, os trabalhos já naturalizado – compensação social do defeito
de Vigotski no campo da defectologia, orgânico; a deficiência precisa ser compensada – e,
nomenclatura usada na sua época (final do dessa forma, desloque os princípios explicativos
século XIX e início do século XX) para se e os argumentos, enrijecendo o potencial
referir ao estudo de pessoas com deficiência, analítico desenvolvido por Vigotski no que se
tardou a chegar ao país. Um primeiro texto refere ao desenvolvimento humano (atípico)
veio na década de 1990, na versão inglês The pensado nas condições sociais concretas de
problem of mental retardation (a tentative produção. Isso nos move a indagar a respeito
working hypothesis), pela assinatura da revista das raízes e implicações teórico-conceituais do
Soviet Psychology. A versão completa da obra conceito em questão.
Defectología, em espanhol, tornou-se acessível Assim sendo, diante das condições
ao público brasileiro somente no final dos que possibilitam a divulgação das ideias do
anos 1990, mas é de difícil disponibilidade no autor — as traduções iniciais para o português;
mercado. Esse conjunto de textos permaneceu a consideração da pertinência de seus princípios
sem tradução até 2006, quando apareceu o para o campo da educação e da psicologia do
primeiro texto: “Sobre a questão da dinâmica desenvolvimento humano, ou ainda, para o
do caráter infantil”, traduzido por Zoia Prestes trabalho na interface dessas áreas; o interesse dos
diretamente do russo para o português. No ano autores contemporâneos em disseminar e aderir
de 2011, Martha Kohl de Oliveira, juntamente ao conceito de compensação —, indagamos: Que
com Denise Regina Saler e Priscila Nascimento concepção esse autor traz a respeito da deficiência
Marques, traduziram também diretamente do e do desenvolvimento humano quando elabora
russo o texto: “A defectologia e o estudo do o conceito de compensação? Qual a possível
desenvolvimento e da educação da criança relevância desse conceito na contemporaneidade,
normal”. Contudo, a obra completa permanece quase 100 anos após sua elaboração?
ainda sem tradução, o que inviabiliza, portanto, Nesse sentido, a proposta deste texto
o acesso ao conhecimento das ideias de Vigotski é apresentar um estudo a respeito da história
no que tange ao tema da deficiência. de elaboração conceitual de compensação na
Por outro lado, na produção acadêmica perspectiva histórico-cultural, compreendendo
contemporânea, muitos são os estudos que a emergência e o movimento das ideias e
dos argumentos produzidos por Vigotski na
1- Tendo em vista que a grafia do nome do autor varia em diferentes traduções,
optamos por utilizar preferencialmente Vigotski. Nas referências, estão interlocução com os seus contemporâneos
preservadas as grafias diferenciadas conforme constam nas obras publicadas. a respeito das condições orgânicas e sociais
1096 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
baseada na teoria do dom, atribuía ao deficiente As críticas realizadas por Vigotski (1997) se
uma espécie de forças, de origem divina, em que intensificaram ainda mais quando analisou como
um conhecimento, uma sensibilidade especial as concepções acerca da compensação (mística,
compensaria determinada ausência (visão, sensorial, suprimento social) compunham o
audição, inteligência...). A outra vertente era cenário de uma educação filantrópica, insípida,
biológica, que considerava que a perda de uma assistencialista e piedosa das pessoas com
função perceptiva seria compensada naturalmente deficiência, que fragmentava o conhecimento e
com o funcionamento de outros órgãos. Fundada não ampliava a visão de mundo. É nesse sentido
na ideia de uma pré-disposição orgânica contida que o autor defendeu que “o ensino especial deve
no organismo, essa concepção se concentrava perder o seu caráter especial e então passará
no plano sensorial, identificando os limites e a fazer parte do trabalho educativo comum”
impedimentos que a deficiência impunha, na (VIGOTSKI, 1997, p. 93, tradução nossa). Em
busca pela causa que caracterizava o defeito. A outro momento, Vigotski (1997) novamente
análise do desenvolvimento humano era reduzida apontou que “em essência, não existe diferença
àquilo que era mensurável, o que conduzia a no enfoque educativo de uma criança deficiente
uma ideia de insuficiência das capacidades desses e de uma criança normal, nem na organização
indivíduos frente ao déficit orgânico. psicológica de sua personalidade” (VIGOTSKI,
Ao entrar em contato com essas 1997, p. 62, tradução nossa).
