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PSICANALÍTICA

Orgão Oficial da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro


ISSN 1679-074X

EDITORES Sérgio de Freitas e Elie Cheniaux

COMISSÃO EDITORIAL Claudio Laks Eisirik


Eliane MacCord
Eronides Borges Fonseca
Jaques Vieira Engel
José Alberto Zusman
Juan Ramon A. Conde Martinez
Rejane Sabbagh Armony
Renato Oliveira Barauna
Ronaldo Victer
Vera Lúcia Benchimol
Victor Manuel Andrade
Waldemar Zusman

DIRETOR DA BIBLIOTECA Ricardo Fabião Gomes

SECRETARIA ADMINISTRATIVA
SUPERVISORA Loretta Passaro
SECRETÁRIA Selma Pereira Conceição
ASSISTENTE ADMINISTRATIVO Agnaldo Marins Teixeira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E Imagem & Texto Ltda.


PRODUÇÃO GRÁFICA

SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO


Rua Fernandes Guimarães, 92 - Botafogo
Rio de Janeiro - RJ - CEP 22290-000
Tel.: (21) 2543-4998 - Tel./Fax: (21) 2295-3148
e-mail: sprj@sprj.org.br
Este número da PSICANALÍTICA encontra-se na home-page da SPRJ no endereço:
www.sprj.org.br
Diretoria da SPRJ - 2006/2007
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
Filiada à International Psychoanalytical Association

CONSELHO DIRETOR
PRESIDENTE Alexandre Kahtalian
SECRETÁRIA Nisara Lovanda Pinheiro
TESOUREIRA Maria Inês Pinto MacCulloch
VOGAL EFETIVO Rosa Sender Lang
VOGAL ASSOCIADO Maria Aparecida Duarte Barbosa

COMISSÃO CIENTÍFICA
DIRETORA Veronica Portella Nunes
MEMBROS Isis de Souza Figueiredo
Sandra Maria Martins Pereira
Thereza Christina Rosa Pegado Ribeiro
Vanja Rodrigues Mattos

DEPTO. DE ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA


DIRETORA Rejane Sabbagh Armony
MEMBROS Regina Maria C. Chagas Lessa
Rosana Igor Rehfeld
Vera Lúcia Benchimol

INSTITUTO DE ENSINO DA PSICANÁLISE


DIRETOR Idésio Milani Tavares
SUBDIRETORA DE SELEÇÃO Maria Eliana Mello Helsinger
MEMBROS Tania Leão Pedroso
Vera Márcio Ramos
SUBDIRETORA DE AVALIAÇÃO Cynthia Ladvocat
MEMBROS Frida Hoirisch
Ramon Fandiño
Rosália Milsztajn
SUBDIRETOR DE ENSINO Carlos Antonio Garrido Pereira
Sumário

Editorial ........................................................................................5

ESPECIAL: 150 ANOS DE FREUD

Encontro dos Presidentes .......................................................... 11


Jane Kezem, Alexandre Kahtalian,
José Alberto Zusman e Cláudio Campos

Sobre a prevenção da transmissão transgeracional


da guerra, do ódio e da violência:
uma perspectiva psicanalítica ................................................... 27
Cláudio Laks Eizirik

Freudam-se ................................................................................. 31
Marcelo Madureira

ARTIGOS

Psicanálise e Neurociência.
Uma Perspectiva Interdisciplinar e Evolucionária. .................. 35
Ernesto La Porta

Masoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida:


resumo e comentários da obra de Benno Rosenberg ............... 49
Juan Eduardo Tesone

A procura da beleza como busca de equilíbrio psíquico .......... 65


Maria José de Andrade Souza

Simetria ou Lógica Inconsciente e Assimetria ou


Lógica Consciente da Relação Psicanalítica .............................. 75
Anne Lore Fischer Gomes Coelho, Flavio Barros Souto Maior,
José Oswaldo F. de Moraes, Maria de Lourdes Monteiro de Salles,
Manuel Gavilan, Nahman Armony, Osmar de Salles e Ronaldo Victer
Um estudo sobre a histeria masculina:
de Freud aos autores contemporâneos ..................................... 87
Laura Meyer da Silva

Sobre a dificuldade de exercer a função analítica


em paciente borderline.............................................................103
Ana Maria Ferreira Pinto

O autismo psicogênico,
a personalidade autista e o trauma .......................................... 119
Sebastião Abrão Salim

SEÇÃO TEMÁTICA: A CRIATIVIDADE E O ENVELHECER

A criatividade e o envelhecimento .......................................... 141


Wilson de Lyra Chebabi

Da criatividade e do envelhecer ............................................... 143


Marialzira Perestrello

Envelhecimento ........................................................................ 151


Maria da Paz Manhães

Você é um envelhescente? ........................................................ 163


Mário Prata

MONOGRAFIA

AMOR TRANSFERENCIAL:
Alcebíades e Sócrates X Analista e Analisando ....................... 167
Isis de Souza Figueiredo

RESENHAS

Nietzsche e o Nascimento da Psicanálise ................................ 179


Autor: Márcio Amaral
Resenhado por: Eduardo Rodrigues Peyon

Linguagem e Construção do Pensamento ............................... 183


Organizador: José Renato Avzaradel
Resenhado por: Alice Tigre e Adriana Gang Nudelman

Le Jeu en Psychanalyse de l’enfant .......................................... 187


Autores: A.Anzieu, C.Anzieu-Premmereur e S. Daymas
Resenhado por: José Iencarelli Filho
Editorial

Não pode haver dúvida da importância, para uma instituição psicana-


lítica, de contar com uma revista que expresse a produção científica de
seus membros. Uma publicação com esse fim cria, ao mesmo tempo em
que reflete tal produção, o estímulo e o compromisso de mais produzir.
Contudo, acreditamos que uma publicação como a nossa não deve
limitar-se à produção dos membros da Sociedade, e, sim, abrir-se a
diferentes contribuições, teóricas e clínicas, de outros colegas e de outras
instituições, criando um espaço rico em debates de idéias, sem que com
isso a revista perca, ou deixe de criar, identidade própria. Ao contrário,
somente acolhendo e debatendo, de forma criativa, pontos de vista diversos
dos nossos, podemos constituir um conjunto de idéias mais uniformes,
fortalecendo a identidade institucional. Não é por outra razão que institutos
encarregados da avaliação de periódicos atribuam maior número de pontos
quanto maior for a proporção de autores externos. As pequenas diferenças
ocorrentes em uma instituição reforçam a existência de sólidos e essenciais
pontos em comum.
Entendemos mesmo que uma revista com tal perfil pode e deve admitir
interfaces com áreas de conhecimento que dialogam com a psicanálise, o
que só confirma a enorme influência que ela tem exercido, ao longo de
décadas, no campo da antropologia, da filosofia, das artes, etc. Outro ponto
importante reside no fato de que a maior parte das revistas européias,
com a finalidade de aumentar a densidade do seu conteúdo, tem caráter
temático, escolhidos os temas com antecedência até de dois anos, para
que os autores possam estudar e preparar melhor seus trabalhos. E é
indiscutível a qualidade da produção teórica dos nossos colegas europeus.
Seria interessante, então, que pudéssemos introduzir pouco a pouco
na revista PSICANALÍTICA, ou em parte dela, este princípio de temas
previamente escolhidos. Além do registro de idéias, esses trabalhos
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

poderiam gerar debates na própria revista ou inspirar os encontros


científicos na nossa Sociedade, da mesma forma como as reuniões e
jornadas vêm servindo de fonte de artigos para a revista.
Estamos introduzindo uma seção temática que tem aquele objetivo e
reúne os trabalhos apresentados em reunião científica da SPRJ, sob o tema
A Criatividade e o Envelhecer, pelos colegas Wilson Chebabi e Dra.
Marialzira Perestrello. Completam a seção artigo da Dra. Maria Manhães
e uma bem-humorada colaboração do escritor Mário Prata, autor do
conceito de “envelhecência”, que talvez pudesse até ser incorporado à
nosografia psicanalítica.
Neste ano em que comemoramos os 150 anos de nascimento de
Sigmund Freud, PSICANALÍTICA faz a sua homenagem em uma seção
especial. Abre a seção uma entrevista conjunta dos quatro presidentes
das Sociedades filiadas à IPA. Jane Kezem (SBPRJ), José Alberto Zusman
(Rio 3), Cláudio Campos (APERJ-Rio 4) e Alexandre Kahtalian (SPRJ),
discutem neste encontro diversos temas ligados à evolução da psicanálise
e à sua situação atual. A seguir, publicamos um trabalho que representa,
na verdade, uma dupla homenagem: a Freud e ao autor do artigo, o colega
Cláudio Eisirik, primeiro brasileiro presidente da IPA. A seção especial
encerra-se com o depoimento sobre a experiência fecunda e duradoura de
Marcelo Madureira no divã psicanalítico. Fazemos assim uma justa home-
nagem àqueles que são também participantes da significação universal
assumida pela Psicanálise: os analisandos.
Com relação aos artigos, extensa gama de temas está contemplada. Das
neurociências, com o nosso colega Ernesto La Porta, passando ao complexo
problema do masoquismo, com artigo de Juan Eduardo Tesone, da
Sociedade Psicanalítica de Paris e da Associação Psicanalítica Argentina;
e ainda um interessante trabalho sobre teoria da técnica, de psicanalistas,
alguns da SPRJ, que fundaram a Associação para o Estudo da Intersubje-
tividade, em 2002. Dois artigos abordam o trabalho psicanalítico de casos
difíceis, sendo o de Ana Maria Ferreira Pinto sobre pacientes borderlines,
e o de Sebastião Abrão Salim sobre autismo psicogênico. Completam a
seção artigos de Laura Meyer, sobre histeria masculina, e de Maria José
de Andrade Souza sobre psicanálise e estética.
Uma nova seção abre espaço para monografias de candidatos, indicadas
à revista pela Comissão de Avaliação. Espera-se que a seção estimule os
candidatos a produzir seus primeiros artigos dentro das normas exigidas
em trabalhos científicos. Neste número, apresentamos o artigo de Ísis
Figueiredo, extraído de sua monografia sobre transferência.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Nas resenhas, Alice Tigre e Adriana Gang Nudelman apresentam o livro


organizado por José Renato Avzaradel, Linguagem e Construção do
Pensamento. Eduardo Peyon escreve sobre o livro do Professor da UFRJ
Márcio Amaral, Nietzche e o Nascimento da Psicanálise. E o nosso colega
José Iencarelli Filho faz a resenha do livro Le Jeu en Psychanalyse de
l’Enfant, de três reconhecidas psicanalistas francesas.
Por último, vale lembrar que a seleção dos artigos baseou-se em
pareceres emitidos pelos membros da Comissão Editorial composta por
colegas da nossa sociedade e também de outras instituições, que avaliaram
os textos sem conhecerem a identidade dos respectivos autores. Assim,
essa avaliação se deu de forma inteiramente impessoal, considerando-se
apenas os aspectos científicos e técnicos.
Finalmente, o nosso agradecimento à diretoria da SPRJ, especialmente
na figura da diretora da Comissão Científica, Veronica Portella Nunes,
pelo convite para assumirmos a editoria da PSICANALÍTICA, e os parabéns
a nossa antecessora Vera Benchimol, que por muito tempo conduziu a
revista com grande dedicação e competência.

Sergio de Freitas e Elie Cheniaux

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ESPECIAL:

150 ANOS DE FREUD


P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Encontro dos Presidentes

Na entrevista a seguir, os presidentes das quatro sociedades


filiadas à IPA, do Rio de Janeiro, conversam com os editores da
PSICANALÍTICA sobre temas que poderíamos considerar como
centrais na psicanálise atual, como a formação psicanalítica nos
institutos das sociedades da IPA, a formação em sociedades que
não seguem os padrões da IPA, a questão da regulamentação da
profissão de psicanalista, a relação da psicanálise com a universi-
dade, com pesquisas e com outras disciplinas como as neurociências.
Enfim, vastos temas a respeito dos quais, Jane Kezem (SBPRJ),
Alexandre Kahtalian (SPRJ), José Alberto Zusman (Rio 3) e Cláudio
Campos (APERJ – Rio 4), expuseram seus pontos de vista.

Jane Kezem – De fato, vocês pinçaram para a discussão todas as


questões que a psicanálise enfrenta. De uma maneira geral, conflitos
institucionais emergem a partir do relacionamento entre os psicanalistas
com suas ideologias, intimamente ligados às condições humanas. Nossas
Sociedades partiram de uma instituição única, que foi se fragmentando.
Nesse sentido, podemos dizer que temos uma experiência grande de divisão
e esse não foi um privilégio nosso, do Rio de Janeiro. Isso sempre acompa-
nhou a psicanálise desde seus primórdios. Outras áreas do saber sofrem
isso também. Dentro das universidades existem conflitos, divisões,
problemas institucionais. A Psicanálise viveu conflitos antes mesmo de se
institucionalizar. Os contemporâneos de Freud dividiram-se inicialmente
em dois grupos: os europeus do norte e os europeus do sul com posições e
idéias diferentes. Depois entraram os americanos do norte e mais um
conflito instalou-se. Enfim, a psicanálise sempre viveu seus conflitos, e
vai continuar vivendo, porque, como disse, fazem parte da condição

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

humana. É preciso considerar que conflitos também são inerentes ao


desenvolvimento. Se não se desenvolve, fica-se parado, sem espaço para a
criatividade e para o surgimento de novas idéias. Mas é claro que temos
que ter em mente a busca de soluções pela compreensão e pensar que o
que nos interessa de fato é a psicanálise, e que, para desenvolver o
conhecimento psicanalítico, precisamos estar em contato um com o outro,
e também com outras áreas do saber. E aí entra a questão da Universidade.
Sempre pensei que a psicanálise não deveria ficar afastada da Universidade,
espaço onde é natural a troca. E, aliás, aqui no Rio de Janeiro, o movimento
psicanalítico começou na Universidade, com personagens que eram
professores universitários, e, com elas, iniciou-se a criação e o desenvolvi-
mento do que vieram a ser os núcleos psicanalíticos do Rio de Janeiro.

Cláudio Campos – Sob o ponto de vista institucional, a crise da


psicanálise não é diferente da crise de outras instituições no mundo. Está
bem descrito em Freud. A gente vê como Freud, passados 150 anos do seu
nascimento, é atual. Em O Mal Estar na Civilização, ele descreve como o
homem vive uma luta eterna entre a sua civilização, o processo civilizatório,
e a sua natureza. Essa luta é infindável, e a psicanálise foi um baluarte
dessa luta. Freud se antecipa a essa situação, profeticamente, anunciando
que essa luta continuará indefinidamente, do homem contra o seu processo
civilizatório. Ele, no seu trabalho, que é de 1931, é extremamente pessi-
mista. E as nossas instituições vivem essas mesmas vicissitudes, na medida
em que a psicanálise avança na sua organização. No estudo autobiográfico
de Freud, ele comemorava que a psicanálise já estava se expandindo,
inclusive na Rússia – e logo depois a psicanálise na Rússia acaba – e em
outros locais, onde a psicanálise acabou e volta atualmente. Na verdade,
as instituições psicanalíticas sofrem esse embate. Elas não podem estar
fora da sociedade nem fora do processo civilizatório. Sofrem o embate
das forças instintivas dentro e fora delas. Ou são regimes totalitários, que
ameaçam a sobrevivência da psicanálise – e, no último encontro de
presidentes, nós tratamos de um caso desses, de sobrevivência da psicaná-
lise em determinado local – ou são aspectos fratricidas internos, que já
aconteciam na época do Freud, e que tinham o “objetivo” de preservar a
psicanálise. Tudo vem sempre em nome de preservar a psicanálise. Já na
época de Freud - o conflito dele com Jung - tinha uma divergência
fundamental em certos aspectos. Em outros, não. O conflito se desenvolveu
sob o aspecto de preservação da psicanálise, mas ali estava o centro das
forças instintivas atuando contra a institucionalização maior da psicanálise,

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

que era o que Freud pretendia. E assim foram outros seguidores, e, entre
os comedidos e os ousados, aconteceram as divisões diversas. Essas
divisões são hoje patentes, e, aqui no Rio, essas divisões aconteceram a
partir deste local, ao qual estou voltando depois de doze anos de ausência,
e onde se formaram quase todos os analistas que criaram outras sociedades,
dentro e fora da IPA. É interessante como a Sociedade Psicanalítica do
Rio de Janeiro formou os analistas de dentro e de fora da IPA. Muitas
sociedades fora da IPA têm membros da Rio de Janeiro, formados aqui. E
brilhantes. E muitas sociedades da IPA têm membros formados aqui.
Então, me parece que isso é inerente à luta humana no seu processo de
civilização. É interessante observar como isso é profeticamente adiantado
por Freud para o desenvolvimento da psicanálise. Não há possibilidade
de ser diferente. E compete a nós, dentro de um processo civilizado, facilitar
a divergência, sem estimular a divisão. Esse é o propósito pelo qual estou
aqui presente, depois de longa ausência, e com muito prazer, ao lado do
presidente Alexandre Kahtalian, cuja eleição admirei. Ele é o presidente
da sociedade à qual eu pertencia, o que representa um dos melhores
esforços dessa sociedade no sentido do seu soerguimento, no sentido da
sua renovação. Sempre o parabenizo por sua eleição, que representa um
fato muito importante para nós, que saímos e fundamos a APERJ, a
Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro, a Rio-4. Há uma
modificação positiva e é isso que nos traz aqui.

Alexandre Kahtalian – Quero agradecer as palavras elogiosas do


Cláudio, que fez uma trajetória ligada à instituição, particularmente à
nossa; e agradecer à Jane, que aborda a questão dos conflitos, das cisões,
e como isso faz parte do nosso fazer psicanalítico. Vou me situar e colocar
umas questões a respeito da psicanálise no mundo atual. Por exemplo, sei
– e esses dados são corretos, porque são dados da IPA – que o país onde a
psicanálise mais cresce atualmente é a França, particularmente em Paris.
A taxa de acréscimo de psicanalistas à IPA é em torno de 3,4%. Em segunda
posição vem a América Latina, com cerca de 3,1% de acréscimo de analistas
da IPA. Nos Estados Unidos, esse número cai para 0,6%. O que eu quero
dizer com isso é que a psicanálise vive um momento de transição e não de
crise. Talvez crise tenha a ver com os psicanalistas. Não nego que exista
crise. Muitas coisas estão mudando, há novos padrões. Acho que há uma
população ainda muito conservadora e apegada a determinados padrões,
os quais fizeram parte de sua formação. Mas penso que temos coisas novas
acontecendo em psicanálise. Por exemplo, em relação à questão da

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

demanda, antigamente ela era por sintomas, quer dizer, o indivíduo tinha
uma problemática sintomatológica. Alguém, um amigo, médico ou parente
dizia: ‘bom, você tem que procurar um psicanalista, porque a coisa não
está boa para o teu lado’. Hoje em dia, o que a gente observa muito nos
consultórios psicanalíticos é que a demanda é que passou a ser a procura,
ou seja, não é mais o sintoma. O indivíduo vai ao consultório demandar.
Demandar o quê? Algo que ele está vivendo intensamente nos dias de
hoje, que é a falta do sentimento de ser. Então, o indivíduo, muitas vezes,
vai ao consultório para que, realmente, o analista o ajude a encontrar a
sua essência. Isso tem provocado um grande aumento daquilo que a gente
tem chamado de ‘depressão vazia’, a depressão sem objeto. A grande
procura hoje é de natureza mais depressiva, mas é depressiva do self, é da
ausência de construções interiores que garantam esse sentimento de ser.
Então, eu acho que temos que estar atentos, porque a demanda mudou e
eu não sei se os analistas estão preocupados com isso, mas deveriam estar,
porque isso tem trazido novos enfoques de atuação em relação ao trabalho
analítico. Acho que a psicanálise vive de crises. Ela pode estar em uma
crise de modelo quanto a aspectos da prática analítica, ou da técnica.
Técnica é uma coisa que você faz para mudar alguma coisa. Prefiro usar o
termo prática. Em relação à prática psicanalítica, muitas coisas têm surgido
ultimamente, tais como, o modelo de associação livre. Hoje, ele coteja
com outro tipo de modelo, por exemplo, o que seria da introspecção e da
empatia. Seria uma outra maneira de abordar ou de fazer com que a
circulação de idéias possa ocorrer. São coisas novas que têm acontecido:
tipos de transferência que não são mais aqueles que a gente via. Quando
se fala em pesquisa, trata-se de um campo muito grande a explorar. É na
pesquisa que muita coisa pode ser descoberta. E isso é uma área ainda
muito complicada dentro da IPA. O setor de pesquisa dá muita confusão
ainda, porque você tem que estabelecer critérios para a pesquisa em
psicanálise. É uma coisa muito complicada. Ainda não é algo muito
estabelecido. Podemos mais tarde discutir a pesquisa baseada em
evidências na medicina, assim como as relações da psicanálise com outras
áreas, com outros tipos de psicoterapia. Acho que a psicanálise tem o seu
lugar e embora esteja passando por um momento de turbulência, está
viva, está ativa. É uma coisa da qual a gente deve se orgulhar, em função
disso. Gostaria de falar ainda sobre as formações feitas fora do nosso
ambiente. Existe um mercado informal de formações. Acho que nós, da
IPA, devemos defender a nossa. Não vou dizer que não existam outras
formações que mereçam ser qualificadas como boas, mas acho que é nosso

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

dever defender as nossas qualificações. A maneira pela qual nós fomos


formados é ainda a melhor que se pode ofertar a um mercado de formação
analítica. Muitas formações aí são mesmo muito precárias, porque estão
ligadas a um aspecto de natureza comercial, mercantilista. Muitas
formações universitárias não escapam disso. Sei, contudo, que em outros
países não é assim. Por exemplo, o Uruguai permite que você tenha uma
formação em nível de doutorado, mas lá há uma única sociedade, a qual é
credenciada por uma instituição universitária. Não é o caso do Brasil ou
de outros países.

José Alberto Zusman – Gostaria de falar sobre um aspecto funda-


mental, que é a crise da psicanálise. Em muitos momentos, quando se
fala em crise da psicanálise, o sentido que se está dando a essa crise é um
sentido negativo, como se nós antes tivéssemos uma realidade melhor do
que a atual. Já foi falado que, talvez, nós sempre tenhamos vivido em
crises. Jane, Cláudio e Kahtalian lembraram das situações que se iniciaram
com o próprio nascimento da psicanálise, e também o fato de que existem
crises em todos os outros campos do saber humano, porque talvez o nosso
crescimento se dê de forma conflituosa. Mas há algo que eu entendo como
muito particular do momento em que a gente vive e que não deveria ter
um sentido negativo. A psicanálise em algum momento foi uma novidade
que trouxe expectativas exageradas. A psicanálise não soube definir o seu
tamanho. Cresceu muito, avançou pela cultura. Hoje em dia, nós vemos
em novelas, em conversas corriqueiras, temas que foram trazidos para a
cultura pelas descobertas psicanalíticas. Culturalmente falando, a
psicanálise nunca esteve tão forte: está presente permeando uma série de
conquistas culturais. Talvez até em relação à questão da sexualidade.
Questões fundamentais, vividas de uma outra maneira à época do início
da psicanálise, foram reveladas ao mundo pela psicanálise, como a
sexualidade infantil. Foram temas de grande conflito em determinado
momento e, depois, de grande ensinamento de uma maneira geral. Eu
divido o crescimento da psicanálise em dois momentos. Houve um
crescimento saudável, em que todos estavam muito empolgados com as
descobertas psicanalíticas e com toda a justiça. A partir de um determinado
momento, que eu não saberia precisar qual, do ponto de vista institucional
nós adoecemos. Já não era crescimento, era megalomania. E aí passou-se
a idéia de que nós poderíamos existir sem mais ninguém. Nós poderíamos
existir nutridos por nós mesmos. Qualquer analista que fosse participar
de uma instituição não-psicanalítica, e até nas universidades, era

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

hostilizado, era mal visto. Se não era francamente hostilizado, era pelo
menos mal visto. Era tido como alguém de dupla identidade: é psicanalista,
mas trabalha na Universidade; faz um trabalho conjunto ali, que não é
psicanálise. Começaram as brigas internas sobre o que é psicanálise e sobre
quem é mais psicanalista do que o outro. Havia a idéia, em termos de
mercado, de que bastava entrar para uma sociedade que seu consultório
estava garantido. Você não precisava fazer uma extensão universitária,
você não precisava conhecer mais nada: você entrava na sociedade e fazia
sua vida nela. Era isso que era bem visto. Havia uma trajetória dentro da
sociedade e, se você fosse bem, mostrasse seu pensamento, se fosse bem
aceito, você então estava com a sua vida feita. Essa é a época do
adoecimento, quando nós passamos, como instituição psicanalítica, a
desprezar os demais campos do saber. Isso trouxe conseqüências muito
graves, porque, por exemplo, fez com que várias pessoas, vários analistas
das sociedades da IPA, abandonassem as universidades, criando
verdadeiras lacunas que foram preenchidas por outros analistas de outras
formações. Os analistas da IPA se retiraram e passamos a pagar um preço
por esse distanciamento, que foi conseqüência da idéia errada de que nós
não precisávamos de nada e de ninguém. Hoje temos uma rara
oportunidade de pensar essas questões de uma maneira mais saudável.
Quando se fala em crise, talvez se esteja falando de uma reavaliação da
nossa posição no mercado. Por exemplo, na época dessas grandes
dificuldades, surgiu também a idéia de que o analista precisava conhecer
uma área específica do saber psicanalítico. Tínhamos os analistas
bionianos, que não falavam com os kleinianos, que não falavam com os
freudianos. E aí a doença foi generalizada. De tal forma que hoje nós
entendemos que um bom analista tem que conhecer mais do que o antigo
analista dessa época acreditava que precisava conhecer. A formação da
IPA avançou no sentido da saúde, porque hoje, na nossa formação, exige-
se que a pessoa conheça pelo menos três escolas principais, além de Freud.
Temos que conhecer os outros autores, as principais descobertas. É um
momento em que o analista que conhece mais, estuda mais e tem um
círculo de relações com outras áreas do saber, está em melhores condições
de ter também uma boa clínica, um bom consultório, como acontece com
todos os outros profissionais da área de saúde, grupo ao qual nós
pertencemos. Se isso é uma crise, talvez seja uma crise saudável sob o
ponto de vista de uma certa humildade, porque voltamos a ter que
conversar com nossos pares, que conviver com nossos limites. Acho que
hoje nós temos uma oportunidade. Está nas nossas mãos essa possibilidade

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

de refazer relações que foram rompidas, rompidas por nós, e que, claro,
levaram a repercussões nos nossos pares. Do ponto de vista das nossas
sociedades, vivemos um longo período de graves conflitos, também com
graves conseqüências, com muitas dificuldades. Muita energia gasta mais
em brigas do que em construção, um problema que estamos tendo uma
oportunidade histórica de começar a resolver. Não é resolver de maneira
ingênua, achando que nós vamos superar a existência dos eternos conflitos
humanos, mas a expectativa de que a gente possa olhar para os conflitos
com mais tolerância e com mais sabedoria, podendo aprender com eles.
Daí resulta que nós, os presidentes das quatro sociedades do Rio de Janeiro
estamos trabalhando juntos. Já combinamos que todos os eventos
nacionais e internacionais serão feitos em conjunto, divulgamos entre nós
toda a nossa atividade científica. Nós temos uma logomarca das quatro
sociedades. E estamos começando a aprender que o que foi divisão, que
teve um desdobramento histórico talvez não desejado no primeiro
momento, pode hoje ser entendido como uma vantagem, porque o Rio de
Janeiro hoje abriga um terço das sociedades de psicanálise do Brasil. São
doze sociedades e nós somos quatro. Um evento nosso começa com o apoio
de quatro sociedades componentes. Graças a isso, nós estamos agora, no
final do ano, fazendo um evento também de comemoração dos cento e
cinqüenta anos de Freud, com o Projeto Capsa, que convida analistas de
outras regiões para a nossa, e nós podemos convidar três pessoas, porque
somos quatro sociedades. Então é hora de a gente aprender a restabelecer
as nossas relações e transformar o que foi um resultado inicialmente
desvantajoso em um resultado que pode se voltar a nosso favor, que pode
resultar em uma outra forma de se apresentar para a nossa sociedade e
para a comunidade em geral, e que pode facilitar o intercâmbio, como já
vem acontecendo entre nós, psicanalistas da IPA. E voltar a entender aquilo
que nos une, porque todos nós somos analistas da IPA, como um selo de
qualidade, que é o que nós precisamos. E aí eu concordo com o Alexandre,
que precisamos defender a nossa formação. Nós temos um selo de qualidade,
sabemos que tipo de formação é essa que nós oferecemos e isso precisa
ficar mais claro para o público em geral. Fazemos eventos com uma
seriedade e com uma qualidade, que fazem parte da nossa tradição. E a
gente vem estabelecendo entre nós essa relação mais harmônica.

Jane Kezem – Ouvi o José Alberto falando sobre crise, crise da


psicanálise, crise da formação, enfim, crise da nossa prática. Acredito que
temos que estender isso, no sentido em que o mundo está vivendo crises

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

absurdamente violentas. Estamos diante de um mundo agora diferente


da época dos nossos precursores. Hoje temos medo até mesmo de viajar,
de fazer turismo. É preciso repensar com assiduidade o nosso viver, o
nosso lidar com esse mundo. Se o mundo muda a cada momento, a
psicanálise vai ter que acompanhar essas mudanças e mudar a maneira
de ver e de abordar suas questões. Estamos em uma crise absolutamente
impensável há alguns anos atrás, de guerra e violência. Voltando à pergunta
a respeito da formação, pergunto, como é que podemos oferecer o mesmo
modelo de formação que foi idealizado em 1920? Continuar o mesmo
padrão seria uma mesmice. Kahtalian chamou a atenção de que os
pacientes que nos chegam são pacientes que estão lidando com o mundo,
com a vida, de modo completamente diferente de quando a psicanálise
surgiu. É preciso também pensar a crise em vertentes diferentes. A crise
provoca mudanças. Se não houver crise, também não mudamos, nos
acomodamos. Sobre a questão dos pacientes que nos chegam hoje, isso é
muito interessante, porque que o analista também não é o mesmo de antes
e sua prática também muda, porque o paciente chega de outra forma, com
outra exigência, e nós vamos ter que ser flexíveis, permitir que o paciente
se apresente como ele é. E isso não é nenhuma novidade. Os diversos
autores tradicionais descobriram isso e nós estamos redescobrindo agora.
Podemos ler isso em Freud, em Ferenczi, Winnicott, Bion... Nos colocamos
à disposição do paciente, para que ele faça uso da nossa pessoa e nós
possamos traduzir isso. Cláudio falou sobre o ‘em nome’: ‘em nome’ da
psicanálise se construíram maneiras de formar nossos psicanalistas e vimos
também que, em nome da psicanálise, engessamos a psicanálise,
engessamos a formação. Mas, enfim, a psicanálise nos ajuda a descobrir o
mundo, descobrir a nós mesmos. É uma aventura incrível que nós,
psicanalistas, conhecemos bem. E, no entanto, muitas vezes ‘em nome’
da psicanálise, a gente se engessa e invertemos, exatamente, o que foi a
grande descoberta de Freud, tornando-a uma formação estéril e sem
significado. Os nossos alunos precisam experimentar essa visão de mundo.
Sobre pesquisa, penso ser um problema para a psicanálise, porque, na
verdade, a psicanálise é uma experiência emocional. Havemos que
perguntar que tipo de pesquisa poderia ser aplicada à experiência
emocional ? Abre-se aí uma longa discussão.

Cláudio Campos – As ponderações de todos os colegas aqui são


absolutamente corretas. Vou tratar da questão institucional, porque me
sinto mais à vontade, porque é um assunto que estudei muito. No meu

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

entender, não tem novidade alguma o que está acontecendo na instituição


psicanalítica. É igual às outras instituições. Para dar um exemplo histórico-
biográfico e religioso, vou lembrar da época dos apóstolos, em que eles
reclamaram com Jesus que outros estavam pregando em nome dele, que
não os escolhidos. Jesus, muito sabiamente, responde o seguinte: quem
não fala contra nós, fala a favor de nós. E, na verdade, a psicanálise vive
esse mesmo sentido de modelo institucional. A igreja, como sabemos, se
subdividiu em múltiplas faces, mas essa idéia central permanece. A divisão
não é o problema; o problema é qualificar a institucionalização. E, nesse
ponto, eu estou de acordo com o Kahtalian, quando diz que nós temos
que melhorar, cada vez mais, o modelo de formação das sociedades ligadas
à IPA, porque o que pode afetar a psicanálise não é a divisão, porque ela
tende a cair no nada, quando cai na vulgarização. Na verdade, o que não
pode cair na vulgarização é a formação psicanalítica das sociedades da
IPA. Temos que manter essa qualidade, que foi a essência do trabalho
analítico inicial, da sua continuidade, da sua proliferação, em todos os
períodos de dificuldades apontados pelo José Alberto e pela Jane,
corretamente. Mas esse momento institucional me parece de uma riqueza
ímpar, tão ímpar que, no Rio de Janeiro, faz com que nós quatro estejamos
unidos em vários eventos, quando nós mesmos nos dividimos. Isso é um
exemplo riquíssimo de que estamos interessados em preservar a
psicanálise. Temos concepções institucionais diferentes, mas estamos
interessados na mesma ciência, no mesmo modelo desenvolvido por Freud,
com as mais diversas versões. Quiçá, avancemos nisso para possibilidades
maiores. Essa é a minha esperança e é nesse sentido que eu estou aqui
dando este depoimento. Quanto à questão da regulamentação da
psicanálise, acho que é impossível. Pode se chegar à regulação, porque a
psicanálise não é apreensível por regras como qualquer ciência. Ela envolve
tantos aspectos de várias ciências, que ela não pode ser apreendida por
uma regulamentação estatal. O Estado é ideológico e no momento em que
a psicanálise for regulamentada pelo Estado, ela terá que assumir a
ideologia do Estado. Isso é o que impede a regulamentação da psicanálise.
Já a regulação, para que os profissionais de diversas instituições tenham
algum valor, talvez seja possível. Mas o modelo da IPA foi construído
exatamente fora da regulamentação das instituições societárias e do Estado.
E podemos observar que, historicamente, onde surgiram Estados
autoritários, as sociedades psicanalíticas foram eliminadas, regulamen-
tadas ou não. E por que foram eliminadas? Porque a psicanálise não
convive com o Estado autoritário, porque ela defende a essência da

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

liberdade do homem e quando ela defende a essência da liberdade do


homem, defende a essência do pensar. O Estado autoritário conspira contra
o pensar. Então, acho que isso tudo faz parte de uma crise da humanidade
e de uma crise institucional de extrema riqueza, e meu grande prazer é ver
que nós estamos, com todos os nossos conflitos aqui no Rio, aproveitando
essa oportunidade para pensar a nós mesmos e pensar os nossos modelos,
porque os nossos modelos são absolutamente melhores do que os
anteriores. Nós temos uma formação diversa no sentido de que
aprendemos várias teorias, várias correntes. Os analistas de hoje que estão
se formando têm uma oportunidade muito maior de aprendizado. A
qualificação é muito mais ampla e muito mais exigente sob vários aspectos.
Isso é que vai dar ao trabalho analítico a profundidade e a necessidade
que ele tem permanentemente de se redescobrir. Essa é uma situação
apontada pelo próprio Freud quando diz que mudou seus próprios
conceitos. Até no Futuro de uma Ilusão, que eu estava relendo, ele diz
que afirmou uma coisa, que ele não afirma. No final do trabalho, ele muda
o conceito sobre o que ele, no início, aponta como inteiramente equivocado,
que era o problema da religião, que ele depois diz que a verdade da religião
não está na situação externa, mas está no seu processo histórico e reafirma
de uma outra maneira o que ele tinha afirmado anteriormente. E isso é a
psicanálise. A psicanálise tem que descobrir o homem, cada vez mais,
diferente na sua essência. Isso é um trabalho hercúleo, e a fidelidade a
isso é que foi mantida. Foi criada pelo Freud e mantida pela IPA. Essa
redescoberta e essa luta não têm fim, porque é a luta do próprio homem
para ser melhor. Daí o processo civilizatório ser sempre cheio de
armadilhas para tudo o que é criativo, modificador e transformador dentro
da psicanálise. É extremamente difícil e, com tudo isso, nós estamos aqui.
Isso é uma grande vitória e me parece um passo enorme, o mesmo passo
gigante que Freud, ao entrar nos Estados Unidos, e apesar da aclamação
que já estavam fazendo a ele, diz: ‘eles não sabem que estou trazendo a
peste’. E ele tem razão. Os Estados Unidos é onde tem o maior número de
sociedades e a maior crise da psicanálise hoje, porque o processo
institucional deles é muito complexo, muito fechado e questiona a
psicanálise todo o tempo. E é por isso que as outras terapias são um recurso
do povo norte-americano como expediente de alívio e a psicanálise é um
expediente de consciência, de transformação. Essa é uma divisão
fundamental. As psicoterapias que aliviam estão aí, diversas na praça. Nos
Estados Unidos, um sem número. No entanto, a psicanálise é uma opção
de transformação, de visão interna do sujeito como ser. Esse tipo de

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

problema é o que nós estamos enfrentando, em profundidade, em diversos


aspectos. E estamos conseguindo uma vitória, lutando para que esse
momento seja de riqueza. E acho que ele é de riqueza. Acredito que esse
Colóquio Internacional que aqui acontecerá, enfatizará isso. Acho que esse
é o problema central. Nós estamos contribuindo para essa psicanálise
dentro da IPA ter maior profundidade, maior qualidade, e exigir ainda
mais que o ser seja redescoberto segundo os nossos parâmetros, que estão
sempre em mutação, em pesquisa e em desenvolvimento.

Alexandre Kahtalian – Essa qualidade do pluralismo é uma vanta-


gem para nós, sul-americanos, porque o que acontece é que em outros
países isso não se dá. Você não tem essa pluralidade que o José Alberto
falou e que aqui, em nossas sociedades e em outras da América Latina,
colocam para a pessoa que procura formação. Isso é uma vantagem
extraordinária. E essa vantagem é alguma coisa que nos diferencia da
Europa e dos Estados Unidos. Contudo, embora exista essa pluralidade, o
fato é que não temos ainda um grande autor brasileiro. Se formos olhar
mesmo, temos muitos nomes de categorização importante dentro da
psicanálise, mas em um âmbito mais restrito. Um grande nome capaz de
ultrapassar barreiras européias ou americanas, nós ainda não constituímos.
É uma coisa com que a gente deve se preocupar, porque ela está muito
presa a um certo momento de colonização de idéias. Nós importamos muito
as idéias, mas não desenvolvemos tanto as nossas. O movimento da
psicanálise se dá pelo movimento de idéias. Se você pegar Freud, vai ver
que ele fala que o primeiro momento da psicanálise é o da descoberta do
inconsciente. Onde é que estava o inconsciente? Era o que se procurava
nos pacientes. Que coisa o inconsciente do paciente tinha? E então veio
Freud - o segundo movimento -, em 1923, com o Ego e o Id. O Ego é
colocado como o grande ator da cena psicanalítica. E depois vem o
mecanismo de defesa, área livre de conflito, etc. Tudo traduzindo idéias
que foram vindo com o movimento psicanalítico, que era o movimento
das idéias. Isso ocorre com mais freqüência lá fora e não tanto aqui. Por
outro lado, vivemos um momento muito bom, fértil, porque temos na IPA
um presidente brasileiro. Por muitos anos nós não vamos ver isso, e esse
é o momento de unir forças, de fazer com que a psicanálise reflita mais o
movimento brasileiro de expansão. Há muitas dificuldades. Não
publicamos muito no exterior, não vamos e não falamos muito no exterior.
Isso ainda está incipiente aqui entre nós, mas alguma coisa está
começando. Estamos vivendo um bom momento e devemos aproveitá-lo

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

no sentido de unir forças, de fazer com que a experiência psicanalítica do


Rio de Janeiro volte a ter uma força muito grande.

José Alberto Zusman – À medida em que a gente vai se dando conta


da nossa importância, do valor das nossas instituições, podemos somar
forças para conseguir criar conjuntamente eventos que sejam benéficos à
psicanálise. Tivemos agora na Fepal uma reunião de presidentes, uma
representação fantástica. Pela primeira vez nos demos conta da nossa
grande participação quantitativa na Fepal. Somos muitas sociedades, temos
todo um trabalho de anos, que deve ser de certa forma revisitado
constantemente e movido para diante. A gente pode ousar mais, até no
sentido de dividir com nossos colegas publicamente os nossos pensamentos
e fazendo isso também através de trabalhos. Nós temos um presidente
brasileiro, mas não é só isso. Não me lembro de outra época com tantos
trabalhos brasileiros publicados no International Journal. Não há um
volume do International Journal que não tenha, pelo menos, um trabalho
de um brasileiro, o que é uma marca. Não é só o presidente brasileiro que
tem uma projeção internacional. Eu acho que nós também estamos
sabendo aproveitar esse momento para mostrar que existe uma psicanálise
séria, consistente, há muito sendo feita no nosso país. Isso, a médio e
longo prazos, nos coloca com a possibilidade de um trabalho mais próximo
dos nossos pares de outras regiões. É um momento riquíssimo que vivemos
do ponto de vista da nossa criação. E quanto mais nós pudermos ter a
noção da nossa importância, não só do ponto de vista político, mas da
nossa importância criativa, mais vamos poder ousar, vamos poder dividir
com os colegas o que nós, muitas vezes, vivemos, de forma individual, nos
nossos consultórios. Vejo isso como um processo facilitado pela existência
de um presidente brasileiro na IPA, mas esse processo não começa com
ele e espero que não termine com ele também. Espero que, daqui para
diante, consigamos mais espaço, consigamos mostrar o nosso pensamento,
sempre percebendo que o que nós estamos fazendo é um trabalho de boa
qualidade. A pesquisa sempre esteve presente como uma das questões da
psicanálise. Freud já definia uma das ações da psicanálise em termos de
pesquisa psicanalítica. É verdade que o mundo foi criando uma
metodologia, quer dizer, a ciência, entendida como tal pelo mundo ao
longo da nossa época, foi desenvolvendo uma metodologia de pesquisa,
que é uma metodologia baseada em evidências do plano da consciência.
Essa é uma questão muito difícil que temos que enfrentar. Nós não
podemos abrir mão da nossa identidade psicanalítica para fazer pesquisa.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Nós não concorremos com colegas que fazem pesquisa no campo da


consciência. Tentar mostrar que nós temos uma produção semelhante,
exatamente comparável a colegas que trabalham no campo da consciência
é sempre uma armadilha muito perigosa para a gente, porque esse é um
campo com o qual a gente trabalha também, mas o que nos diferencia é
outro campo, o do inconsciente. Estamos engatinhando dentro do campo
de pesquisa, principalmente pela urgência que sentimos de aproximação
com pares de outros campos do saber. A sedução maior é que possamos
nos mostrar tão iguais aos outros para sermos reconhecidos, que nós
deixemos de contemplar o que é fundamental para a gente, que é a nossa
diferença. Penso que nós temos que avançar em pesquisa. A pesquisa tem
que ser desenvolvida como sempre foi nos nossos consultórios. Devemos
usar o espaço universitário para poder desenvolver projetos, mas sem abrir
mão daquilo que nos é muito particular. Não acho que a psicanálise possa
ser ensinada nas universidades como é nas sociedades. A gente tem que
fazer adaptações. Na Argentina, por exemplo, vemos a criação de uma
universidade psicanalítica com formação à distância. Não se pode
desprezar esse caminho. Temos que explorá-lo, mas temos que estar cientes
do risco que se corre, como em todo novo caminho explorado. O funda-
mental é que nós temos um estudo sobre nós mesmos, que não pode ser
exigido de um ensino universitário. Isso diz respeito a um modelo
psicanalítico. Na Universidade, temos que fazer com que o nosso pensa-
mento esteja presente, mostrando, inclusive, o que é necessário mas que
não pode ser contemplado totalmente no meio universitário. Não podemos
ficar de fora, porque temos uma visão de mundo e uma percepção dos
processos humanos que não podem ficar fechados dentro das nossas
sociedades. Mas também não se pode sair de um extremo para o outro e
entender que um psicanalista pode se formar através de cursos teóricos
sem uma boa análise pessoal, sem um trabalho de investigação criterioso,
que é o que faz parte do nosso modelo de formação. E existem saberes
novos que estão a nosso favor. As neurociências representam um campo
do saber que pode conversar conosco. Não quer dizer que a neurociência
vá se tornar psicanálise ou que a psicanálise vá se tornar neurociência,
mas quer dizer sim que, pela primeira vez, através dos recursos da
neurociência, podemos contemplar o cérebro no seu funcionamento
normal. Um dos grandes ganchos da psicanálise foi entender que as
principais questões humanas não residem na patologia, mas estão
contempladas no funcionamento do homem, do ser humano normal, com
as suas dores, suas angústias. A neurociência é um campo novo do saber

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

que guarda, até certo ponto, uma grande afinidade com algumas questões
que a psicanálise levantou há muito tempo, apesar de uma sistemática
diferente da nossa. Agora podemos encontrar um par para dialogar de
uma maneira mais franca, mais próxima, e que nos recebe também porque
nós temos as teorias que eles precisam para as pesquisas que fazem. Então,
são parcerias. Essa, por exemplo, é uma parceria moderna, atual, que
aponta para o futuro, e que é muito interessante para o saber psicanalítico.

