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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione

“Animals as persons”: the Gary Francione’s abolitionist approach

Heloisa Helena Siqueira Correia

Ádna Rosiene de Araújo Parente

Resumo
O presente artigo versa sobre a abordagem abolicionista proposta pelo filósofo norte americano
Gary L. Francione, considerado um dos maiores ativistas da atualidade do direito dos animais. O
artigo discute os principais conceitos de Francione na defesa dos animais não-humanos, por
exemplo, a identificação da esquizofrenia moral na relação dos seres humanos com os animais não-
humanos, tendo como um dos seus principais fatores o status de propriedade estabelecida aos
animais não-humanos. Uma das premissas principais de Francione é a crítica desse estatuto de
propriedade, que acaba implicando nas relações morais entre seres humanos e animais. Para
combater esse estatuto de propriedade, por tanto tempo fixado aos animais, Francione apresenta o
princípio da igual consideração de interesses, que advoga que deve-se tratar semelhantes
semelhantemente. Para ele, o que nos assemelha aos animais é o interesse de não sentir dor
(senciência), logo, os animais não humanos são merecedores da aplicação desse princípio e, ao
mesmo tempo, possuem o direito de que seus interesses sejam considerados e tenham importância
moral. A partir da aplicação desse princípio aos animais não-humanos, seus interesses se tornam
moralmente significativos e, assim, acabam por deixar de serem considerados meras coisas,
tornando-se pessoas, garantindo, com esse novo status, que os seres humanos venham reconhecer a
obrigação moral de não causar sofrimento aos animais. A abordagem abolicionista de Francione
abre a possibilidade de inserção dos animais não-humanos em uma comunidade moral, portanto,
como sujeitos detentores de direitos morais.
Palavras-Chave: Francione; Abolicionismo; Ética e direitos dos animais; Propriedade;
Autoconsciência.

Abstract: This paper thematizes the abolitionist proposal regarding non-human animals of the
north-American philosopher Gary Francione, who is considered one of the biggest nowadays
activist of animals rights. The paper discusses the Francione’s main concepts in terms of defense of
non-human animals, as the identification of the moral schizophrenia in the relation of human beings
with non-human animals, which conducts to the status of property of these non-human animals by
humans. One of the basic Francione’s ideas is the criticism of this status of animal property, which
implicates directly in the type of the relations between human beings and animals. In order to face
this condition of animal property imposed to animals along the human history, Francione presents
the principle of equal consideration of interests that advocates for the similar treatment to similar
beings. According to him, what equalizes humans to animals is the interest of avoiding pain
(sentience), then, non-human animals are entitled of the application of this principle and at the same
time have the right to have their interests considered and assuming moral importance. From the
application of this principle to non-human animals, their interests become significantly in moral
terms and, therefore, they are not anymore merely things, coming to persons, guaranteeing with this
new status that human beings must recognize the moral obligation of not committing suffering to
animals. The Francione’s abolitionist approach allows the possibility of insertion of non-human
animals in a moral community, therefore, as subjects of moral rights.
Key-Words: Francione; Abolitionism; Animal Ethics and Rights; Property Self-Consciousness.