tendências, Vigotski (1997), nos dois textos É interessante notar que ele trouxe como
supracitados, marcou o seu desacordo por essas metodologia da educação social a compensação
abordagens privilegiarem um viés naturalista social, cujo princípio é a inserção da pessoa
do desenvolvimento humano e por conceberem com deficiência na vida laboral, nos diferen-
a compensação como uma correção biológica tes espaços de atividade do cotidiano. É esse o
automática do defeito, o que prescreve um caráter pressuposto que ancora a sua contraposição a
médico e terapêutico à pedagogia, reduzindo um ensino embasado no defeito orgânico, em
as ações educativas ao desenvolvimento dos defesa de uma instrução orientada para o po-
sentidos imunes ou ao reestabelecimento de tencial de desenvolvimento das funções huma-
determinadas formas de conduta. Ao contrário nas complexas (atenção voluntária e orientada,
disso, defendeu que a função da educação é a memória mediada, percepção verbalizada, tra-
criação de novas formas de desenvolvimento. balho de imaginação, pensamento generaliza-
É importante notar que Vigotski (1997) do, nomeação e conceptualização do mundo).
também explicitou as suas divergências com as Portanto, nesses primeiros ensaios de
ideias da educação no ocidente/norte-americana, Vigotski (1997) para elaborar conceitualmente
por essa conceber a compensação como suprimento a compensação a partir de uma perspectiva
social: “Ali os problemas são tratados como histórico-cultural, observamos que o termo é
caridade social, em mudança, para nós se trata qualificado com a palavra social e, ainda, que a
de questões de educação social” (VIGOTSKI, 1997, compensação social é trazida como metodologia
p. 71, tradução nossa). Nesse sentido, para ele, a da educação. Por meio disso, é possível analisar
educação não é vista como auxílio, complemento que, nessas primeiras reflexões, a problemática
e/ou suprimento de uma carência (orgânica e/ou da deficiência é deslocada da ordem do orgânico,
cultural), mas é a produção de uma ação que torna do patológico em que se estudava a estrutura
possíveis novas formas de participação da pessoa biológica da personalidade, e é colocada como
na sociedade. Por meio dessa discussão, aborda o problema no campo educacional, com o foco
problema da educação da criança com deficiência nos processos sociais de desenvolvimento e de
e as possibilidades de seu desenvolvimento como formação da personalidade. Nesse sentido, o
responsabilidade do meio social. que ressaltamos é a importância da mudança
1098 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
superioridade e perfeição – compõem o processo que nossa cultura é baseada na saúde e na
em que ocorre a elevação da personalidade. adequação de órgãos plenamente desenvolvidos.
Dito de outro modo, a personalidade reúne, no Sendo assim, uma criança que apresenta
processo de expressão e ascensão, o sentimento de um defeito orgânico acha-se em situação de
inferioridade que se torna consciente na situação desvantagem para resolver seus problemas de
social e o propósito de ser superior que permanece vida, pois não será tratada com ternura por um
não consciente, é impedido de se manifestar, mas mundo que não é feito para ela nem a ela se ajusta.
imposto como necessário na vida social. Segundo o autor, essa criança irá carregar consigo
Notamos o lugar que ocupa a questão do um fardo do sofrimento corpóreo e psíquico
objetivo futuro a ser alcançado pelas forças in- adicional. Mas é possível que esse indivíduo, no
dividuais na teorização de Adler, uma vez que, decurso do tempo, manifeste automaticamente o
na vida psíquica, todos os seus movimentos são desenvolvimento das condutas compensatórias, o
administrados por uma meta criada no indi- que depende do rumo tomado pelo sentimento de
víduo pela necessidade de adaptação ao meio. inferioridade da situação social ocupada.
Todavia, para atingir o objetivo vislumbrado, o Entretanto, o sentimento de inferiorida-
sentimento de inferioridade precisa ser compen- de, quando muito intensificado devido ao exa-
sado. O sentimento social/senso de sociabilidade gero dos obstáculos encontrados na coletivida-
é influenciado juntamente pelo sentimento de de, ao invés de despertar no indivíduo formas
inferioridade e pelo seu contrapeso compensa- de compensação, confirma a sua incapacidade,
dor, que é o esforço pelo predomínio/superio- desenvolvendo assim um complexo de inferio-
ridade. A compensação está relacionada à ideia ridade. Nesse caso, a luta pela compensação já
de equilíbrio/adequação/adaptação/acomodação não satisfaz mais a realização do equilíbrio das
do indivíduo ao meio. O mecanismo pelo qual forças, exigindo uma supercompensação que
o mal-estar individual decresce é nomeado por procura um superequilíbrio.