Jane Kezem – O José Alberto estava falando, em outras palavras,


que nós, psicanalistas, não podemos nos fechar nesse reduto institucional,
nas nossas Sociedades. Nós temos que nos expor, trocar conhecimentos,
discutir. Envolvermo-nos com outros saberes, questionar, sermos
questionados, senão a psicanálise torna-se um tabu. Não sei se a Neuro-
ciência é tão nova assim ou se ela, na verdade, foi retomada. Bem, isso é
uma longa discussão. Sem dúvida nenhuma, em qualquer escolha que
façamos, temos que buscar qualidade. Quanto à questão da formação, acho
que não só a formação psicanalítica, como também a de outras áreas, foi
evoluindo, se ampliando. Os alunos são jovens e os jovens são sempre
questionadores e ainda bem que o são. Questionam, criticam que o ensino
não está bom, que a nossa formação não é boa, mas hoje eles têm uma
formação que realmente evoluiu e insistimos em aprimorar.É sempre nosso
compromisso questioná-la. Nosso papel é estimular os alunos a desen-
volver o interesse pelo conhecimento mais profundo, mais amplo,
despertar neles a curiosidade. Tem muita gente boa em outras formações,
que não são as nossas, da IPA. Nós não podemos também querer tomar,
para nós mesmos, o estandarte do melhor ensino e aprendizado. Sermos
os detentores do saber. A nossa formação é de qualidade; somos muitas
vezes criticados pela exigência, atribuindo-se a ela a razão da queda na
busca pela nossa formação. Mas devemos continuar investindo no ensino
de qualidade. Vamos perseguir sempre o aperfeiçoamento e o estímulo.
Temos que estimular não só os alunos, mas também os nossos membros.
E agora que estamos aqui, os quatro presidentes do Rio de Janeiro, acredito
que temos que buscar um estímulo mútuo. Estamos diante de uma
oportunidade ímpar. Alguém falou em ousadia. Acho que ousei em buscar
intercâmbio entre as sociedades, tendo como objetivo fortalecer a
psicanálise do Rio de Janeiro. Acredito que este é um momento histórico
importantíssimo e nós não podemos perder essa chance. E os presidentes
acolheram muito bem isso. Minha gestão termina no final do ano, mas eu
espero que isso continue. E aí, estou provocando os que vão continuar

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

presidentes no ano que vem, para que não deixem esmorecer esta iniciativa,
buscar o encontro. Claro, nós temos muitas arestas, temos muitas feridas
abertas ainda, mas vejam o que nós já conseguimos. Nós nunca
imaginamos, até pouco tempo atrás, que pudéssemos fazer eventos juntos,
como fizemos e vamos continuar a fazer. Sei que existem críticas, e os
meus críticos estão aí. Não importa, sempre haverá crítica. Nós temos é
que continuar essa batalha iniciada no ano passado. E está havendo um
movimento muito grande também com a Fepal. A Fepal está muito
mobilizada, particularmente, nesse sentido de trocas. Não podemos perder
essa oportunidade de nos entrosar cada vez mais com os outros latino-
americanos, quer dizer, não é só no Rio de Janeiro. Durante o Congresso
Internacional nos reunimos, presidentes brasileiros, surgindo dali a idéia
de conversarmos sobre nossas instituições, assim como queremos também
fazer com a América Latina, conhecermo-nos mutuamente. No Brasil, as
diversas formações são diferentes em muitos aspectos. E, a partir dessas
percepções, nos interessamos por trocar informações sobre nossos modelos
de formação, para nos conhecermos melhor. Queremos conhecer não só
como é a formação na França, na Inglaterra, mas também as de nosso
país. Por ultimo, gostaria de dizer que considero importante estimular
este movimento entre nós do Rio de Janeiro para reforçar a psicanálise
no nosso estado, para unir forças, porque nós perdemos espaço.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Sobre a prevenção da
transmissão transgeracional
da guerra, do ódio e da violência:
uma perspectiva psicanalítica*
Cláudio Laks Eizirik**

Em 2006 comemora-se o aniversário de 150 anos de Freud. É um


privilégio e uma honra, neste ano especial, dirigir-me a vocês hoje, em nome
da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Gostaria de apresentar
algumas contribuições psicanalíticas sobre uma das mais desafiadoras
questões que atualmente enfrentamos. Também gostaria de homenagear
as Nações Unidas por seus bravos esforços ao enfrentar estas questões
complexas e outros desafios similares – tanto na guerra como na paz.
Entre as muitas contribuições de Freud para o entendimento da mente
humana e seu comportamento, gostaria particularmente de enfatizar seus
insights sobre os conflitos internos entre amor e agressividade, e sobre as
formas pelas quais esta tensão produz poderosos mecanismos mentais
inconscientes, que podem conduzir a diferentes expressões de ódio,
violência e guerra. Essa luta interna é significativamente influenciada pelas
primeiras experiências de convívio, que contribuem para gerar agressi-
vidade ou, alternativamente, para o desenvolvimento e aumento da
capacidade para o amor e consideração pelos outros.

* Texto, originalmente em inglês, apresentado na Organização das Nações Unidas, em 19 de


outubro de 2006, num evento comemorativo dos 150 anos de Freud. Tradução de Loretta
Passaro. Revisão da tradução: Elie Cheniaux. Revisão final do autor.
**Presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA); membro efetivo da Sociedade
Psicanalítica de Porto Alegre; professor-adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Isso significa que um processo contínuo de crescimento mental começa


com a qualidade do relacionamento mãe/bebê, junto com a presença da
figura paterna (ou equivalente), essencial ao apoio no desenvolvimento
do princípio de realidade. A família e a comunidade, a seguir, dão suporte,
estimulam e ajudam na capacidade do indivíduo de pensar independen-
temente e transformar sentimentos primitivos em expressão de relações
civilizadas com os outros
Esse processo de desenvolvimento da subjetividade requer, idealmente,
condições internas e externas ótimas ou no mínimo adequadas. Quando
estruturas sociais democráticas e abertas estão ausentes, danos signi-
ficativos podem ocorrer.
O tratamento analítico de vítimas do holocausto, ditaduras, situações
de abuso ou diferentes expressões de violência demonstra como esses
acontecimentos traumáticos são psiquicamente integrados e represen-
tados. Frequentemente há lutos não resolvidos e incapacidade de simbo-
lizar. Essas deficiências no processo mental podem ser, e freqüentemente
são, transmitidas através de gerações, usualmente costumando emergir
novamente em gerações subseqüentes.
Uma importante distinção tem sido demonstrada entre transmissão
psíquica entre as gerações (intergenerational) e através das gerações
(transgenerational). A transmissão entre as gerações refere-se à trans-
missão consciente do conteúdo e processos mentais tais como identificação
e fantasias, as quais são organizadas dentro da história familiar e herdadas
pela geração seguinte, resultando num efeito estruturante sobre o aparelho
mental. A transmissão através das gerações ocorre inconscientemente e é
transmitida para futuras gerações. Ela envolve conteúdos mentais que estão
dissociados e não são simbolizados através de palavras ou histórias. Assim,
afetos primitivos e não integrados resultantes de um trauma, dor e perda
não são elaborados e não são subjugados. Este tipo de transmissão perma-
nece encapsulada e atua como uma intrusão violenta na representação de si
próprio de um indivíduo, sendo também transmitida para futuras gerações.
Quando mentiras e delitos são percebidos como valores socialmente
sancionados dentro da cultura, por exemplo, as diferentes formas de
preconceitos manifestadas através do racismo, da falta de respeito por
minorias, como mulheres, idosos e imigrantes, isto pode produzir
transmissão através de gerações. Quando é a figura paterna ou a materna
que provê a mentira, torna-se impossível desenvolver o aparelho mental
e a noção de subjetividade, assim como estabelecer valores sociais
apropriados.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Entre outras características, a psicanálise é uma disciplina cujos insights


podem fornecer uma visão profunda e crítica da cultura e sua saúde mental.
A atual situação no mundo, com amplas áreas dominadas pela
pobreza, guerras étnicas, fundamentalismo religioso, violência urbana e
outras situações similares, produz trauma e violência que podem somente
contribuir para a transmissão de mais ódio e violência para as gerações
futuras.
Assim, o que podemos fazer para prevenir essa transmissão do ódio?
Do meu ponto de vista, a prevenção requer ações urgentes, particular-
mente direcionadas às crianças e suas famílias, onde essa violenta
transmissão se manifesta. Sem essas medidas concretas, podemos estar
produzindo os terroristas do futuro. Melhorar as condições básicas de vida,
saúde e educação, através de grandes investimentos em áreas pobres do
mundo, é um meio concreto e essencial de prevenir o desenvolvimento do
ódio, da guerra e da violência.
É igualmente importante denunciar o destrutivo comércio das armas,
e regular e conter os excessos da economia de mercado, de modo a
encorajar o convívio mutuamente respeitoso e colaborativo entre diferentes
culturas, que possam harmoniosamente e, acima de tudo, pacificamente
se desenvolver uma em direção à outra.
Informados pelo conhecimento analítico, sabemos que estabelecer
meios de reduzir a divisão social e a projeção do ódio são também impor-
tantes mecanismos para a coesão social. Isto requer encontrar meios para
implementar a difícil tarefa de ouvir o outro, seja ele o estranho, ou até
mesmo o inimigo. Freud evidenciou como esse “estranho” é de fato alguém
que representa uma parte de nós oculta e indesejável. Um bom exemplo
de ouvir o outro foi recentemente estabelecido na Fundação Baremboim-
Said, onde através da música crianças israelenses e palestinas aprendem
a ouvir umas às outras e a tocar juntas.
De uma perspectiva psicanalítica, entendemos a necessidade de
produzir novos sons, que somente podem ser ouvidos quando esforços
colaborativos reúnem diferentes pessoas com diferentes valores e precon-
ceitos com o objetivo de construir a tolerância e novas formas de trabalhar
juntas.
Como uma associação internacional cujos objetivos são o desenvolvi-
mento de uma disciplina científica e a manutenção de altos padrões de
formação analítica, a IPA nos últimos anos também criou novos comitês
para considerar e desenvolver nossa reflexão, através de conferências e
publicações sobre questões como terror e terrorismo, preconceito, anti-

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

semitismo, os efeitos psíquicos da exclusão social e o desenvolvimento


das crianças e adolescentes.
Nosso Comitê das Nações Unidas está também ativamente envolvido
na consideração de questões sociais através da colaboração com vários
setores da ONU. Os membros e candidatos da IPA não estão somente
dedicados ao trabalho analítico com o objetivo de reduzir a dor psíquica
dos nossos pacientes, mas muitos estão também mais amplamente
engajados na comunidade, em áreas como educação, psiquiatria, psicologia
e programas de prevenção e saúde mental.
A contribuição psicanalítica para a prevenção do ódio, da guerra e da
violência, assim, ocorre de duas formas. Primeiro, tratando pacientes cujas
mudanças psíquicas também produzirão transformações positivas nas suas
gerações subseqüentes, e, em segundo lugar, fazendo parte de atividades
ou iniciativas conjuntas onde podemos mostrar o quanto o ouvir de forma
aberta pode corrigir percepções distorcidas e aumentar a capacidade de
tolerar e se identificar com os outros.
Isto naturalmente não é uma tarefa fácil. É também uma tarefa que se
realiza entre as gerações. Compartilhamos da convicção de Freud de que,
apesar dos muitos desafios, a voz de razão é suave, mas nunca desiste da
tentativa de ser ouvida. Devemos todos nos unir tanto para ouvir como
para sermos ouvidos neste mundo incerto e imprevisível.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Freudam-se
Marcelo Madureira*

E o velho Sigmund Freud completou 150 primaveras. Sem recibo.


Milhares de psicanalistas do mundo inteiro esquecem por alguns
momentos as suas divergências e partem em romaria na direção de Viena.
Vão a pé. Carregam nas costas os seus pesados divãs, olhos rútilos,
transtornados de fé, caminharão meses e meses, atravessarão países,
oceanos e florestas – alguns insistem em dar uma parada em Paris para
homenagear o Lacan - para, ao final da jornada (no sentido estrito),
andrajosos, maltrapilhos e ofegantes, depositar a sua mobília de trabalho
na porta da Bergasse 19, onde assistia e clinicava o Pai da Psicanálise. Os
divãs empilhados formarão uma imensa pira votiva a qual o fogo sagrado
será ateado num sacrifício supremo de gratidão de todos aqueles que
honram o legado freudiano. Sem recibo.
Parece que foi ontem que me vi, pela primeira vez, em decúbito dorsal
num divã de analista. A psicanálise é um caminho sem volta. Quem decide
percorrer a sendas profundas e escuras do seu inconsciente está condenado
a uma busca de um auto conhecimento que não vai chegar nunca. Acho
que dei uma má noticia para quem começou na semana passada, mas, se
isso servir de consolo (também no sentido estrito do termo), eu conheço
algumas pessoas que tentaram a mesma coisa pela via proctológica. Mas
eu acho que deve ser muito mais doloroso.
Já se passaram 26 anos desde aquela tarde primeva em que decidi
atravessar os umbrais misteriosos da minha neurose. Não conto o tempo
de psicoterapias anteriores. Faltam, portanto, nove anos para eu dar
entrada na minha aposentadoria pelo INSS. Desde então faço análise com

* Do grupo Casseta e Planeta.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

a mesma analista. Assim como Deus, sou fiel. Na verdade, quando


completamos 20 anos de terapia analítica, sugeri me dar alta, mas a reação
foi tremenda. Ela ameaçou botar advogado, exigiu pensão e disse que só
permitiria eu me encontrar com o meu inconsciente nos fins de semana e
quinze dias nas férias. Desisti.
Nestes anos todos acompanhei o desenvolvimento da psicanálise e dos
analistas. Até me casei com uma, mas não com a mesma que faz a minha
análise. Seria uma interpretação muito óbvia, não daria nem para três
sessões.
Assisti as sociedades psicanalíticas se multiplicarem e se dividirem mais
do que igreja evangélica, que por sinal são mais tolerantes e menos
dogmáticas. Eu sobrevivi a Peste Lacaniana que ainda assola parte da
Humanidade. Desenhei matemas incompreensíveis e fui obrigado a
incorporar o tempo lógico à minha vida sexual.
Mas estamos aí, perplexos como sempre, mas praticantes devotados
daquela que é a “aeróbica da alma”. Em busca do que? De explicações.
Mas que tipo de explicações? Não sei. Em todos estes anos, foram tantas
sessões que já me esqueci. Mas deve ser uma bobagem. Algo assim como
qual é o sentido da vida. Com recibo.

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ARTIGOS
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Psicanálise e Neurociência.
Uma Perspectiva Interdisciplinar
e Evolucionária.
Ernesto La Porta*

Resumo
O trabalho aborda o tema de uma forma interdisciplinar e
evolucionária. Parte de conceitos sobre um ego incipiente em suas
relações com mecanismos primitivos de introjeção e projeção. Estes
foram formando um mundo interno com seus objetos internos e
um mundo externo com seus objetos externos. Isso no decurso da
evolução formou os órgãos dos sentidos e um órgão de percepção
sensorial – a consciência como “núcleo do ego” em suas conexões
com o córtex cerebral. Tópicos diversos são abordados com referên-
cia à relação cérebro mente, através da plasticidade cerebral, da
neurogênese e do aprendizado, formando interconexões encefálicas
através de sinapses e circuitos utilizáveis pelo ego de maneira
inconsciente e, também consciente, em suas múltiplas relações.
O trabalho destaca trechos da obra de Freud Sobre Afasia e suas
conseqüências sobre a Psicanálise.

Abstract
The work boards the theme (subject) in an interdisciplinary and
evolutionary way. Part of the concepts is about an incipient ego
in his relations with primitive mechanisms of introjections and

* Psicanalista, Membro Efetivo e Didata da SPRJ.

35
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

projection. These construct an intern world with their intern


objects. This happened in the route of evolution formed the sensitive
organs an organ of sensorial perception- the conscience like an
“ego’s nucleus” in their connections with the brain’s cortex.
Different topics are boarded with reference to the relation brain
mind through brain’s plasticity of neurogenesis and learning,
forming encephalic interconnections through synapses and circuits
usable by the ego in an unconscious way and conscious too, in their
multiples relations.
The work detaches peaces of the Freud’s “On Aphasia” and their
consequences about Psychoanalyse.

Freud refere que o ego é antes de tudo e principalmente corporal, mas


que desta parte somática, uma área em contato com a realidade externa,
sofreu transformações adquirindo condições psíquicas. Este contato se
processou, primitivamente, através de mecanismos de introjeção e
projeção, isto é, mecanismos de um ego incipiente, incorporando
conteúdos do mundo externo e expulsando conteúdos internos sentidos
como maus. Estas condições foram promovendo um mundo interno com
relação de objetos internos e, ao mesmo tempo, processava um mundo
externo com seus objetos externos.
A Psicanálise que, desde as primeiras experiências de Freud, foi
assumindo enorme desenvolvimento teórico e clínico, aparentemente não
teve a preocupação de pensar sobre o que ocorria entre o cérebro e o
psíquico, mas Freud era neurologista e estava muito integrado no meio
cultural e científico de Viena. Nestas condições, ao dar início a uma técnica
de tratamento com características psicológicas, procurou redigir Uma
Psicologia Para Neurologistas a qual depois transformou em brilhantes
páginas de Uma Psicologia Científica. Um Projeto que não conseguiu
terminar, aparentemente desistindo de levá-lo adiante, mas, como tem
sido considerado, perpassa através de sua obra, como um fantasma que
reaparece em muitos momentos. Compreende-se, em parte, o que deve
ter ocorrido com Freud em função de sua nova concepção de uma técnica
de tratamento, de características diferentes, num crescendo brilhante,

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desenvolvendo-se a partir da hipnose, desdobrando-se cada vez mais no


uso de uma forma, como a conhecemos até hoje.
Na atualidade está acontecendo o contrário, pois está havendo uma
mudança no sentido de saber sobre o cérebro, no decurso de condições
mentais. Ao mesmo tempo, teorias buscando relações entre o cérebro e
condições psicológicas estão em grande destaque.
Um forte interesse nesse tema ocorre entre psicanalistas e uma pesquisa
sobre Neuro-Psicanálise está em desenvolvimento, numa busca de conhe-
cimentos entre Psicanálise e Neurociência. Karen Kaplan Solms e Mark
Solms usando o método de Aleksandr Romanovich Luria, de correlação de
lesões cerebrais com o resultado de exploração psicanalista, apresentam
diversas contribuições referentes à Neuro-Psicanálise. Entre psicanalistas
brasileiros, Victor Manoel Andrade (2005), Elie Cheniaux (2005), Carlos
Doin e outros, têm publicado trabalhos sobre temas de Neurociência.
Sabemos com Freud, em suas especulações e com a embriologia, que
um tecido muito sensível e de fácil mudança aos estímulos externos e
internos (plasticidade), para se proteger do excesso desses estímulos,
invaginou-se, mas prosseguiu em contato com essa mesma realidade, por
intermédio de canais de comunicação. Estes foram, no correr de anos luz,
se organizando e processando informações do mundo externo para o
mundo interno e deste para o mundo externo (introjeção e projeção), o
que, no correr da evolução, se constituíram nos órgãos dos sentidos,
situação que contribuiu para formar uma organização com a função de
percepção e sentir, recebendo informações, do meio externo e do próprio
corpo, estruturando-se como consciência. Esta organização constituindo-
se como núcleo do ego, situada no córtex cerebral, região mais evoluída
do encéfalo, que em suas conexões com a consciência e com o ego, forma
uma condição de grande importância na relação mente corpo e com o
mundo externo.
Excitações para o corpo e para o mundo externo são efetuadas pelo
ego, que tem acesso à motilidade e, como dissemos, com sua capacidade
de percepção pode efetuar atos para a vida de relação.
O id, considerado por Freud como o reservatório dos instintos, participa
como o grande produtor de energia para o ego, o qual se sente ativado em
suas relações com a realidade externa e interna.
Paula Heimann referiu-se ao ego como comandante, em função da
capacidade desta instância de decidir e ordenar condutas. Eu prefiro ver o
ego como administrador, coordenador, executivo, representante e partici-
pante do self, nas relações com o mundo interno e externo.

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Sabemos que o ego nem sempre executa com acerto e, freqüentemente,


falha em suas funções, geralmente decorrente de conflito e responsável
por patologias.
Entre o id e o ego, é de grande importância assinalar que não existe
uma linha marcante, separando essas duas instâncias, a não ser por
motivos de repressão ou outros mecanismos de defesa. Ao contrário, há
uma relação de maturação, como denominam os psicanalistas da psicologia
do ego, ou continuidade genética no dizer do grupo kleineano, o que faz
referência a uma condição muito importante, consistindo numa íntima
relação entre o id e o ego no microcosmo, ou entre o corporal e o psíquico
no macrocosmo, como temos referido, pondo em evidência a presença de
genes na continuidade de um nível corporal para uma organização com
potencial psicológico, mas, que continua com elementos corporais, as duas
condições numa colaboração para estados de evolução e crescimento com
capacidade de gerar novos estados evolutivos para a cultura e tecnologia,
por intermédio do cérebro e seus prolongamentos, medula e nervos
periféricos, que formam o sistema neurológico de relação entre o mundo
interno e o mundo externo.
A mente, segundo Freud, é formada pelo id, o ego e o superego, em
contato com a realidade externa, interna e, sempre acrescento, por
intermédio do cérebro, a córtex, principalmente, que é a parte, hierarqui-
camente, mais elevada do encéfalo. Devemos lembrar o fato de que id e
ego são expressões do latim, usadas pelos tradutores do alemão Das Ich
Und Das Es para a coleção inglesa The Standard Edition com referência
ao corporal, ao psíquico e ao superego, as três expressões juntas corres-
pondendo ao vocábulo inglês “self”.
Os estímulos externos e internos geram, em função da plasticidade
cerebral e da neurogênese, células tronco multipotentes e neurotrofinas
formam novos neurônios, novas sinapses e circuitos cerebrais, os quais
constituem conjuntos que processam dados e informações armazenados
no hipocampo, no sistema do olfato, na amídala, no córtex, em forma de
memória decorrente de aprendizado e a disposição do ego em seus funcio-
namentos e crescimento.
Considero de maior importância outros estudos psicanalíticos sobre o
ego e, neste sentido, cito alguns, como a concepção de Fairbairn sobre o
sabotador interno, posteriormente denominado por ele como ego antilibi-
dinoso e objeto rejeitante. Cito, também, os trabalhos de Hartmann sobre
o ego fora do conflito e o problema da adaptação e, entre outros, Joyce
Mac Douglas situando o ego como o diretor e personagem do teatro da

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mente e do corpo na Dramatis Personae de Fairbairn ou, como no livro


de Pirandello, Seis Personagens em Busca de um Autor, que tanto
procuram um autor ou um diretor, que pode ser o ego como pode ser um
objeto. Mas, principalmente, objetos internos procurando um ego, um
psicanalista, para na situação transferencial, interpretar a peça teatral do
mundo interno da mente e do corpo.
No decorrer de milhões (ou bilhões) de anos luz, num processo
repetitivo de aprendizagem e plasticidade, com armazenamento mnêmico,
o cérebro primitivo foi evoluindo para cérebros mais complexos chegando
à situação do cérebro como ele é hoje, em condições de acréscimo, como
assinalei, de neurônios novos e de novas conexões sinápticas, num
crescendo de formação de redes neuronais, organizando condições cere-
brais disponíveis pelo id, em sua relação com o ego e este em sua capacidade
de expansão no mundo cultural, num processo criativo, científico e tecno-
lógico em evolução. Condições afetivas poderosas também ocorrem, como
as diversas formas de religião, em expansão humanitária, mas podendo
se expressar, também, em termos destrutivos, como tem ocorrido em
guerras entre diferentes religiões e atentados terroristas, de grandes e
terríveis proporções.
Acrescento, neste momento, um fato muito importante que deve ter
tido grande influência num grande salto mutativo, refiro-me à ocorrência,
devido ao bipedalismo, que liberando as patas dianteiras do animal qua-
drúpede, transformando-as em membros superiores, os quais passaram
a ser usados em trabalho manual, por ambos os sexos e no colo para as
mães carregarem a cria. Penso que essa aquisição ajudou os machos na
coleta de alimentos, situação importantíssima na evolução, em conse-
qüência do aumento e qualidade do cérebro, em decorrência de uma
melhor qualidade de alimentação. Os membros superiores em suas novas
funções de produção e colo, isto é, o labor do macho pai, aconchego e
cuidado materno, foram potentes elementos que forjaram o ser humano
como ele é hoje, com suas qualidades e com suas dificuldades, pois esses
processos biológicos, psicológicos e sociais, pondo a criança em maior
contato com o corpo da mãe, contribuíram para o surgimento do complexo
de Édipo com todas suas conseqüências, dentre as quais, a origem do
superego, a introjeção da figura paterna, herdeiro do complexo edípico,
como afirma Freud, instaurando a consciência moral, através do sentimen-
to de culpa. Mas o vinculo corporal e afetivo entre o corpo materno e sua
criança, segundo Bowlby (1973), serve para reforçar estados emocionais,
entre a mãe e o filho, codificando-se em sentimento de auxílio, o qual

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gerando segurança, ao mesmo tempo promove dependência, que numa


condição dialética e de seleção pode proporcionar crescimento, situação
importante para o desenvolvimento do ser.
Engels diz que o trabalho transformou o macaco em ser humano.
Steven Mithen (1996), arqueólogo, em seu livro sobre a pré-história
da mente, diz que pesadas exigências recaíram sobre as mães, quanto a
suprir a energia necessária para o crescimento do cérebro através da
alimentação.
O antropólogo social Chris Knigth citado por Mithen, refere que as
fêmeas dos primeiros humanos modernos resolveram o problema das
crescentes demandas do cérebro de suas crias, explorando níveis até então
desconhecidos, do investimento energéticos dos machos, sugerindo que o
comportamento das fêmeas forçou os machos a fornecer-lhes alimentos
de alta qualidade obtidos pela caça, usando o recurso da “greve do sexo”.
Essa suposição identifica um contexto sócio instintivo que destaca um
importante papel da fêmea no sentido da humanização.
Este tema nos leva ao assunto do instinto e sua importância para a
Psicanálise e Neurociência.
De início, não se pode deixar de assinalar o problema da discussão
com relação ao vocábulo instinto em seu uso em Psicanálise, em decor-
rência da tradução do vocábulo alemão “trieb”, em seu uso em biologia e
em psicanálise.
Deve-se assinalar a destacada relação que Freud faz entre instinto e
estímulo, este atingindo a mente, frisando que certos estímulos, também,
podem afetar a mente acarretando o mesmo efeito do instinto, mas que
não são de ordem instintiva, como aqueles que procedem do mundo
exterior, citando raios de luz como exemplo. Lembro, novamente, o que
assinalei a respeito do papel dos estímulos externos e internos e mecanis-
mos do ego, introjeção e projeção, evoluindo para órgãos dos sentidos e a
consciência como órgão sensorial. Mas o instinto pode ser provocado pela
atração sexual, excitada por um objeto erótico externo. Instinto é a sensação
de necessidade que exige satisfação e a sua fonte é uma exigência corporal.
O instinto revela uma força situada entre o corpo e a mente. Recorde-se
que atribuímos ao id a capacidade de gerar instintos como fonte de energia
para o ego e este, assim estimulado e em contato com a realidade externa,
adquiriu o grande potencial psicológico no mundo interno e externo.
Freud, como se sabe, confere grande relevância aos estímulos sexuais
que estão em grande destaque na atualidade, no que se refere à relação
entre hormônios e o cérebro. (Este ano vai ocorrer na Holanda um

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congresso cujo tema principal é a relação entre cérebro e hormônios, sob


auspícios da International Society of Psycho Neuro Endocrinology).
Sabemos que a mulher quando grávida recebe estímulos do feto, ao
mesmo tempo que muda suas condições hormonais operando-se alterações
psicológicas que modificam sua conduta.
Kraft Ulrich, médico e colaborador da revista Geimst&Geist, refere
que o estrogênio não se limita a controlar a sexualidade feminina. O
estrogênio influi em diversas capacidades cognitivas tanto no homem
quanto na mulher.
Suzan Isaacs (1952) em seu trabalho A Natureza e Função da Fantasia
apresenta sua teoria sobre a evolução do instinto transformando-se em
fantasia inconsciente. Ela propõe o vocábulo phantasie para designar a
condição inconsciente diferente da fantasia consciente. Isaacs cita Freud,
quando ele refere que toda situação consciente tem um estágio preliminar
inconsciente que, somente em certas condições, tornam-se conscientes,
elas surgem diretamente de necessidades instintivas, ou em resposta a
estímulos externos atuando sobre impulsos instintivos, promovendo
expressões mentais e refere que a phantasie é o elo entre o impulso do id
e os mecanismos do ego. Reencontramos aqui a maturação do id para o
ego e a continuidade genética expressando a evolução do corporal para o
psíquico, decorrentes de impulsos gerados por genes.
Bion, em relação a esta questão da continuidade genética, esclarece
que a expressão elementos beta, usada por ele, representa a matriz mais
primordial, da qual se supõe surjam os pensamentos e elementos alfa que
representam o resultado da atividade executada pela função alfa sobre as
impressões sensoriais. Estes elementos não são objetos no mundo da
realidade externa, mas são produto da ação exercida sobre os sentidos,
transformando os elementos beta em elementos alfa, úteis para formar
pensamento oníricos, sonhos, mitos, preconcepções, barreira de contacto.
Bion esclarece que os dados dos sentidos são transformados pelo ego em
elementos alfa. Nessa exposição genética exposta em sua grade, Bion
prossegue referindo-se ao conceito que ele considera derivado da concepção
por um processo destinado a livrá-lo de elementos que o impediriam de
servir como instrumento na elucidação da verdade. Considera a seguir sobre
o sistema dedutivo científico que ele relaciona com a ligação lógica de um
conceito com outro e de uma hipótese com outra. Finaliza com idéias sobre
o calculo algébrico, concluindo sua exposição sobre a continuidade
genética, iniciada por elementos beta primitivos, terminando pelo mais
complexo, representado pelo cálculo algébrico.

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Acrescento mais uma concepção de Bion ao relatar o papel materno


na sua faculdade de reverie, uma capacidade intuitiva, criadora, produto
do amor da mulher pelo cônjuge e por seu filho, transmitida à criança
mesmo que esta não a compreenda. E Bion (1962) acrescenta: quero usar
o termo reverie somente a algum conteúdo que esteja relacionado com
amor ou ódio. Usando nesse restrito sentido reverie é aquele estado da
mente que é aberto para recepção de quaisquer objetos vindos do objeto
amado e por isto capaz de recepção de identificações projetivas da
criança, sejam boas ou más. Em resumo reverie é um fator da função
alfa da mãe e, complementando, acrescento: a função alfa é produto do
amor materno que promove a ordem depressiva, o amor, a partir da
desordem e desamparo esquizo paranóide. Neste momento cabe informar
mais um estímulo materno, trata-se da circunstância que a criança ouve a
voz da mãe como música, quando ainda não entende o que ela diz. Esta
vivência gera a canção de ninar e o sentimento inefável da música e nos
acompanha toda vida.
Já atendendo pacientes histéricas, usando a livre associação de idéias,
no sentido de livrar suas pacientes de sintomas, Freud escreveu uma
monografia intitulada Sobre Afasia (Martins Fontes Distribuidores,
Edições 70) na qual ele aborda o papel da associação de áreas corticais,
como responsável por muitos casos de afasia. Vejo esse fato como
antecipação acerca de conhecimentos sobre sinapses e circuitos neuronais,
pondo, também, esta atividade cerebral em conexão com a associação de
idéias no tratamento que estava sendo iniciado em sua clínica, nos
primórdios de uma nova forma terapêutica que vigora até hoje em sua
busca do desconhecido. Naquele tempo já despontavam suas pesquisas
sobre o inconsciente, este como um afásico que necessita falar, não só
sobre o reprimido, como sobre o inato. O corpo e a mente precisando usar
a linguagem como liberdade de um prisioneiro, como se expressa Armando
Verdiglione, comentando e prefaciando esse trabalho neurológico de Freud,
de que não há liberdade sem linguagem.
Freud diz que para a psicologia, a palavra é uma complexa repre-
sentação que se apresenta composta de elementos acústicos, visuais e
sinestésicos (recorde-se novamente o que foi dito, nesse trabalho, sobre a
importância dos órgãos dos sentidos na evolução do cérebro e formação
da consciência). Acentua que no caso de lesões orgânicas do aparelho da
linguagem verifica-se uma desmontagem do discurso. Penso que se pode
ver nestas idéias uma relação da colaboração entre o cérebro e o psíquico
na composição da fala e sua desorganização pela patologia, não somente

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por lesões orgânicas, mas como pode ocorrer nas parafasias, em momentos
de fadiga ou em certos estados emocionais.
Freud considerou que a linguagem no inconsciente está organizada em
forma de condensação e deslocamento, o que Lacan assinalou estar o
inconsciente estruturado em termos de linguagem, como metáfora e
metonímia. Esta linguagem se expressa na livre associação de idéias, em
forma de sonhos, lapsos da fala, sentimentos, emoções, falsas concepções,
condensadas e deslocadas em forma de conglomerados referindo-se não
apenas ao reprimido, mas ao inato. Tudo como um arquivo vivo exigindo
interpretação, buscando comunicação, como a esfinge no caminho de
Tébas ameaçando: decifra-me ou te devoro. Por esta razão percebe-se
que a hermenêutica é uma necessidade vital, uma exigência do inconsciente
para a liberdade e para a vida.
A análise da metáfora situa-se numa encruzilhada entre duas disci-
plinas: a retórica e a poética que, no dizer de Paul Ricoeur, têm dois fins
distintos: a persuasão no discurso oral e a mimese das ações humanas na
poesia trágica. Bem metaforisar, dizia Aristóteles, é perceber o semelhante
entre a identidade e diferença, destacando o papel da imaginação
produtora, que consiste perceber o semelhante no diferente e hermenêutica
como a emergência de um novo sentido. E o ponto mais importante desta
relação entre metáfora, inconsciente e a arte de psicanalisar, isto é,
entender a fala do inconsciente, é a referência à verdade ao ser captada
pela consciência, o insigth espontâneo ou decorrente de interpretação do
analista.
Mas Lacan ao considerar a metonímia também como linguagem do
inconsciente estava, outrossim, se referindo à importância do conteúdo e
continente, do signo ao significante, do físico ao psíquico, do modelo à
coisa, o que juntamente com a metáfora formam um todo procurando
comunicação.
Um outro aspecto de máxima importância, nesta monografia, diz
respeito à expressão concomitante, que consiste num paralelismo entre o
cérebro e o psíquico, considerado, por Freud, apenas como uma relação
de contigüidade, um processo paralelo ao fisiológico (a dependent
concomitant). Freud cita em inglês a expressão concomitante dependente
de Huglings Jackson, neurologista inglês, a quem Freud sentia-se muito
ligado. Freud define o correspondente fisiológico como algo da natureza
de um processo, a partir do qual se difunde por todo o córtex cerebral, ao
longo de vias particulares. Acrescenta que esta condição, permanece, no
córtex encefálico como uma modificação, com a possibilidade de

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recordação, mas que: é extremamente duvidoso que a esta modificação


corresponda também a algo de psíquico e que cada vez que é excitado de
novo este estado do córtex, o psíquico apresenta-se como imagem
mnésica. E comenta: é certo que não temos a mais pálida idéia de como
a substância animal esteja em condições de passar por tão múltiplas
modificações. Nesta altura há uma referência a Jackson, ao qual Freud
refere que, com grande agudeza preveniu contra a troca do físico com o
psíquico no processo da linguagem, em todos os estudos de enfermidades
do sistema nervoso, dizendo: temos de precavermos-nos contra o engano
que estados físicos nos centros inferiores se transformem em estados
psíquicos nos centros superiores... ou que uma idéia produza um
movimento. Vemos como Freud neurologista e neurocientista se identi-
ficava com as idéias de Jackson e as conseqüências desse fato em uma
concepção importante como veremos a seguir. Mas antes, numa carta a
Fliess, ele escreve: num ensaio sobre afasia “fui muito ousado medindo as
minhas armas com seu amigo Wernicke, como com Lichteim e Grashey,
não sem dar um pequeno toque no ídolo de Meynert.”, um contraste ou
ambivalência, de um lado uma submissão, de outro, um desafio aos ídolos
da escola de Viena.
Em 1938, em seu An Outline of Psycho-Analysis, na página157, (S. E)
Freud diz: Devemos assumir que existem processos físicos ou somáticos
que são concomitantes com os psíquicos e que necessariamente temos
que reconhecer como mais completos do que as seqüências psíquicas,
uma vez que algumas delas têm processos conscientes e paralelos a ela
mas outras não. Assim torna-se plausível ver neles a verdadeira essência
do que é psíquico.
Vemos neste momento Freud organicista, ainda pensando como
Jackson e dentro da ideologia fisicista de Viena.
Monah Winograd (2005) num artigo, faz uma revisão de trabalhos de
Freud, principiante em Viena, mostrando claramente a posição organicista
de Freud dentro da concepção da escola de Viena. Monah examina artigos
de Freud, um intitulado Cérebro, e outro sobre Histeria, ambos com data
de 1888 e depois o artigo Sobre Tratamento Psíquico em 1890 e, por fim,
a monografia Sobre Afasia, de 1891, concluindo sobre a presença da tese
da concomitância neurológica e psíquica, como condições paralelas, especí-
ficas a cada série. Portanto Freud em 1938 pensava como em 1891, quando
como neurologista desafiava a concepção preponderante em Viena das
localizações de áreas (como área de Broca e Wernike), mas ao mesmo tempo,
submisso quanto à concepção do paralelismo entre o cérebro e o psíquico.

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Em 1998, Giselher Guttmann e Inge Scholz-Strasser organizaram um


encontro em Viena, com diversos profissionais da área neurológica e
psicológica e declararam suas convicções de que Freud nunca abandonou,
modificou ou desviou-se da orientação na qual foi formado por seus
mestres fisicistas de Viena. Giselher e Inge declaram que quando Freud
criou uma nova linguagem, esta foi largamente metafórica e que por esta
razão pode ser, também, aplicada a diferentes áreas da cultura e da ciência.
Acrescentam que os conceitos de psicoterapia de Freud são baseados nos
mesmos princípios que tinham determinado suas pesquisas neurocientí-
ficas e as mesmas epistemologias que determinaram também seus últimos
trabalhos. Acrescentam que nem todas as pessoas podem concordar com
estas proposições. Mas afirmam: o que é incontestável, contudo, é o fato de
que esta orientação epistemológica permite construir uma ponte do Freud
primitivo, neurocientista, às suas pesquisas posteriores.
Num artigo intitulado Biologia e o Futuro da Psicanálise, Eric Kandel,
1999, considera a necessidade de um diálogo entre a biologia e a
psicanálise, no sentido de um melhor conhecimento da mente. Este tema
nos conduz de volta à questão da evolução e, neste sentido, cito Julian
Huxley, (1951) que considera: o milagre da mente é que ela transforma
quantidade em qualidade e relaciona esta condição com a evolução.
Erwin Schrödinger (1997) em seu livro O Que é Vida? diz: a vida de um
homem representa uma pequena parte da evolução de nossa espécie que
ainda está em plena ação. É verdade que um único dia na vida de uma
pessoa, não é mais que um minúsculo golpe de cinzel numa estátua nunca
acabada. Mas a enorme evolução global que sofremos no passado, também
foi ocasionada por miríades de tais transformações e a pressuposição para
tal ocorrência são, é claro, as mutações espontâneas hereditárias... E assim,
a cada passo, a cada dia de nossa vida, por assim dizer, algo da forma que
possuímos até então deverá mudar, ser superado, ser excluído e substituído
por algo novo, pois nós mesmos somos o cinzel e a estátua.
Cinqüenta anos depois um grupo de cientistas se reuniu para discutir
o trabalho de Schrödinger, O Que é Vida? Michael P. Murphy e Luke
O Neill (1997), no prefácio do livro sobre este encontro, dizem que
Schrödinger concentrou-se em dois temas da ciência biológica: a natureza
da hereditariedade e a termodinâmica dos seres vivos. Lembro aqui que
Freud em seu trabalho sobre compulsão a repetir diz que é uma situação
demoníaca e compara esta compulsão com a segunda lei da termodinâmica,
a entropia, aludindo a uma condição de estabilidade numa situação de
fixação.

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Murphy e O Neil fazem referência ao fato de Schrodinger considerar a


ordem a partir da desordem como evolução, não foi inicialmente bem
recebida, mas que, atualmente, estudos sobre termodinâmica aplicados a
sistemas vivos, tornou este tema relevante e importante. Para mim,
principalmente, pois em meus estudos sobre rituais primitivos considerei
que o sacrifício de animais transmite uma situação de desordem,
dissociação e violência que equiparei à posição esquizo-paranóide (Melanie
Klein) e que o cerimonial de festividade do ritual tem características de
defesa maníaca, ocultando a depressão e, este conjunto, expressando o
sentido de evolução da ordem depressiva a partir da desordem esquizo-
paranóide, o que caracteriza uma condição de evolução psíquica. A
repetição desses rituais, na minha interpretação, tem um efeito de melhorar
as condições psíquicas dos participantes e freqüentadores desses rituais
que se repetem com freqüência, numa evolução da posição esquizo-
paranóide para a posição depressiva...
Julian Huxley (1968) diz que a história da Humanidade ocorrerá em
função da evolução psíquico social, na qual eu coloco a obra de Freud
sobre a cultura, e toda uma evolução científica e tecnológica da Humani-
dade que já levou o homem ao espaço sideral mas, também, já destruiu
duas cidades.
Devemos considerar, diz Freud em seu trabalho sobre Narcisismo, que
todas nossas idéias provisórias em psicologia serão, um dia, baseadas sobre
uma subestrutura orgânica. Considero que todas as idéias de ordem
psicológica referentes às teorias psicanalíticas são provisórias, porque
podem ser substituídas por novas concepções mais esclarecedoras, o que
vem acontecendo num sentido de aprofundamento científico da Psicaná-
lise. Dizer que as idéias psicológicas serão baseadas em estruturas
orgânicas é uma das teses deste trabalho, no qual tenho estado acentuando
sobre a presença do substrato orgânico no desenvolvimento do ego, este,
uma epigênese a partir do id, não havendo portanto uma mente sine
matéria, o psíquico, então, como episteme.
Freud ao iniciar em sua clínica, descobriu concepões psicológicas e foi
percebendo condições até então desconhecidas, que aos poucos foram se
tornando, com os acréscimos de muitos psicanalistas, no que a Psicanálise
é hoje. E Bion em sua proposta de Sem Memória e Sem Desejo (1970), é
também uma possibilidade de encontro com novas perspectivas, pois essa
proposta é a do psicanalista na sessão clínica, ser como um receptor de
amplo espectro, recebendo as comunicações do paciente como possíveis
informes novos a serem pensados. As interpretações são conjecturas que

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podem ser, de início imaginativas, mas que poderão transformar-se em


conjecturas racionais.
Antes de finalizar este trabalho quero fazer algumas considerações
sobre a Psicanálise como aprendizagem com um detalhe a mais, pois, cada
sessão de análise é um aprender com uma experiência, freqüentemente,
com emoção e com sentimento de surpresa, por reencontrar algo já vivido
e esquecido, um elo perdido ou novo, mas muito importante que pode
enriquecer a mente promovendo crescimento. E isto pode desencadear
todo um processo de novas percepções do que estava, até então, incons-
ciente, e tudo proporcionando aprendizagem, promovendo arquivo vivo
em novas conexões e regiões cerebrais, úteis para uma vida assim
enriquecida.

“O mundo é a minha representação. Esta proposição é uma verdade


para todo ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a
transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. Possui então
a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas
apenas olhos que vêm este sol, mãos que tocam esta terra; em uma
palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como
representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o
próprio homem.”
Shopenhauer

Referências bibliográficas
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Neurociência. Boletim Cientifico S.P.R.J, Volume III numero 1, Rio de
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Changieux, J P. L’homme Neuronal, Fayard, 1982, Paris.
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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Masoquismo mortífero e
masoquismo guardião da vida:
resumo e comentários da obra de
Benno Rosenberg*
Juan Eduardo Tesone**

Resumo
Neste artigo o autor resume e comenta aspectos clínicos e teóricos
dos conceitos de masoquismo mortífero e masoquismo guardião da
vida, na obra de Benno Rosenberg. Para tanto, parte do aprofun-
damento da noção de masoquismo erógeno primário e discorre sobre
a posição especial que o masoquismo ocupa em relação às pulsões,
bem como sobre a intensa ligação com a prática clínica.

Abstract
In this article the author comments and summing up clinic aspects
and theoretical of the concepts of fatal masochism and the
masochism guardian of life in the work of Benno Rosenberg. He
begins in profound understanding of the notion of primary erotic
masochism and he coments about the special position that
masochism is in relation to instincts, in addition of the intense
conection with the clinical practice.

* Traduzido do espanhol por Pedro Rosaes.