1. Considerações introdutórias

Em suas obras principais – Introdução aos Direitos dos Animais, Rain Without Thunder:
The Ideology of the Animal Rigths Movement, Animal, Properthy and the Law, Animals as
Persons: Essays on the Abolition of Animal Exploitation, dentre outros –, Gary L. Francione
propôs uma teoria ético-filosófica chamada de abordagem abolicionista dos direitos dos animais,
cujo objetivo principal é a inserção de todos os animais não-humanos autoconscientes em uma
mesma comunidade moral. Sua argumentação repousa em algumas premissas principais: a crítica
do estatuto da propriedade e suas implicações nas relações morais entre os seres humanos e os
animais; a formulação de uma teoria moral baseada exclusivamente na autoconsciência, e não em
outras características ou habilidades cognitivo-psicológicas específicas; no núcleo de sua teoria
dos direitos dos animais está contida a tese de que os animais não devem ser tratados como
recursos substituíveis (que era um dos aspectos defendidos por Singer em sua teoria bem-estarista
dos animais não humanos); etc. O princípio da igual consideração de interesses pressupõe a
universalidade dos julgamentos morais, desprovidos, portanto, de todo interesse próprio ou de
grupos; trata-se de um princípio que permite a imparcialidade e a universalidade no julgamento e
na avaliação dos interesses morais dos seres envolvidos. Além disso, esse princípio resolveria a
causa principal da esquizofrenia moral humana em relação aos animais, a saber: o estatuto
moral/legal da propriedade em que os animais não-humanos estão inseridos (as filosofias de Kant
e Locke negam aos animais o direito à participação a uma comunidade moral). Dois argumentos
principais são adotados para justificar essa posição: no caso de Kant, é errado causar sofrimento
aos animais; eles seriam concebidos como meras mercadorias em posse dos seres humanos; além
disso, pela ausência de racionalidade, eles não poderiam ser integrados no âmbito de uma
comunidade moral. Para Locke, os animais são uma concessão de Deus aos homens,
constituindo-se, portanto, como um bem material econômico, sem direitos morais. Neste artigo,
nosso objetivo é (i) refletir sobre a crítica de Francione ao estatuto da propriedade dos animais,
argumentando que, aos seus olhos, a posse dos animais seria a expressão mais nítida da violação
moral dos seus direitos; (ii) demonstrar a tese de Francione de que os animais são pessoas,
assentada na ideia de que os seres humanos devem reconhecer sua obrigação moral de não causar
sofrimentos e de não violar os direitos e o bem-estar dos animais; (iii) a partir disso, demonstrar
que Francione desenvolve uma abordagem abolicionista do direito dos animais, cujo objetivo é a
inserção de todos os animais sencientes em uma mesma comunidade moral.

2. Noção de Esquizofrenia moral dotada por Francione

Francione denuncia, em alguns pontos de sua escrita, o problema da esquizofrenia moral nas
relações morais dos humanos para com os não-humanos, traduzida em atitudes duvidosas e
incompreensíveis dos seres humanos que, ao mesmo tempo que defendem que é moralmente errado
proporcionar sofrimento desnecessário aos animais, praticam esse sofrimento em relação aos
mesmos por motivos supérfluos. Em outras palavras, não existe conexão naquilo que se prega
(teoria) e no que realmente se pratica (prática). Para o filósofo e jurista, existe comumente a
negação, por parte dos seres humanos racionais, em um primeiro momento, de que os animais são
meras coisas; porém, ao mesmo tempo, concordamos que esses animais não-humanos são como
fossem meros recursos econômicos, demonstrando, mais uma vez, a existência dessa visão
comportamental esquizofrênica. Para Francione, um exemplo desse comportamento contraditório é
a relação dos seres humanos com seus animais domésticos: ao mesmo tempo que os amam e ao
mesmo tempo que os consideram membros de suas famílias, na hora de suas refeições, os seres
humanos colocam em suas mesas outros animais não-humanos que possuem a mesma senciência,
isto é, a mesma capacidade de sentir dor de seus animais domésticos tão amados. Portanto, a
esquizofrenia é nítida na distinção de alguns animais não humanos como merecedores de amor,
carinho e cuidados, enquanto outros, que são semelhantes aos seus animais domésticos, não
possuírem o mesmo direito.
Na perspectiva de Francione, por parte dos animais humanos, há a esquizofrenia de diferenciar tipos
de animais não-humanos, rotulando cada animal em seu grupo e, também, ignorando a capacidade
de sofrimento de cada um, mas distinguindo e ordenando a função de cada animal não-humano.
Para ele, portanto, a causa principal dessa esquizofrenia é que o ser humano (animal humano)
classifica e delimita os animais em grupos: animais domésticos, animais para alimentação, animais
para pesquisa, animais para caça, animais de entretenimento, animais de zoológico etc.