Adler (1967, 2003) como compensação. Consideramos que, no raciocínio de Adler
Poderíamos inferir que Adler traz uma (1967), não existe órgão, sejam quais forem as
concepção assentada na corrente do evolucionismo, condições orgânicas, que necessariamente obrigue
o que implica considerar a compensação como um o indivíduo a assumir uma atitude tensa em face
mecanismo de adaptação orgânica ao meio; no da vida, não permitindo ocupar uma posição
entanto, o autor adicionou um fator psicológico, igual ao seu semelhante. O fato, diz ele, é que
o sentimento subjetivo que impulsiona o indivíduo ninguém tentou ainda remediar as dificuldades
a atravessar seus limites orgânicos. A tese é: o do desenvolvimento psíquico da criança com
aperfeiçoamento do órgão psíquico permite a deficiências orgânicas. E é, necessariamente,
compensação do órgão orgânico incapacitado. isso que Adler (1967) aponta com a sua nova
Nesse sentido, Adler (1967, 2003) traz psicologia individual, com orientação para a
a compensação no sentido de luta — luta pela situação social em contraponto de uma psicologia
adaptação ao meio, pela consideração social, que privilegia a disposição orgânica dos órgãos,
pela equilibração da vida psíquica e harmonia da pois somente dada situação vivida determina se
vida social —, como uma tendência que acontece algo é qualidade ou defeito.
em todos os indivíduos, sendo eles deficientes
ou não, crianças ou adultos; um mecanismo O diálogo de Vigotski com Adler:
que é mobilizado diante de uma dificuldade, um primeiras aproximações (1927)
obstáculo, que resulta na atrofia ou no desvio do
sentimento/senso de sociabilidade. Imerso num contexto de reformulação
Em seu estudo acerca da criança na área da defectologia, Vigotski (1997)
organicamente debilitada, Adler (1967) pondera encontrou em Adler elementos que afetaram
1100 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
fundamental e determinante da/na vida humana; social, do engajamento do meio, do compromisso
necessidade de viver em um meio histórico e social e da responsabilidade da sociedade para com
como ponto de avanço do desenvolvimento da a educação e o desenvolvimento dessa pessoa.
humanidade –, deslocou a formação individual O que se evidencia na discussão do autor em
e não consciente do objetivo para a sua criação relação a esse caso são as condições sociais
coletiva e consciente. Os objetivos são, para ele, particularmente favoráveis que se criaram e
as exigências sociais produzidas no e pelo meio criaram potencialidade em Helen Keller.
social no qual a pessoa está inserida, e afetam Vamos percebendo como Vigotski
o curso de seu desenvolvimento, impactam no (1997) vai incorporando as ideias dialogadas,
funcionamento psicológico, fazem o cérebro redimensionando-as. O argumento a que ele
operar; tornam possível antecipar, programar, continuou dando visibilidade por meio do
planejar uma ação, uma atividade humana. conceito de supercompensação diz respeito ao
A partir desse ponto de vista, produzido adensamento da ideia que inicia nos textos já
acerca do conceito de supercompensação, apresentados quando usa o termo compensação
Vigotski analisou a história do desenvolvimento social, mas com uma maior expansão teórica. O
de Hellen Keller (1880-1943), norte-americana autor situa o lugar do social no desenvolvimento,
que ficou cega e surda em tenra idade devido a bem como a função e a orientação da educação
uma doença diagnosticada na época como febre nessa problematização conceitual. O que
cerebral. Ela tornou-se escritora e doutorou-se em aparece de modo mais intenso com a discussão
filosofia, desenvolvendo importantes trabalhos da questão do objetivo é o desenvolvimento
em favor de pessoas deficientes e escreveu livros prospectivo, em processo e orientado pelas
sobre sua vida. Anne Sullivan foi sua professora, exigências sociais e não como algo determinado
a qual ficou conhecida pelo filme O milagre de organicamente e, portanto, estagnado. Ou seja,
Anne Sullivan. Ao trazer para discussão a história a ideia de projeto do humano se evidencia, o
desse caso, Vigotski criou partituras que refletem, como o grupo social pode vislumbrar e projetar
ressoam seus argumentos em construção. formas outras de vida e condições educacionais
O autor mostrou que as graves deficiências que viabilizem novos modos de participação
de Keller colocaram em jogo enormes forças de social da pessoa com deficiência na cultura.