**Membro da Sociedade Psicanalítica de Paris e da Associação Psicanalítica Argentina.

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O masoquismo é um paradoxo, destaca Benno Rosenberg, e emprega


todo seu vigor teórico para apresentar uma certa forma de masoquismo
que pode parecer chocante à primeira vista: o masoquismo “guardião da
vida”, em oposição ao que denomina “masoquismo de morte”.
O referido autor põe no centro de suas preocupações a pulsão de morte.
Apesar deste conceito e suas conseqüências na clínica e na compreensão do
psiquismo humano vir sendo questionado por algumas linhas de pensamento
atuais, ele ocupa lugar central nas preocupações da psicanálise francesa. Num
consenso raro e pouco comum, diferentes vertentes do pensamento
contemporâneo francês convergem na direção do conceito de pulsão de morte.
Desde o início da obra de Benno Rosenberg aparece a necessidade de
aprofundar a noção de “masoquismo erógeno” por ser a forma essencial a
partir da qual se desprendem as outras formas de masoquismo, e em
particular da sua forma original, fonte de todas as outras, qual seja, o
masoquismo erógeno primário.
E isto não é possível sem levar em conta a segunda teoria das pulsões
de Freud e particularmente a aceitação da pulsão de morte.
Mas por que o masoquismo mostraria mais claramente a validade da
segunda teoria das pulsões? Se a teoria é válida, o é para toda patologia.
No entanto – afirma Benno Rosenberg – o masoquismo ocupa em relação
às pulsões, e mais precisamente em relação à mistura ou intrincação das
pulsões, uma posição única entre todos os fenômenos psíquicos.
Por um lado, o masoquismo erógeno primário (m.e.p.) se define em
sua própria especificidade pela intrincação pulsional. Por outro lado, a
mais primitiva das intrincações pulsionais se realiza no m.e.p. Esta dupla
relação faz com que a intrincação ou mistura pulsional e o masoquismo
sejam idênticos e que toda intrincação ou mistura pulsional seja de essência
masoquista: o sentido que adquire a intrincação ou mistura pulsional é a
erotização da destrutividade surgida da pulsão de morte, e pelo tanto de
desprazer que acompanha essa destrutividade, que é a essência do
masoquismo. A conseqüência é que se um fenômeno psíquico é testemunha
da pulsão de morte, em virtude da intrincação das duas pulsões, contém
masoquismo em sua expressão. Benno Rosenberg considera a intrincação
ou mistura das pulsões como equivalente à noção de masoquismo o que
vai levar este autor a falar da “dimensão masoquista da existência”.
Esta consideração pressupõe que a existência independente da origem
da pulsão de vida e da pulsão de morte não possa ser datada historicamente,
correspondendo sua intrincação mais a um momento mítico do que a uma
data certa.

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Frente à dificuldade de relacionar as idéias propostas com a clínica,


podemos recordar o que Freud sustenta nas Novas Conferências onde
articula a resistência no tratamento com a presença de desejos maso-
quistas. Com o que se pode afirmar que o masoquismo está presente em
todo tratamento, ainda que seja apenas através da resistência que opera
no mesmo, incluída no tratamento clássico de neuróticos, e com mais
propriedade nos sujeitos com estrutura borderline ou psicótica. Mas
também traz uma nova luz em patologias de extrema atualidade clínica
como a anorexia ou os comportamentos adictos em geral. Vemos então
que estas considerações sobre o masoquismo não têm um valor meramente
especulativo, na verdade encontra-se no cerne da prática clínica. Que uma
certa forma de masoquismo possa ter uma conotação positiva pode, à
primeira vista, parecer insólito.
Ousadamente, Benno Rosenberg põe em relevo uma “dimensão
masoquista da existência”, confrontando-a a uma patologia bem conhecida
na teoria psicanalítica: a melancolia. E introduz uma noção extremamente
interessante por seu caráter dinâmico, “o trabalho de melancolia”, que
permite adentrar com uma maior bagagem teórica e clínica nesta patologia.

Masoquismo e Princípio do Prazer

Modificação do princípio do prazer em função do masoquismo


O quê nos diz Freud? Que o aumento da tensão da excitação é em geral
um desprazer, mas que em certas condições pode no entanto provocar
prazer. E nesse sentido o masoquismo é paradigmático.
A mudança teórica se produz com a introdução da pulsão de morte.
Dado que, se Freud mantém sem modificações o princípio do prazer, se
confundiria com o princípio de Nirvana, ou seja, e paradoxalmente, estaria
ao serviço da pulsão de morte, o que é inaceitável.

Modificação teórica do princípio do prazer: sua origem pulsional


O princípio do prazer sempre foi na teoria freudiana a primeira lei de
funcionamento dos processos mentais.
É uma modificação incorporada ao princípio do Nirvana da pulsão de
morte. B.R. utiliza a metáfora de um paralelogramo de forças: as duas
forças, pulsão de morte e pulsão de vida dão uma resultante que é o

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princípio do prazer. Esta modificação não pode ser feita se não inferimos
o que chamamos de mistura ou intrincação, a ligação da pulsão de morte
pela libido.
Sabemos que a intrincação pulsional depende do objeto. E também
que a intrincação – desintrincação das pulsões mudará na vida de um
sujeito em função dos avatares da vida, mudando consequentemente o
funcionamento do princípio do prazer.
A reivindicação de prazer e as condições do mesmo variam na psicose
e na neurose. À diferença da psicose, os neuróticos conseguem suportar a
tensão da excitação sem que a mesma seja traumática. Há muito para se
pensar em certas patologias como as toxicomanias ou os comportamentos
adictos em geral. Esta relativização do princípio do prazer em função dos
indivíduos, dos momentos e das situações, dão uma base e um objetivo ao
tratamento psicanalítico. Podemos dizer que busca-se uma mudança na
definição qualitativa do princípio do prazer, em sua reivindicação do prazer,
na urgência da satisfação; o masoquismo e o princípio do prazer são
conseqüência da intrincação das pulsões, dessa fusão-aliança pulsional
primária. São as duas caras, os dois aspectos de um mesmo momento
psíquico.
Qual é o significado desta solidariedade profunda entre o masoquismo
e o princípio do prazer? Segundo a primeira definição que identificava o
princípio do prazer e o princípio de Nirvana, o princípio do prazer conduzia
à realização dos objetivos da pulsão de morte; o prazer como redução à
zero da tensão da excitação torna-se paradoxalmente equivalente à
extinção, à autodestruição, à morte. A influência do masoquismo sobre a
concepção do princípio do prazer faz com que esta aspiração autodes-
truidora ao prazer absoluto seja evitada e que o princípio do prazer seja
vivido de maneira mais relativizada.
Dizer que Freud modifica o princípio do prazer em função do paradoxo
inerente ao masoquismo não seria dizer: o prazer masoquista transforma
o modelo de prazer?
B.R. tem a ousadia de pensar isto, e sua afirmação não está em desacor-
do com a teoria psicanalítica. Em todo caso nos ajuda a repensar as
patologias de adicção e a busca do absoluto que as caracteriza, em parti-
cular as toxicomanias. Claro que esta afirmação requer outros desdobra-
mentos.
O prazer converte-se em uma combinação de prazer e de desprazer
que inclui uma dose variável, mas inevitável de masoquismo. Esse prazer-
desprazer, que é o prazer, é variável; em certos momentos se aproxima

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quase do prazer “puro”, quando seu componente de desprazer é mínimo,


e inversamente é vivido como desprazer “puro” quando seu componente
de prazer tende a se apagar. Se o prazer é um prazer – desprazer é porque
é um processo complexo e unitário que compreende tanto a excitação
(aspecto desprazer) que a descarga (aspecto prazer): a descarga distende
a excitação que por sua vez não desaparece totalmente na descarga. A
primitiva formulação do princípio do prazer separava a excitação da descar-
ga, o desprazer do prazer, dentro da dialética do prazer. Esta separação
convertia o masoquismo, no qual o prazer e o desprazer são necessaria-
mente solidários de modo obrigatoriamente paradoxal. Em troca, a
dialética interna do prazer advém manifesta no prazer masoquista que
aparece então, mais que qualquer outro, como o modelo fundamental do
prazer. A primitiva definição do princípio, separando a excitação da
descarga, imobilizava dois conceitos ligados em um processo vital que
possui sua própria temporalidade e seu ritmo interno.

Masoquismo, princípio do prazer e


continuidade–temporalidade interna

Como sabemos, Freud modificou a definição exclusivamente quanti-


tativa do princípio do prazer acrescentando um aspecto qualitativo e
enuncia uma hipótese: “Se pudéssemos dizer o que é essa característica
qualitativa, estaríamos muito mais avançados em psicologia. Talvez seja
o ritmo, a seqüência temporal de mudanças, elevações e quedas na quanti-
dade de estímulo. Não sabemos”. Este texto nos obriga a refletir sobre as
relações do princípio do prazer e o masoquismo com o tempo. Qual é a
conexão entre o princípio do prazer e a temporalidade, e por que a reflexão
sobre o tempo e a temporalidade é essencial nas modificações que se deve
introduzir na formulação do princípio do prazer para que seja logo
adaptado à clínica, em particular à clínica do masoquismo erógeno? Isto
inclui a relação que pode ter o masoquismo com o tempo, na medida que
se inclui, na nova formulação do princípio do prazer, a integração do
masoquismo em sua própria definição.
Para responder a estas duas considerações temos que voltar por alguns
instantes à primeira formulação do princípio do prazer. Pressupunha
reduzir a zero a soma das excitações, o que significava, seguindo esta lógica,
que funcionava segundo o princípio do “tudo ou nada” e quanto mais rápido
se liberava da excitação melhor era, ou seja “tudo e depressa”. É claro que

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o princípio do prazer não funciona assim, e Freud o havia imaginado de


outra maneira há muito tempo, mesmo que não aparecesse integrado na
sua formulação do princípio. Por exemplo em “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento psíquico” diz: “Corretamente objetar-se-à
que uma organização que fosse escrava do princípio de prazer e negligen-
ciasse a realidade do mundo externo não se poderia manter viva, nem
mesmo pelo tempo mais breve, de maneira que não poderia ter existido
de modo algum.” (grifo nosso)1
Neste texto há uma alusão ao tempo e ao fato de que o aparelho psíquico
seria destruído se funcionasse efetivamente segundo o princípio do prazer
que funcionara de uma forma extrema. Um princípio do prazer que
funcionasse assim impediria o aparelho psíquico de durar e inclusive de
existir. Isto é importante, dado que, segundo afirma B.R., o princípio do
prazer se transforma em função do masoquismo: a própria existência e
a duração da organização psíquica dependem do masoquismo.
Se vê bem quê Freud nesse texto intuiu as conseqüências destrutivas e
mortíferas de um princípio do prazer que funcionara segundo sua
concepção inicial, não pôde integrar o verdadeiro sentido que tudo isso
tinha logo que formulara sua nova teoria das pulsões e a nova teoria do
masoquismo, que se desprende da mesma.
Para que uma excitação seja possível, a excitação sexual em particular,
um tempo de postergação é necessário; deve-se sair da pontualidade
temporal e trocá-la por uma seqüência temporal possível. Mas toda espera,
toda postergação é da ordem da excitação e do desprazer. B.R. nos lembra
que o desprazer é possível só para o masoquismo, considerado em um
sentido amplo como a capacidade do psiquismo para suportar o
desprazer. Poderíamos pensar que o princípio de realidade deveria ser
suficiente para aceitar o postergação e o desprazer. Mas segundo B.R., o
princípio do prazer não poderia transformar-se em princípio de realidade
(e o princípio de realidade é, segundo Freud, uma modificação do princípio
do prazer) sem que tenha em germe ele mesmo esta possibilidade de
postergação do prazer, quer dizer, esta capacidade de suportar o desprazer.
É porque o princípio do prazer engloba o prazer masoquista, porque
inclui a possibilidade de prazer do desprazer, que se pode transformar
em princípio de realidade.

1
Vol XII, pg. 224

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O núcleo por excelência da espera – postergação está dado na teoria


freudiana pela “satisfação alucinatória do desejo”. A satisfação alucinatória,
ao mesmo tempo que dá a possibilidade de conseguir a satisfação, não
impede o desamparo e a tristeza, na medida que não é possível conseguí-
la todo o tempo. Se a satisfação alucinatória pudesse impedir o estado de
desamparo (quando na verdade só consegue atenuá-lo), a satisfação que
não fosse alucinatória não seria necessária e... estaríamos todos mortos
de satisfação alucinatória (Para pensar na clínica das toxicomanias).
De tudo isto se infere que a “suportabilidade” do estado de desamparo
é uma problemática importante e que esse desprazer, como os outros,
requer o masoquismo para compreender a sua suportabilidade.
Sem o masoquismo erógeno, e acima de tudo sem o núcleo masoquista
primário modificando o princípio do prazer de maneira que integre o
desprazer, tudo aquilo que não seja descarga imediata, toda postergação
e toda sucessão temporal seriam impossíveis porque implicariam um
relativo desprazer. O masoquismo assegura a duração, a continuidade
interna, é a ponte que liga a atemporalidade do Id à temporalidade espe-
cífica do sistema préconsciente-consciente, ou na nova tópica, do eu
consciente e inconsciente.
Podemos ver isto nas sessões, e na maior ou menor dificuldade que
têm os pacientes para “suportar” a duração das mesmas. Em alguns pacien-
tes borderlines ou psicóticos, a excitação da sessão é tão grande que querem
interrompê-la ao fim de alguns minutos, ou podem ser a fonte de acting-
in encurtando a sessão. Também na clínica de crianças e adolescentes.
Simetricamente, podemos nos perguntar sobre o uso das “sessões curtas”
e a escansão da sessão por parte de certos analistas.... E sobre a “suporta-
bilidade” do próprio terapeuta.

A problemática do masoquismo erógeno primário

Masoquismo e coexcitação
Desde “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) 2 até “O
problema econômico do masoquismo” (1924), Freud resume sua teoria da
coexcitação: “talvez no organismo não ocorra nada de certa importância
que não ceda seus componentes à excitação da pulsão sexual. Assim sendo,

2
Vol VII, pg. 109

55
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também a excitação de dor e a de desprazer teriam essa conseqüência. Essa


coexcitação libidinal provocada por uma tensão dolorosa e desprazerosa
seria um mecanismo fisiológico infantil que se esgotaria logo.”3
Freud busca uma explicação para os vínculos regulares e íntimos na
coexcitação.
É o m.e.p. que mostra a possibilidade de erotizar a dor e o desprazer
em geral, e é a partir do masoquismo que se abre a via para a compreensão
da possibilidade de erotização de toda excitação, qualquer que fosse.
Não é mais a coexcitação que explica o masoquismo, senão o m.e.p.,
que faz possível a coexcitação. E porque só o masoquismo pode nos permi-
tir entrar na via da resolução de um problema que vai além das possibili-
dades de explicação da teoria da coexcitação, dado que o ser humano pode
suportar a excitação sexual ainda antes que a descarga se produza.

Masoquismo e constituição do ego primário


O masoquismo primário é originalmente o ponto de encontro do sujeito
consigo mesmo, daí advirá o lugar onde o sujeito nasce em si mesmo pela
intrincação pulsional primária que é a definição que Freud dá do m.e.p.
A intrincação pulsional está condicionada pelo objeto (sua represen-
tação). O objeto está duplamente investido pulsionalmente: a pulsão de
morte que tende a deslocá-lo, a dissolvê-lo, e por outro lado, a libido que
se esforça paralelamente aos objetivos sexuais, em conservar o objeto de
investimento, de mantê-lo. A libido busca ligar aí, onde a pulsão de morte
busca desligar. O objeto sobrevirá assim, a condição, o cimento da
intrincação, o mediador desta última. Determinemos que o estado habitual
é de uma intrincação - desintrincação, quer dizer, de uma intrincação
relativa. Isto se manifesta na dupla relação amor – ódio ao objeto, que Freud
associa a partir de 1920 à dualidade pulsão de vida – pulsão de morte. A
ambivalência torna-se o exemplo típico de investimento dual do objeto, o
exemplo de uma intrincação parcialmente mal sucedida, de uma mistura
incompleta (e também por isso parcialmente conseguida). Quanto mais
ambivalência, menos intrincação. É na melancolia que assistimos uma
espécie de contra-prova da importância do objeto na desintrincação
pulsional: a perda do objeto provoca uma desintrincação pulsional.
Esta descrição da intrincação pulsional condicionada e realizada por
intermédio do objeto corresponde ao que podemos chamar intrincação

3
N. do T. tradução livre da citação de Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.

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pulsional secundária. A intrincação primária, em troca, acontece em torno


do ego-sujeito, e este é melhor condicionado em sua existência pela
intrincação pulsional. O ego não pode se formar sem que a pulsão de morte
seja ligada, senão qualquer tentativa de esboçar o ego primário será
destruída. Para Benno Rosenberg, o m.e.p. é assim a condição da formação
do ego, e ao mesmo tempo, a primeira forma de estruturação – organização
do ego. O masoquismo é o lugar limite onde as coisas se amarram; é
amarrando a pulsão de vida à pulsão de morte que se constitui o primeiro
nó psíquico durável. É no estado de desamparo primário erotizado que
se realiza o m.e.p.: é assim que o sujeito se reconhece (ele-mesmo), é
assim que nasce o ego arcaico que funda o sujeito. A oposição entre a
intrincação pulsional secundária que se realiza através do objeto, a
primária em torno do ego-sujeito, é relativa. O objeto tem muita impor-
tância, prepara e condiciona a intrincação primária.

Masoquismo e objeto

Qual é a condição desse deslocamento para fora ou projeção que se


anuncia como capaz de drenar – deslocar para fora a pulsão de morte?
À primeira vista, o texto de Freud propõe a defesa projetiva e a defesa
por intrincação - ligação pulsional como independentes entre si. Inclusive,
por duas vezes a defesa projetiva é apresentada como principal em relação
à intrincação pulsional, e como tendo um peso relativamente mais
importante. B.R. pensa que essa interpretação não é correta se consideramos
a lógica interna e o sentido do texto sobre “O problema econômico do
masoquismo”, como uma leitura atenta do mesmo permite inferir.
Seria surpreendente que a intrincação seja considerada como secun-
dária em um texto que funda a primariedade do masoquismo erógeno –
equivalente à intrincação pulsional primária— em relação ao sadismo,
fundado sobre a projeção. Freud sublinha esta primariedade e acrescenta,
como sabemos, em uma nota que contribui nesse sentido, em “Os instintos
e suas vicissitudes” (1915) 4, de 1924, e que faz alusão ao “ O problema
econômico do masoquismo ”.

4
Vol. XIV, pg. 123 : “Um masoquismo primário, não derivado do sadismo na forma que
descrevi, não parece ser encontrado.” [Em trabalhos posteriores - ver O problema econômico
do masoquismo - me posicionei a favor de uma concepção oposta em relação a problemas
da vida pulsional]”.

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Se o masoquismo é, então, primário, é que a intrincação pulsional é


primária em relação à projeção, que funda o sadismo. De tudo isso, propõe
B.R., se pode legitimamente inferir que a intrincação pulsional (ou seja o
masoquismo) é primeira e primária e que a projeção é secundária e depende
para efetuar-se da intrincação pulsional. Deve-se acrescentar a isto que a
projeção é um mecanismo de defesa que supõe por um lado um suporte
exterior e um ego-sujeito que possa realizar a projeção. Recordemos que
o ego-sujeito está condicionado pela intrincação pulsional, não existe senão
pelo masoquismo que o constitui. O masoquismo precede o sadismo, a
intrincação pulsional precede a projeção, como o narcisismo primário
precede a libido objetal.
O m.e.p. que constitui o ego-sujeito e é guardião de sua sobrevida, pode
tornar-se em certas condições um masoquismo mortal (melancolias
graves), ameaça fundamental à sobrevivência psíquica do ego.
B.R. cita novamente o texto de Freud “O problema econômico do
masoquismo” : “Estando preparado para desprezar uma pequena falta de
exatidão, pode-se dizer que a pulsão de morte operante no organismo –
sadismo primário – é idêntica ao masoquismo. Após sua parte principal
ter sido transposta para fora, para os objetos, dentro resta como um resíduo
seu o masoquismo erógeno propriamente dito...” Identificando a pulsão
de morte ao masoquismo, o que Freud nos quer dizer – afirma B.R. – é
que o que se projeta para o exterior não é a pulsão de morte pura mas
sim o masoquismo, ou seja a pulsão de morte já ligada, não mais do que
minimamente ligada à libido. Desta maneira, o que é projetado ao exterior
e que torna-se o sadismo, é o masoquismo; o sadismo torna-se assim um
masoquismo projetado, o que funda teoricamente a primariedade do
masoquismo sobre o sadismo. Isto permite precisar o sentido fundamental
do sadismo: é um masoquismo vivido projetivamente através do objeto,
uma defesa necessária em relação ao masoquismo primário que, sem isto,
ocuparia sozinho todo o lugar, isolaria o ego do objeto e tornaria-se desta
maneira, mortífero.
B.R. irá propor que isto permite inferir que na base de toda projeção
há uma intrincação pulsional, que existe um duplo conteúdo pulsional
em toda projeção.
Apresentamos até agora a projeção do “ mal ” que constitui o objeto
externo e a satisfação alucinatória do desejo que constitui o objeto interno
como independentes. Poderíamos nos perguntar se uma das diferenças,
senão a essencial, reside não tanto em um conteúdo pulsional diferente,
mas na proporção da mistura de pulsões. Na projeção do mal pode-se

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supor uma maior proporção da pulsão de morte, do aspecto destrutivo,


enquanto que na satisfação alucinatória do desejo haveria uma melhor
integração, uma melhor ligação da pulsão de morte pela libido, e desta
maneira o conteúdo desta projeção torna-se introjetável e introjetado.
Sendo a intrincação pulsional o conteúdo comum, ainda que em graus
diversos, destes dois tipos de projeção primária, encontra-se implicada
tanto na constituição do objeto externo como no interno. O masoquismo
estaria, portanto, implicado em toda relação de objeto tornando inclusive
possível que esta se constitua: o que quer dizer que permite a relativa
não-satisfação, a não descarga imediata (inerente a uma relação objetal
duradoura), e reencontramos os temas que haviam sido abordados sobre
a relação do masoquismo com o princípio do prazer. Isto inclusive quer
dizer que um certo grau de masoquismo torna possível o acesso ao
Édipo, na medida que faz com que a angústia de castração seja relati-
vamente suportável sem a qual o Édipo careceria de sentido. O impacto
clínico destas conclusões nos permite dizer que sem este investimento
ligeiramente “ masoquista ” do objeto – analista, a própria situação
analítica, pelas frustrações inerentes ao processo, seria rapidamente
intolerável ao analisando. E a apreciação durante a primeira entrevista
desse núcleo m.e.p., é necessária para avaliar a “ analisabilidade ” do
sujeito, sua capacidade a confrontar-se com a falta e com a castração
simbólica.

Masoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida

Tentando descrever até agora o m.e.p., que constitui o núcleo maso-


quista permanente do ego, temos implicitamente exposto o masoquismo
guardião da vida.
À propósito das relações do princípio do prazer com o masoquismo,
B.R. tenta demonstrar, seguindo a lógica freudiana, que é o m.e.p. que
transforma o prazer em um prazer-desprazer, em um processo que inclui
não só a descarga, mas também, em certa medida, a excitação. Clinica-
mente falando, é o núcleo masoquista do ego, primariamente constituído,
mas que permanece no ego, que permite o investimento, a ligação da
excitação, tornando-a aceitável: senão a excitação é (um desprazer)
insuportável e finalmente impossível. Mas sem excitação não há vida, é
a extinção, a morte. O m.e.p. é portanto um masoquismo guardião da
vida. Na terminologia da última metapsicologia de Freud (depois de 1920),

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tudo isso se traduz pelo fato de que sem intrincação pulsional primária
(masoquismo erógeno), a lei de funcionamento da pulsão de morte
(princípio de Nirvana) tende a excluir toda excitação da matéria orgânica
fazendo com que ela regrida ao estado inorgânico.
Mas o masoquismo, assegurando a possibilidade de excitação, não é
somente guardião da vida, é também guardião da vida psíquica: a perma-
nência do núcleo masoquista primário no ego garante a temporalidade
– continuidade psíquica assegurando a continuidade da excitação e
impedindo, por um lado, a necessidade de descarga imediata, e, por outro
lado, pela presença de um mínimo de excitação conservada no interior
da descarga, e evita que esta seja (como a descarga imediata) um ponto
de descontinuidade, uma ruptura na vida psíquica. Da mesma maneira,
a presença da excitação no seio da satisfação alucinatória do desejo faz
esta necessária, como inclusive na vida fantasmática que se desprende da
mesma. Pelo contrário, é nos momentos de vazio interior, de ruptura
ameaçadora da vida fantasmática, que o sujeito sente a necessidade de
um sofrimento masoquistamente investido (masoquismo secundário) para
restabelecer o guardião de sua continuidade psíquica.
O que é o masoquismo mortífero? Benno Rosenberg propõe cinco
definições complementares:
1 – Uma primeira resposta que se possa tentar, é dizer que é um
masoquismo por demais “ bem - sucedido”. Isto quer dizer que o sujeito
investe masoquistamente todo sofrimento, toda dor, praticamente todo o
território do desprazer. Todos conhecemos o caso de alguns psicóticos
que dizem não sentir certas dores, inclusive, às vezes, como conseqüência
de auto-mutilações. Trata-se para eles, não só de transformar em agradável
a excitação, mas de encontrar prazer exclusivamente (ou quase) na vivência
da excitação por um investimento maior da mesma. O corolário desta
atitude é que a descarga como satisfação objetal torna-se supérflua, e em
última instância impossível.
2 – O masoquismo mortífero se define então, e é sua segunda definição,
como prazer da excitação em detrimento do prazer da descarga, como
satisfação objetal. Contrariamente ao masoquismo mortífero, o maso-
quismo guardião da vida, ainda que assegure a aceitabilidade necessária
da excitação, não impede a satisfação libidinal objetal (descarga) como
ponto culminante do prazer. À medida que esse deslizamento da satisfação
(descarga) objetal à excitação se produz, passamos do masoquismo
guardião da vida ao masoquismo mortífero, verdadeiro masoquismo
patológico.

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E. e J. Kestemberg, a respeito das anorexias mentais graves, falam de


“ orgasmo da fome ”5, verdadeiro masoquismo mortífero, um investimento
masoquista da excitação da fome.
3 – O abandono, no limite, da satisfação objetal equivale a um abandono
do objeto. O masoquismo mortífero tende a realizar uma espécie de
autismo masoquista centrado em torno da excitação em si mesma. Mas
não há vida, particularmente psíquica, sem objeto: o masoquismo
mortífero pode se definir, em terceiro lugar, como o abandono progressivo
do objeto, para tornar-se não só mortífero mas letal, o que justifica
plenamente seu nome.
4 – Isto eqüivale em sua quarta definição, a um bloqueio, pelo maso-
quismo (mortal) da pulsão de vida, normalmente centrada na satisfação
objetal. Se o masoquismo guardião da vida é uma defesa em relação à
destrutividade interna, bloqueando a pulsão de morte, o masoquismo
mortífero aumentando consideravelmente esta defesa, pode levar o objeto
à morte paralisando o funcionamento normal da libido e da autoconser-
vação (anorexia mental).
5 – Um excessivo investimento masoquista da excitação contida no
desamparo primário faz menos necessária a busca da satisfação pela
alucinação da realização do desejo; a vida fantasmática se verá reduzida,
e o objeto interno empobrecido, objeto interno que normalmente está na
base da fantasmatização. O mesmo no que concerne a projeção e a consti-
tuição do objeto externo. Daí a quinta definição, talvez a mais fundamental:
é um masoquismo que tende ao limite, a transformar em inútil a projeção
e através dela a relação de objeto; garante o essencial da defesa contra a
destrutividade interna e deixa pouco espaço para a projeção.

– O sadismo tem um papel importante na diferenciação de maso-


quismo guardião da vida e o masoquismo mortífero. A introjeção massiva
do sadismo é o sinal de que o masoquismo está se transformando em mortí-
fero. Daí o significado do sadismo como defesa em relação ao maso-
quismo em geral, e o potencial mortífero do masoquismo em particular.
Podemos nos perguntar se não é esta preponderância do sadismo em
relação ao masoquismo, no caso do neurótico, que levou Freud a dizer,
inicialmente, que o sadismo era primário em relação ao masoquismo.

5
E. e J. Kestemberg, “ La faim et le corps”, Paris, PUF, 1972.

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– O núcleo masoquista primário, que permanece no ego, torna aceitável


a excitação provocada pelo objeto e garante desta maneira a continuidade
interna: é o que permite a ação dos mecanismos de defesa neuróticos e o
trabalho interno, e impede que a excitação se converta em traumática e a
descarga seja brutal (evacuante). Evita assim que se produzam pontos de
ruptura-descontinuidade da vida psíquica.

O inverso acontece com certos sujeitos psicóticos, que padecem de


excitações insuportáveis e descargas brutais: é o núcleo masoquista do
ego, primariamente estabelecido, que não consegue ocupar seu papel. Para
B.R. a psicose se caracteriza, desde o ponto de vista do masoquismo, por
uma disfunção importante do masoquismo primário, do núcleo erógeno
do ego. O paradoxo, aparentemente, é que encontramos as formas mais
características do masoquismo mortífero, em particular nas psicoses não
– delirantes (“ frias ”), e na anorexia das quais forma parte. O masoquismo
que constatamos nestes quadros corresponde ao masoquismo secundário,
masoquismo que utilizam para tentar preencher as falhas do masoquismo
primário. É uma tentativa de cura, como dizemos, do surgimento do delírio
nas psicoses produtivas.
A paranóia merece um comentário à parte. Freud em “Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade ”(1908) dizia “as formações
delirantes dos paranóicos são fantasias da mesma natureza, mas imedia-
tamente trazidas à consciência, levadas pela parte sado-masoquista da
pulsão sexual ” A perseguição paranóica tem, como se sabe, vários sentidos:
é uma gratificação narcisista megalomaníaca (não é qualquer um que é
perseguido...), conserva rigidamente o objeto como defesa de toda regres-
são narcisista (vivida como diluente), mas tem também um significado de
gozo masoquista, o perseguidor é vivido como objeto sádico. Esse reforço
do sadismo nesses perseguidores-perseguidos, que são os paranóicos,
constitui uma defesa contra o desenvolvimento do masoquismo mortífero,
e se esses pacientes conseguem uma defesa eficaz é porque a projeção tem
neles uma função importante.
Concluindo: o masoquismo é a melhor muralha contra a destruti-
vidade interna, mas ao mesmo tempo e em determinadas circunstâncias,
pode tornar-se seu instrumento privilegiado.
O ser humano não existe se não consegue desviar a meta de suas pulsões,
pelo menos em grande parte. É muito provável que não possa existir se
consegue esse feito em excesso...

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P.U.F., Paris, 1991
Rosemberg, B. “Le travail de mélancolie” en “Monographies de la Revue Française
de Psychanalyse”, P.U.F., Paris, 1991.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

A procura da beleza como busca


de equilíbrio psíquico
Maria José de Andrade Souza*

“A beleza em cada ser é uma alegria eterna”


John Keats, 1818 - Endymion

“A beleza é a verdade, a verdade a beleza – isto é tudo


o que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber”
John Keats, 1820 – Ode a uma urna grega

Resumo
A autora inspira-se nos referenciais da poesia, filosofia e da
psicanálise para tecer reflexões sobre o sentido e repercussões da
apreensão da beleza na constituição e sustentação de nosso
sentimento de eu.

Abstract
The search of the beauty as search of psychic equilibrium
The author inspires herself in the reference of poetry, philosophy
and psychoanalysis, to make reflections about the significance and
repercussion of the apprehension of beauty in the constitution and
hold of our feeling of self.

* Psicanalista, Membro efetivo da SPR e NPF. Membro associado SBPSP.

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Algumas vezes os poetas nos ajudam a iluminar nossa imaginação, a


organizar e transmitir nosso pensamento. Para falar sobre a beleza, recorro
ao poeta inglês John Keats (séc.XVIII-XIX). No primeiro verso acima ele
nos indica a beleza produzindo alegria, exultação, um antídoto talvez para
a dor, a tristeza e o tédio do nosso viver humano.
No segundo, equipara a beleza à verdade, verdade que poderíamos ver
como revelação sobre o universo, ou revelação sobre nós mesmos.
Em apenas dois versos, o poeta sintetiza duas vertentes essenciais da
beleza:
Alegria e Verdade
Seguindo um pouco por nossa conta, podemos indagar: precisamos da
beleza para sobreviver? Ou ainda, em que medida precisamos da beleza
para a constituição de nosso eu, para o nosso funcionamento emocional e
psíquico como um todo e mesmo para nosso bem-estar cotidiano?
Segundo a história, não nascemos com o sentido do belo. Ele foi se
constituindo ao longo de milênios. Somente a partir do período paleolítico
superior (entre 30.000 mil a 18.000 mil A.C) é que o homem começa a
achar bela a natureza, porque até então ela constituía ameaça seja no seu
imaginário, seja no real. Quando o homem aprende a domar a natureza,
ai então ela passa a ser vista como bela.
Lembremos que a idéia de belo evoluiu para a de estética, expressão
cunhada por Alexandre Baumgarten, em 1750. Estética derivou-se do grego
“aistesis” que significa percepção através dos sentidos e/ou dos sentimentos.
Imannuel Kant (Crítica do juízo do gosto – apud Suassuna,2004 )
concebeu a Estética em duas categorias: o belo e o sublime. O belo nos
alcançaria através dos sentidos, afetos e sentimentos, pela percepção da
proporção e harmonia dos seres e das coisas na natureza. Já o sublime
nos requisitaria também em relação a nossas capacidades cognitivo-
intelectivas, de pensamento, reflexão, imaginação e abstração, em nossas
operações mentais mais elevadas.
Importante mencionar aqui uma sentença de Protágoras, filósofo grego
(480 A.C.) para quem, “o homem é a medida de todas as coisas”, isso
significando que tudo aquilo que é estudado, percebido, apreendido, o é
pelo sujeito homem e como tal, depende da maneira como o homem o vê,
do seu instrumental e subjetividade aplicados ao fenômeno estudado.
Então, a beleza, a qualidade do belo, é atribuída pelo ser humano a um
objeto, a um conjunto de fenômenos ou circunstâncias, a uma produção
humana, a um ser humano, por exemplo. Nessa perspectiva, os objetos
não seriam belos por si, nada seria belo por si mesmo.

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Trago-lhes duas experiências da beleza relacionadas diretamente aos


sentidos e outra relacionada a uma construção imaginária.
Escutando uma música (pensemos em Carinhoso, de Pixinguinha)
olhando uma bela paisagem ou lendo um belo poema, somos tocados em
nossos sentidos, diretamente no caso da música e do quadro e de forma
mais complexa no caso do poema ou prosa bem elaborada. Há músicas
que convocam nossos sentimentos de patriotismo, os marciais, os
românticos, como a música aludida acima, outros ainda nossa nostalgia
pela infância e juventude perdidas, etc. Sentimo-nos banhados pela beleza,
quando uma obra de arte provoca em nós a integração de aspectos que
convergem para um senso de equilíbrio, harmonia, bem-estar.
Vejamos um fragmento de prosa poética de C. Meireles para exerci-
tarmos a noção de beleza:

“Houve um tempo em que minha janela se abria para um chalé.


Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse
ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos,
quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia
pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e
sentia-me completamente feliz.”

Na situação da prosa e poesia, somos requisitados em nossa imagi-


nação, capacidade de simbolização e sensibilidade. Na crônica de Cecília
Meireles, ela nos transmite o belo através do compartilhar de uma ilusão
estética que inclui a contemplação da natureza, numa imagem criada
mentalmente que alude a paz e liberdade de imaginação, nascida talvez
de uma percepção real expandida para uma composição poética, ancorada
na sensibilidade estética da autora
Para Kant, o senso estético surge do prazer dado pela harmonia das
faculdades cognitivas ou ainda, “do jogo livre de imaginação e compre-
ensão” (Feitosa, C. 2004). Nessa linha, “as sensações estéticas consistem
na própria experiência de trabalho mental, de percepção de forma e de
ordem na experiência” (Apud Rustin, 2000). Em relação ao texto de C.
Meireles, nos sentimos “felizes” ao compartilharmos com ela a apreensão
do belo ou do sublime através de uma construção imaginária.
Na expressão popular – “quem ama o feio, bonito lhe parece” podemos
inferir que a busca do belo corresponde a uma busca de bem-estar, que
inclui o sentir-se olhado de forma amorosa, sentir-se desejado, admirado,
cuidado.

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Chegamos a um ponto importante que é a questão do olhar e ser olhado;


à questão do corpo humano, sede de demandas, objeto de desejo, vetor de
apelo ao consumo em suas múltiplas formas, submetido através dos tempos
a determinados padrões de beleza, a modas e costumes muitas vezes
violentadores do conforto humano. No passado, eram os espartilhos das
mulheres e o engessamento dos pés das japonesas para que não
crescessem; modernamente, os pierces, usados às vezes até em regiões
anatômicas íntimas; a escravização aos padrões de beleza que resvalam
para as correções e transformações através de cirurgias plásticas abarcando
o rosto e o corpo. Vi em certo programa de TV uma jovem senhora que
após muitas cirurgias adquiriu o rosto da boneca Barbie, transmitindo
uma expressão fisionômica mecânica. Certamente que há o uso adequado
e benfazejo de cirurgias corretivas e embelezadoras.
Porque a cintura tão fina, acentuada pelo espartilho, nas mulheres dos
séculos XVII, XVIII e XIX? Possível ideal feminino de reprodução, onde
ficariam ressaltados os seios e os quadris, sendo estes reforçados pelas
saias e anáguas. Há uma referência um tanto jocosa, pela qual os senhores
de escravos deslocavam suas paixões das esposas para as negras,
possuidoras de nádegas volumosas e atraentes; as esposas e damas, para
imitá-las, colocavam almofadas sob as saias, aumentando assim, seus
poderes de sedução. Vimos muitas mulheres rechonchudas nas telas de
pintores clássicos e barrocos. Na atualidade, o ideal físico de mulher é a
mulher “sarada”, de grande mobilidade e elasticidade musculares,
condizentes com a agitação da vida moderna, onde ser gorda significa ser
pesada e mais lenta, quem sabe menos produtiva, menos apta para o
mercado de trabalho. Ou ainda, mulheres magras podem aludir a uma
maior movimentação e habilidade no jogo sexual.
Corpo e olhar tornam-se indissociáveis, na perspectiva de apreciação
do belo em relação ao corpo humano. Mas antes de chegar à noção do
belo, temos que percorrer os caminhos da aquisição de identidade, que se
dão principalmente através do olhar da mãe dirigido ao bebê como também
através da confirmação que faz o bebê de que ele é um ser humano. Como
isso se dá? J. Lacan (1977) escreveu um trabalho intitulado “O estádio do
espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelado na
experiência analítica”. Através de estudos da psicologia comparada, ele
relata que os pombos, por exemplo, só alcançam a maturação de suas
gônadas, na presença de um congênere seu, macho ou fêmea; e que o bebê
humano, a partir dos 6 meses de idade, começa a reconhecer-se no espelho
e isso é fator de descobertas sobre si mesmo e estruturação do eu. Winnicott

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(1975) mais tarde escreveu outro trabalho sobre o papel do espelho para a
criança, sendo entretanto o espelho representado pelo olhar da mãe e da
família como também do ambiente, responsáveis pelo sentimento de
aceitação da criança, da confirmação de estar crescendo, se desenvolvendo.
A criança se olharia no olhar-espelho da mãe e se sentiria amada - ou não.
Ao longo de nossa vida, procuramos captar no olhar do outro, dirigido a
nós, aprovação, elogios, uma pista de que estamos sendo vistos como
saudáveis, adequados e se possível, belos. Na história, veremos o homem
vestido das mais diversas formas, não apenas para se defender do frio,
como também para proteger a visão de seus órgãos sexuais, e também de
realçá-los sem mostrá-los completamente, como no caso das mulheres.
Adereços nos primitivos, buscavam um destaque de sua figura, com penas
de pássaros, dentes de animais, etc, e posteriormente sedas, rendas, jóias
e outros como símbolos de poder no homem civilizado.
Também aqui haveria uma dialética de buscar ser admirado, baseada
numa pressuposição ou projeção de busca do belo.
Agora meus comentários sobre a parte mais subjetiva, sobre a
apreensão do belo, sobre o que nos movimenta em direção à beleza, numa
visão psicanalítica.
Entrando um pouco mais na questão: um aspecto é querer ser admirado,
aceito; outro é precisar do belo.
Freud, (1930) em Mal-estar na Civilização, afirma que a valorização da
beleza é uma das características principais da sociedade civilizada e que a
fruição da beleza seria uma sublimação da atração sexual; a beleza seria
resultante da transposição da libido para objetos não-sexuais e a excitação
sexual se tornaria dessexualizada como prazer estético. Para Freud, a beleza
não seria algo em si, mas envolveria um processo subjetivo em que nossa
experiência de mundo estaria idealizada. Por esse ângulo, o objeto é sentido
como belo, não porque seja belo, mas porque se tornou um objeto
secundário de desejos eróticos. A sublimação é alcançada através da função
simbólica. Ainda numa perspectiva da psicanálise clássica, o sentido da
beleza nos alcançaria através de uma função defensiva, pelo caminho da
reparação ou negação das fantasias de castração. Talvez pudéssemos
visualizar na Vênus de Milo (a bela estátua de mulher com os braços
decepados, do período helenístico) um símbolo de beleza que remete à
incompletude, à castração.
Rank (1932 apud Hagman, 2004 ) escreveria que “no sentido da beleza
há um sentimento de totalidade, prazer, redução da ansiedade e a
experiência de fusão com o objeto que é sentido como perfeito e ideal”.

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Sachs (1942 apud Hagman, 2004) considerou a beleza como uma das
formas mais elevadas de experiência humana, sendo expressão de forças
internas de vida e de morte. Para ele, a atividade mental criativa reagindo
à beleza, produzindo beleza, corresponde à forma mais elevada da vida
psíquica, onde id, ego e superego estão ajustados.
O quadro O grito, de Edward Munch (1893) revela, a meu ver, compo-
sições múltiplas dessas instâncias esquematizadas por Freud (1923),
levando-nos à apreensão de dor extrema, horror, trevas e luz, luz corres-
pondendo mais à nossa apreensão do sentido, à captação do sofrimento
humano descrito em cores vivas, o feio e o bonito expressados de maneira
pictórica. Sob a ótica da teoria das pulsões, pulsão de vida, pulsão de morte,
tecendo entrelaçamentos.
Outra contribuição importante na compreensão psicanalítica de nossa
necessidade de beleza, surgiu de autores da escola kleiniana, entre os quais
Hanna Segal, Harris Williams, e outros como D. Meltzer que citarei a seguir.
Tomarei o conceito de projeção, expandido por essa escola, para
pensarmos um pouco mais.
Falando em projeção, necessariamente falamos de cisão ou divisão,
onde um determinado aspecto ou conjunto de sentimentos, percepções,
etc, são separados em agradáveis e desagradáveis, feios e bonitos e então
o belo é projetado e buscado; o feio é negado, desprezado, ignorado.
Continuando essa noção, utilizamos outro conceito, o da idealização, pelo
qual conferimos ao objeto qualidades maravilhosas de perfeição. A beleza
corresponde a uma idealização. Essa idealização ajuda-nos a construir
nosso ego ideal, porém a sua utilização exagerada pode afastar-nos da
realidade. Em certa proporção, precisamos estar em contato com alguém
ou algo sentido como ideal
Buscamos o belo como o contrário do feio que carregamos dentro de
nós: nossa culpa pelo que estragamos ao redor ou dentro de nós, conse-
qüência de nossos impulsos ou desejos destrutivos, nosso ódio, nossa inveja
do outro, nossa rivalidade, nosso sempre presente egoísmo. A fruição do
belo funciona como um lenitivo, um bálsamo para nossas aflições e
frustrações diante do viver. Aqui se agregaria um conceito desenvolvido
por Klein, que é o conceito de reparação que significa restaurar, na fantasia,
danos feitos a figuras queridas, notadamente da infância. Produzo algo
belo para reparar o mal que fiz, para reconciliar-me com aqueles que
maltratei, na realidade ou na fantasia.
D.Meltzer (1990) dedicou um livro inteiro ao assunto, A apreensão da
beleza.