3. O princípio do tratamento humanitário

O “princípio do tratamento humanitário” tem origem na teoria utilitarista do filósofo Jeremy


Bentham, que rejeitava a tese de que, por falta de racionalidade ou comunicação pela linguagem e
pela ausência de autoconsciência, os animais poderiam ser tratados como coisas. Aos seus olhos, o
que provava o status moral dos animais era somente a senciência ou a capacidade de sentir dor e
prazer. Para Bentham, “a questão não é ‘Eles podem raciocinar’?, nem ‘Eles podem falar’?, mas
sim ‘Eles podem sofrer’?”. Na visão de Francione, Bentham nunca combateu o status dos animais
como propriedade dos humanos. Pois, para Betham, os animais tinham interesse em não sofrer,
mas, diferente dos humanos, não tinham interesse em continuar vivendo, e essa aceitação da falta de
autoconsciência contribuía para a distinção qualitativa entre os animais e humanos, o que, em
última instância, justificava o tratamento dos animais como coisas em relação as suas vidas, mas,
por outro lado, não permitia esse mesmo tipo de tratamento em relação ao interesse do animal em
não sofrer. Portanto, o reconhecimento dos animais como propriedade humana levou a uma falha na
teoria moral na formulação das leis anticrueldade modernas, pois o princípio do tratamento
humanitário exige que se tenha um equilíbrio entre os interesses dos humanos com os dos animais,
levando, assim, os interesses dos animais como moralmente significativos. Porém, na perspectiva
do filósofo abolicionista, tal exigência se encontra predestinada ao fracasso, na medida em que,
mesmo com o princípio do tratamento humanitário, os animais ainda existem como recursos
exclusivos dos seres humanos.

Francione também defende a tese de que nosso pensar moral em relação aos animais é informado
por duas intuições, as duas estando relacionadas ao conceito de necessidade. Na primeira intuição,
encontramos a afirmação de que podemos preferir os humanos em situações de necessidade. Em
Introdução aos direitos dos animais, Francione afirma:

Não pensamos que os animais sejam “o mesmo” que nós. A maioria de nós tem a
posição de que, em situações de verdadeiro conflito entre os interesses dos
humanos e os dos animais, ou em alguma emergência que requeira que escolhamos
entre um humano e um animal- isto é, quando for necessário fazer isso -, devemos
preferir os interesses de um humano aos interesses de um animal (FRANCIONE,
2013, p.24).

Na segunda intuição, encontramos a afirmação que é errado ocasionar dor “desnecessária” aos
animais, pois o reconhecimento da senciência nos animais deixa explícito o interesse em não
experenciar dor ou sofrimento. Considerando esse interesse como moralmente significativo, na
perspectiva de Francione, não devemos infligir nenhum sofrimento sem necessidade aos animais.
Em sua ótica, “embora possamos preferir humanos a animais em situações de verdadeira
emergência ou conflito, também reconhecemos que, como nós, e diferentemente das plantas e das
pedras, os animais são sencientes - são daqueles tipos de ser que é consciente e pode ter
experiências subjetivas de dor e sofrimento” (FRANCIONE, 2013, p.25)

Francione enfatiza que, apesar de pregarmos que é errado impor sofrimento desnecessário aos
animais, a maioria dos usos que deles se faz vem com meras justificativas por conveniência, prazer,
divertimento – entre outras. Como exemplo, Francione cita os usos de animais em circos, em
rodeios, na caça esportiva, em casacos de peles, consumo de carne etc. Portanto, esses exemplos,
vistos do ponto de vista ético e dos direitos dos animais, tal como defendido por Francione, não
apresentam nenhum tipo de necessidade justificável, portanto, são atividades protegidas por leis que
proíbem o sofrimento animal desnecessário. A inconsistência de nosso discurso para com nossa
prática resulta na afirmação da condição do animal como propriedade: os animais continuam como
mercadorias cujos valores são estabelecidos pelos proprietários. Ou seja, essa condição tira todo o
sentido de equilíbrio de interesses no princípio do tratamento humanitário, porque o que se encontra
em jogo realmente são os interesses dos proprietários versus os interesses dos animais (suas
propriedades). Para Francione, nessa lógica, a balança de equilíbrio nunca pesará a favor dos
animais, pois estes são vistos sempre como mercadorias, portanto, como meras propriedades. No
fundo, o que se considera é tão somente o lado econômico que irá adquirir com sua propriedade
animal. Na perspectiva de Francione:

O animal em questão é sempre um “animal de estimação” ou “pet”, ou um animal


de “laboratório”, ou um animal de “caça”, ou um animal para “comida”, ou um
animal de “rodeio”, ou alguma outra forma de propriedade animal que existe
somente para nosso uso e que só tem valor como um meio para os nossos fins. Não
há realmente nenhuma escolha a ser feita entre o interesse do humano e o interesse
do animal porque a escolha já está predeterminada pelo status de propriedade
animal (FRANCIONE, 2013, p.28).
Em Introdução aos direitos dos animais, Francione alega que, se levarmos os interesses dos
animais a sério, não tem como – e nem podemos – continuar considerando-os como meros recursos
humanos. Essa teoria, que rejeita a tese dos animais como coisas, deve estar ligada, portanto, a
abolição total da exploração animal – e não apenas como uma irrelevante regulação “humanitária”
do uso desses animais, na medida em que esse princípio humanitário de maneira alguma protege os
interesses dos animais, uma vez que os animais ainda são vistos como propriedades e, na verdade,
na maioria das vezes o que se proíbe é o tratamento ineficiente de lucros, ou seja, algum mal
direcionado ao animal que não irá servir para algum interesse econômico. Na realidade, há defesa
dos interesses dos animais somente quando se tem alguma vantagem econômica: é totalmente
ineficiente estender para esses animais cuidados mais do que são necessário para explorá-los. Nesse
sentido, enquanto os animais continuarem sendo tratados como meio para os fins humanos, seus
interesses sempre serão dessemelhantes aos interesses humano. Nas palavras de nosso autor:
Nós supomos que os proprietários de animais vão agir em seu próprio interesse
econômico, e não vão impor mais dor e sofrimento do que for necessário para usar
eficientemente o animal como um recurso econômico. Impor mais dor e sofrimento
seria danificar essa propriedade animal e diminuir seu valor, sem um ganho
econômico correspondente, o que não seria racional. Em um sistema de
propriedade privada, geralmente supomos que os proprietários sejam os melhores
juízes do valor de sua propriedade e o deixamos usar essa propriedade como lhes
convém (FRANCIONE, 2013, p.136).

4. O princípio da igual consideração de interesses (Picis)

A solução para levarmos os interesses dos animais a sério é aplicarmos aos animais a norma que
devemos tratar semelhantes semelhantemente, ou seja, o princípio da igual consideração de
interesses. O princípio é essencial para colocarmos em evidência e logo rejeitarmos formas de
pensamentos que tentam justificar atitudes discriminatórias, além de ser um princípio fundamental
de uma teoria ético-filosófica que almeja chegar a uma categoria de “universalidade moral”. Na
ótica de Francione, “o princípio da igual consideração é um componente necessário de qualquer
teoria moral; qualquer teoria que rejeite esse princípio é inaceitável como teoria moral”
(FRANCIONE, 2013, p. 161). Nesse sentido, os animais possuem um interesse em comum,
semelhante com os humanos, a saber, o interesse em não sofrer, logo, devemos tratar esse interesse
da mesma maneira, justamente porque esse interesse em comum nos faz entender que eles são
semelhantes a nós, ao menos no aspecto da senciência. Portanto, se o interesse dos animais em não
sofrer é moralmente significativo, devemos aplicar o Picis como critério universal, e não baseado
em interesses próprios ou de um determinado grupo. Diz Francione:
No fim, a única diferença entre eles e nós é a espécie, e a espécie, apenas, não é um
critério moralmente relevante para excluir os animais da comunidade moral, assim
como a raça não é uma justificação para a escravidão humana, ou o sexo uma
justificação para fazer das mulheres a propriedade de seus maridos. Usar a espécie
para justificar a condição de propriedade dos animais é especismo, assim como
usar a raça ou o sexo para justificar a condição de propriedade de humanos é
racismo ou sexismo (FRANCIONE, 2013, p. 32).

O princípio da igual consideração de interesses determina que tratemos interesses semelhantes de


um modo semelhante, de modo que, somente assim, conseguiremos determinar que os interesses
dos animais tenham importância moral. Em outras palavras, ao aplicarmos este princípio aos
animais, teremos condições de assegurar que estes adquiram o mesmo direito básico que todos os
seres humanos possuem, a saber, o direito de não serem tratados como coisas. Francione argumenta
que reconhecemos que nenhum humano deve ser propriedade de outra pessoa tanto que abolimos a
escravidão e não apenas a regulamentamos para que se torne mais humanitária; em sua visão, esse
reconhecimento deveria ser estendido também aos animais, reconhecendo esse direito básico para
os animais; em outras palavras, não há qualquer justificativa para a nossa exploração institucional
dos mesmos. Portanto, se levarmos efetivamente os interesses dos animais moralmente a sério, não
existe escolha, pois estaremos comprometidos com a abolição da exploração animal, e não somente
com a mera regulação dessa exploração. Nas palavras de Francione:

Se o interesse dos animais em não sofrer é, de verdade, um interesse moralmente


significativo, e se os animais não são meras coisas moralmente indistinguíveis de
objetos inanimados, então devemos interpretar a proibição do sofrimento animal
desnecessário de um modo semelhante àquele como interpretamos a proibição do
sofrimento humano desnecessário. Os humanos e os animais devem ser protegidos,
em qualquer circunstância, contra o sofrimento resultante de seu uso como
propriedade ou recurso alheio (FRANCIONE, 2013, p. 33).

Em suma, o princípio da igual consideração requisita a proteção aos animais contra qualquer
sofrimento consequente do seu uso como propriedade humana; no seu núcleo, está a tese de que
devemos conceder aos animais o direito básico de não serem usados ou tratados como recursos.

5. A tese dos animais como “pessoas”

A partir do momento que estendemos o princípio da igual consideração de interesses aos animais,
esses animais se tornarão pessoas, pois afirmar que um ser é pessoa é concordar que esse ser tem
interesses moralmente significativos e que esse ser não é uma mera coisa. Para Francione, “não
devemos pensar que o fato de considerarmos que os animais são pessoas signifique que os animais
sejam o mesmo que os humanos, ou que os animais tenham todos os mesmos direitos que os
humanos têm (FRANCIONE, 2013, p.181).

Francione argumenta que existe um problema na instauração de categoria de quase-pessoas: por


algum tempo, houve a tentativa de implantação de um sistema de três níveis: a) as coisas
(propriedade inanimada); b) as pessoas (livres) e c) as quase-pessoas (escravos). Porém, segundo
ele, esse sistema fracassou, pois reconheceu-se que, se os escravos possuíssem interesses
moralmente significativos, os mesmos não poderiam mais ser considerados escravos:
“reconhecemos que o universo moral se limita a apenas dois tipos de seres: pessoas e coisas. As
‘quase pessoas’ (ou ‘algo mais do que coisas’) necessariamente correrão o risco de serem tratadas
como coisas, porque o princípio da igual consideração não pode se aplicar a elas (FRANCIONE,
2013, p.181).

De modo semelhante, Francione alega que não se pode considerar os animais “quase pessoas”: ou
eles são considerados pessoas, onde o princípio da igual consideração pode ser aplicado e em
relação aos quais os humanos possuem obrigações morais diretas, ou são meras coisas, em que não
se aplica o princípio e, muito menos, que os humanos não têm qualquer obrigação moral direta.
Francione confirma que o fato de considerarmos os animais pessoas, de maneira alguma significa
que não possamos preferir humanos a animais em situações de emergências: trata-se antes que
devemos parar de criar esse tipo de conflito tratando os animais como propriedade. Nesse sentido,
como nos sugere Francione, assim como acreditamos que os humanos não devem sofrer como
escravos sendo propriedade de outro humano, os animais também não deveriam sofrer como meros
recursos para os humanos.

6. Divergências teóricas entre Francione e Singer

Francione rejeita o argumento de Singer no que se refere ao uso e ao tratamento dos animais como
nossos recursos. Para ele, enquanto os animais forem tratados como meios para os fins humanos,
seus interesses nunca terão um status igualitário ao dos seres humanos. Ele argumenta que, se for
para ter importância moral, devemos estender aos animais um direito básico de não ser considerado
como meras coisas. Francione apresenta alguns aspectos problemáticos da visão de Singer na
questão da senciência e da autoconsciência. Ele rebate a afirmação de Singer que matar um ser
senciente não inflige dano a esse ser. Nas palavras de Francione:

A morte é o maior dano para qualquer ser senciente, e que meramente ser senciente
já implica, pela lógica, um interesse na existência continuada e alguma consciência
desse interesse. Ser um ser senciente, significa ter um bem estar experiencial.
Nesse sentido, todo ser senciente tem interesse não apenas na qualidade de sua vida
como também na quantidade da sua vida. Os animais podem não ter pensamentos
sobre quantidade de anos que viverão, mas, em virtude de terem interesse em não
sofrer e experienciar prazer, eles têm interesse em permanecer vivos. A senciência
não é um fim em si mesma- é um meio pra o fim de ficar vivo. Os seres sencientes
usam a sensação de dor e sofrimento para escapar das situações que ameaçam suas
vidas, e a sensação de prazer para procurar situações que as melhorem
(FRANCIONE, 2013, p.235).