superação, enfatizando que esse processo só é
possível por meio de condições concretas que Uma mudança de lugar das
possibilitam converter o defeito em vantagens (pro)posições de Adler: a revelação
sociais. No caso analisado, a aprendizagem de da controvérsia no pensamento de
Keller se converteu em causa de todo o país: Vigotski (1928-1929)
1102 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
No texto de 1929, “Tesis fundamentales na elaboração conceitual da compensação. As
del plan para el trabajo paidológico de ideias de Adler continuaram sendo trabalhadas,
investigación en el campo de la infancia difícil”, mas as diferenças se explicitaram e as posições
Vigotski apresentou o problema da plasticidade. teóricas foram enfaticamente marcadas.
Suas considerações apontam para a compreensão Vigotski apresentou a psicologia indivi-
da plasticidade como a capacidade de mudança dual de Adler tecendo contundentes críticas:
do organismo vivo e, mais especificamente, do 1) Apontou o problema da não consciência
condicionamento social do desenvolvimento e da tomada de consciência na perspectiva de
humano, da flexibilidade do funcionamento Adler, questão essa que aparece de um modo
psicológico. Isso quer dizer que a condição implícito no texto de 1924/1927, quando
plástica do cérebro precisa ser pensada na discute a ideia de objetivo futuro. Reiterou:
relação com a ação social e educativa. “os processos de compensação estão ligados
Outra questão que começa a aparecer ao funcionamento da consciência” (VIGOTSKI,
na elaboração do conceito de compensação é 1997, p.136, tradução nossa), e considerou que
a noção de instrumentos psicológicos/signos a teoria de Adler ancorava-se num ponto de
e, juntamente com isso, surge a ideia de vista idealista para propagar uma concepção
desenvolvimento cultural: “O desenvolvimento subjetiva da compensação, fornecendo uma
cultural é a principal esfera em que é possível resposta “com um espírito vitalista” (VIGOTSKI,
compensar a deficiência” (VIGOTSKI, 2011, 1997, p.136, tradução nossa);
p.869, tradução Oliveira; Saler; Marques). 2) Mostrou que o elemento mediador
O que ressaltamos nessas passagens dos do processo de compensação não é criado
escritos de Vigotski (1997) é a complexidade subjetivamente, mas socialmente, na dinâmica
do psiquismo, condição essa que mostra novas da vida, sendo esses os recursos auxiliares/
possibilidades de organização das funções instrumentos técnicos e signos;
psíquicas, abrindo novas perspectivas diante da 3) Reiterou que as oportunidades
educação da criança com deficiência. objetivas produzidas na coletividade é que
merecem destaque na ideia de compensação e
Novas possibilidades de não o sentimento subjetivo de inferioridade.
apropriação e elaboração O empenho de Vigotski (1997) é tratar
conceitual (1930-1935) a compensação sob o ponto de vista de uma
concepção materialista, pontuando que, para
No texto “Acerca de los procesos compreender os processos compensatórios, é
compensatorios en el desarrollo del niño preciso entender a premissa da unidade das
mentalmente retrasado” (1931), Vigotski (1997) leis que regem o desenvolvimento da criança
pondera que ainda resta um extenso e fecundo normal e da criança deficiente, assumindo
caminho a seguir em relação à elaboração teórica como princípio fundamental a correlação
da compensação, sendo que a tarefa consiste em entre as regularidades sociais e biológicas no
levantar questões e estabelecer princípios que desenvolvimento humano.
conduzam à compreensão desse fenômeno. O autor afirma que o plano primário, que
Se, no período de 1928 a 1929, Vigotski diz respeito ao biológico/funções elementares,
(1997) afirmou a tese de que as funções é reiteradamente transformado pelas novas
psicológicas superiores são formadas na relação formações qualitativas que se originam na
social, em 1931, procurou analisar como essas relação da pessoa com o meio social, dando
funções são constituídas socialmente, como o origem a um novo plano – o das funções
social impacta o funcionamento orgânico e, com psicológicas superiores. O que se revigora
isso, vamos notando o impacto desse interesse como argumento é que o orgânico, ao ser
1104 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
nexos entre elas, configurando-se de modo ain- e, depois, os limites de determinada posição
da mais complexo. Ao contrário do que Lewin teórica, pontos de convergência e divergências.