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Ali ele descreve o conjunto de reações que emergem do contato do bebê


com sua mãe. A mãe, ao prover o bebê em suas necessidades de alimento,
calor, sustentação nos braços, carinho na voz, olhar, etc, é tornada bela
porque promove o seu bem-estar completo via satisfação de seus sentidos
ao mesmo tempo que o defronta com os mistérios dela – interior de seu
corpo e sua vida mental, que ele deverá ir descobrindo à custa de sua própria
imaginação criativa, outra importante fonte de apreensão e fruição da beleza.
Assim, podemos entender que a primeira apreensão de beleza feita pelo ser
humano é aquela que resulta da contemplação prazerosa e satisfeita do rosto
materno, na sua complexidade dentro-fora, beleza exterior, beleza interior,
busca e elaboração de significados emocionais que irão se compondo na
delicada trama da interação mãe-bebê. Da percepção da beleza dos
sentimentos amorosos da “mãe abnegada comum” (Winnicot, 1994), o
bebê poderá estender e desenvolver seu senso estético para a beleza da
vida, e também para a beleza e complexidade do seu mundo interno.
Citando Meltzer, “não há flor nem pássaro de esplêndida plumagem
que nos defronte com o mistério da experiência estética, como a visão de
uma jovem mãe com seu bebê no peito. Entramos num lugar assim como
entraríamos numa catedral ou nas grandes selvas da costa do Pacífico,
sem fazer ruído, com a cabeça descoberta”. Esse autor, citando Spitz, afirma
que não ser comovido pela beleza é incompatível com a sobrevivência, ou
pelo menos com a sobrevivência da mente. Sempre que deixamos de nos
comover com a beleza em suas várias manifestações, tornamo-nos apáticos
ou doentes psiquicamente. Nosek (2006) considera que não apenas
compreendemos uma obra de arte como também ‘ela’ nos compreende,
ou melhor, nos representa. E aduz: quando dizemos que gostamos de tal
música, tal poema, implicitamente dizemos que essa música ou esse poema
representa nosso gosto musical ou literário, o que faz sentido para nós.
Wheelis, A. (apud Hagman, 2004) comenta que a beleza não é somente
algo a ser admirado; é pelo comprometimento ativo com a beleza que nos
livramos da prisão do eu, pela fusão transcendente com o outro.
Contudo, não necessitamos estar infelizes para acharmos a beleza
revigorante. Nosso sentimento de eu se reafirma ao compartilharmos o
estado de perfeição.
Recolocando a apreensão da beleza no sentido de Kant, teremos que o
prazer do belo seria alcançado não apenas através da percepção pelos
sentidos mas também pela satisfação pessoal de integração das próprias
faculdades intelectivas e emocionais, ou a função psíquica; na contramão
desse sentido, constatamos em nossa realidade atual um preocupante

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desvio desse objetivo mais profundo de apreensão da beleza. Esse desvio


mostra-se mais patente em relação ao corpo humano, principalmente o
corpo feminino. Há o que alguns autores consideram um “adoecer da
beleza” ( Minerbo e Khouri, e outros, 1997) no sentido de haver uma busca
da beleza como fim em si mesmo. As mulheres tentam alcançar um ideal
estético não mais para se tornarem atraentes sexualmente, por exemplo
mas para sentirem-se de acordo com um padrão visual de beleza onde
qualquer gordurinha a mais pode ocasionar um abalo emocional. Minerbo
e Khouri (1997) relatam material de sessão analítica onde um marido
ameaça separação, se a esposa não emagrecer, ao que esta reage dizendo
que se ele não melhorar a careca através de um implante, ela também
pedirá o divórcio. Para essas autoras, nosso ideal de belo vai se reduzindo
a superfícies, imagens, corpos artificiais, onde a parte ocupa o lugar do
todo: um nariz um tanto aquilino obscurece a beleza do conjunto, as rugas
das mulheres que vão perdendo a juventude causam desespero e anelos
de correção cirúrgica. Os spas e academias não são buscados exatamente
por ideais de saúde mas sobretudo para não se destoar da média idealiza-
damente “sarada”.
Para concluir, naturalmente sem querer esgotar nossas reflexões, penso
que podemos considerar a situação analítica como modelo de fruição de
uma experiência estética, onde o sentimento do belo decorre menos das
paisagens mentais sobre nós mesmos que contemplamos, do que da
articulação simbólica dos significados da experiência emocional compar-
tilhada entre analisando e analista; nosso sentimento estético na sessão
de análise decorre de nos sentirmos fazendo novas descobertas sobre nós
mesmos e o mundo, construindo novos significados, resgatando nossas
faculdades cognitivas, sensoriais, simbólicas, nossa capacidade de amar,
de odiar e perdoar, aquecidos pela presença continente de nosso analista.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

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73
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Simetria ou Lógica Inconsciente e


Assimetria ou Lógica Consciente
da Relação Psicanalítica
Anne Lore Fischer Gomes Coelho*1,
Flavio Barros Souto Maior*2, José Oswaldo F. de Moraes*3,
Maria de Lourdes Monteiro de Salles*4, Manuel Gavilan*5,
Nahman Armony*6, Osmar de Salles*7 e Ronaldo Victer*8

Creonte: La Esfinge, cuyos sutiles cantos nos


exhortaban a fijarnos en lo que teníamos pies sin
preocuparnos de lo oscuro.
(Édipo rey)

* 1 Membro Titular da SBPRJ e Membro Associado do Fórum Psicanalítico do Círculo de


Psicanálise do Rio de Janeiro.
* 2 Médico-Psiquiatra e Psicanalista. Formado pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
* 3 Médico-Psiquiatra e Psicanalista. Formado pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
Foi Diretor do Instituto de Ensino da Psicanálise da SPRJ.
*4 Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Psicóloga do
Serviço de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital do IASERJ-Rio de
Janeiro.
*5 Médico-Psiquiatra e Psicanalista. Formado pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
*6 Médico-Psiquiatra. Membro Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
Membro Psicanalista da Sociedade Iraci Doyle. Membro da Federação Internacional das
Sociedades Psicanalíticas
* 7 Membro Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
* 8 Membro Efetivo e Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Professor Adjunto
de Psiquiatria da Universidade Federal Fluminense. Acadêmico Titular da Academia
Fluminense de Medicina. Membro da International Association for Psychoanalytic Self
Psychology.

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Resumo
Para os autores, desde a perspectiva da Teoria dos Sistemas de
Intersubjetividade desenvolvida por Stolorow, Atwood e Donna
Orange, a relação psicanalítica, pelo fato de estar assentada num
conjunto de regras tais como horários, pagamentos, normas sociais
e hierarquização entre paciente e analista, constitui uma relação
assimétrica ou do nível da lógica consciente.
Entretanto, uma vez que o sistema intersubjetivo é formado pela
interação mútua das transferências, ou seja, das atividades
organizadoras do paciente e do analista, tal relação vem a ser
também simétrica ou do nível da lógica inconsciente.
O trabalho procura destacar que o objeto da pesquisa cientifica
em psicanálise é a experiência humana e que toda experiência é
experiência subjetiva.

Abstract
The psychoanalytic relation, based in a set of rules such as time,
payments, social norms and hierarquization between patient and
analyst, constitutes an asymmetrical relation, on the level of the
conscious logic.
However, from the perspective of the Theory of Systems of
Intersubjectivity developed by Stolorow, Atwood and Donna
Orange, the intersubjective system is enhanced by the mutual
interaction of transferences, that is, of patient and analyst´s
organizing activities. Such relation becomes a symmetrical
relation, on the level of the unconscious logic.
The work looks for to detach that the object of the cientific research
in psychoanalysis is human experience and that all experience is a
subjective experience

No processo psicanalítico o paciente tem sido objeto de muitas inves-


tigações, proporcionando inúmeras maneiras de elaborações específicas,
por diversos autores, a começar por Freud. Mas, o tema permanece em
aberto como um objeto orgânico mutável.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Nos primórdios da Psicanálise, a relação psicanalítica seguia claramente


o modelo de relação médico-paciente, onde de um lado postava-se o
médico, o analista, o observador, o cientista, o sábio, o são, o liberado, e
do outro o paciente, o analisando, o observado, o objeto, o ignorante, o
doente, o resistente. O trabalho psicanalítico restringia-se ao exame
semiológico dos produtos do paciente, seus sintomas, seus sonhos,
fantasias, comportamento, transferência, seguido da aplicação do
medicamento interpretação, que supostamente os modificaria. Fundamen-
tada em uma teoria de causalidade, a eclosão do inconsciente reprimido
do paciente em sua consciência dissolveria a trama mental impeditiva do
seu bem estar. Todavia, o prognóstico e a eficácia de tal procedimento
dependiam não apenas da técnica usada pelo analista, mas também da
disposição do paciente de submeter-se a ela e de aceitar e modificar-se
pelo conhecimento do sentido inconsciente de seus sintomas
proporcionado pela interpretação.
Posteriormente, autores como Ronald Fairbairn e Harry Stack Sullivan
compreenderam que o foco freudiano na mente individual, no aparelho
mental, era insuficiente para o estudo da vida emocional. Ao criar sua
Teoria das relações de Objeto, Fairbairn deslocou o foco do pulsional para
o relacional. A centralidade das relações de objeto na nova teoria deixava
implícita a necessidade de uma concepção de campo, algo que pudesse se
expandir além das fronteiras do espaço intrapsíquico, um campo de
interação.
A partir da metade do Século XX, os trabalhos psicanalíticos passaram
a destacar a participação do psicanalista na configuração da relação,
reavivando o conceito de contratransferência (apresentado por Freud
como transferência recíproca em 1910) em oposição à transferência. Nos
últimos cinqüenta anos, houve uma avalanche de idéias em torno do
entendimento teórico da relação psicanalítica, as quais se diferenciaram
entre si. Contudo, qualquer que fosse a teorização, ela caminhava para se
chegar um resultado terapêutico que se caracterizasse pela cura.
Basicamente, o importante seria estabelecer entre o psicanalista e o
paciente uma relação em que preponderasse a verdade cujo reconheci-
mento perpassaria pela palavra final do psicanalista. O psicanalista estaria
como mantenedor do juízo de realidade entre o verdadeiro e o falso, etc.
Dizer a verdade seria a única coisa certa que o psicanalista podia fazer.
Ainda que isso significasse que ele só poderia dizer o que seu olhar julgasse
como certo. Nesse caso, interpretação e julgamento eram coisas
coincidentes.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Neste início do Século XXI, a Psicanálise tem seguido caminhos díspares


e simultâneos. Entrou numa bifurcação. Uma parte científica tomou a
direção para os fundamentos da ciência natural, buscando comprovação
laboratorial dos primeiros trabalhos do Freud - Neurologista. Uma outra
parte foi em direção aos princípios da hermenêutica, buscando estabelecer
conhecimentos advindos da experiência humana, priorizando o Freud -
Descobridor do inconsciente dinâmico. Este nosso trabalho liga-se a este
Freud e tenta harmonizar-se com as transformações da Psicanálise que
tem na experiência humana o objeto da pesquisa científica, recorrendo
à máxima de que toda experiência é experiência subjetiva.
É através dessa conceituação que se molda a teoria dos sistemas de
intersubjetividade constituindo-se como uma das correntes psicanalíticas
da atualidade. Dentre essas, referimo-nos, especificamente, à formulada
pelos autores Robert Stolorow, George Atwood, Donna Orange, e outros,
dos USA.

A Psicanálise procura iluminar o fenômeno que emerge num campo


psicológico específico constituído pela interseção de duas
subjetividades, a do paciente e a do psicanalista, portanto, por essa
perspectiva, a Psicanálise é vista como sendo uma ciência da
intersubjetividade, que volta atenção sobre o entrelaçamento entre
os mundos subjetivos diferentemente organizados do observador e
observado (...) a Psicanálise é única entre as ciências na qual o
observador é também o observado. (ATWOOD & STOLOROW. 1984)

Também entendemos que os conceitos em geral, são abstrações teóricas


longe das experiências geradoras desses mesmos conceitos. Significa dizer
que as afirmações emergem da prática psicanalítica necessitam ser
consideradas por quem as expressa e como são assimiladas por quem as
ouve. Assim, devemos ressaltar que neste trabalho será empregada a
palavra lógica como um efeito sintático do que é sistematicamente
inteligível.

Os princípios organizadores da experiência

Stolorow et al. consideram a experiência humana o objeto da pesquisa


científica da Psicanálise. Ressaltam que toda experiência é experiência
subjetiva e que existe uma tendência universal no ser humano para

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

organizar e dar sentido à experiência. Adotam o método introspectivo-


empático de Kohut, porque advogam que a experiência é passível apenas
de ser apreendida pela empatia.
A organização e manutenção das experiências subjetivas, centrais para
a vida psicológica, foram se impondo cada vez mais como motivação
primária em lugar da descarga de impulsos.
Considerando a natureza multidimensional da experiência (dimensão
objetal e dimensão selfobjetal) e que o mundo subjetivo abrange mais
território experiencial que o self, Stolorow et al. colocam a subjetividade
no centro de sua teoria e conceituam o que eles chamam de estruturas da
subjetividade ou princípios organizadores da experiência. Tais
estruturas, os principais componentes da subjetividade vêm a ser
organizações da experiência, verdadeiras convicções emocionais que a
pessoa estabelece a partir de experiências intersubjetivas de toda a vida,
especialmente na família de origem e que, uma vez estabelecidas passam
a organizar suas experiências emocionais subseqüentes. Elas operam de
maneira automática e fora da consciência, vindo a constituir o ICS pré-
reflexivo.
Na ausência de reflexão a pessoa não tem consciência do seu papel
essencial na elaboração da sua realidade pessoal. O mundo no qual ela
vive e se movimenta apresenta-se como algo independente dela e objetiva-
mente real para ela.
É importante destacar que o ICS pré-reflexivo não é produto da
atividade defensiva, estando mais próximo das postulações de Lévi Strauss
(1963) e de Piaget (1932) sobre estruturas inconscientes do pensamento
que não são reprimidas e também, da idéia de Lacan, sobre o ICS ser
estruturado como linguagem.
Até que esses princípios se tornem disponíveis para reflexão consciente
e até que novas experiências emocionais proporcionem à pessoa possi-
bilidade de antever e esperar novas formas de conexão emocional, essas
velhas inferências, sem que a pessoa se dê conta, lhe proporcionarão seu
senso de self. Esse senso leva a convicções sobre conseqüências relacionais
decorrentes das formas de ser da pessoa, que pode sentir, por exemplo,
um temor paralisante de provocar ridículo ou sarcasmo por ser dessa ou
daquela maneira.
Para Stolorow, a Psicanálise é acima de tudo um método para iluminar
o ICS pré-reflexivo e tal objetivo é alcançado pela análise da transferência.
A transferência passa as ser vista não mais como uma compulsão à
repetição biologicamente fundamentada, mas como uma atividade

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

organizadora da experiência, uma expressão dos princípios organizadores.


Desse modo, Psicanálise se torna um meio de explorar e compreender
princípios organizadores de duas subjetividades em interação. A ação das
atividades organizadoras, do paciente e a do analista, estabelece um campo
intersubjetivo. Nesse campo o que um experimenta como transferência é
manifestação de princípios organizadores do outro.

Contextualização

A perspectiva do sistema intersubjetivo marca a distinção entre as


psicologias de uma-pessoa e de duas-pessoas, e também revela que essa
distinção tornou-se obsoleta na medida em que a pessoa e seu mundo
intrapsíquico estão incluídos como um subsistema numa relação maior
cercada por um amplo sistema intersubjetivo.
O foco teórico intersubjetivo não elimina o foco tradicional da
Psicanálise sobre o intrapsíquico. O enfoque intersubjetivo contextualiza
o intrapsíquico. O problema com a teoria clássica não são seus focos sobre
o intrapsíquico, mas sua incapacidade para reconhecer como o mundo
intrapsíquico se forma e evolui nos nexos de sistemas de vida, e que é
profundamente contexto-dependente. O foco posicionado na conjunção
aditiva e expõe o mundo individual de experiências interiores e seus
encaixes com outros semelhantes mundos, dentro de um fluxo contínuo
de mútua influência. Psicanalista e paciente.
Repetindo: o princípio sobre-ordenado da motivação humana, que é a
necessidade para manter a organização da experiência, é a causa central
na padronização da atividade humana. Tanto sob o prisma das relações
objetivas como subjetivas.
A relação psicanalítica traz, simultaneamente, para o encontro as
características da experiência humana, ou seja, duas pessoas, cada uma
delas com seus princípios organizadores da experiência.
Podemos desenhar um quadro onde o psicanalista é representado pela
sua experiência de vida, pelo seu conhecimento teórico e pela sua
capacidade para se condoer com o sentimento do outro. O paciente por
sua vez está representado por formas de necessidades intrínsecas, oriundas
de convicções emocionais abalizadas pelas experiências. O paciente já traz
um tipo de organização antes mesmo de estabelecer concretamente a
relação com o psicanalista, ou seja, ele guarda expectativa de como será
acolhido, ou qual jeito se relacionará, etc.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

São organizações de experiências de mundos singulares interagindo


com o propósito de dar sentido a algo vivido sem sentido, a algo
previamente estabelecido como necessitado de sentido, ou seja, a vida
emocional do paciente. Nas palavras de Orange, a Psicanálise é uma
conversação especial acerca de significados (1995). A Psicanálise
fundou-se numa condição eminentemente humana da busca de
significados. Com respeito a isso, Ernest Becker, antropólogo, afirma:
O homem é o único animal que não está integrado por instinto
em seu mundo. O animal com um conjunto de respostas
instintivas sofre limitações, porque seu mundo está feito de
antemão (...) Somente o homem, entre todos os animais,
gradualmente desenvolve seu próprio mundo de respostas
perceptivas por meio de conceitos guias imaginários. Na
realidade, dessa maneira cria continuamente sua própria
realidade (BECKER, E.1968).
Quando um gato vê o passarinho, imediatamente tem atenção
despertada e toma posição para pegá-lo. Para o gato o passarinho sempre
será um passarinho, uma presa em potencial. Quando um ser humano vê
o passarinho, pode despertar ou não sua atenção, mas o passarinho será
sempre, assim como todas as coisas que o cercam, objeto de significados
de suas experiências, inclusive, podendo vir a ser sua presa. Logo, a
apreensão de um objeto faz-se pelo seu significado, construído na expe-
riência, e assim, portanto, todo contexto da relação psicanalítica converte-
se num postulado do pensar reflexivo. Significados psicanalíticos são
sempre co-criados e co-determinados.
É interessante associarmos o que estamos explanando com os primeiros
trabalhos de Freud e Breuer sobre o caso Anna O, quando ela se referiu ao
tratamento como a cura pela fala - talking cure (1895). Essa fala marcou
a perspectiva de Freud naquilo que viria a ser Psicanálise. Trazer para
este nosso trabalho essa associação é importante, de uma forma ou outra,
porque estamos re-assegurando os mesmos pilares de fundação da
Psicanálise, dando importância à fala, não exatamente como foi dada pelo
prisma do processo catártico, mas a fala enquanto um processo dialógico.
Portanto, estamos valorizando a comunicação verbal do paciente no
contexto de uma comunicação que inclui, sobretudo, a disposição receptiva
do psicanalista. O quê da conversação revelar-se-á à medida que haja
integração entre ambos, proporcionado pela intimidade e pelo
surgimento de temas nunca antes falados. Cada mundo e expressão
pertencem a uma particular linguagem de um particular orador num

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

particular contexto do diálogo - não existem palavras neutras. O


processo dialógico exige o máximo de conscientização possível dos limites
individuais do psicanalista e do paciente.

Simetria e Assimetria

O sentido das palavras simetria e assimetria, ainda que obscuro,


induzem-nos de imediato, a entendê-las como fazendo referência a duas
coisas, como relacionando duas partes que se complementam. Assim,
podemos dizer que falar de simetria ou de assimetria é falar da comple-
mentaridade de alguma coisa.
Ainda cabe observar, que o ser humano vive buscando algo comple-
mentar, não importando se de forma ilusória, mas busca algo que o
complete, como a semelhança essencial. Algo facilmente observável
em incontáveis circunstâncias que vão da própria condição humana da
necessidade de agregação até os atuais grupos de auto-ajuda, etc. O
Humano faz o que lhe é possível para se sentir ligado a outro. O que pode-
mos dizer é que ele se movimenta pelos princípios organizadores da
experiência buscando encaixes e formando vínculos. Uma lógica que se
repete na relação psicanalítica.
O paciente ao se adaptar à estrutura formal da relação psicanalítica,
como o horário, a regra de pagamento, ou o divã, está apenas exercendo o
que lhe compete: seguir regras preestabelecidas de tratamento. Enquanto o
psicanalista é instado a assumir sempre a posição de quem sabe o que o
paciente não sabe. Então, somente a partir do desenvolvimento da relação
psicanalítica, e por efeito da junção, as posições daquele que tem o saber e
do que não o tem, darão lugar ao respeito mútuo e fortalecimento de trocas.
Existe a adequação própria do encontro analítico, mas, os desdobra-
mentos desse encontro, vindos do sistemático contacto das sessões,
configurar-se-ão no chamado ritual psicanalítico. Às vezes, mesmo antes
de o paciente adentrar propriamente no consultório, o setting psicanalítico
participa do contexto em que se dará o ritual. No fundo, a instalação do
ritual origina-se da motivação básica para a organização, isso tanto do
lado do paciente quanto do psicanalista. Estabelece-se um “acordo tácito”.
A dimensão assimétrica da relação psicanalítica contém a valoriza-
ção do psicanalista pelo conhecimento e respeitabilidade científica, pelo
reconhecimento de seus pares, pelo respeito infundido por suas opiniões
ao paciente, etc, etc. Se o paciente é afeito a discernimentos objetivos,

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

sentir-se-á confortável diante de uma postura objetiva por parte do


psicanalista. Essa postura emanada pelo psicanalista juntar-se-á com a
atitude do paciente em uma lógica consciente, dando à relação analítica a
dimensão assimétrica.
Há pacientes que necessitam de um tempo maior de permanência na
dimensão assimétrica da lógica consciente para alcançar um nível de
reflexão que os faça compreender certos traços de seu inconsciente pré-
reflexivo, ou seja, com seus princípios organizadores da experiência.
Em alguns artigos pode-se até perceber o excesso dado à dimensão
assimétrica da relação, quando o autor querendo designar sintomas ou
efeitos psicodinâmicos de conflitos, o faz pela perspectiva de um conceito
formulado por quem se posicionou fora do campo de observação. Às vezes,
tais finalizações são conjecturas teóricas e, forçosamente, uma teorização
particular do psicanalista. A dimensão assimétrica é em si mesma uma
condição da relação psicanalítica, mas não é, em hipótese alguma, o
seu único pilar.
Como dissemos acima, o observador é também o observado, além
de termos pontuado elementos da dimensão assimétrica, entretanto, o
maior grau de complexidade no mais amplo sentido da palavra está na
dimensão simétrica.
Por que o maior grau de complexidade? Porque todo conceito terapêu-
tico da Psicanálise baseava-se até então, nas cargas sintomáticas trazidas
pelo paciente que acabavam por se manifestar na transferência.
Freud foi quem estabeleceu a definição de transferência e que
caracterizou a sua importância terapêutica. Também foi quem primeiro
explicitou o termo transferência recíproca - Gegenübertraung -
consagrada por contratransferência, ou seja, a parte do psicanalista
dirigida ao paciente de forma não-consciente. Donna Orange propõe ser
cotransferência algo que se estabelece na relação psicanalítica por
simetria de elos, entre paciente e psicanalista transposto inconscien-
temente.
Na perspectiva da teoria dos sistemas de intersubjetividade, a
transferência é compreendida como microcosmo da vida psicológica total
do paciente, conseqüentemente, a análise da transferência provê um feixe
de luz que pode clarificar os padrões que dominam a existência do paciente
como um todo, seja em torno dele mesmo, seja o que nele mudou.
Enquanto a cotransferência refere-se como a estrutura de subjetividade
do psicanalista vivencia a relação psicanalítica, em particular, a transfe-
rência do paciente. Do entrelaçamento de transferência com cotrans-

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

ferência resultam duas situações básicas: conjunção de intersubjetividade


e disjunção de intersubjetividade. A conjunção representa as experiências
do paciente, assimiladas nas configurações próximas da centralização da
vida psicológica do psicanalista. Ao contrário, a disjunção ocorre quando
o psicanalista assimila o material expressado pelo paciente de forma a
alterar o significado subjetivo atual dado pelo paciente. Aproximações
psicológicas, entre dois mundos subjetivos, direcionadas por um sistema
de adequação dos princípios organizadores das experiências de ambos,
paciente e psicanalista. Portanto, em função dessas aproximações, somente
determinados mundos subjetivos que se completam por conjunção,
formarão elos duradouros. O que escapa a investigação psicanalítica dos
elementos de correspondência intersubjetiva reflete algum tipo de defesa
compartilhada pelo paciente e psicanalista. Daí se torna mito aquele
psicanalista que trata indistintamente todos os pacientes.
Facilitar as condições que permitem dentro do universo subjetivo de
um paciente, o desdobramento máximo da transferência analítica,
buscando iluminar os achados constitui-se no tratamento psicanalítico.
Os fenômenos clínicos como transferência e cotransferência, as interpre-
tações de psicopatologia em geral, ação terapêutica da Psicanálise etc, não
podem ser compreendidos separados dos contextos de intersubjetividade
nos quais eles tomaram forma. O paciente e o psicanalista juntos formam
um sistema psicológico indissolúvel, e é evidentemente, esse sistema que
constitui o domínio da investigação psicanalítica empírica.
Por outro lado, na relação psicanalítica a expansão não se dá somente
por esse tipo de esforço em aumentar a investigação, ela é também
transformada. A ênfase está no processo, no engajamento e na geração
de um novo tipo de experiência vivida como processo de esclarecimento da
natureza das trocas da experiência intersubjetiva. O que é alcançado não é
simplesmente o conhecimento do que pode ter sido inconscientemente
trocado, mas um novo tipo de experiência com a qual eles se impactaram.

Conclusão

Assimetria/simetria. É importante salientar a natureza radical da


diferença entre os dois tipos de dimensões, ou seja, uma diferença que,
entretanto, não é a de opostos - as duas dimensões são perfeitamente
capazes de combinações variadas, incorporando elementos de uma na
outra. A matriz da relação psicanalítica é sempre assimétrica e simétrica,

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contudo, dentro dessa moldura as duas freqüentemente atuam uma sobre


a outra se expressando, visivelmente, ora uma ora outra. Conseqüen-
temente, se a assimetria destaca-se com primazia em uma relação
psicanalítica, os conteúdos formais da lógica consciente, entre o que é
certo ou errado, bom e mau, etc, também dominarão a perspectiva do
pensar reflexivo, limitando-o ou não. Se, caso contrário, a simetria se
destaca, a lógica inconsciente tenderá a limitar ou não o pensar
reflexivo. Dependerá da dupla via de ligação. Assim, o importante é saber
que a relação psicanalítica caminha com duas pernas.

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85
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Um estudo sobre a histeria


masculina: de Freud aos
autores contemporâneos
Laura Meyer da Silva*

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo uma revisão da evolução
da histeria masculina na obra de Freud. A partir do que Freud
escreveu sobre o assunto, a autora desenvolve o tema a partir de
autores contemporâneos.
Faz um questionamento sobre se a histeria masculina apresenta-
se diferente da feminina e por que esse diagnóstico parece não
estar sendo muito utilizado atualmente. Na visão da autora, a
histeria masculina ainda é um quadro diagnóstico que aparece
com bastante freqüência, porém de forma diferente dos quadros
apresentados na época de Freud.

Abstract
The goal of this paper is to revise the evolution of masculine hysteria
in Freud´s works. Based on what Freud wrote about the subject,
the author of this paper attempts to develop the male hysteria
theme based on comtemporary authors.
This paper questions if masculine hysteria is different than
feminine hysteria, and questions as well why this diagnose does
not seem to be much in use nowadays. According to the author of

* Psicanalista, Membro Associado da SPPA.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

this paper, male hysteria is still a case which happens frequently,


however it presents itself in different clinical forms than those seen
during Freud´s time.

Introdução

Os Estudos Sobre a Histeria (1893-1895) são o ponto de início da


Psicanálise, pois esta deve seu nascimento, e boa parte de seu desenvolvi-
mento, à histeria.
Chama a atenção o fato de ser pouco abordado o assunto da histeria no
homem. A começar pelo próprio nome, a histeria foi considerada por muito
tempo uma doença de mulher, mas sabe-se que a mesma também é
diagnosticada para o sexo masculino já desde os tempos em que Charcot
iniciou suas pesquisas sobre a histeria.
Atualmente, o diagnóstico de histeria não tem aparecido com tanta
freqüência como antes, ou poderíamos nos perguntar se não temos mais
tantos histéricos como na época de Freud? Ao que tudo indica, casos como
os que foram descritos por Freud realmente são escassos. Hoje, temos um
outro tipo de histérico e talvez isso confunda e dificulte o diagnóstico de
histeria.
Halberstadt-Freud (1996), em seu artigo intitulado Estudos sobre a
Histeria nos últimos cem anos: um século de Psicanálise, cita um trecho
da Associação Psiquiátrica Americana (1994): “...a histeria enquanto
quadro clínico - modelo da psicanálise e protótipo de neurose - parece
ter desaparecido e sido banida dos manuais diagnósticos” (p.139). A
autora prossegue afirmando que é errada a idéia de que a histeria não
ocorre mais. Para ela, a histeria varia de acordo com a época e o lugar,
acompanhando a evolução da civilização e o paciente histérico tem queixas
existenciais difíceis de classificar nosologicamente. Afirma que somente
os analistas franceses continuaram ligados ao conceito de histeria e que,
em outros países, como diagnóstico, o quadro desapareceu. Considera que
hoje o conceito volta a ser novamente valorizado, tanto historicamente
como na clínica.
Para Bollas (2000), a psicanálise progride em “vais-e-vens” . Sugere
que na década de 1950 houve um crescimento da personalidade borderline
e que “a psicanálise dessexualizou sua própria linguagem e teorias,

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

anunciadas por meio do significante ‘borderline’, que constituiu, então,


um recalque da palavra ‘histeria’ ”(p.264). No início dos anos 90 ressurge
novamente o assunto histeria, que parecia esquecido. A psicanálise parece
então redescobrir a histeria e segundo o autor, “pode ter igualmente se
recobrado de seu próprio esquecimento”(p.264).
Nogueira (2000) destaca que é freqüente doentes histéricos serem
diagnosticados erroneamente como portadores de depressões endógenas,
psicose maníaco-depressiva, esquizofrenia pseudoneurótica, esquizofrenia
esquizoafetiva, doença do pânico, anorexia nervosa e outros. Para o autor,
esses diagnósticos “são às vezes concomitantes com a caracteropatia
histérica e, por vezes, são a própria expressão da mesma, por meio ou
exteriorização de alguns dos seus componentes mais primitivos e que
dizem respeito às suas bases orais” (p.255/6).
Minha idéia quanto a este trabalho seria, portanto, tentar compreender
o que foi a histeria na época de Freud, até mesmo antes dele, e hoje, como
se manifesta clinicamente no homem e se há diferenças clínicas de sua
apresentação quanto ao sexo. Ilustrarei o material com uma vinheta,
fazendo uma compreensão posteriormente.

Revisão da Literatura

A doença histérica remonta aos tempos de Hipócrates. “Histeria” vem


da palavra grega hysteron (útero). Os antigos gregos empregavam o termo
apenas em relação à doença de mulheres, alegando tratar-se do mau
funcionamento do útero. Rycroft (1975) explica que havia duas teorias: a
primeira, dizendo que o útero era um órgão móvel que se deslocava pelo
corpo, pressionando outros órgãos e a segunda, que a abstinência sexual
conduzia à ‘inanição do útero’ ou retenção de espíritos animais não
utilizados, que saíam para fora do útero, perturbando outros órgãos.
Strachey (Freud, 1893), discorrendo sobre Charcot, ressalta que o
mesmo, no final do século passado, citou pela primeira vez a histeria
masculina, ao dedicar-se às neuroses, principalmente à histeria, tendo a
oportunidade de estudá-la, tanto em homens, como em mulheres. Freud
(1956 [1886]), em seu Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim,
descreve que a grande importância prática da histeria masculina, que não
costuma ser reconhecida, principalmente quando seguida de um trauma,
foi o ponto central dos estudos de Charcot, que atendeu um paciente
histérico por três meses. Charcot parte de casos mais desenvolvidos da

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

doença e procura reduzir a conexão neurose-sistema genital, demons-


trando a freqüência de casos de histeria masculina, especialmente a de
origem traumática.
Em 15 de outubro de 1886, seis meses após ter retornado de Paris,
Freud apresenta um artigo Sobre a Histeria Masculina, na Sociedade de
Medicina em Viena. Esse texto não foi mais encontrado, existindo somente
resenhas a respeito. O artigo não foi bem recebido por Meynert, que desafia
Freud a apresentar um caso de histeria. Então, em 26 de novembro de
1886, Freud apresenta o caso que trata de um homem histérico, com
sintoma de hemianestesia num grau elevado. O trabalho mostra mais os
aspectos físicos e apenas indícios leves dos fatores psicológicos. Freud
considera que este tipo de paciente é um caso comum, freqüente e que,
em geral, passa despercebido.
Em 1888, para Freud, a histeria está baseada em modificações fisio-
lógicas do sistema nervoso. Considera as zonas histerógenas, que seriam
áreas supersensíveis do corpo, que a um simples estímulo desencadeariam
um ataque. Essas áreas seriam encontradas com freqüência no tronco,
“...numa área da parede abdominal correspondente aos ovários, na
região coronária do crânio e na região infra-mamária; e, nos homens,
nos testículos e no cordão espermático” (p.82). O diagnóstico de histeria
pode ser feito, então, baseado nos sintomas de distúrbios de sensibilidade.
As manifestações histéricas, em geral, são exageradas e os sintomas
mudam, excluindo suspeita de lesão orgânica. Mas o importante é descartar
alguma possível doença orgânica. Também se observa, juntamente com
os sintomas físicos, uma série de distúrbios psíquicos, representados pelas
alterações no curso e na associação de idéias, inibições da atividade e da
vontade, exagero e supressão dos sentimentos, etc. A influência dos
processos psíquicos sobre os físicos, do organismo, acha-se aumentada,
fazendo com que os histéricos funcionem com um excesso de excitação no
sistema nervoso, ora inibindo, ora provocando irritação. A hereditariedade
da histeria é constatada por Freud, assim como outros fatores secundários.
As causas acidentais seriam desencadeantes. Cita fatores que poderíam
propiciar o desenvolvimento de uma disposição à histeria, como: criação
cheia de “mimos”, despertar prematuro da atividade mental, excitações
freqüentes e violentas, trauma, intoxicação (chumbo, álcool), luto, emoção,
doença consumptiva, etc.
Em geral, os primeiros sinais de histeria aparecem na adolescência,
podendo já se manifestarem na infância. Para Freud (1888), pode ser
encontrada tanto em meninos como em meninas, com intensa disposição

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histérica, com o primeiro surto antes ou após a puberdade. “Homens na


idade juvenil parecem particularmente suscetíveis à histeria devida a
trauma e intoxicação. A histeria masculina tem a aparência de uma
doença grave; os sintomas que ela produz quase sempre são rebeldes ao
tratamento; a doença, em homens, de vez que tem a importância maior
de implicar uma interrupção do trabalho, tem também maior
importância prática”(p.93-4). Freud (1888) pensa que a histeria pode
estar combinada com outras doenças neuróticas e orgânicas, e que essa
combinação é mais freqüente em homens. Considera que existe uma
disposição maior dos homens à neurastenia e das mulheres à histeria.
Freud (1940-41 [1892]), em Esboços para a ‘Comunicação Preliminar’,
de 1893, discorrendo sobre a explicação dos fenômenos histéricos, afirma
que “A lembrança que forma o conteúdo de um ataque histérico não é
uma lembrança qualquer; é o retorno do evento que causou a irrupção
da histeria - o trauma psíquico” (p.214). Essa relação aparece nos casos
de Charcot em pacientes do sexo masculino. Observa Charcot que um
homem não histérico, passa a sê-lo após um único episódio de medo
intenso. O conteúdo do ataque consiste na reprodução alucinatória do
evento que colocou a vida da pessoa em risco: “...a conduta desses
pacientes não difere da conduta de pacientes comuns do sexo feminino;
é um modelo exato desta” (p.214).
Em Considerações Teóricas (Breuer), Freud (1893) pensa que nas fases
iniciais as histerias de um grau severo parecem uma “síndrome de histeria
aguda”. Em casos de histeria masculina, em geral, aparecem casos de
‘encefalite’, e na histeria feminina, a neuralgia ovariana leva a um
diagnóstico de ‘peritonite’. Na histeria aguda os traços psicóticos são
distintos, como os estados de excitação maníacos e coléricos. Sintomas
somáticos aparentes seriam, na verdade, relacionados a idéias, e os ataques
histéricos, pelo menos em parte, são produtos de um complexo ideacional
inconsciente.
Na seqüência de sua obra, Freud (1950 [1892-1899]), nos Extratos dos
Documentos Dirigidos a Fliess, está convicto de que a histeria é provocada
por uma experiência primária de desprazer, de natureza passiva: que as
mulheres são mais propensas à histeria, em função de serem sexualmente
de natureza mais passiva e que, nos homens histéricos estudados, encontra-
se também a presença de passividade sexual. Freud (1893) suspeita que
os fatores responsáveis pela histeria estão na infância. Essa suspeita torna-
se cada vez mais forte e, por volta de 1895, afirma que a histeria é baseada
nos efeitos traumáticos da sedução sexual na primeira infância, e que as

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

experiências sexuais passivas na infância seriam, portanto, a causa da


histeria. Essa idéia fica mais clara para ele em 1896, na Hereditariedade e
a Etiologia das Neuroses, quando volta novamente a afirmar: “Uma
experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, então, a etiologia
específica da histeria” (p.174).
Para Freud (1894), os sintomas histéricos emergem através do
mecanismo psíquico de defesa (inconsciente), na tentativa de reprimir
uma idéia incompatível que se opõe ao ego. A defesa, portanto, é consi-
derada o ponto nuclear do mecanismo psíquico. Para que haja a histeria,
é necessário que tenha havido um trauma sexual na tenra infância “e seu
conteúdo deve consistir na irritação real dos genitais (por processo
semelhante à copulação)” (p.188).
Freud (1896) descobre que a passividade sexual, durante o período pré-
sexual é uma determinante da histeria em dois casos masculinos que
analisou. “...não são as próprias experiências que agem traumaticamente,
mas o seu reviver como uma lembrança (grifo do autor) depois que o
sujeito entrou na maturidade sexual” (p.189). Nesse trabalho, Freud não
cita detalhes sobre os dois casos. Prossegue: “Todas as experiências e
excitações que, no período posterior à puberdade, preparam o caminho
ou precipitam a eclosão da histeria, operam, como se pode demonstrar,
apenas porque despertaram o traço de memória desses traumas de
infância, os quais não se tornam conscientes de imediato, mas levam a
uma liberação de afeto e à repressão” (p.191).
Em 1897 Freud abandona a teoria traumática da etiologia das neuroses
(21 de setembro, carta 69) e descobre o complexo de Édipo (15 de outubro,
carta 71), compreendendo que os impulsos sexuais eram naturais nas
crianças, sem que necessariamente tenha havido estímulo externo. Gra-
dualmente, a sexualidade infantil é reconhecida (14 de novembro, carta 75).
Freud (1905 [1901]) questiona se os sintomas da histeria são de origem
somática ou psicológica, mas chega à conclusão que os dois têm
participação, e que a repetição do sintoma é uma característica da doença.
O sintoma Histérico tem o significado do pensamento reprimido. “...o
esclarecimento dos sintomas é alcançado buscando-se sua significação
psíquica” (p.38). Porém, “um sintoma tem mais de um significado e serve
para representar simultaneamente diversos processos mentais
inconscientes” (p.44).
Em 1905, nos Três Ensaios sôbre a Teoria da Sexualidade, Freud
discorre sobre a sexualidade normal e anormal, chamando atenção para o
fato de que existe uma tendência inconsciente para a inversão na histeria

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masculina. Em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria


(1905[1901]), Freud vai mais além, alertando que “ainda não passei por
uma só psicanálise de um homem ou uma mulher sem ter de levar em
conta uma corrente bastante considerável de homossexualidade” (p.58).
Considera indispensável ao entendimento da histeria nos homens avaliar
e compreender este aspecto em questão. Esse é o último momento em que
Freud cita a histeria masculina em sua obra. A partir daqui, faz-se
necessário, para o aprofundamento do assunto, reportar-nos a autores
contemporâneos.
Podemos, portanto, resumindo a evolução do conceito de histeria
masculina, dizer que ele se inicia com Charcot, em seus estudos sobre as
neuroses histéricas. É aprofundado por Freud, que dá continuidade à teoria
do trauma, evoluindo para o complexo de Édipo, até chegar ao ponto em
que a sexualidade infantil é reconhecida e valorizada.

Visão Contemporânea da Histeria

Como vimos, já na época de Freud a histeria era vista como doença de


mulher, existindo muitos preconceitos relacionados a ela. Hoje ainda
encontramos dificuldades culturais em relação a essa doença. Mayer (1986)
chama a atenção para o fato de como se fala em histeria de uma maneira
pejorativa, levantando diversas hipóteses, entre elas se não continuaria a
ser um problema de luta entre os sexos, fruto de uma cegueira alienante e
repressiva de uma cultura patriarcal. Ele também se pergunta se isso não
poderia estar ligado à “negação e denegação da sexualidade da mãe, que
necessita perpetuar-se, idealizando só aquilo que se refere a maternidade
como obrigação e não como prazer, uma vez que se inibe tudo que supõe
gratificação genital?”(...) (p.16). Pensa o autor que isto é válido para a
mentalidade masculina e para aquelas mulheres que de maneira incos-
ciente ainda sofrem a influência de uma cultura patriarcal.
Para Mayer (1986), o caráter histérico masculino não é muito diferente
do apresentado pela mulher histérica. Ele gosta de seduzir, ser amado por
todos, é um eterno insatisfeito, querendo sempre o que não possui. Tem
uma necessidade muito grande de mostrar-se, pois na verdade desvaloriza
tudo o que tem, sente-se uma pessoa insignificante, com um pênis insigni-
ficante, com uma mulher desvalorizada, fazendo um trabalho com pouco
valor. Sente-se inseguro, quanto à sua identidade sexual. A angústia de
castração aparece de maneira clara, como síndrome de angústia, como

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

pequenas ou grandes fobias, podendo também aparecer sintomas conver-


sivos. O homem histérico não superou a rivalidade com seus pais, nem o
temor ao castigo pelos desejos proibidos. Faltou-lhe a proteção paterna e
provavelmente, houve uma mãe que desqualificou este pai como homem
e seduziu seu filho. O grande sedutor em que o histérico se transforma o
trai na hora do ato sexual, pois seu pênis se opõe. O que ele não pode
admitir é que para ele a ternura é mais importante que o amor genital.
Rascovsky (in Mayer, 1986) afirma que a histeria masculina difere da
histeria feminina, pois a histérica evita a sexualidade genital, que possui o
significado de uma ferida traumática de castração. O histérico, por possuir
um pênis, quer mostrar que o tem. Sente necessidade de exibir e mostrar
sua potência e deprecia e desconfia da relação com o objeto. Exibir sua
potência fálica revela a angústia de castração subjacente, como também
componentes homossexuais e o desprezo pela mulher, à qual não tem
acesso. Essa exibição da potência é uma tentativa imaginária de anular a
angústia de castração. Ainda sobre as diferenças entre a histeria masculina
e feminina, Rascovsky (in Mayer, 1986) coloca que a histeria masculina
privilegia as disfunções sexuais, em função da angústia, já a histeria
feminina privilegia as conversões, na qual o corpo é o falo.
Abadi (in Mayer, 1986) concorda com Rascovsky e complementa a
discussão a respeito das diferenças entre os sexos, chamando a atenção
para o fato de que o homem busca ter um falo, enquanto a mulher busca
ser o falo. Prossegue acrescentando que as duas formas mais freqüentes
de sintomatologia histérica no homem são a impotência e a ejaculação
precoce. A finalidade desses sintomas seria impedir um corte. A relação
parece sexual, mas na verdade reedita uma relação narcisista materna.
Como o orgasmo tem o significado de fim, término, acabar, separação,
individuação, como não seria então afetado?
É interessante o ponto de vista de Moscone (1990) sobre as diferenças
entre a histeria feminina e a masculina em nossa cultura predomi-
nantemente fálica. Sugere que ambas têm uma estrutura básica em comum,
que determina aquelas características que as enquadram na histeria.
Segundo a hipótese do autor, as diferenças da histeria entre os sexos se dá
em função das gerações de cultura fálica e faz um questionamento: “Quais
seriam as particularidades da histeria que se desse dentro de uma cultura
não fálica? (p.125)”. O autor não tem uma resposta, mas faz diversas
interrogações a respeito da cultura machista e da histeria.
Para Halberstadt-Freud (1996), a relação da mulher com seu corpo,
cuja sexualidade é sentida de forma mais difusa e menos localizada no

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órgão do que no homem, é o que sugere a alta freqüência da histeria


feminina. Os homens não seriam capazes de se entregar e se dedicar, como
as mulheres, num relacionamento. A autora cita Schaeffer (1986), que
sugere ser a histeria masculina e feminina devidas, em parte, à ausência
de representação do sexo feminino, resultando numa sexualidade com forte
coloração fálica: o modelo fálico é um substituto e uma defesa contra a
ameaça feminina.
No artigo intitulado As bases orais da histeria, Nogueira (2000) cita
Fairbairn (1975), para quem a “sexualidade do histérico é, no seu fundo,
extremamente oral e que sua oralidade básica é marcadamente genital”.
(....) “O estado histérico resulta não de uma fixação em uma fase específica
do desenvolvimento libidinal, mas do emprego de uma técnica específica
para regular as relações de objeto internas, estabelecidas em idade
primitiva” (p. 257).
Yarom (1997) procura, em seu artigo A Matriz da Histeria, fazer uma
releitura sobre a histeria de hoje, partindo da constelação original segundo
Freud. Seriam “os conflitos com relação a sexualidade e gênero (a nível
edípico + pré-edípico), o maior mecanismo de defesa (repressão) e a
maneira na qual o reprimido volta (conversão) (p.1121-22)”. Sabe-se que
o conflito edípico tem um papel fundamental no entendimento dinâmico
da histeria. É através da conversão (sintomas corporais) que o conflito
mental se mostra.
Mayer (1986) também é da opinião de que a histeria é uma patologia
edípica, em que o complexo de Édipo não foi elaborado e a repressão é o
principal mecanismo de defesa utilizado. O histérico utiliza seu corpo como
área de expressão de sua sexualidade infantil reprimida, já que não
consegue se expressar em palavras. Ele também pode ser exibicionista,
teatral ou sedutor e tende a alterações conversivas. Esse autor também
cita outros traços não tão comuns: aspectos de bissexualidade, fixação
fálica e oral. O autor concorda com o que Abadi (in Mayer, 1986) expõe a
respeito da estrutura histérica, cuja gênese seria o resultado de uma função
paterna falida, pois o pai não rompeu a díade mãe-filho. O filho seria o
falo da mãe, ou seja, o desejo do desejo da mãe. Será a castração simbólica,
feita pelo pai, que permitirá ao filho tornar-se um ser sexuado e com desejos
próprios. Por não conseguir separar-se da mãe, o histérico tenta regressi-
vamente voltar a esta díade narcisista, ser o pênis da mãe.
Zetzel (1968) sugere que a histeria é uma situação edípica genital não
resolvida. Reconhece que a maioria dos pacientes descritos por Freud eram
mais perturbados que os pacientes hoje diagnosticados como histéricos.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Devemos nos lembrar que este “hoje” de Zetzel já tem 30 anos e já naquela
época existia a questão de o diagnóstico da histeria ser diferente da época
de Freud. A autora se dedica mais à histeria feminina, mas no início de
seu trabalho coloca seu ponto de vista a respeito da histeria masculina.
Para a autora, os homens analisáveis tendem a se queixar inicialmente de
problemas que sugerem uma condição obsessiva. Seus problemas se
relacionam mais ao trabalho do que relações de objeto heterossexuais.
Mas, durante o curso da análise, acabam revelando uma situação edípica
não resolvida, semelhante à das histéricas analisáveis. Portanto, esses
pacientes não podem ser descritos inicialmente como histéricos: eles
sofreram de uma neurose mista, com muitos aspectos histéricos.
Easser e Lesser (1965), assim como Zetzel (1968), excluíram de seus
artigos os pacientes masculinos, porque na sociedade ocidental a histeria
é mais freqüentemente associada às características afeminadas. Eles
sugerem que a maioria dos homens analisáveis tende a utilizar muitas
defesas obsessivas, e estas defesas são utilizadas pelas histéricas que melhor
respondem à análise.
Para Zetzel (1968), os homens histéricos que falharam em mobilizar
defesas obsessivas adequadas raramente fazem parte do grupo mais
analisável dos neuróticos masculinos. Sua análise revela uma estrutura
de caráter depressivo subjacente. Eles são tão perturbados quanto “as assim
chamadas boas histéricas”. Não costumam utilizar mecanismos histéricos
transparentes, ficando mais freqüentemente no grupo dos assim chamados
caracteres normais. São homens cuja adaptação externa ilusória foi
alcançada com apenas uma mínima consciência de sua realidade interna
e com resultantes defeitos, marcados na área da tolerância afetiva. Para a
autora, a verdadeira histérica experimentou um conflito triangular genuíno
e o histérico foi capaz de reter relações significativas de objeto com ambos
os pais. A relação pós-edípica foi menos satisfatória e mais ambivalente
do que a estabelecida no período pré-edípico.
Portanto, penso que estes autores, os que mais se sobressaem na revisão
por mim realizada quanto à histeria masculina, analisam o assunto de
forma complementar. Procurarei agora, através da seguinte vinheta,
mostrar na prática o que foi abordado na teoria; após, farei uma compreen-
são do caso, integrando-o para um melhor entendimento da histeria
masculina.