Francione continua sua argumentação comparando a dor de um animal senciente com a de


um ser humano. Para ele, ambos suportariam a dor, por mais forte que seja, e tentariam de todas
maneiras livrar-se dela. Singer reconhece que um animal pode lutar contra algo que ameaça sua
vida, mas ele não considera isso um indício de que o animal deseje realmente permanecer vivo (Cf.:
SINGER, 2010, p. 228). Francione contesta Singer afirmando que, se no pensamento do bem-
estarista os animais não são autoconscientes, teríamos muita dificuldade em explicar como os
animais aprendem algo, a não ser que justifiquemos que todo comportamento dos animais obedece
exclusivamente a lógica estímulo-resposta. Para ele, por exemplo, o cachorro, ao colocar a sua pata
em uma chapa quente e retirar, dificilmente irá repetir isso outras vezes. Ora, como explicar que o
cachorro reconheceu que ele próprio sentiu dor porque era sua pata? Se os animais não tivessem
autoconsciência, diz Francione, teríamos muita dificuldade para entender e explicar isso. Além
disso, um outro exemplo dado por Francione foi o da antecipação do futuro dos animais: como um
cachorro pode antecipar seu encontro com seu dono chegando em casa?

Francione também critica Singer por este considerar os animais recursos substituíveis “de
um ponto de vista imparcial, convertido em algo bom pela criação de um novo animal que terá uma
vida igualmente agradável” (FRANCIONE, 2013, p. 239). Como explicar, então, nosso sofrimento
mais profundo quando um de nossos animais morrem? Para ele, isso ocorre porque nós mesmos
consideramos nossos animais como recursos substituíveis. Francione também questiona que Singer
realmente aplicasse a PICIS, teria que tratar casos semelhantes semelhantemente, e teriam que dar a
esses interesses uma proteção semelhante, do tipo direitos.Com isso, alcançaríamos a extinção da
instituição de propriedade animal: “[...]enquanto Singer efetivamente rejeitar o status de
propriedade dos humanos, mas não dos animais, fica impossível aplicar o princípio da igual
consideração de interesses” (FRANCIONE, 2013, p. 249).

Francione critica a linha do bem-estarismo adotado por Singer por esta não questionar o uso dos
animais, mas somente focar sua reflexão no tratamento dos animais (aumento de gaiolas, métodos
de abate “humanitários” etc.). Francione encontra nessa afirmação um problema moral gravíssimo,
uma vez que, na visão abolicionista adotada por ele, é inadmissível o uso dos animais. Francione
designou pelo termo neo-bem-estarismo (criado em 1994) a visão que realmente deveríamos parar
de usar animais; no entanto, para chegarmos ao abolicionismo, deveríamos apoiar o bem-estarismo,
ou seja, entendê-lo como uma ponte para chegarmos a abolição animal. Portanto, na perspectiva de
Francione, a partir do momento que se adota a reforma do bem-estar, aderimos com ela uma zona
de conforto e desculpas para continuarmos explorando os animais, pois, no bem-estarismo,
conforme nos mostra Francione, é incentivado o consumo de subprodutos de animais que estão
sendo tratados de forma “humanitária”, ou seja, uma exploração feliz e tendo como consequência
uma maior comercialização da exploração desses animais. Como então podemos afirmar que
levamos os interesses dos animais a sério ao mesmo tempo em que os comemos? – questiona
Francione.