postulava, Vigotski (1997) orientou a análise da Tratou-se, portanto, de um esforço de trabalhar
relação afeto-intelecto num movimento cons- a conceituação a partir dos problemas e das
tante de (trans)formações de novas tendências discussões científicas daquele momento histórico.
psicológicas, novos modos de pensamento e Ressaltamos a importância do diálogo
novas formas de condutas/ações. O argumento que Vigotski (1997) estabeleceu com Adler
construído foi: o afeto é orientado/movido pelo no processo de formulação conceitual da
sentido produzido na relação, gerando possibili- compensação. Um diálogo que foi marcado
dades outras de (inter)ação. pelo entusiasmo, pela adesão, pela suspeita,
Vale notar que nesse texto o autor não por embates e crítica da teoria como um todo e,
enunciou o termo compensação e não fez mais detidamente, no que se refere ao conceito
referência a Adler. Contudo é interessante o fato de compensação. Do nosso ponto de vista, não é
de ele abordar a problemática do retardo mental possível demarcar temporalmente de modo tão
em relação com o afeto, sendo que Adler trazia o preciso o movimento de adesão e rompimento
sentimento, mais especificamente, o sentimento de Vigotski com as ideias de Adler, conforme
de inferioridade e de sociabilidade, como aspecto a análise de Van Der Veer e Valsiner (2009).
central da formação da personalidade humana. Isso porque esses movimentos acontecem já
A hipótese que formulamos, após per- no primeiro contado de Vigotski com Adler
correr esse caminho da elaboração conceitual (texto de 1927) e persistem até os últimos
da compensação é que Vigotski (1997) se voltou ensaios; consistem na dinâmica de construção
a essa questão justamente para redimensionar o das elaborações de Vigotski. A posição de
modo de conceber essa dimensão afetiva, ain- Adler integra esse processo de compreensão,
da não resolvida, e avançar na compreensão teorização e conceptualização, seja pelo
do funcionamento psicológico humano, inves- movimento de adesão seja pelo movimento de
tindo em novas vias possíveis de desenvolvi- rejeição estabelecido a partir do encontro de
mento. Nesse texto, o autor não usou o termo Vigotski (1997) com outros interlocutores e pela
sentimento como Adler, e sim, o termo afeto. incorporação dos princípios do materialismo
O argumento que foi sendo produzido também histórico-dialético.
diferiu. Adler (1967, 2003) situou o sentimento Na análise da interlocução de Vigotski
de inferioridade, de superioridade e de sociabi- com Adler, foi possível notarmos os pontos
lidade na dimensão subjetiva do indivíduo. Já de acordos e a explicitação das diferenças das
Vigotski (1997) localizou o afeto na dimensão perspectivas e, consequentemente, dos modos de
simbólica, nas relações e condições concretas abordar a compensação. Os autores se tangenciam
de produção e uso de signos e sentidos; esfera nos argumentos de que a compensação orienta
em que residem as possibilidades do humano. um modo positivo de se conceber a deficiência
e de que a condição de lesão orgânica pode
Considerações finais ser, justamente, o lugar da produção de novas
possibilidades (a dialética defeito-superação).
Na tentativa de compreender os modos de Contudo, divergem quanto aos modos de teorizar
produção do conceito de compensação na teoria e aos princípios explicativos que assumem.
histórico-cultural, considerada a relevância do Adler (1967, 2003) teorizou a respeito
diálogo na época, fomos notando o poder analítico do humano na busca da harmonia na vida,
do estilo de argumentar de Vigotski, que condiz concebeu a personalidade como um contínuo
com a frequente e explícita interlocução com determinado no período da infância e abordou
seus contemporâneos, marcando a contribuição a esfera social como externa ao indivíduo e à
1106 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...
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Débora Dainez é fonoaudióloga, mestre em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba e doutoranda em educação
na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ana Luiza Bustamante Smolka concluiu a livre docência na FE/Unicamp (2012). É coordenadora do Grupo de Pesquisa
Pensamento e Linguagem na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
1108 Débora DAINEZ; Ana Luiza Bustamante SMOLKA. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler:...