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Vinheta Clínica

Há cerca de dois anos, procurou-me um homem com 26 anos, vistoso,


por vezes sedutor na forma de falar e olhar, bem vestido, mas com
dificuldade de relacionar-se sexualmente, com as mulheres. Foi casado,
por 4 anos com uma mulher que o tratava como a um filho, chamando-o
carinhosamente de “meu gurizinho”. Pouco depois de ter iniciado o
tratamento, separou-se. Sentia-se “um menino num corpo de homem”. É
o mais jovem de três irmãos homens. Sempre sentiu que a mãe desejava
que fosse uma menina. Acompanhava-a em tudo e era “o queridinho da
mamãe”, fazendo sempre tudo o que esta pedisse, para não desagradá-la.
A mãe sempre foi superprotetora e até hoje tenta controlar todos os seus
passos, queixando-se muito quando ele não faz o que ela quer, dizendo:
“Tu não és mais o meu querido”. Como menino era “gordinho”, comia
muito e pedia depois para a mãe enfiar o dedo em sua garganta, para que
pudesse vomitar e continuar comendo. O pai sempre foi muito desvalo-
rizado pela mãe e só se aproximava dos filhos para castigá-los, jamais
participando de suas vidas ou mesmo conversando. Era viciado em jogo e
sempre estava devendo muito dinheiro. Os pais brigavam freqüentemente
e a mãe sempre ameaçava o meu paciente quando êste não queria fazer
alguma coisa que ela desejasse, dizendo que ele iria acabar sendo igual ao
pai e, conseqüentemente, ela deixaria de gostar dele. Com freqüência
escutava os pais mantendo relações sexuais; isso o deixava muito excitado,
levando-o a masturbar-se. Lembra de ter tido sonhos em que mantinha
relações sexuais com sua mãe. Tem um bom nível intelectual, tendo
iniciado diversos cursos universitários, dos quais logo se desinteressava.
Demonstra uma necessidade muito grande de aprovação. Preocupa-se
muito com sua aparência, chegando a exercitar-se 10 horas por semana e
angustia-se muito quando não consegue manter tal ritmo. Gasta boa parte
de seu salário com roupas. Seu peso alterna bastante, não consegue
controlar-se e come muito, sentindo-se deprimido depois. É bastante
sedutor na forma de falar, mas quando as mulheres se aproximam sente
muito medo, alega que perde o desejo sexual, embora esteja sempre muito
excitado e se masturbe com freqüência. Queixa-se de muitas dores de
cabeça nessas ocasiões, e procura isolar-se. Seu comportamento oscila
bastante: por vezes é dependente, frágil, incapaz de tomar qualquer atitude,
utilizando este comportamento como uma forma de obter atenção,
solicitando muito a orientação da analista. Em outros momentos, assume
um papel de liderança em seu trabalho, sendo o centro das atenções dos

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

colegas ao contar suas histórias de forma bastante dramática. Faz dieta,


aproxima-se mais das mulheres, chegando a sair com até três no mesmo
dia, mas sem ter relações genitais. Sente muita dificuldade de se envolver
com elas e vai logo avisando que não pretende continuar a relação, após
sentir tê-las conquistado.

Discussão

Uma visão descritiva, fenomenológica, atual de histeria pode ser


encontrada no DSM-IV(2002). Estudos que utilizam a avaliação
estruturada do Transtorno de Personalidade Histriônica (301.50) relatam
taxas similares de prevalência entre homens e mulheres. Tal transtorno
tem como característica um padrão de excessiva emotividade e busca de
atenção (ao falar, o paciente conta de forma teatral situações que não
correspondem contratransferencialmente ao que está falando, está sempre
procurando agradar a todos, fazendo o que acha que esperam dele, inclusive
comigo na sessão, falando coisas que acha que espero que ele diga). Esta
pessoa tem uma necessidade muito grande de ser o centro das atenções
(gosta de ser o centro das atenções na família, no trabalho, com os amigos,
etc...). Aparência e comportamento provocante e sedutor (gosta de vestir-
se bem, gasta muito dinheiro com isto). Expressão emocional superficial,
apresentando rápidas mudanças (na mesma sessão muda rapidamente
de emoção, da depressão para a brabeza, alegria). Utiliza a aparência física
para chamar atenção (gasta muito tempo e dinheiro com aulas de
musculação, natação, hidroginástica). Discurso impressionista, carente
de detalhes (ao descrever seus sentimentos, estes são superficiais, suas
histórias são telegráficas, não aprofunda o assunto). Autodramatização,
teatralidade e expressão emocional exagerada; - sugestionabilidade e
demonstração de que tem mais intimidade do que realmente existe com
outros (quando investigo como são realmente seus relacionamentos,
percebo que são todos muito superficiais, inclusive com os irmãos. Fala
que são muito íntimos, mas a convivência é rara e pouco sabe deles). Esses
são os oito critérios utilizados pelo DSM-IV para diagnosticar um Trans-
torno de Personalidade Histriônica.
O paciente descrito na vinheta apresenta um Transtorno de Perso-
nalidade Histriônica (Eixo II) associado a um Transtorno de Somatização
(Eixo I): disfunção Erétil, equivalente à frigidez feminina. Mayer (1986)
prefere utilizar o termo inibição genital, pois para ele a frigidez não é uma

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impotência e sim “não querer”. O paciente preenche a maioria dos critérios


do DSM-IV descritos anteriormente para o diagnóstico.
No caso desse paciente, o sintoma histérico ocorre quando o conflito
associado ao período edípico de seu desenvolvimento psicossexual é
redespertado. O desejo pelo objeto amoroso incestuoso (mãe) representa
o perigo principal. O sintoma (perda de ereção) representa uma expressão,
em linguagem corporal, de um compromisso inconsciente específico que
se desenvolveu entre um desejo instintivo (desejo pela mãe que é
reprimido) provocador de ansiedade e a defesa contra esse desejo. O desejo
instintivo e a defesa contra ele são reencenados no sintoma, o que em
outras palavras seria o “retorno do reprimido”. A perda de ereção é uma
punição masoquista, pela gratificação parcial da fantasia proibida e, ao
mesmo tempo, uma defesa contra o temor de castração subjacente.
Portanto, com a ilustração desse caso, partilho das idéias de Yarom
(1997) e Mayer (1986), consonantes com aquelas de Freud no que concerne
ser a histeria uma patologia edípica: o corpo é utilizado como forma de
expressão da sexualidade infantil reprimida por não conseguir manifestá-
la em palavras.
Concordo com Mayer (1986) quanto à forma de avaliar o caráter
histérico: o histérico não superou a rivalidade com o pai nem o temor ao
castigo pelos desejos proibidos, desejos estes em relação à mãe e, quem
sabe, até não em relação ao pai. Freud já alertara para a necessidade de
investigar a homossexualidade na histeria. O pai, no caso do paciente,
sempre ausente e pouco protetor, foi desqualificado sempre pela mãe, que
ainda amedrontava o filho, dizendo que, se ele se parecesse com o pai, ela
não mais gostaria dele. Isso também era uma barreira imposta pela mãe
para que o filho não se identificasse com o pai. O filho era um prolon-
gamento dela mesma. A função paterna falhou, o pai não rompeu a díade
mãe-filho. Ele sempre muito submisso à mãe, para não deixar de ser seu
“queridinho”. A mãe muito fálica e intrusiva atendia aos pedidos do
paciente de enfiar o dedo em sua garganta, realizando uma penetração
oral que, ao mesmo tempo em que satisfazia, provocava um profundo
sentimento de culpa, pois era a realização parcial de um desejo.
A relação sexual dos pais, que era ouvida pelo paciente e o excitava
muito, provocando fantasias ora com a mãe, ora com o pai, chegando
mesmo a realizar, em sonho, o desejo de ter relação sexual com a mãe.
O paciente gosta de chamar a atenção das mulheres e ser admirado
como forma de manter elevada sua auto-estima. Transforma-se num
grande sedutor, mas na hora do ato sexual, seu pênis se opõe, como diz

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Mayer (1986), pois na verdade o que deseja mesmo é ternura e não amor
genital. A preocupação com o próprio corpo é uma tentativa de ser desejado
pelas mulheres, assim como seu comportamento sedutor. Sente muito
desejo, mas quando se aproxima das mulheres, assusta-se e perde a ereção
ou mesmo o desejo. Nessas horas somatiza dores de cabeça, como forma
de poder fugir da situação ansiogênica que se cria.
Para Nogueira (2000) os pacientes histéricos possuem uma base oral
primitiva, com uma estrutura fálico/genital adulta, que seria uma fachada
que, quando rompida, revelaria “a pseudomaturidade e a dependência
primitiva com características predominantes de relação dual” (p. 256).
A relação com a ex-esposa era uma reedição de seu relacionamento
com a mãe, pois ela o tratava como a um filho. Não tomava nenhuma
decisão sem pedir sua opinião. Penso que ao iniciar o tratamento, transferiu
para a analista esse papel, e, com isso, conseguiu romper o relacionamento
com a esposa. Ao mesmo tempo em que se queixa da superproteção da
mãe, tenta no tratamento repetir esse comportamento, insistindo para que
a analista dê opiniões sobre o que deve fazer. Sempre que lhe é mostrado
que quer que a analista seja como a mãe, fica muito bravo, querendo ir
embora ou faltando à seguinte sessão. Quando se sente ameaçado pela
ruptura com a analista-mãe, insiste para reduzir as sessões para uma vez
por semana, ou mesmo interromper o tratamento por um tempo.
Nogueira (2000) entende “o funcionamento da estrutura histérica,
com suas interrupções temporárias ou definitivas freqüentes das análises,
em que se verifica a supremacia da necessidade de representação sobre
o sentimento de impotência para viver e lidar com uma realidade que
precisa ser evitada a qualquer preço” (p. 253/4). Seriam pacientes que
conseguem analisar-se em capítulos, com interrupções e posteriores
retornos. “ A comunicação é estabelecida, via de regra, por meio da ação,
do gesto, do acting-out que, por sua vez, condiciona, exige uma reação
que leva muitas vezes a uma interação mais primitiva, complementada
com o acting-out contratransferencial” (p. 254).
Com relação à questão de o diagnóstico histeria não existir mais nos
dias de hoje, conforme Nogueira (2000), poderia contribuir para isso o
fato de que os psicanalistas possam partir de perspectivas teóricas
diferentes; enfatizariam um ou outro aspecto do fenômeno histérico, o
que poderia deixar a impressão falsa de patologias diferentes. “Poderão
ser resaltados a fixação fálica, sua estruturação triangular, a repressão
como defesa predominante, as amnésias lacunares, as conversões/
somatizações dos afetos e o nível edípico clássico razoavelmente

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

delineados. Por outro lado, será salientada a conduta sedutora, teatral,


na qual a migração entre a inibição e o exibicionismo privilegia a
comunicação por meio do corpo, do gesto, da ação, configurando uma
estruturação caracterológica defensiva frente àquelas ansiedades mais
primitivas, de cunho depressivo e paranóide, cujas bases orais também
são evidentes na clínica psicanalítica” (p. 264/5).
Quanto ao trabalho analítico com o paciente histérico, descrito na
vinheta apresentada, conforme o ponto de vista de Abadi (in Mayer, 1986),
será a castração simbólica, feita pelo pai, que permitirá ao filho tornar-se
um ser sexuado e com desejos próprios. Penso que o papel que cabe ao
analista é tentar romper a díade mãe-filho.

Conclusão

Com fundamento em todas as pesquisas realizadas, assim como


embasada nos textos dos autores clássicos antes referidos, permito-me
concluir que a histeria masculina possui o mesmo contexto que a feminina
no sentido freudiano, ou seja, um complexo de Édipo mal resolvido. Porém,
a forma como se apresenta no homem difere um pouco da mulher histérica.
É ainda um quadro que aparece com bastante freqüência nos consultórios,
porém de forma um pouco diferente daquela apresentada na época de
Freud, mais sintonizada com o nosso marco cultural.

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Sobre a dificuldade de
exercer a função analítica
em paciente borderline
Ana Maria Ferreira Pinto*

Resumo
Este trabalho descreve algumas das dificuldades experimentadas
pelo psicanalista diante de um paciente borderline. Tento situar
a definição do termo, a descrição do modo de funcionamento deste
tipo de paciente com formas possíveis de manejo clínico, relatando
a seguir a experiência clínica com uma paciente de 31 anos.

Abstract
This article describes an experience with a borderline patient and
the difficulties that the psychoanalysts have to dare with then. We
discuss the definition of boderleine diagnosis; describe how these
patients use to behave and the peculiarities of their internal world,
with the prevalence of primary defenses.
Finally, the clinical experience will be described with some
comprehensive commentaries.

* Psicanalista, membro associado da SPRJ.

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Introdução

Este trabalho pretende versar sobre a difícil função do analista com


determinados tipos de pacientes, como os chamados borderline ou
personalidades fronteiriças.
O que motivou este trabalho foi um caso clínico onde as dificuldades
se fizeram bastante presentes, sendo necessária a busca de ajuda através
de supervisão, além de estudos sobre a problemática fronteiriça e sua
abordagem.
Utilizei autores como Kernberg, entre outros, não só para situar o
conceito de paciente borderline, como para ajudar tanto na compreensão
do material que será exposto quanto no manejo clínico do caso.
De início, acho necessário trazer a forma como este conceito vem sendo
desenvolvido. Na medida em que tentamos tornar esta definição diagnós-
tica mais precisa, nos deparamos com muitas indefinições, seja na
objetivação de uma estrutura, seja buscando uma visão psicogenética ou
mesmo fenomenológica.
Ainda assim, vale a tentativa de nos situarmos um pouco neste universo,
embora com pequenos ‘recortes’ possíveis dentro da vastidão dos pensa-
mentos desenvolvidos.

O conceito de paciente borderline

Otto Kernberg (1979) delimita o que ele chama de organização


borderline da personalidade, salientando que “esta designação inclui um
número maior que a categoria de distúrbio da personalidade borderline
do DSMII-R e cobre um nível de patologia de caráter que inclui a maior
parte dos casos de personalidade infantil ou histriônica e narcisista,
praticamente todas as personalidades esquizóide, paranóide,”como se”,
hipomaníaca, e todas as personalidades anti-sociais”. Para Kernberg, o
termo “organização fronteiriça da personalidade” é o que melhor descreve
os pacientes que apresentam uma organização patológica da personalidade,
específica e estável, e não um estado transitório que flutua entre a neurose
e a psicose.
No que diz respeito à organização defensiva, Kernberg, juntamente com
outros autores, aponta a clivagem, a idealização primitiva, a identificação
projetiva, a denegação, o controle onipotente e a desvalorização, mecanis-
mos estes destinados a proteger o ego dos conflitos, dissociando experiên-

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

cias contraditórias do self e do outro. Quanto à capacidade de teste da


realidade, Kernberg nos diz que no paciente borderline esta capacidade
está mantida, o mesmo não ocorrendo com o psicótico. Ele define o teste
da realidade como “a capacidade de diferenciar entre self e não self e entre
as origens intrapsíquica e externa das percepções e estímulos”.
André Green (1988), citando um trabalho de Knight de 1953, diz que
“assim como o histérico era o paciente típico do tempo de Freud, o frontei-
riço é o paciente problemático de nosso tempo”.
Um outro aspecto importante que aparece em André Green, na tentativa
de compreensão desta patologia, consiste em conceber limite como um
conceito psicanalítico. Ele nos fala na importância dos limites externos
do eu na estruturação do aparelho psíquico. Com isso, ele chama atenção
para a angústia sempre presente neste tipo de paciente. Aponta as duas
angústias características dos fronteiriços: a angústia de abandono, sepa-
ração ou perda do objeto, e a angústia de invasão ou engolfamento pelo
objeto. Uma vez que nesses pacientes os limites dos espaços psíquicos são
difusos, o analista terá sempre que estar atento a distância ideal do seu
paciente. É nesse manejo da distância na transferência e contratrans-
ferência que se pode criar um espaço potencial para o desenvolvimento
de um psiquismo.
Rey (1979) descreve fenômenos clínicos fronteiriços referindo-se a
indivíduos que regridem dramaticamente no tratamento psicanalítico,
apresentando fenômenos do tipo psicótico, evocando sentimentos intensos
no analista. Estes sentimentos, combinados com intensa labilidade
emocional no paciente, geram um processo analítico conturbado e pertur-
bador. O processo de análise destes pacientes é marcado por encenações
(enactments) transferenciais e freqüentemente contratransferenciais, com
períodos de dependência intensa, alternada com rupturas do processo de
tratamento.
Em diferentes autores que falam sobre este paciente, a preocupação
com a estabilidade é consenso. Há aqueles que, como Fonagy, vão diferen-
ciar a ‘desordem fronteiriça’ do ‘fenômeno fronteiriço’ que pode ocorrer
em diversos tipos de paciente e os que vão se ocupar desta desordem como
uma “entidade clínica”, justamente por perceber nela uma instabilidade
que acompanha o sujeito ao longo da vida:

“ela é estável em sua instabilidade e muitas vezes mantém um


padrão constante que lhe é peculiar” (Grinker,1968).

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O modo de funcionamento fronteiriço

Utilizamos preponderantemente Kernberg por ser um dos autores que


se dedicou mais extensamente ao estudo e descrição deste tipo de orga-
nização, reunindo em seus escritos o pensamento de diferentes autores
sobre o tema.
Ele nos fala então que a clivagem, que é o mecanismo primitivo central
nos borderline, isola aspectos do self e do objeto. “O controle onipoten-
te, a identificação projetiva, a idealização primitiva, a desvalori-
zação e a denegação “tornam possível sustentar a clivagem através
da crença de que aspectos inaceitáveis do self estão presentes nos outros,
que os objetos maus são bons e que as contradições não têm nenhuma
conseqüência emocional”.
A clivagem seria a divisão do self e de objetos externos em “totalmente
bons” ou “totalmente maus”. Kernberg lembra que a integração das identi-
ficações e introjeções de sinal oposto seria o fator mais importante para a
neutralização da agressividade, uma vez que com esta integração se produz
a fusão e organização dos derivados instituais libidinais e agressivos. Com
isso, perde-se uma fonte essencial de energia para o crescimento egóico.
A cisão é , portanto, uma causa fundamental da labilidade egóica.
A idealização primitiva é a tendência a ver os objetos externos como
totalmente bons para poder contar com sua proteção contra os objetos
“maus”, e se manifesta na terapia como uma forma de idealização
arcaica, para assegurar-se de que não serão contaminados ou destruídos
pela própria agressão ou pela que foi projetada em outros objetos
Na relação analítica, a idealização primitiva cria imagens irreais,
totalmente boas e todo-poderosas, refletidas no tratamento que o paciente
dá ao terapeuta como uma figura ideal, onipotente, ou endeusada,da qual
pode depender sem questionamentos.
A onipotência e a desvalorização são mecanismos estreitamente
conectados com a cisão e são, ao mesmo tempo, manifestações diretas do
emprego defensivo das identificações e projeções primitivas. Representam
uma identificação com um objeto “bom”, idealizado e poderoso, que poderá
protegê-lo contra os objetos “maus” persecutórios. Não existe uma “depen-
dência” verdadeira, no sentido de amor e preocupação com o objeto ideal.
Se pudermos analisar mais profundamente, o objeto idealizado é tratado
de modo impiedoso e possessivo, como uma extensão do próprio paciente.
Estes pacientes podem demonstrar, por trás de seu sentimento de
insegurança e inferioridade, tendências onipotentes como, por exemplo,

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

a certeza de que podem esperar dos demais gratificações e privilégios,


uma vez que costumam se sentir pessoas “especiais”.
Quanto às formas primitivas de projeção, encontramos principal-
mente a identificação projetiva. Em níveis mais desenvolvidos de
estruturação, a projeção é fruto do recalque, marcando já uma distinção
entre sujeito e objeto.
Na denegação há áreas emocionalmente independentes de consciência.
Os pacientes com patologia fronteiriça costumam estar conscientes de que
suas percepções, pensamentos e sentimentos a respeito de si mesmos e
dos outros são, algumas vezes, completamente opostos aos expressos
outras vezes, mas esse reconhecimento não tem conseqüências e não influi
no seu estado mental atual.

O fronteiriço e as dificuldades clinicas

Ao analisarmos pacientes borderline, devemos saber que sua estrutura


está permanentemente sob ameaça e que sua adaptação, que é muito
dependente do que o meio oferece, fica sempre sob questão, razão pela
qual, mesmo nos momentos em que funcionam de forma ‘praticamente
normal’, estão sempre muito próximos de uma ‘angústia inimaginável’,
mais primitiva, que poderia ser considerada uma ‘terceira angústia’,
pensando naquelas, já mencionadas por Green, de separação e de engolfa-
mento.
Kernbeg nos diz que, ao tratar pacientes fronteiriços ou muito regre-
didos, em contraste com o que ocorre no tratamento das neuroses sinto-
máticas, é que o analista tende a experimentar desde o início da terapia
fortes reações emocionais vinculadas com a transferência prematura,
intensa e caótica destes pacientes e com sua própria capacidade para
suportar a ansiedade e a tensão psicológica .
Segundo Kernberg, Little afirma que quanto mais desintegrado é o
paciente, maior é a necessidade de integração no analista, e diz também
que, com pacientes psicóticos, a contratransferência é talvez o único meio
em que se pode basear o tratamento, contando provavelmente, como
mecanismo subjacente, com a identificação com o id do paciente.
A contratransferência se transforma assim em um importante instru-
mento diagnóstico, que informa acerca do grau de regressão do paciente,
da atitude emocional deste a respeito do terapeuta e das modificações desta
atitude. Quanto mais intensa e precoce é a resposta emocional do analista

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

ante o paciente, maior é o perigo que representa para sua neutralidade, e


quanto mais flutuante, caótica e rapidamente mutável for aquela reação,
mais motivos há para pensar que o terapeuta está diante de um paciente
gravemente regredido. Interpretações, no sentido clássico, não teriam vez
no início do tratamento com estes pacientes. Interpretações profundas
são sentidas como insultos, intrusões, distrações ou seduções.
Fonagy (2002) nos diz que, no tratamento bem sucedido, “o paciente
gradualmente começa a aceitar que sentimentos podem ser sentidos e
idéias podem ser pensadas com segurança. Há uma mudança gradual
em direção à experiência do mundo interno como separado e qualitativa-
mente diferente da realidade externa. (...) A internalização do interesse
do analista por estados mentais, e da capacidade de pensar sobre estes
de diferentes maneiras, amplia a capacidade dos pacientes de desenvolver
interesse similar em relação as suas próprias experiências”.
Luis Cláudio Figueiredo nos diz que, não havendo uma barreira de
recalcamento definida, os afetos intoleráveis invadem o “eu” e a consciên-
cia. Uma vez que não são bem demarcadas também as fronteiras entre o
eu e o outro, o mais fácil é “expulsar” estes conteúdos de forma rápida, no
sentido de aliviar as angústias geradas por aquelas invasões internas.
Luis Cláudio e Kernberg se remetem a Racker e o que ele denominou
de “identificações concordantes”. Quando o analista experimenta represen-
tações e afetos semelhantes ou idênticos aos do paciente, estamos diante
da identificação concordante. Ela é a responsável pelo assim chamado
espelhamento do paciente e pela compreensão empática. A intensidade
desta contraidentificação põe à prova a capacidade de rêverie e a resistên-
cia egóica do analista, que tende a ser capturado pela intensidade dos afetos
e pela força das fantasias. Na identificação concordante o analista se
identifica com os aspectos que o paciente exclui e não assume como seus.
Ou seja, trata-se de uma reação contratransferencial de difícil manejo,
perturbadora para o analista, e muitas vezes repudiada pelo paciente, que
nada quer saber da experiência que ele mesmo gerou no analista. A
sensação que promove neste último é de loucura, medo, confusão, fúria,
excitação, entre outras, sem que este possa saber muito bem sua origem.
O fato é que é necessário experimentar este enlouquecimento e
recuperar a lucidez, isto é, é importante manter a capacidade de aceitar e
conter, até que algum nível de elaboração seja possível e o material venha
a ser devolvido para o paciente.
“Essas operações são realizadas sob pressão, diante de demandas e
imposições incessantes que deixam pouco tempo e espaço para um uso

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

mais livre e espontâneo da mente e mesmo do corpo, já que muitos


pacientes borderline não se deitam no divã e mantém o corpo do analista
sob um controle estrito. Há que ter muitas reservas disponíveis e bem
preservadas para que, em uma situação como esta, “lá atrás”, em um
recôndito escondido de seu ser, algo permaneça livre, tranqüilo, vivo e
inviolável”.
Existem também as identificações complementares, na qual são
suscitados no analista afetos e representações característicos da posição
dos objetos do paciente. Nessa medida, o analista deve se mover para cá e
para lá contracenando com o paciente, ocupando o lugar de seus objetos.
Os enactements são encenações das partes dissociadas que induzem contra
- encenações no parceiro, no caso, o analista. Na identificação concordante,
baseada em identificações projetivas maciças, o analista sente e pensa no
lugar do paciente o que este recusa sentir e pensar. Já na contratrans-
ferência complementar baseada no enactement de uma parte dissociada
do paciente, o analista experimenta a condição de objeto de sentimentos e
ações que o paciente não admite como seus. Em ambas as situações, o
analista parece sentir e agir como se estivesse louco e será levado a se
perguntar se está de fato bem.
Luis Cláudio nos alerta para o fato de que alguma contra-encenação é
inevitável e necessária para que se tenha acesso às partes dissociadas do
paciente, reconhecendo-as, e, se possível, nomeando-as. Mas há o risco
deste ser tomado pela dinâmica dos enactements e perder completamente
suas reservas de pensamento e simbolização, ou, ao menos, de perder
provisoriamente o acesso a elas. Mas é também verdade que se o analista
se recusa a entrar no jogo do paciente, na condição de objeto responsivo e
cooperativo, muito provavelmente perderá o contato com este, despertando
agudos sentimentos de abandono. A tarefa consistiria portanto em conjugar
uma certa disposição para as encenações com uma firme preservação de
reservas principalmente narcísicas, capazes de sobreviver aos maus-tratos,
faltas de consideração, etc. A partir destas reservas poderão emergir, a
partir do campo dominado pelos enactements, os “atos interiores de
libertação do analista”, mediante os quais o campo é transformado, nomea-
do e elaborado.
Luis Cláudio também nos diz: “Quando consigo entender o que se passa
comigo e sou capaz de me manter, apesar de tudo, implicado mas
reservado, algum avanço terapêutico surge no atendimento destes
pacientes, tanto na relação terapêutica e no caminho em direção à cura”.

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Relato do caso clínico

Menciono aqui um caso em particular de uma paciente, que chamarei


de Sônia, com aparentes dificuldades cognitivas, parecendo não ser capaz
de um raciocínio abstrato mais ou menos complexo e cuja característica
principal na relação com o analista é uma instabilidade emocional e
também uma necessidade muito grande de controle, expressa através do
olhar, que permanecia ‘grudado’no analista. Ao que parece, esta seria uma
forma de capturá-lo, mantendo-o aprisionado e contaminando-o com suas
emoções em ‘estado bruto’. A sensação contratransferencial do analista é
de estar sendo “paralisado” e “parasitado”. Desnecessário dizer que este
tipo de funcionamento traz ao campo analítico grandes dificuldades de
manejo, exigindo buscar novas técnicas de abordagem clínica.
Tentarei ilustrar um percurso no decorrer do seu tratamento e os
entraves que fui encontrando, entraves estes que me obrigaram a pensar
em qual seria o papel do analista nestes casos.
No momento, ela está com 31 anos, mas chegou a mim há sete anos.
Sônia teve várias fases em seu tratamento. Em um primeiro momento,
apresentava uma forte inibição; não conseguia falar praticamente nada,
mostrando-se muito angustiada. Permanecia em silêncio, que era vivido
como insuportável e, neste momento, solicitava minha ajuda. Comecei a
fazer perguntas no sentido de ajudá-la a colocar em palavras um pouco de
sua angústia. A atuação terapêutica foi então de acordo com sua
necessidade, levando-me a questionar se estaria fazendo psicanálise.
Lembrei-me de Winnicott quando nos fala de sua disponibilidade para
fazer o que fosse possível ao paciente, mesmo que, com isso, tivesse que
mexer no setting ou ousar transgredir os preceitos da psicanálise clássica.
Tornou-se uma tarefa muito difícil tentar ajudá-la, tamanha era sua
inibição nesta época.
No segundo momento de seu tratamento, ela já conseguia colocar em
palavras, fatos.
O mote principal parecia ser nesta ocasião, a morte de seu pai que havia
ocorrido meses antes, e que havia precipitado sua busca de tratamento.
Segundo ela, já havia a intenção de se tratar ha algum tempo. Ela parecia
ter nesse pai sua maior referência de relacionamento afetivo. Dava-se muito
bem com ele. Surgiu o relato de que seu pai batia em sua mãe, e ainda nela
e no irmão. Ao que parece, ela presenciou cenas dramáticas de espanca-
mento desde muito pequena, ficando completamente aterrorizada e
impotente nestas horas.

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Os pais de Sônia se separaram e voltaram algumas vezes, sendo que


quando ele veio a falecer, de câncer, estavam separados. Quem lhe deu
todo o apoio no final de sua vida foi a mãe de minha paciente, que expõe
fotos do ex-marido pela casa toda e parece amá-lo até hoje, a despeito de
tudo o que sofreu com ele, mantendo portanto, ao que parece, uma relação
idealizada com este homem, negando toda a realidade vivida. Ele teve
algumas namoradas, enquanto separado, e, para minha paciente foi
especialmente sofrido descobrir após a morte do pai que a mãe de uma
amiga sua, e também amiga de sua mãe e sua madrinha de crisma, foi
amante de seu pai.
Esta história parecia apontar para a situação edípica. Tentei penetrar
mais nesse “triângulo” de dores muito fortes para Sônia, mas era difícil
que ela ouvisse qualquer de minhas interpretações. O fato é que as
interpretações clássicas eram recebidas com agressividade, como se eu
estivesse a atacando ou insultando. Daí, sentia como se eu estivesse
desqualificando o material que ela me trazia, ou seja, dizia entre a raiva e
o choro: “você não está acreditando em mim!...” Repensando toda esta
situação a partir do que já foi apresentado, eu percebia que era difícil saber
como ela funcionava psiquicamente e como chegar até ela.
Diante disto, vi-me instada a buscar ajuda, através de supervisão, a
fim de entendê-la melhor. Dentro disto, pude perceber que sua capacidade
de representação e simbolização do mundo externo e interno estavam
seriamente prejudicadas.
O fato de Sônia ter presenciado brigas violentas desde tão cedo parece
ter influído decisivamente em sua capacidade de aprender. Fica sob
interrogação o pretenso diagnóstico de déficit cognitivo e toda a dificuldade
de aprendizado e abstração que essa moça vem apresentando ao longo de
sua vida, uma vez que o ambiente que a circundava era tão inóspito,
oferecendo um entrave, com certeza, à sua assimilação do que vinha de
fora. Teve dificuldades na alfabetização e, desde então, passou de ano
“raspando”, com muito esforço; e as faculdades que iniciou parou, na
medida em que estas exigiam dela uma articulação de pensamento mais
complexa. Sua história pode justificar uma parada em seu desenvolvimento
intelectual. Isto me remeteu a Melanie Klein, quando, em seus primeiros
trabalhos sobre o desenvolvimento intelectual da criança (Klein 1921; 1922;
1923; 1930), nos diz que quando os medos persecutórios são muito
intensos, a passagem da posição esquizo-paranóide para a posição
depressiva fica dificultada e o desenvolvimento da capacidade afetiva se
vê interrompido. A inibição da vida afetiva provoca também uma

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

diminuição da curiosidade e da capacidade intelectual, de maneira que


muitos casos de deficiência mental podem ser originariamente problemas
afetivos graves (psicóticos).
Como o conceito de borderline não fosse ainda utilizado nessa época,
ele não faz parte das citações de M.Klein, mas acredito que esse funcio-
namento também ocorra nos pacientes borderline, conforme temos visto
na descrição do funcionamento psíquico desta paciente.
Pensando nessa etapa inicial, cabe dizer que sua comunicação se dava
principalmente através da “identificação projetiva” (Klein, 1946), que
parecia ser a sua única forma de comunicar o que sentia. Este mecanismo
primário se manteve e os impulsos agressivos e amorosos passaram a
dominar a cena.
Mais adiante um pouco, passamos a uma fase que se estendeu por
bastante tempo, que consistia em comportamentos impulsivos que eu
chamaria de “actings in”. Sônia com muita freqüência chegava às sessões
com a aparente determinação de “provocar-me” até o exaspero, quando,
então, eu tinha uma manifestação de raiva (enactement), da qual me refazia
a seguir, mas buscava entender: porque ela precisava que eu ficasse com
raiva, deixando-a assim no lugar de vítima de minha raiva, quando então
ela podia chorar e se lamentar de que não era compreendida? Sônia ficava
depois muito culpada e pedindo perdão pelas ‘provocações’ (sic) que,
percebia, não conseguir evitar, querendo insistentemente saber se eu iria
perdoá-la. Temia que tivesse destruído nossa relação e temia também pelo
que iria receber de mim depois disso, pois devia estar contaminado pelo
seu/meu ódio.
Aos poucos, fomos entendendo que ela repetia ali comigo algo que era
uma constante em seus primeiros anos de vida, como costuma ocorrer
com esses pacientes.
Uma autora que veio auxiliar na compreensão desta dinâmica
transferência-contratransferência foi Donna Orange (1995), que definiu
um novo conceito que ela chamou de co-transferência, que trata as ativi-
dades organizadoras do analista e do paciente como duas faces da mesma
dinâmica (teoria da intersubjetividade). O conceito de “enactement”
surge dentro desta teoria que fala em “entrada em cena” a dois. Algo
como uma “atuação” do paciente, que projeta no analista partes dissocia-
das do seu self, acompanhada de uma “contra-atuação” inconsciente do
analista, que vai necessitar ser recapturada enquanto experiência para
ser passível de compreensão e interpretação para ser inserida de volta
no tratamento.

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Fonagy nos diz: “estados subjetivos, tais como ansiedade, podem ser
conhecidos principalmente ao serem despertados em outra pessoa.”
Para explicitar a dificuldade no manejo técnico, cito algumas situações
como exemplo. Parecia não adiantar, por exemplo, lhe mostrar que cada
episódio desses, que entendi como enactements, que parece vir de encontro
à definição de identificação concordante de Racker, era carregado de
muitos significados, preciosos para o nosso trabalho e que, portanto, na
medida em que eram compreendidos, não a afastavam de mim, pelo
contrário, permitiam que nós nos aproximássemos mais e, ao contrário
do que ela parecia sentir, não me destruíam. A cada enactment, partes
dissociadas de seu self eram atualizadas na “cena analítica” através de
mim, permitindo algum resgate de seu mundo interno, quando podíamos
entendê-lo a contento. Voltando a Racker, na identificação concordante,
o analista funciona como o próprio self do analisando. Cabe observar que
de um modo geral são os meus sentimentos que estão em questão e é só
no que ela está ligada. Tento muito lhe mostrar isso. Na medida em que
ela não é ou não se sente capaz de sentir seus próprios sentimentos, espera
que eu os sinta por ela. Eu, certamente, posso fazê-lo, em sua concepção.
Isto gera um desconforto constante em suas sessões, onde sentimentos
desagradáveis meus são mobilizados praticamente o tempo inteiro. Muitas
vezes, estes sentimentos não são facilmente identificáveis, mas os que
consigo identificar vão da angústia, ao medo, ao ódio, etc...
Tenho certeza também que ao longo do tempo este comportamento
foi se modificando, claro que às custas da compreensão que conseguíamos
obter. Ela foi permitindo se deixar penetrar por mim, embora com muita
dificuldade e começou a aceitar o que eu dizia e repetia “ad infinitum”.
Uma outra dificuldade era no momento final das sessões. Suas sessões
nunca podiam terminar na hora certa: ela continuava deitada, chorando
feito uma criança e dizendo: “Não adianta que eu não vou embora!” Tentei
me utilizar todas as interpretações que fui capaz de pensar: mostrar que
estaríamos juntas no dia seguinte ou na sessão seguinte; que conseguirmos
nos separar era parte do tratamento. Que “mandá-la embora”, como ela
dizia, não era um sinal de desinteresse de minha parte por sua dor, ao
contrário, era tentar trazê-la para a vida real, onde ela precisava aprender a
viver. Que aos poucos ela iria perceber que nossa relação duraria para além
do horário das sessões; que ela aprenderia a me carregar dentro de si, assim
como ela ficava dentro de mim, mesmo depois de ir embora, e tantas outras
interpretações no mesmo sentido. O que ficava evidente era a angústia de
separação, pois esta era vivida por Sônia como perda de parte de si mesma.

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Ela parecia tentar fazer sua sessão perdurar, tornando toda e qualquer
compreensão que exigisse dela um pouco de abstração um desastre. Crises
de comoção diante do que eu dizia (e digo) eram uma constante,
contaminadas por muita angústia e o sentimento de abandono. Na medida
em que utilizo a palavra, parece que, aos seus olhos, me distancio dela,
pois estou abandonando sua forma básica de comunicação, que é a
identificação projetiva, e ao estabelecer a compreensão através da palavra,
eu estaria promovendo uma separação psíquica, o que, neste momento,
era algo insuportável para ela.
Paralelamente surge então um outro material que poderia me fazer
acreditar que ela estaria sendo grata, mas que talvez, na verdade, consis-
tisse em um tipo idealizado de transferência. Ela me dizia repetidamente
que nunca recebeu por parte de nenhum parente seu o que recebeu de
mim ali, daí não querer ir embora.
Nesta altura de sua análise, parece que Sônia, como defesa, procura
manter a ilusão onipotente de fusão. Fica então durante grandes períodos
me olhando profundamente dentro dos olhos, o que costuma ser sentido
por mim contratransferencialmente como invasão e controle. Ficava de
bruços, atenta a qualquer gesto ou expressão diferente, ao que ela iria
atribuir um valor pessoal e me interpelar de forma desconcertante, do
tipo: “porque você olhou para baixo agora? Por que você riu quando falou
isso? Por que você descruzou as pernas? Que cara é essa? Não gostou do
que eu disse? Já sei... pela sua cara você não concorda com o que eu
disse...”. Diante de suas interpelações, muitas vezes me pego respondendo
objetivamente a algumas de suas perguntas, embora não quisesse fazê-lo.
Por exemplo: ela costuma me perguntar se eu uso todos os presentes que
ela me deu. Sônia costuma me trazer presentes toda a vez em que viaja, e
também em meu aniversário, que ela habilmente descobriu quando era,
assim como descobriu vários dados de minha vida pessoal, apesar de minha
secretária ser orientada no sentido da maior discrição possível. Ela ia
entrando, vasculhando minha vida fora dali. Eu entendi que o melhor a
fazer naqueles momentos era aceitar seus presentes e esperar que algum
sentido surgisse para eles. Eu sorrio e então ela insiste incisiva: “usa ou
não usa?” Ao que então eu acabo respondendo: “é... quase todos!” Ela:
“Quase? Não gostei...”. São coisas como essas, que me fazem sentir
arrependida, como se tivesse caído em sua armadilha. Parece ser esse um
exemplo típico de identificação complementar, descrito por Racker.
É precisamente em níveis de regressão como os do paciente fronteiriço
“que se produz a identificação projetiva do analista, onde a identificação

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

projetiva alcança seu desenvolvimento máximo (...) Se configura assim


uma situação específica, que quando é compreendida e elaborada pode
ser a pedra fundamental do trabalho analítico com este paciente em
particular. Em tais circunstâncias o analista está em condições de
promover mudanças essenciais na estrutura egóica do paciente, em
virtude da experiência corretiva implícita na situação analítica”
(Kernberg, 1979).
Do ponto de vista afetivo, estabelece uma relação idealizada e platônica
com o objeto amoroso, como podemos ver quando diz que já “ficou” com
alguns rapazes em boates em que ia com amigas, quando então “só beijava
na boca”, segundo ela. A experiência que teve com um rapaz, o único com
quem teve ‘algo a mais’, foi considerada por ela uma experiência traumá-
tica. Eles saíram para jantar e ela se insinuou muito, o que foi compre-
endido por ele como se Sônia quisesse “transar”. Pararam em um “estacio-
namento para namoro” e ele então passou a mão pelo seu corpo, resultando
daí que ela quisesse voltar correndo para casa, não querendo mais falar
com ele.
Nesse episódio fica clara a sedução e o medo de um contato mais
profundo e como este contato com o outro era assustador para ela.
Em muitos momentos do tratamento de Sônia eu me perguntava: será
que estou ajudando? Como será que estou ajudando? Seria o fato de
escutar, ser continente, não a expulsando, quando a vontade seria de fazê-
lo; poder tolerar... . Será essa a função do analista para esses pacientes?
Mas acredito que ela faz pequenos progressos, ou talvez grandes
progressos, dependendo do ponto de vista.
Profissionalmente, ela conseguiu trabalhar por três anos como
secretária no consultório do tio, uma pessoa reconhecida como exigente.
Saiu depois deste emprego e atualmente está trabalhando de novo na
mesma função.
Ela vem tolerando muito melhor, de um modo geral, as frustrações, e
parece mais disponível para enfrentar a realidade como ela é. Será? Muitas
vezes me questiono se essa melhora é verdadeira, pois, nas sessões, alterna
momentos em que está menos regredida e tem disposição para fazer análise
e aí parece realmente mais permeável ao que eu digo, conseguindo se
frustrar sem um ataque de raiva, e saindo quando a sessão termina, com
momentos de regressão, onde tenta controlar tudo o que eu falo e faço,
fazendo a sessão girar em torno de mim.
Em outros momentos, funciona como um bebê, chegando a deitar a
cabeça no meu colo, parecendo estar com muito medo de sentir, pensar e

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viver. Minha técnica consiste em tentar ajudá-la a criar um espaço psíquico


onde ela seja capaz de pensar.
Adere aos valores tradicionais de nossa cultura sem o menor questio-
namento e os defende ferrenhamente, como, por exemplo, o casar-se
virgem na igreja, a cultura americana como a melhor do mundo, conforme
nos é “vendido” a toda hora.
Mesmo com todo esse tempo de análise, dorme até hoje na cama de
sua mãe. Quando trabalhamos esse desejo de ser o bebê da mãe, ela diz
que a mãe costuma dizer que quer que ela seja seu bebê para sempre,
havendo então uma correspondência com o seu desejo. Há outros
momentos em que vislumbra a possibilidade de crescer, saindo “do quarto
da mamãe”, onde ela estaria “protegida” de viver sua vida.
Quando se sente muito angustiada e está muito regredida, ela busca
um reasseguramento meu de que o que ela está sentindo vai passar e aí
pergunta: “e se não passar, posso te telefonar?” Nesses momentos de muita
regressão, toda tentativa de dar sentido ao que vivencia, se perde no vazio.
Qualquer interpretação no sentido de ligar a relação que ela tem comigo
com a relação que tem com a mãe é vivida como falta de entendimento.
Em outro momentos ela me espanta, quando chega como uma moça de
trinta anos e dá a sensação de que há uma Sônia “crescendo escondido”,
com medo de perder o amor dos que ama caso cresça.