7. Educação vegana criativa e não-violenta

Francione é totalmente contra o uso da violência, tanto de uma maneira geral quanto dentro do
movimento abolicionista. A violência, em sentido estrito, não faz parte da mudança que ele busca,
na medida em que o que está no núcleo de sua reflexão é sua transformação por meio da utilização
de uma ética não violenta. Ele cita como exemplo a aceitação de alguns para o uso da violência na
defesa contra a exploração animal aplicada contra agricultores, exploradores, comerciantes de peles
etc., e esquecem de analisar que àqueles praticam tais atos de exploração porque há um público
exigindo seus produtos. Portanto, se parássemos de obter tais produtos, estes poderiam investir em
outras atividades; em outras palavras, se existissem mais pessoas veganas, o incentivo do uso de
animais diminuiria como também diminuiria o consumo exacerbado, resultando, inevitavelmente,
em uma responsabilidade maior para aqueles que consomem e exigem produtos de origem animal.
Francione ressalta que é um equívoco titular os fazendeiros como os únicos “vilões” pelo
sofrimento animal, na medida em que, se analisarmos mais a fundo, perceberemos que há um
público grande que demanda produtos de origem animal e que, portanto, são ética e moralmente
responsáveis – e autorizam – a crueldade para com os animais.
Para Francione, só conseguiremos visualizar uma mudança significativa quando houver a
diminuição da demanda de produtos de origem animal e o gradativo incentivo a outras pessoas a
não consumir praticando o que ele designou de veganismo criativo, ou seja, realizando oficinas
sobre veganismo, sites ou blogs sobre abolição e veganismo; amostra de comidas veganas em
eventos; na escrita de editoriais pra jornais, revistas, distribuindo literatura sobre veganismo –
dentre outras atividades –, na tentativa de mostrar que o veganismo é uma base moral, pois, se os
animais importam moralmente, não existe nenhuma justificativa sólida para continuarmos usando-
os como mercadorias (ou seja, não há justificativa para o uso em roupas, comidas, cosméticos etc,).

8. Considerações finais

Nesse artigo, discutimos sobre a ética e os direitos dos animais a partir da abordagem abolicionista
de Gary L. Francione. Francione argumenta que quase todas as pessoas concordam que seria errado
ocasionar sofrimento desnecessário aos animais, mas, ao mesmo tempo, praticam tais atos por
motivos egoístas e banais, que visam somente o benefício dos seres humanos, esquecendo-se
totalmente de levar em consideração o sofrimento animal, resultando, assim, em uma esquizofrenia
moral. Essa esquizofrenia moral resulta do estatuto de propriedade atribuído aos animais não-
humanos e nunca retirado nem mesmo pelo princípio do tratamento humanitário que teve origem
com a teoria de Jeremy Bentham. Francione questiona os motivos que nos levaram a acreditar que a
regulação – e não a abolição – da exploração animal seria suficiente para prover a importância
moral dos interesses dos animais. Nesse princípio, os animais ainda são vistos como propriedade (o
lucro que esses animais podem proporcionar), pois efetivamente há defesa dos interesses dos
animais somente quando se tem alguma vantagem econômica em jogo. Assim como Singer,
Bentham acreditava que os animais tinham interesse em não sofrer, mas diferente dos humanos não
tinham interesse em continuar vivendo. Para Francione, todo ser senciente está ciente da dor e do
prazer que ele vivencia e, além disso, que é ciente do significado de uma existência continuada.
Discordando de Singer e Bentham, ele alega que a morte é o maior dano que um senciente pode
sofrer, pois acaba com o interesse de continuar vivo. Portanto, para Francione, a senciência já é o
suficiente para que um ser vivo seja considerado detentor de direitos morais.

Na perspectiva de Francione, se os seres humanos realmente desejam levar o sofrimento animal a


sério, deveriam aplicar o princípio da igual consideração de interesses, considerando os interesses
dos animais não-humanos em não sofrer pela adição do mesmo valor moral a esse interesses –
interesses esses que nos tornam semelhantes a estes animais. A partir do momento que for estendido
o conceito de pessoas para os animais não-humanos, estes não poderão mais ser considerados meros
recursos econômicos: no abolicionismo proposto por Francione rejeita-se a ideia de animais como
coisas ou simplesmente como recursos para os humanos; no cerne dessa teoria está a total abolição
da exploração animal, pois, para ele, enquanto os animais continuarem sendo tratados como meios
para fins humanos, seus interesses continuarão sendo dessemelhantes ao interesse humano. Por fim,
Francione alega, dada a importância moral dos animais, que o veganismo se traduz na base moral da
defesa dos interesses e dos direitos dos animais. Portanto, não existem justificativas para os usarmos
em nossa comida, roupas, como se fossem mercadorias. O veganismo criativo, e não violento, é a
única possibilidade na transformações das relações entre os seres humanos e os animais não-
humanos.

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