Conclusão

Enfim, esta é uma síntese deste caso clínico, que tem exigido de mim
muito estudo e interlocução. Penso que estes pacientes exigem do analista
uma disposição interna muito grande. Relembro Figueiredo quando diz que
a intensidade das contraidentificações põe à prova a capacidade de rêverie
e a resistência egóica do analista, que tende a ser capturado pela intensidade
dos afetos e pela força das fantasias. E ele continua: “e, no entanto, o
necessário é deixar-se enlouquecer e recuperar a sanidade, isto é, a capaci-
dade de admitir, metabolizar, continuar contendo, elaborando, até que um
certo nível de ordem afetiva e esclarecimento possa ocorrer internamente,
antes que o material venha a ser devolvido”. E ele continua: “e no entanto,
o necessário é deixar-se enlouquecer e recuperar a sanidade, isto é, a
capacidade de admitir, metabolizar, continuar contendo, elaborando, até
que um certo nível de ordem afetiva e esclarecimento possa ocorrer interna-
mente, antes que o material venha a ser devolvido.” (Figueiredo, L.C. 2003)

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A sensação que promove é de loucura, medo, confusão, fúria, excitação,


entre outras, sem que o analista possa saber a sua origem. É necessário
que o analista experimente esse enlouquecimento e que recupere o
tratamento, para manter a capacidade de aceitar e conter até que algum
nível de elaboração seja possível e o material possa ser devolvido para o
paciente.
Analisando a dinâmica transferência–contratransferência neste caso,
creio que me identifiquei com o que Kernberg chama de fixações contra-
transferenciais crônicas, onde a tendência do analista pode ser atender a
demanda instintual do paciente sem se aperceber que está amarrado nesta
teia. Sentia-me perdida, paralisada, sem compreender o que se passava
ali com Sônia. Creio que a ajuda de um terceiro (supervisor) foi funda-
mental, pois foi a partir daí que consegui ganhar alguma compreensão
deste nó. Na medida em que este funcionou como um terceiro nesta relação
de fusão, marcada por maciças identificações projetivas, e foi capaz de
ajudar a descobrir alguns acumpliciamentos inconscientes com a paciente,
como a identificação com a desesperança em seu progresso, pude então
reassumir meu lugar no setting, apontando um novo rumo para este
tratamento. A elaboração deste trabalho foi mais um elemento de ajuda
na compreensão de tudo isto.
Enfim, volto a André Green (1988), que repete Knight (1953), quando
diz: “assim como o histérico era o paciente típico do tempo de Freud, o
fronteiriço é o paciente problemático do nosso tempo”. Acho que esta
afirmativa ganha consistência na contemporaneidade, com suas incertezas
e inconstâncias, onde o mundo que nos circunda não oferece as melhores
condições para a estruturação psíquica, conforme costumamos concebê-
la, exigindo que alcemos novos vôos para melhor dar conta da chamada
“clínica borderline”.

Referencias Bibliográficas
FIGUEIREDO, L.C. O caso-limite e as sabotagens do prazer.In: Elementos para
a clínica Contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003. p.77-109.
_________A clínica borderline. In: Elementos para a clínica contemporânea.
São Paulo: Escuta, 2003. p.109-127.
FONAGY, P .&TARGET, M. Brincando com a Realidade III. A Persistência da
Realidade Psíquica Dual em Pacientes Fronteiriços. Livro Anual de
Psicanálise (2002), XVI, p. 89-109.

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GREEN, A. O conceito de fronteiriço. In: Sobre a Loucura Pessoal.Rio de Janeiro:


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GRINKER, R. R. The Borderline Syndrom: a phenomenological view. In:
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__________,O.e col. Psicoterapia Psicodinâmica de Pacientes Borderline.
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KLEIN, M. Amor ,culpa e reparação e outros trabalhos. Obras Completas-VolI.
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_______Notas sobre alguns mecanismos esquizóides.Inveja e Gratidão.Obras
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KNIGHT, R. Borderline states in psychoanalytic psychiatry and Psychology.
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Imago, 1979.

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O autismo psicogênico,
a personalidade autista e o trauma
Sebastião Abrão Salim*

Resumo
O autismo psicogênico é uma entidade clínica de difícil enten-
dimento e tratamento. Entre os autores psicanalíticos Tustin
sobressai com seus estudos sobre a percepção sensória auto-gerada
pelo recém-nascido e o bebê. Segundo ela, ambos utilizam a saliva,
as fezes, a urina, a língua, os dedos, os punhos e as mãos para
gerar estas sensações, mais em contato com sua pele. Constituem
um tipo de defesa psíquica para o apaziguamento da angústia
resultante do trauma de separação da mãe. Confere um sentimento
de coesão física e psíquica semelhante àquele experimentado por
nós quando pressionamos uma chave na palma da mão.
Ela denominou o apego a essa defesa de “barreira autista” que afeta
a capacidade do recém-nascido ou do bebê para a empatia. Para ela,
constitui-se no fator responsável pela etiologia do autismo psicogênico.
Ogden desenvolveu estes estudos e sistematizou a posição autista-
contígua, anterior à posição esquizoparanóide, e a posição
depressiva de Klein, com psicopatologia especifica.
Meus estudos sobre o trauma a partir do DSM-IV como um evento
que produz em sua vítima ou testemunha uma noção de morte
aproximou-me da Neurobiologia e da importância da memória
implícita para a Psicanálise.
Esta articulação parece contribuir para um melhor esclarecimento
da etiologia do autismo psicogênico ao relacioná-lo à angústia de

* Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Psicanalista Didata do


Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte

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morte e ao apego instintivo às “barreiras autistas” como defesa


psíquica, decorrente do trauma fetal.
Estendo o trabalho à apreciação da psicopatologia autista em
pacientes adultos e jovens com quem trabalho dentro do meu
referencial teórico-técnico psicanalítico revisado. Considero
inacabados esses estudos, mas acho procedente a sua continuação.

Abstract
The psychogenic autism is a clinical entity of difficult
comprehension and treatment.
Among psychoanalytical authors, Tustin had a relevant position
with their studies on auto-generated sensorial perceptions by the
newborn and the baby.
According to her the just-been born baby uses instinctively his or
her own saliva, excrements, piss, hair, language, fingers, fists and
hands to generate these sensations, chiefly with his or her own
skin. They afford a psychic defense to diminish the resultant anxiety
of the mother’s separation trauma. They activate feelings of physic
and psychic cohesion similar to that experimented by ourselves
when we press a key in the hand.
She named the attachment to this defense as “autistic barriers”
that affect the capacity of the newborn or the baby to empathy. To
her it is responsible psychic autism etiology.
Ogden developed these studies and conceived the autistic-
contiguous position, anterior to Klein’s squizoparanoid position,
and the depressive position with a specific psychopathology.
My studies on trauma conceived by the DSM-IV as “an event that
produces in their victims or witnesses a notion of death” became
me near the Neurobiology and the importance of the implicit
memory to Psychoanalysis.
This articulation seems to contribute to a better understanding of
psychogenic autism etiology by adding it to a death anxiety and to
the instinctively attachment to the “autistic barriers” as psychic
defense due to a fetal trauma.
I extend these appreciations to autistic psychopathology in adult
and young patients with whom I work with a theorical and
technical referential revised.
I consider unfinished these studies but it is pertinent to continue them.

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Introdução

Meu trabalho clínico atual com jovens e adultos tem sido marcado pelas
contribuições de Tustin sobre o autismo psicogênico e as barreiras autistas
em pacientes psiconeuróticos. Isto porque a considero como a psicanalista
que mais contribuiu com nossos conhecimentos neste enigmático e
complexo campo da psicopatologia. Ela a estudou durante anos em crianças
autistas e em jovens e adultos. Reuniu estes estudos em seu livro Barreiras
autistas em pacientes neuróticos (1990), no qual aborda a sintomatologia
e a etiologia relacionada à adesão aos denominados “objetos autistas” e às
“formas autistas”. Segundo ela, estes são elementos corporais de natureza
dura ou macia respectivamente, que o recém nascido utiliza para a auto-
geração de percepção sensória capaz de o serenar devido à promoção do
sentimento de coesão física diante da ansiedade da separação traumática
da mãe, esta um elemento etiológico. Essa defesa, no entanto, segundo
ela “parece afetar a capacidade do indivíduo (pelo apego aos mesmos)
para a empatia, e, portanto, para relações com as pessoas”. Ela denominou
este apego de “barreira autista”, outro elemento responsável pela etiologia
do autismo psicogênico, fato que ela ilustra com material clínico seu e de
superviões ministradas.
Tustin afirmou que “o elemento decisivo para o seu estudo do autismo
psicogênico foi seu perfil pessoal marcado por elementos autísticos”.
Contudo, não podemos deixar de ressaltar seu currículo invejável.
Analisou-se com Bion e fez supervisões com Rosenfeld e Meltzer. A
formação em análise de crianças teve como orientadores Bick e Bowlby.
Conviveu com Winnicott, Aulagnier, Chasseguet-Smirgel, McDougall,
Grodstein, Balint e outros importantes psicanalistas. A vida pessoal foi
marcada pela presença constante do marido, um cientista inovador na
Física que balanceava seus vôos psicanalíticos.
Talvez o mais significativo seguidor seja Ogden (1989b), que
sistematizou a posição autista-contígua baseando-se em seus estudos,
enriquecedora contribuição teórico-técnica para a Psicanálise, pouco
considerada pelos psicanalistas.
No presente trabalho tenho o objetivo de acrescentar a esses estudos a
contribuição da Neurobiologia sobre a memória implícita, da ultra-
sonografia fetal e do conceito de trauma definido no DSM-IV (1994) como
um evento que promove na vítima ou testemunha uma consciência de
morte. O exame da percepção sensória sob este vértice, permitiu-me com
certa consistência estender os estudos de Tustin e Ogden ao período fetal

121
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

do desenvolvimento psíquico e relacioná-los com o trauma fetal,


aproximando a Psicanálise da Biologia.
A psicopatologia autista, na minha experiência clínica, é responsável
por um modo de exclusão do homem e da mulher que denomino (Salim,
2005a) exclusão animada, na qual seu portador se mantém ausente de si
mesmo, em estado de suspensão animada. Penso que tem relação com a
denominada psicopatologia do vazio em nossa clínica atual, assim como
dos pacientes atípicos, de difícil manejo clínico, do paciente psicosso-
mático, do paciente com adição às drogas e ao álcool e outros. Difere da
exclusão produzida pela psicopatologia esquizoparanóide, depressiva e
edípica.
Apresento material clínico meu de jovens e adultos com personalidade
autista, mostrando a sintomatologia autista, e meu referencial teórico-
ténico psicanalítico revisado.

A “barreira autista” segundo Tustin

Tive dificuldades pessoais para adentrar no estudo da obra de Tustin,


mas conseguindo fazê-lo me beneficiei ao identificar idiossincrasias
autistas pessoais e enriquecer meu referencial teórico-técnico psicanalítico.
Considero sua obra pouco conhecida e mesmo banalizada por psiquiatras,
psicológos e psicanalistas.
Tustin descreve essa diversa psicopatologia em trabalhos com
exuberância e delicadeza, e a ilustra com inúmeros casos clínicos seus e
de supervisões ministradas.
A sintomatologia autista, segundo ela, está relacionada com o apego
aos “objetos autistas” e às “formas autistas” como defesa para atenuar a
ansiedade da separação da mãe, e seu uso pode se prolongar pela vida do
portador.
Tem proximidade com o estudo de Winnicott (1975) sobre o “objeto
transicional” e a “experiência de ilusão”. Por ora basta acentuar que o
objeto transicional de Winnicott, “uma bola de lã, a ponta de um cobertor
ou edredão, uma palavra ou uma melodia, ou um maneirismo” é posterior
aos “objetos autistas” e às “formas autistas” de Tustin. Há uma similaridade
na forma como ambos descrevem o apego do bebê a esses elementos. Os
dois não explicitam esse apego a uma finalidade existencial; remetem a
experiência dos dedos e do punho na boca à satisfação libidinal dessa zona
erógena e não à defesa para uma angústia de morte, uma diferença bastante

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significativa, como citado adiante. Um fato interessante é que ambos


mantinham relação pessoal próxima, mas citam pouco um ao outro em
seus trabalhos publicados.
Voltando a Tustin, ela diz que: “As formas “primordiais” (primeiras-
meu) parecem emanar de ritmos e respostas auto-eróticas na raiz de nossa
“existência”. Talvez, o mesmo que Winnicott (1975) dizia quando se referia
à “elaborações imaginativas” das funções corporais
Prossegue Tustin: “As formas autistas são formas vagas de sensação e
originam-se da ‘sensação’ de substâncias corporais tais como fezes
liquefeitas, urina, saliva, muco, o alimento na boca e até o vômito... seus
equivalentes físicos são coisas como lama, areia, plástico, barro, água,
tinta, etc.” Isto nos remete a enurese noturna, à salivação, à sudorese, ao
lacrimejamento excessivo e outros. Referindo-se aos objetos autistas, diz:
“A ‘dureza’ é um aspecto característico da maioria dos objetos autistas...
Para a criança um objeto autista é primariamente uma sensação”. Na clínica
temos como resultado desta “barreira autista” a encoprese, os eczemas, o
bruxismo, o chuchar o nariz ou a boca com o dedo, os movimentos da
língua dentro da boca e sobre os lábios, e outros.
Para ela as experiências sensórias com os “objetos autistas” e as “formas
autistas” tendem a manter a criança autista e o jovem ou adulto com
personalidade autista em um estado não-eu, excluídos das relações com o
mundo externo e interno. Essas experiências têm ritmo e intensidade
regulares, ditados instintivamente, como sucede no estado de homeostase.
Como mostrarei adiante, o estado não-eu é resultante do trauma.
É importante destacar o conceito de trauma que norteia suas
concepções. Relaciona-o a “uma consciência traumática de separação física
da mãe que invade suas consciências (do recém-nascido ou do bebê - meu)
antes que seus aparatos psíquicos estejam prontos para suportar a tensão.
Você perceberá que estou enfatizando o estado organizacional do bebê e
não a idade em que o trauma ocorreu”. Tustin segue, portanto, o conceito
de Freud (1919) de trauma, definido como um excesso de excitações sobre
um ego que não consegue processá-las. Não tem relação com a noção
intuitiva de morte sentida pela vítima do trauma. De novo, o apego à teoria
freudiana foi um elemento impeditivo para que se aproximasse mais da
Biologia, como penso ter sucedido com Winnicott.
Ainda assim, Tustin deixa claro que tinha esta intuição. Diz ela: “Em
alguns casos, o autismo surgiu após ou durante uma doença debilitante,
ou intervenção cirúrgica na infância, especialmente se os membros foram
imobilizados (Olin, 1975). Mas, obviamente, há crianças que passaram

123
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

por tais experiências e não se tornaram autistas; uma combinação de


circunstâncias tem que ocorrer... Fatores importantes nessa combinação
são as tendências constitucionais (negrito meu) da própria criança e
o clima emocional da família na qual ela é criada”. Talvez estivesse
relacionando essas tendências constitucionais à Genética ou ao trauma
pré-natal produzido por estados tóxico-inflamatórios da mãe, anoxia fetal,
traumas físicos e outros.
Em outra parte, menciona: “Após muitos anos de trabalho com crianças
autistas, cheguei à conclusão de que o autismo psicogênico é resultado de
uma interação entre um estado temporário de depressão ou insegurança
da mãe, durante a primeira infância da criança, e a natureza particular
da criança (negrito meu)”. De novo o elemento biológico.
Prossegue: “A penetração (pela técnica de tratamento psicológico-meu)
tem que ser introspectivamente sensível. Nesses níveis, estamos
trabalhando com elementos psicossomáticos e neuromentais
(negrito meu)”.
Esses destaques podem indicar que Tustin tinha uma concepção
subjetiva de elementos biológicos na etiologia do autismo sobre os quais
não conseguiu ir além da intuição, como se expressa na passagem em que
relaciona o estado autista e a vida animal. Ela escreve: “Uma função do
autismo para as crianças autistas parece ser simular a “morte” (perda do
ser), pelas reações de imobilização do corpo (negrito meu) e
sensações de entorpecimento de suas extremidades. Por meio disso, eles
sentem que evitam a “morte” súbita e catastrófica (separação física de
“seio” externo), que acontece incontrolável e inesperadamente. De certa
forma, isto é semelhante ao “congelamento” (negrito meu) de um animal
apavorado. Chiara Catelan descreveu seu paciente infantil assim: M. parece
um corpo mumificado. Ele é como um Faraó que encontra na morte a
possibilidade de manter seu corpo esplendidamente intacto. Seus olhos
são a única parte da múmia que não está coberta pelas bandagens. Esta
imagem de um corpo mumificado é particularmente adequada, porque a
vida no antigo Egito era dominada pela necessidade de preservar a
continuidade física para evitar o término e a separação da morte”.
Meus estudos e minha observação clínica revelaram semelhanças entre
a vida animal e a vida do feto, do bebê, do jovem e do homem, isto depois
que fiquei atento a esta identidade. Todos têm o comportamento e as
funções biológicas mais determinados pela presença ou não do perigo de
morte, como sugere Levine (1997) ao descrever a reação da presa frente
ao predador. Apresenta reação de imobilidade e congelamento.

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Outra contribuição clínica de inegável valor feita por Tustin (1990), inicia-
se com uma observação da colega Sydney Klein: “No curso de uma revisão
periódica do progresso de minha prática clínica e particularmente das formas
de comunicação habituais de meus pacientes, tomei consciência de que eu
os considerava inicialmente como sendo apenas moderadamente neuróticos,
alguns dos quais eram também candidatos à análise, revelavam durante o
curso do tratamento fenômenos familiares de crianças autistas. Esses
pacientes eram altamente inteligentes, esforçados, bem sucedidos... que
vieram para análise ostensivamente por razões profissionais ou devido a
uma falha em manter uma relação satisfatória com um marido ou esposa...”.
Mais adiante, diz Tustin: “Certos pacientes neuróticos têm muito em
comum com as crianças autistas (Klein, S, 1980; Tustin, 1978)”. Cita, ainda,
o trabalho de supervisão com uma colega: “Em nosso trabalho, juntas,
tornou-se claro que Mary (vinte anos) tinha uma cápsula de autismo que
estava interferindo em suas relações com as pessoas e também afetando
seu trabalho”.
Em outro momento cita mais uma vez Sydney Klein: “Quanto mais
cedo o analista perceber a existência desta parte oculta do paciente, menor
é o perigo de a análise tornar-se um diálogo intelectual interminável e
sem sentido, e maiores as possibilidades de o paciente alcançar um
equilíbrio relativamente estável. Embora o analista tenha que passar por
grandes ansiedades com o paciente, acredito que, no fim, os, resultados
valem a pena... O autismo se manifesta através de um apego bastante
desesperado e tenaz ao analista como a única fonte de vida, acompanhado
por um sentimento intruso subjacente de desconfiança”.
Finaliza assim: “O relato da Sra. Spensley (uma supervisionanda) desta
paciente me fez perceber o valor do entendimento derivado do trabalho
clínico com autismo psicogênico de se fazerem diagnósticos mais precisos,
de modo que menos pacientes percam seu tempo em lugares inadequados
e recebam tratamentos impróprios”.

Acréscimos pessoais aos estudos de Tustin

Muitos anos atrás havia adquirido um exemplar de seu livro Autismo e


Psicose Infantil (1972), mas acabei colocando-o de lado pelas dificuldades
encontradas para entendê-lo. Depois voltei a ela através de citações de
Ogden (1989b, 1994) em seus trabalhos sobre o psiquismo inicial, no qual
eu estava interessado.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Há três anos voltei a lê-lo e logo depois Barreiras Autistas em Pacientes


Neuróticos (1990). Minuciei o conhecimento do conteúdo deles sobre a
psicopatologia autista. Achei pertinente acrescentar aos conceitos de Tustin
os estudos que vinha fazendo ao substrato anatômico do psiquismo inicial
e dos possíveis efeitos do trauma nesse período, segundo o DSM-IV.
Articulei contribuições da Embriologia, da Psiquiatria, da Psicologia
Experimental, da Etologia, da Ultra-Sonografia fetal e da Neurobiologia.
Publiquei alguns trabalhos a respeito (2002c, 2004a, 2004b, 2005a). Esta
multidisciplinaridade integrada permitiu-me uma formulação do
psiquismo inicial mais embasada biologicamente por meio de sua relação
com a estrutura e o desenvolvimento do Sistema Nervoso Central e o
Sistema Nervoso Autônomo, considerados como substratos anatômicos
do aparelho psíquico.
Foram importantes o estudo da memória implícita desenvolvido pela
Neurociência (Kandel, 2003), a conceituação de trauma ligado ao medo
de morte e estudos de Levine (1997), psicológo experimental, sobre as
reações de defesa do homem diante da ameaça de morte semelhantes, à
dos animais, ditadas pelo cérebro límbico (instintivo) e pelo neocórtex
(racional). Tais reações atuam antes de processadas ‘com a cabeça’ diante
do perigo. O corpo chega antes da consciência.
Levine, fundador da escola denominada de Experiência Somática, mostra
que quando a presa opta pela imobilidade, acontecem modificações
psicofisiológicas de natureza neurológica motora e sensitiva, hormonais e
bioquímicas. Por exemplo, há aumento de produção de endomorfinas para
aliviar a dor caso a presa intua que será comida pelo predador. A saída
dessa imobilidade ocorre se o predador se afasta e após o tremor físico que
finaliza o trauma sofrido. Essas defesas de imobilidade e de congelamento
foram intuídas por Tustin, como assinalado em negrito nas suas citações.
Meus estudos, penso eu, podem contribuir para se entender a etiologia
do autismo psicogênico e das “barreiras autistas” ao introduzirem a
interdisciplinaridade citada e a tentativa de desvelar um psiquismo pré-
natal e peri-natal, onde impera a noção constante de “continuidade do ser”,
segundo Winnicott. Com poucas exceções como Winnicott (1962), Ogden
(1994), Piontelli (1997), Imbasciati (2001), Wilheim (2003), Korbivcher
(2006) e outros, os psicanalistas têm estado mais voltados para a vida pós-
parto. A Neuropsicanálise tem procurado esta integração com algum êxito.
Minha hipótese é que o psiquismo do ser humano ou animal começa
logo após a fecundação. Instala-se o estado homeostático ou de
homeostase, que pode ter relação com o princípio de constância citado

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

por Freud (1920), jamais deixado de ser buscado. Tustin o intuiu quando
disse: “As formas “primordiais” (primeiras-meu) parecem emanar de
ritmos e respostas auto-eróticas na raiz de nossa “existência.” O registro
desse estado fisiológico equilibrado, regular e contínuo é feito pela memória
implícita incipiente, presente logo após a fecundação (Kandel, 2003).
Aquela se enriquece ao longo da vida com mais recursos autonômos de
defesa, inclusive através do sonho, que teria a função de transformar em
memória implícita ou de longa duração o aprendizado de curta duração
ocorrido durante o dia (Sidarta, 2003). Também Winnicott (1975), ao
dizer: “A elaboração imaginativa da função deve ser considerada existente
em todos os níveis de proximidade do funcionamento físico propriamente
dito... refere-se à fantasia quase-física, àquela que está menos ao alcance
da consciência”.
A homeostase é o estado ótimo. Uma mudança no seu equilíbrio por
um trauma gera a noção subjetiva de morte ou descontinuidade. Para tentar
apaziguar o mal-estar resultante, a vítima do trauma se retrai ao estado
anterior, movimento que denomino desconexão com retraimento autista,
onde ocorre a desaceleração dos ritmos biológicos com a vantagem
biológica de consumo menor de oxigênio pelas células, que possibilita
prolongar a vida. Estudos recentes mostram que é possível prolongar a
preservação de órgãos para transplantes, mediante a diminuição do
consumo de oxigênio pela célula por meio do método da suspensão
animada, induzida pelo uso de sulfato de hidrogênio (Eric, 2005).
O trauma fetal é produzido por doenças neo-natais, infecções da mãe,
traumatismos físicos anteriores ao nascimento, traumatismo do parto e
outros eventos.
O recém-nascido portador de um trauma apresenta movimentos
motores lentos, tem dificuldade para pegar o mamilo e outras manifes-
tações próprias do estado de imobilidade. O caos instituído só cessa quando
é adequadamente cuidado, como Winnicott ( 1971) acentuou com o
conceito físico de holding e de “mãe suficientemente boa”. Por razões ainda
indefinidas pode apresentar um estado oposto de excitação, irritabilidade
e hiperatividade, já discutido em outro trabalho meu (Salim, 2004b).
Tustin afirmava que muitas crianças autistas tinham mães dedicadas e
que não se podia relacionar o autismo psicogênico a elas, deixando bem
entendido como apontei em negrito, que havia razões anteriores ao
nascimento, possivelmente o trauma sentido como morte.
A importância desse trauma precoce e seus desdobramentos futuros é
demonstrada pelas experiências de Harlow (1958) e Levine (1962) com

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

macacos e ratos, que confirmam o que Tustin e Ogden mencionam em


seus trabalhos: a existência de uma matriz psíquica autista inicial à qual
se pode relacionar uma psicopatologia própria com manifestações clínicas
específicas, entre elas o isolamento social e a desvitalização. Harlow e
Levine observaram que macacos e ratos recém-nascidos, se separados de
suas matrizes logo após o nascimento, quando seis meses depois são
colocados de volta junto delas reagem com isolamento e desvitalização.
Quando separados após dez dias do nascimento, apresentavam
comportamento diferente ao retornar ao convívio com os seus,
demonstrando que neste período de dez dias acontecem mudanças
significativas no psíquico e no biológico desses animais, responsáveis por
sintomas e comportamentos distintos.
O somatório dessas contribuições talvez possa permitir a hipótese de
que a etiologia do autismo psicogênico remonta à ocorrência do trauma
no período fetal ou peri-natal. Sua vítima recorre à busca do estado de
homeostase inicial e com o auxilio das experiências sensórias autogeradas
pelos “objetos autistas” e pelas “formas autistas” se apazigua, embora
retarde seu desenvolvimento físico e psíquico.
Como se trata de um universo sem palavras, o corpo do paciente chega
a nós antes dele e nós o percebemos pelo nosso corpo antes da cognição.
A linguagem extra-verbal antecede a verbal e a intersubjetividade
psicanalista-analisando fica ditada pela sensação sensória. Este
conhecimento auxilia no diagnóstico da psicopatologia autista gerada pela
matriz autista-contígua e facilita o manejo da técnica psicanalítica com
estes pacientes.
Por isto, tenho considerado a contratransferência de fundamental
importância para a identificação dessa psicopatologia. A forma lenta ou
apressada, baixa ou alta, da fala do paciente é tão importante quanto seu
conteúdo e promove respostas físicas no analista. Por exemplo, sonolência,
dificuldade de ouvi-lo, mal-estar físico, mais ou menos relaxamento físico
na cadeira e outras. O conteúdo da fala desse paciente é marcado pela
desesperança extra-verbal, pelo relato repetido de situações vividas, pela
obsessão de encontrar o significado correto das palavras, pelo enquadra-
mento com que nos submete a seus objetos autistas e formas autistas, e
seu modo de ser que não permite mudanças ou interferências e ao nosso
total respeito ao setting. Intensifica essas reações no psicanalista a postura
física deste paciente, com movimentos musculares repetidos das pernas e
das mãos, ora lentos ora rápidos, seu olhar fixo ou desviado, a busca de
contato com almofadas ou livros existentes no consultório e outros.

128
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Talvez o sonho seja o único instrumento para o reconhecimento da


ocorrência do trauma precoce. Em alguns casos chega-se à sua identificação
por intermédio do relato da mãe ou de outros familiares do paciente.
Em geral esses pacientes apresentam dificuldades para se comunicarem
e vivem em contínuo medo de deixarem de ser, de se escoarem (Rosenfeld,
1980), de se desfazerem e de viverem desincorporados, como um não-eu,
ilustrado no livro de Tustin através de inúmeros casos clínicos.
Essa psicopatologia é reunida por Gilbert (2005) em três áreas distintas:
da sociabilidade, da linguagem e da motricidade. O autista opta pelo
isolamento social, habita um mundo vazio, não fala ou só reproduz o que
lhe é falado e repete movimentos estereotipados idiossincráticos. Vive em
um mundo quase inanimado, congelado, sem sentimentos, e tem como
característica central uma organização idiossincrática, com a qual
apresenta extrema habilidade em gerir questões intelectuais, motoras e
artísticas, mas encerra enorme dificuldade para o aprendizado de outras
tarefas diferentes do seu ordenamento ditado pela memória implícita.

Material clínico com comentários

Caso A
L estava com quatorze anos quando foi hospitalizada porque agredia
fisicamente a mãe, fugia de casa, ateava fogo em objetos caseiros e tentou
auto-extermínio com psicotrópicos. Alternava essas ações violentas com
períodos de apatia, sonolência e sintomas de anorexia nervosa. Nos estudos
encontrava-se atrasada em relação à sua idade cronológica. Ao exame no
hospital verifiquei que não havia alterações cognitivas, estava emagrecida,
tinha o olhar desviado e movimentos ritimados de enrolar os cabelos com
o dedo e balanceios do corpo e das pernas. Disse-me que havia sido
maltratada pela mãe desde pequena e jurou que infernizaria sua vida. Ainda
no hospital, constatei pela papeleta médica os diagnósticos de esquizo-
frenia ou de transtorno do humor bipolar. Os psiquiatras não conseguiam
determinar o diagnóstico e nem a prescrição medicamentosa, sempre
mudada.
Meu diagnóstico foi de psicopatologia autista associada com
hiperatividade alternada com imobilidade. Após alguns encontros senti
em L confiança em mim e solicitei sua alta para início da análise em
consultório.

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As primeiras sessões foram difíceis. Fazia questão da presença da mãe


para me convencer de como sua mãe não a entendia. Com fina sensi-
bilidade, obrigava-a a dizer como a estava percebendo. Nestas ocasiões, a
mãe se confundia. L dizia-me, então, que sua mãe nunca a havia entendido
ou chorado por ela.
Em uma sessão a sós comigo, ficou violenta ao perceber-me distante.
Tentou agarrar-me pelo pescoço. Eu a contive fisicamente e lhe disse que
de fato havia me distanciado dela enquanto falava. Minha confissão a
serenou e pude dizer-lhe que minha desatenção havia sido transitória e
que encontraria a explicação para não se repetir.
Mais docil comigo, tiveram início os movimentos para o isolamento e
a imobilidade. Colava-se à almofada no divã, como uma forma autista de
apaziguamento, e ficava quieta quase toda a sessão ou então dirigia-se ao
banheiro do consultório e lá permanecia de porta fechada. No início fiquei
apreensivo, mas compreendi depois essa ação como desejo de ficar só,
atendendo à sua demanda para a retirada autística, causada provavelmente
por um olhar ou uma fala minha sem sintonia com ela. Contou-me a
propósito sobre um irresistível desejo de ficar na cama o dia todo e
descreveu sonhos em que fazia força para mover os braços e as pernas e
não conseguia. Eram elementos indicativos de seu imobilismo.
Em uma sessão começou a sentir dor abdominal enquanto deitada no
divã, que se foi acentuando e ela desfaleceu. Estes episódios vinham
acontecendo fora do consultório com freqüência e eram interpretados pelos
familiares como encenações pessoais para impressionar. Mantive-me
calmo. Entendi o desfalecimento como resultado de um estado de
insuficiência física para com suas ansiedades. Ela se desfazia. Restava-me
segurar-lhe as mãos e dar-lhe tempo para se recuperar.
Em outra sessão L fez o relato de enurese noturna e de sudorese intensa,
descritas por Tustin como “formas autistas” por envolver elementos
corporais macios tais como a urina e o suor, como agentes produtores de
sensações sensórias sobre a pele, tal como a almofada no divã.
Depois mencionou a presença de alucinações auditivas que se referiam
a pessoas perseguindo-a. Eu lhe disse que, na verdade, ela queria ser
encontrada tal, o seu estado de imobilidade e desamparo.
Ao fim de quatro meses, L começou a dar mostras de mais estabilidade
e de confiança em sua própria capacidade para se compreender. Passou a
mostrar cultura brilhante para sua idade cronológica. Conhecia a mitologia
egípcia, a mitologia grega, além de conhecimentos da língua inglesa, de
cinema e de literatura. Contudo, relatou sua insuficiência para o apren-

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

dizado na escola, fato que provocava constantes atritos entre ela e a mãe.
Eu a compreendia porque o aprendizado da criança com barreira autista
só se desenvolve dentro de uma linha estabelecida por ela mesma. Há
muita dificuldade para aprender o que lhe é ensinado por terceiros.
Qualquer mudança na forma de ser ou de como ordena os objetos pode
ser sentida como fatal. Assim, fracassou quando tentou entrar para um
coral, para fazer ginástica olímpica e hipismo, todas tentativas de se
revitalizar, como aquelas relacionadas ao atear fogo em objetos de casa.
Foi preciso fazer com que a mãe compreendesse que L tinha seus
arranjos próprios e a importância de respeitá-los. Era nestas ocasiões que
L gritava e agredia para se sentir viva e se manter viva.
Em uma sessão mais atual, narrou-me seu entendimento sobre sua
agressividade e sua tendência para a imobilidade e a insuficiência. Disse-
me que se identificava com uma personagem da Internet cujo poder
aumentava por meio de pontos que ia somando em um jogo. Esta
identificação a mantinha mais animada, mas compreendeu que precisava
agir de modo mais moderado porque não se agüentaria na exaltação por
toda a vida. L entendeu tais movimentos antagônicos como a razão para
seus médicos a estigmatizarem como paciente bipolar ou esquizofrênica.
Sua capacidade para este insight mostrava que estávamos no caminho certo.
Minha compreensão de que L apresentava uma psicopatologia autística
foi confirmada pelo relato da mãe sobre traumas precoces, como gestação
conturbada pelas brigas com o esposo, do qual veio a se separar, o parto
demorado e a insuficiência de L para pegar o mamilo apesar de sua
insistência. Nasceu com os pés tortos e precisou do uso precoce de bota
corretiva com a qual se sentia bastante incomodada. Seus sintomas eram
respostas biológicas ao trauma, como aquelas da caça diante do predador,
associados à sua formação superegóica severa pelo tratamento sempre
corretivo da mãe. A angústia básica de L é resultante do medo de morrer
ou de ficar louca e de sua insuficiência para corresponder às cobranças da
mãe e sua competência para atividades próprias de sua idade. Meu trabalho
tem consistido em lhe proporcionar um setting confiável e um trabalho
interpretativo sobre suas exigências superegóicas.

Caso B
Trata-se de uma menina autista de seis anos, personagem do filme O
enigma das cartas. Este começa com a tomada da cena do caule de uma
árvore antiga com destaque para a casca espessa. Logo surgem vários

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répteis andando ao seu redor. Tal começo é sugestivo da gênese da vida e


da ontogênese do autismo, isto é, de suas raízes primitivas.
Havia perdido o pai recentemente em acidente, quando se dedicava a
estudos antropológicos em cidade mexicana. De volta à escola na América
começa a apresentar comportamento de isolamento dos colegas. Dirigia-
se a uma árvore, na qual subia para evitar o contato com colegas, exibindo
grande habilidade para se equilibrar, talvez relacionada à queda fatal do
pai. O psiquiatra da escola é notificado deste seu comportamento repetitivo.
Diagnostica-a como autista e dirige-se à sua casa para comunicar o
diagnóstico a mãe. Ao chegar participa da cena em que a menina está no
telhado de sua casa próximo à calha, onde foi apanhar a bola atirada pelo
irmão. Ao vê-la todos temem por ela. A mãe aflita busca aproximar-se
pela janela do sótão. A filha a vê e começa a gritar de forma desesperada e
repetitiva. O medo de todos aumenta, porque não entendem os gritos e
temem a sua queda. O psiquiatra pergunta aos presentes se não estão
notando algo diferente e o irmão atina com o fato de que a mãe está usando
o boné com a aba para trás. Quando o recoloca na posição certa, por
indicação do psiquiatra, a menina pára de gritar.
Em um momento desta mesma cena, o cineasta exibe a fixação do
olhar da menina na costura do gomo de uma bola, destacando-a. Escrevi
(Salim, 2002c) um trabalho que denominei de Remendos para uma
superfície sensória, no qual descrevo vários procedimentos sintomáticos
e reflexos por parte de pessoas em busca de apaziguamento para a
angústia de morte. Cito os sintomas de ficarem enrolando os cabelos
continuamente, os incessantes olhar e o falar, a manipulação obsessiva
de terços, contas e outros.
Há outra cena na qual o irmão a procura em seu quarto, onde se isolara.
Inadvertidamente, ele esbarra num cubo entre outros dois. Este cai e ela
começa a gritar do mesmo modo como fizera antes na calha do telhado. O
irmão aflige-se, sem saber como serená-la, até que recoloca, por acaso, o
cubo no seu ordenamento de origem.
O autista ou o paciente com barreira autística sente como vital manter-
se física e psiquicamente intocável, com tudo do modo como ajeitou. Esta
idiossincrasia remete à delicadeza e à sintonia necessária do analista para
formular a interpretação, cuidando para que a mesma não seja disruptiva
para o paciente.
O nome do filme tem origem no engenhoso arranjo feito pela menina
com as cartas de baralho equilibradas umas nas pontas das outras, de
forma a constituirem uma espiral ascendente.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

A esta altura do filme ela já está recebendo terapia na escola, mediante


exercícios nos quais é estimulada a fazer contato pessoal e verbal com o
psiquiatra, que atribui ao seu autismo uma natureza neurológica. Ele se
impacienta diante da ausência de resposta da menina que por sua vez se
irrita e fica agressiva com ele. A mãe discorda da opinião do psiquiatra
que atribui o comportamento da filha a um fator neurológico e com
veemência o atribui ao trauma da perda do pai. Está convencida que a
ajudará com uma sintonia afetiva. Esforça-se para entender a razão da
espiral das cartas, quando a menina mostra de novo grande destreza para
o equilíbrio. Tenta construir espiral semelhante à da filha com placas de
material pesado e, ao terminá-la, a menina responde à tentativa da mãe
de compreendê-la com o retorno à normalidade.
Esta espiral ascendente pode ser entendida como representação
materializada de seu esforço para deixar a posição autista, onde se refugiou
depois do trauma pela morte do pai. Na clínica esse esforço ocorre sob a
forma da hiperatividade presente em alguns pacientes. Tem recebido o
nome de Transtorno de Hiperatividade ou de Transtorno de Atenção,
segundo o DSM-IV (1994).

Caso C
M é um analisando adulto, filho de mãe desvitalizada, de olhos
chupados e fundos, e de pai epiléptico que assustava toda a família com
crises convulsivas e gritos. Havia grande carência de recursos materiais.
Lembra-se com enfase do episódio aos dois anos de idade, quando só
dormia depois que cobria a cabeça e o corpo todo com uma colcha,
comportamento que se prolongou até os sete anos. A colcha tinha a função
de uma segunda pele (Bick, 1968, 1986), importante contribuição para o
entendimento da psicopatologia autista. Tem a ver com o sentimento de
desproteção oriundo do desamparo inicial e com a perda do sentimento
de coesão física e psíquica, como certos pacientes que se trancam e fazem
do seu quarto fechado a sua segunda pele, pessoas que se fecham em suas
convicções, pessoas que ouvem e lêm obsessivamente todos os noticiários
da televisão e dos jornais e outros. Um verdadeiro manto psíquico.
M iniciou a análise com quatro sessões semanais devido ao exibicionis-
mo compulsivo acompanhado de outros desvios sexuais pelos quais fora,
algumas vezes, detido pela polícia. Relatava mal estar físico generalizado
com idéias de auto-extermínio, desespero, sensação de vazio interno
inexplicável, visão distorcida do corpo e isolamento acentuado das pessoas.

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Esse paciente despertava-me sonolência durante as sessões no período


inicial. Vivia sozinho no pequeno apartamento para onde convidava
homens que conhecia na rua para fins de atividades sexuais.
Depois de oito anos de análise passou a conviver com sua atual mulher
e a filha desta, adotada com afetividade. Teve mais duas filhas e conseguiu
fazer um curso superior que veio ajudá-lo economicamente.
Embora apresentasse esses progressos continuavam as queixas iniciais.
Interrompeu a análise pelo tanto que essa se tornou difícil para nós,
envolvidos que estávamos na repetição e na monotonia que se foi
acentuando e que eu não conseguia explicar. Até então meu diagnóstico
incerto, ora de psicopatologia narcísea, ora esquizoparanóide, ora
depressiva e ora edípica. M era tratado como tal.
Ficou afastado por quatro anos e voltou a me procurar devido seu estado
de insuficiência física e psíquica agravado, depois de tentar tratamento
com outros dois colegas. Não quis mais o divã e nem as quatro sessões
semanais. Propôs duas sessões e concordei com ele. Estava convicto de
que o trabalho analítico tem mais a ver com a pessoa do analista e seu
referencial teórico-técnico do que com o uso do divã e o número de sessões.
Hoje, três anos após o reinício da análise, apresenta resultado
terapêutico significativo devido a meu conhecimento da psicopatologia
autista. Permitiu-me compreender sua monotonia, sua insuficiência, os
prolongados silêncios durante as sessões, a fala compassada e precisa nos
detalhes, os olhos desviados dos meus, os gestos desvitalizados, os
movimentos constantes da língua na boca, a imobilidade física e psíquica,
o relato repetido das queixas de mal-estar físico e a sensação de vazio
interno acompanhado de uma tristeza seca, seus desvios sexuais e seus
sintomas psicossomáticos. Podiam ser entendidos como remendos para
as feridas produzidas pelos inúmeros traumas vividos.
Hoje convive melhor com a companheira sem a subestimar. É um pai
compreensivo e um avô consciencioso. Está melhor consigo mesmo e
apresenta considerável diminuição da sintomatologia verificada desde o
primeiro tratamento. Não mais demonstra ausência de si mesmo e do
outro. Suas sessões têm ainda o silêncio do início do tratamento, mas não
é o silêncio desvitalizado; tornaram-se interessantes como se estivéssemos
usando lentes de aumento para ver detalhes simples, mas de grande
significação para sua vida pessoal. Mostrou-se conhecedor da literatura
clássica.

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Caso D
R está com 43 anos e em análise há treze anos. Procurou-me devido ao
desassossego produzido por vozes que o ameaçavam e o subestimavam.
Admitia que fossem vozes de espíritos que vinham de fora ordenadas pelo
pai da ex-noiva como represália pelo término do noivado. Vivia dentro do
quarto, de onde só saía para vir à análise. Depois de dois anos de análise
com duas sessões semanais aceitou minha interpretação de que eram vozes
emanadas do seu interior, fato que mudou o rumo da análise. Foi
aposentado com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide.
Hoje, ainda, ouve expressões ou palavras que surgem de forma
inesperada com conteúdos de advertência ou de desmerecimento, mais
espaçadas e atenuadas em intensidade, sobre as quais fala nas sessões em
busca de entendimento. Recuperou o convívio com os familiares, embora
passe a maior parte do tempo dentro do quarto ao qual ninguém mais tem
acesso. Este funciona como sua segunda pele e deve ser mantido limpo e
arrumado só por ele, de acordo com seu ordenamento. Nunca faltou a
sessões. Vem para as mesmas dirigindo seu carro e controla adequada-
mente o dinheiro da aposentadoria e do pagamento das sessões.
No início era difícil atendê-lo devido ao seu imobilismo e à sua lentidão.
Provocava-me sonolência e em algumas sessões esta era percebida por
ele. Sua fala desconexa e enigmática transmitia conteúdo segmentado e
confuso, difícil de entender, e possuía modulação lenta.
Tempos depois, de posse de novo referencial teórico e técnico, comecei
a ter entendimentos que me auxiliaram a estar com ele de forma mais
ativa, fato que tem contribuído para recuperação clínica surpreendente.
Observei que quando interferia na sua fala sem sintonia com ele, reagia
de forma irritada. Fui aprendendo com ele que era melhor deixá-lo solto
para compreender as vozes e as expressões auditivas que ouvia. Ele tinha
um jeito próprio de se organizar psiquicamente, como a menina do filme
com os cubos. Cada palavra, ainda hoje, deve de ter significado preciso.
Desde esse entendimento, permito-me ficar sem compreender seu
discurso, agora mais encadeado, sem me sentir esvaziado, insuficiente e
sonolento. O mesmo acontece quando vai estacionar o carro. Só o
estaciona do lado direito da rua, obrigando-o a seguidas voltas pelos
quarteirões vizinhos e caminhadas extenuantes devido à irregularidade
da topografia das mesmas. Quando eu lhe disse que havia um estacio-
namento barato e próximo ao consultório, advertiu-me para não interferir
nesta questão.

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Ainda hoje, opta pelo isolamento em casa e nas suas vindas ao


consultório. Espera para tomar o elevador sozinho, e se encontra alguém
na sala de espera fica em pé no corredor.
Bastante significativo é o modo positivo como hoje reage às vozes que
o mandam afastar-se de mim e do tratamento, devido ao entendimento
das melhoras e de que tem comigo chance de se refazer pela confiança
estabelecida, basicamente por meio da regularidade do setting que inclui
a minha pessoa, a minha fala, o meu olhar.
Em algumas sessões relata presença de cheiros e sons dentro e fora do
consultório e o compreendo como forma de ele se sentir mais coeso pela
percepção sensória ativada.

Considerações finais

Ogden (1996) nos fala de “três organizações psicológicas fundamentais


– a posição depressiva, a posição esquizoparanóide e a posição autista-contí-
gua... Nenhum desses três modos existe isolado dos outros: cada um cria,
preserva e nega os outros dialeticamente. Cada modo gera um estado viven-
cial caracterizado por suas próprias formas de angústia, tipos de defesa, grau
de subjetividade, formas de relação de objeto, tipos de internalização, etc.”
Quanto à posição depressiva e esquizoparanóide existe uma vasta
literatura que se estende no universo psicanalítico atual. Fenômeno dife-
rente ocorre com a posição autista-contígua proposta, desenvolvida por
Ogden como extensão de contribuições de Bick (1968, 1986), Meltzer (1975,
1986) e de Tustin. Estes estudos não constam do ensino da psicopatologia
autista nos institutos de ensino da Psicanálise nos tempos atuais.
Na minha experiência clínica atual os pacientes mais freqüentes são
portadores de psicopatologia autista e em menor intensidade a psicopa-
tologia depressiva e a esquizoparanóide. Caracterizam os pacientes atípicos
e são tratados com referenciais teóricos oriundos das posições depressiva
e esquizoparanóide com resultados iatrogênicos, porque se trata de
pacientes portadores de grave insuficiência física e psíquica pelas razões
expostas neste trabalho. O tipo de ansiedade, o tipo de defesa, o tipo de
relação transferência-contratransferência, a capacidade para o simbolismo
e outras condições básicas são diferentes. São características de um período
em que não existia um ego com capacidade cognitiva. Como dito, seu
quadro clínico é predominantemente gerado e direcionado por um ego
biológico subordinado a memória implícita.

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Segundo Kandel (2003), Renik (2002) e Andrade (2004) a Psicanálise


necessita aproximar-se da Neurobiologia e seus ramos assim como de outras
áreas das ciências humanas, para o entendimento mais científico do substra-
to anatômico e do funcionamento do aparelho mental proposto por Freud.
Esta proposta não significa que a Psicanálise com seus conceitos teóricos
e técnicos clássicos deve ser considerada ultrapassada para dar lugar a outros
metodos de tratamento considerados mais científicos, como as terapias cogni-
tivas, por exemplo. Somente o psicanalista pode penetrar no âmago das
“formas autistas” e dos “objetos autistas”, propiciando ao paciente descrito
o setting regular e dotado do elemento afetivo, que lhe permita retomar seu
processo de maturação física e psíquica. Os tratamentos psiquiátricos e
psicológicos na minha observação clínica têm sido desastrosos para estes
pacientes, pricipalmente se conduzidos sem sintonia afetiva pelo seu curador.
O despertar de Tustin para o estudo do autismo psicogênico e depois
para as barreiras autistas em pacientes psiconeuróticos foi lento e povoado
de dúvidas. Seguramente, deverá acontecer o mesmo com aqueles que se
dispuserem a estudá-la. Esse trabalho é um incentivo para esse início.

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138
SEÇÃO TEMÁTICA:

A CRIATIVIDADE
E O ENVELHECER
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

A criatividade e o envelhecimento
Wilson de Lyra Chebabi*

Resumo
O autor expõe reflexões sobre o envelhecimento, no sentido de que
as modificações do corpo não correspondem necessariamente a
um processo degenerativo. Ao contrário, a velhice estabelece as
condições para que se reveja a própria história. E, aliando
envelhecimento com criatividade, se pode descobrir o que há de
ganho nas inevitáveis perdas pelas quais a passagem do tempo
nos leva a sofrer.

Abstract
The author exposes reflections about the ageing in the sense of that
the modifications of body do not correspond necessarily to a
degenerative process. To the contrary, the senility establishes the
conditions for reappraising the own history. And, allying ageing
with creativity we can discover what there is as profit through the
inevitable loses by which the passage of the time makes us to suffer.

O fato de ter sido convidado para fazer parte desta mesa, aos meus setenta
e quatro anos, precisando usar bengala e carregando o luto da perda dos
que já se foram, constitui um rico aporte ao tema que nos foi proposto.

* Membro Efetivo da SPRJ

141
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Criatividade e Envelhecimento

O que o tema permite é justamente juntar os dois títulos, vale dizer


tratar o envelhecimento com criatividade, É o envelhecimento que permite
criar e é a criatividade que permite o envelhecer bem.
E o que quer dizer envelhecimento? E como é que se trata o envelheci-
mento? E o que é tratar com criatividade?
A tese fundamental desta explanação é a de que o que vai definir o
envelhecimento vai ser o modo como se o trata. Isto não quer dizer que
não existam alterações no corpo da pessoa que envelhece, mas isto não
determina fatalmente que o envelhecimento se torne uma degeneração. O
estudo analítico existencial do envelhecimento tem mostrado que a
recessão física incontestável na velhice tem um sentido como reunião de
condições para poder e precisar se recolher para rever a própria história.
A criatividade é a aptidão humana de procurar e descobrir o que há de
ganho em qualquer perda.
A etimologia da palavra velho mostra que a palavra velho deriva do
latim vetus veteris, que significa literalmente do ano que passou, e se
empregava sobretudo para designar a qualidade do vinho.
À luz desta perspectiva, um vinho velho é um vinho bom. Se não
avinagra com o passar do tempo, é de boa qualidade. O envelhecimento
que é tão indesejável e contra o qual mobilizam-se tantos recursos médicos,
cirúrgicos e alimentares, é o envelhecimento avinagrado, isto é, é o
envelhecimento ácido, amargo de quem chegou à velhice de mal com a
vida. O ressentimento leva então a pessoa a abdicar de si mesma, consi-
derando-se já deteriorada.
Meu envelhecimento me propicia a chance de fazer um balanço
mais equilibrado, levando em consideração os erros e os acertos, os
tropeços e os sucessos e a confiança na tarefa que só eu posso realizar: a
de dirigir a minha via, que é a minha vida.

142
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Da criatividade e do envelhecer*
Marialzira Perestrello**

Resumo
A autora, acompanhada de analistas e não analistas, considera a
criatividade um patrimônio universal da humanidade e faz a
diferença entre criatividade e criação (artística, cientifica,
tecnológica etc). Cita idéias de Winnicott, Maslow, Rollo May e
outros e dá exemplos de pessoas muito idosas em plena criativi-
dade e com excelentes produções.

Abstract
The author in accordance with psychoanalysts and not-analysts
considers the Creativity as an universal patrimony of the human
being and shows the difference between the Creativity and the
Creation (artistic, scientific, technological etc). She quotes the ideas
from Winnicott, Maslow, Rolo May and others and gives examples
of aged persons very creative and with excellent works.

De inicio penso ser necessário examinar o termo criatividade. A idéia


mais aceita por especialistas (de diferentes áreas) é a de considerar a
criatividade como um patrimônio universal da humanidade. Todo ser
humano (normalmente desenvolvido) possui um potencial criativo.

* Mesa redonda organizada pela Comissão Cientifica da SPRJ em 22 de agosto de 2006.


**Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.

143
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Acrescento: afinal, não pertencemos ao Homo ludens? Costumo explicar:


os animais fazem coisas admiráveis, mas não sabem modificá-las, realizar
algo novo, diferente daquilo que gerações sempre fizeram. Uma colméia,
uma teia de aranha são as mesmas no séc.XXI, como eram na Idade Media,
na Antiguidade e entre os primitivos. O animal não inova, não faz algo
novo; o ser humano cria algo “nunca dantes imaginado...”
Gostaria de frisar: tal potencial pode se expressar de uma maneira
simples, por pessoas simples, sem profissão especializada, sem recursos
financeiros. Qualquer um pode ser criativo no modo de fazer amigos, de
arrumar a casa, criando comodidades agradáveis; criativo em educar os
filhos, no amor de seu companheiro. Enfim, ser criativo na vida cotidiana,
no próprio modo de viver, como dizia Winnicott. E acrescento: criativo
no encarar a vida, em desfrutá-la, em preenchê-la de modo positivo, no
conviver com os outros, no dar-se ao próximo e em ter momentos de
satisfações próprias.
Desejo salientar uma diferença importante, feita por analistas e não-
analistas. O brincar de uma criança, o modo criativo de uma pessoa simples
são exemplos de criatividade. Já a criação, seja artística, literária, musical,
cientifica, tecnológica etc, é a forma de a criatividade ter se realizado, ser
efetivada nestes campos, chegando a graus elevados. Isto se dá em poucas
pessoas.
Existiram – excepcionalmente – crianças que, além de criativas no
brincar, foram criadoras antes da puberdade. Mas devo falar dos velhos.
Repito sempre: o criador expressará, dará forma, realizará aquela
capacidade em potencial. Ele põe em prática sua criatividade de tal
maneira que esta será conhecida do público. A criatividade cotidiana é
solitária; porém é auto-gratificante.
A partir de 1950 o tema criatividade começou a ser intensamente
estudado.
Winnicott – psicanalista muito criativo – frisou que não deveríamos
confundir o termo criatividade com a criação exitosa e aprovada. Para ele,
a criatividade faz o indivíduo sentir que a vida vale a pena ser vivida. Parte
dos artigos publicados em seu belo livro Playing and Reality foram escritos
nos anos 50.
Também, nesta década, Abraham Maslow – representante da Psicologia
humanista - distinguiu uma criatividade primária e uma criatividade
secundária, esta se referindo à efetivação, ao produto. Maslow escreve
“A criatividade primária é algo comum e universal. Toda criança sã a possui
e, ao crescer, muitas a perdem”; “é universal no sentido de que se

144
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

aprofundarmos em uma terapia, ali a encontramos.” “... algo que todos


tivemos e que se havia perdido”.
Em geral são descritas várias fases no processo de criação. São duas as
principais a inspiração e a elaboração, aliás as mais conhecidas.
Rollo May define a criatividade como o processo de fazer o novo nascer,
o processo do nascimento de algo novo. Convictamente, encara o processo
criativo como a expressão do homem normal no ato de realizar-se, não
como produto de uma doença. Rollo May procura descrever o que se passa
no próprio momento criativo do artista e do cientista e também inclui o
homem da rua. (Trata-se de lindo artigo sobre a Natureza da Criatividade).
Para ele existe:
1º Um encontro que não precisa ser algo voluntário, não necessita de
“força de vontade”. O brincar da criança normal tem as características do
encontro e é um protótipo da criatividade do adulto. (Sabemos que em
1907, Freud genialmente comparara o brincar da criança ao criar do
adulto. Devo dizer que ele escreveu sobre a criação artística, mas não se
dedicou ao estudo da criatividade em si).
Rollo May continua: o essencial não é a presença ou ausência do esforço
voluntário, mas o grau de envolvimento, de comprometimento (de
engagement).
O 2º elemento no ato criativo é a intensidade do encontro. Os termos
“absorto”, “totalmente envolvido” são usados para descrever o estado do
artista e cientista quando criando, ou a criança quando brincando.
Costumo usar o termo “mergulhado”. A meus amigos, a algum aluno
com dificuldade de começar um trabalho costumo dizer: “mergulhe,
mergulhe em seu assunto – esqueça todo o pragmático.” É que penso ser
necessário uma certa dedicação ao tema, uma dedicação de toda sua
personalidade. Com participação de toda sua pessoa.
3º O encontro com o seu mundo. Há um processo continuo entre o
mundo e você; e entre você e o mundo. Um não pode ser definido sem o
outro. Por isto, Rollo May prefere falar em ato criativo, pois o que está
ocorrendo é um processo, um fazer, interrelacionando a pessoa a seu
mundo.
Abraham Maslow também se refere ao processo criativo em si e não
ao fato de chegar ao êxito, e descreve muito bem o que ocorre na pessoa
durante o ato criativo “fica-se imerso naquele assunto, situação, problema,
e naquele momento”. Maslow refere-se à capacidade de “perder-se no
presente”, de intemporalizar-se, desinteressar-se, colocar-se fora do
espaço, “renunciar ao passado e ao futuro”. Há uma fusão com a realidade

145
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

observada, com o assunto em pauta, uma espécie de integração de si-


mesmo com o outro... enfim a experiência é vivida, como beatitude, êxtase,
arroubo, exaltação. Maslow descreve muito bem as atitudes que ocorrem
nestes momentos criativos (Não posso deter-me em suas descrições – o
tempo é breve...).
Pergunto-me: por que estou insistindo nas idéias de Maslow? É que
ele dá valor a que sejamos capazes de enfrentar o amanhã, seguro de nós-
mesmos, para poder improvisar em uma situação nunca existida antes!
Então, nesse nosso tema da criatividade, ele poria ênfase na improvisação,
na inspiração (isto é na criatividade primária) e não na obra já terminada
(na criatividade secundária).
Phillis Greenacre também frisou o cunho de originalidade na
criatividade.
Já se acreditou em uma correlação entre inteligência e criatividade.
Guilford (1970) demonstrou através de testes que se trata de coisas
diferentes. Também que a criatividade pouco tem a ver com a genialidade.
Uma grande pesquisadora no campo da criatividade– Teresa Amabile
– chegou a dez conclusões. Citarei apenas algumas: qualquer ser humano
com habilidades cognitivas normais pode ser criativo em determinado
nível, e em assunto especifico; ninguém é criativo o tempo todo e em todas
as áreas. Há indivíduos criativos apesar de limites externos, de limites
internos e da inexistência de limites. Após um período de intenso trabalho,
a idéia pode surgir de repente. (Eu direi: é o eureka, o estalo do Padre
Vieira, aquela idéia que de repente surge lá de dentro de nós...)
Após ser convidada por Sandra, chamou-me atenção na livraria o
seguinte titulo: Dialogando com a Criatividade. O autor, Saturnino de La
Torre, é catedrático de Didática e Inovação Criativa na Universidade de
Barcelona. Comprei imediatamente o livro.
Extremamente didático e completamente pragmático, o autor mostra
meios e métodos de ser criativo. Uma novidade para mim: ele dá impor-
tância ao alcance social da criatividade: considera-a não somente uma
habilidade pessoal e sim em termos de potencial humano a serviço da
sociedade. A epígrafe de seu livro é “Criatividade é a decisão de fazer algo
pessoal e valioso para satisfação própria e beneficio dos demais”.

x x x

Vejamos, agora: existe criatividade no idoso? Claro que sim. Apenas


nem sempre ela é utilizada. Que é envelhecer? Os dicionários referem-se

146
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

ao tornar-se velho; porém, em geral frisam a conotação negativa. Em meu


artigo Envelhecer crescendo estendo-me sobre os vários significados do
substantivo e adjetivo velho.
Lembrarei, apenas, que o significado de velhice foi se modificando no
tempo e no espaço. O ancião já foi na antigüidade muito prezado, valo-
rizado, respeitado. Em alguns países do Oriente, até há pouco tempo, o
ancião, “o velho sábio”, era quase venerado. Em outras épocas o velho foi
esquecido, desvalorizado, humilhado e perseguido. Não sei se conhecem
um romance de Bioy Casares La guerra de los cerdos (A guerra dos porcos),
em que há uma perseguição, ora sorrateira, ora evidente, aos velhos da
cidade: eles são caçados e assassinados.
Uma explicação é necessária. Até anos atrás, as faixas etárias do ser
humano foram divididas em infância, puberdade, adolescência, adultez,
meia idade e 3ª idade. Estou convicta, e muitos de vocês já deverão ter
observado, que, os limites indicados devem ser modificados. No fim do
século 19 e princípios do século XX uma pessoa de 50 anos já era consi-
derada da 3ª idade.
Atualmente um homem de 50 anos está em total vigor e uma mulher
de 50 ainda é muito atraente. Considerar a mulher balzaquiana com 30
anos é meio ridículo. Hoje, a de 30 anos é moça, cheia de vida, estando na
idade dourada da feminilidade. Então, na atualidade, considera-se, 3ª idade
somente após os 65.
Imaginem que Freud em seu artigo sobre Psicoterapia (de 1905) pensava
que o tratamento analítico não era indicado para uma pessoa de 50 anos!
No entanto, após Freud, analistas já trataram e tratam de pessoas de muito
mais de 60,70 e 80 anos. Um grupo de estudos (ao qual assisto), coordenado
por Myriam Faingelernt e Cristina Amendoeira, lê e comenta trabalhos
sobre análises de pacientes de idade avançada; algumas com bastante
resultado.
Gostaria de lembrar-lhes que, em cada passagem de uma faixa etária
para outra, há vivências de luto pelo que se perde, de satisfação pelo que
se vai adquirir e também um certo medo pela responsabilidade da próxima
etapa. O adolescente, já tão estudado, perde os benefícios de ser criança e
ganhará as vantagens de se tornar adulto; mas existe também, um certo
receio desta nova etapa, de maiores responsabilidades. Quer dizer, há
sempre algo de luto referente à etapa anterior e algo de expectativa e temor
quanto à seguinte. Nisto o indivíduo de 3ª idade, o velho, de fato não tem
uma etapa futura a alcançar. O único futuro certo é a morte. Para os que
têm fé, há a esperança de uma vida futura. Para os descrentes e ateus não

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

existirá uma nova etapa. Pode-se preparar para os entes queridos uma
recordação positiva algo de afeição, de exemplo. Por vezes, deixar uma
obra para os colegas e discípulos. De certo modo, mesmo mortos, podere-
mos permanecer vivos, para alguns.
No envelhecer há perdas e ganhos. Em geral fala-se das perdas. No
livro editado por Dulcinéia Monteiro (“Dimensões do envelhecer”), escrevi
capitulo sobre meu envelhecer, em que falo também nos ganhos.
Sabemos que há sempre algum orgão ou sistema mais atingido, mais
debilitado; porém é necessário relembrar que, no setor psicológico, a única
diminuição necessariamente esperada é a de um certo tipo de memória;
as outras funções mentais não necessitam ser atingidas. A vida espiritual
e intelectual poderá permanecer ilesa, sempre que não surja uma enfer-
midade. (Então, repito: neste caso tratar-se-á de uma doença, e não da
velhice-em-si).
Desejo trazer exemplos concretos de pessoas com mais de 70 e 80 anos
em plena atividade e excelente produção, e assim poder contradizer o
significado de velho como inútil, ultrapassado, obsoleto. Entre os antigos,
o grande teatrólogo grego Sófocles escreveu seu Édipo – Rei com 70 anos
e, quando perto dos 90, os filhos quiseram interditá-lo pela idade, Sófocles
para provar sua integridade mental escreveu a emocionante peça Édipo
em Colono.
Conta-se que Bertrand Russel quando o navio em que viajava encalhou
perto do porto, nadou até a terra e ainda proferiu a conferência que estava
programada. O filosofo e o matemático estava com 74 anos!
Schweitzer recebeu o premio Nobel da Paz com 77 anos. Chaplin
produziu um filme aos 77 anos. E outros e outros existiram, em plena
atividade.
Citarei, agora, exemplos excepcionais de plena criatividade com
cerca de 80 anos ou mais. Entre cientistas: Planck e Sabin. Entre artistas
e músicos: Miguel Angelo e sobretudo Titiano pintando até mais de 90
anos! Picasso com cerca de 90. Verdi compôs o Falstaff com 80. Entre
escritores: o poeta argentino Borges, já cego, ditava seus textos com 80
anos. Victor Hugo, Churchil e nosso Freud escreveram importantes
trabalhos após os 80.
E last but not least o nosso grande Oscar Niemeyer, para mim, um
genial arquiteto-escultor. Seu Museu de Arte Contemporânea em Niterói,
considerado uma das maravilhas do mundo, foi projetado após os 80 anos!
Voltando a nós, simples mortais: a professora de Lingua francesa:
Raymonde de Vasconcellos (que não conheço pessoalmente mas entrevistei

148
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

pelo telefone), com 100 anos – acreditem – ainda continua a lecionar para
um grupo de 9 alunos, que funciona há 9 anos. Aos 70 anos escreveu Mon
Brésil et moi, e, com mais de 90, publicou Polifonia – contos realistas e
surrealistas ( com textos antigos e atuais).
Eu, própria, após os 80 anos iniciei o estudo de alemão e já consigo
traduzir, sem dicionário, algumas estrofes de R.M.Rilke, meu tão admirado
poeta. Só me incluo aqui para mostrar-lhes que ainda se pode ter a
capacidade de — com bastante idade – aprender algo novo, com surpresa
e entusiasmo.
Um preconceito muito comum é: estou velha nada posso fazer de novo...
Para meus companheiros de velhice e para os jovens que menosprezam
os velhos, digo-lhes: podemos sim. Poderemos continuar criativos em
muita coisa: fazer novos amigos, se já perdemos os antigos, descobrir
modos de encontrá-los, de recebê-los, de conviver com eles. Há uma certa
criatividade em criar e cultivar amizades. Já aposentados, com menos
obrigações impostas pelo exterior, temos mais tempo para apreciar e gozar
a Natureza, para ouvir música. Aqueles que se dedicam a algo artístico
terão mais tempo disponível. Há idosos que se reúnem para receber laivos
de cultura geral, musical; há os que estão se iniciando na informática; os
que se dedicam a atividades comunitárias. Há os que pintam, escrevem...
Mas desejo frisar: que tudo isto não seja visado apenas por obrigação;
para ter de se ocupar, para fugir do tédio, para suprir a sensação de vazio.
Que este ocupar-se não seja (empregando uma gíria) para tapar buracos...
E sim: uma maneira de enriquecimento interno, de um ocupar-se com
satisfação, num encontrando-se. Numa atitude mais de dirigir-se para e
não num fugir de algo.
Para finalizar, repito o que disse em Ribeirão Preto: não é por um ato
de vontade que teremos grandes insights e seremos criativos. Se para uma
pesquisa, um estudo, um determinado trabalho, nós nos deixarmos levar
pelos pensamentos não conhecidos e estabelecidos; se pudermos flutuar
e boiar, em vez de nadar com perfeição e com atitude competitiva; se
deixarmos nossas idéias fluírem livremente; se nos permitirmos um pouco
da 3ª loucura de Platão, se nos permitirmos improvisar, talvez surjam
idéias novas (não que as procuremos voluntariamente). E, por vezes,
poderemos até ser originais.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Envelhecimento
Maria da Paz Manhães*

Resumo
A autora discute aspectos emocionais e sociais relacionados ao
envelhecimento. A título de ilustração, tece breves comentários
sobre obras artísticas que tratam desse tema. Cita algumas grandes
tragédias do teatro, de Sófocles e de Shakespeare; filmes
cinematográficos, como “Morangos Silvestres”, de Ingmar
Bergman; e poemas, como um de Olavo Bilac.

Abstract
The author discusses social and emotional aspects related to ageing.
As illustrations, she makes brief comments about artistic works
that approach that subject. She quotes some great tragedies of
theater, by Sophocles and Shakespeare; cinematographic movies,
like one by Ingmar Bergman; and poems, like one by Olavo Bilac

Introdução

Si jeunesse savait et vieillesse pouvait...

Existe atualmente um certo interesse em relação aos problemas do


velho. As áreas mais visadas dizem respeito aos sentimentos do velho em
si, e à sua presença no meio social.

* Psicanalista, Membro Efetivo e Didata da SPRJ.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Há fatores significativos em todas as áreas de atividades humanas. Mas,


creio eu, o mais importante é o sentimento de desamparo e solidão. Não
menor é a certeza do velho de haver lutado para conseguir, no fim, uma
vida melhor. Ao ter alcançado essa meta, porém, tentam negar que ele
desfrute, repousando, das condições que ele mesmo criou.
Shakespeare foi muito arguto na apresentação dos problemas em
tragédias (peças teatrais que infundem terror e piedade).
O cineasta Ingmar Bergman foi magnífico, ao apontar um caminho
que pode ser seguido!
Os problemas da vida moderna, em uma cidade grande, dificultam
atitudes, medidas e sentimentos que, postos em prática, facilitariam o
modus vivendi dos velhos.
Por que não divulgar essa situação e tentar minorá-la?
É a rota da vida, à qual todos estamos sujeitos, à medida que tivermos
possibilidade de viver e sobreviver.
Para a confecção do presente trabalho, apoiei-me não só no pensa-
mento, como também na divulgação de trabalhos de autores clássicos de
renome.
Há pouco tempo, apresentei considerações sobre esse assunto, quando
escrevi o trabalho Édipo tardio na mulher, que aborda a intercessão no
relacionamento com o pai, e a atitude paterna.
Aceito a lei de Ribot, que fala da memória, enunciando e mostrando
quando “o novo morre antes do mais velho”, referindo-se à memória do
idoso. Isto será demonstrado aqui, quando me referir ao assunto velhice,
ilustrando-o com literatura clássica, antiga e tradicional.

Um pouco de história

Já na Antigüidade, e desde sempre, o homem pode ser visto como


alguém que deseja intensamente conhecer-se a si mesmo – Nosce te ipsum,
de Sócrates. Essa procura, que pode durar a vida inteira, começa a se
exacerbar na maturidade, e espera-se, à medida que se está envelhecendo,
que algo já deva ter sido encontrado. E, se não, aí estão filósofos, escritores
e poetas, para ajudar. As grandes tragédias corroboram nossa posição.
Vamos nos referir a quatro grandes tragédias, que apresentam o assunto
de maneira brilhante. Abordaremos os seguintes autores, entre filósofos e
escritores:

152
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Sófocles – No século V, expõe ao mundo as tragédias, apresentando


Édipo em Colona, que integra o chamado ciclo tebano. Essa obra descreve
a entrada do herói na cidade, onde se refugia dos crimes cometidos:
parricídio e incesto. Velho, alquebrado e andrajoso, Édipo é a imagem de
um mendigo. Reage dignamente, quando lhe comunicam serem as
Eumênides as protetoras daquele chão. Governa a cidade o parricida (?)
involuntário – Teseu, filho de Egeu. Embora Édipo tivesse sido chamado
pelos filhos, não volta a Atenas, preferindo ficar em Colona, junto às filhas,
que o acolheram, onde é enterrado.

Shakespeare – Apresenta-nos três personagens de velhos importantes:


a) Rei Lear (a peça data de 1594) – Viúvo, tinha três filhas: Goneril,
Regane e Cordélia. As duas primeiras, extremamente falsas, o bajulavam
continuamente, e ele acaba por doar-lhes, ainda em vida, todos os seus
domínios. Já Cordélia - que embora se mantivesse à distância, o amava
verdadeiramente - foi deserdada. Lear só percebe que fora ultrajado quando
Goneril e Regane o expulsam e se apossam de seus haveres. É, então,
socorrido por Cordélia e seu marido, aprendendo assim uma dura lição.
Outro personagem, Gloster, também vítima da ingratidão de um filho, é
encaixado no drama.
Em Rei Lear, basta reproduzir as falas do bobo:

“Quem o conselho te dá
de doar todas as tuas terras
põe aqui ao lado meu,
e o dele toma; não errais;
Verás logo, lado a lado
O doce bobo e o amarguroso;
Um aqui, sarapintado,
O outro aí mesmo, achacoso”.

(...)

Elas choram de alegria,


de tristeza eu rio e canto
por ver um rei na folia
mas na cabeça, nem tanto.

Criado de Varro: Que é um desclassificado, bobo?


Bobo: Um bobo bem vestido, que se parece contigo. É um espírito.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

b) Timon de Atenas (1607) – Misantropo, exuberante, maníaco (lembra


Quincas Borba, de Machado de Assis), mantém a casa aberta e a mesa
farta. Assessorado pelo cínico Aperanto, cai em desgraça e vinga-se de
maneira ostensiva, convidando os antigos comensais para um banquete.
Quando o mesmo é servido, atira-lhes no rosto os alimentos, chamando a
todos de animais e apodos arrasadores. Shakespeare mostra aqui, com muita
clareza, a maldade do mundo, que será amplamente ilustrada em Macbeth.

É importante a figura do bobo, em ambas as peças.

c) Macbeth – Nesta obra, a figura do agressor toma vulto e ocupa a


boca do palco. O assassino dá nome ao livro, como em outras peças de
Shakespeare. Duncan, o velho rei que será sacrificado, fica envolto na
penumbra, enquanto os valores de sua posição e cargo, postos ardorosa-
mente ambicionados, são colocados em evidência.
A ação se desenvolve em um clima de bruxaria tenebrosa. Para a
ocupação do reinado, não é pedida abertamente a morte do rei, e há uma
clara omissão do crime. A luta é pelo reinado e suas regalias, pois o rei já
estava muito idoso. Foi Macbeth quem procurou as bruxas. Elas não
vaticinavam que o velho rei Duncan deveria ser assassinado. Na realização
do mal, “os espíritos e demônios são nada mais que projeções dos impulsos
primitivos emocionais do homem.”
“A bruxaria, a magia, são instrumentos que foram institucionalizados
para a agressão reprimida”, diz Erickson.
Há uma predição: “ Viva Macbeth, que há de ser rei mais tarde!”
Ao que Macbeth elucubra: “Se o acaso quer que eu seja rei, o acaso
poderá me coroar, sem que eu me mexa.”
Assassinado o rei, Lady Macbeth, enlouquecida e estéril, luta contra
Macduff, que protegera Duncan.
Macbeth: “Tu nasceste de mulher / Para mim, são como o vento / golpes
de quem teve esse nascimento”.
Macduff: “ Em tal encantamento, o que o mau anjo / a quem serviste até
hoje declaro / que do ventre materno foi Macduff / tirado antes do tempo”.
Há luta.
Volta Macduff com a cabeça de Macbeth, e Malcolm é coroado rei.

Em Macbeth, o sonho de poder é aberto, e o velho rei Duncan sucumbe


assassinado. Édipo em Colona e o Rei Lear são muito contundentes. Tanto
os filhos de Édipo como as filhas do Rei Lear tentam arrasar os pais – velhos,

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dependentes - que deles só esperam amor, carinho e compreensão, no


decorrer de um tempo que, fatalmente, está se esgotando. Édipo é amparado
por Teseu, um jovem estranho a sua vida; o rei Lear, pela filha proscrita,
Cordélia, e o misógino Timon é amparado por Alcebíades e pelo cínico
Aperanto. São essas as conseqüências terríveis de se ter, ou não, família.

Filmes, livros, poemas

Transportando-me à atualidade, observo que tanto a literatura como o


cinema, como era de se esperar, têm dado sua contribuição ao assunto
velhice. Citarei algumas obras, a meu ver marcantes em suas abordagens
sobre o envelhecimento:
“Ensina-me a Viver” (“Harold and Maud”) – Neste filme, americano,
uma senhora de cerca de 80 anos fica viúva e encontra, no cemitério, um
jovem de 20 e poucos anos, que tem a mania de ir àquele local e acompa-
nhar enterros. Tornam-se amigos, e passam a desfrutar a vida como se
fossem adolescentes. O jovem perde sua mania. Os filhos de Maud dizem
que ela está louca. O casal vive feliz durante um ano, com alegria, conforto
e prazer. Harold quer casar-se com ela que, revelando sua verdadeira
identidade, diz: “Sou a condessa R...”. Cercada de flores, ela morre feliz,
deixando no coração do jovem uma marca indelével: procurar viver a vida
prazerosamente.

“Morangos Silvestres” – Este filme é-nos oferecido pelo extraordinário


Ingmar Bergman, em 1957. Conta a história de um velho professor,
talentoso e egoísta, o qual é conduzido de carro por sua jovem nora, para
receber um título muito importante. Nesse percurso realiza, introspecti-
vamente, uma viagem através do tempo, por sua vida pregressa. Ele
visualiza suas relações com a esposa e outras pessoas (inclusive a
empregada), com distância e sem afeto. Chega, então, ao local do prêmio
completamente “humanizado”. Voltando para casa, recebe calorosamente
a empregada leal que o servia há tantos anos, e passa a ser mais compre-
ensivo e gentil, após seu regresso.

“Um Passeio ao País da Velhice” – 1974. Filme baseado no livro de


Simone de Beauvoir, companheira de Sartre, uma obra crítica, rígida e,
às vezes até desagradável, quando se refere a certos aspectos da velhice
de Sartre.

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“A velha dama indigna” – Trata-se de um filme francês, no qual uma


mulher pobre e simples perde o marido. Filhos e demais parentes compa-
recem ao velório, e depois a abandonam à própria sorte. A viúva reage, e
exige uma mesada dos filhos, que tinham boa situação econômica. Torna-
se amiga de uma jovem, a quem proporciona coisas bonitas e modernas,
como se presenteasse a si mesma.1

É interessante notar que, nas obras por mim pesquisadas, há sempre a


presença de uma pessoa jovem em cena, na vida de cada velho ou velha.

“Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto
dure” (Vinicius de Moraes) – como muitas coisas na vida, há certos pontos
no aspecto da velhice que só podem ser encarados em uma visão mani-
queísta. A decisão do velho de realizar determinadas coisas, apoiada pela
experiência, só pode ser comparada ao atrevimento do jovem, que se joga
na vida alimentado por uma convicção.

Velhos e Velhas

Ocorreu-me pensar que, sob o ponto de vista histórico, e principalmente


mitológico, mulheres idosas não são mencionadas, como ocorre com os
homens. A mulher velha e sábia não encontra um paralelo com o homem
velho e sábio. A psicóloga Jean Houston faz observação análoga, e afirma
estarem reaparecendo, em nossa época, mulheres idosas importantes. No
entanto, não cita quais são. Por quê?
Um jovem amigo meu (autor da poesia Velho convicto2) ponderou que
esse tipo de mulher aparece nas histórias infantis como Dona Benta, de
Monteiro Lobato.
A vida do ser humano caminha com o correr do tempo. Para nós, de
modo geral, o tempo - Chronos - é marcado pelo relógio, sem surpresas;
pode ser controlado, e orienta nossas lidas. Os gregos admitiam, concomi-
tantemente, a existência de um outro tempo – kairós - para o qual não
temos uma tradução exata em português. Este tempo é cheio de surpresas,
e nunca se sabe quando irá sinalizar algo. É o tempo do coração, das
recordações, da memória, da saudade e das ausências...

1
MANHÃES, M. (1996) – Prisma Psicanálise na Cultura.
2
Ver essa poesia no item adiante, A hora da poesia.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

O envelhecimento é um processo universal. No ser humano, ele está


diretamente ligado à família, e apresenta também os aspectos médico,
legislativo e forense.

É a senescência um processo por todo o curso de nossa existência,


ainda que nem sempre, é certo, acometa por igual, e simultanea-
mente, a totalidade de nosso organismo físico.
(Nobre de Melo)

Sob o ponto de vista familiar, a marcha do tempo tem como meta a


morte, e não é, necessariamente, algo tão assustador. Pode, no entanto,
mostrar tonalidades muito desagradáveis, muitas vezes ilustradas pelo
quadro terrível das tragédias de autoria de grandes escritores. Como
exemplo, podemos citar as tragédias de Shakespeare anteriormente citadas.
Hoje em dia, o apoio médico na velhice pode ser, e é, amplo e muito
importante. Muitas vezes dependente, o velho necessita, além do profis-
sional médico, de pessoas para ajudá-lo, seja no lar ou em instituições.
Então, a figura do acompanhante vem se tornando bastante comum. Ele
recebe bons ordenados e usufrui do conforto da casa, como se fosse um
membro da própria família. Na prática, os resultados podem ser bons, ou
não. Já no atendimento à população mais pobre, os asilos e internatos
deixam, em geral, muito a desejar, principalmente no aspecto humano.
Na esfera legislativa, temos aspectos quase sempre mais ligados à
família, à distribuição de bens, responsabilidade dos filhos em relação
aos pais etc. Na área forense, pode ocorrer o mesmo. Familiares tentam,
com as instituições, forçar doações em vida ou até contestar testamentos.
Além disso, é grande o número de acompanhantes que move ações contra
idosos e suas famílias.

Prática psicanalítica

No domínio família, acentuo a importância e o discernimento de um


bom psiquiatra ou psicanalista. Há casos de pessoas idosas apresentadas
como doentes mentais quando, na realidade, foram tratadas com excesso
de antidepressivos, e por isso se comportam de forma estranha. Trata-se
de uma área muito delicada, e o pobre dependente está, em geral, nas
mãos de seus detratores. É fácil, sob o ponto de vista medicamentoso,
excitá-los ou pô-los em estado de estupor.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Minha experiência clínica é pequena. Meu trabalho “Édipo tardio na


mulher” é ilustrado com dois casos de homens idosos, chantageados pelas
filhas na aquisição de bens. Nessa empreitada, elas foram, aparentemente,
auxiliadas por suas mães. Tal situação lembra a tragédia do Rei Lear. Esses
idosos tornaram-se homens depressivos e desinteressados, em contraste
com a vida ativa que levavam, sob o ponto de vista do trabalho e da socia-
bilidade.
Acho difícil sustentar uma análise clássica. Seria uma tortura tornar
consciente o inconsciente, trazer ao consciente esse alerta para as tolices
que fizeram ao longo da vida. Recordar, repetir e elaborar...Não há mais
TEMPO, mesmo em se tratando de homens inteligentes. Pode-se apenas
tentar uma psicoterapia de apoio, com ajuda psiquiátrica.

Terapia com famílias - atividades grupais

O que dizer da discriminação contra a situação de aposentado?


As atividades profissionais e encontros com os velhos amigos em clubes
e instituições culturais são bastante benéficas para os velhos, assim como
o relacionamento com crianças. Como é bom disputar o pedaço maior do
sorvete, ou do saco de balas! Para que servem os netos?
Achei interessante o caso de uma instituição alemã, que construiu um
abrigo para velhos em uma praça, bem em frente a um jardim-de-infância.
Havia uma idéia de aproximação.
As grandes amizades se mantêm, principalmente quando originadas
na infância.
Meus pais foram sábios: vivendo sós em Marília, interior de São Paulo,
todos os dias à tarde abriam as portas de sua casa a uma juventude que lá
ia receber alimento espiritual e intelectual, acompanhados de salgadinhos
e bolos...
Em uma capital, os problemas de vida moderna dificultam a realização
de tais reuniões, mas o contato com velhos amigos será sempre um
momento agradável.
Os movimentos de terceira idade, que estimulam o convívio, oferecendo
atividades físicas e sociais, ajudam a tornar a vida do velho mais feliz e
interessante.
Algumas religiões do Oriente têm uma orientação mais espiritualizada.
Lá, de modo geral, o velho é, e sempre foi, mais respeitado do que entre
nós.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Cargos, como os de cientistas e literários, e mandatos políticos como o


de senador, costumam ser exercidos por pessoas mais idosas. Isto ocorre
também em relação a posições religiosas de liderança – basta mencionar
o papa.
No entanto, a boa aceitação familiar, assim como os lugares disponíveis
para pessoas de exceção estão, hoje em dia, diminuindo assustadoramente,
quase na mesma proporção em que o número de velhos aumenta.
Para o adulto, a senilidade é um fenômeno anormal. No velho, ao
contrário, o anormal é a ausência de senilidade.

A hora da Poesia

Velhas Árvores
Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918)

Olha estas velhas árvores, mais belas


Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas,


Vivem, livres de fomes e fadigas;
E, em seus galhos, abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!


Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,


Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Envelhecer
Bastos Tigre

Entra pela velhice com cuidado,


Pé ante pé, sem provocar rumores
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glória, ilusões de amores.

Do que tiveres no pomar plantado


Apanha os frutos e recolhe as flores;
Mas lavra ainda e planta o teu eirado,
Que outros virão colher quando te fores.

Não te seja a velhice enfermidade!


Alimenta no espírito a saúde,
Luta contra as tibiezas da vontade!

Que a neve caia! O teu ardor não muda!


Mantém-te jovem, pouco importa a idade!
Tem cada idade a sua juventude...

Velho Convicto
J. Jorge P. Pina – 10/8/2003

Sou velho, não terceira idade ou outro adjetivo


Sou velho, não metade
Sou velho por um simples motivo
- Motivo dos dias terem vindo
- Motivo deles já terem partido

Sinto orgulho do passado


Dos acontecidos
De meus amores
De minhas inconstâncias
Tive quedas e me ergui
Me sinto realizado

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Tenho saudade dos que já foram


Ganhei amigos, gerei filhos que me deram netos
Preciso de quem me precise
Ser velho é ser verdadeiro
É ter lembranças

Ser velho é valer da experiência


É ter malícia, ser maduro e perspicaz
É errar menos, talvez pela falta de tempo
É ser considerado respeitado
Ou a princípio deveriam

É ter no rosto as ranhuras vividas


É ter sentido o sabor da dor
É querer morrer cercado pelo amor.

Considerações Finais

No mundo ocidental, há uma tendência a encarar a velhice como uma


tragédia. O relato de Shakespeare em sua obra é muito claro, e nem mesmo
omite a presença ou o uso de elementos de bruxaria.
Sófocles, em Édipo em Colona, é mais conciliador, e introduz o jovem
Teseu como um elemento de proteção.
O cinema dá ao velho mais autonomia, e Ingmar Bergman produz, com
Morangos Silvestres, uma obra antológica, brilhante. Ele mostra o funcio-
namento da mente de um velho inteligente e sábio, aparentemente empe-
dernido, que consegue ponderar e retificar pensamentos e atitudes frias e
egoístas.
Já o cinema francês traz sua contribuição ao assunto por meio de
Simone de Beauvoir. Não gostei de seu livro que menciona até compor-
tamentos anti-higiênicos de Sartre, no processo de envelhecimento.
Os filmes “A velha dama indigna” e “Ensina-me a viver” são muito
estimulantes. Não exageram ao admitir, na vida de mulheres velhas, a
presença de uma pessoa jovem. Esta é amada e mimada na relação
amorosa, em termos sociais, guardando as diferenças de idade.
Na sociedade atual, materialmente muito difícil, o aspecto jurídico deve
ser bem elucidado: há casos de pessoas idosas que são “adoecidas
mentalmente” para invalidar testamentos.

161
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Mas, felizmente, há muitos profissionais competentes, que orientam


as pessoas idosas de maneira positiva e coerente, livrando-as da sanha de
dependentes inescrupulosos.
Cuidar da saúde física e mental, divertir-se, relacionar-se socialmente
são importantes atitudes, mas não substituem o valor da auto-estima do
velho, respeitando-o em seu modo de pensar e agir, condigno com seu
envelhecimento.
Pouco sei sobre o tratamento prestado às pessoas de idade avançada
no Oriente. No entanto, é voz geral que os velhos, lá, são mais amados e
respeitados que no Ocidente.

Agradecimentos
Agradeço a meus alunos e amigos, que sempre me apóiam e estimulam:
Dra. Eronides Borges da Fonseca
Dr. Adolpho Hoirisch
Dr. Antônio M. Barata
Dr. Wilson Amendoeira

Referências Bibliográficas
SHAKESPEARE, William. MacBeth. Rio: Ediouro,
____. Rei Lear. Rio: Ediouro,
____. Timon de Atenas. Rio: Ediouro,
SÓFOCLES. Édipo em Colona.
ALVES, Rubem. As cores do crepúsculo.
____. A estética do envelhecer.
MANHÃES, M. P. (2001). Complexo de Édipo tardio na mulher.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Você é um envelhescente?*
Mário Prata**

Se você tem entre 50 e 70 anos, preste bastante atenção no que se segue.


Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá. E, se
já passou, confira.
Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro partes:
infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto. Esqueceram
de nos dizer que entre a maturidade e a velhice (entre os 45 e os 65),
existe a ENVELHESCÊNCIA.
A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na
velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade.
Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim
da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência. E, se você está em plena
envelhecescência, já notou como ela é parecida com a adolescência?
Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso:
– Já notou que andam nascendo algumas espinhas em você? Notada-
mente na bunda?
– Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de
meninas de vinte anos.
– Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhescentes, também.
Mudamos o nosso ritmo de falar, o nosso timbre. Os adolescentes querem
falar mais rápido; os envelhescentes querem falar mais lentamente.
– Os adolescentes vivem a sonhar com o futuro; os envelhescentes vivem
a falar do passado. Bons tempos...
– Os adolescentes não têm idéia do que vai acontecer com eles daqui a
20 anos. Os envelhescentes até evitam pensar nisso.

* A palavra “envelhescência” foi usada pela primeira vez nesta crônica, publicada no jornal
“O Estado de São Paulo”, em 1994.
**Mário Prata é escritor.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

– Ninguém entende os adolescentes... Ninguém entende os envelhes-


centes... Ambos são irritadiços, se enervam com pouco. Acham que já
sabem de tudo e não querem palpites nas suas vidas.
– Às vezes, um adolescente tem um filho: é uma coisa precoce. Às vezes,
um envelhescente tem um filho: é uma coisa pós-coce.
– Os adolescentes não entendem os adultos e acham que ninguém os
entende. Nós, envelhescentes, também não entendemos eles. “Ninguém
me entende” é uma frase típica de envelhescente.
– Quase todos os adolescentes acabam sentados na poltrona do dentista
e no divã do analista. Os envelhescentes, também a contragosto, idem.
– O adolescente adora usar uns tênis e uns cabelos. O envelhescente
também. Sem falar nos brincos.
– Ambos adoram deitar e acordar tarde.
– O adolescente ama assistir a um show de um artista envelhescente
(Caetano, Chico, Mick Jagger). O envelhescente ama assistir a um show
de um artista adolescente (Rita Lee).
– O adolescente faz de tudo para aprender a fumar. O envelhescente
pagaria qualquer preço para deixar o vício.
– Ambos bebem escondido.
– Os adolescentes fumam maconha escondido dos pais. Os envelhes-
centes fumam maconha escondido dos filhos.
– O adolescente esnoba que dá três por dia. O envelhescente quando
dá uma a cada três dias, está mentindo.
– A adolescência vai dos 10 aos 20 anos: a envelhescência vai dos 45
aos 60. Depois sim, virá a velhice, que nada mais é que a maturidade do
envelhescente.
– Daqui a alguns anos, quando insistirmos em não sair da envelhescên-
cia para entrar na velhice, vão dizer:
– É um eterno envelhescente!
Que bom.

164
MONOGRAFIA
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

AMOR TRANSFERENCIAL:
Alcebíades e Sócrates X
Analista e Analisando
Isis de Souza Figueiredo*

Resumo
Esse trabalho é um estudo sobre o amor transferencial, devido a
sua importância para a técnica psicanalítica. Através de um
paralelo no diálogo entre Alcebíades e Sócrates, no “Banquete” de
Platão, com o que se passa entre analista e analisando.
“A figura de Sócrates, com efeito, faz emergir uma nova relação,
não tanto com a verdade, mas com o desejo, pela primeira vez na
história ocidental, o desejo do outro é colocado em posição de objeto.
Há toda uma temática que, quando Sócrates formula nada saber
sobre o que concerne ao desejo, atinge o estatuto do sujeito. O desejo
não é posto por Sócrates em posição de subjetividade original, mas
em posição de objeto. Pois bem-é também do desejo como objeto
que se trata em Freud” (Cottet, 1990).
Baseado num breve resumo do que trata o “Banquete”, o presente
trabalho tem como objetivo enfocar a relação Alcebíades/Sócrates
dentro da ótica psicanalítica e foi apresentado como monografia
de conclusão do curso de formação do Instituto de Ensino da
Psicanálise da SPRJ.

* Membro Associado da SPRJ.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

O banquete de Platão

“O Banquete” é um livro sobre o amor. É a narrativa de um banquete


oferecido por Agatão a Aristodemo, discípulo de Sócrates; Fedro, jovem
retórico; Alcebíades, Rico, belo, elegante; Pausânias, rico ateniense;
Erixímaco, médico; Aristófanes, o comediante; Sócrates, alegre conviva,
irônico que não perdia a oportunidade para conduzir a conversação para
as discussões filosóficas.
Trata-se o banquete de uma reunião para beber, ordinariamente acom-
panhada de música de flauta ou lira, onde uma taça de vinho circulava
pelos convivas, e quem a recebia se obrigava a pronunciar um elogio ou
formular uma pequena composição poética. Só que precisamente neste
banquete, por sugestão de Pausânias, resolveram que não iam beber para
se embriagar, mas beberiam apenas pelo prazer da bebida, por estarem
todos fracos da noite anterior, quando Agatão comemorou um de seus
triunfos teatrais.
Erixímaco é convidado a propor a sua sugestão, que não é senão a de
Fedro que volta e meia lhe diz que estranha jamais alguém ter louvado o
amor como este merece, e como Eros pode ser tratado com tamanho
descaso.
Assim Sócrates diz que ninguém votará contra a sua proposta, desejando
boa sorte a Fedro, que inicia os louvores ao amor.
Segundo Fedro, o amor é o mais velho dos deuses e é quem inspira o
bem e impede o mal. Existem, desta forma, duas diretrizes que norteiam
a vida dos homens: os atos virtuosos, onde está o amor da honra, e os atos
indecorosos, onde predomina o sentimento de vergonha. Sem essas duas
é impossível a um povo a realização de feitos grandiosos e belos. O amor
é o que norteia a vida inteira dos homens, dando uma existência plena de
beleza.
Pausânias, que sucede Fedro, censura a falta de precisão do discurso
anterior e tenta uma definição mais precisa. Para ele, existem dois tipos
de Eros para os homens, um vulgar e repudiável, porque tende à mera
satisfação dos instintos sexuais. O outro é de origem divina e impulsiona
cuidar do amado. Esse Eros tem uma força educadora, não só repressora
dos amores vis, como força motora à generosidade. Para Pausânias o
amante faz coisas para o amado que nenhum outro se sujeitaria fazer. “O
amante faz tudo com graça, somente o amante obtém o perdão dos deuses”.
Para Erixímaco, com a visão de um médico, Eros aparece como um
deus poderoso, com uma existência boa e ruim. O Eros bom promove o

168
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

bem-estar e a harmonia. Diz que o homem deve consentir o prazer, mas


não deve se deixar corromper por este. O amor não exerce apenas influência
nas almas, mas ele ainda é quem dá harmonia ao corpo.
Aristófanes conta um mito relativo à origem do homem. Na origem, os
homens eram dotados de órgãos duplos, sendo extremamente ágeis e
ousados, resolveram atacar o próprio Olimpo. Os deuses vingaram-se e os
homens foram separados em duas metades. O amor nasceu daí: é a eterna
procura da completude, o eterno desejo que os homens sentem de procurar
a outra metade que um dia perderam. Eros é um anseio, uma busca do
homem por uma totalidade do ser, inacessível à natureza do indivíduo.
Um sinal disso é a saudade, a necessidade dos amantes de estarem sempre
juntos. Não se trata de algo somente corporal, mas de algo que une suas
almas, complemento que uma alma busca na outra. “Nossa espécie só
poderá ser feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e
cada um de nós encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à
sua primeira natureza”.
Agatão diz que o Amor visa exclusivamente à beleza, penetra nos
corações sem que se possa percebê-lo, e não se dá bem com a violência. Só
mora em lugares perfumados.
Todos, antes de Sócrates, tecem elogios ao Amor, ora discorre-se sobre o
poder do Amor, ora sobre as duas diretrizes que norteiam a vida dos homens-
o Amor, e os atributos que fazem o merecimento do alvo do elogio.
Sócrates, depois que todos fazem o elogio ao Amor, se confessa um
incapaz, um miserável e quanto ridículo foi ao se comprometer a louvar o
Amor. Experiente na vida amorosa, sem de fato nada saber sobre o Amor,
mas, sim, um conhecedor de desejos.
Introduz o desejo, dizendo que o Amor é o desejo de alguma coisa, mas
só de coisas que faltam; pois não se deseja o que se tem. Diz que o Amor
não é um deus. Pois um deus é completo, belo, feliz. E o amor é faltoso,
ele é necessidade de coisas boas e belas. Está entre o mortal e o imortal,
tendo como atribuição a de intérprete entre os deuses e os homens. O
Amor tem como o pai o Engenho: o amor vive espreitando o que é belo e
bom. Como mãe, Penúria: por isso um eterno mendigo. Não nasceu mortal
nem imortal. Mas, no mesmo dia, ora viça e vive, ora falece, para de novo
surgir vivo quando entra a operar a engenhosa natureza do pai.
Para Sócrates o Amor cria o objeto amado e não o amante.
O Amor é o desejo da posse perpétua do que é bom. “Daríamos o nome
de amor ao afã e esforços intensos de quem procura atingi-lo de certa
maneira e por determinados atos qual é essa maneira?” (André, 1987).

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Consiste na procriação do belo, não só no corpo, como também na alma.


Assim, na geração, um mortal perpetua a renovação e imortalidade. Se o
Amor é o desejo de possuir para sempre o que é bom. O amor-desejo
também é um desejo de imortalidade. Que se dá pela reprodução, que
sempre substitui o velho pelo novo.

O elogio de Alcebíades a Sócrates:


O Amor Transferencial

Logo depois de Sócrates ter discorrido sobre o Amor e o desejo,


Alcebíades chega à casa de Agatão, embriagado, senta-se entre Agatão e
Sócrates, sem se dar conta de que é Sócrates quem está a seu lado.
Quando Alcebíades recebe a taça de vinho e com ela a palavra, a
solicitação de falar sobre o Amor, fala de sua admiração por Sócrates,
como no trecho a seguir: “Ao ouvi-lo, meu coração pulsa mais fortemente
do que dos coribantes e enchem-se meus olhos de lágrimas sob o efeito de
suas palavras..... Acreditei que ele sentia uma grande paixão por minha
florescente mocidade, e julguei que tal fato importava para mim em
vantagem e ventura:
Pensei que, em troca de meus favores, receberia de Sócrates toda sua
ciência. Sim, eu me orgulhava desmedidamente do brilho de minha
mocidade”.
Depois de falar de seu deslumbramento por Sócrates, conta algumas
passagens onde tenta seduzi-lo. Em uma delas, convida Sócrates para um
jantar íntimo, e cria uma situação em que Sócrates tem que passar a noite
na casa de Alcebíades. E acontece a seguinte cena: Os dois deitados,
Alcebíades toca em Sócrates e fala:
– Sócrates, está dormindo?
– Não, respondeu-lhe.
– Sabes o que quero?
– Não, o que é?
– Aí me abri: Creio que é o único que merece ser meu amante, e que não
tens evidentemente coragem de declarar-te. Pois, eu penso desta maneira:
seria uma grande tolice não te fazer a vontade neste ponto, como em qualquer
outro, se por ventura necessitasses de minha fortuna ou da de meus amigos,
porque nada desejo tanto neste mundo como me aperfeiçoar de modo
mais completo, e para isso jamais encontraria um auxílio mais eficaz do
que o teu. Por esse motivo, eu me envergonharia muito mais diante

170
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

daqueles que têm juízo, se não concedesse favores a um homem da tua


qualidade, ao que diante da multidão e dos tolos, por não haver concedido.
Sócrates responde:
– Meu caro Alcebíades! Parece-me que no fundo não és um leviano, se
pelo ao menos é verdade o que dizes de mim, e, se de fato, está em meu
poder torna-te melhor. Neste caso, estás a ver em mim uma inimitável
beleza, que supera de muito a beleza de seu corpo. Ora, se depois desta
descoberta procura entrar em relação comigo para trocares beleza por
beleza, mostra que tens a intenção de ganhar mais do que eu, pois
demonstras que deseja adquirir o que é verdadeiramente belo, em vez do
que é belo segundo a opinião do vulgo, trocando assim ferro por ouro.
Mas, vivíssimo amigo, pensa um pouco mais sobre tudo isso para que não
atribua valor demasiado ao pouco que valho. Os olhos do espírito só
começam a ver melhor quando os olhos do corpo se fecham; e tu ainda
estás muito longe de haver conseguido isto.
Alcebíades diz que Sócrates o enganou tomando o papel de amado em
lugar do de amante. Percebe-se no texto de Platão a dialética Kleiniana do
bom e do mau objeto interno enquanto desencadeantes do desejo.
Alcebíades desconhece a razão de seu amor por Sócrates. Essa paixão surge
em relação ao desejo de Sócrates, porque Sócrates é um ser que deseja,
deseja saber. E por isso atrai, suscita o apaixonamento. Lacan utiliza o
episódio socrático para falar do desejo do paciente em relação ao analista:
“O sujeito, enquanto sujeitado ao desejo do analista, deseja enganá-lo
quanto a essa sujeição, fazendo-se amar por ele, propondo para si mesmo
essa falsidade essencial que é o amor” (Cottet, 1989).
Em Freud: “Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixo-
nada exigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência. Há
muito notaram-se na paciente sinais de uma transferência afetuosa, e pode-
se ter certeza de que a docilidade dela, sua aceitação das explicações
analíticas, sua notável compreensão e o alto grau de inteligência que
apresentava deveriam ser atribuídos a esta atitude em relação ao médico.
Agora, tudo isso passou. Ela ficou inteiramente sem compreensão
interna (insight) e parece estar absorvida em seu amor. Ademais, esta
modificação ocorre muito regularmente na ocasião precisa em que se está
tentando levá-la a admitir ou recordar algum fragmento particularmente
afetivo e pesadamente reprimida na estória de sua vida”(Freud, 1914).
Para Freud, amor transferencial é quando a paciente acha que está
apaixonada por seu analista. Porém, ele adverte que esse sentimento não
deve ter o destino de uma paixão como na vida cotidiana dos mortais.

171
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Ele alerta os analistas para que não se considerem objeto de amor,


enaltecidos em seu narcisismo por essas paixões. Ele indica que esse
sentimento não deve ser atuado, nem desprezado. E, sim, utilizado como
mais uma ferramenta do processo psicanalítico. Ele alerta para um fato:
“é comum que a paciente se apaixone pelo seu primeiro médico, depois
pelo seguinte, e uma vez mais”... “Ele deve reconhecer que o enamoramento
da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos
encantos de sua própria pessoa, de maneira que não tem nenhum motivo
para orgulhar-se de tal conquista” ( Freud, 1914).
Para o analista, o fenômeno significa um esclarecimento valioso. Porque
a resistência se utiliza desse amor, com o fim de paralisar a análise, desviar
o foco do trabalho, colocando o analista ao nível de amante, em última
instância, parceiro/cúmplice, não só como amante, mas parceiro na
manutenção dos mecanismos de defesa.
Seduzir o analista pode ser vivido como um triunfo pelo paciente, mas,
uma derrota para o tratamento. Um acting out, o paciente repetiria o que
deveria ser relembrado e elaborado. Seus sintomas, inibições e reações
patológicas continuariam a marcar sua vida erótica. Essa atuação impos-
sibilitaria o fortalecimento egóico do paciente, e a frustração do tratamento
acarretaria um descrédito no processo analítico, e um acirramento da
repressão.
Freud propõe: “É, portanto, tão desnecessário para a análise que o
anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido. O
caminho que o analista deve seguir não é nenhum destes; é um caminho
para o qual não existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para
não afastar-se do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável
para a paciente, mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe
qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor transfe-
rencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve
atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que
pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na
vida erótica da paciente para sua consciência e, portanto, para debaixo de
seu controle.
Quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está
a prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação
seu conteúdo analítico. A paciente, cuja repressão sexual naturalmente
ainda não foi removida, mas simplesmente empurrada para segundo plano,
sentir-se-á então segura o bastante para permitir que todas as suas
precondições para amar, todas as fantasias que surgem de seus desejos

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

sexuais, todas as características pormenorizadas de seu estado amoroso


venham à luz. A partir destas, ela própria abrirá caminho para as raízes
infantis de seu amor” (Freud, 1914).

A relação Sócrates/ Alcebíades:


Seus Aspectos Transferenciais.
Alcebíades descreve Sócrates para os convivas do Banquete da seguinte
maneira: “Se o examinardes do exterior, tendes a impressão de que
Sócrates ama aos belos mancebos, que sente prazer em conversar com
eles, e entusiasmado os contempla. Além disso, seu exterior dá a impressão
de se estar em presença de um ignorantão, de um tolo. Ora, tal não é o
aspecto de Sileno? Exatamente. Intentai, porém: este exterior o envolve
como a estátua do Sileno, e se a abrirdes, e contemplardes o seu interior,
quanta sabedoria, companheiros, havereis de lá encontrar!... Quando,
porém, está sério e se abre, não sei se alguém viu as coisas sagradas que
nele há, eu as vi uma vez, e me pareceram tão divinas e deslumbrantes
áureas e magníficas, que me convenceram de que se deve fazer imedia-
tamente tudo quanto Sócrates exige” (Platão, 1958).
No trecho acima, verifica-se a transferência na relação. A descrição
que Alcebíades faz de Sócrates, mas lembra o setting terapêutico. O analista
como semblante, atento às escapulidas do inconsciente. E, quando o
inconsciente se manifesta, e é percebido por Sócrates, a sensação de bem-
estar de Alcebíades mais se assemelha a de um paciente elaborando um
conflito. Porém, quando o amor transferencial se instala, e Alcebíades,
como um paciente em análise, acredita profundamente na genuidade desse
amor, não o percebendo como um estorvo ao tratamento. Sócrates remete
Alcebíades a Agatão, designando-lhe o agalma que Alcebíades supunha
pertencer a Sócrates. Demonstra para Alcebíades que o objeto de sua
fantasia é na verdade Agatão. Na medida em que este último é o favorito
de Alcebíades, cujo nome significa riquezas. Como o analista que não atua
o amor, mas, elabora e dá sentido as fantasias do paciente.

Conclusão
Quando se fala do amor, não se sabe do que se fala e quanto mais se
fala dele, menos se sabe a seu respeito, é a primeira lição a se tirar do
Banquete de Platão.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Com relação ao Amor, distinguem-se dois níveis de questionamento,


seguindo as colocações de Sócrates no Banquete, onde este coloca que se
tratando de amor deve-se, com efeito, determinar não apenas o que ele é,
mas também para o que ele serve.
Sócrates se fez dizer por Diotima que o amor tem por função preencher
um vazio. E, é por isso que ele, Sócrates, se recusa a ser objeto amado.
Porque ele sabe que esse vazio jamais será preenchido. No máximo, ele
poderá ficar como objeto agalmático para um outro, no caso Alcebíades.
O saber de Sócrates relativo ao amor é este: ele sabe que não há literal-
mente nada a saber do Amor, e que tudo aquilo que pretende preencher
este vazio não passa de um logro. Assim, quando Alcebíades quer forçá-lo
a produzir o agalma, esta maravilha que ele acreditou discernir em
Sócrates, este só pode declinar de sua proposta: “Meu caro Alcebíades, é
bem possível que, na realidade, não sejas um leviano, se o que dizes a meu
respeito é verdade e se há em mim alguma força pela qual te possa tornar
melhor. Talvez tenhas visto em mim uma beleza inconcebível e absoluta-
mente diversa da formosura que em ti existe. Se, deveras, notando-a,
empreendes participar dela comigo, permutando beleza por beleza,
tencionas pregar-me não pequeno logro; tentas obter a beleza verdadeira,
dando em paga uma de aparência, e pretendes de fato cambiar cobre por
ouro. Contudo, ó bem-aventurado, examina melhor se não te enganas a
meu respeito, sobre o nada que valho. Deveras, a vista da inteligência se
vai aguçando quando a dos olhos começa a embotar, mas tu ainda estás
longe desse ponto” (Platão, 1958).
Na verdade, Alcebíades quer trocar o Ser pelo Ter, e isso é da ordem do
impossível. Alcebíades se mostra um tolo querendo tapear Sócrates,
desconhece sua própria ilusão, que o impele a esta tentativa de sedução.
Ele acredita realmente que Sócrates tem alguma coisa para lhe dar. Alguma
coisa da qual ele espera, a onipotência.
Quando Sócrates o manda examinar as coisas com mais cuidado, para
que não passe despercebido que ele (Sócrates) nada é, neste ponto Sócrates
se faz ausente, não tendo outro poder e função senão oferecer ressonância
ao desejo de Alcebíades. Assim, quanto ao objeto, separa-se dele, reme-
tendo Alcebíades a Agatão e designando neste o agalma que Alcebíades
queria lhe retirar.
O que Sócrates mostra com esta atitude é que o que Alcebíades faz
desejar e o que constitui limite à expansão de seu amor é a riqueza, a
plenitude, e não a pobreza, o vazio que ele, Sócrates, é.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Fazendo isso que Sócrates separa o objeto ao qual a fantasia dá


consistência do vazio de que esse sujeito procura preencher esse vazio,
que para Sócrates constitui a verdadeira causa do amor e do discurso
amoroso, e que ele se esforça por encarar fazendo-se ausente.

Referências Bibliográficas
André, Serge. “O que quer uma mulher?”, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1987.
Bataille, Laurence. “O Umbigo do Sonho Por Uma prática da Psicanálise”,Editora
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
Cottet, Serge. “Freud e o Desejo do Psicanalista”, Editora Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1989.
Freud, Sigmund. “Sobre a Dinâmica da Transferência”, 1912.
______. “Recomendaçõs aos Médicos Que Exercem a Psicanálise”, 1912.
______. “Sobre o Início do Tratamento”, 1913.
______. “Observações Sobre o Amor de Transferência”, 1914.
In Obras Completas de Sigmund Freud, Editora Imago, Rio de Janeiro, 1977.
Platão. “Diálogos”, Editora Cultrix, São Paulo, 1958.

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RESENHAS
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

Nietzsche e o Nascimento
da Psicanálise
Autor: Márcio Amaral

Resenhado por: Eduardo Rodrigues Peyon*

“ ‘Ah, como vocês são sensatos!’ exclamei sorrindo. ‘Paixão!


Ebriedade! Loucura! Vocês, defensores da moral, tudo
contemplam com tanta calma, tão indiferentes, vocês
recriminam o bêbado, desprezam o louco, por todos passam
como um sacerdote, agradecendo a Deus, como o fariseu, por
Ele não os ter feito iguais a esses infelizes. Eu me embriaguei
por mais de uma vez na vida, minhas paixões nunca
estiveram distantes da loucura, e não me arrependo: porque
foi assim que vim a compreender que, desde tempos
imemoriais, foram considerados ébrios ou loucos os homens
extraordinários, que realizaram grandes coisas, coisas que
pareciam impossíveis. (...) Vocês, homens tão sóbrios e sábios,
deviam envergonhar-se!”
(Goethe – Os Sofrimentos do Jovem Werther)

Se a psicanálise possui uma vocação libertadora ou até mesmo subver-


siva, tais atributos devem boa parte de sua efetividade aos caminhos que
Nietzsche abriu para Freud. Que o pai da psicanálise evitasse o contato
com os filósofos, em prol de sua liberdade de pensamento e da não absorção

* Psicólogo, mestrando em Psicologia Clínica na PUC-Rio,. e poeta, autor dos livros “Sublime
Fel”, “Pequenas Conchinhas” e “Mentirinhas de Amar”.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

ou redução da psicanálise a um sistema, isso não o impediu de reconhecer,


mesmo que timidamente, sua dívida com Nietzsche e Schopenhauer.
O livro de Márcio Amaral vem não apenas mostrar com clareza essa
descendência direta da psicanálise do pensamento nietzschiano, mas
também, a partir desse olhar, compreender a psicanálise não apenas como
uma subversão do cogito cartesiano e do reinado da Razão, mas princi-
palmente como inserida numa outra perspectiva filosófica, que rompe com
a matriz metafísica dominante do pensamento ocidental desde Sócrates.
A ruptura com a Razão e com a Moral que determina um Bem e um Mal é
fruto de um esforço enorme de um pensamento, o de Nietzsche e até certo
ponto o de Freud, que lança-nos a uma compreensão mais ampla, menos
dicotômica da vida. Moral aqui é compreender que não deixamos de ser
animais e de ter instintos. Instintos que são a fonte de tudo de mais
maravilhoso que produzimos.
Ser herdeiro de Nietzsche, acompanhando a leitura aguda de Amaral,
é valorizar o instinto em continuidade com a produção cultural. Assim,
não há valor moral que possa estar acima da vida, da potência íntima que
emana do Id, do Isso, Das Es já utilizado por Nietzsche e que, na segunda
tópica freudiana, será o caldeirão de nossos Triebs, ou como chama o autor,
o “núcleo quente” da vida. Assim, na segunda parte de seu livro, dedicada
ao aparelho psíquico, como concebido em 1923, Amaral empreende toda
uma releitura de sua constituição à luz da remoção do escolho moralista
realizada por Nietzsche. Desta forma, se o Id aparece de forma similar em
Nietzsche e Freud, o Eu nos escritos nietzschianos é já uma entidade que,
como em Freud, não é senhora na própria casa. Dessa forma, podemos
encontrar, seguindo Amaral, muitas semelhanças entre o aparelho psíquico
tal como constituído por Freud e as reflexões de Nietzsche sobre nosso
psiquismo.
Portanto, se na primeira parte do livro, intitulada Genealogia e Colapso
das Prescrições Morais, trata-se de apontar em Nietzsche e Freud a
superação da virtude kantiana e do “engessamento moral da época”, e
onde são belíssimas as poéticas e corajosas palavras citadas de Nietzsche
– e acompanhadas pelos arroubos do jovem Freud, especialmente no seu
questionamento sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses;
na segunda parte do livro, que versa sobre O Aparelho Psíquico, vemos
outros correlatos entre as sementes plantadas por Nietzsche e os desdo-
bramentos de Freud com a construção da psicanálise.
Na terceira parte de seu livro intitulada Para Além do Bem e do Mal,
ou do Princípio do Prazer?, Amaral envereda por um assunto espinhoso,

180
P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

a TodesTrieb. E, como ao longo de todo livro, o texto freudiano não é


tratado aqui como uma bíblia cuja palavra sagrada deve ser reverenciada
e reafirmada como cânone custe o que custar. Muito pelo contrário, o
pessimismo que irrompe na obra de Freud a partir de 1920 é analisado
sem medo, e percebemos no autor um elogio à vontade de potência que
Nietzsche parece ter sustentado até o último estertor, diferentemente de
Freud, que, mais amargurado, teria alimentado uma dose de sarcasmo e
pessimismo em sua alma calejada por duras perdas. Ali onde Nietzsche
parece ter definitivamente se afastado de Schopenhauer, Freud reapro-
ximou-se.
Por fim, na última parte do livro, A psicoterapia e a Psicanálise, o
autor versa sobre a clínica, reconhecendo a grande importância do método
de tratamento desenvolvido por Freud e novamente articulando suas
construções com intuições de Nietzsche. Nessa parte, Amaral interroga o
conceito de narcisismo e critica a hipótese fisiológica de Freud, que afirma
ser uma “espécie de calvário no qual é sacrificada toda a criatividade do
raciocínio psicanalítico”. Fica a impressão, para um leitor que como eu
não conhece o autor, que se trata de alguém cuja clínica baseia-se numa
busca permanente da verdade e numa abertura incessante de questões,
com simplicidade, através de pequenas doses e evitando os obscurantismos
e também as esquematizações que enclausuram a beleza e complexidade
do humano, demasiado humano.
Acredito poder dizer que o livro de Amaral se insere – e a seu autor –
na corrente do pensamento que, pelo menos desde Spinoza, não separa
instinto de razão, physis de nomos, homens dos demais animais. Estando
distante do antropocentrismo criminoso, algumas vezes mascarado pelo
belo nome Humanismo, que perpetrou bárbaros crimes contra as gentes.
Desta forma, a psicanálise é situada não apenas em ruptura epistemológica
com todo exagero racionalista, mas também com todo idealismo, seja ele
religioso, jurídico ou filosófico. O ideal aqui é a vida no que ela possui de
mais íntimo, “as mesmas necessidades de nossos ancestrais”. O que
Nietzsche reapresenta e que nunca deixou de retornar e insistir, através
das figuras nefandas, demoníacas, dionisíacas, histéricas, poéticas e
questionadoras de cada época, é um humano que não se coloca como
superior ou centro do universo, mas que diante da morte se supera e se
faz um übermensch. Freud soube escutar esse clamor das histéricas e dos
poetas, mesmo que fosse mais temeroso do que Nietzsche em relação à
natureza humana. Amaral traz à cena esse debate costurando-o com belas
metáforas e versos de Manuel Bandeira.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

É justamente com versos de Bandeira1 que Amaral termina seu livro


exortando-nos à liberdade: sacudamos nossas correntes! E, dedica-o à
gente simples do Brasil, aquela gente humilde a qual nos canta o Chico
Buarque e que, como toda gente, sente dores, aflições e conhece a loucura
de perto. Parece-me, após a leitura dessa bela obra, que a herança
nietzschiana e aquilo que Freud pode desenvolver dela marcam uma aposta
na vida. A vida como integrada à physis e não apartada desta pela raciona-
lidade que se arroga o domínio da natureza. O excesso iluminista de Razão
torna-se aqui o grilhão a ser sacudido sem que se perca de vista, todavia,
o mérito do esforço científico e da busca pelo conhecimento com rigor,
cuidado e método.
É no grande amante que foi Nietzsche que Amaral encontra as raízes
da psicanálise, especialmente dos momentos mais corajosos de Freud nos
quais, liberto de seus grilhões, ele pôde ter a coragem de ser também poeta.
Cabe lembrar que Freud, no desfecho de sua conferência sobre a Femini-
lidade diz-nos ter ido até onde sua ciência o permitiu e que, quem desejasse
saber mais sobre o continente negro, que interrogasse a vida cotidiana e
os poetas. Pois bem, é essa poesia que não se curva à soberania da Razão,
que expõe as vísceras, muitas vezes pagando um preço alto por isso, que
Amaral reverencia em Nietzsche. É nessa moral do cotidiano que nós
escutamos diariamente, nos consultórios e fora deles, é aí que podemos
vislumbrar o vôo que Nietzsche nos apontou e que Márcio Amaral aqui
nos retransmite ao tingir com cores intensas a origem rasurada do
pensamento freudiano.

1
“Oh! Pequenos escravos / Sacudam suas correntes.” (Chanson des Petits Esclaves).

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Linguagem e Construção
do Pensamento
Organizador: José Renato Avzaradel
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2006

Resenhado por:
Alice Tigre e Adriana Gang Nudelman*

Atualmente, notamos que muitos dos pacientes que chegam aos nossos
consultórios possuem dificuldade para expressar e compreender aquilo
que sentem. Não conseguem construir símbolos ou metáforas, geralmente
nos mostrando um amplo esvaziamento de sentido. Tais pacientes
impõem-se como um desafio à clínica psicanalítica tradicional, tornando
prioritária a elaboração de novas ferramentas para conseguirmos nos
aproximar daqueles que em sofrimento nos procuram.
É neste cenário que o livro “Linguagem e Construção do Pensamento”,
organizado e concebido por José Renato Avzaradel, mostra-se bem vindo.
Nos seus onze artigos, José Renato Avzaradel e seus colaboradores
buscam abrir caminhos para a compreensão da gênese do pensamento,
investigando como ele ocorre. Para tanto, os autores percorrem as conexões
existentes entre sentido, significado e suas transformações; afeto, imagem
e linguagem pictórica; ideograma e formação do significado. Estas
conexões são examinadas sob a luz de diferentes perspectivas psicanalíticas
bem como pela filosofia e pela lingüística, o que ilustra o enfoque multidis-
ciplinar do livro, que possibilita um olhar mais amplo e uma aproximação
mais consistente sobre o tema.
Segundo Danilo Marcondes, a concepção básica da filosofia analítica é
que a filosofia deve se realizar por meio da análise da linguagem.

* Psicólogas do Instituto Cultural Freud.

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Examinando as contribuições de Frege, Hussel, Moore, Wittgenstein e


Austin, este autor consegue distinguir duas concepções de análise na
filosofia analítica.
A primeira como decomposição da proposição, reconstruído-a em
termos de uma concepção lógica de linguagem, chegando-se desse modo
à elucidação. Essa concepção supõe uma ontologia, que pode ser ilustrada
pelo atomismo lógico e na qual se fundamenta a possibilidade do conhe-
cimento científico.
A segunda como elucidação do significado de expressões lingüísticas,
por meio do exame do seu uso. Nesta concepção, temos uma versão do
nominalismo, sem, contudo, qualquer explicitação de pressupostos
ontológicos mais diretamente.
Danilo alerta que as duas concepções não podem ser vistas de forma
excludente. Porém, vale ressaltar que elas geram conseqüências distintas,
devendo ser examinadas como vertentes diferenciadas.
Seguindo esta tendência, Avzaradel aponta que alguns trabalhos
psicanalíticos do livro seguiram a primeira concepção, investigando “... a
linguagem pictórica, a ideogramatização, os pensamentos oníricos e a
atividade onírica (inclusive de vigília); as relações entre a estrutura dos
sonhos e a estrutura poética, os vínculos que reúnem os elementos mentais
e permitem a construção de significados” (p.19). Já outros trabalhos
rumam à segunda, pois examinam “... os significados na interação de duas
subjetividades. A linguagem como elemento de ação e não só como recurso
para relatos, que se apóia na teoria das relações de objeto” (p.19).
Em “Mente e significado: A Avaliação de Márcia Cavell da Teoria
Psicanalítica”, Ney Marinho nos apresenta um fértil diálogo entre a
psicanálise e a filosofia ao analisar a obra “The Psychoanalytic Mind: From
Freud to Philosophy”, da mesma autora.
Na psicanálise, a teoria das relações de objeto chamava a atenção de
Cavell, que notava forte compatibilidade desta com sua orientação filosó-
fica, a moderna filosofia da linguagem. A autora se nutre destas abordagens
para articular seu posicionamento frente às noções de mente e signifi-
cado. Ela aponta um “parentesco” e simultaneidade entre estes conceitos,
entretanto observa que, tanto na tradição filosófica de Descartes como
nos primórdios da psicanálise, a mente foi usada de forma privilegiada. A
autora parte então da discussão dos impasses gerados por esse uso para
tecer sua trajetória.
Márcia Cavell estuda o internalismo fundamentado na posição
cartesiana da autoridade da primeira pessoa em oposição à perspectiva

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

do ponto de vista do intérprete, “a mente isolada” versus a intersubje-


tividade. Grande parte da argumentação de Cavell se dá através dos
desdobramentos desta discussão, que acarretam na apresentação de
alternativas para as questões com as quais a epistemologia da psicanálise
nos confronta.
Citando Marinho: “As principais implicações da aproximação de Cavell
à teoria psicanalítica referem-se à questão da aquisição da linguagem e
todo um vasto trabalho existente acerca de observações de bebês e teorias
a respeito dos primórdios da vida mental; e ao problema da irracionali-
dade” (p.75).
Ao longo do seu artigo, o autor faz um apanhado detalhado da obra de
Márcia Cavell, instigando-nos a conhecê-la de forma ainda mais apro-
fundada.
Em “A imagem sob a perspectiva de algumas teorias psicanalíticas”,
Paulo Marchon também trata da intersubjetividade, entretanto, utiliza a
clínica no alinhavamento de sua argumentação. Neste artigo, o autor
investiga como as imagens permeiam tanto a linguagem verbal quanto o
pensamento. Para tanto, utiliza-se das teorias da relação mãe-bebê com o
mundo e a imagem para compreender o surgimento da criação e do
pensamento. Afirma, citando Aristóteles, que “o pensamento é impossível
sem imagens” (p.142). Utiliza-se de trabalhos de alguns lingüistas e
filósofos. Entretanto, é nas diferentes perspectivas psicanalíticas, sobre-
tudo em Bion, que é dada sua maior ênfase.
Apesar do foco em Bion, é também utilizado o conceito do psicanalista
Henrique Honigsztejn do “núcleo rítmico”, condição fundamental para a
atividade criadora, artística e científica. Marchon coloca que, segundo
Henrique Honigsztejn, para existir um criador é necessário haver uma
“mãe especialíssima”, que possua e proporcione ao seu bebê um excesso
de libido sendo sempre continente das angústias dele (bebê), proporcio-
nando-o com isso um mínimo de frustrações e um máximo de tranqüili-
dade e, em contrapartida, um bebê que responda a essa mãe com carga
semelhante. O “núcleo rítmico” é estabelecido no período de não-dife-
renciação entre a dupla mãe-bebê harmônica. Este núcleo é registrador
desse relacionamento harmônico do bebê com sua “mãe especialíssima”,
no qual o Id se articula com o Ego em função deste último.
Este “holding ideal”, entretanto, acarreta uma fixação intensa da libido
do bebê nessa fase e um Ego diferenciado que não atinge a normalidade.
A dedicação e ternura da “mãe especialíssima” podem ser fatais ao criador
uma vez que dificulta seu desligamento de uma infância de “bem-

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VII – Número 1 – 2006

aventurança erótica, nunca mais renovada”. É nesse sentido que o criador


geralmente vive exclusivamente em sua arte, tendo o resto da vida
atrofiada.
Paulo Marchon relaciona a teoria acima exposta com a trajetória da
poeta Helen Keller, que ficou cega, surda e muda aos dezoito meses de
idade, e de como foi possível desfazer as “disritmias” emocionais que
dificultariam o surgimento da sua genialidade a partir da dedicação de
uma professora.
Dessa forma, Marchon indica que o trabalho psicanalítico pode ajudar
as pessoas (e os artistas) a desenvolverem condições de realizarem uma
vida mais feliz sem afetar, e até mesmo aumentar, a capacidade criadora.
Finalizamos abordando a relação da psicanálise com a linguagem
literária. Por meio desta, José Francisco da Gama e Silva, em seu ensaio
“A Atmosfera Merencória da Lírica de Camões”, chega ao espaço entre
que, segundo o autor, está situado numa terceira dimensão.
José Francisco menciona a bela definição de Paul Válery de poesia como
tensão para a exatidão.”Exatidão indefinível, precisão na formulação da
beleza do vago e do indeterminado, meticulosidade na composição das
imagens. Imagens compostas a partir de pequenos e intensos registros
visuais, de traços mnêmicos (imaginários) embalados em sensações
sinestésicas, rítmicas e sonoras, enfeixados e articulados dinamicamente
pela geometria rigorosa das palavras no verso” (p.252). Aqui, José
Francisco se refere àquilo que pretende descobrir ao iluminar o universo
Camoniano. Entretanto, poderíamos dizer que o encontro psicanalítico
também busca a ambiência descrita: através da interação de imagens que
flutuam entre emissor e receptor, entre analista e paciente surge a
possibilidade de criação de uma infinita multiplicidade de significações e
sentidos.
“Linguagem e Construção do Pensamento” une a perspectiva intersubje-
tiva ao pluralismo de idéias. Além de nos oferecer um vasto instrumental
para a compreensão dos casos difíceis, convoca-nos a nunca deixarmos
de nos surpreender e nos sensibilizar, condição sem a qual desaparecem
todos os sentidos.

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Le Jeu en Psychanalyse de l’enfant


Autores: A.Anzieu, C.Anzieu-Premmereur e S. Daymas
Editora: Dunod, Paris, 2000

Resenhado por:
José Iencarelli Filho

Este é um interessante e atualizado livro de psicanalistas de crianças


que trabalham em dois grandes serviços ligados à Faculdade de Medicina
da Salpêtrière, onde estudamos há quase 30 anos atrás.
No serviço do Prof. Mazet, sob a orientação do Prof. Basquin, com quem
tivemos a honra de estudar, e no Centro Alfred Binet, onde também
passamos, as autoras praticam e ensinam, sendo Mme. Anzieu a mais
conhecida e reputada internacionalmente, com o título de vice-presidente
da associação européia de Psicanálise de Crianças. Sua filha, Mme Anzieu-
Premmereur, é médica no Centro Alfred Binet e se dedica às crianças
pequenas, sendo Mme Daymas, praticante de Psicodrama, colega de Mme.
Anzieu na Salpêtrière.
Na França, o Psicodrama Analítico para crianças foi introduzido por Serge
Lebovici, o grande incentivador da especialidade, fundador do famoso
serviço do XIIIème arrondissement, denominado Centro Alfred Binet.
Até hoje a estrutura pública de atendimento psiquiátrico é a mesma, a
chamada Psiquiatria de Setor ou Setorizada, onde uma mesma equipe que
trabalha num hospital e num ambulatório se dedica ao atendimento da
população de uma região geodemográfica, o que dá estabilidade e
manutenção de conhecimento mútuo entre profissionais e clientela. que
se torna cativa tal como nos consultórios particulares. Entre cada dois
setores de Psiquiatria de Adultos, existe um Inter-setor de Psiquiatria
Infantil que acompanha clientes emcontato com creches e escolas da
região, sendo possível uma observação ao longo do tempo.

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Mas, voltemos ao livro dessas autoras dedicadas e experientes, que


trabalham em condições excepcionais quando as comparamos à nossa
realidade. A idéia central do livro é a de que a apreensão dos conflitos
psíquicos interiores desses clientes se expressam principalmente através
do brincar, o que não é novidade. As autoras assinalam que o brincar
precede a linguagem e como tal está mais próximo das pulsões
inconscientes mais primitivas. Citando Winnicott, reafirmam a posição
contra-transferencial essencial de que o analista tem de compartilhar o
brincar, sem o que a comunicação não se dá. Através do brincar,
mobilizam-se as identificações transfero-contra-transferenciais, que
possibilitam a transformação das emoções em elementos de comunicação
que podem se modificar. Impulsos motores e lingüísticosaparecem no jogo,
revelando as identificações estabelecidas, assim como as angústias
despertadas pelos temas suscitados pela brincadeira. Para isso. a técnica
é apresentada no 1º capítulo, a partir da historia da técnica com o esboço
de Freud e as diferenças conceituais de Klein e Anna Freud, passando
pelas fundamentais contribuições de Winnicott. Regras, enquadramento,
contra-transferencia e a principal transferência que é da projeção sobre o
analista da(s) figura(s) parental(is), são abordadas.
O capítulo 2 foi escrito por Anzieu-Premmereur e é dedicado à
psicoterapia de zero a 5 anos. Descrevendo a participação da mãe, a neces-
sidade de não saturar o espaço com brinquedos em excesso, a utilização
do espelho, a autora fala das modalidades do brincar, da importância da
observação da interação mãe-criança e das resistências à mudança com
os inevitáveis recuos narcísicos e defesas narcísicas mais comuns.
O 3º capítulo foi escrito a quatro mãos por Anzieu-mãe e Daymas,
abordando a questão da latência e da adolescência. Capaz de distinguir
entre o brincar e o aprendizado escolar obrigatório, a criança nestas fases
demonstra diferenciação do ego e suas identificações secundárias, o que
leva as autoras a preferirem a designação de posição de latência à tradi-
cional designação de fase, pois há um desinvestimento dos objetos edípicos
com uma conseqüente rearrumação narcísica, que pode reaparecer em
qualquer fase da vida como uma reafirmação da identidade individual. “O
superego perde seu aspecto terrorífico sobre a libido, a analidade evolui
para a genitalidade e as pulsões sexuais são parcialmente sublimadas em
proveito das pulsões epistemofílicas”, descrevem as autoras magistral-
mente o fenômeno, com clareza admirável e erudição sólida. Assim, o
principal sintoma da latência é a inibição pelo medo da castração. O desejo
aparece como algo próximo da linguagem, diminuindo o campo simbólico,

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diferentemente do que observamos nas crianças pequenas. Aumenta a


distancia entre o ego e os objetos do desejo, havendo também uma canali-
zação da descarga motora para o pensamento, o que reforça o narcisismo
primário e permite ao adolescente abandonar seus aspectos teatrais na
vida quotidiana. Esta é a razão pela qual o Psicodrama é mais adequado
para reativar as imagos inconscientes.
O capítulo 4 trata da importância do Corpo na análise. Sensorialidade
e motricidade se entrelaçam com a passividade e a atividade, masculinidade
e feminilidade, conceitos freudianos clássicos, cuja importância as autoras
exemplificam com fantasias e simbolizações predominantes no brincar
da criança.
O capítulo 5 aproxima os conceitos de histeria, inibição e angustia de
morte, ilustrando o sofrimento e a contra-transferencia suscitada no
analista, com exemplos clínicos.
O 6ºcapítulo aborda a questão da simbolização do brincar, questão
fundamental para a compreensão das duas principais vertentes da
regressão que são a defensiva e a elaborativa, segundo Paul Denis, autor
contemporâneo.
O capítulo 7 fala da reconstrução interpretativa possível na análise de
crianças, criticando M. Klein, e o capítulo final, de número 8, descreve a
técnica do Psicodrama com adolescentes. Exemplos clínicos, conceitos
básicos e aprimorados pelas autoras, além de considerações práticas do
tipo como, quando e o que e interpretar, fazem parte de um rico acervo
apresentado. que empolga e nos ensina bastante sobre o jogo na Psicanálise
de Crianças.Sem dúvida, um livro a não se perder, seja para os interessados
e praticantes da especialidade, como também para aqueles que ainda
duvidam da aplicabilidade da Psicanálise com crianças e adolescentes.

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Orientação aos Autores

A Revista psicanalítica é uma publicação anual com a finalidade de divulgar a


teoria e a clínica psicanalítica,assim como as interfaces da psicanálise com as
diversas áreas do conhecimento humano.
Além desta revista a SPRJ publica um boletim semestral onde é divulgada a
produção científica de nossa sociedade.

• Informações gerais sobre a revista


Conteúdo
A revista Psicanalítica publica artigos inéditos,, artigos de atualização, artigos
de revisão, comunicações breves, relatos de casos, resenhas de livros e cartas.
O artigo deve ser preferencialmente inédito. As exceções dependerão da
avaliação da comissão editorial.
O artigo deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor
Os conceitos emitidos são de inteira responsabilidade do autor.

• Estrutura do artigo
Os artigos inéditos, comunicações breves, artigos de revisão e de atualização,
devem ter um súmario em português e em inglês na primeira página do artigo.
As referências bibliográficas devem se adequar as normas da ABNT para
publicação de artigos científicos.

• Seleção e avaliação de artigos


Na seleção de artigos serão avaliados:a originalidade, a relevância do tema e a
qualidade da metodologia científica utilizada, além da adequação às normas
editoriais adotadas pela revista.
A avaliação será feita por profissionais convidados,pelo sistema de revisão
por pares (peer review), para definir a aceitabilidade do manuscrito submetido
para publicação.
Os manuscritos avaliados podem ser enquadrados nos seguintes casos:
- publicação sem maiores revisões
- publicação após maiores revisões
- rejeitado para publicação
observação: caso seja solicitada uma revisão, isto não implica na obrigatoriedade
da publicação.

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• Encaminhamento dos artigos


Os trabalhos deverão ser entregues em disquetes de 3,5 ou enviados por
e-mail (confirmar o recebimento).
O processador de textos usado na sociedade é o Word, razão pela qual
solicitamos que os trabalhos sejam impressos preferencialmente nele.
Dados para a configuração do programa:
- Margem superior; 3 cm
- Margem inferior: 3 cm
- Margem direita: 3 cm
- Margem esquerda: 3 cm
- Papel: A4, retrato
- Fonte: Times N.Roman; corpo 11; não expandido(normal)
- Parágrafo: simples:justificado
- Cabeçalho: 1,5 cn
- Rodapé: 1,5 cm

Os disquetes devem ser entregues etiquetados com o nome do autor, o título


do trabalho e a data da entrega e dirigidos à comissão científica juntamente com
três cópias impressas do trabalho.
O trabalho impresso deverá ter todas as páginas numeradas.
Em cada trabalho enviado deve constar: o título do trabalho; o nome do autor;
a identificação do autor (que poderá ser usada para publicação); o endereço do
autor, com e-mail e telefone para contato.

• Como enviar o material para os editores


O material deve ser enviado para Editores da SPRJ, e enviados para a Secretaria
de SPRJ: Rua Fernandes Guimarães 92, Botafogo, Rio de Janeiro, CEP22290-000.
Tel/fax: (21)2295-3148; com uma carta aos editores solicitando publicação na
revista.

Uma vez entregues os trabalhos, a Comissão Científica comporá o sumário


da Revista, que poderá ter até um máximo de 500 páginas e o entregará a Comissão
de Comunicação pela Internet para publicação.
A Revista, em sua forma impressa, será entregue a todos os membros da SPRJ,
salvo aqueles que expressamente se manifestarem em contrário e sua cobrança
será acrescentada ao valor da mensalidade, no mês em que for editada.

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